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Uma possível arte afro-brasileira: corporeidade e ... - Unesp

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UNESP<br />

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA<br />

“Júlio de Mesquita Filho”<br />

Instituto de Artes – I.A.<br />

Programa de Pós-Graduação em Artes<br />

Mestrado<br />

<strong>Uma</strong> <strong>possível</strong> <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>: <strong>corporeidade</strong> e<br />

ancestralidade em quatro poéticas.<br />

JANAINA BARROS SILVA VIANA<br />

São Paulo - 2008


UNESP<br />

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA<br />

“Júlio de Mesquita Filho”<br />

Instituto de Artes – I.A.<br />

Programa de Pós-Graduação em Artes<br />

Mestrado<br />

<strong>Uma</strong> <strong>possível</strong> <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>: <strong>corporeidade</strong> e<br />

ancestralidade em quatro poéticas.<br />

JANANA BARROS SILVA VIANA<br />

São Paulo - 2008<br />

Dissertação submetida à UNESP como requisito<br />

parcial exigido pelo programa de Pós-Graduação<br />

em Artes, área de concentração em Artes<br />

Visuais, linha de pesquisa Abordagens Teóricas,<br />

Históricas e Culturais da Arte, sob orientação da<br />

prof. Dr. Livre Docente José Leonardo do<br />

Nascimento, para obtenção do título de Mestre<br />

em Artes.


Ficha Catalográfica.<br />

VIANA, Janaina Barros Silva<br />

<strong>Uma</strong> <strong>possível</strong> <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>: <strong>corporeidade</strong> e ancestralidade em quatro poéticas<br />

São Paulo, 2008 – 140 pgs.<br />

Dissertação – Mestrado. Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP.<br />

Orientador: José Leonardo do Nascimento.<br />

Palavras – chave: <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> contemporânea, cultura híbrida,<br />

<strong>corporeidade</strong>.


Dedico este trabalho ao amigo e companheiro Wagner e ao<br />

pequeno Álvaro que me acompanharam com o pensamento e o<br />

coração durante o percurso da gestação e da elaboração desse<br />

trabalho que foi apenas iniciado. E também a todos aqueles que<br />

de modo indireto ou direto partilharam desse processo.


Agradeço aos meus pais, Janilda e Osvaldo, por incentivarem<br />

em meus estudos. Agradeço ao amigo e companheiro Wagner<br />

Leite Viana, a Professora Claudete Ribeiro, aos amigos que fiz<br />

no Programa de Pós, ao Professor Ermelindo Nardin e ao Edson<br />

Martins Moraes por em diferentes períodos dessa pesquisa,<br />

auxiliaram-me em minhas dúvidas e reflexões permitindo que<br />

essa pesquisa se constituísse num corpo formal. E agradeço a<br />

orientação zelosa do Professor José Leonardo do Nascimento.


Resumo<br />

A pesquisa trata do corpo como modo de produção social, histórica<br />

e cultural, presentificado na <strong>arte</strong> de <strong>afro</strong>-descendentes. Um<br />

corpo que não é apenas biológico, mas que se manifesta de<br />

modo implícito, revelando uma estrutura social pautada na herança<br />

sócio–econômica escravista que encerra o indivíduo num<br />

ser-coisa.<br />

Desse modo, a configuração de uma imagem corporal pertence a<br />

um indivíduo e é confrontado no reconhecimento de um corpo<br />

social sustentado na afirmação de uma identidade coletiva. O<br />

corpo acaba por restituir ou destituir o ser de sua integridade<br />

pela busca de um sentido dentro de uma estrutura sócio-política.<br />

Proponho discutir cultura popular e <strong>arte</strong> popular como modo referencial<br />

de uma produção contemporânea, influenciadas por<br />

uma matriz africana representadas por povos de origem sudanesa<br />

e bantu, reelaboradas pela síntese cultural e decodificadas<br />

pela erudição na elaboração de obras definidas como <strong>arte</strong> <strong>afro</strong><strong>brasileira</strong>.<br />

O objeto a ser estudado implicará numa pesquisa qualitativa,<br />

bibliográfica e documental. A abordagem de caráter dialético<br />

baseia-se na construção do tema e a definição de uma poética<br />

<strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> discutidas pela produção de Mestre Didi, Rubem<br />

Valentim, Rosana Paulino e Yêdamaria. O enfoque tratado seria<br />

o poético, o histórico e o antropológico em confronto com as<br />

contradições estabelecidas pela matriz européia na constituição<br />

de uma cultura com aspectos nacionais.<br />

Palavras chaves: <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> contemporâ-<br />

nea, cultura híbrida e <strong>corporeidade</strong>.


Resumen<br />

La búsqueda es el cuerpo como la producción social, cultural e<br />

histórica presente en el <strong>arte</strong> de <strong>afro</strong>-descendientes. Un cuerpo<br />

que no es sólo biológico, sino que está implícito, revelando una<br />

estructura social sobre la base de herencia socioeconómica de la<br />

esclavitud, qué pone fin a la persona en un ser cosa.<br />

Así, la configuración de una imagen corporal pertenece a una<br />

persona y se enfrenta en reconocimiento de un cuerpo social<br />

sosteniendo y afirmando una identidad colectiva. El cuerpo acaba<br />

por restituir, o rechazar la integridad por buscar un sentido<br />

dentro de una estructura socio-político.<br />

Yo propongo discutir la cultura popular y el <strong>arte</strong> popular como<br />

referencial de una moderna producción en la <strong>arte</strong>, influenciada<br />

por una matriz africana representada por los pueblos de origen<br />

sudanés y bantú, considerando la síntesis cultural y la erudición<br />

en la elaboración de las obras definidas como <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-brasileña.<br />

El objeto estudiado entrañará una investigación cualitativa, de la<br />

literatura acerca del tema y documental. El método de carácter<br />

dialéctico se basa en la construcción de la cuestión y la<br />

definición de una poética <strong>afro</strong>-brasileña examinada por la<br />

producción de Mestre Didi, Rubem Valentim, Rosana Paulino y<br />

Yêdamaria. El objetivo tratado sería el poético, el histórico y<br />

antropológico en enfrentamiento con las contradicciones<br />

establecidas por la unión de matrices en la constitución de una<br />

cultura con aspectos nacionales.<br />

Palabras clave: el <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-brasileña, <strong>arte</strong> contemporánea<br />

brasileña, cultura híbrida y corporalidad.


SUMÁRIO<br />

INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 9<br />

1° CAPÍTULO...............................................................................................................20<br />

Cultura negra e hibridismo cultural numa poética <strong>brasileira</strong>......................................... 20<br />

Corpo e teatralidade: folia de reis, congada e candomblé.............................................. 29<br />

2º CAPITULO............................................................................................................... 54<br />

Elementos para discutir uma poética negra e <strong>brasileira</strong>................................................. 54<br />

Simbologia e corporalidade na mítica da produção <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> de mestre Didi e Rubem<br />

Valentim................................................................................................................. 79<br />

3º CAPITULO............................................................................................................... 91<br />

UMA POSSÍVEL ARTE AFRO-BRASILEIRA........................................................... 91<br />

Religião e espaço de exibição: tensões entre o popular e o erudito............................... 91<br />

Corpo e contemporaneidade: duas poéticas femininas e ancestrais nas obras de Rosana<br />

Paulino e Yêdamaria.................................................................................................... 106<br />

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES................................................................................................ 129<br />

BIBLIOGRAFIA........................................................................................................ 135


INTRODUÇÃO<br />

A pesquisa trata do corpo como modo de produção social, histórica e cultural,<br />

presentificado na <strong>arte</strong> de <strong>afro</strong>-descendentes. Um corpo que não é apenas biológico, mas<br />

que se manifesta de modo implícito, revelando uma estrutura social pautada na herança<br />

sócio–econômica escravagista que encerra o indivíduo num ser-coisa.<br />

Investigo a configuração de uma imagem corporal pertencente a um indivíduo<br />

confrontado no reconhecimento de um corpo social sustentado na afirmação de uma<br />

identidade coletiva. Neste aspecto, o corpo acaba por restituir ou destituir o ser de sua<br />

integridade na busca de um sentido dentro de uma estrutura sócio-política.<br />

O corpo, segundo Eliane Robert de Moraes (2002), na obra O corpo im<strong>possível</strong>,<br />

é o que nos confere o conceito de sujeito, o eu, como consciência que permite o conhe-<br />

cimento e o agir num grupo social.<br />

A partir da Idade média ocorre o desligamento dos seres de uma visão cosmoló-<br />

gica, conseqüentemente, é no Renascimento com a descrição da morfologia humana,<br />

provocada por inúmeros questionamentos a partir de um interesse pelo corpo e no pen-<br />

samento de um homem subjetivo. Contudo, a individualização desses seres, culminaria<br />

num dos fundamentos propostos pela modernidade construída na visão c<strong>arte</strong>siana e me-<br />

canicista de um corpo-fragmento. Surgido de um indivíduo autônomo, atuante e des-<br />

prendido de sacralidade.<br />

O contexto social determina a maneira como o ser atua em seu espaço. Cria refe-<br />

rências baseadas no seu valor cultural. É uma existência datada que não ignora o tempo<br />

e este, evoca a memória conectando-o ao passado e ao futuro. Retendo fatos já vivencia-<br />

dos embutidos em diferentes estados afetivos e emocionais.


No Renascimento, a fisiognomonia foi cultivada tendo como expoente Giamba-<br />

tista Della Porta que publicou Sulla Figura umana, como conteúdo trazia a idéia de que<br />

um indivíduo pode ser julgado quanto a sua índole pelo que lhe é mais imediato, e, por-<br />

tanto visível, que são os traços fisionômicos. Anteriormente Aristóteles já admitia que a<br />

natureza de uma coisa possuía como base a sua forma corpórea. (Panofsky: 1981)<br />

Na obra de Miguel Ângelo, Escravo Agonizante, localizado no Louvre, um<br />

escravo foi representado acompanhado pela imagem de um macaco emergida de uma<br />

massa de pedra amorfa. A descrição do macaco aproxima-se a do homem desprovido de<br />

sua liberdade por suas características corporais, com crânio redondo, testa baixa e<br />

quadrada e focinho saliente além de indicar como comportamento a lascividade, o<br />

impudor, a avareza que os neoplatônicos chamaram de commune cum brutis, o que há<br />

de comum entre homens e animais sem inteligência considerados como “Alma<br />

inferior”. A personificação da alma humana escravizada pela matéria.<br />

No século XVIII com as teorias evolucionistas estabelece-se a diferença entre<br />

seres, com teóricos como Buffon e De Pauw, delineando os grupos na forma de povos e<br />

nações. O termo raça começa a ser utilizado no século XIX sustentadas por teses polige-<br />

nistas como a frenologia e da antropometria que interpretavam a potencialidade humana<br />

pelo formato e tamanho do crânio. Com o desenvolvimento da Antropologia Criminal,<br />

seu principal representante, Cesare Lombroso, afirmava que a criminalidade é um fenô-<br />

meno físico e hereditário. O indivíduo estava fadado biologicamente a transgressão das<br />

normas sociais.<br />

Essas teorias justificaram o conceito de inferioridade racial e legitimaram a eco-<br />

nomia colonial pela hiperespecialização do trabalho de um grupo subjugado, no caso o<br />

africano, e pelo sincretismo negativo entre colonizador e colonizado. É o que Wilson<br />

Barbosa do Nascimento (2002), define como uniculturalismo, alicerçado na exploração


econômica direta, na expropriação da liberdade pela destruição física e cultural sistema-<br />

tizada do povo dominado.<br />

A posição de uma classe de indivíduo dominante passa a ser a única cultura pos-<br />

sível nas relações de convivência, negando o direito de existência de outras culturas.<br />

Este estrangulamento cultural demarca uma quase inexistência que define o sincretismo<br />

negativo.<br />

Isso não impede que tenha havido uma influência de povos de origens bantus e<br />

sudanesas na constituição de uma cultura <strong>brasileira</strong>. O que distingue esses povos é a vi-<br />

são cosmogônica e como o sagrado se manifesta.<br />

Os sudaneses concentraram-se durante o século XVIII-XIX na Bahia dominando<br />

as outras culturas negras aqui introduzidas. Cultura material e imaterial faz referência à<br />

religião dos orixás (candomblé). Em contraponto, os povos bantus, tinham como univer-<br />

so de adoração:<br />

(...)as pedras, os paralelepípedos e as lascas de pedra, acrescentando que,<br />

prestam um culto especial a flor do girassol, que representa a lua, reúnem-se<br />

em sessões chamadas macumbas e aí invocam seus santos: Ganga-Zumba,<br />

Cangira-mungongo, Cubango, Lingongo e outros(...). (Gallet, Estudos de folclore.<br />

In: O negro na música <strong>brasileira</strong>, 1934)<br />

Estabelece-se então, um sincretismo positivo, em que há a experiência de um<br />

processo de convergência, de semelhança ou convívio forçado entre as culturas relacio-<br />

nais. Ocorrendo um jogo de vida e morte entre culturas, em que as que conseguem so-<br />

brepor têm maiores chances de persistir.<br />

Para Roger Bastide, os curtos períodos de lazer nas senzalas e nas confrarias re-<br />

ligiosas que reuniam os negros permitiram a manutenção de elementos culturais africa-<br />

nos. No caso africano, verifica-se a justaposição da "arqueocivilização negra" e de um<br />

"folclore artificial imaginado pela Igreja”. (Peixoto: 1999)<br />

Discute-se a existência de uma cultura híbrida e dominante trazida pelo coloni-<br />

zador português, e que pelo processo justaposição de povos bantus e sudaneses, acaba-


am sendo transformadas pelos embates de diferenças de valores culturais. Assumindo<br />

outras características que formataram uma cultura de caráter nacional. <strong>Uma</strong> matriz cul-<br />

tural e étnica é instaurada, neste caso, a portuguesa estabelecendo outros valores com as<br />

culturas existentes no mesmo espaço de convivência. Agrega-se nessa estrutura elemen-<br />

tos culturais africanos e indígenas.<br />

A resistência cultural fica marcada nas manifestações populares, como no caso<br />

da Folia de Reis, que trata da personificação dos três Reis Magos, que são guiados por<br />

uma estrela no céu, que os direcionam para o local de nascimento do Menino Jesus.<br />

Os foliões resgatam nesse trajeto o tempo de origem, o tempo primordial pelo<br />

mito de eterno retorno, traduzidos no nascimento como revigoramento do passado<br />

histórico da comunidade participante. É de origem portuguesa e agrega valores dos<br />

povos bantus como os mitos de entronização e cerimônias de coroação de monarcas.<br />

A experiência do sagrado torna contemporâneo o acontecimento primordial. O<br />

povo conserva as tradições pela atualização dos mitos. É por meio dele que o homem se<br />

encontra dramatizado e cria uma proximidade com as divindades, e o mito vem<br />

acompanhado com o rito e o rito realiza o mito e permite a vivência.<br />

O rito remete ao tempo de origem pela repetição do ato criador dos deuses<br />

permitindo todo gesto criador humano, não importando o seu plano de referência,<br />

terreno ou divino.<br />

Proponho nessa pesquisa discutir cultura popular e <strong>arte</strong> popular como modo<br />

referencial de uma produção contemporânea. A diferenciação entre cultura erudita ou<br />

alta cultura, de cultura popular dá-se nas próprias condições de existência dos grupos<br />

subalternos que envolvem a desigualdade no acesso aos bens produzidos para a cultura<br />

dominante e nos meios materiais para o registro do dado fenômeno cultivado na<br />

memória.


A tradição remete em uma obra, o diálogo com outra inserida numa proposta<br />

específica. A cultura erudita lida com o conhecimento sistematizado ocorrendo<br />

intersecções através das relações hegemônicas de classe na visão ideológica de corpo<br />

social.<br />

Já <strong>arte</strong> popular, expressa uma visão poética, existente a partir do instante em que<br />

é vista. Sua funcionalidade está no processo concluído do objeto tornado artístico. Não<br />

necessariamente atua como utilitário. O que distingue do <strong>arte</strong>sanato, pois, para este sua<br />

existência não está descolada da idéia de uso.<br />

A cultura designa o modo de relacionamento com o real. Isso traz para a<br />

discussão a cultura negra como heterogeneidade na formação social <strong>brasileira</strong> e a<br />

predominância de uma cultura européia em oposição a uma cultura africana. Nesse<br />

embate busco a constituição de uma identidade.<br />

Pensando-se na existência de uma <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> contemporânea, surgida pelos<br />

artistas que vieram anteriormente e que transpuseram os modelos da <strong>arte</strong> européia para a<br />

realidade <strong>brasileira</strong>. Participam nessa construção visual, artistas das mais variadas<br />

gerações, responsáveis por obras que vão desde as de origem eminentemente moderna<br />

até as que rompem com esses cânones.<br />

No século XIX, artistas como Debret e Rugendas, utilizaram o negro como<br />

representação, em contraposição a artistas <strong>afro</strong>-descendentes, como Estevão Silva,<br />

Antônio Rafael Pinto Bandeira e Artur Timóteo da Costa que voltavam a sua produção<br />

em função do gosto da elite da época. A estética negra não aparece como tema, nem<br />

como aspecto formal nas obras desses artistas.<br />

A principal problemática levantada pela pesquisa é se há uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong><br />

contemporânea, pensando-se na existência de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> delineada por


uma poética tradicional e popular representada durante o século XX nas obras de<br />

artistas <strong>afro</strong>-descendentes.<br />

O fato de a mitologia, a religião e a <strong>arte</strong> representarem um veículo sensível de<br />

cultura e transmissão de conteúdos, como as necessidades latentes dos seres. Pode-se<br />

afirmar, que esses três campos de conhecimento não podem ser entendidos<br />

autonomamente, estão interligados e são definidos como um caráter de identificação e<br />

ancestralidade na expressão de virtudes individuais e coletivas.<br />

Para entendê-la é preciso avaliar o processo histórico, a questão da escravidão<br />

que modificou a estrutura original das religiões, e a necessidade do negro de se<br />

comunicar através de estratégias que permitissem a recriação de seu meio como modo<br />

de não se despersonalizar e aprofundar-se nos seus valores mais latentes acrescidos de<br />

outros surgidos do novo ambiente.<br />

A aproximação da religião católica com a africana fez com que houvesse a<br />

continuidade das formas artísticas plásticas desta e o surgimento de uma linguagem<br />

plástica <strong>brasileira</strong>.<br />

A idéia de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> aparece a partir dos anos 30 e 40, saindo dos<br />

espaços de cultos. Esses artistas começam a trabalhar dentro do conceito de <strong>arte</strong><br />

popular, encorajados pelo movimento modernista e pela busca de um nacionalismo.<br />

Nesse período ocorrem os Congressos <strong>afro</strong>-brasileiros em Recife (1934) e em<br />

Salvador (1937), as missões folclóricas enviadas ao Norte e Nordeste por Mário de<br />

Andrade em 1937-38. Começa-se a esboçar uma <strong>arte</strong> de linguagem plástica universal<br />

com elementos de identidade negra.<br />

<strong>Uma</strong> outra questão seria qual o critério para se definir uma obra como <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<br />

<strong>brasileira</strong>. Tendo por base caminhos propostos por alguns artistas que poderiam não ser<br />

necessariamente <strong>afro</strong>-brasileiros, como nas seguintes linhas:


Os que utilizaram o tema incidentalmente aparecendo esporadicamente na<br />

produção não articuladas com uma escolha de pesquisa de uma poética. No caso de<br />

artistas como Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Alberto da Veiga Guignard, Portinari,<br />

Djanira e José Pancetti.<br />

Os que sistematizaram sua produção com o interesse de buscar uma poética<br />

negra como condutora de toda a produção plástica, como nas obras de Carybé, Mário<br />

Cravo Jr. e Di Cavalcanti.<br />

Nesses dois grupos os artistas possuem de certo modo origem étnica européia. O<br />

terceiro grupo seria aquele em que os artistas manipulam espontaneamente e<br />

inconscientemente as soluções plásticas africanas expressas também como tema.<br />

Essencialmente são de origem africana. Como exemplo, artistas como Rubem Valentim,<br />

Mestre Didi, Ronaldo Rego, Hélio de Oliveira e Agnaldo Manuel dos Santos.<br />

Quais vias podem indicar a presença de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> na contempora-<br />

neidade inserida numa poética <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>?<br />

Nessa problemática, ocorre o diálogo da construção de elementos possíveis de<br />

caracterizar ou apontar caminhos para o encontro de uma poética <strong>afro</strong>-descendente den-<br />

tro de um discurso pautado no conceito de contemporaneidade. Sendo contextualizadas<br />

a partir do desdobramento das linguagens artísticas em conseqüência das vanguardas<br />

que foram absorvidas nos signos da tradição e re-significadas pela visão particular do<br />

artista.<br />

Propõe-se a relação entre cultura e <strong>arte</strong> populares: matriz africana de origem su-<br />

danesa e bantu na elaboração de uma síntese cultural.<br />

O método para a pesquisa é o proposto pela iconologia para a compreensão dos<br />

artistas citados e para o desenvolvimento das questões levantadas. Essa análise ocorre<br />

em três níveis segundo Erwin Panofsky:


1. Tema primário ou natural: são os motivos artísticos descritos, enumerados e<br />

identificados com os acontecimentos. Constitui-se numa descrição pré-iconográfi-<br />

ca pela história do estilo.<br />

2. Tema secundário ou convencional: o reconhecimento das imagens (estórias e<br />

alegorias). Familiaridade com conceitos ou temas específicos expressos à obra. O<br />

tema em oposição à forma caracterizando a análise iconográfica pela história dos<br />

tipos.<br />

3. Significado intrínseco ou conteúdo: refere-se ao conteúdo e a familiaridade com<br />

as tendências essenciais da mente. Configurando nos valores do mundo “simbóli-<br />

co” A interpretação decorre da síntese. Define-se numa interpretação iconológica<br />

pela história dos sintomas culturais.<br />

Este trabalho é composto por três capítulos organizados do seguinte modo:<br />

1.Cultura negra e hibridismo cultural numa poética <strong>brasileira</strong><br />

Discute-se o diálogo entre povos de origem bantus e sudanesas e as influências<br />

na formação de uma cultura de caráter nacional pelo processo de uniculturalismo que<br />

pode ser tanto negativo como positivo na relação sincrética entre diferentes seres perten-<br />

centes a grupos definidos. E as suas relações de dominação entre culturas envolvem a<br />

constituição de identidade enquanto corpo sócio-político e cultural no estudo de três ca-<br />

sos específicos: a Folia de Santos Reis, a Congada e o Candomblé. Essas construções<br />

culturais e sociais referem-se tanto à tradição, à memória, à cosmogonia e quanto à vida<br />

como dimensão religiosa. É a memória que possibilita tecer a relação com o antigo e<br />

com a experiência de relacionamentos de um homem dramatizado e divinizado impreg-<br />

nado de sagrado.<br />

2. Elementos para discutir uma poética negra e <strong>brasileira</strong>


Neste capítulo delimita-se o que seria uma produção <strong>afro</strong>-descendente gerada de<br />

cânones próprios de origem religiosa pelo uso de signos e símbolos para a construção de<br />

imagens transmutadas em linguagens provenientes do barroco. Partindo do século<br />

XVIII a presença de negros e mestiços nos trabalhos de <strong>arte</strong>, atuando a princípio como<br />

aprendizes, ajudantes ou participantes de grupos nos trabalhos dos monumentos religio-<br />

sos, começa no decorrer do século XIX com a desvalorização das produções de artistas<br />

de origem negra e o fortalecimento do neoclassicismo atrelado a formação de elites.<br />

As produções apresentadas concentram-se no século XX, com as obras de Mes-<br />

tre Didi e Rubem Valentim, retomando alguns acontecimentos importantes para o apon-<br />

tamento de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, neste caso, a expedição e a catalogação feita por<br />

Mário de Andrade nos anos 30 e, na mesma década e entrando nos anos 40, o Congres-<br />

so Negro buscando compreender e sistematizar uma produção que se baseia num corpo<br />

ancestral que é histórico, social e econômico.<br />

A partir da noção de sociedade e da concepção de relações vivenciadas na cultu-<br />

ra popular, tratada a princípio como a prática particular de grupos subalternos que se<br />

modificam juntamente com o contexto social em que estão inseridos; não sendo práticas<br />

cristalizadas são transformadas pela produção econômica e distribuição dos seres nos<br />

espaços relacionais tanto entre outros grupos como no próprio. Sua existência dá-se de<br />

acordo com a visão ideológica e os interesses de uma classe dominada em contraponto a<br />

hegemonia submetida pelas classes dominantes.<br />

Retoma-se o conceito de hibridismo no sentido de abranger diferentes mesclas<br />

interculturais na relação entre erudito e popular não se referindo apenas as questões ra-<br />

ciais ou religiosas entre tradição e modernidade. O processo de modernização cria o re-<br />

dimensionamento entre <strong>arte</strong> e cultura popular, o saber acadêmico ou erudito e cultura<br />

industrializada.


3. <strong>Uma</strong> <strong>possível</strong> <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong><br />

Propõe-se aqui uma discussão sobre o fazer artístico numa cultura de caráter po-<br />

pular que não é cristalizada e que se renova nas elaborações conscientes e inconscientes<br />

de uma coletividade revitalizada nas crenças que concernem às origens <strong>afro</strong>-descenden-<br />

tes dos artistas a serem trabalhados neste capítulo.<br />

<strong>Uma</strong> possibilidade contemporânea traduzida em discurso por Joseph Beyus era<br />

aproximação do processo entre o observador da obra e o artista, permitindo a qualquer<br />

indivíduo tornar-se um produtor cultural. Esse estreitamento dá-se pela construção de<br />

pensamento, o conceito e o procedimento no modo que um indivíduo manipula a maté-<br />

ria. É o que Pareyson (2001) menciona quando trata do conceito de poética para locali-<br />

zar como o artista entende a realidade da <strong>arte</strong> que ele pratica, os sentimentos, as convic-<br />

ções, as crenças, as aspirações, os pensamentos, os costumes, as idéias e o ideal como<br />

algo que o antecede.<br />

O que caracteriza uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>? Sabendo-se que há nessa produção a<br />

presença do sagrado indicada por diferentes vias expressivas. O tema e a origem étnica<br />

são determinantes?<br />

Pensando-se na existência de uma Arte Brasileira configurada pelo processo de<br />

integração, esfacelamento dos projetos estéticos e a sua revisão surgida pela moderniza-<br />

ção acelerada e alimentada pelas contradições sociais revisitadas pela vanguarda dos<br />

anos 60. Revelam as crises ao mesmo instante que desejam solucioná-las. Pela destrui-<br />

ção reconstrói-se a História e a transforma.<br />

A partir dessas questões propõe-se a discussão de algumas vias que poderiam ca-<br />

racterizar uma poética <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, discute-se uma <strong>corporeidade</strong> ancestral e uma con-<br />

temporaneidade nas obras de Rosana Paulino e Yêdamaria, Rubem Valentim e Mestre<br />

Didi.


A abordagem de caráter dialético baseia-se na construção do tema da pesquisa e<br />

a definição de uma estética <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> discutidas na produção visual desses artistas.<br />

O enfoque tratado seria o histórico e o antropológico em confronto com as contradições<br />

estabelecidas pela matriz européia na constituição de uma cultura com aspectos nacio-<br />

nais. Poderia ser definido a partir da acepção de culturas híbridas, e, portanto, relacio-<br />

nais, a existência de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> seguida paralelamente a uma <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong><br />

contemporânea.


1° CAPÍTULO<br />

CULTURA NEGRA E HIBRIDISMO CULTURAL NUMA POÉTICA BRASILEIRA<br />

A resistência escrava no Brasil dava-se nos espaços de festas e devoção através<br />

da reinterpretação dos códigos de suas culturas em função do material imposto pelo<br />

Senhor. A memória dos signos de origem encontrava-se marcada no corpo tanto no<br />

campo do visível quanto do não-visível recuperando os fragmentos da cosmologia<br />

africana na escravidão.<br />

Machado de Assis, no conto Pai contra Mãe, retrata como ocorriam as formas<br />

violentas de amoldar um indivíduo destituindo-o de sua essência mais imediata na sua<br />

relação com o sagrado e com o terreno, no uso de objetos de tortura pelo não<br />

enquadramento comportamental ao que era esperado pelo Senhor. Durante esse período,<br />

uma prática comum eram os anúncios em jornais para se tentar reaver um escravo<br />

fugido oferecendo-se recompensas. Esses retratos elaborados pela descrição textual<br />

minuciosa de marcas na pele, modos de andar, estatura, diferenciação de gradação de<br />

tez, cabelo e características psicológicas permitiam criar uma imagem e até mesmo<br />

identificar o retratado no processo de captura. Os escravos dentro desse sistema<br />

alcançavam destaque nas possíveis transações comerciais, compra, venda, troca,<br />

aluguel, leilões e fuga.<br />

Os anúncios com a campanha abolicionista foram perdendo destaque nas<br />

descrições e nos letreiros dos títulos em negrito. Eram indicados como uma mancha.<br />

Um negro representado com uma trouxa nas costas no instante de fuga. Como<br />

conseqüência desse momento transitório em razão das mudanças de ordem econômica,<br />

moral, cultural e intelectual ocorridas, essas formas de aviso rarearam até se<br />

extinguirem por completo.


A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras<br />

instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo<br />

ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a<br />

máscara de folha-de–flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez<br />

aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um<br />

para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado.<br />

(...)<br />

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira<br />

grossa, com a haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao alto da<br />

cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos<br />

castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava<br />

um reincidente, e com pouco era pegado.<br />

(...)<br />

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse.<br />

Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a<br />

roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e quantia de<br />

gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: “gratificar-se-á<br />

generosamente”, - ou “receberá uma boa gratificação”. Muita vez o anúncio<br />

trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo,<br />

vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei<br />

contra quem o acoutasse (...). (Assis: 1996, 105-6)<br />

Esse corpo identificado não somente pela tez, contudo, pela sua historicidade,<br />

que em sua origem no desempenho das funções sociais tratava-se de um corpo-objeto,<br />

corpo-máquina, um corpo voltado para o trabalho na manutenção econômica do<br />

sistema.<br />

Conforme a colonização tornava-se significativa, as crenças ocupavam espaços<br />

nos convívios sociais. A crença distingue a vida prática da vida teórica e o saber da<br />

ilusão. A modernidade configura-se nas relações daqueles que acreditam que os outros<br />

acreditam em algo. Essas convicções na apreensão dos assentimentos das verdades da fé<br />

que um grupo confia que outro tenha, definiria o conceito de crença.<br />

O sociólogo Bruno Latour, em sua obra Reflexão sobre o culto moderno dos<br />

deuses fe(i)tiches, apresenta um diálogo imaginário entre os colonizadores portugueses<br />

e os africanos da Costa de Guiné, não como iconoclastas e nem iconófilos mas,<br />

apresentam-se como iconodúlios por prestarem culto a um algum tipo de ícone que é<br />

representativo para seus grupos sociais. Mesmo na negação do fetiche encontra-se a<br />

afirmação do que é feito, fabricado, tornado encantado envolvido na sua anima.<br />

Vocês fabricaram com suas próprias mãos os ídolos de pedra, de argila e de<br />

madeira que vocês reverenciam?, os guineenses responderam sem hesitar que


sim. Intimados a responder à segunda questão:” Esses ídolos de pedra, de<br />

argila e de madeira são verdadeiras divindades?, os negros responderam com<br />

a maior inocência que sim, claro, sem o que, eles não os teriam fabricado<br />

com suas próprias mãos! Os portugueses, escandalizados mas escrupulosos,<br />

não querendo condenar sem provas, oferecem uma última chance aos<br />

africanos: “ Vocês não podem dizer que fabricaram seus fetiches, e que estes<br />

são, ao mesmo tempo, verdadeiras divindades, vocês têm que escolher, ou<br />

bem um ou bem outro; a menos que, diriam indignados, vocês não tenham<br />

miolos, e que sejam insensíveis ao princípio de contradição como ao pecado<br />

da idolatria.” Silêncio embotado dos negros que, na falta de discernimento da<br />

contradição, provam, frente ao seu embaraço, quantos degraus os separam da<br />

plena e completa humanidade...Pressionados pelas questões, obstinam-se a<br />

repetir que fabricaram seus ídolos que, por conseqüência, os mesmos são<br />

verdadeiras divindades. Zombarias, escárnio, aversão dos portugueses frente<br />

a tanta má fé.”<br />

(...)<br />

“Quem fala no oráculo é o humano que articula ou o objeto-encantado? A<br />

divindade é real ou artificial? – “Os dois”, respondem os acusados, sem<br />

hesitar, incapazes que são de compreender a oposição.– “ É preciso que vocês<br />

escolham”, afirmam os conquistadores, sem menor hesitação. As duas raízes<br />

da palavra indicam bem a ambigüidade do objeto que fala, que é fabricado<br />

ou, para reunir em uma só expressão os dois sentidos, que faz falar.”<br />

(...)<br />

-“Cinzelados com <strong>arte</strong> por nossos ourives”, teriam respondido<br />

orgulhosamente. – “E por isso eles são sagrados?”, teriam então perguntado<br />

os negros. “Mas claro, benzidos solenemente na igreja Nossa Senhora dos<br />

Remédios, pelo arcebispo, na presença do rei”. –“Se vocês reconhecem<br />

então, ao mesmo tempo, a transformação do ouro e da prata no cadinho do<br />

ourives, e o caráter sagrado dos seus ícones, por que nos acusam de<br />

contradição, nós que não dizemos outra coisa? Para feitiço, feitiço e meio.” –<br />

“Sacrilégio! Ninguém pode confundir ídolos a serem destruídos com ícones a<br />

serem louvados”, teriam respondido os portugueses, indignados, uma<br />

segunda vez, com tanta imprudência.”(Latour: 2002, 15-8).<br />

Os cultos dos deuses africanos são colocados como culturas fetichistas em<br />

oposição a européia como anti-fetichista. O fetiche transforma o criador em criatura<br />

invertendo a origem da ação. Tanto um povo quanto outro fabricavam os seus objetos<br />

de adoração. Os europeus diferenciam-se por instituírem ídolos para outros e para si<br />

mesmos, destruindo-os e multiplicando-os em seus domínios pela disseminação dada<br />

como origem de sua ação de quem domina ou de quem é dominado.<br />

Os seres atuam como agentes sociais buscando transcendência em suas vidas. A<br />

religião ao mesmo tempo, explica os fenômenos como também os tornam obscuros.<br />

Marx define fetichismo e mercadoria como relações não autônomas entre os indivíduos,<br />

(...) assume a forma fantasmagórica de uma relação entre as coisas. Para<br />

encontrar uma analogia para este fenômeno, temos de ir buscá-la na região<br />

nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano têm o<br />

aspecto de figuras autônomas, dotadas de vida própria, que mantêm relações<br />

entre si e com os homens. Dá-se o mesmo com os produtos da mão humana


no mundo da mercadoria. É o que chamo por fetichismo, que adere aos<br />

produtos do trabalho, tão logo se apresentam como mercadorias, fetichismo<br />

inseparável deste modo de produção. (Marx apud Latour: 2002, 28).<br />

Na introdução do livro Os africanos no Brasil, Nina Rodrigues, faz uma<br />

abordagem cientificista e evolucionista sobre a inferioridade negra e o negro é visto<br />

como um problema para o país, algo a ser reparado e como solução a necessidade de se<br />

propor uma profilaxia social. Ainda na introdução é abordado o critério de inferioridade<br />

da raça negra, que ele vê como:<br />

(...) um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha<br />

desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas<br />

divisões ou secções.” (Rodrigues: 1977, 5). “Os negros africanos, ensina<br />

Hovelacque, são o que são; nem melhores, nem piores do que os brancos;<br />

pertencem apenas a uma outra fase do desenvolvimento intelectual ou moral.<br />

(Rodrigues: 1977, 5).<br />

O aspecto físico torna-se um elemento diferenciador das relações econômicas e<br />

sociais. Distinguindo dominador e dominado. Biologicamente o negro é definido com<br />

caracteres específicos: “pigmentação escura da pele, prognatismo, lábios espessos,<br />

nariz chato, cabelos encarapinhados (...).”(Ramos: 1979, 13).<br />

Como também de cultura ‘inferior’, religião pouco desenvolvida de um<br />

fetichismo rude, vida social em estado de barbárie, com práticas de antropofagia.<br />

Durante o século XIX os estudos baseados em doutrinas evolucionistas posicionavam o<br />

negro como indivíduos pertencentes a categorias de indivíduos inferiores. Isto se<br />

justificava, segundo Ramos, pela questão econômica, pois:<br />

(...) estariam nas etapas primitivas dos povos caçadores e pastores, poucos<br />

atingindo a fase de agricultores. A família pouco se teria aperfeiçoado, da<br />

promiscuidade primitiva ao matriarcado. Na religião, lavraria na África<br />

o“grosseiro” fetichismo, alguns povos atingindo a religião dos nature-gods, a<br />

idolatria e o xamanismo. Sociologicamente, constituiriam agregados que, da<br />

horda primitiva, apenas conseguiram um pequeno aperfeiçoamento em clãs,<br />

tribos e sociedades simples. Do ponto de vista psicológico, os africanos<br />

constituiriam os representantes mais típicos dos Naturvölker, de inteligência<br />

rudimentar e atraso cultural em conseqüência da sua incapacidade psíquica.<br />

(Ramos: 1979, 19-20).


O espírito científico brasileiro fundamentava-se no final do século XIX com<br />

teorias distantes de uma ciência experimental ou sociológica como a de Durkheim ou<br />

Weber baseando-se no pensamento evolucionista e darwinista.<br />

Rodrigues aliou a antropologia científica com a criminal, embasadas pelas<br />

teorias de Cesare Lombroso aproximando-as com suas pesquisas na área médico-legal,<br />

este acreditava que a inferioridade racial estava fora de qualquer dúvida científica, via a<br />

região tropical condenada pela possibilidade de se ter um país dividido entre um Sul<br />

branco e a degeneração do homem pelo processo de mestiçagem no Norte. Outros<br />

teóricos como Silvio Romero e Euclides da Cunha tratavam o mestiço como seres<br />

cheios de desvios morais justificados pela promiscuidade no período colonial que<br />

impediam estes de acompanhar um desenvolvimento progressivo. Essa dita decadência<br />

era corroborada por teóricos estrangeiros que discutiam o termo raça como caminho<br />

para a evolução de um potencial de civilidade de uma nação tais como Buckle, Kidd, Le<br />

Bon, Gobineau e Lapouge.<br />

As mudanças econômicas ocorridas pelo processo de abolição, o fluxo<br />

migratório europeu, o florescimento da industrialização e da urbanização culminaram<br />

nas tensões sociais, decorrentes das transformações políticas e econômicas causadas<br />

pela crise do modelo republicano, até então justificadas pela miscigenação. Os<br />

problemas sociais encontravam-se na etnia geneticamente dotada de pouca inteligência<br />

e de comportamento indolente, portanto, um mal a ser controlado para a sobrevivência<br />

da democracia na nova ordem vigente.<br />

Pautados por essa estrutura de pensamento a medida encontrada era o<br />

branqueamento da sociedade por meio da miscigenação controlada. Alguns teóricos<br />

como Silvio Romero, Euclides da Cunha, Graça Aranha, Nina Rodrigues, Oliveira


Viana apresentavam soluções para dissolução do que consideravam uma “mancha<br />

negra” para o sonho branco da elite dirigente.<br />

Algumas medidas foram tomadas para o processo de arianizar a sociedade, como<br />

o projeto de lei de nº 209 de 1921 que impedia a entrada no país de imigrantes de<br />

origem negra. Em 1923 o projeto passaria por algumas alterações no que se referia à<br />

interferência no branqueamento do brasileiro não modificando a essência de seu<br />

conteúdo. Durante os anos 30, as leis propostas continuavam indicando a busca de uma<br />

hegemonia branca pelo processo de mestiçagem positiva, como na Constituição de 1934<br />

e a Carta Constitucional de 1937. O Decreto-Lei n° 7967, de 1945, apresentava<br />

claramente o ensejo do projeto de formação de uma sociedade etnicamente branca<br />

estimulando a vinda para o país de grupos étnicos que não fossem negros.<br />

O mal-estar causado pela mestiçagem provocava a necessidade de expurgar o<br />

que era enfermidade nas populações que não poderiam ser transformadas e recuperadas<br />

da sua degeneração.<br />

O termo degeneração foi desenvolvido pelo jurista Cornelius de Pauw para<br />

definir espécies pouco complexas em sua constituição orgânica. Referia-se a sua<br />

concepção aos povos provenientes da América como de formação prematura, de<br />

debilidade corrompida e decaída.<br />

Para E. Renan, teórico do século XIX, os seres eram divididos em três raças,<br />

branca, negra e amarela com diversos níveis de desenvolução. Os que pertenciam aos<br />

grupos negros, amarelos e miscigenados eram considerados incivilizados reafirmando o<br />

que outros teóricos já diziam sobre a inferioridade de negros e mestiços ao<br />

estabelecerem uma desigualdade hierárquica entre outras raças.<br />

Georges Cuvier definiu no início do século XIX o termo raça como a diferença<br />

biológica nos caracteres físicos comuns entre os seres.


A teoria das raças possuía um discurso pautado no determinismo que definia que<br />

o progresso de uma nação era condicionado ao meio geográfico e a divisão entre povos<br />

por seus caracteres físicos e morais indicando um divisor cultural. Comparavam-se os<br />

cruzamentos entre a raça humana como às acontecidas entre o cavalo e o asno, por<br />

exemplo; a palavra mulato, define o cruzamento entre esses animais, sendo considerado<br />

um fim em si mesmo. As raças constituiriam fenômenos finais, imutáveis, qualquer<br />

forma de caldeamento comprometeria o processo evolutivo das nações. Ao arbítrio<br />

contrapunha-se a uma visão biológica do sujeito que o localizava enquanto ser coisa e,<br />

portanto, alienado, um produto dos atributos e especificidades das raças a que pertencia.<br />

Até meados do século XIX detinha-se uma visão monogenista, no qual, o<br />

homem era originário de uma fonte única, suas virtudes e imperfeições nas<br />

diferenciações dos indivíduos garantir-se-iam mesmo com um desenvolvimento<br />

moroso, contudo, uniforme. A partir da segunda metade, contestava-se o dogma<br />

monogenista da Igreja e com os estudos da ciência biológica na interpretação do<br />

comportamento humano, sustentadas por leis biológicas e naturais chegava-se então, na<br />

poligenia. Simultaneamente, a frenologia e antropometria que interpretavam as<br />

capacidades físicas, morais e intelectuais tendo como referencial o tamanho e a<br />

proporção cerebral, alimentavam a transformação de pensamentos. A craniologia<br />

técnica distinguia as variedades do cérebro humano pela medição do índice cefálico.<br />

Podia-se a partir disso, observar a natureza do comportamento daqueles que cometiam<br />

crimes. A antropologia criminal determinava e enquadrava os seres nesses modelos para<br />

detectar os desvios que já eram anteriores ao nascimento, trazidos nos genes dominantes<br />

e impossíveis de serem alterados. Como os casos de embriaguez, alienação, epilepsia,<br />

violência ou amoralidade como qualidades das imperfeições humanas.


No artigo publicado na Gazeta Medica da Bahia, o prof. S. Boccanera Neto,<br />

mencionava o estigma do criminoso, que estava no sujeito e não os seus atos. A ação só<br />

comprovaria a sua propensão ao delito que era fruto de suas perversões morais e<br />

psíquicas :<br />

Em these a criminalidade resulta da innormalidade physica subita, ou<br />

persistente por degenescencias, degradações parciais ou gerais adquiridas de<br />

forma hereditaria e por hibridação... Todo criminoso apresenta sinaes<br />

lombrosianos communs, ou especificos a hora do crimme, quando se lhe<br />

acommete um pannus de visão interior, um estado de obscurecimento (GMB:<br />

1927, 215-6 apud SCHWARCZ: 2000, 210)<br />

A capacidade era vista resultante da hereditariedade e não do processo<br />

educativo. O ideal político de reorganização racial era a intervenção na reprodução dos<br />

grupos subjugados como inferiores. A eugenia, termo cunhado pelo cientista britânico<br />

Francis Galton em 1883, que publicou em 1869 a obra Hereditary genius, um conceito<br />

ainda embrionário, definia–se como a criação de uma sociedade saudável e <strong>possível</strong> de<br />

se reverter da degeneração mestiça dos povos.<br />

-A mestiçagem deve ser até certo ponto encarada psycolgicamente como<br />

factor de degeneração. Entre nós, é constituída de elementos de várias<br />

procedências portadores de caracteres etnicos diversos e condições especiaes<br />

que sob as influências mesológicas devem trazer uma perturbação innevitavel<br />

na organização do equilibrio inobstavel. A mestiçagem extremada aqui<br />

encontrada... ou dificulta a unificação dos typos, ora perturbando traços<br />

esssenciaes, ora fazendo reviver nas populações caracteres atavicos de<br />

indivíduos mergulhados na noite dos tempos. É preciso mudar as raças...<br />

(GMB: 1923, 256 apud SCHWARCZ: 2000, 216)<br />

A solução darwinista encontrada para sanar esse estado de “barbárie” estava na<br />

seleção natural dos indivíduos na tese de branqueamento, formaria num tempo distante,<br />

características consideradas ideais: indivíduos brancos culturalmente e fisicamente.<br />

A eugenia vigorava como tentativa de estabelecer o princípio de branqueamento,<br />

adotando escala de valores para determinar níveis de superioridade, branco, mestiço e<br />

negro. Definiram por meio de “pesquisas” a incidência de doenças mentais de origem<br />

tóxico-infecciosa, sífilis e alcoolismo, na população de origem negra. A Comissão<br />

Central Brasileira de Eugenia, fundada em 1931 por Renato Kehl, e a Liga Brasileira de


Higiene Mental, seguidos por uma visão organicista, aplicava aos fatos sociais as leis e<br />

as teorias biológicas, sugestionando o controle do Estado nos processos reprodutores<br />

desinteressantes, regulamentação das imigrações e esterilização dos doentes mentais. O<br />

negro possuía uma imagem denegrida na caracterização de uma inferioridade biológica<br />

racial, isso, auxiliava para explicar as condições precárias de existência de uma maioria<br />

de trabalhadores constituída por ex-escravos negros e mestiços marginalizados. Era um<br />

modo de negar os problemas sociais, justificadas por um determinismo biológico,<br />

desconsiderando as desigualdades sociais e econômicas.<br />

<strong>Uma</strong> concepção “científica“ apoiada pelo governo Vargas numa aproximação<br />

das teorias nazistas de aperfeiçoamento de um tipo étnico ideal. Nos seus discursos<br />

Getúlio Vargas aludia a eugenia e afirmação de ideário ariano conseguido pela educação<br />

física, moral, cívica, industrial e agrícola.<br />

As teorias acerca das inferioridades raciais e leis que incentivam a imigração<br />

européia como modo de idealizar e conceber uma sociedade branca e sem desvios<br />

morais e culturais coincide com a realização dos Congressos Afro-Brasileiros (Recife,<br />

1934 e o de Salvador, 1937). Enquanto o negro, considerado inferior biologicamente,<br />

era visto como causador de mazelas sociais pelas teorias de falso cunho cientificista,<br />

haviam alguns teóricos como Arthur Ramos, Mário de Andrade, Édison Carneiro e<br />

Gilberto Freyre, que pesquisavam a contribuição e a valorização do negro para a<br />

formação da cultura nacional possibilitando o surgimento de um olhar até então<br />

inexistente para a produção material de origem africana.<br />

Corpo e teatralidade: folia de reis, congada e candomblé<br />

O contingente cultural trazido para o Brasil serviu como uma das bases para<br />

fundamentação de uma identidade nacional em construção contínua. Tem-se como base


a cultura oficial de tronco européia justaposta às relacionais que se convergem e se<br />

transformam. Como é o caso da Folia de Reis, de origem portuguesa, que acabou<br />

ressignificada pelo encontro dos embates culturais, a Congada estabelecida como<br />

contraponto para delinear uma poética negra trazida pelo material bantu no<br />

enquadramento das práticas culturais africanas num folclore artificial criado pela Igreja;<br />

e o candomblé como justaposição de valores religiosos negros na figura dos orixás na<br />

transposição e correspondência para os santos católicos elaborados por povos<br />

sudaneses.<br />

Sergio Ferreti, em Repensando o Sincretismo (1995), citou os diferentes sentidos<br />

que esse vocábulo pode indicar, aproximando-se do conceito de hibridismo cultural. As<br />

variantes acerca do significado de sincretismo foram enumerados do 0 ao 3 estruturam-<br />

se da seguinte maneira:<br />

0 – Separação, não - sincretismo (hipotético);<br />

1 – mistura, junção, ou fusão;<br />

2 – paralelismo ou justaposição;<br />

3 – convergência ou adaptação.<br />

Podemos dizer que existe convergência entre idéias africanas e de outras<br />

religiões, sobre a concepção de Deus ou sobre o conceito de reencarnação;<br />

que existe paralelismo nas relações entre orixás e santos católicos; que existe<br />

mistura na observação de certos rituais pelo povo - de – santo, como o<br />

batismo e a missa de sétimo dia, e que existe separação em rituais específicos<br />

de terreiros, como no tambor de choro ou axexê, no arrambam ou no<br />

lorogum, que são diferentes dos rituais das outras religiões. (Ferreti,<br />

1995:30).<br />

O historiador econômico Wilson do Nascimento Barbosa na obra Cultura negra<br />

e dominação (2002) referiu-se ao conceito de uniculturalismo como fusão de uma<br />

cultura dominante e sua ideologia social subjugando as outras existentes. O seu traço<br />

mais marcante é o sincretismo negativo que estabelece uma política cultural de<br />

dominação. Nega-se uma base étnica como também as diferenças entre os povos. Outro<br />

fator para a sujeição do outro é a hiperespecialização do trabalho em que um indivíduo<br />

subordina-se materialmente para um sistema econômico e, como conseqüência, o seu<br />

corpo social é aniquilado e desfigurado do seu corpo físico.


A cultura possui uma pertença étnica que não pode ser dissociada de uma idéia<br />

de uma etnocultura. Seu aspecto multifacetado permite a definição de um pluralismo<br />

étnico-cultural. O exercício de domínio da cultura oficial impede a afirmação da<br />

pluriétnicidade como meio para suster o seu discurso contendo os princípios coerentes<br />

de classe para sua existência.<br />

As religiões e cultos bantus acreditavam num Deus supremo, criador do<br />

universo, podendo assumir diferentes nomes de acordo com a região, Nzaambi, marimo,<br />

Reza e Molungu. Os infindáveis deuses e espíritos eram propensos a maldade e a<br />

bondade. Suas representações com pequenos pedaços de madeira ou marfim esculpidos,<br />

denominados iteques, eram trazidos pendurados no pescoço pelos feiticeiros ou<br />

quimbandas. Esses grãos-mestres recebiam nomes derivados de quimbandas como<br />

umbanda, embanda e banda que originam-se da palavra mbanda, referia-se tanto ao<br />

sacerdote, quanto ao lugar ou processo ritual. Os ancestrais, a família e a linhagem<br />

permitiam o entendimento do significado existencial da vida social e como o poder era<br />

manifestado e exercido. A crença pautava-se na “transmigração das almas, o<br />

totemismo, originaram práticas fetichistas especiais, muito aproximadas das do atual<br />

espiritismo e, como tais, passaram ao Brasil.”(Ramos: 1979, 229)<br />

Para exercer o domínio sobre o negro era necessário destituí-lo do referencial de<br />

grupo social e cultural colocando-o junto de outros de origens étnicas diferentes,<br />

impossibilitando a manutenção do entrelaçamento dessas sociedades tradicionais.<br />

Tornava-se interessante instigar certa rivalidade entre nações para manter a segurança<br />

dos Senhores, que sentiam receio em uma identificação desses povos no sofrimento<br />

causado pelo trabalho servil e assim viessem a se rebelar; pensando-se principalmente<br />

em regiões em que a quantidade de negros era superior a de brancos. Para Bastide, essas


ações provocavam dois movimentos antagônicos simultâneos: um o de destribalização e<br />

outro a manutenção das rivalidades entre os grupos.<br />

A sustentação das práticas culturais trazidas pelos africanos de certo modo<br />

tinham que ser tolhidas para que como corpo-instrumento, pudesse render em suas<br />

atividades econômicas, tendo poucas brechas para exercer suas danças, isso ocorria nos<br />

raros momentos de descanso. O que permitiu que o batuque, o jongo, o samba e o lundu<br />

persistissem até na contemporaneidade.<br />

A relação entre a Igreja e os senhores era de embate pela discordância de<br />

interesses, enquanto o primeiro via a dança como um apelo sexual favorecendo a<br />

procriação e a libertinagem ferindo a moralidade cristã, já para o outro, era um caminho<br />

para se aumentar a mão-de-obra sem ter necessariamente gastos. Então, a partir daí,<br />

distingue-se o batuque (dança religiosa pagã e a dança sensual) da congada que eram as<br />

danças cristianizadas como o moçambique, o maracatu, os cacumbis, as tâieras. Nessas<br />

práticas ocorreu o entrecruzamento das matrizes pela sobreposição cultural e a releitura<br />

de determinados elementos impondo outras funções que não a de origem.<br />

Esse tipo de diálogo não consentido faz com que se delineie a cultura como<br />

“ligada, segundo suas formas, a territórios determinados, os círculos culturais; as<br />

formas se transmudam na transplantação e originam novas formas, ao se<br />

emparelharem.” (Ramos: 1979, 22-3)<br />

O transplante dessas formas pela criação seria o que Bastide denominaria de<br />

folclore artificial pelo confronto de um calendário oficial de celebrações cristãs,<br />

apresentadas na manifestação da folia, pertencente a uma matriz européia convivendo<br />

com outras culturas relacionais configuradas em estruturas pouco mutáveis,<br />

aproximando-se da cultura bantu pela entronização de monarcas, algo também<br />

recorrente na congada.


Carlos Julião<br />

Coroação de um rei negro nos festejos de Reis c.1776<br />

Desenho aquarelado.<br />

Fundação Biblioteca Nacional<br />

Os bantus, definem-se pelo conjunto de indivíduos aproximados pelo grupo<br />

lingüístico. São divididos em três grupos: Os Orientais que se localizam ao norte de<br />

Uganda, na colônia de Quênia, território de Tanganica, Rodésia setentrional, a<br />

Niassalândia e o norte de Zambeze. O segundo grupo são os meridionais, ao sul de<br />

Zambeze e do Cunene, ocupando uma extensa região que contém a Rodésia meridional<br />

e o último seria os ocidentais que se encontram ao norte de Cunene, do Atlântico à<br />

Rodésia do noroeste, indo até ao Congo francês e sul de Camarões.<br />

O catolicismo promoveu a substituição de formas culturais tradicionais por<br />

estruturas que reafirmavam os valores morais e religiosos evocando a trajetória<br />

espiritual de Cristo. Iniciando os seus domínios aos povos nativos desta terra e em<br />

função das alterações e interesses econômicos vigentes para o processo de<br />

evangelização do africano escravizado.


Santos de nó de pinho<br />

Século XIX<br />

Nó de pinho<br />

Coleção particular<br />

Catálogo Negro de corpo e alma, 2000<br />

A Folia refere-se tanto a uma dança de caráter popular originária da península<br />

ibérica no século XVI quanto a uma forma musical barroca para canções e danças do<br />

século XVII. Em Portugal, especificamente, aparece como manifestação rítmica<br />

considerada de terreiro do mesmo modo como a mourisca, a chacota e entre outras do<br />

mesmo período. Os participantes cantavam e faziam volteios de modo efusivo quase<br />

como que estivessem enlouquecidos e tocavam com gaitas e pandeiros acordes com<br />

guizos nos <strong>arte</strong>lhos.<br />

Em seu princípio, era composta por uma seqüência de canto em uníssono e<br />

bailado com passos que apresentavam certa destreza de movimentos, acompanhados de<br />

sons percussivos e de inúmeros guizos fixados em diferentes p<strong>arte</strong>s do vestuário.<br />

Aproximavam-se da Folia de Reis pelo uso de máscaras e castanholas.


A Folia adquiriu um aspecto devocional no festejo do ciclo do Divino Espírito<br />

Santo que ocorria entre as datas da Ressurreição e de Pentecostes. Diferenciava da<br />

<strong>brasileira</strong> por não ser precatória e tinha a função de pedir proteção para afugentar todos<br />

os males que poderiam assolar os campos transitando entre o profano e o sagrado.<br />

Os participantes vestiam-se de rei, de pajem, de alferes ou de porta-bandeira,<br />

tinham ainda, dois mordomos e seis fidalgos que percorriam as ruas com uma bandeira<br />

representando o Espírito Santo manifesto pela personificação da Pomba pintada ou<br />

desenhada que era carregada pelo alferes. O rei empunhava uma vara enfeitada com<br />

fitas e flores artificiais, o pajem trazia uma coroa de folhas-de-flandres, um dos fidalgos<br />

carregava algum instrumento a ser utilizado no trajeto e os mordomos traziam as<br />

lanternas que seriam depositadas ao final em uma igreja da localidade. Os fidalgos<br />

dividiam-se em dois grupos distintos de vozes: a fala sonora ou segundo contra e o<br />

baixo-falsete ou tipi, cantando os versos tradicionais e improvisados.<br />

Encontra-se registro desde o século XVI, como trecho escrito por Gil Vicente:<br />

Triunfo do inverno<br />

Em Portugal vi eu já<br />

Em cada casa pandeiro,<br />

E gaita em cada palheiro;<br />

E de vinte anos a cá<br />

Não há ni gaita nem gaiteiro.<br />

A cada porta hum terreiro,<br />

Cada casa atabaqueiro;<br />

E agora Jeremias<br />

He nosso tamborileiro. ( Enciclopédia luso-<strong>brasileira</strong> de cultura: 1963,<br />

1152-1153)<br />

O ciclo natalino tem sua celebração datada desde o século XII a partir da<br />

montagem do primeiro presépio e representado na Catedral de Toledo o Auto dos Reis<br />

Magos. Posteriormente, foi inserido pelos conquistadores na América no século XVI,<br />

adquirindo certas peculiaridades pela junção de traços pastoris, bailes pastoris, ternos e<br />

ranchos de reis localizando-se geograficamente do Sudeste ao Brasil Central.


No Brasil foram atualizadas e transformadas nas Folias do Divino que<br />

aconteciam no período diurno e a Folia de Reis como um acontecimento noturno. Os<br />

trajes em que se apresentam referem-se aos papéis desempenhados dentro do grupo,<br />

como o rei a rememoração dos reis magos vindos do Oriente para este tempo atualizado.<br />

Folia de Reis, 2006<br />

Bairro Santa Cruz<br />

Foto de Janaina Barros<br />

São Luís de Paraitinga, São Paulo<br />

O mestre resguarda as tradições no domínio dos instrumentos, dos versos e a<br />

coreografia executada pelo palhaço. O contra-mestre auxilia o mestre. O palhaço<br />

aparece como o brincante que atrela o sagrado e o profano, público e foliões. Na foto<br />

acima, o palhaço encontra-se de costas para o presépio, como modo de desvincular e<br />

distanciar a sua imagem do caráter sagrado representado pela lapinha, reafirmando a sua<br />

ação cênica ao lado de outros componentes, o alferes, os grupos vocais e de


instrumentistas. Os grupos vocais são constituídos do seguinte modo: o primeiro o<br />

contralto, o segundo o tipi e o contra-tipi e por último a pala acompanhados dos<br />

instrumentos que partilham desse acontecimento na evocação do nascimento de Cristo.<br />

Trata-se da personificação dos três Reis Magos, que são guiados por uma estrela<br />

no céu que os direcionam para o local de nascimento do Menino Jesus. O rei Herodes<br />

teria os desviado do caminho para a direção oposta, para desnorteá-los. É o relato desse<br />

acontecimento revivido pelos foliões. Ocorre a principio na p<strong>arte</strong> externa da casa,<br />

passando por diversos momentos. São apresentados inicialmente os versos que narram o<br />

nascimento de Jesus e a busca dos reis em encontrá-lo, dirigidos aos donos da casa, para<br />

que acordem e recebam os foliões.<br />

O presépio passa a ter uma grande importância nessa manifestação, pois<br />

representa o caráter sagrado desse precatório, o religar com o tempo mítico e primordial<br />

no presente imediato.<br />

Os versos antes enquadrados dentro de uma estrutura imutável passam a ter<br />

variações e são construídos diretamente para os donos da casa.<br />

Cumprida a visita ao altar e a família ocorre então o canto de acolhida para os<br />

Reis caminhantes.<br />

Pede-se contribuição para a festa que encerra a Folia de Reis do presente ano,<br />

iniciando a do próximo ano com a escolha dos novos Reis e a passagem das coroas que<br />

ocorre costumeiramente no dia 20 de janeiro. O percurso é finalizado com o canto de<br />

despedida que é também um convite para os moradores acompanharem a folia nas casas<br />

vizinhas.<br />

Na passagem da coroa representa a transferência de autoridade em que o rei<br />

reafirma o seu poder pela realização da festa e o seu desprender pela entrega da coroa<br />

para outro membro da comunidade que dará prosseguimento a tradição.


(...) fundamento do poder simbólico como poder que se cria, se acumula e se<br />

perpetua através da comunicação, da troca simbólica. Porque, como tal, ela<br />

introduz na ordem do conhecimento e do reconhecimento (o que implica que<br />

ela só pode se realizar entre agentes capazes de se comunicar, de se<br />

compreender, ou seja, dotados dos mesmos esquemas cognitivos, e dispostos<br />

a comunicar-se, isto é, a reconhecer-se mutuamente como interlocutores<br />

legítimos, iguais em honra, a aceitar a interlocução, a estar in speaking terms)<br />

a comunicação que converte as relações de força bruta, sempre incertas e<br />

suscetíveis de serem suspendidas, em relações duráveis de poder simbólico<br />

pelas quais se é sujeitado ou às quais se sente sujeitados; (Bourdieu: 1996,<br />

14)<br />

O primeiro rei é o responsável pela festa que assume o compromisso e<br />

providencia a sua realização. Esta função é assumida a cada ano por um folião diferente<br />

sendo necessário para reassumir a espera de sete anos.<br />

Na memória coletiva o passado é permanentemente reconstituído e vivificado<br />

enquanto é re-significado. A memória estabelece continuidade entre passado e presente,<br />

restabelecendo a unidade original de tudo aquilo que no processo histórico do grupo<br />

representou quebra e ruptura.<br />

A relação com divino apresenta-se na idéia de dom que permite a autoridade e<br />

confere o reconhecimento pelo grupo de sua crença que se expressa naquele que<br />

concentra as tradições e que a dissemina nas trocas de experiência na atividade<br />

religiosa.<br />

(...) o dom como ato generoso só é <strong>possível</strong> para agentes sociais que<br />

adquiriram, em universos onde são esperadas, reconhecidas e recompensadas,<br />

disposições generosas adaptadas às estruturas objetivas de uma economia<br />

capaz de garantir-lhes recompensa (não apenas sob a forma de contradons) e<br />

reconhecimento, isto é, se cabe uma expressão na aparência tão redutora, um<br />

mercado. Essa economia dos bens simbólicos se apresenta, como toda<br />

economia, sob a forma de um sistema de probabilidades objetivas de lucro<br />

(positivo ou negativo) ou, para falar como Marcel Mauss, de um conjunto de<br />

“expectativas coletivas” com as quais se pode e se deve contar. Em<br />

semelhante universo, quem dá sabe que seu ato generoso tem todas as<br />

chances de ser reconhecido como tal (em vez de parecer uma ingenuidade ou<br />

um absurdo) e de obter o reconhecimento (sob forma de contradom ou de<br />

gratidão) de quem foi beneficiado, sobretudo porque todos os outros agentes<br />

que participam desse mundo e que são moldados por essa necessidade<br />

também esperam que assim seja. (Bordieu:1996, 9)<br />

A festa remete ao tempo de origem da primeira folia do mundo, pós-dilúvio,<br />

portanto, universal. Define-se então, o tempo do Pai, considerado antigo dialogando<br />

com o tempo do Filho que compreende o que seria possivelmente a existência atual. São


os mitos de renovação, os mitos de eterno-retorno, os mitos de entronização do rei como<br />

também os mitos do novo ano.<br />

O fenômeno religioso é visto como hierofania, que se refere ao ato de<br />

manifestação do sagrado. O sagrado aparece como potência de ordem diversa da<br />

natural, ocupando lugar na ordem ontológica, a potência não é impessoal, sua fonte é<br />

uma realidade absoluta, sagrada que transcende este mundo tornando-o real.<br />

O símbolo é a linguagem da hierofania porque permite entrar em contato com o<br />

sagrado. Por ele o mundo fala e revela modalidades do real que por si mesmas não são<br />

visíveis.<br />

Do mesmo modo que a experiência do mito é também a do sagrado porque<br />

coloca o homem religioso em contato com o sobrenatural tornando contemporâneo o<br />

acontecimento primordial. Na descrição de um acontecimento busca-se a compreensão<br />

da coletividade vivenciada no singular por meio da experiência religiosa como<br />

articulação da memória.<br />

A evocação dos foliões estabelece a religiosidade manifesta pelo grupo fundindo<br />

o tempo primordial e o agora com o terreno e o extraterreno em contraponto com o<br />

palhaço que é o elemento desestabilizador do acontecimento, o trickster 1 , uma espécie<br />

de brincante comparado ao Exu dos povos nagôs. Sua função e simbolismo mudam de<br />

acordo com a região em que acontece o festejo. Ora representando Satanás, por sua<br />

veste vermelha, o uso de chapéu cônico e máscara e está sempre acompanhado de seu<br />

inseparável relho. Não entra onde existe presépio, imagens de santos ou cruzes. Ora<br />

como os representantes de Herodes que seguiram os Reis Magos e acabaram<br />

1 Trickster é um personagem dominado por seus apetites; tem a mentalidade de uma criança. Sem outro propósito<br />

senão o de satisfazer suas necessidades mais elementares, é cruel, é cínico e insensível (...)<br />

Este personagem que inicialmente aparece sob a forma de um animal, passa de uma proeza maléfica a outra. Mas ao<br />

mesmo tempo começa a transformar-se e no final de sua carreira de trapaças vai adquirindo a aparência física de um<br />

homem adulto. (Jung: 112, 1996)


convertendo-se ao cristianismo. Assumem diferentes nomes: “guardas de companhia”,<br />

Morongo ou Mocorongo, Sebastião (Bastião).<br />

Palhaço<br />

Folia de Reis<br />

Foto de Janaina Barros<br />

Exposição Que Chita Bacana, 2006<br />

Sesc Belenzinho<br />

O palhaço confere ao fenômeno o aspecto cênico pela sua forma de apresentação<br />

gestual de passos demarcados e codificados, interligando foliões e público, inexistindo a<br />

quarta parede, onde todos são pertencentes a um mesmo sistema. São seres atuantes<br />

compartilhando a mesma existência. A Folia, no seu sentido essencialmente religioso,<br />

traz um homem coletivizado e impregnado de sagrado contrariando o preceito de um ser<br />

fragmentado e desmembrado de sua existência física e espiritual.<br />

Na Congada consagravam-se os Reis do Congo no interior da igreja. Atuavam<br />

como mediadores entre os brancos como também velavam pelos valores africanos, isso


se apresentava nas cenas de combates entre evangelizados e maometanos. Desta forma,<br />

o inimigo era sempre os que, assim como os heróis, pertenciam a uma mesma situação<br />

social de se estar posto à margem e mantinha-se o controle de possíveis revoltas pela<br />

sua institucionalização promovida pela igreja.<br />

Para vigorar uma dada cultura é necessário organizar-se coletivamente, neste<br />

caso, as manifestações de influência católica pautadas no diálogo com outras matrizes<br />

étnicas atreladas as confrarias, expurgadas do espaço interno da Igreja, deslocando-se<br />

para o espaço externo, mantiveram-se como modo de resistência na perpetuação e a<br />

evocação das tradições nas relações de hierofania.<br />

Essas corporações funcionavam nas festividades com esquemas hierárquicos,<br />

(...) que se iniciam com as confrarias dos pretos para terminar com o desfile<br />

dos notáveis (os “homens bons”). Os três folclores- índio, negro, branco-não<br />

se confundem, nem mesmo quando patrocinados e controlados pelo clero<br />

(...).O Natal dos brancos constava da missa da meia-noite, da feitura do<br />

presépio que será queimado ao fim das festas, do combate dos dois grupos de<br />

pastores que se defrontam nas cantigas, alternativamente e se diferenciam<br />

pela cor de suas fitas. O Natal dos negros constava, além das congadas, do<br />

coroamento do rei e da rainha dos Congos; do desfile dos Moçambiques; do<br />

trio dos reis Magos que se dirigem em peregrinação a Belém, mas não sem<br />

pedir no decurso da jornada dinheiro ou mantimento aos brancos para melhor<br />

celebrar suas festas; dos ranchos acompanhados de animais de papelão que<br />

são talvez reminiscências de um totemismo negro (burro, boi, pássaros,<br />

bichos diversos); dos cacumbis etc. Somente depois o grupo dos negros<br />

invadiu o folclore dos brancos, prestes a desaparecer e as Pastorais de hoje já<br />

não são representadas senão por mulatos e por homens de cor.”(Bastide:<br />

1971, 32-3)<br />

Incorporada pelo sistema vigente, como controle dos africanos e descendentes,<br />

foi dada à coroação de reis negros um novo significado pela reterritorialização das<br />

formas ancestrais de organização social e ritual. Os santos católicos de devoção negra<br />

apareciam nos estand<strong>arte</strong>s, como a Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa<br />

Ifigênia, São Baltasar e Nossa Senhora das Mercês manifestas no auto popular. A dança<br />

e a música eram os destaques da festividade pelo seu caráter sagrado, constituindo a sua<br />

força vital, que proporcionava a unidade do grupo. Os tambores resgatavam a<br />

lembrança, a memória e a história vivificada do africano. Traduzidas por narrativas que


posicionavam os participantes como signos de conhecimento e agentes de<br />

transformações.<br />

Congada<br />

Atibaia, São Paulo c.1950-1960<br />

Fotografia em preto e branco<br />

24,1 x 18,2 cm<br />

Museu do Folclore Rossini Tavares de Lima<br />

Catálogo negro de corpo e alma<br />

A lembrança mantém os conteúdos de ordem tradicional africana e os ajustes<br />

culturais em território brasileiro. A justaposição dos ícones católicos sobre a cosmologia<br />

dos orixás ressignifica o modo como a hierofania se manifesta.<br />

Segundo Câmara Cascudo, na obra Literatura Oral no Brasil (1984), a Congada<br />

durante o século XIX e XX espalhou-se por:<br />

(...) todo nordeste, e no meio norte, Alagoas, Sergipe, Bahia, São Paulo,<br />

Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, com modificações locais, no sentido da<br />

música, dos bailados e do próprio enredo. Há, com ampla documentação,<br />

dois grandes motivos sociais para essas danças que são, extensão e<br />

articulamento cênico, autos: a) - coroamento dos Reis de Congo, honorários,<br />

cerimônia nas igrejas, cortejo, visitas protocolares às pessoas importantes, b)<br />

– sincretismo de danças guerreiras africanas, reminiscências históricas, mais<br />

vivas nas regiões de onde os escravos bantus foram arrancados, Congo,<br />

Angola, fundidas, num só ato recordador, tornado possivelmente “nacional”<br />

mesmo para a escravaria de outras raças e nações.(Cascudo: 1984, 417)


Os festejos reatualizam os valores culturais bantus representadas pela força dos<br />

ancestrais, da família e da linhagem que dão significados a vida social e ao exercício de<br />

poder. O presente e o passado, o indivíduo e os seus ancestrais são movimentos coesos<br />

partilhados de uma mesma existência em comunidade no que o gestual configura a<br />

sacralidade da vida.<br />

A religião africana nagô é iniciática de caráter permanente e de instantes<br />

sucessivos. Elemento comum aos povos bantus pela presença dos ancestrais<br />

pertencentes à linhagem, diferindo o processo de religar dos sudaneses por seres<br />

divinizados, os orixás, forças cósmicas associadas à natureza. O homem compartilha e<br />

esboça a sua identidade enquanto grupo.<br />

A região sudanesa abrange do norte ao sul da África: Senegal, Gâmbia, Guiné,<br />

Serra Leoa, Libéria, Costa do Marfim, Costa do Ouro, Daomé e Nigéria. A<br />

diferenciação dos grupos dá-se sobre o aspecto lingüístico, eles são denominados de<br />

Tshi, Ewe e Yoruba. Concentraram-se na Bahia e receberam a denominação de nagôs.<br />

Os cultos praticados nessa região aproximam-se da religião dos orixás da Nigéria. A<br />

divindade suprema é Olorun, no qual os cultos são intermediados pelos orixás. Obatalá<br />

ou Oxalá, o maior de todos, o deus do trovão Xangô, o desestabilizador e mensageiro<br />

Exu, deus das guerras e das lutas Ogum, as divindades das águas Oxum, Oxumaré,<br />

Yemanjá, Yansan, Anamburucú ou Nanã, o da caça Oxóssi, o orixá da varíola, Irôco e<br />

Ifá dos cultos fitolátricos e os gêmeos, os Ibejis.


José Adário dos Santos<br />

instrumentos de uso litúrgico no candomblé<br />

Catálogo Os herdeiros da noite: fragmentos do imaginário negro, 1994<br />

O culto de origem nagô realiza-se nos terreiros com os santos em altares<br />

chamados de pegis. Candomblé refere-se à celebração das festas religiosas adquirindo<br />

outros nomes de acordo com a região, como catimbós e xangôs no nordeste e macumba<br />

no Rio de Janeiro. Os sacerdotes tanto na Bahia quanto na África são denominados<br />

babalaôs, babás ou babaloxás no Rio de Janeiro e no nordeste babalorixás ou pais de<br />

santo. O grão-sacerdote baiano é ainda chamado de pegi-gan. As mulheres<br />

desempenham um papel importante nas funções religiosas e são denominadas mães de<br />

santo ou yalorixás:<br />

“É no solo brasileiro que frutificará o Candomblé, a terra-mãe que, por sua vez,<br />

possui os seus significados ligados ao feminino, essa expressão religiosa, ao


epresentá-la, ganha todas as suas significações. É nesse sentido que a grande<br />

sacerdotisa do candomblé é chamada de mãe de santo.” ( Bernardo: 2005, 9)<br />

O babalaô tem como função preparar o ‘santo’ auxiliado pelo achôugun , espécie<br />

de sacerdote assistente, para a lavagem, o sacrifício de animais para cada orixá e o seu<br />

alimento. Após a preparação é levado para seu pegi localizado na casa de terreiro.<br />

Os filhos de santo são pessoas dedicadas ao seu culto, normalmente mulheres,<br />

que no período de iniciação são denominadas de yauôs. O rito de iniciação passa por um<br />

período de reclusão no terreiro, abstinência sexual e eliminação de determinados<br />

alimentos do seu cotidiano podendo desse modo, dedicar-se ao seu orixá.<br />

Iaôs<br />

Hélio de Oliveira<br />

Xilogravura, 1962<br />

55 x 40 cm<br />

Coleção: Museu de Arte Moderna da Bahia


Os orixás eram deuses que acolheram de Olodumare, o Ser Supremo, a tarefa de<br />

criar e governar todos os seres e as coisas, cada qual, tornando-se responsável por<br />

alguns aspectos da natureza e das relações da vida entre os seres em seu grupo social. O<br />

panteão iorubano na América possui uma vigésima de orixás celebrados. Na África<br />

oferecem-se cultos aos orixás de acordo com determinadas regiões ou cidades que estão<br />

associadas. Ora outros são esquecidos, ora uns surgem possibilitando novas celebrações.<br />

São cultuados de acordo com diferentes invocações denominadas qualidades,<br />

como a Yemanjá representada jovem, Ogunté, em contraposição a uma configurada<br />

idosa e maternal, Yemanjá Sabá, um orixá torna-se vários, com suas diversidades de<br />

devoções, com um repertório de ritos, cantos, danças, ornamentos, cores e gostos<br />

alimentares. Esse sentido encontra-se presentificado nos mitos.<br />

Exu conhecido como Legba, Bará ou Eleguá está sempre presente, pois tem o<br />

papel de interligar os humanos e os deuses, é o mensageiro, permite o movimento,<br />

mudança ou reprodução, transações comerciais ou fertilidade. Interfere nos meios sócio-<br />

econômicos nas realizações cotidianas. Os missionários no seu primeiro contato com os<br />

africanos o identificaram com o Diabo perpetuando essa visão até a atualidade.<br />

A magia imitativa e simpática, referida por Ramos, trata do ebó ou despacho que<br />

consiste numa vasilha de barro com algum animal sacrificado, pipocas, acaçás, obi,<br />

entre outros, embebido por azeite de dendê. E ainda como cita Ramos:<br />

O ebó – já o descrevi - tem diversas finalidades. A primeira é o despacho<br />

indispensável de entidades malfazejas, por exemplo, Exu, no início de<br />

qualquer cerimônia, religiosa ou mágica. Por isso, o ebó deve ser depositado<br />

nas encruzilhadas, pois é o lugar preferido do “homem das encruzilhadas” e<br />

seus companheiros. Mas, a finalidade freqüente é o malefício a determinada<br />

pessoa; por isso o ebó deve ser colocado no lugar por onde transite a pessoa<br />

visada, ou na porta da residência desta. (Ramos: 1979, 193)<br />

O processo sincrético criou correspondentes para os santos católicos como Oxalá<br />

que seria o Senhor do Bonfim, Xangô, a São Jerônimo e Santa Bárbara, Ogum a Santo<br />

Antônio na Bahia e no Rio de Janeiro, a São Jorge, Yemanjá pode ser associada tanto a


Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora da Piedade, Oxum a Nossa Senhora da<br />

Conceição ou da Candeias, Nanã a Santa Ana, Oxóssi a São Jorge e Omolú a São<br />

Bento. A justaposição dos santos católicos aos orixás pertencia a uma mesma categoria<br />

de características distintas como demonstra o exemplo abaixo, as figuras santificadas<br />

dos irmãos São Cosme e Damião, eram médicos e missionários na Ásia Menor durante<br />

o século IV, foram mortos acusados de feitiçarias ao aliar conhecimento científico e fé<br />

nas curas de seus pacientes, suas práticas consideradas milagrosas, são os protetores dos<br />

médicos, dos farmacêuticos e das crianças; correspondentes nessa relação sincrética aos<br />

orixás gêmeos Ibejis, filhos de Xangô e Iansã, divindades protetoras do parto duplo,<br />

amigos das crianças e responsáveis por agilizar qualquer pedido em troca de doces.<br />

São Cosme e Damião<br />

Foto de Wagner Viana<br />

Casa dos Milagres<br />

Pirapora do Bom Jesus<br />

São Paulo, 2007


A hibridização cultural é considerada um fenômeno antigo e geral na América<br />

católica, como por exemplo, no século XVII com o quilombo de Palmares, com a<br />

gestualidade nos ritos com referências da prática do catolicismo, na aproximação de<br />

características entre santos e orixás constituídos pela própria hagiologia católica e a<br />

imitação pelo africano, como no caso de Oxóssi que é o deus da caça o seu<br />

correspondente que só poderia ser São Jorge ou São Miguel, santos considerados<br />

guerreiros.<br />

Os mitos dos orixás compõem os poemas oraculares cultivados pelos babalaôs.<br />

Tratam da criação do mundo e o modo como foi repartido entre os orixás.<br />

Par de gêmeos ibejis<br />

Madeira<br />

Yoruba<br />

Nigéria<br />

Acervo MAE/ USP<br />

Relatam a existência dos deuses e humanos, animais e flora conjugados na vida<br />

social. A sociedade tradicional iorubá não é histórica, mas mitológica, é por intermédio


do mito que se justifica a origem de tudo, alcança-se o passado e interpreta-se o presente<br />

e prediz o futuro num tempo primordial ou no agora.<br />

O seu corpo mítico era transmitido oralmente por desconhecerem a escrita, na<br />

diáspora africana, no século XIX, estudiosos estrangeiros, principalmente europeus, e<br />

posteriormente, letrados iorubás, iniciaram a compilação desse material. Como o padre<br />

R. P. Noël Baudin, com a obra Fétichisme et féticheurs publicada em 1884, e o coronel<br />

A. E. Ellis com a obra The Yoruba-Speaking Peoples of the Slave Coast of Africa de<br />

1894.<br />

A partir da década de 60 ocorreu o reavivamento das religiões tradicionais,<br />

expandindo-se da Bahia para todo o território nacional, proliferando publicações sobre<br />

São Jorge<br />

Foto de Wagner Viana<br />

Casa dos Milagres<br />

Pirapora do Bom Jesus<br />

São Paulo, 2007


assunto. Associa-se então, a religião e a escrita, reunindo num mesmo espaço litúrgico,<br />

indivíduos de outras etnias e camadas sociais, sistematizando as concepções do<br />

candomblé, descobrindo o mito:<br />

impregnado nos objetos rituais, nas cantigas, nas cores e desenhos das roupas<br />

e colares, nos rituais secretos de iniciação, nas danças e na própria arquitetura<br />

dos templos e, marcadamente, nos arquétipos ou modelos de comportamento<br />

de filho-de-santo, que recordam no cotidiano as características e aventuras<br />

míticas do orixá do qual se crê descender o filho humano. (Prandi: 2001, 19)<br />

A cultura popular e o teatro espontâneo de cunho popular funcionavam como<br />

modo referencial de uma produção popular e de uma estética contemporânea. Essa<br />

manifestação dá-se pela dança dramática, termo cunhado por Mário de Andrade, que<br />

trazia uma inspiração mágica e religiosa tal como um instante de celebração. Com<br />

algumas estruturas em comum, o cortejo coreográfico, as tradições pagãs das Janeiras e<br />

Maias, os cortejos reais africanos e as procissões católicas com as folias de índios,<br />

negros e brancos, os vilancicos religiosos e as celebrações das lutas de cristãos e,<br />

mouros pelos ibéricos. A dança e a música partilham dos rituais nos candomblés<br />

influenciando nas práticas culturais dos negros brasileiros que fundamentaram as festas<br />

profanas ou os afoxés.<br />

O aspecto cênico está na constituição de um roteiro com um enredo específico,<br />

uma obra musical que acompanha a coreografia e uma indumentária que caracteriza a<br />

encenação. São jogos dramáticos no qual os espectadores são também atores.<br />

Manifesta-se o sagrado e o profano dentro de uma vida terrena englobando o drama, o<br />

jogo e a improvisação na transferência de um estado sério para o jocoso e o malicioso<br />

construídos pelo fio narrativo.<br />

Se é certo que tudo o que se relaciona com a música está situado no interior<br />

da esfera lúdica, o mesmo se pode afirmar, e em mais alto grau, da irmã<br />

gêmea da música, a dança. Quer se trate das danças sagradas ou mágicas dos<br />

selvagens, ou das danças rituais gregas, ou da dança do Rei David diante da<br />

arca da Aliança, ou simplesmente da dança como um dos aspectos de uma<br />

festa, ela é sempre, em todos os povos e em todas as épocas, a mais pura e<br />

perfeita forma de jogo. (Huizinga: 1996, 183)


O jogo implica a presença de um elemento não material em sua essência indo<br />

além das práticas mais imediatas do cotidiano conferindo sentido à ação. É um<br />

fenômeno cultural construído ludicamente pelo uso não formal do espaço e por sua<br />

capacidade integrativa não só de público além da visualidade por se focar as limitações<br />

do corpo e da matéria, o ritmo, a sonoridade, o movimento, a expressividade e a<br />

plasticidade do gesto criador.<br />

O corpo humano busca transcender através de seu potencial criativo o modo<br />

como se movimenta no espaço que é compartilhado entre outros corpos. Produz sons e<br />

gestos que se transformam nas diferentes atividades pertencentes ao cotidiano. A cultura<br />

nomeia essas práticas diferenciando os seres por características que os identificam com<br />

determinados grupos sociais.<br />

A modernidade discute a existência de um indivíduo cindido em outras<br />

identidades que não necessariamente compatíveis, portanto, acabam sendo discordantes.<br />

O que ocorre é a mobilidade dos seres nessas identidades, múltiplas e possíveis de<br />

transformação, de acordo com os papéis diversos exercidos nos espaços de convívio. O<br />

que nos confere o deslocamento dessas identidades para diferentes direções. Tem-se<br />

aqui, o sujeito fruto da pós-modernidade.<br />

Essa mudança dá-se pela incursão de uma modernidade tardia que culmina com<br />

o processo de globalização e como isso afeta o aspecto cultural de um povo.<br />

Para Stuart Hall, a identidade possui três concepções diferentes a partir do que<br />

seria o sujeito em determinados períodos, a começar por um sujeito pertencente ao<br />

Iluminismo, masculino, centrado, racional e constante. Alguns atributos eram inerentes<br />

trazidos logo ao nascimento e ia desenvolvendo-se ao longo de sua existência como<br />

algo contínuo e imutável.


Já o sociológico referia-se a interação entre o “eu” e o seu grupo social<br />

modificando-se com os universos culturais existentes, como se apresentavam<br />

externamente e o diálogo estabelecido com o universo íntimo. O ser apropriando-se de<br />

diversas identidades culturais com seus valores e significados próprios em sua<br />

subjetividade busca a objetividade no espaço social e cultural ocupado. Esses sujeitos<br />

harmonizam-se com os seus meios culturais mantendo uma unificação e estabilidade<br />

que se aproxima do sujeito iluminista.<br />

As sociedades modernas são mutáveis e alteram-se continuamente pelas<br />

interconexões sociais que envolvem o globo deslocando as identidades e sob algumas<br />

circunstâncias elas são articuladas mantendo sua estrutura aberta.<br />

Nas sociedades tradicionais:<br />

(...)o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e<br />

perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o<br />

tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na<br />

continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são<br />

estruturados por práticas recorrentes. (Giddens: 1990, 37-38)<br />

A identidade legitima os seres pela diferenciação e aproximações que<br />

possibilitam o reconhecimento dentro do grupo e a memória “é um elemento essencial<br />

do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das<br />

atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje...”(Bittencourt: 2003,<br />

15)<br />

O teatro popular, espontâneo e tradicional oriundos dos cultos africanos e das<br />

danças de possessão traz a possibilidade de quem está ao redor comungar de um mesmo<br />

instante místico na experiência do sagrado. É um teatro de segredo fundamentado na<br />

gestualidade das danças e o seu entendimento a partir da apreensão e percepção dos<br />

códigos corporais.<br />

Esse teatro baseia-se na sua origem na elaboração cênica de brancos<br />

metropolitanos para configurar o domínio sob os povos dominados nos aspectos


eligiosos e políticos nas hierarquizações da sociedade. O negro assume apenas uma<br />

função social por existir dentro de um grupo social e não por sua capacidade criadora. A<br />

teatralidade dessa ação narrativa está na diferenciação de papéis exercidos na<br />

apresentação de um diálogo que representaria a multidão.<br />

A integração entre espectador e acontecimento na apresentação de um enigma é<br />

compreendida na noção de pertencimento dada ao grupo que configura tais<br />

manifestações.<br />

Cria-se um código de ambigüidade sobre os significados de determinados<br />

símbolos de desconhecimento daqueles que não fazem p<strong>arte</strong> daquela coletividade, de<br />

modo a provocar um distanciamento e a participação de um fenômeno tornado <strong>possível</strong>,<br />

apenas para uma determinada comunidade detentora de tal conhecimento, como<br />

exemplo, o Samba rural paulista, no qual é proposto um enigma ao coro e a solução<br />

seria de responsabilidade do corifeu ou mestre de coro. Esse sentido encontra-se no jogo<br />

de símbolos ao dramatizar uma experiência coletiva como forma <strong>possível</strong> de<br />

preservação de uma identidade ameaçada pelo poder.<br />

As relações hierárquicas estabelecidas entre os diferentes grupos sociais e<br />

tratadas pela ótica das identidades traduzem nesse corpo os fragmentos e resquícios<br />

culturais que são inerentes a sua existência. A tradição permite o sentido de identidade<br />

pertencente a um grupo localizando os seres num espaço no exercício de seus papéis<br />

sociais numa comunidade. A própria idéia de tradição é fruto da modernidade.<br />

Etimologicamente era um termo utilizado no direito romano para leis da herança. Um<br />

bem era passado para uma geração direta que tinha a incumbência de zelar e perpetuar<br />

para que uma próxima geração desempenhasse o mesmo papel.<br />

A tradição caracteriza-se pela repetição e por seu sentido ritualístico<br />

possibilitando as formas de continuidade da vida. Sob essa ótica, o corpo na


modernidade configura o distanciamento e aniquilamento de um homem divinizado e<br />

coletivizado fruto da tradição, como as culturas de origem africana, para o surgimento<br />

de um homem subjetivado e autônomo cindido em busca de um sentido de identidade<br />

criada e recriada nas relações de dependências nas funções sociais fragmentadas e<br />

desmembradas de sua existência física e espiritual.<br />

A cultura popular envolve a prática particular de grupos subalternos que se mo-<br />

dificam juntamente com o contexto social em que estão inseridas; revitalizadas e trans-<br />

formadas pela produção econômica e distribuição dos seres nos espaços relacionais tan-<br />

to entre outros grupos como no próprio. Sua existência dá-se de acordo com a visão ide-<br />

ológica e os interesses de uma classe dominada em oposição à hegemonia submetida pe-<br />

las classes dominantes. <strong>Uma</strong> cultura híbrida permeada de mesclas diversas entre cultu-<br />

ras na distinção entre erudito e popular ampliando as relações entre tradição e moderni-<br />

dade na estruturação e apreensão de um sentido de religiosidade nas construções poéti-<br />

cas negras.<br />

Nessa discussão reiterando a inserção das manifestações populares na produção<br />

de formas expressivas e estéticas numa cultura híbrida, levanta-se a seguinte questão:<br />

Como estabelecer uma poética negra no conceito de classe subalterna numa<br />

produção artística de caráter popular e fetichista?


2º CAPITULO<br />

ELEMENTOS PARA DISCUTIR UMA POÉTICA NEGRA E BRASILEIRA<br />

No século XVIII as ordens religiosas solicitavam o trabalho de monges<br />

decoradores para a ornamentação dos templos, a pintura era vista como algo<br />

depreciativo, utilizavam-se para a execução dos projetos mestiços e negros. A<br />

possibilidade de ascensão encontrava-se no desenvolvimento das atividades manuais e<br />

de contornos artísticos.<br />

Numa p<strong>arte</strong> considerável da produção artística mineira de setecentos predomina<br />

a participação de mãos de origem africana. A produção destinada às igrejas e conduzida<br />

pelas irmandades vai rareando, conseqüentemente, a diminuição da valorização social<br />

do indivíduo.<br />

Arte vigente no país era de tendências barrocas. Um barroco de estrutura européia<br />

marcado pela expressividade africana. Diferenciando-se de acordo com a região em que<br />

se estabeleceu. O processo de mestiçagem ocasionou a chamada resistência estética que<br />

pode ser atribuída no campo das manifestações religiosas, através da música, dos cantos<br />

e dos rituais. Por exemplo, no Nordeste, a Igreja funcionava como centro unificador das<br />

famílias patriarcais, definindo-se como uma igreja de sacristias. Já em Minas, a Igreja<br />

reflete as disputas das confrarias e a estrutura de uma sociedade urbana, com luta de<br />

classes e de camadas sociais: brancos contra mulatos, mulatos contra negros, nacionais<br />

contra portugueses, podendo ser denominada de igreja de confrarias, de festas<br />

religiosas e procissões.<br />

Prevalecia nesse período a <strong>arte</strong> realizada por escravos, mestiços e homens pobres<br />

aproximando-se da obra <strong>arte</strong>sanal e paralelamente, a efetuada por monges e irmãos<br />

religiosos de influências trazidas da Idade Média pautados na veneração da fé. Artistas


anônimos ou não anônimos produziam obras desvinculadas das escolas e movimentos<br />

artísticos europeus. O “(...)Catolicismo e estilo Barroco adequavam-se<br />

surpreendentemente bem ao temperamento do africano, a ele, e a seus descendentes<br />

negros ou mulatos caberia, na sociedade colonial <strong>brasileira</strong>, papel importantíssimo na<br />

produção de objetos destinados ao culto religioso ou à simples intimidade<br />

doméstica...”(Leite apud Silva e Calaça:1988, 14).<br />

E ainda:<br />

Manuel da Costa Ataíde<br />

Foto de Wagner Viana<br />

Nossa Senhora dos Anjos, 1801-1802<br />

Forro da nave da igreja de São Francisco de Assis,<br />

Ouro Preto, Minas Gerais, 2007<br />

(...) em começos do Século XIX Henry Koster, norte-americano residente em<br />

Pernambuco, chamava-os de ‘obreiros de todas as <strong>arte</strong>s’, e o mesmo praticamente<br />

deles disseram quase todos os viajantes estrangeiros que pela mesma<br />

época passaram pelo Brasil, admirados com a quantidade de ourives, entalhadores<br />

imaginários, escultores, carpinteiros, marceneiros, pintores, decoradores<br />

e outros artistas ou artífices negros ou pardos que aqui encontraram, e


com alta qualidade do que produziam. Mormente no que respeita à talha e à<br />

escultura em madeira, tais revelar-se-iam insuperáveis, o que não deve causar<br />

admiração, sabendo-se a antiqüíssima vocação da África Negra para as <strong>arte</strong>s<br />

tridimensionais; por isso, não por acaso, boa p<strong>arte</strong> de nossos toreutas possuíram<br />

ancestralidade africana, a começar pelos dois maiores, Antônio Francisco<br />

Lisboa e Valentim da Fonseca e Silva. Mas inclusive na pintura colonial a<br />

presença negra ou mulata seria marcante, e muitos de nossos mais significativos<br />

pintores coloniais tinham sangue negro, entre eles o baiano José Teófilo<br />

de Jesus, o paulista Jesuíno de Monte Carmelo e diversos integrantes da chamada<br />

Escola Fluminense, a começar por Manuel da Cunha, nascido escravo<br />

(Leite apud Silva e Calaça: 2006, 14)<br />

A estratificação social na <strong>arte</strong> colonial distanciava negros de brancos. O<br />

deslocamento de estrato social estava pautado por um padrão rígido europeu. O que não<br />

impediu no cenário artístico que elementos estéticos provenientes da construção mate-<br />

rial africana aparecessem nas esculturas ou nas pinturas religiosas. Com a Abolição, as<br />

irmandades e confrarias vão perdendo seu significado inicial de funcionarem como<br />

agremiações religiosas, eram clubes e centros que preservavam as diferenças culturais<br />

entre os indivíduos e intentavam na manutenção de uma identidade étnica.<br />

A formação de uma <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> decorre da produção de grupos subalternos<br />

num movimento de justaposição e convergência entre as culturas indígenas, africanas e<br />

portuguesas. Arte essa, de caráter popular que influenciaria p<strong>arte</strong> da produção artística<br />

de origem européia com a vinda da Missão Artística Francesa em 1816 e<br />

posteriormente, a fundação da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro.<br />

A Missão foi organizada por Joaquim Le Breton que propunha um siste-<br />

ma de ensino acadêmico que mesclava o ensino das belas-<strong>arte</strong>s e o dos ofícios. Artistas<br />

de formação neoclássicas como o pintor João Batista Debret, o escultor Augusto Maria<br />

Taunay, o arquiteto Grandjean de Montgny e o gravador Carlos Simão Pradier faziam<br />

p<strong>arte</strong> do corpo docente. Esse período possui como característica o fortalecimento do ne-<br />

oclassicismo, paralelo a outras manifestações acadêmicas atreladas à formação de elites,<br />

e o declínio do que no barroco era marcante, a presença de mestiços e africanos como<br />

produtores artísticos.


Era também o período das expedições que percorriam o território nacio-<br />

nal. Compostas por artistas amadores e profissionais, cientistas, diplomatas e negocian-<br />

tes que tinham como intuito registrar a geografia, a etnografia, a fauna, a flora e os cos-<br />

tumes. O interesse era alimentar os gabinetes de História Natural de seus países de ori-<br />

gem, pelo conhecimento do outro, pela observação e pela etnografia. Debret em Viagem<br />

pitoresca e histórica do Brasil, de 1834 e Johann Moritz Rugendas, em Voyage Pitto-<br />

resque dans le Brésil, trazem em suas obras, de caráter documental, as relações sociais<br />

da vida na corte, o trabalho escravo, a cidade do Rio de Janeiro, o cotidiano e a família.<br />

Catalogava-se os seres enquadrando-os como tipos humanos. Esse material serviu como<br />

espécie de fonte iconográfica para o estudo da vida social <strong>brasileira</strong> desse momento.<br />

A presença de viajantes no Brasil do século XIX atrelados às atividades diplo-<br />

máticas e à Marinha, assim como a presença de diletantes e amadores deixaram de suas<br />

viagens e estadas temporárias, imagens documentais. Entre os presentes estavam a es-<br />

critora e artista amadora Maria Graham (1785 - 1842), autora de panoramas como Vista<br />

da Baía de Guanabara, 1825; o militar, pintor e aquarelista amador Henry Chamberlain<br />

(1796 - 1844), responsável pelo álbum Vistas e Costumes da Cidade e Cercanias do Rio<br />

de Janeiro, 1822; e o pintor e aquarelista Hildebrandt (1818 - 1869), autor de obras<br />

como Panorama da Bahia. A fotografia passa a funcionar como nova forma de registro<br />

de artistas viajantes com a chegada a partir de 1839 do daguerreótipo no Rio de Janeiro,<br />

com artistas como Victor Frond (1821 - 1881) e Hercule Florence que fazem p<strong>arte</strong> da<br />

história da fotografia nacional.


Johann Moritz Rugendas<br />

Capitão do Mato<br />

Litografia colorida a mão<br />

51,3 x 35,5 cm<br />

Coleção particular<br />

Catálogo Negro de corpo e alma<br />

Na metade dos últimos anos dos novecentos o conceito de artista encontrava-se<br />

na especialização por meio da educação na Academia e sua continuidade no exterior e<br />

na apropriação dos valores prezados pela sociedade consumidora. Anteriormente era<br />

vista como atividade manual, considerada como algo de interesse de escravos, não como<br />

atividade profissional liberal.<br />

Vive-se num país em que o preconceito étnico aparece camuflado sobre a<br />

marginalização de grupos de baixo poder aquisitivo. Cria-se uma segregação velada,<br />

sugestionando a idéia de que o preconceito é econômico pois, tão cruel quanto o racial,


aseia-se somente nas relações de classe, atingindo uma maioria de <strong>afro</strong>-descendentes.<br />

A produção aceita pelo mercado eram aquelas calcadas nos padrões estéticos de uma<br />

<strong>arte</strong> considerada de caráter primitivo, fazendo p<strong>arte</strong> de coleções ou decorações de<br />

ambiente. O artista negro busca enquadrar-se nos valores estabelecidos pela elite<br />

consumidora através da imitação dos cânones vigentes.<br />

Poucos artistas desse período alcançaram certa consagração, principalmente no<br />

Rio de Janeiro, local efervescente das aspirações vocacionais. Os artistas <strong>afro</strong>-<br />

descendentes, como Estevão Silva, Antônio Rafael Pinto Bandeira, Artur Timóteo da<br />

Costa, José Timóteo da Costa, Firmino Monteiro e Emmanuel Zamor, voltavam a sua<br />

produção em função do gosto da elite da época, isto é, uma evocação dos valores<br />

culturais e estéticos de uma sociedade branca.<br />

Antônio Rafael Pinto Bandeira<br />

Feiticeira, 1890<br />

Óleo sobre tela<br />

33 x 30 cm<br />

Coleção particular


A poética negra não aparece como tema, nem no aspecto formal das obras desses<br />

artistas. <strong>Uma</strong> sociedade de verniz branco apoiada em valores, gostos, hábitos culturais<br />

ajustando-se a uma pretensa atitude de indiferença diante da cultura nacional, de modo<br />

que o bem cultural é universal, e o interesse é a <strong>arte</strong> de feições européias.<br />

O crítico Gonzaga Duque sintetiza o ideário da época sobre a <strong>arte</strong>; a atuação da<br />

Academia como aparelho do Estado funcionava como uma tentativa na mudança de<br />

mentalidade por meio de uma proposta educacional voltada para os grupos subalternos,<br />

em razão de a classe média acreditar que esta era uma atividade sem distinção social,<br />

pois as profissões que conferiam prestígio estavam no ramo da política.<br />

(...) Na verdade, depois da escravidão, a força que mais tem concorrido para<br />

o nosso estacionarismo e desnacionalismo é a politicagem (...); e ainda por<br />

ela desenvolveu-se nas classes abastadas a megalomania das posições que se<br />

tornou sintomática: a maior aspiração do chefe da família é fazer seus filhos<br />

bacharéis ou doutores para entrarem na política por meio de casamentos ricos<br />

(...)<br />

(...) Por este fato as profissões letradas transbordam assustadoramente (...)<br />

Ora, sendo as profissões letradas as que maior interesse despertam ao brasileiro,<br />

é claro que a <strong>arte</strong>, considerada até há pouco um desprezível ofício de<br />

negros e mulatos (...)ficasse destinada às classes pobres, aquelas que podiam<br />

educar convenientemente seus filhos para faze-los entrar nas academias. (Estrada:<br />

1995, 13-14)<br />

O meio artístico era composto por um lado: pela Academia, pelo Estado e<br />

por uma pequena parcela da burguesia, a quem as obras deveriam exaltar; os feitos do<br />

Império demonstrados cheios de vanglórias ou ainda os valores burgueses. E de outro<br />

lado, por artistas de origem popular que perpetuavam antigas fórmulas ou então, apre-<br />

sentavam uma poética que não se enquadrava com que se fazia até então.<br />

O interesse por uma <strong>arte</strong> com características nacionais era uma das preo-<br />

cupações dos artistas ligados à Academia Imperial de Belas Artes, que executavam<br />

obras de caráter oficial e a concepção européia idealizando as formas do poder imperial,<br />

da religião católica, do exército e da marinha. E paralelamente, quando saiam dos te-<br />

mas oficiais, buscavam obras que referendavam a mitologia <strong>brasileira</strong> inspiradas na lite-<br />

ratura e na poesia romântica. Eram criações de imagens idealizadas da realidade social


omitindo o passado colonial do país e a opressão daquele momento presente, a escravi-<br />

dão negra.<br />

A condição social de escravizado é o que permite delinear o conceito de um cor-<br />

po negro que é um corpo social, político, econômico, cultural, mítico e religioso. Essas<br />

formas fundem-se, não podendo ser tratadas de modo isolado para se pensar na produ-<br />

ção de poéticas <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>s partindo de uma <strong>arte</strong> africana tradicional. O corpo e o<br />

seu ascendente africano estão presentes nos signos culturais, textuais, na constituição<br />

simbólica de alteridade, de diversidade étnica, lingüística, de civilizações e histórias.<br />

Nesse período o indicativo da condição de escravizado encontrava-se nos<br />

pés descalços. Quando um negro se alforriava a primeira coisa que fazia era comprar sa-<br />

patos. Nas representações visuais isto era um elemento indicativo. O modo como um in-<br />

divíduo é retratado também indica a sua posição social, a maneira como se percebe ou é<br />

percebido no espaço de convivência.<br />

Essas representações, a partir do conceito das possíveis relações de retra-<br />

tado ou retratador, segundo Sérgio Miceli (1996), na obra Imagens negociadas: retratos<br />

da elite <strong>brasileira</strong> (1920-1940), funcionavam como uma forma negociada, no sentido de<br />

o sujeito inspirador da obra interferir no processo de elaboração na maneira em que se<br />

dava a sua percepção de mundo e o seu localizar-se nesse espaço. De certo modo, não<br />

deixa de ser co-autor de um produto estético, pensando-se neste caso, das obras oficiais.<br />

A outra relação <strong>possível</strong> é como forma não negociada, quando o objeto de estudo não<br />

partilhava da sua construção. O artista determinava o seu olhar na apreensão de caracte-<br />

rísticas que concebiam aquele indivíduo inserido num meio social. O que diferenciava<br />

essas formas são os tipos de vínculos que podem ser estabelecido entre retratado e artis-<br />

ta.


A fotografia atuava tanto como uma espécie de cartão de visita, quanto<br />

como a imagem de algo pitoresco e genérico. O cartão de visita era a imagem captada<br />

do senhor notável e digno e o escravo era o pitoresco e exótico. A evocação das imper-<br />

feições e assimetrias em cenas repletas de detalhes curiosos e a interpretação poética e<br />

idealizada de uma atmosfera particular que tornava o retratado distante de seu contexto.<br />

As fotos abaixo apresentam características distintas, a primeira é uma<br />

foto de estúdio, a cena foi construída, a mulher e a jovem demonstram pouca naturalida-<br />

de numa aparente cena do cotidiano. O próprio título caracteriza uma generalidade, um<br />

tipo, a mulher é a vendedora de araruta, com os apetrechos essenciais que a define como<br />

um tipo social.<br />

Vendedora de araruta<br />

St. John- Antígua (Antilhas) c.1910<br />

Fotografia em sépia<br />

21,5 x 14,5 cm<br />

Catálogo Negro de corpo e alma


Na foto tirada por Pierre Verger no bairro da Lapa na Bahia em 1946, estabele-<br />

ce-se uma relação de vínculo não negociado, os retratados estão distraídos num momen-<br />

to de descanso integrados ao espaço de trabalho. A figura humana é o centro embora o<br />

seu espaço relacional e as ações do que acontece em torno sejam importantes. Não é<br />

uma imagem construída e idealizada num estúdio. O olhar do fotógrafo traz pelo exercí-<br />

cio de observação uma intencionalidade através de seu registro que caracteriza o seu<br />

modo de apreender a existência do outro.<br />

Pierre Verger<br />

Lapa, Brasil.1946<br />

Fotografia em preto e branco<br />

18x18cm<br />

Coleção particular<br />

Catálogo Negro de corpo e alma<br />

O olhar para o escravo era carregado de exotismo. O olhar estrangeiro, daquele<br />

que não apreende as minúcias e fixa-se naquilo que é exterior, se direcionava no sentido<br />

de uma percepção da realidade mais imediata, ou na idealização dessa realidade, se con-<br />

figurando como um olhar distante de fato. Essas imagens traziam os carregadores que


levavam de tudo de pequenos objetos a pessoas, as mulheres comerciantes de alimentos,<br />

as lavadeiras, o barbeiro; em cenas cotidianas.<br />

Vendiam as fotografias para viajantes ou para quem ia para a Europa funcionan-<br />

do como objeto de lembrança para uso no exterior. Em contraposição, a fotografia do<br />

senhor era produto de encomenda e trazia como marca a maneira como gostaria de ser<br />

visto partilhando do processo.<br />

Também nas <strong>arte</strong>s literárias quanto na vida social, o estereótipo encarna-<br />

do pelo negro era a distinção do ideal de belo pela aparência física. Os mestiços, a típica<br />

mulata, quanto mais embranquecida mais se avizinhava desse ideal, contrapondo ao ne-<br />

gro, considerado feio. O negro quando encarnava o papel de bom personificava a figura<br />

do Pai João, submisso, trabalhador e fiel ao seu Senhor, enquanto o negro mau era o<br />

quilombola, cruel, não exorável que não se enquadrava nos padrões de comportamento<br />

imposto pela sociedade. O negro apresentava-se também como um animal sensual e las-<br />

civo. Como ser amaldiçoado onde estivesse, provocava desgraças. Era o feiticeiro e o<br />

supersticioso.<br />

A mulher negra enquadrava-se nos seus modos como cheia de malícia, postura vi-<br />

ciada, amante do prazer, da preguiça e do luxo. Enquanto a mulata era uma beleza em as-<br />

censão, o mulato era uma figura a se ter desconfiança, o traidor, o infiel e extremamente<br />

vaidoso.<br />

O escravo aparecia como figura genérica por ser caracterizado como um tipo. É<br />

visto e não se vê. Está ali presente a função que exerce sem particularidades. O senhor<br />

tenta estabelecer uma possibilidade de ligação do escravo com o mundo através da cons-<br />

trução de uma imagem cheia de estereótipo do negro pela tipificação da sua identidade.<br />

Alguns artistas e críticos no final do século XIX começam a questionar essa <strong>arte</strong><br />

comprometida com os interesses ideológicos e políticos imperiais, acreditando que a <strong>arte</strong>


poderia se tornar nacional a partir do momento que a realidade física <strong>brasileira</strong> fosse apre-<br />

sentada em uma poética naturalista com a luz, as cores, os elementos topográficos e a flo-<br />

ra.<br />

O desejo de constituir uma produção de caráter nacional diferentemente<br />

da Academia ganha um outro entendimento na primeira metade do século XX com os<br />

artistas pertencentes ao Movimento Modernista, 1922, que introduziram as vanguardas<br />

e a modernidade artística. Aderindo somente as formulações das vanguardas históricas<br />

européias àquelas relacionadas ao retorno à ordem internacional, o retorno ao realismo e<br />

a valorização nacional dos bens culturais. A renovação das <strong>arte</strong>s pela construção de uma<br />

mentalidade de acordo com a nova realidade vigente, o país de agrário ia se industriali-<br />

zando permeado por problemas e contradições da transição. Ao mesmo tempo era a<br />

construção de uma imagem que convergia nas tradições populares que era pulsante; o<br />

“primitivismo” visto como descoberta para os europeus, para nós era presente, algo que<br />

as vanguardas européias buscaram para distanciarem-se de uma tradição de formas rígi-<br />

das, sendo necessário identificá-lo e incorporá-lo.<br />

A noção de patrimônio histórico, idealizado e gestado pela idéia de con-<br />

servação e o reconhecimento de um inventário dos sentidos, por Mário de Andrade,<br />

abrangia as <strong>arte</strong>s arqueológicas, ameríndia, popular e histórica; as eruditas e as aplicadas<br />

nacionais e estrangeiras. Surge no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional<br />

(IPHAN), no ciclo do último governo militar (1978-1982), a denominação de bens cul-<br />

turais como forma de pensar o fazer e as práticas culturais de modo sistematizado.<br />

(...) O conceito de bem cultural do Brasil continua restrito aos bens móveis e<br />

imóveis, contendo ou não valor criativo próprio, impregnados de valor histórico<br />

(essencialmente voltados para o passado), ou aos bens da criação individual<br />

espontânea, obras que constituem o nosso acervo artístico (música, literatura,<br />

cinema, <strong>arte</strong>s plásticas, arquitetura, teatro) quase sempre de apreciação<br />

elitista (...). Permeando essas duas categorias, existe vasta gama de bens -<br />

procedentes sobretudo do fazer popular – que por estarem inseridos na dinâmica<br />

viva do cotidiano não são considerados como bens culturais nem utilizados<br />

na formulação das políticas econômica e tecnológica. No entanto, é a<br />

partir deles que se afere o potencial se reconhece a vocação e se descobrem


os valores mais autênticos de uma nacionalidade. (Magalhães apud Rufino, in<br />

: In : Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n 25. Rio de Janeiro,<br />

1997)<br />

A <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> fundamentava-se de certos procedimentos da <strong>arte</strong> popu-<br />

lar, definida em modos expressivos e autênticos, originários da subjetividade e da ima-<br />

ginação criadora daqueles que não estão inseridos nas tradições e no sistema artístico e<br />

cultural vigente de mercado.<br />

A <strong>arte</strong> erudita apropria-se desses valores através das relações hegemôni-<br />

cas de classe, elaboradas na constituição de uma realidade nacional. Na <strong>arte</strong> popular es-<br />

tão incluídas as produções locais. As manifestações <strong>afro</strong>-descendentes de cunho popular<br />

são núcleo de uma definição de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, “(...) uma expressão conven-<br />

cionada artística que ou desempenha a função no culto dos orixás ou trata de temas li-<br />

gados ao culto (Cunha: 1983, 994)”<br />

<strong>Uma</strong> <strong>arte</strong> que permitiu posteriormente extrapolar os espaços dos terreiros<br />

atrelados das práticas litúrgicas contando nos anos 30 com alguns acontecimentos<br />

significativos, como os Congressos <strong>afro</strong>-brasileiros de 1934 e 1937 e a expedição de<br />

coleta de cultura material proposta por Mário de Andrade em 1937-38, então no<br />

Departamento de Cultura, partindo de São Paulo em direção ao norte e ao nordeste do<br />

país; em 1937 chefiada por Camargo Guarnieri e no ano seguinte por Luis Saia. Essas<br />

expedições auxiliaram no delineamento de caracteres para o surgimento de discussão de<br />

elementos que identificariam uma <strong>arte</strong> dita <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>. Depois de dez anos foram<br />

descobertos os ceramistas considerados primitivos do Nordeste, Mestre Vitalino, de<br />

Caruaru e Severino de Tracunhaém, entre outros.<br />

Vista a <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> até então sob uma ótica reducionista e pejora-<br />

tiva como objetos de fetiches ou de uma estética naïf atrelada a um padrão de gosto que<br />

a aproximava de formas decorativas harmonizando-se numa espécie de clima cultural. É


importante salientar a intolerância nas manifestações de cunho cultural por meio de per-<br />

seguições política e policial que destruíam não somente objetos ritualísticos, instrumen-<br />

tos musicais como também agrediam violentamente quem estava no local. O material<br />

coletado quando não era destruído era levado para delegacias e hospitais psiquiátricos<br />

como atestação da releitura atualizada da relação entre colonizador e colonizado ou do-<br />

minante e dominado na imposição de uma cultura considerada ideal. Os terreiros deixa-<br />

ram de ser um ato próximo da criminalidade reabrindo legalmente na década de 1950.<br />

Ignorava-se o papel memorial desse espaço como espaço de resistência e recriação da<br />

história, mitos, sacralidade, identidades, imaginário, cotidiano e comunidade. Tudo<br />

aquilo que confere o ethos africano nos processos de hibridização cultural.<br />

A produção poética na <strong>arte</strong> negro-africana tradicional não é representativa,<br />

sugere formas e conteúdos que são possíveis de serem reconhecidos por uma<br />

comunidade do qual o artista faz p<strong>arte</strong>, exprime um conceito, como por exemplo, o<br />

ancestral, a fertilidade, a maternidade... Ela pode ser considerada uma <strong>arte</strong> conceitual,<br />

pois transmite idéias e relações. Não retrata um indivíduo específico e representa a<br />

concepção e o princípio que o acerca na forma de ícones. Entre artista e comunidade<br />

não se cria o espaço de um distanciamento necessário para a reflexão estética como<br />

acontece com o artista ocidental. Para Boas:<br />

(...) o prazer estético é ressentido por todos os membros da humanidade. Por<br />

mais diverso que seja o ideal da beleza, o caráter geral do prazer que a beleza<br />

dá é da mesma ordem por toda <strong>arte</strong>; a melodia rudimentar dos siberianos, a<br />

dança dos negros africanos, a pantomima dos índios da Califórnia, as pedras<br />

esculpidas dos melanésios, os comovem de uma maneira que não é diferente<br />

daquela que sentimos quando escutamos um canto, quando assistimos a uma<br />

dança artística ou quando admiramos uma decoração, uma pintura, uma<br />

escultura. A própria existência do canto, da dança, da pintura e da escultura<br />

entre todas as tribos conhecidas é prova da grande necessidade de produzir<br />

coisas que são sentidas como satisfatórias por sua forma e pela capacidade do<br />

homem em apreciá-la. (Boas: 1927, 9)


O belo perpassa pela satisfação que um dado objeto ocasiona e pelo julgamento<br />

de quem o contempla, porque, a partir do momento em que é notado, a sensibilidade<br />

desse indivíduo foi tocada.<br />

Na língua bantu a palavra belo é usada para designar que uma dada coisa é boa,<br />

verdadeira e perfeita. A perfeição formal está atrelada à categoria estética, moral e<br />

lógica. Reunindo numa mesma unidade o belo, ao eficiente. Um dado objeto deve<br />

expressar a ancestralidade, o tempo presente, o passado e conectar-se com as<br />

manifestações do sagrado. O mundo apóia-se numa hierarquia de forças (ordem,<br />

desordem, caos e energia) em que o homem consegue manipulá-las através de suportes<br />

materiais.<br />

Os africanos ritualizam a vida geralmente dando conotação religiosa embora,<br />

traga aspectos políticos, econômicos ou domésticos. É uma <strong>arte</strong> comunicativa<br />

presentificada pela combinação de signos que recriam uma realidade. O artista africano<br />

trabalha para uma finalidade ritual, sua <strong>arte</strong> está ligada as suas crenças, a sua<br />

religiosidade e ela é o mote para sua força expressiva. Ela deve aparecer de modo<br />

desinteressado e não se atem a necessidade de uma pessoa, contudo da coletividade.<br />

O objeto artístico é carregado de significado possuindo uma função específica de<br />

acordo com a sociedade a qual pertence. A função assegura a ordem e a coesão do<br />

grupo.<br />

A <strong>arte</strong> africana, segundo Mariano Carneiro da Cunha (1983), ocorre em três<br />

níveis: o formal e técnico, a finalidade e o sentido e por fim, a capacidade de influir<br />

sobre outras culturas. Ou então, para Kabengele Munanga (2004), a sistematização da<br />

compreensão dos estudos sobre <strong>arte</strong> africana dá-se em três tipos de abordagens: teoria<br />

etnológica, a teoria etno-estética e a teoria estética.


As obras africanas tradicionais não são criadas com o intuito de ser objeto de<br />

exposição, e quando isso ocorre são instaladas em espaços museológicos, destituídas de<br />

sua significação, já não são mais objetos de culto por encobrir segredos na incapacidade<br />

de afetar a sensibilidade.<br />

Máscara dos Senufo<br />

madeira, tecido, cauris<br />

Senufo, Costa do Marfim<br />

Acervo MAE/USP<br />

A exposição de uma obra deve responder a uma necessidade e não uma escolha,<br />

por exemplo, se um altar é instalado num espaço público, num mercado ou na entrada<br />

de uma aldeia, é porque esse objeto tem a função de proteger tudo que está em torno. A


sua função não é a contemplação, embora sejam visíveis, persiste o segredo que é o não<br />

visível.<br />

Estabelece-se uma relação com o mistério e a relação que a comunidade possui<br />

com o ato de julgar um produto estético, como no caso dos Dagara de Burkina Fasso, as<br />

estátuas de adivinhação não podem ser objetos de julgamento estético nem antes nem<br />

depois da instalação no altar. São esculpidas longe dos espaços de convivência, no<br />

mato, onde o escultor se disfarça numa moita a fim de não se observado. Após o<br />

término do trabalho, o objeto é protegido e é levado até a casa onde é guardado numa<br />

sala reservada. Antes de ser instalado no altar, ele deve permanecer em segredo, pois se<br />

alguém pronunciar seu nome o maculará. O objeto deve manter-se resguardado para que<br />

possa ser investido pelos espíritos na ocasião de uma cerimônia, constituída no<br />

sacrifício de uma galinha preta e de uma pintada, das quais o sangue lavará a peça.<br />

Desse modo é consagrado e instalado no altar. Podendo ser visto por iniciados, ou em<br />

ocasiões específicas para a comunidade.<br />

Dos séculos XV ao XVIII a produção estética africana não provocava interesse<br />

nos ocidentais, tida como uma <strong>arte</strong> ‘estranha’ e vista preconceituosamente como<br />

oriundas de ‘regiões bárbaras’ eram expostas nos chamados gabinetes de curiosidades.<br />

No século seguinte com o aparecimento das ciências humanas, a sociologia e a<br />

antropologia, essas obras foram expostas como objetos de coleções. Artistas como<br />

Picasso, Braque, Matisse, Lam e os fauves tiveram acesso a esse material repensando<br />

as suas formas de produção até então pautadas nos cânones europeus nas primeiras<br />

décadas do século XX.<br />

No Brasil a influência da <strong>arte</strong> africana encontrava-se desde o processo de<br />

colonização, particularizando-se por vários séculos integrando os processos culturais e<br />

históricos. Isso se manifestava não apenas nas <strong>arte</strong>s visuais, como também no cotidiano


e nos objetos familiares manipulados, tanto conscientemente quanto inconscientemente,<br />

ou nos objetos reunidos de museus; o objeto das feiras, da <strong>arte</strong> popular e de<br />

manifestação popular, como os ex-votos da capela sertaneja e outros ícones de<br />

aproximação africana.<br />

Ex-votos<br />

madeira, século XX<br />

Coleção particular<br />

Catálogo Os herdeiros da noite: fragmentos do imaginário negro, 1994<br />

Incluem-se, dependendo a região, utensílios domésticos, jóias e outros adereços<br />

de uso pessoal, como acontece em Salvador e no Recôncavo baiano. Na região central<br />

do país o uso de tambores, instrumentos musicais e outros objetos que acompanham o<br />

ritual e a dança dos Candombes de origem bantu, na parafernália Gege (Fon) usada no


culto da Casa Mina, no Maranhão ou os semelhantes nos Tambores do Rio Grande; os<br />

emblemas das divindades africanas provenientes dos templos umbandistas espalhados<br />

pelo país, com suas diferenciadas formas, estilos locais e um idioma plástico pouco<br />

decodificado.<br />

Em 1934 Gilberto Freyre juntamente com outros intelectuais realizou o I<br />

Congresso Afro-Brasileiro em Recife discutindo os temas que faziam referência à<br />

cultura material africana destacando as <strong>arte</strong>s visuais, apresentando obras representativas<br />

da <strong>arte</strong> popular com características <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>s. A exposição ocorreu no Teatro<br />

Santa Isabel com direção de Cícero Dias auxiliado por Clarival Valadares, pela rainha<br />

de maracatu Albertina de Fleury e por Jarbas Pernambucano participando os seguintes<br />

artistas: Lasar Segall, Portinari, Santa Rosa, Di Cavalcanti, Luis Jardim, Manuel<br />

Bandeira e Cícero Dias que enviaram estudos de negros, de baianas e pinturas de<br />

mulatas.<br />

Realizou-se por iniciativa dos estudiosos com contribuições de indivíduos da<br />

mais diferentes profissões e linhas de pensamentos como os médicos Arsenio Tavares e<br />

Mário Ramos, os advogados Odilon Nestor e Arlindo Figueiredo, os professores Sylvio<br />

Rabello, os comerciantes Henry Shorto e Adolfo Cardoso Ayres. O dinheiro arrecadado<br />

foi utilizado entre várias providências para compras de alimentos para a feitura de<br />

quitutes <strong>afro</strong>-brasileiros que foram servidos durante o evento e para compra de bichos<br />

de pau e de barro, cachimbos, figas, estand<strong>arte</strong>s e bonecas de maracatu que também<br />

foram expostas no Teatro Santa Isabel com as obras dos artistas convidados.<br />

Especialistas em estudos negros relacionados às áreas de antropologia geral e<br />

<strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> participaram do Congresso, tais como Franz Boas, Nancy Cunard, Ro-<br />

quette Pinto, Odum, Froes da Fonseca, Nuno Simões, Osório de Oliveira, Rüdiger Bil-<br />

den, Azevedo Amaral, o professor de fisiologia da Universidade de Harvard, Cannon,


Rodolfo Garcia, Mário de Andrade, Arthur Ramos, Antônio Austregésilo, Bastos de<br />

Ávila, Cunha Lopes e Melville J. Herskovits.<br />

Os acontecimentos histórico-sociais desse período retomaram a produção dos ar-<br />

tistas e temas nas <strong>arte</strong>s visuais iniciadas nos anos 30 e, sobretudo, nos anos 40 como<br />

também os estudos africanistas em que o negro apareceu como consciência antropológi-<br />

ca reabilitando a sua presença na constituição da cultura nacional com as publicações de<br />

Os africanos no Brasil, de Nina Rodrigues, em 1933. Casa grande e senzala, de Gilber-<br />

to Freyre, em 1934. A partir de 1932, Arthur Ramos iniciou a publicação dos seus tra-<br />

balhos que culminaram na Introdução à antropologia <strong>brasileira</strong>, em 1942. Acrescen-<br />

tam-se ainda, as obras de Edison Carneiro, René Ribeiro, Donald Pierson, M. Hersko-<br />

vits, Roger Bastide, Pierre Verger, entre outros.<br />

No prefácio dos trabalhos apresentados no congresso intitulado como Estudos<br />

<strong>afro</strong>-brasileiros, Roquette-Pinto, demonstrou essa preocupação pertencente ao período:<br />

Em matéria anthropologica e etnogaphica, no Brasil como em tantos outros<br />

paizes, estamos nas preliminares da construção. Estabelecer os planos, ajuntar<br />

recursos e materiaes, systematisar as indagações - é o papel destas gerações<br />

que assim, hão de preparar para as outras o que ellas não tiveram: fontes<br />

puras onde beber. A revisão da bibliographia, a coordenação do que há impresso,<br />

a publicação de alguns documentos que hão de existir nos cartórios e<br />

nas igrejas de algumas villas e cidades de província, uma viagem de estudos<br />

às regiões africanas de onde vieram os negros, buscas em archivos europeus e<br />

mesmo sul-americanos, pesquizas somáticas raciaes, pesquizas demographicas<br />

e ethnographicas nos Estados onde ainda hoje ainda existem descendentes<br />

africanos mais próximos africanos...<br />

(...)<br />

O negro esperou bastante; mas valeu a pena. Consagraram-lhe um pequeno<br />

monumento singelo como a própria verdade sem rhetorica e sem lantejoulas<br />

– alguns dos maiores espíritos do Brasil de hoje. Para os que passam a vida<br />

embrenhados no delicioso e árduo trabalho de pesquisar e recolher documentos<br />

anthropologicos e ethnographicos da sua terra – é uma alegria boa e sincera<br />

ver que as sciencias do seu trato dilecto vão agora fecundando almas de<br />

élite, empenhadas numa obra de conhecimento e gratidão, de sympathia e de<br />

humanidade.(Roquette-Pinto: 1935, 3-4)<br />

Os assuntos discutidos e publicados nos Estudos <strong>afro</strong>-brasileiros foram apresen-<br />

tados pelos seguintes títulos:<br />

1. O negro no folclore e na literatura do Brasil, Renato Mendonça.


2. Ensaio etno-psiquiátrico sobre negros e mestiços (nota prévia). Trabalho da clí-<br />

nica psiquiátrica da Universidade do Rio de Janeiro Diretor Professor Henrique<br />

Roxo, Cunha-Lopes e J. Cândido Reis.<br />

3. Vocabulário Negro, Rodolfo Garcia.<br />

4. Contribuição ao Estudo do Índice de Lapicque, Trabalho do Instituto de Pesqui-<br />

sa do Departamento de Educação do Distrito Federal, Bastos de Ávila.<br />

5. A calunga dos maracatus, Mário de Andrade.<br />

6. Mitos de Xangô e sua degradação no Brasil, Arthur Ramos.<br />

7. Os negros na história de Alagoas, Alfredo Brandão.<br />

8. As doenças mentais entre os negros de Pernambuco, Ulysses Pernambuco.<br />

9. Longevidade (sua relação com os grupos étnicos da população), L. Robalinho<br />

Cavalcanti.<br />

10.Três séculos de escravidão na Paraíba, Adhemar Vidal.<br />

11. Abolição e suas causas, Jovelino M. de Camargo Jr.<br />

12.Grupos sanguíneos da raça negra, Abelardo Du<strong>arte</strong>.<br />

13. A República dos Palmares, Mário Mello.<br />

14. O trabalhador negro nos tempos do bangüê comparado com o trabalhador ne-<br />

gro no tempo das usinas de açúcar, Jovino da Raiz.<br />

15.Procedência dos negros do Novo Mundo, Melville J. Herskovits.<br />

16. Alimentação e estado nutricional do Escravo no Brasil, Ruy Coutinho.<br />

17.O problema da tuberculose no preto e no branco e relações de resistência ra-<br />

cial, Álvaro de Faria.<br />

18.A <strong>arte</strong> do bronze e do pano em Daomé, Melville J. Herskovits.<br />

19.Situação do Negro no Brasil, Edison Carneiro.<br />

20.As seitas africanas do Recife, Pedro Cavalcanti.


21. Receitas de quitutes <strong>afro</strong>-brasileiros, apresentados ao Congresso de Recife pela<br />

Ialorixá Santa e pelos Babalorixás Oscar Almeida e Apolinário Gomes.<br />

22. Nota antropológica sobre os mulatos pernambucanos, Geraldo de Andrade.<br />

23.Toadas de Xangô de Recife.<br />

24.Discurso do representante da frente negra pelotense, Miguel Barros. (Roquette-<br />

Pinto: 1935) 2<br />

Os próprios temas abordados figuram numa preocupação antropológica e nem<br />

tanto estética. Os tópicos referem-se desde a contribuição africana na mestiçagem e<br />

como isso se dá na ocorrência das patologias, contrapondo, a visão eugênica de que a<br />

população negra tivesse maior incidência de casos. Como também as características<br />

que distinguem um branco de um negro avaliado cientificamente pelo índice radio-pél-<br />

vico como também pelos fios de cabelo, formato de nariz e boca na conceituação de ra-<br />

ças. Questões na área de psiquiatria e antropologia alcançaram uma ênfase maior atra-<br />

vés de visões ideológicas convergentes e em outros instantes divergentes em abordagens<br />

diversas.<br />

O diálogo estabelecido entre cultura popular e religiosidade era espaçado, refe-<br />

riam-se de certa maneira à distinção dos processos de hibridização entre as culturas rela-<br />

cionais. A compreensão do material artístico atrela-se a uma <strong>arte</strong> de estética tradicional<br />

africana, não aparecendo nenhum conteúdo que propusesse uma leitura de produção de<br />

contornos nacionais, mesmo ocorrendo duas exposições, uma que se encaixaria nas pro-<br />

duções tradições de cunho popular e de artistas eruditos em que a figura do negro apare-<br />

ce como tema.<br />

O segundo congresso ocorreu em Salvador, de 11 a 20 de janeiro de 1937, sedia-<br />

do no Instituto Histórico, tendo como presidente o geógrafo Teodoro Sampaio, a inten-<br />

2 Trabalhos apresentados ao 1° Congresso Afro-Brasileiro reunido em Recife em 1934.


ção era“(...) estudar a influência do elemento africano no desenvolvimento do Brasil,<br />

sob o ponto de vista da etnografia, do folclore, da <strong>arte</strong>, da antropologia, da história, da<br />

sociologia, do direito, da psicologia social, enfim, de todos os problemas de relações<br />

de raças no país (Carneiro: 1940, 7).”<br />

Participaram desse evento, especialistas nacionais e estrangeiros tais como,<br />

Rüdiger Bilden, Fernando Ortiz, Reuter, Charles Johnson, Robert Park, Richard Pattee,<br />

Henry Wallon, Maria Archer... Mario de Andrade responsável pelo Departamento de<br />

Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, enviou à Bahia o maestro Camargo Guar-<br />

nieri para o recolhimento das notações musicais dos candomblés locais. O Instituto Nina<br />

Rodrigues, sob a direção do professor doutor Estácio de Lima, numa sessão dedicada a<br />

Nina Rodrigues, foi exposta uma coleção que incluía os pêjis, bonecas de tamanho natu-<br />

ral trajadas com as vestimentas especiais dos orixás. <strong>Uma</strong> delas representando a Ialorixá<br />

Mãe Menininha do Gantois. Além de sociedades e grêmios de estudos em defesa da et-<br />

nia negra, como a All African Convention, a Frente Negra de Pelotas, o Centro de Estu-<br />

do Histórico, a Sociedade de Investigações Afro-ameríndias de Porto Alegre...<br />

tópicos:<br />

Os artigos abordados no acontecimento foram apresentados sobre os seguintes<br />

1. Deuses africanos e santos católicos nas crenças do negro do novo mundo, Melville J.<br />

Herskovits.<br />

2. Costumes e práticas do Negro, Adhemar Vidal.<br />

3. <strong>Uma</strong> revisão da etnografia religiosa <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, Edison Carneiro.<br />

4. O moleque do canavial, Clovis Amorim.<br />

5. Um sistema de referência para o estudo dos contatos sociais e culturais, Donald<br />

Pierson.<br />

6. O negro e a cultura no Brasil, Renato de Mendonça.


7. Contribuições bantus para o sincretismo fetichista, Reginaldo Guimarães.<br />

8. O Ainhum nos anúncios de escravos fugidos, Robalinho Cavalcanti. 3<br />

9. Culturas negras: problemas de aculturação no Brasil, Arthur Ramos.<br />

10. A raça e a classe na Bahia, Ronald Pierson.<br />

11. O médico dos pobres, Edison Carneiro.<br />

12. Influência da mulher negra na educação <strong>brasileira</strong>, Amanda Nascimento.<br />

13. Os ministros de Xangô, Professor Martiniano do Bonfim.<br />

14. A concepção de Deus entre os negros yorubás, Ladipô Sôlankê.<br />

15. O negro e o espírito guerreiro nas origens do Rio Grande do Sul, Dante Laydano.<br />

16. Documentos antigos sobre a guerra dos negros palmarinos, Alfredo Brandão.<br />

17. Danças negras no nordeste (notas e observações colhidas em Alagoas e<br />

Pernambuco), Manuel Diegues Jr.<br />

18. Presença africana na música nacional de Cuba, Salvador Gárcia Agüero.<br />

19. Elogio de um chefe de seita, Jorge Amado.<br />

20. Homenagem a Nina Rodrigues, Edison Carneiro.<br />

21. Nina Rodrigues e os estudos negro-brasileiros, Arthur Ramos. (Carneiro: 1940) 4<br />

Aos congressistas exibiu-se capoeira, samba e batuque e o oferecimento de<br />

festas de terreiros tradicionais, o candomblé do Engenho Velho (considerado na época o<br />

terreiro mais antigo), o do Axé de Opô Afonjá e a dos terreiros de Procópio, de<br />

Bernadino e do Alakêtu. As manifestações apresentadas iam ao encontro das discussões<br />

ali presentes nos procedimentos de aculturação da população negra e a sua adaptação<br />

desde a vida religiosa com o vínculo do indivíduo e a cosmogonia, quanto na sua<br />

3 Termo de origem dos povos nagôs que significa serrar e faz referência a amputação espontânea do quinto<br />

pododáctilo (dedo de pé) por uma moléstia rara e de causa desconhecida acometendo principalmente<br />

indivíduos de origem étnica negra.<br />

4 Trabalhos apresentados ao 2° Congresso Afro-Brasileiro na Bahia em 1937.


hierofania atreladas a diferentes aspectos culturais partilhados nas práticas de contato<br />

refletidas na vida social.<br />

O grande mérito do congresso foi promover um espaço de discussão aproximan-<br />

do, mesmo que não intensamente, os teóricos com aqueles que vivenciavam na prática<br />

os processos de iniciação e o entendimento dos aspectos litúrgicos provenientes de ter-<br />

reiro. O diferencial entre o congresso recifense e o baiano está na participação direta de<br />

babalorixás e ialorixás e de outros interessados e pesquisadores no assunto buscando<br />

não apenas apresentar o negro como estudo mas, também como pensador de sua prática.<br />

Como conceituar uma estética oriunda de uma <strong>arte</strong> negra tradicional africana?<br />

Seria a partir das condições locais arroladas às questões sociais, econômicas e culturais<br />

desenvolvidas por meio dos processos de fusão, justaposição e convergência entre<br />

povos dominantes e dominados de etnias distintas? Ou esse entendimento seria <strong>possível</strong><br />

na contextualização de uma produção africana de caráter tradicional para se abordar<br />

elementos de uma <strong>arte</strong> que não é somente étnica, no entanto essencialmente <strong>brasileira</strong>?<br />

Quem definiria essa <strong>arte</strong>? A crítica de <strong>arte</strong>? Ou o mercado? O tema e/ou origem étnica<br />

poderiam caracterizar uma estética <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>? Ou o eu enunciador participaria<br />

numa definição dela?<br />

Pensando-se em artistas de origem popular como Heitor dos Prazeres<br />

(1898 - 1966), Paulo Pedro Leal (1894-ca.1968 ), João Alves (1906-ca.1970), Waldomi-<br />

ro de Deus (1944), entre outros. Ou de artistas, nos quais a figura do negro aparece<br />

eventualmente sem necessariamente corresponder a uma temática, como nas obras de<br />

Lasar Segall (1891-1957), Tarsila do Amaral (1886-1973), Alberto Veiga Guignard<br />

(1896-1962), Lucílio de Albuquerque (1877-1939), Cândido Portinari (1903-1962),<br />

Djanira (1914-1979), José Pancetti (1902-1958) e Di Cavalcanti (1897-1976). Ou então<br />

aqueles artistas <strong>afro</strong>-descendentes que desenvolveram suas pesquisas plásticas esponta-


neamente e inconscientemente numa estética africana, como Rubem Valentim<br />

(1922-1991), Mestre Didi (1917), Ronaldo Rego (1956), Hélio de Oliveira (1929-1962)<br />

e Agnaldo Manuel dos Santos (1926-1962).<br />

Proponho um olhar sobre a obra de Mestre Didi e Rubem Valentim como produ-<br />

ções geradas a partir de cânones próprios de origem religiosa na utilização de signos e<br />

de símbolos construindo imagens que foram traduzidas para uma linguagem contempo-<br />

rânea.<br />

Simbologia e corporalidade na mítica da produção <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> de<br />

mestre Didi e Rubem Valentim<br />

As obras de Mestre Didi e Rubem Valentim demonstram similitudes dentro de<br />

uma compreensão de mundo africana por traduções poéticas e vias diferentes através do<br />

aspecto religioso e da mitologia.<br />

Mestre Didi caracteriza-se por apresentar em sua obra uma vertente mitológica<br />

enquanto o artista Rubem Valentim define-se por uma vertente construtivista.<br />

Os símbolos atuam como matéria criadora de formas artísticas, intensificadas<br />

pelo aspecto sagrado da vida, reafirmando a presença dos orixás em signos possíveis de<br />

serem reconhecidos por uma coletividade, funcionando em sua essencialidade, como<br />

síntese de um universo estético-litúrgico.<br />

O fato de a mitologia, a religião e a <strong>arte</strong> representarem veículos sensíveis de<br />

cultura, transmissão de conteúdos e necessidades latentes dos seres, pode-se afirmar,<br />

que esses três campos de conhecimento não podem ser entendidos autonomamente,<br />

encontram-se interligados e definidos por um caráter de identificação de ancestralidade<br />

na expressão de virtudes individuais e coletivas.


A <strong>arte</strong> representa o revivificar do ato criador através do contato com a natureza e<br />

a inserção no cosmo por toda a historicidade dos tempos primordiais e atuais, acrescida<br />

também do espírito e do coração, elementos que vão além da apreensão somente visual.<br />

Refere-se aqui a proximidade dos seres com os ancestrais na forma do culto aos mortos,<br />

pois são os que trazem as benesses, a fertilidade e o afastamento dos perigos existentes.<br />

O candomblé possui como base, o culto aos ancestrais presentificados na figura<br />

dos orixás, serviram como fonte de pesquisa pessoal desses dois artistas na experiência<br />

do sagrado e na inspiração mítica trazidas numa série de cargas simbólicas transpostas<br />

nas cores, nos materiais empregados e nas formas.<br />

No centro de toda a criação está o homem, como criador e ao mesmo instante,<br />

como criatura, exercendo a comunicação com o interno e o externo, o material e<br />

imaterial, o sagrado e o profano, o universal e o particular, o extra-natural e o natural, a<br />

tradição e a contemporaneidade. O sagrado presente em todos os instantes e em todas as<br />

instâncias partilhando do cotidiano.<br />

Na obra de Mestre Didi há a presença do universo existencial africano,<br />

retomando p<strong>arte</strong> de sua história, desde a tenra idade estava inserido nas práticas<br />

litúrgicas do candomblé, tornando-se um iniciado (conhecedor dos mistérios), recriava<br />

os objetos pertencentes aos ritos dando um enfoque plástico. Trabalha com a simbologia<br />

dos orixás representadas nas cores como meio de corporificar os seus princípios-<br />

poderes no uso dos materiais e na relação do mundo visível e invisível.<br />

Rubem Valentim traduz as suas configurações em um abstracionismo<br />

geométrico, síntetizando, desconstruindo e retraduzindo os instrumentos pertencentes às<br />

entidades em signos plásticos, imunizados e privados de suas próprias virtudes<br />

originais. O candomblé não fazia p<strong>arte</strong> diretamente de sua realidade, de sua vivência<br />

mística, acompanhou posteriormente, os rituais do candomblé e mais especificamente


da umbanda por representar para ele a síntese da formação cultural <strong>brasileira</strong>. Sua<br />

referência básica de construção das formas pautadas na tradição européia, mesclando a<br />

sua africanidade à conteúdos eruditos, como num processo alquímico, o conhecimento<br />

transfigurado numa realidade africana.<br />

Rubem Valentim<br />

Emblema, 1973<br />

acrílico sobre tela<br />

100 x 73 cm<br />

Coleção Torquato Sabóia Pessoa


Em Mestre Didi ocorrem relações de convívio com o tema desenvolvido, pois,<br />

encontrava-se num ambiente genuíno partilhado dessas formas estéticas transfigurando-<br />

as para reafirmar a sua visão existencial de um meio cultural elaborado na sua erudição.<br />

Cada um seguiu uma das vias de manifestação, a primeira que toma as formas da<br />

natureza como desenhos abstratos incorporados por Valentim. Faz a observação<br />

documental dos emblemas e signos procurando universalizar a <strong>arte</strong> remetendo a<br />

religião, a ética, a metafísica e aos esquemas sociais, fundamentando a valorização de<br />

uma cultura <strong>brasileira</strong> com seus sincretismos (umbanda) devido à presença do africano,<br />

indígena e europeu na constituição de um povo.<br />

E a outra via, abordada por Mestre Didi, relaciona cada entidade a uma cor ou a<br />

um som específico através de incorporações. Ele nasceu e conviveu intimamente na<br />

cultura Nagô (candomblé), tornando-se sacerdote e conhecedor dos mistérios (iniciado),<br />

atualizando a visão teológica, cósmica e mítica de seus antepassados ligando o homem a<br />

Terra, isso é traduzido na execução de objetos não só estéticos, mas que fazem p<strong>arte</strong> de<br />

uma prática litúrgica.<br />

O símbolo para os dois artistas é o gerador da experiência individual<br />

transmudando em ato espiritual e em compreensão transcendente do universo. A<br />

sacralidade da vida baseia-se na recriação do mundo primordial personificadas na figura<br />

dos orixás e em seus emblemas vinculados a Natureza, ao mistério de regeneração<br />

periódica dos cosmos, participando do inconsciente coletivo dos indivíduos e assim,<br />

refletido nas condutas dos seres, em seus papéis sociais e integrativas de uma<br />

comunidade.<br />

O enfoque é encarar o símbolo como gerador de formas estéticas e poéticas<br />

transferidos na mítica dos orixás, com suas representações não antropomórficas (origem<br />

yorubá – Nagô), com seus contornos retirados da natureza, as cores como portadoras


dos princípios – poderes que são as funções que lhe foram atribuídas por Olodumare ou<br />

Olorum (Ser Supremo), as armas que eles utilizam agem como um identificador de suas<br />

forças, além dos materiais que caracterizam essas entidades por suas qualidades e<br />

participantes da prática litúrgica, conferindo significados não podendo ser substituídos.<br />

Esses mitos originalmente fazem p<strong>arte</strong> dos poemas oraculares cultivados pelos<br />

babalaôs, falam da criação do mundo e de como ele foi repartido entre os orixás.<br />

“Relatam uma infinidade de situações envolvendo os deuses, os homens, os animais, as<br />

plantas e os elementos da natureza e da vida em sociedade. É pelo mito que se<br />

interpreta o presente e se prediz o futuro nesta e outra vida.” (Prandi: 2001, 24)<br />

É por meio do mito que o homem se encontra dramatizado e cria uma<br />

proximidade com as divindades. Ele vem acompanhado com o rito e o rito realiza o<br />

mito e permite a vivência;“O rito remete ao tempo de origem pela repetição do ato<br />

criador dos deuses permitindo todo gesto criador humano não importando o seu plano<br />

de referência”.(Eliade: 2001)<br />

De certo modo a obra de Mestre Didi possui o aspecto de <strong>arte</strong> ritual por trazer no<br />

seu cerne a dramatização da história do homem e seus ancestrais nas entidades como<br />

fonte inspiradora do ato de criação.<br />

Um símbolo não pode indicar uma coisa particular, ele denota uma espécie (um<br />

tipo de coisa). E não apenas isso. Ele mesmo é uma espécie e não uma coisa única.<br />

(Santaella: 1983)<br />

O símbolo, nestas obras, participa de um dado contexto possibilitando diferentes<br />

interpretações e um significado único para cada ser de acordo com suas vivências. A<br />

universalidade, o que seria comum a um povo nas suas referências, na sua tradição, na<br />

sua cultura, nas suas convenções seria o que permitiria estabelecer a comunicação com


o outro - o individual - na apreensão da realidade, na subjetividade e objetividade da<br />

vida.<br />

A busca para se estudar a infinidade de símbolos presentes nas obras de Mestre<br />

Didi é o caminho para se tentar o entendimento sobre a construção de formas plásticas<br />

que direcionam a universalidade e ao mesmo tempo a tradicionalidade na manifestação<br />

do sagrado na religiosidade africana. Esses elementos são reinterpretados dentro de uma<br />

realidade absoluta – hierofania - estabelecendo a comunicação com as entidades e<br />

revivendo o aqui e o agora num presente contínuo que é o eterno retorno.<br />

A religião para Engels traduz a angústia do homem em face das forças<br />

misteriosas de uma natureza que não pode domesticar; tomam por isto forças<br />

supraterrenas (Bastide: 1985), atuando no homem tanto no psicológico e no social.<br />

Tratando-se de <strong>arte</strong> africana é por definição uma <strong>arte</strong> religiosa, o estético é<br />

funcional, expressa categorias, diferentes qualidades são componentes de um todo e<br />

ativos indutores de uma ação. Atuam como portadores e presentificadores de forças<br />

místicas em que estimulam a memória grupal e o processo de adoração. O belo como<br />

universal é necessário como correspondentes das exigências do espírito humano para a<br />

criação.<br />

Os símbolos presentes na mitologia dos orixás revivificados na obra de Mestre<br />

Didi e Rubem Valentim com suas diferenciações enquanto processo, o primeiro, como<br />

experiência iniciática, transcende o plano litúrgico fazendo p<strong>arte</strong> da vertente mitológica<br />

nas <strong>arte</strong>s e o outro geometriza e poetiza as formas vivas da cultura <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong><br />

remetendo a estruturas totêmicas (construtivista). Propõe-se aqui uma discussão sobre o<br />

fazer artístico numa cultura de caráter popular que não é cristalizada renova-se nas<br />

elaborações conscientes e inconscientes de uma coletividade revitalizadas nas suas


crenças. O homem vinculado ao espaço cósmico e as raízes que é a essência e a<br />

compreensão de sua existência.<br />

E parafraseando José Marianno Carneiro da Cunha, na <strong>arte</strong> de Mestre Didi “o<br />

ícone africano tem resistido a todas as transformações aculturativas no Brasil, e pode<br />

comunicar-se ainda com a força do idioma original (...) que extrapola o indivíduo e<br />

fala dos valores constantes de uma cultura, falando nesta medida, também por todos.”<br />

(Cunha: 1983)<br />

Rubem Valentim declara:<br />

Minha <strong>arte</strong> tem um sentido monumental intrínseco. Vem do rito, da festa.<br />

Busca as raízes e poderia reencontrá-las no espaço, como uma espécie de<br />

ressocialização da <strong>arte</strong>, pertencendo ao povo. É a mesma monumentalidade<br />

dos totens, ponto de referência de toda a tribo. Meus relevos e objetos pedem<br />

fundamentalmente o espaço. Gostaria de integrá-los em espaços urbanísticos,<br />

arquitetônicos, paisagísticos. Meu pensamento sempre foi resultado de uma<br />

consciência da terra, de povo. Eu venho pregando há muitos anos contra o<br />

colonialismo cultural, contra a aceitação passiva, sem nehuma análise crítica,<br />

das fórmulas que nos vêm do exterior - em revistas, bienais, etc. É a favor de<br />

um caminho voltado para as profundezas do ser brasileiro, suas raízes, seu<br />

sentir. A <strong>arte</strong> não é apanágio de nenhum povo, é um produto biológico vital.<br />

(Valentim: 2001, 30)<br />

O homem é um ser simbólico, traz como repertório uma série de signos que al-<br />

cançam um sentido em sua existência, para se transformar em objetos artísticos e para<br />

estabelecer uma linguagem com um grupo, refletindo a sua identidade, os seus valores,<br />

a sua historicidade, a sua religiosidade, a sua cultura, a sua sociedade, os seus conflitos<br />

e numa esfera maior a apreensão do cotidiano.<br />

A obra O cetro da arvore com serpentes e pássaro na copa (Òpá Igi Ejo Meji ati<br />

~Eyé Kan Ióri), constitui-se de palhas para a estruturação da p<strong>arte</strong> central numa<br />

verticalidade em movimento de ascensão, finalizadas com a representação<br />

tridimensional do pássaro recoberto com tecido vermelho; na p<strong>arte</strong> superior de seu<br />

corpo e na inferior com tecido chita, com flores em tons vermelhos e amarelos.<br />

Acrescidas ainda, a cor secundária laranja como fundo complementar proveniente das<br />

costas do animal contrastadas com a p<strong>arte</strong> interna com a cor verde.


Mestre Didi<br />

Òpá Igi Ejo Meji ati ~Eyé Kan Ióri<br />

(Cetro da árvore com serpentes e pássaro na copa)<br />

Sem data. Técnica mista. 105x50x20 cm<br />

Coleção do artista<br />

Catálogo Arte <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>


Em volta emanam das bases laterais, frontais e traseiras as nervuras eretas em<br />

diagonais que remetem aos galhos de uma árvore circundada com movimentos sinuosos<br />

de serpentes com as cabeças apontadas, uma para a direita e a outra para a esquerda.<br />

Essas formas integram-se e criam um sistema simbólico pelo uso dos materiais<br />

específicos, objetos transitórios de práticas litúrgicas e transformadas na sua erudição<br />

em objeto artístico. Os couros que ao mesmo tempo ornamentam e sustentam a peça<br />

com suas cores puras representam as forças que impulsionam a vida. Elas ganham<br />

sentido acrescido de outros materiais como miçangas, contas, cauris, a chamada<br />

popularmente lágrima de Cristo, usada para feitura de terços... relacionam-se como por<br />

exemplo, na cor preta, vermelha e branca, que poderia configurar respectivamente o<br />

por- do- sol, a noite e o dia, a integração com a natureza como representação de todos<br />

axés da força ativa que estão nos orixás e nos homens.<br />

O feixe de nervura que compõe a verticalidade do cetro que indicam uma força<br />

que ascende e aproxima do sagrado e outra que descende que afirma o solo em seu<br />

aspecto terreno. O cetro confere e simboliza poder. Nos cultos dos ancestrais perpassa<br />

pela devoção e respeito aos acontecimentos.<br />

A aproximação dos mitos dá-se com os signos que remetem aos orixás tanto nas<br />

cores quanto na forma. A árvore ancestral na mitologia dos orixás é representada por<br />

Iroco a primeira árvore plantada e seu espírito podia ser capaz de muitos poderes que<br />

tenderiam tanto para o bem quanto para o mal.<br />

Oxorongá.<br />

O pássaro aparece como símbolo tanto na história mítica de Ossaim e de Iá Mi<br />

Ossaim, filho de Nana e irmão de Oxumaré Euám, era o senhor das folhas, da<br />

ciência e das ervas, conhecedor do segredo da cura e do mistério da vida. É identificado<br />

como um pássaro a partir de um acontecimento específico, neste caso, a história de um


ei que decidiu casar sua filha mais velha. Lançou um desafio aos pretendentes que era<br />

aquele que descobrisse o nome das três filhas, casaria com a princesa que seu pai<br />

gostaria de desposá-la. Ossaim imitou, disfarçou-se em pássaro e brincou com as<br />

princesas descobrindo o nome de cada uma delas.<br />

Iá Mi Oxorongá são as feiticeiras e as mães ancestrais que continham o princípio<br />

do bem e do mal. Cada uma tinha os seus pássaros. Eram conhecidas como mulheres-<br />

pássaros. O símbolo é uma espécie de moringa com um pássaro no topo.<br />

O bem aparece como modo conversível com o Ser podendo ser entendido tal<br />

como a propriedade de um ente ou como um valor. Caracterizando-se como algo físico,<br />

metafísico e moral. Enquanto o mal funcionava como realidade ou a ausência dela e<br />

como negação de valor, atuava como elemento necessário para a harmonia universal<br />

relacionadas com a manifestação do bem.<br />

A Ejó do yorubá refere-se à serpente que se aproxima dos mitos de Dan que é o<br />

vodun da riqueza, na religião Fon, representa uma serpente que se rasteja e se esconde<br />

na terra que se eleva ao céu na forma de arco-íris, denominando-se Dan Ayidohwedo,<br />

vai até as nuvens para semear as chuvas benfazejas. Corresponderia a Oxumarê que<br />

também tem profunda relação com o arco-íris e a chuva, um servidor de Xangô, que<br />

seria encarregado de levar as águas da chuva de volta para as nuvens através do arco-<br />

íris. Simbolizando a continuidade e a permanência, morde a própria cauda. Envolve-se<br />

ao redor da terra para que se mantenha . integrada regendo o príncipio da multiplicidade<br />

da vida.<br />

As serpentes que se revolteiam entre os galhos e o caule numa espécie de dança<br />

em que os dois corpos ao mesmo tempo se apoximam e se distanciam como polarização<br />

de forças opostas equilibradas no entendimento do mundo natural com o sobrenatural .


As formas configuram-se num corpo litúrgico e corpo social tal como um<br />

processo iniciático. A iniciação e a vivência no terreiro permite instaurar uma visão de<br />

mundo apoiadas nas crenças em que o corpo humano e a vida nas representações<br />

biológicas daquilo que é considerado essencial.<br />

O corpo é o veículo de comunicação com os deuses são forças da natureza<br />

através da possessão ritual interligando aos habitantes de orum (céu) e do aiê (terra).<br />

Cada orixá é concebido e associado a um dos quatro elementos da natureza: àgua, terra,<br />

fogo e ar. Como também é o arquétipo que fornece padrões de comportamentos.<br />

O corpo é o veículo de comunicação com os deuses, são forças da natureza<br />

através da possessão ritual interligando aos habitantes do orum (céu) e do aiê (terra).<br />

Estabelece-se a idéia de um corpo-memória que foi construído por linguagens<br />

corporais distintas em razão do confronto entre as matrizes étnicas que compuseram o<br />

que seria um corpo brasileiro pelo processo de miscigenação e hibridismo cultural.<br />

Essas linguagens traduzem o idioma desse corpo como reminiscência de um corpo<br />

negro subjetivado no que se refere ao que é permitido conhecer do “meu corpo” e a<br />

relação com outros corpos, o corpo do outro, o corpo social ou então o corpo cultural.<br />

Ou ainda:<br />

Para Gabriel Marcel, há duas maneiras de considerar o corpo: pode tratar-se<br />

de ‘meu corpo’, em cujo caso a relação é de natureza absolutamente singular.<br />

De fato, a relação entre a alma e o corpo (ou, mais exatamente, a relação<br />

entre mim e meu corpo) é um mistério e não um problema. O corpo pode ser,<br />

por certo, ‘objetivado’, convertido em objeto de conhecimento científico.<br />

Mas então já não propriamente o ‘meu corpo’ (não é corpo de ‘ninguém’). É<br />

uma simples amostra. (Mora: 2001, 137)<br />

Para Jean-Paul Sartre, o corpo apresenta-se em três dimensões ontológicas.<br />

Na primeira, trata-se de um ‘corpo para mim’, de uma forma de ser que<br />

permite enunciar ‘eu existo meu corpo’... Na segunda dimensão, o corpo é<br />

para outro (ou então o outro é para o meu corpo); trata-se neste caso, de uma<br />

corporalidade radicalmente diferente da do meu corpo para mim. Pode-se<br />

dizer, então, que ‘o meu corpo é utilizado e conhecido por outro’. ‘Mas na<br />

medida em que eu sou para outro, o outro se revela a mim como o sujeito<br />

para quem sou objeto. Então eu existo para mim como conhecido por outro,<br />

em particular em sua facticidade mesma. Eu existo pelo outro em forma de<br />

corpo. (Mora: 2001, 137-138)


Na obra de mestre Didi antes de ser um objeto litúrgico confere o conceito de<br />

corpo, um corpo social que se apresenta através de signos que remetem aos orixás numa<br />

busca de coerência entre o mundo natural e o sobrenatural. Esse corpo atua como<br />

microcosmo nas relações com o sagrado. É um ator social que o identifica dentro de<br />

uma comunidade, o que permite a unicidade e tornar-se portador de uma identidade.<br />

Trata-se de uma cultura que carrega uma identidade nacional. O homem como<br />

idealizador e como agente pensante de seu meio. Qual é o papel do artista com seus<br />

valores ideológicos naquilo que retrata, neste caso a própria dificuldade de se definir<br />

uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, ao dramatizar a história nos objetos e na humanização do corpo<br />

na contemporaneidade?


3º CAPITULO<br />

UMA POSSÍVEL ARTE AFRO-BRASILEIRA<br />

Religião e espaço de exibição: tensões entre o popular e o erudito<br />

O ideário modernista buscou na cultura popular, constituída majoritariamente<br />

por elementos de matrizes negras e indígenas, definir uma <strong>arte</strong> de contorno nacional na<br />

tentativa de alimentar o que se considerava de mais autêntico na produção artística<br />

erudita durante o período dos anos 20 até os 40 do século XX.<br />

O modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um abandono consciente de<br />

princípios e de técnicas, foi uma revolta contra a intelligensia nacional. É<br />

mais <strong>possível</strong> imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse preparado<br />

em nós um espírito de guerra. E as modas que revestiram este espírito foram<br />

diretamente importadas da Europa. Quanto a dizer que éramos<br />

antinacionalistas, é apenas bobagem ridícula. É esquecer todo o movimento<br />

regionalista aberto anteriormente pela Revista do Brasil primeira fase, todo o<br />

movimento editorial de Monteiro Lobato, a arquitetura e até urbanismo<br />

(Dubugras) neo-colonial aqui nascidos. Isso sim eram raízes engrossadas<br />

desde o início da guerra. Mas o espírito e as modas foram diretamente<br />

importados da Europa.<br />

Ora São Paulo estava muito mais “ao par” que o Rio de Janeiro. E,<br />

socialmente falando, o modernismo só podia ser importado por São Paulo e<br />

arrebentar aqui. Havia uma diferença profunda, já agora pouco sensível, entre<br />

Rio e São Paulo. O Rio era muito mais internacional, como norma de vida<br />

exterior. Está claro: capital do país, porto de mar, o Rio tem um<br />

internacionalismo ingênito. São Paulo ao mesmo tempo estava, pela sua<br />

atualidade comercial e sua industrialização, em contato, se menos social,<br />

mais espiritual (não falo “cultural”) e técnico com a atualidade cultural.<br />

(Andrade in O Estado de São Paulo: 2002, 09) 5<br />

Preocupações que distanciavam a <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> de algumas formulações das<br />

vanguardas históricas, ou seja, aproximava-a de considerações que focavam a realidade<br />

física e humana do país estabelecidas no retorno à ordem que suprimia os<br />

questionamentos estéticos e artísticos menos moderados das vanguardas, para o regresso<br />

ao realismo e à valorização do nacional.<br />

5 Artigo intitulado O movimento modernista escrito por Mário de Andrade em 1942 abordando as origens<br />

da Semana Moderna e o contexto em que surgiu foi republicado no Estado de São Paulo em 2002.


Determinadas características presentes nas manifestações expressivas e artísticas<br />

do povo, definiriam uma <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> dentro de relações sincréticas numa<br />

contraposição entre a contribuição de matrizes não européias e a presença do europeu na<br />

formação de uma identidade nacional.<br />

Mário de Andrade e Roger Bastide levantavam no cenário paulista anos 30 e 40,<br />

juntamente com outros críticos, questões nas quais o aspecto popular era o elemento<br />

central na construção da visualidade <strong>brasileira</strong>. O Grupo Santa Helena, tinha como<br />

origem imigrantes e seus descendentes que participavam na discussão dessa visualidade<br />

nos anos 30, negando a princípio os postulados das vanguardas históricas numa<br />

perspectiva não acadêmica; valorizando os meios técnicos fundamentalmente <strong>arte</strong>sanais<br />

e de atributo popular.<br />

Para Mário de Andrade, a cultura popular era detentora de qualidades raras e<br />

deveria ser conservada para não ser dissipada em sua essencialidade. O seu interesse<br />

pelas manifestações culturais tornava-se evidente ao incorporá-lo na sua produção<br />

literária de caráter erudito, como exemplo, as obras Paulicéia desvairada (1922), Clã<br />

do Jabuti (1927) e Macunaíma (1928). A matéria popular era fonte de criação para o<br />

registro de <strong>arte</strong> erudita, objetivando construir com esse referencial uma noção de cultura<br />

com contornos nacionais.<br />

Numa outra fase de sua carreira, a cultura popular transforma-se em material de<br />

pesquisa, com a expedição para o Nordeste ocorrida nos anos de 1928/29, aprofundando<br />

suas leituras antropológicas e transformando-as em prática científica; e a sua atuação no<br />

Departamento de Cultura de São Paulo, entre 1935 a 1939, no qual criou a Sociedade de<br />

Etnografia e Folclore e promoveu cursos de formação de pesquisadores de campo.<br />

Mário de Andrade acreditava que, o contato do artista erudito com o outro<br />

proveniente do povo, fazia-se o ideal, conferindo desse modo, uma fissura que teria


como conseqüência, um produto resultante de um diálogo entre as formas eruditas e<br />

populares que formataria uma <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong>.<br />

Nesse contexto surgiu como problemática a busca de um corpo e de uma alma<br />

<strong>brasileira</strong> na constituição da descoberta e da concepção de identidade do intérprete.<br />

Essas fissuras abarcam, inevitavelmente, uma série de contradições que a modernidade<br />

em sua heterogeneidade acarreta, como: o moderno e o tradicional, o culto e o popular e<br />

o hegemônico e o subalterno. (Canclini: 1997, 206)<br />

O movimento de luta e resistência e de apropriação e expropriação na cultura<br />

popular, ao mesmo tempo que contém e resiste, possibilita a destruição e alteração<br />

dessas formas em outra coisa ao sair do cotidiano popular para assumir outro espaço.<br />

Para Hall, “não existe uma “cultura popular” íntegra, autêntica e autônoma, situada<br />

fora do campo de força das relações de poder e de dominação cultural.” (Hall, 2003:<br />

232)<br />

A idéia de embate cultural carrega consigo a noção de resistência,<br />

fundamental nas reflexões de Bastide sobre o sincretismo. O que se observa<br />

pelo exame do folclore brasileiro é um jogo de vida e morte entre culturas,<br />

em que as mais fortes — no caso, a portuguesa — têm maiores chances de<br />

manutenção. As civilizações ameríndias foram mais duramente destruídas<br />

entre nós; mesmo assim, alguns de seus elementos ainda povoam o folclore<br />

brasileiro. A cultura africana, por sua vez, conheceu situação paradoxal no<br />

contexto da sociedade escravista. (Peixoto: 1999, 102)<br />

Ocorre uma tensão permanente e de caráter antagônico na cultura <strong>brasileira</strong><br />

criando modos de formações dominantes e sujeitadas. Isso permite que algumas<br />

práticas, sejam preteridas em detrimento de outras pelas relações de forças variáveis,<br />

encontradas nas formas de tradição e da transformação das práticas populares nos<br />

espaços de convívio social e cultural.<br />

A questão da autenticidade cultural — que diz respeito à constituição de uma<br />

identidade nacional do ângulo da cultura — coloca-se como um problema<br />

especialmente delicado em um país colonial que se desenvolveu a partir da<br />

importação, e da imposição, de modelos estrangeiros. O autêntico, nesse<br />

contexto, tanto para os modernistas quanto para Bastide, compreende a<br />

contribuição de legados culturais distintos que se mesclaram em diferentes<br />

momentos da história do país, e que produziram sínteses particulares,<br />

diferentes dos padrões primeiros que aqui chegaram. A originalidade, como


vimos, corresponde à mescla cultural, à criação dotada de caráter próprio, não<br />

se confundindo, portanto, com "pureza" ou "cópia". (Peixoto: 1999, 102)<br />

O modo como os embates culturais e sociais apresentam-se, e<br />

conseqüentemente, a fusão dos valores estabelecidos pelos grupos relacionais,<br />

concebem uma expressão artística autêntica numa luta entre as relações de poder<br />

alicerçadas na ordem social e na desordem simbólica. A <strong>arte</strong> popular demonstra a<br />

reprodução e o movimento de contestação de uma ordem abrangendo as questões<br />

sociais pertencentes a um povo e definidoras na constituição de uma cultura não-<br />

dominante frente a uma dita oficial. Para persistir as formas populares buscam modos<br />

de resistência e reelaboração de suas práticas, constituídas em seu aspecto artístico não<br />

pautado apenas na tradição.<br />

O papel da tradição não é apenas o da transmissão puramente desses conteúdos,<br />

no entanto, esta atua tanto como maneira de perpetuação, quanto de associação e<br />

articulação dos contextos formais no cotidiano de uma comunidade.<br />

Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segundo termo<br />

entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código ideológico<br />

de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e<br />

mesma língua. Conseqüentemente, em todo signo ideológico confrontam-se<br />

índices de valor contraditórios. (Volochínov apud Hall: 2003, 242)<br />

Roger Bastide interessava-se pela produção artística local, considerando uma<br />

estética nacional denotada pela <strong>arte</strong> figurativa que reafirmava o ideário nacional sob a<br />

ótica do modernismo, na sua compreensão dos meios de representação das formas<br />

expressivas, condizente com os valores traduzidos numa poética articulada pelos artistas<br />

em suas obras.<br />

Bastide encontrava-se afinado com os conteúdos dominantes da crítica<br />

modernista e perseguia uma estética da cidade de São Paulo, uma estética da paisagem<br />

nacional e, principalmente, uma poética <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>; ao discutir as manifestações<br />

artísticas populares, a contribuição negra e a visualidade dos candomblés. Suas<br />

preocupações coincidiam com as dos críticos paulistas; ao valorizar a <strong>arte</strong> figurativa


como construção de uma visualidade de identidade nacional. Diferentemente dos<br />

críticos cariocas que viam na <strong>arte</strong> abstrata um foco de pesquisa visual.<br />

O folclore, o barroco e a literatura permitem a Bastide olhar para o país a<br />

partir da trama sincrética, isto é, da concorrência desigual entre os dois<br />

sistemas culturais: o branco/europeu — que nos três casos constitui o<br />

fundamento do composto sincrético — e o negro, que luta para ferir a camada<br />

dominante e impor os seus valores. A religião, por sua vez, vai oferecer ao<br />

intérprete um ângulo de observação inusitado. Reduto privilegiado da reação<br />

africana, os cultos <strong>afro</strong>-brasileiros permitem iluminar o pólo da resistência<br />

africana. Desse modo, possibilitam ao cientista a decantação da África a<br />

partir da composição mestiça. Ou seja, no exemplo religioso, ao contrário dos<br />

demais, a grade sobre a qual irão se apoiar todas as demais contribuições é<br />

negra. As religiões <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>s talvez sejam as únicas manifestações<br />

culturais capazes de inverter o sentido de acomodação das camadas que<br />

compõem a totalidade sincrética: aí, a contribuição negra é a base, o solo<br />

fundamental. Por esse motivo, oferecem ao intérprete o caminho preferencial<br />

para a apreensão da África no Brasil.<br />

A identificação e a compreensão dos objetos verdadeiramente nacionais — os<br />

compostos sincréticos — só se viabilizam pela definição de um ponto de<br />

vista que permita alcançá-los. O que os modernistas ensinam a Bastide é que<br />

o acesso ao "outro" (ou ao "outro do outro") autêntico, original, depende de<br />

um esforço de conversão do intérprete. (Peixoto: 1999, 105)<br />

No período, resgatam-se os elementos delineadores de uma identidade nacional,<br />

na qual o negro passa ser um objeto de interesse de estudo, para sinalizar uma poética<br />

<strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, significativamente com os congressos de 1934 e 1937.<br />

O termo <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> relaciona-se com a <strong>arte</strong> africana tradicional, que é<br />

fundamentalmente religiosa, mas também com outros conteúdos advindos do processo<br />

de adaptação dessa <strong>arte</strong> nas novas condições históricas. Acrescentam-se ainda, os aspec-<br />

tos sociais, culturais e econômicos do negro no país, pela configuração de uma vivência<br />

que reelabora e modifica aqueles conteúdos artísticos.<br />

Numa abordagem estética, o objeto artístico é visto em seu aspecto formal e con-<br />

templativo, anulando a sua funcionalidade no cotidiano grupal. Isso não seria negar a<br />

existência de uma espécie de sentimento estético, o que ocorre é que o conceito refere-<br />

se a uma estética clássica ocidental.<br />

Como definir a “estética africana”, a partir da definição da estética clássica<br />

ocidental? A estética é uma disciplina filosófica cuja a primeira formulação<br />

teórica foi feita por Alexander Baumg<strong>arte</strong>n, no fim da primeira metade do século<br />

XVIII. (Ver Alexander G. Baumg<strong>arte</strong>n. Esthétique Précédée des Médditations<br />

Philosophiques sur quelques sujets se rapportant à l’essence du<br />

poème et de la metétaphydique. L’Herne, Paris, 1988.- ver também Hegel G.


W. F. Esthétique, 4 Vol., traduit de l’allemand par S. Jankélévitch, Flammarion,<br />

Paris, 1979.). Para Baumg<strong>arte</strong>n, a estética é mais ou menos a teoria do<br />

conhecimento a partir da apreensão do sensível. Para Hegel, a estética não é<br />

nada mais que um discurso conceitual sobre a <strong>arte</strong>, um desdobramento do<br />

pensamento que tem por domínio de aplicação a <strong>arte</strong> enquanto esta se torna<br />

incapaz de satisfazer a necessidade de representar o ser divino. Em outras palavras,<br />

a <strong>arte</strong> não sendo mais capaz de representar deus sob forma de imagens<br />

como verdade existente, a <strong>arte</strong> não tendo mais por função a representação<br />

sensível do divino, a verdade só se manifesta então sob a forma de conceito,<br />

isto é, pelo pensamento que faz o uso do conceito como categoria da<br />

compreensão. Pelo próprio fato de deixar de satisfazer a necessidade elevada<br />

do espírito, que é a representação do divino, a <strong>arte</strong> adquire sua autonomia e<br />

sua liberdade e conseqüentemente se torna um objeto de “prazer” ou de “desprazer”.<br />

A <strong>arte</strong> se torna então uma atividade livre e desinteressada. Ou como<br />

disse Heidegger, a obra de <strong>arte</strong> deve aparecer independentemente de qualquer<br />

interesse. (Munanga: 2004, 40-41)<br />

O aspecto religioso da <strong>arte</strong> africana não permite a consideração de julgamentos<br />

estéticos explícitos o que não impossibilita uma apreciação; esta é realizada por um gru-<br />

po restrito, o artista e os iniciados que partilham de um dado ritual. As obras africanas<br />

tradicionais não são objetos de ampla exposição pública. Não existe um espaço teórico e<br />

de crítica na <strong>arte</strong> africana tradicional do ponto de vista ocidental. Isto não quer dizer que<br />

não aja um pensamento estético entre os produtores dessa <strong>arte</strong>.<br />

Nessa perspectiva, Munanga (2004), no texto A Dimensão Estética na Arte<br />

Negro-Africana Tradicional, descreve o objeto de <strong>arte</strong> negra a partir de uma abordagem<br />

etnológica na qual o estudo do objeto artístico ocorre por meio da percepção do<br />

contexto em que o objeto está inserido. Essa abordagem acentua uma visão utilitária da<br />

<strong>arte</strong> negra africana no qual, <strong>arte</strong> e religião rivalizam-se. No extremo dessa abordagem,<br />

localizam-se teóricos que acreditam que a <strong>arte</strong> africana só poderia existir numa visão<br />

ocidental. Negando, desse modo, a noção de belo entre os africanos.<br />

Outros estudiosos pautados numa abordagem estética consideravam a existência<br />

de uma <strong>arte</strong> tradicional da África Negra, sob a ótica das <strong>arte</strong>s ditas liberais ou a teoria da<br />

<strong>arte</strong> pela <strong>arte</strong>. O que há em comum entre os defensores de uma abordagem estética é a<br />

existência, entre os povos estudados, de vocábulos que designam noções pertencentes a<br />

uma acepção clássica, como por exemplo, o conceito sobre a Beleza.


Se a estética é principalmente um discurso sobre a <strong>arte</strong>, a existência desta<br />

última não depende absolutamente da existência da estética. Já houve grandes<br />

civilizações que desenvolveram <strong>arte</strong>s sem por isso constituir uma estética.<br />

Sem negar totalmente a possibilidade de uma <strong>arte</strong> africana independente da<br />

religião, observamos, portanto que o peso da religião impede a enunciação de<br />

julgamentos estéticos e torna im<strong>possível</strong> a existência de uma estética<br />

africana. Como admitir uma tal estética sabendo que a possibilidade não é<br />

dada para qualquer pessoa de gozar livremente dos objetos. Como conceber<br />

uma estética quando os elementos sensatos fazer o objeto desse discurso não<br />

devem ser mostrados? (Munanga: 2004, 43)<br />

Se os objetos são feitos para o culto carregam então, o peso da religião que<br />

impedem o julgamento crítico, existindo para serem compartilhados num rito. O<br />

conceito de Belo confere a idéia de uma encarnação de mito, encontrando-se subjugado<br />

em função de outros aspectos da vida como, a moralidade, a religião e a ordem social.<br />

Coloca-se em questão, a definição de uma <strong>arte</strong> negra tradicional, fincada numa<br />

reflexão dos cânones da <strong>arte</strong> européia. É uma visão unilateral, pois, neste caso, aquele<br />

que define os parâmetros culturais do que pode ou não ser considerado como <strong>arte</strong>, é o<br />

olhar do estrangeiro.<br />

O termo mais adequado para se tratar a <strong>arte</strong> africana tradicional seria poética,<br />

pois compreende o universo existencial do produtor como transmissor de suas crenças e<br />

de seu princípio ético. É definida pelos valores do artista e no modo de representar o<br />

mundo na busca de concretizar um projeto poético.<br />

(...) uma poética é um determinado gosto convertido em programa de <strong>arte</strong>,<br />

onde por gosto se entende toda a espiritualidade de uma época ou de uma<br />

pessoa tornada expectativa de <strong>arte</strong>; a poética, de per si, auspicia mas não promove<br />

o advento da <strong>arte</strong>, porque fazer dela o sustentáculo e a norma de sua<br />

própria atividade depende do artista. À atividade artística é indispensável<br />

uma poética, explícita ou implícita, já que o artista pode passar sem um conceito<br />

de <strong>arte</strong> mas não sem um ideal, expresso ou inexpresso de <strong>arte</strong>. (Pareyson:<br />

1997, 17-18)<br />

A estética possui caráter filosófico e especulativo, diferentemente da poética,<br />

que é fundamentada por um caráter programático e operativo. Propor um programa de<br />

<strong>arte</strong> é referir-se ao sentido moral do artista, a uma determinada concepção religiosa,<br />

política ou filosófica, demonstrada por critérios estabelecidos por ele e a sua objetivação<br />

em um ideal artístico. Essa objetivação confere uma linguagem que comunica os


critérios de valor para a realização de uma obra. A matéria torna a linguagem objetiva,<br />

ordenando e permitindo a compreensão do sentido poético de um objeto artístico.<br />

O artista é alguém pertencente a um espaço e tempo específico. Age, escolhe,<br />

define e elabora as suas propostas de um modo determinado, influenciado por seu meio<br />

sócio-histórico e seus conhecimentos existentes. O tempo e espaço da obra em processo<br />

são particulares, assumem características fornecidas pelo artista e também localizam o<br />

tempo e o espaço do artista no seu fazer. O fazer indica uma intencionalidade, uma<br />

forma em processo. É formar. Tornar uma materialidade em conteúdo significativo.<br />

A <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> não é apenas uma <strong>arte</strong> religiosa e étnica. Perfaz uma releitura<br />

de conteúdos de origem africana e funde-se com questões, que tanto de maneira superfi-<br />

cial ou de modo mais intenso, referem-se a uma temática negra. Trata-se de um concei-<br />

to aberto de difícil definição, pois o artista agrega os seus valores ideológicos naquilo<br />

que retrata e dramatiza a sua história no cotidiano.<br />

Um capítulo histórico sobre uma <strong>arte</strong> de herança africana denominada<br />

Arte Afro-Brasileira.<br />

No seu manifesto Rubem Valentim, resume-se as probabilidades de definição<br />

que a <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> permite, tanto nas relações entre o erudito e o popular, quanto<br />

na expressão religiosa, nas construções formais de uma materialidade referente a seu en-<br />

tendimento de mundo ao delinear uma <strong>arte</strong> não somente com contornos africanos, mas<br />

uma <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong>.<br />

Intuindo o meu caminho entre o popular e o erudito, a fonte e o refinamento-<br />

e depois de haver feito algumas composições, já bastante disciplinadas, com<br />

ex-votos- passei a ver nos instrumentos simbólicos, nas ferramentas do candomblé,<br />

nos abebês, nos paxorôs, nos oxês, um tipo de “fala”, uma poética<br />

visual <strong>brasileira</strong> capaz de configurar e sintetizar adequadamente todo o núcleo<br />

de meu interesse como artista. O que eu queria e contínuo querendo é es-


tabelecer um design (riscadura <strong>brasileira</strong>), uma estrutura apta a revelar a nossa<br />

realidade – a minha, pelo menos - em termos de ordem sensível. (Valentim:<br />

2001, 29)<br />

Alguns acontecimentos dos anos 60 delinearam essa poética e a colocaram no<br />

espaço de uma <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> contemporânea no século XX e XXI, por meio de exposi-<br />

ções e publicações que discutiam a questão de uma delimitação de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-brasi-<br />

leira e da inserção de artistas <strong>afro</strong>-descendentes no mercado artístico.<br />

Em 1966, no Senegal, após a independência dos países africanos e a sua reper-<br />

cussão mundial, Heitor dos Prazeres, Agnaldo dos Santos e Rubem Valentim represen-<br />

taram o Brasil no 1º Festival Mundial de Artes Negras de Dacar. Esse acontecimento<br />

demonstra o interesse pela produção artística de herança africana que se intensifica após<br />

os anos 60.<br />

A exposição A mão <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> elaborada pelo Museu de Arte Moderna de<br />

São Paulo em 1988 teve a curadoria de Emanoel Araújo, resultando numa importante<br />

publicação sobre a herança negra nas <strong>arte</strong>s <strong>brasileira</strong>s como comemoração do centenário<br />

da abolição. Outras exposições transformadas em catálogos durante os anos 90 e 2000,<br />

tinham também como preocupação, discutir a existência de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>. Po-<br />

dem-se citar as seguintes publicações: Os herdeiros da noite: fragmentos do imaginário<br />

negro, 1994, Arte e religiosidade no Brasil: heranças africanas, 1997 e a Mostra do re-<br />

descobrimento com os módulos, Arte Afro-Brasileira e Negro de Corpo e Alma, ambos<br />

de 2000, também foram organizadas por Araújo. O Museu Afro-Brasil, inaugurado em<br />

2004, foi fruto dessas discussões anteriores, sua coleção totalizava em 2006 por volta de<br />

4.000 obras, entre esculturas, pinturas, gravuras de artistas nacionais e estrangeiros além<br />

de fotografias, livros, vídeos e documentos. O museu teve como objetivo a construção<br />

de uma identidade <strong>brasileira</strong> a partir do negro como ator social, <strong>possível</strong> de ser visto nas<br />

produções artísticas no papel de criador e de pesquisa poética, como modo de discutir a<br />

sua inserção na vida social, econômica, política e cultural do país.


O museu discute os módulos a partir da cultura e da história, na busca de uma<br />

definição de uma poética <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, em objetos artísticos trazidos nas relações entre<br />

Brasil e África, e nas configurações do trabalho no sistema escravista, nos castigos, na<br />

ancestralidade, nos modos de dominação cultural e ajustamento pela justaposição e fu-<br />

são das formas de expressão cultural; nos movimentos de resistência e na contribuição<br />

do negro em diferentes áreas de conhecimento e períodos como: Antônio Gonçalves<br />

Crespo (1846-1883), João da Cruz e Souza (1861-1898), Juliano Moreira (1873-1933),<br />

Francisco de Paula Brito (1809-1861), Machado de Assis (1839-1908), Teodoro de<br />

Sampaio (1855-1937), Milton Santos (1926-2001), Carolina Maria de Jesus<br />

(1914-1977), Ruth de Souza (1921), entre outros, juntamente com a produção artística<br />

dos séculos XVIII ao XX (agrupadas em <strong>arte</strong> moderna e contemporânea).<br />

Nesse contexto inserem-se artistas de origem negra e de formação erudita que<br />

agregam questões referentes à sua ancestralidade e aos aspectos culturais, sociais, políti-<br />

cos e econômicos; que conduziram a elaboração de um projeto poético articulando sua<br />

produção aos conteúdos e materialidades de herança africana, como por exemplo, o ar-<br />

tista Rubem Valentim. Acrescentam-se ainda, artistas brancos que reelaboram esses<br />

conteúdos em suas obras, como o artista carioca Ronaldo Rêgo, envolvido com os cul-<br />

tos de Umbanda. E por fim, os artistas <strong>afro</strong>-descendentes, nos quais a religiosidade não<br />

alicerça as suas obras e não se definem propriamente numa <strong>arte</strong> negra, propondo diver-<br />

sas questões pertinentes, como é o caso da artista Rosana Paulino que discute temas so-<br />

bre o universo feminino: a beleza, o preconceito e a violência contra a mulher.<br />

Emanoel Araújo numa espécie de manifesto no texto sobre a implantação do<br />

museu, o define como um “museu da diáspora africana no Novo Mundo” (Araújo: 2006,<br />

12) que cumpre a finalidade de realizar uma sorte de<br />

(...)desconstrução de estereótipos, imagens deturpadas e expressões ambíguas<br />

sobre personagens e fatos históricos relativos ao negro, fazendo pairar sobre<br />

eles obscuras lendas que um imaginário perverso ainda hoje inspira e que


agem silenciosamente sobre nossas cabeças; como uma guilhotina, prestes a<br />

entrar em ação a cada vez que se vislumbra a alguma conquista que represente<br />

mudança ou o reconhecimento da verdadeira contribuição do negro à cultura<br />

<strong>brasileira</strong>.<br />

Este Museu pretende unir História, Memória, Cultura e Contemporaneidade,<br />

entrelaçando essas vertentes num só discurso, para narrar uma heróica saga<br />

africana, desde antes da trágica epopéia da escravidão até os nossos dias incluindo<br />

todas as contribuições possíveis, os legados, participações, revoltas,<br />

gritos e sussurros que deram lugar no Brasil e no circuito da diáspora negra.<br />

O Museu quer refletir uma herança na qual, como num espelho, o negro possa<br />

se reconhecer (...). ( Araújo: 2006, 12)<br />

As referências que constituíram o museu, não se restringem apenas ao que existe<br />

de africanidade nos indivíduos, estabelecidas no diálogo existente pela relação de justa-<br />

posição e síntese entre as diferentes matrizes que nos constituíram como povo. Discute-<br />

se a produção de artistas anônimos e não-anônimos, permeados pelo processo de misci-<br />

genação étnica e cultural, conferindo o conceito de brasilidade à fusão luso-<strong>afro</strong>-amerín-<br />

dias na formação de uma cultura mestiça, na reinvenção do popular e nas tradições atre-<br />

ladas as produções de caráter negro erudito.<br />

Nesse sentido, a expressão <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> indica não um estilo ou um movimento<br />

artístico produzido apenas por <strong>afro</strong>-descendentes brasileiros, ou deles<br />

representativos, mas um campo plural, composto por objetos e práticas bastante<br />

diversificados, vinculados de maneiras diversas à cultura <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>,<br />

a partir do qual tensões artísticas, culturais e sociais podem ser problematizadas<br />

estética e artisticamente. (Conduru: 2007,09)<br />

A <strong>afro</strong>-brasilidade encontra-se nos convívios sociais tensos, em conseqüência da<br />

diáspora de indivíduos oriundos da África e transportados para o Brasil para tornarem-<br />

se escravos, assim como seus descendentes do período do século XVI ao XIX. Esta<br />

acepção tem em vista a diversidade da <strong>arte</strong> nas sociedades africanas tradicionais e a<br />

construção da cultura nacional pela confluência de valores das matrizes relacionadas.<br />

Na África negra, a imagem e a representação estão ligadas a uma mensagem<br />

social, educativa, humana, constantemente condensada sob a forma de um<br />

provérbio evocando um tipo de comportamento. Muito além de adequação ao<br />

que é real, da aparência, o africano vai mais longe e cria uma relação com<br />

forças que nos superam e se referem ao destino do ser humano no cosmos. O<br />

objeto de <strong>arte</strong> africano sempre apresenta um lado enigmático, abrindo espaço<br />

para o desconhecido.<br />

Assim, as <strong>arte</strong>s africanas são o resultado de um processo altamente intelectual,<br />

de uma tradução de conceitos apresentados sob a forma de uma imagem.<br />

(Neyt; Van derhaeghe: 2000, 36)


A noção de pertencimento cultural ou artístico em grupo social está na memória<br />

por questões inerentes àquele grupo. Quando determinado conteúdo é transportado para<br />

uma nova sociedade de forma bruta e arrancado de seus valores, para os indivíduos de<br />

sua comunidade, provoca a descontextualização de um dado objeto artístico em sua tra-<br />

dição, assumindo um novo significado ou novo uso.<br />

As formas de <strong>arte</strong> africana tiveram uma continuidade parcial em razão das novas<br />

condições aqui encontradas. Povos provenientes dos reinos de Congo, Cuba (Moçambi-<br />

que), Luba, Lunda, Cokwe etc., da África Central e dos reinos yorubá, Fon, Ashanti e<br />

etc., da África Ocidental, e as instituições atreladas a eles, possuíam obras de caráter uti-<br />

litários, como insígnias de poder que simbolicamente funcionavam como suportes mate-<br />

riais e espirituais de poder e autoridade e que perderam seu significado dentro do siste-<br />

ma colonial e do regime servil.<br />

A correspondência da figura dos orixás com a cultura européia na sua religiosi-<br />

dade e na imagem de santos católicos cria uma linguagem plástica <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> ini-<br />

cialmente religiosa, configurando uma estrutura que sofreu uma “adaptação dos can-<br />

domblés africanos à sociedade dos brancos e à cultura luso–católica e pelas relações<br />

entre os Deuses africanos e as divindades ou espíritos, dos ameríndios, gerando uma ti-<br />

pologia na qual variam sincretismos”. (Bastide: 2006, 218)<br />

Aquele que está familiarizado com a <strong>arte</strong> africana sabe que esta é essencialmente<br />

uma estética reducionista, na qual formas, linhas e massas são abstraídas<br />

ou reduzidas, a fim de produzir formas mais simples que aquelas que observamos<br />

na realidade. No plano intelectual, a escultura africana foi criada<br />

para ser vista como invocação de certos ideais, não uma imitação da realidade.<br />

Isto explica porque um detalhe significativo da estrutura ou anatomia de<br />

uma coisa, ou a redução do todo a uma essencialização, tenham sido motivos<br />

dominantes da <strong>arte</strong> africana. (Preston apud Araújo: 2006, 240)<br />

Segundo Tadeu Chiarelli, a <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> seria classificada em dois grupos dis-<br />

tintos, dos quais, um incluiria as manifestações de uma parcela marginalizada entrecru-<br />

zadas pelas contribuições culturais de povos de origem africana, indígena, portuguesa e


de outros grupos pertencentes a outras etnias que imigraram para o Brasil. <strong>Uma</strong> <strong>arte</strong> po-<br />

pular que posteriormente influenciaria a produção erudita. E o outro grupo seria a <strong>arte</strong><br />

erudita fundamentada a partir dos conceitos e normas de uma <strong>arte</strong> de origem européia<br />

sendo sistematizada pelas ações da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro<br />

no século XIX.<br />

A <strong>arte</strong> erudita com o transcorrer do tempo, ao se fortalecer, buscaria subjugar as<br />

manifestações de caráter popular representando a <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> nos setores oficiais de<br />

cultura local, possuindo a capacidade de se apropriar dos procedimentos da <strong>arte</strong> popular<br />

tornando-a singular diante da produção internacional.<br />

A <strong>arte</strong> erudita <strong>brasileira</strong> é alicerçada nos valores estéticos europeus, nas culturas<br />

locais não-dominantes, nos setores populares, outras etnias e culturas européias, além da<br />

presença de mulheres como artistas, configurando-se numa <strong>arte</strong> pretensamente branca,<br />

pois constitui-se num processo de hibridização das formas inter-culturais.<br />

É necessário acrescentar ainda, a modesta projeção de artistas <strong>afro</strong>-descendentes<br />

nos espaços expositivos devido a uma questão histórica, a partir do século XIX as práti-<br />

cas artísticas ganharam certo prestígio social com a criação da Academia Imperial de<br />

Belas Artes e o Estado atuava como mecenas por meio de encomendas de obras públi-<br />

cas que garantiriam a sobrevivência dos artistas.<br />

Até então o patrimônio artístico era proveniente das mãos de negros, mestiços e<br />

índios, em razão de atividades manuais serem vistas como algo negativo e, portanto,<br />

não proporcionava nenhum tipo de status e estavam associadas às obras religiosas diri-<br />

gidas pelas irmandades e confrarias.<br />

Com essas mudanças, há a marginalização dessa população e o redirecionamen-<br />

to dos temas da <strong>arte</strong> oficial para o enaltecimento dos acontecimentos históricos, o retra-<br />

to da aristocracia rural e da burguesia emergente. Em paralelo a esses conteúdos e for-


mas, encontrava-se a pintura de gênero influenciada pelo indianismo, entremeada pelo<br />

romantismo literário; a temática caipira com as obras de Almeida Júnior e o negro pre-<br />

sente nas <strong>arte</strong>s visuais por meio da paleta de alguns artistas.<br />

As alterações na vida social alimentavam o processo discriminatório até mesmo<br />

de artistas negros que buscavam formação acadêmica, como por exemplo, os artistas<br />

Estevão Silva e Rafael Pinto Bandeira. Esses dois artistas retomam o conceito de autoria<br />

negra no qual as relações políticas e econômicas concebem a formação de uma identida-<br />

de. O que é ser negro, tendo em vista as identidades políticas, religiosas e culturais? Se-<br />

ria trazer os aspectos formalistas de uma herança ou as questões sócio-econômicas de<br />

um grupo traduzido no seu corpo social? Ou então as duas coisas traduzidas num proje-<br />

to artístico de cunho <strong>afro</strong>-brasileiro?<br />

A atenção dada à cultura popular incentivou os artistas a olharem de modo<br />

especial algumas práticas e figuras oriundas das culturas africanas, as integrando<br />

ao ideário artístico formador da nação <strong>brasileira</strong>. Entretanto, é preciso<br />

ver como no Brasil esse interesse por questões culturais <strong>afro</strong>-descendentes foi<br />

de Segundo Grau, em boa p<strong>arte</strong> estimulado e filtrado pela valorização européia<br />

das culturas entendidas então como primitivas, além de não estar isento<br />

de preconceitos, nem imune a mitificações e cerceamentos. (Conduru: 2007,<br />

51)<br />

Discute-se então de modo indireto o conceito de <strong>afro</strong>descendência e negritude<br />

nas manifestações plásticas, contudo, quando um indivíduo se identifica com um conti-<br />

nente como os brasileiros de origem negra com a África, busca-se a valorização e a afir-<br />

mação de um corpo não apenas biológico, mas também ancestral, cultural e social como<br />

construção de sua identidade nas relações de classe e pelo revigoramento da memória<br />

nos tratamentos dados a uma visualidade nacional.<br />

As <strong>arte</strong>s neo-africanas na diáspora são pautadas nos seguintes cânones formais:<br />

Tensão entre eixo virtual e real; tensão entre simetria virtual e real; estancamento<br />

rítmico, empilhamento de uma forma geométrica primária ou confirmação<br />

de um volume, plano, área espacial em negativo, em formas fechadas<br />

ou abertas; regularidade de um ritmo genérico em um padrão interrompido<br />

por motivos aderentes, arranjados aleatoriamente, surpresas formais ou inversões<br />

semelhantes à fuga de unidades básicas de padrão; desconformidade entre<br />

áreas pintadas e superfícies de planos; jogos visuais nos quais formas reduzidas<br />

se tornam ambivalentes e podem ser lidas como representação alter-


nativa de uma coisa, seu sinônimo ou antítese; motivo pars pro toto que se<br />

utiliza de um aspecto evidente de uma coisa para representá-la na sua totalidade;<br />

combinações em técnica mista do que ao ocidental aparece como texturas,<br />

modelagens, cores, objetos ou idéias correlacionadas de uma forma irracional.<br />

(Preston apud Araújo: 2006, 241)<br />

As cores e sua simbologia, a temática, a iconografia, a monumentalidade, a repe-<br />

tição, frontalidade, a redução, a desproporção entre as p<strong>arte</strong>s do corpo e as fontes de ins-<br />

piração caracterizaria o estilo africano na sua poética.<br />

O objeto de <strong>arte</strong> que o artista africano produz é em si um signo, um símbolo;<br />

o que ele procura atingir não é uma aparência externa, mas uma essência.<br />

Após a observação e análise dos modelos sensíveis, ele extrai do modelo os<br />

traços dominantes e os atributos essências. A simplificação dos motivos naturais<br />

percebidos o leva à elaboração dessas formas geométricas: em vez de<br />

tender ao retrato, ele generaliza os aspectos. Longe de reproduzir com exatidão<br />

uma figura ou de fornecer uma interpretação intelectual das formas naturais,<br />

ele se esforça em sugerir e representar com a ajuda de sinais, símbolos,<br />

linhas e círculos. O que resta da forma e não essa forma visível. De certa maneira<br />

transcende-se essa forma para que a essência do animal ou da realidade<br />

simbolizada seja alcançada. (Sylla apud Moura: 1994, 67)<br />

As aproximações com os motivos africanos podem ser encontrados na cultura e<br />

na <strong>arte</strong> popular, como por exemplo, nos padrões existentes nas esculturas de ex-votos,<br />

que têm como finalidade o pagamento de uma promessa por uma graça alcançada por<br />

mediação divina; nas máscaras utilizadas nas manifestações populares qual o negro atua<br />

de modo intenso, como nas cavalhadas de Goiás, auto que mostra o combate entre mou-<br />

ros e cristãos; o bumba-meu-boi, no qual o protagonista é um boi que é morto no decor-<br />

rer da história e depois ressuscitado num ato de celebração das festividades do mês de<br />

junho, glorificando os santos do período ou durante o ciclo natalino.<br />

Kabengele Munanga define a <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> como uma espécie de sistema<br />

fluido e aberto, contendo uma p<strong>arte</strong> central, uma zona mediana e uma periférica. Esse<br />

sistema periférico dispõe de obras e artistas que não combinam todos os atributos das<br />

<strong>arte</strong>s africanas tradicionais, mas receberam delas alguma influência:<br />

Seja do ponto de vista formal, seja do ponto de vista temático, iconográfico e<br />

simbólico, obras cujo imaginário artístico pode, de uma maneira ou de outra,<br />

remeter ao mundo africano, embora integrando nitidamente características da<br />

<strong>arte</strong> ocidental, indígena ou outras que formam o mosaico e o pluralismo da<br />

<strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong>. (Munanga, 2000, 19)


Munanga discute a influência da <strong>arte</strong> africana tradicional no modernismo<br />

brasileiro buscando localizar a africanidade presente ou não aparente nas <strong>arte</strong>s<br />

<strong>brasileira</strong>s. O marco dessa influência pode ser definido com os congressos de Recife<br />

(1934) e Salvador (1937) em que a <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> se projeta para fora dos espaços<br />

ritualísticos. Os artistas saem do anonimato, incentivados com a busca de uma<br />

identidade nacional despertada pelos congressos e também pelas missões enviadas ao<br />

Norte e Nordeste do país por Mário de Andrade. Como problemática levantada<br />

encontram-se artistas como Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Alberto Guignard,<br />

Portinari, José Pancetti, Santa Rosa e Djanira, que possuem uma produção distinta, no<br />

qual o tema do negro aparece como uma pesquisa poética atrelada a outros conteúdos<br />

formais e temáticos. Torna-se difícil definir uma <strong>arte</strong> tão plural como <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong><br />

por utilizar “incidentemente a temática <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, da mesma maneira que o fazem<br />

com a indígena, a européia ou outras que possam polarizar sua criatividade pessoal e<br />

alimentar seu universo mitopoético.”(Munanga: 2000, 105)<br />

Corpo e contemporaneidade: duas poéticas femininas e ancestrais nas<br />

obras de Rosana Paulino e Yêdamaria<br />

Explica-se a não inserção da obra de artistas negros contemporâneo em galerias,<br />

museus, salões e outros espaços de visualidade, foi dificultada pela marginalização eco-<br />

nômico-social sofridas por esses artistas, criando-se uma dificuldade de acesso àquelas<br />

produções simbólicas.


A partir dos anos 50, a necessidade de conceber uma <strong>arte</strong> de caráter nacional por<br />

alguns artistas foi modificando-se, para que pudessem ingressar na modernidade do<br />

século XX, e estabelecer diálogos com a produção contemporânea internacional.<br />

Os movimentos informais e não-figurativos construtivos foram um indicativo<br />

dessa mudança influenciada pelo surgimento das Bienais Internacionais de São Paulo,<br />

em 1951. O artista local estava em contato com as principais produções internacionais.<br />

Até então para estudar ou fruir <strong>arte</strong> moderna e contemporânea de perto era necessário ir<br />

à Europa ou aos Estados Unidos. A criação das Bienais permitiu esse contato direto do<br />

artista e do público com a modernidade nas <strong>arte</strong>s visuais. Nesse contexto de<br />

formulações estéticas aproximadas da contemporaneidade internacional, deparava-se<br />

com artistas imigrantes como Alfredo Volpi e Mira Schendel e os brasileiros como<br />

Iberê Camargo, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape,Wesley Duke Lee, entre outros,<br />

buscavam novidades estéticas e artísticas nascidas no período pós Segunda Guerra<br />

Mundial.<br />

A expressão <strong>arte</strong> contemporânea se impôs, sobretudo, a partir dos anos 1980,<br />

para referir-se à <strong>arte</strong> produzida a partir dos anos de 1960. Ela nasceria,<br />

segundo Catherine Millet, no espaço entre 1960 e 1969, período em que<br />

surgiram a Pop Art, o Novo Realismo, a Op Art e a Arte Cinética, a Minimal<br />

Art, Fluxus, os Happenings, a Arte Conceitual, a Arte Povera, a Land Art,<br />

Body Art, a Support Surface, as Instalações que se valem de materiais<br />

heterogêneos (materiais perecíveis, naturais, objetos de uso cotidiano, objetos<br />

de diversa ordem). A <strong>arte</strong> ocupa, nesse momento, um espaço de liberdade<br />

nunca antes visto. Segundo a autora francesa, “a expressão <strong>arte</strong><br />

contemporânea” suplanta o conceito de “vanguarda” para designar a <strong>arte</strong><br />

atual, a <strong>arte</strong> viva, uma <strong>arte</strong> de ponta. (...) Transgride limites desses diferentes<br />

meios de expressão artística, coloca-se entre eles, é “intermídia” e transgride<br />

significados correntes no uso de cultura. Neste sentido, é uma <strong>arte</strong> que põe<br />

em cheque a idéia de perenidade da obra, coloca em evidência a “atitude”, a<br />

situação em vez da forma. (Rebollo: 2005, 35-36)<br />

Nos anos 80 a produção poética estava fincada na investigação e síntese dos<br />

diferentes repertórios visuais das culturas de massas ou popular, da tradição moderna<br />

local e dos posicionamentos estéticos e artísticos eruditos nas obras dos artistas Iran do<br />

Espírito Santo, Leda Catunda, Emmanuel Nassar, Ana Maria Tavares e Sérgio<br />

Romagnolo.


A produção fotográfica entre os anos 80 e os 90 faz referência a uma identidade/<br />

não-identidade por renegar o encontro de um tipo nacional. Desfez-se numa não-objeti-<br />

vidade no embate entre a linguagem fotográfica e o espaço real. Busca-se a dissolução<br />

da imagem exótica ou típica do brasileiro, diluindo toda forma <strong>possível</strong> de ser reconhe-<br />

cida, para alcançar-se a percepção do indivíduo nas suas práticas cotidianas. Como as<br />

fotografias de registro do cotidiano e dos costumes do século XIX, na qual havia um<br />

não-olhar para o indivíduo por torná-lo um tipo; a representação de escravos em ima-<br />

gens não partilhadas e definidas pelo olhar do fotógrafo e as imagens negociadas, nas<br />

quais as representações sociais do retratado estão presentes.<br />

Na metade dos anos 90, surgem artistas que manipulam os processos fotográ-<br />

ficos, partindo como referencial o próprio corpo ou o corpo do outro, ao mesmo tempo,<br />

aparecem artistas que vêem a existência da fotografia como meio de inserção social.<br />

Um aspecto importante da <strong>arte</strong> contemporânea está no fato de ela lidar com<br />

realidades de nossas vidas cotidianas, revelando uma vontade transformadora,<br />

um desejo de construção de significados e de construção de resignificações.<br />

O artista se posiciona como um homem de seu tempo que se interessa<br />

pelo que interessa aos seus contemporâneos. (Rebollo: 2005, 41-42)<br />

Nesse contexto a artista Rosana Paulino (1967) desenvolve seus trabalhos com<br />

fotos, desenhos e gravuras. O tema gerador de seu trabalho é a discussão de sua origem<br />

étnica, sexual e social. Ela utiliza-se de fotos antigas de mulheres de sua própria família,<br />

atrelando-as ao uso de outros materiais em objetos e instalações em que as imagens de<br />

mulheres convivem com materiais pertencentes ao universo feminino.<br />

princípio:<br />

Suas reflexões sobre o seu modo de pensar a sua existência p<strong>arte</strong>m do seguinte<br />

Sempre pensei em <strong>arte</strong> como um sistema que devesse ser sincero. Para mim,<br />

a <strong>arte</strong> deve servir às necessidades profundas de quem a produz, senão corre o<br />

risco de tornar-se superficial. O artista deve sempre trabalhar com as coisas<br />

que o tocam profundamente. Se lhe toca o azul, trabalhe, pois, com o azul.<br />

Se lhe tocam os problemas relacionados com a sua condição no mundo,<br />

trabalhe, então, com esses problemas.<br />

No meu caso, tocaram-me sempre as questões referentes à minha condição de


mulher e negra. Olhar no espelho e me localizar em um mundo que muitas<br />

vezes se mostra preconceituoso e hostil é um desafio diário. Aceitar as regras<br />

impostas por um padrão de beleza ou de comportamento que traz muito<br />

preconceito, velado ou não, ou discutir esses padrões, eis a questão.<br />

Dentro desse pensar, faz p<strong>arte</strong> do meu fazer artístico apropriar-me de objetos<br />

do cotidiano ou elementos pouco valorizados para produzir meus trabalhos.<br />

Objetos banais, sem importância. Utilizar-me de objetos do domínio quase<br />

exclusivo das mulheres. Utilizar-me de tecidos e linhas. Linhas que<br />

modificam o sentido, costurando novos significados, transformando um<br />

objeto banal, ridículo, alterando-o, tornando-o um elemento de violência, de<br />

repressão. O fio que torce, puxa, modifica o formato do rosto, produzindo<br />

bocas que não gritam, dando nós na garganta. Olhos costurados, fechados<br />

para o mundo e, principalmente, para sua condição de mundo.<br />

Apropriar-me do que é malvisto. Cabelos. Cabelo 'ruim', 'pixaim', 'duro'.<br />

Cabelo que dá nó. Cabelos longe da maciez da seda, longe dos comerciais de<br />

shampoo. Cabelos de negra. Cabelos desvalorizados. Cabelos vistos aqui<br />

como elementos classificatórios, que distinguem entre o bom e o ruim, o<br />

bonito e o feio. Pensar em minha condição no mundo por intermédio do meu<br />

trabalho. Pensar sobre as questões de ser mulher, sobre as questões da minha<br />

origem, gravadas na cor da minha pele, na forma dos meus cabelos. Gritar,<br />

mesmo que por outras bocas estampadas no tecido ou outros nomes na<br />

parede. Ele tem sido meu fazer, meu desafio, minha busca. (Paulino in:<br />

Cocchiarale, 1997, 114)<br />

A obra Parede de memória (e de Catarina) é composta de escapulários que re-<br />

metem as aulas de bordados em sua infância e o conhecimento herdado do pai adepto da<br />

umbanda. <strong>Uma</strong> série de pequenas almofadas ou patuás com retratos de familiares trans-<br />

feridas para o tecido. Discute-se a imagem imposta ao negro ao rever o passado e refle-<br />

tir no presente o aspecto histórico de marginalização do negro pelo processo de escravi-<br />

dão. E Catarina é a boneca loira de olhos azuis que desmembrada, sem p<strong>arte</strong> dos cabe-<br />

los, os braços e seu corpo, portanto destruída; estava no porão de sua casa como modo<br />

de trazer a questão dos valores estipulados de uma beleza ocidental im<strong>possível</strong> de ser<br />

atingida. Lidar com a beleza para ela, no processo doloroso de desmaterialização física<br />

seria:<br />

Fazer com que a linha disseque a perversidade de um modelo de beleza. Boneca<br />

fria, modelo vazio. Um modelo de beleza que nunca poderá ser atingido.<br />

Um modelo que é a antítese da própria essência de feminilidade, terra assolada<br />

onde nada cresce, os corpos deformados por um padrão de beleza doentio,<br />

onde seios fartos convivem com um corpo que não corresponde em peso o<br />

seu tamanho. (Paulino in: Aguilar, 2000, 33)<br />

Nos seus desenhos elaborou imagens“humanas suspensas pelo terror, perverti-<br />

das na impossibilidade de uma plenitude de suas formas. Cria seres que parecem in-


completos, deformados, doentes. Sugerem fetos deixados em UTIs, bonecas mal costu-<br />

radas e arrebentadas pela perversidade infantil, imagens de abortos”. (Canton: 2001)<br />

Na série de desenhos intitulada Models e Útero de Leonardo, 1997, Paulino dis-<br />

cute os padrões do belo e, assim, acaba por expor um corpo feminino adulto e deforma-<br />

do. Suas linhas retorcidas e órgãos sexuais proeminentes expressam-se de maneira<br />

cruenta e do mesmo modo que em determinados instantes, esse corpo apresenta-se vio-<br />

lentamente em sua universalidade.<br />

Rosana Paulino<br />

Sem título, 1997<br />

Desenho<br />

Catálogo Heranças contemporâneas II<br />

A poética da apropriação da fotografia tem sido uma escolha formal de Paulino<br />

por oferecer à imagem um significado diferente do original, trabalha com camadas<br />

sobrepostas de significação originária de sua condição feminina e negra. Reflete a sua<br />

existência em temas como racismo, sexo, violência e feminilidade. Resgatando pelo


fragmento e repetição uma genealogia que aproxima e distancia a reprodutibilidade<br />

dessas imagens pela reatualização da memória de identidade individual e coletiva.<br />

Na obra Instantâneo número 1, Paulino utiliza-se desse recurso da apropriação<br />

pelo uso da imagem fotográfica, neste caso, um rosto em sépia de uma mulher negra em<br />

sua maturidade, utilizando um lenço amarrado na cabeça e sugerindo pelo seu entorno a<br />

espacialidade doméstica. Essa mulher é repetida pelo processo de transfer três vezes,<br />

em cada uma, apresenta-se em diferentes níveis de desgaste, na última é quase um<br />

vestígio como uma lembrança de um tempo distante, imagem fugidia emoldurada numa<br />

base retangular, na impressão de uma toalha azul escuro de bandeja de borda rendada.<br />

Remetendo ao universo feminino na presença de atividades manuais ao utilizar a toalha<br />

como elemento indicativo e típico de um tempo que poderia ser distante.<br />

Questiona-se a condição da mulher negra na sociedade e as suas relações com a<br />

intimidade doméstica e a exterioridade desses espaços, no exercício de uma identidade<br />

política, cultural e social e conseqüentemente seu aniquilamento.<br />

Em sua poética a artista reaviva a história da população de descendência africana<br />

no país a partir da história da sua família, principalmente, as de suas avós, mãe e irmãs,<br />

imagens processadas em fotocópias e transformadas em gravura ou em outros meios de<br />

representatividade, das quais a localizam e trazem nas obras p<strong>arte</strong> de si. “Fazer <strong>arte</strong> é<br />

materializar sua experiência e percepção sobre o mundo transformando o fluxo de<br />

momentos em alguma coisa visual, textual ou musical. Arte cria um tipo de<br />

comentário”. (Barbara Krueger: revista Art in America, novembro 1997, 97)


Rosana Paulino<br />

Instantâneo n° 1, 1993<br />

Galeria de Arte Nello Nuno<br />

Fundação de Arte de Ouro Preto<br />

Refere-se uma presença/ausência nos desgastes das imagens configurando um<br />

olhar que observa, mas de fato não se vê. Resgata o esquecimento para reavivar um jogo<br />

de memória que sinaliza um estado de pertencimento de um grupo historicamente<br />

marginalizado.<br />

A Instalação Amas de leite é composta de tecido, um algodão cru, dividido em<br />

oito módulos quadrangulares apresentados de modo irregular, com figuras femininas<br />

centralizadas impressas em preto sobre um fundo branco.<br />

Esses módulos estão dispostos em linhas: na primeira encontram-se três figuras, na<br />

central mais três e na base duas imagens concentradas no meio como se sustentassem<br />

essas estruturas constituindo uma pirâmide de degraus invertida.


Há a repetição de imagens, é uma mulher negra sozinha na cena, o corpo<br />

aparentemente desnudo, apresenta-se imponente, aparece na primeira linha no primeiro<br />

quadrado à esquerda, aparece também na segunda linha no último quadrado e na terceira<br />

também no fim formando o encontro entre elas outro triângulo. As outras que estão<br />

representadas em posições diferentes, configuram-se em duas imagens apresentadas nas<br />

formas de dominação e submissão, constituem desse modo as tensões e as figurações do<br />

trabalho escravo no ambiente doméstico e no papel exercido pelas amas de leite.<br />

Rosana Paulino<br />

Amas de leite, sem data<br />

Instalação<br />

Galeria de Arte Nello Nuno<br />

Fundação de Arte de Ouro Preto


São corpos femininos negros sem detalhes, são silhuetas recortadas em formas<br />

anônimas e ancestrais. Congeladas remetem a imagens fotográficas que expressam o<br />

sistema escravagista, o negro apresentando-se como símbolo da relação senhor/escravo.<br />

Como nas fotografias demonstradas abaixo de Eugênio & Maurício e João<br />

Ferreira Villela, mulheres negras, exercendo a função de amas posam ao lado do filho<br />

do senhor servilmente sugerindo uma aparente afetividade. Fotografias eternizadas<br />

como algo para ser recordado como um cartão de visita.<br />

Eugênio & Maurício<br />

Ama de leite da família de Adolfo Simões Barbosa<br />

(segundo identificação da Fundaj), 1864<br />

O olhar europeu – o negro na iconografia <strong>brasileira</strong> do século XIX


João Ferreira Villela<br />

Ama escrava e menino Gomes Leal<br />

(segundo identificação de Fundaj), c. 1860<br />

O olhar europeu – o negro na iconografia <strong>brasileira</strong> do século XIX<br />

Historicamente a tradição das amas de leite no Brasil provém de Portugal onde<br />

as mães ricas não amamentavam os seus filhos e, como conseqüência, instituíram a<br />

figura da saloia que eram as camponesas que habitavam a periferia. No Brasil as índias<br />

cunhãs foram as primeiras saloias substituídas pelas escravas africanas em razão da<br />

rejeição cultural pelas famílias abastadas. O processo de urbanização ampliou “a<br />

difusão das amas-de-leite entre as novas camadas sociais e fez com que surgisse a<br />

figura da mãe preta (...) alguns senhores de escravos chegaram a admitir que criar<br />

negras para alugar como amas era mais rentável do que plantar café”. (Almeida:<br />

2004, 122)<br />

Amamentar era uma forma de distinção social e a afetividade materna não tinha<br />

valor social e moral e era considerada uma atividade indigna.<br />

Nesta obra, Paulino configura a invisibilidade do negro na sociedade. Imagens<br />

de mulheres que carregam os seus filhos às costas, de modo a conciliar o seu trabalho<br />

com os cuidados à criança que carrega. Ou a perversidade das brincadeiras infantis de


Cenas e Tipos – Madame Senegal e seu mosso<br />

Século XX<br />

Cartão postal<br />

14 x 8,7 cm<br />

Coleção particular<br />

Catálogo Negro de corpo e alma<br />

cavalinho que subjuga o indivíduo. Ou então nas relações diárias de aproximação e<br />

afetividade nos aspectos de servilidade.<br />

Detalhes da obra Amas de leite<br />

De seus seios saem fitas longas e estreitas de cetim branco, como o leite que<br />

jorra e expressa a tríade mãe, mulher e nutriz. Esses fios são presos na p<strong>arte</strong> superior


das garrafas de vidro transparentes, aludem a mamadeiras que enclausuram no seu<br />

interior imagens xerocopiadas e interferidas que reafirmam essas figuras construídas e<br />

destituídas de voz própria. Ao mesmo tempo, estabelece a oposição entre o amamentar e<br />

o desmame, nos modos de como o olhar se desenvolve em relação ao outro nas<br />

distinções de classes e a constituição de como se é visto, o olhar de quem é subjugado,<br />

na continuidade e manutenção de um sistema econômico e social.<br />

Paulino revê o papel da mulher negra numa sociedade patriarcal e sua inserção<br />

na história na seguinte maneira:<br />

No intuito de fazer um “acerto de contas” com a história, mulheres se<br />

dedicaram a pesquisar maneiras através das quais elas tem sido discriminadas<br />

como artistas e as maneiras como sua imagem têm sido representada na <strong>arte</strong>.<br />

Mulheres também têm recuperado informação sobre suas contribuições para<br />

a história, como artistas e como patronas. Elas denunciaram a<br />

impossibilidade de existir um mundo artístico separado das questões sócias e<br />

políticas mais abrangentes: defenderam a historicidade dos significados das<br />

imagens visuais e vasculharam universos de referências para construir uma<br />

visualidade/identidade diferente “sobre” e da “mulher”. (Tourinho apud<br />

Felinto: 2004, 95)<br />

O aspecto manual, a temática, a escolha do material, aparecem no processo de<br />

fixação de cada quadrado costurado com linha preta, no qual o conteúdo e a forma<br />

reafirmam a espacialidade e o referencial ao feminino e ao ambiente doméstico. O modo<br />

para fundamentar o seu projeto poético por meio da gravura, cria-se uma espécie de<br />

protótipo como sujeito e constrói-se pela presença de diversos elementos, características<br />

físicas, psicológicas, sociais e culturais.<br />

Na obra Ama de leite aparece um seio que se encontra na p<strong>arte</strong> superior do<br />

papel, sob a pele apresentam os alvéolos que produzem o leite, por meio dos ductos<br />

lácteos, canalizam e transportam o leite dos alvéolos para os seios lactíferos que<br />

recebem e armazenam e que pela sucção saem dos mamilos. Esse leite verte do mamilo<br />

em catorze linhas paralelas formando nas pontas espécies de gotas. Formam uma base<br />

triangular composicional. E dentro desse triângulo maior, há um menor com gotas que<br />

não são de leite como as outras desenhadas em que o fundo do papel partilha da obra,


mas remetem a gotas de sangue que tanto é a vida como a morte. O seio em todas as<br />

linhas que o compõe é desenhado com grafite e pintado com tinta acrílica aguada<br />

velando o seu interno.<br />

Rosana Paulino<br />

Ama de leite<br />

Acrílica e grafite s/ papel<br />

32,5 x 25 cm<br />

Coleção de artista<br />

O seio atua como metáfora da vida, assim como o leite flui, o sangue também<br />

faz o mesmo movimento alimentando outros corpos. Traz a representação do papel de<br />

mulher, mãe e nutriz no sentido de exercer uma função biológica, que seria o de


alimentação, como também, a insinuação de sua imagem fragmentada e erotizada. A<br />

idéia presente na obra é o de não pertencimento do seio a um corpo, contrapondo-se as<br />

formulações feministas de reapropriação do próprio corpo, nas relações de sua<br />

individualidade tanto na vida individual como coletiva estabelecida pelo domínio de sua<br />

fecundidade e da sua própria sexualidade.<br />

Em algumas sociedades a referência entre as substâncias corporais como o san-<br />

gue, especificamente o menstrual, o esperma e o leite, encontra-se na fundamentação de<br />

explicações simbólicas sobre a procriação, produzindo as relações de parentesco e dire-<br />

ciona as relações entre homem e mulher. Formam o substrato de representações cultu-<br />

rais diferentes sobre a constituição de sua identidade social.<br />

A interdição sexual no período de amamentação aparece também na Europa,<br />

particularmente na França dos séculos XVII e XVIII. A medicina da época,<br />

herdeira do pensamento aristotélico, defendia a idéia segundo a qual o esperma<br />

contaminava o leite materno, que se tornava azedo, o que colocava em<br />

perigo a vida do bebê. Por essa razão, os médicos prescreviam a abstinência<br />

sexual durante o período da amamentação. Essa prescrição, segundo Elisabeth<br />

Badinter, seria um dos motivos da prática de contratar amas-de-leite mercenárias.<br />

A utilização das amas-de-leite foi uma prática generalizada na França,<br />

mas é importante ter em conta a existência de uma diferenciação social ao<br />

colocar tal prática em relação com a sexualidade. O tabu sexual talvez fosse<br />

menos importante que a possibilidade de a mãe continuar trabalhando para<br />

ganhar o pão diário, na escolha do modo de alimentação do bebê entre as famílias<br />

dos meios sociais menos favorecidos. Já para as mulheres das classes<br />

altas essa prática de contratar uma ama-de-leite se inseria claramente nos valores<br />

sociais dominantes da época: a prioridade dada aos interesses masculinos<br />

(inclusive sexuais); a concepção da infância segundo os pensamentos de<br />

Santo Agostinho e de Desc<strong>arte</strong>s; e o papel desempenhado pela mulher na<br />

vida social da época, e do qual ela não poderia nem desejava abrir mão. O<br />

Brasil também conheceu a prática da utilização de amas-de-leite na alimentação<br />

dos bebês, prática esta trazida de Portugal durante a colonização. Em geral,<br />

cabia às escravas negras o serviço de ama-de-leite, criando-se assim a figura<br />

da mãe preta, tão presente na literatura <strong>brasileira</strong>. A utilização de amasde-leite,<br />

que originalmente era uma prática das famílias abastadas, passa a ser<br />

uma demanda também da classe média urbana a partir do século XIX, o que<br />

pode ser atestado pela quantidade importante de anúncios na imprensa oferecendo<br />

ou procurando o serviço de amas-de-leite de aluguel (...). (Sandre-Pereira:<br />

2003, 473-474)<br />

Discute-se a semântica do universo feminino e a memória de um tempo antigo<br />

atualizando e conjugando a história com a condição da mulher negra numa sociedade<br />

ferozmente massificada articulando política, raça e cultura.


Peixe ao forno<br />

1987<br />

Óleo sobre tela<br />

40 x 50 cm<br />

Coleção Lícia Pedreira<br />

Catálogo Yêdamaria<br />

A artista Yêdamaria (1932) com influência de Cézanne e Matisse produz uma<br />

pintura criada entre a figuração e a abstração, com óleo denso e cores contrastantes,<br />

marcada por grafismos rítmicos com formas repetidas em planos tensos. Os barcos<br />

foram sua temática inicial que perdurou por doze anos:<br />

Na madrugada do mar os saveiros p<strong>arte</strong>m, as velas soltas, para a repetida<br />

aventura da Baía de Todos os Santos, nesse mistério de Yemanjá, de vida e<br />

morte para os homens de cor de cobre. Não sei que outras coisas ela irá<br />

pintar, como continuará seu trabalho, a evolução de sua temática; sei apenas<br />

que seus barcos estarão aí, realidade da <strong>arte</strong> baiana atual...(Jorge Amado apud<br />

Yêdamaria: 2006, 26)<br />

E dos barcos foi pesquisando formas de expressão plástica referentes a sua<br />

existência na constituição da cor-luz, definidoras de seu estilo e que revelam seu espaço


e sua cultura e a posicionam num universo feminino, que vai ao encontro de sua<br />

ancestralidade negra.<br />

Yêdamaria é a expressão de uma geração de artistas que são tão<br />

contemporâneos da tradição dos azulejos quanto dos trabalhos de Andy<br />

Warhol ou Renoir. Ela vive num mundo de simultaneidade, onde a rica<br />

culinária baiana, abundante em condimentos e ervas, coexiste com a<br />

realidade das praças de alimentação dos shopping centers em todo o globo.<br />

Se esses artistas são descendentes de séculos de indignidade humana, são,<br />

também, os filhos dos movimentos que liberaram o espírito humano, criando<br />

espaços de expressão pessoal onde a individualidade alça arrebatados vôos.<br />

Para mim, esta é a mensagem final de Yêdamaria: ela e seu trabalho são uma<br />

só coisa. Ela é mestra de um universo que seduz por meio da insinuação e da<br />

beleza, à medida que desafia o espectador para que ingresse em seu mundo.<br />

A última testemunha nesse processo é ela própria: Yêdamaria, pessoa,<br />

mulher, mãe e filha, criança e genitora, <strong>arte</strong> e artista. Ordem, dignidade e o<br />

momento artístico estão em harmonia com a pessoa e em paz consigo mesma.<br />

(Dwyer apud Yêdamaria: 2006, 160)<br />

A artista vê a figuração como modo de alcançar a sua ancestralidade africana,<br />

em suas obras dos anos 70, compostas de recortes e elementos emblemáticos e<br />

simétricos, durante a sua fase que viveu e fez o mestrado em Illinois nos EUA em 1979,<br />

aparecem as naturezas-mortas, mesas dispostas em espécie de cartazes pela inclusão de<br />

elementos culturais com certa influência pop. “Essas obras têm certa allure de<br />

momentos vivos, vibrantes, como numa fotografia, pela aproximação desses objetos nas<br />

mesas, dispostos como num diálogo entre a cultura material e natural, o design de que<br />

se compõem como figuras animadas, numa orgia de formas e cores; oscilante à luz<br />

dessa atmosfera.”(Araújo apud Yêdamaria: 2006, 19)<br />

Em Cabeça de mulher jovem, discute-se não apenas a sua ancestralidade, mas<br />

também, a condição feminina e a construção de uma identidade étnica, social, política,<br />

econômica e cultural constituídas numa construção visual. A imagem e o texto criam<br />

uma espacialidade fundamentando questões universais de existência. Ora o rosto<br />

feminino de pele negra e cabelos crespos curtos, confunde-se com o fundo pintado em<br />

pinceladas um tanto transparentes, ora o fundo recobre-se em camadas sobrepostas.


Cabeça de mulher jovem<br />

1978<br />

Técnica mista<br />

70 x 50 cm<br />

Coleção Emanoel Araújo<br />

Catálogo Yêdamaria<br />

O texto é composto de vários recortes de jornais com anúncios em língua inglesa<br />

referindo-se as angústias num plano individual e expandidas nas relações de<br />

pertencimento e não pertencimento grupal vivenciadas numa prática cotidiana. Vela-se<br />

esse fundo numa tinta azul diluída. O espaço entra na figura tornando-se uma coisa só.


<strong>Uma</strong> mulher negra indissociável de seu universo. Um corpo que clama por ter sua voz<br />

audível.<br />

A religiosidade africana surge mitificada na fase de Yemanjás usando como<br />

materiais, tinta plástica, colagem, revestimento, resina e técnicas mistas provenientes<br />

das <strong>arte</strong>s gráficas como a xilogravura e a serigrafia aproximando-se do mundo africano<br />

pelo colorido e pela sua ancestralidade.<br />

Homenagem a dois de fevereiro<br />

1995<br />

Óleo sobre madeira<br />

600 x 460 cm<br />

Coleção Banco do Brasil<br />

Catálogo Yêdamaria


Na obra Homenagem a dois de fevereiro, a data refere-se a consagração de<br />

Yemanjá, onde a festa concentra-se na praia de Santana, junto à Colônia de Pescadores<br />

do Rio Vermelho, participam devotos de toda a cidade, com presentes e oferendas. O<br />

ápice da festividade é a procissão de barcos que vão em direção ao alto-mar levando os<br />

presentes e a oferenda principal seria a preparada pela Colônia de Pescadores de Rio<br />

Vermelho.<br />

A figura central é uma sereia branca e em seu rosto não possui traços<br />

fisionômicos, tal como uma máscara neutra. Segundo a artista, sua Yemanjá tem forma<br />

mas não tem raça, é pintada de branco simbolizando a pureza, a paz.( Yêdamaria:<br />

2006, 29). Também refere-se a Olocum que junto com seu marido Olorum criaram o<br />

mundo. Ao unir-se a Aiê, a Terra, nasceu Yemanjá. Olocum possuía uma natureza<br />

anfíbia, que de certo modo era motivo de descontentamento pertencer tanto à terra<br />

quanto à água, sentia-se atraída pelo Orixá Ocô, mas tinha receio em aproximar-se dele<br />

e resolveu aconselhar-se com Olofim que a incentivou a procurá-lo por ser um homem<br />

sério e discreto.<br />

Ao viver com o orixá lavrador, ele descobre a particularidade de sua natureza e<br />

revela para todos os seus conhecidos. Envergonhada, Olocum refugia-se para o fundo<br />

do oceano onde tudo era desconhecido e im<strong>possível</strong> de alguém chegar. O mar tornou-se<br />

seu domínio, transformando-se em sereia ou numa serpente marinha.<br />

Estabelece-se uma fusão entre o mito de origem grega com a mítica dos orixás<br />

nas figuras de Olocum e Yemanjá. As duas imagens em suas representações<br />

confundem-se por ter como espaço de domínio as águas. Configurando numa Yemanjá<br />

de caráter hibrido e multicultural.<br />

Abaixo dos seios, cobrindo todo o seu ventre, fixou-se uma série de rostos<br />

femininos com diferentes fenótipos, linhas que separam os rostos com fundo branco em


Iemanjá<br />

Madeira policromada<br />

66 x 31 x 79 cm<br />

Coleção particular<br />

Catálogo Negro de corpo e alma<br />

volta como uma moldura, constituindo as escamas da cauda da sereia. O braço direito<br />

apóia-se na cauda formando entre o espaço de fundo uma estrutura triangular, do<br />

mesmo modo que o braço esquerdo executa o mesmo movimento.<br />

O cabelo com fundo branco e azul esfumaçado remete aos veleiros da obra. Ele é<br />

ornado com uma série de estrelas cobrindo uma extremidade a outra de seu corpo.<br />

Iemanjá vivia sozinha no Orum.<br />

Ali ela vivia, ali se alimentava.<br />

Um dia Olodumare decidiu que Iemanjá<br />

Precisava ter uma família,<br />

Ter com quem comer, conversar, brincar, viver.


Então o estômago de Iemanjá cresceu e cresceu<br />

e dele nasceram todas as estrelas.<br />

Mas as estrelas foram se fixar na distante abóbada celeste.<br />

Iemanjá continuava solitária.<br />

Então de sua barriga crescida nasceram as nuvens.<br />

Mas as nuvens perambulavam pelo céu<br />

até se precipitarem em chuva sobre a terra.(Prandi: 2002, 385)<br />

As estrelas que ornam sua vasta cabeleira sugerem a história do seu nascimento<br />

e das nuvens em conexão entre céu e mar.<br />

Na p<strong>arte</strong> superior da obra, encontram-se dois barcos do lado direito repletos com<br />

flores em pinceladas que transitam entre a figuração e a abstração. O primeiro barco foi<br />

pintado numa faixa branca e base pintada de roxo contrapondo-se num leve contraste ao<br />

segundo barco que está num plano a frente do outro em cores secundárias e terciárias. A<br />

vela apresenta-se num fundo branco sobre branco.<br />

Na mesma direção, logo atrás, está um barco branco formando uma angulação a<br />

uma canoa marrom equilibrando as relações de força entre os barcos anteriores. Ao<br />

fundo vê-se de modo longínquo a Baía. Em pinceladas diluentes e em determinados<br />

momentos constrói-se em camadas no contínuo movimento de uma paisagem que<br />

entardece.<br />

Os quatro barcos formam uma composição retangular. O barco que aparece no<br />

centro na direção da cabeça da sereia compõe juntamente com a figura mítica e a canoa<br />

vermelha com várias flores delineada e cheia de detalhamento numa composição<br />

triangular.<br />

A água encheu as fendas ocas,<br />

fazendo-se os mares e oceanos,<br />

em cujas profundezas Olocum foi habitar.<br />

Do que sobrou da inundação se fez a terra,<br />

ali tomou seu reino de Iemanjá,<br />

com suas algas e estrelas-do-mar,<br />

peixes, corais, conchas, madrepérolas.<br />

Ali nasceu Iemanjá em prata e azul,<br />

coroada pelo arco-íris Oxumaré. (Prandi: 2001, 380)<br />

São os seus domínios acompanhados de cores como os princípios-poderes.<br />

Embora a Yemanjá esteja como pairando sobre as águas, abaixo de seu corpo o espaço


sugerido seria um fundo do mar com uma seqüência de peixes em linha curva<br />

acompanhando as formas da sereia, no plano anterior, criam-se grandes quadrados<br />

azulados que lembram azulejos ligando essas imagens à base, o pedaço da canoa como<br />

uma oferenda recepcionada.<br />

Yêdamaria define a sua poética e o encontro com sua ancestralidade em sua<br />

construção plástica da seguinte maneira:<br />

De início, eu não me sentia artista negra, mas à medida que comecei a<br />

comparar as pinturas de Yemanjás com o colorido africano, descobri que,<br />

hoje, o meu colorido está mais ligado às minhas raízes. O sentimento africano<br />

tem uma essência forte, musical, simbólica e cromática. Foi depois que a<br />

forma da sereia brotou que passei a tratar de um tema popular e africano, que<br />

descobri toda a beleza do ‘Dois de Fevereiro’- festa de Yemanjá- uma festa<br />

humilde, organizada pelo povo. Milhares de pessoas trazendo suas flores,<br />

suas oferendas a fé convicta pura, daquela gente simples, da massa, do povo<br />

mesmo. Um espetáculo impressionante, marcante. Me marcou. Eu admiro e<br />

respeito pela sua autenticidade. (Yêdamaria: 2006, 29)<br />

Lidar com a matéria, que pode ser definido segundo Cecília Almeida Salles,<br />

como a tudo que o artista recorre para a concretização de seu objeto artístico, aquilo que<br />

utiliza, define e pesquisa para dar corpo a sua linguagem e situa o artista no mundo.<br />

(Salles: 2004, 66). Essa busca de encontro de sua ancestralidade aproxima-se da<br />

elaboração de uma paisagem que traz uma poética não só africana, mas as várias<br />

influências constituídas em nossa cultura. <strong>Uma</strong> paisagem que se põe. E poente é<br />

equiparado na cultura Nagô aos pés (esè) que são como condutores e posicionam os<br />

seres em contato com a terra, relacionando-se com os ancestrais para possibilitar o<br />

renascimento da vida e o nascente que seria o que está em vias de desenvolvimento e<br />

pertencente ao futuro.<br />

A questão de gênero para as duas artistas atua não apenas como conteúdo<br />

expressivo, mas como discurso cultural de natureza sexuada. Dessa maneira, são<br />

estabelecidas em formas pré-discursivas anteriores a cultura, uma política de caráter<br />

neutro que no decorrer do processo rege a cultura. Assim constrói-se o conceito de sexo<br />

como definidor das relações sociais.


Um corpo social fundamentado nos valores institucionalizado como família,<br />

casamento e filhos. Qual é essa corporalidade na condição de ser mulher e negra? Um<br />

corpo feminino e negro temporal e atemporal que aborda como material expressivo a<br />

ancestralidade inserida num discurso de hegemonia racial que encobre uma falsa<br />

democracia racial e o posicionamento político, cultural e social do artista.<br />

A <strong>arte</strong> contemporânea internacional distancia-se da subjetividade e da expressão<br />

do eu do artista apropriando-se da produtividade artificial e anônima presente nas<br />

sociedades industriais e pós-industriais. Como característica dessa <strong>arte</strong> acrescenta-se a<br />

utilização de elementos modulares, a seriação e a impessoalidade. Em paralelo, a<br />

pesquisa da materialidade física e química em seu aspecto natural ou semi-<br />

industrializado com interferência quase mínima do artista.<br />

A <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> contemporânea pauta-se numa tradição <strong>arte</strong>sanal não erudita<br />

sintetizadas na oposição entre anônimo e autoral. Rosana Paulino está inserida nessa<br />

internacionalidade ao trabalhar em sua visualidade com módulos e seriação na<br />

reprodução das imagens e também utilizar a costura e o bordado apropriando-se dos<br />

recursos de uma <strong>arte</strong> de origem popular. Do mesmo modo, Yêdamaria localiza-se nessa<br />

desterritorialidade de uma <strong>arte</strong> de caráter internacional uma territorialidade que não a<br />

insere apenas numa definição de <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> pelo local, contudo, o diálogo<br />

dessas formas nas contradições que essa definição estabelece.


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES<br />

Nesta pesquisa, a escolha de artistas como, Mestre Didi, Rubem Valentim,<br />

Rosana Paulino e Yêdamaria, fez-se com a finalidade de se pensar uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<br />

<strong>brasileira</strong> de definição múltipla. Não fechada em si mesma. E não se pode limitá-la a um<br />

espaço específico.<br />

O espaço dessas obras não se encontra apenas numa herança africana sustentada<br />

pela religiosidade. “Tradicionalmente, os estudos acadêmicos sobre cultura material<br />

africana/<strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> giram sobre um eixo religioso, demasiadamente litúrgico, onde<br />

o faber e o ludus do homem africano no Brasil são polarizados em espaços nos<br />

terreiros. Assim, são reduzidas as possibilidades artísticas nesse exclusivismo ritual<br />

religioso.” (Lody: 2005, 256)<br />

O que a delimitaria a uma <strong>arte</strong> local, pensando-se nas proposições de Mariano<br />

Carneiro da Cunha e Marta Heloísa Leuba Salum, que definem a <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong><br />

constituída de valores religiosos excluindo desse modo, uma série de olhares possíveis<br />

para conceituá-la, negando a possibilidade de releitura desses conteúdos num diálogo<br />

que ampliaria essa noção de território e colocaria essa produção numa <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> de<br />

caráter internacional.<br />

Entre alguns teóricos que vêem a <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> atrelada a uma<br />

religiosidade, Kabengele Munanga amplia o conceito de uma <strong>arte</strong> local para uma <strong>arte</strong><br />

<strong>brasileira</strong>, abrangendo os artistas e sua apropriação dos cânones formais da <strong>arte</strong> africana<br />

tradicional reelaborada numa linguagem visual própria, podendo-se citar, Rubem<br />

Valentim e Mestre Didi. E artistas <strong>afro</strong>-descendentes não preocupados apenas com<br />

aspectos formais de herança africana, trazendo também como preocupação, a sociedade,


a cultura, a memória e a inserção do negro na história social <strong>brasileira</strong>. Artistas como<br />

Rosana Paulino e Yêdamaria, produtoras de uma visualidade não territorial, uma<br />

visualidade de caráter não religioso, traduzindo uma desterritorialidade que as inserem<br />

numa <strong>arte</strong> internacional, apresentando uma ancestralidade transcendente em valores<br />

abordados nas questões partilhadas na contemporaneidade.<br />

Pensar <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> como religiosa excluiria determinados artistas que<br />

propõem questionamentos pertinentes sobre o negro, por exemplo, o papel de ser<br />

mulher e negra e as condições instituídas nas relações de subalternidade social, como<br />

Rosana Paulino. E ainda, uma pesquisa plástica cromática e formal em naturezas-mortas<br />

e barcos como a pintura de Yêdamaria em determinadas fases de sua trajetória artística.<br />

Numa outra possibilidade de definição, partindo dos cânones europeus, o artista<br />

Mestre Didi, poderia ser talvez localizado numa produção de caráter popular, excluindo-<br />

o de outra base conceitual. A <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> é um sistema fluido, abarcando<br />

diferentes formas de concepção estética. Não excluindo artistas de origem étnica branca<br />

que lidaram com os conteúdos e/ou formas de origem africana na sua pesquisa, ou<br />

então, a produção de <strong>afro</strong>-descendentes preocupados com conteúdos formais no qual a<br />

sua ancestralidade não aparece de modo nítido; uma concepção de visualidade plástica<br />

de caráter autoral, concebida na intersecção entre o popular e o erudito.<br />

As relações com o popular vistas a partir de manifestações da Folia de Reis, da<br />

Congada e do Candomblé, ilustram a constituição de embates culturais produzidos pelos<br />

contatos proximais ocorridos entre as matrizes indígena, africana e européia, no<br />

processo de mestiçagem tanto étnica como cultural.<br />

As diferenças entre culturas no processo de formação da sociedade <strong>brasileira</strong> são<br />

instauradas e comunicadas, por meio do diálogo entre as matrizes culturais negro-africa-<br />

nas, ameríndias e portuguesas, em seu convívio tenso e sedutor nas festas, no teatro, na


música, na religiosidade e na dança. Nas relações de tensão, simultaneidade e aproxima-<br />

ção estabelecidas na constituição de uma identidade cultural.<br />

Busca-se resgatar a memória configurada pela construção de acontecimentos e<br />

de pessoas que se destacaram para a realização de uma história comum de um grupo<br />

social pela noção de pertencimento. Construindo formas de uma afirmação que dentro<br />

de um processo histórico delineou por meio de uma identidade opressiva a alienação<br />

dos corpos pela inferiorização. E o corpo incorporado à sua religiosidade torna-se um<br />

“espaço tão preservado e valorizado nas falas simbólicas com a natureza, com o<br />

mundo dos homens e o mundo dos deuses.” (Lody: 2005, 17)<br />

O conceito de negritude não se fundamenta apenas numa questão biológica,<br />

contudo, envolve conteúdos que tornam comum a história de indivíduos e a afirmação<br />

de uma identidade num posicionamento político.<br />

Senghor sugere que se distingam negritude, africanidade e autenticidade.<br />

Negritude situa-se numa perspectiva universal; africanidade equivale à<br />

personalidade africana, é a Africanness. Autenticidade é um conceito usado<br />

paralelamente à africanidade, significando a retomada da África<br />

contemporânea nas suas diferentes realidades com a África remota, aquela de<br />

tradições autóctones. (Lody: 2005, 293)<br />

Essas práticas culturais têm em sua <strong>corporeidade</strong> um ser social e de<br />

reminiscências, localizando-se nas proposições de Mário de Andrade, para o<br />

delineamento de uma identidade nacional e logo uma definição de <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong>.<br />

Lembrar não é reviver mas refazer, reconstruir, repensar com imagens de hoje as<br />

experiências do passado. A memória é ação. A imaginação não opera, portanto sobre o<br />

vazio, mas com a sustentação da memória. (Salles: 2004, 100)<br />

A importância dos Congressos <strong>afro</strong>-brasileiros nos anos 30 está em trazer o<br />

negro como uma das matrizes constituinte de uma visualidade nacional e como<br />

formador dessa identidade. O negro aparece como pesquisado e não como pesquisador.


A discussão da pesquisa sobre a cultura material e imaterial do negro,<br />

colocando-o também no papel do pesquisador, aparece nos congressos realizados pela<br />

Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). Em sua quinta edição, teve<br />

como origem histórica a trajetória dos pesquisadores negros, nos espaços institucionais<br />

de pesquisa e nos movimentos negros desde 1970.<br />

Foi criada oficialmente em 29 de agosto de 2002 e possui como objetivo:<br />

- Congregar os/as pesquisadores/as negros/as e todos/as aqueles/as que<br />

trabalham como temas de interesse direto das populações negras no Brasil.<br />

- Promover conferências, reuniões, cursos e debates no interesse da pesquisa<br />

sobre temas diretamente ligados às questões que envolvem as populações<br />

negras no Brasil;<br />

- Possibilitar publicações em teses, dissertações, artigos de revistas de<br />

interesse direto das populações negras no Brasil;<br />

- Manter intercâmbio com associações congêneres do país e exterior;<br />

- Defender e zelar pela manutenção da Pesquisa com financiamento público e<br />

dos institutos de pesquisa em geral, propondo medidas para seu<br />

aprimoramento, fortalecimento e consolidação.<br />

- Propor medidas para a política de ciência e tecnologia do país. (Congresso<br />

Brasileiro de Pesquisadores/as negros/as: 5, 2008, Goiânia, GO/ Caderno de<br />

resumos)<br />

Os Congressos Brasileiros de Pesquisadores Negros (COPENE) acontecem em<br />

diferentes estados a cada dois anos, o primeiro em 2000 tinha como tema, O negro e a<br />

produção contemporânea do conhecimento: dos 500 anos ao século XXI, ocorreu em<br />

Recife na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); o segundo em 2002, Do preto<br />

a <strong>afro</strong>-descendente: a pesquisa sobre relações étnico raciais no Brasil, na Universidade<br />

Federal de São Carlos (UFSCAR); o terceiro em 2004, Pesquisa social e políticas de<br />

Ação Afirmativa para <strong>afro</strong>-descendentes na Universidade Federal do Maranhão<br />

(UFMA); o quarto COPENE, em 2006, O Brasil negro e suas africanidades: produção<br />

e transmissão de conhecimentos na Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e por<br />

último, em 2008, o Pensamento e anti-racismo: Diferenciações e percursos na<br />

Universidade de Goiás (UFG).<br />

Participei contribuindo com a minha pesquisa em 2006 com o texto intitulado,<br />

Olhar e ser visto: teatralidade, samba e cultura popular no Brasil, juntamente com ou-


tros autores, Christian Fernando dos Santos Moura e Wagner Leite Viana, também dis-<br />

centes do programa de pós-graduação Mestrado em Artes do Instituto de Artes da<br />

<strong>Unesp</strong> (I.A.), e em 2008, Tessituras de africanidades no modernismo brasileiro, com<br />

Wagner Leite Viana.<br />

Esses congressos promovem um espaço de interlocução e a necessidade de<br />

buscar uma afirmação identitária negra expressas nos meios econômico, social, político<br />

e cultural refletindo na estruturação de uma visualidade.<br />

A percepção é a ação do olhar responsável pela construção das imagens<br />

geradoras de descobertas ou de transformações poéticas. Em seu processo de<br />

apreensão do mundo, o artista estabelece conexões novas e originais,<br />

relacionadas a seu grande projeto poético. Encontramos, no entanto, a<br />

unicidade de cada obra e a singularidade de cada artista não só na natureza<br />

dessas combinações perceptivas, como também no modo como são<br />

concretizadas. (Salles: 2004, 104)<br />

Qual o sentido expressivo que a <strong>arte</strong> ocupa na cultura na qual ela se define e for-<br />

ma, considerando os aspectos culturais, históricos, globais, locais e sua característica de<br />

expressar o universo simbólico de um povo? Quais critérios para se definir uma obra a<br />

partir da acepção de culturas híbridas, e, portanto, relacionais como uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-brasi-<br />

leira? Qual a sua pertinência e para quem?<br />

Essas questões fazem referência à dificuldade de interlocução nos meios acadê-<br />

micos, por extensão de que maneira esses conteúdos aparecem e o tipo de abordagem<br />

tratada dentro da grade curricular, tanto em relação à <strong>arte</strong> africana tradicional e contem-<br />

porânea quanto da <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>. <strong>Uma</strong> espécie de ausência nesses espaços, falta de<br />

extenso material bibliográfico sobre o tema e a necessidade de encontrar outros pares,<br />

era algo mencionado por outros pesquisadores negros da área de ciências humanas na<br />

articulação dessas discussões, nos Congressos promovidos pela ABPN.<br />

Esse trabalho perpassa por um olhar histórico e antropológico na constituição de<br />

um corpo criador que não se fundamenta no conceito de estética para abordar as<br />

produções artísticas de herança africana. O que se propõe é o caráter programático


elaborado por esses artistas com apresentação de formas expressivas distintas acrescidas<br />

de suas referências culturais e sociais na inserção deles no mercado de <strong>arte</strong>. Poética<br />

seria um termo mais pertinente e apropriado para essas discussões que são pautadas no<br />

processo de criação, não visto apenas por seu aspecto mais formalista, contudo também<br />

pela cultura. Esse conceito compreende o universo existencial de um artista e no modo<br />

como reelabora determinados conteúdos para a existência de uma obra.<br />

O objeto artístico, durante sua criação, se desprende da realidade externa à<br />

obra, que é dissolvida na <strong>arte</strong> de dominá-la e fazer dela realidade artística. O<br />

artista é um captador de detritos da experiência, de retalhos da realidade. Há,<br />

por um lado, a superação das linhas da superfície desses retalhos externos ao<br />

mundo da criação; não se pode, porém negar que haja afinidades secretas<br />

entre as realidades externa e interna à obra. (Salles: 2004, 97)<br />

Esses quatro artistas convergem para um corpo-memória que foi construído por<br />

linguagens corporais distintas em razão do confronto entre as matrizes étnicas que<br />

compuseram o que seria um corpo brasileiro pelo processo de miscigenação e<br />

hibridismo cultural. Essas linguagens traduzem o idioma desse corpo adjetivado na<br />

forma de atualizá-lo: como o corpo histórico/feminino em Rosana Paulino, o corpo<br />

mítico em Yêdamaria, o corpo emblema em Valentim ou o corpo sagrado/ linguagem<br />

em Mestre Didi.


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