Uma possível arte afro-brasileira: corporeidade e ... - Unesp
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UNESP<br />
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA<br />
“Júlio de Mesquita Filho”<br />
Instituto de Artes – I.A.<br />
Programa de Pós-Graduação em Artes<br />
Mestrado<br />
<strong>Uma</strong> <strong>possível</strong> <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>: <strong>corporeidade</strong> e<br />
ancestralidade em quatro poéticas.<br />
JANAINA BARROS SILVA VIANA<br />
São Paulo - 2008
UNESP<br />
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA<br />
“Júlio de Mesquita Filho”<br />
Instituto de Artes – I.A.<br />
Programa de Pós-Graduação em Artes<br />
Mestrado<br />
<strong>Uma</strong> <strong>possível</strong> <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>: <strong>corporeidade</strong> e<br />
ancestralidade em quatro poéticas.<br />
JANANA BARROS SILVA VIANA<br />
São Paulo - 2008<br />
Dissertação submetida à UNESP como requisito<br />
parcial exigido pelo programa de Pós-Graduação<br />
em Artes, área de concentração em Artes<br />
Visuais, linha de pesquisa Abordagens Teóricas,<br />
Históricas e Culturais da Arte, sob orientação da<br />
prof. Dr. Livre Docente José Leonardo do<br />
Nascimento, para obtenção do título de Mestre<br />
em Artes.
Ficha Catalográfica.<br />
VIANA, Janaina Barros Silva<br />
<strong>Uma</strong> <strong>possível</strong> <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>: <strong>corporeidade</strong> e ancestralidade em quatro poéticas<br />
São Paulo, 2008 – 140 pgs.<br />
Dissertação – Mestrado. Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP.<br />
Orientador: José Leonardo do Nascimento.<br />
Palavras – chave: <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> contemporânea, cultura híbrida,<br />
<strong>corporeidade</strong>.
Dedico este trabalho ao amigo e companheiro Wagner e ao<br />
pequeno Álvaro que me acompanharam com o pensamento e o<br />
coração durante o percurso da gestação e da elaboração desse<br />
trabalho que foi apenas iniciado. E também a todos aqueles que<br />
de modo indireto ou direto partilharam desse processo.
Agradeço aos meus pais, Janilda e Osvaldo, por incentivarem<br />
em meus estudos. Agradeço ao amigo e companheiro Wagner<br />
Leite Viana, a Professora Claudete Ribeiro, aos amigos que fiz<br />
no Programa de Pós, ao Professor Ermelindo Nardin e ao Edson<br />
Martins Moraes por em diferentes períodos dessa pesquisa,<br />
auxiliaram-me em minhas dúvidas e reflexões permitindo que<br />
essa pesquisa se constituísse num corpo formal. E agradeço a<br />
orientação zelosa do Professor José Leonardo do Nascimento.
Resumo<br />
A pesquisa trata do corpo como modo de produção social, histórica<br />
e cultural, presentificado na <strong>arte</strong> de <strong>afro</strong>-descendentes. Um<br />
corpo que não é apenas biológico, mas que se manifesta de<br />
modo implícito, revelando uma estrutura social pautada na herança<br />
sócio–econômica escravista que encerra o indivíduo num<br />
ser-coisa.<br />
Desse modo, a configuração de uma imagem corporal pertence a<br />
um indivíduo e é confrontado no reconhecimento de um corpo<br />
social sustentado na afirmação de uma identidade coletiva. O<br />
corpo acaba por restituir ou destituir o ser de sua integridade<br />
pela busca de um sentido dentro de uma estrutura sócio-política.<br />
Proponho discutir cultura popular e <strong>arte</strong> popular como modo referencial<br />
de uma produção contemporânea, influenciadas por<br />
uma matriz africana representadas por povos de origem sudanesa<br />
e bantu, reelaboradas pela síntese cultural e decodificadas<br />
pela erudição na elaboração de obras definidas como <strong>arte</strong> <strong>afro</strong><strong>brasileira</strong>.<br />
O objeto a ser estudado implicará numa pesquisa qualitativa,<br />
bibliográfica e documental. A abordagem de caráter dialético<br />
baseia-se na construção do tema e a definição de uma poética<br />
<strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> discutidas pela produção de Mestre Didi, Rubem<br />
Valentim, Rosana Paulino e Yêdamaria. O enfoque tratado seria<br />
o poético, o histórico e o antropológico em confronto com as<br />
contradições estabelecidas pela matriz européia na constituição<br />
de uma cultura com aspectos nacionais.<br />
Palavras chaves: <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> contemporâ-<br />
nea, cultura híbrida e <strong>corporeidade</strong>.
Resumen<br />
La búsqueda es el cuerpo como la producción social, cultural e<br />
histórica presente en el <strong>arte</strong> de <strong>afro</strong>-descendientes. Un cuerpo<br />
que no es sólo biológico, sino que está implícito, revelando una<br />
estructura social sobre la base de herencia socioeconómica de la<br />
esclavitud, qué pone fin a la persona en un ser cosa.<br />
Así, la configuración de una imagen corporal pertenece a una<br />
persona y se enfrenta en reconocimiento de un cuerpo social<br />
sosteniendo y afirmando una identidad colectiva. El cuerpo acaba<br />
por restituir, o rechazar la integridad por buscar un sentido<br />
dentro de una estructura socio-político.<br />
Yo propongo discutir la cultura popular y el <strong>arte</strong> popular como<br />
referencial de una moderna producción en la <strong>arte</strong>, influenciada<br />
por una matriz africana representada por los pueblos de origen<br />
sudanés y bantú, considerando la síntesis cultural y la erudición<br />
en la elaboración de las obras definidas como <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-brasileña.<br />
El objeto estudiado entrañará una investigación cualitativa, de la<br />
literatura acerca del tema y documental. El método de carácter<br />
dialéctico se basa en la construcción de la cuestión y la<br />
definición de una poética <strong>afro</strong>-brasileña examinada por la<br />
producción de Mestre Didi, Rubem Valentim, Rosana Paulino y<br />
Yêdamaria. El objetivo tratado sería el poético, el histórico y<br />
antropológico en enfrentamiento con las contradicciones<br />
establecidas por la unión de matrices en la constitución de una<br />
cultura con aspectos nacionales.<br />
Palabras clave: el <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-brasileña, <strong>arte</strong> contemporánea<br />
brasileña, cultura híbrida y corporalidad.
SUMÁRIO<br />
INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 9<br />
1° CAPÍTULO...............................................................................................................20<br />
Cultura negra e hibridismo cultural numa poética <strong>brasileira</strong>......................................... 20<br />
Corpo e teatralidade: folia de reis, congada e candomblé.............................................. 29<br />
2º CAPITULO............................................................................................................... 54<br />
Elementos para discutir uma poética negra e <strong>brasileira</strong>................................................. 54<br />
Simbologia e corporalidade na mítica da produção <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> de mestre Didi e Rubem<br />
Valentim................................................................................................................. 79<br />
3º CAPITULO............................................................................................................... 91<br />
UMA POSSÍVEL ARTE AFRO-BRASILEIRA........................................................... 91<br />
Religião e espaço de exibição: tensões entre o popular e o erudito............................... 91<br />
Corpo e contemporaneidade: duas poéticas femininas e ancestrais nas obras de Rosana<br />
Paulino e Yêdamaria.................................................................................................... 106<br />
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES................................................................................................ 129<br />
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................ 135
INTRODUÇÃO<br />
A pesquisa trata do corpo como modo de produção social, histórica e cultural,<br />
presentificado na <strong>arte</strong> de <strong>afro</strong>-descendentes. Um corpo que não é apenas biológico, mas<br />
que se manifesta de modo implícito, revelando uma estrutura social pautada na herança<br />
sócio–econômica escravagista que encerra o indivíduo num ser-coisa.<br />
Investigo a configuração de uma imagem corporal pertencente a um indivíduo<br />
confrontado no reconhecimento de um corpo social sustentado na afirmação de uma<br />
identidade coletiva. Neste aspecto, o corpo acaba por restituir ou destituir o ser de sua<br />
integridade na busca de um sentido dentro de uma estrutura sócio-política.<br />
O corpo, segundo Eliane Robert de Moraes (2002), na obra O corpo im<strong>possível</strong>,<br />
é o que nos confere o conceito de sujeito, o eu, como consciência que permite o conhe-<br />
cimento e o agir num grupo social.<br />
A partir da Idade média ocorre o desligamento dos seres de uma visão cosmoló-<br />
gica, conseqüentemente, é no Renascimento com a descrição da morfologia humana,<br />
provocada por inúmeros questionamentos a partir de um interesse pelo corpo e no pen-<br />
samento de um homem subjetivo. Contudo, a individualização desses seres, culminaria<br />
num dos fundamentos propostos pela modernidade construída na visão c<strong>arte</strong>siana e me-<br />
canicista de um corpo-fragmento. Surgido de um indivíduo autônomo, atuante e des-<br />
prendido de sacralidade.<br />
O contexto social determina a maneira como o ser atua em seu espaço. Cria refe-<br />
rências baseadas no seu valor cultural. É uma existência datada que não ignora o tempo<br />
e este, evoca a memória conectando-o ao passado e ao futuro. Retendo fatos já vivencia-<br />
dos embutidos em diferentes estados afetivos e emocionais.
No Renascimento, a fisiognomonia foi cultivada tendo como expoente Giamba-<br />
tista Della Porta que publicou Sulla Figura umana, como conteúdo trazia a idéia de que<br />
um indivíduo pode ser julgado quanto a sua índole pelo que lhe é mais imediato, e, por-<br />
tanto visível, que são os traços fisionômicos. Anteriormente Aristóteles já admitia que a<br />
natureza de uma coisa possuía como base a sua forma corpórea. (Panofsky: 1981)<br />
Na obra de Miguel Ângelo, Escravo Agonizante, localizado no Louvre, um<br />
escravo foi representado acompanhado pela imagem de um macaco emergida de uma<br />
massa de pedra amorfa. A descrição do macaco aproxima-se a do homem desprovido de<br />
sua liberdade por suas características corporais, com crânio redondo, testa baixa e<br />
quadrada e focinho saliente além de indicar como comportamento a lascividade, o<br />
impudor, a avareza que os neoplatônicos chamaram de commune cum brutis, o que há<br />
de comum entre homens e animais sem inteligência considerados como “Alma<br />
inferior”. A personificação da alma humana escravizada pela matéria.<br />
No século XVIII com as teorias evolucionistas estabelece-se a diferença entre<br />
seres, com teóricos como Buffon e De Pauw, delineando os grupos na forma de povos e<br />
nações. O termo raça começa a ser utilizado no século XIX sustentadas por teses polige-<br />
nistas como a frenologia e da antropometria que interpretavam a potencialidade humana<br />
pelo formato e tamanho do crânio. Com o desenvolvimento da Antropologia Criminal,<br />
seu principal representante, Cesare Lombroso, afirmava que a criminalidade é um fenô-<br />
meno físico e hereditário. O indivíduo estava fadado biologicamente a transgressão das<br />
normas sociais.<br />
Essas teorias justificaram o conceito de inferioridade racial e legitimaram a eco-<br />
nomia colonial pela hiperespecialização do trabalho de um grupo subjugado, no caso o<br />
africano, e pelo sincretismo negativo entre colonizador e colonizado. É o que Wilson<br />
Barbosa do Nascimento (2002), define como uniculturalismo, alicerçado na exploração
econômica direta, na expropriação da liberdade pela destruição física e cultural sistema-<br />
tizada do povo dominado.<br />
A posição de uma classe de indivíduo dominante passa a ser a única cultura pos-<br />
sível nas relações de convivência, negando o direito de existência de outras culturas.<br />
Este estrangulamento cultural demarca uma quase inexistência que define o sincretismo<br />
negativo.<br />
Isso não impede que tenha havido uma influência de povos de origens bantus e<br />
sudanesas na constituição de uma cultura <strong>brasileira</strong>. O que distingue esses povos é a vi-<br />
são cosmogônica e como o sagrado se manifesta.<br />
Os sudaneses concentraram-se durante o século XVIII-XIX na Bahia dominando<br />
as outras culturas negras aqui introduzidas. Cultura material e imaterial faz referência à<br />
religião dos orixás (candomblé). Em contraponto, os povos bantus, tinham como univer-<br />
so de adoração:<br />
(...)as pedras, os paralelepípedos e as lascas de pedra, acrescentando que,<br />
prestam um culto especial a flor do girassol, que representa a lua, reúnem-se<br />
em sessões chamadas macumbas e aí invocam seus santos: Ganga-Zumba,<br />
Cangira-mungongo, Cubango, Lingongo e outros(...). (Gallet, Estudos de folclore.<br />
In: O negro na música <strong>brasileira</strong>, 1934)<br />
Estabelece-se então, um sincretismo positivo, em que há a experiência de um<br />
processo de convergência, de semelhança ou convívio forçado entre as culturas relacio-<br />
nais. Ocorrendo um jogo de vida e morte entre culturas, em que as que conseguem so-<br />
brepor têm maiores chances de persistir.<br />
Para Roger Bastide, os curtos períodos de lazer nas senzalas e nas confrarias re-<br />
ligiosas que reuniam os negros permitiram a manutenção de elementos culturais africa-<br />
nos. No caso africano, verifica-se a justaposição da "arqueocivilização negra" e de um<br />
"folclore artificial imaginado pela Igreja”. (Peixoto: 1999)<br />
Discute-se a existência de uma cultura híbrida e dominante trazida pelo coloni-<br />
zador português, e que pelo processo justaposição de povos bantus e sudaneses, acaba-
am sendo transformadas pelos embates de diferenças de valores culturais. Assumindo<br />
outras características que formataram uma cultura de caráter nacional. <strong>Uma</strong> matriz cul-<br />
tural e étnica é instaurada, neste caso, a portuguesa estabelecendo outros valores com as<br />
culturas existentes no mesmo espaço de convivência. Agrega-se nessa estrutura elemen-<br />
tos culturais africanos e indígenas.<br />
A resistência cultural fica marcada nas manifestações populares, como no caso<br />
da Folia de Reis, que trata da personificação dos três Reis Magos, que são guiados por<br />
uma estrela no céu, que os direcionam para o local de nascimento do Menino Jesus.<br />
Os foliões resgatam nesse trajeto o tempo de origem, o tempo primordial pelo<br />
mito de eterno retorno, traduzidos no nascimento como revigoramento do passado<br />
histórico da comunidade participante. É de origem portuguesa e agrega valores dos<br />
povos bantus como os mitos de entronização e cerimônias de coroação de monarcas.<br />
A experiência do sagrado torna contemporâneo o acontecimento primordial. O<br />
povo conserva as tradições pela atualização dos mitos. É por meio dele que o homem se<br />
encontra dramatizado e cria uma proximidade com as divindades, e o mito vem<br />
acompanhado com o rito e o rito realiza o mito e permite a vivência.<br />
O rito remete ao tempo de origem pela repetição do ato criador dos deuses<br />
permitindo todo gesto criador humano, não importando o seu plano de referência,<br />
terreno ou divino.<br />
Proponho nessa pesquisa discutir cultura popular e <strong>arte</strong> popular como modo<br />
referencial de uma produção contemporânea. A diferenciação entre cultura erudita ou<br />
alta cultura, de cultura popular dá-se nas próprias condições de existência dos grupos<br />
subalternos que envolvem a desigualdade no acesso aos bens produzidos para a cultura<br />
dominante e nos meios materiais para o registro do dado fenômeno cultivado na<br />
memória.
A tradição remete em uma obra, o diálogo com outra inserida numa proposta<br />
específica. A cultura erudita lida com o conhecimento sistematizado ocorrendo<br />
intersecções através das relações hegemônicas de classe na visão ideológica de corpo<br />
social.<br />
Já <strong>arte</strong> popular, expressa uma visão poética, existente a partir do instante em que<br />
é vista. Sua funcionalidade está no processo concluído do objeto tornado artístico. Não<br />
necessariamente atua como utilitário. O que distingue do <strong>arte</strong>sanato, pois, para este sua<br />
existência não está descolada da idéia de uso.<br />
A cultura designa o modo de relacionamento com o real. Isso traz para a<br />
discussão a cultura negra como heterogeneidade na formação social <strong>brasileira</strong> e a<br />
predominância de uma cultura européia em oposição a uma cultura africana. Nesse<br />
embate busco a constituição de uma identidade.<br />
Pensando-se na existência de uma <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> contemporânea, surgida pelos<br />
artistas que vieram anteriormente e que transpuseram os modelos da <strong>arte</strong> européia para a<br />
realidade <strong>brasileira</strong>. Participam nessa construção visual, artistas das mais variadas<br />
gerações, responsáveis por obras que vão desde as de origem eminentemente moderna<br />
até as que rompem com esses cânones.<br />
No século XIX, artistas como Debret e Rugendas, utilizaram o negro como<br />
representação, em contraposição a artistas <strong>afro</strong>-descendentes, como Estevão Silva,<br />
Antônio Rafael Pinto Bandeira e Artur Timóteo da Costa que voltavam a sua produção<br />
em função do gosto da elite da época. A estética negra não aparece como tema, nem<br />
como aspecto formal nas obras desses artistas.<br />
A principal problemática levantada pela pesquisa é se há uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong><br />
contemporânea, pensando-se na existência de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> delineada por
uma poética tradicional e popular representada durante o século XX nas obras de<br />
artistas <strong>afro</strong>-descendentes.<br />
O fato de a mitologia, a religião e a <strong>arte</strong> representarem um veículo sensível de<br />
cultura e transmissão de conteúdos, como as necessidades latentes dos seres. Pode-se<br />
afirmar, que esses três campos de conhecimento não podem ser entendidos<br />
autonomamente, estão interligados e são definidos como um caráter de identificação e<br />
ancestralidade na expressão de virtudes individuais e coletivas.<br />
Para entendê-la é preciso avaliar o processo histórico, a questão da escravidão<br />
que modificou a estrutura original das religiões, e a necessidade do negro de se<br />
comunicar através de estratégias que permitissem a recriação de seu meio como modo<br />
de não se despersonalizar e aprofundar-se nos seus valores mais latentes acrescidos de<br />
outros surgidos do novo ambiente.<br />
A aproximação da religião católica com a africana fez com que houvesse a<br />
continuidade das formas artísticas plásticas desta e o surgimento de uma linguagem<br />
plástica <strong>brasileira</strong>.<br />
A idéia de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> aparece a partir dos anos 30 e 40, saindo dos<br />
espaços de cultos. Esses artistas começam a trabalhar dentro do conceito de <strong>arte</strong><br />
popular, encorajados pelo movimento modernista e pela busca de um nacionalismo.<br />
Nesse período ocorrem os Congressos <strong>afro</strong>-brasileiros em Recife (1934) e em<br />
Salvador (1937), as missões folclóricas enviadas ao Norte e Nordeste por Mário de<br />
Andrade em 1937-38. Começa-se a esboçar uma <strong>arte</strong> de linguagem plástica universal<br />
com elementos de identidade negra.<br />
<strong>Uma</strong> outra questão seria qual o critério para se definir uma obra como <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<br />
<strong>brasileira</strong>. Tendo por base caminhos propostos por alguns artistas que poderiam não ser<br />
necessariamente <strong>afro</strong>-brasileiros, como nas seguintes linhas:
Os que utilizaram o tema incidentalmente aparecendo esporadicamente na<br />
produção não articuladas com uma escolha de pesquisa de uma poética. No caso de<br />
artistas como Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Alberto da Veiga Guignard, Portinari,<br />
Djanira e José Pancetti.<br />
Os que sistematizaram sua produção com o interesse de buscar uma poética<br />
negra como condutora de toda a produção plástica, como nas obras de Carybé, Mário<br />
Cravo Jr. e Di Cavalcanti.<br />
Nesses dois grupos os artistas possuem de certo modo origem étnica européia. O<br />
terceiro grupo seria aquele em que os artistas manipulam espontaneamente e<br />
inconscientemente as soluções plásticas africanas expressas também como tema.<br />
Essencialmente são de origem africana. Como exemplo, artistas como Rubem Valentim,<br />
Mestre Didi, Ronaldo Rego, Hélio de Oliveira e Agnaldo Manuel dos Santos.<br />
Quais vias podem indicar a presença de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> na contempora-<br />
neidade inserida numa poética <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>?<br />
Nessa problemática, ocorre o diálogo da construção de elementos possíveis de<br />
caracterizar ou apontar caminhos para o encontro de uma poética <strong>afro</strong>-descendente den-<br />
tro de um discurso pautado no conceito de contemporaneidade. Sendo contextualizadas<br />
a partir do desdobramento das linguagens artísticas em conseqüência das vanguardas<br />
que foram absorvidas nos signos da tradição e re-significadas pela visão particular do<br />
artista.<br />
Propõe-se a relação entre cultura e <strong>arte</strong> populares: matriz africana de origem su-<br />
danesa e bantu na elaboração de uma síntese cultural.<br />
O método para a pesquisa é o proposto pela iconologia para a compreensão dos<br />
artistas citados e para o desenvolvimento das questões levantadas. Essa análise ocorre<br />
em três níveis segundo Erwin Panofsky:
1. Tema primário ou natural: são os motivos artísticos descritos, enumerados e<br />
identificados com os acontecimentos. Constitui-se numa descrição pré-iconográfi-<br />
ca pela história do estilo.<br />
2. Tema secundário ou convencional: o reconhecimento das imagens (estórias e<br />
alegorias). Familiaridade com conceitos ou temas específicos expressos à obra. O<br />
tema em oposição à forma caracterizando a análise iconográfica pela história dos<br />
tipos.<br />
3. Significado intrínseco ou conteúdo: refere-se ao conteúdo e a familiaridade com<br />
as tendências essenciais da mente. Configurando nos valores do mundo “simbóli-<br />
co” A interpretação decorre da síntese. Define-se numa interpretação iconológica<br />
pela história dos sintomas culturais.<br />
Este trabalho é composto por três capítulos organizados do seguinte modo:<br />
1.Cultura negra e hibridismo cultural numa poética <strong>brasileira</strong><br />
Discute-se o diálogo entre povos de origem bantus e sudanesas e as influências<br />
na formação de uma cultura de caráter nacional pelo processo de uniculturalismo que<br />
pode ser tanto negativo como positivo na relação sincrética entre diferentes seres perten-<br />
centes a grupos definidos. E as suas relações de dominação entre culturas envolvem a<br />
constituição de identidade enquanto corpo sócio-político e cultural no estudo de três ca-<br />
sos específicos: a Folia de Santos Reis, a Congada e o Candomblé. Essas construções<br />
culturais e sociais referem-se tanto à tradição, à memória, à cosmogonia e quanto à vida<br />
como dimensão religiosa. É a memória que possibilita tecer a relação com o antigo e<br />
com a experiência de relacionamentos de um homem dramatizado e divinizado impreg-<br />
nado de sagrado.<br />
2. Elementos para discutir uma poética negra e <strong>brasileira</strong>
Neste capítulo delimita-se o que seria uma produção <strong>afro</strong>-descendente gerada de<br />
cânones próprios de origem religiosa pelo uso de signos e símbolos para a construção de<br />
imagens transmutadas em linguagens provenientes do barroco. Partindo do século<br />
XVIII a presença de negros e mestiços nos trabalhos de <strong>arte</strong>, atuando a princípio como<br />
aprendizes, ajudantes ou participantes de grupos nos trabalhos dos monumentos religio-<br />
sos, começa no decorrer do século XIX com a desvalorização das produções de artistas<br />
de origem negra e o fortalecimento do neoclassicismo atrelado a formação de elites.<br />
As produções apresentadas concentram-se no século XX, com as obras de Mes-<br />
tre Didi e Rubem Valentim, retomando alguns acontecimentos importantes para o apon-<br />
tamento de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, neste caso, a expedição e a catalogação feita por<br />
Mário de Andrade nos anos 30 e, na mesma década e entrando nos anos 40, o Congres-<br />
so Negro buscando compreender e sistematizar uma produção que se baseia num corpo<br />
ancestral que é histórico, social e econômico.<br />
A partir da noção de sociedade e da concepção de relações vivenciadas na cultu-<br />
ra popular, tratada a princípio como a prática particular de grupos subalternos que se<br />
modificam juntamente com o contexto social em que estão inseridos; não sendo práticas<br />
cristalizadas são transformadas pela produção econômica e distribuição dos seres nos<br />
espaços relacionais tanto entre outros grupos como no próprio. Sua existência dá-se de<br />
acordo com a visão ideológica e os interesses de uma classe dominada em contraponto a<br />
hegemonia submetida pelas classes dominantes.<br />
Retoma-se o conceito de hibridismo no sentido de abranger diferentes mesclas<br />
interculturais na relação entre erudito e popular não se referindo apenas as questões ra-<br />
ciais ou religiosas entre tradição e modernidade. O processo de modernização cria o re-<br />
dimensionamento entre <strong>arte</strong> e cultura popular, o saber acadêmico ou erudito e cultura<br />
industrializada.
3. <strong>Uma</strong> <strong>possível</strong> <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong><br />
Propõe-se aqui uma discussão sobre o fazer artístico numa cultura de caráter po-<br />
pular que não é cristalizada e que se renova nas elaborações conscientes e inconscientes<br />
de uma coletividade revitalizada nas crenças que concernem às origens <strong>afro</strong>-descenden-<br />
tes dos artistas a serem trabalhados neste capítulo.<br />
<strong>Uma</strong> possibilidade contemporânea traduzida em discurso por Joseph Beyus era<br />
aproximação do processo entre o observador da obra e o artista, permitindo a qualquer<br />
indivíduo tornar-se um produtor cultural. Esse estreitamento dá-se pela construção de<br />
pensamento, o conceito e o procedimento no modo que um indivíduo manipula a maté-<br />
ria. É o que Pareyson (2001) menciona quando trata do conceito de poética para locali-<br />
zar como o artista entende a realidade da <strong>arte</strong> que ele pratica, os sentimentos, as convic-<br />
ções, as crenças, as aspirações, os pensamentos, os costumes, as idéias e o ideal como<br />
algo que o antecede.<br />
O que caracteriza uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>? Sabendo-se que há nessa produção a<br />
presença do sagrado indicada por diferentes vias expressivas. O tema e a origem étnica<br />
são determinantes?<br />
Pensando-se na existência de uma Arte Brasileira configurada pelo processo de<br />
integração, esfacelamento dos projetos estéticos e a sua revisão surgida pela moderniza-<br />
ção acelerada e alimentada pelas contradições sociais revisitadas pela vanguarda dos<br />
anos 60. Revelam as crises ao mesmo instante que desejam solucioná-las. Pela destrui-<br />
ção reconstrói-se a História e a transforma.<br />
A partir dessas questões propõe-se a discussão de algumas vias que poderiam ca-<br />
racterizar uma poética <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, discute-se uma <strong>corporeidade</strong> ancestral e uma con-<br />
temporaneidade nas obras de Rosana Paulino e Yêdamaria, Rubem Valentim e Mestre<br />
Didi.
A abordagem de caráter dialético baseia-se na construção do tema da pesquisa e<br />
a definição de uma estética <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> discutidas na produção visual desses artistas.<br />
O enfoque tratado seria o histórico e o antropológico em confronto com as contradições<br />
estabelecidas pela matriz européia na constituição de uma cultura com aspectos nacio-<br />
nais. Poderia ser definido a partir da acepção de culturas híbridas, e, portanto, relacio-<br />
nais, a existência de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> seguida paralelamente a uma <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong><br />
contemporânea.
1° CAPÍTULO<br />
CULTURA NEGRA E HIBRIDISMO CULTURAL NUMA POÉTICA BRASILEIRA<br />
A resistência escrava no Brasil dava-se nos espaços de festas e devoção através<br />
da reinterpretação dos códigos de suas culturas em função do material imposto pelo<br />
Senhor. A memória dos signos de origem encontrava-se marcada no corpo tanto no<br />
campo do visível quanto do não-visível recuperando os fragmentos da cosmologia<br />
africana na escravidão.<br />
Machado de Assis, no conto Pai contra Mãe, retrata como ocorriam as formas<br />
violentas de amoldar um indivíduo destituindo-o de sua essência mais imediata na sua<br />
relação com o sagrado e com o terreno, no uso de objetos de tortura pelo não<br />
enquadramento comportamental ao que era esperado pelo Senhor. Durante esse período,<br />
uma prática comum eram os anúncios em jornais para se tentar reaver um escravo<br />
fugido oferecendo-se recompensas. Esses retratos elaborados pela descrição textual<br />
minuciosa de marcas na pele, modos de andar, estatura, diferenciação de gradação de<br />
tez, cabelo e características psicológicas permitiam criar uma imagem e até mesmo<br />
identificar o retratado no processo de captura. Os escravos dentro desse sistema<br />
alcançavam destaque nas possíveis transações comerciais, compra, venda, troca,<br />
aluguel, leilões e fuga.<br />
Os anúncios com a campanha abolicionista foram perdendo destaque nas<br />
descrições e nos letreiros dos títulos em negrito. Eram indicados como uma mancha.<br />
Um negro representado com uma trouxa nas costas no instante de fuga. Como<br />
conseqüência desse momento transitório em razão das mudanças de ordem econômica,<br />
moral, cultural e intelectual ocorridas, essas formas de aviso rarearam até se<br />
extinguirem por completo.
A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras<br />
instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo<br />
ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a<br />
máscara de folha-de–flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez<br />
aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um<br />
para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado.<br />
(...)<br />
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira<br />
grossa, com a haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao alto da<br />
cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos<br />
castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava<br />
um reincidente, e com pouco era pegado.<br />
(...)<br />
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse.<br />
Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a<br />
roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e quantia de<br />
gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: “gratificar-se-á<br />
generosamente”, - ou “receberá uma boa gratificação”. Muita vez o anúncio<br />
trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo,<br />
vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei<br />
contra quem o acoutasse (...). (Assis: 1996, 105-6)<br />
Esse corpo identificado não somente pela tez, contudo, pela sua historicidade,<br />
que em sua origem no desempenho das funções sociais tratava-se de um corpo-objeto,<br />
corpo-máquina, um corpo voltado para o trabalho na manutenção econômica do<br />
sistema.<br />
Conforme a colonização tornava-se significativa, as crenças ocupavam espaços<br />
nos convívios sociais. A crença distingue a vida prática da vida teórica e o saber da<br />
ilusão. A modernidade configura-se nas relações daqueles que acreditam que os outros<br />
acreditam em algo. Essas convicções na apreensão dos assentimentos das verdades da fé<br />
que um grupo confia que outro tenha, definiria o conceito de crença.<br />
O sociólogo Bruno Latour, em sua obra Reflexão sobre o culto moderno dos<br />
deuses fe(i)tiches, apresenta um diálogo imaginário entre os colonizadores portugueses<br />
e os africanos da Costa de Guiné, não como iconoclastas e nem iconófilos mas,<br />
apresentam-se como iconodúlios por prestarem culto a um algum tipo de ícone que é<br />
representativo para seus grupos sociais. Mesmo na negação do fetiche encontra-se a<br />
afirmação do que é feito, fabricado, tornado encantado envolvido na sua anima.<br />
Vocês fabricaram com suas próprias mãos os ídolos de pedra, de argila e de<br />
madeira que vocês reverenciam?, os guineenses responderam sem hesitar que
sim. Intimados a responder à segunda questão:” Esses ídolos de pedra, de<br />
argila e de madeira são verdadeiras divindades?, os negros responderam com<br />
a maior inocência que sim, claro, sem o que, eles não os teriam fabricado<br />
com suas próprias mãos! Os portugueses, escandalizados mas escrupulosos,<br />
não querendo condenar sem provas, oferecem uma última chance aos<br />
africanos: “ Vocês não podem dizer que fabricaram seus fetiches, e que estes<br />
são, ao mesmo tempo, verdadeiras divindades, vocês têm que escolher, ou<br />
bem um ou bem outro; a menos que, diriam indignados, vocês não tenham<br />
miolos, e que sejam insensíveis ao princípio de contradição como ao pecado<br />
da idolatria.” Silêncio embotado dos negros que, na falta de discernimento da<br />
contradição, provam, frente ao seu embaraço, quantos degraus os separam da<br />
plena e completa humanidade...Pressionados pelas questões, obstinam-se a<br />
repetir que fabricaram seus ídolos que, por conseqüência, os mesmos são<br />
verdadeiras divindades. Zombarias, escárnio, aversão dos portugueses frente<br />
a tanta má fé.”<br />
(...)<br />
“Quem fala no oráculo é o humano que articula ou o objeto-encantado? A<br />
divindade é real ou artificial? – “Os dois”, respondem os acusados, sem<br />
hesitar, incapazes que são de compreender a oposição.– “ É preciso que vocês<br />
escolham”, afirmam os conquistadores, sem menor hesitação. As duas raízes<br />
da palavra indicam bem a ambigüidade do objeto que fala, que é fabricado<br />
ou, para reunir em uma só expressão os dois sentidos, que faz falar.”<br />
(...)<br />
-“Cinzelados com <strong>arte</strong> por nossos ourives”, teriam respondido<br />
orgulhosamente. – “E por isso eles são sagrados?”, teriam então perguntado<br />
os negros. “Mas claro, benzidos solenemente na igreja Nossa Senhora dos<br />
Remédios, pelo arcebispo, na presença do rei”. –“Se vocês reconhecem<br />
então, ao mesmo tempo, a transformação do ouro e da prata no cadinho do<br />
ourives, e o caráter sagrado dos seus ícones, por que nos acusam de<br />
contradição, nós que não dizemos outra coisa? Para feitiço, feitiço e meio.” –<br />
“Sacrilégio! Ninguém pode confundir ídolos a serem destruídos com ícones a<br />
serem louvados”, teriam respondido os portugueses, indignados, uma<br />
segunda vez, com tanta imprudência.”(Latour: 2002, 15-8).<br />
Os cultos dos deuses africanos são colocados como culturas fetichistas em<br />
oposição a européia como anti-fetichista. O fetiche transforma o criador em criatura<br />
invertendo a origem da ação. Tanto um povo quanto outro fabricavam os seus objetos<br />
de adoração. Os europeus diferenciam-se por instituírem ídolos para outros e para si<br />
mesmos, destruindo-os e multiplicando-os em seus domínios pela disseminação dada<br />
como origem de sua ação de quem domina ou de quem é dominado.<br />
Os seres atuam como agentes sociais buscando transcendência em suas vidas. A<br />
religião ao mesmo tempo, explica os fenômenos como também os tornam obscuros.<br />
Marx define fetichismo e mercadoria como relações não autônomas entre os indivíduos,<br />
(...) assume a forma fantasmagórica de uma relação entre as coisas. Para<br />
encontrar uma analogia para este fenômeno, temos de ir buscá-la na região<br />
nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano têm o<br />
aspecto de figuras autônomas, dotadas de vida própria, que mantêm relações<br />
entre si e com os homens. Dá-se o mesmo com os produtos da mão humana
no mundo da mercadoria. É o que chamo por fetichismo, que adere aos<br />
produtos do trabalho, tão logo se apresentam como mercadorias, fetichismo<br />
inseparável deste modo de produção. (Marx apud Latour: 2002, 28).<br />
Na introdução do livro Os africanos no Brasil, Nina Rodrigues, faz uma<br />
abordagem cientificista e evolucionista sobre a inferioridade negra e o negro é visto<br />
como um problema para o país, algo a ser reparado e como solução a necessidade de se<br />
propor uma profilaxia social. Ainda na introdução é abordado o critério de inferioridade<br />
da raça negra, que ele vê como:<br />
(...) um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha<br />
desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas<br />
divisões ou secções.” (Rodrigues: 1977, 5). “Os negros africanos, ensina<br />
Hovelacque, são o que são; nem melhores, nem piores do que os brancos;<br />
pertencem apenas a uma outra fase do desenvolvimento intelectual ou moral.<br />
(Rodrigues: 1977, 5).<br />
O aspecto físico torna-se um elemento diferenciador das relações econômicas e<br />
sociais. Distinguindo dominador e dominado. Biologicamente o negro é definido com<br />
caracteres específicos: “pigmentação escura da pele, prognatismo, lábios espessos,<br />
nariz chato, cabelos encarapinhados (...).”(Ramos: 1979, 13).<br />
Como também de cultura ‘inferior’, religião pouco desenvolvida de um<br />
fetichismo rude, vida social em estado de barbárie, com práticas de antropofagia.<br />
Durante o século XIX os estudos baseados em doutrinas evolucionistas posicionavam o<br />
negro como indivíduos pertencentes a categorias de indivíduos inferiores. Isto se<br />
justificava, segundo Ramos, pela questão econômica, pois:<br />
(...) estariam nas etapas primitivas dos povos caçadores e pastores, poucos<br />
atingindo a fase de agricultores. A família pouco se teria aperfeiçoado, da<br />
promiscuidade primitiva ao matriarcado. Na religião, lavraria na África<br />
o“grosseiro” fetichismo, alguns povos atingindo a religião dos nature-gods, a<br />
idolatria e o xamanismo. Sociologicamente, constituiriam agregados que, da<br />
horda primitiva, apenas conseguiram um pequeno aperfeiçoamento em clãs,<br />
tribos e sociedades simples. Do ponto de vista psicológico, os africanos<br />
constituiriam os representantes mais típicos dos Naturvölker, de inteligência<br />
rudimentar e atraso cultural em conseqüência da sua incapacidade psíquica.<br />
(Ramos: 1979, 19-20).
O espírito científico brasileiro fundamentava-se no final do século XIX com<br />
teorias distantes de uma ciência experimental ou sociológica como a de Durkheim ou<br />
Weber baseando-se no pensamento evolucionista e darwinista.<br />
Rodrigues aliou a antropologia científica com a criminal, embasadas pelas<br />
teorias de Cesare Lombroso aproximando-as com suas pesquisas na área médico-legal,<br />
este acreditava que a inferioridade racial estava fora de qualquer dúvida científica, via a<br />
região tropical condenada pela possibilidade de se ter um país dividido entre um Sul<br />
branco e a degeneração do homem pelo processo de mestiçagem no Norte. Outros<br />
teóricos como Silvio Romero e Euclides da Cunha tratavam o mestiço como seres<br />
cheios de desvios morais justificados pela promiscuidade no período colonial que<br />
impediam estes de acompanhar um desenvolvimento progressivo. Essa dita decadência<br />
era corroborada por teóricos estrangeiros que discutiam o termo raça como caminho<br />
para a evolução de um potencial de civilidade de uma nação tais como Buckle, Kidd, Le<br />
Bon, Gobineau e Lapouge.<br />
As mudanças econômicas ocorridas pelo processo de abolição, o fluxo<br />
migratório europeu, o florescimento da industrialização e da urbanização culminaram<br />
nas tensões sociais, decorrentes das transformações políticas e econômicas causadas<br />
pela crise do modelo republicano, até então justificadas pela miscigenação. Os<br />
problemas sociais encontravam-se na etnia geneticamente dotada de pouca inteligência<br />
e de comportamento indolente, portanto, um mal a ser controlado para a sobrevivência<br />
da democracia na nova ordem vigente.<br />
Pautados por essa estrutura de pensamento a medida encontrada era o<br />
branqueamento da sociedade por meio da miscigenação controlada. Alguns teóricos<br />
como Silvio Romero, Euclides da Cunha, Graça Aranha, Nina Rodrigues, Oliveira
Viana apresentavam soluções para dissolução do que consideravam uma “mancha<br />
negra” para o sonho branco da elite dirigente.<br />
Algumas medidas foram tomadas para o processo de arianizar a sociedade, como<br />
o projeto de lei de nº 209 de 1921 que impedia a entrada no país de imigrantes de<br />
origem negra. Em 1923 o projeto passaria por algumas alterações no que se referia à<br />
interferência no branqueamento do brasileiro não modificando a essência de seu<br />
conteúdo. Durante os anos 30, as leis propostas continuavam indicando a busca de uma<br />
hegemonia branca pelo processo de mestiçagem positiva, como na Constituição de 1934<br />
e a Carta Constitucional de 1937. O Decreto-Lei n° 7967, de 1945, apresentava<br />
claramente o ensejo do projeto de formação de uma sociedade etnicamente branca<br />
estimulando a vinda para o país de grupos étnicos que não fossem negros.<br />
O mal-estar causado pela mestiçagem provocava a necessidade de expurgar o<br />
que era enfermidade nas populações que não poderiam ser transformadas e recuperadas<br />
da sua degeneração.<br />
O termo degeneração foi desenvolvido pelo jurista Cornelius de Pauw para<br />
definir espécies pouco complexas em sua constituição orgânica. Referia-se a sua<br />
concepção aos povos provenientes da América como de formação prematura, de<br />
debilidade corrompida e decaída.<br />
Para E. Renan, teórico do século XIX, os seres eram divididos em três raças,<br />
branca, negra e amarela com diversos níveis de desenvolução. Os que pertenciam aos<br />
grupos negros, amarelos e miscigenados eram considerados incivilizados reafirmando o<br />
que outros teóricos já diziam sobre a inferioridade de negros e mestiços ao<br />
estabelecerem uma desigualdade hierárquica entre outras raças.<br />
Georges Cuvier definiu no início do século XIX o termo raça como a diferença<br />
biológica nos caracteres físicos comuns entre os seres.
A teoria das raças possuía um discurso pautado no determinismo que definia que<br />
o progresso de uma nação era condicionado ao meio geográfico e a divisão entre povos<br />
por seus caracteres físicos e morais indicando um divisor cultural. Comparavam-se os<br />
cruzamentos entre a raça humana como às acontecidas entre o cavalo e o asno, por<br />
exemplo; a palavra mulato, define o cruzamento entre esses animais, sendo considerado<br />
um fim em si mesmo. As raças constituiriam fenômenos finais, imutáveis, qualquer<br />
forma de caldeamento comprometeria o processo evolutivo das nações. Ao arbítrio<br />
contrapunha-se a uma visão biológica do sujeito que o localizava enquanto ser coisa e,<br />
portanto, alienado, um produto dos atributos e especificidades das raças a que pertencia.<br />
Até meados do século XIX detinha-se uma visão monogenista, no qual, o<br />
homem era originário de uma fonte única, suas virtudes e imperfeições nas<br />
diferenciações dos indivíduos garantir-se-iam mesmo com um desenvolvimento<br />
moroso, contudo, uniforme. A partir da segunda metade, contestava-se o dogma<br />
monogenista da Igreja e com os estudos da ciência biológica na interpretação do<br />
comportamento humano, sustentadas por leis biológicas e naturais chegava-se então, na<br />
poligenia. Simultaneamente, a frenologia e antropometria que interpretavam as<br />
capacidades físicas, morais e intelectuais tendo como referencial o tamanho e a<br />
proporção cerebral, alimentavam a transformação de pensamentos. A craniologia<br />
técnica distinguia as variedades do cérebro humano pela medição do índice cefálico.<br />
Podia-se a partir disso, observar a natureza do comportamento daqueles que cometiam<br />
crimes. A antropologia criminal determinava e enquadrava os seres nesses modelos para<br />
detectar os desvios que já eram anteriores ao nascimento, trazidos nos genes dominantes<br />
e impossíveis de serem alterados. Como os casos de embriaguez, alienação, epilepsia,<br />
violência ou amoralidade como qualidades das imperfeições humanas.
No artigo publicado na Gazeta Medica da Bahia, o prof. S. Boccanera Neto,<br />
mencionava o estigma do criminoso, que estava no sujeito e não os seus atos. A ação só<br />
comprovaria a sua propensão ao delito que era fruto de suas perversões morais e<br />
psíquicas :<br />
Em these a criminalidade resulta da innormalidade physica subita, ou<br />
persistente por degenescencias, degradações parciais ou gerais adquiridas de<br />
forma hereditaria e por hibridação... Todo criminoso apresenta sinaes<br />
lombrosianos communs, ou especificos a hora do crimme, quando se lhe<br />
acommete um pannus de visão interior, um estado de obscurecimento (GMB:<br />
1927, 215-6 apud SCHWARCZ: 2000, 210)<br />
A capacidade era vista resultante da hereditariedade e não do processo<br />
educativo. O ideal político de reorganização racial era a intervenção na reprodução dos<br />
grupos subjugados como inferiores. A eugenia, termo cunhado pelo cientista britânico<br />
Francis Galton em 1883, que publicou em 1869 a obra Hereditary genius, um conceito<br />
ainda embrionário, definia–se como a criação de uma sociedade saudável e <strong>possível</strong> de<br />
se reverter da degeneração mestiça dos povos.<br />
-A mestiçagem deve ser até certo ponto encarada psycolgicamente como<br />
factor de degeneração. Entre nós, é constituída de elementos de várias<br />
procedências portadores de caracteres etnicos diversos e condições especiaes<br />
que sob as influências mesológicas devem trazer uma perturbação innevitavel<br />
na organização do equilibrio inobstavel. A mestiçagem extremada aqui<br />
encontrada... ou dificulta a unificação dos typos, ora perturbando traços<br />
esssenciaes, ora fazendo reviver nas populações caracteres atavicos de<br />
indivíduos mergulhados na noite dos tempos. É preciso mudar as raças...<br />
(GMB: 1923, 256 apud SCHWARCZ: 2000, 216)<br />
A solução darwinista encontrada para sanar esse estado de “barbárie” estava na<br />
seleção natural dos indivíduos na tese de branqueamento, formaria num tempo distante,<br />
características consideradas ideais: indivíduos brancos culturalmente e fisicamente.<br />
A eugenia vigorava como tentativa de estabelecer o princípio de branqueamento,<br />
adotando escala de valores para determinar níveis de superioridade, branco, mestiço e<br />
negro. Definiram por meio de “pesquisas” a incidência de doenças mentais de origem<br />
tóxico-infecciosa, sífilis e alcoolismo, na população de origem negra. A Comissão<br />
Central Brasileira de Eugenia, fundada em 1931 por Renato Kehl, e a Liga Brasileira de
Higiene Mental, seguidos por uma visão organicista, aplicava aos fatos sociais as leis e<br />
as teorias biológicas, sugestionando o controle do Estado nos processos reprodutores<br />
desinteressantes, regulamentação das imigrações e esterilização dos doentes mentais. O<br />
negro possuía uma imagem denegrida na caracterização de uma inferioridade biológica<br />
racial, isso, auxiliava para explicar as condições precárias de existência de uma maioria<br />
de trabalhadores constituída por ex-escravos negros e mestiços marginalizados. Era um<br />
modo de negar os problemas sociais, justificadas por um determinismo biológico,<br />
desconsiderando as desigualdades sociais e econômicas.<br />
<strong>Uma</strong> concepção “científica“ apoiada pelo governo Vargas numa aproximação<br />
das teorias nazistas de aperfeiçoamento de um tipo étnico ideal. Nos seus discursos<br />
Getúlio Vargas aludia a eugenia e afirmação de ideário ariano conseguido pela educação<br />
física, moral, cívica, industrial e agrícola.<br />
As teorias acerca das inferioridades raciais e leis que incentivam a imigração<br />
européia como modo de idealizar e conceber uma sociedade branca e sem desvios<br />
morais e culturais coincide com a realização dos Congressos Afro-Brasileiros (Recife,<br />
1934 e o de Salvador, 1937). Enquanto o negro, considerado inferior biologicamente,<br />
era visto como causador de mazelas sociais pelas teorias de falso cunho cientificista,<br />
haviam alguns teóricos como Arthur Ramos, Mário de Andrade, Édison Carneiro e<br />
Gilberto Freyre, que pesquisavam a contribuição e a valorização do negro para a<br />
formação da cultura nacional possibilitando o surgimento de um olhar até então<br />
inexistente para a produção material de origem africana.<br />
Corpo e teatralidade: folia de reis, congada e candomblé<br />
O contingente cultural trazido para o Brasil serviu como uma das bases para<br />
fundamentação de uma identidade nacional em construção contínua. Tem-se como base
a cultura oficial de tronco européia justaposta às relacionais que se convergem e se<br />
transformam. Como é o caso da Folia de Reis, de origem portuguesa, que acabou<br />
ressignificada pelo encontro dos embates culturais, a Congada estabelecida como<br />
contraponto para delinear uma poética negra trazida pelo material bantu no<br />
enquadramento das práticas culturais africanas num folclore artificial criado pela Igreja;<br />
e o candomblé como justaposição de valores religiosos negros na figura dos orixás na<br />
transposição e correspondência para os santos católicos elaborados por povos<br />
sudaneses.<br />
Sergio Ferreti, em Repensando o Sincretismo (1995), citou os diferentes sentidos<br />
que esse vocábulo pode indicar, aproximando-se do conceito de hibridismo cultural. As<br />
variantes acerca do significado de sincretismo foram enumerados do 0 ao 3 estruturam-<br />
se da seguinte maneira:<br />
0 – Separação, não - sincretismo (hipotético);<br />
1 – mistura, junção, ou fusão;<br />
2 – paralelismo ou justaposição;<br />
3 – convergência ou adaptação.<br />
Podemos dizer que existe convergência entre idéias africanas e de outras<br />
religiões, sobre a concepção de Deus ou sobre o conceito de reencarnação;<br />
que existe paralelismo nas relações entre orixás e santos católicos; que existe<br />
mistura na observação de certos rituais pelo povo - de – santo, como o<br />
batismo e a missa de sétimo dia, e que existe separação em rituais específicos<br />
de terreiros, como no tambor de choro ou axexê, no arrambam ou no<br />
lorogum, que são diferentes dos rituais das outras religiões. (Ferreti,<br />
1995:30).<br />
O historiador econômico Wilson do Nascimento Barbosa na obra Cultura negra<br />
e dominação (2002) referiu-se ao conceito de uniculturalismo como fusão de uma<br />
cultura dominante e sua ideologia social subjugando as outras existentes. O seu traço<br />
mais marcante é o sincretismo negativo que estabelece uma política cultural de<br />
dominação. Nega-se uma base étnica como também as diferenças entre os povos. Outro<br />
fator para a sujeição do outro é a hiperespecialização do trabalho em que um indivíduo<br />
subordina-se materialmente para um sistema econômico e, como conseqüência, o seu<br />
corpo social é aniquilado e desfigurado do seu corpo físico.
A cultura possui uma pertença étnica que não pode ser dissociada de uma idéia<br />
de uma etnocultura. Seu aspecto multifacetado permite a definição de um pluralismo<br />
étnico-cultural. O exercício de domínio da cultura oficial impede a afirmação da<br />
pluriétnicidade como meio para suster o seu discurso contendo os princípios coerentes<br />
de classe para sua existência.<br />
As religiões e cultos bantus acreditavam num Deus supremo, criador do<br />
universo, podendo assumir diferentes nomes de acordo com a região, Nzaambi, marimo,<br />
Reza e Molungu. Os infindáveis deuses e espíritos eram propensos a maldade e a<br />
bondade. Suas representações com pequenos pedaços de madeira ou marfim esculpidos,<br />
denominados iteques, eram trazidos pendurados no pescoço pelos feiticeiros ou<br />
quimbandas. Esses grãos-mestres recebiam nomes derivados de quimbandas como<br />
umbanda, embanda e banda que originam-se da palavra mbanda, referia-se tanto ao<br />
sacerdote, quanto ao lugar ou processo ritual. Os ancestrais, a família e a linhagem<br />
permitiam o entendimento do significado existencial da vida social e como o poder era<br />
manifestado e exercido. A crença pautava-se na “transmigração das almas, o<br />
totemismo, originaram práticas fetichistas especiais, muito aproximadas das do atual<br />
espiritismo e, como tais, passaram ao Brasil.”(Ramos: 1979, 229)<br />
Para exercer o domínio sobre o negro era necessário destituí-lo do referencial de<br />
grupo social e cultural colocando-o junto de outros de origens étnicas diferentes,<br />
impossibilitando a manutenção do entrelaçamento dessas sociedades tradicionais.<br />
Tornava-se interessante instigar certa rivalidade entre nações para manter a segurança<br />
dos Senhores, que sentiam receio em uma identificação desses povos no sofrimento<br />
causado pelo trabalho servil e assim viessem a se rebelar; pensando-se principalmente<br />
em regiões em que a quantidade de negros era superior a de brancos. Para Bastide, essas
ações provocavam dois movimentos antagônicos simultâneos: um o de destribalização e<br />
outro a manutenção das rivalidades entre os grupos.<br />
A sustentação das práticas culturais trazidas pelos africanos de certo modo<br />
tinham que ser tolhidas para que como corpo-instrumento, pudesse render em suas<br />
atividades econômicas, tendo poucas brechas para exercer suas danças, isso ocorria nos<br />
raros momentos de descanso. O que permitiu que o batuque, o jongo, o samba e o lundu<br />
persistissem até na contemporaneidade.<br />
A relação entre a Igreja e os senhores era de embate pela discordância de<br />
interesses, enquanto o primeiro via a dança como um apelo sexual favorecendo a<br />
procriação e a libertinagem ferindo a moralidade cristã, já para o outro, era um caminho<br />
para se aumentar a mão-de-obra sem ter necessariamente gastos. Então, a partir daí,<br />
distingue-se o batuque (dança religiosa pagã e a dança sensual) da congada que eram as<br />
danças cristianizadas como o moçambique, o maracatu, os cacumbis, as tâieras. Nessas<br />
práticas ocorreu o entrecruzamento das matrizes pela sobreposição cultural e a releitura<br />
de determinados elementos impondo outras funções que não a de origem.<br />
Esse tipo de diálogo não consentido faz com que se delineie a cultura como<br />
“ligada, segundo suas formas, a territórios determinados, os círculos culturais; as<br />
formas se transmudam na transplantação e originam novas formas, ao se<br />
emparelharem.” (Ramos: 1979, 22-3)<br />
O transplante dessas formas pela criação seria o que Bastide denominaria de<br />
folclore artificial pelo confronto de um calendário oficial de celebrações cristãs,<br />
apresentadas na manifestação da folia, pertencente a uma matriz européia convivendo<br />
com outras culturas relacionais configuradas em estruturas pouco mutáveis,<br />
aproximando-se da cultura bantu pela entronização de monarcas, algo também<br />
recorrente na congada.
Carlos Julião<br />
Coroação de um rei negro nos festejos de Reis c.1776<br />
Desenho aquarelado.<br />
Fundação Biblioteca Nacional<br />
Os bantus, definem-se pelo conjunto de indivíduos aproximados pelo grupo<br />
lingüístico. São divididos em três grupos: Os Orientais que se localizam ao norte de<br />
Uganda, na colônia de Quênia, território de Tanganica, Rodésia setentrional, a<br />
Niassalândia e o norte de Zambeze. O segundo grupo são os meridionais, ao sul de<br />
Zambeze e do Cunene, ocupando uma extensa região que contém a Rodésia meridional<br />
e o último seria os ocidentais que se encontram ao norte de Cunene, do Atlântico à<br />
Rodésia do noroeste, indo até ao Congo francês e sul de Camarões.<br />
O catolicismo promoveu a substituição de formas culturais tradicionais por<br />
estruturas que reafirmavam os valores morais e religiosos evocando a trajetória<br />
espiritual de Cristo. Iniciando os seus domínios aos povos nativos desta terra e em<br />
função das alterações e interesses econômicos vigentes para o processo de<br />
evangelização do africano escravizado.
Santos de nó de pinho<br />
Século XIX<br />
Nó de pinho<br />
Coleção particular<br />
Catálogo Negro de corpo e alma, 2000<br />
A Folia refere-se tanto a uma dança de caráter popular originária da península<br />
ibérica no século XVI quanto a uma forma musical barroca para canções e danças do<br />
século XVII. Em Portugal, especificamente, aparece como manifestação rítmica<br />
considerada de terreiro do mesmo modo como a mourisca, a chacota e entre outras do<br />
mesmo período. Os participantes cantavam e faziam volteios de modo efusivo quase<br />
como que estivessem enlouquecidos e tocavam com gaitas e pandeiros acordes com<br />
guizos nos <strong>arte</strong>lhos.<br />
Em seu princípio, era composta por uma seqüência de canto em uníssono e<br />
bailado com passos que apresentavam certa destreza de movimentos, acompanhados de<br />
sons percussivos e de inúmeros guizos fixados em diferentes p<strong>arte</strong>s do vestuário.<br />
Aproximavam-se da Folia de Reis pelo uso de máscaras e castanholas.
A Folia adquiriu um aspecto devocional no festejo do ciclo do Divino Espírito<br />
Santo que ocorria entre as datas da Ressurreição e de Pentecostes. Diferenciava da<br />
<strong>brasileira</strong> por não ser precatória e tinha a função de pedir proteção para afugentar todos<br />
os males que poderiam assolar os campos transitando entre o profano e o sagrado.<br />
Os participantes vestiam-se de rei, de pajem, de alferes ou de porta-bandeira,<br />
tinham ainda, dois mordomos e seis fidalgos que percorriam as ruas com uma bandeira<br />
representando o Espírito Santo manifesto pela personificação da Pomba pintada ou<br />
desenhada que era carregada pelo alferes. O rei empunhava uma vara enfeitada com<br />
fitas e flores artificiais, o pajem trazia uma coroa de folhas-de-flandres, um dos fidalgos<br />
carregava algum instrumento a ser utilizado no trajeto e os mordomos traziam as<br />
lanternas que seriam depositadas ao final em uma igreja da localidade. Os fidalgos<br />
dividiam-se em dois grupos distintos de vozes: a fala sonora ou segundo contra e o<br />
baixo-falsete ou tipi, cantando os versos tradicionais e improvisados.<br />
Encontra-se registro desde o século XVI, como trecho escrito por Gil Vicente:<br />
Triunfo do inverno<br />
Em Portugal vi eu já<br />
Em cada casa pandeiro,<br />
E gaita em cada palheiro;<br />
E de vinte anos a cá<br />
Não há ni gaita nem gaiteiro.<br />
A cada porta hum terreiro,<br />
Cada casa atabaqueiro;<br />
E agora Jeremias<br />
He nosso tamborileiro. ( Enciclopédia luso-<strong>brasileira</strong> de cultura: 1963,<br />
1152-1153)<br />
O ciclo natalino tem sua celebração datada desde o século XII a partir da<br />
montagem do primeiro presépio e representado na Catedral de Toledo o Auto dos Reis<br />
Magos. Posteriormente, foi inserido pelos conquistadores na América no século XVI,<br />
adquirindo certas peculiaridades pela junção de traços pastoris, bailes pastoris, ternos e<br />
ranchos de reis localizando-se geograficamente do Sudeste ao Brasil Central.
No Brasil foram atualizadas e transformadas nas Folias do Divino que<br />
aconteciam no período diurno e a Folia de Reis como um acontecimento noturno. Os<br />
trajes em que se apresentam referem-se aos papéis desempenhados dentro do grupo,<br />
como o rei a rememoração dos reis magos vindos do Oriente para este tempo atualizado.<br />
Folia de Reis, 2006<br />
Bairro Santa Cruz<br />
Foto de Janaina Barros<br />
São Luís de Paraitinga, São Paulo<br />
O mestre resguarda as tradições no domínio dos instrumentos, dos versos e a<br />
coreografia executada pelo palhaço. O contra-mestre auxilia o mestre. O palhaço<br />
aparece como o brincante que atrela o sagrado e o profano, público e foliões. Na foto<br />
acima, o palhaço encontra-se de costas para o presépio, como modo de desvincular e<br />
distanciar a sua imagem do caráter sagrado representado pela lapinha, reafirmando a sua<br />
ação cênica ao lado de outros componentes, o alferes, os grupos vocais e de
instrumentistas. Os grupos vocais são constituídos do seguinte modo: o primeiro o<br />
contralto, o segundo o tipi e o contra-tipi e por último a pala acompanhados dos<br />
instrumentos que partilham desse acontecimento na evocação do nascimento de Cristo.<br />
Trata-se da personificação dos três Reis Magos, que são guiados por uma estrela<br />
no céu que os direcionam para o local de nascimento do Menino Jesus. O rei Herodes<br />
teria os desviado do caminho para a direção oposta, para desnorteá-los. É o relato desse<br />
acontecimento revivido pelos foliões. Ocorre a principio na p<strong>arte</strong> externa da casa,<br />
passando por diversos momentos. São apresentados inicialmente os versos que narram o<br />
nascimento de Jesus e a busca dos reis em encontrá-lo, dirigidos aos donos da casa, para<br />
que acordem e recebam os foliões.<br />
O presépio passa a ter uma grande importância nessa manifestação, pois<br />
representa o caráter sagrado desse precatório, o religar com o tempo mítico e primordial<br />
no presente imediato.<br />
Os versos antes enquadrados dentro de uma estrutura imutável passam a ter<br />
variações e são construídos diretamente para os donos da casa.<br />
Cumprida a visita ao altar e a família ocorre então o canto de acolhida para os<br />
Reis caminhantes.<br />
Pede-se contribuição para a festa que encerra a Folia de Reis do presente ano,<br />
iniciando a do próximo ano com a escolha dos novos Reis e a passagem das coroas que<br />
ocorre costumeiramente no dia 20 de janeiro. O percurso é finalizado com o canto de<br />
despedida que é também um convite para os moradores acompanharem a folia nas casas<br />
vizinhas.<br />
Na passagem da coroa representa a transferência de autoridade em que o rei<br />
reafirma o seu poder pela realização da festa e o seu desprender pela entrega da coroa<br />
para outro membro da comunidade que dará prosseguimento a tradição.
(...) fundamento do poder simbólico como poder que se cria, se acumula e se<br />
perpetua através da comunicação, da troca simbólica. Porque, como tal, ela<br />
introduz na ordem do conhecimento e do reconhecimento (o que implica que<br />
ela só pode se realizar entre agentes capazes de se comunicar, de se<br />
compreender, ou seja, dotados dos mesmos esquemas cognitivos, e dispostos<br />
a comunicar-se, isto é, a reconhecer-se mutuamente como interlocutores<br />
legítimos, iguais em honra, a aceitar a interlocução, a estar in speaking terms)<br />
a comunicação que converte as relações de força bruta, sempre incertas e<br />
suscetíveis de serem suspendidas, em relações duráveis de poder simbólico<br />
pelas quais se é sujeitado ou às quais se sente sujeitados; (Bourdieu: 1996,<br />
14)<br />
O primeiro rei é o responsável pela festa que assume o compromisso e<br />
providencia a sua realização. Esta função é assumida a cada ano por um folião diferente<br />
sendo necessário para reassumir a espera de sete anos.<br />
Na memória coletiva o passado é permanentemente reconstituído e vivificado<br />
enquanto é re-significado. A memória estabelece continuidade entre passado e presente,<br />
restabelecendo a unidade original de tudo aquilo que no processo histórico do grupo<br />
representou quebra e ruptura.<br />
A relação com divino apresenta-se na idéia de dom que permite a autoridade e<br />
confere o reconhecimento pelo grupo de sua crença que se expressa naquele que<br />
concentra as tradições e que a dissemina nas trocas de experiência na atividade<br />
religiosa.<br />
(...) o dom como ato generoso só é <strong>possível</strong> para agentes sociais que<br />
adquiriram, em universos onde são esperadas, reconhecidas e recompensadas,<br />
disposições generosas adaptadas às estruturas objetivas de uma economia<br />
capaz de garantir-lhes recompensa (não apenas sob a forma de contradons) e<br />
reconhecimento, isto é, se cabe uma expressão na aparência tão redutora, um<br />
mercado. Essa economia dos bens simbólicos se apresenta, como toda<br />
economia, sob a forma de um sistema de probabilidades objetivas de lucro<br />
(positivo ou negativo) ou, para falar como Marcel Mauss, de um conjunto de<br />
“expectativas coletivas” com as quais se pode e se deve contar. Em<br />
semelhante universo, quem dá sabe que seu ato generoso tem todas as<br />
chances de ser reconhecido como tal (em vez de parecer uma ingenuidade ou<br />
um absurdo) e de obter o reconhecimento (sob forma de contradom ou de<br />
gratidão) de quem foi beneficiado, sobretudo porque todos os outros agentes<br />
que participam desse mundo e que são moldados por essa necessidade<br />
também esperam que assim seja. (Bordieu:1996, 9)<br />
A festa remete ao tempo de origem da primeira folia do mundo, pós-dilúvio,<br />
portanto, universal. Define-se então, o tempo do Pai, considerado antigo dialogando<br />
com o tempo do Filho que compreende o que seria possivelmente a existência atual. São
os mitos de renovação, os mitos de eterno-retorno, os mitos de entronização do rei como<br />
também os mitos do novo ano.<br />
O fenômeno religioso é visto como hierofania, que se refere ao ato de<br />
manifestação do sagrado. O sagrado aparece como potência de ordem diversa da<br />
natural, ocupando lugar na ordem ontológica, a potência não é impessoal, sua fonte é<br />
uma realidade absoluta, sagrada que transcende este mundo tornando-o real.<br />
O símbolo é a linguagem da hierofania porque permite entrar em contato com o<br />
sagrado. Por ele o mundo fala e revela modalidades do real que por si mesmas não são<br />
visíveis.<br />
Do mesmo modo que a experiência do mito é também a do sagrado porque<br />
coloca o homem religioso em contato com o sobrenatural tornando contemporâneo o<br />
acontecimento primordial. Na descrição de um acontecimento busca-se a compreensão<br />
da coletividade vivenciada no singular por meio da experiência religiosa como<br />
articulação da memória.<br />
A evocação dos foliões estabelece a religiosidade manifesta pelo grupo fundindo<br />
o tempo primordial e o agora com o terreno e o extraterreno em contraponto com o<br />
palhaço que é o elemento desestabilizador do acontecimento, o trickster 1 , uma espécie<br />
de brincante comparado ao Exu dos povos nagôs. Sua função e simbolismo mudam de<br />
acordo com a região em que acontece o festejo. Ora representando Satanás, por sua<br />
veste vermelha, o uso de chapéu cônico e máscara e está sempre acompanhado de seu<br />
inseparável relho. Não entra onde existe presépio, imagens de santos ou cruzes. Ora<br />
como os representantes de Herodes que seguiram os Reis Magos e acabaram<br />
1 Trickster é um personagem dominado por seus apetites; tem a mentalidade de uma criança. Sem outro propósito<br />
senão o de satisfazer suas necessidades mais elementares, é cruel, é cínico e insensível (...)<br />
Este personagem que inicialmente aparece sob a forma de um animal, passa de uma proeza maléfica a outra. Mas ao<br />
mesmo tempo começa a transformar-se e no final de sua carreira de trapaças vai adquirindo a aparência física de um<br />
homem adulto. (Jung: 112, 1996)
convertendo-se ao cristianismo. Assumem diferentes nomes: “guardas de companhia”,<br />
Morongo ou Mocorongo, Sebastião (Bastião).<br />
Palhaço<br />
Folia de Reis<br />
Foto de Janaina Barros<br />
Exposição Que Chita Bacana, 2006<br />
Sesc Belenzinho<br />
O palhaço confere ao fenômeno o aspecto cênico pela sua forma de apresentação<br />
gestual de passos demarcados e codificados, interligando foliões e público, inexistindo a<br />
quarta parede, onde todos são pertencentes a um mesmo sistema. São seres atuantes<br />
compartilhando a mesma existência. A Folia, no seu sentido essencialmente religioso,<br />
traz um homem coletivizado e impregnado de sagrado contrariando o preceito de um ser<br />
fragmentado e desmembrado de sua existência física e espiritual.<br />
Na Congada consagravam-se os Reis do Congo no interior da igreja. Atuavam<br />
como mediadores entre os brancos como também velavam pelos valores africanos, isso
se apresentava nas cenas de combates entre evangelizados e maometanos. Desta forma,<br />
o inimigo era sempre os que, assim como os heróis, pertenciam a uma mesma situação<br />
social de se estar posto à margem e mantinha-se o controle de possíveis revoltas pela<br />
sua institucionalização promovida pela igreja.<br />
Para vigorar uma dada cultura é necessário organizar-se coletivamente, neste<br />
caso, as manifestações de influência católica pautadas no diálogo com outras matrizes<br />
étnicas atreladas as confrarias, expurgadas do espaço interno da Igreja, deslocando-se<br />
para o espaço externo, mantiveram-se como modo de resistência na perpetuação e a<br />
evocação das tradições nas relações de hierofania.<br />
Essas corporações funcionavam nas festividades com esquemas hierárquicos,<br />
(...) que se iniciam com as confrarias dos pretos para terminar com o desfile<br />
dos notáveis (os “homens bons”). Os três folclores- índio, negro, branco-não<br />
se confundem, nem mesmo quando patrocinados e controlados pelo clero<br />
(...).O Natal dos brancos constava da missa da meia-noite, da feitura do<br />
presépio que será queimado ao fim das festas, do combate dos dois grupos de<br />
pastores que se defrontam nas cantigas, alternativamente e se diferenciam<br />
pela cor de suas fitas. O Natal dos negros constava, além das congadas, do<br />
coroamento do rei e da rainha dos Congos; do desfile dos Moçambiques; do<br />
trio dos reis Magos que se dirigem em peregrinação a Belém, mas não sem<br />
pedir no decurso da jornada dinheiro ou mantimento aos brancos para melhor<br />
celebrar suas festas; dos ranchos acompanhados de animais de papelão que<br />
são talvez reminiscências de um totemismo negro (burro, boi, pássaros,<br />
bichos diversos); dos cacumbis etc. Somente depois o grupo dos negros<br />
invadiu o folclore dos brancos, prestes a desaparecer e as Pastorais de hoje já<br />
não são representadas senão por mulatos e por homens de cor.”(Bastide:<br />
1971, 32-3)<br />
Incorporada pelo sistema vigente, como controle dos africanos e descendentes,<br />
foi dada à coroação de reis negros um novo significado pela reterritorialização das<br />
formas ancestrais de organização social e ritual. Os santos católicos de devoção negra<br />
apareciam nos estand<strong>arte</strong>s, como a Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa<br />
Ifigênia, São Baltasar e Nossa Senhora das Mercês manifestas no auto popular. A dança<br />
e a música eram os destaques da festividade pelo seu caráter sagrado, constituindo a sua<br />
força vital, que proporcionava a unidade do grupo. Os tambores resgatavam a<br />
lembrança, a memória e a história vivificada do africano. Traduzidas por narrativas que
posicionavam os participantes como signos de conhecimento e agentes de<br />
transformações.<br />
Congada<br />
Atibaia, São Paulo c.1950-1960<br />
Fotografia em preto e branco<br />
24,1 x 18,2 cm<br />
Museu do Folclore Rossini Tavares de Lima<br />
Catálogo negro de corpo e alma<br />
A lembrança mantém os conteúdos de ordem tradicional africana e os ajustes<br />
culturais em território brasileiro. A justaposição dos ícones católicos sobre a cosmologia<br />
dos orixás ressignifica o modo como a hierofania se manifesta.<br />
Segundo Câmara Cascudo, na obra Literatura Oral no Brasil (1984), a Congada<br />
durante o século XIX e XX espalhou-se por:<br />
(...) todo nordeste, e no meio norte, Alagoas, Sergipe, Bahia, São Paulo,<br />
Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, com modificações locais, no sentido da<br />
música, dos bailados e do próprio enredo. Há, com ampla documentação,<br />
dois grandes motivos sociais para essas danças que são, extensão e<br />
articulamento cênico, autos: a) - coroamento dos Reis de Congo, honorários,<br />
cerimônia nas igrejas, cortejo, visitas protocolares às pessoas importantes, b)<br />
– sincretismo de danças guerreiras africanas, reminiscências históricas, mais<br />
vivas nas regiões de onde os escravos bantus foram arrancados, Congo,<br />
Angola, fundidas, num só ato recordador, tornado possivelmente “nacional”<br />
mesmo para a escravaria de outras raças e nações.(Cascudo: 1984, 417)
Os festejos reatualizam os valores culturais bantus representadas pela força dos<br />
ancestrais, da família e da linhagem que dão significados a vida social e ao exercício de<br />
poder. O presente e o passado, o indivíduo e os seus ancestrais são movimentos coesos<br />
partilhados de uma mesma existência em comunidade no que o gestual configura a<br />
sacralidade da vida.<br />
A religião africana nagô é iniciática de caráter permanente e de instantes<br />
sucessivos. Elemento comum aos povos bantus pela presença dos ancestrais<br />
pertencentes à linhagem, diferindo o processo de religar dos sudaneses por seres<br />
divinizados, os orixás, forças cósmicas associadas à natureza. O homem compartilha e<br />
esboça a sua identidade enquanto grupo.<br />
A região sudanesa abrange do norte ao sul da África: Senegal, Gâmbia, Guiné,<br />
Serra Leoa, Libéria, Costa do Marfim, Costa do Ouro, Daomé e Nigéria. A<br />
diferenciação dos grupos dá-se sobre o aspecto lingüístico, eles são denominados de<br />
Tshi, Ewe e Yoruba. Concentraram-se na Bahia e receberam a denominação de nagôs.<br />
Os cultos praticados nessa região aproximam-se da religião dos orixás da Nigéria. A<br />
divindade suprema é Olorun, no qual os cultos são intermediados pelos orixás. Obatalá<br />
ou Oxalá, o maior de todos, o deus do trovão Xangô, o desestabilizador e mensageiro<br />
Exu, deus das guerras e das lutas Ogum, as divindades das águas Oxum, Oxumaré,<br />
Yemanjá, Yansan, Anamburucú ou Nanã, o da caça Oxóssi, o orixá da varíola, Irôco e<br />
Ifá dos cultos fitolátricos e os gêmeos, os Ibejis.
José Adário dos Santos<br />
instrumentos de uso litúrgico no candomblé<br />
Catálogo Os herdeiros da noite: fragmentos do imaginário negro, 1994<br />
O culto de origem nagô realiza-se nos terreiros com os santos em altares<br />
chamados de pegis. Candomblé refere-se à celebração das festas religiosas adquirindo<br />
outros nomes de acordo com a região, como catimbós e xangôs no nordeste e macumba<br />
no Rio de Janeiro. Os sacerdotes tanto na Bahia quanto na África são denominados<br />
babalaôs, babás ou babaloxás no Rio de Janeiro e no nordeste babalorixás ou pais de<br />
santo. O grão-sacerdote baiano é ainda chamado de pegi-gan. As mulheres<br />
desempenham um papel importante nas funções religiosas e são denominadas mães de<br />
santo ou yalorixás:<br />
“É no solo brasileiro que frutificará o Candomblé, a terra-mãe que, por sua vez,<br />
possui os seus significados ligados ao feminino, essa expressão religiosa, ao
epresentá-la, ganha todas as suas significações. É nesse sentido que a grande<br />
sacerdotisa do candomblé é chamada de mãe de santo.” ( Bernardo: 2005, 9)<br />
O babalaô tem como função preparar o ‘santo’ auxiliado pelo achôugun , espécie<br />
de sacerdote assistente, para a lavagem, o sacrifício de animais para cada orixá e o seu<br />
alimento. Após a preparação é levado para seu pegi localizado na casa de terreiro.<br />
Os filhos de santo são pessoas dedicadas ao seu culto, normalmente mulheres,<br />
que no período de iniciação são denominadas de yauôs. O rito de iniciação passa por um<br />
período de reclusão no terreiro, abstinência sexual e eliminação de determinados<br />
alimentos do seu cotidiano podendo desse modo, dedicar-se ao seu orixá.<br />
Iaôs<br />
Hélio de Oliveira<br />
Xilogravura, 1962<br />
55 x 40 cm<br />
Coleção: Museu de Arte Moderna da Bahia
Os orixás eram deuses que acolheram de Olodumare, o Ser Supremo, a tarefa de<br />
criar e governar todos os seres e as coisas, cada qual, tornando-se responsável por<br />
alguns aspectos da natureza e das relações da vida entre os seres em seu grupo social. O<br />
panteão iorubano na América possui uma vigésima de orixás celebrados. Na África<br />
oferecem-se cultos aos orixás de acordo com determinadas regiões ou cidades que estão<br />
associadas. Ora outros são esquecidos, ora uns surgem possibilitando novas celebrações.<br />
São cultuados de acordo com diferentes invocações denominadas qualidades,<br />
como a Yemanjá representada jovem, Ogunté, em contraposição a uma configurada<br />
idosa e maternal, Yemanjá Sabá, um orixá torna-se vários, com suas diversidades de<br />
devoções, com um repertório de ritos, cantos, danças, ornamentos, cores e gostos<br />
alimentares. Esse sentido encontra-se presentificado nos mitos.<br />
Exu conhecido como Legba, Bará ou Eleguá está sempre presente, pois tem o<br />
papel de interligar os humanos e os deuses, é o mensageiro, permite o movimento,<br />
mudança ou reprodução, transações comerciais ou fertilidade. Interfere nos meios sócio-<br />
econômicos nas realizações cotidianas. Os missionários no seu primeiro contato com os<br />
africanos o identificaram com o Diabo perpetuando essa visão até a atualidade.<br />
A magia imitativa e simpática, referida por Ramos, trata do ebó ou despacho que<br />
consiste numa vasilha de barro com algum animal sacrificado, pipocas, acaçás, obi,<br />
entre outros, embebido por azeite de dendê. E ainda como cita Ramos:<br />
O ebó – já o descrevi - tem diversas finalidades. A primeira é o despacho<br />
indispensável de entidades malfazejas, por exemplo, Exu, no início de<br />
qualquer cerimônia, religiosa ou mágica. Por isso, o ebó deve ser depositado<br />
nas encruzilhadas, pois é o lugar preferido do “homem das encruzilhadas” e<br />
seus companheiros. Mas, a finalidade freqüente é o malefício a determinada<br />
pessoa; por isso o ebó deve ser colocado no lugar por onde transite a pessoa<br />
visada, ou na porta da residência desta. (Ramos: 1979, 193)<br />
O processo sincrético criou correspondentes para os santos católicos como Oxalá<br />
que seria o Senhor do Bonfim, Xangô, a São Jerônimo e Santa Bárbara, Ogum a Santo<br />
Antônio na Bahia e no Rio de Janeiro, a São Jorge, Yemanjá pode ser associada tanto a
Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora da Piedade, Oxum a Nossa Senhora da<br />
Conceição ou da Candeias, Nanã a Santa Ana, Oxóssi a São Jorge e Omolú a São<br />
Bento. A justaposição dos santos católicos aos orixás pertencia a uma mesma categoria<br />
de características distintas como demonstra o exemplo abaixo, as figuras santificadas<br />
dos irmãos São Cosme e Damião, eram médicos e missionários na Ásia Menor durante<br />
o século IV, foram mortos acusados de feitiçarias ao aliar conhecimento científico e fé<br />
nas curas de seus pacientes, suas práticas consideradas milagrosas, são os protetores dos<br />
médicos, dos farmacêuticos e das crianças; correspondentes nessa relação sincrética aos<br />
orixás gêmeos Ibejis, filhos de Xangô e Iansã, divindades protetoras do parto duplo,<br />
amigos das crianças e responsáveis por agilizar qualquer pedido em troca de doces.<br />
São Cosme e Damião<br />
Foto de Wagner Viana<br />
Casa dos Milagres<br />
Pirapora do Bom Jesus<br />
São Paulo, 2007
A hibridização cultural é considerada um fenômeno antigo e geral na América<br />
católica, como por exemplo, no século XVII com o quilombo de Palmares, com a<br />
gestualidade nos ritos com referências da prática do catolicismo, na aproximação de<br />
características entre santos e orixás constituídos pela própria hagiologia católica e a<br />
imitação pelo africano, como no caso de Oxóssi que é o deus da caça o seu<br />
correspondente que só poderia ser São Jorge ou São Miguel, santos considerados<br />
guerreiros.<br />
Os mitos dos orixás compõem os poemas oraculares cultivados pelos babalaôs.<br />
Tratam da criação do mundo e o modo como foi repartido entre os orixás.<br />
Par de gêmeos ibejis<br />
Madeira<br />
Yoruba<br />
Nigéria<br />
Acervo MAE/ USP<br />
Relatam a existência dos deuses e humanos, animais e flora conjugados na vida<br />
social. A sociedade tradicional iorubá não é histórica, mas mitológica, é por intermédio
do mito que se justifica a origem de tudo, alcança-se o passado e interpreta-se o presente<br />
e prediz o futuro num tempo primordial ou no agora.<br />
O seu corpo mítico era transmitido oralmente por desconhecerem a escrita, na<br />
diáspora africana, no século XIX, estudiosos estrangeiros, principalmente europeus, e<br />
posteriormente, letrados iorubás, iniciaram a compilação desse material. Como o padre<br />
R. P. Noël Baudin, com a obra Fétichisme et féticheurs publicada em 1884, e o coronel<br />
A. E. Ellis com a obra The Yoruba-Speaking Peoples of the Slave Coast of Africa de<br />
1894.<br />
A partir da década de 60 ocorreu o reavivamento das religiões tradicionais,<br />
expandindo-se da Bahia para todo o território nacional, proliferando publicações sobre<br />
São Jorge<br />
Foto de Wagner Viana<br />
Casa dos Milagres<br />
Pirapora do Bom Jesus<br />
São Paulo, 2007
assunto. Associa-se então, a religião e a escrita, reunindo num mesmo espaço litúrgico,<br />
indivíduos de outras etnias e camadas sociais, sistematizando as concepções do<br />
candomblé, descobrindo o mito:<br />
impregnado nos objetos rituais, nas cantigas, nas cores e desenhos das roupas<br />
e colares, nos rituais secretos de iniciação, nas danças e na própria arquitetura<br />
dos templos e, marcadamente, nos arquétipos ou modelos de comportamento<br />
de filho-de-santo, que recordam no cotidiano as características e aventuras<br />
míticas do orixá do qual se crê descender o filho humano. (Prandi: 2001, 19)<br />
A cultura popular e o teatro espontâneo de cunho popular funcionavam como<br />
modo referencial de uma produção popular e de uma estética contemporânea. Essa<br />
manifestação dá-se pela dança dramática, termo cunhado por Mário de Andrade, que<br />
trazia uma inspiração mágica e religiosa tal como um instante de celebração. Com<br />
algumas estruturas em comum, o cortejo coreográfico, as tradições pagãs das Janeiras e<br />
Maias, os cortejos reais africanos e as procissões católicas com as folias de índios,<br />
negros e brancos, os vilancicos religiosos e as celebrações das lutas de cristãos e,<br />
mouros pelos ibéricos. A dança e a música partilham dos rituais nos candomblés<br />
influenciando nas práticas culturais dos negros brasileiros que fundamentaram as festas<br />
profanas ou os afoxés.<br />
O aspecto cênico está na constituição de um roteiro com um enredo específico,<br />
uma obra musical que acompanha a coreografia e uma indumentária que caracteriza a<br />
encenação. São jogos dramáticos no qual os espectadores são também atores.<br />
Manifesta-se o sagrado e o profano dentro de uma vida terrena englobando o drama, o<br />
jogo e a improvisação na transferência de um estado sério para o jocoso e o malicioso<br />
construídos pelo fio narrativo.<br />
Se é certo que tudo o que se relaciona com a música está situado no interior<br />
da esfera lúdica, o mesmo se pode afirmar, e em mais alto grau, da irmã<br />
gêmea da música, a dança. Quer se trate das danças sagradas ou mágicas dos<br />
selvagens, ou das danças rituais gregas, ou da dança do Rei David diante da<br />
arca da Aliança, ou simplesmente da dança como um dos aspectos de uma<br />
festa, ela é sempre, em todos os povos e em todas as épocas, a mais pura e<br />
perfeita forma de jogo. (Huizinga: 1996, 183)
O jogo implica a presença de um elemento não material em sua essência indo<br />
além das práticas mais imediatas do cotidiano conferindo sentido à ação. É um<br />
fenômeno cultural construído ludicamente pelo uso não formal do espaço e por sua<br />
capacidade integrativa não só de público além da visualidade por se focar as limitações<br />
do corpo e da matéria, o ritmo, a sonoridade, o movimento, a expressividade e a<br />
plasticidade do gesto criador.<br />
O corpo humano busca transcender através de seu potencial criativo o modo<br />
como se movimenta no espaço que é compartilhado entre outros corpos. Produz sons e<br />
gestos que se transformam nas diferentes atividades pertencentes ao cotidiano. A cultura<br />
nomeia essas práticas diferenciando os seres por características que os identificam com<br />
determinados grupos sociais.<br />
A modernidade discute a existência de um indivíduo cindido em outras<br />
identidades que não necessariamente compatíveis, portanto, acabam sendo discordantes.<br />
O que ocorre é a mobilidade dos seres nessas identidades, múltiplas e possíveis de<br />
transformação, de acordo com os papéis diversos exercidos nos espaços de convívio. O<br />
que nos confere o deslocamento dessas identidades para diferentes direções. Tem-se<br />
aqui, o sujeito fruto da pós-modernidade.<br />
Essa mudança dá-se pela incursão de uma modernidade tardia que culmina com<br />
o processo de globalização e como isso afeta o aspecto cultural de um povo.<br />
Para Stuart Hall, a identidade possui três concepções diferentes a partir do que<br />
seria o sujeito em determinados períodos, a começar por um sujeito pertencente ao<br />
Iluminismo, masculino, centrado, racional e constante. Alguns atributos eram inerentes<br />
trazidos logo ao nascimento e ia desenvolvendo-se ao longo de sua existência como<br />
algo contínuo e imutável.
Já o sociológico referia-se a interação entre o “eu” e o seu grupo social<br />
modificando-se com os universos culturais existentes, como se apresentavam<br />
externamente e o diálogo estabelecido com o universo íntimo. O ser apropriando-se de<br />
diversas identidades culturais com seus valores e significados próprios em sua<br />
subjetividade busca a objetividade no espaço social e cultural ocupado. Esses sujeitos<br />
harmonizam-se com os seus meios culturais mantendo uma unificação e estabilidade<br />
que se aproxima do sujeito iluminista.<br />
As sociedades modernas são mutáveis e alteram-se continuamente pelas<br />
interconexões sociais que envolvem o globo deslocando as identidades e sob algumas<br />
circunstâncias elas são articuladas mantendo sua estrutura aberta.<br />
Nas sociedades tradicionais:<br />
(...)o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e<br />
perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o<br />
tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na<br />
continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são<br />
estruturados por práticas recorrentes. (Giddens: 1990, 37-38)<br />
A identidade legitima os seres pela diferenciação e aproximações que<br />
possibilitam o reconhecimento dentro do grupo e a memória “é um elemento essencial<br />
do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das<br />
atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje...”(Bittencourt: 2003,<br />
15)<br />
O teatro popular, espontâneo e tradicional oriundos dos cultos africanos e das<br />
danças de possessão traz a possibilidade de quem está ao redor comungar de um mesmo<br />
instante místico na experiência do sagrado. É um teatro de segredo fundamentado na<br />
gestualidade das danças e o seu entendimento a partir da apreensão e percepção dos<br />
códigos corporais.<br />
Esse teatro baseia-se na sua origem na elaboração cênica de brancos<br />
metropolitanos para configurar o domínio sob os povos dominados nos aspectos
eligiosos e políticos nas hierarquizações da sociedade. O negro assume apenas uma<br />
função social por existir dentro de um grupo social e não por sua capacidade criadora. A<br />
teatralidade dessa ação narrativa está na diferenciação de papéis exercidos na<br />
apresentação de um diálogo que representaria a multidão.<br />
A integração entre espectador e acontecimento na apresentação de um enigma é<br />
compreendida na noção de pertencimento dada ao grupo que configura tais<br />
manifestações.<br />
Cria-se um código de ambigüidade sobre os significados de determinados<br />
símbolos de desconhecimento daqueles que não fazem p<strong>arte</strong> daquela coletividade, de<br />
modo a provocar um distanciamento e a participação de um fenômeno tornado <strong>possível</strong>,<br />
apenas para uma determinada comunidade detentora de tal conhecimento, como<br />
exemplo, o Samba rural paulista, no qual é proposto um enigma ao coro e a solução<br />
seria de responsabilidade do corifeu ou mestre de coro. Esse sentido encontra-se no jogo<br />
de símbolos ao dramatizar uma experiência coletiva como forma <strong>possível</strong> de<br />
preservação de uma identidade ameaçada pelo poder.<br />
As relações hierárquicas estabelecidas entre os diferentes grupos sociais e<br />
tratadas pela ótica das identidades traduzem nesse corpo os fragmentos e resquícios<br />
culturais que são inerentes a sua existência. A tradição permite o sentido de identidade<br />
pertencente a um grupo localizando os seres num espaço no exercício de seus papéis<br />
sociais numa comunidade. A própria idéia de tradição é fruto da modernidade.<br />
Etimologicamente era um termo utilizado no direito romano para leis da herança. Um<br />
bem era passado para uma geração direta que tinha a incumbência de zelar e perpetuar<br />
para que uma próxima geração desempenhasse o mesmo papel.<br />
A tradição caracteriza-se pela repetição e por seu sentido ritualístico<br />
possibilitando as formas de continuidade da vida. Sob essa ótica, o corpo na
modernidade configura o distanciamento e aniquilamento de um homem divinizado e<br />
coletivizado fruto da tradição, como as culturas de origem africana, para o surgimento<br />
de um homem subjetivado e autônomo cindido em busca de um sentido de identidade<br />
criada e recriada nas relações de dependências nas funções sociais fragmentadas e<br />
desmembradas de sua existência física e espiritual.<br />
A cultura popular envolve a prática particular de grupos subalternos que se mo-<br />
dificam juntamente com o contexto social em que estão inseridas; revitalizadas e trans-<br />
formadas pela produção econômica e distribuição dos seres nos espaços relacionais tan-<br />
to entre outros grupos como no próprio. Sua existência dá-se de acordo com a visão ide-<br />
ológica e os interesses de uma classe dominada em oposição à hegemonia submetida pe-<br />
las classes dominantes. <strong>Uma</strong> cultura híbrida permeada de mesclas diversas entre cultu-<br />
ras na distinção entre erudito e popular ampliando as relações entre tradição e moderni-<br />
dade na estruturação e apreensão de um sentido de religiosidade nas construções poéti-<br />
cas negras.<br />
Nessa discussão reiterando a inserção das manifestações populares na produção<br />
de formas expressivas e estéticas numa cultura híbrida, levanta-se a seguinte questão:<br />
Como estabelecer uma poética negra no conceito de classe subalterna numa<br />
produção artística de caráter popular e fetichista?
2º CAPITULO<br />
ELEMENTOS PARA DISCUTIR UMA POÉTICA NEGRA E BRASILEIRA<br />
No século XVIII as ordens religiosas solicitavam o trabalho de monges<br />
decoradores para a ornamentação dos templos, a pintura era vista como algo<br />
depreciativo, utilizavam-se para a execução dos projetos mestiços e negros. A<br />
possibilidade de ascensão encontrava-se no desenvolvimento das atividades manuais e<br />
de contornos artísticos.<br />
Numa p<strong>arte</strong> considerável da produção artística mineira de setecentos predomina<br />
a participação de mãos de origem africana. A produção destinada às igrejas e conduzida<br />
pelas irmandades vai rareando, conseqüentemente, a diminuição da valorização social<br />
do indivíduo.<br />
Arte vigente no país era de tendências barrocas. Um barroco de estrutura européia<br />
marcado pela expressividade africana. Diferenciando-se de acordo com a região em que<br />
se estabeleceu. O processo de mestiçagem ocasionou a chamada resistência estética que<br />
pode ser atribuída no campo das manifestações religiosas, através da música, dos cantos<br />
e dos rituais. Por exemplo, no Nordeste, a Igreja funcionava como centro unificador das<br />
famílias patriarcais, definindo-se como uma igreja de sacristias. Já em Minas, a Igreja<br />
reflete as disputas das confrarias e a estrutura de uma sociedade urbana, com luta de<br />
classes e de camadas sociais: brancos contra mulatos, mulatos contra negros, nacionais<br />
contra portugueses, podendo ser denominada de igreja de confrarias, de festas<br />
religiosas e procissões.<br />
Prevalecia nesse período a <strong>arte</strong> realizada por escravos, mestiços e homens pobres<br />
aproximando-se da obra <strong>arte</strong>sanal e paralelamente, a efetuada por monges e irmãos<br />
religiosos de influências trazidas da Idade Média pautados na veneração da fé. Artistas
anônimos ou não anônimos produziam obras desvinculadas das escolas e movimentos<br />
artísticos europeus. O “(...)Catolicismo e estilo Barroco adequavam-se<br />
surpreendentemente bem ao temperamento do africano, a ele, e a seus descendentes<br />
negros ou mulatos caberia, na sociedade colonial <strong>brasileira</strong>, papel importantíssimo na<br />
produção de objetos destinados ao culto religioso ou à simples intimidade<br />
doméstica...”(Leite apud Silva e Calaça:1988, 14).<br />
E ainda:<br />
Manuel da Costa Ataíde<br />
Foto de Wagner Viana<br />
Nossa Senhora dos Anjos, 1801-1802<br />
Forro da nave da igreja de São Francisco de Assis,<br />
Ouro Preto, Minas Gerais, 2007<br />
(...) em começos do Século XIX Henry Koster, norte-americano residente em<br />
Pernambuco, chamava-os de ‘obreiros de todas as <strong>arte</strong>s’, e o mesmo praticamente<br />
deles disseram quase todos os viajantes estrangeiros que pela mesma<br />
época passaram pelo Brasil, admirados com a quantidade de ourives, entalhadores<br />
imaginários, escultores, carpinteiros, marceneiros, pintores, decoradores<br />
e outros artistas ou artífices negros ou pardos que aqui encontraram, e
com alta qualidade do que produziam. Mormente no que respeita à talha e à<br />
escultura em madeira, tais revelar-se-iam insuperáveis, o que não deve causar<br />
admiração, sabendo-se a antiqüíssima vocação da África Negra para as <strong>arte</strong>s<br />
tridimensionais; por isso, não por acaso, boa p<strong>arte</strong> de nossos toreutas possuíram<br />
ancestralidade africana, a começar pelos dois maiores, Antônio Francisco<br />
Lisboa e Valentim da Fonseca e Silva. Mas inclusive na pintura colonial a<br />
presença negra ou mulata seria marcante, e muitos de nossos mais significativos<br />
pintores coloniais tinham sangue negro, entre eles o baiano José Teófilo<br />
de Jesus, o paulista Jesuíno de Monte Carmelo e diversos integrantes da chamada<br />
Escola Fluminense, a começar por Manuel da Cunha, nascido escravo<br />
(Leite apud Silva e Calaça: 2006, 14)<br />
A estratificação social na <strong>arte</strong> colonial distanciava negros de brancos. O<br />
deslocamento de estrato social estava pautado por um padrão rígido europeu. O que não<br />
impediu no cenário artístico que elementos estéticos provenientes da construção mate-<br />
rial africana aparecessem nas esculturas ou nas pinturas religiosas. Com a Abolição, as<br />
irmandades e confrarias vão perdendo seu significado inicial de funcionarem como<br />
agremiações religiosas, eram clubes e centros que preservavam as diferenças culturais<br />
entre os indivíduos e intentavam na manutenção de uma identidade étnica.<br />
A formação de uma <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> decorre da produção de grupos subalternos<br />
num movimento de justaposição e convergência entre as culturas indígenas, africanas e<br />
portuguesas. Arte essa, de caráter popular que influenciaria p<strong>arte</strong> da produção artística<br />
de origem européia com a vinda da Missão Artística Francesa em 1816 e<br />
posteriormente, a fundação da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro.<br />
A Missão foi organizada por Joaquim Le Breton que propunha um siste-<br />
ma de ensino acadêmico que mesclava o ensino das belas-<strong>arte</strong>s e o dos ofícios. Artistas<br />
de formação neoclássicas como o pintor João Batista Debret, o escultor Augusto Maria<br />
Taunay, o arquiteto Grandjean de Montgny e o gravador Carlos Simão Pradier faziam<br />
p<strong>arte</strong> do corpo docente. Esse período possui como característica o fortalecimento do ne-<br />
oclassicismo, paralelo a outras manifestações acadêmicas atreladas à formação de elites,<br />
e o declínio do que no barroco era marcante, a presença de mestiços e africanos como<br />
produtores artísticos.
Era também o período das expedições que percorriam o território nacio-<br />
nal. Compostas por artistas amadores e profissionais, cientistas, diplomatas e negocian-<br />
tes que tinham como intuito registrar a geografia, a etnografia, a fauna, a flora e os cos-<br />
tumes. O interesse era alimentar os gabinetes de História Natural de seus países de ori-<br />
gem, pelo conhecimento do outro, pela observação e pela etnografia. Debret em Viagem<br />
pitoresca e histórica do Brasil, de 1834 e Johann Moritz Rugendas, em Voyage Pitto-<br />
resque dans le Brésil, trazem em suas obras, de caráter documental, as relações sociais<br />
da vida na corte, o trabalho escravo, a cidade do Rio de Janeiro, o cotidiano e a família.<br />
Catalogava-se os seres enquadrando-os como tipos humanos. Esse material serviu como<br />
espécie de fonte iconográfica para o estudo da vida social <strong>brasileira</strong> desse momento.<br />
A presença de viajantes no Brasil do século XIX atrelados às atividades diplo-<br />
máticas e à Marinha, assim como a presença de diletantes e amadores deixaram de suas<br />
viagens e estadas temporárias, imagens documentais. Entre os presentes estavam a es-<br />
critora e artista amadora Maria Graham (1785 - 1842), autora de panoramas como Vista<br />
da Baía de Guanabara, 1825; o militar, pintor e aquarelista amador Henry Chamberlain<br />
(1796 - 1844), responsável pelo álbum Vistas e Costumes da Cidade e Cercanias do Rio<br />
de Janeiro, 1822; e o pintor e aquarelista Hildebrandt (1818 - 1869), autor de obras<br />
como Panorama da Bahia. A fotografia passa a funcionar como nova forma de registro<br />
de artistas viajantes com a chegada a partir de 1839 do daguerreótipo no Rio de Janeiro,<br />
com artistas como Victor Frond (1821 - 1881) e Hercule Florence que fazem p<strong>arte</strong> da<br />
história da fotografia nacional.
Johann Moritz Rugendas<br />
Capitão do Mato<br />
Litografia colorida a mão<br />
51,3 x 35,5 cm<br />
Coleção particular<br />
Catálogo Negro de corpo e alma<br />
Na metade dos últimos anos dos novecentos o conceito de artista encontrava-se<br />
na especialização por meio da educação na Academia e sua continuidade no exterior e<br />
na apropriação dos valores prezados pela sociedade consumidora. Anteriormente era<br />
vista como atividade manual, considerada como algo de interesse de escravos, não como<br />
atividade profissional liberal.<br />
Vive-se num país em que o preconceito étnico aparece camuflado sobre a<br />
marginalização de grupos de baixo poder aquisitivo. Cria-se uma segregação velada,<br />
sugestionando a idéia de que o preconceito é econômico pois, tão cruel quanto o racial,
aseia-se somente nas relações de classe, atingindo uma maioria de <strong>afro</strong>-descendentes.<br />
A produção aceita pelo mercado eram aquelas calcadas nos padrões estéticos de uma<br />
<strong>arte</strong> considerada de caráter primitivo, fazendo p<strong>arte</strong> de coleções ou decorações de<br />
ambiente. O artista negro busca enquadrar-se nos valores estabelecidos pela elite<br />
consumidora através da imitação dos cânones vigentes.<br />
Poucos artistas desse período alcançaram certa consagração, principalmente no<br />
Rio de Janeiro, local efervescente das aspirações vocacionais. Os artistas <strong>afro</strong>-<br />
descendentes, como Estevão Silva, Antônio Rafael Pinto Bandeira, Artur Timóteo da<br />
Costa, José Timóteo da Costa, Firmino Monteiro e Emmanuel Zamor, voltavam a sua<br />
produção em função do gosto da elite da época, isto é, uma evocação dos valores<br />
culturais e estéticos de uma sociedade branca.<br />
Antônio Rafael Pinto Bandeira<br />
Feiticeira, 1890<br />
Óleo sobre tela<br />
33 x 30 cm<br />
Coleção particular
A poética negra não aparece como tema, nem no aspecto formal das obras desses<br />
artistas. <strong>Uma</strong> sociedade de verniz branco apoiada em valores, gostos, hábitos culturais<br />
ajustando-se a uma pretensa atitude de indiferença diante da cultura nacional, de modo<br />
que o bem cultural é universal, e o interesse é a <strong>arte</strong> de feições européias.<br />
O crítico Gonzaga Duque sintetiza o ideário da época sobre a <strong>arte</strong>; a atuação da<br />
Academia como aparelho do Estado funcionava como uma tentativa na mudança de<br />
mentalidade por meio de uma proposta educacional voltada para os grupos subalternos,<br />
em razão de a classe média acreditar que esta era uma atividade sem distinção social,<br />
pois as profissões que conferiam prestígio estavam no ramo da política.<br />
(...) Na verdade, depois da escravidão, a força que mais tem concorrido para<br />
o nosso estacionarismo e desnacionalismo é a politicagem (...); e ainda por<br />
ela desenvolveu-se nas classes abastadas a megalomania das posições que se<br />
tornou sintomática: a maior aspiração do chefe da família é fazer seus filhos<br />
bacharéis ou doutores para entrarem na política por meio de casamentos ricos<br />
(...)<br />
(...) Por este fato as profissões letradas transbordam assustadoramente (...)<br />
Ora, sendo as profissões letradas as que maior interesse despertam ao brasileiro,<br />
é claro que a <strong>arte</strong>, considerada até há pouco um desprezível ofício de<br />
negros e mulatos (...)ficasse destinada às classes pobres, aquelas que podiam<br />
educar convenientemente seus filhos para faze-los entrar nas academias. (Estrada:<br />
1995, 13-14)<br />
O meio artístico era composto por um lado: pela Academia, pelo Estado e<br />
por uma pequena parcela da burguesia, a quem as obras deveriam exaltar; os feitos do<br />
Império demonstrados cheios de vanglórias ou ainda os valores burgueses. E de outro<br />
lado, por artistas de origem popular que perpetuavam antigas fórmulas ou então, apre-<br />
sentavam uma poética que não se enquadrava com que se fazia até então.<br />
O interesse por uma <strong>arte</strong> com características nacionais era uma das preo-<br />
cupações dos artistas ligados à Academia Imperial de Belas Artes, que executavam<br />
obras de caráter oficial e a concepção européia idealizando as formas do poder imperial,<br />
da religião católica, do exército e da marinha. E paralelamente, quando saiam dos te-<br />
mas oficiais, buscavam obras que referendavam a mitologia <strong>brasileira</strong> inspiradas na lite-<br />
ratura e na poesia romântica. Eram criações de imagens idealizadas da realidade social
omitindo o passado colonial do país e a opressão daquele momento presente, a escravi-<br />
dão negra.<br />
A condição social de escravizado é o que permite delinear o conceito de um cor-<br />
po negro que é um corpo social, político, econômico, cultural, mítico e religioso. Essas<br />
formas fundem-se, não podendo ser tratadas de modo isolado para se pensar na produ-<br />
ção de poéticas <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>s partindo de uma <strong>arte</strong> africana tradicional. O corpo e o<br />
seu ascendente africano estão presentes nos signos culturais, textuais, na constituição<br />
simbólica de alteridade, de diversidade étnica, lingüística, de civilizações e histórias.<br />
Nesse período o indicativo da condição de escravizado encontrava-se nos<br />
pés descalços. Quando um negro se alforriava a primeira coisa que fazia era comprar sa-<br />
patos. Nas representações visuais isto era um elemento indicativo. O modo como um in-<br />
divíduo é retratado também indica a sua posição social, a maneira como se percebe ou é<br />
percebido no espaço de convivência.<br />
Essas representações, a partir do conceito das possíveis relações de retra-<br />
tado ou retratador, segundo Sérgio Miceli (1996), na obra Imagens negociadas: retratos<br />
da elite <strong>brasileira</strong> (1920-1940), funcionavam como uma forma negociada, no sentido de<br />
o sujeito inspirador da obra interferir no processo de elaboração na maneira em que se<br />
dava a sua percepção de mundo e o seu localizar-se nesse espaço. De certo modo, não<br />
deixa de ser co-autor de um produto estético, pensando-se neste caso, das obras oficiais.<br />
A outra relação <strong>possível</strong> é como forma não negociada, quando o objeto de estudo não<br />
partilhava da sua construção. O artista determinava o seu olhar na apreensão de caracte-<br />
rísticas que concebiam aquele indivíduo inserido num meio social. O que diferenciava<br />
essas formas são os tipos de vínculos que podem ser estabelecido entre retratado e artis-<br />
ta.
A fotografia atuava tanto como uma espécie de cartão de visita, quanto<br />
como a imagem de algo pitoresco e genérico. O cartão de visita era a imagem captada<br />
do senhor notável e digno e o escravo era o pitoresco e exótico. A evocação das imper-<br />
feições e assimetrias em cenas repletas de detalhes curiosos e a interpretação poética e<br />
idealizada de uma atmosfera particular que tornava o retratado distante de seu contexto.<br />
As fotos abaixo apresentam características distintas, a primeira é uma<br />
foto de estúdio, a cena foi construída, a mulher e a jovem demonstram pouca naturalida-<br />
de numa aparente cena do cotidiano. O próprio título caracteriza uma generalidade, um<br />
tipo, a mulher é a vendedora de araruta, com os apetrechos essenciais que a define como<br />
um tipo social.<br />
Vendedora de araruta<br />
St. John- Antígua (Antilhas) c.1910<br />
Fotografia em sépia<br />
21,5 x 14,5 cm<br />
Catálogo Negro de corpo e alma
Na foto tirada por Pierre Verger no bairro da Lapa na Bahia em 1946, estabele-<br />
ce-se uma relação de vínculo não negociado, os retratados estão distraídos num momen-<br />
to de descanso integrados ao espaço de trabalho. A figura humana é o centro embora o<br />
seu espaço relacional e as ações do que acontece em torno sejam importantes. Não é<br />
uma imagem construída e idealizada num estúdio. O olhar do fotógrafo traz pelo exercí-<br />
cio de observação uma intencionalidade através de seu registro que caracteriza o seu<br />
modo de apreender a existência do outro.<br />
Pierre Verger<br />
Lapa, Brasil.1946<br />
Fotografia em preto e branco<br />
18x18cm<br />
Coleção particular<br />
Catálogo Negro de corpo e alma<br />
O olhar para o escravo era carregado de exotismo. O olhar estrangeiro, daquele<br />
que não apreende as minúcias e fixa-se naquilo que é exterior, se direcionava no sentido<br />
de uma percepção da realidade mais imediata, ou na idealização dessa realidade, se con-<br />
figurando como um olhar distante de fato. Essas imagens traziam os carregadores que
levavam de tudo de pequenos objetos a pessoas, as mulheres comerciantes de alimentos,<br />
as lavadeiras, o barbeiro; em cenas cotidianas.<br />
Vendiam as fotografias para viajantes ou para quem ia para a Europa funcionan-<br />
do como objeto de lembrança para uso no exterior. Em contraposição, a fotografia do<br />
senhor era produto de encomenda e trazia como marca a maneira como gostaria de ser<br />
visto partilhando do processo.<br />
Também nas <strong>arte</strong>s literárias quanto na vida social, o estereótipo encarna-<br />
do pelo negro era a distinção do ideal de belo pela aparência física. Os mestiços, a típica<br />
mulata, quanto mais embranquecida mais se avizinhava desse ideal, contrapondo ao ne-<br />
gro, considerado feio. O negro quando encarnava o papel de bom personificava a figura<br />
do Pai João, submisso, trabalhador e fiel ao seu Senhor, enquanto o negro mau era o<br />
quilombola, cruel, não exorável que não se enquadrava nos padrões de comportamento<br />
imposto pela sociedade. O negro apresentava-se também como um animal sensual e las-<br />
civo. Como ser amaldiçoado onde estivesse, provocava desgraças. Era o feiticeiro e o<br />
supersticioso.<br />
A mulher negra enquadrava-se nos seus modos como cheia de malícia, postura vi-<br />
ciada, amante do prazer, da preguiça e do luxo. Enquanto a mulata era uma beleza em as-<br />
censão, o mulato era uma figura a se ter desconfiança, o traidor, o infiel e extremamente<br />
vaidoso.<br />
O escravo aparecia como figura genérica por ser caracterizado como um tipo. É<br />
visto e não se vê. Está ali presente a função que exerce sem particularidades. O senhor<br />
tenta estabelecer uma possibilidade de ligação do escravo com o mundo através da cons-<br />
trução de uma imagem cheia de estereótipo do negro pela tipificação da sua identidade.<br />
Alguns artistas e críticos no final do século XIX começam a questionar essa <strong>arte</strong><br />
comprometida com os interesses ideológicos e políticos imperiais, acreditando que a <strong>arte</strong>
poderia se tornar nacional a partir do momento que a realidade física <strong>brasileira</strong> fosse apre-<br />
sentada em uma poética naturalista com a luz, as cores, os elementos topográficos e a flo-<br />
ra.<br />
O desejo de constituir uma produção de caráter nacional diferentemente<br />
da Academia ganha um outro entendimento na primeira metade do século XX com os<br />
artistas pertencentes ao Movimento Modernista, 1922, que introduziram as vanguardas<br />
e a modernidade artística. Aderindo somente as formulações das vanguardas históricas<br />
européias àquelas relacionadas ao retorno à ordem internacional, o retorno ao realismo e<br />
a valorização nacional dos bens culturais. A renovação das <strong>arte</strong>s pela construção de uma<br />
mentalidade de acordo com a nova realidade vigente, o país de agrário ia se industriali-<br />
zando permeado por problemas e contradições da transição. Ao mesmo tempo era a<br />
construção de uma imagem que convergia nas tradições populares que era pulsante; o<br />
“primitivismo” visto como descoberta para os europeus, para nós era presente, algo que<br />
as vanguardas européias buscaram para distanciarem-se de uma tradição de formas rígi-<br />
das, sendo necessário identificá-lo e incorporá-lo.<br />
A noção de patrimônio histórico, idealizado e gestado pela idéia de con-<br />
servação e o reconhecimento de um inventário dos sentidos, por Mário de Andrade,<br />
abrangia as <strong>arte</strong>s arqueológicas, ameríndia, popular e histórica; as eruditas e as aplicadas<br />
nacionais e estrangeiras. Surge no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional<br />
(IPHAN), no ciclo do último governo militar (1978-1982), a denominação de bens cul-<br />
turais como forma de pensar o fazer e as práticas culturais de modo sistematizado.<br />
(...) O conceito de bem cultural do Brasil continua restrito aos bens móveis e<br />
imóveis, contendo ou não valor criativo próprio, impregnados de valor histórico<br />
(essencialmente voltados para o passado), ou aos bens da criação individual<br />
espontânea, obras que constituem o nosso acervo artístico (música, literatura,<br />
cinema, <strong>arte</strong>s plásticas, arquitetura, teatro) quase sempre de apreciação<br />
elitista (...). Permeando essas duas categorias, existe vasta gama de bens -<br />
procedentes sobretudo do fazer popular – que por estarem inseridos na dinâmica<br />
viva do cotidiano não são considerados como bens culturais nem utilizados<br />
na formulação das políticas econômica e tecnológica. No entanto, é a<br />
partir deles que se afere o potencial se reconhece a vocação e se descobrem
os valores mais autênticos de uma nacionalidade. (Magalhães apud Rufino, in<br />
: In : Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n 25. Rio de Janeiro,<br />
1997)<br />
A <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> fundamentava-se de certos procedimentos da <strong>arte</strong> popu-<br />
lar, definida em modos expressivos e autênticos, originários da subjetividade e da ima-<br />
ginação criadora daqueles que não estão inseridos nas tradições e no sistema artístico e<br />
cultural vigente de mercado.<br />
A <strong>arte</strong> erudita apropria-se desses valores através das relações hegemôni-<br />
cas de classe, elaboradas na constituição de uma realidade nacional. Na <strong>arte</strong> popular es-<br />
tão incluídas as produções locais. As manifestações <strong>afro</strong>-descendentes de cunho popular<br />
são núcleo de uma definição de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, “(...) uma expressão conven-<br />
cionada artística que ou desempenha a função no culto dos orixás ou trata de temas li-<br />
gados ao culto (Cunha: 1983, 994)”<br />
<strong>Uma</strong> <strong>arte</strong> que permitiu posteriormente extrapolar os espaços dos terreiros<br />
atrelados das práticas litúrgicas contando nos anos 30 com alguns acontecimentos<br />
significativos, como os Congressos <strong>afro</strong>-brasileiros de 1934 e 1937 e a expedição de<br />
coleta de cultura material proposta por Mário de Andrade em 1937-38, então no<br />
Departamento de Cultura, partindo de São Paulo em direção ao norte e ao nordeste do<br />
país; em 1937 chefiada por Camargo Guarnieri e no ano seguinte por Luis Saia. Essas<br />
expedições auxiliaram no delineamento de caracteres para o surgimento de discussão de<br />
elementos que identificariam uma <strong>arte</strong> dita <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>. Depois de dez anos foram<br />
descobertos os ceramistas considerados primitivos do Nordeste, Mestre Vitalino, de<br />
Caruaru e Severino de Tracunhaém, entre outros.<br />
Vista a <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> até então sob uma ótica reducionista e pejora-<br />
tiva como objetos de fetiches ou de uma estética naïf atrelada a um padrão de gosto que<br />
a aproximava de formas decorativas harmonizando-se numa espécie de clima cultural. É
importante salientar a intolerância nas manifestações de cunho cultural por meio de per-<br />
seguições política e policial que destruíam não somente objetos ritualísticos, instrumen-<br />
tos musicais como também agrediam violentamente quem estava no local. O material<br />
coletado quando não era destruído era levado para delegacias e hospitais psiquiátricos<br />
como atestação da releitura atualizada da relação entre colonizador e colonizado ou do-<br />
minante e dominado na imposição de uma cultura considerada ideal. Os terreiros deixa-<br />
ram de ser um ato próximo da criminalidade reabrindo legalmente na década de 1950.<br />
Ignorava-se o papel memorial desse espaço como espaço de resistência e recriação da<br />
história, mitos, sacralidade, identidades, imaginário, cotidiano e comunidade. Tudo<br />
aquilo que confere o ethos africano nos processos de hibridização cultural.<br />
A produção poética na <strong>arte</strong> negro-africana tradicional não é representativa,<br />
sugere formas e conteúdos que são possíveis de serem reconhecidos por uma<br />
comunidade do qual o artista faz p<strong>arte</strong>, exprime um conceito, como por exemplo, o<br />
ancestral, a fertilidade, a maternidade... Ela pode ser considerada uma <strong>arte</strong> conceitual,<br />
pois transmite idéias e relações. Não retrata um indivíduo específico e representa a<br />
concepção e o princípio que o acerca na forma de ícones. Entre artista e comunidade<br />
não se cria o espaço de um distanciamento necessário para a reflexão estética como<br />
acontece com o artista ocidental. Para Boas:<br />
(...) o prazer estético é ressentido por todos os membros da humanidade. Por<br />
mais diverso que seja o ideal da beleza, o caráter geral do prazer que a beleza<br />
dá é da mesma ordem por toda <strong>arte</strong>; a melodia rudimentar dos siberianos, a<br />
dança dos negros africanos, a pantomima dos índios da Califórnia, as pedras<br />
esculpidas dos melanésios, os comovem de uma maneira que não é diferente<br />
daquela que sentimos quando escutamos um canto, quando assistimos a uma<br />
dança artística ou quando admiramos uma decoração, uma pintura, uma<br />
escultura. A própria existência do canto, da dança, da pintura e da escultura<br />
entre todas as tribos conhecidas é prova da grande necessidade de produzir<br />
coisas que são sentidas como satisfatórias por sua forma e pela capacidade do<br />
homem em apreciá-la. (Boas: 1927, 9)
O belo perpassa pela satisfação que um dado objeto ocasiona e pelo julgamento<br />
de quem o contempla, porque, a partir do momento em que é notado, a sensibilidade<br />
desse indivíduo foi tocada.<br />
Na língua bantu a palavra belo é usada para designar que uma dada coisa é boa,<br />
verdadeira e perfeita. A perfeição formal está atrelada à categoria estética, moral e<br />
lógica. Reunindo numa mesma unidade o belo, ao eficiente. Um dado objeto deve<br />
expressar a ancestralidade, o tempo presente, o passado e conectar-se com as<br />
manifestações do sagrado. O mundo apóia-se numa hierarquia de forças (ordem,<br />
desordem, caos e energia) em que o homem consegue manipulá-las através de suportes<br />
materiais.<br />
Os africanos ritualizam a vida geralmente dando conotação religiosa embora,<br />
traga aspectos políticos, econômicos ou domésticos. É uma <strong>arte</strong> comunicativa<br />
presentificada pela combinação de signos que recriam uma realidade. O artista africano<br />
trabalha para uma finalidade ritual, sua <strong>arte</strong> está ligada as suas crenças, a sua<br />
religiosidade e ela é o mote para sua força expressiva. Ela deve aparecer de modo<br />
desinteressado e não se atem a necessidade de uma pessoa, contudo da coletividade.<br />
O objeto artístico é carregado de significado possuindo uma função específica de<br />
acordo com a sociedade a qual pertence. A função assegura a ordem e a coesão do<br />
grupo.<br />
A <strong>arte</strong> africana, segundo Mariano Carneiro da Cunha (1983), ocorre em três<br />
níveis: o formal e técnico, a finalidade e o sentido e por fim, a capacidade de influir<br />
sobre outras culturas. Ou então, para Kabengele Munanga (2004), a sistematização da<br />
compreensão dos estudos sobre <strong>arte</strong> africana dá-se em três tipos de abordagens: teoria<br />
etnológica, a teoria etno-estética e a teoria estética.
As obras africanas tradicionais não são criadas com o intuito de ser objeto de<br />
exposição, e quando isso ocorre são instaladas em espaços museológicos, destituídas de<br />
sua significação, já não são mais objetos de culto por encobrir segredos na incapacidade<br />
de afetar a sensibilidade.<br />
Máscara dos Senufo<br />
madeira, tecido, cauris<br />
Senufo, Costa do Marfim<br />
Acervo MAE/USP<br />
A exposição de uma obra deve responder a uma necessidade e não uma escolha,<br />
por exemplo, se um altar é instalado num espaço público, num mercado ou na entrada<br />
de uma aldeia, é porque esse objeto tem a função de proteger tudo que está em torno. A
sua função não é a contemplação, embora sejam visíveis, persiste o segredo que é o não<br />
visível.<br />
Estabelece-se uma relação com o mistério e a relação que a comunidade possui<br />
com o ato de julgar um produto estético, como no caso dos Dagara de Burkina Fasso, as<br />
estátuas de adivinhação não podem ser objetos de julgamento estético nem antes nem<br />
depois da instalação no altar. São esculpidas longe dos espaços de convivência, no<br />
mato, onde o escultor se disfarça numa moita a fim de não se observado. Após o<br />
término do trabalho, o objeto é protegido e é levado até a casa onde é guardado numa<br />
sala reservada. Antes de ser instalado no altar, ele deve permanecer em segredo, pois se<br />
alguém pronunciar seu nome o maculará. O objeto deve manter-se resguardado para que<br />
possa ser investido pelos espíritos na ocasião de uma cerimônia, constituída no<br />
sacrifício de uma galinha preta e de uma pintada, das quais o sangue lavará a peça.<br />
Desse modo é consagrado e instalado no altar. Podendo ser visto por iniciados, ou em<br />
ocasiões específicas para a comunidade.<br />
Dos séculos XV ao XVIII a produção estética africana não provocava interesse<br />
nos ocidentais, tida como uma <strong>arte</strong> ‘estranha’ e vista preconceituosamente como<br />
oriundas de ‘regiões bárbaras’ eram expostas nos chamados gabinetes de curiosidades.<br />
No século seguinte com o aparecimento das ciências humanas, a sociologia e a<br />
antropologia, essas obras foram expostas como objetos de coleções. Artistas como<br />
Picasso, Braque, Matisse, Lam e os fauves tiveram acesso a esse material repensando<br />
as suas formas de produção até então pautadas nos cânones europeus nas primeiras<br />
décadas do século XX.<br />
No Brasil a influência da <strong>arte</strong> africana encontrava-se desde o processo de<br />
colonização, particularizando-se por vários séculos integrando os processos culturais e<br />
históricos. Isso se manifestava não apenas nas <strong>arte</strong>s visuais, como também no cotidiano
e nos objetos familiares manipulados, tanto conscientemente quanto inconscientemente,<br />
ou nos objetos reunidos de museus; o objeto das feiras, da <strong>arte</strong> popular e de<br />
manifestação popular, como os ex-votos da capela sertaneja e outros ícones de<br />
aproximação africana.<br />
Ex-votos<br />
madeira, século XX<br />
Coleção particular<br />
Catálogo Os herdeiros da noite: fragmentos do imaginário negro, 1994<br />
Incluem-se, dependendo a região, utensílios domésticos, jóias e outros adereços<br />
de uso pessoal, como acontece em Salvador e no Recôncavo baiano. Na região central<br />
do país o uso de tambores, instrumentos musicais e outros objetos que acompanham o<br />
ritual e a dança dos Candombes de origem bantu, na parafernália Gege (Fon) usada no
culto da Casa Mina, no Maranhão ou os semelhantes nos Tambores do Rio Grande; os<br />
emblemas das divindades africanas provenientes dos templos umbandistas espalhados<br />
pelo país, com suas diferenciadas formas, estilos locais e um idioma plástico pouco<br />
decodificado.<br />
Em 1934 Gilberto Freyre juntamente com outros intelectuais realizou o I<br />
Congresso Afro-Brasileiro em Recife discutindo os temas que faziam referência à<br />
cultura material africana destacando as <strong>arte</strong>s visuais, apresentando obras representativas<br />
da <strong>arte</strong> popular com características <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>s. A exposição ocorreu no Teatro<br />
Santa Isabel com direção de Cícero Dias auxiliado por Clarival Valadares, pela rainha<br />
de maracatu Albertina de Fleury e por Jarbas Pernambucano participando os seguintes<br />
artistas: Lasar Segall, Portinari, Santa Rosa, Di Cavalcanti, Luis Jardim, Manuel<br />
Bandeira e Cícero Dias que enviaram estudos de negros, de baianas e pinturas de<br />
mulatas.<br />
Realizou-se por iniciativa dos estudiosos com contribuições de indivíduos da<br />
mais diferentes profissões e linhas de pensamentos como os médicos Arsenio Tavares e<br />
Mário Ramos, os advogados Odilon Nestor e Arlindo Figueiredo, os professores Sylvio<br />
Rabello, os comerciantes Henry Shorto e Adolfo Cardoso Ayres. O dinheiro arrecadado<br />
foi utilizado entre várias providências para compras de alimentos para a feitura de<br />
quitutes <strong>afro</strong>-brasileiros que foram servidos durante o evento e para compra de bichos<br />
de pau e de barro, cachimbos, figas, estand<strong>arte</strong>s e bonecas de maracatu que também<br />
foram expostas no Teatro Santa Isabel com as obras dos artistas convidados.<br />
Especialistas em estudos negros relacionados às áreas de antropologia geral e<br />
<strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> participaram do Congresso, tais como Franz Boas, Nancy Cunard, Ro-<br />
quette Pinto, Odum, Froes da Fonseca, Nuno Simões, Osório de Oliveira, Rüdiger Bil-<br />
den, Azevedo Amaral, o professor de fisiologia da Universidade de Harvard, Cannon,
Rodolfo Garcia, Mário de Andrade, Arthur Ramos, Antônio Austregésilo, Bastos de<br />
Ávila, Cunha Lopes e Melville J. Herskovits.<br />
Os acontecimentos histórico-sociais desse período retomaram a produção dos ar-<br />
tistas e temas nas <strong>arte</strong>s visuais iniciadas nos anos 30 e, sobretudo, nos anos 40 como<br />
também os estudos africanistas em que o negro apareceu como consciência antropológi-<br />
ca reabilitando a sua presença na constituição da cultura nacional com as publicações de<br />
Os africanos no Brasil, de Nina Rodrigues, em 1933. Casa grande e senzala, de Gilber-<br />
to Freyre, em 1934. A partir de 1932, Arthur Ramos iniciou a publicação dos seus tra-<br />
balhos que culminaram na Introdução à antropologia <strong>brasileira</strong>, em 1942. Acrescen-<br />
tam-se ainda, as obras de Edison Carneiro, René Ribeiro, Donald Pierson, M. Hersko-<br />
vits, Roger Bastide, Pierre Verger, entre outros.<br />
No prefácio dos trabalhos apresentados no congresso intitulado como Estudos<br />
<strong>afro</strong>-brasileiros, Roquette-Pinto, demonstrou essa preocupação pertencente ao período:<br />
Em matéria anthropologica e etnogaphica, no Brasil como em tantos outros<br />
paizes, estamos nas preliminares da construção. Estabelecer os planos, ajuntar<br />
recursos e materiaes, systematisar as indagações - é o papel destas gerações<br />
que assim, hão de preparar para as outras o que ellas não tiveram: fontes<br />
puras onde beber. A revisão da bibliographia, a coordenação do que há impresso,<br />
a publicação de alguns documentos que hão de existir nos cartórios e<br />
nas igrejas de algumas villas e cidades de província, uma viagem de estudos<br />
às regiões africanas de onde vieram os negros, buscas em archivos europeus e<br />
mesmo sul-americanos, pesquizas somáticas raciaes, pesquizas demographicas<br />
e ethnographicas nos Estados onde ainda hoje ainda existem descendentes<br />
africanos mais próximos africanos...<br />
(...)<br />
O negro esperou bastante; mas valeu a pena. Consagraram-lhe um pequeno<br />
monumento singelo como a própria verdade sem rhetorica e sem lantejoulas<br />
– alguns dos maiores espíritos do Brasil de hoje. Para os que passam a vida<br />
embrenhados no delicioso e árduo trabalho de pesquisar e recolher documentos<br />
anthropologicos e ethnographicos da sua terra – é uma alegria boa e sincera<br />
ver que as sciencias do seu trato dilecto vão agora fecundando almas de<br />
élite, empenhadas numa obra de conhecimento e gratidão, de sympathia e de<br />
humanidade.(Roquette-Pinto: 1935, 3-4)<br />
Os assuntos discutidos e publicados nos Estudos <strong>afro</strong>-brasileiros foram apresen-<br />
tados pelos seguintes títulos:<br />
1. O negro no folclore e na literatura do Brasil, Renato Mendonça.
2. Ensaio etno-psiquiátrico sobre negros e mestiços (nota prévia). Trabalho da clí-<br />
nica psiquiátrica da Universidade do Rio de Janeiro Diretor Professor Henrique<br />
Roxo, Cunha-Lopes e J. Cândido Reis.<br />
3. Vocabulário Negro, Rodolfo Garcia.<br />
4. Contribuição ao Estudo do Índice de Lapicque, Trabalho do Instituto de Pesqui-<br />
sa do Departamento de Educação do Distrito Federal, Bastos de Ávila.<br />
5. A calunga dos maracatus, Mário de Andrade.<br />
6. Mitos de Xangô e sua degradação no Brasil, Arthur Ramos.<br />
7. Os negros na história de Alagoas, Alfredo Brandão.<br />
8. As doenças mentais entre os negros de Pernambuco, Ulysses Pernambuco.<br />
9. Longevidade (sua relação com os grupos étnicos da população), L. Robalinho<br />
Cavalcanti.<br />
10.Três séculos de escravidão na Paraíba, Adhemar Vidal.<br />
11. Abolição e suas causas, Jovelino M. de Camargo Jr.<br />
12.Grupos sanguíneos da raça negra, Abelardo Du<strong>arte</strong>.<br />
13. A República dos Palmares, Mário Mello.<br />
14. O trabalhador negro nos tempos do bangüê comparado com o trabalhador ne-<br />
gro no tempo das usinas de açúcar, Jovino da Raiz.<br />
15.Procedência dos negros do Novo Mundo, Melville J. Herskovits.<br />
16. Alimentação e estado nutricional do Escravo no Brasil, Ruy Coutinho.<br />
17.O problema da tuberculose no preto e no branco e relações de resistência ra-<br />
cial, Álvaro de Faria.<br />
18.A <strong>arte</strong> do bronze e do pano em Daomé, Melville J. Herskovits.<br />
19.Situação do Negro no Brasil, Edison Carneiro.<br />
20.As seitas africanas do Recife, Pedro Cavalcanti.
21. Receitas de quitutes <strong>afro</strong>-brasileiros, apresentados ao Congresso de Recife pela<br />
Ialorixá Santa e pelos Babalorixás Oscar Almeida e Apolinário Gomes.<br />
22. Nota antropológica sobre os mulatos pernambucanos, Geraldo de Andrade.<br />
23.Toadas de Xangô de Recife.<br />
24.Discurso do representante da frente negra pelotense, Miguel Barros. (Roquette-<br />
Pinto: 1935) 2<br />
Os próprios temas abordados figuram numa preocupação antropológica e nem<br />
tanto estética. Os tópicos referem-se desde a contribuição africana na mestiçagem e<br />
como isso se dá na ocorrência das patologias, contrapondo, a visão eugênica de que a<br />
população negra tivesse maior incidência de casos. Como também as características<br />
que distinguem um branco de um negro avaliado cientificamente pelo índice radio-pél-<br />
vico como também pelos fios de cabelo, formato de nariz e boca na conceituação de ra-<br />
ças. Questões na área de psiquiatria e antropologia alcançaram uma ênfase maior atra-<br />
vés de visões ideológicas convergentes e em outros instantes divergentes em abordagens<br />
diversas.<br />
O diálogo estabelecido entre cultura popular e religiosidade era espaçado, refe-<br />
riam-se de certa maneira à distinção dos processos de hibridização entre as culturas rela-<br />
cionais. A compreensão do material artístico atrela-se a uma <strong>arte</strong> de estética tradicional<br />
africana, não aparecendo nenhum conteúdo que propusesse uma leitura de produção de<br />
contornos nacionais, mesmo ocorrendo duas exposições, uma que se encaixaria nas pro-<br />
duções tradições de cunho popular e de artistas eruditos em que a figura do negro apare-<br />
ce como tema.<br />
O segundo congresso ocorreu em Salvador, de 11 a 20 de janeiro de 1937, sedia-<br />
do no Instituto Histórico, tendo como presidente o geógrafo Teodoro Sampaio, a inten-<br />
2 Trabalhos apresentados ao 1° Congresso Afro-Brasileiro reunido em Recife em 1934.
ção era“(...) estudar a influência do elemento africano no desenvolvimento do Brasil,<br />
sob o ponto de vista da etnografia, do folclore, da <strong>arte</strong>, da antropologia, da história, da<br />
sociologia, do direito, da psicologia social, enfim, de todos os problemas de relações<br />
de raças no país (Carneiro: 1940, 7).”<br />
Participaram desse evento, especialistas nacionais e estrangeiros tais como,<br />
Rüdiger Bilden, Fernando Ortiz, Reuter, Charles Johnson, Robert Park, Richard Pattee,<br />
Henry Wallon, Maria Archer... Mario de Andrade responsável pelo Departamento de<br />
Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, enviou à Bahia o maestro Camargo Guar-<br />
nieri para o recolhimento das notações musicais dos candomblés locais. O Instituto Nina<br />
Rodrigues, sob a direção do professor doutor Estácio de Lima, numa sessão dedicada a<br />
Nina Rodrigues, foi exposta uma coleção que incluía os pêjis, bonecas de tamanho natu-<br />
ral trajadas com as vestimentas especiais dos orixás. <strong>Uma</strong> delas representando a Ialorixá<br />
Mãe Menininha do Gantois. Além de sociedades e grêmios de estudos em defesa da et-<br />
nia negra, como a All African Convention, a Frente Negra de Pelotas, o Centro de Estu-<br />
do Histórico, a Sociedade de Investigações Afro-ameríndias de Porto Alegre...<br />
tópicos:<br />
Os artigos abordados no acontecimento foram apresentados sobre os seguintes<br />
1. Deuses africanos e santos católicos nas crenças do negro do novo mundo, Melville J.<br />
Herskovits.<br />
2. Costumes e práticas do Negro, Adhemar Vidal.<br />
3. <strong>Uma</strong> revisão da etnografia religiosa <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, Edison Carneiro.<br />
4. O moleque do canavial, Clovis Amorim.<br />
5. Um sistema de referência para o estudo dos contatos sociais e culturais, Donald<br />
Pierson.<br />
6. O negro e a cultura no Brasil, Renato de Mendonça.
7. Contribuições bantus para o sincretismo fetichista, Reginaldo Guimarães.<br />
8. O Ainhum nos anúncios de escravos fugidos, Robalinho Cavalcanti. 3<br />
9. Culturas negras: problemas de aculturação no Brasil, Arthur Ramos.<br />
10. A raça e a classe na Bahia, Ronald Pierson.<br />
11. O médico dos pobres, Edison Carneiro.<br />
12. Influência da mulher negra na educação <strong>brasileira</strong>, Amanda Nascimento.<br />
13. Os ministros de Xangô, Professor Martiniano do Bonfim.<br />
14. A concepção de Deus entre os negros yorubás, Ladipô Sôlankê.<br />
15. O negro e o espírito guerreiro nas origens do Rio Grande do Sul, Dante Laydano.<br />
16. Documentos antigos sobre a guerra dos negros palmarinos, Alfredo Brandão.<br />
17. Danças negras no nordeste (notas e observações colhidas em Alagoas e<br />
Pernambuco), Manuel Diegues Jr.<br />
18. Presença africana na música nacional de Cuba, Salvador Gárcia Agüero.<br />
19. Elogio de um chefe de seita, Jorge Amado.<br />
20. Homenagem a Nina Rodrigues, Edison Carneiro.<br />
21. Nina Rodrigues e os estudos negro-brasileiros, Arthur Ramos. (Carneiro: 1940) 4<br />
Aos congressistas exibiu-se capoeira, samba e batuque e o oferecimento de<br />
festas de terreiros tradicionais, o candomblé do Engenho Velho (considerado na época o<br />
terreiro mais antigo), o do Axé de Opô Afonjá e a dos terreiros de Procópio, de<br />
Bernadino e do Alakêtu. As manifestações apresentadas iam ao encontro das discussões<br />
ali presentes nos procedimentos de aculturação da população negra e a sua adaptação<br />
desde a vida religiosa com o vínculo do indivíduo e a cosmogonia, quanto na sua<br />
3 Termo de origem dos povos nagôs que significa serrar e faz referência a amputação espontânea do quinto<br />
pododáctilo (dedo de pé) por uma moléstia rara e de causa desconhecida acometendo principalmente<br />
indivíduos de origem étnica negra.<br />
4 Trabalhos apresentados ao 2° Congresso Afro-Brasileiro na Bahia em 1937.
hierofania atreladas a diferentes aspectos culturais partilhados nas práticas de contato<br />
refletidas na vida social.<br />
O grande mérito do congresso foi promover um espaço de discussão aproximan-<br />
do, mesmo que não intensamente, os teóricos com aqueles que vivenciavam na prática<br />
os processos de iniciação e o entendimento dos aspectos litúrgicos provenientes de ter-<br />
reiro. O diferencial entre o congresso recifense e o baiano está na participação direta de<br />
babalorixás e ialorixás e de outros interessados e pesquisadores no assunto buscando<br />
não apenas apresentar o negro como estudo mas, também como pensador de sua prática.<br />
Como conceituar uma estética oriunda de uma <strong>arte</strong> negra tradicional africana?<br />
Seria a partir das condições locais arroladas às questões sociais, econômicas e culturais<br />
desenvolvidas por meio dos processos de fusão, justaposição e convergência entre<br />
povos dominantes e dominados de etnias distintas? Ou esse entendimento seria <strong>possível</strong><br />
na contextualização de uma produção africana de caráter tradicional para se abordar<br />
elementos de uma <strong>arte</strong> que não é somente étnica, no entanto essencialmente <strong>brasileira</strong>?<br />
Quem definiria essa <strong>arte</strong>? A crítica de <strong>arte</strong>? Ou o mercado? O tema e/ou origem étnica<br />
poderiam caracterizar uma estética <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>? Ou o eu enunciador participaria<br />
numa definição dela?<br />
Pensando-se em artistas de origem popular como Heitor dos Prazeres<br />
(1898 - 1966), Paulo Pedro Leal (1894-ca.1968 ), João Alves (1906-ca.1970), Waldomi-<br />
ro de Deus (1944), entre outros. Ou de artistas, nos quais a figura do negro aparece<br />
eventualmente sem necessariamente corresponder a uma temática, como nas obras de<br />
Lasar Segall (1891-1957), Tarsila do Amaral (1886-1973), Alberto Veiga Guignard<br />
(1896-1962), Lucílio de Albuquerque (1877-1939), Cândido Portinari (1903-1962),<br />
Djanira (1914-1979), José Pancetti (1902-1958) e Di Cavalcanti (1897-1976). Ou então<br />
aqueles artistas <strong>afro</strong>-descendentes que desenvolveram suas pesquisas plásticas esponta-
neamente e inconscientemente numa estética africana, como Rubem Valentim<br />
(1922-1991), Mestre Didi (1917), Ronaldo Rego (1956), Hélio de Oliveira (1929-1962)<br />
e Agnaldo Manuel dos Santos (1926-1962).<br />
Proponho um olhar sobre a obra de Mestre Didi e Rubem Valentim como produ-<br />
ções geradas a partir de cânones próprios de origem religiosa na utilização de signos e<br />
de símbolos construindo imagens que foram traduzidas para uma linguagem contempo-<br />
rânea.<br />
Simbologia e corporalidade na mítica da produção <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> de<br />
mestre Didi e Rubem Valentim<br />
As obras de Mestre Didi e Rubem Valentim demonstram similitudes dentro de<br />
uma compreensão de mundo africana por traduções poéticas e vias diferentes através do<br />
aspecto religioso e da mitologia.<br />
Mestre Didi caracteriza-se por apresentar em sua obra uma vertente mitológica<br />
enquanto o artista Rubem Valentim define-se por uma vertente construtivista.<br />
Os símbolos atuam como matéria criadora de formas artísticas, intensificadas<br />
pelo aspecto sagrado da vida, reafirmando a presença dos orixás em signos possíveis de<br />
serem reconhecidos por uma coletividade, funcionando em sua essencialidade, como<br />
síntese de um universo estético-litúrgico.<br />
O fato de a mitologia, a religião e a <strong>arte</strong> representarem veículos sensíveis de<br />
cultura, transmissão de conteúdos e necessidades latentes dos seres, pode-se afirmar,<br />
que esses três campos de conhecimento não podem ser entendidos autonomamente,<br />
encontram-se interligados e definidos por um caráter de identificação de ancestralidade<br />
na expressão de virtudes individuais e coletivas.
A <strong>arte</strong> representa o revivificar do ato criador através do contato com a natureza e<br />
a inserção no cosmo por toda a historicidade dos tempos primordiais e atuais, acrescida<br />
também do espírito e do coração, elementos que vão além da apreensão somente visual.<br />
Refere-se aqui a proximidade dos seres com os ancestrais na forma do culto aos mortos,<br />
pois são os que trazem as benesses, a fertilidade e o afastamento dos perigos existentes.<br />
O candomblé possui como base, o culto aos ancestrais presentificados na figura<br />
dos orixás, serviram como fonte de pesquisa pessoal desses dois artistas na experiência<br />
do sagrado e na inspiração mítica trazidas numa série de cargas simbólicas transpostas<br />
nas cores, nos materiais empregados e nas formas.<br />
No centro de toda a criação está o homem, como criador e ao mesmo instante,<br />
como criatura, exercendo a comunicação com o interno e o externo, o material e<br />
imaterial, o sagrado e o profano, o universal e o particular, o extra-natural e o natural, a<br />
tradição e a contemporaneidade. O sagrado presente em todos os instantes e em todas as<br />
instâncias partilhando do cotidiano.<br />
Na obra de Mestre Didi há a presença do universo existencial africano,<br />
retomando p<strong>arte</strong> de sua história, desde a tenra idade estava inserido nas práticas<br />
litúrgicas do candomblé, tornando-se um iniciado (conhecedor dos mistérios), recriava<br />
os objetos pertencentes aos ritos dando um enfoque plástico. Trabalha com a simbologia<br />
dos orixás representadas nas cores como meio de corporificar os seus princípios-<br />
poderes no uso dos materiais e na relação do mundo visível e invisível.<br />
Rubem Valentim traduz as suas configurações em um abstracionismo<br />
geométrico, síntetizando, desconstruindo e retraduzindo os instrumentos pertencentes às<br />
entidades em signos plásticos, imunizados e privados de suas próprias virtudes<br />
originais. O candomblé não fazia p<strong>arte</strong> diretamente de sua realidade, de sua vivência<br />
mística, acompanhou posteriormente, os rituais do candomblé e mais especificamente
da umbanda por representar para ele a síntese da formação cultural <strong>brasileira</strong>. Sua<br />
referência básica de construção das formas pautadas na tradição européia, mesclando a<br />
sua africanidade à conteúdos eruditos, como num processo alquímico, o conhecimento<br />
transfigurado numa realidade africana.<br />
Rubem Valentim<br />
Emblema, 1973<br />
acrílico sobre tela<br />
100 x 73 cm<br />
Coleção Torquato Sabóia Pessoa
Em Mestre Didi ocorrem relações de convívio com o tema desenvolvido, pois,<br />
encontrava-se num ambiente genuíno partilhado dessas formas estéticas transfigurando-<br />
as para reafirmar a sua visão existencial de um meio cultural elaborado na sua erudição.<br />
Cada um seguiu uma das vias de manifestação, a primeira que toma as formas da<br />
natureza como desenhos abstratos incorporados por Valentim. Faz a observação<br />
documental dos emblemas e signos procurando universalizar a <strong>arte</strong> remetendo a<br />
religião, a ética, a metafísica e aos esquemas sociais, fundamentando a valorização de<br />
uma cultura <strong>brasileira</strong> com seus sincretismos (umbanda) devido à presença do africano,<br />
indígena e europeu na constituição de um povo.<br />
E a outra via, abordada por Mestre Didi, relaciona cada entidade a uma cor ou a<br />
um som específico através de incorporações. Ele nasceu e conviveu intimamente na<br />
cultura Nagô (candomblé), tornando-se sacerdote e conhecedor dos mistérios (iniciado),<br />
atualizando a visão teológica, cósmica e mítica de seus antepassados ligando o homem a<br />
Terra, isso é traduzido na execução de objetos não só estéticos, mas que fazem p<strong>arte</strong> de<br />
uma prática litúrgica.<br />
O símbolo para os dois artistas é o gerador da experiência individual<br />
transmudando em ato espiritual e em compreensão transcendente do universo. A<br />
sacralidade da vida baseia-se na recriação do mundo primordial personificadas na figura<br />
dos orixás e em seus emblemas vinculados a Natureza, ao mistério de regeneração<br />
periódica dos cosmos, participando do inconsciente coletivo dos indivíduos e assim,<br />
refletido nas condutas dos seres, em seus papéis sociais e integrativas de uma<br />
comunidade.<br />
O enfoque é encarar o símbolo como gerador de formas estéticas e poéticas<br />
transferidos na mítica dos orixás, com suas representações não antropomórficas (origem<br />
yorubá – Nagô), com seus contornos retirados da natureza, as cores como portadoras
dos princípios – poderes que são as funções que lhe foram atribuídas por Olodumare ou<br />
Olorum (Ser Supremo), as armas que eles utilizam agem como um identificador de suas<br />
forças, além dos materiais que caracterizam essas entidades por suas qualidades e<br />
participantes da prática litúrgica, conferindo significados não podendo ser substituídos.<br />
Esses mitos originalmente fazem p<strong>arte</strong> dos poemas oraculares cultivados pelos<br />
babalaôs, falam da criação do mundo e de como ele foi repartido entre os orixás.<br />
“Relatam uma infinidade de situações envolvendo os deuses, os homens, os animais, as<br />
plantas e os elementos da natureza e da vida em sociedade. É pelo mito que se<br />
interpreta o presente e se prediz o futuro nesta e outra vida.” (Prandi: 2001, 24)<br />
É por meio do mito que o homem se encontra dramatizado e cria uma<br />
proximidade com as divindades. Ele vem acompanhado com o rito e o rito realiza o<br />
mito e permite a vivência;“O rito remete ao tempo de origem pela repetição do ato<br />
criador dos deuses permitindo todo gesto criador humano não importando o seu plano<br />
de referência”.(Eliade: 2001)<br />
De certo modo a obra de Mestre Didi possui o aspecto de <strong>arte</strong> ritual por trazer no<br />
seu cerne a dramatização da história do homem e seus ancestrais nas entidades como<br />
fonte inspiradora do ato de criação.<br />
Um símbolo não pode indicar uma coisa particular, ele denota uma espécie (um<br />
tipo de coisa). E não apenas isso. Ele mesmo é uma espécie e não uma coisa única.<br />
(Santaella: 1983)<br />
O símbolo, nestas obras, participa de um dado contexto possibilitando diferentes<br />
interpretações e um significado único para cada ser de acordo com suas vivências. A<br />
universalidade, o que seria comum a um povo nas suas referências, na sua tradição, na<br />
sua cultura, nas suas convenções seria o que permitiria estabelecer a comunicação com
o outro - o individual - na apreensão da realidade, na subjetividade e objetividade da<br />
vida.<br />
A busca para se estudar a infinidade de símbolos presentes nas obras de Mestre<br />
Didi é o caminho para se tentar o entendimento sobre a construção de formas plásticas<br />
que direcionam a universalidade e ao mesmo tempo a tradicionalidade na manifestação<br />
do sagrado na religiosidade africana. Esses elementos são reinterpretados dentro de uma<br />
realidade absoluta – hierofania - estabelecendo a comunicação com as entidades e<br />
revivendo o aqui e o agora num presente contínuo que é o eterno retorno.<br />
A religião para Engels traduz a angústia do homem em face das forças<br />
misteriosas de uma natureza que não pode domesticar; tomam por isto forças<br />
supraterrenas (Bastide: 1985), atuando no homem tanto no psicológico e no social.<br />
Tratando-se de <strong>arte</strong> africana é por definição uma <strong>arte</strong> religiosa, o estético é<br />
funcional, expressa categorias, diferentes qualidades são componentes de um todo e<br />
ativos indutores de uma ação. Atuam como portadores e presentificadores de forças<br />
místicas em que estimulam a memória grupal e o processo de adoração. O belo como<br />
universal é necessário como correspondentes das exigências do espírito humano para a<br />
criação.<br />
Os símbolos presentes na mitologia dos orixás revivificados na obra de Mestre<br />
Didi e Rubem Valentim com suas diferenciações enquanto processo, o primeiro, como<br />
experiência iniciática, transcende o plano litúrgico fazendo p<strong>arte</strong> da vertente mitológica<br />
nas <strong>arte</strong>s e o outro geometriza e poetiza as formas vivas da cultura <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong><br />
remetendo a estruturas totêmicas (construtivista). Propõe-se aqui uma discussão sobre o<br />
fazer artístico numa cultura de caráter popular que não é cristalizada renova-se nas<br />
elaborações conscientes e inconscientes de uma coletividade revitalizadas nas suas
crenças. O homem vinculado ao espaço cósmico e as raízes que é a essência e a<br />
compreensão de sua existência.<br />
E parafraseando José Marianno Carneiro da Cunha, na <strong>arte</strong> de Mestre Didi “o<br />
ícone africano tem resistido a todas as transformações aculturativas no Brasil, e pode<br />
comunicar-se ainda com a força do idioma original (...) que extrapola o indivíduo e<br />
fala dos valores constantes de uma cultura, falando nesta medida, também por todos.”<br />
(Cunha: 1983)<br />
Rubem Valentim declara:<br />
Minha <strong>arte</strong> tem um sentido monumental intrínseco. Vem do rito, da festa.<br />
Busca as raízes e poderia reencontrá-las no espaço, como uma espécie de<br />
ressocialização da <strong>arte</strong>, pertencendo ao povo. É a mesma monumentalidade<br />
dos totens, ponto de referência de toda a tribo. Meus relevos e objetos pedem<br />
fundamentalmente o espaço. Gostaria de integrá-los em espaços urbanísticos,<br />
arquitetônicos, paisagísticos. Meu pensamento sempre foi resultado de uma<br />
consciência da terra, de povo. Eu venho pregando há muitos anos contra o<br />
colonialismo cultural, contra a aceitação passiva, sem nehuma análise crítica,<br />
das fórmulas que nos vêm do exterior - em revistas, bienais, etc. É a favor de<br />
um caminho voltado para as profundezas do ser brasileiro, suas raízes, seu<br />
sentir. A <strong>arte</strong> não é apanágio de nenhum povo, é um produto biológico vital.<br />
(Valentim: 2001, 30)<br />
O homem é um ser simbólico, traz como repertório uma série de signos que al-<br />
cançam um sentido em sua existência, para se transformar em objetos artísticos e para<br />
estabelecer uma linguagem com um grupo, refletindo a sua identidade, os seus valores,<br />
a sua historicidade, a sua religiosidade, a sua cultura, a sua sociedade, os seus conflitos<br />
e numa esfera maior a apreensão do cotidiano.<br />
A obra O cetro da arvore com serpentes e pássaro na copa (Òpá Igi Ejo Meji ati<br />
~Eyé Kan Ióri), constitui-se de palhas para a estruturação da p<strong>arte</strong> central numa<br />
verticalidade em movimento de ascensão, finalizadas com a representação<br />
tridimensional do pássaro recoberto com tecido vermelho; na p<strong>arte</strong> superior de seu<br />
corpo e na inferior com tecido chita, com flores em tons vermelhos e amarelos.<br />
Acrescidas ainda, a cor secundária laranja como fundo complementar proveniente das<br />
costas do animal contrastadas com a p<strong>arte</strong> interna com a cor verde.
Mestre Didi<br />
Òpá Igi Ejo Meji ati ~Eyé Kan Ióri<br />
(Cetro da árvore com serpentes e pássaro na copa)<br />
Sem data. Técnica mista. 105x50x20 cm<br />
Coleção do artista<br />
Catálogo Arte <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>
Em volta emanam das bases laterais, frontais e traseiras as nervuras eretas em<br />
diagonais que remetem aos galhos de uma árvore circundada com movimentos sinuosos<br />
de serpentes com as cabeças apontadas, uma para a direita e a outra para a esquerda.<br />
Essas formas integram-se e criam um sistema simbólico pelo uso dos materiais<br />
específicos, objetos transitórios de práticas litúrgicas e transformadas na sua erudição<br />
em objeto artístico. Os couros que ao mesmo tempo ornamentam e sustentam a peça<br />
com suas cores puras representam as forças que impulsionam a vida. Elas ganham<br />
sentido acrescido de outros materiais como miçangas, contas, cauris, a chamada<br />
popularmente lágrima de Cristo, usada para feitura de terços... relacionam-se como por<br />
exemplo, na cor preta, vermelha e branca, que poderia configurar respectivamente o<br />
por- do- sol, a noite e o dia, a integração com a natureza como representação de todos<br />
axés da força ativa que estão nos orixás e nos homens.<br />
O feixe de nervura que compõe a verticalidade do cetro que indicam uma força<br />
que ascende e aproxima do sagrado e outra que descende que afirma o solo em seu<br />
aspecto terreno. O cetro confere e simboliza poder. Nos cultos dos ancestrais perpassa<br />
pela devoção e respeito aos acontecimentos.<br />
A aproximação dos mitos dá-se com os signos que remetem aos orixás tanto nas<br />
cores quanto na forma. A árvore ancestral na mitologia dos orixás é representada por<br />
Iroco a primeira árvore plantada e seu espírito podia ser capaz de muitos poderes que<br />
tenderiam tanto para o bem quanto para o mal.<br />
Oxorongá.<br />
O pássaro aparece como símbolo tanto na história mítica de Ossaim e de Iá Mi<br />
Ossaim, filho de Nana e irmão de Oxumaré Euám, era o senhor das folhas, da<br />
ciência e das ervas, conhecedor do segredo da cura e do mistério da vida. É identificado<br />
como um pássaro a partir de um acontecimento específico, neste caso, a história de um
ei que decidiu casar sua filha mais velha. Lançou um desafio aos pretendentes que era<br />
aquele que descobrisse o nome das três filhas, casaria com a princesa que seu pai<br />
gostaria de desposá-la. Ossaim imitou, disfarçou-se em pássaro e brincou com as<br />
princesas descobrindo o nome de cada uma delas.<br />
Iá Mi Oxorongá são as feiticeiras e as mães ancestrais que continham o princípio<br />
do bem e do mal. Cada uma tinha os seus pássaros. Eram conhecidas como mulheres-<br />
pássaros. O símbolo é uma espécie de moringa com um pássaro no topo.<br />
O bem aparece como modo conversível com o Ser podendo ser entendido tal<br />
como a propriedade de um ente ou como um valor. Caracterizando-se como algo físico,<br />
metafísico e moral. Enquanto o mal funcionava como realidade ou a ausência dela e<br />
como negação de valor, atuava como elemento necessário para a harmonia universal<br />
relacionadas com a manifestação do bem.<br />
A Ejó do yorubá refere-se à serpente que se aproxima dos mitos de Dan que é o<br />
vodun da riqueza, na religião Fon, representa uma serpente que se rasteja e se esconde<br />
na terra que se eleva ao céu na forma de arco-íris, denominando-se Dan Ayidohwedo,<br />
vai até as nuvens para semear as chuvas benfazejas. Corresponderia a Oxumarê que<br />
também tem profunda relação com o arco-íris e a chuva, um servidor de Xangô, que<br />
seria encarregado de levar as águas da chuva de volta para as nuvens através do arco-<br />
íris. Simbolizando a continuidade e a permanência, morde a própria cauda. Envolve-se<br />
ao redor da terra para que se mantenha . integrada regendo o príncipio da multiplicidade<br />
da vida.<br />
As serpentes que se revolteiam entre os galhos e o caule numa espécie de dança<br />
em que os dois corpos ao mesmo tempo se apoximam e se distanciam como polarização<br />
de forças opostas equilibradas no entendimento do mundo natural com o sobrenatural .
As formas configuram-se num corpo litúrgico e corpo social tal como um<br />
processo iniciático. A iniciação e a vivência no terreiro permite instaurar uma visão de<br />
mundo apoiadas nas crenças em que o corpo humano e a vida nas representações<br />
biológicas daquilo que é considerado essencial.<br />
O corpo é o veículo de comunicação com os deuses são forças da natureza<br />
através da possessão ritual interligando aos habitantes de orum (céu) e do aiê (terra).<br />
Cada orixá é concebido e associado a um dos quatro elementos da natureza: àgua, terra,<br />
fogo e ar. Como também é o arquétipo que fornece padrões de comportamentos.<br />
O corpo é o veículo de comunicação com os deuses, são forças da natureza<br />
através da possessão ritual interligando aos habitantes do orum (céu) e do aiê (terra).<br />
Estabelece-se a idéia de um corpo-memória que foi construído por linguagens<br />
corporais distintas em razão do confronto entre as matrizes étnicas que compuseram o<br />
que seria um corpo brasileiro pelo processo de miscigenação e hibridismo cultural.<br />
Essas linguagens traduzem o idioma desse corpo como reminiscência de um corpo<br />
negro subjetivado no que se refere ao que é permitido conhecer do “meu corpo” e a<br />
relação com outros corpos, o corpo do outro, o corpo social ou então o corpo cultural.<br />
Ou ainda:<br />
Para Gabriel Marcel, há duas maneiras de considerar o corpo: pode tratar-se<br />
de ‘meu corpo’, em cujo caso a relação é de natureza absolutamente singular.<br />
De fato, a relação entre a alma e o corpo (ou, mais exatamente, a relação<br />
entre mim e meu corpo) é um mistério e não um problema. O corpo pode ser,<br />
por certo, ‘objetivado’, convertido em objeto de conhecimento científico.<br />
Mas então já não propriamente o ‘meu corpo’ (não é corpo de ‘ninguém’). É<br />
uma simples amostra. (Mora: 2001, 137)<br />
Para Jean-Paul Sartre, o corpo apresenta-se em três dimensões ontológicas.<br />
Na primeira, trata-se de um ‘corpo para mim’, de uma forma de ser que<br />
permite enunciar ‘eu existo meu corpo’... Na segunda dimensão, o corpo é<br />
para outro (ou então o outro é para o meu corpo); trata-se neste caso, de uma<br />
corporalidade radicalmente diferente da do meu corpo para mim. Pode-se<br />
dizer, então, que ‘o meu corpo é utilizado e conhecido por outro’. ‘Mas na<br />
medida em que eu sou para outro, o outro se revela a mim como o sujeito<br />
para quem sou objeto. Então eu existo para mim como conhecido por outro,<br />
em particular em sua facticidade mesma. Eu existo pelo outro em forma de<br />
corpo. (Mora: 2001, 137-138)
Na obra de mestre Didi antes de ser um objeto litúrgico confere o conceito de<br />
corpo, um corpo social que se apresenta através de signos que remetem aos orixás numa<br />
busca de coerência entre o mundo natural e o sobrenatural. Esse corpo atua como<br />
microcosmo nas relações com o sagrado. É um ator social que o identifica dentro de<br />
uma comunidade, o que permite a unicidade e tornar-se portador de uma identidade.<br />
Trata-se de uma cultura que carrega uma identidade nacional. O homem como<br />
idealizador e como agente pensante de seu meio. Qual é o papel do artista com seus<br />
valores ideológicos naquilo que retrata, neste caso a própria dificuldade de se definir<br />
uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, ao dramatizar a história nos objetos e na humanização do corpo<br />
na contemporaneidade?
3º CAPITULO<br />
UMA POSSÍVEL ARTE AFRO-BRASILEIRA<br />
Religião e espaço de exibição: tensões entre o popular e o erudito<br />
O ideário modernista buscou na cultura popular, constituída majoritariamente<br />
por elementos de matrizes negras e indígenas, definir uma <strong>arte</strong> de contorno nacional na<br />
tentativa de alimentar o que se considerava de mais autêntico na produção artística<br />
erudita durante o período dos anos 20 até os 40 do século XX.<br />
O modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um abandono consciente de<br />
princípios e de técnicas, foi uma revolta contra a intelligensia nacional. É<br />
mais <strong>possível</strong> imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse preparado<br />
em nós um espírito de guerra. E as modas que revestiram este espírito foram<br />
diretamente importadas da Europa. Quanto a dizer que éramos<br />
antinacionalistas, é apenas bobagem ridícula. É esquecer todo o movimento<br />
regionalista aberto anteriormente pela Revista do Brasil primeira fase, todo o<br />
movimento editorial de Monteiro Lobato, a arquitetura e até urbanismo<br />
(Dubugras) neo-colonial aqui nascidos. Isso sim eram raízes engrossadas<br />
desde o início da guerra. Mas o espírito e as modas foram diretamente<br />
importados da Europa.<br />
Ora São Paulo estava muito mais “ao par” que o Rio de Janeiro. E,<br />
socialmente falando, o modernismo só podia ser importado por São Paulo e<br />
arrebentar aqui. Havia uma diferença profunda, já agora pouco sensível, entre<br />
Rio e São Paulo. O Rio era muito mais internacional, como norma de vida<br />
exterior. Está claro: capital do país, porto de mar, o Rio tem um<br />
internacionalismo ingênito. São Paulo ao mesmo tempo estava, pela sua<br />
atualidade comercial e sua industrialização, em contato, se menos social,<br />
mais espiritual (não falo “cultural”) e técnico com a atualidade cultural.<br />
(Andrade in O Estado de São Paulo: 2002, 09) 5<br />
Preocupações que distanciavam a <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> de algumas formulações das<br />
vanguardas históricas, ou seja, aproximava-a de considerações que focavam a realidade<br />
física e humana do país estabelecidas no retorno à ordem que suprimia os<br />
questionamentos estéticos e artísticos menos moderados das vanguardas, para o regresso<br />
ao realismo e à valorização do nacional.<br />
5 Artigo intitulado O movimento modernista escrito por Mário de Andrade em 1942 abordando as origens<br />
da Semana Moderna e o contexto em que surgiu foi republicado no Estado de São Paulo em 2002.
Determinadas características presentes nas manifestações expressivas e artísticas<br />
do povo, definiriam uma <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> dentro de relações sincréticas numa<br />
contraposição entre a contribuição de matrizes não européias e a presença do europeu na<br />
formação de uma identidade nacional.<br />
Mário de Andrade e Roger Bastide levantavam no cenário paulista anos 30 e 40,<br />
juntamente com outros críticos, questões nas quais o aspecto popular era o elemento<br />
central na construção da visualidade <strong>brasileira</strong>. O Grupo Santa Helena, tinha como<br />
origem imigrantes e seus descendentes que participavam na discussão dessa visualidade<br />
nos anos 30, negando a princípio os postulados das vanguardas históricas numa<br />
perspectiva não acadêmica; valorizando os meios técnicos fundamentalmente <strong>arte</strong>sanais<br />
e de atributo popular.<br />
Para Mário de Andrade, a cultura popular era detentora de qualidades raras e<br />
deveria ser conservada para não ser dissipada em sua essencialidade. O seu interesse<br />
pelas manifestações culturais tornava-se evidente ao incorporá-lo na sua produção<br />
literária de caráter erudito, como exemplo, as obras Paulicéia desvairada (1922), Clã<br />
do Jabuti (1927) e Macunaíma (1928). A matéria popular era fonte de criação para o<br />
registro de <strong>arte</strong> erudita, objetivando construir com esse referencial uma noção de cultura<br />
com contornos nacionais.<br />
Numa outra fase de sua carreira, a cultura popular transforma-se em material de<br />
pesquisa, com a expedição para o Nordeste ocorrida nos anos de 1928/29, aprofundando<br />
suas leituras antropológicas e transformando-as em prática científica; e a sua atuação no<br />
Departamento de Cultura de São Paulo, entre 1935 a 1939, no qual criou a Sociedade de<br />
Etnografia e Folclore e promoveu cursos de formação de pesquisadores de campo.<br />
Mário de Andrade acreditava que, o contato do artista erudito com o outro<br />
proveniente do povo, fazia-se o ideal, conferindo desse modo, uma fissura que teria
como conseqüência, um produto resultante de um diálogo entre as formas eruditas e<br />
populares que formataria uma <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong>.<br />
Nesse contexto surgiu como problemática a busca de um corpo e de uma alma<br />
<strong>brasileira</strong> na constituição da descoberta e da concepção de identidade do intérprete.<br />
Essas fissuras abarcam, inevitavelmente, uma série de contradições que a modernidade<br />
em sua heterogeneidade acarreta, como: o moderno e o tradicional, o culto e o popular e<br />
o hegemônico e o subalterno. (Canclini: 1997, 206)<br />
O movimento de luta e resistência e de apropriação e expropriação na cultura<br />
popular, ao mesmo tempo que contém e resiste, possibilita a destruição e alteração<br />
dessas formas em outra coisa ao sair do cotidiano popular para assumir outro espaço.<br />
Para Hall, “não existe uma “cultura popular” íntegra, autêntica e autônoma, situada<br />
fora do campo de força das relações de poder e de dominação cultural.” (Hall, 2003:<br />
232)<br />
A idéia de embate cultural carrega consigo a noção de resistência,<br />
fundamental nas reflexões de Bastide sobre o sincretismo. O que se observa<br />
pelo exame do folclore brasileiro é um jogo de vida e morte entre culturas,<br />
em que as mais fortes — no caso, a portuguesa — têm maiores chances de<br />
manutenção. As civilizações ameríndias foram mais duramente destruídas<br />
entre nós; mesmo assim, alguns de seus elementos ainda povoam o folclore<br />
brasileiro. A cultura africana, por sua vez, conheceu situação paradoxal no<br />
contexto da sociedade escravista. (Peixoto: 1999, 102)<br />
Ocorre uma tensão permanente e de caráter antagônico na cultura <strong>brasileira</strong><br />
criando modos de formações dominantes e sujeitadas. Isso permite que algumas<br />
práticas, sejam preteridas em detrimento de outras pelas relações de forças variáveis,<br />
encontradas nas formas de tradição e da transformação das práticas populares nos<br />
espaços de convívio social e cultural.<br />
A questão da autenticidade cultural — que diz respeito à constituição de uma<br />
identidade nacional do ângulo da cultura — coloca-se como um problema<br />
especialmente delicado em um país colonial que se desenvolveu a partir da<br />
importação, e da imposição, de modelos estrangeiros. O autêntico, nesse<br />
contexto, tanto para os modernistas quanto para Bastide, compreende a<br />
contribuição de legados culturais distintos que se mesclaram em diferentes<br />
momentos da história do país, e que produziram sínteses particulares,<br />
diferentes dos padrões primeiros que aqui chegaram. A originalidade, como
vimos, corresponde à mescla cultural, à criação dotada de caráter próprio, não<br />
se confundindo, portanto, com "pureza" ou "cópia". (Peixoto: 1999, 102)<br />
O modo como os embates culturais e sociais apresentam-se, e<br />
conseqüentemente, a fusão dos valores estabelecidos pelos grupos relacionais,<br />
concebem uma expressão artística autêntica numa luta entre as relações de poder<br />
alicerçadas na ordem social e na desordem simbólica. A <strong>arte</strong> popular demonstra a<br />
reprodução e o movimento de contestação de uma ordem abrangendo as questões<br />
sociais pertencentes a um povo e definidoras na constituição de uma cultura não-<br />
dominante frente a uma dita oficial. Para persistir as formas populares buscam modos<br />
de resistência e reelaboração de suas práticas, constituídas em seu aspecto artístico não<br />
pautado apenas na tradição.<br />
O papel da tradição não é apenas o da transmissão puramente desses conteúdos,<br />
no entanto, esta atua tanto como maneira de perpetuação, quanto de associação e<br />
articulação dos contextos formais no cotidiano de uma comunidade.<br />
Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segundo termo<br />
entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código ideológico<br />
de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e<br />
mesma língua. Conseqüentemente, em todo signo ideológico confrontam-se<br />
índices de valor contraditórios. (Volochínov apud Hall: 2003, 242)<br />
Roger Bastide interessava-se pela produção artística local, considerando uma<br />
estética nacional denotada pela <strong>arte</strong> figurativa que reafirmava o ideário nacional sob a<br />
ótica do modernismo, na sua compreensão dos meios de representação das formas<br />
expressivas, condizente com os valores traduzidos numa poética articulada pelos artistas<br />
em suas obras.<br />
Bastide encontrava-se afinado com os conteúdos dominantes da crítica<br />
modernista e perseguia uma estética da cidade de São Paulo, uma estética da paisagem<br />
nacional e, principalmente, uma poética <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>; ao discutir as manifestações<br />
artísticas populares, a contribuição negra e a visualidade dos candomblés. Suas<br />
preocupações coincidiam com as dos críticos paulistas; ao valorizar a <strong>arte</strong> figurativa
como construção de uma visualidade de identidade nacional. Diferentemente dos<br />
críticos cariocas que viam na <strong>arte</strong> abstrata um foco de pesquisa visual.<br />
O folclore, o barroco e a literatura permitem a Bastide olhar para o país a<br />
partir da trama sincrética, isto é, da concorrência desigual entre os dois<br />
sistemas culturais: o branco/europeu — que nos três casos constitui o<br />
fundamento do composto sincrético — e o negro, que luta para ferir a camada<br />
dominante e impor os seus valores. A religião, por sua vez, vai oferecer ao<br />
intérprete um ângulo de observação inusitado. Reduto privilegiado da reação<br />
africana, os cultos <strong>afro</strong>-brasileiros permitem iluminar o pólo da resistência<br />
africana. Desse modo, possibilitam ao cientista a decantação da África a<br />
partir da composição mestiça. Ou seja, no exemplo religioso, ao contrário dos<br />
demais, a grade sobre a qual irão se apoiar todas as demais contribuições é<br />
negra. As religiões <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>s talvez sejam as únicas manifestações<br />
culturais capazes de inverter o sentido de acomodação das camadas que<br />
compõem a totalidade sincrética: aí, a contribuição negra é a base, o solo<br />
fundamental. Por esse motivo, oferecem ao intérprete o caminho preferencial<br />
para a apreensão da África no Brasil.<br />
A identificação e a compreensão dos objetos verdadeiramente nacionais — os<br />
compostos sincréticos — só se viabilizam pela definição de um ponto de<br />
vista que permita alcançá-los. O que os modernistas ensinam a Bastide é que<br />
o acesso ao "outro" (ou ao "outro do outro") autêntico, original, depende de<br />
um esforço de conversão do intérprete. (Peixoto: 1999, 105)<br />
No período, resgatam-se os elementos delineadores de uma identidade nacional,<br />
na qual o negro passa ser um objeto de interesse de estudo, para sinalizar uma poética<br />
<strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, significativamente com os congressos de 1934 e 1937.<br />
O termo <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> relaciona-se com a <strong>arte</strong> africana tradicional, que é<br />
fundamentalmente religiosa, mas também com outros conteúdos advindos do processo<br />
de adaptação dessa <strong>arte</strong> nas novas condições históricas. Acrescentam-se ainda, os aspec-<br />
tos sociais, culturais e econômicos do negro no país, pela configuração de uma vivência<br />
que reelabora e modifica aqueles conteúdos artísticos.<br />
Numa abordagem estética, o objeto artístico é visto em seu aspecto formal e con-<br />
templativo, anulando a sua funcionalidade no cotidiano grupal. Isso não seria negar a<br />
existência de uma espécie de sentimento estético, o que ocorre é que o conceito refere-<br />
se a uma estética clássica ocidental.<br />
Como definir a “estética africana”, a partir da definição da estética clássica<br />
ocidental? A estética é uma disciplina filosófica cuja a primeira formulação<br />
teórica foi feita por Alexander Baumg<strong>arte</strong>n, no fim da primeira metade do século<br />
XVIII. (Ver Alexander G. Baumg<strong>arte</strong>n. Esthétique Précédée des Médditations<br />
Philosophiques sur quelques sujets se rapportant à l’essence du<br />
poème et de la metétaphydique. L’Herne, Paris, 1988.- ver também Hegel G.
W. F. Esthétique, 4 Vol., traduit de l’allemand par S. Jankélévitch, Flammarion,<br />
Paris, 1979.). Para Baumg<strong>arte</strong>n, a estética é mais ou menos a teoria do<br />
conhecimento a partir da apreensão do sensível. Para Hegel, a estética não é<br />
nada mais que um discurso conceitual sobre a <strong>arte</strong>, um desdobramento do<br />
pensamento que tem por domínio de aplicação a <strong>arte</strong> enquanto esta se torna<br />
incapaz de satisfazer a necessidade de representar o ser divino. Em outras palavras,<br />
a <strong>arte</strong> não sendo mais capaz de representar deus sob forma de imagens<br />
como verdade existente, a <strong>arte</strong> não tendo mais por função a representação<br />
sensível do divino, a verdade só se manifesta então sob a forma de conceito,<br />
isto é, pelo pensamento que faz o uso do conceito como categoria da<br />
compreensão. Pelo próprio fato de deixar de satisfazer a necessidade elevada<br />
do espírito, que é a representação do divino, a <strong>arte</strong> adquire sua autonomia e<br />
sua liberdade e conseqüentemente se torna um objeto de “prazer” ou de “desprazer”.<br />
A <strong>arte</strong> se torna então uma atividade livre e desinteressada. Ou como<br />
disse Heidegger, a obra de <strong>arte</strong> deve aparecer independentemente de qualquer<br />
interesse. (Munanga: 2004, 40-41)<br />
O aspecto religioso da <strong>arte</strong> africana não permite a consideração de julgamentos<br />
estéticos explícitos o que não impossibilita uma apreciação; esta é realizada por um gru-<br />
po restrito, o artista e os iniciados que partilham de um dado ritual. As obras africanas<br />
tradicionais não são objetos de ampla exposição pública. Não existe um espaço teórico e<br />
de crítica na <strong>arte</strong> africana tradicional do ponto de vista ocidental. Isto não quer dizer que<br />
não aja um pensamento estético entre os produtores dessa <strong>arte</strong>.<br />
Nessa perspectiva, Munanga (2004), no texto A Dimensão Estética na Arte<br />
Negro-Africana Tradicional, descreve o objeto de <strong>arte</strong> negra a partir de uma abordagem<br />
etnológica na qual o estudo do objeto artístico ocorre por meio da percepção do<br />
contexto em que o objeto está inserido. Essa abordagem acentua uma visão utilitária da<br />
<strong>arte</strong> negra africana no qual, <strong>arte</strong> e religião rivalizam-se. No extremo dessa abordagem,<br />
localizam-se teóricos que acreditam que a <strong>arte</strong> africana só poderia existir numa visão<br />
ocidental. Negando, desse modo, a noção de belo entre os africanos.<br />
Outros estudiosos pautados numa abordagem estética consideravam a existência<br />
de uma <strong>arte</strong> tradicional da África Negra, sob a ótica das <strong>arte</strong>s ditas liberais ou a teoria da<br />
<strong>arte</strong> pela <strong>arte</strong>. O que há em comum entre os defensores de uma abordagem estética é a<br />
existência, entre os povos estudados, de vocábulos que designam noções pertencentes a<br />
uma acepção clássica, como por exemplo, o conceito sobre a Beleza.
Se a estética é principalmente um discurso sobre a <strong>arte</strong>, a existência desta<br />
última não depende absolutamente da existência da estética. Já houve grandes<br />
civilizações que desenvolveram <strong>arte</strong>s sem por isso constituir uma estética.<br />
Sem negar totalmente a possibilidade de uma <strong>arte</strong> africana independente da<br />
religião, observamos, portanto que o peso da religião impede a enunciação de<br />
julgamentos estéticos e torna im<strong>possível</strong> a existência de uma estética<br />
africana. Como admitir uma tal estética sabendo que a possibilidade não é<br />
dada para qualquer pessoa de gozar livremente dos objetos. Como conceber<br />
uma estética quando os elementos sensatos fazer o objeto desse discurso não<br />
devem ser mostrados? (Munanga: 2004, 43)<br />
Se os objetos são feitos para o culto carregam então, o peso da religião que<br />
impedem o julgamento crítico, existindo para serem compartilhados num rito. O<br />
conceito de Belo confere a idéia de uma encarnação de mito, encontrando-se subjugado<br />
em função de outros aspectos da vida como, a moralidade, a religião e a ordem social.<br />
Coloca-se em questão, a definição de uma <strong>arte</strong> negra tradicional, fincada numa<br />
reflexão dos cânones da <strong>arte</strong> européia. É uma visão unilateral, pois, neste caso, aquele<br />
que define os parâmetros culturais do que pode ou não ser considerado como <strong>arte</strong>, é o<br />
olhar do estrangeiro.<br />
O termo mais adequado para se tratar a <strong>arte</strong> africana tradicional seria poética,<br />
pois compreende o universo existencial do produtor como transmissor de suas crenças e<br />
de seu princípio ético. É definida pelos valores do artista e no modo de representar o<br />
mundo na busca de concretizar um projeto poético.<br />
(...) uma poética é um determinado gosto convertido em programa de <strong>arte</strong>,<br />
onde por gosto se entende toda a espiritualidade de uma época ou de uma<br />
pessoa tornada expectativa de <strong>arte</strong>; a poética, de per si, auspicia mas não promove<br />
o advento da <strong>arte</strong>, porque fazer dela o sustentáculo e a norma de sua<br />
própria atividade depende do artista. À atividade artística é indispensável<br />
uma poética, explícita ou implícita, já que o artista pode passar sem um conceito<br />
de <strong>arte</strong> mas não sem um ideal, expresso ou inexpresso de <strong>arte</strong>. (Pareyson:<br />
1997, 17-18)<br />
A estética possui caráter filosófico e especulativo, diferentemente da poética,<br />
que é fundamentada por um caráter programático e operativo. Propor um programa de<br />
<strong>arte</strong> é referir-se ao sentido moral do artista, a uma determinada concepção religiosa,<br />
política ou filosófica, demonstrada por critérios estabelecidos por ele e a sua objetivação<br />
em um ideal artístico. Essa objetivação confere uma linguagem que comunica os
critérios de valor para a realização de uma obra. A matéria torna a linguagem objetiva,<br />
ordenando e permitindo a compreensão do sentido poético de um objeto artístico.<br />
O artista é alguém pertencente a um espaço e tempo específico. Age, escolhe,<br />
define e elabora as suas propostas de um modo determinado, influenciado por seu meio<br />
sócio-histórico e seus conhecimentos existentes. O tempo e espaço da obra em processo<br />
são particulares, assumem características fornecidas pelo artista e também localizam o<br />
tempo e o espaço do artista no seu fazer. O fazer indica uma intencionalidade, uma<br />
forma em processo. É formar. Tornar uma materialidade em conteúdo significativo.<br />
A <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> não é apenas uma <strong>arte</strong> religiosa e étnica. Perfaz uma releitura<br />
de conteúdos de origem africana e funde-se com questões, que tanto de maneira superfi-<br />
cial ou de modo mais intenso, referem-se a uma temática negra. Trata-se de um concei-<br />
to aberto de difícil definição, pois o artista agrega os seus valores ideológicos naquilo<br />
que retrata e dramatiza a sua história no cotidiano.<br />
Um capítulo histórico sobre uma <strong>arte</strong> de herança africana denominada<br />
Arte Afro-Brasileira.<br />
No seu manifesto Rubem Valentim, resume-se as probabilidades de definição<br />
que a <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> permite, tanto nas relações entre o erudito e o popular, quanto<br />
na expressão religiosa, nas construções formais de uma materialidade referente a seu en-<br />
tendimento de mundo ao delinear uma <strong>arte</strong> não somente com contornos africanos, mas<br />
uma <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong>.<br />
Intuindo o meu caminho entre o popular e o erudito, a fonte e o refinamento-<br />
e depois de haver feito algumas composições, já bastante disciplinadas, com<br />
ex-votos- passei a ver nos instrumentos simbólicos, nas ferramentas do candomblé,<br />
nos abebês, nos paxorôs, nos oxês, um tipo de “fala”, uma poética<br />
visual <strong>brasileira</strong> capaz de configurar e sintetizar adequadamente todo o núcleo<br />
de meu interesse como artista. O que eu queria e contínuo querendo é es-
tabelecer um design (riscadura <strong>brasileira</strong>), uma estrutura apta a revelar a nossa<br />
realidade – a minha, pelo menos - em termos de ordem sensível. (Valentim:<br />
2001, 29)<br />
Alguns acontecimentos dos anos 60 delinearam essa poética e a colocaram no<br />
espaço de uma <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> contemporânea no século XX e XXI, por meio de exposi-<br />
ções e publicações que discutiam a questão de uma delimitação de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-brasi-<br />
leira e da inserção de artistas <strong>afro</strong>-descendentes no mercado artístico.<br />
Em 1966, no Senegal, após a independência dos países africanos e a sua reper-<br />
cussão mundial, Heitor dos Prazeres, Agnaldo dos Santos e Rubem Valentim represen-<br />
taram o Brasil no 1º Festival Mundial de Artes Negras de Dacar. Esse acontecimento<br />
demonstra o interesse pela produção artística de herança africana que se intensifica após<br />
os anos 60.<br />
A exposição A mão <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> elaborada pelo Museu de Arte Moderna de<br />
São Paulo em 1988 teve a curadoria de Emanoel Araújo, resultando numa importante<br />
publicação sobre a herança negra nas <strong>arte</strong>s <strong>brasileira</strong>s como comemoração do centenário<br />
da abolição. Outras exposições transformadas em catálogos durante os anos 90 e 2000,<br />
tinham também como preocupação, discutir a existência de uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>. Po-<br />
dem-se citar as seguintes publicações: Os herdeiros da noite: fragmentos do imaginário<br />
negro, 1994, Arte e religiosidade no Brasil: heranças africanas, 1997 e a Mostra do re-<br />
descobrimento com os módulos, Arte Afro-Brasileira e Negro de Corpo e Alma, ambos<br />
de 2000, também foram organizadas por Araújo. O Museu Afro-Brasil, inaugurado em<br />
2004, foi fruto dessas discussões anteriores, sua coleção totalizava em 2006 por volta de<br />
4.000 obras, entre esculturas, pinturas, gravuras de artistas nacionais e estrangeiros além<br />
de fotografias, livros, vídeos e documentos. O museu teve como objetivo a construção<br />
de uma identidade <strong>brasileira</strong> a partir do negro como ator social, <strong>possível</strong> de ser visto nas<br />
produções artísticas no papel de criador e de pesquisa poética, como modo de discutir a<br />
sua inserção na vida social, econômica, política e cultural do país.
O museu discute os módulos a partir da cultura e da história, na busca de uma<br />
definição de uma poética <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, em objetos artísticos trazidos nas relações entre<br />
Brasil e África, e nas configurações do trabalho no sistema escravista, nos castigos, na<br />
ancestralidade, nos modos de dominação cultural e ajustamento pela justaposição e fu-<br />
são das formas de expressão cultural; nos movimentos de resistência e na contribuição<br />
do negro em diferentes áreas de conhecimento e períodos como: Antônio Gonçalves<br />
Crespo (1846-1883), João da Cruz e Souza (1861-1898), Juliano Moreira (1873-1933),<br />
Francisco de Paula Brito (1809-1861), Machado de Assis (1839-1908), Teodoro de<br />
Sampaio (1855-1937), Milton Santos (1926-2001), Carolina Maria de Jesus<br />
(1914-1977), Ruth de Souza (1921), entre outros, juntamente com a produção artística<br />
dos séculos XVIII ao XX (agrupadas em <strong>arte</strong> moderna e contemporânea).<br />
Nesse contexto inserem-se artistas de origem negra e de formação erudita que<br />
agregam questões referentes à sua ancestralidade e aos aspectos culturais, sociais, políti-<br />
cos e econômicos; que conduziram a elaboração de um projeto poético articulando sua<br />
produção aos conteúdos e materialidades de herança africana, como por exemplo, o ar-<br />
tista Rubem Valentim. Acrescentam-se ainda, artistas brancos que reelaboram esses<br />
conteúdos em suas obras, como o artista carioca Ronaldo Rêgo, envolvido com os cul-<br />
tos de Umbanda. E por fim, os artistas <strong>afro</strong>-descendentes, nos quais a religiosidade não<br />
alicerça as suas obras e não se definem propriamente numa <strong>arte</strong> negra, propondo diver-<br />
sas questões pertinentes, como é o caso da artista Rosana Paulino que discute temas so-<br />
bre o universo feminino: a beleza, o preconceito e a violência contra a mulher.<br />
Emanoel Araújo numa espécie de manifesto no texto sobre a implantação do<br />
museu, o define como um “museu da diáspora africana no Novo Mundo” (Araújo: 2006,<br />
12) que cumpre a finalidade de realizar uma sorte de<br />
(...)desconstrução de estereótipos, imagens deturpadas e expressões ambíguas<br />
sobre personagens e fatos históricos relativos ao negro, fazendo pairar sobre<br />
eles obscuras lendas que um imaginário perverso ainda hoje inspira e que
agem silenciosamente sobre nossas cabeças; como uma guilhotina, prestes a<br />
entrar em ação a cada vez que se vislumbra a alguma conquista que represente<br />
mudança ou o reconhecimento da verdadeira contribuição do negro à cultura<br />
<strong>brasileira</strong>.<br />
Este Museu pretende unir História, Memória, Cultura e Contemporaneidade,<br />
entrelaçando essas vertentes num só discurso, para narrar uma heróica saga<br />
africana, desde antes da trágica epopéia da escravidão até os nossos dias incluindo<br />
todas as contribuições possíveis, os legados, participações, revoltas,<br />
gritos e sussurros que deram lugar no Brasil e no circuito da diáspora negra.<br />
O Museu quer refletir uma herança na qual, como num espelho, o negro possa<br />
se reconhecer (...). ( Araújo: 2006, 12)<br />
As referências que constituíram o museu, não se restringem apenas ao que existe<br />
de africanidade nos indivíduos, estabelecidas no diálogo existente pela relação de justa-<br />
posição e síntese entre as diferentes matrizes que nos constituíram como povo. Discute-<br />
se a produção de artistas anônimos e não-anônimos, permeados pelo processo de misci-<br />
genação étnica e cultural, conferindo o conceito de brasilidade à fusão luso-<strong>afro</strong>-amerín-<br />
dias na formação de uma cultura mestiça, na reinvenção do popular e nas tradições atre-<br />
ladas as produções de caráter negro erudito.<br />
Nesse sentido, a expressão <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> indica não um estilo ou um movimento<br />
artístico produzido apenas por <strong>afro</strong>-descendentes brasileiros, ou deles<br />
representativos, mas um campo plural, composto por objetos e práticas bastante<br />
diversificados, vinculados de maneiras diversas à cultura <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>,<br />
a partir do qual tensões artísticas, culturais e sociais podem ser problematizadas<br />
estética e artisticamente. (Conduru: 2007,09)<br />
A <strong>afro</strong>-brasilidade encontra-se nos convívios sociais tensos, em conseqüência da<br />
diáspora de indivíduos oriundos da África e transportados para o Brasil para tornarem-<br />
se escravos, assim como seus descendentes do período do século XVI ao XIX. Esta<br />
acepção tem em vista a diversidade da <strong>arte</strong> nas sociedades africanas tradicionais e a<br />
construção da cultura nacional pela confluência de valores das matrizes relacionadas.<br />
Na África negra, a imagem e a representação estão ligadas a uma mensagem<br />
social, educativa, humana, constantemente condensada sob a forma de um<br />
provérbio evocando um tipo de comportamento. Muito além de adequação ao<br />
que é real, da aparência, o africano vai mais longe e cria uma relação com<br />
forças que nos superam e se referem ao destino do ser humano no cosmos. O<br />
objeto de <strong>arte</strong> africano sempre apresenta um lado enigmático, abrindo espaço<br />
para o desconhecido.<br />
Assim, as <strong>arte</strong>s africanas são o resultado de um processo altamente intelectual,<br />
de uma tradução de conceitos apresentados sob a forma de uma imagem.<br />
(Neyt; Van derhaeghe: 2000, 36)
A noção de pertencimento cultural ou artístico em grupo social está na memória<br />
por questões inerentes àquele grupo. Quando determinado conteúdo é transportado para<br />
uma nova sociedade de forma bruta e arrancado de seus valores, para os indivíduos de<br />
sua comunidade, provoca a descontextualização de um dado objeto artístico em sua tra-<br />
dição, assumindo um novo significado ou novo uso.<br />
As formas de <strong>arte</strong> africana tiveram uma continuidade parcial em razão das novas<br />
condições aqui encontradas. Povos provenientes dos reinos de Congo, Cuba (Moçambi-<br />
que), Luba, Lunda, Cokwe etc., da África Central e dos reinos yorubá, Fon, Ashanti e<br />
etc., da África Ocidental, e as instituições atreladas a eles, possuíam obras de caráter uti-<br />
litários, como insígnias de poder que simbolicamente funcionavam como suportes mate-<br />
riais e espirituais de poder e autoridade e que perderam seu significado dentro do siste-<br />
ma colonial e do regime servil.<br />
A correspondência da figura dos orixás com a cultura européia na sua religiosi-<br />
dade e na imagem de santos católicos cria uma linguagem plástica <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> ini-<br />
cialmente religiosa, configurando uma estrutura que sofreu uma “adaptação dos can-<br />
domblés africanos à sociedade dos brancos e à cultura luso–católica e pelas relações<br />
entre os Deuses africanos e as divindades ou espíritos, dos ameríndios, gerando uma ti-<br />
pologia na qual variam sincretismos”. (Bastide: 2006, 218)<br />
Aquele que está familiarizado com a <strong>arte</strong> africana sabe que esta é essencialmente<br />
uma estética reducionista, na qual formas, linhas e massas são abstraídas<br />
ou reduzidas, a fim de produzir formas mais simples que aquelas que observamos<br />
na realidade. No plano intelectual, a escultura africana foi criada<br />
para ser vista como invocação de certos ideais, não uma imitação da realidade.<br />
Isto explica porque um detalhe significativo da estrutura ou anatomia de<br />
uma coisa, ou a redução do todo a uma essencialização, tenham sido motivos<br />
dominantes da <strong>arte</strong> africana. (Preston apud Araújo: 2006, 240)<br />
Segundo Tadeu Chiarelli, a <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> seria classificada em dois grupos dis-<br />
tintos, dos quais, um incluiria as manifestações de uma parcela marginalizada entrecru-<br />
zadas pelas contribuições culturais de povos de origem africana, indígena, portuguesa e
de outros grupos pertencentes a outras etnias que imigraram para o Brasil. <strong>Uma</strong> <strong>arte</strong> po-<br />
pular que posteriormente influenciaria a produção erudita. E o outro grupo seria a <strong>arte</strong><br />
erudita fundamentada a partir dos conceitos e normas de uma <strong>arte</strong> de origem européia<br />
sendo sistematizada pelas ações da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro<br />
no século XIX.<br />
A <strong>arte</strong> erudita com o transcorrer do tempo, ao se fortalecer, buscaria subjugar as<br />
manifestações de caráter popular representando a <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> nos setores oficiais de<br />
cultura local, possuindo a capacidade de se apropriar dos procedimentos da <strong>arte</strong> popular<br />
tornando-a singular diante da produção internacional.<br />
A <strong>arte</strong> erudita <strong>brasileira</strong> é alicerçada nos valores estéticos europeus, nas culturas<br />
locais não-dominantes, nos setores populares, outras etnias e culturas européias, além da<br />
presença de mulheres como artistas, configurando-se numa <strong>arte</strong> pretensamente branca,<br />
pois constitui-se num processo de hibridização das formas inter-culturais.<br />
É necessário acrescentar ainda, a modesta projeção de artistas <strong>afro</strong>-descendentes<br />
nos espaços expositivos devido a uma questão histórica, a partir do século XIX as práti-<br />
cas artísticas ganharam certo prestígio social com a criação da Academia Imperial de<br />
Belas Artes e o Estado atuava como mecenas por meio de encomendas de obras públi-<br />
cas que garantiriam a sobrevivência dos artistas.<br />
Até então o patrimônio artístico era proveniente das mãos de negros, mestiços e<br />
índios, em razão de atividades manuais serem vistas como algo negativo e, portanto,<br />
não proporcionava nenhum tipo de status e estavam associadas às obras religiosas diri-<br />
gidas pelas irmandades e confrarias.<br />
Com essas mudanças, há a marginalização dessa população e o redirecionamen-<br />
to dos temas da <strong>arte</strong> oficial para o enaltecimento dos acontecimentos históricos, o retra-<br />
to da aristocracia rural e da burguesia emergente. Em paralelo a esses conteúdos e for-
mas, encontrava-se a pintura de gênero influenciada pelo indianismo, entremeada pelo<br />
romantismo literário; a temática caipira com as obras de Almeida Júnior e o negro pre-<br />
sente nas <strong>arte</strong>s visuais por meio da paleta de alguns artistas.<br />
As alterações na vida social alimentavam o processo discriminatório até mesmo<br />
de artistas negros que buscavam formação acadêmica, como por exemplo, os artistas<br />
Estevão Silva e Rafael Pinto Bandeira. Esses dois artistas retomam o conceito de autoria<br />
negra no qual as relações políticas e econômicas concebem a formação de uma identida-<br />
de. O que é ser negro, tendo em vista as identidades políticas, religiosas e culturais? Se-<br />
ria trazer os aspectos formalistas de uma herança ou as questões sócio-econômicas de<br />
um grupo traduzido no seu corpo social? Ou então as duas coisas traduzidas num proje-<br />
to artístico de cunho <strong>afro</strong>-brasileiro?<br />
A atenção dada à cultura popular incentivou os artistas a olharem de modo<br />
especial algumas práticas e figuras oriundas das culturas africanas, as integrando<br />
ao ideário artístico formador da nação <strong>brasileira</strong>. Entretanto, é preciso<br />
ver como no Brasil esse interesse por questões culturais <strong>afro</strong>-descendentes foi<br />
de Segundo Grau, em boa p<strong>arte</strong> estimulado e filtrado pela valorização européia<br />
das culturas entendidas então como primitivas, além de não estar isento<br />
de preconceitos, nem imune a mitificações e cerceamentos. (Conduru: 2007,<br />
51)<br />
Discute-se então de modo indireto o conceito de <strong>afro</strong>descendência e negritude<br />
nas manifestações plásticas, contudo, quando um indivíduo se identifica com um conti-<br />
nente como os brasileiros de origem negra com a África, busca-se a valorização e a afir-<br />
mação de um corpo não apenas biológico, mas também ancestral, cultural e social como<br />
construção de sua identidade nas relações de classe e pelo revigoramento da memória<br />
nos tratamentos dados a uma visualidade nacional.<br />
As <strong>arte</strong>s neo-africanas na diáspora são pautadas nos seguintes cânones formais:<br />
Tensão entre eixo virtual e real; tensão entre simetria virtual e real; estancamento<br />
rítmico, empilhamento de uma forma geométrica primária ou confirmação<br />
de um volume, plano, área espacial em negativo, em formas fechadas<br />
ou abertas; regularidade de um ritmo genérico em um padrão interrompido<br />
por motivos aderentes, arranjados aleatoriamente, surpresas formais ou inversões<br />
semelhantes à fuga de unidades básicas de padrão; desconformidade entre<br />
áreas pintadas e superfícies de planos; jogos visuais nos quais formas reduzidas<br />
se tornam ambivalentes e podem ser lidas como representação alter-
nativa de uma coisa, seu sinônimo ou antítese; motivo pars pro toto que se<br />
utiliza de um aspecto evidente de uma coisa para representá-la na sua totalidade;<br />
combinações em técnica mista do que ao ocidental aparece como texturas,<br />
modelagens, cores, objetos ou idéias correlacionadas de uma forma irracional.<br />
(Preston apud Araújo: 2006, 241)<br />
As cores e sua simbologia, a temática, a iconografia, a monumentalidade, a repe-<br />
tição, frontalidade, a redução, a desproporção entre as p<strong>arte</strong>s do corpo e as fontes de ins-<br />
piração caracterizaria o estilo africano na sua poética.<br />
O objeto de <strong>arte</strong> que o artista africano produz é em si um signo, um símbolo;<br />
o que ele procura atingir não é uma aparência externa, mas uma essência.<br />
Após a observação e análise dos modelos sensíveis, ele extrai do modelo os<br />
traços dominantes e os atributos essências. A simplificação dos motivos naturais<br />
percebidos o leva à elaboração dessas formas geométricas: em vez de<br />
tender ao retrato, ele generaliza os aspectos. Longe de reproduzir com exatidão<br />
uma figura ou de fornecer uma interpretação intelectual das formas naturais,<br />
ele se esforça em sugerir e representar com a ajuda de sinais, símbolos,<br />
linhas e círculos. O que resta da forma e não essa forma visível. De certa maneira<br />
transcende-se essa forma para que a essência do animal ou da realidade<br />
simbolizada seja alcançada. (Sylla apud Moura: 1994, 67)<br />
As aproximações com os motivos africanos podem ser encontrados na cultura e<br />
na <strong>arte</strong> popular, como por exemplo, nos padrões existentes nas esculturas de ex-votos,<br />
que têm como finalidade o pagamento de uma promessa por uma graça alcançada por<br />
mediação divina; nas máscaras utilizadas nas manifestações populares qual o negro atua<br />
de modo intenso, como nas cavalhadas de Goiás, auto que mostra o combate entre mou-<br />
ros e cristãos; o bumba-meu-boi, no qual o protagonista é um boi que é morto no decor-<br />
rer da história e depois ressuscitado num ato de celebração das festividades do mês de<br />
junho, glorificando os santos do período ou durante o ciclo natalino.<br />
Kabengele Munanga define a <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> como uma espécie de sistema<br />
fluido e aberto, contendo uma p<strong>arte</strong> central, uma zona mediana e uma periférica. Esse<br />
sistema periférico dispõe de obras e artistas que não combinam todos os atributos das<br />
<strong>arte</strong>s africanas tradicionais, mas receberam delas alguma influência:<br />
Seja do ponto de vista formal, seja do ponto de vista temático, iconográfico e<br />
simbólico, obras cujo imaginário artístico pode, de uma maneira ou de outra,<br />
remeter ao mundo africano, embora integrando nitidamente características da<br />
<strong>arte</strong> ocidental, indígena ou outras que formam o mosaico e o pluralismo da<br />
<strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong>. (Munanga, 2000, 19)
Munanga discute a influência da <strong>arte</strong> africana tradicional no modernismo<br />
brasileiro buscando localizar a africanidade presente ou não aparente nas <strong>arte</strong>s<br />
<strong>brasileira</strong>s. O marco dessa influência pode ser definido com os congressos de Recife<br />
(1934) e Salvador (1937) em que a <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> se projeta para fora dos espaços<br />
ritualísticos. Os artistas saem do anonimato, incentivados com a busca de uma<br />
identidade nacional despertada pelos congressos e também pelas missões enviadas ao<br />
Norte e Nordeste do país por Mário de Andrade. Como problemática levantada<br />
encontram-se artistas como Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Alberto Guignard,<br />
Portinari, José Pancetti, Santa Rosa e Djanira, que possuem uma produção distinta, no<br />
qual o tema do negro aparece como uma pesquisa poética atrelada a outros conteúdos<br />
formais e temáticos. Torna-se difícil definir uma <strong>arte</strong> tão plural como <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong><br />
por utilizar “incidentemente a temática <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>, da mesma maneira que o fazem<br />
com a indígena, a européia ou outras que possam polarizar sua criatividade pessoal e<br />
alimentar seu universo mitopoético.”(Munanga: 2000, 105)<br />
Corpo e contemporaneidade: duas poéticas femininas e ancestrais nas<br />
obras de Rosana Paulino e Yêdamaria<br />
Explica-se a não inserção da obra de artistas negros contemporâneo em galerias,<br />
museus, salões e outros espaços de visualidade, foi dificultada pela marginalização eco-<br />
nômico-social sofridas por esses artistas, criando-se uma dificuldade de acesso àquelas<br />
produções simbólicas.
A partir dos anos 50, a necessidade de conceber uma <strong>arte</strong> de caráter nacional por<br />
alguns artistas foi modificando-se, para que pudessem ingressar na modernidade do<br />
século XX, e estabelecer diálogos com a produção contemporânea internacional.<br />
Os movimentos informais e não-figurativos construtivos foram um indicativo<br />
dessa mudança influenciada pelo surgimento das Bienais Internacionais de São Paulo,<br />
em 1951. O artista local estava em contato com as principais produções internacionais.<br />
Até então para estudar ou fruir <strong>arte</strong> moderna e contemporânea de perto era necessário ir<br />
à Europa ou aos Estados Unidos. A criação das Bienais permitiu esse contato direto do<br />
artista e do público com a modernidade nas <strong>arte</strong>s visuais. Nesse contexto de<br />
formulações estéticas aproximadas da contemporaneidade internacional, deparava-se<br />
com artistas imigrantes como Alfredo Volpi e Mira Schendel e os brasileiros como<br />
Iberê Camargo, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape,Wesley Duke Lee, entre outros,<br />
buscavam novidades estéticas e artísticas nascidas no período pós Segunda Guerra<br />
Mundial.<br />
A expressão <strong>arte</strong> contemporânea se impôs, sobretudo, a partir dos anos 1980,<br />
para referir-se à <strong>arte</strong> produzida a partir dos anos de 1960. Ela nasceria,<br />
segundo Catherine Millet, no espaço entre 1960 e 1969, período em que<br />
surgiram a Pop Art, o Novo Realismo, a Op Art e a Arte Cinética, a Minimal<br />
Art, Fluxus, os Happenings, a Arte Conceitual, a Arte Povera, a Land Art,<br />
Body Art, a Support Surface, as Instalações que se valem de materiais<br />
heterogêneos (materiais perecíveis, naturais, objetos de uso cotidiano, objetos<br />
de diversa ordem). A <strong>arte</strong> ocupa, nesse momento, um espaço de liberdade<br />
nunca antes visto. Segundo a autora francesa, “a expressão <strong>arte</strong><br />
contemporânea” suplanta o conceito de “vanguarda” para designar a <strong>arte</strong><br />
atual, a <strong>arte</strong> viva, uma <strong>arte</strong> de ponta. (...) Transgride limites desses diferentes<br />
meios de expressão artística, coloca-se entre eles, é “intermídia” e transgride<br />
significados correntes no uso de cultura. Neste sentido, é uma <strong>arte</strong> que põe<br />
em cheque a idéia de perenidade da obra, coloca em evidência a “atitude”, a<br />
situação em vez da forma. (Rebollo: 2005, 35-36)<br />
Nos anos 80 a produção poética estava fincada na investigação e síntese dos<br />
diferentes repertórios visuais das culturas de massas ou popular, da tradição moderna<br />
local e dos posicionamentos estéticos e artísticos eruditos nas obras dos artistas Iran do<br />
Espírito Santo, Leda Catunda, Emmanuel Nassar, Ana Maria Tavares e Sérgio<br />
Romagnolo.
A produção fotográfica entre os anos 80 e os 90 faz referência a uma identidade/<br />
não-identidade por renegar o encontro de um tipo nacional. Desfez-se numa não-objeti-<br />
vidade no embate entre a linguagem fotográfica e o espaço real. Busca-se a dissolução<br />
da imagem exótica ou típica do brasileiro, diluindo toda forma <strong>possível</strong> de ser reconhe-<br />
cida, para alcançar-se a percepção do indivíduo nas suas práticas cotidianas. Como as<br />
fotografias de registro do cotidiano e dos costumes do século XIX, na qual havia um<br />
não-olhar para o indivíduo por torná-lo um tipo; a representação de escravos em ima-<br />
gens não partilhadas e definidas pelo olhar do fotógrafo e as imagens negociadas, nas<br />
quais as representações sociais do retratado estão presentes.<br />
Na metade dos anos 90, surgem artistas que manipulam os processos fotográ-<br />
ficos, partindo como referencial o próprio corpo ou o corpo do outro, ao mesmo tempo,<br />
aparecem artistas que vêem a existência da fotografia como meio de inserção social.<br />
Um aspecto importante da <strong>arte</strong> contemporânea está no fato de ela lidar com<br />
realidades de nossas vidas cotidianas, revelando uma vontade transformadora,<br />
um desejo de construção de significados e de construção de resignificações.<br />
O artista se posiciona como um homem de seu tempo que se interessa<br />
pelo que interessa aos seus contemporâneos. (Rebollo: 2005, 41-42)<br />
Nesse contexto a artista Rosana Paulino (1967) desenvolve seus trabalhos com<br />
fotos, desenhos e gravuras. O tema gerador de seu trabalho é a discussão de sua origem<br />
étnica, sexual e social. Ela utiliza-se de fotos antigas de mulheres de sua própria família,<br />
atrelando-as ao uso de outros materiais em objetos e instalações em que as imagens de<br />
mulheres convivem com materiais pertencentes ao universo feminino.<br />
princípio:<br />
Suas reflexões sobre o seu modo de pensar a sua existência p<strong>arte</strong>m do seguinte<br />
Sempre pensei em <strong>arte</strong> como um sistema que devesse ser sincero. Para mim,<br />
a <strong>arte</strong> deve servir às necessidades profundas de quem a produz, senão corre o<br />
risco de tornar-se superficial. O artista deve sempre trabalhar com as coisas<br />
que o tocam profundamente. Se lhe toca o azul, trabalhe, pois, com o azul.<br />
Se lhe tocam os problemas relacionados com a sua condição no mundo,<br />
trabalhe, então, com esses problemas.<br />
No meu caso, tocaram-me sempre as questões referentes à minha condição de
mulher e negra. Olhar no espelho e me localizar em um mundo que muitas<br />
vezes se mostra preconceituoso e hostil é um desafio diário. Aceitar as regras<br />
impostas por um padrão de beleza ou de comportamento que traz muito<br />
preconceito, velado ou não, ou discutir esses padrões, eis a questão.<br />
Dentro desse pensar, faz p<strong>arte</strong> do meu fazer artístico apropriar-me de objetos<br />
do cotidiano ou elementos pouco valorizados para produzir meus trabalhos.<br />
Objetos banais, sem importância. Utilizar-me de objetos do domínio quase<br />
exclusivo das mulheres. Utilizar-me de tecidos e linhas. Linhas que<br />
modificam o sentido, costurando novos significados, transformando um<br />
objeto banal, ridículo, alterando-o, tornando-o um elemento de violência, de<br />
repressão. O fio que torce, puxa, modifica o formato do rosto, produzindo<br />
bocas que não gritam, dando nós na garganta. Olhos costurados, fechados<br />
para o mundo e, principalmente, para sua condição de mundo.<br />
Apropriar-me do que é malvisto. Cabelos. Cabelo 'ruim', 'pixaim', 'duro'.<br />
Cabelo que dá nó. Cabelos longe da maciez da seda, longe dos comerciais de<br />
shampoo. Cabelos de negra. Cabelos desvalorizados. Cabelos vistos aqui<br />
como elementos classificatórios, que distinguem entre o bom e o ruim, o<br />
bonito e o feio. Pensar em minha condição no mundo por intermédio do meu<br />
trabalho. Pensar sobre as questões de ser mulher, sobre as questões da minha<br />
origem, gravadas na cor da minha pele, na forma dos meus cabelos. Gritar,<br />
mesmo que por outras bocas estampadas no tecido ou outros nomes na<br />
parede. Ele tem sido meu fazer, meu desafio, minha busca. (Paulino in:<br />
Cocchiarale, 1997, 114)<br />
A obra Parede de memória (e de Catarina) é composta de escapulários que re-<br />
metem as aulas de bordados em sua infância e o conhecimento herdado do pai adepto da<br />
umbanda. <strong>Uma</strong> série de pequenas almofadas ou patuás com retratos de familiares trans-<br />
feridas para o tecido. Discute-se a imagem imposta ao negro ao rever o passado e refle-<br />
tir no presente o aspecto histórico de marginalização do negro pelo processo de escravi-<br />
dão. E Catarina é a boneca loira de olhos azuis que desmembrada, sem p<strong>arte</strong> dos cabe-<br />
los, os braços e seu corpo, portanto destruída; estava no porão de sua casa como modo<br />
de trazer a questão dos valores estipulados de uma beleza ocidental im<strong>possível</strong> de ser<br />
atingida. Lidar com a beleza para ela, no processo doloroso de desmaterialização física<br />
seria:<br />
Fazer com que a linha disseque a perversidade de um modelo de beleza. Boneca<br />
fria, modelo vazio. Um modelo de beleza que nunca poderá ser atingido.<br />
Um modelo que é a antítese da própria essência de feminilidade, terra assolada<br />
onde nada cresce, os corpos deformados por um padrão de beleza doentio,<br />
onde seios fartos convivem com um corpo que não corresponde em peso o<br />
seu tamanho. (Paulino in: Aguilar, 2000, 33)<br />
Nos seus desenhos elaborou imagens“humanas suspensas pelo terror, perverti-<br />
das na impossibilidade de uma plenitude de suas formas. Cria seres que parecem in-
completos, deformados, doentes. Sugerem fetos deixados em UTIs, bonecas mal costu-<br />
radas e arrebentadas pela perversidade infantil, imagens de abortos”. (Canton: 2001)<br />
Na série de desenhos intitulada Models e Útero de Leonardo, 1997, Paulino dis-<br />
cute os padrões do belo e, assim, acaba por expor um corpo feminino adulto e deforma-<br />
do. Suas linhas retorcidas e órgãos sexuais proeminentes expressam-se de maneira<br />
cruenta e do mesmo modo que em determinados instantes, esse corpo apresenta-se vio-<br />
lentamente em sua universalidade.<br />
Rosana Paulino<br />
Sem título, 1997<br />
Desenho<br />
Catálogo Heranças contemporâneas II<br />
A poética da apropriação da fotografia tem sido uma escolha formal de Paulino<br />
por oferecer à imagem um significado diferente do original, trabalha com camadas<br />
sobrepostas de significação originária de sua condição feminina e negra. Reflete a sua<br />
existência em temas como racismo, sexo, violência e feminilidade. Resgatando pelo
fragmento e repetição uma genealogia que aproxima e distancia a reprodutibilidade<br />
dessas imagens pela reatualização da memória de identidade individual e coletiva.<br />
Na obra Instantâneo número 1, Paulino utiliza-se desse recurso da apropriação<br />
pelo uso da imagem fotográfica, neste caso, um rosto em sépia de uma mulher negra em<br />
sua maturidade, utilizando um lenço amarrado na cabeça e sugerindo pelo seu entorno a<br />
espacialidade doméstica. Essa mulher é repetida pelo processo de transfer três vezes,<br />
em cada uma, apresenta-se em diferentes níveis de desgaste, na última é quase um<br />
vestígio como uma lembrança de um tempo distante, imagem fugidia emoldurada numa<br />
base retangular, na impressão de uma toalha azul escuro de bandeja de borda rendada.<br />
Remetendo ao universo feminino na presença de atividades manuais ao utilizar a toalha<br />
como elemento indicativo e típico de um tempo que poderia ser distante.<br />
Questiona-se a condição da mulher negra na sociedade e as suas relações com a<br />
intimidade doméstica e a exterioridade desses espaços, no exercício de uma identidade<br />
política, cultural e social e conseqüentemente seu aniquilamento.<br />
Em sua poética a artista reaviva a história da população de descendência africana<br />
no país a partir da história da sua família, principalmente, as de suas avós, mãe e irmãs,<br />
imagens processadas em fotocópias e transformadas em gravura ou em outros meios de<br />
representatividade, das quais a localizam e trazem nas obras p<strong>arte</strong> de si. “Fazer <strong>arte</strong> é<br />
materializar sua experiência e percepção sobre o mundo transformando o fluxo de<br />
momentos em alguma coisa visual, textual ou musical. Arte cria um tipo de<br />
comentário”. (Barbara Krueger: revista Art in America, novembro 1997, 97)
Rosana Paulino<br />
Instantâneo n° 1, 1993<br />
Galeria de Arte Nello Nuno<br />
Fundação de Arte de Ouro Preto<br />
Refere-se uma presença/ausência nos desgastes das imagens configurando um<br />
olhar que observa, mas de fato não se vê. Resgata o esquecimento para reavivar um jogo<br />
de memória que sinaliza um estado de pertencimento de um grupo historicamente<br />
marginalizado.<br />
A Instalação Amas de leite é composta de tecido, um algodão cru, dividido em<br />
oito módulos quadrangulares apresentados de modo irregular, com figuras femininas<br />
centralizadas impressas em preto sobre um fundo branco.<br />
Esses módulos estão dispostos em linhas: na primeira encontram-se três figuras, na<br />
central mais três e na base duas imagens concentradas no meio como se sustentassem<br />
essas estruturas constituindo uma pirâmide de degraus invertida.
Há a repetição de imagens, é uma mulher negra sozinha na cena, o corpo<br />
aparentemente desnudo, apresenta-se imponente, aparece na primeira linha no primeiro<br />
quadrado à esquerda, aparece também na segunda linha no último quadrado e na terceira<br />
também no fim formando o encontro entre elas outro triângulo. As outras que estão<br />
representadas em posições diferentes, configuram-se em duas imagens apresentadas nas<br />
formas de dominação e submissão, constituem desse modo as tensões e as figurações do<br />
trabalho escravo no ambiente doméstico e no papel exercido pelas amas de leite.<br />
Rosana Paulino<br />
Amas de leite, sem data<br />
Instalação<br />
Galeria de Arte Nello Nuno<br />
Fundação de Arte de Ouro Preto
São corpos femininos negros sem detalhes, são silhuetas recortadas em formas<br />
anônimas e ancestrais. Congeladas remetem a imagens fotográficas que expressam o<br />
sistema escravagista, o negro apresentando-se como símbolo da relação senhor/escravo.<br />
Como nas fotografias demonstradas abaixo de Eugênio & Maurício e João<br />
Ferreira Villela, mulheres negras, exercendo a função de amas posam ao lado do filho<br />
do senhor servilmente sugerindo uma aparente afetividade. Fotografias eternizadas<br />
como algo para ser recordado como um cartão de visita.<br />
Eugênio & Maurício<br />
Ama de leite da família de Adolfo Simões Barbosa<br />
(segundo identificação da Fundaj), 1864<br />
O olhar europeu – o negro na iconografia <strong>brasileira</strong> do século XIX
João Ferreira Villela<br />
Ama escrava e menino Gomes Leal<br />
(segundo identificação de Fundaj), c. 1860<br />
O olhar europeu – o negro na iconografia <strong>brasileira</strong> do século XIX<br />
Historicamente a tradição das amas de leite no Brasil provém de Portugal onde<br />
as mães ricas não amamentavam os seus filhos e, como conseqüência, instituíram a<br />
figura da saloia que eram as camponesas que habitavam a periferia. No Brasil as índias<br />
cunhãs foram as primeiras saloias substituídas pelas escravas africanas em razão da<br />
rejeição cultural pelas famílias abastadas. O processo de urbanização ampliou “a<br />
difusão das amas-de-leite entre as novas camadas sociais e fez com que surgisse a<br />
figura da mãe preta (...) alguns senhores de escravos chegaram a admitir que criar<br />
negras para alugar como amas era mais rentável do que plantar café”. (Almeida:<br />
2004, 122)<br />
Amamentar era uma forma de distinção social e a afetividade materna não tinha<br />
valor social e moral e era considerada uma atividade indigna.<br />
Nesta obra, Paulino configura a invisibilidade do negro na sociedade. Imagens<br />
de mulheres que carregam os seus filhos às costas, de modo a conciliar o seu trabalho<br />
com os cuidados à criança que carrega. Ou a perversidade das brincadeiras infantis de
Cenas e Tipos – Madame Senegal e seu mosso<br />
Século XX<br />
Cartão postal<br />
14 x 8,7 cm<br />
Coleção particular<br />
Catálogo Negro de corpo e alma<br />
cavalinho que subjuga o indivíduo. Ou então nas relações diárias de aproximação e<br />
afetividade nos aspectos de servilidade.<br />
Detalhes da obra Amas de leite<br />
De seus seios saem fitas longas e estreitas de cetim branco, como o leite que<br />
jorra e expressa a tríade mãe, mulher e nutriz. Esses fios são presos na p<strong>arte</strong> superior
das garrafas de vidro transparentes, aludem a mamadeiras que enclausuram no seu<br />
interior imagens xerocopiadas e interferidas que reafirmam essas figuras construídas e<br />
destituídas de voz própria. Ao mesmo tempo, estabelece a oposição entre o amamentar e<br />
o desmame, nos modos de como o olhar se desenvolve em relação ao outro nas<br />
distinções de classes e a constituição de como se é visto, o olhar de quem é subjugado,<br />
na continuidade e manutenção de um sistema econômico e social.<br />
Paulino revê o papel da mulher negra numa sociedade patriarcal e sua inserção<br />
na história na seguinte maneira:<br />
No intuito de fazer um “acerto de contas” com a história, mulheres se<br />
dedicaram a pesquisar maneiras através das quais elas tem sido discriminadas<br />
como artistas e as maneiras como sua imagem têm sido representada na <strong>arte</strong>.<br />
Mulheres também têm recuperado informação sobre suas contribuições para<br />
a história, como artistas e como patronas. Elas denunciaram a<br />
impossibilidade de existir um mundo artístico separado das questões sócias e<br />
políticas mais abrangentes: defenderam a historicidade dos significados das<br />
imagens visuais e vasculharam universos de referências para construir uma<br />
visualidade/identidade diferente “sobre” e da “mulher”. (Tourinho apud<br />
Felinto: 2004, 95)<br />
O aspecto manual, a temática, a escolha do material, aparecem no processo de<br />
fixação de cada quadrado costurado com linha preta, no qual o conteúdo e a forma<br />
reafirmam a espacialidade e o referencial ao feminino e ao ambiente doméstico. O modo<br />
para fundamentar o seu projeto poético por meio da gravura, cria-se uma espécie de<br />
protótipo como sujeito e constrói-se pela presença de diversos elementos, características<br />
físicas, psicológicas, sociais e culturais.<br />
Na obra Ama de leite aparece um seio que se encontra na p<strong>arte</strong> superior do<br />
papel, sob a pele apresentam os alvéolos que produzem o leite, por meio dos ductos<br />
lácteos, canalizam e transportam o leite dos alvéolos para os seios lactíferos que<br />
recebem e armazenam e que pela sucção saem dos mamilos. Esse leite verte do mamilo<br />
em catorze linhas paralelas formando nas pontas espécies de gotas. Formam uma base<br />
triangular composicional. E dentro desse triângulo maior, há um menor com gotas que<br />
não são de leite como as outras desenhadas em que o fundo do papel partilha da obra,
mas remetem a gotas de sangue que tanto é a vida como a morte. O seio em todas as<br />
linhas que o compõe é desenhado com grafite e pintado com tinta acrílica aguada<br />
velando o seu interno.<br />
Rosana Paulino<br />
Ama de leite<br />
Acrílica e grafite s/ papel<br />
32,5 x 25 cm<br />
Coleção de artista<br />
O seio atua como metáfora da vida, assim como o leite flui, o sangue também<br />
faz o mesmo movimento alimentando outros corpos. Traz a representação do papel de<br />
mulher, mãe e nutriz no sentido de exercer uma função biológica, que seria o de
alimentação, como também, a insinuação de sua imagem fragmentada e erotizada. A<br />
idéia presente na obra é o de não pertencimento do seio a um corpo, contrapondo-se as<br />
formulações feministas de reapropriação do próprio corpo, nas relações de sua<br />
individualidade tanto na vida individual como coletiva estabelecida pelo domínio de sua<br />
fecundidade e da sua própria sexualidade.<br />
Em algumas sociedades a referência entre as substâncias corporais como o san-<br />
gue, especificamente o menstrual, o esperma e o leite, encontra-se na fundamentação de<br />
explicações simbólicas sobre a procriação, produzindo as relações de parentesco e dire-<br />
ciona as relações entre homem e mulher. Formam o substrato de representações cultu-<br />
rais diferentes sobre a constituição de sua identidade social.<br />
A interdição sexual no período de amamentação aparece também na Europa,<br />
particularmente na França dos séculos XVII e XVIII. A medicina da época,<br />
herdeira do pensamento aristotélico, defendia a idéia segundo a qual o esperma<br />
contaminava o leite materno, que se tornava azedo, o que colocava em<br />
perigo a vida do bebê. Por essa razão, os médicos prescreviam a abstinência<br />
sexual durante o período da amamentação. Essa prescrição, segundo Elisabeth<br />
Badinter, seria um dos motivos da prática de contratar amas-de-leite mercenárias.<br />
A utilização das amas-de-leite foi uma prática generalizada na França,<br />
mas é importante ter em conta a existência de uma diferenciação social ao<br />
colocar tal prática em relação com a sexualidade. O tabu sexual talvez fosse<br />
menos importante que a possibilidade de a mãe continuar trabalhando para<br />
ganhar o pão diário, na escolha do modo de alimentação do bebê entre as famílias<br />
dos meios sociais menos favorecidos. Já para as mulheres das classes<br />
altas essa prática de contratar uma ama-de-leite se inseria claramente nos valores<br />
sociais dominantes da época: a prioridade dada aos interesses masculinos<br />
(inclusive sexuais); a concepção da infância segundo os pensamentos de<br />
Santo Agostinho e de Desc<strong>arte</strong>s; e o papel desempenhado pela mulher na<br />
vida social da época, e do qual ela não poderia nem desejava abrir mão. O<br />
Brasil também conheceu a prática da utilização de amas-de-leite na alimentação<br />
dos bebês, prática esta trazida de Portugal durante a colonização. Em geral,<br />
cabia às escravas negras o serviço de ama-de-leite, criando-se assim a figura<br />
da mãe preta, tão presente na literatura <strong>brasileira</strong>. A utilização de amasde-leite,<br />
que originalmente era uma prática das famílias abastadas, passa a ser<br />
uma demanda também da classe média urbana a partir do século XIX, o que<br />
pode ser atestado pela quantidade importante de anúncios na imprensa oferecendo<br />
ou procurando o serviço de amas-de-leite de aluguel (...). (Sandre-Pereira:<br />
2003, 473-474)<br />
Discute-se a semântica do universo feminino e a memória de um tempo antigo<br />
atualizando e conjugando a história com a condição da mulher negra numa sociedade<br />
ferozmente massificada articulando política, raça e cultura.
Peixe ao forno<br />
1987<br />
Óleo sobre tela<br />
40 x 50 cm<br />
Coleção Lícia Pedreira<br />
Catálogo Yêdamaria<br />
A artista Yêdamaria (1932) com influência de Cézanne e Matisse produz uma<br />
pintura criada entre a figuração e a abstração, com óleo denso e cores contrastantes,<br />
marcada por grafismos rítmicos com formas repetidas em planos tensos. Os barcos<br />
foram sua temática inicial que perdurou por doze anos:<br />
Na madrugada do mar os saveiros p<strong>arte</strong>m, as velas soltas, para a repetida<br />
aventura da Baía de Todos os Santos, nesse mistério de Yemanjá, de vida e<br />
morte para os homens de cor de cobre. Não sei que outras coisas ela irá<br />
pintar, como continuará seu trabalho, a evolução de sua temática; sei apenas<br />
que seus barcos estarão aí, realidade da <strong>arte</strong> baiana atual...(Jorge Amado apud<br />
Yêdamaria: 2006, 26)<br />
E dos barcos foi pesquisando formas de expressão plástica referentes a sua<br />
existência na constituição da cor-luz, definidoras de seu estilo e que revelam seu espaço
e sua cultura e a posicionam num universo feminino, que vai ao encontro de sua<br />
ancestralidade negra.<br />
Yêdamaria é a expressão de uma geração de artistas que são tão<br />
contemporâneos da tradição dos azulejos quanto dos trabalhos de Andy<br />
Warhol ou Renoir. Ela vive num mundo de simultaneidade, onde a rica<br />
culinária baiana, abundante em condimentos e ervas, coexiste com a<br />
realidade das praças de alimentação dos shopping centers em todo o globo.<br />
Se esses artistas são descendentes de séculos de indignidade humana, são,<br />
também, os filhos dos movimentos que liberaram o espírito humano, criando<br />
espaços de expressão pessoal onde a individualidade alça arrebatados vôos.<br />
Para mim, esta é a mensagem final de Yêdamaria: ela e seu trabalho são uma<br />
só coisa. Ela é mestra de um universo que seduz por meio da insinuação e da<br />
beleza, à medida que desafia o espectador para que ingresse em seu mundo.<br />
A última testemunha nesse processo é ela própria: Yêdamaria, pessoa,<br />
mulher, mãe e filha, criança e genitora, <strong>arte</strong> e artista. Ordem, dignidade e o<br />
momento artístico estão em harmonia com a pessoa e em paz consigo mesma.<br />
(Dwyer apud Yêdamaria: 2006, 160)<br />
A artista vê a figuração como modo de alcançar a sua ancestralidade africana,<br />
em suas obras dos anos 70, compostas de recortes e elementos emblemáticos e<br />
simétricos, durante a sua fase que viveu e fez o mestrado em Illinois nos EUA em 1979,<br />
aparecem as naturezas-mortas, mesas dispostas em espécie de cartazes pela inclusão de<br />
elementos culturais com certa influência pop. “Essas obras têm certa allure de<br />
momentos vivos, vibrantes, como numa fotografia, pela aproximação desses objetos nas<br />
mesas, dispostos como num diálogo entre a cultura material e natural, o design de que<br />
se compõem como figuras animadas, numa orgia de formas e cores; oscilante à luz<br />
dessa atmosfera.”(Araújo apud Yêdamaria: 2006, 19)<br />
Em Cabeça de mulher jovem, discute-se não apenas a sua ancestralidade, mas<br />
também, a condição feminina e a construção de uma identidade étnica, social, política,<br />
econômica e cultural constituídas numa construção visual. A imagem e o texto criam<br />
uma espacialidade fundamentando questões universais de existência. Ora o rosto<br />
feminino de pele negra e cabelos crespos curtos, confunde-se com o fundo pintado em<br />
pinceladas um tanto transparentes, ora o fundo recobre-se em camadas sobrepostas.
Cabeça de mulher jovem<br />
1978<br />
Técnica mista<br />
70 x 50 cm<br />
Coleção Emanoel Araújo<br />
Catálogo Yêdamaria<br />
O texto é composto de vários recortes de jornais com anúncios em língua inglesa<br />
referindo-se as angústias num plano individual e expandidas nas relações de<br />
pertencimento e não pertencimento grupal vivenciadas numa prática cotidiana. Vela-se<br />
esse fundo numa tinta azul diluída. O espaço entra na figura tornando-se uma coisa só.
<strong>Uma</strong> mulher negra indissociável de seu universo. Um corpo que clama por ter sua voz<br />
audível.<br />
A religiosidade africana surge mitificada na fase de Yemanjás usando como<br />
materiais, tinta plástica, colagem, revestimento, resina e técnicas mistas provenientes<br />
das <strong>arte</strong>s gráficas como a xilogravura e a serigrafia aproximando-se do mundo africano<br />
pelo colorido e pela sua ancestralidade.<br />
Homenagem a dois de fevereiro<br />
1995<br />
Óleo sobre madeira<br />
600 x 460 cm<br />
Coleção Banco do Brasil<br />
Catálogo Yêdamaria
Na obra Homenagem a dois de fevereiro, a data refere-se a consagração de<br />
Yemanjá, onde a festa concentra-se na praia de Santana, junto à Colônia de Pescadores<br />
do Rio Vermelho, participam devotos de toda a cidade, com presentes e oferendas. O<br />
ápice da festividade é a procissão de barcos que vão em direção ao alto-mar levando os<br />
presentes e a oferenda principal seria a preparada pela Colônia de Pescadores de Rio<br />
Vermelho.<br />
A figura central é uma sereia branca e em seu rosto não possui traços<br />
fisionômicos, tal como uma máscara neutra. Segundo a artista, sua Yemanjá tem forma<br />
mas não tem raça, é pintada de branco simbolizando a pureza, a paz.( Yêdamaria:<br />
2006, 29). Também refere-se a Olocum que junto com seu marido Olorum criaram o<br />
mundo. Ao unir-se a Aiê, a Terra, nasceu Yemanjá. Olocum possuía uma natureza<br />
anfíbia, que de certo modo era motivo de descontentamento pertencer tanto à terra<br />
quanto à água, sentia-se atraída pelo Orixá Ocô, mas tinha receio em aproximar-se dele<br />
e resolveu aconselhar-se com Olofim que a incentivou a procurá-lo por ser um homem<br />
sério e discreto.<br />
Ao viver com o orixá lavrador, ele descobre a particularidade de sua natureza e<br />
revela para todos os seus conhecidos. Envergonhada, Olocum refugia-se para o fundo<br />
do oceano onde tudo era desconhecido e im<strong>possível</strong> de alguém chegar. O mar tornou-se<br />
seu domínio, transformando-se em sereia ou numa serpente marinha.<br />
Estabelece-se uma fusão entre o mito de origem grega com a mítica dos orixás<br />
nas figuras de Olocum e Yemanjá. As duas imagens em suas representações<br />
confundem-se por ter como espaço de domínio as águas. Configurando numa Yemanjá<br />
de caráter hibrido e multicultural.<br />
Abaixo dos seios, cobrindo todo o seu ventre, fixou-se uma série de rostos<br />
femininos com diferentes fenótipos, linhas que separam os rostos com fundo branco em
Iemanjá<br />
Madeira policromada<br />
66 x 31 x 79 cm<br />
Coleção particular<br />
Catálogo Negro de corpo e alma<br />
volta como uma moldura, constituindo as escamas da cauda da sereia. O braço direito<br />
apóia-se na cauda formando entre o espaço de fundo uma estrutura triangular, do<br />
mesmo modo que o braço esquerdo executa o mesmo movimento.<br />
O cabelo com fundo branco e azul esfumaçado remete aos veleiros da obra. Ele é<br />
ornado com uma série de estrelas cobrindo uma extremidade a outra de seu corpo.<br />
Iemanjá vivia sozinha no Orum.<br />
Ali ela vivia, ali se alimentava.<br />
Um dia Olodumare decidiu que Iemanjá<br />
Precisava ter uma família,<br />
Ter com quem comer, conversar, brincar, viver.
Então o estômago de Iemanjá cresceu e cresceu<br />
e dele nasceram todas as estrelas.<br />
Mas as estrelas foram se fixar na distante abóbada celeste.<br />
Iemanjá continuava solitária.<br />
Então de sua barriga crescida nasceram as nuvens.<br />
Mas as nuvens perambulavam pelo céu<br />
até se precipitarem em chuva sobre a terra.(Prandi: 2002, 385)<br />
As estrelas que ornam sua vasta cabeleira sugerem a história do seu nascimento<br />
e das nuvens em conexão entre céu e mar.<br />
Na p<strong>arte</strong> superior da obra, encontram-se dois barcos do lado direito repletos com<br />
flores em pinceladas que transitam entre a figuração e a abstração. O primeiro barco foi<br />
pintado numa faixa branca e base pintada de roxo contrapondo-se num leve contraste ao<br />
segundo barco que está num plano a frente do outro em cores secundárias e terciárias. A<br />
vela apresenta-se num fundo branco sobre branco.<br />
Na mesma direção, logo atrás, está um barco branco formando uma angulação a<br />
uma canoa marrom equilibrando as relações de força entre os barcos anteriores. Ao<br />
fundo vê-se de modo longínquo a Baía. Em pinceladas diluentes e em determinados<br />
momentos constrói-se em camadas no contínuo movimento de uma paisagem que<br />
entardece.<br />
Os quatro barcos formam uma composição retangular. O barco que aparece no<br />
centro na direção da cabeça da sereia compõe juntamente com a figura mítica e a canoa<br />
vermelha com várias flores delineada e cheia de detalhamento numa composição<br />
triangular.<br />
A água encheu as fendas ocas,<br />
fazendo-se os mares e oceanos,<br />
em cujas profundezas Olocum foi habitar.<br />
Do que sobrou da inundação se fez a terra,<br />
ali tomou seu reino de Iemanjá,<br />
com suas algas e estrelas-do-mar,<br />
peixes, corais, conchas, madrepérolas.<br />
Ali nasceu Iemanjá em prata e azul,<br />
coroada pelo arco-íris Oxumaré. (Prandi: 2001, 380)<br />
São os seus domínios acompanhados de cores como os princípios-poderes.<br />
Embora a Yemanjá esteja como pairando sobre as águas, abaixo de seu corpo o espaço
sugerido seria um fundo do mar com uma seqüência de peixes em linha curva<br />
acompanhando as formas da sereia, no plano anterior, criam-se grandes quadrados<br />
azulados que lembram azulejos ligando essas imagens à base, o pedaço da canoa como<br />
uma oferenda recepcionada.<br />
Yêdamaria define a sua poética e o encontro com sua ancestralidade em sua<br />
construção plástica da seguinte maneira:<br />
De início, eu não me sentia artista negra, mas à medida que comecei a<br />
comparar as pinturas de Yemanjás com o colorido africano, descobri que,<br />
hoje, o meu colorido está mais ligado às minhas raízes. O sentimento africano<br />
tem uma essência forte, musical, simbólica e cromática. Foi depois que a<br />
forma da sereia brotou que passei a tratar de um tema popular e africano, que<br />
descobri toda a beleza do ‘Dois de Fevereiro’- festa de Yemanjá- uma festa<br />
humilde, organizada pelo povo. Milhares de pessoas trazendo suas flores,<br />
suas oferendas a fé convicta pura, daquela gente simples, da massa, do povo<br />
mesmo. Um espetáculo impressionante, marcante. Me marcou. Eu admiro e<br />
respeito pela sua autenticidade. (Yêdamaria: 2006, 29)<br />
Lidar com a matéria, que pode ser definido segundo Cecília Almeida Salles,<br />
como a tudo que o artista recorre para a concretização de seu objeto artístico, aquilo que<br />
utiliza, define e pesquisa para dar corpo a sua linguagem e situa o artista no mundo.<br />
(Salles: 2004, 66). Essa busca de encontro de sua ancestralidade aproxima-se da<br />
elaboração de uma paisagem que traz uma poética não só africana, mas as várias<br />
influências constituídas em nossa cultura. <strong>Uma</strong> paisagem que se põe. E poente é<br />
equiparado na cultura Nagô aos pés (esè) que são como condutores e posicionam os<br />
seres em contato com a terra, relacionando-se com os ancestrais para possibilitar o<br />
renascimento da vida e o nascente que seria o que está em vias de desenvolvimento e<br />
pertencente ao futuro.<br />
A questão de gênero para as duas artistas atua não apenas como conteúdo<br />
expressivo, mas como discurso cultural de natureza sexuada. Dessa maneira, são<br />
estabelecidas em formas pré-discursivas anteriores a cultura, uma política de caráter<br />
neutro que no decorrer do processo rege a cultura. Assim constrói-se o conceito de sexo<br />
como definidor das relações sociais.
Um corpo social fundamentado nos valores institucionalizado como família,<br />
casamento e filhos. Qual é essa corporalidade na condição de ser mulher e negra? Um<br />
corpo feminino e negro temporal e atemporal que aborda como material expressivo a<br />
ancestralidade inserida num discurso de hegemonia racial que encobre uma falsa<br />
democracia racial e o posicionamento político, cultural e social do artista.<br />
A <strong>arte</strong> contemporânea internacional distancia-se da subjetividade e da expressão<br />
do eu do artista apropriando-se da produtividade artificial e anônima presente nas<br />
sociedades industriais e pós-industriais. Como característica dessa <strong>arte</strong> acrescenta-se a<br />
utilização de elementos modulares, a seriação e a impessoalidade. Em paralelo, a<br />
pesquisa da materialidade física e química em seu aspecto natural ou semi-<br />
industrializado com interferência quase mínima do artista.<br />
A <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> contemporânea pauta-se numa tradição <strong>arte</strong>sanal não erudita<br />
sintetizadas na oposição entre anônimo e autoral. Rosana Paulino está inserida nessa<br />
internacionalidade ao trabalhar em sua visualidade com módulos e seriação na<br />
reprodução das imagens e também utilizar a costura e o bordado apropriando-se dos<br />
recursos de uma <strong>arte</strong> de origem popular. Do mesmo modo, Yêdamaria localiza-se nessa<br />
desterritorialidade de uma <strong>arte</strong> de caráter internacional uma territorialidade que não a<br />
insere apenas numa definição de <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> pelo local, contudo, o diálogo<br />
dessas formas nas contradições que essa definição estabelece.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES<br />
Nesta pesquisa, a escolha de artistas como, Mestre Didi, Rubem Valentim,<br />
Rosana Paulino e Yêdamaria, fez-se com a finalidade de se pensar uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<br />
<strong>brasileira</strong> de definição múltipla. Não fechada em si mesma. E não se pode limitá-la a um<br />
espaço específico.<br />
O espaço dessas obras não se encontra apenas numa herança africana sustentada<br />
pela religiosidade. “Tradicionalmente, os estudos acadêmicos sobre cultura material<br />
africana/<strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> giram sobre um eixo religioso, demasiadamente litúrgico, onde<br />
o faber e o ludus do homem africano no Brasil são polarizados em espaços nos<br />
terreiros. Assim, são reduzidas as possibilidades artísticas nesse exclusivismo ritual<br />
religioso.” (Lody: 2005, 256)<br />
O que a delimitaria a uma <strong>arte</strong> local, pensando-se nas proposições de Mariano<br />
Carneiro da Cunha e Marta Heloísa Leuba Salum, que definem a <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong><br />
constituída de valores religiosos excluindo desse modo, uma série de olhares possíveis<br />
para conceituá-la, negando a possibilidade de releitura desses conteúdos num diálogo<br />
que ampliaria essa noção de território e colocaria essa produção numa <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong> de<br />
caráter internacional.<br />
Entre alguns teóricos que vêem a <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> atrelada a uma<br />
religiosidade, Kabengele Munanga amplia o conceito de uma <strong>arte</strong> local para uma <strong>arte</strong><br />
<strong>brasileira</strong>, abrangendo os artistas e sua apropriação dos cânones formais da <strong>arte</strong> africana<br />
tradicional reelaborada numa linguagem visual própria, podendo-se citar, Rubem<br />
Valentim e Mestre Didi. E artistas <strong>afro</strong>-descendentes não preocupados apenas com<br />
aspectos formais de herança africana, trazendo também como preocupação, a sociedade,
a cultura, a memória e a inserção do negro na história social <strong>brasileira</strong>. Artistas como<br />
Rosana Paulino e Yêdamaria, produtoras de uma visualidade não territorial, uma<br />
visualidade de caráter não religioso, traduzindo uma desterritorialidade que as inserem<br />
numa <strong>arte</strong> internacional, apresentando uma ancestralidade transcendente em valores<br />
abordados nas questões partilhadas na contemporaneidade.<br />
Pensar <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> como religiosa excluiria determinados artistas que<br />
propõem questionamentos pertinentes sobre o negro, por exemplo, o papel de ser<br />
mulher e negra e as condições instituídas nas relações de subalternidade social, como<br />
Rosana Paulino. E ainda, uma pesquisa plástica cromática e formal em naturezas-mortas<br />
e barcos como a pintura de Yêdamaria em determinadas fases de sua trajetória artística.<br />
Numa outra possibilidade de definição, partindo dos cânones europeus, o artista<br />
Mestre Didi, poderia ser talvez localizado numa produção de caráter popular, excluindo-<br />
o de outra base conceitual. A <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong> é um sistema fluido, abarcando<br />
diferentes formas de concepção estética. Não excluindo artistas de origem étnica branca<br />
que lidaram com os conteúdos e/ou formas de origem africana na sua pesquisa, ou<br />
então, a produção de <strong>afro</strong>-descendentes preocupados com conteúdos formais no qual a<br />
sua ancestralidade não aparece de modo nítido; uma concepção de visualidade plástica<br />
de caráter autoral, concebida na intersecção entre o popular e o erudito.<br />
As relações com o popular vistas a partir de manifestações da Folia de Reis, da<br />
Congada e do Candomblé, ilustram a constituição de embates culturais produzidos pelos<br />
contatos proximais ocorridos entre as matrizes indígena, africana e européia, no<br />
processo de mestiçagem tanto étnica como cultural.<br />
As diferenças entre culturas no processo de formação da sociedade <strong>brasileira</strong> são<br />
instauradas e comunicadas, por meio do diálogo entre as matrizes culturais negro-africa-<br />
nas, ameríndias e portuguesas, em seu convívio tenso e sedutor nas festas, no teatro, na
música, na religiosidade e na dança. Nas relações de tensão, simultaneidade e aproxima-<br />
ção estabelecidas na constituição de uma identidade cultural.<br />
Busca-se resgatar a memória configurada pela construção de acontecimentos e<br />
de pessoas que se destacaram para a realização de uma história comum de um grupo<br />
social pela noção de pertencimento. Construindo formas de uma afirmação que dentro<br />
de um processo histórico delineou por meio de uma identidade opressiva a alienação<br />
dos corpos pela inferiorização. E o corpo incorporado à sua religiosidade torna-se um<br />
“espaço tão preservado e valorizado nas falas simbólicas com a natureza, com o<br />
mundo dos homens e o mundo dos deuses.” (Lody: 2005, 17)<br />
O conceito de negritude não se fundamenta apenas numa questão biológica,<br />
contudo, envolve conteúdos que tornam comum a história de indivíduos e a afirmação<br />
de uma identidade num posicionamento político.<br />
Senghor sugere que se distingam negritude, africanidade e autenticidade.<br />
Negritude situa-se numa perspectiva universal; africanidade equivale à<br />
personalidade africana, é a Africanness. Autenticidade é um conceito usado<br />
paralelamente à africanidade, significando a retomada da África<br />
contemporânea nas suas diferentes realidades com a África remota, aquela de<br />
tradições autóctones. (Lody: 2005, 293)<br />
Essas práticas culturais têm em sua <strong>corporeidade</strong> um ser social e de<br />
reminiscências, localizando-se nas proposições de Mário de Andrade, para o<br />
delineamento de uma identidade nacional e logo uma definição de <strong>arte</strong> <strong>brasileira</strong>.<br />
Lembrar não é reviver mas refazer, reconstruir, repensar com imagens de hoje as<br />
experiências do passado. A memória é ação. A imaginação não opera, portanto sobre o<br />
vazio, mas com a sustentação da memória. (Salles: 2004, 100)<br />
A importância dos Congressos <strong>afro</strong>-brasileiros nos anos 30 está em trazer o<br />
negro como uma das matrizes constituinte de uma visualidade nacional e como<br />
formador dessa identidade. O negro aparece como pesquisado e não como pesquisador.
A discussão da pesquisa sobre a cultura material e imaterial do negro,<br />
colocando-o também no papel do pesquisador, aparece nos congressos realizados pela<br />
Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). Em sua quinta edição, teve<br />
como origem histórica a trajetória dos pesquisadores negros, nos espaços institucionais<br />
de pesquisa e nos movimentos negros desde 1970.<br />
Foi criada oficialmente em 29 de agosto de 2002 e possui como objetivo:<br />
- Congregar os/as pesquisadores/as negros/as e todos/as aqueles/as que<br />
trabalham como temas de interesse direto das populações negras no Brasil.<br />
- Promover conferências, reuniões, cursos e debates no interesse da pesquisa<br />
sobre temas diretamente ligados às questões que envolvem as populações<br />
negras no Brasil;<br />
- Possibilitar publicações em teses, dissertações, artigos de revistas de<br />
interesse direto das populações negras no Brasil;<br />
- Manter intercâmbio com associações congêneres do país e exterior;<br />
- Defender e zelar pela manutenção da Pesquisa com financiamento público e<br />
dos institutos de pesquisa em geral, propondo medidas para seu<br />
aprimoramento, fortalecimento e consolidação.<br />
- Propor medidas para a política de ciência e tecnologia do país. (Congresso<br />
Brasileiro de Pesquisadores/as negros/as: 5, 2008, Goiânia, GO/ Caderno de<br />
resumos)<br />
Os Congressos Brasileiros de Pesquisadores Negros (COPENE) acontecem em<br />
diferentes estados a cada dois anos, o primeiro em 2000 tinha como tema, O negro e a<br />
produção contemporânea do conhecimento: dos 500 anos ao século XXI, ocorreu em<br />
Recife na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); o segundo em 2002, Do preto<br />
a <strong>afro</strong>-descendente: a pesquisa sobre relações étnico raciais no Brasil, na Universidade<br />
Federal de São Carlos (UFSCAR); o terceiro em 2004, Pesquisa social e políticas de<br />
Ação Afirmativa para <strong>afro</strong>-descendentes na Universidade Federal do Maranhão<br />
(UFMA); o quarto COPENE, em 2006, O Brasil negro e suas africanidades: produção<br />
e transmissão de conhecimentos na Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e por<br />
último, em 2008, o Pensamento e anti-racismo: Diferenciações e percursos na<br />
Universidade de Goiás (UFG).<br />
Participei contribuindo com a minha pesquisa em 2006 com o texto intitulado,<br />
Olhar e ser visto: teatralidade, samba e cultura popular no Brasil, juntamente com ou-
tros autores, Christian Fernando dos Santos Moura e Wagner Leite Viana, também dis-<br />
centes do programa de pós-graduação Mestrado em Artes do Instituto de Artes da<br />
<strong>Unesp</strong> (I.A.), e em 2008, Tessituras de africanidades no modernismo brasileiro, com<br />
Wagner Leite Viana.<br />
Esses congressos promovem um espaço de interlocução e a necessidade de<br />
buscar uma afirmação identitária negra expressas nos meios econômico, social, político<br />
e cultural refletindo na estruturação de uma visualidade.<br />
A percepção é a ação do olhar responsável pela construção das imagens<br />
geradoras de descobertas ou de transformações poéticas. Em seu processo de<br />
apreensão do mundo, o artista estabelece conexões novas e originais,<br />
relacionadas a seu grande projeto poético. Encontramos, no entanto, a<br />
unicidade de cada obra e a singularidade de cada artista não só na natureza<br />
dessas combinações perceptivas, como também no modo como são<br />
concretizadas. (Salles: 2004, 104)<br />
Qual o sentido expressivo que a <strong>arte</strong> ocupa na cultura na qual ela se define e for-<br />
ma, considerando os aspectos culturais, históricos, globais, locais e sua característica de<br />
expressar o universo simbólico de um povo? Quais critérios para se definir uma obra a<br />
partir da acepção de culturas híbridas, e, portanto, relacionais como uma <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-brasi-<br />
leira? Qual a sua pertinência e para quem?<br />
Essas questões fazem referência à dificuldade de interlocução nos meios acadê-<br />
micos, por extensão de que maneira esses conteúdos aparecem e o tipo de abordagem<br />
tratada dentro da grade curricular, tanto em relação à <strong>arte</strong> africana tradicional e contem-<br />
porânea quanto da <strong>arte</strong> <strong>afro</strong>-<strong>brasileira</strong>. <strong>Uma</strong> espécie de ausência nesses espaços, falta de<br />
extenso material bibliográfico sobre o tema e a necessidade de encontrar outros pares,<br />
era algo mencionado por outros pesquisadores negros da área de ciências humanas na<br />
articulação dessas discussões, nos Congressos promovidos pela ABPN.<br />
Esse trabalho perpassa por um olhar histórico e antropológico na constituição de<br />
um corpo criador que não se fundamenta no conceito de estética para abordar as<br />
produções artísticas de herança africana. O que se propõe é o caráter programático
elaborado por esses artistas com apresentação de formas expressivas distintas acrescidas<br />
de suas referências culturais e sociais na inserção deles no mercado de <strong>arte</strong>. Poética<br />
seria um termo mais pertinente e apropriado para essas discussões que são pautadas no<br />
processo de criação, não visto apenas por seu aspecto mais formalista, contudo também<br />
pela cultura. Esse conceito compreende o universo existencial de um artista e no modo<br />
como reelabora determinados conteúdos para a existência de uma obra.<br />
O objeto artístico, durante sua criação, se desprende da realidade externa à<br />
obra, que é dissolvida na <strong>arte</strong> de dominá-la e fazer dela realidade artística. O<br />
artista é um captador de detritos da experiência, de retalhos da realidade. Há,<br />
por um lado, a superação das linhas da superfície desses retalhos externos ao<br />
mundo da criação; não se pode, porém negar que haja afinidades secretas<br />
entre as realidades externa e interna à obra. (Salles: 2004, 97)<br />
Esses quatro artistas convergem para um corpo-memória que foi construído por<br />
linguagens corporais distintas em razão do confronto entre as matrizes étnicas que<br />
compuseram o que seria um corpo brasileiro pelo processo de miscigenação e<br />
hibridismo cultural. Essas linguagens traduzem o idioma desse corpo adjetivado na<br />
forma de atualizá-lo: como o corpo histórico/feminino em Rosana Paulino, o corpo<br />
mítico em Yêdamaria, o corpo emblema em Valentim ou o corpo sagrado/ linguagem<br />
em Mestre Didi.
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