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Vidas Paralelas - Péricles e Fábio Máximo - Universidade de Coimbra

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Plutarco<br />

<strong>Vidas</strong> <strong>Paralelas</strong>:<br />

<strong>Péricles</strong> e <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong><br />

Tradução do grego, introdução e notas <strong>de</strong><br />

Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> do Porto<br />

Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong>


Autor: Plutarco<br />

Título: <strong>Vidas</strong> <strong>Paralelas</strong> - <strong>Péricles</strong> e <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong><br />

Tradução do grego, introdução e notas: Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

e Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

Editor: Centro <strong>de</strong> Estudos Clássicos e Humanísticos<br />

Edição: 1ª/2010<br />

Coor<strong>de</strong>nador Científico do Plano <strong>de</strong> Edição: Maria do Céu Fialho<br />

Conselho editorial: José Ribeiro Ferreira, Maria <strong>de</strong> Fátima Silva,<br />

Francisco <strong>de</strong> Oliveira, Maria do Céu Fialho, Nair Castro Soares<br />

Director técnico da colecção / Investigador responsável pelo projecto<br />

Pl u t a r c o e o s f u n d a m e n t o s d a i d e n t i d a d e e u ro P e i a: Delfim F. Leão<br />

Concepção gráfica e paginação: Elisabete Cação, Nelson Henrique, Rodolfo Lopes<br />

Obra realizada no âmbito das activida<strong>de</strong>s da UI&D<br />

Centro <strong>de</strong> Estudos Clássicos e Humanísticos<br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong><br />

Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras<br />

Tel.: 239 859 981 | Fax: 239 836 733<br />

3000-447 <strong>Coimbra</strong><br />

ISBN: 978-989-8281-26-5<br />

ISBN Digital: 978-989-8281-27-2<br />

Depósito Legal: 309395/10<br />

Obra Publicada com o Apoio <strong>de</strong>:<br />

© Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis<br />

© Centro <strong>de</strong> Estudos Clássicos e Humanísticos da <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong><br />

Reservados todos os direitos. Nos termos legais fica expressamente proibida a reprodução<br />

total ou parcial por qualquer meio, em papel ou em edição electrónica, sem autorização<br />

expressa dos titulares dos direitos. É <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já excepcionada a utilização em circuitos<br />

académicos fechados para apoio a leccionação ou extensão cultural por via <strong>de</strong> e-learning.<br />

Volume integrado no projecto Plutarco e os fundamentos da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> europeia e financiado<br />

pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.


Ín d i c e<br />

Introdução Geral 7<br />

Fragmentos: edições e respectivas siglas 20<br />

Vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />

Introdução 21<br />

Tábua cronológica Grécia/Vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> 47<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong> 51<br />

Vida <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong><br />

Introdução 149<br />

Tábua cronológica Roma/Vida <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> 176<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o 179<br />

co M P a ra ç ã o e n t r e <strong>Péricles</strong> e Fá b i o Má x iM o 231<br />

Bibliografia 239<br />

Índices <strong>de</strong> Nomes 249


in t r o d u ç ã o Ge r a l<br />

7<br />

in t r o d u ç ã o Ge ra l<br />

E, por isso, parece bem aprovar a frase <strong>de</strong> Bias – que<br />

o po<strong>de</strong>r revelará o homem; porque o governante na<br />

socieda<strong>de</strong> está em relação com o semelhante.<br />

Aristóteles, Ética a Nicómaco (1130a 1)<br />

O que têm, na verda<strong>de</strong>, <strong>Péricles</strong> e <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong><br />

em comum? Assim questionou K. Zeigler 1 (1951:<br />

899), editor das <strong>Vidas</strong> <strong>Paralelas</strong> <strong>de</strong> Plutarco. Com<br />

efeito, enquanto que o primeiro (495/90-429 a.C.) era<br />

lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong>mocrático quando Atenas conhecia um tempo<br />

áureo e o imperialismo grego estava no apogeu, <strong>Fábio</strong><br />

<strong>Máximo</strong> (ca. 283?-203 a.C.), um representante da<br />

antiga aristocracia, eleito dictator e cinco vezes cônsul,<br />

numa altura em que Roma enfrentava a sua maior crise<br />

<strong>de</strong> sempre. A influência do político ateniense foi tal que<br />

<strong>de</strong>u nome ao período em que viveu, também <strong>de</strong>signado<br />

<strong>de</strong> século <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> enquanto que o ditador romano<br />

recebeu a alcunha <strong>de</strong> cuntactor, “o contemporizador” pela<br />

táctica <strong>de</strong> batalha campal usada contra os Cartagineses.<br />

1 “Was haben...Perikles und Fabius Maximus… in Wahrheit<br />

miteinan<strong>de</strong>r gemein?”. A mesma questão é alargada a outros pares <strong>de</strong><br />

<strong>Vidas</strong>, como Aristi<strong>de</strong>s-Catão o Antigo e Timoleonte-Émilio Paulo.<br />

Crespo ( 4 2007: 313) partilha do mesmo ponto <strong>de</strong> vista, ao sustentar<br />

que “Plutarco (...) quedó prisionero <strong>de</strong> su propio método.”


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

Assim, perante esta disparida<strong>de</strong> é verosímil concluir<br />

que <strong>Péricles</strong> fica visivelmente engran<strong>de</strong>cido face ao<br />

segundo elemento, não parecendo possível estabelecer<br />

um paralelo, justo.<br />

Observemos, contudo, o objectivo <strong>de</strong>ste método<br />

comparativo das <strong>Vidas</strong> expresso no proémio do opúsculo<br />

plutarquiano A Coragem das Mulheres (243b):<br />

Não é, <strong>de</strong>certo, possível apreen<strong>de</strong>r melhor a similarida<strong>de</strong><br />

e a diferença (...) <strong>de</strong> um outro modo que não seja através<br />

do confronto <strong>de</strong> vidas com vidas, feitos com feitos (...). De<br />

facto, as virtu<strong>de</strong>s adquirem certas diferenças, graças à sua<br />

natureza, como se se tratasse <strong>de</strong> um cromatismo próprio,<br />

e assumem semelhanças por via dos costumes em que se<br />

radicam, do temperamento das pessoas, da sua criação e<br />

modo <strong>de</strong> vida. Por exemplo, Aquiles era corajoso <strong>de</strong> um<br />

modo diferente <strong>de</strong> Ájax 2 .<br />

Apesar <strong>de</strong> esta observação se aplicar ao confronto<br />

entre virtu<strong>de</strong>s masculinas e femininas, também se a<strong>de</strong>qua<br />

ao caso das <strong>Vidas</strong> <strong>Paralelas</strong>, pois as qualida<strong>de</strong>s revelam-se<br />

na comunida<strong>de</strong>, na relação com o semelhante e numa<br />

circunstância concreta. Assim, a acção <strong>de</strong>ve ser avaliada<br />

neste enquadramento, consi<strong>de</strong>rando as variáveis que lhe<br />

são relativas.<br />

No epílogo das <strong>Vidas</strong>, que correspon<strong>de</strong> à<br />

comparação (synkrisis) dos dois heróis, o biógrafo<br />

evi<strong>de</strong>ncia as virtu<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>feitos <strong>de</strong> ambos e faz a mesma<br />

observação<br />

2 Tradução <strong>de</strong> Fialho, Dias, Silva (2001: 15).<br />

8


9<br />

in t r o d u ç ã o Ge ra l<br />

Por um lado, <strong>Péricles</strong> governou um povo que se encontrava<br />

na maior prosperida<strong>de</strong>, muito gran<strong>de</strong> por si mesmo e no<br />

cume do po<strong>de</strong>r, pelo que podia parecer que se manteve até<br />

ao final seguro e intacto <strong>de</strong>vido ao bem-estar comum e à<br />

força do Estado. As acções <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, por outro lado, que<br />

recebeu a cida<strong>de</strong> nas circunstâncias <strong>de</strong> maior infortúnio<br />

e mais lamentáveis, não pu<strong>de</strong>ram garantir a segurança,<br />

mas soube erguer a cida<strong>de</strong> a partir da <strong>de</strong>sgraça e melhorar<br />

a sua situação (Fab. 28.1).<br />

Assim, do ponto <strong>de</strong> vista militar, enquanto <strong>Péricles</strong><br />

ergueu nove troféus, <strong>de</strong>dicando-se, <strong>de</strong>pois, mais a festas<br />

e reuniões públicas solenes do que a fazer guerra, <strong>Fábio</strong>,<br />

por sua vez, ergueu apenas dois, mas revelou-se homem<br />

<strong>de</strong> firme <strong>de</strong>cisão tendo em conta o número <strong>de</strong> flagelos<br />

que então se abateu sobre os Romanos.<br />

Além do facto histórico, também a própria<br />

estrutura narrativa <strong>de</strong> cada vida é diferente. Na Vida<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, o biógrafo apresenta o percurso completo<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância até à morte, <strong>de</strong>dicando muito<br />

espaço à primeira fase (3-8), on<strong>de</strong> relata as origens da<br />

personagem, a caracterização física e psicológica e a<br />

formação e iniciação na vida pública; num segundo<br />

momento (9-37), a ascensão, apogeu e <strong>de</strong>cadência no<br />

po<strong>de</strong>r e finalmente, na terceira e última parte (38-39),<br />

são <strong>de</strong>scritas as circunstâncias da morte, as exéquias<br />

e o impacto do <strong>de</strong>saparecimento do protagonista na<br />

comunida<strong>de</strong>. Na biografia do general romano, num<br />

capítulo apenas, são apresentados os dados relativos à<br />

filiação, infância e juventu<strong>de</strong>. No capítulo segundo,<br />

a narrativa começa quando <strong>Fábio</strong> tinha já uma ida<strong>de</strong>


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

avançada, em 217 a.C., por altura do <strong>de</strong>sastre da batalha<br />

do Trasimeno, <strong>de</strong>ixando em branco mais <strong>de</strong> meta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sta vida. Depois <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>rrota, nesse mesmo ano é<br />

eleito dictator – altura em que a Vida atinge o ponto<br />

mais épico –, seguindo-se um relato sumário dos anos<br />

seguintes. Três anos <strong>de</strong>pois, <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> recupera<br />

Tarento (214 a.C.) e nesse ano, terminaram os seus<br />

sucessos militares. Na recta final da biografia, tem lugar<br />

a ascensão <strong>de</strong> Cipião, que expulsará <strong>de</strong>finitivamente os<br />

Cartagineses <strong>de</strong> Itália, pondo termo à Segunda Guerra<br />

Púnica (218-201 a.C.). Assim, enquanto o primeiro<br />

conquista o estado <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong> moral no final da<br />

vida, nos primeiros anos da Guerra do Peloponeso,<br />

<strong>Fábio</strong> conhece-o logo no início da Vida (2), tendo em<br />

conta a sua ida<strong>de</strong>.<br />

O que justifica, afinal, a comparação entre os<br />

dois estadistas? 3 Em primeiro lugar, vários traços <strong>de</strong><br />

carácter os aproximam: o domínio invulgar da oratória,<br />

isenta <strong>de</strong> ornamento (5.1; 1.8); a forma <strong>de</strong> caminhar,<br />

tranquila (5.1; 17.7); o não serem supersticiosos, não se<br />

3 Pietro Vannucci ou Perugino (1446–1524), conhecido pintor<br />

da Renascença italiana, é autor <strong>de</strong> dois frescos (1496-1507) da<br />

Sala <strong>de</strong> Audiência do Colégio <strong>de</strong> Cambio (Perugia) on<strong>de</strong> aparecem<br />

estas duas figuras. No primeiro é representado <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> ao<br />

lado <strong>de</strong> Sócrates e Numa Pompílio, pairando sobre eles a virtu<strong>de</strong><br />

Prudência, enquanto que, no segundo painel, <strong>Péricles</strong> surge entre<br />

Cipião e Cincinato e sobre este grupo aparece a virtu<strong>de</strong> Fortaleza.<br />

Com efeito, dificilmente um historiador ou um artista encontraria<br />

paralelos entre estas duas vidas, pelo que este paralelo não terá<br />

firmado uma tradição. Enquanto que um é mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> fortaleza<br />

moral e política, o outro é o primeiro na prudência. Cf. Crespo<br />

( 4 2007: 313), Guerrini (1991b: 305 sqq).<br />

10


11<br />

in t r o d u ç ã o Ge ra l<br />

<strong>de</strong>ixando, por isso, surpreen<strong>de</strong>r por fenómenos irracionais<br />

(6.1; 2.3); o facto <strong>de</strong>, durante a invasão inimiga, as<br />

proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ambos terem sido poupadas enquanto as<br />

restantes foram <strong>de</strong>struídas (33.3; 7.4).<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista político, <strong>de</strong>stacamos a ênfase na<br />

autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um só homem, que no caso <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> durou<br />

quase toda a vida, originando a comparação com o tirano<br />

Pisístrato 4 , tanto pela voz como pela agilida<strong>de</strong> no discurso<br />

(7.1) – estas semelhanças valeram-lhe comentários jocosos<br />

por parte dos cómicos (16.1). Já a ditadura 5 do general<br />

4 Em 560 a. C., Pisístrato (600-527 a. C.), toma o po<strong>de</strong>r pela<br />

força e conserva-o quase ininterruptamente até ao fim da sua vida.<br />

O seu governo, bem como o dos filhos constituiu um período<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> florescimento em Atenas, pois foi nesta altura que se<br />

construíram várias obras públicas que prestigiaram a cida<strong>de</strong>: o<br />

templo <strong>de</strong> Atena, na Acrópole, o altar dos Doze Deuses, na ágora, o<br />

santuário <strong>de</strong> Zeus Eleutério, no su<strong>de</strong>ste da cida<strong>de</strong> e a Fonte das Nove<br />

Bocas, que garantia o abastecimento <strong>de</strong> água. Durante a tirania dos<br />

Pisístratos, a cerâmica ática atingiu o seu apogeu e fomentou-se o<br />

culto <strong>de</strong> Atena e Dioniso através da importância dada às Panateneias<br />

e do aparecimento dos concursos trágicos, respectivamente. Após<br />

a morte <strong>de</strong> Pisístrato, o comportamento dos seus filhos tornou-se<br />

excessivo, pelo que gerou o <strong>de</strong>scontentamento dos Atenienses e a<br />

tirania acabou por ser abolida pelos Alcmeónidas.<br />

5 Magistratura romana à qual se recorria em situações <strong>de</strong> crise<br />

militar e política, atribuída por um magistrado com imperium<br />

(cônsul, pretor ou interrex) previamente autorizado pelo Senado,<br />

tratando-se, por isso, <strong>de</strong> uma nomeação e não <strong>de</strong> uma eleição. Além<br />

<strong>de</strong>ste, também se podia recorrer ao voto popular, mas era invulgar.<br />

Esta magistratura terminava ao fim <strong>de</strong> seis meses (Cícero, As Leis<br />

3.9; Tito Lívio 3.29.7) e durante este período, o ditador <strong>de</strong>tinha o<br />

po<strong>de</strong>r absoluto, tendo a seu cargo o comando unificado do exército<br />

em caso <strong>de</strong> guerra (dictatura rei gerendae), o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> refrear<br />

revoltas (dictatura seditionis sedandae) e <strong>de</strong> garantir a realização <strong>de</strong><br />

eleições, na ausência <strong>de</strong> cônsules (Fab. 9.4), não po<strong>de</strong>ndo alterar a<br />

constituição vigente. Após a sua eleição, o dictator ou magister populi<br />

(“mestre do exército dos cidadãos”) <strong>de</strong>veria também ele próprio


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

romano terminou ao fim <strong>de</strong> seis meses, mas continuou,<br />

na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cônsul (214 e 209 a.C.), a <strong>de</strong>terminar os<br />

<strong>de</strong>stinos do povo romano, controlando directamente <strong>de</strong>cisões<br />

do Senado (17.7), seja quando procurou evitar a <strong>de</strong>rrota<br />

<strong>de</strong> Canas, dissuadindo Paulo Emílio da investida (14.4),<br />

seja quando tentou travar a ascensão <strong>de</strong> Cipião, querendo<br />

convencer Licínio Crasso da incompetência daquele (25.3).<br />

Além disso, os cargos que lhe foram atribuídos entretanto –<br />

princeps senatus (209 e 204 a.C.), o <strong>de</strong> áugure (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 265<br />

a.C.) e pontifex maximus (216 a.C.) – permitiram-lhe<br />

nomear um subordinado, o magister equitum, o chefe <strong>de</strong> cavalaria.<br />

Contudo, como se tratava <strong>de</strong> uma nomeação para resolver uma<br />

questão objectiva, estas magistraturas duravam o menor tempo<br />

possível, havendo mesmo relatos <strong>de</strong> dictatores que abdicaram antes<br />

que completar os seis meses (Tito Lívio 3.29.7; 9.34.12; 23.22.11<br />

e 23.3). Os anais da história da República Romana atestam o<br />

recurso frequente a esta magistratura até ao final do século III<br />

a.C., não sendo conhecido nenhum exemplo ao longo do século<br />

II a.C. Reapareceu <strong>de</strong> forma ostensiva em 81 a.C., com Sula, que<br />

sendo nomeado dictator rei publicae constituendae causae, torna-se<br />

ditador vitalício até 79 a.C., data da sua morte (Apiano, Guerras<br />

Civis 1.3.10) – tendo abdicado, contudo, pouco antes <strong>de</strong> morrer.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, Júlio César, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> cinco consulados (59, 48, 46,<br />

45, 44 a.C.) e <strong>de</strong> três magistraturas na qualida<strong>de</strong> dictator (49, 48,<br />

44 a.C.), converte esta última em perpétua (Apiano, Guerras Civis<br />

1.98.459). É assassinado a 15 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong>sse mesmo ano. Sobre<br />

esta magistratura na República Romana, vi<strong>de</strong> o estudo Lintott<br />

(2003: 109-13). O conceito <strong>de</strong> ditadura romana é, com efeito,<br />

diverso daquele que se vulgarizou entre nós <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do século<br />

XX, com o estabelecimento <strong>de</strong> Estados autoritários e totalitários.<br />

Em 1921, o constitucionalista alemão Carl Schmitt (1888-1985)<br />

estabeleceu a distinção entre “ditadura <strong>de</strong> comissário”, que parte<br />

da concepção <strong>de</strong> magistratura romana exposta em Tito Lívio – e a<br />

“ditadura soberana” que legitima, do ponto <strong>de</strong> vista jurídico e com<br />

fundamento teológico, a or<strong>de</strong>m “nova” ditatorial que é dotada <strong>de</strong><br />

uma constituição própria (La Dictature, Paris, 2000, pp. 23-56,<br />

135-54).<br />

12


13<br />

in t r o d u ç ã o Ge ra l<br />

construir uma auctoritas invulgar. No âmbito militar, há<br />

também um traço que aproxima estes dois políticos: a<br />

táctica <strong>de</strong>fensiva face à invasão espartana e cartaginesa,<br />

respectivamente. <strong>Péricles</strong> optou por não envolver a cida<strong>de</strong><br />

num combate contra sessenta mil hoplitas do Peloponeso<br />

e da Beócia, apesar da indignação do povo (33.5), mas<br />

não evitou a Guerra do Peloponeso por não ter revogado<br />

o <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Mégara (29.1). <strong>Fábio</strong>, por sua vez, resistiu à<br />

invasão cartaginesa, sem atacar, enquanto o inimigo esgotava,<br />

pouco a pouco, os seus recursos (5.3). No caso <strong>de</strong>ste último,<br />

a estratégia manchou o seu estado <strong>de</strong> graça político, pois a<br />

população não via com bons olhos o avanço do inimigo e a<br />

<strong>de</strong>struição das proprieda<strong>de</strong>s dos agricultores face à aparente<br />

passivida<strong>de</strong> do ditador. O traço anti-populista constitui<br />

também uma das características <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (7.3) que <strong>de</strong>ixava<br />

transparecer pelo aspecto fisionómico, ostentando um rosto<br />

austero, um discurso <strong>de</strong> mau tom, embora ágil (5.1), que<br />

se assemelhava ao <strong>de</strong> Pisístrato; a arrogância (39.2) que foi<br />

comentada pelo poeta Íon (5.3), ao ponto <strong>de</strong> a morte dos<br />

seus filhos legítimos, familiares e amigos ser vista como um<br />

castigo (37.5); o carácter aristocrático da sua <strong>de</strong>mocracia<br />

(9.1). O seu par romano, por sua vez, partilhava também<br />

<strong>de</strong>ste mesmo traço (10.3), a julgar pelas ostentações <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r durante a ditadura (4.2-3) e pelas observações do<br />

biógrafo (10.3) 6 .<br />

6 A propósito das referências ao povo nas <strong>Vidas</strong> <strong>Paralelas</strong>, vi<strong>de</strong> o<br />

interessante estudo <strong>de</strong> Saïd (2004:10) que reflecte sobre a forma como<br />

Plutarco se refere à psicologia da multidão: “the masses are more often<br />

than not characterized in a very negative way. As opposed to the members<br />

of the elite, the masses are said to be lazy (ἀργός, σκολαστής), ignorant<br />

(ἀμαθεῖς) and uneducated (τοὺς...φορτικοὺς καὶ πένητας)”.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

Esta resistência ao populismo não ofuscava,<br />

contudo, o pragmatismo político <strong>de</strong>stes dois estadistas,<br />

que, em certos momentos, tiraram partido da irreflexão<br />

do povo. <strong>Péricles</strong>, querendo conquistar um po<strong>de</strong>r sólido,<br />

aliou-se ao povo (11.1) e tomou as suas ré<strong>de</strong>as, levando<br />

a cabo medidas políticas a seu favor “imaginando<br />

constantemente na cida<strong>de</strong> um espectáculo para todos ou<br />

um banquete ou uma procissão, e procurando divertila<br />

com prazeres não estranhos às musas” (11.4). Assim,<br />

não só distraía a multidão que, ociosa, “se intrometia<br />

nas reformas políticas”, mas gerava também, junto aos<br />

aliados, o medo da revolta (11.6) 7 .<br />

Do mesmo modo, <strong>Fábio</strong> procura influenciar a<br />

população por meio <strong>de</strong> movimentações <strong>de</strong> aparência.<br />

Em 217 a.C., a sua reforma como dictator começa por<br />

recuperar o sentido religioso no povo. Com efeito,<br />

era forçoso tornar propícios os <strong>de</strong>uses, já que <strong>Fábio</strong> a<br />

todos informou que a <strong>de</strong>rrota se <strong>de</strong>vera ao <strong>de</strong>sprezo<br />

dos generais pelos <strong>de</strong>uses (4.4). Contudo, quando<br />

estes se manifestaram, pouco antes, sob a forma <strong>de</strong><br />

sinais, o próprio <strong>Fábio</strong> tratou <strong>de</strong> os ignorar (2.3). Mais<br />

tar<strong>de</strong>, propôs também ao Senado que se eliminasse os<br />

lamentos femininos, proibindo ajuntamentos públicos<br />

para manifestar as <strong>de</strong>sgraças em comum (17.7), antes<br />

que se evi<strong>de</strong>nciasse a gran<strong>de</strong>za do <strong>de</strong>sastre <strong>de</strong> Canas<br />

com a fraca concorrência às celebrações da <strong>de</strong>usa Ceres<br />

(18.2). Ambos partilhavam também do sentido <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>za (megaloprepeia) a liberalida<strong>de</strong> com investiam<br />

7 Vi<strong>de</strong> ainda Per. 7.3-5.<br />

14


15<br />

in t r o d u ç ã o Ge ra l<br />

dinheiro nos eventos e obras públicas, algo elogiado por<br />

Aristóteles na Ética a Nicómaco (1122b7-9) 8 . <strong>Péricles</strong>,<br />

contudo, manifestou esta característica <strong>de</strong> forma mais<br />

significativa (14.1) tendo em conta o seu volume <strong>de</strong><br />

investimento em obras públicas (13-14; 30.7); <strong>Fábio</strong>, por<br />

sua vez, querendo recuperar a confiança da população,<br />

promoveu espectáculos musicais e cénicos <strong>de</strong>pois do<br />

<strong>de</strong>sastre do Trasimeno (4.6) e, na celebração da tomada<br />

<strong>de</strong> Tarento (22.8), erigiu uma estátua equestre em bronze<br />

<strong>de</strong> si mesmo, visto como algo “muito extravagante”<br />

(atopoteros).<br />

Além <strong>de</strong>stas semelhanças evi<strong>de</strong>nciadas pelo<br />

biógrafo, há que <strong>de</strong>stacar aquela que é mais importante,<br />

pois nela consiste o programa moral <strong>de</strong>ste par <strong>de</strong> <strong>Vidas</strong>,<br />

Plutarco refere-a no proémio 9 da Vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (2.5):<br />

Eram estes homens semelhantes em diversas qualida<strong>de</strong>s,<br />

principalmente na doçura (praotes), no sentido <strong>de</strong><br />

justiça (dikaiosyne) e na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> controlar a<br />

impon<strong>de</strong>ração (agnomosyne) dos cidadãos e dos seus<br />

colegas, tornando-se muito úteis às suas pátrias.<br />

8 Na Ética a Nicómano, Aristóteles elogia também este traço: “O<br />

magnificente gastará com coisas <strong>de</strong>ste género com nobreza <strong>de</strong> carácter.<br />

Com efeito, a magnificência é um traço comum a todas as excelências.<br />

Além do mais, fá-lo com prazer e profusamente, pois o contar tostão<br />

por tostão é mesquinhez.” Tradução <strong>de</strong> Caeiro ( 3 2009: 99).<br />

9 Os proémios, à semelhança das synkriseis, eram exercícios <strong>de</strong><br />

retórica. De acordo com essa tradição tinham como objectivos:<br />

cativar o auditório, criar empatia entre este e o orador, <strong>de</strong>spertando<br />

naquele o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r com o discurso apresentado. De modo<br />

a cumprir esse propósito, Plutarco combinava a sua mensagem<br />

com recursos <strong>de</strong> retórica como as chreiai, as gnomai, comparações e<br />

digressões, <strong>de</strong> que este proémio é exemplo.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

Com efeito, tal é mesmo confirmado do ponto <strong>de</strong><br />

vista quantitativo, pois este é o par <strong>de</strong> <strong>Vidas</strong> on<strong>de</strong> o termo<br />

praotes 10 bem como os seus correlatos surgem mais do que em<br />

qualquer outra obra, mais precisamente, <strong>de</strong>zasseis vezes 11 .<br />

A qualida<strong>de</strong> da praotes consta em ambas as caracterizações<br />

directas <strong>de</strong>stas figuras (5.1, 1.5) e no caso <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, surge,<br />

pela primeira vez, quando era ainda uma criança. Em<br />

ambos os estadistas é apresentada como uma tendência da<br />

natureza (physis), mas os seus efeitos ampliam-se na esfera<br />

pública, convertendo-se, por isso, num valor político que<br />

marcará a conduta <strong>de</strong> ambos. A tradução mais próxima<br />

é “doçura” ou “mo<strong>de</strong>ração” e aparece conceptualizada na<br />

Ética a Nicómaco, como a disposição intermédia entre<br />

os extremos, o irascível e a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se irar, o seu<br />

oposto, por <strong>de</strong>feito (1108a 6, 1125b 26). Com efeito,<br />

o “doce” ou “mo<strong>de</strong>rado” <strong>de</strong> carácter (praos) permanece<br />

imperturbável e é arrastado pela emoção (1126a 1). Este<br />

valor surge muitas vezes em oposição à cruelda<strong>de</strong>, violência<br />

ou tirania, expressões <strong>de</strong> excessos, do extremo irascível.<br />

A propósito <strong>de</strong>ste valor, conclui Aristóteles na<br />

mesma obra:<br />

Difícil <strong>de</strong> distinguir é também até que ponto alguém se<br />

irrita correctamente e para lá do qual está a errar. (...)<br />

10 Sobre a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>ste termo e seu sentido ético, vi<strong>de</strong> o<br />

conhecido estudo <strong>de</strong> De Romilly (1979).<br />

11 Stadter (1975: 82 n.18). Sobre o conceito <strong>de</strong> praotes nas<br />

<strong>Vidas</strong> <strong>de</strong> Plutarco, vi<strong>de</strong> o texto <strong>de</strong> Martin Jr. (1960). Este valor<br />

<strong>de</strong> “doçura” po<strong>de</strong> ser expresso em grego pelo termo praotes, por<br />

epieikeia, “indulgência” ou por philanthropia, “humanida<strong>de</strong>”.<br />

Ribeiro Ferreira (2008b) 112; i<strong>de</strong>m (2008a).<br />

16


17<br />

in t r o d u ç ã o Ge ra l<br />

Uma tal avaliação só po<strong>de</strong> ser feita pela percepção que<br />

se tem das circunstâncias particulares que <strong>de</strong> cada vez se<br />

constituem 12 . (1126a 34, 1126b 4)<br />

Estas “circunstâncias particulares” proporcionamse,<br />

com efeito, diversas vezes ao longo das duas <strong>Vidas</strong>.<br />

Esta tendência da physis manifesta-se em <strong>Péricles</strong> na<br />

maneira <strong>de</strong> andar (5.1), no facto <strong>de</strong> não ter prejudicado<br />

Címon (10.6), no trato humano (5.2) e em diversas<br />

<strong>de</strong>cisões políticas (30.3; 32.3; 39.1). No caso do par<br />

romano, tal virtu<strong>de</strong> é conhecida em <strong>Fábio</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

infância, na forma <strong>de</strong> caminhar (17.7) no convívio<br />

(1.5; 17.7), em campanha militar (7.8; 20), na cena<br />

política (18.4) e ainda na morte dos filhos que suporta<br />

com tranquilida<strong>de</strong> (24.6), tal como <strong>Péricles</strong> (36.8).<br />

A verda<strong>de</strong> é que ambos suportaram, com<br />

paciência e em silêncio, as maledicências da população<br />

(Per. 5.2, 33.6-7; Fab. 5.3, 7.7, 10.2-3), dos seus pares<br />

(Per. 34.1; Fab. 5.5; 7.5), dos cómicos, no caso <strong>de</strong><br />

<strong>Péricles</strong> (33.7); aconselharam prudência aos colegas<br />

(Per. 18.2; Fab. 2.4, 10.7, 14.4, 25.3) e, neste ponto,<br />

<strong>de</strong>stacamos a célebre façanha <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, quando<br />

enfrenta o exército <strong>de</strong> Aníbal para salvar Minúcio<br />

Rufo, o mesmo que, pouco antes, o tinha humilhado<br />

publicamente (12.5; 29.2).<br />

O facto <strong>de</strong> permanecerem firmes nas suas<br />

resoluções converte-os em valores seguros e credíveis<br />

para a população. Com efeito, enquanto <strong>Péricles</strong> é<br />

12 Tradução <strong>de</strong> Caeiro ( 3 2009: 109-10).


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

comparado a um médico – símile recorrente em<br />

Platão 13 –, que cura as doenças da alma, acalma e<br />

encoraja o povo (Per. 37.1); o par romano é, por sua<br />

vez, comparado a um “templo” e a um “altar”, junto<br />

do qual a multidão se refugia em tempo <strong>de</strong> crise.<br />

Em suma, Plutarco apresenta-nos uma<br />

diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “circunstâncias”, perante as quais<br />

o ouvinte <strong>de</strong>stas <strong>Vidas</strong> pô<strong>de</strong> fazer justa avaliação e<br />

“distinguir” os limites <strong>de</strong> cada acção, “<strong>de</strong> forma a<br />

servir <strong>de</strong> exemplo [apo<strong>de</strong>ixis] aos filósofos” (Fab.<br />

10.2).<br />

Com efeito, como consta no proémio <strong>de</strong>stas<br />

<strong>Vidas</strong> (Per. 1.2), é intrínseco ao espírito o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

apren<strong>de</strong>r e observar, pelo que se <strong>de</strong>ve buscar o melhor<br />

para contemplar, ou seja, a prática do bem 14 . A<br />

contemplação do homem-mo<strong>de</strong>lo em acção conduz<br />

necessariamente à imitação, e à prática <strong>de</strong> actos<br />

virtuosos <strong>de</strong> forma a conquistar as mesmas benesses da<br />

fortuna. Com efeito, o Bem (kalon) cria um estímulo<br />

activo 15 para aquele que contempla a sua expressão,<br />

a acção nobre, que serve <strong>de</strong> exemplum, neste caso,<br />

13 Górgias 456b, Fedro 270b-d, República 425a-426b.<br />

14 Observação semelhante é proferida por T. Carlyle (1795-<br />

1881), historiador e filósofo escocês, na conferência On Heroes, da<br />

qual extraímos um excerto: “Não po<strong>de</strong>mos olhar para um homem<br />

superior, ainda que o consi<strong>de</strong>remos imperfeitamente, sem ganhar<br />

algum benefício com tal contemplação. Um homem superior é<br />

sempre fonte <strong>de</strong> viva luz, junto da qual é aprazível estar. Luz que<br />

ainda nos ilumina (...) fonte <strong>de</strong> cuja radiação todas as almas se<br />

iluminam e aquecem pelo que junto <strong>de</strong>la se sentem bem.” Traduzido<br />

por Ribeiro ( 2 2002: 15-6).<br />

15 Cf. Platão, O Banquete 208-212 e Fedro 250 sqq.<br />

18


19<br />

in t r o d u ç ã o Ge ra l<br />

ao seu público, a elite aristocrática grega e romana.<br />

Como concluiu Plutarco no proémio <strong>de</strong>stas <strong>Vidas</strong>, é<br />

que é possível, a partir <strong>de</strong>ste relato, avaliar se apontamos<br />

na direcção correcta (2.5).


Fr a G m e n t o s : ed i ç õ e s e re s p e c t i va s si G l a s<br />

an a c r e o n t e<br />

Page: D. L. Page (1962), Po e t a e M e l i c i Gra e c i, Oxford.<br />

an t Í s t e n e s<br />

Dittmar: H. Dittmar (1912), aeschines V o n sP h e t t o s, Berlin.<br />

an t Í s t e n e s so c r á t i c o<br />

Walz: C. Walz (1835), rhetores Gra e c i, vol. II, Stuttgart.<br />

ar i s t ó t e l e s<br />

Rose: V. Rose (1886), ar i s t o t e l i s Qu i Ferebantur li b r o r u M<br />

Fr a G M e n t a , Leipzig.<br />

ar q u Í l o c o<br />

Diehl: E. Diehl ( 3 1964), an t h o l o G i a ly r i c a Gra e c a, Lipsiae.<br />

ca t ã o<br />

Peter: H. Peter ( 2 1914), hi s t o r i c o r u M ro M a n o r u M reliQuiae (vol.<br />

1), Lipsiae.<br />

co m e d i ó G r a F o s G r e G o s<br />

K-A: R. Kassel e C. Austin (1983-1995), Po e t a e co M i c i Gra e c i,<br />

Berlin.<br />

eurÍpi<strong>de</strong>s<br />

Nauck 2 : A. Nauck ( 2 1889), tra G i c o r u M Gra e c o r u M Fr a G M e n t a ,<br />

Leipzig.<br />

He r a c l i d e s pô n t i c o<br />

Wehrli: F. Wehrli (1969), die sc h u l e d e s ar i s t o t e l e s, te x t e u n d<br />

Ko M M e n t a r, vol. III heraKlei<strong>de</strong>s Po n t i K o s, Basel.<br />

lo G ó G r a F o s e H i s t o r i a d o r e s<br />

FGrHist: F. Jacoby (1961-1968), die Fr a G M e n t e d e r Gr i e c h i s c h e n<br />

historiKer, Lei<strong>de</strong>n.<br />

te o F r a s t o d e Ér e s o<br />

Fortenbaugh: W. W. Fortenbaugh et alii (1992), th e o P h ra s t u s<br />

o F er e s u s (so u r c e s F o r h i s liFe, WritinGs, th o u G h y & in F l u e n c e),<br />

Lei<strong>de</strong>n/New York/Köln.<br />

20


Vi d a d e <strong>Péricles</strong>


In t r o d u ç ã o<br />

23<br />

in t r o d u ç ã o<br />

Ao escrever as <strong>Vidas</strong> <strong>Paralelas</strong>, Plutarco tinha um<br />

objectivo pedagógico muito concreto que, como não<br />

po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, influenciou o método em que se<br />

baseia para caracterizar os seus protagonistas: apresentar<br />

o homem-mo<strong>de</strong>lo em acção, pois é essa a melhor<br />

forma <strong>de</strong> se avaliar o seu carácter – virtu<strong>de</strong>s e vícios. Só<br />

<strong>de</strong>ste modo sentiremos a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> imitar as suas<br />

qualida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> evitar os mesmos erros e <strong>de</strong>feitos (Emílio<br />

Paulo 1, Demétrio 1. 1 – 6).<br />

Assim, logo no proémio da Vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (Per.<br />

2. 5), Plutarco esboça o perfil do estadista, salientando<br />

as características que este possui em comum com o seu<br />

par – <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> – mo<strong>de</strong>ração, justiça e autocontrolo<br />

– e que vão ser das mais exploradas e enfatizadas ao<br />

longo da biografia:<br />

Pensámos, por isso, persistir na <strong>de</strong>scrição das vidas e<br />

compusemos este décimo livro, que engloba a vida <strong>de</strong><br />

<strong>Péricles</strong> e a <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, que <strong>de</strong>senvolveu uma<br />

longa luta contra Aníbal. Eram estes homens semelhantes<br />

em diversas qualida<strong>de</strong>s, principalmente na mo<strong>de</strong>ração,<br />

no sentido <strong>de</strong> justiça e na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> controlar<br />

a impon<strong>de</strong>ração dos seus concidadãos e dos colegas,<br />

tornando-se muito úteis às suas pátrias.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

Seguindo um esquema tradicional, após o<br />

proémio (Per. 3. 1-3), Plutarco começa por i<strong>de</strong>ntificar<br />

a “genealogia” <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>: era membro da tribo <strong>de</strong><br />

Acamante 1 e do burgo <strong>de</strong> Colarges 2 , teve por pai<br />

Xantipo 3 , vencedor dos generais persas em Mícale, e sua<br />

mãe – Agariste – era neta <strong>de</strong> Clístenes 4 (Per. 3. 1-3).<br />

Ao nascimento <strong>de</strong> tão ilustre figura, prece<strong>de</strong>-o o<br />

sonho <strong>de</strong> Agariste (Per. 3. 3-4), que assemelha <strong>Péricles</strong> a<br />

um leão 5 . O elemento onírico tem origem mitológica e é<br />

tradicional na literatura grega (especialmente nos relatos<br />

historiográficos e biográficos), quando se trata <strong>de</strong> prever<br />

o nascimento <strong>de</strong> um herói, do fundador <strong>de</strong> uma dinastia<br />

ou <strong>de</strong> um monarca po<strong>de</strong>roso. Po<strong>de</strong>mos salientar, <strong>de</strong>ntre<br />

muitos, o sonho que anuncia o nascimento <strong>de</strong> Ciro<br />

(Heródoto 1. 107-108) e o oráculo que <strong>de</strong>saconselha o<br />

nascimento <strong>de</strong> Édipo (Sófocles, Rei Édipo 1175 sq.).<br />

1 Acamante é o epónimo <strong>de</strong>sta tribo. Era filho <strong>de</strong> Teseu e Fedra<br />

e, embora não figure na epopeia homérica, lendas posteriores<br />

referem o papel importante que teve, com o seu irmão Demofonte,<br />

na tomada <strong>de</strong> Tróia. Para conhecer melhor Acamante, consulte-se<br />

Grimal (1992: s. v.).<br />

2 O <strong>de</strong>mo <strong>de</strong> Colarges estava situado no extremo norte da Ática,<br />

próximo da encosta nor<strong>de</strong>ste do monte Egáleo.<br />

3 Filho <strong>de</strong> Árifron, tornou-se membro da família dos Alcmeónidas<br />

pelo casamento com Agariste pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 500 a.C.<br />

4 Clístenes era um dos Alcmeónidas, aos quais se atribui<br />

a expulsão do tirano Hípias em 510 a.C., e foi responsável por<br />

importantes reformas que ditarão a criação da <strong>de</strong>mocracia.<br />

Talvez o breve elogio <strong>de</strong> Clístenes, enquanto opositor da<br />

tirania e impulsionador da <strong>de</strong>mocracia, pretenda sugerir uma<br />

certa hereditarieda<strong>de</strong> na <strong>de</strong>dicação à causa do povo, como meio<br />

<strong>de</strong> esbater as acusações <strong>de</strong> exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r monocrático feitas<br />

contra <strong>Péricles</strong>.<br />

5 Cf. Heródoto 6. 131.<br />

24


25<br />

in t r o d u ç ã o<br />

Dadas estas informações, o nosso biógrafo passa ao<br />

nascimento da criança. É um momento importante da<br />

narrativa, pois embora se saliente que o aspecto geral do<br />

novo ser era perfeito e sem censura 6 , também se apresenta<br />

uma característica física que o vai acompanhar pela vida<br />

fora: a <strong>de</strong>formida<strong>de</strong> da cabeça, que viria a ser referida vezes<br />

sem conta pelos cómicos 7 , mas que segundo Plutarco, os<br />

escultores procuravam disfarçar, já que o representavam<br />

sempre com um elmo. Essa marca <strong>de</strong> nascença e o sonho<br />

que Agariste tem po<strong>de</strong>m ser vistos como indiciadores dos<br />

principais traços da personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> 8 : quanto à<br />

cabeça – <strong>de</strong>masiado gran<strong>de</strong> – equivale talvez à parte do<br />

corpo on<strong>de</strong>, por excelência, resi<strong>de</strong>m uma inteligência e<br />

uma perspicácia inusitadas; o sonho, que i<strong>de</strong>ntifica <strong>Péricles</strong><br />

com o rei das selvas, po<strong>de</strong> ser interpretado como presságio<br />

da li<strong>de</strong>rança que o recém-nascido viria a exercer em Atenas<br />

na ida<strong>de</strong> adulta, bem como da sua coragem e capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> chefia.<br />

É, porém, óbvio que o homem é resultado não só<br />

da sua própria natureza, mas também fruto da sua vivência<br />

6 Este tipo <strong>de</strong> avaliação é muito helénica, pois segue o conhecido<br />

critério do kalos kagathos, segundo o qual importava que tudo<br />

e todos fossem belos – em termos físicos – e bons – em termos<br />

morais.<br />

7 Cf. Per. 3. 4, 3. 6, 13. 9. É importante, porém, notar que<br />

a insistência dos cómicos na <strong>de</strong>selegância física <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> acaba<br />

por ser uma forma caricaturada <strong>de</strong> reconhecer a sua inteligência<br />

superior.<br />

8 Aliás, a análise das qualida<strong>de</strong>s do protagonista, levada a cabo<br />

na primeira parte <strong>de</strong> cada Vida, relaciona-se muitas vezes com a<br />

sua vocação pública, isto é, muitos <strong>de</strong>les apresentam uma forte<br />

predisposição para um <strong>de</strong>terminado estilo <strong>de</strong> actuação política.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

em socieda<strong>de</strong> e, consequentemente, da aprendizagem que<br />

nela faz. Por isso mesmo, a etapa seguinte da caracterização<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> passa pela referência à sua formação cultural e<br />

respectivos mestres.<br />

Importa, antes <strong>de</strong> avançarmos, reflectir um pouco<br />

sobre o ensino nos inícios do século V a.C. Nesta altura,<br />

vigorava a educação que Aristófanes (Nuvens 961 sq.)<br />

chamava <strong>de</strong> antiga – arche pai<strong>de</strong>ia – e que consistia<br />

essencialmente na aprendizagem das letras (com base<br />

nos poetas do passado) e dos números, cujo ensino era<br />

ministrado pelo gramatistes, na da música (pelo kitaristes)<br />

e na exercitação física (pelo paidotribes). Kagan (1990:<br />

20-21) faz-nos uma caracterização bastante clara da<br />

educação na Atenas <strong>de</strong>sse tempo:<br />

The traditional education of Athenian youth was<br />

practical and ethical rather than intellectual. Physical<br />

training prepared the boys for the athletic contests that<br />

were a regular part of religious festivals in Athens and<br />

of Pan-Hellenic competitions. (…) Musical education<br />

taught them to sing and play the lyre and an oboelike<br />

instrument called the aulos, but most of all to learn the<br />

traditional body of poetry, chiefly the epics of Homer.<br />

Segundo Marrou (1948: 81), o próprio <strong>Péricles</strong><br />

teria recebido esse tipo <strong>de</strong> educação:<br />

Ainsi les Athéniens nés dans les années 490 (ils se sont<br />

appelés Périclès, Sophocle, Phidias...), qui, dans tous les<br />

domaines: la politique, les lettres, les arts, portèrent la<br />

culture classique à un si haut <strong>de</strong>gré <strong>de</strong> maturité, n’avaient<br />

26


27<br />

in t r o d u ç ã o<br />

encore reçu que cette éducation très élémentaire qui, au<br />

point <strong>de</strong> vue <strong>de</strong> l’instruction, ne s’élevait guère plus haut<br />

que notre enseignement primaire actuel.<br />

Segundo no-lo relata Plutarco, <strong>Péricles</strong> teve como<br />

mestre na área da música Dámon (Per. 4. 1-4) 9 , um dos<br />

mais antigos e importantes cultores <strong>de</strong>sta arte (muito<br />

admirado por Sócrates e Platão). Consta que procurava<br />

ocultar a sua simpatia pela tirania (mas terá acabado por ser<br />

vítima do ostracismo por causa <strong>de</strong>sta sua tendência) – o<br />

que <strong>de</strong> imediato nos faz reflectir sobre os possíveis efeitos<br />

<strong>de</strong>ste convívio sobre o governo do filho <strong>de</strong> Xantipo 10 , que é<br />

invocado por Tucídi<strong>de</strong>s como o “governo do primeiro dos<br />

cidadãos” (2. 65. 9) e comparado, pelos cómicos, a uma<br />

tirania (Per. 16. 1 11 ). Veremos adiante que o próprio <strong>Péricles</strong><br />

parecia temer a sua sorte por ser parecido com Pisístrato.<br />

Mas, <strong>de</strong>pois da formação básica, os jovens podiam<br />

(e <strong>de</strong>viam) aproximar-se <strong>de</strong> indivíduos que lhes pu<strong>de</strong>ssem<br />

ensinar outros assuntos mais elevados. Assim, dois outros<br />

9 O biógrafo apresenta igualmente outra versão, que atribui a<br />

Aristóteles (fr. 401 Rose): <strong>de</strong> acordo com o Estagirita, o professor<br />

seria Pitocli<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Ceos, do qual apenas se sabe que foi pitagórico<br />

e músico. No entanto, esta informação baseia-se em Platão<br />

(Protágoras 316e, escólio a Alcibía<strong>de</strong>s 118c) e não em Aristóteles,<br />

o que po<strong>de</strong> significar ou que Plutarco confundiu as fontes, ou que<br />

esta referência faz parte <strong>de</strong> uma das muitas obras perdidas.<br />

10 Plutarco (Per. 4. 4) cita, inclusive, um passo <strong>de</strong> Platão Cómico<br />

(fr. 207 K.-A.) que sugere essa influência.<br />

11 Para os cómicos, a supremacia <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> – que era quem na<br />

realida<strong>de</strong> governava sob a aparência <strong>de</strong> respeitar a vonta<strong>de</strong> da turba<br />

– é prejudicial para a <strong>de</strong>mocracia. Já Tucídi<strong>de</strong>s parece vê-la como<br />

um bem, pois, como consi<strong>de</strong>ra o povo inconstante, se não fosse o<br />

pulso forte <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, o caos seria total.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

nomes se <strong>de</strong>stacam enquanto seus mestres, ambos<br />

filósofos 12 : Zenão <strong>de</strong> Eleia (Per. 4. 4) 13 e Anaxágoras<br />

<strong>de</strong> Clazómenas 14 (Per. 4. 5 – 6. 5). Ao primeiro, parece<br />

que po<strong>de</strong>remos atribuir algum contributo para o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento da capacida<strong>de</strong> oratória <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />

Quando a ele se refere, Plutarco diz que o seu método<br />

era discutir com toda a gente, empregar os argumentos<br />

mais subtis e levar os adversários a não saberem que<br />

respon<strong>de</strong>r-lhe (Per. 4. 5). Deste passo, facilmente nos<br />

recordamos num dos capítulos seguintes (Per. 8. 5):<br />

Quando, certa vez, Arquidamo, rei <strong>de</strong> Esparta, lhe<br />

perguntou se era ele ou <strong>Péricles</strong> quem combatia melhor,<br />

[Tucídi<strong>de</strong>s, o filho <strong>de</strong> Melésias 15 ] disse: “Quando eu o<br />

<strong>de</strong>rrubo em combate, ele nega ter caído e leva a melhor,<br />

pois altera a opinião <strong>de</strong> quem assiste.”<br />

Esta resposta, <strong>de</strong> facto, não po<strong>de</strong>ria caracterizar<br />

melhor a eloquência do filho <strong>de</strong> Xantipo, cuja<br />

12 Um bom e verda<strong>de</strong>iro político <strong>de</strong>ve, na visão platónica, fazer<br />

acima <strong>de</strong> tudo um estudo rigorosíssimo sobre a virtu<strong>de</strong> (i.e. o Bem)<br />

– logo, <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>dicar-se à filosofia –, pois o seu objectivo é fazer dos<br />

seus concidadãos pessoas melhores, que respeitem a lei.<br />

13 Apenas Plutarco apresenta <strong>Péricles</strong> como discípulo <strong>de</strong> Zenão<br />

(ca. 490 – 445 a.C.). Vi<strong>de</strong> Guthrie (1969: 80 sq.).<br />

14 Anaxágoras <strong>de</strong> Clazómenas viveu no séc. V a.C. e terá<br />

chegado a Atenas em 480. Destacou-se pelo seu interesse pelas<br />

ciências naturais, nomeadamente pela origem do cosmos e ainda<br />

pela negação da religião politeísta e antropomórfica que então<br />

vigorava. Foi ele quem introduziu o conceito <strong>de</strong> noos como força<br />

que rege o cosmos. Vi<strong>de</strong> Guthrie (1969: 266 sq.).<br />

15 Note-se que o Tucídi<strong>de</strong>s aqui em causa é o opositor político<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e não o famoso historiador.<br />

28


29<br />

in t r o d u ç ã o<br />

extraordinária capacida<strong>de</strong> permitia adaptar os próprios<br />

acontecimentos aos seus interesses. Era assim a excelência<br />

oratória que os sofistas tanto <strong>de</strong>fendiam e que Platão<br />

tão acerrimamente criticava: ser capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r ou<br />

criticar o mesmo ponto <strong>de</strong> vista, <strong>de</strong> acordo com as<br />

conveniências do momento.<br />

Mas será a Anaxágoras que <strong>Péricles</strong> mais terá<br />

ficado a <strong>de</strong>ver – pelo menos segundo Plutarco (e mesmo<br />

Platão 16 ) – em termos <strong>de</strong> formação pessoal. Dele “herda”<br />

e com ele aperfeiçoa a maioria – se não a totalida<strong>de</strong> –<br />

das suas qualida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a elevação e nobreza <strong>de</strong><br />

sentimentos, à gran<strong>de</strong>za da alma (phronema), à majesta<strong>de</strong><br />

(onkos) e à dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conduta (axioma).<br />

E essas qualida<strong>de</strong>s morais que <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>senvolveu<br />

com Anaxágoras manifestam-se exteriormente no<br />

discurso do estadista e na sua própria postura. Na<br />

verda<strong>de</strong>, um bom orador <strong>de</strong>veria possuir qualida<strong>de</strong>s a<br />

vários níveis: internas – como a inteligência e o carácter<br />

– e externas, como a pose, a teatralida<strong>de</strong> e o tom <strong>de</strong> voz.<br />

Possuí-las na justa medida é atingir a perfeição, da qual<br />

<strong>Péricles</strong> é paradigma (Per. 5. 1).<br />

Este é o último capítulo da primeira parte do<br />

relato biográfico <strong>de</strong>dicada à fase anterior ao ingresso<br />

na vida pública activa. Nele, como bem po<strong>de</strong>mos<br />

<strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r pela transcrição feita, o biógrafo salienta<br />

algumas características do discurso <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e <strong>de</strong>screve<br />

também a mo<strong>de</strong>ração que se manifesta em toda a sua<br />

maneira <strong>de</strong> ser. Quanto à eloquência, convém salientar<br />

16 Respectivamente Per. 4. 6 e Fedro 270a.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

que será um ponto novamente abordado alguns capítulos<br />

mais adiante. De facto, uma das principais marcas do<br />

estilo biográfico <strong>de</strong> Plutarco é a re<strong>de</strong>finição constante e<br />

progressiva dos traços <strong>de</strong> carácter das suas personagens.<br />

É assim que ele individualiza, que torna mais singulares,<br />

as características que preten<strong>de</strong> realçar.<br />

Sobre o discurso, diz-se que era “elevado e isento<br />

<strong>de</strong> vulgarida<strong>de</strong>s populares e <strong>de</strong> mau tom” e que a sua<br />

voz era imperturbável. Daqui po<strong>de</strong>mos inferir dois<br />

traços fundamentais da personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> – que<br />

serão mencionados e sugeridos várias vezes ao longo da<br />

biografia, ainda que em outros contextos: a sua mo<strong>de</strong>ração<br />

e o seu auto-domínio. Também a inflexibilida<strong>de</strong> do<br />

olhar, a tranquilida<strong>de</strong> do andar, a modéstia no vestir – no<br />

fundo, a dignida<strong>de</strong> do porte e mesmo da linguagem –<br />

<strong>de</strong>monstram essas mesmas características e a serieda<strong>de</strong> do<br />

nosso estadista.<br />

Com Anaxágoras, <strong>Péricles</strong> apren<strong>de</strong>u ainda a não<br />

ser supersticioso 17 . Segundo Plutarco, isso aconteceu<br />

porque a posse <strong>de</strong> conhecimentos científicos o levou à<br />

melhor compreensão e conhecimento dos fenómenos<br />

naturais 18 , o que não permite aceitar qualquer justificação<br />

sobrenatural para os acontecimentos. Esta característica<br />

17 Em Per. 6. 1, salienta-se a importância da filosofia para a<br />

formação do indivíduo. Lembremo-nos <strong>de</strong> que, já Platão o dizia,<br />

foi o estudo da filosofia – condição sine qua non para um bom<br />

<strong>de</strong>sempenho político – que marcou a diferença entre <strong>Péricles</strong> e os<br />

outros políticos mais distintos do seu tempo.<br />

18 Em Caracteres (cap. 16), Teofrasto <strong>de</strong>screve a figura do<br />

supersticioso e <strong>de</strong>fine superstição como sendo simplesmente o temor<br />

do sobrenatural.<br />

30


31<br />

in t r o d u ç ã o<br />

é exemplificada em Per. 35. 2, quando, no momento da<br />

partida para Epidauro, tem lugar um eclipse do sol, que<br />

quase paralisa todos <strong>de</strong> pavor. Verificando o medo do<br />

piloto, <strong>Péricles</strong> fá-lo compreen<strong>de</strong>r que nada há a temer,<br />

que se trata <strong>de</strong> um fenómeno inofensivo, tal como o é a<br />

escuridão provocada pelo cobrir do rosto com um manto.<br />

É assim que consegue fazer com que a armada parta.<br />

No entanto, no final <strong>de</strong>sta biografia, em Per. 38.<br />

2, quando Plutarco nos informa da doença que viria<br />

a vitimar o estadista, invoca Teofrasto: ao que parece,<br />

<strong>Péricles</strong> estaria <strong>de</strong> tal modo <strong>de</strong>bilitado que até aceitava<br />

recorrer a amuletos, comportamento tipicamente<br />

feminino e que <strong>de</strong>monstra superstição 19 . Segundo este<br />

peripatético, a situação apenas mostra que a dor, o<br />

sofrimento e a vivência <strong>de</strong> momentos difíceis fazem com<br />

que uma pessoa altere o seu comportamento. Mas, se <strong>de</strong><br />

facto isto aconteceu, foi um dos raríssimos momentos<br />

em que a mo<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> não conseguiu resistir<br />

aos infortúnios do <strong>de</strong>stino por efeito do acumular <strong>de</strong><br />

situações penosas na fase final da sua vida (recor<strong>de</strong>mos<br />

a perda dos filhos legítimos, <strong>de</strong> outros familiares e<br />

amigos em consequência da peste e, agora, o seu próprio<br />

contágio). Nota-se, pois, uma certa humanização <strong>de</strong><br />

<strong>Péricles</strong> – que, <strong>de</strong> algum modo, vacila no seu habitual<br />

equilíbrio. O que importa é que ele se esforça por se<br />

manter inalterável mesmo nas situações <strong>de</strong> maior<br />

adversida<strong>de</strong>.<br />

19 Sobre a <strong>de</strong>batida questão da alteração <strong>de</strong> carácter <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />

e a posição <strong>de</strong> Plutarco sobre a matéria, leiam-se Gill (1983: 469-<br />

481); Swain (1989: 62-68); Pérez Jiménez (1994: 331-340).


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

Mas a sobrieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> nem sempre era<br />

bem interpretada. É o que nos diz Plutarco com base<br />

em Íon 20 , que opõe à <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e afabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Címon<br />

o <strong>de</strong>sprezo pelos outros, o orgulho e a arrogância <strong>de</strong><br />

<strong>Péricles</strong> (Per. 5. 3).<br />

Para <strong>de</strong>sfazer essa visão negativa – com a<br />

qual Plutarco claramente não concorda – recorre<br />

ao testemunho <strong>de</strong> Zenão, que explica que há quem<br />

confunda a majesta<strong>de</strong> (semnotes) <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> com<br />

arrogância e orgulho e apresenta o “atacado” como<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> conduta a seguir (Per. 5. 3).<br />

A partir do capítulo sétimo, entramos na segunda<br />

parte, <strong>de</strong>dicada à vida política e militar, on<strong>de</strong> finalmente<br />

encontramos o protagonista em acção. Plutarco começa<br />

por nos relatar a iniciação <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> na vida pública 21<br />

20 FGrH 392 F 15. Íon, cuja vida <strong>de</strong>correu entre cerca <strong>de</strong> 490<br />

e 424 a.C., atacava <strong>Péricles</strong> provavelmente como consequência do<br />

tratamento que os Atenienses <strong>de</strong>ram à sua cida<strong>de</strong> natal durante<br />

a Guerra <strong>de</strong> Samos (Per. 28. 7). Vi<strong>de</strong> Lesky (1995: 439-441);<br />

Guthrie (1969: 158).<br />

21 Aquele que preten<strong>de</strong> ingressar na vida pública – quer prefira<br />

a carreira política quer a militar – <strong>de</strong>ve possuir <strong>de</strong>terminadas<br />

características inatas (physis), que po<strong>de</strong>mos agrupar distintamente,<br />

embora <strong>de</strong>vam sempre coexistir para que os indivíduos tenham<br />

bons <strong>de</strong>sempenhos: por um lado, a philotimia (‘<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> honras’),<br />

a philodoxia (‘<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> glória’) e a philonikia (‘<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vitórias’),<br />

entre outras – que servem <strong>de</strong> incentivo à sua acção; por outro, a<br />

praotes (‘doçura’) e a philantropia (‘humanida<strong>de</strong>’).<br />

As do primeiro grupo, se isoladas das do segundo, po<strong>de</strong>m ter<br />

consequências nefastas, já que estão directamente relacionadas<br />

com a ambição <strong>de</strong> honras e po<strong>de</strong>r; logo, quando não são bem<br />

“doseadas”, levam a excessos. Se o homem público apenas possuir<br />

as do segundo grupo, po<strong>de</strong> não se sentir suficientemente motivado<br />

para a acção e não intervir.<br />

32


33<br />

in t r o d u ç ã o<br />

com particular <strong>de</strong>staque para a activida<strong>de</strong> político-militar.<br />

Interessa-se pelos condicionalismos encontrados<br />

pelos estadistas quando ingressam na vida activa, por<br />

consi<strong>de</strong>rar que este é um dos momentos on<strong>de</strong> mais se<br />

evi<strong>de</strong>nciam as suas características morais e políticas.<br />

No caso <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, <strong>de</strong> facto, <strong>de</strong> imediato se<br />

manifesta a sua prudência 22 . Plutarco apresenta-nos um<br />

jovem que teme o povo por possuir muitas semelhanças<br />

com Pisístrato, quer em termos fisionómicos, quer na voz<br />

e na agilida<strong>de</strong> do discurso 23 , com a agravante <strong>de</strong> pertencer<br />

à nobreza e <strong>de</strong> ter amigos po<strong>de</strong>rosos e influentes. Como<br />

sabia que o regime tirânico era profundamente odiado<br />

pelos Atenienses, não podia correr o risco <strong>de</strong> fazer recair<br />

sobre si acusações <strong>de</strong> simpatia por este tipo <strong>de</strong> opção<br />

política e <strong>de</strong>, eventualmente, ser con<strong>de</strong>nado ao ostracismo.<br />

Como tal, preferiu mo<strong>de</strong>rar e adiar a sua intervenção em<br />

termos políticos, mas não se coibiu <strong>de</strong> mostrar, no campo<br />

militar, toda a sua coragem 24 e capacida<strong>de</strong>s.<br />

Só quando o contexto político muda – com a<br />

morte ou exílio <strong>de</strong> alguns dos seus opositores e com a<br />

constante ausência <strong>de</strong> Címon (em expedições militares)<br />

– é que ele altera a estratégia, por consi<strong>de</strong>rar ter chegado<br />

22 Aristóteles (Ética a Nicómaco 1140b 4) <strong>de</strong>fine assim a<br />

prudência (phronesis): resta, pois, que esta é uma capacida<strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong>ira e <strong>de</strong> acordo com a razão para se agir segundo aquilo que é<br />

bom ou mau para o homem.<br />

23 Estes traços são aproveitados com alguma frequência pelos<br />

cómicos que o acusam <strong>de</strong> querer restaurar a tirania em Atenas (Per.<br />

16. 1).<br />

24 Sobre esta virtu<strong>de</strong> – andreia – vi<strong>de</strong> Ética a Nicómaco 1115a<br />

6-1116a 10.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

o momento oportuno (Per. 7. 3). Então, alia-se ao povo<br />

(embora a sua natureza fosse pouco popular – Per. 7.<br />

4) para tentar esbater a suspeita <strong>de</strong> apreço pela tirania e<br />

para vencer o seu principal adversário, Címon.<br />

A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>dicar à política faz com que<br />

renuncie à vida social, por enten<strong>de</strong>r que esse tipo <strong>de</strong><br />

exposição não se coaduna com a austerida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve<br />

caracterizar um verda<strong>de</strong>iro político e que po<strong>de</strong> mesmo<br />

comprometer o respeito que o povo lhe tem (Per. 7.<br />

5). Isolando-se assim, pretendia conservar – no dizer<br />

<strong>de</strong> Plutarco (Per. 7. 6) – a admiração que se tem pela<br />

virtu<strong>de</strong> daqueles cujos feitos são <strong>de</strong> renome, mas com os<br />

quais não privamos no dia-a-dia. Penso que este é um<br />

critério válido: todos sabemos que a familiarida<strong>de</strong> po<strong>de</strong><br />

levar a situações <strong>de</strong> extremo à-vonta<strong>de</strong> on<strong>de</strong> há maior<br />

probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se cometer um <strong>de</strong>slize que macule a<br />

opinião que os outros fazem <strong>de</strong> alguém. E isso sobretudo<br />

no caso <strong>de</strong> figuras públicas – como os políticos. Ainda nos<br />

nossos dias há a preocupação <strong>de</strong> julgar as capacida<strong>de</strong>s e os<br />

actos políticos com base na vida privada, inclusivamente<br />

<strong>de</strong> atribuir <strong>de</strong>cisões políticas importantes à necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> esbater os comentários sobre “pequenos” tropeços<br />

da vida familiar 25 . Assim, quanto menor o tempo <strong>de</strong><br />

exposição no convívio com as massas – talvez também<br />

<strong>Péricles</strong> o pensasse –, menores seriam as possibilida<strong>de</strong>s<br />

25 Em Per. 31-32, Plutarco menciona uma acusação <strong>de</strong>ssa<br />

natureza: havia quem alegasse que <strong>Péricles</strong> não ce<strong>de</strong>u às exigências<br />

dos Lace<strong>de</strong>mónios para dispersar as atenções das acusações feitas<br />

contra Fídias, Aspásia e Anaxágoras e foi por isso que eclodiu a<br />

Guerra do Peloponeso.<br />

34


35<br />

in t r o d u ç ã o<br />

<strong>de</strong> ser apanhado em falso e <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o respeito que por<br />

ele sentiam (o que é importante sobretudo em início <strong>de</strong><br />

carreira) 26 .<br />

Deste modo, <strong>Péricles</strong> põe ao serviço da <strong>de</strong>mocracia<br />

uma atitu<strong>de</strong> fortemente aristocrática já que se nota uma<br />

certa aversão pelo convívio popular. Mas, por outro<br />

lado, esta atitu<strong>de</strong> em exagero tem os traços do arrogante<br />

que Teofrasto <strong>de</strong>screve no capítulo 24 <strong>de</strong> Caracteres.<br />

Este medo salutar – mas quiçá um pouco<br />

exagerado – fez com que <strong>de</strong>legasse intervenções relativas<br />

a assuntos menores na Assembleia a alguns dos seus<br />

correlegionários, intervindo apenas quando as questões<br />

eram verda<strong>de</strong>iramente importantes. <strong>Péricles</strong>, se vivesse<br />

nos nossos dias, daria um excelente consultor <strong>de</strong> imagem<br />

para os políticos, pois sabia geri-la muitíssimo bem,<br />

analisando correctamente os prós e os contras <strong>de</strong> uma<br />

exposição excessiva, e, mais importante, sabia escolher o<br />

momento oportuno para as suas intervenções.<br />

É no contexto da iniciação política que Plutarco vai<br />

aprofundar, tal como referimos atrás, a caracterização da<br />

eloquência <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> – o que é compreensível, já que esta<br />

foi talvez (em conjunto com a mo<strong>de</strong>ração e perspicácia)<br />

a principal arma utilizada para a sua ascensão. Segundo<br />

o biógrafo, não terá sido difícil atingir um nível elevado<br />

<strong>de</strong> perfeição – e já sabemos que até Platão lhe elogiava<br />

as capacida<strong>de</strong>s oratórias – pois bastou-lhe conciliar as<br />

características inatas <strong>de</strong> orador – estilo e linguagem –<br />

1. 99.<br />

26 Sobre a mesma prática nas monarquias orientais, cf. Heródoto


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

com a elevação <strong>de</strong> sentimentos e com os ensinamentos<br />

filosóficos veiculados por Anaxágoras. Os próprios<br />

comediógrafos (Per. 8. 3) reconheciam a qualida<strong>de</strong> do<br />

seu discurso e com ele justificavam a alcunha por que<br />

era conhecido – Olímpico.<br />

Mas a mo<strong>de</strong>ração – <strong>de</strong>certo uma das qualida<strong>de</strong>s<br />

mais marcantes <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> – também se manifestava<br />

neste campo: chegava a invocar o auxílio divino para<br />

que nenhuma palavra menos própria lhe escapasse dos<br />

lábios (Per. 8. 6).<br />

E os traços da personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> – sobretudo<br />

a perspicácia – continuam a extravasar facilmente das suas<br />

acções, nomeadamente da estratégia que elaborou para<br />

alcançar em <strong>de</strong>finitivo o po<strong>de</strong>r: bater o seu principal rival,<br />

colocando-se ao lado do povo. Para tal executa uma série<br />

<strong>de</strong> medidas favoráveis ao <strong>de</strong>mos – como a instauração da<br />

mistoforia. Quando Címon morre, <strong>Péricles</strong> fica isolado<br />

no po<strong>de</strong>r, mas os aristocratas – que não viam com bons<br />

olhos essa situação – escolheram-lhe um adversário:<br />

Tucídi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Melésias. Mais uma vez, para fazer<br />

frente ao rival, ele tenta a todo o custo agradar à população,<br />

recorrendo para isso à organização constante <strong>de</strong> festas e<br />

solenida<strong>de</strong>s (medida utilizada pelos políticos <strong>de</strong> todos os<br />

tempos). Incentivou ainda a formação <strong>de</strong> mercenários e a<br />

colonização como forma <strong>de</strong> se <strong>de</strong>sfazer dos inactivos que<br />

po<strong>de</strong>riam querer prejudicar as suas reformas políticas,<br />

aproveitando para diminuir a miséria e conter possíveis<br />

revoltas dos aliados (Per. 11). O impulso às obras públicas<br />

foi também uma medida pon<strong>de</strong>rada para, além <strong>de</strong><br />

embelezar a cida<strong>de</strong>, ocupar a população.<br />

36


37<br />

in t r o d u ç ã o<br />

Ora o que se verifica é que <strong>Péricles</strong>, quando<br />

buscava a soli<strong>de</strong>z do po<strong>de</strong>r, não se coibiu <strong>de</strong> fazer<br />

as vonta<strong>de</strong>s do povo. Nada <strong>de</strong> estranho – o mesmo<br />

se passa nos nossos dias com os políticos que, em<br />

campanha, a tudo dizem que sim. A diferença<br />

entre <strong>Péricles</strong> e os restantes políticos resi<strong>de</strong> no<br />

comportamento “pós-eleitoral” 27 . É que, <strong>de</strong> um modo<br />

geral, quando um candidato ascen<strong>de</strong> ao po<strong>de</strong>r, esquece<br />

as promessas e age <strong>de</strong> modo a obter a sua satisfação<br />

pessoal, isto é, zela pelos seus interesses, colocando-os<br />

à frente do bem-estar geral. No caso <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, ele<br />

também <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> fazer as vonta<strong>de</strong>s à população 28 . No<br />

entanto, fá-lo porque, na maior parte dos casos, o povo<br />

é uma massa <strong>de</strong> opinião inconstante e precipitada, que<br />

27 O comportamento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> é ainda mais louvável se<br />

tivermos presente o difícil equilíbrio entre <strong>de</strong>magogia e mo<strong>de</strong>ração.<br />

Este é, <strong>de</strong> facto, um dos aspectos mais controversos da política<br />

<strong>de</strong>ste estadista. De Platão vieram as críticas, que o acusam <strong>de</strong> ter<br />

conduzido o povo a um comportamento progressivamente mais<br />

amoral. Plutarco, porém, parece louvar esta dicotomia <strong>de</strong> difícil<br />

controlo, na medida em que, sendo o povo instável, <strong>Péricles</strong> fazia<br />

bem em tentar manter-se no po<strong>de</strong>r, pois ninguém melhor do que<br />

ele – com a sua mo<strong>de</strong>ração – po<strong>de</strong>ria orientá-lo.<br />

28 Como um médico, que não po<strong>de</strong> dar ao paciente apenas o<br />

remédio mais saboroso, mas que tem <strong>de</strong> saber receitar o que é mais<br />

apropriado para a doença manifestada (Per. 15. 1). Mas mais do<br />

que isso, tal como um médico, é necessário ser paciente para não<br />

dar importância às injúrias proferidas nos momentos <strong>de</strong> sofrimento<br />

(Per. 34. 5). Este tipo <strong>de</strong> comparação com base na figura do médico<br />

foi talvez influenciado por Platão, on<strong>de</strong> é muito frequente (vi<strong>de</strong><br />

Górgias 456b). Importa ainda referir a comparação com um piloto<br />

(Per. 33. 6) que tem que ignorar as lágrimas, as náuseas e o medo<br />

dos passageiros para po<strong>de</strong>r agir <strong>de</strong> modo a que não naufraguem<br />

todos.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

se <strong>de</strong>ixa levar pelos impulsos momentâneos. E não é<br />

possível seguir tais pareceres, sob pena <strong>de</strong>, no futuro, as<br />

consequências serem <strong>de</strong>vastadoras. Há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

se ser pru<strong>de</strong>nte 29 . Assim, <strong>Péricles</strong> põe os interesses da<br />

pólis à frente dos seus próprios e à frente dos “pseudo”<br />

interesses da população. Por vezes, chega mesmo a ser<br />

insultado e acusado <strong>de</strong> cobardia 30 , mas o seu bom-senso<br />

e o seu auto-domínio fazem-no suportar com calma e<br />

em silêncio as injúrias dos inimigos 31 : é isso que acontece<br />

quando ele, perante a invasão lace<strong>de</strong>mónia, se recusa<br />

a combater no solo da Ática, optando por mostrar o<br />

valor dos Atenienses no mar (Per. 33. 6). E o povo,<br />

embora muitas vezes discordasse e até se manifestasse<br />

contra as suas <strong>de</strong>cisões, nunca <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> o seguir e,<br />

normalmente, <strong>de</strong> acabar por concordar com as opções<br />

por ele tomadas.<br />

<strong>Péricles</strong> só conseguiu vencer <strong>de</strong>finitivamente<br />

Tucídi<strong>de</strong>s – que foi con<strong>de</strong>nado ao ostracismo – após<br />

resolver a oposição que se fazia sentir por causa das<br />

29 Em Ética a Nicómaco 1140b 7, Aristóteles revela uma opinião<br />

favorável acerca da prudência <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />

30 Segundo o Estagirita (Ética a Nicómaco 1116a 10), os<br />

homens corajosos são activos no momento <strong>de</strong> agir e calmos antes. Era<br />

precisamente isso que acontecia com <strong>Péricles</strong>. Ele sabia que há<br />

momentos oportunos para levar a cabo todas as acções. É então<br />

que <strong>de</strong>vemos dar o nosso máximo; até lá, a serenida<strong>de</strong> é a melhor<br />

forma <strong>de</strong> reunir as energias necessárias.<br />

31 O comportamento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> coinci<strong>de</strong> com o <strong>de</strong>fendido por<br />

Aristóteles (Ética a Nicómaco 1100b 35): o homem verda<strong>de</strong>iramente<br />

bom e sensato, pensamos, suporta <strong>de</strong>centemente todas as vicissitu<strong>de</strong>s e<br />

executa sempre as acções mais nobres, como também um bom general<br />

faz o melhor uso possível do exército sob o seu comando.<br />

38


39<br />

in t r o d u ç ã o<br />

<strong>de</strong>spesas que as obras <strong>de</strong> embelezamento da cida<strong>de</strong><br />

exigiam. A primeira crítica que lhe foi feita consistia<br />

no facto <strong>de</strong> o dinheiro ser oriundo das contribuições<br />

das cida<strong>de</strong>s aliadas da Simaquia <strong>de</strong> Delos – ao que<br />

respon<strong>de</strong>u que as cida<strong>de</strong>s aliadas tinham a protecção<br />

por que pagavam (Per. 12. 3-5); a segunda foi motivada<br />

pelas <strong>de</strong>spesas que a oposição dizia excessivas – <strong>Péricles</strong><br />

propôs-se assumir pessoalmente todas elas (Per. 14. 1-2).<br />

A eloquência, a perspicácia e o bom-senso <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />

permitiram-lhe colocar o povo a seu favor.<br />

A liberalida<strong>de</strong> com que investia dinheiro nas<br />

obras faz lembrar a caracterização da magnificência<br />

– megaloprepeia – que Aristóteles propõe na Ética a<br />

Nicómaco (embora Plutarco não recorra a este termo<br />

nem faça uma caracterização directa relativamente a esta<br />

qualida<strong>de</strong>) 32 .<br />

Mas o filho <strong>de</strong> Xantipo nunca recorreu aos<br />

dinheiros públicos para aumentar a sua fortuna pessoal,<br />

enquanto zelava também com todo o rigor – pelo que era<br />

muito criticado pelos filhos – pelos bens herdados do pai<br />

(Per. 16. 4-5). A sua incorruptibilida<strong>de</strong> (adorotatos) e o<br />

<strong>de</strong>sapego à riqueza (chrematon kreitton), aliados à famosa<br />

eloquência e à conduta, eram sem dúvida as bases da<br />

sua autorida<strong>de</strong> e do respeito que o povo por ele nutria.<br />

Era obviamente necessária uma gran<strong>de</strong> organização para<br />

que o cuidado com os seus bens pessoais não interferisse<br />

com as responsabilida<strong>de</strong>s públicas, as receitas, o exército,<br />

as frotas, as ilhas e o mar (Per. 16. 2).<br />

32 Ética a Nicómaco 1122b 6-10.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

Também no domínio militar a prudência, a<br />

sensatez <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> eram uma constante. Ele próprio<br />

enaltecia o facto <strong>de</strong> nunca ter posto, em vão, a vida dos<br />

seus concidadãos em perigo (Per. 18. 1) 33 . Aliás, quando<br />

Tólmi<strong>de</strong>s pretendia recrutar muitos jovens para uma<br />

expedição, ele aconselha a que se espere algum tempo.<br />

E o certo é que pouco <strong>de</strong>pois aquele pereceu no campo<br />

<strong>de</strong> batalha (Per. 18. 2-3). Os seus concidadãos ficaram<br />

admirados com tanta sensatez e com a amiza<strong>de</strong>, com o<br />

cuidado que tinha por eles (philopolites).<br />

Procurava refrear os <strong>de</strong>sejos expansionistas e<br />

irreflectidos do povo (especialmente em relação ao<br />

Egipto, a Cartago e à Etrúria – Per. 21. 1); esforçavase<br />

por agir com humanida<strong>de</strong> junto aos povos inimigos.<br />

Esta i<strong>de</strong>ia fica clara em Per. 23. 4: apenas os Hestieus<br />

foram alvo <strong>de</strong> tratamento inflexível, pois tinham feito<br />

refém uma nau ática e matado toda a tripulação. O facto<br />

<strong>de</strong> só esses serem maltratados mostra que <strong>Péricles</strong> tinha<br />

um forte sentido <strong>de</strong> justiça e gran<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>ração – não se<br />

<strong>de</strong>ixou tomar pela dor e pela ira <strong>de</strong> ver os concidadãos<br />

mortos para, como vingança, massacrar o maior número<br />

possível <strong>de</strong> inimigos 34 .<br />

33 Um bom exemplo <strong>de</strong>sta situação é o alegado suborno <strong>de</strong><br />

Plistóanax, que fez com que o exército inimigo batesse em retirada,<br />

o que evi<strong>de</strong>ntemente evitou batalhas e mortes (Per. 22. 2-3). Neste<br />

episódio também se evi<strong>de</strong>ncia a clarividência <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> que previu<br />

– e muito bem – a cedência do inimigo.<br />

34 Este exemplo funciona como excelente argumento contra a<br />

acusação feita por Dúris <strong>de</strong> Samos (Per. 28. 2), que Plutarco nega,<br />

invocando a ausência <strong>de</strong> referência a esse acontecimento em Éforo,<br />

Tucídi<strong>de</strong>s e Aristóteles, para mostrar a parcialida<strong>de</strong> daquele autor.<br />

40


41<br />

in t r o d u ç ã o<br />

Também a estratégia para distrair os soldados<br />

que participaram no cerco <strong>de</strong> Samos ilustra bem a sua<br />

perspicácia e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> levar o povo a fazer o que a<br />

longo prazo será mais benéfico. Com a instituição do dia<br />

branco, minora o <strong>de</strong>scontentamento do exército que queria<br />

a todo o custo combater. Para tal, divi<strong>de</strong>-o em oito partes:<br />

a que tirasse a fava branca faria um festim e <strong>de</strong>scansaria,<br />

enquanto as outras iriam para a refrega (Per. 27. 2).<br />

A forma como <strong>Péricles</strong> incentiva os seus aliados e<br />

como exibia o seu po<strong>de</strong>rio aos bárbaros é também um<br />

bom exemplo <strong>de</strong> perspicácia e previsão político-militar:<br />

contentes, os aliados manter-se-ão ao seu lado; pru<strong>de</strong>ntes<br />

ou temerosos, os inimigos hesitarão em atacar.<br />

A prudência e gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> alma <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> foram<br />

também responsáveis pela não anulação do <strong>de</strong>creto <strong>de</strong><br />

Mégara, o mesmo é dizer, pela Guerra do Peloponeso.<br />

Essas suas qualida<strong>de</strong>s fizeram-no ver que essa seria a<br />

melhor opção, pois as exigências dos Lace<strong>de</strong>mónios –<br />

que temiam o crescente po<strong>de</strong>r ateniense – tinham por<br />

principal objectivo verificar se “os mais fortes” cediam (o<br />

que seria uma inegável prova <strong>de</strong> fraqueza e um prece<strong>de</strong>nte<br />

incontornável para exigências ainda maiores). Houve,<br />

porém, quem o acusasse <strong>de</strong> agir assim para <strong>de</strong>monstrar<br />

o po<strong>de</strong>rio. No entanto, a <strong>de</strong>scrição que Plutarco faz do<br />

<strong>de</strong>creto permite realçar indirectamente – e mais uma vez<br />

– a prudência e a mo<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, já que o biógrafo<br />

nos diz que o <strong>de</strong>creto possuía essas virtu<strong>de</strong>s (Per. 30. 3).<br />

Outros motivos lhe testaram as mesmas qualida<strong>de</strong>s: o caso<br />

da estátua criselefantina (Per. 31. 3) e as invasões da Ática<br />

por Arquidamo (Per. 33. 5-6): é que ele conseguiu prever


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

com a antecedência necessária o que po<strong>de</strong>ria acontecer e<br />

assim <strong>de</strong>smentir suspeitas que colocariam em causa a sua<br />

honestida<strong>de</strong> e incorruptibilida<strong>de</strong>.<br />

Mas <strong>Péricles</strong> não era só o homem público. Além da<br />

amiza<strong>de</strong> que o unia a Fídias e a Anaxágoras (as mais realçadas<br />

por Plutarco), era também o companheiro carinhoso,<br />

que não entrava nem saía <strong>de</strong> casa sem beijar Aspásia, que<br />

amava com especial ternura (Per. 24. 9). Foi ela quem pela<br />

primeira vez o fez per<strong>de</strong>r o controlo em público, quando,<br />

por altura do julgamento – segundo o relato <strong>de</strong> Ésquines<br />

(Per. 32. 5) –, ele, chorando em tribunal, implorou por ela<br />

aos juízes.<br />

Na verda<strong>de</strong>, inicialmente, <strong>Péricles</strong> tinha sido casado<br />

com uma aristocrata, sem ter encontrado nesse matrimónio<br />

a convencional satisfação. Só o raciocínio <strong>de</strong> estadista<br />

que caracterizava Aspásia <strong>de</strong>spertou nele uma verda<strong>de</strong>ira<br />

paixão. E mais uma vez temos a simbiose entre vida política<br />

e privada: é que, ao que parece, a “Nova Hera” tinha um<br />

papel <strong>de</strong> peso nas <strong>de</strong>cisões políticas que <strong>Péricles</strong> tomava.<br />

Basta recordar o tão apregoado Decreto <strong>de</strong> Mégara.<br />

Mas, além <strong>de</strong> companheiro, era pai. Apesar dos muitos<br />

<strong>de</strong>sentendimentos com os filhos por causa do rigor com que<br />

administrava os seus bens, quando estes morreram vitimados<br />

pela peste sofreu bastante. No entanto, conseguiu manterse<br />

imperturbável, sereno, sem <strong>de</strong>monstrar a sua dor e sem<br />

<strong>de</strong>rramar uma lágrima até à morte <strong>de</strong> Páralo, o seu último<br />

filho legítimo (Per. 36). Então não pô<strong>de</strong> conter as lágrimas<br />

e os gemidos, o que parece sugerir uma certa humanização<br />

da personagem, ou, se quisermos dizer com Teofrasto, uma<br />

alteração <strong>de</strong> carácter provocada pelo excesso <strong>de</strong> dor.<br />

42


43<br />

in t r o d u ç ã o<br />

Embora Plutarco lhe reconheça tantas virtu<strong>de</strong>s, o<br />

certo é que, como tivemos oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver, muitos dos<br />

seus concidadãos o criticaram largamente em vida. A tal<br />

ponto, que o sofrimento provocado pela morte dos filhos<br />

e <strong>de</strong> outros familiares e amigos foi visto pelos Atenienses<br />

como um castigo pela sua arrogância e orgulho (Per. 37.<br />

5) 35 . Foi sobretudo após a sua morte, como aliás ainda nos<br />

nossos dias é prática corrente, que lhe <strong>de</strong>ram o <strong>de</strong>vido valor,<br />

ao verificarem que nenhum dos seus sucessores possuía a<br />

“sensibilida<strong>de</strong> viva e sábia <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>”, que “era mo<strong>de</strong>rado<br />

na austerida<strong>de</strong> e grave na mo<strong>de</strong>ração” (Per. 39. 3).<br />

Demoremo-nos, agora, um pouco mais na análise<br />

breve do vocabulário específico que é utilizado. Além dos<br />

termos que foram sendo referidos, Plutarco utilizou vários<br />

sinónimos para <strong>de</strong>terminadas características pessoais,<br />

nomeadamente para a mo<strong>de</strong>ração.<br />

Mesmo numa primeira análise, <strong>de</strong>pressa<br />

se reconhece a influência da escola peripatética 36<br />

através do recurso à sua terminologia (e às vezes pela<br />

reminiscência <strong>de</strong> conceitos que parecem estar presentes,<br />

35 Na verda<strong>de</strong>, os últimos anos da vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> foram<br />

extremamente difíceis, já que, com o início da guerra contra Esparta<br />

seguido do <strong>de</strong>flagrar da peste, o controle do povo se tornou uma<br />

tarefa ainda mais árdua. Este chegou mesmo a afastar o estadista<br />

do comando da polis. Mas, com o que o povo não contava era com<br />

a inexistência <strong>de</strong> outro chefe <strong>de</strong> Estado tão capaz como o filho <strong>de</strong><br />

Xantipo. Deste modo, a massa inconstante viu-se na necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> o reconduzir ao po<strong>de</strong>r. <strong>Péricles</strong> viria a morrer pouco tempo<br />

<strong>de</strong>pois.<br />

36 Os Peripatéticos, que davam especial ênfase ao estudo da<br />

personalida<strong>de</strong> humana, <strong>de</strong>terminaram muitíssimo o método biográfico<br />

grego, como se po<strong>de</strong> constatar pelo estudo atento das <strong>Vidas</strong>.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

embora não sejam <strong>de</strong>signados). Mas também logo nos<br />

apercebemos <strong>de</strong> que Plutarco não está obcecado pela<br />

exactidão da terminologia e que não segue religiosamente<br />

as <strong>de</strong>finições <strong>de</strong> Aristóteles, adaptando-as à sua própria visão<br />

do mundo e da personalida<strong>de</strong> humana. É isso que acontece,<br />

parece-nos, com o uso <strong>de</strong> sophrosyne (Ética a Nicómaco<br />

1118a-1119a). Esta palavra, em Aristóteles, é utilizada em<br />

relação à alimentação e a necessida<strong>de</strong>s físicas. Não é esse o<br />

sentido com que Plutarco a usa. Na Vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, está<br />

sobretudo relacionada com acções <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m moral, isto é,<br />

com o controle <strong>de</strong> reacções que <strong>de</strong>correm <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados<br />

sentimentos – mais ou menos impulsivos e irracionais, mas<br />

que nada têm a ver com necessida<strong>de</strong>s físicas.<br />

O conceito que segue mais <strong>de</strong> perto a teorização<br />

<strong>de</strong> Aristóteles é talvez a praotes, <strong>de</strong>finida como meiotermo<br />

entre o extremo das paixões e o da apatia 37 .<br />

Aparece muitas vezes relacionada com a legalida<strong>de</strong> em<br />

contraste com a cruelda<strong>de</strong>, violência ou tirania e resulta<br />

<strong>de</strong> um esforço consciente: na verda<strong>de</strong>, aquele que a<br />

possui e actualiza está a reprimir reacções meramente<br />

emocionais e instintivas que substitui por outras mais<br />

racionais – custa a crer que <strong>Péricles</strong>, ao ser apelidado <strong>de</strong><br />

cobar<strong>de</strong>, não tivesse vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> reagir. Isso comprova que a<br />

praotes se apren<strong>de</strong>, que requer muito esforço para se sobrepor<br />

a instintos, logo, que não é algo <strong>de</strong> apenas inato; trata-se da<br />

razão que controla os sentimentos.<br />

Em jeito <strong>de</strong> síntese, po<strong>de</strong>remos dizer que, segundo<br />

Plutarco, <strong>Péricles</strong> era uma pessoa com boa reputação<br />

37 Martin Jr. (1960: 65-73).<br />

44


45<br />

in t r o d u ç ã o<br />

e prestígio, embora, como o comum dos mortais, não<br />

fosse totalmente irrepreensível 38 . Mas, pela sua doçura <strong>de</strong><br />

carácter e mo<strong>de</strong>ração 39 e consequente imperturbabilida<strong>de</strong>,<br />

pela gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> alma e elevação <strong>de</strong> sentimentos, pela<br />

dignida<strong>de</strong> na conduta, pela força <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> e pela<br />

persistência correspon<strong>de</strong>nte, pela perspicácia, <strong>de</strong>marcavase<br />

da generalida<strong>de</strong> dos homens do seu tempo e dos séculos<br />

seguintes. Outras características faziam <strong>de</strong>le um ser especial:<br />

o sentido <strong>de</strong> justiça, a liberalida<strong>de</strong>, a incorruptibilida<strong>de</strong><br />

e, inclusive para alguns, a majesta<strong>de</strong> que emanava do seu<br />

comportamento e da própria maneira <strong>de</strong> ser.<br />

O prestígio que possuía entre os cidadãos resultava<br />

das suas virtu<strong>de</strong>s e permitia-lhe exercer a autorida<strong>de</strong> exigida<br />

a um homem <strong>de</strong> Estado, para que pu<strong>de</strong>sse tomar todas<br />

as medidas que <strong>de</strong>veriam conduzir a uma melhoria das<br />

condições <strong>de</strong> vida do povo.<br />

Havia, porém, quem lhe criticasse o orgulho, o<br />

<strong>de</strong>sprezo pelos outros e a arrogância.<br />

Esta disparida<strong>de</strong> na forma <strong>de</strong> encarar o<br />

comportamento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> remete-nos <strong>de</strong> imediato<br />

para as reflexões <strong>de</strong> Aristóteles na Ética a Nicómaco:<br />

como nos diz o Estagirita, a fronteira entre o que se<br />

po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar uma virtu<strong>de</strong> ou um <strong>de</strong>feito é muito<br />

38 Ao fazer esta afirmação, também Plutarco (Per. 10. 7) mostra<br />

bom-senso, já que nenhum ser humano é perfeito.<br />

39 Para Aristóteles (Ética a Nicómaco 1106b 27), a principal<br />

característica da virtu<strong>de</strong> é o facto <strong>de</strong> ela correspon<strong>de</strong>r ao meiotermo.<br />

Tendo em conta que a mo<strong>de</strong>ração é a característica <strong>de</strong><br />

<strong>Péricles</strong> que Plutarco mais evi<strong>de</strong>ncia e que, <strong>de</strong> uma maneira ou <strong>de</strong><br />

outra, influencia toda a acção do estadista, po<strong>de</strong>mos interpretá-la<br />

como sendo um dos atributos essenciais para se ser superior.


ténue. Logo, qualquer qualida<strong>de</strong> tem um ponto <strong>de</strong><br />

equilíbrio central. A leitura <strong>de</strong>ssa medida po<strong>de</strong> originar,<br />

consequentemente, elogio ou censura, pois quem a<br />

avalia po<strong>de</strong> interpretá-la, respectivamente, como mais<br />

próxima do que é <strong>de</strong>sejável ou não.<br />

46


sé c u l o V a.c.<br />

Tá b u a c r o n o l ó g i c a 1<br />

gr é c i a/Vi d a d e Pé r i c l e s<br />

47<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

ca. 495-90 Nascimento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, filho <strong>de</strong> Xantipo e<br />

Agariste (3. 1-2) 2 .<br />

490 Primeira expedição persa contra Atenas, li<strong>de</strong>rada<br />

por Dario. Batalha <strong>de</strong> Maratona, <strong>de</strong>rrota persa.<br />

488-87 Guerra entre Atenas e Egina.<br />

485-84 Ostracismo <strong>de</strong> Xantipo, pai <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />

480 Segunda expedição persa contra a Grécia, li<strong>de</strong>rada<br />

por Xerxes. Batalha das Termópilas. Batalha naval<br />

<strong>de</strong> Artemísio sem um vencedor evi<strong>de</strong>nte. Vitória<br />

grega na batalha naval <strong>de</strong> Salamina.<br />

479 Batalha <strong>de</strong> Plateias e Mícale. Início da reconstrução<br />

<strong>de</strong> Atenas.<br />

478-77 Constituição da Liga <strong>de</strong> Delos.<br />

ca. 472 Ostracismo <strong>de</strong> Temístocles que se exila em<br />

Argos (7.1).<br />

472 Representação da peça Os Persas <strong>de</strong> Ésquilo,<br />

tendo como corego <strong>Péricles</strong>.<br />

1 Para o estabelecimento <strong>de</strong>sta cronologia, baseámo-nos<br />

sobretudo nas cronologias fixadas por P. A. Stadter (1989: 357 -<br />

358) e A. Pérez Jiménez (1996: 2 - 59).<br />

2 Estas referências dizem respeito à Vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.


Tábua Cronológica<br />

ca. 470 Início da activida<strong>de</strong> política <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (7.3-4).<br />

470-60 Construção do templo <strong>de</strong> Zeus em Olímpia.<br />

463 Processo contra Címon, no qual <strong>Péricles</strong> se<br />

apresenta como principal acusador (10.6).<br />

462-61 Reforma do Areópago por Efialtes: redução o<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ste tribunal (7.8). Início da influência<br />

política <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />

461 Ostracismo <strong>de</strong> Címon (9.2-5). Assassinato <strong>de</strong><br />

Efialtes (10.7-8).<br />

460-445 Primeira Guerra do Peloponeso, entre Atenas<br />

e Esparta.<br />

ca. 455-4 Casamento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> com a ex-mulher<br />

<strong>de</strong> Hiponico (24.8).<br />

454 Sucessos <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> no Golfo <strong>de</strong> Corinto (19.1).<br />

ca. 454-3 Nascimento <strong>de</strong> Xantipo, filho <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (24.8).<br />

ca. 453 Transferência para Atenas do tesouro da Liga<br />

<strong>de</strong> Delos, antes <strong>de</strong>positado nesta ilha (12.1).<br />

ante 451 Nascimento <strong>de</strong> Páralo, filho <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (24.8).<br />

451-50 <strong>Péricles</strong> promove a lei que priva os filhos<br />

bastardos <strong>de</strong> cidadania (37.3-4).<br />

450-49 Morte <strong>de</strong> Címon em Chipre (10.8).<br />

449 Paz <strong>de</strong> Cálias, resultado do tratado entre a Liga<br />

<strong>de</strong> Delos e a Pérsia (17).<br />

448 Segunda Guerra Sagrada (21. 1-2).<br />

48


49<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

447 Início da construção do Pártenon (13.7). Derrota<br />

ateniense na batalha <strong>de</strong> Coroneia (18.3). Expedição <strong>de</strong><br />

<strong>Péricles</strong> ao Quersoneso (19.1).<br />

446-45 Celebração da paz dos trinta anos entre<br />

Atenas e Esparta (24.1).<br />

443 Ostracismo <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Melésias (16.3).<br />

ante 440 Nascimento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, filho <strong>de</strong> Aspásia e<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (24.10).<br />

440-39 Guerra <strong>de</strong> Samos (26. 2-28).<br />

438 Fundação <strong>de</strong> Anfípolis na Trácia (11.5).<br />

438-37 Consagração da estátua criselefantina <strong>de</strong><br />

Atenas Pártenos (13.14).<br />

437-32 Construção dos Propileus, entrada<br />

monumental da Acrópole (13.12-13).<br />

ca. 435 Expedição <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> ao Mar Negro (20.1-2).<br />

433 Primavera: Regresso <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, o filho <strong>de</strong> Melésias.<br />

Encontro dos Peloponésios em Esparta (29. 4-6).<br />

432-31 Inverno: última embaixada a Atenas (29. 7-30).<br />

Oposição <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> à anulação do “<strong>de</strong>creto contra<br />

Mégara”, que interditava o comércio com esta<br />

cida<strong>de</strong> (30.2; 31.1; 32.6).<br />

431 Maio: Invasão da Ática pelo exército da Simaquia<br />

do Peloponeso (33.4). Verão: Expedição ateniense<br />

contra o Peloponeso. Expulsão dos Eginetas<br />

(34.2). 3 <strong>de</strong> Agosto: Eclipse solar (35.2). Outono:


Tábua Cronológica<br />

Invasão ateniense <strong>de</strong> Mégara (34.4).<br />

430 Primavera: <strong>de</strong>flagar da peste em Atenas (34.5).<br />

Segunda invasão ática do Peloponeso. Expedição <strong>de</strong><br />

<strong>Péricles</strong> contra Epidauro (35.1-3). Verão: Destituição<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (35.4). Morte dos filhos <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, Xantipo<br />

e Páralo, da irmã <strong>de</strong> outros familiares (26.6-8).<br />

429 Reeleição <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (37.1-2). Pedido <strong>de</strong> cidadania<br />

para o filho bastardo do estadista (37.5). Outono: Morte<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (38).<br />

50


Vi d a d e <strong>Péricles</strong>


53<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

1. 1. César 1 , ao ver em Roma alguns estrangeiros<br />

ricos a passear e a acarinhar cachorritos e macaquinhos<br />

que traziam ao colo, perguntou, ao que parece, se no<br />

país <strong>de</strong>les as mulheres não tinham filhos 2 . Repreen<strong>de</strong>u<br />

assim, como um verda<strong>de</strong>iro lí<strong>de</strong>r, os que <strong>de</strong>sperdiçam<br />

com animais o afecto e a ternura que por natureza<br />

existem em nós e que se <strong>de</strong>stinam às pessoas.<br />

2. Ora, já que a nossa alma possui um <strong>de</strong>sejo<br />

intrínseco <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r e observar, não é razoável<br />

censurar os que usam esse dom para ver e ouvir coisas<br />

sem qualquer valor e negligenciam o que é bom e útil?<br />

Para os sentidos, que recebem passivamente a<br />

impressão do que os ro<strong>de</strong>ia, existe talvez a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> contemplar tudo o que se lhes apresenta, seja útil<br />

ou inútil. Mas, quanto à razão, cada um, se assim o<br />

quiser, tem a capacida<strong>de</strong> natural <strong>de</strong> a utilizar, <strong>de</strong> a guiar<br />

sem tréguas ou <strong>de</strong> mudar facilmente para o que lhe<br />

pareça melhor. Em consequência, <strong>de</strong>vemos procurar o<br />

melhor não só para o contemplar, mas também para nos<br />

alimentarmos da sua contemplação.<br />

1 Augusto (63 a.C. – 14 d.C.) incentivou o matrimónio e a<br />

natalida<strong>de</strong>, conce<strong>de</strong>ndo subsídios aos que tinham filhos e aplicando<br />

multas aos que se não casavam (cf. Suetónio, Augusto 34).<br />

2 Esta frase é atribuída por Ptolomeu (FGrHist 234 F 8) a<br />

Masinissa, rei da Numídia, que assim interpelou uns sibaritas que<br />

compravam macacos.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

3. Assim como a cor apropriada ao olho é aquela<br />

cujo tom brilhante e alegre reaviva e alimenta a visão 3 , do<br />

mesmo modo é preciso aplicar o pensamento em motivos<br />

dignos <strong>de</strong> contemplação que, pelo seu interesse, o incitem<br />

à prática do bem.<br />

4. Tais motivos encontram-se nos actos virtuosos,<br />

que <strong>de</strong>spertam nos que os observam certa emulação e<br />

<strong>de</strong>sejo que induz à imitação.<br />

Noutros casos, à admiração do feito não se segue <strong>de</strong><br />

imediato o impulso <strong>de</strong> cometê-lo. Mais ainda, é frequente<br />

apreciarmos a obra, mas <strong>de</strong>sprezarmos o artífice, como é<br />

o caso dos perfumes e dos tecidos <strong>de</strong> cor púrpura, com os<br />

quais nos <strong>de</strong>leitamos, mas os perfumistas e os tintureiros,<br />

consi<strong>de</strong>ramo-los servis e vulgares 4 .<br />

5. Por isso, com razão, Antístenes 5 ao ouvir que<br />

3 Como refere Stadter (1989: 55), Plutarco <strong>de</strong>ixa transparecer<br />

aqui a doutrina óptica <strong>de</strong> Platão (Timeu 45b-e), segundo a qual<br />

existe <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada indivíduo um fogo que se reaviva se receber<br />

pelos olhos a luz do fogo exterior.<br />

4 Parece que a visão negativa dos perfumes e das tintas era<br />

corrente no mundo antigo (Heródoto 3. 22; Xenofonte, Banquete<br />

2, 3) e que resultava da alteração antinatural que produziam (cf.<br />

Dio Crisóstomo 7. 117). Consta que o próprio Sólon (Aristóteles,<br />

Constituição <strong>de</strong> Atenas 612a, 687a) terá promulgado uma lei contra<br />

os ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> perfumes e que os Lace<strong>de</strong>mónios expulsavam <strong>de</strong><br />

Esparta os fabricantes <strong>de</strong> unguentos (porque <strong>de</strong>terioravam o azeite)<br />

e os que tingiam a lã (porque corrompiam o seu branco natural).<br />

Em Górgias 465b-c, Platão confirma a opinião pouco favorável dos<br />

intelectuais em relação à cosmética.<br />

5 Este filósofo (ca. 445 – 360 a.C.) foi discípulo <strong>de</strong> Górgias e,<br />

mais tar<strong>de</strong>, também <strong>de</strong> Sócrates e autor <strong>de</strong> diálogos socráticos. É<br />

consi<strong>de</strong>rado o fundador da Escola Cínica. Ele critica não a acção<br />

<strong>de</strong> tocar flauta propriamente dita, mas o facto <strong>de</strong> se fazer disso uma<br />

profissão.<br />

54


55<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

Isménias 6 era um bom flautista, comentou: “mas como<br />

homem não presta, <strong>de</strong> outro modo não seria um bom<br />

flautista”. 6. E Filipe observou ao filho <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma<br />

execução com melodia e com arte durante um banquete:<br />

“Não tens vergonha <strong>de</strong> tocar assim tão bem?” Pois é<br />

suficiente que um príncipe dispense algum do seu tempo<br />

livre a ouvir os que tocam e já muito conce<strong>de</strong> às musas<br />

como simples espectador dos que competem em tal<br />

matéria.<br />

2. 1. O empenho em ocupações vis evi<strong>de</strong>ncia em<br />

si mesmo, no esforço que dispensa a essas inutilida<strong>de</strong>s,<br />

indiferença pelo que é nobre. E a nenhum jovem <strong>de</strong> boa<br />

índole, por ter visto a estátua <strong>de</strong> Zeus em Pisa ou <strong>de</strong><br />

Hera em Argos, passou pela cabeça tornar-se um Fídias 7<br />

ou um Policleto 8 ; nem aspirou a ser um Anacreonte 9 ,<br />

6 Flautista tebano (cf. Plutarco, Obras Morais 632c; Demétrio<br />

1. 6). De boa família, Plutarco teve acesso a uma anedota que o<br />

aponta como o melhor flautista (as suas melodias eram tocadas nas<br />

trirremes e nas fontes; cf. Plínio, História Natural 37. 6-7).<br />

7 Arquitecto, escultor e pintor ateniense do século V a.C. Foi<br />

amigo <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e morreu na prisão (vi<strong>de</strong> infra Per. 31). Os seus<br />

trabalhos mais famosos são estátuas <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses (em ma<strong>de</strong>ira, com<br />

trajes <strong>de</strong> ouro e com os membros que ficavam a <strong>de</strong>scoberto revestidos<br />

<strong>de</strong> marfim), nomeadamente <strong>de</strong> Atena Parthenos e a <strong>de</strong> Zeus (<strong>de</strong> Pisa<br />

ou Olímpia). Para outras informações relativas à escultura grega, leiase,<br />

por exemplo, Barron (1981); Wooford (1982).<br />

8 Arquitecto e escultor do século V a.C., natural <strong>de</strong> Argos.<br />

Dentre as suas obras, <strong>de</strong>stacam-se a estátua criselefantina <strong>de</strong> Hera e<br />

o Doríforo, que é consi<strong>de</strong>rado o cânon da escultura clássica.<br />

9 Poeta lírico do século VI a.C., natural <strong>de</strong> Teos e consi<strong>de</strong>rado<br />

na Antiguida<strong>de</strong> um poeta erótico que tentou sempre observar a<br />

mo<strong>de</strong>ração tipicamente grega, algo que muitos dos seus seguidores<br />

não conseguiram fazer.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

Filémon 10 ou Arquíloco 11 por gostar dos seus poemas.<br />

É que, mesmo que uma obra nos encante pela sua<br />

graciosida<strong>de</strong>, não é obrigatório que o seu criador se<br />

imponha à nossa estima.<br />

2. De on<strong>de</strong> resulta que não são úteis aos que as<br />

contemplam obras <strong>de</strong>ste género, que não provocam o<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> imitação nem o entusiasmo que estimula a<br />

ambição e a ânsia <strong>de</strong> igualá-las.<br />

Em contrapartida, a virtu<strong>de</strong> nas acções é <strong>de</strong> tal<br />

maneira estimulante que, ao mesmo tempo que se<br />

admiram os actos, se <strong>de</strong>seja imitar os seus autores. 3.<br />

Na verda<strong>de</strong>, as benesses que a Sorte nos proporciona,<br />

<strong>de</strong>sejamos possuí-las e gozá-las; as que nos conce<strong>de</strong><br />

a Virtu<strong>de</strong>, queremos praticá-las. As primeiras,<br />

preten<strong>de</strong>mos recebê-las dos outros; estas, que outros as<br />

recebam <strong>de</strong> nós. 4. É que o Bem cria, em relação a si<br />

próprio, um estímulo activo 12 e <strong>de</strong> imediato inspira um<br />

10 Principal representante da Comédia Nova <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

Menandro, a ponto <strong>de</strong> ter servido <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo a Plauto em Mercator,<br />

Trinummus e Mostelaria. Pensa-se que seja oriundo <strong>de</strong> Solos, na<br />

Sicília, ou <strong>de</strong> Siracusa e que tenha vivido entre ca. 365-263 a.C.<br />

11 Natural <strong>de</strong> Paros (séc. VII a.C.), filho bastardo <strong>de</strong> um certo<br />

Telésicles, colonizador <strong>de</strong> Tasos e <strong>de</strong> mãe escrava. De um modo<br />

geral, era a realida<strong>de</strong> que inspirava a sua poesia, on<strong>de</strong> marcas do<br />

individualismo típico da época arcaica surgem a cada passo. Ficou<br />

famoso pelos seus iambos e elegias, nos quais <strong>de</strong>svalorizava as<br />

concepções tradicionais, nomeadamente o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> beleza heróica<br />

(cf. fr. 60 Diehl). Serviu como mercenário estrangeiro para po<strong>de</strong>r<br />

sobreviver, por isso mesmo <strong>de</strong>fine-se como sendo um servo <strong>de</strong> Ares<br />

conhecedor dos dons das musas (cf. fr. 1 Diehl). Os poetas que o<br />

Queroneu invoca neste passo são provavelmente seleccionados pelo<br />

conteúdo satírico ou lascivo das suas obras.<br />

12 Trata-se <strong>de</strong> uma conhecida doutrina platónica exposta em<br />

Banquete 208-212 e em Fedro 250 sq.<br />

56


57<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

impulso à acção; actua sobre quem o contempla não<br />

como um mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>al, mas pelo testemunho da sua<br />

actuação efectiva incentiva à <strong>de</strong>terminação.<br />

5. Pensámos, por isso, persistir na <strong>de</strong>scrição das<br />

vidas e compusemos este décimo livro que engloba a<br />

vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e a <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, que <strong>de</strong>senvolveu<br />

uma longa luta contra Aníbal. Eram estes homens<br />

semelhantes em diversas qualida<strong>de</strong>s, principalmente<br />

na mo<strong>de</strong>ração, no sentido <strong>de</strong> justiça e na capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> controlar a impon<strong>de</strong>ração dos cidadãos e dos seus<br />

colegas, tornando-se muito úteis às suas pátrias. É que<br />

é possível, a partir <strong>de</strong>ste relato, avaliar se apontamos na<br />

direcção correcta.<br />

3. 1. <strong>Péricles</strong> era da tribo <strong>de</strong> Acamante, do <strong>de</strong>mo<br />

<strong>de</strong> Colarges, <strong>de</strong> família e <strong>de</strong> <strong>de</strong>scendência <strong>de</strong> primeira<br />

nobreza, quer da parte do pai, quer da da mãe. 2.<br />

Xantipo, o vencedor sobre os generais do Rei persa em<br />

Mícale, casou-se com Agariste, sobrinha <strong>de</strong> Clístenes,<br />

aquele que com dignida<strong>de</strong> expulsou os Pisistrátidas e pôs<br />

fim à tirania; além disso, estabeleceu leis e instituiu uma<br />

constituição excelente para o incremento da harmonia<br />

e da segurança. 3. Depois <strong>de</strong> sonhar 13 que tinha dado à<br />

luz um leão, poucos dias mais tar<strong>de</strong>, Agariste <strong>de</strong>u à luz<br />

<strong>Péricles</strong>, <strong>de</strong> aspecto físico em tudo o mais irrepreensível,<br />

mas <strong>de</strong> cabeça alongada e <strong>de</strong>sproporcionada. 4. Por isso,<br />

quase todas as suas estátuas o representam <strong>de</strong> elmo:<br />

<strong>de</strong>certo os artistas não queriam ofendê-lo. Por seu<br />

lado, os poetas áticos chamavam-lhe cabeça <strong>de</strong> cebola<br />

13 Vi<strong>de</strong> supra Introdução à Vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> p. 25.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

(esquinocéfalo): é que há um tipo <strong>de</strong> cebola 14 a que<br />

também é dado o nome <strong>de</strong> schinon.<br />

5. De entre os cómicos, Cratino, em Quírones,<br />

diz: “A Desor<strong>de</strong>m e o velho Cronos uniram-se para gerar<br />

um tirano todo-po<strong>de</strong>roso, a quem os <strong>de</strong>uses chamam<br />

amontoador <strong>de</strong> cabeças”; e <strong>de</strong> novo em Némesis: “Vem,<br />

ó Zeus hospitaleiro e cabeçudo” 15 . 6. E Telecli<strong>de</strong>s 16 diz<br />

também que às vezes “<strong>de</strong> mãos atadas perante os assuntos<br />

<strong>de</strong> Estado, sentava-se na Acrópole, com dores <strong>de</strong> cabeça;<br />

outras vezes daquela tola <strong>de</strong> palmo e meio soltava-se-lhe<br />

uma arruaça monumental”. 7. Êupolis, em Demos 17 ,<br />

enquanto se informava acerca <strong>de</strong> cada um dos lí<strong>de</strong>res<br />

que regressavam do Ha<strong>de</strong>s, como <strong>Péricles</strong> foi o último<br />

a ser nomeado, comenta: “eis que trouxeste agora dos<br />

Infernos o cabecilha da malta lá <strong>de</strong> baixo”.<br />

4. 1. A maioria concorda em que o seu professor<br />

<strong>de</strong> música foi Dámon 18 , cujo nome, dizem, <strong>de</strong>ve<br />

14 Refere-se à urginea maritima, género <strong>de</strong> planta herbácea com<br />

um bolbo grosso, <strong>de</strong> forma oval, bastante largo (com cerca <strong>de</strong> 15<br />

cm <strong>de</strong> diâmetro) e po<strong>de</strong>ndo atingir o peso <strong>de</strong> 7 kg.<br />

15 Segundo Heródoto, Histórias 5. 66. 1, Zeus Cário era venerado<br />

pela família <strong>de</strong> Iságoras, facto que permite ao comediógrafo<br />

estabelecer um paralelo entre aquele e <strong>Péricles</strong>, sugestivo do perfil<br />

tirânico e anti<strong>de</strong>mocrático do estadista.<br />

16 Comediógrafo que parece ter obtido três vitórias nas<br />

Dionísias Urbanas e quatro nas Leneias. Chegaram até nós alguns<br />

títulos como Anfictiões, Hesíodos, Castigo, Prítanes e fragmentos que<br />

sugerem a orientação política das suas críticas.<br />

17 Peça que data <strong>de</strong> 412 a.C., isto é, já bastante posterior à morte<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, período em que a gravida<strong>de</strong> da situação ateniense era tal<br />

que o governo do Alcmeónida acabou por ganhar uma conotação<br />

paradigmática.<br />

18 O filho <strong>de</strong> Damóni<strong>de</strong>s (infra 9. 2) foi discípulo <strong>de</strong> Pródico<br />

58


59<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

pronunciar-se com a primeira sílaba breve. Aristóteles,<br />

porém, afirma que foi com Pitocli<strong>de</strong>s 19 que ele estudou<br />

música. 2. Dámon, que era um sofista eminente, parecia<br />

escon<strong>de</strong>r-se sob o nome da música, ocultando ao público<br />

o seu verda<strong>de</strong>iro talento; a <strong>Péricles</strong>, como a um atleta da<br />

política, foi ele que lhe serviu <strong>de</strong> treinador e mestre. 3.<br />

Contudo, não passou <strong>de</strong>spercebido que Dámon se servia<br />

da lira como pretexto; acabou con<strong>de</strong>nado ao ostracismo<br />

como um intriguista e partidário da tirania, oferecendo<br />

matéria aos cómicos. 4. Por exemplo, Platão [Cómico]<br />

criou uma personagem que lhe pergunta o seguinte (fr.<br />

207 K.-A.):<br />

Antes <strong>de</strong> mais, diz-me cá uma coisa, por favor, porque<br />

tu, ao que se comenta por aí, foste como um Quíron a<br />

educar <strong>Péricles</strong>.<br />

5. <strong>Péricles</strong> foi também discípulo <strong>de</strong> Zenão <strong>de</strong><br />

e amigo <strong>de</strong> Sócrates (Platão, Laques 197d). Foi muito conhecido<br />

pela sua teoria sobre a música (que não chegou até nós), matéria na<br />

qual se iniciou com Agátocles ou Lâmprocles. Segundo Platão, que<br />

também confirma a relação <strong>de</strong>ste com <strong>Péricles</strong> (Alcibía<strong>de</strong>s 118c),<br />

Dámon <strong>de</strong>fendia que a música estava intimamente relacionada com<br />

questões morais (República 400b, 424c): os vários ritmos podiam<br />

provocar efeitos diferentes a nível ético. Foi vítima <strong>de</strong> ostracismo<br />

entre 450-440 a.C., mas pouco mais se sabe a seu respeito. Vi<strong>de</strong><br />

Guthrie (1969: 35, n. 1).<br />

19 Segundo esta segunda versão, que Plutarco atribui a<br />

Aristóteles (fr. 401 Rose): <strong>de</strong> acordo com o Estagirita, o professor<br />

seria Pitocli<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Ceos, do qual apenas se sabe que foi pitagórico<br />

e músico. No entanto, esta informação baseia-se em Platão<br />

(Protágoras 316e, escólio a Alcibía<strong>de</strong>s 118c) e não em Aristóteles,<br />

o que po<strong>de</strong> significar ou que Plutarco confundiu as fontes, ou que<br />

esta referência faz parte <strong>de</strong> uma das muitas obras perdidas.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

Eleia que se ocupava, como Parméni<strong>de</strong>s 20 , das ciências<br />

e <strong>de</strong>senvolveu uma habilida<strong>de</strong> especial para refutar<br />

o adversário e para o reduzir à perplexida<strong>de</strong> com<br />

argumentos contraditórios, como mencionou Tímon <strong>de</strong><br />

Fliunte 21 em qualquer parte com estas palavras: “Que<br />

gran<strong>de</strong> força tem a língua <strong>de</strong> dois gumes <strong>de</strong> Zenão, que<br />

não dá tréguas, sempre a atacar tudo e todos.”<br />

6. Mas quem mais se relacionou com <strong>Péricles</strong> e lhe<br />

incutiu uma majesta<strong>de</strong> e uma gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> alma capaz<br />

<strong>de</strong> suplantar qualquer <strong>de</strong>magogia, numa palavra, quem<br />

lhe inspirou e aperfeiçoou a dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> carácter foi<br />

Anaxágoras <strong>de</strong> Clazómenas, que os homens <strong>de</strong> então<br />

proclamavam como a própria Inteligência 22 personificada,<br />

quer por lhe admirarem a enorme e excepcional perspicácia<br />

revelada no estudo da natureza, quer por ter sido o primeiro<br />

<strong>de</strong> entre todos a <strong>de</strong>terminar, como origem da or<strong>de</strong>m<br />

universal, não o acaso ou a necessida<strong>de</strong>, mas a Inteligência<br />

pura e simples, que separou as substâncias com elementos<br />

em comum 23 da massa caótica dos restantes.<br />

20 O pré-socrático Parméni<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Eleia (ca. 510 - 430 a.C.)<br />

compôs um poema filosófico Sobre a Natureza, no qual <strong>de</strong>finia<br />

conceitos como verda<strong>de</strong>, ser, imutabilida<strong>de</strong> e aparência. Vi<strong>de</strong><br />

Guthrie (1969: 1 sq.).<br />

21 Filósofo céptico (320 e 230 a.C.), cuja obra mais famosa é<br />

Silloi, constituída por três livros <strong>de</strong> hexâmetros satíricos contra os<br />

filósofos, que <strong>de</strong>dicou a Xenófanes, <strong>de</strong> quem era admirador. Vi<strong>de</strong><br />

Guthrie (1969: 336).<br />

22 O termo aqui usado é nous ou noos. Cf. Introdução, n. 14.<br />

23 Consta que homeomeria seria o termo utilizado no<br />

sistema <strong>de</strong> Anaxágoras para <strong>de</strong>signar os elementos homogéneos<br />

que, <strong>de</strong>senvencilhados do caos, foram separados dos elementos<br />

heterogéneos, com os quais estavam dantes confundidos. Mas o<br />

termo não ocorre nos fragmentos <strong>de</strong> Anaxágoras que chegaram até<br />

nós. Sobre este assunto, leia-se Guthrie (1969: 325-326).<br />

60


61<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

5. 1. <strong>Péricles</strong>, que admirava extraordinariamente<br />

este homem, enchia-se daquilo que se chama “filosofia<br />

pura” e “especulação fundamental”. Daí lhe advinha<br />

não apenas, ao que parece, distinção <strong>de</strong> espírito; mas<br />

também um discurso elevado e isento <strong>de</strong> vulgarida<strong>de</strong>s e<br />

<strong>de</strong> ridicularias <strong>de</strong> mau tom; um rosto austero que não<br />

se abria a um sorriso; tranquilida<strong>de</strong> no andar e modéstia<br />

no vestir, que nunca se alteravam com a emoção dos<br />

discursos; a modulação da voz imperturbável; e outras<br />

tantas qualida<strong>de</strong>s que causavam a todos admiração.<br />

2. Certa vez, por exemplo, foi insultado e injuriado<br />

na ágora por um homem infame e insolente. Suportou-o<br />

todo o dia em silêncio, enquanto <strong>de</strong>spachava assuntos<br />

urgentes que tinha a tratar e à tar<strong>de</strong> foi tranquilamente<br />

para casa, ainda seguido pelo sujeito que lhe dirigia todo<br />

o tipo <strong>de</strong> impropérios. Quando já estava para entrar,<br />

como havia escurecido, or<strong>de</strong>nou a um dos escravos<br />

que pegasse num archote para escoltar e acompanhar o<br />

homem a casa.<br />

3. O poeta Íon 24 , no entanto, fala do contacto<br />

arrogante e um tanto altaneiro <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e afirma que<br />

ele misturava ao seu orgulho muito <strong>de</strong>sprezo e <strong>de</strong>sdém<br />

24 Íon (ca. 490-424 a.C.) foi um dos poucos tragediógrafos<br />

que os Alexandrinos incluíram no cânone, ao lado <strong>de</strong> Ésquilo,<br />

Sófocles e Eurípi<strong>de</strong>s. Mas a sua produção escrita esten<strong>de</strong>u-se por<br />

outros domínios, nomeadamente o elegíaco, o filosófico (Triagmo,<br />

on<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a realida<strong>de</strong> é trinitária) e o histórico (História da<br />

Fundação <strong>de</strong> Quios). Uma das suas obras mais famosas é Epi<strong>de</strong>mias,<br />

que tratava das viagens do seu autor e também das visitas <strong>de</strong> homens<br />

ilustres à sua terra natal. O seu estilo revela gosto pelo retrato e pela<br />

anedota. Vi<strong>de</strong> Lesky (1995: 439-441); Guthrie (1969: 158).


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

pelos outros; elogia, em contrapartida, Címon 25 , pelo<br />

tacto, <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e elegância que punha nas relações<br />

humanas. Mas <strong>de</strong>ixemos Íon que preten<strong>de</strong> que a virtu<strong>de</strong>,<br />

como numa sequência trágica 26 , tenha sempre algo <strong>de</strong><br />

drama satírico. Zenão 27 , pelo contrário, exortava aqueles<br />

que chamavam à majesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> ânsia <strong>de</strong> prestígio<br />

e orgulho a terem também eles essa mesma ânsia, pois<br />

a procura produz imperceptivelmente a emulação e o<br />

hábito do bem.<br />

25 Címon, nascido em 510 a.C., era marido <strong>de</strong> Isódice (neta<br />

do alcmeónida Mégacles) e filho <strong>de</strong> Hegesípile e <strong>de</strong> Milcía<strong>de</strong>s<br />

(con<strong>de</strong>nado em 489 a.C. por Xantipo, pai <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, a uma multa<br />

<strong>de</strong> cinquenta talentos que só foi paga quando a filha, Elpinice,<br />

casou, após a morte do pai na prisão, com Cálias, o homem mais<br />

rico <strong>de</strong> Atenas). Assumiu o comando da armada ateniense em 476 e<br />

manteve-o até 462 a.C., altura em que regressou <strong>de</strong> Itome, afastado<br />

pelos Espartanos que não estavam satisfeitos com o <strong>de</strong>sempenho<br />

dos aliados atenienses. Embora partidário da aristocracia que o<br />

apoiava, era bem visto pelas massas por causa das suas qualida<strong>de</strong>s<br />

bélicas e consequentes vitórias. Procurou preservar a aliança entre<br />

Atenas e Esparta, motivo pelo qual foi acusado <strong>de</strong> laconismo e<br />

punido com o exílio (461 a.C.). Morreu em combate (vi<strong>de</strong> infra<br />

10. 8) no ano <strong>de</strong> 449. Parece que as opiniões <strong>de</strong> Íon favoráveis a<br />

Címon resultam da amiza<strong>de</strong> que existia entre ambos: cf. Plutarco,<br />

Címon 5. 3, 9. 1-6, 16. 10.<br />

26 Plutarco diz com isto que, para Íon, a virtu<strong>de</strong> não <strong>de</strong>ve ser<br />

sempre séria e que <strong>de</strong>ve haver espaço para o riso: a tragédia grega<br />

é exemplo <strong>de</strong>sse pensamento, já que, à trilogia, se seguia o drama<br />

satírico, que frequentemente tratava, em tom burlesco, o mesmo<br />

tema das tragédias.<br />

27 Possivelmente não Zenão <strong>de</strong> Eleia (referido em Per. 4. 5), mas<br />

Zenão <strong>de</strong> Chipre (ca. 336-261 a.C.), o fundador do Estoicismo, a<br />

quem muitos apotegmas <strong>de</strong>ste género são atribuídos. Cf. Guthrie<br />

(1969: 19 sq); Stadter (1989: 80-81).<br />

62


63<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

6. 1. Não foram estes os únicos benefícios que<br />

<strong>Péricles</strong> tirou do convívio com Anaxágoras; parece que<br />

se tornou também superior à superstição que o espanto<br />

diante <strong>de</strong> certos fenómenos celestes suscita nos que<br />

não conhecem as suas causas e nos que, a propósito <strong>de</strong><br />

assuntos divinos, enlouquecem e se inquietam por nada<br />

saberem a esse respeito; o conhecimento da natureza<br />

elimina esses temores e faz nascer, em vez da superstição<br />

mórbida, a pieda<strong>de</strong> fundamentada em expectativas<br />

lógicas.<br />

2. Diz-se que uma vez trouxeram da sua<br />

proprieda<strong>de</strong> a <strong>Péricles</strong> a cabeça <strong>de</strong> um carneiro <strong>de</strong> um só<br />

corno e que o adivinho Lâmpon 28 , quando lhe examinou<br />

o corno robusto e sólido implantado no meio da testa 29 ,<br />

disse que sendo dois os partidos po<strong>de</strong>rosos que existiam<br />

na cida<strong>de</strong>, o <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e o <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s 30 , a autorida<strong>de</strong><br />

28 Este adivinho ateniense era amigo <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e participou,<br />

em 443 a.C., na expedição à Magna Grécia que tinha por intuito<br />

fundar a colónia <strong>de</strong> Túrios. Os comediógrafos não per<strong>de</strong>ram<br />

a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atacá-lo por ser um mantis (aquele que é<br />

consi<strong>de</strong>rado capaz <strong>de</strong> interpretar os sinais dos <strong>de</strong>uses, mas que não<br />

ocupa cargo oficial na máquina do Estado) e um gran<strong>de</strong> comilão,<br />

já que tinha o direito <strong>de</strong> comer no Pritaneu a expensas públicas<br />

(cf. Aristófanes, Nuvens 332, Aves 521, 987-988, Cratino, fr. 66<br />

K.-A.).<br />

29 As anomalias da natureza eram consi<strong>de</strong>radas prodígios que<br />

po<strong>de</strong>riam revelar os <strong>de</strong>sejos e as intenções dos <strong>de</strong>uses. O corno era<br />

visto como um símbolo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança.<br />

30 Tucídi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Melésias, foi um orador exímio, escolhido<br />

pelos aristocratas para ocupar o lugar que a morte <strong>de</strong> Címon – <strong>de</strong><br />

quem era parente por afinida<strong>de</strong> – <strong>de</strong>ixara vago na oposição a <strong>Péricles</strong>.<br />

Apesar <strong>de</strong> ter sido uma figura importante na política da década <strong>de</strong><br />

440 a.C., pouco se sabe a seu respeito, sobretudo porque foi muitas<br />

vezes confundido com homónimos, nomeadamente o historiador.<br />

Uma das suas principais tentativas para <strong>de</strong>rrubar a influência do


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

viria a caber apenas a um, aquele a quem o sinal tinha sido<br />

transmitido. Anaxágoras, por sua vez, aberta a cabeça,<br />

mostrou que o cérebro não enchia o crânio, mas tinha<br />

afunilado, pontiagudo como um ovo, <strong>de</strong> toda a cavida<strong>de</strong><br />

em direcção ao local on<strong>de</strong> tinha início a raiz do corno. 3.<br />

Neste momento, Anaxágoras mereceu a admiração dos<br />

presentes, mas, pouco <strong>de</strong>pois, foi Lâmpon a conquistála,<br />

quando, <strong>de</strong>stituído Tucídi<strong>de</strong>s, todos os interesses do<br />

povo, sem excepção, ficaram sob o controlo <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />

4. Nada impedia, penso eu, que quer o filósofo, quer<br />

o adivinho estivessem correctos: um compreen<strong>de</strong>u bem<br />

a causa, o outro, o propósito. Na verda<strong>de</strong>, o papel <strong>de</strong><br />

um é observar porque nasceu e como se <strong>de</strong>senvolveu<br />

tal fenómeno; o do outro é predizer com que finalida<strong>de</strong><br />

ocorreu e o que significava.<br />

5. Os que afirmam que a <strong>de</strong>scoberta da causa é a<br />

<strong>de</strong>struição do sentido do sinal não compreen<strong>de</strong>m que,<br />

com os símbolos divinos, estão a rejeitar também os<br />

símbolos convencionais, o toque dos gongos, a luz das<br />

tochas ou a sombra dos relógios <strong>de</strong> sol; cada um <strong>de</strong>les tem<br />

a sua causa, mas foi preparado para simbolizar qualquer<br />

coisa 31 . Mas isso é sem dúvida matéria <strong>de</strong> outro estudo.<br />

estadista, que crescia visivelmente a cada dia, consistiu no ataque<br />

ao programa <strong>de</strong> reconstrução da cida<strong>de</strong>. No entanto, o único po<strong>de</strong>r<br />

que conseguiu abalar foi o seu próprio, já que acabou votado ao<br />

ostracismo, <strong>de</strong>ixando o caminho livre para o seu adversário e para o<br />

florescimento da <strong>de</strong>mocracia. Segundo Diógenes Laércio, terá sido<br />

Tucídi<strong>de</strong>s a acusar Anaxágoras <strong>de</strong> impieda<strong>de</strong> (infra Per. 32. 5), por<br />

rivalida<strong>de</strong> com <strong>Péricles</strong>.<br />

31 Des<strong>de</strong> sempre o homem teve necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver o que o<br />

ro<strong>de</strong>ia através <strong>de</strong> signos convencionais, aos quais atribui diferentes<br />

significados, também eles convencionados. Plutarco põe em igual<br />

plano os símbolos divinos e os humanos, mostrando que nesta<br />

64


65<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

7. 1. <strong>Péricles</strong>, quando era jovem, temia enfrentar<br />

o povo. É que, segundo a opinião geral, era parecido<br />

com o tirano Pisístrato nos traços, na voz agradável e<br />

no estilo ágil e fluente do discurso; aos mais velhos tão<br />

forte semelhança <strong>de</strong>ixava-os atónitos. 2. Como era rico,<br />

membro <strong>de</strong> uma família ilustre e tinha amigos muito<br />

po<strong>de</strong>rosos, temia ser con<strong>de</strong>nado ao ostracismo e não<br />

participava na vida política, mas nas expedições militares<br />

era um homem corajoso e empreen<strong>de</strong>dor.<br />

3. Quando Aristi<strong>de</strong>s morreu e Temístocles foi<br />

exilado, as expedições militares retinham Címon<br />

muito tempo fora da Grécia 32 ; nessas circunstâncias,<br />

matéria não se po<strong>de</strong>m separar as águas: ambos têm por objectivo<br />

comunicar, transmitir um significado e todos foram criados para<br />

significar uma realida<strong>de</strong> específica. Recusar uns é pôr em causa<br />

todos.<br />

32 Durante as cerca <strong>de</strong> duas décadas que se seguiram às batalhas<br />

<strong>de</strong> Maratona (490 a.C.), Salamina (480 a.C.) e Plateias (479 a.C.) –<br />

<strong>de</strong>cisivas para esbater o perigo persa –, Aristi<strong>de</strong>s (ca. 540-468 a.C.)<br />

e Temístocles (ca. 528-462 a.C.) ocuparam posições <strong>de</strong> relevo na<br />

vida política <strong>de</strong> Atenas, pois tinham dado gran<strong>de</strong> contributo para<br />

a <strong>de</strong>rrota do inimigo: o primeiro alcançara a glória em Maratona;<br />

o segundo, além <strong>de</strong> ter sido o responsável pela organização da frota<br />

que viria a ser a mais po<strong>de</strong>rosa da Grécia, tinha sido o comandante<br />

da batalha <strong>de</strong> Salamina. Aristi<strong>de</strong>s, conhecido pelo seu sentido <strong>de</strong><br />

justiça e rigor, foi incumbido da constituição <strong>de</strong> uma aliança entre<br />

Atenas e os seus aliados que tinha por objectivo fazer frente ao<br />

inimigo bárbaro: com a Simaquia <strong>de</strong> Delos, os Gregos pretendiam<br />

estar preparados para eventuais retaliações e libertar os muitos<br />

Helenos que ainda se encontravam sob o jugo do Rei. Durante esta<br />

fase, Aristi<strong>de</strong>s foi também o comandante da frota <strong>de</strong> Atenas. Só<br />

em 476 a.C. é que Címon, até então seu subordinado, o substituiu<br />

nesta função, passando a ausentar-se com mais frequência <strong>de</strong><br />

Atenas. Quanto a Temístocles, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido arconte em 493<br />

a.C. (período no qual organizou a frota), não voltou a ser eleito


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

<strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>cidiu associar-se entusiasticamente ao povo,<br />

preferindo, em <strong>de</strong>trimento dos ricos e das minorias,<br />

o lado das maiorias e dos pobres, contra a sua própria<br />

natureza que era muito pouco populista. 4. Mas, ao que<br />

parece, como temia encontrar-se sob suspeita <strong>de</strong> tirania,<br />

e como via as tendências aristocráticas <strong>de</strong> Címon e as<br />

simpatias <strong>de</strong> que gozava entre os nobres, voltou-se para<br />

a multidão, para garantir a própria segurança e força<br />

contra o rival.<br />

5. Imediatamente modificou o modo <strong>de</strong> vida.<br />

Era visto, na cida<strong>de</strong>, a caminhar numa única rua, a que<br />

conduz à ágora e ao conselho; renunciou aos convites<br />

para banquetes e a todas as outras relações familiares e<br />

sociais, <strong>de</strong> modo que, durante todo o longo período <strong>de</strong><br />

tempo em que esteve no po<strong>de</strong>r, nunca foi jantar a casa <strong>de</strong><br />

um amigo, excepto quando o seu primo Euriptólemo <strong>de</strong>u<br />

uma festa <strong>de</strong> casamento; mesmo aí ficou até às libações 33<br />

e saiu em seguida. 6. É que as festas são terríveis para<br />

manter a dignida<strong>de</strong> e é difícil conservar na convivência a<br />

serieda<strong>de</strong> que leva à boa reputação. Porém, a verda<strong>de</strong>ira<br />

virtu<strong>de</strong> tanto mais bela é quanto mais evi<strong>de</strong>nte se torna,<br />

e, assim, nada nos homens superiores po<strong>de</strong> causar tanta<br />

admiração nos <strong>de</strong> fora quanto o seu dia-a-dia nos que<br />

com eles convivem.<br />

7. Para evitar a exposição constante e a consequente<br />

saturação, aproximava-se do povo a intervalos; não falava<br />

para nenhum cargo importante e terminou os seus dias no exílio,<br />

acusado <strong>de</strong> se ter aliado aos Persas (472 a.C.).<br />

33 As libações aos <strong>de</strong>uses marcavam o final da refeição<br />

propriamente dita. Nesta altura, era trazido o vinho para o<br />

symposium e começavam a beber.<br />

66


67<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

sobre um assunto qualquer e nem sempre comparecia<br />

em público. Como a trirreme Salamínia 34 , segundo<br />

Critolau 35 , <strong>Péricles</strong> guardava-se para as gran<strong>de</strong>s ocasiões<br />

e as restantes resolvia-as por meio dos amigos e outros<br />

oradores.<br />

8. Um <strong>de</strong>les foi, ao que se diz, Efialtes 36 , que<br />

arrasou o po<strong>de</strong>r do conselho do Areópago, dando a<br />

beber, nas palavras <strong>de</strong> Platão 37 , aos cidadãos liberda<strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> e da genuína. Dizem, os comediógrafos que,<br />

graças a ela, o povo empinado que nem um cavalo, “não<br />

34 A Salamínia e a Páralo eram trirremes sagradas com tripulações<br />

<strong>de</strong> elite, que se usavam em missões especiais, nomeadamente nas<br />

<strong>de</strong>slocações para consultas <strong>de</strong> oráculos ou para ir buscar generais,<br />

como aconteceu, em 415 a.C., quando Alcibía<strong>de</strong>s regressou da<br />

Sicília (Tucídi<strong>de</strong>s 6. 53. 1).<br />

Plutarco <strong>de</strong>fendia o método <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>: o estadista<br />

não tem condições <strong>de</strong> fazer tudo o que é necessário para o bom<br />

funcionamento da vida <strong>de</strong> um Estado sozinho. Tem <strong>de</strong> trazer todos<br />

os assuntos controlados e <strong>de</strong>legar funções, reservando para si as<br />

tarefas mais importantes.<br />

35 Filósofo peripatético do séc. II a.C., natural <strong>de</strong> Fasélis. Já em<br />

ida<strong>de</strong> avançada, tomou parte, com o académico Carnéa<strong>de</strong>s e com<br />

Diógenes Estóico, na expedição <strong>de</strong> filósofos a Roma em 156-155 a.<br />

C. Cf. Guthrie (1969: 62 n. 1).<br />

36 Deste estadista ateniense, conhecido, como <strong>Péricles</strong>, pela<br />

sua incorruptibilida<strong>de</strong>, sabe-se muito pouco. Filho <strong>de</strong> Sofóni<strong>de</strong>s,<br />

foi um dos poucos lí<strong>de</strong>res atenienses que não era rico. Substituiu<br />

Temístocles na li<strong>de</strong>rança dos populares e, consequentemente,<br />

teve em Címon o seu principal opositor. Foi responsável pela<br />

supressão <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res do Areópago em 462 a.C. (Per. 9. 5, 10. 7).<br />

Mas, os aristocratas, pouco satisfeitos com o sucedido, mandaram<br />

assassiná-lo no ano seguinte (Per. 10. 8). As más-línguas chegaram<br />

a responsabilizar <strong>Péricles</strong> pelo crime (Per. 10. 7). Sobre a reforma<br />

do Areópago, uma das últimas medidas para retirar po<strong>de</strong>r da<br />

aristocracia e transferi-lo para o povo, leia-se Ribeiro Ferreira<br />

(1990: 47).<br />

37 República 562c-d.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

tolerou mais obe<strong>de</strong>cer, mas mor<strong>de</strong> Eubeia e salta sobre<br />

as ilhas 38 ”.<br />

8. 1. Ajustando o discurso, como quem afina um<br />

instrumento, em harmonia com o seu modo <strong>de</strong> vida e<br />

com a sua gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> espírito, era frequente vibrar o<br />

tom <strong>de</strong> Anaxágoras, para <strong>de</strong>rramar uma coloração <strong>de</strong><br />

ciências da natureza sobre a sua retórica.<br />

2. De facto, “a elevação <strong>de</strong> pensamento e eficácia<br />

<strong>de</strong> execução que adquiriu”, como diz o divino Platão 39 ,<br />

“do saber acrescentado aos seus dotes naturais”, a que<br />

veio somar-se a vantagem <strong>de</strong> uma qualificação retórica,<br />

distinguiu-o muito <strong>de</strong> todos os outros. 3. Foi daí – é voz<br />

corrente – que lhe veio a alcunha; mas alguns pensam<br />

que lhe chamavam Olímpico por causa dos monumentos<br />

com que embelezou a cida<strong>de</strong>; outros ainda pela sua<br />

autorida<strong>de</strong> no governo e no comando militar. E não é<br />

improvável que essa reputação se <strong>de</strong>va à combinação <strong>de</strong><br />

todas as qualida<strong>de</strong>s que possuía. 4. Contudo, as comédias<br />

dos poetas do seu tempo que lançavam, em tom sério ou<br />

38 Este verso alu<strong>de</strong> ao tratamento pouco correcto que os<br />

Atenienses tiveram em relação aos aliados, nomeadamente a Eubeia,<br />

quando esta tentou <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pertencer à Simaquia. Atenas usou<br />

<strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> repressão contra todos aqueles que, achando<br />

<strong>de</strong>snecessário manter uma aliança contra o inimigo persa que já<br />

não oferecia perigo, quiseram libertar-se do compromisso (vi<strong>de</strong><br />

Ribeiro Ferreira 1990: 131-146). Aristófanes (Nuvens 211-213)<br />

apresenta uma anedota semelhante, também relacionada com<br />

<strong>Péricles</strong>: duas personagens estão a observar um mapa da Grécia e<br />

uma diz: “Aqui está a Eubeia que, como vês, se estira bem longe, a<br />

todo o comprimento”. Ao que a outra personagem replica: “Bem<br />

sei. Demos-lhe um bom estirão, nós e <strong>Péricles</strong>.”<br />

39 Fedro 270a.<br />

68


69<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

a rir, muitas bocas contra ele, mostram que o epíteto<br />

lhe veio sobretudo do discurso. Afirmam que produzia<br />

trovões e coriscos, quando falava ao povo, e que trazia<br />

um raio medonho na língua 40 . 5. Recor<strong>de</strong>-se uma frase<br />

<strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Melésias 41 , proferida por graça, a<br />

propósito da capacida<strong>de</strong> persuasiva <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. Tucídi<strong>de</strong>s<br />

era aristocrata e foi opositor <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> durante muito<br />

tempo. Quando, certa vez, Arquidamo 42 , rei <strong>de</strong> Esparta,<br />

lhe perguntou se era ele ou <strong>Péricles</strong> quem combatia<br />

melhor, Tucídi<strong>de</strong>s disse: “quando eu o <strong>de</strong>rrubo em<br />

combate, ele nega ter caído e leva a melhor, pois altera a<br />

opinião <strong>de</strong> quem assiste”.<br />

6. Todavia, o próprio <strong>Péricles</strong> era <strong>de</strong> tal modo<br />

pru<strong>de</strong>nte no discurso, que, sempre que se dirigia à tribuna,<br />

suplicava aos <strong>de</strong>uses que nenhuma palavra inoportuna<br />

40 A constante aproximação feita entre <strong>Péricles</strong> e Zeus tem uma<br />

intenção: tal como Zeus, ao instaurar uma nova or<strong>de</strong>m, propiciou<br />

a <strong>de</strong>cadência da Ida<strong>de</strong> do Ouro, assim <strong>Péricles</strong>, ao estabelecer uma<br />

<strong>de</strong>mocracia radical, inaugura uma nova era na qual se verifica<br />

um <strong>de</strong>teriorar progressivo da moral tradicional. Por outro lado, o<br />

controlo quase absoluto que <strong>Péricles</strong> tinha sobre a cida<strong>de</strong> assemelhase<br />

ao <strong>de</strong> Zeus no panteão. Aliás, ao comparar as palavras <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />

com os raios e coriscos <strong>de</strong> Zeus, sugere-se na perfeição não só o<br />

domínio <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> sobre o povo como também a sua capacida<strong>de</strong><br />

oratória.<br />

41 Melésias foi um treinador <strong>de</strong> luta livre muito conhecido no seu<br />

tempo. Segundo Platão (Menéxeno 94c), o gosto por esta activida<strong>de</strong><br />

era transmitido <strong>de</strong> geração em geração, pelo que Tucídi<strong>de</strong>s terá não<br />

só praticado este <strong>de</strong>sporto, como também iniciado os próprios<br />

filhos nessa activida<strong>de</strong>. No entanto, o combate que aqui se refere é<br />

provavelmente metafórico. Cf. Podlecki (1987: 39).<br />

42 Arquidamo II reinou entre 469 e 427 a.C. Foi ele quem<br />

comandou as invasões à Ática durante a Guerra do Peloponeso em<br />

431, 430 e 428 a.C., pelo que o primeiro período da guerra recebe<br />

o seu nome. Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 10-12, 18-20.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

para a questão em causa lhe saísse sem querer.<br />

7. Não <strong>de</strong>ixou nada escrito, excepto <strong>de</strong>cretos, e<br />

poucos são, na verda<strong>de</strong>, os ditos que <strong>de</strong>le se recordam 43 ,<br />

como o que or<strong>de</strong>na que se retire Egina 44 , como pus do<br />

olho do Pireu; ou um outro em que afirmava já ver a<br />

guerra a avançar do Peloponeso. 8. E, num dia em que<br />

Sófocles 45 , que com ele comandava uma expedição, ao<br />

saírem do porto louvou a beleza <strong>de</strong> um jovem, <strong>Péricles</strong><br />

censurou-o: – “Sófocles, é preciso que um general não<br />

tenha puras apenas as mãos, mas também os olhos”. 9.<br />

Estesímbroto 46 testemunha que, ao pronunciar, sobre a<br />

tribuna, o encómio dos mortos em Samos, ele teria dito<br />

que se tinham tornado imortais como os <strong>de</strong>uses – a esses,<br />

não os vemos, mas, pelas honras que recebem e pelas<br />

43 Como sendo da autoria <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, apenas se recordam<br />

quatro frases em Plutarco, Obras Morais 186c.<br />

44 Ainda que inicialmente não tenha feito parte da Simaquia<br />

<strong>de</strong> Delos, tornou-se tributária quando em 459 a.C. foi <strong>de</strong>rrotada<br />

numa batalha marítima por Atenas (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 105. 2, 108. 4).<br />

E, embora tenha permanecido na Simaquia após a assinatura do<br />

tratado <strong>de</strong> paz em 446 a.C., continuava a queixar-se a Esparta,<br />

facto que foi uma das causas da Guerra do Peloponeso (Tucídi<strong>de</strong>s<br />

1. 67.2, 139. 1). Em 431 a.C., os Atenienses expulsaram os<br />

habitantes <strong>de</strong>sta ilha, que, pela proximida<strong>de</strong> do Pireu, facilmente<br />

podiam bloquear o acesso ao porto, e instalaram lá os seus próprios<br />

cidadãos (Tucídi<strong>de</strong>s 2. 27. 1). A comparação entre Egina e uma<br />

infecção ocular é tanto mais expressiva se tivermos em conta que<br />

a conjuntivite era então uma doença muito frequente e impedia<br />

a visão <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>la pa<strong>de</strong>cia. Também Egina impedia o total<br />

funcionamento do Pireu.<br />

45 Trata-se do tragediógrafo que, em 441-439 a.C., foi estratego<br />

com <strong>Péricles</strong> na Guerra contra Samos.<br />

46 Estesímbroto (activo em finais do séc. V a.C.) foi rapsodo,<br />

comentador dos Poemas Homéricos e escreveu também uma obra<br />

intitulada Sobre Temístocles, Tucídi<strong>de</strong>s e <strong>Péricles</strong>, on<strong>de</strong>, com recurso<br />

constante a anedotas, ataca esses políticos atenienses.<br />

70


71<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

graças que conce<strong>de</strong>m, verificamos que são imortais. Ora<br />

essas características são comuns aos que morreram pela<br />

pátria.<br />

9. 1. Enquanto Tucídi<strong>de</strong>s 47 <strong>de</strong>screve o governo <strong>de</strong><br />

<strong>Péricles</strong> como aristocrático – sob o nome <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia,<br />

“na prática era o primeiro dos cidadãos quem governava”<br />

– muitos outros dizem que pela primeira vez o povo<br />

foi induzido por ele às cleruquias 48 , aos subsídios para<br />

assistir ao teatro 49 e à distribuição <strong>de</strong> compensações pelos<br />

serviços públicos 50 ; foi por causa das medidas <strong>de</strong> então<br />

que se habituou mal e se tornou esbanjador e libertino,<br />

47 Tucídi<strong>de</strong>s 2. 65. 9.<br />

48 Nos territórios que foram libertando do domínio bárbaro<br />

ou naqueles que tentavam abandonar a Simaquia <strong>de</strong> Delos, os<br />

Atenienses estabeleceram cleruquias que eram lotes <strong>de</strong> terras<br />

distribuídos aos cidadãos <strong>de</strong> Atenas. Aí, os próprios clerucos<br />

cultivavam as suas proprieda<strong>de</strong>s (ou recebiam rendas dos antigos<br />

donos que se tornavam seus granjeiros) e exerciam funções militares.<br />

Os clerucos mantinham a cidadania ateniense, ao contrário do que<br />

acontecia nas colónias usuais (apoikiai) que constituíam uma polis<br />

totalmente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da metrópole (cf. Diodoro Sículo 11. 88.<br />

3). No entanto, as cleruquias possuíam órgãos locais <strong>de</strong> governo,<br />

cuja existência é atestada por documentos epigráficos. Sobre este<br />

tema, vi<strong>de</strong> Ribeiro Ferreira (1990: 321); Mossé (1992: 111-<br />

112).<br />

49 O theorikon era o fundo do Estado com que se financiavam<br />

as festas públicas e com que se provia o pagamento <strong>de</strong> dois óbolos<br />

aos cidadãos pobres para que pu<strong>de</strong>ssem assistir às representações<br />

dramáticas. No entanto, a atribuição <strong>de</strong>sta medida a <strong>Péricles</strong> é<br />

controversa, pois só temos informações sobre este subsídio a partir<br />

do século IV (sobre esta problemática, vi<strong>de</strong> Stadter (1989: 111).<br />

Assim, é provável que Plutarco se referisse a um aumento do valor<br />

do theorikon em sentido global, medida que certamente agradaria<br />

ao povo. Sobre este fundo, leia-se Mossé (1992: 474).<br />

50 Cf. Platão, Górgias 515e, 518e.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

em lugar <strong>de</strong> ser pru<strong>de</strong>nte e trabalhador. Observemos,<br />

em função <strong>de</strong>stas acções, a causa da mudança <strong>de</strong><br />

política. 2. No começo, como já se disse, procurou o<br />

favor do povo para fazer frente ao prestígio <strong>de</strong> Címon,<br />

a quem era inferior na riqueza e nos bens, com os<br />

quais aquele atraía os pobres. Assim oferecia todos os<br />

dias uma refeição aos Atenienses necessitados, vestia os<br />

mais velhos e tirou as cercas das suas terras para que<br />

quem quisesse colhesse os frutos. <strong>Péricles</strong>, batido por<br />

essas medidas <strong>de</strong>magógicas, volta-se para a distribuição<br />

do tesouro público, aconselhado por Damóni<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

Ea 51 , como contou Aristóteles 52 . 3. Rapidamente com<br />

os fundos para os espectáculos, com os salários dos<br />

juízes e com outras mistoforias e subsídios, corrompeu<br />

a multidão e usou-a contra o conselho do Areópago,<br />

<strong>de</strong> que ele não fazia parte por não ter obtido em sorte<br />

nem o cargo <strong>de</strong> arconte, nem o <strong>de</strong> tesmóteta, nem o<br />

<strong>de</strong> arconte-rei ou polemarco 53 . 4. É que estes cargos<br />

51 Aristóteles apresenta Damóni<strong>de</strong>s como influente conselheiro<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> que, por esse motivo, foi votado ao ostracismo. Não<br />

<strong>de</strong>ve ser confundido, o que aliás Aristóteles faz, com o filho Dámon<br />

(Per. 4. 1-4), que também foi conselheiro <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> na década <strong>de</strong><br />

30. Vi<strong>de</strong> Rho<strong>de</strong>s (1981: 341).<br />

52 Constituição <strong>de</strong> Atenas 27. 4.<br />

53 Principal magistratura da época arcaica e dos princípios do<br />

século V a.C., altura em que as reformas <strong>de</strong> 488-487 a.C. lhe<br />

reduziram a importância. Nesta fase, os arcontes eram já <strong>de</strong>z:<br />

um rei (com funções religiosas), um polemarco (com funções<br />

militares), um epónimo (dava o nome ao ano), seis tesmótetas<br />

(encarregados <strong>de</strong> redigir as leis) e um secretário. Acediam ao cargo<br />

por sorteio (que, aliás, era o método mais utilizado <strong>de</strong> acesso às<br />

magistraturas), à razão <strong>de</strong> um por tribo, com base numa lista <strong>de</strong><br />

quinhentos candidatos pré-seleccionados <strong>de</strong>ntre os membros das<br />

classes censitárias mais elevadas (pentacosiomedinos e cavaleiros).<br />

72


73<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

eram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre 54 sorteados e só através <strong>de</strong>les os que<br />

tivessem provado um bom <strong>de</strong>sempenho 55 ascendiam ao<br />

Areópago. 5. Por isso foi sobretudo quando <strong>Péricles</strong> teve<br />

mais crédito entre o povo que <strong>de</strong>struiu a autorida<strong>de</strong> do<br />

conselho 56 , <strong>de</strong> tal maneira que lhe tirou a maior parte<br />

das atribuições por intermédio <strong>de</strong> Efialtes 57 . Mais ainda,<br />

Vi<strong>de</strong> Ribeiro Ferreira (1990: 42, 108-112); Mossé (1992: 59-<br />

60). 54 Des<strong>de</strong> Sólon, segundo Aristóteles, Constituição <strong>de</strong> Atenas 8.<br />

2. Esta informação, no entanto, contradiz Política 1273b 41-1274a<br />

3, on<strong>de</strong> se afirma que Sólon não introduziu nenhuma mudança.<br />

Rho<strong>de</strong>s (1981: 272-274).<br />

55 Em Atenas, dokimasia era uma espécie <strong>de</strong> audiência ou<br />

escrutínio prévios que se fazia aos candidatos às magistraturas, quer<br />

fossem eleitos quer fossem sorteados, para verificar se dispunham<br />

das qualida<strong>de</strong>s necessárias para assumir funções (cf. Constituição<br />

<strong>de</strong> Atenas 55. 2-4). Não há, porém, relatos <strong>de</strong> procedimento<br />

semelhante em relação ao acesso ao Areópago. Plutarco usa com<br />

frequência o verbo da mesma família mas, aparentemente, sem o<br />

sentido que lhe era atribuído em Atenas. É provável que o Queroneu<br />

estivesse a pensar em euthynai, a avaliação a que era submetida a<br />

administração <strong>de</strong> um magistrado no final do seu mandato. Vi<strong>de</strong><br />

Ribeiro Ferreira (1990: 103, 323); Mossé (1992: 171).<br />

56 O Areópago, cujo nome advém do do local on<strong>de</strong> o conselho<br />

se reunia – a colina <strong>de</strong>dicada ao <strong>de</strong>us Ares –, era o órgão <strong>de</strong> governo<br />

mais antigo <strong>de</strong> Atenas (Plutarco, Sólon 19. 1). Dele faziam parte os<br />

que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> servirem o Estado como arcontes (cf. supra n. 53),<br />

passavam as euthynai (cf. nota anterior). Até 462 a.C., tinha como<br />

atribuições julgar os casos <strong>de</strong> homicídio, supervisionava os cultos<br />

oficiais e infracções contra estes e podia punir os magistrados que<br />

não <strong>de</strong>sempenhassem convenientemente as suas funções. Com a<br />

reforma, apenas manteve a jurisdição sobre os homicídios (Filocoro,<br />

FGrHist 328 F 64). Os restantes po<strong>de</strong>res foram distribuídos pelo<br />

Conselho dos Quinhentos, pela Assembleia e pelos tribunais. Vi<strong>de</strong><br />

Ribeiro Ferreira (1990: 44-49, 116-118); Mossé (1992: 60-<br />

62). 57 As informações sobre a reforma são poucas e muitas vezes<br />

controversas. Neste passo, Plutarco apresenta Efialtes como um<br />

agente <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. No entanto, em Plutarco (Címon 15. 2) e em


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

<strong>de</strong>sterrou, por ostracismo, Címon 58 como partidário<br />

dos Lace<strong>de</strong>mónios e inimigo do povo, embora este<br />

não fosse nem em fortuna nem em linhagem, inferior<br />

a ninguém, e tivesse alcançado belas vitórias sobre os<br />

bárbaros e enchido a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> riquezas e <strong>de</strong>spojos sem<br />

conta, como escrevemos na sua Vida 59 . Tal era o po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> sobre o povo.<br />

10. 1. Então o ostracismo tinha uma duração <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>z anos fixada por lei para os exílios. Entretanto, os<br />

Aristóteles (Constituição <strong>de</strong> Atenas 25. 1-2), é-nos dito que Efialtes<br />

age por sua conta e risco, o que é compreensível, já que era o lí<strong>de</strong>r<br />

dos populares e <strong>Péricles</strong> apenas um correlegionário. Vi<strong>de</strong> Mossé<br />

& Schnapp-Gourbeillon (1994: 249). Sobre Efialtes, cf. supra<br />

n. 36.<br />

58 A acusação <strong>de</strong> laconismo que aqui se salienta resulta da<br />

forte admiração que Címon nutria por Esparta, o que é bastante<br />

compreensível se tivermos em conta que era um anti<strong>de</strong>mocrata<br />

saudosista da oligarquia aí vigente. Plutarco conta que até os seus<br />

cavalos tinham nomes lace<strong>de</strong>mónios (Címon 16. 1), já para não<br />

mencionar os dos filhos, também com a mesma origem, facto que<br />

o próprio <strong>Péricles</strong> utiliza como arma <strong>de</strong> ataque contra o opositor e<br />

respectivos filhos (Per. 29. 1-2). Por isso, Címon procurava auxiliar<br />

os Espartanos em questões militares, valendo-se da aliança que<br />

ambos os povos haviam celebrado aquando das Guerras Médicas.<br />

Mas Atenas, que se sentia cada vez mais confiante no seu po<strong>de</strong>r, já<br />

não estava muito interessada em manter o pacto – basta lembrar<br />

que Efialtes tentou impedir (embora sem êxito) que Címon partisse<br />

para a Messénia em auxílio dos Lace<strong>de</strong>mónios em 462 a.C. A<br />

insistência <strong>de</strong> Címon acabou por ser a sua própria <strong>de</strong>sgraça: consta<br />

que as tropas sob o seu comando não tiveram o <strong>de</strong>sempenho que os<br />

Espartanos esperavam. Como estes começavam a temer o po<strong>de</strong>rio<br />

<strong>de</strong> Atenas, pensaram que essa “falta <strong>de</strong> êxito” era propositada e<br />

dispensaram as forças atenienses. A autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Címon ficou<br />

<strong>de</strong>sacreditada e, quando ele tentou opor-se à reforma do Areópago,<br />

não foi difícil acusá-lo <strong>de</strong> laconismo e votá-lo ao ostracismo.<br />

59 Címon 10. 1.<br />

74


75<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

Lace<strong>de</strong>mónios entraram com um gran<strong>de</strong> exército em<br />

Tânagra e <strong>de</strong> imediato os Atenienses marcharam contra<br />

eles 60 . Nessa altura Címon regressou do exílio e pegou<br />

em armas para combater com os da sua tribo. Queria,<br />

por meio <strong>de</strong> acções concretas, livrar-se da acusação <strong>de</strong><br />

laconismo ao partilhar o perigo com os concidadãos;<br />

mas os amigos <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> uniram-se e afastaram-no<br />

com o pretexto <strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sterrado 61 . 2. Por<br />

isso, parece que <strong>Péricles</strong> combateu 62 com toda a valentia<br />

naquela batalha e se distinguiu <strong>de</strong> todos, sem poupar a<br />

vida. 3. Todos os amigos <strong>de</strong> Címon, que <strong>Péricles</strong> também<br />

acusava <strong>de</strong> laconismo, sucumbiram. Os Atenienses<br />

foram tomados <strong>de</strong> um profundo arrependimento e<br />

<strong>de</strong> sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Címon: vencidos junto às fronteiras<br />

da Ática, esperavam uma guerra dura na Primavera<br />

seguinte. 4. Apercebendo-se disso, <strong>Péricles</strong> não hesitou<br />

em fazer a vonta<strong>de</strong> à multidão: ele próprio redigiu o<br />

<strong>de</strong>creto que trouxe Címon <strong>de</strong> volta. Este, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<br />

regressado, estabeleceu a paz entre as duas cida<strong>de</strong>s 63 .<br />

60 Na Primavera <strong>de</strong> 457 a.C. (cf. e. g. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 107. 2-108.<br />

1). Os Espartanos tinham partido em socorro da Dórida que<br />

fora atacada pela Fócida. Cumprido o intento, no regresso a casa,<br />

foram atacados em Tânagra pelos Atenienses que suspeitavam das<br />

intenções dos Lace<strong>de</strong>mónios: temiam um ataque dos <strong>de</strong>fensores da<br />

oligarquia incitado pelos anti<strong>de</strong>mocratas <strong>de</strong> Atenas.<br />

61 Segundo Plutarco (Címon 17. 5) o Conselho dos Quinhentos<br />

suspeitou que Címon quisesse confundir os soldados para ajudar<br />

os Lace<strong>de</strong>mónios. E Tucídi<strong>de</strong>s (1. 107. 4) chega a dizer que alguns<br />

oligarcas <strong>de</strong> Atenas seriam aliados <strong>de</strong> Esparta na esperança <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>rrubar a <strong>de</strong>mocracia.<br />

62 A participação <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> nesta batalha talvez seja invenção<br />

<strong>de</strong> Plutarco. Vi<strong>de</strong> Stadter (1989: 123).<br />

63 A data do acordo <strong>de</strong> paz entre Esparta e Atenas tem sido alvo<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> interesse por parte dos estudiosos mo<strong>de</strong>rnos, o que levou


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

É que os Lace<strong>de</strong>mónios tinham tanta simpatia por<br />

ele, quanto aversão por <strong>Péricles</strong> e pelos outros lí<strong>de</strong>res<br />

populares. 5. Alguns dizem que o regresso <strong>de</strong> Címon<br />

não foi <strong>de</strong>cretado por <strong>Péricles</strong> antes <strong>de</strong>, por intermédio<br />

<strong>de</strong> Elpinice, irmã <strong>de</strong> Címon 64 , ter sido celebrado entre<br />

eles um acordo secreto, segundo o qual Címon iria<br />

zarpar com duzentos barcos e comandar o exército no<br />

exterior para conquistar o território do Rei 65 , enquanto<br />

<strong>Péricles</strong> exercia o po<strong>de</strong>r na cida<strong>de</strong>.<br />

6. Parece que já antes Elpinice tinha ganhado a<br />

benevolência <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> para com Címon, quando este<br />

enfrentava uma acusação capital 66 . Nessa altura <strong>Péricles</strong><br />

era um dos acusadores, proposto pelo povo; quando<br />

Elpinice foi ter com ele e suplicou pelo irmão, este disselhe<br />

sorrindo: “Elpinice, estás velha, velha <strong>de</strong>mais para te<br />

meteres em tais sarilhos 67 ”. No entanto, levantou-se uma<br />

à produção <strong>de</strong> muitos estudos sobre o tema. Vi<strong>de</strong> Stadter (1989:<br />

124-125). Quanto a Plutarco, neste passo e em Címon 17. 8 -18.<br />

1, segue a versão <strong>de</strong> Teopompo (FGrHist 115 F 88), segundo a<br />

qual ainda não teriam passado cinco anos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do exílio<br />

<strong>de</strong> Címon, o que faz com que a intervenção <strong>de</strong>ste tenha tido lugar<br />

em 451-450 a.C.<br />

64 Desconhece-se a fonte <strong>de</strong>sta anedota, que po<strong>de</strong> ser uma versão<br />

modificada <strong>de</strong> uma outra da autoria <strong>de</strong> Antístenes. Este autor, entre<br />

outras alusões mordazes que faz à vida sexual <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, afirma que<br />

Elpinice teve <strong>de</strong> pagar o preço do regresso do irmão (Antístenes<br />

589e).<br />

65 Trata-se do rei da Pérsia. De acordo com Plutarco (Címon 18.<br />

1) aquele teria assumido voluntariamente esta tarefa na tentativa <strong>de</strong><br />

evitar a guerra entre os Gregos.<br />

66 Em Címon 14. 3-5, Plutarco, com base em Estesímbroto<br />

(FGrHist 107 F 5), conta que este inci<strong>de</strong>nte teve lugar <strong>de</strong>pois da<br />

conquista <strong>de</strong> Tasos (ca. 463 a.C.). Nesta altura, acusaram-no <strong>de</strong> ter<br />

aceitado subornos para não atacar a Macedónia.<br />

67 Esta anedota tem uma conotação sexual evi<strong>de</strong>nte: Elpinice<br />

76


77<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

única vez para falar, apenas para cumprir a sua obrigação,<br />

e logo se retirou, pelo que foi, <strong>de</strong>ntre os acusadores, o que<br />

menos prejudicou Címon 68 .<br />

7. Perante esta atitu<strong>de</strong>, como po<strong>de</strong> alguém crer em<br />

Idomeneu 69 que acusa <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong> ter morto à traição o<br />

lí<strong>de</strong>r popular Efialtes, que foi seu amigo e colaborador<br />

nas medidas governativas, por inveja e ciúmes da sua<br />

reputação? Na verda<strong>de</strong>, não se sabe don<strong>de</strong> tirou essas<br />

conclusões, como se <strong>de</strong>stilasse bílis contra um homem<br />

que <strong>de</strong>certo não era perfeito, mas que tinha um espírito<br />

nobre e uma alma se<strong>de</strong>nta <strong>de</strong> glória, on<strong>de</strong> uma paixão tão<br />

cruel e selvagem não teria lugar.<br />

8. Efialtes era terrível para os oligarcas e inflexível<br />

nas prestações <strong>de</strong> contas e perseguições contra os que<br />

prejudicam o povo. Os inimigos fizeram então uma<br />

conspiração contra ele e, às mãos <strong>de</strong> Aristódico <strong>de</strong> Tânagra,<br />

mataram-no secretamente, segundo disse Aristóteles 70 .<br />

está velha <strong>de</strong>mais para seduzir <strong>Péricles</strong>.<br />

68 Plutarco preten<strong>de</strong> pôr mais uma vez em evidência a praotes <strong>de</strong><br />

<strong>Péricles</strong>. É provavelmente por essa razão que o relato do episódio<br />

assume contornos totalmente diferentes consoante a personagem<br />

que é objecto <strong>de</strong> biografia: aqui, o Queroneu sugere que <strong>Péricles</strong><br />

<strong>de</strong>u pouca importância à oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prejudicar o adversário;<br />

porém, em Címon 14. 5, afirma que aquele soube tirar partido das<br />

circunstâncias em benefício da sua carreira. Na Vida <strong>de</strong> Címon,<br />

Plutarco parece partilhar da opinião <strong>de</strong> Aristóteles (Constituição <strong>de</strong><br />

Atenas 27. 1), que faz coincidir o acontecimento com a primeira<br />

vitória política <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> antes <strong>de</strong> se tornar lí<strong>de</strong>r dos populares.<br />

69 Idomeneu <strong>de</strong> Lâmpsaco (ca. 325-270 a.C.) foi amigo <strong>de</strong><br />

Epicuro e participou activamente na vida política da sua cida<strong>de</strong>.<br />

Conservam-se fragmentos <strong>de</strong> três obras com carácter biográfico<br />

<strong>de</strong> sua autoria: Dos Socráticos, Dos Demagogos e História da<br />

Samotrácia.<br />

70 Constituição <strong>de</strong> Atenas 25. 4.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

Entretanto, Címon morreu em Chipre durante<br />

uma campanha.<br />

11. 1. Os aristocratas, ao verem <strong>Péricles</strong>, como<br />

aliás já antes 71 , tornar-se o mais po<strong>de</strong>roso dos cidadãos,<br />

<strong>de</strong>sejavam que houvesse na cida<strong>de</strong> alguém que se lhe<br />

opusesse e que lhe abatesse o po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> modo que não<br />

se tornasse por completo numa monarquia. Destacaram<br />

para li<strong>de</strong>rar a oposição Tucídi<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Alópece, um<br />

homem sensato e parente <strong>de</strong> Címon, que, embora<br />

fosse menos dotado para a guerra do que Címon, era<br />

melhor orador e político. Este manteve-se vigilante na<br />

cida<strong>de</strong>, competiu com <strong>Péricles</strong> na tribuna e rapidamente<br />

criou um equilíbrio <strong>de</strong> forças políticas. 2. Não <strong>de</strong>ixou<br />

que a chamada “nata da socieda<strong>de</strong>” se dispersasse e se<br />

misturasse com o povo, como antes, o que fazia com<br />

que a sua dignida<strong>de</strong> fosse ofuscada pela massificação;<br />

tratou <strong>de</strong> marcar as diferenças e <strong>de</strong> os reunir todos num<br />

corpo coeso, <strong>de</strong> modo a pôr um contrapeso no prato da<br />

balança.<br />

3. É que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio, subjacente aos factos,<br />

havia, tal como no ferro, uma fenda que marcava<br />

a divergência entre a preferência <strong>de</strong>mocrática e a<br />

aristocrática; mas a rivalida<strong>de</strong> e a ambição <strong>de</strong>stes dois<br />

tornou a clivagem da cida<strong>de</strong> mais profunda e fez com<br />

que a uma facção se chamasse povo e a outra, oligarcas.<br />

4. Foi nestas circunstâncias que <strong>Péricles</strong> afrouxou<br />

as ré<strong>de</strong>as ao povo mais do que em qualquer outra ocasião<br />

71 Referência à época em que <strong>Péricles</strong> conseguiu o ostracismo<br />

<strong>de</strong> Címon.<br />

78


79<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

e tomou medidas políticas para lhe agradar, imaginando<br />

constantemente na cida<strong>de</strong> um espectáculo para todos<br />

ou um banquete ou uma procissão, e procurando<br />

diverti-la com prazeres não estranhos às musas. Enviava<br />

anualmente para fora sessenta trirremes em que<br />

embarcavam muitos cidadãos assalariados durante oito<br />

meses, que ao mesmo tempo praticavam e aprendiam<br />

a arte naval. 5. Além disso, enviou mil clerucos para<br />

o Quersoneso 72 , quinhentos para Naxos 73 , meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste<br />

número para Andros 74 ; mil para a Trácia com o intuito<br />

<strong>de</strong> fundarem uma colónia com os Bisaltas 75 ; outros para<br />

a Itália na altura do restabelecimento <strong>de</strong> Síbaris 76 , à qual<br />

chamaram Túrios. 6. Tomou estas medidas para aliviar<br />

a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma multidão inactiva que, por causa da<br />

72 O Quersoneso da Trácia, além <strong>de</strong> possuir um solo muito<br />

fértil, era um território estratégico, porque se situava na passagem<br />

da Europa para a Ásia, pelo que o seu domínio permitia controlar a<br />

afluência dos cereais vindos do Mar Negro para Atenas. No séc. VI<br />

a.C., foi proprieda<strong>de</strong> da família <strong>de</strong> Milcía<strong>de</strong>s; no princípio do séc.<br />

V a. C., a região ficou sob o domínio persa até que por volta <strong>de</strong> 450<br />

os Atenienses a integraram na Simaquia <strong>de</strong> Delos e aí fundaram<br />

várias cleruquias.<br />

73 Trata-se da ilha mais rica das Cícla<strong>de</strong>s, famosa pelos seus<br />

vinhos, que foi um dos primeiros membros da Simaquia <strong>de</strong> Delos<br />

e também a primeira a revoltar-se em 460 a.C. Mas, apesar da<br />

tentativa <strong>de</strong> secessão, foi forçada a permanecer como tributária e<br />

passou a cleruquia por volta <strong>de</strong> 450 a.C.<br />

74 Ilha mais setentrional das Cícla<strong>de</strong>s e provavelmente também<br />

um dos primeiros membros da Simaquia <strong>de</strong> Delos. Este é o único<br />

texto que faz referência a esta cleruquia.<br />

75 Povo trácio que habitava a Oeste do rio Estrímon.<br />

76 Antiga cida<strong>de</strong> da Magna Grécia que ficou conhecida pela sua<br />

riqueza e que foi <strong>de</strong>struída por Crotona em 510 a.C. Em 452 a.C.,<br />

alguns cidadãos tentaram reconstruí-la, sem gran<strong>de</strong> sucesso, pois<br />

foram expulsos. Só em 443 a.C., sob a li<strong>de</strong>rança dos Atenienses, é<br />

que, com a nova <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> Túrios, a cida<strong>de</strong> voltou a existir.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

ociosida<strong>de</strong> 77 , se intrometia nas reformas políticas, e para<br />

atenuar as dificulda<strong>de</strong>s do povo 78 ; ao mesmo tempo que<br />

instalava junto aos aliados medo e vigilância para que<br />

não se revoltassem.<br />

12. 1. O que trouxe encanto e beleza perfeitos a<br />

Atenas e originou a maior admiração junto dos outros<br />

povos – e que é o único testemunho a favor da Grécia,<br />

<strong>de</strong> que o seu tão celebrado po<strong>de</strong>r e antiga prosperida<strong>de</strong><br />

não são falácia –, foi a construção dos monumentos.<br />

De todas as medidas políticas <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> 79 foi esta a que<br />

os inimigos mais criticaram e atacaram na assembleia.<br />

Gritavam aos sete ventos que o povo perdia a reputação<br />

e era mal falado, porque transferira <strong>de</strong> Delos para o seu<br />

próprio terreno o tesouro comum dos Gregos 80 ; e que<br />

a justificação mais verosímil que podia contrapor aos<br />

que o acusavam era que, temendo os bárbaros, tirara o<br />

tesouro dali para o guardar num local seguro – <strong>de</strong>sculpa<br />

que <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>itou por terra. 2. E a Grécia consi<strong>de</strong>ra-<br />

77 Com esta afirmação, Plutarco <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> da acusação<br />

que alguns, nomeadamente Platão (Górgias 515e), lhe faziam <strong>de</strong> ser<br />

o responsável pela ociosida<strong>de</strong> do povo.<br />

78 As razões até agora apontadas correspon<strong>de</strong>m ao conteúdo<br />

do <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> fundação <strong>de</strong> Breia (Meiggs- Lewis 1969: 128-129,<br />

<strong>de</strong>creto n.º 49), segundo o qual são propostos como colonos os<br />

tetas e os zeugitas, as classes censitárias mais baixas <strong>de</strong> Atenas.<br />

79 Foi Isócrates (15. 234) que atribuiu as construções do século<br />

V a.C. à responsabilida<strong>de</strong> individual <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, que interpreta<br />

como manifestação da vonta<strong>de</strong> imperialista <strong>de</strong> Atenas (7. 66).<br />

80 Refere-se à transferência do tesouro da Simaquia <strong>de</strong> Delos,<br />

inicialmente <strong>de</strong>positado na ilha que dá nome à coligação, para<br />

Atenas por volta do ano 453 a.C., sob o pretexto <strong>de</strong> que em Delos<br />

estaria mais exposto a um hipotético saque bárbaro. Sobre este<br />

assunto, vi<strong>de</strong> Pritchett (1969: 17-21).<br />

80


81<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

se vítima <strong>de</strong> uma terrível violência e <strong>de</strong> uma tirania<br />

manifesta, ao ver-nos, com o contributo a que se viu<br />

forçada para as necessida<strong>de</strong>s bélicas, recobrir <strong>de</strong> ouro e<br />

embelezar a cida<strong>de</strong>, como a uma mulher vaidosa, que<br />

se cobre <strong>de</strong> pedras preciosas e <strong>de</strong> estátuas e templos que<br />

valem mil talentos 81 .<br />

3. Por seu lado, <strong>Péricles</strong> explicava ao povo que não<br />

<strong>de</strong>via satisfações dos fundos aos aliados, pois combatia<br />

por eles e mantinha os bárbaros afastados, sem que<br />

aqueles contribuíssem com um só cavalo, barco, ou<br />

hoplita 82 que fosse, mas apenas com dinheiro. E esse<br />

não pertence aos que o dão, mas aos que o recebem,<br />

se cumprem aquilo por que o recebem. 4. Se a cida<strong>de</strong><br />

já está convenientemente apetrechada com o que é<br />

necessário para a guerra, é preciso aplicar os exce<strong>de</strong>ntes<br />

nestas obras, que, uma vez concluídas, lhe trarão fama<br />

eterna, e, enquanto <strong>de</strong>correm, ocasionam prosperida<strong>de</strong><br />

imediata: é que vão proporcionar todo o tipo <strong>de</strong> trabalho<br />

e necessida<strong>de</strong>s diversas, que, ao incitar as várias artes e<br />

ao pôr em movimento todas as mãos, darão emprego à<br />

81 Os “adornos” a que o texto faz referência têm um<br />

correspon<strong>de</strong>nte nas obras da cida<strong>de</strong>: as “pedras preciosas” dizem<br />

respeito ao mármore utilizado na construção dos monumentos; as<br />

“estátuas”, entre outras, alu<strong>de</strong>m certamente à <strong>de</strong> Atena Parthenos; os<br />

“templos <strong>de</strong> mil talentos” são uma menção, ainda que hiperbólica,<br />

aos custos da construção dos templos. Isócrates (7. 66), por<br />

exemplo, estimava que se tivesse dispendido uma soma <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong><br />

mil talentos para construí-los. Mas a quantia exacta foi sempre alvo<br />

<strong>de</strong> polémica: Heliodoro (FGrHist 373 F 1) diz que os Propileus<br />

custaram dois mil e doze talentos; Diodoro Sículo (12. 40. 2), por<br />

sua vez, fala em quatro mil.<br />

82 Stadter (1989: 155) afirma que se trata <strong>de</strong> um argumento<br />

falso, já que, por exemplo, em 450 a.C., os aliados auxiliaram<br />

Atenas com barcos em Egina e no Egipto e por terra em Tânagra.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

cida<strong>de</strong> quase inteira, que se auto-embeleza ao mesmo<br />

tempo que se alimenta com os próprios recursos.<br />

5. Com efeito, aos que tinham juventu<strong>de</strong> e vigor,<br />

as expedições proviam <strong>de</strong> recursos oriundos do tesouro<br />

público; quanto à <strong>de</strong>sorganizada multidão operária,<br />

<strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>sejava que não fosse excluída do pagamento, e<br />

muito menos que fosse paga pelo ócio e inactivida<strong>de</strong>. Por<br />

isso, propôs entusiasticamente ao povo gran<strong>de</strong>s projectos<br />

<strong>de</strong> construções e planos <strong>de</strong> obras que implicavam muitas<br />

artes e muito tempo <strong>de</strong> execução, para que a população<br />

que ficava em casa não tivesse menos oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

beneficiar e receber a sua parte do tesouro público do<br />

que as tripulações que navegavam, as guarnições e os<br />

militares.<br />

6. As matérias-primas eram pedra, bronze, marfim,<br />

ouro, ébano e cipreste; os ofícios para as trabalharem<br />

e elaborarem eram os dos carpinteiros, fabricantes <strong>de</strong><br />

mol<strong>de</strong>s, forjadores, pedreiros, douradores, artistas do<br />

ouro e do marfim 83 , pintores, cravejadores, cinzeladores;<br />

já para não falar dos transportadores e fornecedores: por<br />

mar 84 , os comerciantes, marinheiros e pilotos; por terra,<br />

os carreteiros, os donos <strong>de</strong> juntas, os cocheiros; e ainda<br />

os cordoeiros, os tecelães, os curtidores, os empreiteiros<br />

<strong>de</strong> estradas, os mineiros. Cada ofício, como um general o<br />

seu exército particular, tinha uma multidão organizada <strong>de</strong><br />

trabalhadores não especializados, como um instrumento<br />

83 Sobre o trabalho do marfim, que requer um tratamento para<br />

torná-lo manuseável, nos fala Plutarco em Obras Morais 499e.<br />

84 O bronze, o marfim, o ouro, o ébano e os ciprestes chegavam a<br />

Atenas por mar, porque eram materiais que não existiam na Ática.<br />

82


83<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

e corpo <strong>de</strong> serviço 85 . Assim, as necessida<strong>de</strong>s repartiram<br />

e distribuíram o bem-estar pelas pessoas a bem dizer <strong>de</strong><br />

todas as ida<strong>de</strong>s e condições.<br />

13. 1. Os edifícios erguiam-se imponentes<br />

<strong>de</strong> proporções e <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> uma beleza e graça<br />

inimitáveis, pois os artistas esforçavam-se por superar a<br />

prática da sua arte com a perfeição técnica; mas o mais<br />

admirável foi a rapi<strong>de</strong>z da execução. 2. É que se previa<br />

que cada uma <strong>de</strong>ssas obras levaria várias gerações a ser<br />

concluída, mas todas chegaram ao fim durante o apogeu<br />

<strong>de</strong> um único governo.<br />

3. Diz-se, no entanto, que uma vez Zêuxis 86 ,<br />

ao ouvir o pintor Agatarco 87 vangloriar-se alto e bom<br />

som da rapi<strong>de</strong>z e facilida<strong>de</strong> com que pintava as figuras,<br />

replicou: 4. “Pois eu levo muito tempo”. É que a<br />

<strong>de</strong>streza e a rapi<strong>de</strong>z na execução não conferem à obra<br />

soli<strong>de</strong>z estável, nem beleza perfeita; porém o tempo<br />

aplicado <strong>de</strong> antemão na fadiga da execução dá em troca<br />

85 Segundo Ferguson (1904: 5-20), é possível que, para esta<br />

comparação, Plutarco tivesse em mente a medida <strong>de</strong> Adriano que<br />

or<strong>de</strong>nou a organização <strong>de</strong> certos ofícios quais cohortes, como se <strong>de</strong><br />

legiões militares se tratasse (cf. S. Aurélio Victor, Epítome <strong>de</strong> César<br />

14. 5).<br />

86 Pintor <strong>de</strong> Heracleia, no sul da Itália, que iniciou a sua activida<strong>de</strong><br />

em 435 a.C. Mais novo do que Agatarco, ficou conhecido pela<br />

subtileza das sombras que fazia. Há uma anedota que ilustra bem<br />

o realismo das suas obras: umas uvas pintadas, provavelmente num<br />

cenário para um drama satírico, chegaram a ser <strong>de</strong>bicadas pelos<br />

pássaros. Sobre este e os outros artistas referidos neste capítulo,<br />

veja-se Woodford (1982).<br />

87 Pintor <strong>de</strong> Samos que viveu no séc. V a.C. Segundo Plutarco<br />

(Obras Morais 346a), terá sido o inventor da perspectiva, do<br />

sombreado e do uso <strong>de</strong> cores mistas em vez <strong>de</strong> puras


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

a durabilida<strong>de</strong> na preservação do que foi criado. Daí que<br />

as obras <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> sejam mais dignas <strong>de</strong> admiração, já<br />

que foram produzidas em pouco tempo, para durarem<br />

muito.<br />

5. No que respeita à beleza, cada obra se mostrou<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo venerável; quanto ao esplendor, está ainda<br />

agora fresco, como se tivesse sido acabada <strong>de</strong> fazer.<br />

Deste modo, nelas floresce continuamente uma certa<br />

juventu<strong>de</strong>, que conserva um aspecto incorruptível pelo<br />

tempo, como se as obras incorporassem um espírito<br />

sempre jovem e uma alma que não envelhece.<br />

6. Fídias ocupou-se <strong>de</strong> tudo e <strong>de</strong> tudo foi<br />

o supervisor 88 , embora as obras tivessem gran<strong>de</strong>s<br />

arquitectos e artífices. 7. Calícrates 89 e Ictino 90 fizeram<br />

88 É apenas neste passo e em Per. 13. 14 que se atribui a Fídias<br />

um papel tão importante no projecto <strong>de</strong> embelezamento da cida<strong>de</strong>.<br />

No entanto, não é possível i<strong>de</strong>ntificar as fontes que Plutarco utiliza<br />

para fazer tal afirmação. Parece, porém, pouco provável que este<br />

escultor tenha sido tão influente. Este passo é certamente hiperbólico<br />

e provavelmente consequência da famosa história segundo a qual<br />

<strong>Péricles</strong> e Fídias eram amigos íntimos (vi<strong>de</strong> Per. 31. 1).<br />

89 Este arquitecto do século V a.C. trabalhou na construção<br />

das muralhas e fez o projecto do templo <strong>de</strong> Atena Nike, em estilo<br />

iónico. Também lhe é atribuído o terceiro templo <strong>de</strong> Apolo em<br />

Delfos.<br />

90 Segundo Estrabão (9. 395) e Pausânias (8. 41. 9), foi o único<br />

arquitecto do Pártenon. Parece que chegou a escrever um livro sobre<br />

esta obra, on<strong>de</strong> explicava os princípios utilizados na sua construção.<br />

Estrabão (9. 395) afirma que Ictino foi também o autor do telestério<br />

<strong>de</strong> Elêusis, embora Plutarco, seguindo fonte <strong>de</strong>sconhecida, atribua<br />

a sua construção a Corebo e Metágenes apenas. De acordo com<br />

Pausânias (8. 41. 9), foi também o responsável pelo templo <strong>de</strong><br />

Apolo em Figália. Terá sido o primeiro arquitecto a introduzir<br />

elementos iónicos na or<strong>de</strong>m dórica.<br />

84


85<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

o Pártenon hecatômpedo 91 ; em Elêusis 92 , Corebo<br />

começou a construir o telestério – implantou as colunas<br />

no pavimento e uniu-as às arquitraves; <strong>de</strong>pois da sua<br />

morte, Metágenes <strong>de</strong> Xípeto 93 acrescentou os frisos e as<br />

colunas superiores; Xénocles <strong>de</strong> Colarges 94 concluiu a<br />

clarabóia sobre o santuário. A gran<strong>de</strong> muralha, sobre<br />

a qual Sócrates diz ter ouvido pessoalmente <strong>Péricles</strong><br />

propor o projecto, foi Calícrates que a construiu 95 . 8.<br />

Cratino parodia essa obra pela lentidão com que foi<br />

executada (fr. 326 K.-A.): “Há tempos infinitos que<br />

<strong>Péricles</strong>, em palavras, é um vê se te avias, mas em obras<br />

nem se mexe.” 96<br />

91 “De cem pés”. Consta que o Pártenon, templo <strong>de</strong> Atena<br />

Parthenos, divinda<strong>de</strong> que protegia a cida<strong>de</strong>, foi construído entre<br />

447-432 a.C. no local anteriormente ocupado por um templo<br />

rectangular <strong>de</strong> cem pés áticos (29, 57 m.). Para mais informações<br />

sobre este edifício, leia-se Dinsmoor (1950: 159-179).<br />

92 Elêusis era uma cida<strong>de</strong> da Ática situada entre Atenas e Corinto,<br />

on<strong>de</strong> se celebrava o culto <strong>de</strong> mistérios mais famoso da Grécia: os<br />

mistérios <strong>de</strong> Elêusis, <strong>de</strong>dicados a Deméter e Perséfone. Este culto<br />

<strong>de</strong>corria a expensas da pólis e a sala dos mistérios – telestério –<br />

foi alargada e reconstruída por várias vezes: no séc. VI a.C., por<br />

Pisístrato; nos princípios do séc. V a.C. (antes <strong>de</strong> 480 a.C.) e anos<br />

mais tar<strong>de</strong> por <strong>Péricles</strong>.<br />

93 Metágenes apenas é mencionado por Plutarco. Pertencia a<br />

uma trítia urbana e à tribo Cecrópida.<br />

94 Apenas é referido por Plutarco.<br />

95 Esta é a única obra <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> que Platão menciona (Górgias<br />

455e). Trata-se do muro central (cf. Plutarco, Obras Morais 351a)<br />

que unia directamente o Pireu a Atenas e que era paralelo ao muro<br />

que ficava mais a norte e que fora construído entre 445-443 a.C.<br />

96 A <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> construir o muro data da primavera <strong>de</strong> 445<br />

a.C., mas o seu projecto é provavelmente anterior. Para a lentidão<br />

dos trabalhos contribuíram a crise em Atenas no ano <strong>de</strong> 446 a.C.,<br />

as exigências da guerra com Mégara e Eubeia e uma invasão dos<br />

Lace<strong>de</strong>mónios à Ática.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

9. O O<strong>de</strong>ão 97 , que tinha, no interior, muitos<br />

assentos e muitas colunas e cujo tecto era inclinado <strong>de</strong><br />

todos os lados partindo <strong>de</strong> um único vértice, dizem que<br />

foi feito à imagem e semelhança da tenda do Rei Persa,<br />

e a sua construção foi presidida por <strong>Péricles</strong>. 10. Por<br />

isso, Cratino, em Trácias, troça <strong>de</strong>le mais uma vez (fr. 73<br />

K.-A.): “Aí vem o Zeus-<strong>Péricles</strong> cabeça <strong>de</strong> cebola com o<br />

O<strong>de</strong>ão enterrado na tola, agora que a história do caco<br />

foi à viola.” 98<br />

11. Por ambição política, <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>cretou 99<br />

então pela primeira vez que houvesse um concurso<br />

<strong>de</strong> música nas Panateneias 100 e ele próprio, <strong>de</strong>signado<br />

97 Sala <strong>de</strong> música situada na vertente sul da Acrópole e a este<br />

do teatro <strong>de</strong> Dioniso. Este edifício tinha 62,4 m x 68,6 m e era<br />

constituído por <strong>de</strong>z filas <strong>de</strong> nove colunas. Segundo Pausânias<br />

(1. 20. 4), foi incendiado por Sila quando este invadiu Atenas.<br />

Consequentemente, Plutarco conheceu uma reconstrução posterior.<br />

A reprodução do edifício po<strong>de</strong> ver-se em Izenour (1992: 34-35).<br />

98 O ostrakon era o caco on<strong>de</strong> se fazia a votação do ostracismo,<br />

medida instituída possivelmente por Clístenes para punir aqueles<br />

que <strong>de</strong> algum modo agissem contra a polis. Anualmente, na reunião<br />

da Assembleia, cada membro escrevia num “caco” o nome do<br />

indivíduo que enten<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>ver ser afastado. O nome que reunisse<br />

mais votos era exilado por <strong>de</strong>z anos. Este era um meio a que, até<br />

443 a.C., frequentemente se recorria para tentar afastar inimigos<br />

políticos. Ao que parece, <strong>Péricles</strong> terá usado este estratagema,<br />

nomeadamente para afastar Tucídi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Melésias (Per. 14.<br />

3).<br />

99 Tal <strong>de</strong>creto <strong>de</strong>ve ser anterior a 446 a.C., data provável da<br />

conclusão dos trabalhos do O<strong>de</strong>ão.<br />

100 As Panateneias eram um festival que se celebrava anualmente<br />

a 28 <strong>de</strong> Hecatombéon (Julho-Agosto) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos <strong>de</strong> Pisístrato<br />

para comemorar o nascimento <strong>de</strong> Atena. De quatro em quatro anos,<br />

porém, eram celebradas com especial solenida<strong>de</strong>, dando origem<br />

às Gran<strong>de</strong>s Panateneias. Nestas eram <strong>de</strong> especial importância a<br />

procissão, as competições <strong>de</strong> ginástica, as corridas <strong>de</strong> cavalos, os<br />

86


87<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

presi<strong>de</strong>nte do júri, dispôs como convinha que os<br />

concorrentes tocassem flauta, cantassem, ou tangessem<br />

cítara. Assistiu-se, então, como em outros momentos, a<br />

concursos <strong>de</strong> música no O<strong>de</strong>ão.<br />

12. Os Propileus 101 da Acrópole, construídos pelo<br />

arquitecto Mnésicles, foram concluídos num quinquénio.<br />

Um acontecimento fantástico, que teve lugar durante a<br />

sua construção, revelou que a <strong>de</strong>usa Atena não lhe era<br />

indiferente, mas até ajudava a construir e concluir a obra.<br />

13. O mais activo e zeloso dos artífices escorregou e caiu<br />

do cimo do edifício 102 ; ficou num estado <strong>de</strong> tal maneira<br />

lamentável, que foi <strong>de</strong>senganado pelos médicos. <strong>Péricles</strong><br />

estava <strong>de</strong>sanimado, mas a <strong>de</strong>usa apareceu-lhe em sonhos<br />

concursos <strong>de</strong> música e as recitações dos Poemas Homéricos. Sobre<br />

este assunto, vi<strong>de</strong> Parke (1977: 33-50); Rocha Pereira ( 8 1998).<br />

O primeiro vencedor musical que se conhece é Frinis, que<br />

segundo Aristófanes (escólio a Nuvens 969), obteve a vitória em<br />

446 a.C. No entanto, há vestígios arqueológicos que evi<strong>de</strong>nciam<br />

a existência <strong>de</strong> competições musicais nas Panateneias <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o séc.<br />

VI a.C., que provavelmente terão sido interrompidas e mais tar<strong>de</strong><br />

retomadas por <strong>Péricles</strong> quando construiu o O<strong>de</strong>ão. Vi<strong>de</strong> Davison<br />

(1958: 23-42).<br />

101 Porta monumental da Acrópole que foi construída entre<br />

437-6 e 433-2 a.C.: são estes os dois monumentos mais famosos<br />

edificados sob o domínio <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. Os Propileus foram construídos<br />

em mármore pentélico e seguem o estilo iónico no interior, mas o<br />

dórico no exterior. Para mais pormenores sobre este monumento,<br />

leia-se Dinsmoor (1950: 199-205).<br />

102 Plínio (História Natural 22. 43-44) refere-se ao indivíduo em<br />

questão, dizendo que era um escravo muito estimado por <strong>Péricles</strong><br />

que teria caído do cimo <strong>de</strong> um templo. Segundo Plutarco, o artífice<br />

teria sofrido o aci<strong>de</strong>nte enquanto trabalhava nos Propileus. O certo<br />

é que chegaram até nós numerosas variações sobre o sucedido<br />

(uma, por exemplo, conta que o escravo teria caído do cimo <strong>de</strong><br />

uma oliveira), o que mostra que esta anedota se transformou num<br />

topos retórico, como sugere Pérez Jiménez (1996: 449).


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

e indicou-lhe um remédio 103 , com o qual <strong>Péricles</strong> tratou<br />

e curou o homem com toda a rapi<strong>de</strong>z e facilida<strong>de</strong>. Por<br />

isso, erigiu uma estátua em bronze <strong>de</strong> Atena Higia 104 na<br />

Acrópole, junto do altar da <strong>de</strong>usa que, segundo dizem,<br />

já existia antes.<br />

14. Foi Fídias quem executou a estátua <strong>de</strong> ouro<br />

da <strong>de</strong>usa 105 e, como seu autor, tem o nome inscrito<br />

na estela. Quase todos os trabalhos estavam sob a sua<br />

orientação e, como disse, superintendia a todos os<br />

artistas por causa da amiza<strong>de</strong> com <strong>Péricles</strong>. 15. Tal facto<br />

valeu invejas a um e calúnias ao outro, pois constava que<br />

Fídias arranjava, para <strong>Péricles</strong>, encontros com mulheres<br />

livres que vinham <strong>de</strong> visita às obras. Os cómicos <strong>de</strong>itaram<br />

mão à história e espalharam muita sem-vergonhice a seu<br />

respeito, com insinuações contra a mulher <strong>de</strong> Menipo,<br />

seu amigo e subalterno 106 , e contra a criação <strong>de</strong> aves<br />

<strong>de</strong> Pirilampes 107 , também amigo <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, que era<br />

103 Segundo Plínio (História Natural 22. 43-44), tratava-se da<br />

herba urceolaris ou astercum.<br />

104 Epíteto que Atena recebia enquanto protectora da saú<strong>de</strong> (cf.<br />

Pausânias 1. 23. 4).<br />

105 A estátua em questão, com cerca <strong>de</strong> <strong>de</strong>z metros <strong>de</strong> altura, era<br />

constituída por uma estrutura <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira abundantemente recoberta<br />

<strong>de</strong> ouro (no que respeita à figuração das roupas) e <strong>de</strong> marfim<br />

(no rosto, nas armas e nos pés) – daí ser chamada <strong>de</strong> criselefantina.<br />

106 Menipo apenas é referido em Obras Morais 812c, on<strong>de</strong> se diz<br />

que foi um colaborador militar <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />

107 Filho <strong>de</strong> Antifonte, casou-se em segundas núpcias com a<br />

mãe <strong>de</strong> Platão que era sua sobrinha (cf. Platão, Cármi<strong>de</strong>s 158a,<br />

Parméni<strong>de</strong>s 126b). Foi como embaixador à Ásia Menor e à Pérsia,<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> trouxe, em 440 a.C., pavões reais oferecidos pelo Rei. Estes<br />

animais exóticos foram durante cerca <strong>de</strong> trinta anos atracção em<br />

Atenas (Stadter 1989: 179).<br />

88


89<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

acusado <strong>de</strong> se servir dos pavões para subornar as mulheres<br />

com quem <strong>Péricles</strong> andava metido. 16. E porque há<strong>de</strong><br />

alguém surpreen<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> que homens que levam<br />

uma vida libertina sacrifiquem constantemente à inveja<br />

geral, como a uma divinda<strong>de</strong> malfazeja, calúnias contra<br />

quem lhes é superior, quando até Estesímbroto <strong>de</strong> Tasos<br />

se atreveu a publicitar, contra <strong>Péricles</strong>, um sacrilégio<br />

terrível e repugnante com a mulher do próprio filho 108 ?<br />

Assim parece ser penoso e difícil a quem investiga<br />

encontrar a verda<strong>de</strong>: os que vêm <strong>de</strong>pois têm o tempo<br />

entretanto <strong>de</strong>corrido a obscurecer o conhecimento<br />

dos factos; por seu lado a contemporaneida<strong>de</strong> com os<br />

acontecimentos e com as vidas corrompe e distorce a<br />

verda<strong>de</strong> ora por invejas e hostilida<strong>de</strong>s, ora por favores e<br />

adulações.<br />

14. 1. Quando os oradores apoiantes <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s<br />

clamavam contra <strong>Péricles</strong>, acusando-o <strong>de</strong> <strong>de</strong>lapidar o<br />

dinheiro e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdiçar os lucros, este perguntou ao<br />

povo na assembleia se lhe parecia que gastava muito.<br />

Como lhe respon<strong>de</strong>ram que gastava muitíssimo,<br />

retorquiu: “Pois bem, imputem-me a mim as <strong>de</strong>spesas e<br />

não mais a vocês!... mas apenas o meu nome constará das<br />

<strong>de</strong>dicatórias dos monumentos.” 2. Ora quando <strong>Péricles</strong><br />

fez esta afirmação, ou por admirarem a sua gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong><br />

alma, ou por rivalizarem pela glória dos edifícios, foi<br />

aos gritos que o exortaram a gastar do erário público e a<br />

usá-lo sem olhar a poupanças.<br />

3. Por fim, ousou fazer frente a Tucídi<strong>de</strong>s e arriscar<br />

108 Vi<strong>de</strong> Per. 36. 6.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

uma campanha pelo ostracismo, que lhe permitiu<br />

expulsá-lo e <strong>de</strong>rrubar a facção oposta 109 .<br />

15. 1. Foi então, quando esta divergência ficou<br />

inteiramente resolvida e a cida<strong>de</strong> se tornou homogénea<br />

e bem unida, que chamou a si Atenas e os assuntos que<br />

<strong>de</strong>pendiam dos Atenienses: tributos, tropas, trirremes,<br />

ilhas, mar, o potencial <strong>de</strong> que dispunha entre Helenos<br />

e Bárbaros e a hegemonia, garantida pela obediência<br />

dos povos, pelas alianças com reis e pelos acordos com<br />

dinastas. Ele próprio já não era o mesmo na tolerância<br />

para com o povo, nem na complacência para se submeter<br />

ou ce<strong>de</strong>r aos <strong>de</strong>sejos da multidão, que eram como o<br />

vento. Por oposição àquela <strong>de</strong>magogia transigente e por<br />

vezes branda, qual melodia florida e <strong>de</strong>licada, tangeu<br />

as cordas <strong>de</strong> um governo aristocrático e régio que usou<br />

com as melhores intenções <strong>de</strong> modo justo e inflexível.<br />

Na maior parte das vezes, conduziu, pela persuasão e<br />

com sentido pedagógico, o povo que o seguia <strong>de</strong> bom<br />

grado. Mas, quando o via muito <strong>de</strong>scontente, retesavalhe<br />

os freios e obrigava-o a agir <strong>de</strong> acordo com o que era<br />

do interesse público. Parecia realmente um médico 110<br />

109 De um modo geral, aponta-se como data do ostracismo<br />

<strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Melésias, o ano <strong>de</strong> 443 a.C., pois em Per.<br />

16. 3, Plutarco afirma que a supremacia <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> se prolongou<br />

por quinze anos após este acontecimento. No entanto, esta data<br />

não é aceite sem controvérsia: se admitirmos que o último ano<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> no po<strong>de</strong>r é o da sua <strong>de</strong>posição (Outono <strong>de</strong> 430 a.C.),<br />

então o ostracismo <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s foi votado no início <strong>de</strong> 444 a.C.;<br />

se consi<strong>de</strong>rarmos que <strong>Péricles</strong> só abandona o po<strong>de</strong>r com a morte<br />

(novamente reeleito estratego na Primavera <strong>de</strong> 429 a.C.) a data é,<br />

<strong>de</strong> facto, 443 a.C.<br />

110 Também Platão (Fedro 270b-d) comparou o verda<strong>de</strong>iro<br />

90


91<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

que, perante uma doença complicada e longa, conforme<br />

a ocasião, consente prazeres inofensivos, ou prescreve<br />

remédios cáusticos que trazem a cura.<br />

2. Como é natural, paixões <strong>de</strong> todos os tipos<br />

nasceram numa multidão com tamanho po<strong>de</strong>r; <strong>Péricles</strong><br />

era o único capaz <strong>de</strong> controlar convenientemente cada<br />

uma, utilizando sobretudo esperanças e medos, como<br />

um leme, para dominar a arrogância dos Atenienses ou<br />

para animar e consolar o seu <strong>de</strong>salento. Mostrou que<br />

a eloquência é, como diz Platão 111 , a arte <strong>de</strong> conduzir<br />

o espírito e que o seu principal papel é dar acesso aos<br />

sentimentos e às paixões, que são as cordas e sons da<br />

alma e que pe<strong>de</strong>m um <strong>de</strong>dilhar hábil e harmonioso. 3.<br />

A causa do sucesso que granjeou não foi somente a força<br />

do discurso, mas, como diz Tucídi<strong>de</strong>s 112 , a reputação<br />

da sua vida e o crédito <strong>de</strong> que gozava, como alguém<br />

manifestamente incorruptível e inacessível a subornos.<br />

Assim, fez da cida<strong>de</strong> que recebeu forte, a mais forte<br />

e a mais rica, e ele próprio, no que respeita ao po<strong>de</strong>r,<br />

ultrapassou muitos reis e tiranos. Várias <strong>de</strong> entre essas<br />

personalida<strong>de</strong>s o <strong>de</strong>signaram até como tutor dos seus<br />

fihos. Mas não acrescentou uma única dracma ao<br />

património que o pai lhe <strong>de</strong>ixara.<br />

orador a um médico. Segundo o fundador da Aca<strong>de</strong>mia (República<br />

425a-426b), ambos recorrem a pharmaka, kauseis e tomai. Sobre<br />

o uso que Plutarco faz da imagética médica quando se refere ao<br />

homem <strong>de</strong> Estado, leia-se Fuhrmann (1964: 238-240).<br />

111 Fedro 271 c-d.<br />

112 Tucídi<strong>de</strong>s 2. 65. 8.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

16. 1. Todavia, quanto ao po<strong>de</strong>r que <strong>de</strong>tinha,<br />

Tucídi<strong>de</strong>s <strong>de</strong>screve-o com clareza 113 , e mesmo os cómicos<br />

(a<strong>de</strong>sp. 703 K.-A.), com os seus azedumes, o <strong>de</strong>ixam<br />

patente, quando chamam aos seus correligionários a<br />

nova geração dos Pisistrátidas; exortam-no, por outro<br />

lado, a jurar que não se irá transformar num tirano,<br />

como se fosse <strong>de</strong>smesurada e opressiva para o sistema<br />

<strong>de</strong>mocrático a sua supremacia.<br />

2. Telecli<strong>de</strong>s diz que os Atenienses lhe confiaram<br />

(fr. 45 K.-A.) “as taxas das cida<strong>de</strong>s e as próprias cida<strong>de</strong>s,<br />

umas para serem subjugadas, outras libertadas; as<br />

muralhas <strong>de</strong> pedra, umas para construir, outras, pelo<br />

contrário, para <strong>de</strong>itar <strong>de</strong> novo abaixo, as alianças, a<br />

força, o po<strong>de</strong>r, a paz, a riqueza e a felicida<strong>de</strong>”.<br />

3. E esta situação não foi resultado <strong>de</strong> uma<br />

conjuntura, <strong>de</strong> um momento <strong>de</strong> auge ou da popularida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um governo que floria na sua estação, pois, durante<br />

quarenta anos 114 , <strong>Péricles</strong> manteve a primazia entre<br />

homens como Efialtes, Leócrates 115 , Miróni<strong>de</strong>s 116 ,<br />

113 Vi<strong>de</strong> Per. 9. 1.<br />

114 Este número é tradicional e surge também em Cícero,<br />

Do Orador 3. 138. Assim, <strong>Péricles</strong> teria ascendido ao po<strong>de</strong>r por<br />

volta <strong>de</strong> 468 a.C., tendo em conta que a sua morte ocorreu em<br />

429 a.C. Mas os estudiosos mo<strong>de</strong>rnos, <strong>de</strong> um modo geral, não o<br />

aceitam, pois acreditam que <strong>Péricles</strong> apenas se tornou proeminente<br />

após a morte <strong>de</strong> Efialtes, em 461 a.C., um ano após a reforma<br />

do Areópago. Sobre a posição dos mo<strong>de</strong>rnos, veja-se Meinhardt<br />

(1957: 46, n. 132).<br />

115 Filho <strong>de</strong> Estrebo, foi estratego ateniense entre 479-478 a.C.<br />

em Plateias e, em 459-458 a.C., ocupando o mesmo cargo, sitiou<br />

Egina (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 105. 2).<br />

116 Também foi estratego em Plateias e membro <strong>de</strong> uma<br />

embaixada a Esparta, enviada por Aristi<strong>de</strong>s em 480-479 a.C., na<br />

qual participaram ainda Címon e Xantipo (Heródoto, Histórias 9.<br />

92


93<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

Címon, Tólmi<strong>de</strong>s 117 e Tucídi<strong>de</strong>s [o filho <strong>de</strong> Melésias]. E<br />

<strong>de</strong>pois da <strong>de</strong>rrota e do ostracismo <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, durante<br />

não menos <strong>de</strong> quinze anos 118 , manteve um po<strong>de</strong>r único e<br />

contínuo que lhe advinha do cargo anual <strong>de</strong> estratego 119 .<br />

Conservou-se impermeável ao dinheiro, embora não<br />

6. 11; Plutarco, Aristi<strong>de</strong>s 10. 10). Venceu, como estratego, em 458<br />

a.C., os Coríntios em Mégara; em 456 a.C., os Tebanos em Enófita;<br />

dois anos mais tar<strong>de</strong>, comandou uma expedição à Tessália.<br />

117 Democrata radical que ficou conhecido pela expedição naval<br />

à volta do Peloponeso em 456/455 a.C., quando incendiou os<br />

estaleiros espartanos em Gítio. Conquistou as cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Cefalénia,<br />

Naupacto e Cálcis, no Golfo <strong>de</strong> Corinto, e saqueou as terras <strong>de</strong><br />

Sícion (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 108. 5). Li<strong>de</strong>rou cleruquias em Eubeia e Naxos<br />

e morreu em Coroneia como comandante das tropas enviadas em<br />

447 a.C. para pôr fim às sublevações na Beócia.<br />

118 Estes anos incluem-se, obviamente, nos hipotéticos quarenta<br />

em que <strong>Péricles</strong> esteve no po<strong>de</strong>r, com ou sem oposição. Caso<br />

contrário, isto é, se a estes quinze anos somássemos os quarenta,<br />

<strong>Péricles</strong> teria sido figura activa nas Guerras Pérsicas, o que é<br />

impensável se tivermos em conta que ele nasceu em 492 a.C.<br />

119 Os estrategos constituíam um colégio <strong>de</strong> <strong>de</strong>z membros<br />

oriundos da classe censitária mais elevada (pentacosiomedimnos).<br />

Não eram sorteados como a maioria dos magistrados, mas eleitos<br />

anualmente (à razão <strong>de</strong> um por tribo) pela Assembleia, que lhes<br />

indicava as directrizes a seguir e à qual tinham <strong>de</strong> prestar contas.<br />

Os membros <strong>de</strong>sta magistratura – que nos séculos V e IV a.C. foi<br />

uma das principais do regime <strong>de</strong>mocrático – podiam ser reeleitos<br />

sem limite <strong>de</strong> mandatos, como aconteceu com <strong>Péricles</strong> durante<br />

quinze anos consecutivos. Além do po<strong>de</strong>r militar, que era o que<br />

originalmente possuíam, tinham também autorida<strong>de</strong> política e<br />

administrativa, pelo que necessitavam <strong>de</strong> ser bons oradores para<br />

convencerem a Assembleia das suas opções políticas. A partir do<br />

início da Guerra do Peloponeso, porque ficavam muito tempo no<br />

campo <strong>de</strong> batalha e afastados da tribuna, vão-se assumindo cada vez<br />

mais como técnicos militares <strong>de</strong>sligados da política e passam a ser<br />

eleitos, já não um por tribo, mas indiferentemente <strong>de</strong>ntre todos os<br />

cidadãos. Para mais pormenores sobre esta magistratura, leiam-se,<br />

por exemplo, Ribeiro Ferreira (1990: 112-113); Mossé (1992:<br />

457-459).


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

fosse totalmente indiferente a questões <strong>de</strong> negócios.<br />

Assim, para que, por <strong>de</strong>scuido, o património paterno e<br />

legítimo não se esvaísse, e para que não trouxesse ainda<br />

mais afazeres e preocupações a quem já estava muito<br />

ocupado, organizou uma forma <strong>de</strong> administração que<br />

pensava ser a mais fácil e exacta. 4. Vendia por junto toda a<br />

colheita anual e <strong>de</strong>pois comprava na ágora cada produto<br />

à medida que era necessário ao seu dia-a-dia e regime <strong>de</strong><br />

vida. 5. Por isso não agradava aos filhos quando adultos,<br />

nem era um administrador generoso para as mulheres<br />

<strong>de</strong>les: criticavam-lhe essa gestão limitada ao dia-a-dia<br />

e sujeita a restrições, on<strong>de</strong> não havia as superfluida<strong>de</strong>s<br />

habituais numa casa gran<strong>de</strong> e rica, e qualquer <strong>de</strong>spesa<br />

ou lucro se contrabalançavam com peso e medida. 6.<br />

Quem lhe controlava toda esta disciplina era o criado<br />

Evângelo, que ou era dotado, como nenhum outro, <strong>de</strong><br />

capacida<strong>de</strong>s inatas para a administração, ou tinha sido<br />

instruído por <strong>Péricles</strong> para o efeito. 7. Esta conduta<br />

estava em <strong>de</strong>sacordo com a doutrina <strong>de</strong> Anaxágoras, se é<br />

realmente verda<strong>de</strong> que aquele <strong>de</strong>ixou a casa e abandonou<br />

os campos que possuía incultos para pasto das ovelhas,<br />

por inspiração divina e por gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> alma 120 . Mas<br />

120 Anaxágoras era oriundo <strong>de</strong> família rica e influente. No<br />

entanto, teria abdicado da sua herança e das facilida<strong>de</strong>s e sucesso<br />

político, que po<strong>de</strong>ria alcançar se daquela dispusesse, para se<br />

entregar à ciência e à filosofia (cf. Platão, Hípias Maior 281c, 283a;<br />

Diógenes Laércio 2. 6-7). Para ele a vida só tinha valor se servisse<br />

para uma melhor compreensão do cosmos a que se pertence; tudo<br />

o resto é supérfluo: o apego aos bens materiais e à felicida<strong>de</strong> terrena<br />

não vale a pena, pois todo o homem é mortal e, mais cedo ou<br />

mais tar<strong>de</strong>, todos têm o mesmo <strong>de</strong>stino (vi<strong>de</strong> Guthrie 1969: 266<br />

sq.). <strong>Péricles</strong>, embora admirasse Anaxágoras como ninguém (Per. 5.<br />

1), tinha uma visão mais pragmática da vida e nisso não seguia os<br />

94


95<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

penso que a vida <strong>de</strong> um filósofo contemplativo e a <strong>de</strong> um<br />

político não são a mesma coisa: o primeiro estimula a<br />

inteligência para o Bem sem precisão <strong>de</strong> instrumentos ou<br />

materiais externos; porém, para o político que mistura a<br />

excelência com as carências humanas, há circunstâncias<br />

em que a riqueza não só é uma necessida<strong>de</strong>, mas mesmo<br />

uma virtu<strong>de</strong>, como era o caso <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> que socorria<br />

muitos pobres 121 . 8. Na verda<strong>de</strong>, contam que o próprio<br />

Anaxágoras, já velho, sentindo-se abandonado por<br />

<strong>Péricles</strong> que estava sempre ocupado, se <strong>de</strong>itou e cobriu<br />

para morrer <strong>de</strong> fome. Quando o sucedido chegou aos<br />

ouvidos <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, este, aturdido, foi logo a correr para<br />

junto do amigo e dirigiu-lhe todo o tipo <strong>de</strong> súplicas, e<br />

não era por aquele que se lamentava, mas por si próprio,<br />

se per<strong>de</strong>sse tal conselheiro dos assuntos <strong>de</strong> Estado. 9.<br />

Anaxágoras <strong>de</strong>scobriu-se e disse-lhe: “<strong>Péricles</strong>, também<br />

os que necessitam <strong>de</strong> uma lâmpada lhe <strong>de</strong>itam azeite.”<br />

17. 1. Quando os Lace<strong>de</strong>mónios começaram<br />

a ficar incomodados com a ascensão dos Atenienses,<br />

<strong>Péricles</strong>, para exaltar o povo a orgulhar-se ainda mais e<br />

a julgar-se digno <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empresas, promulgou um<br />

<strong>de</strong>creto 122 , <strong>de</strong>terminando que todos os Gregos, habitantes<br />

ensinamentos do seu mestre, como no-lo diz Plutarco neste passo.<br />

121 É costume <strong>de</strong> Plutarco atribuir a virtu<strong>de</strong> da carida<strong>de</strong> às suas<br />

personagens (cf. Sólon. 2. 1), bem como reflectir sobre o uso que<br />

um político <strong>de</strong>ve fazer do dinheiro (cf. Publícola 1. 2, Fab. 7. 7, 8,<br />

Per.-Fab. 3. 5). Mas não consta que <strong>Péricles</strong> fosse possuidor <strong>de</strong> uma<br />

generosida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sinteressada, no que contrasta com Címon (10) e<br />

Nícias (3. 1).<br />

122 Este é o único testemunho <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, <strong>de</strong><br />

autenticida<strong>de</strong>, data e natureza controversas. A indicação temporal


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

<strong>de</strong> qualquer parte da Europa ou da Ásia, <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong><br />

pequena ou gran<strong>de</strong> 123 , enviassem embaixadores a Atenas<br />

para uma reunião: para falarem sobre os templos<br />

gregos 124 , que os bárbaros tinham incendiado; sobre os<br />

sacrifícios que os Gregos prometeram, quando lutaram<br />

contra os bárbaros, e que ainda <strong>de</strong>vem aos <strong>de</strong>uses; e<br />

também sobre o mar, para que todos naveguem em<br />

segurança e mantenham a paz 125 .<br />

2. Para o efeito, foram enviados vinte homens com<br />

mais <strong>de</strong> cinquenta anos 126 , dos quais cinco para convidar<br />

que Plutarco avança é muito vaga – “Quando os Lace<strong>de</strong>mónios<br />

começaram a ficar incomodados com o ascensão dos Atenienses” –,<br />

o que sugere que também ele não <strong>de</strong>ve ter tido acesso a informação<br />

mais precisa ou, pelo menos, não sentiu necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fornecer<br />

esse elemento. Assim, <strong>de</strong> acordo com o que o Queroneu nos diz,<br />

este <strong>de</strong>creto po<strong>de</strong> datar <strong>de</strong> qualquer altura entre 460 a.C. e o início<br />

da Guerra do Peloponeso. Tendo em conta que não faria sentido<br />

<strong>de</strong>bater a <strong>de</strong>struição dos templos levada a cabo pelos Persas após a<br />

reconstrução do Pártenon (447 a.C.), po<strong>de</strong>mos indicar essa data<br />

como terminus ante quem. Para terminus post quem, é possível<br />

sugerir que coincida com o período da Paz <strong>de</strong> Cálias, o que faz<br />

com que a data oscile entre 460 e 449 a.C. Sobre este <strong>de</strong>creto, vi<strong>de</strong><br />

Macdonald (1982: 120-123).<br />

123 Excluindo os Gregos da Itália e da Sicília.<br />

124 Além dos templos <strong>de</strong> Atenas, também foram incendiados<br />

os da Fócida, <strong>de</strong> Téspias e Plateias (Heródoto, Histórias 8. 32-33,<br />

50, 53).<br />

125 Aceita-se <strong>de</strong> um modo geral que esta menção diga respeito à<br />

Paz <strong>de</strong> Cálias. No entanto, po<strong>de</strong> perfeitamente ser uma referência a<br />

outro tratado, nomeadamente o <strong>de</strong> cinco anos datado <strong>de</strong> 451 a.C.<br />

(Tucídi<strong>de</strong>s 1. 112. 1).<br />

126 Os <strong>de</strong>cretos atenienses que se conservam fixam a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

cinquenta anos como mínima para que se possa <strong>de</strong>sempenhar<br />

o cargo <strong>de</strong> embaixador (vi<strong>de</strong> Todd 1948: inscr. 61. 1. 17 sq.).<br />

Este <strong>de</strong>creto não foi citado por nenhum outro autor cujos textos<br />

chegaram até nós, pelo que esta referência <strong>de</strong> Plutarco tem dado<br />

azo a diversas discussões sobre a sua data e veracida<strong>de</strong>. A frase em<br />

96


97<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

os Iónios, os Dórios da Ásia, e os ilhéus até Lesbos e<br />

Ro<strong>de</strong>s; cinco percorreram locais do Helesponto e da<br />

Trácia até Bizâncio; outros cinco foram para a Beócia,<br />

para a Fócida e para o Peloponeso e daí se afastaram,<br />

através da Lócrida, para o território vizinho até à<br />

Acarnânia e à Ambrácia. 3. Os restantes foram por Eubeia<br />

para Eta, para o golfo Malíaco e para a Ftia, para a Acaia<br />

e para a Tessália, exortando-os a irem tomar parte na<br />

reunião sobre a paz e as activida<strong>de</strong>s conjuntas da Grécia.<br />

4. Mas, nada foi feito nem as cida<strong>de</strong>s se reuniram,<br />

porque os Lace<strong>de</strong>mónios se opuseram secretamente,<br />

segundo se diz, já que o projecto foi recusado primeiro<br />

no Peloponeso. Se conto este episódio é para mostrar a<br />

sua nobreza <strong>de</strong> espírito e gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> alma.<br />

18. 1. Nas questões militares tem boa reputação<br />

sobretudo pela prudência, pois não se aventurava<br />

voluntariamente se a guerra oferecesse um risco muito<br />

incerto, nem invejava ou imitava os gran<strong>de</strong>s generais que<br />

se expunham ao perigo, <strong>de</strong>le tiravam gran<strong>de</strong>s sucessos<br />

e colhiam muita admiração. Dizia muitas vezes aos<br />

cidadãos que, no que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>le, permaneceriam<br />

para sempre imortais.<br />

2. Ao ver que Tólmi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Tolmeu, graças<br />

ao êxito anterior e à honra com que era distinguido<br />

causa e as que se lhe seguem são o maior indício <strong>de</strong> que se trata <strong>de</strong><br />

um <strong>de</strong>creto verídico, pois reflecte o estilo formular dos <strong>de</strong>cretos do<br />

séc. V a.C. Além disso, se o consi<strong>de</strong>rarmos autêntico, aceitamos,<br />

com Plutarco, que se trata <strong>de</strong> uma importante indicação acerca da<br />

política externa <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, que queria ultrapassar a proeminência<br />

<strong>de</strong> Esparta relativamente aos aliados.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

pelos seus feitos militares, se preparava para atacar a<br />

Beócia num momento pouco oportuno e persuadira<br />

os mais valentes e ambiciosos jovens em ida<strong>de</strong> militar<br />

a proporem-se como voluntários para a luta – eram mil<br />

além das outras tropas –, tentou impedi-lo e dissuadilo<br />

na assembleia, proferindo aquela frase que ainda é<br />

lembrada: se não acreditava em <strong>Péricles</strong>, não perdia por<br />

dar tempo ao tempo, que é o conselheiro mais avisado.<br />

3. Na ocasião essa frase foi pouco apreciada, mas alguns<br />

dias <strong>de</strong>pois, quando foi anunciado que o próprio<br />

Tólmi<strong>de</strong>s tinha morrido, vencido numa batalha junto<br />

<strong>de</strong> Coroneia, e que com ele tinham perecido muitos<br />

nobres 127 , o facto trouxe a <strong>Péricles</strong> gran<strong>de</strong> reputação e<br />

simpatia como homem pru<strong>de</strong>nte e patriota.<br />

19. 1. Das suas expedições, a do Quersoneso 128<br />

foi a mais apreciada, pois trouxe a salvação para os<br />

Gregos que ali habitam. Não só fortaleceu as cida<strong>de</strong>s<br />

com homens vigorosos ao enviar mil colonos atenienses,<br />

mas também cintou o istmo com fortalezas e muralhas<br />

<strong>de</strong> mar a mar, impediu as incursões dos Trácios<br />

espalhados ao redor do Quersoneso e pôs fim a uma<br />

guerra contínua e penosa, pela qual a região esteve<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre oprimida, em contacto com vizinhos<br />

bárbaros e infiltrada <strong>de</strong> tropas piratas nas fronteiras e no<br />

interior. 2. Foi admirado e ficou mesmo célebre entre os<br />

127 Dentre os quais Clínias, o pai <strong>de</strong> Alcibía<strong>de</strong>s (Plutarco,<br />

Alcibía<strong>de</strong>s 1. 1; Platão. Alcibía<strong>de</strong>s 112c; Isócrates 16. 28).<br />

128 A campanha, que libertou a região do flagelo dos piratas,<br />

bem como a cleruquia, <strong>de</strong>ve datar <strong>de</strong> 447 a.C., segundo parece<br />

indicar uma inscrição (IG I 2 943).<br />

98


99<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

estrangeiros por ter circum-navegado o Peloponeso 129 ,<br />

fazendo-se ao mar a partir <strong>de</strong> Pegas 130 em Mégara, com<br />

cem trirremes 131 . Não só <strong>de</strong>vastou gran<strong>de</strong> parte da costa,<br />

como antes Tólmi<strong>de</strong>s 132 , mas avançou para o interior<br />

com a infantaria que seguia nos barcos. Fez recuar para<br />

<strong>de</strong>ntro das muralhas todos os que temiam os seus ataques;<br />

em Nemeia 133 , <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter posto em fuga, pela força,<br />

os Siciónios que lhe ofereceram resistência e com ele<br />

combateram, erigiu um monumento comemorativo. 3.<br />

Depois <strong>de</strong> receber da Acaia, que era sua aliada, soldados<br />

para as trirremes, avançou com a frota para o continente<br />

<strong>de</strong>fronte; costeando o Aqueloo 134 , assolou a Acarnânia e<br />

aprisionou os Enéadas <strong>de</strong>ntro das muralhas. E <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> lhes <strong>de</strong>vastar e saquear o território, retornou a casa,<br />

mostrando-se terrível aos inimigos, pru<strong>de</strong>nte e eficaz<br />

aos concidadãos. Nenhum obstáculo, nem mesmo<br />

aci<strong>de</strong>ntal, surpreen<strong>de</strong>u os seus soldados.<br />

129 Ao contrário <strong>de</strong> Tólmi<strong>de</strong>s que realmente <strong>de</strong>u a volta ao<br />

Peloponeso, <strong>Péricles</strong> atravessou o golfo <strong>de</strong> Corinto, partindo <strong>de</strong><br />

Pegas e regressando ao mesmo porto. Esta expedição também é<br />

mencionada por Tucídi<strong>de</strong>s (1. 111. 2-3).<br />

130 Este porto no golfo <strong>de</strong> Corinto foi uma das principais<br />

conquistas dos Atenienses após a aliança com Mégara no princípio<br />

da década <strong>de</strong> 450 a.C. (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 103. 4), porque dava acesso<br />

directo ao golfo. Tal acesso era importante, pois se <strong>de</strong>le não<br />

pu<strong>de</strong>ssem usufruir, teriam <strong>de</strong> dar a volta ao Peloponeso.<br />

131 Segundo Diodoro Sículo (11. 85. 1), eram apenas cinquenta.<br />

132 Em 456-455 a.C. segundo Tucídi<strong>de</strong>s (1. 108. 5) e Diodoro<br />

Sículo (11. 84).<br />

133 Vale no território <strong>de</strong> Cleonas, on<strong>de</strong> se situava o santuário <strong>de</strong><br />

Zeus Nemeu e on<strong>de</strong> se realizavam os jogos do mesmo nome.<br />

134 Rio mais largo da Grécia que atravessa o Noroeste da Etólia,<br />

fazendo fronteira entre esta região e a Acarnânia, na costa oci<strong>de</strong>ntal<br />

do continente.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

20. 1. Navegou para o Ponto 135 com uma gran<strong>de</strong><br />

frota, magnificamente equipada. Aí conce<strong>de</strong>u às cida<strong>de</strong>s<br />

gregas o que pediam e tratou-as com humanida<strong>de</strong>;<br />

perante os povos bárbaros das redon<strong>de</strong>zas e os seus reis<br />

e príncipes, exibiu a gran<strong>de</strong>za do seu po<strong>de</strong>r, a segurança<br />

e a audácia com que podiam, se <strong>de</strong>sejassem, navegar e<br />

dominar todo o mar. Deixou aos Sinópios 136 treze naus<br />

e uma força <strong>de</strong> infantaria sob o comando <strong>de</strong> Lâmaco 137<br />

para lutar contra o tirano Timesilau 138 . 2. Expulso este<br />

e os seus partidários, <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>cretou que seiscentos<br />

135 Esta expedição, que apenas é mencionada por Plutarco, terá<br />

ocorrido entre a Guerra <strong>de</strong> Samos e a do Peloponeso e, segundo<br />

Stadter (1989: 217) terá sido uma tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração<br />

<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r da parte <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> aquando da ascensão <strong>de</strong> uma nova<br />

dinastia no Bósforo (cf. Diodoro Sículo 12. 31. 1).<br />

136 Sinope foi um importante empório do centro da costa<br />

meridional do Mar Negro, fundado por Mileto no séc. VII a.C.<br />

(Heródoto faz-lhe referência, por exemplo em 2. 34. 2; 4. 12.1).<br />

Em 437 a.C., <strong>Péricles</strong> pôs fim à tirania que aí existia e fundou uma<br />

cleruquia.<br />

137 Trata-se, provavelmente, do filho <strong>de</strong> Xenófanes e do mesmo<br />

indivíduo que, como general, per<strong>de</strong>u <strong>de</strong>z navios em 424 a.C. por<br />

ocasião da recolha dos tributos na região do Ponto (Tucídi<strong>de</strong>s<br />

4. 75. 1-2). Também participou na expedição à Sicília em 415-<br />

414 a.C., já com cerca <strong>de</strong> cinquenta anos e muita experiência<br />

militar acumulada. Quando teve lugar a campanha a que Plutarco<br />

se refere neste passo, <strong>de</strong>veria ser co-general com <strong>Péricles</strong>. Foi<br />

ridicularizado por Aristófanes em Acarnenses e Paz pela posição<br />

belicista assumida durante a Guerra do Peloponeso, e elogiado pelo<br />

mesmo comediógrafo por causa da sua morte heróica em Siracusa<br />

(Rãs1039).<br />

138 Na década <strong>de</strong> 1980, foi encontrada em Ólbia uma inscrição<br />

on<strong>de</strong> figura o nome <strong>de</strong> Timesilau. Por isso se pensa que o tirano e o<br />

seu irmão se refugiaram em Ólbia – cida<strong>de</strong> na costa do Mar Negro,<br />

habitada pelos Olbiopolitai (Heródoto 4. 18) –, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terem<br />

abandonado Sinope.<br />

100


101<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

Atenienses voluntários navegassem para Sinope e<br />

coabitassem com os Sinópios, partilhando as casas e as<br />

terras que o tirano e seus sequazes antes possuíam.<br />

3. Mas noutros aspectos, não ce<strong>de</strong>u aos impulsos<br />

dos cidadãos, nem permitiu que, estimulados pelo<br />

po<strong>de</strong>rio e êxito conseguidos, atacassem <strong>de</strong> novo o<br />

Egipto 139 e perturbassem as zonas costeiras do império<br />

persa. 4. Então já a muitos dominava aquela obsessão<br />

infeliz e <strong>de</strong>sgraçada da Sicília 140 , que <strong>de</strong>pois Alcibía<strong>de</strong>s<br />

139 A primeira campanha terá sido organizada em 460-459 a.C.<br />

para ajudar Inaro, rei da Líbia, que pretendia criar no Egipto um<br />

reino in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do persa. Depois <strong>de</strong> conquistar Mareia (região<br />

próxima da futura Alexandria), sentiu dificulda<strong>de</strong>s em controlar o<br />

resto do território e, consequentemente, pediu ajuda aos Atenienses.<br />

Os aliados, escolhidos sobretudo pelo seu po<strong>de</strong>rio naval, não<br />

hesitaram, já que era uma óptima oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mostrar à Pérsia<br />

que era preferível ter Atenas do seu lado a tê-la como inimiga. Na<br />

sequência do pedido <strong>de</strong> Inaro, partiu em direcção ao Egipto parte<br />

do contingente da Simaquia <strong>de</strong> Delos que então se encontrava<br />

em Chipre. Nos primeiros tempos, os Atenienses conseguiram<br />

correspon<strong>de</strong>r ao objectivo (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 104). Mas ao fim <strong>de</strong> seis<br />

anos, foram <strong>de</strong>rrotados por Megabizo e per<strong>de</strong>ram duzentos navios<br />

junto à ilha <strong>de</strong> Prosopítis (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 109-110).<br />

140 O interesse <strong>de</strong> Atenas pela Sicília e pelo Sul <strong>de</strong> Itália <strong>de</strong><br />

um modo geral era muito anterior à primeira expedição que<br />

empreen<strong>de</strong>ram àquela zona entre 427-424 a.C. (Tucídi<strong>de</strong>s 3. 86,<br />

88, 90, 99, 103, 4. 1-2, 25, 48. 6, 65). Na verda<strong>de</strong>, o crescente<br />

po<strong>de</strong>rio <strong>de</strong> Siracusa constituía uma ameaça para o império<br />

ateniense, já que esta era aliada da inimiga Corinto. <strong>Péricles</strong>, porém,<br />

não julgava necessária uma intervenção <strong>de</strong> peso contra esse perigo,<br />

nem oportuno alargar o domínio ateniense para Oeste, numa<br />

altura em que alguns aliados começavam a manifestar interesse pelo<br />

abandono da Simaquia <strong>de</strong> Delos. Consequentemente, como diz<br />

Plutarco, o estadista fez o possível por evitar o avanço das propostas<br />

expansionistas e limitou-se a fomentar uma aliança com Régio e<br />

Leontinos, <strong>de</strong> modo a terem um observador atento dos movimentos<br />

<strong>de</strong> Siracusa. Porém, em 427 a.C., já <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, os<br />

Atenienses acabaram por se envolver com os problemas da Sicília,


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

inflamou. Outros já sonhavam com a Etrúria e Cartago,<br />

não sem fundamento, dada a gran<strong>de</strong>za da hegemonia<br />

presente e o curso favorável dos acontecimentos.<br />

21. 1. Mas <strong>Péricles</strong> continha esse ímpeto e sustinha<br />

esse afã. Aplicou a maior parte da força existente para<br />

guardar e assegurar o que já possuíam, pois pensava<br />

que era <strong>de</strong> si uma gran<strong>de</strong> tarefa manter afastados os<br />

Lace<strong>de</strong>mónios; a este adversário opunha-se totalmente,<br />

como mostrara muitas outras vezes, sobretudo na forma<br />

como agira na Guerra Sagrada 141 . 2. Os Lace<strong>de</strong>mónios<br />

visto que os aliados <strong>de</strong> Atenas combatiam contra Siracusa e estavam<br />

a passar por sérias dificulda<strong>de</strong>s. O apoio seguiu sob a forma <strong>de</strong> vinte<br />

trirremes comandadas por Laques e Caroéa<strong>de</strong>s que regressaram em<br />

424 a.C. A segunda expedição à Sicília ocorreu em 415 a.C., mais<br />

uma vez para socorrer os aliados. Desta feita, os habitantes <strong>de</strong> Segesta<br />

e uma facção <strong>de</strong> Leontinos buscaram o auxílio <strong>de</strong> Atenas para a<br />

guerra que travavam com Selinunte, cida<strong>de</strong> apoiada por Siracusa.<br />

Embora houvesse a obrigação <strong>de</strong> não abandonar um aliado que se<br />

encontrava em dificulda<strong>de</strong>s, o certo é que nem todos se mostravam<br />

a favor <strong>de</strong>sta expedição que viria a ser o <strong>de</strong>sastre que faltava para o<br />

princípio do fim do império ateniense. Nícias representava aqueles<br />

que não viam o aparecimento <strong>de</strong> uma nova frente <strong>de</strong> batalha com<br />

bons olhos: segundo Tucídi<strong>de</strong>s (6. 9 sq.), aquele general <strong>de</strong>sconfiava<br />

das pretensões expansionistas que estariam por trás do nobre<br />

propósito <strong>de</strong> socorrer quem se encontrava em dificulda<strong>de</strong>s, por isso<br />

<strong>de</strong>fendia que não precisavam <strong>de</strong> mais inimigos (pois já tinham que<br />

fazer frente ao inimigo espartano) e que <strong>de</strong>viam conservar o que<br />

já possuíam e <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado ambições <strong>de</strong>snecessárias. Alcibía<strong>de</strong>s<br />

era a favor: <strong>de</strong>fendia acerrimamente o apoio <strong>de</strong>vido aos aliados e<br />

menosprezava quer o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Siracusa, quer o dos Espartanos;<br />

o que o movia era o sonho <strong>de</strong>, conquistada a Sicília, verem o seu<br />

po<strong>de</strong>r reforçado e assim terem meios para subjugar toda a Grécia.<br />

Sobre este tema, vi<strong>de</strong> Kagan (1981: 157 sq.).<br />

141 A guerra em questão recebeu este nome pois a sua causa foi<br />

o controlo do santuário <strong>de</strong> Delfos e do seu tesouro (Tucídi<strong>de</strong>s 1.<br />

112. 5), disputado por Fócios (aliados <strong>de</strong> Atenas) e Delfos. Sobre<br />

102


103<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

fizeram uma expedição militar a Delfos e restituíram ao<br />

seu povo o templo, que estava na posse dos Fócios. Mal se<br />

retiraram, <strong>Péricles</strong> interveio com o exército e reconduziu<br />

os Fócios. 3. Como os Lace<strong>de</strong>mónios tinham gravado o<br />

direito <strong>de</strong> consultar primeiro o oráculo 142 , que os Delfos<br />

lhes tinham concedido, na frente do lobo <strong>de</strong> bronze 143 ,<br />

<strong>Péricles</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> assegurar esse direito aos Atenienses,<br />

gravou-o no mesmo lobo, mas do lado direito 144 .<br />

este acontecimento bélico, há versões distintas da responsabilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Filócoro (FGrHist 328 F 34), Teopompo (FGrHist 115 F 156),<br />

Eratóstenes (FGrHist 241 F 38), mas Plutarco parece ter seguido a<br />

<strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, segundo o qual os Atenienses reagiram imediatamente<br />

a seguir à intervenção dos Lace<strong>de</strong>mónios (em 448 a.C.). O facto<br />

<strong>de</strong> os Atenienses apenas avançarem após a retirada dos Espartanos<br />

evitou o recontro que seria uma violação da paz firmada entre as<br />

duas cida<strong>de</strong>s.<br />

A Guerra Sagrada em causa foi a segunda; a primeira ocorreu<br />

por volta <strong>de</strong> 590 a.C. e as duas últimas já no séc. IV a.C.,<br />

respectivamente entre 356 e 346 a.C. e entre 340-338 a.C.<br />

142 Devido à importância dos oráculos <strong>de</strong> Delfos, o santuário<br />

<strong>de</strong> Apolo era muito concorrido. De todos os pontos do mundo<br />

antigo chegavam peregrinos para consultar os <strong>de</strong>sígnios divinos.<br />

Com tamanha afluência, a espera era naturalmente longa e difícil,<br />

até porque o clima da região é bastante rigoroso, quer no Inverno,<br />

quer no Verão. A or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> atendimento era <strong>de</strong>cidida por sorteio.<br />

No entanto, <strong>de</strong>terminados povos gozaram do direito <strong>de</strong> consultar<br />

o oráculo em primeiro lugar – a promanteia. Essa regalia era muito<br />

<strong>de</strong>sejada e acabava por traduzir a importância da polis que a possuía<br />

– daí a rivalida<strong>de</strong> entre Atenas e Esparta pela <strong>de</strong>tenção <strong>de</strong>sse<br />

privilégio que era concedido pelo povo responsável pelo santuário.<br />

143 O testemunho <strong>de</strong> Pausânias (10. 14. 7) indica-nos que o<br />

lobo ficava junto do altar-mor e que tinha sido oferecido pelos<br />

Delfos. Enquanto sacerdote do templo <strong>de</strong> Delfos e curioso <strong>de</strong> tudo<br />

o que lhe dizia respeito, é natural que o próprio Plutarco tenha lido<br />

as inscrições em questão.<br />

144 O direito <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong> na consulta do oráculo é também<br />

mencionado por Filócoro (FGrHist 328 F 34), que po<strong>de</strong>rá ter sido<br />

a fonte <strong>de</strong> Plutarco.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

22. 1. Que com razão canalizava as forças<br />

dos Atenienses para a Grécia, os acontecimentos<br />

testemunharam-no. Primeiro sublevaram-se os Eubeus,<br />

contra os quais marchou com as tropas 145 . Imediatamente<br />

<strong>de</strong>pois, foi anunciado que os Megarenses tinham<br />

<strong>de</strong>clarado guerra e que um exército <strong>de</strong> Peloponésios,<br />

conduzido pelo rei Plistóanax 146 <strong>de</strong> Esparta, assolava as<br />

fronteiras da Ática.<br />

2. <strong>Péricles</strong> regressou com prontidão <strong>de</strong> Eubeia<br />

para a guerra na Ática, mas não se atreveu a combater<br />

contra tantos e valorosos hoplitas que o provocavam.<br />

Ao aperceber-se <strong>de</strong> que Plistóanax era extremamente<br />

jovem e <strong>de</strong> que, <strong>de</strong>ntre os conselheiros, seguia sobretudo<br />

Cleândridas 147 , que os éforos enviaram com ele como<br />

guarda e assessor, por causa da sua juventu<strong>de</strong>, <strong>Péricles</strong><br />

abordou-o em segredo; rapidamente o convenceu<br />

145 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 114. 1. Esta é a segunda incursão <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />

contra Eubeia. A primeira teve lugar pouco <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong><br />

Tólmi<strong>de</strong>s em combate, altura em que os Eubeus se rebelaram contra<br />

Atenas. A insurreição não foi logo dominada, porque, entretanto,<br />

surgiu uma nova frente <strong>de</strong> batalha, já que também Mégara causava<br />

problemas e estava iminente uma invasão da Ática li<strong>de</strong>rada pelos<br />

Peloponésios (Per. 22. 1). Só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> resolvidos estes problemas é<br />

que <strong>Péricles</strong> se pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>dicar à questão <strong>de</strong> Eubeia.<br />

146 Filho <strong>de</strong> Pausânias que reinou entre 458 e 408 a.C. (cf.<br />

Diodoro Sículo 11. 88. 3). Por esta altura <strong>de</strong>via ser muito jovem –<br />

com cerca <strong>de</strong> vinte e cinco ou trinta anos – já que Plutarco salienta<br />

a sua juventu<strong>de</strong>. Depois do fracasso <strong>de</strong>sta expedição, refugiou-se<br />

na Arcádia (Per. 22. 3). Só regressou a Esparta em 427 a.C., após a<br />

morte <strong>de</strong> Arquidamo e influenciado por um oráculo pítico.<br />

147 Era provavelmente um éforo (cf. Suda, s. v. ἔφοροι) que<br />

lutara com Terina (Polieno 2. 10. 1) e Tégea (id. 2. 10. 3). Após o<br />

<strong>de</strong>sterro a que Plutarco alu<strong>de</strong> em Per. 22. 3, participou na fundação<br />

<strong>de</strong> Túrios (id. 2. 10).<br />

104


105<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

a <strong>de</strong>ixar-se subornar e a retirar os Peloponésios da<br />

Ática 148 .<br />

3. Quando o exército bateu em retirada e se<br />

dispersou pelas diversas cida<strong>de</strong>s, os Lace<strong>de</strong>mónios,<br />

indignados, impuseram uma multa em dinheiro ao<br />

rei 149 . Como ele não tinha a quantia suficiente para<br />

pagar, <strong>de</strong>ixou a Lace<strong>de</strong>mónia 150 . Quanto a Cleândridas,<br />

que se tinha afastado, foi con<strong>de</strong>nado à morte 151 . 4. Este<br />

era pai daquele Gilipo que <strong>de</strong>rrotou os Atenienses na<br />

Sicília 152 . Parece que a natureza transmitiu ao filho,<br />

como uma doença hereditária, a mesma ambição; esse<br />

foi o motivo por que, surpreendido em <strong>de</strong>lito, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

actos notáveis, foi também vergonhosamente expulso <strong>de</strong><br />

Esparta. Contámos este episódio na Vida <strong>de</strong> Lisandro.<br />

23. 1. <strong>Péricles</strong> registou, nas contas do seu<br />

mandato <strong>de</strong> estratego, uma <strong>de</strong>spesa <strong>de</strong> <strong>de</strong>z talentos<br />

148 O suborno <strong>de</strong> Cleândridas é apontado como causa da<br />

retirada espartana em Tucídi<strong>de</strong>s 2. 21. 1, 5. 16. 3. Éforo (FGrHist<br />

70 F 193) relaciona-o com os vinte talentos que faltavam nas<br />

contas apresentadas por <strong>Péricles</strong> (em Per. 23. 1, o valor indicado é<br />

<strong>de</strong> apenas <strong>de</strong>z talentos).<br />

149 Quinze talentos segundo Éforo (FGrHist 70 F 193) e cinco<br />

segundo Suda, s. v. δέον.<br />

150 Plistóanax refugiou-se no santuário <strong>de</strong> Zeus Liceu, na<br />

fronteira com a Arcádia. Foi-lhe permitido regressar a Esparta e ao<br />

trono em 427 a.C. Segundo Tucídi<strong>de</strong>s (5. 16. 1-3), apoiou a Paz <strong>de</strong><br />

Nícias em 421 a.C. e reinou até à sua morte em 408 a.C.<br />

151 Viveu exilado em Túrios, on<strong>de</strong> ficou famoso como general<br />

(cf. D. S. 13. 106. 10; Antíoco Histórico FGrHist 555 F 11;<br />

Tucídi<strong>de</strong>s 6. 93. 2; Polieno 2. 10.).<br />

152 Em 414-413 a.C. Cf. Plutarco, Nícias 28. Foi <strong>de</strong>sterrado<br />

porque, após a rendição dos Atenienses, roubou trinta dos mil<br />

talentos <strong>de</strong> saque que Lisandro lhe confiara e escon<strong>de</strong>u-os <strong>de</strong>baixo<br />

do telhado da sua casa (cf. Plutarco, Lísias 16. 2-17).


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

dispendidos como gastos diversos 153 . O povo aprovou<br />

sem se intrometer e sem questionar o mistério. 2.<br />

Contam alguns 154 , <strong>de</strong>ntre os quais o filósofo Teofrasto,<br />

que iam anualmente para Esparta da parte <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />

<strong>de</strong>z talentos, com os quais, adulando todos os que<br />

estavam no po<strong>de</strong>r, adiava a guerra. Não comprava a paz,<br />

comprava tempo, para se preparar calmamente para<br />

combater com vantagem.<br />

3. Voltou-se <strong>de</strong> novo contra os rebel<strong>de</strong>s, atravessou<br />

Eubeia com cinquenta navios e cinco mil hoplitas e<br />

submeteu as várias cida<strong>de</strong>s 155 . 4. Expulsou <strong>de</strong> Cálcis<br />

os chamados Hipóbotas 156 , que se distinguiam pela<br />

riqueza e pela reputação. Fez partir da sua terra todos os<br />

Hestieus e aí instalou Atenienses 157 – só a estes tratou <strong>de</strong><br />

153 Este episódio também é mencionado por Aristófanes<br />

em Nuvens 858-859. Segundo o escoliasta <strong>de</strong>ste passo, que<br />

provavelmente se baseou em Éforo (FGrHist 70 F 193), a soma era<br />

<strong>de</strong> vinte talentos. Suda s.v. δέον refere cinquenta talentos.<br />

154 Apesar do plural, é provável que Plutarco apenas tivesse<br />

em mente Teofrasto, já que este episódio não é relatado em mais<br />

nenhuma parte. No entanto, a reacção dos Espartanos face ao<br />

comportamento <strong>de</strong> Plistóanax e Cleândridas não confere gran<strong>de</strong><br />

veracida<strong>de</strong> ao testemunho <strong>de</strong> Teofrasto: se não conseguiram admitir<br />

um suborno momentâneo, como iriam suportá-lo por <strong>de</strong>z anos?<br />

155 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 114. 3; Plutarco supra Per. 22. 1.<br />

156 “Criadores <strong>de</strong> cavalos”. Trata-se da classe rica <strong>de</strong> Cálcis que<br />

foi muito penalizada pela cleruquia <strong>de</strong> 506 a.C. (Heródoto 5. 74-<br />

77). Segundo Stadter (1989: 232), os Hipóbotas teriam li<strong>de</strong>rado<br />

uma revolta contra os Atenienses para instaurar uma oligarquia,<br />

mas acabaram por ser expulsos; assim, após o estabelecimento da<br />

cleruquia, só em 446 a.C. teria sido possível pôr termo à oposição da<br />

classe rica. Manfredini (1968: 199-212) pensa que esta referência<br />

<strong>de</strong> Plutarco é uma versão errada da narração <strong>de</strong> Heródoto sobre os<br />

factos <strong>de</strong> 506 a.C.<br />

157 Esta colónia recebeu o nome <strong>de</strong> Oreu e foi uma importante<br />

base ateniense na costa norte <strong>de</strong> Eubeia até ao fim da Guerra do<br />

106


107<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

modo inflexível, porque tomaram uma nau ática como<br />

prisioneira <strong>de</strong> guerra e mataram a tripulação 158 .<br />

24. 1. De seguida, firmada uma trégua <strong>de</strong> trinta<br />

anos entre Atenienses e Lace<strong>de</strong>mónios 159 , <strong>de</strong>cretou<br />

uma expedição naval contra Samos 160 , acusando os seus<br />

habitantes <strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> exortados a terminarem a guerra<br />

contra Mileto, não obe<strong>de</strong>cerem. 2. Mas, como parece que<br />

fez guerra contra Samos para agradar a Aspásia 161 , talvez<br />

seja então a melhor ocasião para questionar esta mulher,<br />

que arte ou po<strong>de</strong>r tão gran<strong>de</strong> tinha, que dominava os<br />

Peloponeso (Tucídi<strong>de</strong>s 8. 95. 7). Teopompo (FGrHist 115 F 387)<br />

acrescenta ainda que os clerucos eram em número <strong>de</strong> mil e que os<br />

Hestieus emigraram para a Macedónia.<br />

158 Esta explicação é exclusiva <strong>de</strong> Plutarco.<br />

159 No Inverno <strong>de</strong> 445-444 a.C. (cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 115. 1).<br />

160 A guerra <strong>de</strong> Samos ocorreu entre 441-439 a.C., cinco anos<br />

após a celebração do tratado <strong>de</strong> paz (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 115. 2). Samos<br />

fazia parte da Simaquia, mas tinha uma frota própria e tinha<br />

entrado em guerra com Mileto pela posse <strong>de</strong> Priene.<br />

161 A extraordinária influência que se atribui a Aspásia na<br />

socieda<strong>de</strong> ateniense fez com que fosse a mulher grega que<br />

melhor se conhece. No entanto, a informação <strong>de</strong> que dispomos é<br />

invariavelmente escassa e por vezes pouco fi<strong>de</strong>digna. As principais<br />

fontes sobre esta figura são as comédias e ainda os diálogos<br />

socráticos, nomeadamente as duas Aspásia <strong>de</strong> Ésquines Socrático<br />

e <strong>de</strong> Antístenes e o Menéxeno <strong>de</strong> Platão. Importa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já lembrar<br />

que da mulher ateniense não se esperava um empenho activo na<br />

vida pública; o próprio facto <strong>de</strong> se conversar ou beber com um<br />

homem era sinónimo <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>vassa. Recor<strong>de</strong>mo-nos, contudo,<br />

<strong>de</strong> que Aspásia era estrangeira e possivelmente hetera – e o facto <strong>de</strong><br />

ela conseguir vencer essas limitações só reforça a excepcionalida<strong>de</strong><br />

do seu carácter.<br />

Para um melhor conhecimento da situação da mulher na Grécia<br />

antiga, leiam-se, por exemplo, Gomme (1937: 89-115); Mossé<br />

(1983).


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

principais políticos e aos filósofos oferecia matéria, nem<br />

má nem pouca, para falarem <strong>de</strong>la. 3. Que era <strong>de</strong> origem<br />

milésia e filha <strong>de</strong> Axíoco, todos estão <strong>de</strong> acordo. Dizem<br />

que era para igualar Targélia 162 , uma das antigas cortesãs<br />

iónicas, que se entregava aos homens mais po<strong>de</strong>rosos. 4.<br />

Targélia, que era bela e combinava graça com subtileza,<br />

teve muitíssimos homens gregos e atraía para a causa do<br />

rei persa todos os que <strong>de</strong>la se aproximavam. E assim, por<br />

meio <strong>de</strong>les, que eram homens po<strong>de</strong>rosos e influentes,<br />

espalhou nas respectivas cida<strong>de</strong>s sementes <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são à<br />

Pérsia. 5. Há quem afirme que Aspásia conquistou o<br />

apreço <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> pela inteligência e capacida<strong>de</strong> política<br />

<strong>de</strong> que era dotada. Também Sócrates a visitava algumas<br />

vezes com os discípulos, e os que lhe eram íntimos<br />

levavam as mulheres para a escutarem, embora dirigisse<br />

um negócio que era tudo menos honrado e digno,<br />

pois mantinha jovens prostitutas. 6. Ésquines diz que<br />

Lísicles 163 , o comerciante <strong>de</strong> gado, um sujeito <strong>de</strong> origem<br />

humil<strong>de</strong> e <strong>de</strong> baixa índole, se tornou o primeiro dos<br />

Atenienses, por ter passado a viver com Aspásia <strong>de</strong>pois<br />

da morte <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. 7. No Menéxeno 164 <strong>de</strong> Platão,<br />

162 Famosa cortesã <strong>de</strong> Mileto que fez com que a Tessália, <strong>de</strong><br />

cujo monarca era amante, ce<strong>de</strong>sse à Pérsia por altura da invasão <strong>de</strong><br />

Xerxes.<br />

163 F8, 46 Krauss. Trata-se <strong>de</strong> um dos <strong>de</strong>magogos que antece<strong>de</strong>ram<br />

Cléon. Alu<strong>de</strong>-se ao matrimónio <strong>de</strong> Lísicles e Aspásia no escólio a<br />

Platão, Menéxeno 235e, que menciona o filho <strong>de</strong> ambos, Poristes,<br />

e informa também que Aspásia fez <strong>de</strong>le um importante orador.<br />

Aristófanes faz referência a Lísicles em Cavaleiros132 e 765.<br />

164 Menéxeno 235e. Neste diálogo, durante um encontro com<br />

Menéxeno, Sócrates recita uma oração fúnebre fictícia <strong>de</strong>stinada às<br />

celebrações públicas dos caídos em 386 a.C. na expedição à Sicília,<br />

e que teria sido escrita por Aspásia.<br />

108


109<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

embora o texto <strong>de</strong> abertura esteja escrito em tom<br />

jocoso, existe algum fundamento histórico no facto <strong>de</strong><br />

Aspásia ter fama <strong>de</strong> se reunir com muitos Atenienses<br />

com objectivos retóricos. Mas, parece que a afeição <strong>de</strong><br />

<strong>Péricles</strong> por Aspásia foi certamente <strong>de</strong> índole amorosa.<br />

8. <strong>Péricles</strong> tinha por mulher uma sua parente<br />

consanguínea 165 , que casara em primeiras núpcias com<br />

Hiponico 166 , <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>u à luz Cálias, o milionário.<br />

De <strong>Péricles</strong>, teve Xantipo e Páralo. Depois, como a<br />

convivência entre eles não era agradável, entregou-a –<br />

<strong>de</strong> comum acordo – a outro; e ele ficou com Aspásia,<br />

a quem amou com especial ternura. 9. Diz-se 167 que,<br />

todos os dias, quando saía da ágora ou nela entrava a<br />

saudava com um beijo. Nas comédias, ela aparece como<br />

uma nova Ônfale, Dejanira e como Hera. Cratino<br />

chama-lhe directamente concubina nestes versos:<br />

“A Sem-Vergonhice dá à luz esta Hera, Aspásia, uma<br />

concubina <strong>de</strong> olhos <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>la.” 168<br />

165 Não se sabe ao certo quem foi a primeira esposa <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />

Bicknell (1972: 79) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> tratar-se <strong>de</strong> uma irmã <strong>de</strong> Dinómaca,<br />

mãe <strong>de</strong> Alcibía<strong>de</strong>s. Já Cromey (1982: 203-212) admite que se trata<br />

da própria Dinómaca.<br />

166 Filho <strong>de</strong> Cálias e Elpinice, a irmã <strong>de</strong> Címon. Fazia parte <strong>de</strong><br />

uma família muito rica e politicamente activa. Em 427-426 a.C.,<br />

dirigiu como estratego a expedição contra Tânagra. Faleceu pouco<br />

antes <strong>de</strong> 422 a.C. O Protágoras <strong>de</strong> Platão <strong>de</strong>corre em casa <strong>de</strong> Cálias,<br />

que hospedou o famoso sofista (315e).<br />

167 Antístenes (F1 Dittmar).<br />

168 Fr. 259 K.-A. Neste fragmento, faz-se a genealogia <strong>de</strong><br />

Aspásia, transformando a normal conotação <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> e nobreza<br />

do tom épico em vulgarida<strong>de</strong> gritante. O epíteto homérico <strong>de</strong><br />

Hera – boopis – cujo significado literal é “<strong>de</strong> olhos <strong>de</strong> vaca”, ao que<br />

parece, a simbolizar a gran<strong>de</strong>za dos olhos e a mansidão do olhar –,<br />

é adaptado para kynopis “olhos <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>la”, como sinónimo <strong>de</strong> sem-


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

10. Parece que teve <strong>de</strong>la um bastardo 169 , sobre<br />

quem Êupolis, em Demos, faz <strong>Péricles</strong> perguntar<br />

assim:<br />

“E o meu bastardo, está <strong>de</strong> boa saú<strong>de</strong>?”<br />

E Piróni<strong>de</strong>s respon<strong>de</strong>-lhe:<br />

“Está e <strong>de</strong> há muito seria um homem feito, se não o abalasse<br />

o mal da marafona.” 170<br />

11. Dizem que Aspásia se tornou tão célebre<br />

e famosa que até Ciro 171 , aquele que disputou com o<br />

Rei Persa a soberania, chamou Aspásia à sua concubina<br />

preferida, que antes se chamava Milto. 12. Era essa<br />

mulher <strong>de</strong> origem fócia e filha <strong>de</strong> Hermotimo. Quando<br />

Ciro morreu em combate, foi levada para junto do Rei<br />

e tornou-se influente. Este caso veio-me à memória<br />

enquanto escrevia – e era talvez pouco natural omiti-lo<br />

e passá-lo por alto.<br />

25. 1. Quanto à guerra contra Samos, acusam<br />

<strong>Péricles</strong> <strong>de</strong> a ter <strong>de</strong>cretado sobretudo por causa <strong>de</strong> Mileto,<br />

vergonhice, o que mostra bem que, pelo menos entre os cómicos,<br />

Aspásia não era muito bem vista.<br />

169 Filho <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> mencionado em Per. 37. 2-5. Esta peça, que<br />

data <strong>de</strong> 412 a.C., é já bastante posterior à morte do estadista.<br />

170 Refere-se provavelmente ao medo que o filho teria <strong>de</strong> se propor<br />

para cargos públicos <strong>de</strong>vido à fama da mãe.<br />

171 Ciro o Moço, filho <strong>de</strong> Dario II e Parisátis, que, em 401<br />

a.C., organizou uma expedição para retirar o po<strong>de</strong>r ao seu irmão<br />

Artaxerxes (cf. Xenofonte, Anábase 1). Sobre o seu amor por esta<br />

Aspásia, vi<strong>de</strong> Eliano, Varia Historica 12. 1; Plutarco, Artaxerxes 26.<br />

5-9.<br />

110


111<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

a pedido <strong>de</strong> Aspásia 172 . As duas cida<strong>de</strong>s estavam em<br />

guerra por causa <strong>de</strong> Priene 173 e os Sâmios, que levavam<br />

vantagem, não obe<strong>de</strong>ceram quando os Atenienses<br />

mandaram terminar o combate e <strong>de</strong>ixar a resolução do<br />

litígio a seu cargo 174 .<br />

2. <strong>Péricles</strong> fez-se ao mar e <strong>de</strong>rrubou a oligarquia<br />

que existia em Samos. Tomou cinquenta dos principais<br />

cidadãos e igual número <strong>de</strong> crianças como reféns e<br />

enviou-os para Lemnos 175 . Diz-se que cada um <strong>de</strong>stes<br />

reféns lhe ofereceu um talento em favor próprio; e<br />

que os que não queriam que na cida<strong>de</strong> existisse uma<br />

<strong>de</strong>mocracia lhe ofereceram muito mais. 3. Além disso o<br />

persa Pissutnes 176 , que tinha certa simpatia pelos Sâmios,<br />

enviou-lhe <strong>de</strong>z mil moedas <strong>de</strong> ouro, interce<strong>de</strong>ndo pela<br />

cida<strong>de</strong>. Contudo, <strong>Péricles</strong> não aceitou nenhuma <strong>de</strong>ssas<br />

172 Importa recordar que Aspásia era natural <strong>de</strong> Mileto, cida<strong>de</strong><br />

hostil a Samos.<br />

173 Pequena cida<strong>de</strong> iónia na foz do Meandro, próxima <strong>de</strong> Mileto<br />

(a Norte) e <strong>de</strong> Mícale, que controlava o santuário comum <strong>de</strong> Paniónion.<br />

A guerra po<strong>de</strong> ter sido motivada pela mudança da festa <strong>de</strong><br />

Priene para Éfeso. Cf. Hornblower (1982: 241-245).<br />

174 Provavelmente os Atenienses argumentavam que os membros<br />

da Simaquia <strong>de</strong> Delos <strong>de</strong>veriam respeitar os aliados uns dos<br />

outros.<br />

175 O número <strong>de</strong> reféns coinci<strong>de</strong> com o que Tucídi<strong>de</strong>s (1. 115.<br />

3) apresenta. Fazer reféns era um hábito, cujo principal objectivo<br />

era garantir o bom comportamento da cida<strong>de</strong> sobre a qual recaíam<br />

as suspeitas. Neste caso, os reféns foram enviados para Lemnos porque<br />

era uma ilha próxima da Ásia Menor on<strong>de</strong> havia uma cleruquia<br />

ateniense (conquistada por Milcía<strong>de</strong>s em 500 a.C.) e porque também<br />

era membro da Simaquia <strong>de</strong> Delos.<br />

176 Filho <strong>de</strong> Histaspes, sátrapa <strong>de</strong> Sar<strong>de</strong>s e provavelmente<br />

sobrinho <strong>de</strong> Xerxes, que fomentou a revolta dos Sâmios e também<br />

se intrometeu nos assuntos gregos durante a revolta <strong>de</strong> Mitilene.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

ofertas 177 , tratou os Sâmios como pensara e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

estabelecer a <strong>de</strong>mocracia, zarpou para Atenas.<br />

4. Mal os Atenienses se afastaram, Pissutnes<br />

roubou os reféns para os <strong>de</strong>volver a Samos e ultimou<br />

todos os preparativos para a guerra 178 . Então <strong>Péricles</strong><br />

fez-se novamente à vela contra eles 179 , que nem estavam<br />

inactivos nem com medo; pelo contrário, estavam<br />

terminantemente <strong>de</strong>cididos a apo<strong>de</strong>rar-se do mar. 5.<br />

Depois <strong>de</strong> um combate marítimo violento ao redor<br />

da ilha a que chamam Trágia, <strong>Péricles</strong> obteve uma<br />

esplêndida vitória, <strong>de</strong>rrotando, com quarenta e quatro<br />

barcos, setenta, vinte dos quais transportavam tropas 180 .<br />

177 Plutarco, ao referir a tentativa <strong>de</strong> suborno dos Sâmios e <strong>de</strong><br />

Pissutnes, foge ao texto <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, que nada diz a esse respeito.<br />

Ao que parece, era até normal tentar dar dinheiro em troca <strong>de</strong><br />

reféns. Mas <strong>Péricles</strong>, ao contrário <strong>de</strong> Plistóanax (Per. 22. 2), não<br />

cai em tentação. Outras fontes, no entanto, não apoiam <strong>de</strong> forma<br />

tão evi<strong>de</strong>nte a incorruptibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. Diodoro Sículo (12.<br />

27. 2), por exemplo, diz que aquele recebeu oitenta talentos dos<br />

Sâmios e que enviou para Lemnos oitenta crianças.<br />

178 Tucídi<strong>de</strong>s explica que foi uma revolta levada a cabo por um<br />

grupo <strong>de</strong> Sâmios que, aquando da primeira expedição, se haviam<br />

refugiado no continente. O primeiro passo <strong>de</strong>sta sublevação foi<br />

pren<strong>de</strong>r os <strong>de</strong>mocratas e libertar os reféns e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> entregarem<br />

a guarnição e os magistrados atenienses a Pissutnes, logo voltaram<br />

a atacar os Milésios (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 115. 4-5).<br />

179 Tucídi<strong>de</strong>s (1. 116. 1) precisa que <strong>Péricles</strong> era um dos <strong>de</strong>z<br />

generais e que a expedição era constituída por um total <strong>de</strong> sessenta<br />

embarcações, das quais <strong>de</strong>zasseis foram para a Cária vigiar os navios<br />

fenícios e buscar ajuda a Quios e a Lesbos.<br />

180 Os números aqui apresentados são os mesmos que surgem<br />

em Tucídi<strong>de</strong>s 1. 116. 1. Quanto à ilha <strong>de</strong> Trágia, situa-se a doze<br />

milhas ao sul <strong>de</strong> Samos e a <strong>de</strong>zasseis a oeste <strong>de</strong> Mileto.<br />

112


113<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

26. 1. Com a vitória e a retirada do inimigo,<br />

apo<strong>de</strong>rou-se do porto, sitiou os Sâmios, que, <strong>de</strong> uma<br />

maneira ou <strong>de</strong> outra, ainda se atreveram a sair e a<br />

combater em frente às muralhas 181 . Mas <strong>de</strong>pois que<br />

chegou <strong>de</strong> Atenas uma outra frota maior 182 , os Sâmios<br />

ficaram completamente encurralados. <strong>Péricles</strong>, levando<br />

sessenta trirremes, navegou para o mar largo, como é<br />

voz corrente 183 , para interceptar os navios fenícios 184<br />

que vinham em auxílio dos Sâmios, pois queria ir ao<br />

seu encontro e lutar o mais longe possível; ou, segundo<br />

Estesímbroto 185 , porque tinha por objectivo Chipre – o<br />

que não se afigura verosímil.<br />

2. Qualquer que fosse a sua intenção, parece<br />

que cometeu um erro. Mal partiu, Melisso 186 , filho <strong>de</strong><br />

181 Esta fase da guerra, que <strong>de</strong>correu no período entre a batalha<br />

<strong>de</strong> Trágia e a chegada <strong>de</strong> novos contingentes, não é <strong>de</strong>scrita nem<br />

por Tucídi<strong>de</strong>s nem por Diodoro Sículo.<br />

182 Constituída por quarenta navios vindos <strong>de</strong> Atenas e vinte e<br />

cinco <strong>de</strong> Lesbos e Quios, o que perfazia o total <strong>de</strong> cento e vinte e<br />

cinco embarcações (cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 116. 2).<br />

183 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 116. 3; Diodoro Sículo 12. 27. 5.<br />

184 Os Atenienses, por causa <strong>de</strong> Pissutnes, temiam que a Pérsia<br />

tentasse aproveitar-se da revolta <strong>de</strong> Samos para fragilizar o controlo<br />

que tinham do mar Egeu, muito embora a Paz <strong>de</strong> Cálias estivesse<br />

em vigor.<br />

185 FGrHist 107 F 8.<br />

186 Pouco se sabe acerca da vida <strong>de</strong> Melisso, filho <strong>de</strong> Itágenes e<br />

um dos últimos representantes da escola eleática, além do facto <strong>de</strong><br />

ter sido estadista <strong>de</strong> Samos e <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>rrotado <strong>Péricles</strong> no combate<br />

naval <strong>de</strong> 441 a.C. Este filósofo seguia as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Parméni<strong>de</strong>s,<br />

embora não se possa garantir que alguma vez se tivessem conhecido<br />

pessoalmente. Vi<strong>de</strong> Guthrie (1969: 101 sq.). Sobre a batalha<br />

em causa no texto em estudo, cf. Plutarco, Temístocles 2. 5. Nem<br />

Tucídi<strong>de</strong>s, nem Diodoro Sículo referem a sua participação neste<br />

combate.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

Itágenes, um filósofo que era então general <strong>de</strong> Samos<br />

menosprezando o pequeno número <strong>de</strong> barcos 187 e a<br />

inexperiência dos estrategos 188 , convenceu os concidadãos<br />

a atacar os Atenienses. 3. Na batalha que teve lugar, os<br />

Sâmios saíram vencedores, capturaram muitos inimigos,<br />

<strong>de</strong>struíram muitos barcos, ganharam o controlo do mar<br />

e abasteceram-se do que necessitavam para a guerra e<br />

que antes não possuíam. Aristóteles diz mesmo que<br />

<strong>Péricles</strong> já tinha sido vencido por Melisso num combate<br />

marítimo anterior 189 .<br />

4. Os Sâmios, em retaliação, tatuaram a testa dos<br />

prisioneiros atenienses com corujas: é que os Atenienses<br />

tinham-no feito com uma samena 190 . A samena é um<br />

187 Sobre o número <strong>de</strong> embarcações que estariam naquela altura<br />

na região, vi<strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s 1.116. 1-2.<br />

188 Andrócion (FGrHist 324 F38) indica o nome <strong>de</strong> oito dos<br />

generais <strong>de</strong> 441-440 a.C., entre os quais se encontram o próprio<br />

<strong>Péricles</strong> e Sófocles (cf. Per. 8. 8).<br />

189 Este passo é o próprio fragmento (fr. 577 Rose). É provável<br />

que Plutarco tenha colhido esta informação na Constituição <strong>de</strong><br />

Samos ou em outras fontes sâmias que consi<strong>de</strong>ravam a batalha <strong>de</strong><br />

Trágia vitória sua, já que os Sâmios tinham sido capazes <strong>de</strong> regressar<br />

<strong>de</strong> Mileto em segurança.<br />

190 A tatuagem na fronte era frequente entre os Gregos, sobretudo<br />

entre os escravos, com o objectivo <strong>de</strong> indicar proprieda<strong>de</strong>. Segundo<br />

vários testemunhos, também os vencedores <strong>de</strong> guerra marcavam o<br />

inimigo com o símbolo da sua cida<strong>de</strong>. Por exemplo, os Siracusanos<br />

tatuaram um cavalo, símbolo <strong>de</strong> Siracusa, nos Atenienses capturados<br />

na expedição <strong>de</strong> Nícias e Demóstenes (cf. Plutarco, Nícias 29.<br />

2). Este episódio que Plutarco aqui relata tem como fonte Dúris<br />

(FGrHist 76 F 66). Mas, ao que parece, o Queroneu “troca” alguns<br />

dados da história: é que segundo vários testemunhos (e. g. Fócio e<br />

Suda s. v. Σαμίων ὁ δῆμος; Eliano, Varia Historica 2. 9), teriam<br />

sido os Atenienses a utilizar a coruja nos Sâmios; estes, por sua<br />

vez, “presentearam” os Atenienses com samenas. Mas a versão <strong>de</strong><br />

Plutarco surge também em Fócio s. v. τὰ Σαμίων ὑποπτεύεις.<br />

114


115<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

barco <strong>de</strong> proa em forma <strong>de</strong> focinho <strong>de</strong> porco, muito<br />

côncava e bojuda, boa para transportar cargas e navegar<br />

com rapi<strong>de</strong>z 191 . Chama-se assim porque apareceu pela<br />

primeira vez em Samos e foi construída pelo tirano<br />

Polícrates 192 . Dizem que a estas tatuagens faz alusão<br />

o verso <strong>de</strong> Aristófanes: “O povo <strong>de</strong> Samos, que gente<br />

letrada!” 193<br />

27. 1. Ora, quando <strong>Péricles</strong> foi informado do<br />

revés da armada, acorreu rapidamente em seu socorro 194 ;<br />

191 Embora outros autores se refiram a esta embarcação (e.<br />

g. Quérilo <strong>de</strong> Samos, F. 6, 269 Hinke), esta é a <strong>de</strong>scrição mais<br />

completa que se possui. Sobre este assunto, leia-se Casson (1971:<br />

63). 192 Tirano que esteve no po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 538 até 522 a.C., ano<br />

em que foi assassinado pelo sátrapa persa Oretes (Heródoto,<br />

Histórias 3. 120-125). Subjugou as cida<strong>de</strong>s costeiras da Ásia Menor<br />

e as ilhas e, segundo indicação do livro 2 <strong>de</strong> Nostoi do gramático<br />

Lisímaco (vi<strong>de</strong> Fócio, s.v. Σαμίων ὁ δῆμος), foi sob a sua égi<strong>de</strong> que<br />

apareceram as primeiras samenas.<br />

193 F. 71 K.-A. Este trímetro iâmbico era parte da peça Babilónios<br />

(426 a.C.), na qual os Sâmios eram comparados a escravos. Fócio<br />

e Suda (nas entradas já citadas) propuseram explicações para<br />

este verso na Antiguida<strong>de</strong>. Welsh (1983: 137-150) sugere que o<br />

adjectivo polygrammatos faz ironicamente alusão às samenas que os<br />

Atenienses tatuaram nos Sâmios por ocasião da rebelião <strong>de</strong> 440<br />

a.C., como marca da submissão <strong>de</strong>vida ao lí<strong>de</strong>r da Simaquia <strong>de</strong><br />

Delos. Penso que esta interpretação é legítima, na medida em que<br />

o sentido <strong>de</strong>notativo <strong>de</strong> polygrammatos é, precisamente, “marcado<br />

com muitos traços ou letras”. Houve ainda outro motivo que me<br />

fez optar por traduzir polygrammatos por “letrado”: é que já entre<br />

os latinos esta palavra servia para <strong>de</strong>signar o tipo <strong>de</strong> marcas em<br />

causa no contexto <strong>de</strong>ste verso, como atestam K.-A. (1983-1995:<br />

III. 2, 66) – litteratus appellatur apud Plautum seruus stigmatis nota<br />

inustus.<br />

194 Tucídi<strong>de</strong>s (1. 117. 2) refere-se a um reforço constituído por<br />

quarenta barcos sob o comando <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, Hágnon e Formião


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

venceu Melisso, que lhe fez frente, e logo <strong>de</strong>pois,<br />

perseguiu e sitiou os inimigos no interior das muralhas,<br />

pois preferia dominá-los e conquistar a cida<strong>de</strong> à força<br />

<strong>de</strong> dinheiro e <strong>de</strong> tempo a fazê-lo com feridas e perigos<br />

para os seus concidadãos. 2. Como era obra conter os<br />

Atenienses quando ficaram impacientes com a <strong>de</strong>mora<br />

e <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> combater, <strong>Péricles</strong> dividiu toda a tropa<br />

em oito partes e fez um sorteio: à que obtinha a fava<br />

branca 195 , permitia que fizesse um festim e <strong>de</strong>scansasse,<br />

enquanto as outras se afadigavam. 3. É este o motivo<br />

por que se diz que, por causa da fava branca, quem passa<br />

um dia na farra lhe chama “dia branco” 196 .<br />

Éforo 197 diz que <strong>Péricles</strong> se servia <strong>de</strong> engenhos<br />

<strong>de</strong> guerra, na admiração que sentia pela sua novida<strong>de</strong>,<br />

e que era assistido pelo engenheiro Ártemon 198 . Este,<br />

e por vinte sob o <strong>de</strong> Tlepólemo e Ânticles (num total <strong>de</strong> sessenta<br />

barcos vindos <strong>de</strong> Atenas) e mais trinta oriundos <strong>de</strong> Quios e Lesbos.<br />

195 O meio mais frequente <strong>de</strong> se fazer um sorteio em Atenas era<br />

retirar <strong>de</strong> um recipiente a fava branca que estava misturada com<br />

pretas.<br />

196 Trata-se <strong>de</strong> uma expressão grega utilizada para referir dias<br />

festivos.<br />

197 FGrHist 70 F 194. Éforo <strong>de</strong> Cime (ca. 405-330 a.C.) foi<br />

contemporâneo <strong>de</strong> Teopompo e discípulo <strong>de</strong> Isócrates. Este<br />

historiador escreveu um livro sobre as tradições da sua cida<strong>de</strong> natal e<br />

um tratado sobre aspectos que <strong>de</strong>spertavam a curiosida<strong>de</strong> das gentes<br />

do tempo, intitulado Sobre Invenções; mas a sua obra principal é<br />

Histórias, a primeira história universal, em trinta volumes, que serviu<br />

<strong>de</strong> fonte a vários autores, <strong>de</strong>ntre os quais Diodoro Sículo, Estrabão,<br />

Polieno e Plutarco. Foi, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Xenofonte, o historiador mais<br />

importante do séc. IV a.C. Vi<strong>de</strong> Lesky (1995: 659-660).<br />

198 Trata-se <strong>de</strong> um engenheiro oriundo <strong>de</strong> Clazómenas, ao qual<br />

se atribui a invenção do testudo militar (testudines) para cobrir o<br />

aríete (Diodoro Sículo 12. 28. 3; Plínio, História Natural 7. 201).<br />

Consta que era coxo e que, por essa razão, se fazia transportar em<br />

116


117<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

como era coxo, era transportado numa liteira para os<br />

trabalhos urgentes, pelo que lhe chamavam Periforeto.<br />

4. Mas Heracli<strong>de</strong>s Pôntico 199 refuta essa afirmação com<br />

poemas <strong>de</strong> Anacreonte, nos quais se menciona um<br />

Ártemon periforeto muitas gerações antes da Guerra<br />

<strong>de</strong> Samos e daqueles acontecimentos. Diz ainda que<br />

Ártemon tinha hábitos sofisticados e, diante do medo,<br />

era cobar<strong>de</strong> e assustadiço; assim ficava muito tempo em<br />

casa com dois escravos que lhe seguravam um escudo <strong>de</strong><br />

bronze sobre a cabeça para que nada do tecto lhe caísse<br />

em cima. Se era forçado a sair, fazia-se transportar numa<br />

liteira suspensa a pouca distância do chão e por isso lhe<br />

chamaram periforeto.<br />

28. 1. Quando, oito meses passados, Samos se<br />

ren<strong>de</strong>u, <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>struiu-lhe as muralhas, confiscou-lhe os<br />

navios e impôs-lhe pesadas multas em dinheiro, <strong>de</strong> que os<br />

Sâmios entregaram logo parte; o resto, comprometeramse<br />

a pagá-lo em tempo convencionado e <strong>de</strong>ram reféns <strong>de</strong><br />

garantia 200 .<br />

liteiras, o que lhe valeu a alcunha <strong>de</strong> Periforeto – “o que vai <strong>de</strong><br />

liteira”. No entanto, Anacreonte já havia atribuído a mesma alcunha<br />

a um outro indivíduo chamado Ártemon, famoso pelo seus hábitos<br />

sofisticados, que se fazia transportar não por <strong>de</strong>ficiência física, mas<br />

por comodida<strong>de</strong> e ostentação. Vi<strong>de</strong> fr. 43 Page.<br />

199 F. 60 Wehrli. Heracli<strong>de</strong>s (ca. 390-310 a.C.) era um filósofo<br />

académico, oriundo <strong>de</strong> Heracleia, no Mar Negro. Almejou, em vão,<br />

ace<strong>de</strong>r à direcção da Aca<strong>de</strong>mia em 339 a.C., facto que o fez regressar<br />

então à sua terra natal. Conhecemos os títulos <strong>de</strong> quarenta e seis<br />

diálogos da sua autoria; <strong>de</strong> acordo com Diógenes, subdividiam-se<br />

em três grupos: o primeiro <strong>de</strong> cariz cómico, o segundo trágico,<br />

e o terceiro mais <strong>de</strong>stinado a filósofos, políticos e militares. Vi<strong>de</strong><br />

Guthrie (1969: 483-489).<br />

200 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 117. 3. Este acontecimento teve lugar


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

2. Dúris <strong>de</strong> Samos 201 imaginou a propósito <strong>de</strong>stes<br />

acontecimentos uma gran<strong>de</strong> tragédia, acusando os<br />

Atenienses e <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong> muita cruelda<strong>de</strong>, o que nem<br />

Tucídi<strong>de</strong>s, nem Éforo ou Aristóteles registam. Mas não<br />

parece que diga a verda<strong>de</strong>, quando afirma que então<br />

<strong>Péricles</strong> levou os trierarcas e os marinheiros dos Sâmios<br />

para a ágora dos Milésios e os crucificou durante <strong>de</strong>z<br />

dias. E, quando já estavam mal, mandou matá-los<br />

com pauladas na cabeça e em seguida abandonar os<br />

corpos insepultos. 3. Mas Dúris que, nem mesmo<br />

quando não tinha interesses particulares envolvidos,<br />

costumava manter a narrativa <strong>de</strong>ntro da verda<strong>de</strong>, com<br />

toda a probabilida<strong>de</strong>, neste caso em especial, exagerou<br />

os sofrimentos da sua pátria para <strong>de</strong>ixar mal vistos os<br />

Atenienses 202 .<br />

4. Quando, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter dominado Samos,<br />

<strong>Péricles</strong> regressou a Atenas, fez funerais gloriosos aos que<br />

morreram durante a guerra e granjeou muita admiração,<br />

provavelmente nos princípios <strong>de</strong> 439 a.C.<br />

201 FGrHist 76 F 67. Dúris (ca. 340 – 260 a.C.) foi historiador,<br />

discípulo <strong>de</strong> Teofrasto e suce<strong>de</strong>u ao seu irmão Linceu na tirania<br />

<strong>de</strong> Samos, sua terra natal. Escreveu, entre outros títulos, uma obra<br />

chamada Histórias (sobre o período entre 370 e 281 a.C.) e uma<br />

Crónica <strong>de</strong> Samos (que abrangia os acontecimentos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século<br />

VII ao V a.C.). Não foi um autor muito influente, porque além <strong>de</strong><br />

o seu estilo ser pobre, era <strong>de</strong>masiado sensacionalista. Vi<strong>de</strong> Lesky<br />

(1995: 806 sq.).<br />

202 Plutarco tinha interesses biográficos ao refutar as acusações<br />

<strong>de</strong> Dúris, pois pretendia pôr em evidência a mo<strong>de</strong>ração e a<br />

humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. No entanto, consta que os Atenienses,<br />

em tempo <strong>de</strong> guerra, aplicavam duros castigos aos traidores ou a<br />

qualquer outro tipo <strong>de</strong> “criminoso” (isto é, a quem quer que fosse<br />

responsável por uma conduta menos própria), como testemunha<br />

Diodoro Sículo (12. 28. 3).<br />

118


119<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

quando, como é costume, proferiu um discurso junto<br />

aos túmulos 203 . 5. Mas ao <strong>de</strong>scer da tribuna, enquanto as<br />

outras mulheres lhe apertavam a mão e o galardoavam<br />

com coroas e fitas, como a um atleta vencedor, Elpinice<br />

aproximou-se e disse-lhe: 6. “Que feitos admiráveis e<br />

dignos das coroas os teus, <strong>Péricles</strong>! Tu que fizeste perecer<br />

muitos dos nossos valorosos cidadãos, não a fazer guerra<br />

contra os Fenícios e contra os Medos, como o meu<br />

irmão Címon, mas a <strong>de</strong>struir uma cida<strong>de</strong> aliada e da<br />

mesma raça da nossa.” 7. Contam que, ao ouvir Elpinice,<br />

<strong>Péricles</strong> sorriu calmamente e lhe recitou este verso <strong>de</strong><br />

Arquíloco: “Velha como és, não <strong>de</strong>vias encharcar-te em<br />

perfumes.” 204<br />

Íon 205 afirma que <strong>Péricles</strong> sentia um orgulho<br />

fantástico e imenso por ter vencido os Sâmios, já que, em<br />

nove meses, conquistou os primeiros e mais po<strong>de</strong>rosos<br />

dos Iónios, enquanto Agamémnon levou <strong>de</strong>z anos a<br />

tomar uma cida<strong>de</strong> bárbara. 8. E não era <strong>de</strong>scabida essa<br />

opinião, porque, na verda<strong>de</strong>, a guerra trouxe muita<br />

203 Tucídi<strong>de</strong>s <strong>de</strong>screve a cerimónia em 2. 34. A oração fúnebre<br />

(epitaphios logos) era um elogio feito anualmente em Atenas aos<br />

que perdiam a vida no campo <strong>de</strong> batalha. Servia, assim, não só<br />

para glorificar os heróis (e, <strong>de</strong>ste modo, convencer os vivos <strong>de</strong><br />

que morrer por Atenas era uma honra), como a própria polis e os<br />

i<strong>de</strong>ais por ela <strong>de</strong>fendidos. Para isso, segundo Aristóteles, que na<br />

Retórica nos fala dos discursos epidícticos (nos quais o epitaphios<br />

logos se inclui), estes <strong>de</strong>vem incluir referências aos acontecimentos<br />

passados e especulações sobre os futuros – o que equivale a dizer<br />

que é preciso apelar às memórias gloriosas e aos sonhos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za<br />

dos ouvintes. É esse o esquema <strong>de</strong> oração fúnebre que Tucídi<strong>de</strong>s<br />

atribui a <strong>Péricles</strong>, uma das poucas que chegaram até nós.<br />

204 Fr. 27 Diehl, também citado por Ateneu 688e.<br />

205 FGrHist 392 F 16.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

incerteza e gran<strong>de</strong> perigo, se, como diz Tucídi<strong>de</strong>s 206 , a<br />

cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Samos por pouco não usurpou aos Atenienses<br />

o domínio do mar.<br />

29. 1. Depois <strong>de</strong>stes acontecimentos, quando a<br />

Guerra do Peloponeso começou a fervilhar, convenceu o<br />

povo a enviar auxílio aos Corcireus no seu diferendo com<br />

Corinto e a associar-se a uma ilha forte pelo seu po<strong>de</strong>r<br />

naval, já que os Peloponésios estavam quase a <strong>de</strong>clararlhes<br />

guerra 207 . Mal o povo aprovou a ajuda, enviou<br />

206 8.76.4.<br />

207 Por causa dos interesses biográficos que o levam a salientar o<br />

protagonismo <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, Plutarco omite várias vitórias que tiveram<br />

lugar entre a expedição contra Samos e a embaixada <strong>de</strong> Corcira,<br />

motivada pela disputa da posse <strong>de</strong> Epidamno com Corinto (em<br />

meados <strong>de</strong> 443 a.C.).<br />

Epidamno era uma colónia <strong>de</strong> Corcira, que, por sua vez, era<br />

colónia <strong>de</strong> Corinto. Situada na costa norte da Ilíria, viu-se <strong>de</strong>vastada<br />

por uma luta interna que culminou numa guerra com os bárbaros<br />

vizinhos incitados pelos aristocratas exilados <strong>de</strong> Epidamno. Aos<br />

<strong>de</strong>mocratas, <strong>de</strong>vastados por terra e mar, não restou alternativa senão<br />

pedir auxílio a Corinto, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Corcira lho ter recusado. Se o<br />

objectivo <strong>de</strong> Corinto era atacar a sua colónia, foi bem sucedido,<br />

pois Corcira <strong>de</strong> imediato contactou os Epidamnianos para que se<br />

servissem da sua ajuda e dispensassem a dos Coríntios. Aqueles<br />

recusaram e Corcira cercou então a sua colónia. Como verificou<br />

que Corinto persistia, <strong>de</strong>terminada, naquela política, Corcira<br />

enviou, em 435 a.C., uma embaixada à sua metrópole, mas não<br />

alcançou os seus intentos. Na Primavera <strong>de</strong> 433 a.C., <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

cerca <strong>de</strong> um ano e meio <strong>de</strong> combates, e como Corinto persistia na<br />

guerra, Corcira cumpriu a ameaça feita por ocasião da embaixada e<br />

pediu ajuda a Atenas. Depois <strong>de</strong> um <strong>de</strong>bate aceso entre Atenienses,<br />

Coríntios e Corcireus, os primeiros <strong>de</strong>cidiram auxiliar Corcira.<br />

Aristo<strong>de</strong>mo (FGrHist 104, 17) resume este episódio e, como<br />

Tucídi<strong>de</strong>s (1. 55. 2), apresenta-o como uma das causas da Guerra<br />

do Peloponeso.<br />

120


121<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

Lace<strong>de</strong>mónio 208 , filho <strong>de</strong> Címon, com apenas <strong>de</strong>z navios,<br />

como para insultá-lo. De facto, a família <strong>de</strong> Címon tinha<br />

muita simpatia e amiza<strong>de</strong> pelos Peloponésios. 2. Assim,<br />

para que Lace<strong>de</strong>mónio fosse ainda mais contestado<br />

pelo seu laconismo, se nenhum feito gran<strong>de</strong> ou notável<br />

fosse executado sob seu comando, entregou-lhe poucas<br />

embarcações e enviou-o contra a sua vonta<strong>de</strong>. Em geral,<br />

passou a vida a <strong>de</strong>sacreditar os filhos <strong>de</strong> Címon que<br />

nem sequer nos nomes eram genuínos, mas ilegítimos<br />

e estrangeiros, porque um se chamava Lace<strong>de</strong>mónio, o<br />

outro Téssalo, e o terceiro, Eleio. Julgava-se que todos<br />

nasceram <strong>de</strong> uma mulher da Arcádia 209 .<br />

3. Quando <strong>Péricles</strong> foi duramente criticado por<br />

causa das tais <strong>de</strong>z trirremes, por ter oferecido pequena<br />

ajuda aos necessitados e gran<strong>de</strong> pretexto aos <strong>de</strong>tractores,<br />

enviou então muitas outras para Corcira, que chegaram<br />

<strong>de</strong>pois da batalha 210 . 4. Aos Coríntios, que se irritaram<br />

208 Tucídi<strong>de</strong>s (1. 45. 1-2) refere ainda como estrategos Diótimo<br />

<strong>de</strong> Estrômbico e Próteas <strong>de</strong> Épicles.<br />

209 Os nomes dos três filhos <strong>de</strong> Címon correspon<strong>de</strong>m a regiões<br />

da Grécia: Lace<strong>de</strong>mónia e Éli<strong>de</strong>, que se situam no Peloponeso, e<br />

Tessália, a Norte da Península dos Balcãs. A origem estrangeira da<br />

mãe tornava-os vulneráveis por causa da lei <strong>de</strong> 451 a.C., segundo a<br />

qual, para que um filho fosse legítimo, ambos os pais teriam <strong>de</strong> ser<br />

cidadãos atenienses. Embora não afectasse os filhos <strong>de</strong> Címon, por<br />

não ser retroactivo, este <strong>de</strong>creto impedia o reconhecimento legal do<br />

filho <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e Aspásia. Sobre este assunto vi<strong>de</strong> Per. 37. 5.<br />

210 Tucídi<strong>de</strong>s (1. 50. 5) e Diodoro Sículo (12. 33. 4) falam em<br />

mais vinte embarcações, cujo envio, segundo este último, já estava<br />

previsto em caso <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>. De acordo com estes historiadores,<br />

os barcos chegaram quando os Corcireus já batiam em retirada<br />

das ilhas Síbotos. Ao ver os Atenienses, também os Coríntios se<br />

retiraram, o que <strong>de</strong>u a vitória aos aliados.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

e acusaram os Atenienses em Esparta 211 , associaramse<br />

os Megarenses, culpando aqueles <strong>de</strong> os afastarem e<br />

excluírem <strong>de</strong> todos os mercados e <strong>de</strong> todos os portos<br />

que dominavam, contra os direitos comuns e os<br />

juramentos feitos pelos Gregos. 5. Os Eginetas, que se<br />

julgavam oprimidos e maltratados 212 , pediram às ocultas<br />

ajuda aos Lace<strong>de</strong>mónios, pois não se atreviam a acusar<br />

publicamente os Atenienses. 6. Entretanto também<br />

Poti<strong>de</strong>ia 213 , cida<strong>de</strong> aliada <strong>de</strong> Atenas, mas colónia <strong>de</strong><br />

Corinto, <strong>de</strong>sertou e foi bloqueada, o que apressou ainda<br />

mais a guerra.<br />

7. Apesar <strong>de</strong> tudo, foram enviadas embaixadas a<br />

Atenas 214 e Arquidamo, rei dos Lace<strong>de</strong>mónios, procurou<br />

resolver a maior parte das queixas e acalmar os aliados 215 .<br />

211 Sobre as acusações em causa, feitas em Esparta durante uma<br />

reunião que <strong>de</strong>correu em 432 a.C. (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 67), as fontes nada<br />

nos dizem <strong>de</strong> concreto. De acordo com Tucídi<strong>de</strong>s, os principais<br />

instigadores da guerra foram precisamente os Megarenses e os<br />

Eginetas (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 67. 2), mas refere-os por or<strong>de</strong>m diferente<br />

da <strong>de</strong> Plutarco, o que realça a importância que o biógrafo dá ao<br />

<strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Mégara (Per. 30. 2-4) como causa da guerra.<br />

212 Uma das cláusulas da Trégua dos Trinta Anos foi a concessão<br />

<strong>de</strong> autonomia a Egina, embora a ilha continuasse a pagar tributo a<br />

Atenas e a fazer parte da Simaquia <strong>de</strong> Delos. Nos <strong>de</strong>bates em Esparta,<br />

que antece<strong>de</strong>ram o eclodir da Guerra do Peloponeso, os Eginetas<br />

acusaram os Atenienses <strong>de</strong> não terem cumprido o combinado, pelo<br />

que incorriam em violação do acordo, legitimando assim o início<br />

<strong>de</strong> hostilida<strong>de</strong>s militares.<br />

213 Colónia coríntia, situada no istmo da península <strong>de</strong> Palene,<br />

que apesar dos fortes laços que a ligavam à metrópole era aliada <strong>de</strong><br />

Atenas. Descontente por ter visto o valor do seu tributo duplicar,<br />

revoltou-se em 433 a.C., quando, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Síbotos, Atenas,<br />

suspeitando dos planos <strong>de</strong> secessão, or<strong>de</strong>nou que <strong>de</strong>itassem as<br />

muralhas abaixo (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 56-66).<br />

214 Vi<strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s 1. 85-139.<br />

215 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 80-85. 2.<br />

122


123<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

Ao que parece, não era pelos outros motivos que a<br />

guerra teria sobrevindo aos Atenienses, se se tivessem<br />

comprometido a revogar o <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Mégara 216 e a<br />

reconciliar-se com eles 217 . 8. Foi por isso que <strong>Péricles</strong>,<br />

que se opunha a essa cedência mais do que ninguém<br />

e incitava o povo a persistir na rivalida<strong>de</strong> com os<br />

Megarenses, foi consi<strong>de</strong>rado o único responsável pela<br />

guerra 218 .<br />

30. 1. Conta-se que quando chegou a Atenas<br />

uma embaixada da Lace<strong>de</strong>mónia para discutir a famosa<br />

questão e <strong>Péricles</strong> se escudou numa lei que proibia a<br />

<strong>de</strong>struição da tabuinha on<strong>de</strong> o tal <strong>de</strong>creto se encontrava<br />

escrito, um dos embaixadores, Polialces, disse: “Muito<br />

216 O <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Mégara proibia os seus habitantes, acusados <strong>de</strong><br />

acolherem escravos fugitivos, <strong>de</strong> entrar nos mercados <strong>de</strong> Atenas e<br />

das cida<strong>de</strong>s aliadas. Esta proibição punha em causa a subsistência<br />

dos Megarenses, que, <strong>de</strong>vido à exiguida<strong>de</strong> do seu território, eram<br />

forçados a obter os bens <strong>de</strong> primeira necessida<strong>de</strong> nas cida<strong>de</strong>s<br />

vizinhas. Sobre este assunto, vi<strong>de</strong> Fornara (1975: 213-228).<br />

Mas os ressentimentos dos Atenienses eram mais antigos:<br />

datavam <strong>de</strong> 446 a.C., altura em que Mégara se rebelou contra<br />

Atenas e massacrou a guarnição que se encontrava no seu território.<br />

Assim sendo, o <strong>de</strong>creto vem vingar todos os ressentimentos (mesmo<br />

o cultivo do território sagrado e a morte <strong>de</strong> Antemócrito) dos<br />

Atenienses contra um antigo aliado. Sobre as causas das medidas<br />

contra os Megarenses, vi<strong>de</strong> De Sainte Croix (1972: 225-289).<br />

217 Tucídi<strong>de</strong>s 1. 139. 1. Diodoro Sículo (12. 39) afirma que essa<br />

era a condição imposta pelos Lace<strong>de</strong>mónios.<br />

218 Aristófanes (Acarnenses 515-539, Paz 601-611) bem como<br />

alguns historiadores (Diodoro Sículo 12. 39. 3-4; Aristo<strong>de</strong>mo,<br />

FGrHist 104. 16; Éforo, FGrHist 70 F 196) explicam a obstinação<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> na não revogação do <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Mégara como meio <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sviar a atenção dos processos que corriam contra os seus amigos e<br />

que eram causa do <strong>de</strong>créscimo da sua popularida<strong>de</strong>. Para isso, nada<br />

melhor do que provocar uma guerra.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

bem, não <strong>de</strong>struas a tabuinha! Vira-a ao contrário!<br />

De certeza que não existe lei que o impeça.” Embora<br />

a observação parecesse subtil, <strong>Péricles</strong> não ce<strong>de</strong>u um<br />

ponto.<br />

2. Ao que parece, nutria um ódio pessoal contra os<br />

Megarenses; mas apresentou contra eles, como acusação<br />

pública e oficial, a apropriação da terra sagrada 219 . Promulgou<br />

um <strong>de</strong>creto para que se lhes enviasse um arauto e o mesmo<br />

também aos Lace<strong>de</strong>mónios, acusando os Megarenses. 3.<br />

Ora, este <strong>de</strong>creto, certamente <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, é pru<strong>de</strong>nte e<br />

usa argumentos mo<strong>de</strong>rados. Mas quando Antemócrito,<br />

o arauto enviado, morreu – ao que parece às mãos dos<br />

Megarenses 220 –, foi Carino 221 quem escreveu um <strong>de</strong>creto<br />

contra eles: existiria um ódio irreconciliável e inegociável<br />

entre as duas cida<strong>de</strong>s; qualquer Megarense que entrasse na<br />

Ática seria castigado com a morte 222 ; os generais, quando<br />

fizessem o juramento da tomada <strong>de</strong> posse, acrescentariam<br />

219 Refere-se a orgas, uma terra fértil que não se podia cultivar<br />

por estar consagrada à <strong>de</strong>usa <strong>de</strong> Elêusis, na fronteira com Mégara.<br />

A violação <strong>de</strong> território sagrado era uma ofensa muito grave<br />

(incorria-se em asebeia) e <strong>de</strong>u origem a outros conflitos ao longo da<br />

história da Grécia antiga: o cultivo da planície sagrada <strong>de</strong> Delfos,<br />

por exemplo, foi a causa da Guerra Sagrada <strong>de</strong> 350 a.C. (supra n.<br />

141). Para mais pormenores e bibliografia, veja-se Stadter (1989:<br />

277).<br />

220 Esta responsabilida<strong>de</strong> não foi provada e talvez a morte <strong>de</strong><br />

Antemócrito tenha sido utilizada como propaganda ateniense para<br />

justificar o <strong>de</strong>creto.<br />

221 Colaborador <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. Plutarco justifica este <strong>de</strong>creto contra<br />

os Megarenses com o cultivo da terra sagrada e do assassinato <strong>de</strong><br />

Antemócrito. Stadter (1989: 279) pensa que a atribuição <strong>de</strong>sta lei<br />

a <strong>Péricles</strong> é provavelmente uma simplificação cómica da parte <strong>de</strong><br />

Aristófanes (Acarnenses 532).<br />

222 Cf. escólio a Paz 246.<br />

124


125<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

o compromisso <strong>de</strong> invadir Mégara duas vezes por ano 223 ;<br />

que se tributassem honras fúnebres a Antemócrito junto às<br />

portas triásias 224 , agora chamadas Dípilo.<br />

4. Mas os Megarenses 225 negaram o assassinato <strong>de</strong><br />

Antemócrito e atribuíam as culpas a Aspásia e <strong>Péricles</strong>,<br />

citando estes versos célebres e conhecidos <strong>de</strong> Acarnenses 226 :<br />

“Jovens embriagados 227 que iam para Mégara, roubaram<br />

uma prostituta, Simeta: Os Megarenses excitados pelo<br />

<strong>de</strong>sgosto roubam, por sua vez, duas prostitutas <strong>de</strong><br />

Aspásia.” 228<br />

223 Alguns estudiosos, como Gomme (1945-56: II, 93)<br />

relacionaram com esta cláusula do <strong>de</strong>creto as invasões anuais <strong>de</strong><br />

Mégara durante os primeiros anos da Guerra do Peloponeso (cf.<br />

Tucídi<strong>de</strong>s 2. 31. 3, 4. 66)<br />

224 Saída a Noroeste <strong>de</strong> Atenas, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> partia a via sagrada para<br />

Elêusis e para a planície <strong>de</strong> Tria.<br />

225 Plutarco po<strong>de</strong> estar a referir-se aos historiadores <strong>de</strong> Mégara<br />

que <strong>de</strong> um modo geral são evocados em grupo (Piccirilli: 1975)<br />

ou aos Megarenses coevos do biógrafo (Connor 1970: 305-308;<br />

De Sainte Croix 1972: 387).<br />

226 Acarnenses 524-527. Aristófanes justifica a origem da Guerra<br />

do Peloponeso <strong>de</strong> modo fantasioso: tendo em consi<strong>de</strong>ração a alegada<br />

influência <strong>de</strong> Aspásia sobre <strong>Péricles</strong>, faz com que a guerra pareça<br />

consequência <strong>de</strong> uma vingançazinha pessoal por causa do rapto <strong>de</strong><br />

duas cortesãs da companheira do estadista. Essa represália assumiu<br />

a forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>creto, proibindo os Megarenses <strong>de</strong> praticarem trocas<br />

comerciais com Atenas.<br />

227 O cótabo era um jogo muito em voga na Grécia entre os<br />

séculos VI e IV a.C.: <strong>de</strong> pé ou <strong>de</strong>itado, o jogador lançava os restos<br />

<strong>de</strong> vinho do seu copo para uma lâmina <strong>de</strong> metal equilibrada na<br />

ponta <strong>de</strong> uma barra, que, por sua vez, caía sobre outra lâmina <strong>de</strong><br />

metal colocada por baixo, produzindo um som. Segundo outros<br />

testemunhos, <strong>de</strong>itavam-se os restos do vinho num recipiente<br />

metálico enquanto se pronunciava o nome da amada: se produzisse<br />

um som vibrante, era sinal <strong>de</strong> sorte no amor.<br />

228 Como já se viu anteriormente (24. 5), Plutarco aceita como<br />

histórico o facto <strong>de</strong> Aspásia ser uma alcoviteira. A explicação que


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

31. 1. Ora, não é fácil conhecer-lhe a origem 229 ,<br />

mas todos, em uníssono, atribuem a <strong>Péricles</strong> a culpa <strong>de</strong><br />

não revogar o <strong>de</strong>creto. Excepto os que dizem que ele<br />

não ce<strong>de</strong>u por gran<strong>de</strong> prudência, com a convicção <strong>de</strong><br />

que agia pelo melhor, pois julgava aquela exigência uma<br />

tentativa <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nciar a cedência, transigência e uma<br />

confissão <strong>de</strong> fraqueza 230 . Outros dizem que <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhou<br />

dos Lace<strong>de</strong>mónios por uma certa arrogância, <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

vencer e <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>.<br />

2. A acusação pior <strong>de</strong> todas e que tem mais<br />

testemunhas 231 resume-se assim: o escultor Fídias, como<br />

atrás se referiu 232 , estava encarregado da execução da<br />

estátua, por se ter tornado amigo <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, junto <strong>de</strong><br />

quem tinha muita influência: arranjou, por isso mesmo,<br />

uns tantos inimigos por motivo <strong>de</strong> inveja. Outros 233 ,<br />

para experimentarem através <strong>de</strong>le que tipo <strong>de</strong> juiz o povo<br />

seria para <strong>Péricles</strong>, convenceram um tal Ménon, um dos<br />

atribuía a <strong>Péricles</strong> e a Aspásia a responsabilida<strong>de</strong> da Guerra do<br />

Peloponeso surge, segundo Harpocrácion, s. v. Ἀσπασία, em Dúris<br />

e Teofrasto.<br />

229 Po<strong>de</strong> referir-se à origem do <strong>de</strong>creto (morte <strong>de</strong> Antemócrito,<br />

ódio <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> pelos Megarenses por razões pessoais <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e<br />

Aspásia), como sugere Stadter (1989: 283); ou à guerra, segundo<br />

Flacelière (1969: 41), ou Santoni (1991: 217). Cf. Aristófanes,<br />

Acarnenses 528.<br />

230 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 140. 5.<br />

231 Quando se refere aos testemunhos, provavelmente Plutarco<br />

tem em mente Aristófanes, Éforo e os autores que os seguiram.<br />

232 Per. 13. 14-15.<br />

233 Plutarco menciona não só os inimigos <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> que se<br />

servem <strong>de</strong> Fídias para atacar o estadista, mas também os inimigos<br />

pessoais do escultor, pois gosta <strong>de</strong> mostrar os efeitos negativos da<br />

inveja sobre os homens influentes.<br />

126


127<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

colaboradores <strong>de</strong> Fídias, a apresentar-se como suplicante<br />

na ágora, pedindo imunida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>nunciar e acusar o<br />

escultor 234 . 3. O povo acolheu o pedido do homem e a<br />

acusação foi formalizada na assembleia 235 , mas os roubos<br />

não foram provados. É que Fídias, logo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio,<br />

a conselho <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, tinha trabalhado e colocado o<br />

ouro na estátua, <strong>de</strong> tal maneira que fosse possível retirálo<br />

todo e <strong>de</strong>monstrar-lhe o peso, o que <strong>Péricles</strong> mandou<br />

nesse momento os acusadores fazerem 236 . Mas a fama<br />

dos seus trabalhos suscitava inveja contra Fídias, em<br />

especial porque, quando cinzelou o combate contra as<br />

Amazonas no escudo 237 , gravou a sua própria figura,<br />

como um velho calvo que levantava uma pedra com<br />

ambas as mãos, e incluiu também um belíssimo retrato<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> em luta contra as Amazonas 238 . 4. A posição<br />

234 De acordo com Diodoro Sículo (12. 39. 1), os inimigos <strong>de</strong><br />

<strong>Péricles</strong> fizeram com que alguns colaboradores <strong>de</strong> Fídias se sentassem<br />

junto ao altar dos Doze Deuses (no centro da Ágora) para <strong>de</strong>nunciar<br />

o roubo que Fídias teria realizado com o conhecimento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />

235 Cf. Diodoro Sículo 12. 39. 1-2. Sempre que um escravo<br />

quisesse fornecer informações ao Conselho ou à Assembleia sobre<br />

um <strong>de</strong>lito, tinha direito a imunida<strong>de</strong> (a<strong>de</strong>ia), a menos que a acusação<br />

não tivesse fundamentos – nesse caso, po<strong>de</strong>ria incorrer em pena <strong>de</strong><br />

morte. Era a Assembleia que <strong>de</strong>cidia quem seria responsável pelo<br />

julgamento: o Tribunal da Helieia ou o Conselho ou a própria<br />

Assembleia. No caso <strong>de</strong> Ménon, tudo leva a crer que seria cúmplice<br />

no roubo.<br />

236 Segundo Tucídi<strong>de</strong>s (2. 13), o objectivo inicial <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> era<br />

utilizar o ouro numa eventual situação <strong>de</strong> guerra e não <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se<br />

<strong>de</strong> calúnias.<br />

237 O tema do escudo <strong>de</strong> Atena, na representação criselefantina<br />

da <strong>de</strong>usa no Pártenon, era a batalha <strong>de</strong> Teseu contra as Amazonas.<br />

Sobre a história da batalha, vi<strong>de</strong> Plutarco, Teseu 26-28.<br />

238 É natural que o escultor sentisse a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estabelecer<br />

uma ligação mais estreita com a sua obra – e, para isso, nada melhor


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

da mão, que erguia uma lança diante do rosto <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>,<br />

estava feita com habilida<strong>de</strong>, como se quisesse disfarçar<br />

a semelhança, que se nota claramente dos dois lados.<br />

5. Fídias por fim foi levado para a prisão 239 e lá morreu<br />

<strong>de</strong> doença, ou, como dizem alguns, vítima <strong>de</strong> venenos,<br />

preparados pelos inimigos <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> para <strong>de</strong>sacreditá-lo 240 .<br />

Ao <strong>de</strong>lator Ménon, o povo, por proposta <strong>de</strong> Glauco,<br />

do que fazer uma espécie <strong>de</strong> auto-retrato disfarçado. Essa fraqueza,<br />

parece, afectou outros artistas, mesmo séculos mais tar<strong>de</strong>: há, por<br />

exemplo, quem afirme que a pessoa retratada por Leonardo da<br />

Vinci em Mona Lisa é o próprio pintor. Quanto a <strong>Péricles</strong>, é talvez<br />

difícil saber se a sua representação foi um tributo inocente <strong>de</strong> Fídias,<br />

para imortalizar o político nunca esquecido nos séculos seguintes<br />

por causa das suas qualida<strong>de</strong>s morais e <strong>de</strong> estadista, ou se foi feita<br />

a pedido do <strong>Péricles</strong>. O certo é que Fídias parece ter previsto que a<br />

imagem <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> eternizada na sua obra suscitaria nos <strong>de</strong>tractores<br />

e invejosos do filho <strong>de</strong> Xantipo o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição. Mas, segundo<br />

voz corrente na Antiguida<strong>de</strong>, o escultor apren<strong>de</strong>ra com <strong>Péricles</strong> a<br />

ser previ<strong>de</strong>nte, pois a imagem estaria <strong>de</strong> tal modo posicionada, que<br />

retirá-la implicaria a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> toda a estátua (cf. e. g. Aristóteles,<br />

Sobre o Universo 399b; Valério <strong>Máximo</strong> 8. 14. 6).<br />

239 Como nos relata Plutarco, a <strong>de</strong>fesa proposta por <strong>Péricles</strong><br />

não resultou e Fídias foi con<strong>de</strong>nado. Segundo Diodoro Sículo<br />

(12. 39. 1), Fídias foi preso e <strong>Péricles</strong> acusado <strong>de</strong> roubar o templo.<br />

Filócoro (FGrHist 328 F 121), porém, indica-nos que o escultor<br />

foi <strong>de</strong>sterrado para a Éli<strong>de</strong> on<strong>de</strong> executou a estátua <strong>de</strong> Zeus em<br />

Olímpia e que pouco <strong>de</strong>pois foi assassinado pelos habitantes,<br />

acusado <strong>de</strong> roubo.<br />

240 Plutarco não esclarece <strong>de</strong> que modo a morte <strong>de</strong> Fídias<br />

po<strong>de</strong>ria influenciar a reputação <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. Assim, são três as<br />

hipóteses que po<strong>de</strong>mos levantar: ou o estadista era afectado já<br />

que ficava <strong>de</strong>sacreditado por não ter conseguido ajudar o amigo;<br />

ou porque o aparente suicídio resultava numa confissão <strong>de</strong> culpa<br />

(logo, <strong>Péricles</strong> estaria, também ele, implicado); ou ainda visto que<br />

o filho <strong>de</strong> Xantipo acaba por surgir como um indivíduo capaz <strong>de</strong><br />

matar o cúmplice para se proteger.<br />

128


129<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

conce<strong>de</strong>u a isenção <strong>de</strong> impostos e encarregou os generais<br />

<strong>de</strong> lhe garantirem a segurança 241 .<br />

32. 1. Por essa altura, Aspásia sofreu uma acusação<br />

<strong>de</strong> impieda<strong>de</strong> 242 , quando o comediógrafo Hermipo 243<br />

a perseguiu e acusou <strong>de</strong> receber mulheres livres num<br />

lugar on<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> pu<strong>de</strong>sse ter encontros com elas 244 .<br />

2. Então Diopites 245 propôs um <strong>de</strong>creto (psephisma),<br />

segundo o qual quem não acreditasse nas divinda<strong>de</strong>s ou<br />

ministrasse ensinamentos sobre fenómenos celestes, seria<br />

241 Plutarco <strong>de</strong>ve ter tido acesso a este <strong>de</strong>creto na colecção<br />

epigráfica do macedónio Crátero (cf. Plutarco, Címon 13. 1; Aristi<strong>de</strong>s<br />

26. 1-2). Sobre Glauco, não há qualquer outra informação.<br />

242 Esta informação surgia no diálogo Aspasia <strong>de</strong> Antístenes<br />

Socrático (cf. Aristóteles, Constituição <strong>de</strong> Atenas 589e; Aristófanes,<br />

escólio a Cavaleiros 969; Hermógenes, escólio 7. 165 Walz). A<br />

historicida<strong>de</strong> da acusação <strong>de</strong> asebeia é negada por Montuori<br />

(1981: 87-109), porque Aspásia não era cidadã ateniense, logo não<br />

podia incorrer neste <strong>de</strong>lito.<br />

243 Os temas preferidos <strong>de</strong>ste comediógrafo eram a política<br />

contemporânea, a paródia <strong>de</strong> mitos e teorias filosóficas. <strong>Péricles</strong>,<br />

Hipérbolo, e talvez mesmo Alcibía<strong>de</strong>s, sentiram na pele tal<br />

incómodo. Segundo Montuori (1981: 92, n. 33), a atribuição da<br />

autoria <strong>de</strong>sta acusação a Hermipo coaduna-se com os frequentes<br />

ataques feitos a <strong>Péricles</strong> nas suas comédias. Em Moirai (430 a.C.),<br />

ataca violentamente o estadista pela sua estratégia na Guerra do<br />

Peloponeso (Per. 33. 8).<br />

244 Cf. Per. 13. 15, on<strong>de</strong> se faz uma acusação semelhante contra<br />

Fídias.<br />

245 Adivinho que os comediógrafos (e. g. Aristófanes, Cavaleiros<br />

1085, Vespas 380, Aves 988) ridicularizavam com bastante<br />

frequência pelo seu fanatismo, pelo que se compreen<strong>de</strong> que fosse<br />

contra uma interpretação racional dos fenómenos naturais. Segundo<br />

Aristófanes (escólio a Cavaleiros 1085) foi companheiro <strong>de</strong> Nícias,<br />

o que, por si só, não permite consi<strong>de</strong>rá-lo um. Era sobretudo um<br />

oportunista que aproveitava as superstições dos Atenienses nas suas<br />

intervenções políticas.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

sujeito a um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia pública 246 , dirigindo<br />

as suspeitas contra <strong>Péricles</strong>, por causa <strong>de</strong> Anaxágoras 247 .<br />

3. O povo acolhia e aceitava este tipo <strong>de</strong> ataque, <strong>de</strong> tal<br />

maneira que, aproveitando a ocasião, foi aprovado um<br />

<strong>de</strong>creto por proposta <strong>de</strong> Dracônti<strong>de</strong>s 248 , exigindo que<br />

<strong>Péricles</strong> apresentasse as contas dos dinheiros públicos 249<br />

246 Eisangelia era um tipo <strong>de</strong> processo reservado para questões<br />

graves e urgentes que não admitiam atrasos.<br />

247 Cf. Diodoro Sículo (12. 39. 2) e Diógenes Laércio (2. 12-<br />

14), que narra quatro versões do julgamento. Quer a sua data,<br />

quer a própria cronologia da vida <strong>de</strong> Anaxágoras têm sido alvo <strong>de</strong><br />

acesa controvérsia. Quanto ao primeiro, propõem-se datas entre<br />

450-430 a.C. Para um estudo mais aprofundado <strong>de</strong>ste assunto,<br />

vi<strong>de</strong> Mansfeld (1980: 80-84). A melhor solução é admitir com<br />

Plutarco que o julgamento <strong>de</strong> Anaxágoras teve lugar pouco <strong>de</strong>pois<br />

do <strong>de</strong> Fídias. No entanto, em Per. 32. 5, o biógrafo sugere que, com<br />

a ajuda <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, Anaxágoras nunca chegou a ir a tribunal, mas<br />

muitos estudiosos, como Mansfeld (1980: 82-84), discordam.<br />

248 Dracônti<strong>de</strong>s e o seu <strong>de</strong>creto são mencionados apenas por<br />

Plutarco. Trata-se provavelmente do mesmo Dracônti<strong>de</strong>s que era<br />

epistates da Boulê por altura da aprovação do <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Cálcis em<br />

446-445 a.C. e do general que em 433-432 a.C, acompanhou<br />

Glauco na expedição a Corcira. Segundo Meinhardt (1957: 61),<br />

a fonte <strong>de</strong> Plutarco em relação a este assunto terá sido a colecção <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>cretos <strong>de</strong> Crátero.<br />

249 Segundo Stadter (1989: 301), há uma anedota que<br />

seguramente está relacionada com esta situação: Alcibía<strong>de</strong>s, ao ver<br />

<strong>Péricles</strong> preocupado, diz-lhe que não <strong>de</strong>via pensar na maneira <strong>de</strong><br />

apresentar as contas, mas sim em como não fazê-lo. O estratego,<br />

seguindo o seu conselho, <strong>de</strong>u início à guerra (Diodoro Sículo 12.<br />

38. 3-4 e 39. 3; Aristo<strong>de</strong>mo, FGrHist 104 F 16 e Valério <strong>Máximo</strong><br />

3. 1). Alguns autores i<strong>de</strong>ntificam o processo em causa nesta anedota<br />

com o <strong>de</strong> 430 a.C., na sequência do qual <strong>Péricles</strong> foi <strong>de</strong>stituído<br />

(vi<strong>de</strong> Gomme 1945: 187). Frost (1964: 69-72) e Donnay (1968:<br />

19-36) não aceitam esta interpretação, argumentando que a<br />

acusação <strong>de</strong> 430 a.C. dizia respeito a questões militares (para estes,<br />

o processo em causa data <strong>de</strong> 438-437 a.C.).<br />

130


131<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

aos prítanes 250 ; e que os juízes, com pedras <strong>de</strong> voto do<br />

altar <strong>de</strong> Atena 251 , <strong>de</strong>cidissem na Acrópole. 4. Hágnon 252 ,<br />

porém, suprimiu esta cláusula do <strong>de</strong>creto e propôs que<br />

o processo fosse julgado diante <strong>de</strong> mil e quinhentos<br />

juízes 253 , quer se quisesse enten<strong>de</strong>r o caso como <strong>de</strong> roubo<br />

e corrupção, quer <strong>de</strong> malversação.<br />

5. Por Aspásia, <strong>Péricles</strong> 254 interce<strong>de</strong>u <strong>de</strong>rramando,<br />

como diz Ésquines 255 , durante o processo, lágrimas sem<br />

conta fazendo apelos aos juízes. Quanto a Anaxágoras,<br />

250 Os prítanes eram uma comissão <strong>de</strong> cinquenta elementos <strong>de</strong><br />

uma tribo que presidiam às reuniões do conselho e da assembleia,<br />

mas apenas num período curto: um décimo do ano, sendo <strong>de</strong>pois<br />

substituídos por outra comissão, <strong>de</strong> outra tribo, até perfazerem as<br />

<strong>de</strong>z existentes.<br />

251 Conferia-se, assim, mais solenida<strong>de</strong> ao veredicto. O altar<br />

mencionado é o <strong>de</strong> Atena na Acrópole, junto à fachada oriental do<br />

Erecteion, on<strong>de</strong> terminava a procissão das Panateneias.<br />

252 Filho <strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> nome Nícias, participou na Guerra<br />

<strong>de</strong> Samos, em 440 a.C., como estratego (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 117).<br />

É comummente aceite como provável fundador <strong>de</strong> Anfípolis<br />

(Tucídi<strong>de</strong>s 4. 102. 3, 5. 11. 1). Foi novamente estratego em 431<br />

a.C. (por ocasião do cerco <strong>de</strong> Poti<strong>de</strong>ia – cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 58) e em<br />

429 a.C. (Tucídi<strong>de</strong>s 2. 95. 3). Participou na assinatura da Paz <strong>de</strong><br />

Nícias (Tucídi<strong>de</strong>s 5. 19. 2, 24. 1) e, em 413 a.C., foi eleito proboulos.<br />

Esta sua emenda ao <strong>de</strong>creto sugere que era apoiante <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />

253 Consequentemente, o julgamento que <strong>de</strong> início assumia um<br />

carácter extraordinário, tornou-se um processo ordinário, embora<br />

o júri fosse mais numeroso do que o habitual.<br />

254 É razoável pensar que agisse como seu <strong>de</strong>fensor, já que<br />

Aspásia era meteca. Provavelmente por altura da sua chegada <strong>de</strong><br />

Mileto, <strong>Péricles</strong> assumiu as funções <strong>de</strong> seu representante (prostates)<br />

e a inerente responsabilida<strong>de</strong> pela sua conduta moral e civil. Vi<strong>de</strong><br />

Montuori (1981: 93).<br />

255 Ateneu (589e) atribui esta notícia a Ésquines, segundo o<br />

qual <strong>Péricles</strong> chorou mais por Aspásia do que nos momentos em<br />

que a sua vida ou riqueza correram perigo.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

por receio, enviou-o para fora da cida<strong>de</strong> 256 . 6. Como, no<br />

caso <strong>de</strong> Fídias, <strong>de</strong>sagradara ao povo, tinha medo <strong>de</strong> um<br />

julgamento; avivou então o fogo 257 da guerra que estava<br />

iminente e que ardia em segredo, esperando dissipar<br />

as acusações e diminuir as más vonta<strong>de</strong>s; é que, nas<br />

empresas gran<strong>de</strong>s e arriscadas, era só nele que a cida<strong>de</strong><br />

confiava por causa do prestígio e do po<strong>de</strong>r que <strong>de</strong>tinha.<br />

São estas as razões apresentadas para não ter permitido<br />

que o povo ce<strong>de</strong>sse aos Lace<strong>de</strong>mónios – mas a verda<strong>de</strong><br />

é incerta.<br />

33. 1. Os Lace<strong>de</strong>mónios, apercebendo-se <strong>de</strong> que,<br />

se o <strong>de</strong>stituíssem, encontrariam os Atenienses mais<br />

complacentes para tudo, exortaram-nos a expiar o crime<br />

sacrílego <strong>de</strong> Cílon 258 , no qual, como contou Tucídi<strong>de</strong>s 259 ,<br />

a família materna <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> estava envolvida. 2. Mas,<br />

para os que tomaram essa iniciativa, o projecto resultou<br />

ao contrário: é que em vez <strong>de</strong> suspeita e calúnia,<br />

256 Segundo Diodoro Sículo (12. 39. 2), Anaxágoras foi acusado<br />

<strong>de</strong> impieda<strong>de</strong> e, em Plutarco, Nícias 23. 4, diz-se que chegou a estar<br />

preso.<br />

257 Imagem também usada por Aristófanes (Paz 608-610).<br />

258 Cílon, ateniense nobre e influente, vencedor dos Jogos<br />

Olímpicos, casou-se com a filha do tirano <strong>de</strong> Mégara. Quando,<br />

certa vez, consultou o oráculo <strong>de</strong> Delfos, convenceu-se <strong>de</strong> que<br />

<strong>de</strong>via tornar-se tirano em Atenas, ocupando a Acrópole. Falhada<br />

a tentativa – os Atenienses aperceberam-se e houve um confronto<br />

–, Cílon fugiu com o irmão, mas os outros que o ajudaram foram<br />

assassinados, alguns dos quais no interior dos templos, pelo que se<br />

consi<strong>de</strong>rava que os assassinos tinham cometido sacrilégio contra os<br />

<strong>de</strong>uses. Exortar à exclusão dos que eram amaldiçoados por assassinar<br />

suplicantes <strong>de</strong>ve ter parecido uma excelente réplica àquela a que os<br />

Atenienses votaram os <strong>de</strong> Mégara por sacrilégio.<br />

259 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 126-127.<br />

132


133<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

<strong>Péricles</strong> obteve ainda mais confiança e prestígio entre<br />

os cidadãos, como alguém que os inimigos o<strong>de</strong>iam e<br />

temem particularmente. 3. Por isso, antes <strong>de</strong> Arquidamo<br />

atacar a Ática com os Peloponésios, <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>clarou aos<br />

Atenienses que, se Arquidamo, embora <strong>de</strong>vastando as<br />

restantes, poupasse as suas proprieda<strong>de</strong>s, ou por laços<br />

<strong>de</strong> hospitalida<strong>de</strong> que existiam entre eles, ou para dar aos<br />

seus inimigos motivos <strong>de</strong> calúnia, entregaria à cida<strong>de</strong> a<br />

terra e as casas <strong>de</strong> campo que lhe pertenciam 260 .<br />

4. Os Lace<strong>de</strong>mónios e seus aliados atacaram a<br />

Ática com um gran<strong>de</strong> exército, sob o comando do rei<br />

Arquidamo; e, <strong>de</strong>vastando a região, avançaram para<br />

Acarnas 261 on<strong>de</strong> acamparam, pois julgavam que os<br />

Atenienses não o suportariam, mas lutariam contra eles<br />

por raiva e orgulho 262 .<br />

5. No entanto, parecia a <strong>Péricles</strong> perigoso envolver<br />

a cida<strong>de</strong> num combate contra sessenta mil hoplitas do<br />

Peloponeso e da Beócia – tantos eram os que participaram<br />

na primeira invasão. Acalmou por isso os que, indignados 263<br />

com os acontecimentos, queriam combater, dizendo que as<br />

árvores cortadas e abatidas voltavam a crescer rapidamente,<br />

mas que não é fácil recuperar os homens <strong>de</strong>struídos.<br />

260 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 13. 1.<br />

261 Na Primavera <strong>de</strong> 431 a.C. (cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 18-20; Diodoro<br />

Sículo 12. 42). Acarnas era o maior dos <strong>de</strong>mos da Ática e situava-se<br />

a sessenta estádios a Norte <strong>de</strong> Atenas, perto da planície <strong>de</strong> Triásia.<br />

Aristófanes <strong>de</strong>dicou uma das suas comédias – intitulada Acarnenses<br />

– a essa região tão afectada pela guerra.<br />

262 Este passo é o resumo <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s 2. 19-20. Segundo o<br />

historiador, Arquidamo baseava as suas esperanças na juventu<strong>de</strong><br />

dos Atenienses e na atitu<strong>de</strong> dos Acarnenses que não permitiriam o<br />

saque da sua região.<br />

263 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 21.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

6. Deixou <strong>de</strong> reunir o povo em assembleia 264 ,<br />

temendo ser forçado a agir contra a sua vonta<strong>de</strong>. Como<br />

o piloto <strong>de</strong> um barco que, quando sopra o vento no altomar,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> pôr tudo em or<strong>de</strong>m e <strong>de</strong> esticar as velas,<br />

usa a sua técnica, sem se preocupar com as lágrimas dos<br />

passageiros que sofrem <strong>de</strong> náuseas e <strong>de</strong> medo, também<br />

<strong>Péricles</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter fechado as portas <strong>de</strong> Atenas e <strong>de</strong>,<br />

por segurança, a ter protegido toda com guardas, seguiu<br />

os seus planos, pouco se inquietando com protestos e<br />

<strong>de</strong>scontentamentos 265 . 7. Na verda<strong>de</strong>, muitos dos amigos<br />

pressionaram-no com súplicas e muitos dos inimigos<br />

fizeram ameaças e acusações, os coros entoaram canções<br />

e piadas contra a sua honra, insultando a estratégia que<br />

<strong>de</strong>fendia como cobar<strong>de</strong> e <strong>de</strong>masiado frouxa para com os<br />

inimigos 266 .<br />

264 A Ecclesia reunia obrigatoriamente pelo menos uma vez por<br />

mês. Não temos qualquer indicação que nos diga que os generais<br />

tinham o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> suspen<strong>de</strong>r as reuniões regulares da Assembleia.<br />

Sabemos, porém, que em situações <strong>de</strong> emergência podiam convocar<br />

uma sessão extraordinária. Sobre a acção <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> neste momento<br />

<strong>de</strong> crise, leia-se Tucídi<strong>de</strong>s 2. 22.<br />

265 Plutarco aproveita o texto <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s (2. 22) para<br />

evi<strong>de</strong>nciar, mais uma vez, a calma e a segurança <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. A<br />

comparação platónica (República 488a-e; Górgias 512b-d) com o<br />

piloto <strong>de</strong> um navio mostra as preocupações literárias do biógrafo,<br />

que procura adornar a imagem do político ateniense como homem<br />

sábio e pru<strong>de</strong>nte, que, em situações difíceis, apenas ouve a voz da<br />

razão.<br />

266 Está em causa a controversa estratégia adoptada por <strong>Péricles</strong>:<br />

não ripostar aos ataques terrestres que os inimigos faziam à Ática<br />

(o que iria certamente aumentar a <strong>de</strong>struição), mas contra-atacar<br />

por mar (pois o po<strong>de</strong>rio ateniense a este nível era manifestamente<br />

reconhecido por todos). Segundo Tucídi<strong>de</strong>s, este plano era muito<br />

pru<strong>de</strong>nte e teria tido hipóteses <strong>de</strong> sair vencedor, não fosse o <strong>de</strong>flagrar<br />

da peste em Atenas. Implicava, contudo, que a população assistisse<br />

134


135<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

8. Já também Cléon 267 o atacava, aproveitando<br />

a ira dos cidadãos contra ele para alcançar a li<strong>de</strong>rança<br />

do povo, como mostram estes anapestos da autoria <strong>de</strong><br />

Hermipo (fr. 47 K.-A.):<br />

“Ó rei dos sátiros, porque não queres empunhar<br />

a lança e pronuncias em vez disso extraordinários<br />

discursos sobre a guerra? É a alma <strong>de</strong> Teleto 268 que se<br />

te insinua sob a pele? Enquanto o punhal se afia na<br />

pedra <strong>de</strong> amolar, tu arreganhas os <strong>de</strong>ntes por causa das<br />

facadinhas e mordi<strong>de</strong>las que já sentes do Cléon, essa<br />

linguinha cortante.”<br />

34. 1. <strong>Péricles</strong> não se perturbou com nenhuma<br />

<strong>de</strong>ssas investidas e suportava com calma e em silêncio a<br />

impopularida<strong>de</strong> e o ódio. Enviou para o Peloponeso uma<br />

frota <strong>de</strong> cem navios 269 , mas ele próprio não embarcou,<br />

antes ficou a vigiar e a controlar a cida<strong>de</strong> até que os<br />

Peloponésios se retirassem.<br />

2. Para acalmar a multidão irritada por causa da<br />

guerra, atraiu-a com subsídios e propôs cleruquias. Assim,<br />

à <strong>de</strong>struição e pilhagem dos seus bens sem nada po<strong>de</strong>r fazer. O<br />

povo, talvez por não compreen<strong>de</strong>r o alcance <strong>de</strong>sta estratégia, acusa<br />

o estratego <strong>de</strong> cobardia e tolerância em relação aos inimigos.<br />

267 Um dos principais sucessores <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> que quer Aristófanes<br />

quer Tucídi<strong>de</strong>s atacaram pela <strong>de</strong>magogia que representava (cf.<br />

Aristófanes, Cavaleiros, Vespas, Paz; Tucídi<strong>de</strong>s 3. 36. 6). Consta que<br />

nos princípios da Guerra do Peloponeso (429 a.C.) atacou <strong>Péricles</strong><br />

(cf. Per. 35. 5) com graves acusações. Foi intransigente na oposição<br />

aos Espartanos e morreu em 422 a.C. na batalha <strong>de</strong> Anfípolis.<br />

268 Trata-se <strong>de</strong> uma personagem conhecida pela cobardia, mas<br />

que não se encontra i<strong>de</strong>ntificada. Stadter (1989: 313) sugere que<br />

talvez corresponda a Téleas (cf. Aristófanes, Paz 1008; Aves 167-<br />

170 e respectivo escólio).<br />

269 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 143.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> expulsar todos os Eginetas, distribuiu a ilha, por<br />

tiragem à sorte, entre Atenienses 270 . 3. Alguma consolação<br />

resultou também dos danos causados aos inimigos. De<br />

facto, os que circum-navegavam o Peloponeso <strong>de</strong>struíram<br />

muitos campos, al<strong>de</strong>ias e pequenas cida<strong>de</strong>s 271 ; enquanto<br />

ele próprio se dirigiu por terra para Mégara e a <strong>de</strong>vastou<br />

completamente 272 . 4. Assim, era evi<strong>de</strong>nte que se os inimigos<br />

causavam, por terra, muitos danos aos Atenienses, também<br />

sofriam por mar muito graças a eles; nem teriam prolongado<br />

tanto a guerra e teriam cedido rapidamente, como <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o príncipio <strong>Péricles</strong> previra 273 , se a vonta<strong>de</strong> divina não se<br />

opusesse secretamente às intenções humanas 274 .<br />

5. Foi então que, pela primeira vez 275 , um surto<br />

270 Segundo Tucídi<strong>de</strong>s (2. 27. 1), a razão é estratégica e não<br />

pessoal como em Plutarco: é que Egina era muito próxima do<br />

Peloponeso e da Ática e, além disso, esta era uma boa forma <strong>de</strong><br />

acomodar os <strong>de</strong>salojados que se encontravam nessa situação por<br />

causa da invasão efectuada pelos Espartanos.<br />

271 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 25; Diodoro Sículo 12. 42. 7; Justiniano 3. 7. 5-6.<br />

272 Esta acção vem muito provavelmente na sequência do<br />

<strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Mégara (Per. 30. 3). Ao contrário <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s (2. 31)<br />

e <strong>de</strong> Diodoro Sículo (12. 44. 3), Plutarco esbate o protagonismo<br />

do estadista nesta ofensiva, pois não preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>screver a acção <strong>de</strong><br />

<strong>Péricles</strong> enquanto estratego durante a Guerra do Peloponeso.<br />

273 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 141-144, on<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> respon<strong>de</strong> aos<br />

argumentos dos Coríntios e analisa as hipóteses <strong>de</strong> ambas as<br />

potências (Atenas e Esparta).<br />

274 Plutarco aproveita a única referência <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s à divinda<strong>de</strong><br />

(2. 64. 1) como elemento que altera a seu prazer os planos humanos.<br />

Note-se o paralelo com Fab. 17. 1, on<strong>de</strong> se diz que Aníbal se <strong>de</strong>svia<br />

<strong>de</strong> Roma por vonta<strong>de</strong> divina.<br />

275 O surto surgiu nos começos do Verão <strong>de</strong> 430 a.C. Por<br />

causa do enca<strong>de</strong>amento do raciocínio que o levou a passar da<br />

responsabilida<strong>de</strong> divina pela <strong>de</strong>rrota ateniense para a peste, Plutarco<br />

omitiu <strong>de</strong>terminados acontecimentos cruciais no <strong>de</strong>curso da guerra<br />

(cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 47 e 55; Diodoro 12. 45. 1), nomeadamente a<br />

136


137<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

<strong>de</strong> peste os atacou e lhes <strong>de</strong>vastou em pleno vigor a<br />

juventu<strong>de</strong> e a força. Atingidos no corpo e no espírito por<br />

causa da doença, foi geral o exaspero contra <strong>Péricles</strong> e a<br />

tentativa <strong>de</strong> o molestar, como os enfermos que <strong>de</strong>liram<br />

fazem ao médico ou ao pai. Deixaram-se persuadir pelos<br />

inimigos <strong>de</strong>le <strong>de</strong> que a concentração da multidão do<br />

campo na cida<strong>de</strong> originara a doença, pois, no Verão,<br />

muitos eram forçados a viver amontoados em casas<br />

pequenas e barracas abafadas, numa vida se<strong>de</strong>ntária<br />

e ociosa em vez da anterior passada ao ar livre. E o<br />

responsável pela situação era quem, por causa da guerra,<br />

encurralou a multidão do campo <strong>de</strong>ntro das muralhas<br />

sem dar nada que fazer a estes homens, permitindo assim<br />

que se empestassem uns aos outros ao aprisioná-los<br />

como gado, sem lhes proporcionar nenhuma mudança<br />

ou melhoria 276 .<br />

35. 1. No <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> remediar a situação e <strong>de</strong> causar<br />

algum dano aos inimigos, equipou cento e cinquenta<br />

barcos e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> embarcar muitos e valentes hoplitas<br />

e cavaleiros, preparava-se para partir, causando gran<strong>de</strong><br />

esperança aos cidadãos e medo não pequeno aos<br />

inimigos com tamanha força 277 . 2. Quando os navios<br />

já estavam prontos e <strong>Péricles</strong> tinha embarcado na sua<br />

segunda invasão lace<strong>de</strong>mónia que motivou a concentração da<br />

população no interior das muralhas.<br />

276 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 47-54 que Plutarco aqui resume, acrescentando<br />

a reacção do povo em relação à estratégia <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />

277 Tucídi<strong>de</strong>s 2. 56. 1-2 fala da frota em questão, constituída<br />

por cem embarcações fornecidas por Atenas e cinquenta por Quios<br />

e Lesbos. Este número, aliado aos quatro mil hoplitas e trezentos<br />

cavaleiros, mostra bem a dimensão e potencial <strong>de</strong> uma tal força.


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

própria trirreme, suce<strong>de</strong>u que o sol se eclipsou e as trevas<br />

apareceram 278 , o que a todos perturbou como um sinal<br />

tremendo. Ora <strong>Péricles</strong>, ao ver o piloto muito assustado<br />

e hesitante, pôs-lhe o manto diante dos olhos e, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> os tapar, perguntou-lhe se não via naquele gesto algo<br />

terrível ou um sinal <strong>de</strong> algo terrível. Como ele respon<strong>de</strong>u<br />

que não, disse-lhe: “Em que é que a outra situação difere<br />

<strong>de</strong>sta, a não ser porque o factor que provoca as trevas é<br />

maior do que o meu manto?” Pelo menos, esta episódio<br />

contada nas escolas <strong>de</strong> filosofia 279 .<br />

3. Então <strong>Péricles</strong> zarpou, mas parece não ter<br />

conseguido nada digno dos preparativos. Cercou a<br />

sagrada Epidauro 280 , que lhe <strong>de</strong>spertou a esperança <strong>de</strong><br />

cair em seu po<strong>de</strong>r, e no entanto falhou por causa da<br />

278 O eclipse aqui mencionado teve lugar a 3 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 431<br />

a.C., como afirma Tucídi<strong>de</strong>s (2. 28).<br />

279 Cícero (República 1. 16) e Valério <strong>Máximo</strong> (8. 11, ext. 1)<br />

mostram <strong>Péricles</strong> a explicar o eclipse, sem no entanto relacionarem<br />

tal explicação com o momento da partida da expedição. Segundo<br />

Stadter (1989: 320), esta pequena incongruência <strong>de</strong> Plutarco<br />

relativamente a outras fontes (já que combina uma expedição<br />

que teve lugar em 430 a.C. com um eclipse que, como já vimos,<br />

ocorreu em 431 a.C.) resulta do próprio método <strong>de</strong> composição do<br />

biógrafo: embora estivesse a seguir <strong>de</strong> perto o texto <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, ao<br />

<strong>de</strong>dicar-se à narrativa da peste, ter-se-á esquecido da referência que<br />

o historiador faz ao fenómeno e <strong>de</strong> imediato passa para o episódio<br />

anedótico (<strong>de</strong> fonte diversa). Assim, po<strong>de</strong>-se partir do princípio <strong>de</strong><br />

que lia as notas para organizar o pensamento, mas que nem sempre<br />

ia reconfirmar os dados. Esta anedota também lembra a importância<br />

que o conhecimento filosófico adquiriu com Anaxágoras.<br />

280 Epidauro era a segunda cida<strong>de</strong> da Argólida e forneceu oito navios<br />

em Artemísio e <strong>de</strong>z em Salamina. A sua hostilida<strong>de</strong> com Argos, primeira<br />

cida<strong>de</strong> da região, fez com que fosse partidária <strong>de</strong> Esparta. Epidauro era<br />

famosa pelo santuário <strong>de</strong>dicado a Asclépio. O facto <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> atacar<br />

esta região durante uma situação <strong>de</strong> peste causa admiração, pois era<br />

mais lógico que tentasse pedir ajuda ao <strong>de</strong>us da medicina.<br />

138


139<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

doença. Na verda<strong>de</strong>, a peste não dizimou apenas os<br />

Atenienses, como também os que <strong>de</strong> algum modo se<br />

aproximavam do seu exército 281 . Quando, por causa do<br />

sucedido, os Atenienses ficaram furiosos com ele, tentou<br />

consolá-los e encorajá-los. 4. Mas não lhes apazigou a<br />

cólera nem os dissuadiu enquanto, com votos contra<br />

ele na mão e reinvestidos na sua autorida<strong>de</strong>, lhe não<br />

tiraram o comando do exército e lhe não impuseram<br />

uma multa em dinheiro; essa soma era inferior a quinze<br />

talentos, segundo os que contam por baixo; ou superior<br />

a cinquenta, <strong>de</strong> acordo com os que contam por cima 282 .<br />

5. O acusador que o processou foi Cléon, segundo diz<br />

Idomeneu 283 ; Símias, segundo Teofrasto 284 ; Heracli<strong>de</strong>s<br />

Pôntico 285 indica Lacrátidas.<br />

281 Neste passo, Plutarco fun<strong>de</strong> dois acontecimentos diferentes:<br />

o cerco <strong>de</strong> Epidauro (Tucídi<strong>de</strong>s 2. 56. 4) e o <strong>de</strong> Poti<strong>de</strong>ia (Tucídi<strong>de</strong>s<br />

2. 58. 1-2), interrompido por causa da peste que atacou o exército<br />

ateniense. A confusão justifica-se mais uma vez pelo método <strong>de</strong><br />

Plutarco, que se baseia sobretudo na memória.<br />

282 Sobre este assunto, veja-se Tucídi<strong>de</strong>s 2. 65. 3 (em parte<br />

parafraseado por Plutarco) e Diodoro Sículo 12. 45. 4. Segundo<br />

Platão (Górgias 516a), o facto <strong>de</strong> o povo afastar <strong>Péricles</strong> do comando<br />

é sinónimo <strong>de</strong> que o estadista não estava a tornar os cidadãos<br />

melhores. De acordo com esta mesma fonte, <strong>Péricles</strong> era acusado<br />

<strong>de</strong> roubar o erário público.<br />

O processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>posição chamava-se epicheirotonia. Votava-se,<br />

então, no princípio <strong>de</strong> cada pritania, a actuação dos generais e magistrados.<br />

Se essa fosse consi<strong>de</strong>rada negativa, o general ou magistrado<br />

seria objecto <strong>de</strong> julgamento: se fosse con<strong>de</strong>nado, o tribunal<br />

estabeleceria a pena; se fosse absolvido, reassumiria o seu cargo (cf.<br />

Aristóteles, Constituição <strong>de</strong> Atenas 61. 2).<br />

283 FGrHist 338 F 9.<br />

284 O facto <strong>de</strong> o nome Símias ser raro em Atenas reforça a<br />

autenticida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta referência. Plutarco também o invoca em Obras<br />

Morais 805c.<br />

285 Fr. 47 Wehrli. Lacrátidas é referido apenas neste passo. Trata-se


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

36. 1. Mas os problemas públicos que o afectavam<br />

haviam <strong>de</strong> cessar rapidamente, pois o povo <strong>de</strong>scarregou a<br />

ira contra ele na picada, como um ferrão 286 . Foram então as<br />

questões domésticas que se lhe tornaram penosas: durante<br />

a peste, per<strong>de</strong>ra não poucos familiares e as relações em casa<br />

vinham sendo, <strong>de</strong> há muito, perturbadas pela discórdia. 2.<br />

Xantipo, o mais velho dos seus filhos legítimos 287 , que era<br />

por natureza gastador e estava casado com uma mulher<br />

nova e esbanjadora, filha <strong>de</strong> Tisandro e neta <strong>de</strong> Epílico 288 ,<br />

suportava com dificulda<strong>de</strong> a economia do pai, que lhe<br />

dava pouco e … com peso e medida. 3. Por isso, dirigiuse<br />

a um amigo e pediu-lhe dinheiro emprestado, como se<br />

o fizesse por indicação <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. 4. Mais tar<strong>de</strong>, quando<br />

provavelmente <strong>de</strong> um membro <strong>de</strong> uma família antiga. Vi<strong>de</strong> Davies<br />

(1971: 43-47).<br />

286 Introduz-se neste momento uma quebra do relato<br />

cronológico – que só será retomado em 37. 1 – para dar a conhecer<br />

os problemas pessoais <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> com a família. Nesta comparação<br />

com o ferrão das abelhas, Plutarco foi provavelmente influenciado<br />

por Platão (Fedro 91c) e Aristófanes (Vespas 405 sq., on<strong>de</strong> os juízes<br />

atenienses <strong>de</strong>liberam como quem distribui ferrões para punir os<br />

que têm comportamentos indignos).<br />

287 Filho da primeira esposa <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, provavelmente nascido<br />

em 457 a.C. Era costume dar ao filho mais velho o nome do avô<br />

paterno. Segundo Platão (Menéxeno 94b), <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>u aos filhos<br />

uma excelente educação no que concerne à arte da cavalaria,<br />

música e ginástica, mas não conseguiu fazer <strong>de</strong>les agathoi. Ésquines<br />

Socrático (5. 220d) critica-os pelas más companhias.<br />

288 Membro da família dos Filía<strong>de</strong>s (embora <strong>de</strong> um ramo diferente<br />

do <strong>de</strong> Milcía<strong>de</strong>s e do <strong>de</strong> Címon), nasceu cerca do ano 490 a.C. Teve<br />

certa importância política, <strong>de</strong> tal modo que o seu nome chega a<br />

aparecer num ostrakon, como candidato ao ostracismo (440 a.C.). Vi<strong>de</strong><br />

Meiggs & Lewis (1969: 45-46). A referência à natureza dissipadora<br />

das mulheres <strong>de</strong> boas famílias faz recordar as queixas <strong>de</strong> Estrepsía<strong>de</strong>s<br />

em relação à sua consorte (vi<strong>de</strong> Aristófanes, Nuvens 46-68).<br />

140


141<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

o amigo pediu ao pai o reembolso, <strong>Péricles</strong> intentou um<br />

processo contra ele 289 . O jovem Xantipo, irritado com o<br />

assunto, insultou o pai. Primeiro divulgou, para o meter<br />

a ridículo, a forma como geria a casa e as discussões<br />

que mantinha com os sofistas. 5. Durante um pentatlo,<br />

por exemplo, alguém ferira involuntariamente com um<br />

dardo Epítimo <strong>de</strong> Farsália 290 que acabou por morrer – e<br />

<strong>Péricles</strong>, durante um dia inteiro, pôs-se a discutir com<br />

Protágoras 291 quem se <strong>de</strong>via consi<strong>de</strong>rar, numa perspectiva<br />

rigorosa, o responsável pelo inci<strong>de</strong>nte, se o dardo 292 , se<br />

quem o lançou, se os juízes dos jogos.<br />

289 A anedota, aparentemente, omite pormenores: é provável que o<br />

credor tivesse accionado os tribunais para recuperar o dinheiro. Nestas<br />

circunstâncias, <strong>Péricles</strong> terá replicado também com recurso aos tribunais.<br />

290 Segundo a lei ateniense, matar involuntariamente um<br />

adversário durante os jogos não era <strong>de</strong>lito (cf. Aristóteles,<br />

Constituição <strong>de</strong> Atenas 57. 3). Quanto a Epítimo, não é referido em<br />

mais nenhuma fonte.<br />

291 Protágoras <strong>de</strong> Ab<strong>de</strong>ra (ca. 490-420 a.C.) foi um dos<br />

primeiros sofistas e talvez o mais famoso, conhecido pela célebre<br />

máxima “o homem é a medida <strong>de</strong> todas as coisas”. Consta que<br />

visitou Atenas algumas vezes e que se tornou amigo <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> –<br />

que lhe confiou a legislação <strong>de</strong> Túrios (444 a.C.). Stadter (apud<br />

Pérez Jiménez 1996: 510), porém, <strong>de</strong>monstra a incompatibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>stas personagens e nega a veracida<strong>de</strong> das anedotas que se referem<br />

às discussões entre ambos, consi<strong>de</strong>rando-as um topos retórico na<br />

época <strong>de</strong> Plutarco. Fontes tardias informam-nos <strong>de</strong> que Protágoras<br />

foi julgado e con<strong>de</strong>nado a sair <strong>de</strong> Atenas (ou mesmo à morte) por<br />

asebeia (cf. Diodoro Sículo 9. 54). Terá morrido por afogamento a<br />

caminho do exílio. Para pormenores a respeito da sua vida e obra,<br />

vi<strong>de</strong> Guthrie (1969: 262-269).<br />

292 A lei ateniense <strong>de</strong>terminava que os animais ou objectos<br />

responsáveis pela morte <strong>de</strong> um homem fossem julgados (cf.<br />

Aristóteles, Constituição <strong>de</strong> Atenas 57. 4) e atirados para fora das<br />

fronteiras da Ática, caso fossem consi<strong>de</strong>rados culpados. Vi<strong>de</strong><br />

Macdowell (1963: 85-89).


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

6. Em cima <strong>de</strong> tudo isto, Estesímbroto 293 conta<br />

que as calúnias sobre a sua própria mulher foram<br />

trazidas a público por Xantipo e que, em traços gerais, a<br />

divergência com o pai se manteve inalterável por parte<br />

do jovem até à morte: é que Xantipo morreu vítima<br />

<strong>de</strong> peste. 7. <strong>Péricles</strong> per<strong>de</strong>u então também a irmã e a<br />

maioria dos parentes e amigos, além dos seus melhores<br />

colaboradores no governo. 8. No entanto, não ce<strong>de</strong>u<br />

nem abandonou a nobreza e a elevação <strong>de</strong> alma por<br />

causa <strong>de</strong>stas <strong>de</strong>sgraças, nem foi visto a chorar, nem a<br />

celebrar os funerais, nem junto do túmulo <strong>de</strong> nenhum<br />

dos seus 294 , até que, por fim, per<strong>de</strong>u Páralo 295 , o único<br />

sobrevivente dos seus filhos legítimos. 9. Embora abatido<br />

por este golpe, esforçou-se por ser fiel ao seu carácter e<br />

manter a coragem. Porém, ao colocar a coroa <strong>de</strong> flores<br />

sobre o cadáver, <strong>de</strong>ixou-se vencer pela dor daquela<br />

visão, <strong>de</strong> tal maneira que <strong>de</strong>satou a gemer e a chorar<br />

gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lágrimas, o que nunca tinha feito<br />

no resto da vida.<br />

37. 1. Entretanto, a cida<strong>de</strong> experimentava outros<br />

generais e oradores para conduzirem a guerra – mas<br />

293 FGrHist 107 F 11.<br />

294 Para Plutarco, o controlo do sofrimento <strong>de</strong>monstra a<br />

virtu<strong>de</strong> filosófica do autodomínio. A serenida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> em tais<br />

circunstâncias causou a admiração <strong>de</strong> Valério <strong>Máximo</strong> (5. 10. ext.<br />

1) que, na ignorância da reacção do estadista por altura da morte <strong>de</strong><br />

Páralo, o apresenta como exemplo <strong>de</strong> fortaleza e estabelece a relação<br />

entre essa característica e a alcunha <strong>de</strong> Olímpico.<br />

295 Recebeu o seu nome, como uma das duas trirremes sagradas,<br />

do filho <strong>de</strong> Poséidon, herói <strong>de</strong> Atenas e protector dos marinheiros.<br />

Pouco se sabe a seu respeito. Cf. Platão, Protágoras 315, 319e,<br />

328c.<br />

142


143<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

nenhum revelou ter a autorida<strong>de</strong> a<strong>de</strong>quada ou um<br />

prestígio que garantisse semelhante li<strong>de</strong>rança. Sentindo<br />

a falta <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, chamou-o para a tribuna e para o<br />

exército. Este permanecia em casa, <strong>de</strong>sanimado pela dor,<br />

mas foi persuadido a regressar por Alcibía<strong>de</strong>s 296 e por<br />

outros amigos. 2. Depois que o povo pediu <strong>de</strong>sculpas da<br />

sua ingratidão para com ele, <strong>Péricles</strong> retomou o governo<br />

e foi eleito general 297 . Pediu que fosse revogada a lei<br />

sobre os bastardos 298 , que ele próprio promulgara antes,<br />

pois não queria <strong>de</strong>ixar o seu nome e linhagem privados<br />

<strong>de</strong> sucessão.<br />

3. Eis as circunstâncias em que a lei surgiu: muito<br />

tempo antes, quando <strong>Péricles</strong> estava no auge da sua<br />

carreira política e tinha, como se disse, filhos legítimos,<br />

296 <strong>Péricles</strong> e Árifron, seu irmão, tornaram-se tutores <strong>de</strong><br />

Alcibía<strong>de</strong>s após a morte do pai <strong>de</strong>ste, Clínias (batalha <strong>de</strong> Coroneia,<br />

446 a.C.).<br />

297 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 65. 4; Diodoro Sículo 12. 45. 5. A data<br />

da reeleição é controversa: Tucídi<strong>de</strong>s diz que tal aconteceu pouco<br />

<strong>de</strong>pois do afastamento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> – assim, ou foi convocada uma<br />

eleição extraordinária algumas semanas após a <strong>de</strong>stituição, ou os<br />

Atenienses aguardaram o escrutínio regular, que teria lugar na<br />

Primavera <strong>de</strong> 429 a.C. (neste caso, <strong>Péricles</strong> apenas teria reassumido<br />

funções em Julho do mesmo ano). Importa salientar que, muito<br />

provavelmente, o estratego nunca chegou a pagar a multa<br />

<strong>de</strong>terminada (Per. 35. 4).<br />

298 Tucídi<strong>de</strong>s e Diodoro Sículo nada dizem a este respeito.<br />

Plutarco combina neste relato elementos que não surgem juntos<br />

em nenhuma outra fonte: a reeleição <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>; o pedido <strong>de</strong><br />

revogação da lei; a distribuição <strong>de</strong> cereais vindos do Egipto; a ironia<br />

da posição <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>; o registo do seu filho como cidadão. Uma<br />

<strong>de</strong>scrição tão pormenorizada justifica-se pela necessida<strong>de</strong> que o<br />

biógrafo sentiu <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver com realismo a situação dramática.<br />

Este tema <strong>de</strong>ve ter alimentado as comédias, nomeadamente Demos<br />

<strong>de</strong> Êupolis (Per. 24. 10).


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

propôs uma lei segundo a qual apenas eram Atenienses os<br />

que tivessem nascido <strong>de</strong> Atenienses pelas duas partes 299 .<br />

4. Depois, quando o rei do Egipto enviou como presente<br />

ao povo quarenta mil medimnos <strong>de</strong> cereal 300 , era preciso<br />

distribuí-lo pelos cidadãos. Por causa daquela lei,<br />

muitos processos foram levantados contra bastardos,<br />

até então ignorados e <strong>de</strong>sconhecidos. E muitos foram<br />

vítimas <strong>de</strong> acusações caluniosas. Após avaliação, foram<br />

discriminados e con<strong>de</strong>nados pouco menos <strong>de</strong> cinco mil;<br />

os que mantiveram a cidadania e foram consi<strong>de</strong>rados<br />

Atenienses <strong>de</strong>pois do exame perfaziam a soma <strong>de</strong> catorze<br />

mil e quarenta 301 .<br />

5. Embora fosse estranho que uma lei severamente<br />

aplicada contra tantos fosse revogada outra vez pelo<br />

mesmo que a propôs, a <strong>de</strong>sgraça familiar que sobreveio<br />

a <strong>Péricles</strong>, como se tivesse representado um castigo<br />

pela arrogância e orgulho que manifestara, comoveu os<br />

299 Esta lei data <strong>de</strong> 451-450 a.C., período do arcontado <strong>de</strong><br />

Antídoto (cf. Aristóteles, Constituição <strong>de</strong> Atenas 26. 4). Para mais<br />

pormenores sobre as leis atenienses que concernem casamentos<br />

entre cidadãos e não cidadãos e também sobre filhos ilegítimos,<br />

veja-se Harrison (1968: 61-68). Segundo Aristóteles, a única<br />

fonte antiga a avançar com uma explicação, o que conduziu à<br />

aprovação <strong>de</strong>sta lei foi a dimensão excessiva do corpo <strong>de</strong> cidadãos<br />

(Constituição <strong>de</strong> Atenas 26. 4; cf. Política 1278a). Para as várias<br />

justificações apresentadas pelos estudiosos mo<strong>de</strong>rnos, vi<strong>de</strong> Stadter<br />

(1989: 334-335).<br />

300 Um medimno equivale a cerca <strong>de</strong> 41.5 litros. É provável<br />

que se trate da distribuição <strong>de</strong> cereais mencionada por Filócoro<br />

(FGrHist 328 F 119 = escólio a Aristófanes, Vespas 718) e atribuída<br />

ao rei egípcio Psamético, não claramente i<strong>de</strong>ntificado.<br />

301 Também Filócoro (FGrHist 328 F 119) avança dados<br />

muito semelhantes aos <strong>de</strong> Plutarco: 4.760 excluídos e 14.240<br />

reconhecidos.<br />

144


145<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

Atenienses: estes, consi<strong>de</strong>rando que ele sofrera uma pena<br />

justa e pedia algo humano, permitiram que inscrevesse<br />

o bastardo nos registos da sua fratria e lhe <strong>de</strong>sse o seu<br />

próprio nome 302 . 6. Foi esse o filho que mais tar<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vencer os Peloponésios em Arginusas, o povo<br />

con<strong>de</strong>nou à morte com os seus co-generais.<br />

38. 1. Parece que foi então que a peste atingiu <strong>Péricles</strong>.<br />

Mas, no caso <strong>de</strong>le, não se manifestou <strong>de</strong> forma tão aguda e<br />

intensa como nos outros; apresentou-se como uma doença<br />

branda e prolongada, com altos e baixos, que lhe esgotava<br />

lentamente o corpo e lhe minava a força <strong>de</strong> espírito.<br />

2. De facto, Teofrasto, na sua obra Ética 303 ,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se ter questionado sobre se o carácter se<br />

transforma conforme as circunstâncias e, se, perturbada<br />

pelo sofrimento físico, a excelência <strong>de</strong>genera, conta<br />

que, quando <strong>Péricles</strong> estava doente, mostrou a um dos<br />

amigos que o foi visitar um amuleto 304 que as mulheres<br />

lhe tinham posto ao pescoço, porque a verda<strong>de</strong> é que<br />

302 A fratria é uma subdivisão da tribo ateniense na qual<br />

apenas se podiam inscrever os filhos legítimos que atingissem os<br />

<strong>de</strong>zasseis anos. Este <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>ve ser fruto do relacionamento do<br />

pai com Aspásia e <strong>de</strong>ve ter nascido por volta <strong>de</strong> 440 a.C. Em 406<br />

a.C., foi um dos generais que participou na batalha <strong>de</strong> Arginusas<br />

(arquipélago constituído por três pequenas ilhas a Sul <strong>de</strong> Lesbos),<br />

no final da qual os Lace<strong>de</strong>mónios, comandados por Calicráti<strong>de</strong>s,<br />

foram <strong>de</strong>rrotados. No entanto, uma tempesta<strong>de</strong> que os apanhou<br />

<strong>de</strong> surpresa impediu que resgatassem e sepultassem os cadáveres. O<br />

povo, furioso, levou a tribunal os seis comandantes que regressaram<br />

e con<strong>de</strong>nou-os à morte (cf. Xenofonte, Helénicas 1. 6. 28).<br />

303 Fr. 463 Fortenbaugh.<br />

304 Os amuletos eram habitualmente usados por ocasião <strong>de</strong><br />

doenças e febres (cf. Platão, República 426b; Plutarco, Obras Morais<br />

920b).


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

só estando muito doente suportaria uma tolice <strong>de</strong>ssas.<br />

3. Quando já estava às portas da morte 305 , os cidadãos<br />

mais eminentes e os amigos que tinham sobrevivido,<br />

sentados à sua volta, falavam da sua superiorida<strong>de</strong> e<br />

po<strong>de</strong>r – quão gran<strong>de</strong> fora! – e recordavam os seus feitos<br />

e a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> troféus 306 : eram nove os que tinha<br />

erigido, como general vitorioso, em honra da cida<strong>de</strong>.<br />

4. Falavam uns com os outros, como se ele já não os<br />

escutasse e tivesse perdido a consciência: mas <strong>Péricles</strong>,<br />

perfeitamente consciente, estava atento a tudo o que<br />

diziam e levantou a voz para se meter na conversa. Disse<br />

que se admirava <strong>de</strong> os ver louvar e recordar os seus feitos,<br />

on<strong>de</strong> a fortuna tem também parte activa e que já foram<br />

executados por muitos generais, e <strong>de</strong> não mencionar o<br />

mais belo e importante: “É que nenhum Ateniense” –<br />

disse – “se vestiu <strong>de</strong> luto por culpa minha 307 ”.<br />

39. 1. Foi, sem dúvida, um homem admirável,<br />

não só pela mo<strong>de</strong>ração e serenida<strong>de</strong> que conservou<br />

no meio <strong>de</strong> tantas responsabilida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> tão gran<strong>de</strong>s<br />

animosida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> que foi alvo; mas também pela gran<strong>de</strong>za<br />

305 Outono <strong>de</strong> 429 a.C.<br />

306 Os troféus eram compostos das armas capturadas e erigiamse,<br />

normalmente, no fim <strong>de</strong> cada batalha.<br />

307 Esta mesma anedota surge em Obras Morais 543b. Plutarco<br />

explica (Per. 39. 1) que ela alu<strong>de</strong> ao facto <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> não ter recorrido<br />

à violência nem à guerra civil para obter o po<strong>de</strong>r, como tantos<br />

outros. Mas, no contexto em que surge neste passo – logo a seguir<br />

à referência aos troféus –, faz lembrar outra qualida<strong>de</strong> fundamental<br />

<strong>de</strong>ste estadista, muito apreciada pelo biógrafo: a asphaleia. É que,<br />

apesar das inúmeras batalhas e da Guerra do Peloponeso, nenhuma<br />

morte po<strong>de</strong>ria ser atribuída à falta <strong>de</strong> cuidado ou <strong>de</strong> sensatez do<br />

comandante (cf. 18. 1-3).<br />

146


147<br />

Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />

<strong>de</strong> alma, dado que consi<strong>de</strong>rava a mais importante das<br />

suas virtu<strong>de</strong>s o facto <strong>de</strong>, <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> tão gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,<br />

nunca ter cedido nem à inveja, nem à ira, nem ter<br />

tratado qualquer inimigo como irreconciliável.<br />

2. E parece-me que apenas este facto torna<br />

aceitável e explica aquela famosa alcunha pueril e<br />

arrogante que lhe <strong>de</strong>ram: só um carácter benévolo e<br />

uma vida limpa e imaculada no exercício do po<strong>de</strong>r lhe<br />

permitiram ser chamado Olímpico 308 ; do mesmo modo<br />

que consi<strong>de</strong>ramos correcto que, à raça dos <strong>de</strong>uses, que<br />

governa e presi<strong>de</strong> ao universo, só se po<strong>de</strong>, por natureza,<br />

atribuir o bem e não o mal. Demarcamo-nos dos poetas<br />

que nos confun<strong>de</strong>m com as suas opiniões ignorantes e se<br />

contradizem nas invenções que engendram; chamam ao<br />

lugar, on<strong>de</strong> dizem que os <strong>de</strong>uses vivem, morada segura e<br />

tranquila, on<strong>de</strong> não penetram ventos nem nuvens, que<br />

goza, por toda a eternida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma atmosfera agradável<br />

e <strong>de</strong> uma luz puríssima 309 : e afirmam que assim <strong>de</strong>ve ser<br />

a vida porque convém aos bem-aventurados e imortais.<br />

Em contrapartida, apresentam os próprios <strong>de</strong>uses dados<br />

a perturbações, hostilida<strong>de</strong>s, ódio e outras paixões, que<br />

nem aos homens <strong>de</strong> bom-senso são convenientes. 3.<br />

Mas este é talvez assunto para outro estudo.<br />

Os acontecimentos inspiraram aos Atenienses<br />

um rápido reconhecimento e uma sauda<strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nte<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. Aqueles que, enquanto ele vivia, estavam<br />

<strong>de</strong>scontentes com o seu po<strong>de</strong>r, porque os obscurecia,<br />

<strong>de</strong>pois da sua morte, mal experimentaram outros<br />

308 Vi<strong>de</strong> Per. 8. 3.<br />

309 Plutarco <strong>de</strong>veria ter em mente a <strong>de</strong>scrição do Olimpo no<br />

canto 6 da Odisseia (vv. 42-45).


Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />

oradores e <strong>de</strong>magogos, concluíram que nunca existira<br />

carácter mais mo<strong>de</strong>rado na majesta<strong>de</strong> e mais imponente<br />

na con<strong>de</strong>scendência. 4. Aquele tipo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r contestado,<br />

a que antes se chamava monarquia e tirania, revelou-se<br />

então como um baluarte salvador do Estado – tal era<br />

a corrupção e a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vícios que ameaçavam<br />

os assuntos políticos; esses <strong>de</strong>feitos, ao <strong>de</strong>bilitá-los e<br />

reprimi-los, tinha-os ele mantido ocultos, impedindo<br />

<strong>de</strong>ste modo que se tornassem numa realida<strong>de</strong><br />

incontornável 310 .<br />

310 Plutarco, como realça Stadter (1989: 350), <strong>de</strong>ixa-se levar<br />

pelo entusiasmo nas últimas reflexões sobre a importância política<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e esquece-se <strong>de</strong> mencionar as indicações relativas à<br />

sua sepultura – que seguramente visitou mais do que uma vez.<br />

A referência às sepulturas é um topos comum às outras <strong>Vidas</strong> que<br />

escreveu, pelo que só assim se justifica este esquecimento. Segundo<br />

Pausânias (1. 28. 2-3), ficava próxima da Aca<strong>de</strong>mia, junto às <strong>de</strong><br />

Trasibulo, Cábrias e Fócio (cf. Cícero, Dos Limites Extremos 5. 5).<br />

148


Vi d a d e Fá b i o Má x iM o


In t r o d u ç ã o<br />

151<br />

in t r o d u ç ã o<br />

Ecco Fabio! Nella serenità <strong>de</strong>l cielo la Somma Maestà<br />

vuol ch’egli dimori.<br />

Guarda che gran<strong>de</strong> condottiero! Sebbene da tutto il<br />

popolo fosse <strong>de</strong>tto Temporeggiatore, tuttavia una gran<strong>de</strong><br />

gloria meritatamente risplen<strong>de</strong> ai cauti consigli.<br />

(Petrarca, África 1. 371 sqq.)<br />

O fresco <strong>de</strong> Pietro Vannucci, o Perugino, intitulado<br />

“alegoria da Prudência e da Justiça” (1497) 1 , não podia<br />

ser mais expressivo na representação <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, o<br />

primeiro na prudência, seguindo-se Sócrates e só <strong>de</strong>pois<br />

Numa Pompílio. Sob este trio paira a <strong>de</strong>usa da Prudência.<br />

Do mesmo modo, a prudência 2 (phronesis)<br />

constitui a virtu<strong>de</strong> política e militar que, segundo<br />

Plutarco, melhor <strong>de</strong>finiu <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, sendo o traço<br />

forte do seu ethos. Esta tendência da natureza (physis),<br />

fortalecida pela formação intelectual, foi ampliada e<br />

1 Trata-se do fresco do Colégio <strong>de</strong> Cambio (Sala da Audiência)<br />

em Perugia, Itália. As figuras são i<strong>de</strong>ntificadas pelos nomes que<br />

aparecem aos pés <strong>de</strong> cada uma. Da esquerda para a direita: <strong>Fábio</strong><br />

<strong>Máximo</strong>, Sócrates e Numa Pompílio; seguem-se Fúrio, Pítaco<br />

<strong>de</strong> Mitilene e Trajano. Numa posição superior, encontram-se as<br />

virtu<strong>de</strong>s da Prudência e da Justiça.<br />

2 Vi<strong>de</strong> os seguintes passos <strong>de</strong>sta Vida 4.4.3; 5.1.4; 17.6.4;<br />

29.2.4.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

posta em prática na comunida<strong>de</strong>, quando apresentou,<br />

em 217 a.C., a célebre táctica militar contra a invasão<br />

cartaginesa que consistia em não fazer guerra, <strong>de</strong>ixando<br />

que a força <strong>de</strong> Aníbal se extinguisse por si mesma (2.4) 3 .<br />

Esta estratégia cristalizou a memória do general romano,<br />

fixando um modo <strong>de</strong> actuação militar <strong>de</strong>terminante<br />

na Segunda Guerra Púnica (218-201 a.C.), que, não<br />

tendo expulsado os Cartagineses <strong>de</strong> Roma, sempre<br />

evitou um <strong>de</strong>sastre pior. Tal prática valeu-lhe, na<br />

posterida<strong>de</strong>, o título <strong>de</strong> cunctator, “contemporizador”,<br />

conforme o poeta Énio, um dia, reconheceu: Unus<br />

Homo nobis cunctando restituit rem (12. 363), “Um só<br />

homem, contemporizando, restaurou-nos o Estado” 4 .<br />

Todavia, apenas em retrospectiva, reconhecemos o<br />

sentido heróico <strong>de</strong>stas palavras; na verda<strong>de</strong>, o momento<br />

histórico (kairos) em que <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> foi agente não<br />

reconheceu o carácter provi<strong>de</strong>ncial <strong>de</strong>sta táctica militar,<br />

tão alheia à agressivida<strong>de</strong> bélica dos Romanos.<br />

Tal como Énio, assim Plutarco o representa:<br />

unus homo, isolado, impassível perante as calúnias,<br />

conquistando o outro pelo silêncio e pela paciência, qual<br />

sapiens estóico. Plutarco evi<strong>de</strong>ncia mesmo esta solidão<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância, uma prefiguração do seu carácter e, por<br />

extensão, da acção que marcou a sua conduta política e<br />

militar. Ainda jovem, são-lhe reconhecidas qualida<strong>de</strong>s<br />

éticas como “doçura” (praotes, 3.5), “tranquilida<strong>de</strong>”<br />

(hesychion, 3.5), “silêncio” (siopelon, 3.5), “muita<br />

3 Outras fontes que atestam esta táctica <strong>de</strong> batalha campal:<br />

Políbio 3. 82.4 e Tito Lívio 22. 3.8-9.<br />

4 Sobre este verso <strong>de</strong> Énio, vi<strong>de</strong> o recente estudo <strong>de</strong> Elliott<br />

(2009).<br />

152


153<br />

in t r o d u ç ã o<br />

prudência” (polles men eulabeia, 3.5), que se reflectiam<br />

na própria aprendizagem: “a muita prudência que tinha<br />

em entregar-se aos prazeres infantis, a lentidão e a<br />

dificulda<strong>de</strong> com que aprendia as matérias, a complacência<br />

e a submissão para com os seus amigos” (1.5). Muitos,<br />

porém, <strong>de</strong>sconfiavam <strong>de</strong> alguma “estupi<strong>de</strong>z e preguiça”,<br />

e apenas alguns reconheciam, então, a superiorida<strong>de</strong><br />

daquele ethos que <strong>de</strong>spontava (1.5). Com efeito, é nesta<br />

dialéctica que se vai construir e <strong>de</strong>finir a figura <strong>de</strong>ste<br />

general romano, entre a estima <strong>de</strong> poucos e o <strong>de</strong>sprezo<br />

<strong>de</strong> muitos. Na República, quando discute a educação<br />

dos guardiães, Platão refere também que aqueles que se<br />

revelam seres <strong>de</strong> tempero estável e resistente a qualquer<br />

inconstância da vida têm, geralmente, dificulda<strong>de</strong>s na<br />

aprendizagem (503c-d) 5 . Contudo, logo o biógrafo<br />

<strong>de</strong>sconstrói estes atributos: “a todos provou que a<br />

aparente apatia era, na verda<strong>de</strong>, impassibilida<strong>de</strong>, a<br />

precaução, prudência e a falta <strong>de</strong> reacção e agilida<strong>de</strong><br />

perante qualquer circunstância antes eram constância e<br />

firmeza” (1.6).<br />

Assim, a pai<strong>de</strong>ia e o contacto com a comunida<strong>de</strong><br />

permitiriam <strong>de</strong>spertar e optimizar qualida<strong>de</strong>s já<br />

<strong>de</strong>tectadas na infância, convertendo em acto o que era<br />

potência. O que não constava na physis, recebeu-o <strong>Fábio</strong><br />

da comunida<strong>de</strong>, “treinou o seu corpo para o combate,<br />

5 “Os caracteres sólidos e difíceis <strong>de</strong> alterar, em quem se podia<br />

confiar mais, e que em combate são inabaláveis perante o temor,<br />

comportam-se do mesmo modo nos estudos. São parados e apren<strong>de</strong>m<br />

com dificulda<strong>de</strong>, como se estivessem entorpecidos, cheios <strong>de</strong> sono e<br />

a bocejar, quando têm <strong>de</strong> executar um trabalho <strong>de</strong>ssa espécie.” (503<br />

c-d). Tradução <strong>de</strong> Rocha Pereira ( 10 2007: 299).


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

como uma arma natural, e o discurso como instrumento<br />

<strong>de</strong> persuasão dirigido ao povo” (1.7). Virtu<strong>de</strong>s como<br />

praotes (doçura), pronoia (providência) e eulabeia<br />

(prudência), acompanharão sempre este general, sendo<br />

invocadas nos momentos mais cruciais do seu percurso,<br />

sobretudo a primeira, que, apesar <strong>de</strong> estar geralmente<br />

associada à physis, amplia os seus contextos <strong>de</strong> ocorrência<br />

até ao domínio político 6 , como veremos.<br />

Membro da antiga aristocracia romana, pertenceu<br />

àquela geração <strong>de</strong> varões, como Marcelo (19), por<br />

exemplo, que alcançou a maturida<strong>de</strong> durante a Primeira<br />

Guerra Púnica e que se encarregou <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rar Roma durante<br />

a crise gerada neste período. Nomeado cinco vezes cônsul,<br />

como o seu bisavô, ficou conhecido pelo triunfo sobre os<br />

Lígures no primeiro consulado (233 a.C.), exerceu a censura<br />

em 230 a.C., conquistando uma autorida<strong>de</strong> ímpar junto<br />

dos seus pares e do povo. Depois <strong>de</strong> um breve capítulo (1)<br />

sobre os antepassados e a educação <strong>de</strong>ste general, Plutarco<br />

inicia o relato da Vida quando <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> teria por<br />

volta <strong>de</strong> 66 anos 7 , <strong>de</strong>ixando em branco a maior parte <strong>de</strong>la,<br />

dada a escassez <strong>de</strong> fontes. O biógrafo inicia a narrativa no<br />

ano <strong>de</strong> 217 a.C. para <strong>de</strong>screver os sinais que antece<strong>de</strong>ram a<br />

batalha do Trasimeno (2.2).<br />

6 Note-se o último capítulo do proémio <strong>de</strong> Címon (3), on<strong>de</strong><br />

Plutarco conclui que ambos os homens (Címon e Luculo) foram<br />

calmos (praoi) a nível político, pelo que proporcionaram às suas<br />

cida<strong>de</strong>s uma pausa da guerra civil. Martin Jr. (1960); Vi<strong>de</strong> De<br />

Romilly (1979); Ribeiro Ferreira (2008a) e (2008b).<br />

7 A data <strong>de</strong> nascimento <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> é incerta. A primeira referência<br />

mais segura é a indicação da sua eleição como áugure em 265 a.C.,<br />

pelo que se fixou, a partir daí, a data <strong>de</strong> nascimento no ano 283<br />

a.C. Vi<strong>de</strong> F. Münzer (1909: col. 1815).<br />

154


155<br />

in t r o d u ç ã o<br />

Ano <strong>de</strong> 217 a.C., fórum <strong>de</strong> Roma: o pretor<br />

Pompónio dirige-se ao povo e, friamente, anuncia<br />

o <strong>de</strong>sastre do lago Trasimeno: morrera o cônsul<br />

Flamínio e, com ele, os melhores dos homens do<br />

exército. A crise exigia uma autorida<strong>de</strong> única que<br />

garantisse a segurança. Naquele ano, <strong>Fábio</strong> contava já<br />

dois consulados (233 a.C., 228 a.C.), um triunfo sob<br />

os Lígures (233 a.C.) e uma ditadura (ca. 221 a.C.) 8<br />

e distinguia-o a sabedoria (phronema) e a nobreza <strong>de</strong><br />

carácter (axioma tou ethous). <strong>Fábio</strong> é eleito dictator<br />

nesse ano (3.6) 9 . A sua acção política começa pelos<br />

<strong>de</strong>uses – o mais belo (kallisten, 4.4) dos inícios – <strong>de</strong><br />

forma a que o povo recuperasse <strong>de</strong> novo a confiança<br />

(4.4-6). O mesmo se repete, em 215 a.C. quando for<br />

eleito cônsul, <strong>de</strong>pois da Batalha <strong>de</strong> Canas (18.2-4).<br />

Com efeito, o seu percurso político foi paralelo ao<br />

<strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> cargos <strong>de</strong> natureza religiosa: aos 28<br />

anos, foi eleito áugure, e mais tar<strong>de</strong>, em 216 a.C.,<br />

é nomeado Pontifex Maximus 10 , funções que exerceu<br />

até à sua morte (203 a.C.).<br />

Conquistado o povo, <strong>Fábio</strong> e as tropas vão ao<br />

encontro <strong>de</strong> Aníbal, não para oferecer combate, mas para<br />

o seguir ao longe e para esgotar pouco a pouco a sua força<br />

e, com o tempo, tirar vantagem da falta <strong>de</strong> recursos e <strong>de</strong><br />

8 Este dado não consta no relato <strong>de</strong> Plutarco. A eleição terá<br />

ocorrido seguramente entre 221 e 219 a.C. Vi<strong>de</strong> Pérez Jiménez<br />

(1996: 65 n. 130).<br />

9 Vi<strong>de</strong> “Introdução Geral”, n. 5 e Vida <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> n. 27.<br />

10 Vi<strong>de</strong> 4.4; 4.5; 5.1; 8.1; 17.1; 18.2; 19.8.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

tropas 11 . Embora estranha ao típico general romano 12 ,<br />

esta atitu<strong>de</strong> coaduna-se com os padrões da teoria militar<br />

contemporânea, conforme afirma o historiador militar<br />

A. Goldsworthy ( 2 2007:46): “<strong>Fábio</strong>, tal como o bom<br />

comandante dos manuais militares, evitava a batalha e<br />

procurava os meios para mudar as circunstâncias a seu<br />

favor.”. Com efeito, o general só <strong>de</strong>ve arriscar quando a<br />

perspectiva <strong>de</strong> sucesso for favorável e, após as <strong>de</strong>rrotas<br />

romanas <strong>de</strong> Trébia e Trasimeno, a confiança das tropas<br />

<strong>de</strong> Aníbal era elevadíssima.<br />

Criticado por Minúcio Rufo, o chefe <strong>de</strong> cavalaria 13 ,<br />

pelas tropas, pelo Senado e pelo povo, <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong><br />

recebera já a alcunha <strong>de</strong> paedagogus <strong>de</strong> Aníbal. Este,<br />

porém, revelava-se confuso e perturbado, pois, como<br />

11 O exército <strong>de</strong> que <strong>Fábio</strong> dispunha era precário, sendo<br />

constituído por sobreviventes da guerra <strong>de</strong> Trébia, cuja única<br />

experiência <strong>de</strong> guerra que tinham era a <strong>de</strong>rrota; as quatro legiões<br />

estavam <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> cavalaria, que havia sido <strong>de</strong>struída no lago<br />

Trasimeno e o resto do exército tinha apenas umas semanas <strong>de</strong><br />

existência. “Seja como for, por muito impressionante que o exército<br />

<strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> pu<strong>de</strong>sse parecer, <strong>de</strong> modo algum podia equivaler às tropas<br />

veteranas <strong>de</strong> Aníbal”, reconheceu Goldsworthy ( 2 2007: 46). É<br />

neste contexto que <strong>de</strong>vemos analisar a campanha levada a cabo<br />

pelo ditador. Sobre esta táctica fabiana, vi<strong>de</strong> Frontino, Estratagemas<br />

(1.3.3; 10) e Polieno, Estratagemas (8.14.1).<br />

12 Onasandro, filósofo do séc. I d.C., autor <strong>de</strong> um comentário à<br />

República <strong>de</strong> Platão – hoje perdido – legou-nos o tratado O General,<br />

no qual <strong>de</strong>fine o perfil do general perfeito (agathos strategos, cap. 2).<br />

Este mo<strong>de</strong>lo reflecte um estilo <strong>de</strong> comando tipicamente romano,<br />

que persistiu, pelo menos, durante setecentos anos: “O general,<br />

quando é recrutado, <strong>de</strong>ve ser útil, afável, diligente, calmo, não tão<br />

brando ao ponto <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sautorizado, não tão severo que ponto<br />

<strong>de</strong> odiado, pelo que nem <strong>de</strong>ve relaxar o exército com favores, nem<br />

afastar o exército através do medo.” (2. 2-3). Vi<strong>de</strong> também o passo<br />

<strong>de</strong> Estratagemas (1.3.3) <strong>de</strong> Frontino.<br />

13 Vi<strong>de</strong> “Introdução Geral”, n. 5.<br />

156


157<br />

in t r o d u ç ã o<br />

compreen<strong>de</strong>ra o objectivo daquela táctica, procurava,<br />

a todo a momento, criar alarmes e emboscadas para o<br />

atrair para o combate (5.4). No seio da turbulência <strong>de</strong><br />

medos, ânsias e precipitações, conservava-se <strong>Fábio</strong> “fiel<br />

e inalterável” (5.5); é ele a personagem tese, o sapiens<br />

que conserva a apatheia perante a adversida<strong>de</strong>, um<br />

exemplo prático <strong>de</strong> uma ética, sempre lida, mas raro<br />

experimentada ou <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> provada. Com efeito,<br />

nada é mais indigno do que ce<strong>de</strong>r ao insulto do mais<br />

insensato ou da maioria (5.8):<br />

Não é vergonhoso temer pela pátria e não me parece digno<br />

<strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> tamanho cargo <strong>de</strong>ixar-se influenciar<br />

pelas calúnias e censuras dos homens, mas antes próprio<br />

do escravo que se submete aos insensatos, sobre os quais ele<br />

<strong>de</strong>ve ser chefe e mestre.<br />

Pouco <strong>de</strong>pois, porém, <strong>Fábio</strong> seria vítima da sua<br />

própria estratégia. Enganado pelo ardil dos bois <strong>de</strong> cornos<br />

em chamas (6; 7.3), a maior parte dos Romanos lança-se em<br />

fuga. Ainda assim, <strong>Fábio</strong>, receando um ataque nocturno,<br />

não avançou e, pela manhã, sofre um ataque que ditou a<br />

<strong>de</strong>rrota romana (7.1-2) e são feitos vários prisioneiros <strong>de</strong><br />

ambos os lados. Depois disto, Aníbal, querendo <strong>de</strong>spertar<br />

a ira contra <strong>Fábio</strong>, manda incendiar várias proprieda<strong>de</strong>s,<br />

poupando apenas aquela do dictator (7.4). Esta, porém,<br />

não permaneceria sua por muito mais tempo, pois vendêla-ia<br />

para pagar o resgate dos soldados feitos reféns pelos<br />

Cartagineses, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o Senado se ter recusado a garantir<br />

a quantia que ele acordada com Aníbal (7.7).


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

Constituiu este o primeiro acto <strong>de</strong> “doçura” (praotes)<br />

<strong>de</strong>sta biografia, isto é, a manifestação pública <strong>de</strong> um traço<br />

da physis, que se irá revelar em mais quatro momentos<br />

(12.3; 18.4; 20.2; 20.5). O maior oponente público era o<br />

seu chefe <strong>de</strong> cavalaria, Minúcio Rufo que, encorajado pelos<br />

últimos acontecimentos, procurava a todos convencer da<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ataque directo. Certa vez, quando<br />

meta<strong>de</strong> do exército <strong>de</strong> Aníbal tinha saído em busca <strong>de</strong><br />

provisões, ficando, por isso, mais vulnerável, Minúcio,<br />

com alguns homens, ataca <strong>de</strong> surpresa e faz algumas<br />

baixas. A Roma chega a notícia <strong>de</strong> algo mais grandioso<br />

do que realmente acontecera; a ira do povo e do Senado<br />

contra <strong>Fábio</strong> aumenta e evi<strong>de</strong>ncia-se numa nova resolução,<br />

inédita 14 : a nomeação <strong>de</strong> Minúcio como co-ditador (9.3).<br />

14 Esta resolução é inédita na história da república romana, pois<br />

a magistratura dictatura concedia ao magistrado o po<strong>de</strong>r absoluto<br />

e, segundo algumas fontes (Tito Lívio 2.18.8/ 3.20.8; Dionísio<br />

<strong>de</strong> Halicarnasso, Antiguida<strong>de</strong>s Romanas 10.24.2) sem direito a<br />

provocatio, isto é, o direito que assiste qualquer cidadão romano <strong>de</strong><br />

chamar (prouocare) o povo para se opor a uma coacção ou morte<br />

imposta pelo magistrado. Este ius prouocationis aplicava-se somente<br />

a cidadãos e estrangeiros, não abrangendo a esfera militar. Contudo,<br />

embora fosse uma prática corrente, nenhum ditador terá, <strong>de</strong> facto,<br />

abolido esta lei, conforme sugerem as fontes (Lintott 2003: 111).<br />

Deste modo, o dictator não teria paralelo no imperium (Fab. 4.3), caso<br />

contrário não po<strong>de</strong>ria cumprir a função primeira <strong>de</strong>sta magistratura:<br />

o comando unificado do exército. Note-se que o chefe <strong>de</strong> cavalaria<br />

(magister equitum), apenas tinha direito a seis lictores com fasces,<br />

enquanto o dictator possuía vinte e quatro. Assim, esta equiparação<br />

<strong>de</strong> Minúcio Rufo ao cargo <strong>de</strong> dictator <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> partiu da população<br />

que temia que <strong>Fábio</strong> usasse <strong>de</strong> um direito que lhe assistia na qualida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ditador: “como o ditador tinha o direito <strong>de</strong> pren<strong>de</strong>r e con<strong>de</strong>nar<br />

à morte sem julgamento prévio, pensavam que o espírito <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>,<br />

agora sem a sua mansidão, se tornaria inflexível e implacável” (Fab.<br />

9.1). Sem o direito <strong>de</strong> provocar o povo para uma sedição contra uma<br />

eventual con<strong>de</strong>nação, Minúcio contou com o apoio <strong>de</strong> Metílio (Fab.<br />

158


159<br />

in t r o d u ç ã o<br />

Impopular e com menos po<strong>de</strong>r, <strong>Fábio</strong> passa a<br />

comandar duas legiões, o seu colega outras duas e o<br />

acampamento divi<strong>de</strong>-se. Pouco tempo <strong>de</strong>pois, <strong>Fábio</strong><br />

tem que se <strong>de</strong>slocar a Roma para oferecer sacrifícios<br />

aos <strong>de</strong>uses e Minúcio aproveita a ocasião para atacar<br />

Aníbal (11). O <strong>de</strong>sastre <strong>de</strong>sta ofensiva só não foi maior,<br />

porque <strong>Fábio</strong> acorreu ao local para salvar o colega<br />

Minúcio. Constituiu este acto o segundo momento <strong>de</strong><br />

praotes que, no enquadramento moral dos Romanos,<br />

encontra expressão no valor da clementia, “a mansidão<br />

e a misericórdia, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar e <strong>de</strong> perdoar” 15 e<br />

no interesse da res publica, que é superior a qualquer<br />

diferença. Comovido por este acto, Minúcio, com a<br />

sua parte do exército, a ele se dirige para o aclamar<br />

como “pai”, reconhecendo que tem mais capacida<strong>de</strong><br />

para obe<strong>de</strong>cer do que para li<strong>de</strong>rar (13). Esta cena é<br />

plena <strong>de</strong> dramatismo, pois Plutarco <strong>de</strong>screve todos os<br />

movimentos dos intervenientes como <strong>de</strong> didascálias<br />

se tratassem (13.5-6; 13.9), atribuindo duas falas<br />

extensas a Minúcio (13.2-4; 13.7). O pathos atinge<br />

o clímax no momento em que ambos se abraçam e<br />

beijam, à semelhança dos próprios soldados 16 . Esta<br />

9.2) que, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tribuno da plebe – a única magistratura<br />

que não per<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r durante a dictatura – <strong>de</strong>cretou, por votação,<br />

que o cargo <strong>de</strong> general (magister equitum) se equiparava ao <strong>de</strong> chefe<br />

e actuava na guerra com a mesma autorida<strong>de</strong> que o ditador (rogatio<br />

Metilia). A propósito <strong>de</strong>sta lei, vi<strong>de</strong> Políbio 3.103.3-5, Cornélio<br />

Nepos, Aníbal 5.3 e Tito Lívio 22.25-26. Note-se que Metílio era,<br />

segundo Plutarco, parente <strong>de</strong> Minúcio (Fab. 7.5).<br />

15 Salústio, Catilina 54, em tradução <strong>de</strong> Rocha Pereira ( 5 2005:<br />

103). Sobre este valor romano, vi<strong>de</strong> Rocha Pereira ( 3 2002: 368-73).<br />

16 O pormenor da <strong>de</strong>scrição aprofunda, com efeito, o pathos e<br />

a psicologia das personagens. Encontra-se também em Tito Lívio


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

cena <strong>de</strong> reconciliação inspirou artistas como Peter Paul<br />

Rubens 17 e Francesco <strong>de</strong> Siena 18 , que ilustrou também<br />

outras sequências narrativas da vida do general<br />

romano.<br />

Seis meses <strong>de</strong>pois 19 , <strong>Fábio</strong> termina o seu mandato<br />

e regressa a Roma. No ano seguinte (216 a.C.), um<br />

<strong>de</strong>sastre maior haveria <strong>de</strong> sobrevir: a <strong>de</strong>rrota <strong>de</strong> Canas 20 .<br />

Nova crise política e <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> é reeleito para o<br />

quarto consulado em 214 a.C. O seu colega é Marcelo 21 ,<br />

arrojado e agressivo em combate e fazia, com <strong>Fábio</strong>, o<br />

par perfeito: um era o escudo e o outro a espada 22 (19.4).<br />

(22. 30, 6), embora sem a carga emotiva e patética que Plutarco<br />

lhe confere.<br />

17 Von Alten (1933).<br />

18 Vi<strong>de</strong> as reproduções que constam em Guerrini (1991b).<br />

Eis as sequências que foram representadas: a eleição como ditador<br />

(Fab. Max. ditactor <strong>de</strong>signiatus [sic]), o sacrifício aos <strong>de</strong>uses<br />

(Fab. Sacrificium), lealda<strong>de</strong> para com Aníbal (Fab. Fi<strong>de</strong>s Erga<br />

Hannibalem), a astúcia no confronto com Aníbal (Fab. Astutia<br />

in Hannibalem), o socorro a Minúcio (Fab. Minutio Succurso<br />

penos fugat), a reconciliação com Minúcio (Fab. Minutius<br />

Patrem appellat), a reconquista <strong>de</strong> Tarento (Fab. Tarentum<br />

recuperat), em honra da memória do filho falecido (Fabius<br />

filium consulem honorat). Esta colecção encontra-se no Palácio<br />

Abadia <strong>de</strong> Grottaferrata (Lácio, Roma).<br />

19 Vi<strong>de</strong> “Introdução Geral”, n. 5.<br />

20 Sobre a disposição campal das tropas nesta batalha, vi<strong>de</strong><br />

Cambell (2004: 109).<br />

21 Marco Cláudio Marcelo, plebeu, fora cônsul em 222 a.C. e<br />

pretor em 224 a.C. Quando era mais jovem, combatera na Sicília<br />

durante a Primeira Guerra Púnica, e conseguiu várias con<strong>de</strong>corações<br />

por actos individuais <strong>de</strong> heroísmo, uma corona ciuica, a maior<br />

con<strong>de</strong>coração <strong>de</strong> Roma, concedida pelo seu irmão Otacílio, por<br />

aquele lhe ter salvo a vida.<br />

22 Posidónio (FGrH 87 F 42). Sobre esta dupla <strong>de</strong> generais,<br />

afirma Goldsworthy ( 2 2007: 54): “Uma significativa experiência<br />

em campanhas passadas, aliada à capacida<strong>de</strong> natural, permitiu<br />

160


161<br />

in t r o d u ç ã o<br />

A acção <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> era como um rio que “fluía sem ruído<br />

e pouco a pouco e consumia continuamente as suas<br />

bordas” (19.5), enquanto a <strong>de</strong> Marcelo era como um<br />

“rio violento”. Não conquistaram uma <strong>de</strong>rrota <strong>de</strong>finitiva<br />

dos Cartagineses, mas conseguiram evitar um <strong>de</strong>sastre<br />

pior. Ambos os generais são reeleitos para um quinto<br />

consulado em 209 a.C., o último.<br />

Nesta altura, em plena invasão cartaginesa,<br />

quando se torna mais premente resolver a questão<br />

do afastamento das cida<strong>de</strong>s e da revolta dos aliados,<br />

<strong>Fábio</strong> é chamado a resolver dois casos <strong>de</strong> indisciplina<br />

no exército. O primeiro trata-se <strong>de</strong> um soldado marso,<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> mérito militar, que tentara <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar um<br />

revolta contra <strong>Fábio</strong>; este, em vez <strong>de</strong> o repreen<strong>de</strong>r,<br />

ofereceu-lhe um cavalo <strong>de</strong> guerra e outros prémios como<br />

reconhecimento do seu valor. No outro caso, um soldado<br />

lucano, também ele muito corajoso, ausentava-se do<br />

acampamento para ir pernoitar com uma mulher que<br />

morava longe. Nisto, <strong>Fábio</strong> mandou vir a mulher para<br />

o acampamento <strong>de</strong> forma a que ele não tivesse que fazer<br />

mais caminhadas e, por isso, diminuir o seu contributo<br />

ao exército. Estas acções constituem também expressão<br />

<strong>de</strong> praotes, pois aquele que comanda os homens <strong>de</strong>ve usar<br />

da benevolência e da mansidão para conquistar lealda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> quem mais precisa (20.4), algo peculiar à conduta<br />

do herói, como refere J. Ribeiro Ferreira (2008b: 116):<br />

“Em Plutarco encontramos frequentes vezes sublinhada<br />

a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a humanida<strong>de</strong> do herói para com os<br />

a Marcelo e a <strong>Fábio</strong> distinguirem-se da maioria dos restantes<br />

comandantes romanos seus contemporâneos e tornou o seu estilo<br />

<strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança em algo bastante próximo do helenístico”.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

vencidos ou os subordinados é muitas vezes mais eficaz<br />

do que a violência e a dureza.” 23<br />

<strong>Fábio</strong>, já <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> avançada, recupera Tarento à<br />

traição (21-24). É a partir <strong>de</strong>ste momento que se dá<br />

a chamada “metamorfose” 24 ética que inicia a uma<br />

inesperada fase <strong>de</strong> insolência que ensombra a constância<br />

<strong>de</strong>ste percurso ético. Em primeiro lugar, ainda em<br />

Tarento, assassina os cidadãos brútios mais importantes<br />

para que não se soubesse da traição (22.5), e, por isto,<br />

“recebeu a acusação <strong>de</strong> <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong> e cruelda<strong>de</strong>”; levou<br />

consigo o património artístico da cida<strong>de</strong>, nomeadamente<br />

a estátua colossal <strong>de</strong> Hércules que colocou no Capitólio,<br />

erigindo, ao lado, uma estátua equestre <strong>de</strong> si próprio<br />

em bronze (22.7-8), celebrando o triunfo da tomada <strong>de</strong><br />

Tarento, “com mais pompa que o primeiro” (23.2).<br />

Neste ponto, a perspectiva <strong>de</strong> Plutarco torna-se<br />

ambivalente, pois, apesar <strong>de</strong>stes factos, parece forçado<br />

a continuar a mesma linha luminosa <strong>de</strong> constância e<br />

pon<strong>de</strong>ração que fora perspectivada no início e que<br />

vinha sendo confirmada pelo percurso <strong>de</strong> vida. Com<br />

efeito, neste momento já não reconhecemos o mesmo<br />

“cor<strong>de</strong>irinho” (ovicula, 1.4) da infância ou o político<br />

<strong>de</strong> oratória transparente e mo<strong>de</strong>rada (1.8). Contudo,<br />

esta tendência já antes se manifestara <strong>de</strong> forma pontual:<br />

<strong>de</strong>pois da eleição <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> como dictator, o primeiro<br />

pedido que fez ao Senado foi o <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ir a cavalo<br />

23 Cf. Marcelo 19. 2-6, 12; Aristi<strong>de</strong>s 23.1; Címon 6.2; Flamínio<br />

2.5, 5.7.<br />

24 Vi<strong>de</strong> Rebuffat, M. R. (1978), “Métamorphose <strong>de</strong> Fabius<br />

Cunctator: Thomas Diaforius”, in Colloques d’Histoire et<br />

Historiographie, Paris, pp. 335-sqq. apud Guerrini (1991a: 256).<br />

162


163<br />

in t r o d u ç ã o<br />

durante as expedições militares, algo proibido por ser<br />

mais uma marca <strong>de</strong> ostentação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> alguém que<br />

já <strong>de</strong>tinha o po<strong>de</strong>r absoluto (4.1-2), bem como o facto<br />

<strong>de</strong> querer mostrar a gran<strong>de</strong>za do cargo da ditadura ao<br />

<strong>de</strong>sfilar em público com vinte e quatro lictores reunidos<br />

à sua volta, <strong>de</strong> forma a conquistar a obdiência dos<br />

cidadãos (4.3).<br />

Nesta medida, a tendência mais evi<strong>de</strong>nciada na<br />

fase final da sua vida não é inédita, mas já se encontrava<br />

em potência, na physis, mas refreada pela pai<strong>de</strong>ia e pela<br />

vivência em comunida<strong>de</strong> durante a sua fase mais activa.<br />

Esta fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência ética torna-se ainda mais óbvia<br />

pela atribuição <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s do campo semântico<br />

da senilida<strong>de</strong>, como “velhice” (geras), “<strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>”<br />

(astheneia 24.1), “intratável” (dyskolos), “invejoso”<br />

(baskanos), “cobar<strong>de</strong>” (atolmos) e “pessimista” (dyselpis,<br />

26.3), “antiquado” (arcaios), “obsoleto” (presbytikos,<br />

25.1) adjectivos que caracterizam a sua táctica <strong>de</strong> batalha<br />

campal. Longe do tom encomiástico, estas qualida<strong>de</strong>s<br />

apresentam um carácter disfórico, um estado que é uma<br />

consequência da <strong>de</strong>generescência natural e, como tal, já<br />

distante das exigências do presente.<br />

Aberta esta crise na constância do ethos, Plutarco<br />

intercala dois episódios que, <strong>de</strong> certa forma, anunciam<br />

o final da carreira política <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> como prefigurações.<br />

O primeiro tem lugar quando o seu filho é eleito cônsul<br />

e surge uma menção à velhice do pai (24.1); num outro<br />

momento, Plutarco recorda um episódio do bisavô <strong>de</strong><br />

<strong>Fábio</strong>, quando regressava com o seu filho da guerra no<br />

<strong>de</strong>sfile triunfal. Aquele seguia-o a cavalo com os outros


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

elementos da comitiva e mostrava-se orgulhoso, pois<br />

estava subordinado à lei e ao magistrado, o seu filho<br />

(24.5). Além do elogio das tradições militares e <strong>de</strong><br />

enaltecer o sentido aristocrático da família, o biógrafo<br />

estabelece este paralelo entre Q. <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> Ruliano<br />

e <strong>Fábio</strong> para <strong>de</strong>monstrar que a finitu<strong>de</strong> do exercício<br />

político é inevitável e necessária à comunida<strong>de</strong>.<br />

Depois <strong>de</strong>stes momentos, Plutarco <strong>de</strong>dica os<br />

capítulos seguintes (25-27) à última fase da vida do<br />

general, tempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência política, que contrasta<br />

com a audácia <strong>de</strong> Cipião 25 . <strong>Fábio</strong> ce<strong>de</strong>ra, enfim, aos<br />

imperativos da natureza humana: agora, cego pelo<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> glória, temia ser ultrapassado por um general<br />

mais jovem e brilhante que pusesse fim à guerra contra<br />

Aníbal, algo nunca conquistado por ele. Pela primeira<br />

vez, <strong>de</strong>u primazia ao interesse privado (ἑαυτὸν, 25.3)<br />

em <strong>de</strong>trimento da res publica: expulsar os Cartagineses<br />

e <strong>de</strong>slocar a guerra para o norte <strong>de</strong> África. Pela primeira<br />

vez, a comparação pendia negativamente para <strong>Fábio</strong>,<br />

ao contrário do que antes suce<strong>de</strong>ra nos paralelos com<br />

Gaio Flamínio (2.4), Minúcio Rufo (9) e Terêncio<br />

Varrão (14).<br />

Esta angústia do inesperado <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou, em<br />

<strong>Fábio</strong>, uma série <strong>de</strong> comportamentos contrários à<br />

apatheia que antes o caracterizava e que se afiguravam<br />

ridículos no palco político. O antigo ditador tentava<br />

agora travar os planos <strong>de</strong> Cipião: infundia todo o tipo<br />

<strong>de</strong> medos na cida<strong>de</strong>, acusando Cipião <strong>de</strong> insensatez e<br />

25 Plutarco valorizou especialmente esta vida, pois teria sido um<br />

dos elementos do primeiro par <strong>de</strong> <strong>Vidas</strong>, Cipião-Epaminondas,<br />

hoje perdido. Vi<strong>de</strong> Crespo ( 4 2007: 314).<br />

164


165<br />

in t r o d u ç ã o<br />

inexperiência, encarregou o colega Crasso <strong>de</strong> <strong>de</strong>mover<br />

o colega <strong>de</strong> atacar Aníbal, e ainda impedia os jovens<br />

que se queriam alistar na sua campanha. Mais tar<strong>de</strong>,<br />

quando começaram a chegar notícias das façanhas <strong>de</strong><br />

Cipião, exigiu o envio <strong>de</strong> um substituto para Cipião,<br />

alegando que é difícil que a mesma pessoa seja sempre<br />

afortunada. E nem <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Aníbal ter abandonado<br />

Itália, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> o criticar ou <strong>de</strong> incutir o receio e a<br />

<strong>de</strong>sconfiança nos cidadãos (25.3; 26), algo tão diverso<br />

da acção <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> enquanto ditador (4.4). Nesta fase,<br />

repete-se a mesma situação que ocorrera com Minúcio<br />

Rufo, quando <strong>Fábio</strong> o advertiu <strong>de</strong> que “o seu combate<br />

não era contra <strong>Fábio</strong>, mas sim contra Aníbal” (10.7).<br />

Com efeito, também agora o seu inimigo <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong><br />

ser Aníbal para passar a ser Cipião, já que era contra<br />

ele que <strong>Fábio</strong> se pronunciava no Senado, em vez <strong>de</strong><br />

encontrar soluções conjuntas para vencer o po<strong>de</strong>roso<br />

exército cartaginês. Assim, o verda<strong>de</strong>iro inimigo<br />

parece ser a ambição, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> glória pessoal<br />

e reconhecimento público, pois <strong>de</strong>terminaram as<br />

acções <strong>de</strong> Minúcio Rufo, Terêncio Varrão e agora,<br />

nesta última fase, até <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>; o drama <strong>de</strong>sta<br />

Vida centra-se mais na <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> psicológica <strong>de</strong>stas<br />

lutas internas, do que no combate contra Aníbal, cujo<br />

retrato é sobretudo encomiástico.<br />

Nesta medida, o julgamento do biógrafo torna-se<br />

já artificial, pois se, por um lado, há a tendência para<br />

completar i<strong>de</strong>almente este perfil, por outro não po<strong>de</strong><br />

corrigir a história e os traços negativos também têm <strong>de</strong><br />

ser “contemplados”. Tal oscilação é evi<strong>de</strong>nte quando


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

procura justificar este comportamento com a prudência<br />

habitual – “é provável que o propósito inicial <strong>de</strong> se<br />

opor a estes planos se tenha <strong>de</strong>vido mais à segurança<br />

e à prudência” (25.3) –, mas logo acrescenta que foi,<br />

afinal, “arrastado por uma certa ambição e rivalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

modo a impedir o engran<strong>de</strong>cimento <strong>de</strong> Cipião” (25.3).<br />

Concluiu, portanto, que se tratava <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong><br />

<strong>Fábio</strong> que “estava em conformida<strong>de</strong> com a sua natureza<br />

[heautou physin]” (26.2). Com efeito, sendo um traço<br />

excessivo da sua essência, converteu-se numa afecção<br />

da qual ficou prisioneiro. Po<strong>de</strong>mos, assim, comparar<br />

esta última fase <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> com as figuras com que ele<br />

se confrontou ao longo do seu percurso político: Gaio<br />

Flamínio (2.3.3; 3.3.6), Minúcio Rufo (10.4.1) e<br />

Terêncio Varrão (14.2), que personificaram eles mesmos<br />

estas afecções, das quais <strong>Fábio</strong> sempre se <strong>de</strong>marcou por<br />

apresentar uma atitu<strong>de</strong> contrária à guerra. Na verda<strong>de</strong>,<br />

os confrontos entre <strong>Fábio</strong> e a figura <strong>de</strong> outro estadista,<br />

um sensato e um ambicioso num eixo <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong><br />

e inferiorida<strong>de</strong>, constitui um eco platónico da forma<br />

<strong>de</strong> governo timocrática, uma mistura <strong>de</strong> bem e mal<br />

(República 548c7). Note-se que ambas as expressões<br />

assinaladas apresentam os mesmos termos gregos:<br />

philotimia e philonikia.<br />

Contudo, tornou-a uma questão pessoal e foi mais longe<br />

arrastado por uma certa ambição e se<strong>de</strong> <strong>de</strong> vencer, <strong>de</strong><br />

modo a impedir o engran<strong>de</strong>cimento <strong>de</strong> Cipião.<br />

166<br />

<strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> 25. 3. 4


167<br />

in t r o d u ç ã o<br />

- A forma <strong>de</strong> governo a que te referes é uma mistura<br />

completa, <strong>de</strong> bem e <strong>de</strong> mal.<br />

- É uma mistura, efectivamente – disse eu – Mas há uma<br />

característica evi<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>vido a ser governada por um<br />

exaltado, que é a ambição e o gosto <strong>de</strong> honrarias 26 .<br />

Platão, República 548c7<br />

Tal ambivalência teve lugar durante a ditadura<br />

“dupla” em 217 a.C. <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> e Minúcio Rufo, e em 216<br />

a.C., com Gaio Flamínio e Terêncio Varrão, aquando<br />

da <strong>de</strong>rrota <strong>de</strong> Canas. Neste caso, o confronto entre<br />

<strong>Fábio</strong> e Cipião só engran<strong>de</strong>ce este último; o primeiro,<br />

outrora referência <strong>de</strong> prudência, <strong>de</strong>sloca-se para um<br />

ponto diametralmente oposto.<br />

Só a geração mais jovem, li<strong>de</strong>rada por Cipião,<br />

conquistou a vitória contra os Cartagineses na batalha<br />

<strong>de</strong> Zama, mas <strong>Fábio</strong> já não viveu para assistir a esta<br />

glória. A <strong>de</strong>scrição do funeral <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> é outro dos<br />

momentos <strong>de</strong> pathos <strong>de</strong>sta Vita. O título <strong>de</strong> pater que<br />

Minúcio lhe atribuíra é recuperado para completar o<br />

clímax da cena, que apresenta o <strong>de</strong>sfecho i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> uma<br />

vida exemplar do ponto <strong>de</strong> vista ético e filosófico: “cada<br />

particular contribuiu com a mais pequena das moedas,<br />

não por falta <strong>de</strong> ajuda por causa da sua pobreza, mas<br />

porque o povo o enterrou como a um pai.” (27.3).<br />

Este final <strong>de</strong>monstra que a fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência <strong>de</strong><br />

<strong>Fábio</strong> foi completamente superada e, como tal, recebeu,<br />

na morte, as honras que merecia enquanto pai. Assim<br />

26 Tradução <strong>de</strong> Rocha Pereira ( 9 2001: 369).


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

se fixou a memória <strong>de</strong> um homem pru<strong>de</strong>nte, religioso,<br />

dotado <strong>de</strong> uma perspicácia invulgar e com um profundo<br />

sentido <strong>de</strong> res publica, apesar <strong>de</strong>, no final da vida, ter<br />

revelado excessos contrários a esses i<strong>de</strong>ais. Com efeito,<br />

<strong>de</strong>nunciar os <strong>de</strong>feitos em paralelo com as virtu<strong>de</strong>s estava<br />

já previsto no programa moral das <strong>Vidas</strong>, pois como o<br />

biógrafo afirmou no proémio da Vida <strong>de</strong> Címon (2.3).<br />

Assim, do mesmo modo que o pintor não po<strong>de</strong> enfatizar<br />

os traços negativos, pois produz uma imagem vergonhosa<br />

(aischran opsin), também não os po<strong>de</strong> omitir, sob pena<br />

<strong>de</strong> parecer inverosímil (anomoian), também para o<br />

biógrafo é pouco provável apresentar um percurso <strong>de</strong><br />

vida irrepreensível 27 .<br />

Desta Vita, salientamos o valor da praotes<br />

(doçura) que, em conjunto com a pronoia (providência),<br />

caracteriza F. <strong>Máximo</strong> a nível físico (1.5; 17.7), moral<br />

(1.4) e político (20.4), manifestando-se na infância com<br />

os colegas, alargando-se mais tar<strong>de</strong> à esfera pública, tendo<br />

ainda marcado a sua conduta política e a intervenção na<br />

Segunda Guerra Púnica. Trata-se <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> vida<br />

essencialmente grego, que tudo comanda, que exprime<br />

tolerância e indulgência e que na obra <strong>de</strong> Plutarco atinge<br />

o seu apogeu, como sublinhou J. De Romilly (1979:<br />

275): “Le vocabulaire <strong>de</strong> la douceur est, chez lui, plus<br />

riche et plus complet que chez aucun autre écrivain.”<br />

A praotes consiste assim numa resistência interior à<br />

violência e aos prazeres 28 , pelo que entra plenamente em<br />

27 Vi<strong>de</strong>, a propósito, Stadter (1997).<br />

28 Cf. Bruto 1.3. Esta virtu<strong>de</strong> é também <strong>de</strong>scrita por Aristóteles<br />

(Ética a Nicómaco 1126a1): “Porque o gentil [praos] quer<br />

permanecer imperturbável e não quer ser levado pela emoção, e<br />

168


169<br />

in t r o d u ç ã o<br />

diálogo com outra tendência <strong>de</strong>ste general já referida, a<br />

apatheia, traço do sapiens estóico.<br />

A praotes, à luz da ética do povo romano, aproximase<br />

da clementia que consiste na mansidão, misericórdia,<br />

na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar e perdoar 29 , mas esta é menos<br />

ampla por se tratar <strong>de</strong> uma prática da esfera política, ao<br />

contrário da grega, que começa por ser um traço da physis,<br />

alargando-se ao campo político e social. Os actos referidos<br />

como expressão <strong>de</strong> praotes seriam <strong>de</strong>signados por outros<br />

conceitos que reflectem valores específicos romanos. Por<br />

exemplo, o facto <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> ter cumprido o compromisso<br />

que firmou com Aníbal, contra a vonta<strong>de</strong> do Senado e<br />

tendo, para isso, que ven<strong>de</strong>r a sua proprieda<strong>de</strong>, trata-se <strong>de</strong><br />

um acto <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>s, a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a um juramento; o gesto <strong>de</strong><br />

Minúcio Rufo que aclama <strong>Fábio</strong> <strong>de</strong> “pai”, reconhecendo<br />

a sua imprudência face à gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> espírito do general,<br />

po<strong>de</strong> ser visto como uma manifestação <strong>de</strong> pietas, um<br />

sentimento <strong>de</strong> obrigação para com aqueles a quem se<br />

tem uma ligação familiar, com pais e parentes, ou social,<br />

como outros membros da comunida<strong>de</strong> 30 . Expressão <strong>de</strong>ste<br />

mesmo valor é também a relação <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> com os <strong>de</strong>uses,<br />

que manifestava publicamente uma relação <strong>de</strong> temor para<br />

com a divinda<strong>de</strong> (4.4; 8.1; 18, 2), tendo <strong>de</strong>sempenhado<br />

cargos religiosos, como vimos.<br />

apenas o sentido orientador lhe po<strong>de</strong>rá prescrever as situações em<br />

que <strong>de</strong>ve irritar-se e durante quanto tempo. Ou seja, o gentil parece<br />

pecar mais por <strong>de</strong>feito, porque não é do tipo vingativo mas mais do<br />

género que perdoa.” Tradução <strong>de</strong> Caeiro (2004: 98). Vi<strong>de</strong> ainda<br />

Ribeiro Ferreira (2008b: 112).<br />

29 Vi<strong>de</strong> n. 15 <strong>de</strong>ste estudo.<br />

30 A este respeito, vi<strong>de</strong> Rocha Pereira ( 3 2002: 338-9).


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

Com efeito, o acto <strong>de</strong> receber, em festa, Terêncio<br />

Varrão que tinha <strong>de</strong>saparecido <strong>de</strong>pois do <strong>de</strong>sastre <strong>de</strong><br />

Canas (18.4), também po<strong>de</strong> ser entendido como um<br />

acto <strong>de</strong> clementia: “elogiaram-no por não ter renunciado<br />

à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tamanho infortúnio e por estar ali<br />

presente para <strong>de</strong>sempenhar o seu cargo, velar pelas leis<br />

dos cidadãos” (18.5). O ponto <strong>de</strong> vista do biógrafo é<br />

grego, pelo que faz correspon<strong>de</strong>r estas acções a conceitos<br />

existentes na cultura helénica, permitindo assim<br />

uniformizar o valor programático inerente a cada par <strong>de</strong><br />

<strong>Vidas</strong> – neste caso, a praotes.<br />

Constatámos, ao longo <strong>de</strong>sta Vida, que certos<br />

momentos são invulgarmente extensos, recorrendo<br />

ao biógrafo ao uso do discurso directo conferindo<br />

verosimilhança à cena <strong>de</strong>scrita, <strong>de</strong> forma a conquistar<br />

a empatia do ouvinte e garantir a a<strong>de</strong>são ao mo<strong>de</strong>lo<br />

ético apresentado. A inclusão <strong>de</strong> certos momentos<br />

aparentemente sem importância para a economia<br />

narrativa (12.2; 5.7-8; 15.3) cumpre, afinal, outro<br />

objectivo: iluminar e fixar a memória <strong>de</strong> uma figura 31 ,<br />

como esclareceu Plutarco no início da Vida <strong>de</strong> Alexandre<br />

(1. 1-2):<br />

(...) nem sequer é nos acontecimentos mais espectaculares<br />

que resi<strong>de</strong> especialmente a <strong>de</strong>monstração da virtu<strong>de</strong> e do<br />

31 A verda<strong>de</strong> é que quase toda a narrativa está concentrada entre<br />

a Batalha do lago Trasimeno (217 a.C.) e a <strong>de</strong> Canas (216 a.C.), pois<br />

aí se localizam as <strong>de</strong>scrições mais completas e dramatizadas <strong>de</strong>sta<br />

Vida, tendo como tema principal, o confronto com Aníbal. Depois<br />

<strong>de</strong> Canas, a narrativa só retoma o ritmo mais lento e <strong>de</strong>scritivo<br />

aquando da tomada <strong>de</strong> Tarento (214 a.C.), o último momento <strong>de</strong><br />

expressão heróica <strong>de</strong>ste general.<br />

170


171<br />

in t r o d u ç ã o<br />

vício; pelo contrário, muitas vezes um pequeno gesto, uma<br />

palavra ou uma brinca<strong>de</strong>ira reflectem melhor o carácter<br />

do que os combates com baixas incontáveis (...) 32<br />

Na verda<strong>de</strong>, “os combates com baixas incontáveis”<br />

constituem o objecto <strong>de</strong> histórias mais pormenorizadas<br />

(16.6; 21.5), fontes para a construção das <strong>Vidas</strong>, neste<br />

caso as obras <strong>de</strong> Tito Lívio, Políbio ou a História <strong>de</strong><br />

Posidónio <strong>de</strong> Apameia (que não chegou até nós). Em<br />

relação aos episódios ocorridos no final do século III,<br />

por altura da <strong>de</strong>rrota <strong>de</strong> Canas (216 a.C.) terá recorrido<br />

aos testemunhos <strong>de</strong> Díon Cássio, à Guerra <strong>de</strong> Aníbal <strong>de</strong><br />

Apiano, ao [anónimo] Sobre os varões ilustres, a Valério<br />

<strong>Máximo</strong>, e outros autores do século II e I, como os<br />

historiadores Célio Antípatro e Valério Ântias 33 . Assim,<br />

enquanto estas fontes se ocupam da história <strong>de</strong> um povo<br />

em geral, as <strong>Vidas</strong> <strong>de</strong> Plutarco são expressão do fascínio<br />

pelo particular, a vida <strong>de</strong> um homem, ainda que muitas<br />

vezes se confunda com a história do seu povo. Como ele<br />

mesmo afirma “nós não escrevemos histórias [historias]<br />

mas sim biografias [bious]” (Alexandre 1.2).<br />

A experiência <strong>de</strong> guerra seria algo familiar aos<br />

ouvintes e leitores das <strong>Vidas</strong>, pelo que o comportamento<br />

do político teria uma função didáctica e um efeito<br />

performativo, pois apresenta a história <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s<br />

homens em acção, conforme lembra P. A. Stadter<br />

(1997: 69): “Plutarch’s biographies respond to this<br />

<strong>de</strong>eply felt need among the elite of the empire”. Esta<br />

32 Tradução <strong>de</strong> Leão (2008: 103).<br />

33 Vi<strong>de</strong> Pérez Jiménez (1996: 37).


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

premência <strong>de</strong> exempla era já sentida nos escritos <strong>de</strong> ética<br />

romana, como no De Officiis 34 (3.19) <strong>de</strong> Cícero, que<br />

representa já um estádio significativo do pensamento<br />

ético e permite explicar a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> Plutarco <strong>de</strong> escrever<br />

biografias, algo também expresso por Séneca 35 . Assim,<br />

estas Vitae combinam história e filosofia ética, <strong>de</strong> forma<br />

a <strong>de</strong>monstrar a utilida<strong>de</strong> dos princípios filosóficos, que,<br />

por si só, não são suficientes. Com efeito, como nota<br />

Stadter (1997: 67), as circunstâncias reais <strong>de</strong> uma acção<br />

afectam a avaliação ética da mesma: por exemplo, matar<br />

um homem é um princípio errado, mas po<strong>de</strong> não ser<br />

reprovável se se tratar <strong>de</strong> um tirano.<br />

Com efeito, para o mesmo fim fora criada a Ética<br />

a Nicómaco <strong>de</strong> Aristóteles, <strong>de</strong> forma a fixar padrões<br />

<strong>de</strong> conduta, analisando o problema ético face ao seu<br />

horizonte prático, on<strong>de</strong> as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> variação<br />

se multiplicam consoante as circunstâncias, pois “a<br />

excelência ética constitui-se, portanto, em vista <strong>de</strong><br />

fenómenos <strong>de</strong> prazer e <strong>de</strong> sofrimento (1104b3)” 36 .<br />

Nesta medida, a biografia plutarquiana a<strong>de</strong>qua-se a<br />

um <strong>de</strong>terminado programa moral previamente <strong>de</strong>lineado,<br />

partindo já <strong>de</strong> um referencial, <strong>Péricles</strong>, com o qual o general<br />

romano se assemelha ou diverge. Assim, a história <strong>de</strong> uma<br />

34 Vi<strong>de</strong> Stadter (1997: 67 sqq.).<br />

35 Em Cartas a Lucílio 94, Séneca expõe, com clareza, esta<br />

questão: “O problema da parenética divi<strong>de</strong>-se, portanto, em duas<br />

questões: ela é útil ou inútil? É por si só capaz <strong>de</strong> formar o homem<br />

<strong>de</strong> bem ou não? Em suma, ela é supérflua, ou, pelo contrário, torna<br />

supérfluo todo o resto da filosofia?”. Tradução <strong>de</strong> Campos ( 2 2004:<br />

480).Vi<strong>de</strong> também Stadter (1997: 69).<br />

36 Tradução <strong>de</strong> Caeiro (2004: 46).<br />

172


173<br />

in t r o d u ç ã o<br />

vida é moldada para se ajustar a um <strong>de</strong>terminado conjunto<br />

<strong>de</strong> valores políticos e éticos.<br />

Do mesmo modo, <strong>Fábio</strong> suportou os seus ultrajes,<br />

impassivelmente (apathos) e com mansidão, <strong>de</strong> forma a<br />

servir <strong>de</strong> exemplo (apo<strong>de</strong>ixin) aos filósofos que sustentam<br />

que não é possível nem insultar, nem <strong>de</strong>sonrar o homem<br />

bom e virtuoso (10.2)<br />

O biografado torna-se assim um actor moral, cujo<br />

comportamento é apresentado com vista a confirmar<br />

dogmata, que carecem <strong>de</strong> exemplos práticos que<br />

reflictam a sua utilida<strong>de</strong> 37 . Assim, a vida <strong>de</strong>ste general<br />

parece construída para confirmar o axioma da apatheia 38 ,<br />

a impassibilida<strong>de</strong> face aos afectos da natureza humana.<br />

Com efeito, não po<strong>de</strong>mos per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista o intuito<br />

didáctico da sua obra, pois Plutarco era sobretudo um<br />

gran<strong>de</strong> divulgador da filosofia.<br />

Só o tempo <strong>de</strong>volveu justiça e actualida<strong>de</strong> a esta<br />

figura. Além <strong>de</strong> ter conhecido alguns florescimentos na<br />

posterida<strong>de</strong>, com referências pontuais a nível literário 39 ,<br />

no domínio da arte 40 , a sua táctica <strong>de</strong> batalha campal<br />

37 Stadter (1997: 70): “A few examples of Plutarch’s use of history<br />

to create moral portraits will help us appreciate his ability to highlight<br />

the moral dimensions of political action, and allow his rea<strong>de</strong>rs to have<br />

that bonorum uirorum conversatio urged by Seneca”.<br />

38 Além da ocorrência acima mencionada, há outro registo<br />

do mesmo termo em 1.6.2, quando tratava a sua caracterização<br />

espiritual na infância: “a todos provou que a aparente inacção era,<br />

na verda<strong>de</strong>, impassibilida<strong>de</strong> [apatheian]”.<br />

39 Uma antologia <strong>de</strong> textos sobre <strong>Fábio</strong> consta em Santoni<br />

(1991: 287-99).<br />

40 Vi<strong>de</strong> nota 18 <strong>de</strong>ste estudo.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

teve também muita repercussão na teoria militar<br />

contemporânea, como vem confirmar Goldsworthy<br />

( 2 2007: 46): “(...) o ditador agia correctamente. Muita<br />

<strong>de</strong>sta literatura cita o exemplo <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> na abordagem<br />

das circunstâncias em que um chefe militar <strong>de</strong>ve travar<br />

abertamente uma batalha.”<br />

Contudo, nenhuma recepção se po<strong>de</strong> equiparar<br />

àquela que teve lugar no final do século XIX, no Reino<br />

Unido e na Irlanda. Recuperada no âmbito da filosofia<br />

política, a estratégia militar <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> actualizou-se numa<br />

nova dimensão, com a fundação, em 1884, da Socieda<strong>de</strong><br />

Fabiana 41 . A criação <strong>de</strong>ste movimento intelectual é<br />

atribuída a Thomas Davidson, um filósofo escocês, e<br />

reunia cientistas, escritores, políticos e intelectuais como<br />

George Bernard Shaw, Sidney Webb e Berthand Russell.<br />

Com efeito, tal como <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> optava pela ausência<br />

<strong>de</strong> combate como estratégia, também esta socieda<strong>de</strong><br />

tinha como fim estabelecer um Estado <strong>de</strong>mocrático<br />

baseado no socialismo, renunciando à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

criar uma revolução para operar esta mudança social e<br />

política. Assim, esta filosofia é implantada na socieda<strong>de</strong><br />

mediante uma educação <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> eventos públicos<br />

criados para este efeito, como palestras – cerca <strong>de</strong> 700 no<br />

ano <strong>de</strong> 1888 –, grupos <strong>de</strong> discussão, conferências e escolas<br />

<strong>de</strong> verão 42 . Em 1906, a Socieda<strong>de</strong> Fabiana conhecia já<br />

41 Eis a primeira resolução da Socieda<strong>de</strong> tomada na reunião<br />

intitulada “The Fellowship of a New Life”, datada <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> Dezembro<br />

<strong>de</strong> 1884: “That the Society be called The Fabian Society (as Mr.<br />

Podmore explained in allusion to the victorious policy of Fabius<br />

Cunctator) was carried by 9 votes to 2.” in Pease (2008: 21).<br />

42 Em 1889, G. Bernard Shaw publica aquele que é o seu tratado<br />

mais conhecido da Socieda<strong>de</strong>, Fabian Essays in Socialism, seguindo-se<br />

174


175<br />

in t r o d u ç ã o<br />

alguns frutos, sendo uma uma das responsáveis pela<br />

fundação do Partido Trabalhista britânico (1900).<br />

Além da Socieda<strong>de</strong> a nível nacional, outras emergiram<br />

em âmbito local – actualmente cerca <strong>de</strong> 63 –, tendo-se<br />

difundido na América e na Austrália já na década <strong>de</strong><br />

cinquenta do século passado 43 .<br />

Actualmente, esta Socieda<strong>de</strong> continua bastante<br />

activa: publica a revista Fabian Review, lança várias<br />

edições <strong>de</strong> matéria política, organiza seminários,<br />

conferências e <strong>de</strong>bates sobre temas cívicos. Além disso,<br />

ainda criou recentemente, em 2005, outra vertente,<br />

a Fabian Women’s Network, que reúne cerca <strong>de</strong> 2000<br />

mulheres.<br />

Unus homo – um homem só visionário que<br />

empreen<strong>de</strong>u uma táctica militar tão criticada, mas que<br />

vigora, afinal, até aos nossos dias, como paradigma<br />

político e com repercussões efectivas na socieda<strong>de</strong>,<br />

inspirando, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIX, gerações <strong>de</strong> políticos.<br />

em 1952, New Fabian Essays, editado por Richard H. S. Crossman.<br />

43 In “Fabian Society”, The New Encyclopaedia Britannica,<br />

vol. 4 ( 15 1995: 647-8). A obra <strong>de</strong> Edward R. Pease, secretário da<br />

Socieda<strong>de</strong> durante vários anos, History of the Fabian Society: The<br />

Origins of English Socialism <strong>de</strong> 1916, conheceu duas reedições nos<br />

últimos dois anos.


Tábua Cronológica<br />

Tá b u a c r o n o l ó g i c a 1<br />

ro m a /Vi d a d e Fá b i o má x i m o<br />

Sé c u l o iii a.c.<br />

ca. 283 Ano provável do nascimento <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong><br />

<strong>Máximo</strong> 2 .<br />

265 Eleito áugure, cargo que exerceu até à sua morte,<br />

durante 62 anos.<br />

237-219 Os Barcas chegam à Hispânia e lá<br />

permaneceram durante 18 anos.<br />

233 Cônsul pela primeira vez. Triunfo sob os Lígures<br />

(2. 1; 29 (2)) 3 .<br />

230 Eleito censor.<br />

228 Segundo consulado. Oposição à Lei Flamínia que<br />

propunha a distribuição do terreno, o ager Gallicus 4 ,<br />

pelos colonos romanos mais necessitados.<br />

221-19 Ditador pela primeira vez. Provavelmente<br />

em 221 5 .<br />

218 Avanço <strong>de</strong> Aníbal. Vitória cartaginesa em Trébia (2. 2).<br />

1 Para o estabelecimento <strong>de</strong>sta cronologia, baseámo-nos<br />

sobretudo nas fixadas por R. Guerrini (1991: 285-286) e A. Pérez<br />

Jiménez (1996: 64-66)<br />

2 Vi<strong>de</strong> nota 7 do capítulo “Introdução”.<br />

3 Estas referências dizem respeito à Vida <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>.<br />

4 Terreno dos Sénones, situado entre Sena Gálica e Ravena, que<br />

fora conquistado pelos Romanos.<br />

5 Cf. Valério <strong>Máximo</strong> 1. 1. 5.<br />

176


177<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

217 Derrota do lago Trasimeno a 21 <strong>de</strong> Junho (3. 3).<br />

<strong>Fábio</strong> é nomeado ditador pelo povo (3. 7).<br />

Coloca em prática a estratégia contra Aníbal: adiar o<br />

ataque até que o inimigo <strong>de</strong>sgaste a sua força com a<br />

falta <strong>de</strong> recursos (5. 1-2).<br />

<strong>Fábio</strong> é enganado pela estratégia dos bois <strong>de</strong> cornos<br />

em chamas e soldados romanos são feitos prisioneiros<br />

(6.6-10).<br />

O general ven<strong>de</strong> a sua proprieda<strong>de</strong> para po<strong>de</strong>r pagar<br />

o resgate dos soldados (7.7).<br />

Minúcio Rufo, o seu chefe <strong>de</strong> cavalaria, é eleito<br />

co-ditador, algo inédito (9.3-4).<br />

<strong>Fábio</strong> salva Minúcio Rufo e suas legiões das tropas <strong>de</strong><br />

Aníbal (12.4).<br />

Termina o período <strong>de</strong> ditadura e são nomeados novos<br />

cônsules, G. Servílio Gémino e M. Atílio Régulo (14.1).<br />

216 Derrota romana na Batalha <strong>de</strong> Canas (15-16).<br />

Morte do cônsul Emílio Paulo (16.9) e fuga do<br />

colega Terêncio Varrão para a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Venúsia.<br />

Regressa, mais tar<strong>de</strong>, a Roma (18.4).<br />

<strong>Fábio</strong> é eleito Pontífice <strong>Máximo</strong>.<br />

215 Terceiro consulado na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consul<br />

suffectus 6 , <strong>de</strong>pois da morte do cônsul L. Postúmio<br />

Albino e da renúncia <strong>de</strong> M. Cláudio Marcelo, pois a sua<br />

eleição não foi validada pelos áugures (19.1).<br />

214 Cônsul pela quarta vez juntamente com M. Cláudio<br />

6 Substituto do cônsul que morre antes do termo da<br />

magistratura.


Tábua Cronológica<br />

Marcelo, a chamada dupla “O escudo e a espada <strong>de</strong><br />

Roma” (19.4). Ambos <strong>de</strong>frontaram Aníbal (19. 5-6).<br />

213 Q. <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, filho <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, é eleito cônsul<br />

(24. 1-4).<br />

211 Aníbal marcha sobre Roma (17.1). Cápua é reconquistada<br />

por Fúlvio e Ápio (29. (2)).<br />

210 Cipião é nomeado procônsul na Hispânia (25.1).<br />

209 Quinto consulado <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> juntamente com<br />

Q. Fúlvio Flaco. Reconquista <strong>de</strong> Tarento à traição (21-24).<br />

205 Consulado <strong>de</strong> Cipião com Licínio Crasso (25.1).<br />

Morte do filho <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>. Encómio ao filho falecido<br />

(1.9; 24.6).<br />

<strong>Fábio</strong> tenta impedir a expedição <strong>de</strong> Cipião ao norte<br />

<strong>de</strong> África (25. 2-26).<br />

204 Cipião prossegue a campanha em África e conquista<br />

as primeiras vitórias (26.3).<br />

203 Aníbal abandona Itália (26.4).<br />

Morte <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> (27.2).<br />

202 Cipião vence <strong>de</strong>finitivamente Aníbal na batalha <strong>de</strong><br />

Zama (27.1).<br />

201 Tratado <strong>de</strong> paz entre Roma e Cartago.<br />

178


Vi d a d e Fá b i o Má x iM o


181<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

1. Depois <strong>de</strong> expor o que foi <strong>Péricles</strong> nas acções<br />

dignas <strong>de</strong> memória, tal como as recebemos, passamos<br />

agora à história <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>.<br />

2. Dizem que <strong>de</strong> uma ninfa ou, segundo outros,<br />

<strong>de</strong> uma mulher daquele sítio, que se uniu a Herácles na<br />

margem do rio Tibre, nasceu <strong>Fábio</strong>, o fundador da família<br />

dos <strong>Fábio</strong>s, numerosa e notável em Roma 1 . Contudo,<br />

alguns autores estabeleceram que os primeiros membros<br />

<strong>de</strong>sta família se chamavam, antigamente, Fódios pelo<br />

facto <strong>de</strong> caçarem com buracos, pelo que ainda hoje se<br />

dá o nome <strong>de</strong> fossae aos buracos e fo<strong>de</strong>re à acção <strong>de</strong> cavar;<br />

mas, com o tempo, alteraram-se as duas letras e foram<br />

apelidados <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>s.<br />

3. Muitos e gran<strong>de</strong>s homens produziu aquela<br />

casa, nomeadamente Ruliano 2 , o mais importante, que<br />

por isso era chamado <strong>Máximo</strong> entre os Romanos, sendo<br />

<strong>de</strong>le que <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>, em quarta geração 3 , o <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong><br />

1 Este dado é também testemunhado por Juvenal, Sátiras 8. 14.<br />

2 Q. <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> Ruliano foi cinco vezes cônsul em 322, 310,<br />

308, 297, 295 a.C., pelo que foi o elemento mais influente <strong>de</strong>sta<br />

família no século IV a. C. Durante os seus consulados, obteve a<br />

vitória sobre os Samnitas, Apúlios, Etruscos, bem como na batalha<br />

<strong>de</strong> Sentino, em 295 a.C.<br />

3 Reconhecida também por Plínio, História Natural 7.133, a<br />

genealogia em que Plutarco se baseia é a seguinte: Q. F. <strong>Máximo</strong><br />

Ruliano foi pai <strong>de</strong> Q. F. <strong>Máximo</strong> Gurges, <strong>de</strong> quem proce<strong>de</strong> Q.<br />

F. <strong>Máximo</strong> Gurges, que tem como <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte o <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong><br />

biografado. O avô <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> – segundo a genealogia seguida<br />

por Plutarco – teve dois consulados em 292 e 276 a.C.; o pai <strong>de</strong>


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

sobre quem escrevemos a biografia. 4. Um pormenor<br />

físico valeu-lhe o apelido <strong>de</strong> Verrugoso 4 , pois tinha uma<br />

pequena verruga a crescer acima do lábio; o <strong>de</strong> Ovícula,<br />

que significa “cor<strong>de</strong>irinho”, foi-lhe atribuído graças<br />

à doçura e tranquilida<strong>de</strong> do seu carácter, quando era<br />

ainda uma criança. 5. A sua calma e silêncio, e a muita<br />

prudência com que se entregava aos prazeres infantis, a<br />

lentidão e a dificulda<strong>de</strong> com que aprendia as matérias, a<br />

complacência e a submissão para com os seus amigos, fez<br />

com que aqueles que o conheciam mal suspeitassem <strong>de</strong><br />

alguma estupi<strong>de</strong>z e preguiça. Apenas alguns distinguiam,<br />

no fundo, a firmeza, a generosida<strong>de</strong> e a coragem leonina<br />

na sua natureza. 6. Contudo, o tempo rapidamente<br />

passou, sendo <strong>de</strong>spertado pela activida<strong>de</strong> política, e a<br />

todos provou que a sua aparente apatia era, na verda<strong>de</strong>,<br />

impassibilida<strong>de</strong>, a precaução, prudência, e a falta <strong>de</strong><br />

reacção e agilida<strong>de</strong> perante qualquer circunstância antes<br />

eram constância e a firmeza. 7. Observando a gran<strong>de</strong>za do<br />

Estado e as numerosas guerras, treinou o seu corpo para<br />

o combate, como uma arma natural, e o discurso como<br />

instrumento <strong>de</strong> persuasão dirigido ao povo, a<strong>de</strong>quandose<br />

perfeitamente ao seu modo <strong>de</strong> vida. 8. Não havia, no<br />

seu discurso, nem o ornamento nem a vã eloquência<br />

forense, mas a razão tomava nas suas palavras um estilo<br />

particular e uma profundida<strong>de</strong> invulgar nas sentenças,<br />

<strong>Fábio</strong>, homónino <strong>de</strong>ste último, teria sido também cônsul em 265<br />

a.C. Os testemunhos divi<strong>de</strong>m-se quanto à paternida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>,<br />

pois enquanto uns consi<strong>de</strong>ram que F. <strong>Máximo</strong> Ruliano é avô (Tito<br />

Lívio 30. 26. 8), outros <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m, como Plutarco e Plínio, que é<br />

seu bisavô.<br />

4 Cf. Sobre os varões ilustres 43. 1 e Cícero, Bruto 57.5.<br />

182


183<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

muito semelhantes, dizem, àquelas <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s. 9.<br />

Conservamos ainda, com efeito, um discurso <strong>de</strong>le<br />

proferido diante do povo: um encómio ao filho 5 que<br />

morreu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido cônsul.<br />

2. Dos cinco consulados que exerceu, no primeiro<br />

conquistou o triunfo sobre os Lígures 6 . Vencidos por<br />

ele na batalha, quando muitos tinham já perdido<br />

contra eles, foram repelidos até aos Alpes, <strong>de</strong>ixando<br />

<strong>de</strong> pilhar e fazer estragos na região fronteiriça à Itália.<br />

2. Aníbal, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> invadir a Itália e vencer a primeira<br />

batalha nas margens do rio Trébia 7 , penetrou através<br />

da Etrúria e arrasou o país, provocando em Roma<br />

consternação e um medo terrível. Sinais surgiram,<br />

alguns familiares aos Romanos como os raios, outros<br />

completamente inéditos e muito estranhos 8 . Diz-se,<br />

por exemplo, que certos escudos transpiraram, eles<br />

mesmos, sangue, que perto <strong>de</strong> Âncio se cortaram<br />

espigas <strong>de</strong> trigo ensanguentadas, que do ar caíram<br />

pedras <strong>de</strong> fogo ar<strong>de</strong>ntes, que sobre os Falérios 9 se via<br />

o céu abrir-se e, nisto, caíam numerosas tabuinhas,<br />

que se espalhavam aqui e ali, numa das quais, estava<br />

5 Cf. Cícero, Da Velhice 12-13, Tusculanas 3, 70, Cartas aos<br />

Amigos 4. 6.1.<br />

6 A vitória teve lugar no ano <strong>de</strong> 233 a.C.<br />

7 Em Dezembro <strong>de</strong> 218 a.C., Aníbal venceu P. Cornélio Cipião<br />

e T. Semprónio.<br />

8 Estes prodígios e outros mais são mencionados por Tito<br />

Lívio 22.1, 8-12, ao contrário <strong>de</strong> Políbio, historiador racionalista,<br />

que não faz referência a estes acontecimentos. Vi<strong>de</strong> o tratado <strong>de</strong><br />

Plutarco, Da Superstição (164e-171f).<br />

9 Cida<strong>de</strong> capital dos Faliscos, situada na zona meridional da<br />

Etrúria, actualmente <strong>de</strong>signada por Cività Castellana.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

escrito com todas as letras: “Marte agita as suas<br />

armas.” 10<br />

3. Nenhum <strong>de</strong>stes prodígios impressionou Gaio<br />

Flamínio 11 . Homem <strong>de</strong> natureza ar<strong>de</strong>nte e ambiciosa,<br />

exaltado pelos gran<strong>de</strong>s sucessos que antes conseguira <strong>de</strong><br />

forma imprevista, quando, apesar da or<strong>de</strong>m do Senado e da<br />

veemente oposição do seu colega <strong>de</strong> consulado, empreen<strong>de</strong>u<br />

uma guerra contra os Galos e os <strong>de</strong>rrotou 12 . <strong>Fábio</strong>, por<br />

sua vez, apesar <strong>de</strong> muitos terem ficado impressionados,<br />

não se <strong>de</strong>ixou perturbar por aqueles sinais, dada a sua<br />

irracionalida<strong>de</strong>. 4. Informado, porém, do número reduzido<br />

<strong>de</strong> inimigos e da sua escassez <strong>de</strong> recursos, aconselhou os<br />

Romanos a ter paciência e a não fazer guerra contra um<br />

homem que comandava um exército treinado em muitos<br />

combates para aquele em concreto, e, em vez disso, a enviar<br />

ajuda aos aliados <strong>de</strong> forma a manter o controlo sobre estas<br />

cida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>ixando que a força <strong>de</strong> Aníbal se extinguisse por<br />

si mesma, como uma chama que brilha com todo o vigor<br />

até ficar pequena e fraca 13 .<br />

10 Vi<strong>de</strong> Tito Lívio 21. 11.<br />

11 Gaio Flamínio foi nomeado tribuno da plebe em 232 a.C.<br />

e era um novus homo, ou seja, o primeiro elemento da sua família<br />

a alcançar um lugar no Senado, tendo levado a cabo uma política<br />

agrária contrária à classe senatorial. Eleito pretor em 227 a.C.,<br />

Flamínio foi o primeiro governador anual da Sicília, mas foi no<br />

seu consulado (223 a.C.) que alcançou maior notorieda<strong>de</strong>, pela sua<br />

vitória contra os Ínsubres. Nomeado <strong>de</strong>pois censor em 220 a.C.,<br />

foi o único <strong>de</strong>fensor <strong>de</strong> Q. Cláudio em 218 a.C. na lex Claudia.<br />

Este acto público e a sua origem conquistaram a confiança do povo,<br />

que o elevou ao consulado em 217 a.C.<br />

12 A vitória teve lugar em 223 a.C., durante o seu primeiro<br />

consulado sobre os Galos. Cf. Políbio 2. 32-33; Plutarco, Marcelo<br />

4. 2-6.<br />

13 Imagem homérica; Ilíada 9. 212.<br />

184


185<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

3. Não convenceu, contudo, Flamínio. Este<br />

<strong>de</strong>clarou que não consentiria que a guerra se aproximasse<br />

<strong>de</strong> Roma e que não faria como o antigo Camilo 14 , que<br />

travou um combate pela cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da mesma 15 ,<br />

pelo que or<strong>de</strong>nou aos tribunos que mandassem sair o<br />

exército e ele mesmo saltou para o cavalo. O animal, sem<br />

causa aparente, começou a tremer <strong>de</strong> forma inesperada,<br />

assustou-se e Flamínio foi <strong>de</strong>rrubado e caiu <strong>de</strong> cabeça 16 .<br />

Este inci<strong>de</strong>nte, contudo, não alterou a sua resolução e<br />

seguiu o seu primeiro impulso: ir ao encontro <strong>de</strong> Aníbal<br />

e colocar as suas tropas em linha <strong>de</strong> batalha perto do<br />

chamado lago <strong>de</strong> Trasimeno, na Etrúria 17 . 2. Quando os<br />

exércitos se preparavam para o combate, precisamente<br />

no momento crucial da batalha, ocorre um terramoto<br />

que arrasou cida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>sviou os rios dos seus leitos e<br />

abriu fendas nas montanhas até à base. Contudo, apesar<br />

14 Trata-se <strong>de</strong> Fúrio Camilo, tribuno consular em 401, 398,<br />

394, 386, 384, 381 a.C., supostamente censor em 403 e dictator<br />

em 396, 390, 389, 368, 367 a. C. e que conduziu uma investida<br />

contra os Gauleses em 390 a.C.<br />

15 Cf. Tito Lívio 22. 3. 10.<br />

16 Tito Lívio (22. 3. 11) quando menciona este episódio, refere<br />

que “o cavalo se abateu subitamente e fez cair o cônsul por cima da<br />

sua cabeça” [equus repente corruit consulemque lapsum super caput<br />

effudit]. É, por isso, provável que Plutarco não tenha compreendido<br />

o texto latino. O biógrafo reconheceu, com efeito, estas limitações<br />

em Demóstenes 2. 2-3, recordando que quando se encontrava em<br />

Roma não tinha tempo para se <strong>de</strong>dicar ao estudo da língua latina<br />

pois tanto os afazeres públicos como os que buscavam os seus<br />

conhecimentos <strong>de</strong> filosofia absorviam todo o tempo. Só mais tar<strong>de</strong>,<br />

pô<strong>de</strong> começar a estudar a literatura romana.<br />

17 O combate teve lugar na Primavera <strong>de</strong> 217 a.C., no dia 21 <strong>de</strong><br />

Junho, segundo Ovídio, Fastos 6. 765-768.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

da violência do fenómeno, nenhum dos combatentes se<br />

apercebeu 18 . 3. Flamínio, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter dado provas <strong>de</strong><br />

muitos actos <strong>de</strong> audácia e coragem, morreu e, com ele,<br />

os melhores homens. Os restantes entregaram-se à fuga<br />

e houve gran<strong>de</strong> mortanda<strong>de</strong>: quinze mil foram talhados<br />

em pedaços e outros tantos foram feitos prisioneiros 19 .<br />

Aníbal, querendo dignificar o corpo <strong>de</strong> Flamínio com<br />

ritos fúnebres e prestar-lhe honra pelo seu valor, não o<br />

encontrou, entre os cadáveres, e jamais souberam como<br />

<strong>de</strong>sapareceu 20 .<br />

4. A <strong>de</strong>rrota ocorrida junto ao rio Trébia, nem o<br />

general que escreveu a notícia, nem o mensageiro enviado,<br />

a anunciaram claramente, tendo mentido, dizendo que<br />

a vitória tinha sido controversa e duvidosa 21 . Contudo,<br />

assim que o pretor Pompónio teve conhecimento <strong>de</strong>sta<br />

notícia, reunindo o povo em assembleia geral e sem<br />

perífrases ou mais ro<strong>de</strong>ios, avançou e disse abertamente:<br />

5. “Romanos, fomos vencidos numa gran<strong>de</strong> batalha 22 ;<br />

o exército foi <strong>de</strong>struído e o cônsul Flamínio morreu.<br />

Deliberai agora sobre a vossa salvação e segurança.” 6.<br />

Esta <strong>de</strong>claração lançada sob uma multidão tão ingente,<br />

como um furacão no mar, espalhou a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m na cida<strong>de</strong>,<br />

e diante <strong>de</strong> tamanho terror, as faculda<strong>de</strong>s racionais não<br />

se pu<strong>de</strong>ram conservar ou manter firmes. 7. Nisto, todos<br />

18 Cf. Tito Lívio 22.5.8.<br />

19 Estes números coinci<strong>de</strong>m com os <strong>de</strong> Políbio 3.84-85 e Tito<br />

Lívio 22.7, 2-5, menciona o número <strong>de</strong> mortos, mas não refere<br />

prisioneiros.<br />

20 Cf. Tito Lívio 22.7.5 e Valério <strong>Máximo</strong> 1.6.6, que fazem<br />

também referência ao <strong>de</strong>saparecimento do corpo.<br />

21 Cf. Políbio 3.75.<br />

22 Cf. Tito Lívio 22.7.8 e Políbio 3.85.7.<br />

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187<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

chegaram a um acordo: a situação exigia uma autorida<strong>de</strong><br />

e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> um só, o que chamam <strong>de</strong> ditadura 23 , e um<br />

homem que o exercesse sem hesitação e com segurança;<br />

e este homem só podia ser <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, que possuía a<br />

sabedoria, e a nobreza <strong>de</strong> carácter à altura daquele cargo,<br />

além <strong>de</strong> que estava na ida<strong>de</strong> em que o vigor do corpo<br />

suporta as resoluções do espírito e em que a audácia se<br />

alia à prudência.<br />

4. Tomada esta <strong>de</strong>cisão, <strong>Fábio</strong>, nomeado ditador 24 ,<br />

<strong>de</strong>signou ele próprio Marco Minúcio 25 para a função <strong>de</strong><br />

comandante da cavalaria 26 . O primeiro pedido que fez<br />

23 Vi<strong>de</strong> “Introdução Geral”, n. 5.<br />

24 Neste caso, o título seria, em rigor, prodictator, pois a<br />

nomeação foi feita pelo voto popular nos comitia centuriata.<br />

Outros testemunhos como Tito Lívio 22.8 e Políbio 3. 87. 6-9<br />

não atribuem a eleição do ditador ao povo. Com efeito, só um<br />

magistrado com imperium (cônsul, pretor ou interrex) tinha o<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nomear, em público (dictatorem dicere) e com autorização<br />

prévia do Senado, o ditador ou magister populi. Contudo, não<br />

era possível fazer as eleições por esta via, pois um cônsul, Gaio<br />

Flamínio, tinha morrido em combate enquanto o seu colega, o<br />

cônsul Servílio, estava ausente <strong>de</strong> Roma. Semelhante à monarquia<br />

(Cícero, República 2. 59), raramente se recorria a esta forma <strong>de</strong><br />

governo, sendo usada apenas em situações <strong>de</strong> crise militar, pois o<br />

eleito <strong>de</strong>tinha po<strong>de</strong>r absoluto sobre as instituições políticas, ainda<br />

que fosse apenas por seis meses.<br />

25 M. Minúcio Rufo tinha sido nomeado cônsul em 221 a.C.<br />

em conjunto com P. Cipião Ásina. Morrerá, no ano seguinte na<br />

batalha <strong>de</strong> Canas (216 a.C.).<br />

26 O relato <strong>de</strong> Plutarco diverge daquele <strong>de</strong> Tito Lívio (22.8.7)<br />

e <strong>de</strong> Políbio (3.87.9). Com efeito, ambos os historiadores dizem<br />

que foi o povo quem elegeu o magister equitum juntamente com<br />

o ditador. Como refere, a propósito <strong>de</strong>sta eleição, o historiador<br />

Goldsworthy ( 2 2007: 44): “Normalmente, o ditador escolhia<br />

o seu chefe da Cavalaria, mas, nas excepcionais circunstâncias em


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

ao Senado foi o po<strong>de</strong>r ir a cavalo durante as expedições<br />

militares. 2. Ele não tinha, com efeito, este direito:<br />

uma antiga lei o proibia, seja porque consi<strong>de</strong>ravam a<br />

infantaria a força principal do seu exército e julgavam<br />

que o general <strong>de</strong>via permanecer junto da falange, não a<br />

po<strong>de</strong>ndo abandonar, seja porque o po<strong>de</strong>r que o cargo,<br />

lhe conce<strong>de</strong> é enorme e tem todas as características da<br />

tirania, e é suposto que ao menos nisto pareça que o<br />

ditador está subordinado ao povo.<br />

3. Com efeito, o próprio <strong>Fábio</strong>, querendo logo<br />

mostrar a gran<strong>de</strong>za e a majesta<strong>de</strong> do cargo, <strong>de</strong> forma<br />

a tornar mais dóceis e obedientes os cidadãos, saiu a<br />

público com vinte e quatro lictores reunidos à sua<br />

volta 27 . Assim, quando o outro cônsul ia ao seu encontro,<br />

enviou o seu ajudante e or<strong>de</strong>nou-lhe que mandasse<br />

embora os lictores, <strong>de</strong>ixasse as insígnias daquele cargo e<br />

se apresentasse como um cidadão comum.<br />

4. Depois disto, inaugurou o cargo com o mais<br />

belo princípio, começando pelos <strong>de</strong>uses, dando a<br />

enten<strong>de</strong>r ao povo que a <strong>de</strong>rrota tinha ficado a <strong>de</strong>ver-se<br />

que <strong>Fábio</strong> foi eleito, foi <strong>de</strong>cidido conce<strong>de</strong>r também aos eleitores<br />

o direito <strong>de</strong> escolher o seu subordinado.” Este título po<strong>de</strong> ser um<br />

vestígio dos tempos arcaicos da história <strong>de</strong> Roma, quando a maioria<br />

do exército correspondia à falange hoplita, e, enquanto o ditador<br />

comandava a infantaria pesada, o subordinado, magister equitum,<br />

dirigia a cavalaria. Tal como o do dictator, este cargo tinha também<br />

um carácter temporário, terminando com o fim da ditadura. Sobre<br />

os problemas associados às eleições <strong>de</strong> 217 a.C., vi<strong>de</strong> Sumner<br />

(1975).<br />

27 A cada cônsul era permitido ter doze lictores, mas o ditador,<br />

como concentrava em si todo o imperium, teria direito a vinte e<br />

quatro, símbolo <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r pleno equivalente a dois cônsules.<br />

Sobre este episódio, cf. Tito Lívio 22.11.5-6.<br />

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189<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

à negligência e ao <strong>de</strong>sprezo do general pelos <strong>de</strong>uses, e<br />

não à incapacida<strong>de</strong> dos combatentes; exortou-o a não<br />

temer os inimigos, encorajando-o antes a apaziguar e<br />

honrar os <strong>de</strong>uses 28 . Não para alimentar a superstição,<br />

mas para fortalecer com a pieda<strong>de</strong> e a coragem, e, com<br />

as esperanças postas nos <strong>de</strong>uses, apagar o medo dos<br />

inimigos, reconfortando-os. 5. Recorreu-se, então,<br />

a muitos livros secretos utilizados pelos Romanos,<br />

que se chamavam sibilinos 29 e diz-se que algumas das<br />

profecias que aí constavam se reportavam a situações<br />

e a acontecimentos <strong>de</strong> então. 6. A nenhuma outra<br />

pessoa era permitido saber o que lá se lia, à excepção<br />

do ditador. Este, apresentando-se diante da multidão,<br />

fez o voto <strong>de</strong> oferecer aos <strong>de</strong>uses tudo quanto se<br />

produzisse na Itália inteira, entre cabras, porcos, reses<br />

e bois, tanto nas montanhas como nas planícies, nos<br />

rios e pradarias, na Primavera seguinte 30 ; <strong>de</strong> celebrar<br />

espectáculos musicais e cénicos 31 no valor <strong>de</strong> trezentos e<br />

trinta e três sestércios e trezentos e trinta e três <strong>de</strong>nários<br />

28 Cf. Tito Lívio 22. 9. 7 e Políbio 3.88.7.<br />

29 Designados também <strong>de</strong> Livros do Destino (libri fatales), os<br />

Livros Sibilinos eram uma colectânea muito antiga <strong>de</strong> oráculos<br />

gregos provenientes, segundo a lenda, da Etrúria e <strong>de</strong> Cumas, na<br />

Campânia, sendo na realida<strong>de</strong> uma herança etrusca. A leitura <strong>de</strong>stes<br />

livros permitia conhecer a vonta<strong>de</strong> divina e era solicitada em alturas<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> infortúnio, tendo tal acontecido pela primeira vez em<br />

436 a.C. No tempo <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, a consulta <strong>de</strong>stes livros era<br />

exclusiva <strong>de</strong> um colégio, o grupo dos Decemviri sacris faciundis.<br />

30 Trata-se do Ver sacrum (“Primavera sagrada”), prática religiosa<br />

itálica que consistia na consagração aos <strong>de</strong>uses, em momentos <strong>de</strong><br />

crise, <strong>de</strong> tudo o que nascesse na Primavera seguinte.<br />

31 Segundo Tito Lívio (22.10.7), tratavam-se dos Ludi Magni,<br />

oferecidos em honra <strong>de</strong> Jupiter Optimus Maximus.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

e ainda um tritartemórion 32 , soma que hoje equivale a<br />

oitenta e três mil, quinhentas e oitenta e três dracmas e<br />

dois óbolos. 7. É, com efeito, difícil dizer qual a razão<br />

da exactidão e da minúcia <strong>de</strong>ste montante, a não ser<br />

que, porventura, quisesse enaltecer o valor do número<br />

três, já que é ele, por natureza, o número perfeito: o<br />

primeiro dos números ímpares, o princípio causal da<br />

pluralida<strong>de</strong>, reúne em si mesmo as primeiras diferenças<br />

e os elementos <strong>de</strong> todos os números, combinando-os, e<br />

harmonizando-os numa união conjunta 33 .<br />

5. Ao levantar o ânimo da multidão por meio da<br />

religião, <strong>Fábio</strong> inspirou mais confiança no futuro. Com<br />

efeito, colocando em si mesmo todas as esperanças<br />

na vitória, convencido <strong>de</strong> que os <strong>de</strong>uses conce<strong>de</strong>m<br />

os sucessos mediante o valor e a sabedoria, irá ao<br />

encontro <strong>de</strong> Aníbal, não com a intenção <strong>de</strong> combater,<br />

mas <strong>de</strong>cidido a <strong>de</strong>sgastar e consumir a sua força com o<br />

tempo, a falta <strong>de</strong> recursos <strong>de</strong>le com o seu dinheiro, e<br />

a falta <strong>de</strong> homens daquele com a abundância <strong>de</strong>les da<br />

sua parte 34 . 2. Por esta razão, ficava sempre nas alturas,<br />

acampando em zonas montanhosas, longe do alcance<br />

da cavalaria inimiga, tranquilo quando o inimigo estava<br />

calmo, e, quando este se movia, andava às voltas sem<br />

<strong>de</strong>ixar os pontos altos, mostrando-se à distância e <strong>de</strong><br />

32 Moeda <strong>de</strong> prata que equivale a três quatros <strong>de</strong> um óbolo e a<br />

um oitavo <strong>de</strong> um dracma. Cf. Pólux 9.65.<br />

33 Sobre o interesse <strong>de</strong> Plutarco pelo número três, vi<strong>de</strong> Obras<br />

Morais 288 D, 374 A, 738 F, 744 F, 1020 D.<br />

34 É esta a estratégia que celebrizou <strong>Fábio</strong> como Cunctator, o<br />

contemporizador. Cf. Políbio 3, 82, 4 e Tito Lívio 22.3, 8-9.<br />

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191<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

forma a não apresentar combate sem querer, e, com a<br />

espera, fomentar o medo nos inimigos como se fosse<br />

apresentar combate a qualquer momento.<br />

3. Contudo, por <strong>de</strong>ixar o tempo passar, era<br />

criticado por todos. Falava-se mal <strong>de</strong>le no acampamento<br />

e, entre os inimigos, era visto como cobar<strong>de</strong> e inútil; à<br />

excepção <strong>de</strong> Aníbal. 4. Era este o único que reconhecia<br />

a habilida<strong>de</strong> e a forma como ele conduzia a guerra,<br />

convencido <strong>de</strong> que ou o obrigava a combater por meio<br />

<strong>de</strong> qualquer estratégia ou pela força ou, caso contrário,<br />

estaria perdida a causa dos Cartagineses. Como não<br />

podiam servir-se <strong>de</strong> armas que os tornariam mais fortes<br />

e, sendo inferiores em homens e dinheiro, via os seus<br />

recursos diminuírem e esgotarem-se em vão. Aníbal<br />

recorreu a todo o tipo <strong>de</strong> estratégias e manobras, fazendo<br />

constantes intentos, como um hábil atleta que procura<br />

a ocasião para atacar: aproximava-se, criava confusão e<br />

procurava atrair <strong>Fábio</strong> para diversos lugares, querendo<br />

que ele <strong>de</strong>sistisse da táctica que garantia a sua segurança.<br />

5. Contudo, como este estava convencido da sua<br />

utilida<strong>de</strong>, a sua resolução permanecia fiel e inalterável.<br />

Importunava, porém, Minúcio, o comandante da<br />

cavalaria, que, se<strong>de</strong>nto <strong>de</strong> combate, com impertinência<br />

procurava seduzir os soldados, encorajando-os para um<br />

acto tresloucado, enchendo-os <strong>de</strong> vãs esperanças. Assim,<br />

estes faziam pouco e <strong>de</strong>sprezavam <strong>Fábio</strong>, chamando-o<br />

<strong>de</strong> pedagogo 35 <strong>de</strong> Aníbal, e a Minúcio, por sua vez,<br />

35 Esta acusação era especialmente ofensiva, pois indicava uma<br />

relação <strong>de</strong> subordinação e inferiorida<strong>de</strong>. O pedagogo era o escravo<br />

que tinha a missão <strong>de</strong> acompanhar a criança à escola e vigiá-la on<strong>de</strong><br />

quer que ela estivesse. Cf. Tito Lívio 22.12.11-12.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

viam-no como um gran<strong>de</strong> homem e um general digno<br />

<strong>de</strong> Roma. 6. Este, <strong>de</strong>ixando-se levar pelo orgulho e pela<br />

insolência, ridicularizava o facto <strong>de</strong> ter acampado nas<br />

alturas, dizendo que <strong>de</strong>ste modo o ditador oferecia bons<br />

lugares para assistir ao belo espectáculo <strong>de</strong> uma Itália<br />

<strong>de</strong>vastada e queimada; e perguntava aos amigos <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong><br />

se, com tanto subir, pretendia levar o exército para o<br />

céu, como se tivesse já <strong>de</strong>sistido da terra, ou se, para<br />

escapar aos inimigos, lhes atiraria nuvens e neblinas.<br />

7. Quando os amigos contaram a <strong>Fábio</strong> estas notícias<br />

e o aconselharam a libertar-se <strong>de</strong>stas afrontas com uma<br />

empresa arriscada, ele respon<strong>de</strong>u: “Assim, certamente”,<br />

disse, “parece-me que seria mais cobar<strong>de</strong> do que agora<br />

pareço se, por temer sarcasmos e injúrias, <strong>de</strong>ixasse cair<br />

a minha estratégia. 8. Além disso, não é vergonhoso<br />

temer pela pátria e não me parece digno <strong>de</strong> um homem<br />

<strong>de</strong> tamanho cargo <strong>de</strong>ixar-se influenciar pelas calúnias e<br />

censuras dos homens, mas antes próprio do escravo que<br />

se submete aos insensatos, sobre os quais ele <strong>de</strong>ve ser<br />

chefe e mestre” 36 .<br />

6. Algum tempo <strong>de</strong>pois, Aníbal cometeu um erro 37 .<br />

Querendo levar o seu exército para bem longe <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> e<br />

ocupar as planícies que tivessem pasto, or<strong>de</strong>nou aos guias<br />

que, <strong>de</strong>pois do jantar, o conduzissem até à região <strong>de</strong> Casino.<br />

2. Estes, porém, não enten<strong>de</strong>ram bem a or<strong>de</strong>m por causa<br />

da sua pronúncia bárbara e levaram-no até aos limites<br />

36 Cf. Plutarco, Obras Morais 195 C e Marcelo 9.7; Diodoro<br />

26.3.<br />

37 Para os assuntos narrados neste capítulo 6, cf. Tito Lívio 22.<br />

13-17 e Políbio 2.92-94.<br />

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193<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

da Campânia e fizeram o exército entrar nas imediações<br />

<strong>de</strong> Casilino, região que dividia em duas meta<strong>de</strong>s o rio<br />

Lótrono, que os Romanos chamavam <strong>de</strong> Volturno 38 . 3.<br />

A região está coroada <strong>de</strong> montanhas por todos os lados,<br />

menos por um, abrindo-se um canal para o mar, on<strong>de</strong> se<br />

revela um rio que forma pauis e tem profundos bancos<br />

<strong>de</strong> areia que culminam numa praia com forte ondulação<br />

e <strong>de</strong> difícil acesso. 4. Quando Aníbal <strong>de</strong>scia por ali, <strong>Fábio</strong><br />

<strong>de</strong>u uma volta, e aproveitando o facto <strong>de</strong> conhecer bem<br />

os caminhos, bloqueou a saída dispondo lá quatro mil<br />

homens da infantaria; <strong>de</strong>pois, tendo colocado o resto do<br />

seu exército num lugar estratégico nos pontos mais altos,<br />

ataca, com as tropas mais ligeiras e melhor organizadas,<br />

a retaguarda do inimigo, gerando confusão em todo o<br />

exército e matando cerca <strong>de</strong> oitocentos combatentes. 5.<br />

Aníbal, querendo bater em retirada com o exército dali<br />

para fora, reconheceu o erro e o perigo daquele lugar,<br />

crucificou os guias, mas renunciou empreen<strong>de</strong>r uma<br />

luta contra os inimigos, pois eram superiores nas zonas<br />

altas. 6. Vendo os soldados <strong>de</strong>sanimados e temerosos<br />

por pensarem que estavam cercados por todos os lados<br />

e sem escapatória, Aníbal arquitectou um ardil para<br />

enganar os inimigos 39 . O estratagema era o seguinte:<br />

mandou recolher cerca <strong>de</strong> dois mil bois entre os <strong>de</strong>spojos,<br />

atando a cada corno uma tocha, um feixe <strong>de</strong> vime <strong>de</strong><br />

sarça ou <strong>de</strong> mato seco. Mais tar<strong>de</strong>, quando a noite<br />

sobreveio, acen<strong>de</strong>ram as tochas e conduziram os bois<br />

38 Cf. Tito Lívio 22.13.5-6.<br />

39 Cf. Tito Lívio 22.16.17 e Políbio 3.93-94.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

até às alturas, em direcção aos <strong>de</strong>sfila<strong>de</strong>iros e aos vigias<br />

dos inimigos. 7. Enquanto uns recebiam or<strong>de</strong>ns para<br />

fazer os preparativos necessários, ele mesmo colocou em<br />

marcha o resto do exército, já na escuridão, fazendo-os<br />

avançar lentamente.<br />

Os bois, enquanto o fogo era fraco e ardiam apenas<br />

as ramas, avançavam lentamente, sendo conduzidos até<br />

ao cume das montanhas: os fogos que brilhavam no alto<br />

dos cornos constituíam um espectáculo para pastores e<br />

boieiros que observavam do alto, pensando que era um<br />

exército que marchava or<strong>de</strong>nado à luz <strong>de</strong> muitas tochas.<br />

8. Mas quando o fogo queimou as hastes e atingiu a<br />

raiz dos cornos, então sentiu-se o odor a carne, as reses<br />

dispersaram-se, sacudindo as cabeças, pegaram fogo<br />

umas às outras e já não se mantiveram na or<strong>de</strong>m em<br />

que caminhavam. Aterrorizadas e flageladas pela dor,<br />

lançaram-se em corrida pelos montes abaixo, com os<br />

rabos e a testa em chamas, e no mato, por on<strong>de</strong> fugiam,<br />

espalhavam o fogo. 9. Horrível era a visão para os<br />

Romanos que vigiavam as zonas mais altas. De facto, as<br />

chamas pareciam tochas carregadas por homens correndo,<br />

e com isto instala-se entre eles muita confusão e pânico,<br />

pois acreditavam que os inimigos viriam <strong>de</strong> todos os lados<br />

e que estavam cercados por toda a parte; por isso, não<br />

ousaram permanecer nos seus postos, e retirou-se a maior<br />

parte do exército, abandonando os <strong>de</strong>sfila<strong>de</strong>iros.<br />

10. Neste momento, as tropas ligeiras <strong>de</strong> Aníbal<br />

alcançam e ocupam as alturas, enquanto o resto do<br />

exército avança sem temor, arrastando consigo um<br />

volumoso e pesado <strong>de</strong>spojo.<br />

194


195<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

7. Ainda durante a noite, <strong>Fábio</strong> apercebeu-se do<br />

ardil, pois alguns bois, que se dispersaram durante a<br />

fuga, foram cair nas suas mãos; mas porque temia alguma<br />

emboscada, não avançou e manteve o seu exército em<br />

alerta. 2. Quando nasceu o dia, começou a perseguição<br />

e atacou a retaguarda do inimigo. Ocorreram confrontos<br />

em terrenos aci<strong>de</strong>ntados e o tumulto foi gran<strong>de</strong>, até que<br />

da parte <strong>de</strong> Aníbal foram enviados os ágeis e rápidos<br />

Iberos 40 , treinados para subir montanhas, que atacaram<br />

a pesada infantaria dos Romanos, e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> matarem<br />

alguns homens, obrigaram <strong>Fábio</strong> a recuar 41 .<br />

3. Este recebe, então, as piores imprecações e<br />

<strong>de</strong>sprezo 42 . Ao renunciar à audácia das armas, <strong>de</strong> forma<br />

a fazer guerra à força <strong>de</strong> prudência e previsão, foi ele<br />

quem, afinal, saiu <strong>de</strong>rrotado por estas e vítima da sua<br />

própria estratégia 43 .<br />

4. Aníbal, querendo incendiar ainda mais a ira<br />

dos Romanos contra ele, quando se aproximou das suas<br />

terras, or<strong>de</strong>nou que <strong>de</strong>struíssem e queimassem todas as<br />

outras, mas proibiu que tocassem nos campos <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong><br />

– e apenas nestes 44 – e colocou mesmo aí um vigia que<br />

não permitisse qualquer dano ou ataque.<br />

40 Designação étnica <strong>de</strong> um dos primitivos povos da<br />

Hispânia. No final do século V a.C., os Iberos eram conhecidos<br />

como mercenários: habituados às adversida<strong>de</strong>s das montanhas,<br />

caracterizavam-se pela sua agilida<strong>de</strong> e rapi<strong>de</strong>z e correspondiam à<br />

maior parte do exército <strong>de</strong> Aníbal.<br />

41 Cf. Políbio 3.94. 6.<br />

42 Cf. Políbio 3.94. 8.<br />

43 Cf. Tito Lívio 22.23.4.<br />

44 O mesmo suce<strong>de</strong>u ao primeiro elemento <strong>de</strong>ste par <strong>de</strong> <strong>Vidas</strong>,<br />

<strong>Péricles</strong> (33.2).


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

5. Quando estas notícias chegaram a Roma,<br />

aumentaram as calúnias contra <strong>Fábio</strong>. Os tribunos da<br />

plebe não paravam <strong>de</strong> gritar contra ele diante da multidão.<br />

Quem os incitava e provocava ainda mais era Metílio,<br />

não por ódio pessoal contra <strong>Fábio</strong>, mas por ser parente<br />

<strong>de</strong> Minúcio, o comandante da cavalaria, e por pensar<br />

que aquelas maledicências traziam a este último honra<br />

e glória. Acontece que também o Senado estava irado<br />

contra ele e o censurava sobretudo por causa do acordo<br />

que tinha firmado com Aníbal em relação aos cativos<br />

<strong>de</strong> guerra: tinham acordado entre si trocar homem por<br />

homem dos prisioneiros, e a dar-se o caso <strong>de</strong> um ter<br />

mais do que o outro, pagar por cada um dos capturados<br />

duzentas e cinquenta dracmas. 6. Com efeito, realizadas<br />

as permutas <strong>de</strong> homens, <strong>de</strong>scobriu-se que duzentos e<br />

quarenta romanos 45 estavam em po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Aníbal, pelo<br />

que o Senado <strong>de</strong>cidiu não enviar o montante e culpou<br />

<strong>Fábio</strong> pelo facto <strong>de</strong>, sem olhar à honra nem ao interesse,<br />

querer resgatar soldados tão cobar<strong>de</strong>s que se <strong>de</strong>ixaram<br />

capturar pelo inimigo. 7. <strong>Fábio</strong>, tendo conhecimento<br />

da recusa, suportou, pacientemente, a ira dos cidadãos.<br />

Assim, como não tinha riquezas, mas tampouco<br />

queria faltar à palavra a Aníbal ou abandonar os seus<br />

concidadãos, enviou o seu filho a Roma, or<strong>de</strong>nou-lhe<br />

que ven<strong>de</strong>sse as terras 46 e que lhe remetesse o dinheiro o<br />

mais rápido possível para o acampamento.<br />

8. Quando o jovem ven<strong>de</strong>u as terras e regressou,<br />

<strong>Fábio</strong> enviou a importância a Aníbal e recuperou os<br />

45 Cf. Tito Lívio 22.23.7.<br />

46 Cf. supra 7.2.<br />

196


197<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

cativos. Mais tar<strong>de</strong>, muitos quiseram <strong>de</strong>volver-lhe a<br />

quantia, mas não aceitou da parte <strong>de</strong> ninguém e perdoou<br />

a todos.<br />

8. Pouco tempo <strong>de</strong>pois, os sacerdotes chamaramno<br />

a Roma para alguns sacrifícios; entregou as forças a<br />

Minúcio, proibindo-o expressamente <strong>de</strong> oferecer guerra<br />

ou confrontar-se com o inimigo, não só na qualida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ditador, mas fazendo também muitas exortações e<br />

pedidos 47 . 2. Ele, porém, não os levou em conta e atacou<br />

logo o inimigo. Certo dia, tendo reparado que Aníbal<br />

tinha enviado a maior parte do exército para recolher<br />

provisões, atacou aqueles que tinham permanecido no<br />

acampamento, empurrou-os para <strong>de</strong>ntro da paliçada,<br />

matou um número não pequeno, e aterrorizou todos<br />

aqueles que estavam cercados por ele. 3. Nisto,<br />

enquanto Aníbal reunia <strong>de</strong> novo as suas forças para o<br />

acampamento, retirou-se <strong>de</strong> forma segura. Tal sucesso<br />

encheu-o a ele e aos soldados, <strong>de</strong> uma soberba <strong>de</strong>smedida<br />

e <strong>de</strong> insolência.<br />

4. Rapidamente se espalhou em Roma uma<br />

fama maior do que a própria acção. <strong>Fábio</strong>, tomando<br />

conhecimento do sucedido, disse que temia mais<br />

o sucesso <strong>de</strong> Minúcio do que o insucesso. O povo,<br />

porém, exaltou-se e, alvoraçado, reuniu-se no fórum.<br />

Metílio, tribuno da plebe, quando subiu à tribuna,<br />

discursou enaltecendo Minúcio e acusando <strong>Fábio</strong>, não<br />

<strong>de</strong> brandura ou cobardia, mas já <strong>de</strong> traição. Culpava,<br />

ao mesmo tempo, os mais po<strong>de</strong>rosos e importantes<br />

47 Cf. Tito Lívio 22.18. 8-10; Políbio 3.94.9.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

entre os Romanos pela forma como a guerra tinha sido<br />

conduzida, <strong>de</strong>terminando a ruína do povo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

início, lançando directamente a cida<strong>de</strong> para um po<strong>de</strong>r<br />

único sem controlo; e <strong>Fábio</strong>, por sua vez, per<strong>de</strong>ndo<br />

tempo na sua estratégia, oferecera a Aníbal comodida<strong>de</strong><br />

e tempo para trazer novas forças da Líbia, como se fosse<br />

dono <strong>de</strong> Itália 48 .<br />

9. <strong>Fábio</strong> apareceu diante <strong>de</strong> todos e não procurou<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se do tribuno e disse apenas que era necessário<br />

celebrar o quanto antes os sacrifícios 49 e as cerimónias<br />

religiosas, <strong>de</strong> forma a regressar ao acampamento e<br />

impor a Minúcio o castigo por ter apresentado batalha<br />

aos inimigos, contra a sua proibição. Espalhou-se então<br />

pelo povo um gran<strong>de</strong> tumulto, por causa do risco que<br />

ameaçava Minúcio. Com efeito, como o ditador tinha o<br />

direito <strong>de</strong> pren<strong>de</strong>r e con<strong>de</strong>nar à morte sem julgamento<br />

prévio, pensavam que o espírito <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, agora sem a<br />

sua mansidão, se tornaria inflexível e implacável 50 . 2.<br />

Assim, todos os outros, assustados, fizeram silêncio,<br />

mas Metílio, graças à imunida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>tinha enquanto<br />

tribuno – é a única magistratura que não per<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r<br />

quando é eleito o ditador, conservando-o enquanto que<br />

os outros são dissolvidos – perseguia insistentemente<br />

o povo e pedia-lhe que não abandonasse Minúcio<br />

nem o <strong>de</strong>ixasse sofrer o que Mânlio Torquato 51 fez<br />

48 Cf. Tito Lívio 22.25.3-11.<br />

49 Cf. Tito Lívio 22.18.8 e Políbio 3.94.9.<br />

50 Cf. Tito Lívio 22.25.2 e Plutarco, Obras Morais 195 C.<br />

51 T. M. Imperioso Torquato teve uma carreira política<br />

fulgurante, tendo sido o membro mais influente da sua família no<br />

198


199<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

a seu filho, que, apesar <strong>de</strong> estar triunfante e coroado<br />

<strong>de</strong> louros, cortou-lhe o pescoço com um machado;<br />

que retirasse a tirania a <strong>Fábio</strong> e transferisse os assuntos<br />

públicos para quem podia e queria salvá-los. 3. Exaltada<br />

com estes discursos, a multidão não se atreveu a pedir<br />

a <strong>Fábio</strong> que <strong>de</strong>pusesse o po<strong>de</strong>r absoluto, apesar da<br />

sua impopularida<strong>de</strong>. Ao invés, no que a Minúcio diz<br />

respeito, <strong>de</strong>cretou, por votação, que o cargo <strong>de</strong> general<br />

se equiparava ao <strong>de</strong> chefe e actuava na guerra com a<br />

mesma autorida<strong>de</strong> que o ditador. 4. Com efeito, esta<br />

situação nunca se tinha dado antes em Roma, e repetiuse<br />

mais tar<strong>de</strong> aquando do <strong>de</strong>sastre <strong>de</strong> Canas.<br />

Então, quando Marco Júnio, o ditador, estava à<br />

frente do exército, na cida<strong>de</strong>, nomearam como segundo<br />

ditador <strong>Fábio</strong> Butéon 52 , <strong>de</strong> forma a completar o Senado,<br />

já que muitos senadores tinham morrido na batalha.<br />

5. A única diferença foi que este, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> eleito, tão<br />

<strong>de</strong>pressa quanto nomeou membros e completou o<br />

Senado, no mesmo dia, <strong>de</strong>spediu os lictores, livrou-se<br />

da sua escolta e, misturando-se no meio da multidão,<br />

com ela se confundiu, e, como um particular, regressou<br />

século IV: tribuno militar em 361 a.C., três vezes ditador (353,<br />

349, 320 a.C.), foi também cônsul por três vezes em 347, 344,<br />

340 a.C. Um dos episódios mais conhecidos com ele relacionado<br />

diz respeito à con<strong>de</strong>nação do seu filho Tito Mânlio à morte por ter<br />

avançado contra o inimigo, contra as suas or<strong>de</strong>ns. Apesar <strong>de</strong> o filho<br />

ter <strong>de</strong>rrotado o inimigo em 340 a.C., não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> lhe aplicar a<br />

pena <strong>de</strong> morte. Cf. Tito Lívio 8.7.<br />

52 Cf. Tito Lívio 23, 22, 10. M. <strong>Fábio</strong> Butéon foi eleito cônsul<br />

em 245 a.C. e censor em 241 a.C. Após o <strong>de</strong>sastre da batalha <strong>de</strong><br />

Canas, como era o censor mais antigo, foi eleito ditador no final<br />

<strong>de</strong>sse ano (216 a.C.) <strong>de</strong> forma a reunir po<strong>de</strong>res para completar o<br />

Senado.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

ao fórum para controlar e tratar dos seus próprios<br />

negócios 53 .<br />

10. Depois <strong>de</strong> terem atribuído a Minúcio<br />

as mesmas funções do ditador, julgavam ver <strong>Fábio</strong><br />

diminuído e humilhado, mas não conheciam bem este<br />

homem. 2. Com efeito, não consi<strong>de</strong>rava <strong>de</strong>sgraça sua<br />

a ignorância dos outros, mas antes agia como o sábio<br />

Diógenes 54 quando alguém lhe disse “Este riem-se <strong>de</strong><br />

ti”, e ele respon<strong>de</strong>u “mas eu, não me rio”, pois entendia<br />

que os únicos que eram alvo <strong>de</strong> riso eram aqueles<br />

que fraquejavam e se <strong>de</strong>ixavam perturbar perante tais<br />

situações. Do mesmo modo, <strong>Fábio</strong> suportou os seus<br />

ultrajes, impassivelmente e com serenida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> forma a<br />

servir <strong>de</strong> exemplo aos filósofos que sustentam que não é<br />

possível insultar ou <strong>de</strong>sonrar o homem bom e virtuoso. 3.<br />

Lamentava, contudo, a irreflexão das massas em relação<br />

ao interesse público, já que tinham proporcionado<br />

oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> guerra à insana ambição daquele<br />

homem. 4. E, temendo que Minúcio, completamente<br />

<strong>de</strong>sequilibrado pela sua vanglória e orgulho, se apressasse<br />

a fazer algum disparate, saiu escondido <strong>de</strong> todos. 5.<br />

Com efeito, ao chegar ao acampamento, constatou<br />

que Minúcio já não era controlável, pois, insolente e<br />

arrogante, exigia o comando alternado do exército 55 .<br />

53 Cf. Tito Lívio 23.22.10 e 23.<br />

54 Trata-se <strong>de</strong> Diógenes <strong>de</strong> Sinope (ca. 412/403- ca. 324/321<br />

a.C.), famoso Cínico. Vi<strong>de</strong> Halliwell (2008: 375-81).<br />

55 Esta resolução confere a Minúcio Rufo o título <strong>de</strong> co-ditador,<br />

colocando <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> numa situação ambígua. O mesmo<br />

se repete com <strong>Fábio</strong> Butéon, <strong>de</strong>pois da batalha <strong>de</strong> Canas, facto<br />

referido mais adiante (9. 4-5).<br />

200


201<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

Este, porém, não aceitou, tendo dividido com ele as<br />

forças, <strong>de</strong> forma a controlar uma das partes, que era<br />

melhor do que comandar todo o exército <strong>de</strong> forma<br />

alternada. 6. Tomou para si a primeira e quarta legiões<br />

e entregou àquele a segunda e a terceira, repartindo<br />

por igual as tropas aliadas 56 . 7. Minúcio estava muito<br />

jactante e contente porque o fausto do cargo mais<br />

elevado foi rebaixado e ultrajado por sua causa. Nisto,<br />

<strong>Fábio</strong> recorda-o <strong>de</strong> que o seu combate não era contra<br />

<strong>Fábio</strong>, mas sim contra Aníbal, se era sensato, e que, se<br />

queria competir com o seu colega, se preocupasse então<br />

em evitar que aquele que tinha sido honrado e saído<br />

vitorioso diante dos cidadãos parecesse cuidar menos da<br />

segurança e estabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les do que aquele que tinha<br />

sido vencido e ultrajado.<br />

11. Pretensões senis, lhe pareciam estas<br />

advertências. Tomou a parte do exército que lhe coube<br />

em sorte e acampou à parte e noutro lugar 57 . Aníbal não<br />

ignorava nada do que acontecia, e prestava atenção a<br />

todas as movimentações. Entre Cartagineses e Romanos<br />

havia uma colina ao meio, que não era difícil <strong>de</strong> tomar,<br />

mas que uma vez ocupada seria uma posição forte para<br />

56 Segundo Políbio (3.103.5-8), <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> permitiu que<br />

Minúcio escolhesse uma das duas possibilida<strong>de</strong>s e este escolheu a<br />

que Plutarco atribui a <strong>Fábio</strong>. Este relato coinci<strong>de</strong> com Tito Lívio<br />

22.27, mas difere do mesmo no que respeita às escolhas das legiões,<br />

pois aquelas que Plutarco atribui a <strong>Fábio</strong>, são as mesmas que Tito<br />

Lívio diz terem sido escolhidas por Minúcio.<br />

57 Os dados dos capítulos 11 e 12 coinci<strong>de</strong>m com os testemunhos<br />

<strong>de</strong> Tito Lívio 22.28-29 e Políbio, 3.104-105.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

um acampamento e suficiente para todas as precisões 58 .<br />

2. A planície que a ro<strong>de</strong>ava, vista <strong>de</strong> longe, parecia<br />

uniforme por ser calva e lisa, mas havia nela alguns fossos<br />

não profundos e também covas. Apesar <strong>de</strong> ser possível<br />

tomar, com facilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> forma secreta, a colina,<br />

Aníbal não o quis fazer, mas <strong>de</strong>ixou-a no meio como<br />

pretexto para <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar o combate. 3. Quando viu<br />

Minúcio separado <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, espalhou, durante a noite,<br />

alguns soldados pelos fossos e pelas covas 59 , e no dia<br />

seguinte enviou ostensivamente não muitos para tomar<br />

a colina, <strong>de</strong> forma a atrair Minúcio para se encontrarem<br />

naquele lugar. 4. E assim suce<strong>de</strong>u. Primeiro, este enviou<br />

a infantaria ligeira, <strong>de</strong>pois a cavalaria, e, por último,<br />

vendo que Aníbal vinha em socorro daqueles que se<br />

encontravam na colina, acabou por pôr todo o exército<br />

em or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> batalha.<br />

5. Desenca<strong>de</strong>ou-se um violento combate e os<br />

Romanos <strong>de</strong>fendiam-se dos soldados cartagineses que<br />

atacavam a partir do alto da colina; o combate permanecia<br />

incerto, até que Aníbal, vendo que Minúcio caíra<br />

bem na armadilha, e que tinha retaguarda <strong>de</strong>scoberta,<br />

vulnerável ao ataque inimigo, fez sinal. 6. Nisto, estes<br />

soldados levantaram-se, ao mesmo tempo, <strong>de</strong> muitos<br />

lugares e com gritaria atacaram e foram matando os<br />

que estavam nas últimas filas. A <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e o terror<br />

58 Para uma versão mais <strong>de</strong>talhada, vi<strong>de</strong> Políbio 3.104 sqq. e<br />

Tito Lívio 22.28 sqq.<br />

59 Segundo Tito Lívio (22.28), tratava-se <strong>de</strong> cinco mil cavaleiros<br />

e soldados a pé, enquanto Políbio (3.104) faz referência a cinco mil<br />

homens armados e outra infantaria, além <strong>de</strong> quinhentos elementos<br />

<strong>de</strong> cavalaria.<br />

202


203<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

que se apo<strong>de</strong>raram dos Romanos eram in<strong>de</strong>scritíveis e<br />

a audácia do próprio Minúcio caiu por terra. Ele não<br />

fazia mais do <strong>de</strong>itar um olhar inquieto a cada um dos<br />

seus oficiais; nenhum se atrevia a permanecer no seu<br />

posto, lançavam-se numa fuga sem salvação possível. 7.<br />

Os cavaleiros Númidas, que já dominavam a situação,<br />

andavam em círculo na planície e matavam os que<br />

fugiam.<br />

12. Os Romanos encontravam-se numa situação<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraça, mas o perigo não escapou a <strong>Fábio</strong>. Com<br />

efeito, prevendo, como parece, o que ia acontecer, tinha já<br />

colocado as suas forças em linha <strong>de</strong> batalha e providas <strong>de</strong><br />

armas; preocupava-se em saber o que se passava, não por<br />

meio <strong>de</strong> mensageiros, mas tendo ele próprio uma atalaia<br />

diante da paliçada. 2. Quando viu que o exército estava<br />

cercado e em <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e ouviu os gritos daqueles que,<br />

não mais resistindo, se lançavam em fuga aterrorizados,<br />

bateu na coxa 60 e, suspirando profundamente, disse para<br />

aqueles que estavam perto <strong>de</strong> si: “Por Héracles! Como<br />

Minúcio se per<strong>de</strong>u mais rápido do que eu esperava,<br />

mas já tar<strong>de</strong> para o que foi a sua precipitação!”. 3. Em<br />

seguida, mandou o exército <strong>de</strong>senrolar os estandartes o<br />

mais rápido possível, or<strong>de</strong>nou que o seguissem e gritou:<br />

“Agora, soldados, que cada um, recordando Marco<br />

Minúcio, corra em sua ajuda, pois é um homem corajoso<br />

e um patriota, e se com a sua precipitação em expulsar<br />

o inimigo cometeu algum erro, logo lhe pediremos<br />

contas.” 4. Com efeito, assim que apareceu, afugentou<br />

60 Gesto peculiar ao herói homérico. Cf. Ilíada 16.124-5.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

e dispersou os cavaleiros Númidas, que cercavam<br />

a planície; atacou <strong>de</strong>pois aqueles que combatiam e<br />

estavam na retaguarda dos Romanos e matou aqueles<br />

que resistiam; os restantes, por sua vez, antes <strong>de</strong> sofrer e<br />

receber em troca o mesmo que eles tinham infligido aos<br />

Romanos, ce<strong>de</strong>ram e puseram-se em fuga. 5. Aníbal,<br />

vendo a mudança da situação e que <strong>Fábio</strong>, com um vigor<br />

superior à sua ida<strong>de</strong>, empurrando, abria caminho no<br />

meio dos combatentes, para subir a colina em socorro <strong>de</strong><br />

Minúcio, suspen<strong>de</strong>u o combate. Com a trombeta, <strong>de</strong>u<br />

sinal <strong>de</strong> retirada, fez voltar os Cartagineses à paliçada e,<br />

contentes, regressaram também os Romanos. 6. Diz-se<br />

que, na volta, o próprio Aníbal disse aos seus camaradas,<br />

em tom jocoso, algo semelhante sobre <strong>Fábio</strong>: “Não vos<br />

tinha já eu avisado, várias vezes, que essa nuvem que<br />

pendia sobre os cumes, um dia, haveria <strong>de</strong> rebentar em<br />

granizo e tempesta<strong>de</strong>s?” 61 .<br />

13. Depois da batalha, <strong>Fábio</strong> <strong>de</strong>spojou todos os<br />

inimigos que tinha matado e retirou-se sem proferir<br />

palavra alguma, insolente ou ofensiva, sobre o seu<br />

colega. Quanto a Minúcio, reuniu o seu exército e<br />

2. disse: “Soldados, o não errar em gran<strong>de</strong>s empresas<br />

está acima da condição humana. Contudo, errar e<br />

aproveitar os insucessos como lição para o futuro, isso<br />

é próprio do homem bom e sensato. 3. Na verda<strong>de</strong>,<br />

eu confesso que se, por alguns motivos, me queixo da<br />

fortuna, mais razões tenho para a bendizer. O que, em<br />

tanto tempo, não me <strong>de</strong>i conta, num instante <strong>de</strong> um<br />

61 Cf. Tito Lívio 22.30.10 e Plutarco, Obras Morais 195 D.<br />

204


205<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

só dia o aprendi: reconheci que não tenho capacida<strong>de</strong><br />

para mandar nos outros, mas preciso que outro man<strong>de</strong><br />

em mim, e não <strong>de</strong>vo aspirar a vencer aqueles para quem<br />

é mais belo ser <strong>de</strong>rrotado.<br />

4. Para vós, daqui em diante, não haverá outro<br />

chefe além do ditador; mas como forma <strong>de</strong> gratidão<br />

para com ele, eu mesmo irei à vossa frente para lhe<br />

<strong>de</strong>monstrar o nosso reconhecimento, assegurando-lhe<br />

que serei o primeiro a obe<strong>de</strong>cer-lhe e a cumprir o que<br />

ele me or<strong>de</strong>nar”. 5. Depois <strong>de</strong>stas palavras, or<strong>de</strong>nou que<br />

se erguessem as águias e que todos o seguissem, levou<br />

o seu exército para a paliçada <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> e caminhou<br />

em direcção à tenda do general, perante a admiração<br />

e espanto <strong>de</strong> todos. 6. Quando <strong>Fábio</strong> saiu, Minúcio,<br />

colocou diante <strong>de</strong> si os estandartes e chamou-o <strong>de</strong> pai<br />

em alta voz. Os soldados saudavam os <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> como<br />

patronos, título que os libertos atribuem a quem os<br />

libertou.<br />

7. Feito silêncio, Minúcio disse: “Duas vitórias,<br />

ó ditador, conquistaste neste mesmo dia: uma face a<br />

Aníbal, pela tua coragem, e outra face ao teu colega<br />

pela prudência e bonda<strong>de</strong>. Se com uma nos salvaste,<br />

com a outra a todos nos <strong>de</strong>ste uma lição. Vítimas <strong>de</strong><br />

uma vergonhosa <strong>de</strong>rrota face a Aníbal, mas bela e<br />

libertadora face a ti. 8. Como um pai benévolo te<br />

saúdo, pois não tendo outro título mais honroso,<br />

já que maior do que a gratidão <strong>de</strong>vida a um pai é<br />

a gratidão que eu te <strong>de</strong>vo. Daquele recebi apenas a<br />

vida, enquanto <strong>de</strong> ti recebi a salvação, como muitos


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

outros 62 ”. 9. Depois <strong>de</strong>stas palavras, acercou-se<br />

<strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> e abraçou-o. O mesmo se via fazerem os<br />

soldados: abraçavam-se e beijavam-se uns aos outros,<br />

<strong>de</strong> tal modo que o acampamento estava pleno <strong>de</strong><br />

júbilo e <strong>de</strong> lágrimas <strong>de</strong> alegria 63 .<br />

14. Depois <strong>de</strong>sta campanha, <strong>Fábio</strong> <strong>de</strong>pôs o cargo<br />

e <strong>de</strong>signaram-se novos cônsules 64 . Destes, os primeiros<br />

nomeados continuaram a mesma táctica bélica: evitar<br />

combater com Aníbal em batalha campal, ir em socorro<br />

dos aliados para prevenir revoltas 65 . 2. Contudo, quando<br />

Terêncio Varrão 66 foi elevado a cônsul, <strong>de</strong> família nada<br />

ilustre, ficou conhecido pela sua atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>magógica e<br />

temerária. Era evi<strong>de</strong>nte que, pela sua inexperiência e<br />

excesso <strong>de</strong> ousadia, iria arriscar, como quem joga um<br />

dado, o <strong>de</strong>stino do Estado. Gritava nas assembleias que<br />

a guerra ia continuar, enquanto a cida<strong>de</strong> se servisse <strong>de</strong><br />

<strong>Fábio</strong>s como generais e que, num mesmo dia, ele veria e<br />

venceria os inimigos. 3. Ao mesmo tempo que dizia isto,<br />

reunia e alistava um exército tão gran<strong>de</strong> como nunca<br />

antes os Romanos tinham utilizado contra nenhum<br />

inimigo: oitenta e oito mil 67 foram os homens dispostos<br />

62 Estes dois discursos <strong>de</strong> Minúcio constam já em Tito Lívio<br />

22.29 e 30.<br />

63 Cf. Tito Lívio 22.29.7-11 e 30.1-7.<br />

64 Os cônsules Gneu Servílio Gémino e M. Atílio Régulo<br />

recuperam o po<strong>de</strong>r.<br />

65 Cf. Tito Lívio 22.32.1-3.<br />

66 Cônsul em 216 a.C. Tito Lívio (22.25) refere que seu pai era<br />

talhante e que se ocupava do pequeno comércio.<br />

67 Políbio 3.107.9 faz referência a oito legiões <strong>de</strong> 5000 homens<br />

cada, às quais se juntaram os aliados.<br />

206


207<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

para a batalha. Este era um motivo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> temor<br />

para <strong>Fábio</strong> e para os Romanos sensatos, pois não tinham<br />

esperança <strong>de</strong> que a cida<strong>de</strong> recuperasse se uma <strong>de</strong>rrota<br />

fizesse per<strong>de</strong>r tamanha juventu<strong>de</strong>. 4. <strong>Fábio</strong> dirigiu-se ao<br />

colega <strong>de</strong> Terêncio, Paulo Emílio, homem <strong>de</strong> experiência<br />

militar que não era grato ao povo e estava receoso em<br />

relação à plebe, na sequência <strong>de</strong> uma con<strong>de</strong>nação que<br />

lhe fora atribuída num processo contra o Estado 68 .<br />

<strong>Fábio</strong> incitava-o e encorajava-o a refrear a loucura do<br />

colega, 5. Advertiu-o <strong>de</strong> que a sua luta pela pátria não<br />

seria tanto contra Aníbal quanto contra Terêncio, pois<br />

apressavam-se ambos para a batalha, um por não estar<br />

ciente da força do inimigo e o outro por estar ciente<br />

da fraqueza da sua posição. 6. “Eu, Paulo”, disse <strong>Fábio</strong>,<br />

“mereço, no que toca à questão <strong>de</strong> Aníbal, mais crédito<br />

do que Terêncio, e asseguro-te que, se ninguém lhe<br />

apresentar batalha este ano, ele sucumbirá se permanecer<br />

ou fugirá e abandonará a Itália; pois mesmo agora que<br />

nos parece ter vencido e dominado a situação, nenhum<br />

dos seus inimigos passou para o seu lado e das forças da<br />

pátria não sobrará, no total, nem sequer um terço.” 7.<br />

A isto, dizem que Paulo respon<strong>de</strong>u: “Para mim, <strong>Fábio</strong>,<br />

se olho pelos meus interesses, é melhor cair <strong>de</strong>baixo das<br />

lanças dos inimigos novamente do que submeter-me<br />

68 O patrício L. Emílio Paulo foi cônsul em 219 a.C. e obteve o<br />

triunfo contra os Ilírios. O seu filho, L. Emílio Paulo da Macedónia,<br />

foi o vencedor <strong>de</strong> Perseu na batalha <strong>de</strong> Pidna (168 a.C.), sobre o<br />

qual Plutarco escreveu uma biografia (Timoleonte – Emílio Paulo).<br />

Ele e o seu colega M. Lívio Salinator criticaram os seus chefes pelo<br />

facto <strong>de</strong> os <strong>de</strong>spojos <strong>de</strong> guerra terem sido mal repartidos. Segundo<br />

Tito Lívio 22.35.5, Emílio Paulo não foi con<strong>de</strong>nado, ao contrário<br />

do seu colega.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

aos votos dos cidadãos. No entanto, se a República se<br />

encontra em tal situação, esforçar-me-ei por parecer a<br />

ti um bom general, mais do que a todos os outros, que<br />

me pressionam para o contrário.” Com estes intentos,<br />

partiu Paulo para a guerra 69 .<br />

15. Terêncio, contudo, que se tinha proposto a<br />

comandar em dias alternados e estava acampado próximo<br />

<strong>de</strong> Aníbal, junto ao rio Áufido 70 e à cida<strong>de</strong> chamada<br />

Canas, ao amanhecer lançou o sinal <strong>de</strong> combate – uma<br />

túnica púrpura que se esten<strong>de</strong> sobre a tenda do general<br />

– <strong>de</strong> tal modo que os Cartagineses, a princípio, ficaram<br />

perturbados, vendo a ousadia do general e o numeroso<br />

exército, enquanto eles não eram nem meta<strong>de</strong>. 2.<br />

Aníbal, porém, or<strong>de</strong>nou às suas forças que pegassem<br />

nas armas, subiu a cavalo e, acompanhado <strong>de</strong> alguns<br />

homens, subiu a uma colina para ver os inimigos que se<br />

estavam formados em linha <strong>de</strong> batalha.<br />

3. Um elemento da comitiva <strong>de</strong> Aníbal, chamado<br />

Gíscon 71 , da mesma condição que ele, comentou que<br />

lhe parecia <strong>de</strong>scomunal a quantida<strong>de</strong> dos inimigos,<br />

ao que Aníbal, franzindo a face, retorquiu: “Outra<br />

coisa, Gíscon, ainda mais extraordinária te esqueceste<br />

<strong>de</strong> admirar.” “Qual?”, perguntou Gíscon. “É que, <strong>de</strong><br />

todos quantos ali estão”, respon<strong>de</strong>u o general “nenhum<br />

se chama Gíscon.” Esta graça tão inesperada fez rir<br />

quantos lá estavam, e, <strong>de</strong>scendo a colina, não <strong>de</strong>ixavam<br />

<strong>de</strong> a transmitir a todos os que ali se encontravam, <strong>de</strong> tal<br />

69 Cf. Tito Lívio 22.39 e 40, 1-3.<br />

70 Rio da região <strong>de</strong> Apúlia, actualmente <strong>de</strong>signado <strong>de</strong> Ofanto.<br />

71 Nem Políbio, nem Tito Lívio fazem referência a esta figura.<br />

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209<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

forma que a graça passou por muitos e nem a escolta<br />

<strong>de</strong> Aníbal conseguiu ficar séria. 4. A visão <strong>de</strong> tanto riso<br />

encheu os Cartagineses <strong>de</strong> coragem, que pensaram que,<br />

se o seu general dizia piadas em face do perigo, isso era<br />

sinal evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>sprezava profundamente 72 .<br />

16. Naquela batalha, Aníbal serviu-se <strong>de</strong> duas<br />

estratégias. A primeira, em relação ao terreno: colocou<br />

as suas tropas <strong>de</strong> forma a que ficasse <strong>de</strong> costas para o<br />

vento, pois um furacão, semelhante a um sopro <strong>de</strong> fogo,<br />

tinha-se <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ado e levantado, daquelas planícies<br />

arenosas e abertas, uma terrível poeira, que se alçava por<br />

cima da falange dos Cartagineses contra os Romanos e<br />

agredia-lhe as faces, fazendo-os voltar para trás e alterar<br />

a formação 73 . 2. A segunda estratégia dizia respeito à<br />

forma <strong>de</strong> dispor as tropas: colocou em ambos os lados<br />

do centro aquela que é a parte mais forte e combativa do<br />

exército, tendo enchido o centro com as menos capazes,<br />

utilizando-os como uma saliência que se <strong>de</strong>stacava do<br />

resto da falange. Instruiu as melhores tropas para que,<br />

quando os Romanos abrissem um espaço na frente e se<br />

precipitassem para o centro, que ce<strong>de</strong>ndo pela acção da<br />

força <strong>de</strong>ixaria uma reentrância; que eles permanecessem<br />

no interior da falange, voltando-se rapidamente<br />

<strong>de</strong> ambos os lados, os atacassem pelos flancos e os<br />

cercassem, fechando a retaguarda. 3. Foi esta manobra,<br />

ao que parece, que produziu maior mortanda<strong>de</strong>, já que o<br />

centro ce<strong>de</strong>u e absorveu os Romanos que os perseguiam.<br />

72 Sobre a dimensão apotropaica do riso, vi<strong>de</strong> Halliwell (2008:<br />

199-201).<br />

73 Cf. Tito Lívio 22.46.8.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

Nisto, a falange <strong>de</strong> Aníbal alterou o esquema e adoptou<br />

a forma em meia-lua e então os oficiais das melhores<br />

tropas, carregando com os seus homens uns à esquerda,<br />

outros à direita, lançaram-se sobre os flancos <strong>de</strong>scobertos<br />

do inimigo; e, com isto, fecharam no centro e mataram<br />

todos os que não se apressaram a fugir daquele enlace.<br />

4. Conta-se também que, à cavalaria dos<br />

Romanos, aconteceu um inesperado aci<strong>de</strong>nte. Paulo,<br />

segundo parece, foi <strong>de</strong>itado abaixo pelo seu cavalo,<br />

que se tinha ferido, e aqueles que estavam perto <strong>de</strong><br />

si abandonaram os cavalos e foram a pé, a partir <strong>de</strong><br />

vários sítios, para o socorrem. 5. Quando os cavaleiros<br />

viram isto, pensando que se tratava <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m<br />

geral, <strong>de</strong>sceram todos do cavalo e lutaram a pé com<br />

os inimigos. Deparando-se com tal situação, Aníbal<br />

disse “antes isto do que terem-mos entregado atados.” 74<br />

6. Mas estas coisas são transmitidas por aqueles que<br />

escreveram histórias muito pormenorizadas 75 .<br />

Dos cônsules, Varrão chegou a cavalo com alguns<br />

à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Venúsia, enquanto que Paulo, entre o<br />

abismo e a onda daquela fuga, com o corpo coberto <strong>de</strong><br />

feridas por causa dos muitos dardos e com o espírito<br />

oprimido por tamanho sofrimento, sentou-se junto a<br />

uma pedra à espera <strong>de</strong> receber o golpe <strong>de</strong> misericórdia<br />

dos inimigos 76 . 7. Contudo, por causa da abundância do<br />

74 Cf. Tito Lívio 22.49.<br />

75 Aqueles que escreveram relatos mais <strong>de</strong>talhados são Políbio<br />

(3.110-117) e Tito Lívio (22.44-50). Com efeito, no início da vida<br />

<strong>de</strong> Alexandre, Plutarco acentua a diferença estes os dois registos, a<br />

biografia, que relata o percurso do indivíduo, e a história, <strong>de</strong> tema<br />

mais amplo.<br />

76 Cf. Tito Lívio 22.38.6-13.<br />

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211<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

sangue, que lhe <strong>de</strong>sfigurava a cabeça e o rosto, muitos<br />

não o distinguiam, e amigos e servidores que passaram<br />

não o reconheceram. Apenas Cornélio Lêntulo 77 , jovem<br />

patrício, o viu e se apercebeu <strong>de</strong> quem era, <strong>de</strong>sceu do<br />

cavalo, acercou-se <strong>de</strong>le e exortou-o a salvar-se para bem<br />

dos cidadãos, que nunca antes precisaram tanto <strong>de</strong> um<br />

bom general. 8. Este, contudo, não aceitou o pedido e<br />

obrigou o jovem, apesar das lágrimas, a montar <strong>de</strong> novo<br />

o cavalo e logo, tomando a sua mão direita, levantou-se<br />

ao mesmo tempo que ele e disse: “Anuncia, Lêntulo,<br />

a <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, e sê tu mesmo testemunha, <strong>de</strong> que<br />

Paulo Emílio permaneceu fiel às suas resoluções até ao<br />

fim, e que não quebrou nenhum acordo com ele, mas<br />

foi vencido primeiro por Varrão e <strong>de</strong>pois por Aníbal.”<br />

9. Com tais instruções, <strong>de</strong>spediu-se <strong>de</strong> Lêntulo,<br />

abandonou-se às mãos dos seus assassinos e morreu.<br />

Conta-se que, nesta batalha, caíram cinquenta mil<br />

Romanos, foram feitos prisioneiros quatro mil e que,<br />

<strong>de</strong>pois do combate, foram capturados não menos <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />

mil em ambos os campos.<br />

17. Depois <strong>de</strong> tamanha vitória, os amigos <strong>de</strong><br />

Aníbal incitavam-no a aproveitar a fortuna, a seguir<br />

os inimigos em fuga para entrar com eles na cida<strong>de</strong> e,<br />

no quinto dia da vitória, jantar no Capitólio 78 . Com<br />

efeito, não é fácil dizer por que razão terá recuado nessa<br />

intenção, mas parece que a hesitação e receio foram<br />

77 Gneu Cornélio Lêntulo era então tribunus militum. Em 201<br />

a.C., seria eleito cônsul e comandante da frota na Sicília.<br />

78 Cf. Catão, Origens fr. 86 Peter; Tito Lívio 22.51.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

mais obra <strong>de</strong> algum génio ou <strong>de</strong>us que o <strong>de</strong>moveram 79 .<br />

2. Por isso, dizem que o cartaginês Barca, enraivecido,<br />

terá comentado: “Tu sabes vencer, mas não sabes tirar<br />

proveito da vitória.” 80 3. Não obstante, a vitória trouxe<br />

uma gran<strong>de</strong> mudança. Antes da batalha, Aníbal não<br />

dispunha, em Itália, nem <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>, nem <strong>de</strong> mercado ou<br />

<strong>de</strong> porto, e só com dificulda<strong>de</strong> conseguia provi<strong>de</strong>nciar<br />

o indispensável ao exército através do roubo; não havia<br />

qualquer base firme para empreen<strong>de</strong>r uma batalha, senão<br />

através da pilhagem e indo <strong>de</strong> um lado para outro com<br />

o exército, como um bando <strong>de</strong> piratas. Naquela altura,<br />

pelo contrário, quase toda a Itália ficou submetida à sua<br />

obediência.<br />

4. Na verda<strong>de</strong>, os povos mais numerosos e<br />

importantes a ele a<strong>de</strong>riram voluntariamente, e até mesmo<br />

Cápua, a cida<strong>de</strong> mais importante <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Roma, a ele<br />

se juntou. Com efeito, uma gran<strong>de</strong> adversida<strong>de</strong> serve<br />

para provar não só, como diz Eurípi<strong>de</strong>s 81 , quem são os<br />

amigos, mas também os generais sensatos. 5. Assim, o<br />

que antes da batalha se pensava ser cobardia e apatia da<br />

parte <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, imediatamente a seguir à batalha não<br />

parecia já perspicácia humana, mas alguma obra da<br />

inteligência celeste ou divina, pois previra com muita<br />

antecipação acontecimentos futuros e que mesmo agora<br />

pareciam apenas verosímeis para aqueles que os sofriam.<br />

6. Por isso, assim que Roma <strong>de</strong>positou nele as últimas<br />

79 Segundo Sílio Itálico 10.337, Juno teria enviado a Aníbal um<br />

sonho para o dissuadir <strong>de</strong> avançar sobre Roma.<br />

80 Este comentário foi igualmente referido por Tito Lívio 22.51.<br />

2-4. 81 Verso <strong>de</strong> uma tragédia perdida (fr. 993 Nauck 2 ).<br />

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213<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

esperanças e se refugiou na resolução daquele homem<br />

como em um templo e altar, foi essa a primeira e<br />

principal razão pela qual a cida<strong>de</strong> se manteve firme, em<br />

vez <strong>de</strong> dispersar, como suce<strong>de</strong>u *** durante a invasão<br />

gaulesa. 7. Com efeito, ele que, quando parecia não<br />

haver nenhum perigo, se revelava pru<strong>de</strong>nte e pessimista,<br />

naquela altura, quando todos se tinham entregado a<br />

uma dor infinita e ao temor, sem capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reacção,<br />

era o único a passear tranquilamente pela cida<strong>de</strong> com<br />

um passo calmo, <strong>de</strong> aparência serena e falava às pessoas<br />

com mansidão. Eliminou os lamentos femininos,<br />

eliminou os ajuntamentos dos que se agrupavam em<br />

espaços públicos para lamentar as <strong>de</strong>sgraças em comum.<br />

Convenceu, o Senado a reunir-se e a inspirar confiança<br />

aos magistrados, tornou-se assim a força e o suporte e<br />

tinha todos os olhares virados para si.<br />

18. Colocou então vigias nas portas, <strong>de</strong> modo a<br />

evitar que a multidão saísse e abandonasse a cida<strong>de</strong>, e<br />

fixou lugar e tempo para o lamento, permitindo, a quem<br />

quisesse, chorar em casa durante trinta dias. Contudo,<br />

terminado este período, teria que eliminar todo o lamento<br />

e purificar a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tais manifestações, 2. pois as<br />

celebrações <strong>de</strong> Deméter 82 teriam lugar naqueles dias, pelo<br />

que pareceu melhor cessar completamente os sacrifícios<br />

e a procissão, antes que se evi<strong>de</strong>nciasse a gran<strong>de</strong>za do<br />

<strong>de</strong>sastre com a fraca concorrência e o <strong>de</strong>salento dos<br />

assistentes. Além disso, é também agradável aos <strong>de</strong>uses ser<br />

82 Designação correspon<strong>de</strong>nte à <strong>de</strong>usa Ceres.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

honrados por homens contentes 83 . 3. Nisto, cumpriu-se<br />

tudo quanto os sacerdotes aconselharam para propiciar<br />

os <strong>de</strong>uses e afastar os males. Com efeito, enviou-se<br />

também a Delfos, para consultar o oráculo, Pictor 84 ,<br />

um familiar <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>. Quando se <strong>de</strong>scobriu que as duas<br />

Vestais se <strong>de</strong>ixaram seduzir, uma foi sepultada viva 85 ,<br />

conforme o costume, enquanto que a outra, infligiu a<br />

morte a si mesma. 4. Contudo, o mais admirável foi a<br />

generosida<strong>de</strong> e a clemência da cida<strong>de</strong>, quando o cônsul<br />

Varrão regressava da sua fuga – tal como regressa alguém<br />

que se comporta <strong>de</strong> forma vergonhosa e lamentável,<br />

humilhado e cabisbaixo –, o senado e todo o povo foram,<br />

ao seu encontro até às portas da cida<strong>de</strong> para o receber. 5.<br />

Os magistrados e os principais do Senado, entre os quais<br />

se encontrava <strong>Fábio</strong>, quando se fez silêncio, elogiaramno<br />

por não ter renunciado à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tamanho<br />

infortúnio e por estar ali presente para <strong>de</strong>sempenhar o<br />

seu cargo, por velar pelas leis dos cidadãos e por achar<br />

que era ainda possível a salvação 86 .<br />

83 Cf. Tito Lívio 22.56.4. Tratava-se do sacrum anniversarium<br />

Cereris.<br />

84 Cf. Tito Lívio 22.57.2-6. Trata-se <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> Pictor, o primeiro<br />

historiador romano. Como membro do Senado, combateu contra<br />

os Cartagineses na Segunda Guerra Púnica (218-201 a.C.). Após<br />

o <strong>de</strong>sastre <strong>de</strong> Canas, foi enviado numa embaixada ao oráculo <strong>de</strong><br />

Delfos em 216 a.C. A sua obra, hoje perdida, relata os primeiros<br />

tempos da história <strong>de</strong> Roma e rapidamente passa para o momento<br />

histórico coevo. Escreveu em grego, não só pela qualida<strong>de</strong> literária<br />

<strong>de</strong>sta língua, mas também para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a política romana no<br />

mundo grego. Mais tar<strong>de</strong>, historiadores como Políbio, Dionísio <strong>de</strong><br />

Halicarnasso e Tito Lívio recorreram à sua obra como fonte.<br />

85 Cf. Plutarco, Numa 10.4 sqq.<br />

86 Cf. Tito Lívio 22.61.14.<br />

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215<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

19. Quando souberam que Aníbal, <strong>de</strong>pois<br />

da batalha, se tinha afastado para o outro extremo<br />

da Itália, ganharam confiança e enviaram outra vez<br />

generais e exércitos. Daqueles, os mais ilustres eram<br />

<strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> e Cláudio Marcelo 87 , ambos igualmente<br />

admirados, apesar das suas orientações políticas serem<br />

quase totalmente opostas.<br />

2. Quanto a Marcelo, como se disse na biografia<br />

escrita sobre ele 88 , distinguia-se pela sua acção brilhante<br />

e impetuosa, como um homem <strong>de</strong> braço <strong>de</strong> ferro e <strong>de</strong><br />

natureza semelhante àqueles a quem Homero chama<br />

sobretudo <strong>de</strong> “belicosos” e “orgulhosos” 89 ; por isso,<br />

travou os seus primeiros combates com uma táctica<br />

bélica vigorosa e temerária e, a um homem ousado como<br />

Aníbal, opunha igualmente a sua audácia. 3. <strong>Fábio</strong>, por<br />

outro lado, levando em mente os planos iniciais, tinha a<br />

esperança <strong>de</strong> que, se ninguém combatesse ou provocasse<br />

Aníbal, ele se prejudicaria a si mesmo e acabaria por<br />

<strong>de</strong>sgastar-se com a guerra, como acontece com a energia<br />

do corpo <strong>de</strong> um atleta, quando se submete a um esforço<br />

excessivo e exaustivo. 4. Por esta razão, disse Posidónio 90<br />

87 Cônsules em 214 a.C.<br />

88 Cf. Plutarco, Marcelo 1 e 9.<br />

89 E.g. Ilíada 3.36 e 16. 65.<br />

90 FGrHist 87 F 42. Cf. Plutarco, Marcelo 9.7. Posidónio<br />

<strong>de</strong> Apameia (sécs. II-I a.C.), filósofo estóico, escreveu um relato<br />

histórico em cinquenta e dois livros, que abarcava acontecimentos<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 146 a.C. até à ditadura <strong>de</strong> Sila. Consi<strong>de</strong>rado o pensador<br />

mais influente do Império Romano seria comparável apenas a<br />

Aristóteles, superando-o mesmo no que respeitava à unida<strong>de</strong><br />

sistemática da sua ciência. Representante do Estoicismo médio,<br />

foi discípulo <strong>de</strong> Panécio em Atenas e mestre <strong>de</strong> ilustres romanos<br />

como Cícero e Pompeu. Como é o único autor mencionado nesta


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

que os Romanos lhe chamariam o escudo e a Marcelo, a<br />

espada e que a firmeza e a segurança <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, misturadas<br />

com o ímpeto <strong>de</strong> Marcelo, eram a salvação dos Romanos.<br />

5. Por um lado, Aníbal confrontando-se muitas vezes<br />

com este, como um rio violento, sacudia e aniquilava a<br />

sua força; por outro, <strong>Fábio</strong>, semelhante a um rio que fluía<br />

sem ruído e pouco a pouco, consumia continuamente as<br />

suas bordas. Assim chegou a um impasse que consistia<br />

em per<strong>de</strong>r o ânimo quando lutava com Marcelo e recear<br />

<strong>Fábio</strong> quando com ele não lutava. 6. Em suma, po<strong>de</strong><br />

dizer-se que a maior parte do tempo se fez guerra contra<br />

estes, ora generais, ora procônsules, ora cônsules e cada<br />

um <strong>de</strong>les foi cônsul cinco vezes 91 . Marcelo, porém,<br />

durante o seu quinto consulado, caiu numa emboscada<br />

e morreu 92 . <strong>Fábio</strong>, por outro lado, muitas vezes foi alvo<br />

<strong>de</strong> todo o tipo <strong>de</strong> ardis e provas, mas nada resultou.<br />

Excepto uma única vez em que se lhe preparou uma<br />

cilada que esteve a ponto <strong>de</strong> o enganar: 7. Aníbal forjou<br />

umas cartas dos cidadãos mais influentes e po<strong>de</strong>rosos do<br />

Metaponto e remeteu-as a <strong>Fábio</strong>, como se a cida<strong>de</strong> a ele<br />

se fosse entregar caso ele se apresentasse; e aqueles que<br />

o pediam esperariam que ele chegasse e que estivesse<br />

nas proximida<strong>de</strong>s. 8. Estas cartas convenceram, com<br />

biografia e na <strong>de</strong> Marcelo, por quatro vezes, é verosímil que tenha<br />

sido uma das principais fontes <strong>de</strong> Plutarco na elaboração da Vida<br />

<strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>.<br />

91 Cláudio Marcelo foi eleito cônsul em 222, 215, 214, 210<br />

e 208 a.C., enquanto que <strong>Fábio</strong> granjeara essa distinção em 233,<br />

228, 215, 214 e 209 a.C., tal como o seu bisavô, Q. F. <strong>Máximo</strong><br />

Ruliano.<br />

92 Em 208 a.C. na Lucânia. Vi<strong>de</strong> Plutarco, Marcelo 29. Cf. Tito<br />

Lívio 27.26-27.<br />

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217<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

efeito, <strong>Fábio</strong>, e estava disposto a actuar durante a noite<br />

com uma parte do exército. Contudo, como o vaticínio<br />

do voo das aves não foi favorável, <strong>de</strong>sistiu. Em pouco<br />

tempo se <strong>de</strong>scobriu que a carta a ele dirigida tinha sido<br />

escrita por Aníbal para o enganar, e que este o aguardava<br />

numa armadilha ao pé da cida<strong>de</strong>. Este sucesso, porém,<br />

teríamos <strong>de</strong> o atribuir ao favor dos <strong>de</strong>uses 93 .<br />

20. Em relação ao afastamento das cida<strong>de</strong>s e<br />

das revoltas dos aliados, <strong>Fábio</strong> pensava que <strong>de</strong>viam ser<br />

controlados e trazidos <strong>de</strong> volta à razão <strong>de</strong> forma suave<br />

e afável, antes <strong>de</strong> investigar qualquer suspeita ou ser<br />

<strong>de</strong>masiado severo para com os suspeitos. 2. Diz-se que,<br />

ao saber que um soldado marso 94 , o primeiro entre os<br />

aliados na bravura na linhagem, tinha falado <strong>de</strong> revolta<br />

com alguns do acampamento, <strong>Fábio</strong> não se irritou<br />

com ele, antes admitiu que o seu mérito não tinha sido<br />

reconhecido e disse, naquele momento, que a culpa era<br />

dos generais por distribuírem as recompensas conforme<br />

os favores e não <strong>de</strong> acordo com o mérito; mas que daí<br />

em diante, seria ele o culpado se não lhe manifestasse<br />

a sua vonta<strong>de</strong> e a ele não recorresse quando tivesse<br />

alguma reclamação. 3. Dito isto, ofereceu-lhe um cavalo<br />

<strong>de</strong> guerra e distinguiu-o com outros prémios <strong>de</strong> valor,<br />

<strong>de</strong> forma que, a partir <strong>de</strong> então, aquele homem foi um<br />

93 Este episódio data do ano 209 a.C. Tito Lívio (27.16.9-16)<br />

apresenta um testemunho mais completo, referindo que a armadilha<br />

tinha sido confessada pelos próprios habitantes <strong>de</strong> Metaponto que<br />

vieram pedir que <strong>Fábio</strong> se aproximasse da cida<strong>de</strong>.<br />

94 Valério <strong>Máximo</strong> (7.3.7) refere que se trata <strong>de</strong> um soldado<br />

originário <strong>de</strong> Nola <strong>de</strong> nome Mário Estatílio. Vi<strong>de</strong> também Sobre os<br />

varões ilustres 43.5; Frontino 4.7.36.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> e zelo. 4. Com efeito, <strong>Fábio</strong> achava<br />

incompreensível que os criadores <strong>de</strong> cavalos e <strong>de</strong> cães <strong>de</strong><br />

caça recorressem a cuidados, atenções e à alimentação,<br />

mais do que a açoites e coleiras, para retirar aos animais<br />

a aspereza, o temperamento selvagem e a rebeldia.<br />

Aquele que governa os homens, pelo contrário, não<br />

faz da benevolência e da mansidão o meio principal<br />

para corrigir os <strong>de</strong>feitos, mas age com mais dureza e<br />

violência do que aquela com que os camponeses tratam<br />

as figueiras, pereiras e oliveiras selvagens, quando as<br />

cultivam e as convertem em oliveiras, pereiras e figueiras<br />

mansas, respectivamente 95 . 5. Os oficiais informaramno<br />

sobre outro homem <strong>de</strong> origem lucana que fugira do<br />

acampamento e abandonara muitas vezes o seu posto.<br />

<strong>Fábio</strong> perguntou-lhes como era ele visto em tudo o<br />

resto. 6. Com efeito, todos testemunharam que não seria<br />

fácil encontrar outro soldado igual, ao mesmo tempo<br />

que lhe contavam algumas das suas notáveis proezas e<br />

façanhas. Questionou, então, a causa da sua indisciplina<br />

e <strong>de</strong>scobriu que, por estar dominado pelo amor a uma<br />

mulher, se arriscava a fazer gran<strong>de</strong>s caminhadas longe<br />

do acampamento, <strong>de</strong> cada vez que a visitava. 7. Enviou<br />

alguns, sem que ele o soubesse, e fazendo vir a mulher,<br />

escon<strong>de</strong>ram-na na tenda. Chamou, em seguida, o<br />

lucano em privado e disse-lhe: “Não ignoro o facto<br />

<strong>de</strong>, contrariamente às tradições e leis romanas, teres<br />

pernoitado muitas vezes fora do acampamento, mas<br />

95 A mesma i<strong>de</strong>ia aparece expressa em Plutarco, Obras Morais<br />

492 E-F. A doçura e a tolerância são qualida<strong>de</strong>s peculiares tanto<br />

a <strong>Fábio</strong> como a <strong>Péricles</strong>, algo que será bem evi<strong>de</strong>nciado na<br />

comparação final.<br />

218


219<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

também não ignoro o facto <strong>de</strong> seres um bom soldado. 8.<br />

Assim, que sejam as tuas faltas compensadas pelas tuas<br />

proezas, e daqui em diante, colocarei a tua vigilância<br />

a cargo <strong>de</strong> outra pessoa.” 9. E, perante o espanto do<br />

soldado, mandou sair a jovem e entregou-a aos seus<br />

braços, dizendo: “É esta a minha garantia <strong>de</strong> que vais<br />

permanecer no acampamento connosco. Tu, com o teu<br />

trabalho, <strong>de</strong>monstrarás se nos abandonas por alguma<br />

outra malda<strong>de</strong> e se o amor e esta mulher eram apenas<br />

um pretexto que usavas.” É o que contam sobre estes<br />

episódios 96 .<br />

21. <strong>Fábio</strong> tomou ainda a cida<strong>de</strong> dos Tarentinos por<br />

meio <strong>de</strong> traição 97 , conquistando-a da seguinte maneira:<br />

um jovem tarentino do seu exército tinha, em Tarento,<br />

uma irmã que lhe <strong>de</strong>dicava gran<strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> e afecto. 2.<br />

Estava apaixonado por ela um brútio 98 que integrava a<br />

guarnição encarregada por Aníbal <strong>de</strong> manter a cida<strong>de</strong><br />

sob o seu controlo; esta situação criou no tarentino a<br />

expectativa <strong>de</strong> um plano e, com o conhecimento <strong>de</strong><br />

<strong>Fábio</strong>, regressou à cida<strong>de</strong> dizendo que tinha <strong>de</strong>sertado<br />

para se juntar à irmã. Os primeiros dias <strong>de</strong>correram e<br />

96 Vi<strong>de</strong> Plutarco, Obras Morais 195 E, Valério <strong>Máximo</strong> 7.3.7,<br />

Sobre os varões ilustres 43.5<br />

97 Em 209 a.C. Cf. Tito Lívio 27.15.9-11. Aníbal tinha<br />

conquistado Tarento em 212 a.C. O domínio, contudo, não foi<br />

absoluto, pois a acrópole manteve uma guarnição romana. Durante<br />

esse mesmo ano, Aníbal tomara aliás quase todas as cida<strong>de</strong>s do<br />

Golfo <strong>de</strong> Tarento.<br />

98 Brútio correspon<strong>de</strong> à periferia da actual Calábria. Este foi<br />

o último refúgio <strong>de</strong> Aníbal em Itália, que lhe valeu uma severa<br />

punição da parte dos Romanos, <strong>de</strong>pois da vitória.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

o brútio ficava em casa, pois pensava que o irmão não<br />

estava inteirado da relação <strong>de</strong>les. 3. Nisto, o jovem disse<br />

à irmã: “Circulava por aí, com frequência, o boato <strong>de</strong><br />

que tu mantinhas relações com um homem <strong>de</strong> influência<br />

e po<strong>de</strong>roso. De quem se trata? Se se trata, como dizem,<br />

<strong>de</strong> alguém bem conceituado e distinto, não importa a<br />

origem, pois a guerra tudo confun<strong>de</strong>. Além disso, com<br />

a necessida<strong>de</strong> nada é vergonhoso, mas é, pelo contrário,<br />

uma sorte no momento em que a justiça não tem força,<br />

ser tratado com benevolência por quem tem mais<br />

po<strong>de</strong>r.” 4. Em sequência disto, a mulher mandou vir o<br />

brútio e apresentou-lhe o seu irmão. Este, por sua vez,<br />

favorecendo a paixão do bárbaro e parecendo-lhe ficar<br />

a sua irmã mais apaixonada e submissa do que antes a<br />

seu respeito, ganhou a sua confiança a ponto <strong>de</strong>, sem<br />

dificulda<strong>de</strong>, conseguir mudar o pensamento <strong>de</strong> um<br />

homem apaixonado e mercenário com a expectativa das<br />

gran<strong>de</strong>s recompensas que, segundo este lhe dizia, <strong>Fábio</strong><br />

lhe oferecia. 5. É esta a versão, com efeito, que a maioria<br />

dos autores tem escrito sobre este tema 99 . Alguns,<br />

contudo, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que a mulher pela qual brútio<br />

mudou <strong>de</strong> ala não era tarentina <strong>de</strong> nascimento, mas<br />

antes brútia, e ainda que ela seria concubina <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>.<br />

Ao tomar conhecimento <strong>de</strong> que o chefe dos Brútios era<br />

concidadão e conhecido seu, revelou-o a <strong>Fábio</strong> e, numa<br />

conversa que teve com ele ao pé da muralha, conseguiu<br />

convencer e vencer o homem por completo 100 .<br />

99 Vi<strong>de</strong> Tito Lívio 27. 15. 9-11.<br />

100 Não se conhecem outros testemunhos que atestem esta<br />

versão.<br />

220


221<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

22. Enquanto <strong>de</strong>corriam estes factos, <strong>Fábio</strong><br />

engendrou algo para distrair Aníbal; or<strong>de</strong>nou aos<br />

soldados que estavam em Régio para fazer uma incursão<br />

por Brútia e acampar junto a Caulónia <strong>de</strong> forma a tomála<br />

pela força. Os soldados, cerca <strong>de</strong> oito mil, eram na sua<br />

maioria <strong>de</strong>sertores e os mais inúteis dos proscritos entre<br />

os homens enviados por Marcelo da Sicília, pelo que<br />

a sua morte traria menos dor e prejuízo à cida<strong>de</strong> 101 . 2.<br />

Ele esperava que, enviando-os a Aníbal, pu<strong>de</strong>sse afastálo<br />

<strong>de</strong> Tarento, algo que, <strong>de</strong> facto, aconteceu, pois logo<br />

Aníbal se lançou a persegui-los com as suas forças 102 . 3.<br />

No sexto dia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>Fábio</strong> acampou em Tarento, o<br />

jovem, que antecipadamente entrara em acordo com o<br />

brútio, veio <strong>de</strong> noite com a irmã à sua presença, pois<br />

conhecia com exactidão e tinha marcado o lugar on<strong>de</strong>,<br />

estando <strong>de</strong> vigia, o brútio se ia entregar e ren<strong>de</strong>r-se aos<br />

atacantes. 4. <strong>Fábio</strong>, porém, fez com que a empresa não<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>sse unicamente da traição; ele apresentou-se<br />

no lugar combinado e manteve-se calmo, enquanto<br />

que o resto do exército assaltava as muralhas a partir<br />

da terra e do mar, ao mesmo tempo que se fazia uma<br />

gran<strong>de</strong> gritaria e se gerava confusão. Nisto, enquanto a<br />

maior parte dos Tarentinos acorria em socorro e lutava<br />

contra os que assaltavam a muralha, o brútio indicou a<br />

<strong>Fábio</strong> o momento oportuno, este subiu a uma escada<br />

e tomou a cida<strong>de</strong>. 5. Parece, porém, que nesta altura<br />

terá sido dominado pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> glória, pois mandou<br />

<strong>de</strong>capitar os Brútios importantes, <strong>de</strong> modo a evitar que<br />

101 Segundo Tito Lívio 23.25.7, estes soldados <strong>de</strong>sertores<br />

provinham, na sua maioria, <strong>de</strong> Canas.<br />

102 Cf. Tito Lívio 27.12.4-6.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

se <strong>de</strong>scobrisse que tinha tomado a cida<strong>de</strong> por meio <strong>de</strong><br />

uma traição. Contudo, não obteve o efeito esperado,<br />

recebendo pelo contrário a acusação <strong>de</strong> <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong> e<br />

cruelda<strong>de</strong> 103 . 6. Morreram também muitos Tarentinos<br />

e ven<strong>de</strong>ram-se trinta mil, o exército saqueou a cida<strong>de</strong> e<br />

foram enviados para o tesouro público três mil talentos.<br />

7. Diz-se que, quando todos estavam a roubar e a levar<br />

bens, o secretário <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> perguntou-lhe quais eram<br />

as suas or<strong>de</strong>ns em relação aos <strong>de</strong>uses, referindo-se<br />

<strong>de</strong>ste modo a quadros e estátuas. <strong>Fábio</strong>, perante isso,<br />

respon<strong>de</strong>u: “Deixemos aos Tarentinos os seus <strong>de</strong>uses<br />

irritados” 104 . 8. Contudo, levou consigo <strong>de</strong> Tarento a<br />

estátua colossal <strong>de</strong> Héracles que colocou no Capitólio, ao<br />

lado da qual erigiu uma estátua sua equestre em bronze.<br />

Nisto se mostrou mais extravagante que Marcelo, ou<br />

melhor, fez com que aquele varão fosse mais admirado<br />

pela sua clemência e humanida<strong>de</strong>, como se escreveu na<br />

sua biografia.<br />

23. Diz-se que Aníbal veio em socorro, mas<br />

terá ficado a uma distância <strong>de</strong> quarenta estádios, e que<br />

disse em público: “Havia, sem dúvida, algum outro<br />

Aníbal entre os Romanos; pois per<strong>de</strong>mos a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Tarento da mesma forma como a ganhámos” 105 . E em<br />

particular, reconheceu, pela primeira vez, perante os seus<br />

companheiros, que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito tempo, via que seria<br />

103 Cf. Tito Lívio 27.15.9-16.6.<br />

104 Este comentário <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> consta igualmente em Tito Lívio<br />

27.16.7-8.<br />

105 Cf. Plutarco, Obras Morais 195 F; Tito Lívio 27.16.10;<br />

Cícero, O Orador 2.273; Da Velhice 11.<br />

222


223<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

difícil para eles, mas que agora lhe parecia impossível<br />

apo<strong>de</strong>rar-se <strong>de</strong> Itália naquelas circunstâncias.<br />

2. Este segundo triunfo, celebrou-o <strong>Fábio</strong> com<br />

mais pompa do que o primeiro 106 . Viam-no agora como<br />

um bom atleta que, lutando com Aníbal, facilmente se<br />

liberta dos ataques do adversário, como se a presa e seu<br />

nó não tivessem já o mesmo vigor <strong>de</strong> outrora. 3. Com<br />

efeito, parte das suas forças estava <strong>de</strong>slumbrada pelo luxo<br />

e pelas riquezas, enquanto que a outra estava <strong>de</strong>bilitada<br />

e esgotada por causa dos contínuos combates. Havia um<br />

certo Marco Lívio 107 , que comandava a guarnição <strong>de</strong><br />

Tarento quando Aníbal conseguiu que esta <strong>de</strong>sertasse.<br />

Ocupou então a acrópole que continuou a proteger<br />

sem ser expulso <strong>de</strong>la, vigiando-a até que os tarentinos<br />

voltassem a cair novamente nas mãos dos Romanos.<br />

4. A este importunavam-no as honras que se<br />

prestavam a <strong>Fábio</strong>, e um dia, movido pela inveja e pela<br />

ambição, disse perante o Senado que não era <strong>Fábio</strong>, mas<br />

ele próprio, o responsável pela conquista <strong>de</strong> Tarento.<br />

<strong>Fábio</strong>, rindo-se, disse: “Tens razão! Pois se não tivesses<br />

perdido a cida<strong>de</strong>, eu não a teria recuperado.” 108 .<br />

106 O primeiro triunfo conquistado foi sobre os Lígures, referido<br />

anteriormente em 2.1.<br />

107 Cf. Tito Lívio 27.25.34 e Plutarco, Obras Morais 195 F.<br />

108 Referido em Marcelo 21.4. Afirma Plutarco que Marcelo<br />

levara para Roma, a maior parte das estátuas e objectos artísticos e<br />

que com eles <strong>de</strong>sfilou no cortejo do triunfo. Cf. Tito Lívio 27.16.8<br />

que estabelece a mesma comparação, mas manifesta preferência<br />

pela conduta <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, pois Marcelo tinha saqueado Siracusa e<br />

levado vários tesouros artísticos.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

24. Os Romanos, além das várias honras que<br />

conce<strong>de</strong>ram a <strong>Fábio</strong>, nomearam cônsul o seu filho<br />

<strong>Fábio</strong> 109 . Quando tomou posse do cargo e estava ocupado<br />

com um certo assunto relacionado com a guerra, o seu<br />

pai, seja por velhice seja por <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> ou para por o<br />

filho à prova, aproximou-se <strong>de</strong>le montado a cavalo entre<br />

aqueles que ali se encontravam e ro<strong>de</strong>avam o cônsul. 2.<br />

O jovem vendo-o ao longe, não o permitiu, e mandou<br />

um lictor que or<strong>de</strong>nasse ao seu pai que <strong>de</strong>smontasse e<br />

se apresentasse pelo próprio pé, se tinha algo a pedir<br />

ao cônsul. 3. A todos os outros importunou a or<strong>de</strong>m,<br />

e olharam para <strong>Fábio</strong> em silêncio, como se tivesse sido<br />

alvo <strong>de</strong> um tratamento indigno. Aquele, contudo,<br />

rapidamente se <strong>de</strong>sceu do cavalo e acelerou o passo em<br />

direcção ao seu filho e, abraçando-o e beijando-o, disse:<br />

4. “Filho, pensas e proce<strong>de</strong>s bem. Pois conheces aqueles<br />

em que mandas e a gran<strong>de</strong>za do cargo que recebeste.<br />

Assim foi como nós próprios e os nossos antepassados<br />

engran<strong>de</strong>cemos Roma, colocando sempre os pais e filhos<br />

em segundo lugar, <strong>de</strong>pois do bem da pátria.” 110 .<br />

5. Na verda<strong>de</strong>, diz-se que o bisavô <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> 111<br />

era um homem muito conceituado e influente entre os<br />

Romanos, pois foi cinco vezes cônsul e celebrou triunfos<br />

das maiores guerras. Quando, porém, já velho, partiu<br />

com o filho para a guerra, fez a entrada numa quadriga<br />

109 No ano <strong>de</strong> 213 a.C., juntamente com Tibério Semprónio<br />

Graco. Sobre o combate do filho <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> em Arpos, vi<strong>de</strong> Frontino,<br />

Estratagemas 3.9.2.<br />

110 Cf. Plutarco, Obras Morais 196 A; Tito Lívio 24. 44. 9;<br />

Valério <strong>Máximo</strong> 2. 2. 4.<br />

111 Este episódio refere-se a <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> Ruliano, já<br />

mencionado em 1.3.<br />

224


225<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

no <strong>de</strong>sfile triunfal, seguindo-o com o seu cavalo e com<br />

os outros elementos da comitiva 112 . Disto se orgulhava,<br />

porque ele, apesar <strong>de</strong> ter sob o seu filho o po<strong>de</strong>r<br />

paternal 113 e ser consi<strong>de</strong>rado o mais importante entre os<br />

cidadãos, estava subordinado à lei e àquele magistrado.<br />

6. Com efeito, nem só por isto aquele foi admirável.<br />

Aconteceu falecer o filho <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, e ele suportou<br />

com muita contenção a <strong>de</strong>sgraça, como um homem<br />

pru<strong>de</strong>nte e bom pai. Ele mesmo pronunciou, da tribuna<br />

do foro, o elogio que nos enterros <strong>de</strong> individualida<strong>de</strong>s<br />

ilustres compõem os familiares e, redigindo o discurso,<br />

publicou-o.<br />

25. Cornélio Cipião, que tinha sido enviado à<br />

Hispânia, expulsou os Cartagineses, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> os vencer<br />

em muitas batalhas e <strong>de</strong> conseguir para os Romanos<br />

muitos povos, gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s e brilhantes empresas,<br />

regressando enquanto <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> popularida<strong>de</strong> e glória<br />

como nenhum outro. Nomeado cônsul 114 , apercebeuse<br />

<strong>de</strong> que o povo pedia e esperava <strong>de</strong>le uma façanha.<br />

Pareceu-lhe muito antiquado e obsoleto continuar<br />

a ofensiva contra Aníbal em Itália, pelo que planeava<br />

112 Cf. Valério <strong>Máximo</strong> 5.7.1. Este episódio teve lugar durante<br />

o primeiro consulado do seu filho Q. <strong>Fábio</strong> Cruges, avô <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong><br />

<strong>Máximo</strong>, em 292 a.C.<br />

113 Trata-se da patria potestas, que estabelecia que o paterfamilias<br />

tinha o direito <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> morte sobre o seu filho.<br />

114 Em 205 a.C. A estratégia romana consistiu em invadir a<br />

Hispânia <strong>de</strong> forma <strong>de</strong> impedir a renovação do exército <strong>de</strong> Aníbal<br />

em Itália, retirando-lhe assim as suas bases <strong>de</strong> apoio. Como tal,<br />

a conquista e presença romanas na Hispânia resultaram <strong>de</strong> uma<br />

manobra <strong>de</strong>fensiva contra Cartago.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

navegar directamente para Cartago e para a Líbia,<br />

enchendo-as <strong>de</strong> armas e exércitos, e transferir a guerra<br />

<strong>de</strong> Itália para esse lugar, incitando o povo com todas as<br />

suas forças a executar este plano. 2. <strong>Fábio</strong> infundia todo<br />

o tipo <strong>de</strong> medos na cida<strong>de</strong>, como se fosse levada por<br />

um homem insensato e jovem ao mais extremo e grave<br />

perigo. Não poupava palavras ou acções para afastar os<br />

cidadãos <strong>de</strong>stes projectos, e ia conseguindo convencer o<br />

Senado. Contudo, ao povo parecia-lhe que estava contra<br />

Cipião por inveja dos seus êxitos e que temia que, se ele<br />

realizasse alguma façanha gran<strong>de</strong> e notável, terminaria<br />

<strong>de</strong>finitivamente com a guerra ou a afastaria <strong>de</strong> Itália, e<br />

ele pareceria uma pessoa indolente e cobar<strong>de</strong> por não ter<br />

concluído a guerra em tanto tempo.<br />

3. Com efeito, é provável que o propósito<br />

inicial <strong>de</strong> se opor a estes planos se tenha <strong>de</strong>vido mais<br />

à segurança e à prudência, pois temia o perigo que este<br />

constituía. Contudo, tornou-a uma questão pessoal e<br />

foi mais longe, arrastado por uma certa ambição e se<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> vencer, <strong>de</strong> modo a impedir o engran<strong>de</strong>cimento <strong>de</strong><br />

Cipião. A verda<strong>de</strong> é que fazia o possível para convencer<br />

Crasso, colega <strong>de</strong> Cipião no consulado, para que não<br />

autorizasse a expedição nem ce<strong>de</strong>sse, a não ser que, se<br />

assim <strong>de</strong>cidisse, que navegasse ele mesmo contra os<br />

cartagineses. Além disso, também não <strong>de</strong>ixou que se<br />

aprovassem os fundos para a guerra.<br />

4. Deste modo, Cipião vendo-se obrigado a<br />

arranjar, por sua própria conta, o dinheiro, reuniu das<br />

cida<strong>de</strong>s na Etrúria aquelas que se encontravam numa<br />

relação <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> para com ele e disponíveis para<br />

226


227<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

comparecer. Quanto a Crasso, permaneceu na sua<br />

pátria, por um lado pela sua natureza tranquila e pouco<br />

conflituosa 115 , e por outro por respeito à lei divina, pois<br />

era Pontífice <strong>Máximo</strong>.<br />

26. Então, <strong>Fábio</strong> voltou a opor-se a Cipião por<br />

outra via: impedia os jovens que se queriam alistar com<br />

ele e retinha-os, gritando nas reuniões do Senado e nas<br />

assembleias que Cipião tinha, não só, tentado escapar a<br />

Aníbal, como também pretendia sair <strong>de</strong> Itália, levando<br />

com ele o exército que ali estava, seduzindo a juventu<strong>de</strong><br />

com esperanças e convencendo-os a abandonar os seus<br />

pais, as suas mulheres e a sua cida<strong>de</strong>, no momento em<br />

que o inimigo, vitorioso e imbatível, estava às suas<br />

portas. 2. Com estes discursos assustou os Romanos,<br />

que <strong>de</strong>cretaram, por votação, que Cipião só iria fazer<br />

uso dos exércitos que estavam na Sicília e que não levaria<br />

mais do que trezentos dos que tinham estado com na<br />

Hispânia e nos quais <strong>de</strong>positava especial confiança. Esta<br />

política <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> estava em conformida<strong>de</strong> com a sua<br />

natureza.<br />

3. Contudo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Cipião passar a Líbia 116 ,<br />

começaram a chegar a Roma notícias das suas<br />

notáveis acções e façanhas, que se <strong>de</strong>stacavam pela sua<br />

gran<strong>de</strong>za e beleza extraordinárias 117 . Estas notícias foram<br />

confirmadas pela chegada <strong>de</strong> muitos <strong>de</strong>spojos e <strong>de</strong> um<br />

115 Os discursos pronunciados por <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> e Cornélio<br />

Cipião diante do Senado foram relatados por Tito Lívio 28.40-45.<br />

116 Em 204 a.C.<br />

117 Trata-se da batalha nos Campi Magni.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

rei dos Númidas cativo 118 . Soube-se também que dois<br />

acampamentos foram <strong>de</strong>struídos e incendiados num<br />

único dia e que com eles ar<strong>de</strong>ram muitos homens,<br />

muitas armas e cavalos. Chegaram também a Aníbal<br />

embaixadas <strong>de</strong> Cartagineses, chamando-o e pedindolhe<br />

que abandonasse aquelas vãs esperanças e fosse em<br />

socorro da sua pátria 119 . Por causa <strong>de</strong> tais sucessos, em<br />

Roma, não havia ninguém que não falasse no nome<br />

<strong>de</strong> Cipião. Apesar disso, <strong>Fábio</strong> exigiu o envio <strong>de</strong> um<br />

substituto para Cipião, e, não alegando mais nenhum<br />

pretexto, foi dizendo o que já tinha sido dito, que era<br />

arriscado confiar assuntos tão importantes a um só<br />

homem, pois é difícil que a mesma pessoa seja sempre<br />

afortunada. Com ele se incompatibilizou o povo que<br />

o consi<strong>de</strong>rava já um homem intratável e invejoso, que<br />

com a velhice se tornara muito cobar<strong>de</strong> e pessimista, e<br />

que se assustava com Aníbal além da medida.<br />

4. Com efeito, nem sequer <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Aníbal se<br />

fazer ao largo com as suas forças e abandonar a Itália 120 ,<br />

<strong>de</strong>ixou livre <strong>de</strong> medos e segura a alegria e a confiança<br />

dos cidadãos; pelo contrário, repetia que a conjuntura<br />

era frágil e que a cida<strong>de</strong> corria perigo extremo, pois<br />

na Líbia, diante <strong>de</strong> Cartago, Aníbal cairia sobre eles<br />

com todo o seu peso 121 e colocaria diante <strong>de</strong> Cipião<br />

um exército ainda quente com o sangue <strong>de</strong> numerosos<br />

118 Plutarco não respeita aqui a cronologia dos acontecimentos:<br />

os campos cartaginês e númida foram incendiados antes da prisão<br />

Sífax, o rei númida.<br />

119 Cf. Tito Lívio 30.19.<br />

120 Em 203 a.C. Cf. Tito Lívio 30.26.<br />

121 Cf. Tito Lívio 28.42.18.<br />

228


229<br />

Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />

generais, ditadores e cônsules. A cida<strong>de</strong> voltou, por isso,<br />

a ficar perturbada com estes discursos e, apesar <strong>de</strong> a<br />

guerra ter sido trasladada para a Líbia, parecia que o<br />

perigo estava ainda mais próximo <strong>de</strong> Roma.<br />

27. Pouco tempo <strong>de</strong>pois, Cipião, porém, vence<br />

Aníbal numa batalha 122 e além <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrubar e pisar o<br />

orgulho <strong>de</strong> Cartago <strong>de</strong>finitivamente caído, conce<strong>de</strong> aos<br />

seus concidadãos uma alegria maior que toda a esperança<br />

e a hegemonia <strong>de</strong> Roma, realmente<br />

sacudida por uma gran<strong>de</strong> agitação, voltou a erguê-la 123 .<br />

2. <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, contudo, não viveu o suficiente<br />

para ver o fim da guerra, não teve conhecimento da<br />

<strong>de</strong>rrota <strong>de</strong> Aníbal, nem pô<strong>de</strong> contemplar a gran<strong>de</strong> e<br />

sólida prosperida<strong>de</strong> da pátria, pois por volta da altura em<br />

que Aníbal zarpava <strong>de</strong> Itália, ficou doente e morreu 124 .<br />

3. A Epaminondas 125 , enterraram-no os Tebanos<br />

a expensas do Estado por causa da sua pobreza, pois,<br />

na altura da sua morte, dizem que acabou por não se<br />

encontrar nada à excepção <strong>de</strong> uma moeda <strong>de</strong> ferro. 4. A<br />

<strong>Fábio</strong>, os Romanos não realizaram o funeral a expensas<br />

122 A batalha <strong>de</strong> Zama, que pôs fim à Segunda Guerra Púnica,<br />

teve lugar em Outubro <strong>de</strong> 202 a.C. A vitória <strong>de</strong> Cipião, nesta<br />

batalha, valeu-lhe o título <strong>de</strong> “Africano”.<br />

123 Sófocles, Antígona 163.<br />

124 Em 203 a.C. Cf. Tito Lívio 30.26.7.<br />

125 Plutarco também escreveu a vida <strong>de</strong> Epaminondas, famoso<br />

general, responsável pela hegemonia tebana no século IV a.C., que<br />

venceu os Espartanos em Leuctras e morreu na batalha <strong>de</strong> Mantineia<br />

em 371 a.C. Esta Vida <strong>de</strong> Plutarco, contudo, não chegou até nós.


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

da República, mas cada particular contribuiu com a<br />

mais pequena das moedas, não por falta <strong>de</strong> ajuda por<br />

causa da sua pobreza, mas porque o povo o enterrou<br />

como a um pai 126 . Assim, a sua morte recebeu a honra e<br />

a glória que o distinguiam em vida.<br />

126 Cf. Valério <strong>Máximo</strong> 5.2.3.<br />

230


Co m p a ra ç ã o e n t r e<br />

périCles e Fá b i o má x i m o


Co m p a ra C ç ã o e n t r e périCles e Fá b i o má x i m o<br />

28 (1) Eis a história das vidas <strong>de</strong>stes homens 1 .<br />

Como ambos <strong>de</strong>ixaram muitos e belos exemplos <strong>de</strong><br />

virtu<strong>de</strong> política e militar, tomemos em primeiro lugar<br />

aquele relativo aos méritos militares. Por um lado,<br />

<strong>Péricles</strong> governou um povo que se encontrava na maior<br />

prosperida<strong>de</strong>, muito gran<strong>de</strong> por si mesmo e no cume<br />

do po<strong>de</strong>r, pelo que podia parecer que se manteve até ao<br />

final seguro e intacto <strong>de</strong>vido ao bem-estar comum e à<br />

força do Estado. As acções <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, por outro lado, que<br />

recebeu a cida<strong>de</strong> nas circunstâncias <strong>de</strong> maior infortúnio<br />

e mais lamentáveis, não pu<strong>de</strong>ram garantir a segurança,<br />

mas soube erguer a cida<strong>de</strong> a partir da <strong>de</strong>sgraça e melhorar<br />

a sua situação. 2. Além disso, as façanhas <strong>de</strong> Címon,<br />

os troféus <strong>de</strong> Miróni<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> Leócrates e os numerosos<br />

e grandiosos sucessos <strong>de</strong> Tólmi<strong>de</strong>s, serviram a <strong>Péricles</strong><br />

mais para engran<strong>de</strong>cer a cida<strong>de</strong> com festas e solenida<strong>de</strong>s<br />

do que para fazer guerra e salvaguardar o império.<br />

3. <strong>Fábio</strong>, porém, assistiu a muitas fugas e<br />

<strong>de</strong>rrotas, a muitas mortes e assassínios <strong>de</strong> generais em<br />

pleno po<strong>de</strong>r e pretores, a lagos, planícies e bosques<br />

cheios <strong>de</strong> cadáveres <strong>de</strong> soldados e rios que corriam<br />

1 Plutarco i<strong>de</strong>ntifica semelhanças éticas entre <strong>Péricles</strong> e <strong>Fábio</strong><br />

<strong>Máximo</strong>, como a mo<strong>de</strong>ração, a tolerância em relação à maledicência<br />

dos seus pares e do povo. O facto <strong>de</strong> os inimigos, quando saquearam<br />

a cida<strong>de</strong>, terem respeitado apenas as suas proprieda<strong>de</strong>s; o não serem<br />

supersticiosos; a prudência antes <strong>de</strong> avançar para uma batalha,<br />

bem como o facto <strong>de</strong> resistirem com dignida<strong>de</strong> à morte dos seus<br />

familiares.<br />

233


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

para o mar com sangue e morte. Assim, tomando<br />

em seu po<strong>de</strong>r a cida<strong>de</strong>, não permitiu, pela sua força e<br />

constância, que se <strong>de</strong>struísse totalmente, arrastada pelos<br />

erros dos outros. 4. Com efeito, po<strong>de</strong> parecer que, ao<br />

homem sensato, não é tão difícil exercer po<strong>de</strong>r sobre<br />

uma cida<strong>de</strong>, humilhada em circunstâncias ruinosas, e<br />

torná-la obediente pela necessida<strong>de</strong> quanto refrear o<br />

povo quando está excitado por um sucesso, cheio <strong>de</strong><br />

orgulho e temerida<strong>de</strong>. E foi sobretudo <strong>de</strong>sta maneira<br />

que <strong>Péricles</strong> revelou aos Atenienses a sua superiorida<strong>de</strong>.<br />

5. Contudo, a magnitu<strong>de</strong> e o número dos flagelos que<br />

então se abateram sobre os Romanos revelou <strong>Fábio</strong><br />

como homem <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão e gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> carácter que<br />

não se <strong>de</strong>ixou abalar nem abandonou as convicções que<br />

orientaram a sua conduta.<br />

29 (2) A conquista <strong>de</strong> Samos por <strong>Péricles</strong> po<strong>de</strong><br />

comparar-se à tomada <strong>de</strong> Tarento e à <strong>de</strong> Eubeia, por<br />

Zeus, à das cida<strong>de</strong>s da Campânia, com excepção <strong>de</strong><br />

Cápua, que foi conquistada pelos cônsules Fúlvio e<br />

Ápio 2 . Não parece que <strong>Fábio</strong> tenha vencido numa<br />

batalha campal, à excepção daquela com a qual obteve<br />

o primeiro triunfo 3 , enquanto que <strong>Péricles</strong> ergueu nove<br />

troféus por vitórias conseguidas aos inimigos em terra e<br />

no mar. 2. De <strong>Péricles</strong> também não se relata nenhuma<br />

façanha semelhante àquela que realizou <strong>Fábio</strong> quando<br />

livrou Minúcio <strong>de</strong> Aníbal e conseguiu salvar, completo,<br />

um exército <strong>de</strong> Romanos, pois foi uma magnífica acção<br />

2 Em 212 a.C.<br />

3 Trata-se do triunfo sob os Lígures, já mencionado em <strong>Fábio</strong><br />

<strong>Máximo</strong> 2.1.<br />

234


Co m p a ra C ç ã o e n t r e périCles e Fá b i o má x i m o<br />

e nela participaram, ao mesmo tempo, a coragem,<br />

a prudência e a bonda<strong>de</strong>. Do mesmo modo, não se<br />

relata qualquer erro <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> como a <strong>de</strong>rrota que<br />

sofreu <strong>Fábio</strong> quando se <strong>de</strong>ixou enganar por Aníbal<br />

com estratagema dos bois: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter apanhado o<br />

inimigo, que avançou pelos <strong>de</strong>sfila<strong>de</strong>iros por acaso e<br />

espontaneamente, <strong>de</strong>ixou-o, sem dar conta, escaparse<br />

durante a noite, e no dia seguinte, recorre à força e<br />

antecipa-se a quem já estava para o fazer e é <strong>de</strong>rrotado<br />

quando já o tinha nas mãos 4 .<br />

3. Contudo, se um bom general <strong>de</strong>ve não só<br />

guiar-se pelo presente, mas também prever sensatamente<br />

o futuro, para os Atenienses a guerra terminou tal<br />

como <strong>Péricles</strong> tinha previsto e predito: por estarem<br />

envolvidos em <strong>de</strong>masiadas frentes, <strong>de</strong>itaram a per<strong>de</strong>r a<br />

sua hegemonia.<br />

Os Romanos, por outro lado, ao enviarem, contra<br />

os planos <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, Cipião contra os Cartagineses,<br />

tornaram-se donos <strong>de</strong> tudo, não por acaso, mas graças<br />

à habilida<strong>de</strong> e à coragem do seu general que venceu os<br />

inimigos. Nesta medida, para aquele os fracassos da<br />

pátria foram o testemunho <strong>de</strong> que as suas previsões<br />

estavam correctas, enquanto que para este se provou,<br />

pelos êxitos, que estava completamente errado. 4. De<br />

igual modo erra um general quando cai em <strong>de</strong>sgraça sem<br />

o esperar, como o que <strong>de</strong>ixa passar a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

um êxito por <strong>de</strong>sconfiança. Com efeito, segundo parece,<br />

somente a inexperiência produz a temerida<strong>de</strong> e suprime<br />

a audácia. Eis os factos sobre as questões bélicas.<br />

4 Vi<strong>de</strong> capítulos 6 e 7.<br />

235


Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />

30 (3) No âmbito político, a gran<strong>de</strong> acusação<br />

contra <strong>Péricles</strong> era a guerra. Diz-se, com efeito, que foi<br />

ele quem a suscitou por se opor a qualquer concessão<br />

aos Lace<strong>de</strong>mónios. Parece-me a mim que nem <strong>Fábio</strong><br />

<strong>Máximo</strong> teria feito qualquer concessão aos Cartagineses,<br />

antes teria, com nobreza, enfrentado o perigo para<br />

assegurar a hegemonia. 2. Certamente que a bonda<strong>de</strong><br />

e a amabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> para com Minúcio são a<br />

con<strong>de</strong>nação das intrigas contra Címon e Tucídi<strong>de</strong>s,<br />

homens nobres e aristocratas que, por acção <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>,<br />

foram votados ao ostracismo e ao <strong>de</strong>sterro. Contudo, a<br />

influência e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> foram, indubitavelmente,<br />

maiores. 3. Com efeito, não <strong>de</strong>ixou que nenhum outro<br />

general atirasse a cida<strong>de</strong> para a <strong>de</strong>sgraça com más<br />

resoluções. Somente Tólmi<strong>de</strong>s lhe escapou, rejeitando<br />

veementemente a sua influência, e sofreu uma <strong>de</strong>rrota<br />

com os Beócios 5 ; todos os outros a<strong>de</strong>riram e alinharam<br />

com o seu parecer por causa da sua gran<strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>.<br />

4. Quanto a <strong>Fábio</strong>, apesar <strong>de</strong> ser seguro e infalível,<br />

não foi capaz <strong>de</strong> controlar os que cometeram os erros,<br />

pelo que parece inferior a <strong>Péricles</strong>. A verda<strong>de</strong> é que os<br />

Romanos não teriam sofrido tamanhas <strong>de</strong>rrotas se <strong>Fábio</strong><br />

tivesse sido tão influente entre os Romanos quanto o foi<br />

<strong>Péricles</strong> em Atenas.<br />

5. Em relação à gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> espírito perante as<br />

riquezas, um manifestou-a ao não aceitar nada do que<br />

lhe ofereciam, enquanto o outro ao dar muito àqueles<br />

que lhe pediam, quando libertou, com o seu próprio<br />

5 Em 447 a.C. na batalha <strong>de</strong> Coroneia.<br />

236


Co m p a ra C ç ã o e n t r e périCles e Fá b i o má x i m o<br />

dinheiro, os prisioneiros; 6. é verda<strong>de</strong> que neste caso a<br />

soma não era elevada, apenas seis talentos 6 . Contudo,<br />

<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> não se po<strong>de</strong> dizer, com segurança, quanto<br />

proveito e favor terá recebido <strong>de</strong> aliados e reis, graças à<br />

sua influência, mas manteve-se absolutamente íntegro e<br />

sem mácula.<br />

7. Quanto à gran<strong>de</strong>za dos monumentos e templos<br />

e à magnificência das edificações com que <strong>Péricles</strong><br />

embelezou Atenas, não são dignos <strong>de</strong> comparação nem<br />

com todos os monumentos juntos <strong>de</strong> Roma antes dos<br />

Césares, pois a gran<strong>de</strong>za e a elegância das obras <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />

são superiores àquelas e não consentem comparação.<br />

6 Em função do que se disse em 7. 5-6, Plutarco estaria a referirse<br />

a <strong>de</strong>z talentos.<br />

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Stadter, P. A. (1975), “Plutarch’s Comparison of Pericles<br />

and Fabius Maximus”, GRBS 16.1, pp. 77-85.<br />

__ (1997), “Plutarch’s Lives: The Statesman as Moral<br />

Actor” in C. Schra<strong>de</strong>r, Vicente Ramón, J. Vela<br />

(eds.), Plutarco y la Historia. Actas <strong>de</strong>l V Simposio<br />

Español sobre Plutarco, Zaragoza, pp. 65-81.<br />

Sumner, G. V. (1975), “Elections at Rome in 217 a.C.”,<br />

Phoenix 29, pp. 250-9.<br />

Von Alten, W. (1933), “Two works by Rubens”, The<br />

Burlington Magazine for Connoisseurs vol. 62 (nº<br />

358), pp. 15-7.<br />

Williamson, G. C. (1990), Pietro Vannucci called<br />

Perugino, London.<br />

Ziegler, K. (1951), “Plutarchos”, RE 21, col. 899.<br />

248


Ín d i c e d e n o m e s<br />

Acaia: Per. 19. 3<br />

Acamante: Per. 3. 1.<br />

Acrópole: Per. 3. 6; 13. 12; 32. 3.<br />

Agamémnon: Per. 28. 7.<br />

Agariste: Per. 3. 2.<br />

Agatarco: Per. 13. 3.<br />

Ágora: Per. 5. 2: 7. 5; 16. 4; 24. 9; 28. 2.; 31. 2.<br />

Alcibía<strong>de</strong>s: Per. 20. 4; 37. 1.<br />

Alópece: Per. 11. 1.<br />

Alpes: Fa b. 2. 1.<br />

Ambrácia: Per. 17. 2<br />

Anacreonte: Per. 2. 1; 27. 4.<br />

Anaxágoras <strong>de</strong> Clazómenas: Per. 4. 6; 6. 1-3; 8. 1; 16. 7-9; 32. 2, 5.<br />

Âncio: Fa b. 2. 2.<br />

Andros: Per. 11. 5.<br />

Aníbal: Per. 2. 5. Fa b. 2. 2, 4; 3. 1, 3; 5. 1, 3, 5; 6. 1, 4, 5, 10; 7.<br />

2-8; 8. 2, 3, 4; 10. 7; 11. 1, 2, 4, 5; 12. 5-6; 13, 7; 14. 1, 5, 6;<br />

15.1-3; 16. 3, 5, 8; 17. 1; 19. 1-3, 5; 21. 2; 22. 1-2; 23.1-3; 25. 1;<br />

26. 1, 3, 4; 27. 1, 2. Co m P . Per.-Fa b. 29 (2) 2.<br />

Antemócrito: Per. 30. 3-4.<br />

Antístenes Socrático: Per. 1. 5.<br />

Aqueloo: Per. 19. 3.<br />

Arcádios: Per. 29. 2.<br />

Arcanânia: Per. 17. 2; 19. 3.<br />

Arcanas: Per. 33. 4.<br />

Arginusas: Per. 37. 6.<br />

Argos: Per. 2. 1.<br />

Marte: Fa b. 2. 2.<br />

Aristódico <strong>de</strong> Tânagra: Per. 10. 8.<br />

Aristófanes: Per. 26. 4<br />

aC a r n e n s e s: Per. 30. 4.<br />

Aristóteles: Per. 4. 1; 9. 2; 10. 8; 26. 3; 28. 2.<br />

Arquidamo: Per. 8. 5; 29. 7; 33. 3, 4.<br />

Arquíloco: Per. 2. 1; 28. 7.<br />

Ártemon: Per. 27. 3, 4.<br />

Ásia: Per. 17. 1, 2.<br />

Aspásia: Per. 24. 2, 5, 6, 8, 11; 25. 1; 30. 4; 32. 1, 5. Vi<strong>de</strong> Hera-Aspásia.<br />

Atena (Higia): Per. 13. 13.<br />

Atenas: Co m P . Per./Fa b. 30 (3). 4.<br />

249


Atenienses: Per. 9. 2; 10. 1; 17. 1; 20. 2; 22. 4; 23. 3; 24. 1, 6, 7;<br />

26. 2, 4; 27. 2; 28. 2, 3, 8; 29. 4-7; 33. 1, 3-4; 34. 2, 4; 35. 3;<br />

37. 3-5; 38. 4; 39. 3. Co m P . Per./Fa b. 28 (1). 4; 29 (2). 3<br />

Ática: Per. 10. 3; 22. 1, 2; 30. 3; 33. 3, 4.<br />

Áufido: Fa b. 15.1.<br />

Axíoco: Per. 24. 3.<br />

Barca: Fa b. 17. 2.<br />

Bárbaros: Per. 9. 6; 12. 1; 15. 1; 17. 1; 19. 1; 20. 1; 28. 7. Fab. 21. 4.<br />

Beócia: Per. 17. 2; 18. 2; 33. 5.<br />

Bisaltas: Per. 11. 5.<br />

Bizâncio: Per. 17. 2.<br />

Brútia: Fa b. 22. 1.<br />

Brútios: Fa b. 21. 2, 4, 5; 22. 3, 4, 5.<br />

Butéon (<strong>Fábio</strong>): Fa b. 9. 4.<br />

Cálcis: Per. 23. 3.<br />

Cálias: Per. 24. 8.<br />

Calícrates: Per. 13. 7.<br />

Camilo: Fa b. 3. 1.<br />

Campânia: Fa b. 6. 2. Co m P . Per./Fa b. 29 (2). 1.<br />

Canas: Fa b. 9.4; 15. 1.<br />

Carino: Per. 30. 3.<br />

Capitólio: Fa b. 17. 1; 22. 8.<br />

Cápua: Fa b. 17. 4. Co m P . Per./Fa b. 29 (2). 1.<br />

Cartagineses: Fa b. 5. 4; 11. 1, 5; 12. 5; 15. 1, 4; 16. 1; 17. 2; 25. 1,<br />

3; 26. 3. Co m P . Per./Fa b. 29 (2). 3; 30 (3). 1.<br />

Cartago: Per. 20. 4. Fa b. 25. 1; 26. 4; 27. 1.<br />

Casilino: Fa b. 6. 2.<br />

Casino: Fa b. 6. 1.<br />

Caulónia: Fa b. 22. 1.<br />

César (Augusto): Per. 1. 1.<br />

Césares: Co m P . Per.-Fa b. 30 (3).7.<br />

Chipre: Per. 10. 8; 26. 1.<br />

Cílon: Per. 33. 1.<br />

Címon: Per. 5. 3; 7. 3, 4; 9. 2, 6; 10. 1-3, 5-6, 8; 11. 11; 16. 3; 28.<br />

6; 29. 1-2. Co m P . Per.-Fa b. 28 (1). 2; 30 (3). 2.<br />

Cipião (Cornélio): Fa b. 25. 1, 2, 3, 4; 26. 1-4; 27. 1. Co m P . Per.-<br />

Fa b. 29 (2). 3.<br />

Ciro, o Moço: Per. 24, 11, 12.<br />

Claúdios: vi<strong>de</strong> Marcelo.<br />

Clazómenas: Per. 4. 6.<br />

Cleândridas: Per. 22. 2, 3.<br />

250


Cléon: Per. 33. 8; 35. 5.<br />

Clístenes: Per. 3. 2.<br />

Colarges: Per. 3.1.<br />

Comédia: Per. 8. 4; 24. 9.<br />

Comediógrafos: Per. 7. 8; 13. 15; 16. 1; 24. 9.<br />

Conselho: Per. 7. 5.<br />

Corcira: Per. 29. 3.<br />

Corcireus: Per. 29. 1.<br />

Corebo: Per. 13. 7.<br />

Coríntios: Per. 29. 1, 4, 6.<br />

Cornélio: Vi<strong>de</strong> Cipião, Lêntulo.<br />

Coroneia (Batalha <strong>de</strong>): Per. 18. 3.<br />

Crasso: Fa b. 25. 3, 4.<br />

Cratino: Per. 3. 5; 13. 8, 10; 24. 9.<br />

nemesis: Per. 3. 5.<br />

Qu í r o n e s: Per. 3. 5.<br />

Trá C i a s: Per. 13.10.<br />

Critolau: Per. 7. 7.<br />

Cronos: Per. 3. 5.<br />

Dámon: Per. 4. 1-3.<br />

Damóni<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Ea: Per. 9. 2.<br />

Delfos: Per. 21. 2. Fa b. 18. 3.<br />

Delos: Per. 12. 1.<br />

Deméter: Fa b. 18. 2.<br />

Diógenes: Fa b. 10. 2.<br />

Diopites: Per. 32. 2.<br />

Dípilo (Portas): Per. 30. 3.<br />

Dórios: Per. 17. 2.<br />

Dracônti<strong>de</strong>s: Per. 32. 3.<br />

Dúris <strong>de</strong> Samos: Per. 28. 2, 3.<br />

Ea: Per. 9. 2.<br />

Efialtes: Per. 7. 8; 9. 5; 10. 7-8; 16. 3.<br />

Éforo: Per. 27. 3; 28. 2.<br />

Egina: Per. 8. 7.<br />

Eginetas: Per. 29. 5; 34. 2.<br />

Egípcios: Per. 37. 4.<br />

Egipto: Per. 20. 3.<br />

Eleia: Per. 4. 5.<br />

Eleio: Per. 29. 2.<br />

Elêusis: Per. 13. 7.<br />

Elpinice: Per. 10. 5, 6; 28. 5, 7.<br />

251


Emílio (Paulo): Fa b. 14. 4, 6, 7; 16. 4, 6, 8.<br />

Enéadas: Per. 19. 3.<br />

Epaminondas: Fa b. 27. 3.<br />

Epidauro: Per. 35. 3.<br />

Epílico: Per. 36. 2.<br />

Epítimo <strong>de</strong> Farsália: Per. 36. 5.<br />

Esparta: Per. 22. 4; 23. 2.<br />

Ésquines Socrático: Per. 24. 6; 32. 5; 32. 5.<br />

Esquinocéfalo: Per. 3. 4.<br />

Eta: Per. 17. 3.<br />

Estesímbroto <strong>de</strong> Tasos: Per. 8. 9; 14. 16; 26. 1; 36. 6.<br />

Ética (Teofrasto): Per. 38. 2.<br />

Etrúria: Per. 20. 4. Fa b. 2. 2; 3. 1; 25. 4.<br />

Eubeia: Per. 7. 8; 17. 3; 22. 2; 23. 3. Co m P . Per./Fa b. 29 (2). 1.<br />

Eubeus: Per. 22. 1.<br />

Êupolis: Per. 3. 7; 24. 10.<br />

De m o s : Per. 3. 7; 24. 10.<br />

Eurípi<strong>de</strong>s: Fa b. 17. 4.<br />

Euriptólemo: Per. 7. 5.<br />

Europa: Per. 17. 1.<br />

Evângelo: Per. 16. 6.<br />

<strong>Fábio</strong> (filho <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>): Fa b. 24. 1.<br />

<strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>: Per. 2. 5.<br />

<strong>Fábio</strong>s: Fa b. 1. 2. Vi<strong>de</strong> Butéon, Pictor.<br />

Falérios: Fa b. 2. 2.<br />

Farsália: Per. 36. 5.<br />

Fenícios: Per. 28. 6.<br />

Fídias: Per. 2. 1; 13. 6,15; 31. 2-3, 5; 32. 6.<br />

Filémon: Per. 2. 1.<br />

Filipe: Per. 1. 6.<br />

Flamínio (Gaio): Fa b. 2. 3; 3. 1, 3, 5.<br />

Fliunte: Per. 4. 5.<br />

Fócida: Per. 17. 2.<br />

Fócios: Per. 21. 2; 24. 12.<br />

Fódios: Fa b. 1. 2.<br />

Fórum: Fa b. 1. 8; 8. 4; 9. 5; 24. 6.<br />

Fúlvio: Co m P . Per.-Fa b. 29 (2). 1.<br />

Galos: Fa b. 2. 3.<br />

Gilipo: Per. 22. 4.<br />

Gíscon: Fa b. 15. 3, 4.<br />

Glauco: Per. 31. 5.<br />

252


Grécia: Per. 7. 3; 12. 1, 2; 17. 1, 3; 22. 1.<br />

Gregos: Per. 15. 1; 17. 1; 19. 1; 20. 1; 24. 4; 29. 4.<br />

Ha<strong>de</strong>s: Per. 3.7.<br />

Hágnon: Per. 32. 4.<br />

Helenos: Per. 15.1.<br />

Helesponto: Per. 17. 2.<br />

Hestieus: Per. 23. 3.<br />

Hera: Per. 2. 1; 24. 9.<br />

Hera-Aspásia: Per. 24. 9.<br />

Héracles: Fa b. 1. 2; 22. 8.<br />

Heracli<strong>de</strong>s Pôntico: Per. 27. 4; 35. 5.<br />

Hermipo, o comediógrafo: Per. 32. 1; 33. 8.<br />

Hermótimo: Per. 24. 12.<br />

Hipóbotas: Per. 23. 4.<br />

Hipónico (pai <strong>de</strong> Cálias): Per. 24. 8.<br />

Homero: Fa b. 19. 2.<br />

Iberos: Fa b. 7. 2.<br />

Ictino: Per. 13. 7.<br />

Idomeneu <strong>de</strong> Lámpsaco: Per. 10. 7; 35. 5.<br />

Íon <strong>de</strong> Quios: Per. 5. 3; 28. 7.<br />

Iónios: Per. 17. 2; 24. 3; 28.7.<br />

Isménias: Per. 1. 5.<br />

Itália: Per. 11. 5; Fa b. 2. 1-2; 4. 6; 5. 6; 8. 4; 14. 6; 17. 3-4; 19. 1;<br />

23. 1; 25. 1, 2; 26. 1, 4; 27. 2.<br />

Itágenes: Per. 26. 2.<br />

Júnio (Marco): Fa b. 9. 4.<br />

Lace<strong>de</strong>mónia: 30.1.<br />

Lace<strong>de</strong>mónios : Per. 8. 5; 9. 6; 10. 1, 4; 17. 1, 4; 21. 1, 2; 22. 1, 3;<br />

24.1; 29. 1, 5, 7; 30. 2, 5; 31. 1; 33. 1, 4. Co m P. Per./Fab. 30 (3). 1.<br />

Lacrátidas: Per. 35. 5.<br />

Lâmaco: Per. 20. 1.<br />

Lâmpon: Per. 6. 2-3.<br />

Lemnos: Per. 25. 2.<br />

Lêntulo (Cornélio): Fa b. 16. 7, 8, 9.<br />

Leócrates: Per. 16. 3; Co m P . Per.-Fa b. 30 (3). 3.<br />

Lesbos: Per. 17. 2.<br />

Líbia: Fa b. 8. 4; 25. 1; 26. 3-4.<br />

Lígures: Fa b. 2.1.<br />

Lísicles: Per. 24. 6.<br />

Lívio (Marco): Fa b. 23. 3.<br />

Lócrida: Per. 17. 2.<br />

253


Lótrono: Fa b. 6. 2.<br />

Lucano: Fa b. 20. 5-7.<br />

Malíaco (Golfo): Per. 17. 3.<br />

Mânlio: v i D e Torquato.<br />

Marcelo (Claúdio): Fa b. 19. 1, 4-6; 22. 1, 8.<br />

Marso: Fa b. 20. 2.<br />

<strong>Máximo</strong>: vi<strong>de</strong> Ruliano.<br />

Mégara: Per. 19. 2; 29. 7; 30. 3, 4; 34. 3.<br />

Melisso: Per. 26. 2-3; 27. 1.<br />

Menéxeno: Per. 24. 7.<br />

Menipo: Per. 13. 15.<br />

Ménon: Per. 31. 2, 5.<br />

Medos: Per. 28. 6.<br />

Megarenses: Per. 22. 1; 29. 4, 8; 30. 2-4.<br />

Metágenes <strong>de</strong> Xípeto: Per. 13. 7.<br />

Metaponto: Fa b. 19. 7.<br />

Metílio: Fa b. 7. 5; 8. 4; 9. 2.<br />

Mícale: Per. 3. 2.<br />

Mileto: Per. 24. 1.<br />

Milésios: Per. 25. 1; 28. 2.<br />

Milto: Per. 24. 11.<br />

Minúcio Rufo (Marco): Fa b. 4. 1; 5. 5; 7. 5; 8. 1, 4; 9. 1-3; 10. 1,<br />

4-7; 11. 3, 5, 6; 12. 2-4; 13. 1, 7. Co m P . Per.-Fa b. 29 (2). 2; 30<br />

(3). 2.<br />

Miróni<strong>de</strong>s: Per. 13. 12.<br />

Mnésicles: Per. 13.12.<br />

Musas: Per. 1.5; 11. 4.<br />

“Novos Pisistrátidas”: Per. 16. 1.<br />

Naxos: Per. 11. 5.<br />

Nemeia: Per. 19. 2.<br />

Númidas: Fa b. 11. 7; 12. 4; 26. 3.<br />

Olímpico (<strong>Péricles</strong>): Per. 8. 3; 39. 2.<br />

Ônfale (Aspásia): Per. 24. 9.<br />

ov i C u l a (cor<strong>de</strong>irinho): Fa b. 1. 4.<br />

Páralo: Per. 24. 8; 36. 8.<br />

Parméni<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Eleia: Per. 4. 5.<br />

Paulo: vi<strong>de</strong> Emílio.<br />

Pegas: Per. 19. 2.<br />

Peloponésios : Per. 22. 1-2; 29. 1; 33. 3, 5; 34. 1; 37. 6.<br />

Peloponeso : Per. 8. 7; 17. 2, 4; 19. 2; 29. 1; 33.5; 34. 1, 3.<br />

Periforeto: Per. 27. 3, 4.<br />

254


Pictor (<strong>Fábio</strong>): Fa b. 18. 3.<br />

Pireu: Per. 8. 7.<br />

Pirilampes: Per. 13. 15.<br />

Piróni<strong>de</strong>s: Per. 24. 10.<br />

Pisa: Per. 2. 1.<br />

Pisistrátidas: Per. 3. 2. Vi<strong>de</strong> “Novos”<br />

Pisístrato: Per. 7. 1.<br />

Pissutnes: Per. 25. 3, 4.<br />

Pitocli<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Ceos: Per. 4. 1.<br />

Platão: Per. 7. 8; 8. 2; 15. 2; 24. 7.<br />

Platão, o Cómico: Per. 4. 4.<br />

Plistóanax: Per. 22. 1-2.<br />

Plutarco:<br />

Cí m o n: Per. 9. 6.<br />

li s a n D r o: Per. 22. 4.<br />

ma rC e l o: Fa b. 19. 2; 22. 8.<br />

Poetas Áticos: Per. 3. 4.<br />

Polialces: Per. 30. 1.<br />

Policleto: Per. 2. 1.<br />

Polícrates <strong>de</strong> Samos: Per. 26. 4.<br />

Pompónio: Fa b. 3. 4.<br />

Ponto: Per. 20.1.<br />

Posidónio <strong>de</strong> Apameia: Fa b. 19. 4.<br />

Poti<strong>de</strong>ia: Per. 29. 6.<br />

Priene: Per. 25. 1.<br />

Protágoras: Per. 36. 5.<br />

Quersoneso: Per. 11. 5: 19. 1.<br />

Régio: Fa b. 22. 1.<br />

Ro<strong>de</strong>s: Per. 17. 2<br />

Roma: Per. 1. 1. Fa b. 1. 2; 2. 2; 7. 5, 7; 8. 4; 9. 4; 17. 4, 6; 24. 4; 26.<br />

3-4; 27. 1. Co m P . Per./Fa b. 30 (3). 7.<br />

Romanos: Fa b. 2. 4; 3. 5; 6. 9; 7. 2; 11. 6; 12. 1, 4-5; 14. 3; 16. 1-3,<br />

9; 19. 4; 23. 1, 3; 24. 1, 5; 25. 1; 26. 2; 27. 3. Co m P. Per./Fab. 28<br />

(1). 5; 29 (2). 2, 3; 30 (3). 4.<br />

Ruliano (<strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>): Fa b. 1. 3.<br />

Samos: Per. 8. 9; 24. 1, 2; 25. 2; 26. 2, 4; 27. 4; 28. 4. Co m P . Per./<br />

Fa b. 29 (2). 1.<br />

Sâmios: Per. 25. 1, 3; 26. 1-2, 4; 28. 1-2, 7.<br />

Síbaris: Per. 11. 5.<br />

Sícilia: Per. 20. 4; 22. 4. Fa b. 22. 1; 26. 2.<br />

Siciónios: Per. 19. 2.<br />

255


Simeta: Per. 30. 4.<br />

Símias: Per. 35. 5.<br />

Sinope: Per. 20. 2.<br />

Sinópios: Per. 20. 1, 2.<br />

Sócrates: Per. 13. 7; 24. 5.<br />

Sófocles: Per. 8. 8.<br />

Tânagra: Per. 10. 1, 8.<br />

Targélia: Per. 24. 3-4.<br />

Tarentinos: Fa b. 21. 1-2, 5; 22. 3-7; 23. 1, 3, 4.<br />

Tarento: Fa b. 21. 1; 22. 2, 8; 23. 3. Co m P . Per./Fa b. 29 (2). 1.<br />

Tebanos: Fa b. 27. 3.<br />

Teofrasto: Per. 23. 2; 35. 5; 38. 2.<br />

Teleto: Per. 33. 8.<br />

Tessália: Per. 17. 3.<br />

Tessalo: Per. 29. 2.<br />

Tibre: Fa b. 1. 2.<br />

Timesilau: Per. 20. 1.<br />

Timon <strong>de</strong> Fliunte: Per. 4. 5.<br />

Tisandro: Per. 36. 2.<br />

Tólmi<strong>de</strong>s, o <strong>de</strong> Tolmeu: Per. 16. 3; 18. 2-3; 19. 2. Co m P . Per.-Fa b.<br />

28 (1). 2; 30 (3). 3.<br />

Tolmeu: Per. 18. 2.<br />

Torquato (Mânlio): Fa b. 9. 2.<br />

Trácia: Per. 11. 5; 17. 2.<br />

Trácios: Per. 19. 1.<br />

Trágia: Per. 25. 5.<br />

Trasimeno: Fa b. 3. 1.<br />

Trébia: Fa b. 2. 2; 3. 4.<br />

Triásias (Portas): Per. 30. 3.<br />

Tucídi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Melésias: Per. 6. 2-3; 8. 5; 11. 1; 14. 1, 3; 16.<br />

3. Co m P . Per.-Fa b. 30 (3). 2.<br />

Tucídi<strong>de</strong>s: Per. 9. 1; 15. 3; 16. 1; 28. 2, 8; 33. 1. Fa b. 1. 9.<br />

Túrios: Per. 11. 5.<br />

Varrão (Terêncio): Fa b. 14. 2, 4-6; 15. 1; 16. 6, 8; 18.4.<br />

Venúsia: Fa b. 16. 6.<br />

Verrugoso: Fa b. 1. 4.<br />

Volturno: Fa b. 6. 1.<br />

Xantipo (pai <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>): Per. 3. 2.<br />

Xantipo (filho <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>): Per. 24. 8; 36. 2, 4, 6.<br />

Xénocles <strong>de</strong> Colarges: Per. 13.7.<br />

Xerxes: Per. 3. 2; 10. 5; 13. 9.<br />

256


Zenão <strong>de</strong> Eleia: Per. 4. 5; 5. 3.<br />

Zeus/Júpiter: Per. 2. 1; 3. 5.<br />

257


Vo l u m e s p u b l i c a d o s n a Co l e C ç ã o Au t o r e s<br />

Gr e G o s e lA t i n o s – sé r i e te x t o s<br />

1. Delfim F. Leão e Maria do Céu Fialho: Plutarco. <strong>Vidas</strong><br />

<strong>Paralelas</strong> – Teseu e Rómulo. Tradução do grego,<br />

introdução e notas (<strong>Coimbra</strong>, CECH, 2008).<br />

2. Delfim F. Leão: Plutarco. Obras Morais – O banquete dos<br />

Sete Sábios. Tradução do grego, introdução e notas<br />

(<strong>Coimbra</strong>, CECH, 2008).<br />

3. Ana Elias Pinheiro: Xenofonte. Banquete, Apologia <strong>de</strong><br />

Sócrates. Tradução do grego, introdução e notas<br />

(<strong>Coimbra</strong>, CECH, 2008).<br />

4. Carlos <strong>de</strong> Jesus, José Luís Brandão, Martinho Soares,<br />

Rodolfo Lopes: Plutarco. Obras Morais – No Banquete<br />

I – Livros I‑IV. Tradução do grego, introdução e notas.<br />

Coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> José Ribeiro Ferreira (<strong>Coimbra</strong>,<br />

CECH, 2008).<br />

5. Ália Rodrigues, Ana Elias Pinheiro, Ândrea Seiça, Carlos<br />

<strong>de</strong> Jesus, José Ribeiro Ferreira: Plutarco. Obras Morais<br />

– No Banquete II – Livros V‑IX. Tradução do grego,<br />

introdução e notas. Coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> José Ribeiro<br />

Ferreira (<strong>Coimbra</strong>, CECH, 2008).<br />

6. Joaquim Pinheiro: Plutarco. Obras Morais – Da Educação<br />

das Crianças. Tradução do grego, introdução e notas<br />

(<strong>Coimbra</strong>, CECH, 2008).<br />

7. Ana Elias Pinheiro: Xenofonte. Memoráveis. Tradução<br />

do grego, introdução e notas (<strong>Coimbra</strong>, CECH,<br />

2009).


8. Carlos <strong>de</strong> Jesus: Plutarco. Obras Morais – Diálogo<br />

sobre o Amor, Relatos <strong>de</strong> Amor. Tradução do grego,<br />

introdução e notas (<strong>Coimbra</strong>, CECH, 2009).<br />

9. Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira e Ália Rosa Conceição:<br />

Plutarco. <strong>Vidas</strong> <strong>Paralelas</strong> – <strong>Péricles</strong> e <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>.<br />

Tradução do grego, introdução e notas (<strong>Coimbra</strong>,<br />

CECH, 2010).

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