Vidas Paralelas - Péricles e Fábio Máximo - Universidade de Coimbra
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Plutarco<br />
<strong>Vidas</strong> <strong>Paralelas</strong>:<br />
<strong>Péricles</strong> e <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong><br />
Tradução do grego, introdução e notas <strong>de</strong><br />
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> do Porto<br />
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong>
Autor: Plutarco<br />
Título: <strong>Vidas</strong> <strong>Paralelas</strong> - <strong>Péricles</strong> e <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong><br />
Tradução do grego, introdução e notas: Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
e Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
Editor: Centro <strong>de</strong> Estudos Clássicos e Humanísticos<br />
Edição: 1ª/2010<br />
Coor<strong>de</strong>nador Científico do Plano <strong>de</strong> Edição: Maria do Céu Fialho<br />
Conselho editorial: José Ribeiro Ferreira, Maria <strong>de</strong> Fátima Silva,<br />
Francisco <strong>de</strong> Oliveira, Maria do Céu Fialho, Nair Castro Soares<br />
Director técnico da colecção / Investigador responsável pelo projecto<br />
Pl u t a r c o e o s f u n d a m e n t o s d a i d e n t i d a d e e u ro P e i a: Delfim F. Leão<br />
Concepção gráfica e paginação: Elisabete Cação, Nelson Henrique, Rodolfo Lopes<br />
Obra realizada no âmbito das activida<strong>de</strong>s da UI&D<br />
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<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> <strong>Coimbra</strong><br />
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Tel.: 239 859 981 | Fax: 239 836 733<br />
3000-447 <strong>Coimbra</strong><br />
ISBN: 978-989-8281-26-5<br />
ISBN Digital: 978-989-8281-27-2<br />
Depósito Legal: 309395/10<br />
Obra Publicada com o Apoio <strong>de</strong>:<br />
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expressa dos titulares dos direitos. É <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já excepcionada a utilização em circuitos<br />
académicos fechados para apoio a leccionação ou extensão cultural por via <strong>de</strong> e-learning.<br />
Volume integrado no projecto Plutarco e os fundamentos da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> europeia e financiado<br />
pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
Ín d i c e<br />
Introdução Geral 7<br />
Fragmentos: edições e respectivas siglas 20<br />
Vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />
Introdução 21<br />
Tábua cronológica Grécia/Vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> 47<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong> 51<br />
Vida <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong><br />
Introdução 149<br />
Tábua cronológica Roma/Vida <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> 176<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o 179<br />
co M P a ra ç ã o e n t r e <strong>Péricles</strong> e Fá b i o Má x iM o 231<br />
Bibliografia 239<br />
Índices <strong>de</strong> Nomes 249
in t r o d u ç ã o Ge r a l<br />
7<br />
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E, por isso, parece bem aprovar a frase <strong>de</strong> Bias – que<br />
o po<strong>de</strong>r revelará o homem; porque o governante na<br />
socieda<strong>de</strong> está em relação com o semelhante.<br />
Aristóteles, Ética a Nicómaco (1130a 1)<br />
O que têm, na verda<strong>de</strong>, <strong>Péricles</strong> e <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong><br />
em comum? Assim questionou K. Zeigler 1 (1951:<br />
899), editor das <strong>Vidas</strong> <strong>Paralelas</strong> <strong>de</strong> Plutarco. Com<br />
efeito, enquanto que o primeiro (495/90-429 a.C.) era<br />
lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong>mocrático quando Atenas conhecia um tempo<br />
áureo e o imperialismo grego estava no apogeu, <strong>Fábio</strong><br />
<strong>Máximo</strong> (ca. 283?-203 a.C.), um representante da<br />
antiga aristocracia, eleito dictator e cinco vezes cônsul,<br />
numa altura em que Roma enfrentava a sua maior crise<br />
<strong>de</strong> sempre. A influência do político ateniense foi tal que<br />
<strong>de</strong>u nome ao período em que viveu, também <strong>de</strong>signado<br />
<strong>de</strong> século <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> enquanto que o ditador romano<br />
recebeu a alcunha <strong>de</strong> cuntactor, “o contemporizador” pela<br />
táctica <strong>de</strong> batalha campal usada contra os Cartagineses.<br />
1 “Was haben...Perikles und Fabius Maximus… in Wahrheit<br />
miteinan<strong>de</strong>r gemein?”. A mesma questão é alargada a outros pares <strong>de</strong><br />
<strong>Vidas</strong>, como Aristi<strong>de</strong>s-Catão o Antigo e Timoleonte-Émilio Paulo.<br />
Crespo ( 4 2007: 313) partilha do mesmo ponto <strong>de</strong> vista, ao sustentar<br />
que “Plutarco (...) quedó prisionero <strong>de</strong> su propio método.”
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
Assim, perante esta disparida<strong>de</strong> é verosímil concluir<br />
que <strong>Péricles</strong> fica visivelmente engran<strong>de</strong>cido face ao<br />
segundo elemento, não parecendo possível estabelecer<br />
um paralelo, justo.<br />
Observemos, contudo, o objectivo <strong>de</strong>ste método<br />
comparativo das <strong>Vidas</strong> expresso no proémio do opúsculo<br />
plutarquiano A Coragem das Mulheres (243b):<br />
Não é, <strong>de</strong>certo, possível apreen<strong>de</strong>r melhor a similarida<strong>de</strong><br />
e a diferença (...) <strong>de</strong> um outro modo que não seja através<br />
do confronto <strong>de</strong> vidas com vidas, feitos com feitos (...). De<br />
facto, as virtu<strong>de</strong>s adquirem certas diferenças, graças à sua<br />
natureza, como se se tratasse <strong>de</strong> um cromatismo próprio,<br />
e assumem semelhanças por via dos costumes em que se<br />
radicam, do temperamento das pessoas, da sua criação e<br />
modo <strong>de</strong> vida. Por exemplo, Aquiles era corajoso <strong>de</strong> um<br />
modo diferente <strong>de</strong> Ájax 2 .<br />
Apesar <strong>de</strong> esta observação se aplicar ao confronto<br />
entre virtu<strong>de</strong>s masculinas e femininas, também se a<strong>de</strong>qua<br />
ao caso das <strong>Vidas</strong> <strong>Paralelas</strong>, pois as qualida<strong>de</strong>s revelam-se<br />
na comunida<strong>de</strong>, na relação com o semelhante e numa<br />
circunstância concreta. Assim, a acção <strong>de</strong>ve ser avaliada<br />
neste enquadramento, consi<strong>de</strong>rando as variáveis que lhe<br />
são relativas.<br />
No epílogo das <strong>Vidas</strong>, que correspon<strong>de</strong> à<br />
comparação (synkrisis) dos dois heróis, o biógrafo<br />
evi<strong>de</strong>ncia as virtu<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>feitos <strong>de</strong> ambos e faz a mesma<br />
observação<br />
2 Tradução <strong>de</strong> Fialho, Dias, Silva (2001: 15).<br />
8
9<br />
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Por um lado, <strong>Péricles</strong> governou um povo que se encontrava<br />
na maior prosperida<strong>de</strong>, muito gran<strong>de</strong> por si mesmo e no<br />
cume do po<strong>de</strong>r, pelo que podia parecer que se manteve até<br />
ao final seguro e intacto <strong>de</strong>vido ao bem-estar comum e à<br />
força do Estado. As acções <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, por outro lado, que<br />
recebeu a cida<strong>de</strong> nas circunstâncias <strong>de</strong> maior infortúnio<br />
e mais lamentáveis, não pu<strong>de</strong>ram garantir a segurança,<br />
mas soube erguer a cida<strong>de</strong> a partir da <strong>de</strong>sgraça e melhorar<br />
a sua situação (Fab. 28.1).<br />
Assim, do ponto <strong>de</strong> vista militar, enquanto <strong>Péricles</strong><br />
ergueu nove troféus, <strong>de</strong>dicando-se, <strong>de</strong>pois, mais a festas<br />
e reuniões públicas solenes do que a fazer guerra, <strong>Fábio</strong>,<br />
por sua vez, ergueu apenas dois, mas revelou-se homem<br />
<strong>de</strong> firme <strong>de</strong>cisão tendo em conta o número <strong>de</strong> flagelos<br />
que então se abateu sobre os Romanos.<br />
Além do facto histórico, também a própria<br />
estrutura narrativa <strong>de</strong> cada vida é diferente. Na Vida<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, o biógrafo apresenta o percurso completo<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância até à morte, <strong>de</strong>dicando muito<br />
espaço à primeira fase (3-8), on<strong>de</strong> relata as origens da<br />
personagem, a caracterização física e psicológica e a<br />
formação e iniciação na vida pública; num segundo<br />
momento (9-37), a ascensão, apogeu e <strong>de</strong>cadência no<br />
po<strong>de</strong>r e finalmente, na terceira e última parte (38-39),<br />
são <strong>de</strong>scritas as circunstâncias da morte, as exéquias<br />
e o impacto do <strong>de</strong>saparecimento do protagonista na<br />
comunida<strong>de</strong>. Na biografia do general romano, num<br />
capítulo apenas, são apresentados os dados relativos à<br />
filiação, infância e juventu<strong>de</strong>. No capítulo segundo,<br />
a narrativa começa quando <strong>Fábio</strong> tinha já uma ida<strong>de</strong>
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
avançada, em 217 a.C., por altura do <strong>de</strong>sastre da batalha<br />
do Trasimeno, <strong>de</strong>ixando em branco mais <strong>de</strong> meta<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sta vida. Depois <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>rrota, nesse mesmo ano é<br />
eleito dictator – altura em que a Vida atinge o ponto<br />
mais épico –, seguindo-se um relato sumário dos anos<br />
seguintes. Três anos <strong>de</strong>pois, <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> recupera<br />
Tarento (214 a.C.) e nesse ano, terminaram os seus<br />
sucessos militares. Na recta final da biografia, tem lugar<br />
a ascensão <strong>de</strong> Cipião, que expulsará <strong>de</strong>finitivamente os<br />
Cartagineses <strong>de</strong> Itália, pondo termo à Segunda Guerra<br />
Púnica (218-201 a.C.). Assim, enquanto o primeiro<br />
conquista o estado <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong> moral no final da<br />
vida, nos primeiros anos da Guerra do Peloponeso,<br />
<strong>Fábio</strong> conhece-o logo no início da Vida (2), tendo em<br />
conta a sua ida<strong>de</strong>.<br />
O que justifica, afinal, a comparação entre os<br />
dois estadistas? 3 Em primeiro lugar, vários traços <strong>de</strong><br />
carácter os aproximam: o domínio invulgar da oratória,<br />
isenta <strong>de</strong> ornamento (5.1; 1.8); a forma <strong>de</strong> caminhar,<br />
tranquila (5.1; 17.7); o não serem supersticiosos, não se<br />
3 Pietro Vannucci ou Perugino (1446–1524), conhecido pintor<br />
da Renascença italiana, é autor <strong>de</strong> dois frescos (1496-1507) da<br />
Sala <strong>de</strong> Audiência do Colégio <strong>de</strong> Cambio (Perugia) on<strong>de</strong> aparecem<br />
estas duas figuras. No primeiro é representado <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> ao<br />
lado <strong>de</strong> Sócrates e Numa Pompílio, pairando sobre eles a virtu<strong>de</strong><br />
Prudência, enquanto que, no segundo painel, <strong>Péricles</strong> surge entre<br />
Cipião e Cincinato e sobre este grupo aparece a virtu<strong>de</strong> Fortaleza.<br />
Com efeito, dificilmente um historiador ou um artista encontraria<br />
paralelos entre estas duas vidas, pelo que este paralelo não terá<br />
firmado uma tradição. Enquanto que um é mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> fortaleza<br />
moral e política, o outro é o primeiro na prudência. Cf. Crespo<br />
( 4 2007: 313), Guerrini (1991b: 305 sqq).<br />
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<strong>de</strong>ixando, por isso, surpreen<strong>de</strong>r por fenómenos irracionais<br />
(6.1; 2.3); o facto <strong>de</strong>, durante a invasão inimiga, as<br />
proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ambos terem sido poupadas enquanto as<br />
restantes foram <strong>de</strong>struídas (33.3; 7.4).<br />
Do ponto <strong>de</strong> vista político, <strong>de</strong>stacamos a ênfase na<br />
autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um só homem, que no caso <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> durou<br />
quase toda a vida, originando a comparação com o tirano<br />
Pisístrato 4 , tanto pela voz como pela agilida<strong>de</strong> no discurso<br />
(7.1) – estas semelhanças valeram-lhe comentários jocosos<br />
por parte dos cómicos (16.1). Já a ditadura 5 do general<br />
4 Em 560 a. C., Pisístrato (600-527 a. C.), toma o po<strong>de</strong>r pela<br />
força e conserva-o quase ininterruptamente até ao fim da sua vida.<br />
O seu governo, bem como o dos filhos constituiu um período<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> florescimento em Atenas, pois foi nesta altura que se<br />
construíram várias obras públicas que prestigiaram a cida<strong>de</strong>: o<br />
templo <strong>de</strong> Atena, na Acrópole, o altar dos Doze Deuses, na ágora, o<br />
santuário <strong>de</strong> Zeus Eleutério, no su<strong>de</strong>ste da cida<strong>de</strong> e a Fonte das Nove<br />
Bocas, que garantia o abastecimento <strong>de</strong> água. Durante a tirania dos<br />
Pisístratos, a cerâmica ática atingiu o seu apogeu e fomentou-se o<br />
culto <strong>de</strong> Atena e Dioniso através da importância dada às Panateneias<br />
e do aparecimento dos concursos trágicos, respectivamente. Após<br />
a morte <strong>de</strong> Pisístrato, o comportamento dos seus filhos tornou-se<br />
excessivo, pelo que gerou o <strong>de</strong>scontentamento dos Atenienses e a<br />
tirania acabou por ser abolida pelos Alcmeónidas.<br />
5 Magistratura romana à qual se recorria em situações <strong>de</strong> crise<br />
militar e política, atribuída por um magistrado com imperium<br />
(cônsul, pretor ou interrex) previamente autorizado pelo Senado,<br />
tratando-se, por isso, <strong>de</strong> uma nomeação e não <strong>de</strong> uma eleição. Além<br />
<strong>de</strong>ste, também se podia recorrer ao voto popular, mas era invulgar.<br />
Esta magistratura terminava ao fim <strong>de</strong> seis meses (Cícero, As Leis<br />
3.9; Tito Lívio 3.29.7) e durante este período, o ditador <strong>de</strong>tinha o<br />
po<strong>de</strong>r absoluto, tendo a seu cargo o comando unificado do exército<br />
em caso <strong>de</strong> guerra (dictatura rei gerendae), o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> refrear<br />
revoltas (dictatura seditionis sedandae) e <strong>de</strong> garantir a realização <strong>de</strong><br />
eleições, na ausência <strong>de</strong> cônsules (Fab. 9.4), não po<strong>de</strong>ndo alterar a<br />
constituição vigente. Após a sua eleição, o dictator ou magister populi<br />
(“mestre do exército dos cidadãos”) <strong>de</strong>veria também ele próprio
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
romano terminou ao fim <strong>de</strong> seis meses, mas continuou,<br />
na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cônsul (214 e 209 a.C.), a <strong>de</strong>terminar os<br />
<strong>de</strong>stinos do povo romano, controlando directamente <strong>de</strong>cisões<br />
do Senado (17.7), seja quando procurou evitar a <strong>de</strong>rrota<br />
<strong>de</strong> Canas, dissuadindo Paulo Emílio da investida (14.4),<br />
seja quando tentou travar a ascensão <strong>de</strong> Cipião, querendo<br />
convencer Licínio Crasso da incompetência daquele (25.3).<br />
Além disso, os cargos que lhe foram atribuídos entretanto –<br />
princeps senatus (209 e 204 a.C.), o <strong>de</strong> áugure (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 265<br />
a.C.) e pontifex maximus (216 a.C.) – permitiram-lhe<br />
nomear um subordinado, o magister equitum, o chefe <strong>de</strong> cavalaria.<br />
Contudo, como se tratava <strong>de</strong> uma nomeação para resolver uma<br />
questão objectiva, estas magistraturas duravam o menor tempo<br />
possível, havendo mesmo relatos <strong>de</strong> dictatores que abdicaram antes<br />
que completar os seis meses (Tito Lívio 3.29.7; 9.34.12; 23.22.11<br />
e 23.3). Os anais da história da República Romana atestam o<br />
recurso frequente a esta magistratura até ao final do século III<br />
a.C., não sendo conhecido nenhum exemplo ao longo do século<br />
II a.C. Reapareceu <strong>de</strong> forma ostensiva em 81 a.C., com Sula, que<br />
sendo nomeado dictator rei publicae constituendae causae, torna-se<br />
ditador vitalício até 79 a.C., data da sua morte (Apiano, Guerras<br />
Civis 1.3.10) – tendo abdicado, contudo, pouco antes <strong>de</strong> morrer.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, Júlio César, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> cinco consulados (59, 48, 46,<br />
45, 44 a.C.) e <strong>de</strong> três magistraturas na qualida<strong>de</strong> dictator (49, 48,<br />
44 a.C.), converte esta última em perpétua (Apiano, Guerras Civis<br />
1.98.459). É assassinado a 15 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong>sse mesmo ano. Sobre<br />
esta magistratura na República Romana, vi<strong>de</strong> o estudo Lintott<br />
(2003: 109-13). O conceito <strong>de</strong> ditadura romana é, com efeito,<br />
diverso daquele que se vulgarizou entre nós <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do século<br />
XX, com o estabelecimento <strong>de</strong> Estados autoritários e totalitários.<br />
Em 1921, o constitucionalista alemão Carl Schmitt (1888-1985)<br />
estabeleceu a distinção entre “ditadura <strong>de</strong> comissário”, que parte<br />
da concepção <strong>de</strong> magistratura romana exposta em Tito Lívio – e a<br />
“ditadura soberana” que legitima, do ponto <strong>de</strong> vista jurídico e com<br />
fundamento teológico, a or<strong>de</strong>m “nova” ditatorial que é dotada <strong>de</strong><br />
uma constituição própria (La Dictature, Paris, 2000, pp. 23-56,<br />
135-54).<br />
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construir uma auctoritas invulgar. No âmbito militar, há<br />
também um traço que aproxima estes dois políticos: a<br />
táctica <strong>de</strong>fensiva face à invasão espartana e cartaginesa,<br />
respectivamente. <strong>Péricles</strong> optou por não envolver a cida<strong>de</strong><br />
num combate contra sessenta mil hoplitas do Peloponeso<br />
e da Beócia, apesar da indignação do povo (33.5), mas<br />
não evitou a Guerra do Peloponeso por não ter revogado<br />
o <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Mégara (29.1). <strong>Fábio</strong>, por sua vez, resistiu à<br />
invasão cartaginesa, sem atacar, enquanto o inimigo esgotava,<br />
pouco a pouco, os seus recursos (5.3). No caso <strong>de</strong>ste último,<br />
a estratégia manchou o seu estado <strong>de</strong> graça político, pois a<br />
população não via com bons olhos o avanço do inimigo e a<br />
<strong>de</strong>struição das proprieda<strong>de</strong>s dos agricultores face à aparente<br />
passivida<strong>de</strong> do ditador. O traço anti-populista constitui<br />
também uma das características <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (7.3) que <strong>de</strong>ixava<br />
transparecer pelo aspecto fisionómico, ostentando um rosto<br />
austero, um discurso <strong>de</strong> mau tom, embora ágil (5.1), que<br />
se assemelhava ao <strong>de</strong> Pisístrato; a arrogância (39.2) que foi<br />
comentada pelo poeta Íon (5.3), ao ponto <strong>de</strong> a morte dos<br />
seus filhos legítimos, familiares e amigos ser vista como um<br />
castigo (37.5); o carácter aristocrático da sua <strong>de</strong>mocracia<br />
(9.1). O seu par romano, por sua vez, partilhava também<br />
<strong>de</strong>ste mesmo traço (10.3), a julgar pelas ostentações <strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>r durante a ditadura (4.2-3) e pelas observações do<br />
biógrafo (10.3) 6 .<br />
6 A propósito das referências ao povo nas <strong>Vidas</strong> <strong>Paralelas</strong>, vi<strong>de</strong> o<br />
interessante estudo <strong>de</strong> Saïd (2004:10) que reflecte sobre a forma como<br />
Plutarco se refere à psicologia da multidão: “the masses are more often<br />
than not characterized in a very negative way. As opposed to the members<br />
of the elite, the masses are said to be lazy (ἀργός, σκολαστής), ignorant<br />
(ἀμαθεῖς) and uneducated (τοὺς...φορτικοὺς καὶ πένητας)”.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
Esta resistência ao populismo não ofuscava,<br />
contudo, o pragmatismo político <strong>de</strong>stes dois estadistas,<br />
que, em certos momentos, tiraram partido da irreflexão<br />
do povo. <strong>Péricles</strong>, querendo conquistar um po<strong>de</strong>r sólido,<br />
aliou-se ao povo (11.1) e tomou as suas ré<strong>de</strong>as, levando<br />
a cabo medidas políticas a seu favor “imaginando<br />
constantemente na cida<strong>de</strong> um espectáculo para todos ou<br />
um banquete ou uma procissão, e procurando divertila<br />
com prazeres não estranhos às musas” (11.4). Assim,<br />
não só distraía a multidão que, ociosa, “se intrometia<br />
nas reformas políticas”, mas gerava também, junto aos<br />
aliados, o medo da revolta (11.6) 7 .<br />
Do mesmo modo, <strong>Fábio</strong> procura influenciar a<br />
população por meio <strong>de</strong> movimentações <strong>de</strong> aparência.<br />
Em 217 a.C., a sua reforma como dictator começa por<br />
recuperar o sentido religioso no povo. Com efeito,<br />
era forçoso tornar propícios os <strong>de</strong>uses, já que <strong>Fábio</strong> a<br />
todos informou que a <strong>de</strong>rrota se <strong>de</strong>vera ao <strong>de</strong>sprezo<br />
dos generais pelos <strong>de</strong>uses (4.4). Contudo, quando<br />
estes se manifestaram, pouco antes, sob a forma <strong>de</strong><br />
sinais, o próprio <strong>Fábio</strong> tratou <strong>de</strong> os ignorar (2.3). Mais<br />
tar<strong>de</strong>, propôs também ao Senado que se eliminasse os<br />
lamentos femininos, proibindo ajuntamentos públicos<br />
para manifestar as <strong>de</strong>sgraças em comum (17.7), antes<br />
que se evi<strong>de</strong>nciasse a gran<strong>de</strong>za do <strong>de</strong>sastre <strong>de</strong> Canas<br />
com a fraca concorrência às celebrações da <strong>de</strong>usa Ceres<br />
(18.2). Ambos partilhavam também do sentido <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong>za (megaloprepeia) a liberalida<strong>de</strong> com investiam<br />
7 Vi<strong>de</strong> ainda Per. 7.3-5.<br />
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in t r o d u ç ã o Ge ra l<br />
dinheiro nos eventos e obras públicas, algo elogiado por<br />
Aristóteles na Ética a Nicómaco (1122b7-9) 8 . <strong>Péricles</strong>,<br />
contudo, manifestou esta característica <strong>de</strong> forma mais<br />
significativa (14.1) tendo em conta o seu volume <strong>de</strong><br />
investimento em obras públicas (13-14; 30.7); <strong>Fábio</strong>, por<br />
sua vez, querendo recuperar a confiança da população,<br />
promoveu espectáculos musicais e cénicos <strong>de</strong>pois do<br />
<strong>de</strong>sastre do Trasimeno (4.6) e, na celebração da tomada<br />
<strong>de</strong> Tarento (22.8), erigiu uma estátua equestre em bronze<br />
<strong>de</strong> si mesmo, visto como algo “muito extravagante”<br />
(atopoteros).<br />
Além <strong>de</strong>stas semelhanças evi<strong>de</strong>nciadas pelo<br />
biógrafo, há que <strong>de</strong>stacar aquela que é mais importante,<br />
pois nela consiste o programa moral <strong>de</strong>ste par <strong>de</strong> <strong>Vidas</strong>,<br />
Plutarco refere-a no proémio 9 da Vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (2.5):<br />
Eram estes homens semelhantes em diversas qualida<strong>de</strong>s,<br />
principalmente na doçura (praotes), no sentido <strong>de</strong><br />
justiça (dikaiosyne) e na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> controlar a<br />
impon<strong>de</strong>ração (agnomosyne) dos cidadãos e dos seus<br />
colegas, tornando-se muito úteis às suas pátrias.<br />
8 Na Ética a Nicómano, Aristóteles elogia também este traço: “O<br />
magnificente gastará com coisas <strong>de</strong>ste género com nobreza <strong>de</strong> carácter.<br />
Com efeito, a magnificência é um traço comum a todas as excelências.<br />
Além do mais, fá-lo com prazer e profusamente, pois o contar tostão<br />
por tostão é mesquinhez.” Tradução <strong>de</strong> Caeiro ( 3 2009: 99).<br />
9 Os proémios, à semelhança das synkriseis, eram exercícios <strong>de</strong><br />
retórica. De acordo com essa tradição tinham como objectivos:<br />
cativar o auditório, criar empatia entre este e o orador, <strong>de</strong>spertando<br />
naquele o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r com o discurso apresentado. De modo<br />
a cumprir esse propósito, Plutarco combinava a sua mensagem<br />
com recursos <strong>de</strong> retórica como as chreiai, as gnomai, comparações e<br />
digressões, <strong>de</strong> que este proémio é exemplo.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
Com efeito, tal é mesmo confirmado do ponto <strong>de</strong><br />
vista quantitativo, pois este é o par <strong>de</strong> <strong>Vidas</strong> on<strong>de</strong> o termo<br />
praotes 10 bem como os seus correlatos surgem mais do que em<br />
qualquer outra obra, mais precisamente, <strong>de</strong>zasseis vezes 11 .<br />
A qualida<strong>de</strong> da praotes consta em ambas as caracterizações<br />
directas <strong>de</strong>stas figuras (5.1, 1.5) e no caso <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, surge,<br />
pela primeira vez, quando era ainda uma criança. Em<br />
ambos os estadistas é apresentada como uma tendência da<br />
natureza (physis), mas os seus efeitos ampliam-se na esfera<br />
pública, convertendo-se, por isso, num valor político que<br />
marcará a conduta <strong>de</strong> ambos. A tradução mais próxima<br />
é “doçura” ou “mo<strong>de</strong>ração” e aparece conceptualizada na<br />
Ética a Nicómaco, como a disposição intermédia entre<br />
os extremos, o irascível e a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se irar, o seu<br />
oposto, por <strong>de</strong>feito (1108a 6, 1125b 26). Com efeito,<br />
o “doce” ou “mo<strong>de</strong>rado” <strong>de</strong> carácter (praos) permanece<br />
imperturbável e é arrastado pela emoção (1126a 1). Este<br />
valor surge muitas vezes em oposição à cruelda<strong>de</strong>, violência<br />
ou tirania, expressões <strong>de</strong> excessos, do extremo irascível.<br />
A propósito <strong>de</strong>ste valor, conclui Aristóteles na<br />
mesma obra:<br />
Difícil <strong>de</strong> distinguir é também até que ponto alguém se<br />
irrita correctamente e para lá do qual está a errar. (...)<br />
10 Sobre a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>ste termo e seu sentido ético, vi<strong>de</strong> o<br />
conhecido estudo <strong>de</strong> De Romilly (1979).<br />
11 Stadter (1975: 82 n.18). Sobre o conceito <strong>de</strong> praotes nas<br />
<strong>Vidas</strong> <strong>de</strong> Plutarco, vi<strong>de</strong> o texto <strong>de</strong> Martin Jr. (1960). Este valor<br />
<strong>de</strong> “doçura” po<strong>de</strong> ser expresso em grego pelo termo praotes, por<br />
epieikeia, “indulgência” ou por philanthropia, “humanida<strong>de</strong>”.<br />
Ribeiro Ferreira (2008b) 112; i<strong>de</strong>m (2008a).<br />
16
17<br />
in t r o d u ç ã o Ge ra l<br />
Uma tal avaliação só po<strong>de</strong> ser feita pela percepção que<br />
se tem das circunstâncias particulares que <strong>de</strong> cada vez se<br />
constituem 12 . (1126a 34, 1126b 4)<br />
Estas “circunstâncias particulares” proporcionamse,<br />
com efeito, diversas vezes ao longo das duas <strong>Vidas</strong>.<br />
Esta tendência da physis manifesta-se em <strong>Péricles</strong> na<br />
maneira <strong>de</strong> andar (5.1), no facto <strong>de</strong> não ter prejudicado<br />
Címon (10.6), no trato humano (5.2) e em diversas<br />
<strong>de</strong>cisões políticas (30.3; 32.3; 39.1). No caso do par<br />
romano, tal virtu<strong>de</strong> é conhecida em <strong>Fábio</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
infância, na forma <strong>de</strong> caminhar (17.7) no convívio<br />
(1.5; 17.7), em campanha militar (7.8; 20), na cena<br />
política (18.4) e ainda na morte dos filhos que suporta<br />
com tranquilida<strong>de</strong> (24.6), tal como <strong>Péricles</strong> (36.8).<br />
A verda<strong>de</strong> é que ambos suportaram, com<br />
paciência e em silêncio, as maledicências da população<br />
(Per. 5.2, 33.6-7; Fab. 5.3, 7.7, 10.2-3), dos seus pares<br />
(Per. 34.1; Fab. 5.5; 7.5), dos cómicos, no caso <strong>de</strong><br />
<strong>Péricles</strong> (33.7); aconselharam prudência aos colegas<br />
(Per. 18.2; Fab. 2.4, 10.7, 14.4, 25.3) e, neste ponto,<br />
<strong>de</strong>stacamos a célebre façanha <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, quando<br />
enfrenta o exército <strong>de</strong> Aníbal para salvar Minúcio<br />
Rufo, o mesmo que, pouco antes, o tinha humilhado<br />
publicamente (12.5; 29.2).<br />
O facto <strong>de</strong> permanecerem firmes nas suas<br />
resoluções converte-os em valores seguros e credíveis<br />
para a população. Com efeito, enquanto <strong>Péricles</strong> é<br />
12 Tradução <strong>de</strong> Caeiro ( 3 2009: 109-10).
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
comparado a um médico – símile recorrente em<br />
Platão 13 –, que cura as doenças da alma, acalma e<br />
encoraja o povo (Per. 37.1); o par romano é, por sua<br />
vez, comparado a um “templo” e a um “altar”, junto<br />
do qual a multidão se refugia em tempo <strong>de</strong> crise.<br />
Em suma, Plutarco apresenta-nos uma<br />
diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “circunstâncias”, perante as quais<br />
o ouvinte <strong>de</strong>stas <strong>Vidas</strong> pô<strong>de</strong> fazer justa avaliação e<br />
“distinguir” os limites <strong>de</strong> cada acção, “<strong>de</strong> forma a<br />
servir <strong>de</strong> exemplo [apo<strong>de</strong>ixis] aos filósofos” (Fab.<br />
10.2).<br />
Com efeito, como consta no proémio <strong>de</strong>stas<br />
<strong>Vidas</strong> (Per. 1.2), é intrínseco ao espírito o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
apren<strong>de</strong>r e observar, pelo que se <strong>de</strong>ve buscar o melhor<br />
para contemplar, ou seja, a prática do bem 14 . A<br />
contemplação do homem-mo<strong>de</strong>lo em acção conduz<br />
necessariamente à imitação, e à prática <strong>de</strong> actos<br />
virtuosos <strong>de</strong> forma a conquistar as mesmas benesses da<br />
fortuna. Com efeito, o Bem (kalon) cria um estímulo<br />
activo 15 para aquele que contempla a sua expressão,<br />
a acção nobre, que serve <strong>de</strong> exemplum, neste caso,<br />
13 Górgias 456b, Fedro 270b-d, República 425a-426b.<br />
14 Observação semelhante é proferida por T. Carlyle (1795-<br />
1881), historiador e filósofo escocês, na conferência On Heroes, da<br />
qual extraímos um excerto: “Não po<strong>de</strong>mos olhar para um homem<br />
superior, ainda que o consi<strong>de</strong>remos imperfeitamente, sem ganhar<br />
algum benefício com tal contemplação. Um homem superior é<br />
sempre fonte <strong>de</strong> viva luz, junto da qual é aprazível estar. Luz que<br />
ainda nos ilumina (...) fonte <strong>de</strong> cuja radiação todas as almas se<br />
iluminam e aquecem pelo que junto <strong>de</strong>la se sentem bem.” Traduzido<br />
por Ribeiro ( 2 2002: 15-6).<br />
15 Cf. Platão, O Banquete 208-212 e Fedro 250 sqq.<br />
18
19<br />
in t r o d u ç ã o Ge ra l<br />
ao seu público, a elite aristocrática grega e romana.<br />
Como concluiu Plutarco no proémio <strong>de</strong>stas <strong>Vidas</strong>, é<br />
que é possível, a partir <strong>de</strong>ste relato, avaliar se apontamos<br />
na direcção correcta (2.5).
Fr a G m e n t o s : ed i ç õ e s e re s p e c t i va s si G l a s<br />
an a c r e o n t e<br />
Page: D. L. Page (1962), Po e t a e M e l i c i Gra e c i, Oxford.<br />
an t Í s t e n e s<br />
Dittmar: H. Dittmar (1912), aeschines V o n sP h e t t o s, Berlin.<br />
an t Í s t e n e s so c r á t i c o<br />
Walz: C. Walz (1835), rhetores Gra e c i, vol. II, Stuttgart.<br />
ar i s t ó t e l e s<br />
Rose: V. Rose (1886), ar i s t o t e l i s Qu i Ferebantur li b r o r u M<br />
Fr a G M e n t a , Leipzig.<br />
ar q u Í l o c o<br />
Diehl: E. Diehl ( 3 1964), an t h o l o G i a ly r i c a Gra e c a, Lipsiae.<br />
ca t ã o<br />
Peter: H. Peter ( 2 1914), hi s t o r i c o r u M ro M a n o r u M reliQuiae (vol.<br />
1), Lipsiae.<br />
co m e d i ó G r a F o s G r e G o s<br />
K-A: R. Kassel e C. Austin (1983-1995), Po e t a e co M i c i Gra e c i,<br />
Berlin.<br />
eurÍpi<strong>de</strong>s<br />
Nauck 2 : A. Nauck ( 2 1889), tra G i c o r u M Gra e c o r u M Fr a G M e n t a ,<br />
Leipzig.<br />
He r a c l i d e s pô n t i c o<br />
Wehrli: F. Wehrli (1969), die sc h u l e d e s ar i s t o t e l e s, te x t e u n d<br />
Ko M M e n t a r, vol. III heraKlei<strong>de</strong>s Po n t i K o s, Basel.<br />
lo G ó G r a F o s e H i s t o r i a d o r e s<br />
FGrHist: F. Jacoby (1961-1968), die Fr a G M e n t e d e r Gr i e c h i s c h e n<br />
historiKer, Lei<strong>de</strong>n.<br />
te o F r a s t o d e Ér e s o<br />
Fortenbaugh: W. W. Fortenbaugh et alii (1992), th e o P h ra s t u s<br />
o F er e s u s (so u r c e s F o r h i s liFe, WritinGs, th o u G h y & in F l u e n c e),<br />
Lei<strong>de</strong>n/New York/Köln.<br />
20
Vi d a d e <strong>Péricles</strong>
In t r o d u ç ã o<br />
23<br />
in t r o d u ç ã o<br />
Ao escrever as <strong>Vidas</strong> <strong>Paralelas</strong>, Plutarco tinha um<br />
objectivo pedagógico muito concreto que, como não<br />
po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, influenciou o método em que se<br />
baseia para caracterizar os seus protagonistas: apresentar<br />
o homem-mo<strong>de</strong>lo em acção, pois é essa a melhor<br />
forma <strong>de</strong> se avaliar o seu carácter – virtu<strong>de</strong>s e vícios. Só<br />
<strong>de</strong>ste modo sentiremos a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> imitar as suas<br />
qualida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> evitar os mesmos erros e <strong>de</strong>feitos (Emílio<br />
Paulo 1, Demétrio 1. 1 – 6).<br />
Assim, logo no proémio da Vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (Per.<br />
2. 5), Plutarco esboça o perfil do estadista, salientando<br />
as características que este possui em comum com o seu<br />
par – <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> – mo<strong>de</strong>ração, justiça e autocontrolo<br />
– e que vão ser das mais exploradas e enfatizadas ao<br />
longo da biografia:<br />
Pensámos, por isso, persistir na <strong>de</strong>scrição das vidas e<br />
compusemos este décimo livro, que engloba a vida <strong>de</strong><br />
<strong>Péricles</strong> e a <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, que <strong>de</strong>senvolveu uma<br />
longa luta contra Aníbal. Eram estes homens semelhantes<br />
em diversas qualida<strong>de</strong>s, principalmente na mo<strong>de</strong>ração,<br />
no sentido <strong>de</strong> justiça e na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> controlar<br />
a impon<strong>de</strong>ração dos seus concidadãos e dos colegas,<br />
tornando-se muito úteis às suas pátrias.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
Seguindo um esquema tradicional, após o<br />
proémio (Per. 3. 1-3), Plutarco começa por i<strong>de</strong>ntificar<br />
a “genealogia” <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>: era membro da tribo <strong>de</strong><br />
Acamante 1 e do burgo <strong>de</strong> Colarges 2 , teve por pai<br />
Xantipo 3 , vencedor dos generais persas em Mícale, e sua<br />
mãe – Agariste – era neta <strong>de</strong> Clístenes 4 (Per. 3. 1-3).<br />
Ao nascimento <strong>de</strong> tão ilustre figura, prece<strong>de</strong>-o o<br />
sonho <strong>de</strong> Agariste (Per. 3. 3-4), que assemelha <strong>Péricles</strong> a<br />
um leão 5 . O elemento onírico tem origem mitológica e é<br />
tradicional na literatura grega (especialmente nos relatos<br />
historiográficos e biográficos), quando se trata <strong>de</strong> prever<br />
o nascimento <strong>de</strong> um herói, do fundador <strong>de</strong> uma dinastia<br />
ou <strong>de</strong> um monarca po<strong>de</strong>roso. Po<strong>de</strong>mos salientar, <strong>de</strong>ntre<br />
muitos, o sonho que anuncia o nascimento <strong>de</strong> Ciro<br />
(Heródoto 1. 107-108) e o oráculo que <strong>de</strong>saconselha o<br />
nascimento <strong>de</strong> Édipo (Sófocles, Rei Édipo 1175 sq.).<br />
1 Acamante é o epónimo <strong>de</strong>sta tribo. Era filho <strong>de</strong> Teseu e Fedra<br />
e, embora não figure na epopeia homérica, lendas posteriores<br />
referem o papel importante que teve, com o seu irmão Demofonte,<br />
na tomada <strong>de</strong> Tróia. Para conhecer melhor Acamante, consulte-se<br />
Grimal (1992: s. v.).<br />
2 O <strong>de</strong>mo <strong>de</strong> Colarges estava situado no extremo norte da Ática,<br />
próximo da encosta nor<strong>de</strong>ste do monte Egáleo.<br />
3 Filho <strong>de</strong> Árifron, tornou-se membro da família dos Alcmeónidas<br />
pelo casamento com Agariste pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 500 a.C.<br />
4 Clístenes era um dos Alcmeónidas, aos quais se atribui<br />
a expulsão do tirano Hípias em 510 a.C., e foi responsável por<br />
importantes reformas que ditarão a criação da <strong>de</strong>mocracia.<br />
Talvez o breve elogio <strong>de</strong> Clístenes, enquanto opositor da<br />
tirania e impulsionador da <strong>de</strong>mocracia, pretenda sugerir uma<br />
certa hereditarieda<strong>de</strong> na <strong>de</strong>dicação à causa do povo, como meio<br />
<strong>de</strong> esbater as acusações <strong>de</strong> exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r monocrático feitas<br />
contra <strong>Péricles</strong>.<br />
5 Cf. Heródoto 6. 131.<br />
24
25<br />
in t r o d u ç ã o<br />
Dadas estas informações, o nosso biógrafo passa ao<br />
nascimento da criança. É um momento importante da<br />
narrativa, pois embora se saliente que o aspecto geral do<br />
novo ser era perfeito e sem censura 6 , também se apresenta<br />
uma característica física que o vai acompanhar pela vida<br />
fora: a <strong>de</strong>formida<strong>de</strong> da cabeça, que viria a ser referida vezes<br />
sem conta pelos cómicos 7 , mas que segundo Plutarco, os<br />
escultores procuravam disfarçar, já que o representavam<br />
sempre com um elmo. Essa marca <strong>de</strong> nascença e o sonho<br />
que Agariste tem po<strong>de</strong>m ser vistos como indiciadores dos<br />
principais traços da personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> 8 : quanto à<br />
cabeça – <strong>de</strong>masiado gran<strong>de</strong> – equivale talvez à parte do<br />
corpo on<strong>de</strong>, por excelência, resi<strong>de</strong>m uma inteligência e<br />
uma perspicácia inusitadas; o sonho, que i<strong>de</strong>ntifica <strong>Péricles</strong><br />
com o rei das selvas, po<strong>de</strong> ser interpretado como presságio<br />
da li<strong>de</strong>rança que o recém-nascido viria a exercer em Atenas<br />
na ida<strong>de</strong> adulta, bem como da sua coragem e capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> chefia.<br />
É, porém, óbvio que o homem é resultado não só<br />
da sua própria natureza, mas também fruto da sua vivência<br />
6 Este tipo <strong>de</strong> avaliação é muito helénica, pois segue o conhecido<br />
critério do kalos kagathos, segundo o qual importava que tudo<br />
e todos fossem belos – em termos físicos – e bons – em termos<br />
morais.<br />
7 Cf. Per. 3. 4, 3. 6, 13. 9. É importante, porém, notar que<br />
a insistência dos cómicos na <strong>de</strong>selegância física <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> acaba<br />
por ser uma forma caricaturada <strong>de</strong> reconhecer a sua inteligência<br />
superior.<br />
8 Aliás, a análise das qualida<strong>de</strong>s do protagonista, levada a cabo<br />
na primeira parte <strong>de</strong> cada Vida, relaciona-se muitas vezes com a<br />
sua vocação pública, isto é, muitos <strong>de</strong>les apresentam uma forte<br />
predisposição para um <strong>de</strong>terminado estilo <strong>de</strong> actuação política.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
em socieda<strong>de</strong> e, consequentemente, da aprendizagem que<br />
nela faz. Por isso mesmo, a etapa seguinte da caracterização<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> passa pela referência à sua formação cultural e<br />
respectivos mestres.<br />
Importa, antes <strong>de</strong> avançarmos, reflectir um pouco<br />
sobre o ensino nos inícios do século V a.C. Nesta altura,<br />
vigorava a educação que Aristófanes (Nuvens 961 sq.)<br />
chamava <strong>de</strong> antiga – arche pai<strong>de</strong>ia – e que consistia<br />
essencialmente na aprendizagem das letras (com base<br />
nos poetas do passado) e dos números, cujo ensino era<br />
ministrado pelo gramatistes, na da música (pelo kitaristes)<br />
e na exercitação física (pelo paidotribes). Kagan (1990:<br />
20-21) faz-nos uma caracterização bastante clara da<br />
educação na Atenas <strong>de</strong>sse tempo:<br />
The traditional education of Athenian youth was<br />
practical and ethical rather than intellectual. Physical<br />
training prepared the boys for the athletic contests that<br />
were a regular part of religious festivals in Athens and<br />
of Pan-Hellenic competitions. (…) Musical education<br />
taught them to sing and play the lyre and an oboelike<br />
instrument called the aulos, but most of all to learn the<br />
traditional body of poetry, chiefly the epics of Homer.<br />
Segundo Marrou (1948: 81), o próprio <strong>Péricles</strong><br />
teria recebido esse tipo <strong>de</strong> educação:<br />
Ainsi les Athéniens nés dans les années 490 (ils se sont<br />
appelés Périclès, Sophocle, Phidias...), qui, dans tous les<br />
domaines: la politique, les lettres, les arts, portèrent la<br />
culture classique à un si haut <strong>de</strong>gré <strong>de</strong> maturité, n’avaient<br />
26
27<br />
in t r o d u ç ã o<br />
encore reçu que cette éducation très élémentaire qui, au<br />
point <strong>de</strong> vue <strong>de</strong> l’instruction, ne s’élevait guère plus haut<br />
que notre enseignement primaire actuel.<br />
Segundo no-lo relata Plutarco, <strong>Péricles</strong> teve como<br />
mestre na área da música Dámon (Per. 4. 1-4) 9 , um dos<br />
mais antigos e importantes cultores <strong>de</strong>sta arte (muito<br />
admirado por Sócrates e Platão). Consta que procurava<br />
ocultar a sua simpatia pela tirania (mas terá acabado por ser<br />
vítima do ostracismo por causa <strong>de</strong>sta sua tendência) – o<br />
que <strong>de</strong> imediato nos faz reflectir sobre os possíveis efeitos<br />
<strong>de</strong>ste convívio sobre o governo do filho <strong>de</strong> Xantipo 10 , que é<br />
invocado por Tucídi<strong>de</strong>s como o “governo do primeiro dos<br />
cidadãos” (2. 65. 9) e comparado, pelos cómicos, a uma<br />
tirania (Per. 16. 1 11 ). Veremos adiante que o próprio <strong>Péricles</strong><br />
parecia temer a sua sorte por ser parecido com Pisístrato.<br />
Mas, <strong>de</strong>pois da formação básica, os jovens podiam<br />
(e <strong>de</strong>viam) aproximar-se <strong>de</strong> indivíduos que lhes pu<strong>de</strong>ssem<br />
ensinar outros assuntos mais elevados. Assim, dois outros<br />
9 O biógrafo apresenta igualmente outra versão, que atribui a<br />
Aristóteles (fr. 401 Rose): <strong>de</strong> acordo com o Estagirita, o professor<br />
seria Pitocli<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Ceos, do qual apenas se sabe que foi pitagórico<br />
e músico. No entanto, esta informação baseia-se em Platão<br />
(Protágoras 316e, escólio a Alcibía<strong>de</strong>s 118c) e não em Aristóteles,<br />
o que po<strong>de</strong> significar ou que Plutarco confundiu as fontes, ou que<br />
esta referência faz parte <strong>de</strong> uma das muitas obras perdidas.<br />
10 Plutarco (Per. 4. 4) cita, inclusive, um passo <strong>de</strong> Platão Cómico<br />
(fr. 207 K.-A.) que sugere essa influência.<br />
11 Para os cómicos, a supremacia <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> – que era quem na<br />
realida<strong>de</strong> governava sob a aparência <strong>de</strong> respeitar a vonta<strong>de</strong> da turba<br />
– é prejudicial para a <strong>de</strong>mocracia. Já Tucídi<strong>de</strong>s parece vê-la como<br />
um bem, pois, como consi<strong>de</strong>ra o povo inconstante, se não fosse o<br />
pulso forte <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, o caos seria total.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
nomes se <strong>de</strong>stacam enquanto seus mestres, ambos<br />
filósofos 12 : Zenão <strong>de</strong> Eleia (Per. 4. 4) 13 e Anaxágoras<br />
<strong>de</strong> Clazómenas 14 (Per. 4. 5 – 6. 5). Ao primeiro, parece<br />
que po<strong>de</strong>remos atribuir algum contributo para o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento da capacida<strong>de</strong> oratória <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />
Quando a ele se refere, Plutarco diz que o seu método<br />
era discutir com toda a gente, empregar os argumentos<br />
mais subtis e levar os adversários a não saberem que<br />
respon<strong>de</strong>r-lhe (Per. 4. 5). Deste passo, facilmente nos<br />
recordamos num dos capítulos seguintes (Per. 8. 5):<br />
Quando, certa vez, Arquidamo, rei <strong>de</strong> Esparta, lhe<br />
perguntou se era ele ou <strong>Péricles</strong> quem combatia melhor,<br />
[Tucídi<strong>de</strong>s, o filho <strong>de</strong> Melésias 15 ] disse: “Quando eu o<br />
<strong>de</strong>rrubo em combate, ele nega ter caído e leva a melhor,<br />
pois altera a opinião <strong>de</strong> quem assiste.”<br />
Esta resposta, <strong>de</strong> facto, não po<strong>de</strong>ria caracterizar<br />
melhor a eloquência do filho <strong>de</strong> Xantipo, cuja<br />
12 Um bom e verda<strong>de</strong>iro político <strong>de</strong>ve, na visão platónica, fazer<br />
acima <strong>de</strong> tudo um estudo rigorosíssimo sobre a virtu<strong>de</strong> (i.e. o Bem)<br />
– logo, <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>dicar-se à filosofia –, pois o seu objectivo é fazer dos<br />
seus concidadãos pessoas melhores, que respeitem a lei.<br />
13 Apenas Plutarco apresenta <strong>Péricles</strong> como discípulo <strong>de</strong> Zenão<br />
(ca. 490 – 445 a.C.). Vi<strong>de</strong> Guthrie (1969: 80 sq.).<br />
14 Anaxágoras <strong>de</strong> Clazómenas viveu no séc. V a.C. e terá<br />
chegado a Atenas em 480. Destacou-se pelo seu interesse pelas<br />
ciências naturais, nomeadamente pela origem do cosmos e ainda<br />
pela negação da religião politeísta e antropomórfica que então<br />
vigorava. Foi ele quem introduziu o conceito <strong>de</strong> noos como força<br />
que rege o cosmos. Vi<strong>de</strong> Guthrie (1969: 266 sq.).<br />
15 Note-se que o Tucídi<strong>de</strong>s aqui em causa é o opositor político<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e não o famoso historiador.<br />
28
29<br />
in t r o d u ç ã o<br />
extraordinária capacida<strong>de</strong> permitia adaptar os próprios<br />
acontecimentos aos seus interesses. Era assim a excelência<br />
oratória que os sofistas tanto <strong>de</strong>fendiam e que Platão<br />
tão acerrimamente criticava: ser capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r ou<br />
criticar o mesmo ponto <strong>de</strong> vista, <strong>de</strong> acordo com as<br />
conveniências do momento.<br />
Mas será a Anaxágoras que <strong>Péricles</strong> mais terá<br />
ficado a <strong>de</strong>ver – pelo menos segundo Plutarco (e mesmo<br />
Platão 16 ) – em termos <strong>de</strong> formação pessoal. Dele “herda”<br />
e com ele aperfeiçoa a maioria – se não a totalida<strong>de</strong> –<br />
das suas qualida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a elevação e nobreza <strong>de</strong><br />
sentimentos, à gran<strong>de</strong>za da alma (phronema), à majesta<strong>de</strong><br />
(onkos) e à dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conduta (axioma).<br />
E essas qualida<strong>de</strong>s morais que <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>senvolveu<br />
com Anaxágoras manifestam-se exteriormente no<br />
discurso do estadista e na sua própria postura. Na<br />
verda<strong>de</strong>, um bom orador <strong>de</strong>veria possuir qualida<strong>de</strong>s a<br />
vários níveis: internas – como a inteligência e o carácter<br />
– e externas, como a pose, a teatralida<strong>de</strong> e o tom <strong>de</strong> voz.<br />
Possuí-las na justa medida é atingir a perfeição, da qual<br />
<strong>Péricles</strong> é paradigma (Per. 5. 1).<br />
Este é o último capítulo da primeira parte do<br />
relato biográfico <strong>de</strong>dicada à fase anterior ao ingresso<br />
na vida pública activa. Nele, como bem po<strong>de</strong>mos<br />
<strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r pela transcrição feita, o biógrafo salienta<br />
algumas características do discurso <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e <strong>de</strong>screve<br />
também a mo<strong>de</strong>ração que se manifesta em toda a sua<br />
maneira <strong>de</strong> ser. Quanto à eloquência, convém salientar<br />
16 Respectivamente Per. 4. 6 e Fedro 270a.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
que será um ponto novamente abordado alguns capítulos<br />
mais adiante. De facto, uma das principais marcas do<br />
estilo biográfico <strong>de</strong> Plutarco é a re<strong>de</strong>finição constante e<br />
progressiva dos traços <strong>de</strong> carácter das suas personagens.<br />
É assim que ele individualiza, que torna mais singulares,<br />
as características que preten<strong>de</strong> realçar.<br />
Sobre o discurso, diz-se que era “elevado e isento<br />
<strong>de</strong> vulgarida<strong>de</strong>s populares e <strong>de</strong> mau tom” e que a sua<br />
voz era imperturbável. Daqui po<strong>de</strong>mos inferir dois<br />
traços fundamentais da personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> – que<br />
serão mencionados e sugeridos várias vezes ao longo da<br />
biografia, ainda que em outros contextos: a sua mo<strong>de</strong>ração<br />
e o seu auto-domínio. Também a inflexibilida<strong>de</strong> do<br />
olhar, a tranquilida<strong>de</strong> do andar, a modéstia no vestir – no<br />
fundo, a dignida<strong>de</strong> do porte e mesmo da linguagem –<br />
<strong>de</strong>monstram essas mesmas características e a serieda<strong>de</strong> do<br />
nosso estadista.<br />
Com Anaxágoras, <strong>Péricles</strong> apren<strong>de</strong>u ainda a não<br />
ser supersticioso 17 . Segundo Plutarco, isso aconteceu<br />
porque a posse <strong>de</strong> conhecimentos científicos o levou à<br />
melhor compreensão e conhecimento dos fenómenos<br />
naturais 18 , o que não permite aceitar qualquer justificação<br />
sobrenatural para os acontecimentos. Esta característica<br />
17 Em Per. 6. 1, salienta-se a importância da filosofia para a<br />
formação do indivíduo. Lembremo-nos <strong>de</strong> que, já Platão o dizia,<br />
foi o estudo da filosofia – condição sine qua non para um bom<br />
<strong>de</strong>sempenho político – que marcou a diferença entre <strong>Péricles</strong> e os<br />
outros políticos mais distintos do seu tempo.<br />
18 Em Caracteres (cap. 16), Teofrasto <strong>de</strong>screve a figura do<br />
supersticioso e <strong>de</strong>fine superstição como sendo simplesmente o temor<br />
do sobrenatural.<br />
30
31<br />
in t r o d u ç ã o<br />
é exemplificada em Per. 35. 2, quando, no momento da<br />
partida para Epidauro, tem lugar um eclipse do sol, que<br />
quase paralisa todos <strong>de</strong> pavor. Verificando o medo do<br />
piloto, <strong>Péricles</strong> fá-lo compreen<strong>de</strong>r que nada há a temer,<br />
que se trata <strong>de</strong> um fenómeno inofensivo, tal como o é a<br />
escuridão provocada pelo cobrir do rosto com um manto.<br />
É assim que consegue fazer com que a armada parta.<br />
No entanto, no final <strong>de</strong>sta biografia, em Per. 38.<br />
2, quando Plutarco nos informa da doença que viria<br />
a vitimar o estadista, invoca Teofrasto: ao que parece,<br />
<strong>Péricles</strong> estaria <strong>de</strong> tal modo <strong>de</strong>bilitado que até aceitava<br />
recorrer a amuletos, comportamento tipicamente<br />
feminino e que <strong>de</strong>monstra superstição 19 . Segundo este<br />
peripatético, a situação apenas mostra que a dor, o<br />
sofrimento e a vivência <strong>de</strong> momentos difíceis fazem com<br />
que uma pessoa altere o seu comportamento. Mas, se <strong>de</strong><br />
facto isto aconteceu, foi um dos raríssimos momentos<br />
em que a mo<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> não conseguiu resistir<br />
aos infortúnios do <strong>de</strong>stino por efeito do acumular <strong>de</strong><br />
situações penosas na fase final da sua vida (recor<strong>de</strong>mos<br />
a perda dos filhos legítimos, <strong>de</strong> outros familiares e<br />
amigos em consequência da peste e, agora, o seu próprio<br />
contágio). Nota-se, pois, uma certa humanização <strong>de</strong><br />
<strong>Péricles</strong> – que, <strong>de</strong> algum modo, vacila no seu habitual<br />
equilíbrio. O que importa é que ele se esforça por se<br />
manter inalterável mesmo nas situações <strong>de</strong> maior<br />
adversida<strong>de</strong>.<br />
19 Sobre a <strong>de</strong>batida questão da alteração <strong>de</strong> carácter <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />
e a posição <strong>de</strong> Plutarco sobre a matéria, leiam-se Gill (1983: 469-<br />
481); Swain (1989: 62-68); Pérez Jiménez (1994: 331-340).
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
Mas a sobrieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> nem sempre era<br />
bem interpretada. É o que nos diz Plutarco com base<br />
em Íon 20 , que opõe à <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e afabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Címon<br />
o <strong>de</strong>sprezo pelos outros, o orgulho e a arrogância <strong>de</strong><br />
<strong>Péricles</strong> (Per. 5. 3).<br />
Para <strong>de</strong>sfazer essa visão negativa – com a<br />
qual Plutarco claramente não concorda – recorre<br />
ao testemunho <strong>de</strong> Zenão, que explica que há quem<br />
confunda a majesta<strong>de</strong> (semnotes) <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> com<br />
arrogância e orgulho e apresenta o “atacado” como<br />
mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> conduta a seguir (Per. 5. 3).<br />
A partir do capítulo sétimo, entramos na segunda<br />
parte, <strong>de</strong>dicada à vida política e militar, on<strong>de</strong> finalmente<br />
encontramos o protagonista em acção. Plutarco começa<br />
por nos relatar a iniciação <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> na vida pública 21<br />
20 FGrH 392 F 15. Íon, cuja vida <strong>de</strong>correu entre cerca <strong>de</strong> 490<br />
e 424 a.C., atacava <strong>Péricles</strong> provavelmente como consequência do<br />
tratamento que os Atenienses <strong>de</strong>ram à sua cida<strong>de</strong> natal durante<br />
a Guerra <strong>de</strong> Samos (Per. 28. 7). Vi<strong>de</strong> Lesky (1995: 439-441);<br />
Guthrie (1969: 158).<br />
21 Aquele que preten<strong>de</strong> ingressar na vida pública – quer prefira<br />
a carreira política quer a militar – <strong>de</strong>ve possuir <strong>de</strong>terminadas<br />
características inatas (physis), que po<strong>de</strong>mos agrupar distintamente,<br />
embora <strong>de</strong>vam sempre coexistir para que os indivíduos tenham<br />
bons <strong>de</strong>sempenhos: por um lado, a philotimia (‘<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> honras’),<br />
a philodoxia (‘<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> glória’) e a philonikia (‘<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vitórias’),<br />
entre outras – que servem <strong>de</strong> incentivo à sua acção; por outro, a<br />
praotes (‘doçura’) e a philantropia (‘humanida<strong>de</strong>’).<br />
As do primeiro grupo, se isoladas das do segundo, po<strong>de</strong>m ter<br />
consequências nefastas, já que estão directamente relacionadas<br />
com a ambição <strong>de</strong> honras e po<strong>de</strong>r; logo, quando não são bem<br />
“doseadas”, levam a excessos. Se o homem público apenas possuir<br />
as do segundo grupo, po<strong>de</strong> não se sentir suficientemente motivado<br />
para a acção e não intervir.<br />
32
33<br />
in t r o d u ç ã o<br />
com particular <strong>de</strong>staque para a activida<strong>de</strong> político-militar.<br />
Interessa-se pelos condicionalismos encontrados<br />
pelos estadistas quando ingressam na vida activa, por<br />
consi<strong>de</strong>rar que este é um dos momentos on<strong>de</strong> mais se<br />
evi<strong>de</strong>nciam as suas características morais e políticas.<br />
No caso <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, <strong>de</strong> facto, <strong>de</strong> imediato se<br />
manifesta a sua prudência 22 . Plutarco apresenta-nos um<br />
jovem que teme o povo por possuir muitas semelhanças<br />
com Pisístrato, quer em termos fisionómicos, quer na voz<br />
e na agilida<strong>de</strong> do discurso 23 , com a agravante <strong>de</strong> pertencer<br />
à nobreza e <strong>de</strong> ter amigos po<strong>de</strong>rosos e influentes. Como<br />
sabia que o regime tirânico era profundamente odiado<br />
pelos Atenienses, não podia correr o risco <strong>de</strong> fazer recair<br />
sobre si acusações <strong>de</strong> simpatia por este tipo <strong>de</strong> opção<br />
política e <strong>de</strong>, eventualmente, ser con<strong>de</strong>nado ao ostracismo.<br />
Como tal, preferiu mo<strong>de</strong>rar e adiar a sua intervenção em<br />
termos políticos, mas não se coibiu <strong>de</strong> mostrar, no campo<br />
militar, toda a sua coragem 24 e capacida<strong>de</strong>s.<br />
Só quando o contexto político muda – com a<br />
morte ou exílio <strong>de</strong> alguns dos seus opositores e com a<br />
constante ausência <strong>de</strong> Címon (em expedições militares)<br />
– é que ele altera a estratégia, por consi<strong>de</strong>rar ter chegado<br />
22 Aristóteles (Ética a Nicómaco 1140b 4) <strong>de</strong>fine assim a<br />
prudência (phronesis): resta, pois, que esta é uma capacida<strong>de</strong><br />
verda<strong>de</strong>ira e <strong>de</strong> acordo com a razão para se agir segundo aquilo que é<br />
bom ou mau para o homem.<br />
23 Estes traços são aproveitados com alguma frequência pelos<br />
cómicos que o acusam <strong>de</strong> querer restaurar a tirania em Atenas (Per.<br />
16. 1).<br />
24 Sobre esta virtu<strong>de</strong> – andreia – vi<strong>de</strong> Ética a Nicómaco 1115a<br />
6-1116a 10.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
o momento oportuno (Per. 7. 3). Então, alia-se ao povo<br />
(embora a sua natureza fosse pouco popular – Per. 7.<br />
4) para tentar esbater a suspeita <strong>de</strong> apreço pela tirania e<br />
para vencer o seu principal adversário, Címon.<br />
A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>dicar à política faz com que<br />
renuncie à vida social, por enten<strong>de</strong>r que esse tipo <strong>de</strong><br />
exposição não se coaduna com a austerida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve<br />
caracterizar um verda<strong>de</strong>iro político e que po<strong>de</strong> mesmo<br />
comprometer o respeito que o povo lhe tem (Per. 7.<br />
5). Isolando-se assim, pretendia conservar – no dizer<br />
<strong>de</strong> Plutarco (Per. 7. 6) – a admiração que se tem pela<br />
virtu<strong>de</strong> daqueles cujos feitos são <strong>de</strong> renome, mas com os<br />
quais não privamos no dia-a-dia. Penso que este é um<br />
critério válido: todos sabemos que a familiarida<strong>de</strong> po<strong>de</strong><br />
levar a situações <strong>de</strong> extremo à-vonta<strong>de</strong> on<strong>de</strong> há maior<br />
probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se cometer um <strong>de</strong>slize que macule a<br />
opinião que os outros fazem <strong>de</strong> alguém. E isso sobretudo<br />
no caso <strong>de</strong> figuras públicas – como os políticos. Ainda nos<br />
nossos dias há a preocupação <strong>de</strong> julgar as capacida<strong>de</strong>s e os<br />
actos políticos com base na vida privada, inclusivamente<br />
<strong>de</strong> atribuir <strong>de</strong>cisões políticas importantes à necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> esbater os comentários sobre “pequenos” tropeços<br />
da vida familiar 25 . Assim, quanto menor o tempo <strong>de</strong><br />
exposição no convívio com as massas – talvez também<br />
<strong>Péricles</strong> o pensasse –, menores seriam as possibilida<strong>de</strong>s<br />
25 Em Per. 31-32, Plutarco menciona uma acusação <strong>de</strong>ssa<br />
natureza: havia quem alegasse que <strong>Péricles</strong> não ce<strong>de</strong>u às exigências<br />
dos Lace<strong>de</strong>mónios para dispersar as atenções das acusações feitas<br />
contra Fídias, Aspásia e Anaxágoras e foi por isso que eclodiu a<br />
Guerra do Peloponeso.<br />
34
35<br />
in t r o d u ç ã o<br />
<strong>de</strong> ser apanhado em falso e <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o respeito que por<br />
ele sentiam (o que é importante sobretudo em início <strong>de</strong><br />
carreira) 26 .<br />
Deste modo, <strong>Péricles</strong> põe ao serviço da <strong>de</strong>mocracia<br />
uma atitu<strong>de</strong> fortemente aristocrática já que se nota uma<br />
certa aversão pelo convívio popular. Mas, por outro<br />
lado, esta atitu<strong>de</strong> em exagero tem os traços do arrogante<br />
que Teofrasto <strong>de</strong>screve no capítulo 24 <strong>de</strong> Caracteres.<br />
Este medo salutar – mas quiçá um pouco<br />
exagerado – fez com que <strong>de</strong>legasse intervenções relativas<br />
a assuntos menores na Assembleia a alguns dos seus<br />
correlegionários, intervindo apenas quando as questões<br />
eram verda<strong>de</strong>iramente importantes. <strong>Péricles</strong>, se vivesse<br />
nos nossos dias, daria um excelente consultor <strong>de</strong> imagem<br />
para os políticos, pois sabia geri-la muitíssimo bem,<br />
analisando correctamente os prós e os contras <strong>de</strong> uma<br />
exposição excessiva, e, mais importante, sabia escolher o<br />
momento oportuno para as suas intervenções.<br />
É no contexto da iniciação política que Plutarco vai<br />
aprofundar, tal como referimos atrás, a caracterização da<br />
eloquência <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> – o que é compreensível, já que esta<br />
foi talvez (em conjunto com a mo<strong>de</strong>ração e perspicácia)<br />
a principal arma utilizada para a sua ascensão. Segundo<br />
o biógrafo, não terá sido difícil atingir um nível elevado<br />
<strong>de</strong> perfeição – e já sabemos que até Platão lhe elogiava<br />
as capacida<strong>de</strong>s oratórias – pois bastou-lhe conciliar as<br />
características inatas <strong>de</strong> orador – estilo e linguagem –<br />
1. 99.<br />
26 Sobre a mesma prática nas monarquias orientais, cf. Heródoto
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
com a elevação <strong>de</strong> sentimentos e com os ensinamentos<br />
filosóficos veiculados por Anaxágoras. Os próprios<br />
comediógrafos (Per. 8. 3) reconheciam a qualida<strong>de</strong> do<br />
seu discurso e com ele justificavam a alcunha por que<br />
era conhecido – Olímpico.<br />
Mas a mo<strong>de</strong>ração – <strong>de</strong>certo uma das qualida<strong>de</strong>s<br />
mais marcantes <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> – também se manifestava<br />
neste campo: chegava a invocar o auxílio divino para<br />
que nenhuma palavra menos própria lhe escapasse dos<br />
lábios (Per. 8. 6).<br />
E os traços da personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> – sobretudo<br />
a perspicácia – continuam a extravasar facilmente das suas<br />
acções, nomeadamente da estratégia que elaborou para<br />
alcançar em <strong>de</strong>finitivo o po<strong>de</strong>r: bater o seu principal rival,<br />
colocando-se ao lado do povo. Para tal executa uma série<br />
<strong>de</strong> medidas favoráveis ao <strong>de</strong>mos – como a instauração da<br />
mistoforia. Quando Címon morre, <strong>Péricles</strong> fica isolado<br />
no po<strong>de</strong>r, mas os aristocratas – que não viam com bons<br />
olhos essa situação – escolheram-lhe um adversário:<br />
Tucídi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Melésias. Mais uma vez, para fazer<br />
frente ao rival, ele tenta a todo o custo agradar à população,<br />
recorrendo para isso à organização constante <strong>de</strong> festas e<br />
solenida<strong>de</strong>s (medida utilizada pelos políticos <strong>de</strong> todos os<br />
tempos). Incentivou ainda a formação <strong>de</strong> mercenários e a<br />
colonização como forma <strong>de</strong> se <strong>de</strong>sfazer dos inactivos que<br />
po<strong>de</strong>riam querer prejudicar as suas reformas políticas,<br />
aproveitando para diminuir a miséria e conter possíveis<br />
revoltas dos aliados (Per. 11). O impulso às obras públicas<br />
foi também uma medida pon<strong>de</strong>rada para, além <strong>de</strong><br />
embelezar a cida<strong>de</strong>, ocupar a população.<br />
36
37<br />
in t r o d u ç ã o<br />
Ora o que se verifica é que <strong>Péricles</strong>, quando<br />
buscava a soli<strong>de</strong>z do po<strong>de</strong>r, não se coibiu <strong>de</strong> fazer<br />
as vonta<strong>de</strong>s do povo. Nada <strong>de</strong> estranho – o mesmo<br />
se passa nos nossos dias com os políticos que, em<br />
campanha, a tudo dizem que sim. A diferença<br />
entre <strong>Péricles</strong> e os restantes políticos resi<strong>de</strong> no<br />
comportamento “pós-eleitoral” 27 . É que, <strong>de</strong> um modo<br />
geral, quando um candidato ascen<strong>de</strong> ao po<strong>de</strong>r, esquece<br />
as promessas e age <strong>de</strong> modo a obter a sua satisfação<br />
pessoal, isto é, zela pelos seus interesses, colocando-os<br />
à frente do bem-estar geral. No caso <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, ele<br />
também <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> fazer as vonta<strong>de</strong>s à população 28 . No<br />
entanto, fá-lo porque, na maior parte dos casos, o povo<br />
é uma massa <strong>de</strong> opinião inconstante e precipitada, que<br />
27 O comportamento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> é ainda mais louvável se<br />
tivermos presente o difícil equilíbrio entre <strong>de</strong>magogia e mo<strong>de</strong>ração.<br />
Este é, <strong>de</strong> facto, um dos aspectos mais controversos da política<br />
<strong>de</strong>ste estadista. De Platão vieram as críticas, que o acusam <strong>de</strong> ter<br />
conduzido o povo a um comportamento progressivamente mais<br />
amoral. Plutarco, porém, parece louvar esta dicotomia <strong>de</strong> difícil<br />
controlo, na medida em que, sendo o povo instável, <strong>Péricles</strong> fazia<br />
bem em tentar manter-se no po<strong>de</strong>r, pois ninguém melhor do que<br />
ele – com a sua mo<strong>de</strong>ração – po<strong>de</strong>ria orientá-lo.<br />
28 Como um médico, que não po<strong>de</strong> dar ao paciente apenas o<br />
remédio mais saboroso, mas que tem <strong>de</strong> saber receitar o que é mais<br />
apropriado para a doença manifestada (Per. 15. 1). Mas mais do<br />
que isso, tal como um médico, é necessário ser paciente para não<br />
dar importância às injúrias proferidas nos momentos <strong>de</strong> sofrimento<br />
(Per. 34. 5). Este tipo <strong>de</strong> comparação com base na figura do médico<br />
foi talvez influenciado por Platão, on<strong>de</strong> é muito frequente (vi<strong>de</strong><br />
Górgias 456b). Importa ainda referir a comparação com um piloto<br />
(Per. 33. 6) que tem que ignorar as lágrimas, as náuseas e o medo<br />
dos passageiros para po<strong>de</strong>r agir <strong>de</strong> modo a que não naufraguem<br />
todos.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
se <strong>de</strong>ixa levar pelos impulsos momentâneos. E não é<br />
possível seguir tais pareceres, sob pena <strong>de</strong>, no futuro, as<br />
consequências serem <strong>de</strong>vastadoras. Há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
se ser pru<strong>de</strong>nte 29 . Assim, <strong>Péricles</strong> põe os interesses da<br />
pólis à frente dos seus próprios e à frente dos “pseudo”<br />
interesses da população. Por vezes, chega mesmo a ser<br />
insultado e acusado <strong>de</strong> cobardia 30 , mas o seu bom-senso<br />
e o seu auto-domínio fazem-no suportar com calma e<br />
em silêncio as injúrias dos inimigos 31 : é isso que acontece<br />
quando ele, perante a invasão lace<strong>de</strong>mónia, se recusa<br />
a combater no solo da Ática, optando por mostrar o<br />
valor dos Atenienses no mar (Per. 33. 6). E o povo,<br />
embora muitas vezes discordasse e até se manifestasse<br />
contra as suas <strong>de</strong>cisões, nunca <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> o seguir e,<br />
normalmente, <strong>de</strong> acabar por concordar com as opções<br />
por ele tomadas.<br />
<strong>Péricles</strong> só conseguiu vencer <strong>de</strong>finitivamente<br />
Tucídi<strong>de</strong>s – que foi con<strong>de</strong>nado ao ostracismo – após<br />
resolver a oposição que se fazia sentir por causa das<br />
29 Em Ética a Nicómaco 1140b 7, Aristóteles revela uma opinião<br />
favorável acerca da prudência <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />
30 Segundo o Estagirita (Ética a Nicómaco 1116a 10), os<br />
homens corajosos são activos no momento <strong>de</strong> agir e calmos antes. Era<br />
precisamente isso que acontecia com <strong>Péricles</strong>. Ele sabia que há<br />
momentos oportunos para levar a cabo todas as acções. É então<br />
que <strong>de</strong>vemos dar o nosso máximo; até lá, a serenida<strong>de</strong> é a melhor<br />
forma <strong>de</strong> reunir as energias necessárias.<br />
31 O comportamento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> coinci<strong>de</strong> com o <strong>de</strong>fendido por<br />
Aristóteles (Ética a Nicómaco 1100b 35): o homem verda<strong>de</strong>iramente<br />
bom e sensato, pensamos, suporta <strong>de</strong>centemente todas as vicissitu<strong>de</strong>s e<br />
executa sempre as acções mais nobres, como também um bom general<br />
faz o melhor uso possível do exército sob o seu comando.<br />
38
39<br />
in t r o d u ç ã o<br />
<strong>de</strong>spesas que as obras <strong>de</strong> embelezamento da cida<strong>de</strong><br />
exigiam. A primeira crítica que lhe foi feita consistia<br />
no facto <strong>de</strong> o dinheiro ser oriundo das contribuições<br />
das cida<strong>de</strong>s aliadas da Simaquia <strong>de</strong> Delos – ao que<br />
respon<strong>de</strong>u que as cida<strong>de</strong>s aliadas tinham a protecção<br />
por que pagavam (Per. 12. 3-5); a segunda foi motivada<br />
pelas <strong>de</strong>spesas que a oposição dizia excessivas – <strong>Péricles</strong><br />
propôs-se assumir pessoalmente todas elas (Per. 14. 1-2).<br />
A eloquência, a perspicácia e o bom-senso <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />
permitiram-lhe colocar o povo a seu favor.<br />
A liberalida<strong>de</strong> com que investia dinheiro nas<br />
obras faz lembrar a caracterização da magnificência<br />
– megaloprepeia – que Aristóteles propõe na Ética a<br />
Nicómaco (embora Plutarco não recorra a este termo<br />
nem faça uma caracterização directa relativamente a esta<br />
qualida<strong>de</strong>) 32 .<br />
Mas o filho <strong>de</strong> Xantipo nunca recorreu aos<br />
dinheiros públicos para aumentar a sua fortuna pessoal,<br />
enquanto zelava também com todo o rigor – pelo que era<br />
muito criticado pelos filhos – pelos bens herdados do pai<br />
(Per. 16. 4-5). A sua incorruptibilida<strong>de</strong> (adorotatos) e o<br />
<strong>de</strong>sapego à riqueza (chrematon kreitton), aliados à famosa<br />
eloquência e à conduta, eram sem dúvida as bases da<br />
sua autorida<strong>de</strong> e do respeito que o povo por ele nutria.<br />
Era obviamente necessária uma gran<strong>de</strong> organização para<br />
que o cuidado com os seus bens pessoais não interferisse<br />
com as responsabilida<strong>de</strong>s públicas, as receitas, o exército,<br />
as frotas, as ilhas e o mar (Per. 16. 2).<br />
32 Ética a Nicómaco 1122b 6-10.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
Também no domínio militar a prudência, a<br />
sensatez <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> eram uma constante. Ele próprio<br />
enaltecia o facto <strong>de</strong> nunca ter posto, em vão, a vida dos<br />
seus concidadãos em perigo (Per. 18. 1) 33 . Aliás, quando<br />
Tólmi<strong>de</strong>s pretendia recrutar muitos jovens para uma<br />
expedição, ele aconselha a que se espere algum tempo.<br />
E o certo é que pouco <strong>de</strong>pois aquele pereceu no campo<br />
<strong>de</strong> batalha (Per. 18. 2-3). Os seus concidadãos ficaram<br />
admirados com tanta sensatez e com a amiza<strong>de</strong>, com o<br />
cuidado que tinha por eles (philopolites).<br />
Procurava refrear os <strong>de</strong>sejos expansionistas e<br />
irreflectidos do povo (especialmente em relação ao<br />
Egipto, a Cartago e à Etrúria – Per. 21. 1); esforçavase<br />
por agir com humanida<strong>de</strong> junto aos povos inimigos.<br />
Esta i<strong>de</strong>ia fica clara em Per. 23. 4: apenas os Hestieus<br />
foram alvo <strong>de</strong> tratamento inflexível, pois tinham feito<br />
refém uma nau ática e matado toda a tripulação. O facto<br />
<strong>de</strong> só esses serem maltratados mostra que <strong>Péricles</strong> tinha<br />
um forte sentido <strong>de</strong> justiça e gran<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>ração – não se<br />
<strong>de</strong>ixou tomar pela dor e pela ira <strong>de</strong> ver os concidadãos<br />
mortos para, como vingança, massacrar o maior número<br />
possível <strong>de</strong> inimigos 34 .<br />
33 Um bom exemplo <strong>de</strong>sta situação é o alegado suborno <strong>de</strong><br />
Plistóanax, que fez com que o exército inimigo batesse em retirada,<br />
o que evi<strong>de</strong>ntemente evitou batalhas e mortes (Per. 22. 2-3). Neste<br />
episódio também se evi<strong>de</strong>ncia a clarividência <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> que previu<br />
– e muito bem – a cedência do inimigo.<br />
34 Este exemplo funciona como excelente argumento contra a<br />
acusação feita por Dúris <strong>de</strong> Samos (Per. 28. 2), que Plutarco nega,<br />
invocando a ausência <strong>de</strong> referência a esse acontecimento em Éforo,<br />
Tucídi<strong>de</strong>s e Aristóteles, para mostrar a parcialida<strong>de</strong> daquele autor.<br />
40
41<br />
in t r o d u ç ã o<br />
Também a estratégia para distrair os soldados<br />
que participaram no cerco <strong>de</strong> Samos ilustra bem a sua<br />
perspicácia e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> levar o povo a fazer o que a<br />
longo prazo será mais benéfico. Com a instituição do dia<br />
branco, minora o <strong>de</strong>scontentamento do exército que queria<br />
a todo o custo combater. Para tal, divi<strong>de</strong>-o em oito partes:<br />
a que tirasse a fava branca faria um festim e <strong>de</strong>scansaria,<br />
enquanto as outras iriam para a refrega (Per. 27. 2).<br />
A forma como <strong>Péricles</strong> incentiva os seus aliados e<br />
como exibia o seu po<strong>de</strong>rio aos bárbaros é também um<br />
bom exemplo <strong>de</strong> perspicácia e previsão político-militar:<br />
contentes, os aliados manter-se-ão ao seu lado; pru<strong>de</strong>ntes<br />
ou temerosos, os inimigos hesitarão em atacar.<br />
A prudência e gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> alma <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> foram<br />
também responsáveis pela não anulação do <strong>de</strong>creto <strong>de</strong><br />
Mégara, o mesmo é dizer, pela Guerra do Peloponeso.<br />
Essas suas qualida<strong>de</strong>s fizeram-no ver que essa seria a<br />
melhor opção, pois as exigências dos Lace<strong>de</strong>mónios –<br />
que temiam o crescente po<strong>de</strong>r ateniense – tinham por<br />
principal objectivo verificar se “os mais fortes” cediam (o<br />
que seria uma inegável prova <strong>de</strong> fraqueza e um prece<strong>de</strong>nte<br />
incontornável para exigências ainda maiores). Houve,<br />
porém, quem o acusasse <strong>de</strong> agir assim para <strong>de</strong>monstrar<br />
o po<strong>de</strong>rio. No entanto, a <strong>de</strong>scrição que Plutarco faz do<br />
<strong>de</strong>creto permite realçar indirectamente – e mais uma vez<br />
– a prudência e a mo<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, já que o biógrafo<br />
nos diz que o <strong>de</strong>creto possuía essas virtu<strong>de</strong>s (Per. 30. 3).<br />
Outros motivos lhe testaram as mesmas qualida<strong>de</strong>s: o caso<br />
da estátua criselefantina (Per. 31. 3) e as invasões da Ática<br />
por Arquidamo (Per. 33. 5-6): é que ele conseguiu prever
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
com a antecedência necessária o que po<strong>de</strong>ria acontecer e<br />
assim <strong>de</strong>smentir suspeitas que colocariam em causa a sua<br />
honestida<strong>de</strong> e incorruptibilida<strong>de</strong>.<br />
Mas <strong>Péricles</strong> não era só o homem público. Além da<br />
amiza<strong>de</strong> que o unia a Fídias e a Anaxágoras (as mais realçadas<br />
por Plutarco), era também o companheiro carinhoso,<br />
que não entrava nem saía <strong>de</strong> casa sem beijar Aspásia, que<br />
amava com especial ternura (Per. 24. 9). Foi ela quem pela<br />
primeira vez o fez per<strong>de</strong>r o controlo em público, quando,<br />
por altura do julgamento – segundo o relato <strong>de</strong> Ésquines<br />
(Per. 32. 5) –, ele, chorando em tribunal, implorou por ela<br />
aos juízes.<br />
Na verda<strong>de</strong>, inicialmente, <strong>Péricles</strong> tinha sido casado<br />
com uma aristocrata, sem ter encontrado nesse matrimónio<br />
a convencional satisfação. Só o raciocínio <strong>de</strong> estadista<br />
que caracterizava Aspásia <strong>de</strong>spertou nele uma verda<strong>de</strong>ira<br />
paixão. E mais uma vez temos a simbiose entre vida política<br />
e privada: é que, ao que parece, a “Nova Hera” tinha um<br />
papel <strong>de</strong> peso nas <strong>de</strong>cisões políticas que <strong>Péricles</strong> tomava.<br />
Basta recordar o tão apregoado Decreto <strong>de</strong> Mégara.<br />
Mas, além <strong>de</strong> companheiro, era pai. Apesar dos muitos<br />
<strong>de</strong>sentendimentos com os filhos por causa do rigor com que<br />
administrava os seus bens, quando estes morreram vitimados<br />
pela peste sofreu bastante. No entanto, conseguiu manterse<br />
imperturbável, sereno, sem <strong>de</strong>monstrar a sua dor e sem<br />
<strong>de</strong>rramar uma lágrima até à morte <strong>de</strong> Páralo, o seu último<br />
filho legítimo (Per. 36). Então não pô<strong>de</strong> conter as lágrimas<br />
e os gemidos, o que parece sugerir uma certa humanização<br />
da personagem, ou, se quisermos dizer com Teofrasto, uma<br />
alteração <strong>de</strong> carácter provocada pelo excesso <strong>de</strong> dor.<br />
42
43<br />
in t r o d u ç ã o<br />
Embora Plutarco lhe reconheça tantas virtu<strong>de</strong>s, o<br />
certo é que, como tivemos oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver, muitos dos<br />
seus concidadãos o criticaram largamente em vida. A tal<br />
ponto, que o sofrimento provocado pela morte dos filhos<br />
e <strong>de</strong> outros familiares e amigos foi visto pelos Atenienses<br />
como um castigo pela sua arrogância e orgulho (Per. 37.<br />
5) 35 . Foi sobretudo após a sua morte, como aliás ainda nos<br />
nossos dias é prática corrente, que lhe <strong>de</strong>ram o <strong>de</strong>vido valor,<br />
ao verificarem que nenhum dos seus sucessores possuía a<br />
“sensibilida<strong>de</strong> viva e sábia <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>”, que “era mo<strong>de</strong>rado<br />
na austerida<strong>de</strong> e grave na mo<strong>de</strong>ração” (Per. 39. 3).<br />
Demoremo-nos, agora, um pouco mais na análise<br />
breve do vocabulário específico que é utilizado. Além dos<br />
termos que foram sendo referidos, Plutarco utilizou vários<br />
sinónimos para <strong>de</strong>terminadas características pessoais,<br />
nomeadamente para a mo<strong>de</strong>ração.<br />
Mesmo numa primeira análise, <strong>de</strong>pressa<br />
se reconhece a influência da escola peripatética 36<br />
através do recurso à sua terminologia (e às vezes pela<br />
reminiscência <strong>de</strong> conceitos que parecem estar presentes,<br />
35 Na verda<strong>de</strong>, os últimos anos da vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> foram<br />
extremamente difíceis, já que, com o início da guerra contra Esparta<br />
seguido do <strong>de</strong>flagrar da peste, o controle do povo se tornou uma<br />
tarefa ainda mais árdua. Este chegou mesmo a afastar o estadista<br />
do comando da polis. Mas, com o que o povo não contava era com<br />
a inexistência <strong>de</strong> outro chefe <strong>de</strong> Estado tão capaz como o filho <strong>de</strong><br />
Xantipo. Deste modo, a massa inconstante viu-se na necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> o reconduzir ao po<strong>de</strong>r. <strong>Péricles</strong> viria a morrer pouco tempo<br />
<strong>de</strong>pois.<br />
36 Os Peripatéticos, que davam especial ênfase ao estudo da<br />
personalida<strong>de</strong> humana, <strong>de</strong>terminaram muitíssimo o método biográfico<br />
grego, como se po<strong>de</strong> constatar pelo estudo atento das <strong>Vidas</strong>.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
embora não sejam <strong>de</strong>signados). Mas também logo nos<br />
apercebemos <strong>de</strong> que Plutarco não está obcecado pela<br />
exactidão da terminologia e que não segue religiosamente<br />
as <strong>de</strong>finições <strong>de</strong> Aristóteles, adaptando-as à sua própria visão<br />
do mundo e da personalida<strong>de</strong> humana. É isso que acontece,<br />
parece-nos, com o uso <strong>de</strong> sophrosyne (Ética a Nicómaco<br />
1118a-1119a). Esta palavra, em Aristóteles, é utilizada em<br />
relação à alimentação e a necessida<strong>de</strong>s físicas. Não é esse o<br />
sentido com que Plutarco a usa. Na Vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, está<br />
sobretudo relacionada com acções <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m moral, isto é,<br />
com o controle <strong>de</strong> reacções que <strong>de</strong>correm <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados<br />
sentimentos – mais ou menos impulsivos e irracionais, mas<br />
que nada têm a ver com necessida<strong>de</strong>s físicas.<br />
O conceito que segue mais <strong>de</strong> perto a teorização<br />
<strong>de</strong> Aristóteles é talvez a praotes, <strong>de</strong>finida como meiotermo<br />
entre o extremo das paixões e o da apatia 37 .<br />
Aparece muitas vezes relacionada com a legalida<strong>de</strong> em<br />
contraste com a cruelda<strong>de</strong>, violência ou tirania e resulta<br />
<strong>de</strong> um esforço consciente: na verda<strong>de</strong>, aquele que a<br />
possui e actualiza está a reprimir reacções meramente<br />
emocionais e instintivas que substitui por outras mais<br />
racionais – custa a crer que <strong>Péricles</strong>, ao ser apelidado <strong>de</strong><br />
cobar<strong>de</strong>, não tivesse vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> reagir. Isso comprova que a<br />
praotes se apren<strong>de</strong>, que requer muito esforço para se sobrepor<br />
a instintos, logo, que não é algo <strong>de</strong> apenas inato; trata-se da<br />
razão que controla os sentimentos.<br />
Em jeito <strong>de</strong> síntese, po<strong>de</strong>remos dizer que, segundo<br />
Plutarco, <strong>Péricles</strong> era uma pessoa com boa reputação<br />
37 Martin Jr. (1960: 65-73).<br />
44
45<br />
in t r o d u ç ã o<br />
e prestígio, embora, como o comum dos mortais, não<br />
fosse totalmente irrepreensível 38 . Mas, pela sua doçura <strong>de</strong><br />
carácter e mo<strong>de</strong>ração 39 e consequente imperturbabilida<strong>de</strong>,<br />
pela gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> alma e elevação <strong>de</strong> sentimentos, pela<br />
dignida<strong>de</strong> na conduta, pela força <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> e pela<br />
persistência correspon<strong>de</strong>nte, pela perspicácia, <strong>de</strong>marcavase<br />
da generalida<strong>de</strong> dos homens do seu tempo e dos séculos<br />
seguintes. Outras características faziam <strong>de</strong>le um ser especial:<br />
o sentido <strong>de</strong> justiça, a liberalida<strong>de</strong>, a incorruptibilida<strong>de</strong><br />
e, inclusive para alguns, a majesta<strong>de</strong> que emanava do seu<br />
comportamento e da própria maneira <strong>de</strong> ser.<br />
O prestígio que possuía entre os cidadãos resultava<br />
das suas virtu<strong>de</strong>s e permitia-lhe exercer a autorida<strong>de</strong> exigida<br />
a um homem <strong>de</strong> Estado, para que pu<strong>de</strong>sse tomar todas<br />
as medidas que <strong>de</strong>veriam conduzir a uma melhoria das<br />
condições <strong>de</strong> vida do povo.<br />
Havia, porém, quem lhe criticasse o orgulho, o<br />
<strong>de</strong>sprezo pelos outros e a arrogância.<br />
Esta disparida<strong>de</strong> na forma <strong>de</strong> encarar o<br />
comportamento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> remete-nos <strong>de</strong> imediato<br />
para as reflexões <strong>de</strong> Aristóteles na Ética a Nicómaco:<br />
como nos diz o Estagirita, a fronteira entre o que se<br />
po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar uma virtu<strong>de</strong> ou um <strong>de</strong>feito é muito<br />
38 Ao fazer esta afirmação, também Plutarco (Per. 10. 7) mostra<br />
bom-senso, já que nenhum ser humano é perfeito.<br />
39 Para Aristóteles (Ética a Nicómaco 1106b 27), a principal<br />
característica da virtu<strong>de</strong> é o facto <strong>de</strong> ela correspon<strong>de</strong>r ao meiotermo.<br />
Tendo em conta que a mo<strong>de</strong>ração é a característica <strong>de</strong><br />
<strong>Péricles</strong> que Plutarco mais evi<strong>de</strong>ncia e que, <strong>de</strong> uma maneira ou <strong>de</strong><br />
outra, influencia toda a acção do estadista, po<strong>de</strong>mos interpretá-la<br />
como sendo um dos atributos essenciais para se ser superior.
ténue. Logo, qualquer qualida<strong>de</strong> tem um ponto <strong>de</strong><br />
equilíbrio central. A leitura <strong>de</strong>ssa medida po<strong>de</strong> originar,<br />
consequentemente, elogio ou censura, pois quem a<br />
avalia po<strong>de</strong> interpretá-la, respectivamente, como mais<br />
próxima do que é <strong>de</strong>sejável ou não.<br />
46
sé c u l o V a.c.<br />
Tá b u a c r o n o l ó g i c a 1<br />
gr é c i a/Vi d a d e Pé r i c l e s<br />
47<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
ca. 495-90 Nascimento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, filho <strong>de</strong> Xantipo e<br />
Agariste (3. 1-2) 2 .<br />
490 Primeira expedição persa contra Atenas, li<strong>de</strong>rada<br />
por Dario. Batalha <strong>de</strong> Maratona, <strong>de</strong>rrota persa.<br />
488-87 Guerra entre Atenas e Egina.<br />
485-84 Ostracismo <strong>de</strong> Xantipo, pai <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />
480 Segunda expedição persa contra a Grécia, li<strong>de</strong>rada<br />
por Xerxes. Batalha das Termópilas. Batalha naval<br />
<strong>de</strong> Artemísio sem um vencedor evi<strong>de</strong>nte. Vitória<br />
grega na batalha naval <strong>de</strong> Salamina.<br />
479 Batalha <strong>de</strong> Plateias e Mícale. Início da reconstrução<br />
<strong>de</strong> Atenas.<br />
478-77 Constituição da Liga <strong>de</strong> Delos.<br />
ca. 472 Ostracismo <strong>de</strong> Temístocles que se exila em<br />
Argos (7.1).<br />
472 Representação da peça Os Persas <strong>de</strong> Ésquilo,<br />
tendo como corego <strong>Péricles</strong>.<br />
1 Para o estabelecimento <strong>de</strong>sta cronologia, baseámo-nos<br />
sobretudo nas cronologias fixadas por P. A. Stadter (1989: 357 -<br />
358) e A. Pérez Jiménez (1996: 2 - 59).<br />
2 Estas referências dizem respeito à Vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.
Tábua Cronológica<br />
ca. 470 Início da activida<strong>de</strong> política <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (7.3-4).<br />
470-60 Construção do templo <strong>de</strong> Zeus em Olímpia.<br />
463 Processo contra Címon, no qual <strong>Péricles</strong> se<br />
apresenta como principal acusador (10.6).<br />
462-61 Reforma do Areópago por Efialtes: redução o<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ste tribunal (7.8). Início da influência<br />
política <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />
461 Ostracismo <strong>de</strong> Címon (9.2-5). Assassinato <strong>de</strong><br />
Efialtes (10.7-8).<br />
460-445 Primeira Guerra do Peloponeso, entre Atenas<br />
e Esparta.<br />
ca. 455-4 Casamento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> com a ex-mulher<br />
<strong>de</strong> Hiponico (24.8).<br />
454 Sucessos <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> no Golfo <strong>de</strong> Corinto (19.1).<br />
ca. 454-3 Nascimento <strong>de</strong> Xantipo, filho <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (24.8).<br />
ca. 453 Transferência para Atenas do tesouro da Liga<br />
<strong>de</strong> Delos, antes <strong>de</strong>positado nesta ilha (12.1).<br />
ante 451 Nascimento <strong>de</strong> Páralo, filho <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (24.8).<br />
451-50 <strong>Péricles</strong> promove a lei que priva os filhos<br />
bastardos <strong>de</strong> cidadania (37.3-4).<br />
450-49 Morte <strong>de</strong> Címon em Chipre (10.8).<br />
449 Paz <strong>de</strong> Cálias, resultado do tratado entre a Liga<br />
<strong>de</strong> Delos e a Pérsia (17).<br />
448 Segunda Guerra Sagrada (21. 1-2).<br />
48
49<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
447 Início da construção do Pártenon (13.7). Derrota<br />
ateniense na batalha <strong>de</strong> Coroneia (18.3). Expedição <strong>de</strong><br />
<strong>Péricles</strong> ao Quersoneso (19.1).<br />
446-45 Celebração da paz dos trinta anos entre<br />
Atenas e Esparta (24.1).<br />
443 Ostracismo <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Melésias (16.3).<br />
ante 440 Nascimento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, filho <strong>de</strong> Aspásia e<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (24.10).<br />
440-39 Guerra <strong>de</strong> Samos (26. 2-28).<br />
438 Fundação <strong>de</strong> Anfípolis na Trácia (11.5).<br />
438-37 Consagração da estátua criselefantina <strong>de</strong><br />
Atenas Pártenos (13.14).<br />
437-32 Construção dos Propileus, entrada<br />
monumental da Acrópole (13.12-13).<br />
ca. 435 Expedição <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> ao Mar Negro (20.1-2).<br />
433 Primavera: Regresso <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, o filho <strong>de</strong> Melésias.<br />
Encontro dos Peloponésios em Esparta (29. 4-6).<br />
432-31 Inverno: última embaixada a Atenas (29. 7-30).<br />
Oposição <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> à anulação do “<strong>de</strong>creto contra<br />
Mégara”, que interditava o comércio com esta<br />
cida<strong>de</strong> (30.2; 31.1; 32.6).<br />
431 Maio: Invasão da Ática pelo exército da Simaquia<br />
do Peloponeso (33.4). Verão: Expedição ateniense<br />
contra o Peloponeso. Expulsão dos Eginetas<br />
(34.2). 3 <strong>de</strong> Agosto: Eclipse solar (35.2). Outono:
Tábua Cronológica<br />
Invasão ateniense <strong>de</strong> Mégara (34.4).<br />
430 Primavera: <strong>de</strong>flagar da peste em Atenas (34.5).<br />
Segunda invasão ática do Peloponeso. Expedição <strong>de</strong><br />
<strong>Péricles</strong> contra Epidauro (35.1-3). Verão: Destituição<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (35.4). Morte dos filhos <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, Xantipo<br />
e Páralo, da irmã <strong>de</strong> outros familiares (26.6-8).<br />
429 Reeleição <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (37.1-2). Pedido <strong>de</strong> cidadania<br />
para o filho bastardo do estadista (37.5). Outono: Morte<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> (38).<br />
50
Vi d a d e <strong>Péricles</strong>
53<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
1. 1. César 1 , ao ver em Roma alguns estrangeiros<br />
ricos a passear e a acarinhar cachorritos e macaquinhos<br />
que traziam ao colo, perguntou, ao que parece, se no<br />
país <strong>de</strong>les as mulheres não tinham filhos 2 . Repreen<strong>de</strong>u<br />
assim, como um verda<strong>de</strong>iro lí<strong>de</strong>r, os que <strong>de</strong>sperdiçam<br />
com animais o afecto e a ternura que por natureza<br />
existem em nós e que se <strong>de</strong>stinam às pessoas.<br />
2. Ora, já que a nossa alma possui um <strong>de</strong>sejo<br />
intrínseco <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r e observar, não é razoável<br />
censurar os que usam esse dom para ver e ouvir coisas<br />
sem qualquer valor e negligenciam o que é bom e útil?<br />
Para os sentidos, que recebem passivamente a<br />
impressão do que os ro<strong>de</strong>ia, existe talvez a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> contemplar tudo o que se lhes apresenta, seja útil<br />
ou inútil. Mas, quanto à razão, cada um, se assim o<br />
quiser, tem a capacida<strong>de</strong> natural <strong>de</strong> a utilizar, <strong>de</strong> a guiar<br />
sem tréguas ou <strong>de</strong> mudar facilmente para o que lhe<br />
pareça melhor. Em consequência, <strong>de</strong>vemos procurar o<br />
melhor não só para o contemplar, mas também para nos<br />
alimentarmos da sua contemplação.<br />
1 Augusto (63 a.C. – 14 d.C.) incentivou o matrimónio e a<br />
natalida<strong>de</strong>, conce<strong>de</strong>ndo subsídios aos que tinham filhos e aplicando<br />
multas aos que se não casavam (cf. Suetónio, Augusto 34).<br />
2 Esta frase é atribuída por Ptolomeu (FGrHist 234 F 8) a<br />
Masinissa, rei da Numídia, que assim interpelou uns sibaritas que<br />
compravam macacos.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
3. Assim como a cor apropriada ao olho é aquela<br />
cujo tom brilhante e alegre reaviva e alimenta a visão 3 , do<br />
mesmo modo é preciso aplicar o pensamento em motivos<br />
dignos <strong>de</strong> contemplação que, pelo seu interesse, o incitem<br />
à prática do bem.<br />
4. Tais motivos encontram-se nos actos virtuosos,<br />
que <strong>de</strong>spertam nos que os observam certa emulação e<br />
<strong>de</strong>sejo que induz à imitação.<br />
Noutros casos, à admiração do feito não se segue <strong>de</strong><br />
imediato o impulso <strong>de</strong> cometê-lo. Mais ainda, é frequente<br />
apreciarmos a obra, mas <strong>de</strong>sprezarmos o artífice, como é<br />
o caso dos perfumes e dos tecidos <strong>de</strong> cor púrpura, com os<br />
quais nos <strong>de</strong>leitamos, mas os perfumistas e os tintureiros,<br />
consi<strong>de</strong>ramo-los servis e vulgares 4 .<br />
5. Por isso, com razão, Antístenes 5 ao ouvir que<br />
3 Como refere Stadter (1989: 55), Plutarco <strong>de</strong>ixa transparecer<br />
aqui a doutrina óptica <strong>de</strong> Platão (Timeu 45b-e), segundo a qual<br />
existe <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada indivíduo um fogo que se reaviva se receber<br />
pelos olhos a luz do fogo exterior.<br />
4 Parece que a visão negativa dos perfumes e das tintas era<br />
corrente no mundo antigo (Heródoto 3. 22; Xenofonte, Banquete<br />
2, 3) e que resultava da alteração antinatural que produziam (cf.<br />
Dio Crisóstomo 7. 117). Consta que o próprio Sólon (Aristóteles,<br />
Constituição <strong>de</strong> Atenas 612a, 687a) terá promulgado uma lei contra<br />
os ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> perfumes e que os Lace<strong>de</strong>mónios expulsavam <strong>de</strong><br />
Esparta os fabricantes <strong>de</strong> unguentos (porque <strong>de</strong>terioravam o azeite)<br />
e os que tingiam a lã (porque corrompiam o seu branco natural).<br />
Em Górgias 465b-c, Platão confirma a opinião pouco favorável dos<br />
intelectuais em relação à cosmética.<br />
5 Este filósofo (ca. 445 – 360 a.C.) foi discípulo <strong>de</strong> Górgias e,<br />
mais tar<strong>de</strong>, também <strong>de</strong> Sócrates e autor <strong>de</strong> diálogos socráticos. É<br />
consi<strong>de</strong>rado o fundador da Escola Cínica. Ele critica não a acção<br />
<strong>de</strong> tocar flauta propriamente dita, mas o facto <strong>de</strong> se fazer disso uma<br />
profissão.<br />
54
55<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
Isménias 6 era um bom flautista, comentou: “mas como<br />
homem não presta, <strong>de</strong> outro modo não seria um bom<br />
flautista”. 6. E Filipe observou ao filho <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma<br />
execução com melodia e com arte durante um banquete:<br />
“Não tens vergonha <strong>de</strong> tocar assim tão bem?” Pois é<br />
suficiente que um príncipe dispense algum do seu tempo<br />
livre a ouvir os que tocam e já muito conce<strong>de</strong> às musas<br />
como simples espectador dos que competem em tal<br />
matéria.<br />
2. 1. O empenho em ocupações vis evi<strong>de</strong>ncia em<br />
si mesmo, no esforço que dispensa a essas inutilida<strong>de</strong>s,<br />
indiferença pelo que é nobre. E a nenhum jovem <strong>de</strong> boa<br />
índole, por ter visto a estátua <strong>de</strong> Zeus em Pisa ou <strong>de</strong><br />
Hera em Argos, passou pela cabeça tornar-se um Fídias 7<br />
ou um Policleto 8 ; nem aspirou a ser um Anacreonte 9 ,<br />
6 Flautista tebano (cf. Plutarco, Obras Morais 632c; Demétrio<br />
1. 6). De boa família, Plutarco teve acesso a uma anedota que o<br />
aponta como o melhor flautista (as suas melodias eram tocadas nas<br />
trirremes e nas fontes; cf. Plínio, História Natural 37. 6-7).<br />
7 Arquitecto, escultor e pintor ateniense do século V a.C. Foi<br />
amigo <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e morreu na prisão (vi<strong>de</strong> infra Per. 31). Os seus<br />
trabalhos mais famosos são estátuas <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses (em ma<strong>de</strong>ira, com<br />
trajes <strong>de</strong> ouro e com os membros que ficavam a <strong>de</strong>scoberto revestidos<br />
<strong>de</strong> marfim), nomeadamente <strong>de</strong> Atena Parthenos e a <strong>de</strong> Zeus (<strong>de</strong> Pisa<br />
ou Olímpia). Para outras informações relativas à escultura grega, leiase,<br />
por exemplo, Barron (1981); Wooford (1982).<br />
8 Arquitecto e escultor do século V a.C., natural <strong>de</strong> Argos.<br />
Dentre as suas obras, <strong>de</strong>stacam-se a estátua criselefantina <strong>de</strong> Hera e<br />
o Doríforo, que é consi<strong>de</strong>rado o cânon da escultura clássica.<br />
9 Poeta lírico do século VI a.C., natural <strong>de</strong> Teos e consi<strong>de</strong>rado<br />
na Antiguida<strong>de</strong> um poeta erótico que tentou sempre observar a<br />
mo<strong>de</strong>ração tipicamente grega, algo que muitos dos seus seguidores<br />
não conseguiram fazer.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
Filémon 10 ou Arquíloco 11 por gostar dos seus poemas.<br />
É que, mesmo que uma obra nos encante pela sua<br />
graciosida<strong>de</strong>, não é obrigatório que o seu criador se<br />
imponha à nossa estima.<br />
2. De on<strong>de</strong> resulta que não são úteis aos que as<br />
contemplam obras <strong>de</strong>ste género, que não provocam o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> imitação nem o entusiasmo que estimula a<br />
ambição e a ânsia <strong>de</strong> igualá-las.<br />
Em contrapartida, a virtu<strong>de</strong> nas acções é <strong>de</strong> tal<br />
maneira estimulante que, ao mesmo tempo que se<br />
admiram os actos, se <strong>de</strong>seja imitar os seus autores. 3.<br />
Na verda<strong>de</strong>, as benesses que a Sorte nos proporciona,<br />
<strong>de</strong>sejamos possuí-las e gozá-las; as que nos conce<strong>de</strong><br />
a Virtu<strong>de</strong>, queremos praticá-las. As primeiras,<br />
preten<strong>de</strong>mos recebê-las dos outros; estas, que outros as<br />
recebam <strong>de</strong> nós. 4. É que o Bem cria, em relação a si<br />
próprio, um estímulo activo 12 e <strong>de</strong> imediato inspira um<br />
10 Principal representante da Comédia Nova <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
Menandro, a ponto <strong>de</strong> ter servido <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo a Plauto em Mercator,<br />
Trinummus e Mostelaria. Pensa-se que seja oriundo <strong>de</strong> Solos, na<br />
Sicília, ou <strong>de</strong> Siracusa e que tenha vivido entre ca. 365-263 a.C.<br />
11 Natural <strong>de</strong> Paros (séc. VII a.C.), filho bastardo <strong>de</strong> um certo<br />
Telésicles, colonizador <strong>de</strong> Tasos e <strong>de</strong> mãe escrava. De um modo<br />
geral, era a realida<strong>de</strong> que inspirava a sua poesia, on<strong>de</strong> marcas do<br />
individualismo típico da época arcaica surgem a cada passo. Ficou<br />
famoso pelos seus iambos e elegias, nos quais <strong>de</strong>svalorizava as<br />
concepções tradicionais, nomeadamente o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> beleza heróica<br />
(cf. fr. 60 Diehl). Serviu como mercenário estrangeiro para po<strong>de</strong>r<br />
sobreviver, por isso mesmo <strong>de</strong>fine-se como sendo um servo <strong>de</strong> Ares<br />
conhecedor dos dons das musas (cf. fr. 1 Diehl). Os poetas que o<br />
Queroneu invoca neste passo são provavelmente seleccionados pelo<br />
conteúdo satírico ou lascivo das suas obras.<br />
12 Trata-se <strong>de</strong> uma conhecida doutrina platónica exposta em<br />
Banquete 208-212 e em Fedro 250 sq.<br />
56
57<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
impulso à acção; actua sobre quem o contempla não<br />
como um mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>al, mas pelo testemunho da sua<br />
actuação efectiva incentiva à <strong>de</strong>terminação.<br />
5. Pensámos, por isso, persistir na <strong>de</strong>scrição das<br />
vidas e compusemos este décimo livro que engloba a<br />
vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e a <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, que <strong>de</strong>senvolveu<br />
uma longa luta contra Aníbal. Eram estes homens<br />
semelhantes em diversas qualida<strong>de</strong>s, principalmente<br />
na mo<strong>de</strong>ração, no sentido <strong>de</strong> justiça e na capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> controlar a impon<strong>de</strong>ração dos cidadãos e dos seus<br />
colegas, tornando-se muito úteis às suas pátrias. É que<br />
é possível, a partir <strong>de</strong>ste relato, avaliar se apontamos na<br />
direcção correcta.<br />
3. 1. <strong>Péricles</strong> era da tribo <strong>de</strong> Acamante, do <strong>de</strong>mo<br />
<strong>de</strong> Colarges, <strong>de</strong> família e <strong>de</strong> <strong>de</strong>scendência <strong>de</strong> primeira<br />
nobreza, quer da parte do pai, quer da da mãe. 2.<br />
Xantipo, o vencedor sobre os generais do Rei persa em<br />
Mícale, casou-se com Agariste, sobrinha <strong>de</strong> Clístenes,<br />
aquele que com dignida<strong>de</strong> expulsou os Pisistrátidas e pôs<br />
fim à tirania; além disso, estabeleceu leis e instituiu uma<br />
constituição excelente para o incremento da harmonia<br />
e da segurança. 3. Depois <strong>de</strong> sonhar 13 que tinha dado à<br />
luz um leão, poucos dias mais tar<strong>de</strong>, Agariste <strong>de</strong>u à luz<br />
<strong>Péricles</strong>, <strong>de</strong> aspecto físico em tudo o mais irrepreensível,<br />
mas <strong>de</strong> cabeça alongada e <strong>de</strong>sproporcionada. 4. Por isso,<br />
quase todas as suas estátuas o representam <strong>de</strong> elmo:<br />
<strong>de</strong>certo os artistas não queriam ofendê-lo. Por seu<br />
lado, os poetas áticos chamavam-lhe cabeça <strong>de</strong> cebola<br />
13 Vi<strong>de</strong> supra Introdução à Vida <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> p. 25.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
(esquinocéfalo): é que há um tipo <strong>de</strong> cebola 14 a que<br />
também é dado o nome <strong>de</strong> schinon.<br />
5. De entre os cómicos, Cratino, em Quírones,<br />
diz: “A Desor<strong>de</strong>m e o velho Cronos uniram-se para gerar<br />
um tirano todo-po<strong>de</strong>roso, a quem os <strong>de</strong>uses chamam<br />
amontoador <strong>de</strong> cabeças”; e <strong>de</strong> novo em Némesis: “Vem,<br />
ó Zeus hospitaleiro e cabeçudo” 15 . 6. E Telecli<strong>de</strong>s 16 diz<br />
também que às vezes “<strong>de</strong> mãos atadas perante os assuntos<br />
<strong>de</strong> Estado, sentava-se na Acrópole, com dores <strong>de</strong> cabeça;<br />
outras vezes daquela tola <strong>de</strong> palmo e meio soltava-se-lhe<br />
uma arruaça monumental”. 7. Êupolis, em Demos 17 ,<br />
enquanto se informava acerca <strong>de</strong> cada um dos lí<strong>de</strong>res<br />
que regressavam do Ha<strong>de</strong>s, como <strong>Péricles</strong> foi o último<br />
a ser nomeado, comenta: “eis que trouxeste agora dos<br />
Infernos o cabecilha da malta lá <strong>de</strong> baixo”.<br />
4. 1. A maioria concorda em que o seu professor<br />
<strong>de</strong> música foi Dámon 18 , cujo nome, dizem, <strong>de</strong>ve<br />
14 Refere-se à urginea maritima, género <strong>de</strong> planta herbácea com<br />
um bolbo grosso, <strong>de</strong> forma oval, bastante largo (com cerca <strong>de</strong> 15<br />
cm <strong>de</strong> diâmetro) e po<strong>de</strong>ndo atingir o peso <strong>de</strong> 7 kg.<br />
15 Segundo Heródoto, Histórias 5. 66. 1, Zeus Cário era venerado<br />
pela família <strong>de</strong> Iságoras, facto que permite ao comediógrafo<br />
estabelecer um paralelo entre aquele e <strong>Péricles</strong>, sugestivo do perfil<br />
tirânico e anti<strong>de</strong>mocrático do estadista.<br />
16 Comediógrafo que parece ter obtido três vitórias nas<br />
Dionísias Urbanas e quatro nas Leneias. Chegaram até nós alguns<br />
títulos como Anfictiões, Hesíodos, Castigo, Prítanes e fragmentos que<br />
sugerem a orientação política das suas críticas.<br />
17 Peça que data <strong>de</strong> 412 a.C., isto é, já bastante posterior à morte<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, período em que a gravida<strong>de</strong> da situação ateniense era tal<br />
que o governo do Alcmeónida acabou por ganhar uma conotação<br />
paradigmática.<br />
18 O filho <strong>de</strong> Damóni<strong>de</strong>s (infra 9. 2) foi discípulo <strong>de</strong> Pródico<br />
58
59<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
pronunciar-se com a primeira sílaba breve. Aristóteles,<br />
porém, afirma que foi com Pitocli<strong>de</strong>s 19 que ele estudou<br />
música. 2. Dámon, que era um sofista eminente, parecia<br />
escon<strong>de</strong>r-se sob o nome da música, ocultando ao público<br />
o seu verda<strong>de</strong>iro talento; a <strong>Péricles</strong>, como a um atleta da<br />
política, foi ele que lhe serviu <strong>de</strong> treinador e mestre. 3.<br />
Contudo, não passou <strong>de</strong>spercebido que Dámon se servia<br />
da lira como pretexto; acabou con<strong>de</strong>nado ao ostracismo<br />
como um intriguista e partidário da tirania, oferecendo<br />
matéria aos cómicos. 4. Por exemplo, Platão [Cómico]<br />
criou uma personagem que lhe pergunta o seguinte (fr.<br />
207 K.-A.):<br />
Antes <strong>de</strong> mais, diz-me cá uma coisa, por favor, porque<br />
tu, ao que se comenta por aí, foste como um Quíron a<br />
educar <strong>Péricles</strong>.<br />
5. <strong>Péricles</strong> foi também discípulo <strong>de</strong> Zenão <strong>de</strong><br />
e amigo <strong>de</strong> Sócrates (Platão, Laques 197d). Foi muito conhecido<br />
pela sua teoria sobre a música (que não chegou até nós), matéria na<br />
qual se iniciou com Agátocles ou Lâmprocles. Segundo Platão, que<br />
também confirma a relação <strong>de</strong>ste com <strong>Péricles</strong> (Alcibía<strong>de</strong>s 118c),<br />
Dámon <strong>de</strong>fendia que a música estava intimamente relacionada com<br />
questões morais (República 400b, 424c): os vários ritmos podiam<br />
provocar efeitos diferentes a nível ético. Foi vítima <strong>de</strong> ostracismo<br />
entre 450-440 a.C., mas pouco mais se sabe a seu respeito. Vi<strong>de</strong><br />
Guthrie (1969: 35, n. 1).<br />
19 Segundo esta segunda versão, que Plutarco atribui a<br />
Aristóteles (fr. 401 Rose): <strong>de</strong> acordo com o Estagirita, o professor<br />
seria Pitocli<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Ceos, do qual apenas se sabe que foi pitagórico<br />
e músico. No entanto, esta informação baseia-se em Platão<br />
(Protágoras 316e, escólio a Alcibía<strong>de</strong>s 118c) e não em Aristóteles,<br />
o que po<strong>de</strong> significar ou que Plutarco confundiu as fontes, ou que<br />
esta referência faz parte <strong>de</strong> uma das muitas obras perdidas.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
Eleia que se ocupava, como Parméni<strong>de</strong>s 20 , das ciências<br />
e <strong>de</strong>senvolveu uma habilida<strong>de</strong> especial para refutar<br />
o adversário e para o reduzir à perplexida<strong>de</strong> com<br />
argumentos contraditórios, como mencionou Tímon <strong>de</strong><br />
Fliunte 21 em qualquer parte com estas palavras: “Que<br />
gran<strong>de</strong> força tem a língua <strong>de</strong> dois gumes <strong>de</strong> Zenão, que<br />
não dá tréguas, sempre a atacar tudo e todos.”<br />
6. Mas quem mais se relacionou com <strong>Péricles</strong> e lhe<br />
incutiu uma majesta<strong>de</strong> e uma gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> alma capaz<br />
<strong>de</strong> suplantar qualquer <strong>de</strong>magogia, numa palavra, quem<br />
lhe inspirou e aperfeiçoou a dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> carácter foi<br />
Anaxágoras <strong>de</strong> Clazómenas, que os homens <strong>de</strong> então<br />
proclamavam como a própria Inteligência 22 personificada,<br />
quer por lhe admirarem a enorme e excepcional perspicácia<br />
revelada no estudo da natureza, quer por ter sido o primeiro<br />
<strong>de</strong> entre todos a <strong>de</strong>terminar, como origem da or<strong>de</strong>m<br />
universal, não o acaso ou a necessida<strong>de</strong>, mas a Inteligência<br />
pura e simples, que separou as substâncias com elementos<br />
em comum 23 da massa caótica dos restantes.<br />
20 O pré-socrático Parméni<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Eleia (ca. 510 - 430 a.C.)<br />
compôs um poema filosófico Sobre a Natureza, no qual <strong>de</strong>finia<br />
conceitos como verda<strong>de</strong>, ser, imutabilida<strong>de</strong> e aparência. Vi<strong>de</strong><br />
Guthrie (1969: 1 sq.).<br />
21 Filósofo céptico (320 e 230 a.C.), cuja obra mais famosa é<br />
Silloi, constituída por três livros <strong>de</strong> hexâmetros satíricos contra os<br />
filósofos, que <strong>de</strong>dicou a Xenófanes, <strong>de</strong> quem era admirador. Vi<strong>de</strong><br />
Guthrie (1969: 336).<br />
22 O termo aqui usado é nous ou noos. Cf. Introdução, n. 14.<br />
23 Consta que homeomeria seria o termo utilizado no<br />
sistema <strong>de</strong> Anaxágoras para <strong>de</strong>signar os elementos homogéneos<br />
que, <strong>de</strong>senvencilhados do caos, foram separados dos elementos<br />
heterogéneos, com os quais estavam dantes confundidos. Mas o<br />
termo não ocorre nos fragmentos <strong>de</strong> Anaxágoras que chegaram até<br />
nós. Sobre este assunto, leia-se Guthrie (1969: 325-326).<br />
60
61<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
5. 1. <strong>Péricles</strong>, que admirava extraordinariamente<br />
este homem, enchia-se daquilo que se chama “filosofia<br />
pura” e “especulação fundamental”. Daí lhe advinha<br />
não apenas, ao que parece, distinção <strong>de</strong> espírito; mas<br />
também um discurso elevado e isento <strong>de</strong> vulgarida<strong>de</strong>s e<br />
<strong>de</strong> ridicularias <strong>de</strong> mau tom; um rosto austero que não<br />
se abria a um sorriso; tranquilida<strong>de</strong> no andar e modéstia<br />
no vestir, que nunca se alteravam com a emoção dos<br />
discursos; a modulação da voz imperturbável; e outras<br />
tantas qualida<strong>de</strong>s que causavam a todos admiração.<br />
2. Certa vez, por exemplo, foi insultado e injuriado<br />
na ágora por um homem infame e insolente. Suportou-o<br />
todo o dia em silêncio, enquanto <strong>de</strong>spachava assuntos<br />
urgentes que tinha a tratar e à tar<strong>de</strong> foi tranquilamente<br />
para casa, ainda seguido pelo sujeito que lhe dirigia todo<br />
o tipo <strong>de</strong> impropérios. Quando já estava para entrar,<br />
como havia escurecido, or<strong>de</strong>nou a um dos escravos<br />
que pegasse num archote para escoltar e acompanhar o<br />
homem a casa.<br />
3. O poeta Íon 24 , no entanto, fala do contacto<br />
arrogante e um tanto altaneiro <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e afirma que<br />
ele misturava ao seu orgulho muito <strong>de</strong>sprezo e <strong>de</strong>sdém<br />
24 Íon (ca. 490-424 a.C.) foi um dos poucos tragediógrafos<br />
que os Alexandrinos incluíram no cânone, ao lado <strong>de</strong> Ésquilo,<br />
Sófocles e Eurípi<strong>de</strong>s. Mas a sua produção escrita esten<strong>de</strong>u-se por<br />
outros domínios, nomeadamente o elegíaco, o filosófico (Triagmo,<br />
on<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a realida<strong>de</strong> é trinitária) e o histórico (História da<br />
Fundação <strong>de</strong> Quios). Uma das suas obras mais famosas é Epi<strong>de</strong>mias,<br />
que tratava das viagens do seu autor e também das visitas <strong>de</strong> homens<br />
ilustres à sua terra natal. O seu estilo revela gosto pelo retrato e pela<br />
anedota. Vi<strong>de</strong> Lesky (1995: 439-441); Guthrie (1969: 158).
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
pelos outros; elogia, em contrapartida, Címon 25 , pelo<br />
tacto, <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e elegância que punha nas relações<br />
humanas. Mas <strong>de</strong>ixemos Íon que preten<strong>de</strong> que a virtu<strong>de</strong>,<br />
como numa sequência trágica 26 , tenha sempre algo <strong>de</strong><br />
drama satírico. Zenão 27 , pelo contrário, exortava aqueles<br />
que chamavam à majesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> ânsia <strong>de</strong> prestígio<br />
e orgulho a terem também eles essa mesma ânsia, pois<br />
a procura produz imperceptivelmente a emulação e o<br />
hábito do bem.<br />
25 Címon, nascido em 510 a.C., era marido <strong>de</strong> Isódice (neta<br />
do alcmeónida Mégacles) e filho <strong>de</strong> Hegesípile e <strong>de</strong> Milcía<strong>de</strong>s<br />
(con<strong>de</strong>nado em 489 a.C. por Xantipo, pai <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, a uma multa<br />
<strong>de</strong> cinquenta talentos que só foi paga quando a filha, Elpinice,<br />
casou, após a morte do pai na prisão, com Cálias, o homem mais<br />
rico <strong>de</strong> Atenas). Assumiu o comando da armada ateniense em 476 e<br />
manteve-o até 462 a.C., altura em que regressou <strong>de</strong> Itome, afastado<br />
pelos Espartanos que não estavam satisfeitos com o <strong>de</strong>sempenho<br />
dos aliados atenienses. Embora partidário da aristocracia que o<br />
apoiava, era bem visto pelas massas por causa das suas qualida<strong>de</strong>s<br />
bélicas e consequentes vitórias. Procurou preservar a aliança entre<br />
Atenas e Esparta, motivo pelo qual foi acusado <strong>de</strong> laconismo e<br />
punido com o exílio (461 a.C.). Morreu em combate (vi<strong>de</strong> infra<br />
10. 8) no ano <strong>de</strong> 449. Parece que as opiniões <strong>de</strong> Íon favoráveis a<br />
Címon resultam da amiza<strong>de</strong> que existia entre ambos: cf. Plutarco,<br />
Címon 5. 3, 9. 1-6, 16. 10.<br />
26 Plutarco diz com isto que, para Íon, a virtu<strong>de</strong> não <strong>de</strong>ve ser<br />
sempre séria e que <strong>de</strong>ve haver espaço para o riso: a tragédia grega<br />
é exemplo <strong>de</strong>sse pensamento, já que, à trilogia, se seguia o drama<br />
satírico, que frequentemente tratava, em tom burlesco, o mesmo<br />
tema das tragédias.<br />
27 Possivelmente não Zenão <strong>de</strong> Eleia (referido em Per. 4. 5), mas<br />
Zenão <strong>de</strong> Chipre (ca. 336-261 a.C.), o fundador do Estoicismo, a<br />
quem muitos apotegmas <strong>de</strong>ste género são atribuídos. Cf. Guthrie<br />
(1969: 19 sq); Stadter (1989: 80-81).<br />
62
63<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
6. 1. Não foram estes os únicos benefícios que<br />
<strong>Péricles</strong> tirou do convívio com Anaxágoras; parece que<br />
se tornou também superior à superstição que o espanto<br />
diante <strong>de</strong> certos fenómenos celestes suscita nos que<br />
não conhecem as suas causas e nos que, a propósito <strong>de</strong><br />
assuntos divinos, enlouquecem e se inquietam por nada<br />
saberem a esse respeito; o conhecimento da natureza<br />
elimina esses temores e faz nascer, em vez da superstição<br />
mórbida, a pieda<strong>de</strong> fundamentada em expectativas<br />
lógicas.<br />
2. Diz-se que uma vez trouxeram da sua<br />
proprieda<strong>de</strong> a <strong>Péricles</strong> a cabeça <strong>de</strong> um carneiro <strong>de</strong> um só<br />
corno e que o adivinho Lâmpon 28 , quando lhe examinou<br />
o corno robusto e sólido implantado no meio da testa 29 ,<br />
disse que sendo dois os partidos po<strong>de</strong>rosos que existiam<br />
na cida<strong>de</strong>, o <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e o <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s 30 , a autorida<strong>de</strong><br />
28 Este adivinho ateniense era amigo <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e participou,<br />
em 443 a.C., na expedição à Magna Grécia que tinha por intuito<br />
fundar a colónia <strong>de</strong> Túrios. Os comediógrafos não per<strong>de</strong>ram<br />
a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atacá-lo por ser um mantis (aquele que é<br />
consi<strong>de</strong>rado capaz <strong>de</strong> interpretar os sinais dos <strong>de</strong>uses, mas que não<br />
ocupa cargo oficial na máquina do Estado) e um gran<strong>de</strong> comilão,<br />
já que tinha o direito <strong>de</strong> comer no Pritaneu a expensas públicas<br />
(cf. Aristófanes, Nuvens 332, Aves 521, 987-988, Cratino, fr. 66<br />
K.-A.).<br />
29 As anomalias da natureza eram consi<strong>de</strong>radas prodígios que<br />
po<strong>de</strong>riam revelar os <strong>de</strong>sejos e as intenções dos <strong>de</strong>uses. O corno era<br />
visto como um símbolo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança.<br />
30 Tucídi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Melésias, foi um orador exímio, escolhido<br />
pelos aristocratas para ocupar o lugar que a morte <strong>de</strong> Címon – <strong>de</strong><br />
quem era parente por afinida<strong>de</strong> – <strong>de</strong>ixara vago na oposição a <strong>Péricles</strong>.<br />
Apesar <strong>de</strong> ter sido uma figura importante na política da década <strong>de</strong><br />
440 a.C., pouco se sabe a seu respeito, sobretudo porque foi muitas<br />
vezes confundido com homónimos, nomeadamente o historiador.<br />
Uma das suas principais tentativas para <strong>de</strong>rrubar a influência do
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
viria a caber apenas a um, aquele a quem o sinal tinha sido<br />
transmitido. Anaxágoras, por sua vez, aberta a cabeça,<br />
mostrou que o cérebro não enchia o crânio, mas tinha<br />
afunilado, pontiagudo como um ovo, <strong>de</strong> toda a cavida<strong>de</strong><br />
em direcção ao local on<strong>de</strong> tinha início a raiz do corno. 3.<br />
Neste momento, Anaxágoras mereceu a admiração dos<br />
presentes, mas, pouco <strong>de</strong>pois, foi Lâmpon a conquistála,<br />
quando, <strong>de</strong>stituído Tucídi<strong>de</strong>s, todos os interesses do<br />
povo, sem excepção, ficaram sob o controlo <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />
4. Nada impedia, penso eu, que quer o filósofo, quer<br />
o adivinho estivessem correctos: um compreen<strong>de</strong>u bem<br />
a causa, o outro, o propósito. Na verda<strong>de</strong>, o papel <strong>de</strong><br />
um é observar porque nasceu e como se <strong>de</strong>senvolveu<br />
tal fenómeno; o do outro é predizer com que finalida<strong>de</strong><br />
ocorreu e o que significava.<br />
5. Os que afirmam que a <strong>de</strong>scoberta da causa é a<br />
<strong>de</strong>struição do sentido do sinal não compreen<strong>de</strong>m que,<br />
com os símbolos divinos, estão a rejeitar também os<br />
símbolos convencionais, o toque dos gongos, a luz das<br />
tochas ou a sombra dos relógios <strong>de</strong> sol; cada um <strong>de</strong>les tem<br />
a sua causa, mas foi preparado para simbolizar qualquer<br />
coisa 31 . Mas isso é sem dúvida matéria <strong>de</strong> outro estudo.<br />
estadista, que crescia visivelmente a cada dia, consistiu no ataque<br />
ao programa <strong>de</strong> reconstrução da cida<strong>de</strong>. No entanto, o único po<strong>de</strong>r<br />
que conseguiu abalar foi o seu próprio, já que acabou votado ao<br />
ostracismo, <strong>de</strong>ixando o caminho livre para o seu adversário e para o<br />
florescimento da <strong>de</strong>mocracia. Segundo Diógenes Laércio, terá sido<br />
Tucídi<strong>de</strong>s a acusar Anaxágoras <strong>de</strong> impieda<strong>de</strong> (infra Per. 32. 5), por<br />
rivalida<strong>de</strong> com <strong>Péricles</strong>.<br />
31 Des<strong>de</strong> sempre o homem teve necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver o que o<br />
ro<strong>de</strong>ia através <strong>de</strong> signos convencionais, aos quais atribui diferentes<br />
significados, também eles convencionados. Plutarco põe em igual<br />
plano os símbolos divinos e os humanos, mostrando que nesta<br />
64
65<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
7. 1. <strong>Péricles</strong>, quando era jovem, temia enfrentar<br />
o povo. É que, segundo a opinião geral, era parecido<br />
com o tirano Pisístrato nos traços, na voz agradável e<br />
no estilo ágil e fluente do discurso; aos mais velhos tão<br />
forte semelhança <strong>de</strong>ixava-os atónitos. 2. Como era rico,<br />
membro <strong>de</strong> uma família ilustre e tinha amigos muito<br />
po<strong>de</strong>rosos, temia ser con<strong>de</strong>nado ao ostracismo e não<br />
participava na vida política, mas nas expedições militares<br />
era um homem corajoso e empreen<strong>de</strong>dor.<br />
3. Quando Aristi<strong>de</strong>s morreu e Temístocles foi<br />
exilado, as expedições militares retinham Címon<br />
muito tempo fora da Grécia 32 ; nessas circunstâncias,<br />
matéria não se po<strong>de</strong>m separar as águas: ambos têm por objectivo<br />
comunicar, transmitir um significado e todos foram criados para<br />
significar uma realida<strong>de</strong> específica. Recusar uns é pôr em causa<br />
todos.<br />
32 Durante as cerca <strong>de</strong> duas décadas que se seguiram às batalhas<br />
<strong>de</strong> Maratona (490 a.C.), Salamina (480 a.C.) e Plateias (479 a.C.) –<br />
<strong>de</strong>cisivas para esbater o perigo persa –, Aristi<strong>de</strong>s (ca. 540-468 a.C.)<br />
e Temístocles (ca. 528-462 a.C.) ocuparam posições <strong>de</strong> relevo na<br />
vida política <strong>de</strong> Atenas, pois tinham dado gran<strong>de</strong> contributo para<br />
a <strong>de</strong>rrota do inimigo: o primeiro alcançara a glória em Maratona;<br />
o segundo, além <strong>de</strong> ter sido o responsável pela organização da frota<br />
que viria a ser a mais po<strong>de</strong>rosa da Grécia, tinha sido o comandante<br />
da batalha <strong>de</strong> Salamina. Aristi<strong>de</strong>s, conhecido pelo seu sentido <strong>de</strong><br />
justiça e rigor, foi incumbido da constituição <strong>de</strong> uma aliança entre<br />
Atenas e os seus aliados que tinha por objectivo fazer frente ao<br />
inimigo bárbaro: com a Simaquia <strong>de</strong> Delos, os Gregos pretendiam<br />
estar preparados para eventuais retaliações e libertar os muitos<br />
Helenos que ainda se encontravam sob o jugo do Rei. Durante esta<br />
fase, Aristi<strong>de</strong>s foi também o comandante da frota <strong>de</strong> Atenas. Só<br />
em 476 a.C. é que Címon, até então seu subordinado, o substituiu<br />
nesta função, passando a ausentar-se com mais frequência <strong>de</strong><br />
Atenas. Quanto a Temístocles, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido arconte em 493<br />
a.C. (período no qual organizou a frota), não voltou a ser eleito
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
<strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>cidiu associar-se entusiasticamente ao povo,<br />
preferindo, em <strong>de</strong>trimento dos ricos e das minorias,<br />
o lado das maiorias e dos pobres, contra a sua própria<br />
natureza que era muito pouco populista. 4. Mas, ao que<br />
parece, como temia encontrar-se sob suspeita <strong>de</strong> tirania,<br />
e como via as tendências aristocráticas <strong>de</strong> Címon e as<br />
simpatias <strong>de</strong> que gozava entre os nobres, voltou-se para<br />
a multidão, para garantir a própria segurança e força<br />
contra o rival.<br />
5. Imediatamente modificou o modo <strong>de</strong> vida.<br />
Era visto, na cida<strong>de</strong>, a caminhar numa única rua, a que<br />
conduz à ágora e ao conselho; renunciou aos convites<br />
para banquetes e a todas as outras relações familiares e<br />
sociais, <strong>de</strong> modo que, durante todo o longo período <strong>de</strong><br />
tempo em que esteve no po<strong>de</strong>r, nunca foi jantar a casa <strong>de</strong><br />
um amigo, excepto quando o seu primo Euriptólemo <strong>de</strong>u<br />
uma festa <strong>de</strong> casamento; mesmo aí ficou até às libações 33<br />
e saiu em seguida. 6. É que as festas são terríveis para<br />
manter a dignida<strong>de</strong> e é difícil conservar na convivência a<br />
serieda<strong>de</strong> que leva à boa reputação. Porém, a verda<strong>de</strong>ira<br />
virtu<strong>de</strong> tanto mais bela é quanto mais evi<strong>de</strong>nte se torna,<br />
e, assim, nada nos homens superiores po<strong>de</strong> causar tanta<br />
admiração nos <strong>de</strong> fora quanto o seu dia-a-dia nos que<br />
com eles convivem.<br />
7. Para evitar a exposição constante e a consequente<br />
saturação, aproximava-se do povo a intervalos; não falava<br />
para nenhum cargo importante e terminou os seus dias no exílio,<br />
acusado <strong>de</strong> se ter aliado aos Persas (472 a.C.).<br />
33 As libações aos <strong>de</strong>uses marcavam o final da refeição<br />
propriamente dita. Nesta altura, era trazido o vinho para o<br />
symposium e começavam a beber.<br />
66
67<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
sobre um assunto qualquer e nem sempre comparecia<br />
em público. Como a trirreme Salamínia 34 , segundo<br />
Critolau 35 , <strong>Péricles</strong> guardava-se para as gran<strong>de</strong>s ocasiões<br />
e as restantes resolvia-as por meio dos amigos e outros<br />
oradores.<br />
8. Um <strong>de</strong>les foi, ao que se diz, Efialtes 36 , que<br />
arrasou o po<strong>de</strong>r do conselho do Areópago, dando a<br />
beber, nas palavras <strong>de</strong> Platão 37 , aos cidadãos liberda<strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> e da genuína. Dizem, os comediógrafos que,<br />
graças a ela, o povo empinado que nem um cavalo, “não<br />
34 A Salamínia e a Páralo eram trirremes sagradas com tripulações<br />
<strong>de</strong> elite, que se usavam em missões especiais, nomeadamente nas<br />
<strong>de</strong>slocações para consultas <strong>de</strong> oráculos ou para ir buscar generais,<br />
como aconteceu, em 415 a.C., quando Alcibía<strong>de</strong>s regressou da<br />
Sicília (Tucídi<strong>de</strong>s 6. 53. 1).<br />
Plutarco <strong>de</strong>fendia o método <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>: o estadista<br />
não tem condições <strong>de</strong> fazer tudo o que é necessário para o bom<br />
funcionamento da vida <strong>de</strong> um Estado sozinho. Tem <strong>de</strong> trazer todos<br />
os assuntos controlados e <strong>de</strong>legar funções, reservando para si as<br />
tarefas mais importantes.<br />
35 Filósofo peripatético do séc. II a.C., natural <strong>de</strong> Fasélis. Já em<br />
ida<strong>de</strong> avançada, tomou parte, com o académico Carnéa<strong>de</strong>s e com<br />
Diógenes Estóico, na expedição <strong>de</strong> filósofos a Roma em 156-155 a.<br />
C. Cf. Guthrie (1969: 62 n. 1).<br />
36 Deste estadista ateniense, conhecido, como <strong>Péricles</strong>, pela<br />
sua incorruptibilida<strong>de</strong>, sabe-se muito pouco. Filho <strong>de</strong> Sofóni<strong>de</strong>s,<br />
foi um dos poucos lí<strong>de</strong>res atenienses que não era rico. Substituiu<br />
Temístocles na li<strong>de</strong>rança dos populares e, consequentemente,<br />
teve em Címon o seu principal opositor. Foi responsável pela<br />
supressão <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res do Areópago em 462 a.C. (Per. 9. 5, 10. 7).<br />
Mas, os aristocratas, pouco satisfeitos com o sucedido, mandaram<br />
assassiná-lo no ano seguinte (Per. 10. 8). As más-línguas chegaram<br />
a responsabilizar <strong>Péricles</strong> pelo crime (Per. 10. 7). Sobre a reforma<br />
do Areópago, uma das últimas medidas para retirar po<strong>de</strong>r da<br />
aristocracia e transferi-lo para o povo, leia-se Ribeiro Ferreira<br />
(1990: 47).<br />
37 República 562c-d.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
tolerou mais obe<strong>de</strong>cer, mas mor<strong>de</strong> Eubeia e salta sobre<br />
as ilhas 38 ”.<br />
8. 1. Ajustando o discurso, como quem afina um<br />
instrumento, em harmonia com o seu modo <strong>de</strong> vida e<br />
com a sua gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> espírito, era frequente vibrar o<br />
tom <strong>de</strong> Anaxágoras, para <strong>de</strong>rramar uma coloração <strong>de</strong><br />
ciências da natureza sobre a sua retórica.<br />
2. De facto, “a elevação <strong>de</strong> pensamento e eficácia<br />
<strong>de</strong> execução que adquiriu”, como diz o divino Platão 39 ,<br />
“do saber acrescentado aos seus dotes naturais”, a que<br />
veio somar-se a vantagem <strong>de</strong> uma qualificação retórica,<br />
distinguiu-o muito <strong>de</strong> todos os outros. 3. Foi daí – é voz<br />
corrente – que lhe veio a alcunha; mas alguns pensam<br />
que lhe chamavam Olímpico por causa dos monumentos<br />
com que embelezou a cida<strong>de</strong>; outros ainda pela sua<br />
autorida<strong>de</strong> no governo e no comando militar. E não é<br />
improvável que essa reputação se <strong>de</strong>va à combinação <strong>de</strong><br />
todas as qualida<strong>de</strong>s que possuía. 4. Contudo, as comédias<br />
dos poetas do seu tempo que lançavam, em tom sério ou<br />
38 Este verso alu<strong>de</strong> ao tratamento pouco correcto que os<br />
Atenienses tiveram em relação aos aliados, nomeadamente a Eubeia,<br />
quando esta tentou <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pertencer à Simaquia. Atenas usou<br />
<strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> repressão contra todos aqueles que, achando<br />
<strong>de</strong>snecessário manter uma aliança contra o inimigo persa que já<br />
não oferecia perigo, quiseram libertar-se do compromisso (vi<strong>de</strong><br />
Ribeiro Ferreira 1990: 131-146). Aristófanes (Nuvens 211-213)<br />
apresenta uma anedota semelhante, também relacionada com<br />
<strong>Péricles</strong>: duas personagens estão a observar um mapa da Grécia e<br />
uma diz: “Aqui está a Eubeia que, como vês, se estira bem longe, a<br />
todo o comprimento”. Ao que a outra personagem replica: “Bem<br />
sei. Demos-lhe um bom estirão, nós e <strong>Péricles</strong>.”<br />
39 Fedro 270a.<br />
68
69<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
a rir, muitas bocas contra ele, mostram que o epíteto<br />
lhe veio sobretudo do discurso. Afirmam que produzia<br />
trovões e coriscos, quando falava ao povo, e que trazia<br />
um raio medonho na língua 40 . 5. Recor<strong>de</strong>-se uma frase<br />
<strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Melésias 41 , proferida por graça, a<br />
propósito da capacida<strong>de</strong> persuasiva <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. Tucídi<strong>de</strong>s<br />
era aristocrata e foi opositor <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> durante muito<br />
tempo. Quando, certa vez, Arquidamo 42 , rei <strong>de</strong> Esparta,<br />
lhe perguntou se era ele ou <strong>Péricles</strong> quem combatia<br />
melhor, Tucídi<strong>de</strong>s disse: “quando eu o <strong>de</strong>rrubo em<br />
combate, ele nega ter caído e leva a melhor, pois altera a<br />
opinião <strong>de</strong> quem assiste”.<br />
6. Todavia, o próprio <strong>Péricles</strong> era <strong>de</strong> tal modo<br />
pru<strong>de</strong>nte no discurso, que, sempre que se dirigia à tribuna,<br />
suplicava aos <strong>de</strong>uses que nenhuma palavra inoportuna<br />
40 A constante aproximação feita entre <strong>Péricles</strong> e Zeus tem uma<br />
intenção: tal como Zeus, ao instaurar uma nova or<strong>de</strong>m, propiciou<br />
a <strong>de</strong>cadência da Ida<strong>de</strong> do Ouro, assim <strong>Péricles</strong>, ao estabelecer uma<br />
<strong>de</strong>mocracia radical, inaugura uma nova era na qual se verifica<br />
um <strong>de</strong>teriorar progressivo da moral tradicional. Por outro lado, o<br />
controlo quase absoluto que <strong>Péricles</strong> tinha sobre a cida<strong>de</strong> assemelhase<br />
ao <strong>de</strong> Zeus no panteão. Aliás, ao comparar as palavras <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />
com os raios e coriscos <strong>de</strong> Zeus, sugere-se na perfeição não só o<br />
domínio <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> sobre o povo como também a sua capacida<strong>de</strong><br />
oratória.<br />
41 Melésias foi um treinador <strong>de</strong> luta livre muito conhecido no seu<br />
tempo. Segundo Platão (Menéxeno 94c), o gosto por esta activida<strong>de</strong><br />
era transmitido <strong>de</strong> geração em geração, pelo que Tucídi<strong>de</strong>s terá não<br />
só praticado este <strong>de</strong>sporto, como também iniciado os próprios<br />
filhos nessa activida<strong>de</strong>. No entanto, o combate que aqui se refere é<br />
provavelmente metafórico. Cf. Podlecki (1987: 39).<br />
42 Arquidamo II reinou entre 469 e 427 a.C. Foi ele quem<br />
comandou as invasões à Ática durante a Guerra do Peloponeso em<br />
431, 430 e 428 a.C., pelo que o primeiro período da guerra recebe<br />
o seu nome. Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 10-12, 18-20.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
para a questão em causa lhe saísse sem querer.<br />
7. Não <strong>de</strong>ixou nada escrito, excepto <strong>de</strong>cretos, e<br />
poucos são, na verda<strong>de</strong>, os ditos que <strong>de</strong>le se recordam 43 ,<br />
como o que or<strong>de</strong>na que se retire Egina 44 , como pus do<br />
olho do Pireu; ou um outro em que afirmava já ver a<br />
guerra a avançar do Peloponeso. 8. E, num dia em que<br />
Sófocles 45 , que com ele comandava uma expedição, ao<br />
saírem do porto louvou a beleza <strong>de</strong> um jovem, <strong>Péricles</strong><br />
censurou-o: – “Sófocles, é preciso que um general não<br />
tenha puras apenas as mãos, mas também os olhos”. 9.<br />
Estesímbroto 46 testemunha que, ao pronunciar, sobre a<br />
tribuna, o encómio dos mortos em Samos, ele teria dito<br />
que se tinham tornado imortais como os <strong>de</strong>uses – a esses,<br />
não os vemos, mas, pelas honras que recebem e pelas<br />
43 Como sendo da autoria <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, apenas se recordam<br />
quatro frases em Plutarco, Obras Morais 186c.<br />
44 Ainda que inicialmente não tenha feito parte da Simaquia<br />
<strong>de</strong> Delos, tornou-se tributária quando em 459 a.C. foi <strong>de</strong>rrotada<br />
numa batalha marítima por Atenas (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 105. 2, 108. 4).<br />
E, embora tenha permanecido na Simaquia após a assinatura do<br />
tratado <strong>de</strong> paz em 446 a.C., continuava a queixar-se a Esparta,<br />
facto que foi uma das causas da Guerra do Peloponeso (Tucídi<strong>de</strong>s<br />
1. 67.2, 139. 1). Em 431 a.C., os Atenienses expulsaram os<br />
habitantes <strong>de</strong>sta ilha, que, pela proximida<strong>de</strong> do Pireu, facilmente<br />
podiam bloquear o acesso ao porto, e instalaram lá os seus próprios<br />
cidadãos (Tucídi<strong>de</strong>s 2. 27. 1). A comparação entre Egina e uma<br />
infecção ocular é tanto mais expressiva se tivermos em conta que<br />
a conjuntivite era então uma doença muito frequente e impedia<br />
a visão <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>la pa<strong>de</strong>cia. Também Egina impedia o total<br />
funcionamento do Pireu.<br />
45 Trata-se do tragediógrafo que, em 441-439 a.C., foi estratego<br />
com <strong>Péricles</strong> na Guerra contra Samos.<br />
46 Estesímbroto (activo em finais do séc. V a.C.) foi rapsodo,<br />
comentador dos Poemas Homéricos e escreveu também uma obra<br />
intitulada Sobre Temístocles, Tucídi<strong>de</strong>s e <strong>Péricles</strong>, on<strong>de</strong>, com recurso<br />
constante a anedotas, ataca esses políticos atenienses.<br />
70
71<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
graças que conce<strong>de</strong>m, verificamos que são imortais. Ora<br />
essas características são comuns aos que morreram pela<br />
pátria.<br />
9. 1. Enquanto Tucídi<strong>de</strong>s 47 <strong>de</strong>screve o governo <strong>de</strong><br />
<strong>Péricles</strong> como aristocrático – sob o nome <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia,<br />
“na prática era o primeiro dos cidadãos quem governava”<br />
– muitos outros dizem que pela primeira vez o povo<br />
foi induzido por ele às cleruquias 48 , aos subsídios para<br />
assistir ao teatro 49 e à distribuição <strong>de</strong> compensações pelos<br />
serviços públicos 50 ; foi por causa das medidas <strong>de</strong> então<br />
que se habituou mal e se tornou esbanjador e libertino,<br />
47 Tucídi<strong>de</strong>s 2. 65. 9.<br />
48 Nos territórios que foram libertando do domínio bárbaro<br />
ou naqueles que tentavam abandonar a Simaquia <strong>de</strong> Delos, os<br />
Atenienses estabeleceram cleruquias que eram lotes <strong>de</strong> terras<br />
distribuídos aos cidadãos <strong>de</strong> Atenas. Aí, os próprios clerucos<br />
cultivavam as suas proprieda<strong>de</strong>s (ou recebiam rendas dos antigos<br />
donos que se tornavam seus granjeiros) e exerciam funções militares.<br />
Os clerucos mantinham a cidadania ateniense, ao contrário do que<br />
acontecia nas colónias usuais (apoikiai) que constituíam uma polis<br />
totalmente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da metrópole (cf. Diodoro Sículo 11. 88.<br />
3). No entanto, as cleruquias possuíam órgãos locais <strong>de</strong> governo,<br />
cuja existência é atestada por documentos epigráficos. Sobre este<br />
tema, vi<strong>de</strong> Ribeiro Ferreira (1990: 321); Mossé (1992: 111-<br />
112).<br />
49 O theorikon era o fundo do Estado com que se financiavam<br />
as festas públicas e com que se provia o pagamento <strong>de</strong> dois óbolos<br />
aos cidadãos pobres para que pu<strong>de</strong>ssem assistir às representações<br />
dramáticas. No entanto, a atribuição <strong>de</strong>sta medida a <strong>Péricles</strong> é<br />
controversa, pois só temos informações sobre este subsídio a partir<br />
do século IV (sobre esta problemática, vi<strong>de</strong> Stadter (1989: 111).<br />
Assim, é provável que Plutarco se referisse a um aumento do valor<br />
do theorikon em sentido global, medida que certamente agradaria<br />
ao povo. Sobre este fundo, leia-se Mossé (1992: 474).<br />
50 Cf. Platão, Górgias 515e, 518e.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
em lugar <strong>de</strong> ser pru<strong>de</strong>nte e trabalhador. Observemos,<br />
em função <strong>de</strong>stas acções, a causa da mudança <strong>de</strong><br />
política. 2. No começo, como já se disse, procurou o<br />
favor do povo para fazer frente ao prestígio <strong>de</strong> Címon,<br />
a quem era inferior na riqueza e nos bens, com os<br />
quais aquele atraía os pobres. Assim oferecia todos os<br />
dias uma refeição aos Atenienses necessitados, vestia os<br />
mais velhos e tirou as cercas das suas terras para que<br />
quem quisesse colhesse os frutos. <strong>Péricles</strong>, batido por<br />
essas medidas <strong>de</strong>magógicas, volta-se para a distribuição<br />
do tesouro público, aconselhado por Damóni<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Ea 51 , como contou Aristóteles 52 . 3. Rapidamente com<br />
os fundos para os espectáculos, com os salários dos<br />
juízes e com outras mistoforias e subsídios, corrompeu<br />
a multidão e usou-a contra o conselho do Areópago,<br />
<strong>de</strong> que ele não fazia parte por não ter obtido em sorte<br />
nem o cargo <strong>de</strong> arconte, nem o <strong>de</strong> tesmóteta, nem o<br />
<strong>de</strong> arconte-rei ou polemarco 53 . 4. É que estes cargos<br />
51 Aristóteles apresenta Damóni<strong>de</strong>s como influente conselheiro<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> que, por esse motivo, foi votado ao ostracismo. Não<br />
<strong>de</strong>ve ser confundido, o que aliás Aristóteles faz, com o filho Dámon<br />
(Per. 4. 1-4), que também foi conselheiro <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> na década <strong>de</strong><br />
30. Vi<strong>de</strong> Rho<strong>de</strong>s (1981: 341).<br />
52 Constituição <strong>de</strong> Atenas 27. 4.<br />
53 Principal magistratura da época arcaica e dos princípios do<br />
século V a.C., altura em que as reformas <strong>de</strong> 488-487 a.C. lhe<br />
reduziram a importância. Nesta fase, os arcontes eram já <strong>de</strong>z:<br />
um rei (com funções religiosas), um polemarco (com funções<br />
militares), um epónimo (dava o nome ao ano), seis tesmótetas<br />
(encarregados <strong>de</strong> redigir as leis) e um secretário. Acediam ao cargo<br />
por sorteio (que, aliás, era o método mais utilizado <strong>de</strong> acesso às<br />
magistraturas), à razão <strong>de</strong> um por tribo, com base numa lista <strong>de</strong><br />
quinhentos candidatos pré-seleccionados <strong>de</strong>ntre os membros das<br />
classes censitárias mais elevadas (pentacosiomedinos e cavaleiros).<br />
72
73<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
eram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre 54 sorteados e só através <strong>de</strong>les os que<br />
tivessem provado um bom <strong>de</strong>sempenho 55 ascendiam ao<br />
Areópago. 5. Por isso foi sobretudo quando <strong>Péricles</strong> teve<br />
mais crédito entre o povo que <strong>de</strong>struiu a autorida<strong>de</strong> do<br />
conselho 56 , <strong>de</strong> tal maneira que lhe tirou a maior parte<br />
das atribuições por intermédio <strong>de</strong> Efialtes 57 . Mais ainda,<br />
Vi<strong>de</strong> Ribeiro Ferreira (1990: 42, 108-112); Mossé (1992: 59-<br />
60). 54 Des<strong>de</strong> Sólon, segundo Aristóteles, Constituição <strong>de</strong> Atenas 8.<br />
2. Esta informação, no entanto, contradiz Política 1273b 41-1274a<br />
3, on<strong>de</strong> se afirma que Sólon não introduziu nenhuma mudança.<br />
Rho<strong>de</strong>s (1981: 272-274).<br />
55 Em Atenas, dokimasia era uma espécie <strong>de</strong> audiência ou<br />
escrutínio prévios que se fazia aos candidatos às magistraturas, quer<br />
fossem eleitos quer fossem sorteados, para verificar se dispunham<br />
das qualida<strong>de</strong>s necessárias para assumir funções (cf. Constituição<br />
<strong>de</strong> Atenas 55. 2-4). Não há, porém, relatos <strong>de</strong> procedimento<br />
semelhante em relação ao acesso ao Areópago. Plutarco usa com<br />
frequência o verbo da mesma família mas, aparentemente, sem o<br />
sentido que lhe era atribuído em Atenas. É provável que o Queroneu<br />
estivesse a pensar em euthynai, a avaliação a que era submetida a<br />
administração <strong>de</strong> um magistrado no final do seu mandato. Vi<strong>de</strong><br />
Ribeiro Ferreira (1990: 103, 323); Mossé (1992: 171).<br />
56 O Areópago, cujo nome advém do do local on<strong>de</strong> o conselho<br />
se reunia – a colina <strong>de</strong>dicada ao <strong>de</strong>us Ares –, era o órgão <strong>de</strong> governo<br />
mais antigo <strong>de</strong> Atenas (Plutarco, Sólon 19. 1). Dele faziam parte os<br />
que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> servirem o Estado como arcontes (cf. supra n. 53),<br />
passavam as euthynai (cf. nota anterior). Até 462 a.C., tinha como<br />
atribuições julgar os casos <strong>de</strong> homicídio, supervisionava os cultos<br />
oficiais e infracções contra estes e podia punir os magistrados que<br />
não <strong>de</strong>sempenhassem convenientemente as suas funções. Com a<br />
reforma, apenas manteve a jurisdição sobre os homicídios (Filocoro,<br />
FGrHist 328 F 64). Os restantes po<strong>de</strong>res foram distribuídos pelo<br />
Conselho dos Quinhentos, pela Assembleia e pelos tribunais. Vi<strong>de</strong><br />
Ribeiro Ferreira (1990: 44-49, 116-118); Mossé (1992: 60-<br />
62). 57 As informações sobre a reforma são poucas e muitas vezes<br />
controversas. Neste passo, Plutarco apresenta Efialtes como um<br />
agente <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. No entanto, em Plutarco (Címon 15. 2) e em
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
<strong>de</strong>sterrou, por ostracismo, Címon 58 como partidário<br />
dos Lace<strong>de</strong>mónios e inimigo do povo, embora este<br />
não fosse nem em fortuna nem em linhagem, inferior<br />
a ninguém, e tivesse alcançado belas vitórias sobre os<br />
bárbaros e enchido a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> riquezas e <strong>de</strong>spojos sem<br />
conta, como escrevemos na sua Vida 59 . Tal era o po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> sobre o povo.<br />
10. 1. Então o ostracismo tinha uma duração <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>z anos fixada por lei para os exílios. Entretanto, os<br />
Aristóteles (Constituição <strong>de</strong> Atenas 25. 1-2), é-nos dito que Efialtes<br />
age por sua conta e risco, o que é compreensível, já que era o lí<strong>de</strong>r<br />
dos populares e <strong>Péricles</strong> apenas um correlegionário. Vi<strong>de</strong> Mossé<br />
& Schnapp-Gourbeillon (1994: 249). Sobre Efialtes, cf. supra<br />
n. 36.<br />
58 A acusação <strong>de</strong> laconismo que aqui se salienta resulta da<br />
forte admiração que Címon nutria por Esparta, o que é bastante<br />
compreensível se tivermos em conta que era um anti<strong>de</strong>mocrata<br />
saudosista da oligarquia aí vigente. Plutarco conta que até os seus<br />
cavalos tinham nomes lace<strong>de</strong>mónios (Címon 16. 1), já para não<br />
mencionar os dos filhos, também com a mesma origem, facto que<br />
o próprio <strong>Péricles</strong> utiliza como arma <strong>de</strong> ataque contra o opositor e<br />
respectivos filhos (Per. 29. 1-2). Por isso, Címon procurava auxiliar<br />
os Espartanos em questões militares, valendo-se da aliança que<br />
ambos os povos haviam celebrado aquando das Guerras Médicas.<br />
Mas Atenas, que se sentia cada vez mais confiante no seu po<strong>de</strong>r, já<br />
não estava muito interessada em manter o pacto – basta lembrar<br />
que Efialtes tentou impedir (embora sem êxito) que Címon partisse<br />
para a Messénia em auxílio dos Lace<strong>de</strong>mónios em 462 a.C. A<br />
insistência <strong>de</strong> Címon acabou por ser a sua própria <strong>de</strong>sgraça: consta<br />
que as tropas sob o seu comando não tiveram o <strong>de</strong>sempenho que os<br />
Espartanos esperavam. Como estes começavam a temer o po<strong>de</strong>rio<br />
<strong>de</strong> Atenas, pensaram que essa “falta <strong>de</strong> êxito” era propositada e<br />
dispensaram as forças atenienses. A autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Címon ficou<br />
<strong>de</strong>sacreditada e, quando ele tentou opor-se à reforma do Areópago,<br />
não foi difícil acusá-lo <strong>de</strong> laconismo e votá-lo ao ostracismo.<br />
59 Címon 10. 1.<br />
74
75<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
Lace<strong>de</strong>mónios entraram com um gran<strong>de</strong> exército em<br />
Tânagra e <strong>de</strong> imediato os Atenienses marcharam contra<br />
eles 60 . Nessa altura Címon regressou do exílio e pegou<br />
em armas para combater com os da sua tribo. Queria,<br />
por meio <strong>de</strong> acções concretas, livrar-se da acusação <strong>de</strong><br />
laconismo ao partilhar o perigo com os concidadãos;<br />
mas os amigos <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> uniram-se e afastaram-no<br />
com o pretexto <strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sterrado 61 . 2. Por<br />
isso, parece que <strong>Péricles</strong> combateu 62 com toda a valentia<br />
naquela batalha e se distinguiu <strong>de</strong> todos, sem poupar a<br />
vida. 3. Todos os amigos <strong>de</strong> Címon, que <strong>Péricles</strong> também<br />
acusava <strong>de</strong> laconismo, sucumbiram. Os Atenienses<br />
foram tomados <strong>de</strong> um profundo arrependimento e<br />
<strong>de</strong> sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Címon: vencidos junto às fronteiras<br />
da Ática, esperavam uma guerra dura na Primavera<br />
seguinte. 4. Apercebendo-se disso, <strong>Péricles</strong> não hesitou<br />
em fazer a vonta<strong>de</strong> à multidão: ele próprio redigiu o<br />
<strong>de</strong>creto que trouxe Címon <strong>de</strong> volta. Este, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<br />
regressado, estabeleceu a paz entre as duas cida<strong>de</strong>s 63 .<br />
60 Na Primavera <strong>de</strong> 457 a.C. (cf. e. g. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 107. 2-108.<br />
1). Os Espartanos tinham partido em socorro da Dórida que<br />
fora atacada pela Fócida. Cumprido o intento, no regresso a casa,<br />
foram atacados em Tânagra pelos Atenienses que suspeitavam das<br />
intenções dos Lace<strong>de</strong>mónios: temiam um ataque dos <strong>de</strong>fensores da<br />
oligarquia incitado pelos anti<strong>de</strong>mocratas <strong>de</strong> Atenas.<br />
61 Segundo Plutarco (Címon 17. 5) o Conselho dos Quinhentos<br />
suspeitou que Címon quisesse confundir os soldados para ajudar<br />
os Lace<strong>de</strong>mónios. E Tucídi<strong>de</strong>s (1. 107. 4) chega a dizer que alguns<br />
oligarcas <strong>de</strong> Atenas seriam aliados <strong>de</strong> Esparta na esperança <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>rrubar a <strong>de</strong>mocracia.<br />
62 A participação <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> nesta batalha talvez seja invenção<br />
<strong>de</strong> Plutarco. Vi<strong>de</strong> Stadter (1989: 123).<br />
63 A data do acordo <strong>de</strong> paz entre Esparta e Atenas tem sido alvo<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> interesse por parte dos estudiosos mo<strong>de</strong>rnos, o que levou
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
É que os Lace<strong>de</strong>mónios tinham tanta simpatia por<br />
ele, quanto aversão por <strong>Péricles</strong> e pelos outros lí<strong>de</strong>res<br />
populares. 5. Alguns dizem que o regresso <strong>de</strong> Címon<br />
não foi <strong>de</strong>cretado por <strong>Péricles</strong> antes <strong>de</strong>, por intermédio<br />
<strong>de</strong> Elpinice, irmã <strong>de</strong> Címon 64 , ter sido celebrado entre<br />
eles um acordo secreto, segundo o qual Címon iria<br />
zarpar com duzentos barcos e comandar o exército no<br />
exterior para conquistar o território do Rei 65 , enquanto<br />
<strong>Péricles</strong> exercia o po<strong>de</strong>r na cida<strong>de</strong>.<br />
6. Parece que já antes Elpinice tinha ganhado a<br />
benevolência <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> para com Címon, quando este<br />
enfrentava uma acusação capital 66 . Nessa altura <strong>Péricles</strong><br />
era um dos acusadores, proposto pelo povo; quando<br />
Elpinice foi ter com ele e suplicou pelo irmão, este disselhe<br />
sorrindo: “Elpinice, estás velha, velha <strong>de</strong>mais para te<br />
meteres em tais sarilhos 67 ”. No entanto, levantou-se uma<br />
à produção <strong>de</strong> muitos estudos sobre o tema. Vi<strong>de</strong> Stadter (1989:<br />
124-125). Quanto a Plutarco, neste passo e em Címon 17. 8 -18.<br />
1, segue a versão <strong>de</strong> Teopompo (FGrHist 115 F 88), segundo a<br />
qual ainda não teriam passado cinco anos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do exílio<br />
<strong>de</strong> Címon, o que faz com que a intervenção <strong>de</strong>ste tenha tido lugar<br />
em 451-450 a.C.<br />
64 Desconhece-se a fonte <strong>de</strong>sta anedota, que po<strong>de</strong> ser uma versão<br />
modificada <strong>de</strong> uma outra da autoria <strong>de</strong> Antístenes. Este autor, entre<br />
outras alusões mordazes que faz à vida sexual <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, afirma que<br />
Elpinice teve <strong>de</strong> pagar o preço do regresso do irmão (Antístenes<br />
589e).<br />
65 Trata-se do rei da Pérsia. De acordo com Plutarco (Címon 18.<br />
1) aquele teria assumido voluntariamente esta tarefa na tentativa <strong>de</strong><br />
evitar a guerra entre os Gregos.<br />
66 Em Címon 14. 3-5, Plutarco, com base em Estesímbroto<br />
(FGrHist 107 F 5), conta que este inci<strong>de</strong>nte teve lugar <strong>de</strong>pois da<br />
conquista <strong>de</strong> Tasos (ca. 463 a.C.). Nesta altura, acusaram-no <strong>de</strong> ter<br />
aceitado subornos para não atacar a Macedónia.<br />
67 Esta anedota tem uma conotação sexual evi<strong>de</strong>nte: Elpinice<br />
76
77<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
única vez para falar, apenas para cumprir a sua obrigação,<br />
e logo se retirou, pelo que foi, <strong>de</strong>ntre os acusadores, o que<br />
menos prejudicou Címon 68 .<br />
7. Perante esta atitu<strong>de</strong>, como po<strong>de</strong> alguém crer em<br />
Idomeneu 69 que acusa <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong> ter morto à traição o<br />
lí<strong>de</strong>r popular Efialtes, que foi seu amigo e colaborador<br />
nas medidas governativas, por inveja e ciúmes da sua<br />
reputação? Na verda<strong>de</strong>, não se sabe don<strong>de</strong> tirou essas<br />
conclusões, como se <strong>de</strong>stilasse bílis contra um homem<br />
que <strong>de</strong>certo não era perfeito, mas que tinha um espírito<br />
nobre e uma alma se<strong>de</strong>nta <strong>de</strong> glória, on<strong>de</strong> uma paixão tão<br />
cruel e selvagem não teria lugar.<br />
8. Efialtes era terrível para os oligarcas e inflexível<br />
nas prestações <strong>de</strong> contas e perseguições contra os que<br />
prejudicam o povo. Os inimigos fizeram então uma<br />
conspiração contra ele e, às mãos <strong>de</strong> Aristódico <strong>de</strong> Tânagra,<br />
mataram-no secretamente, segundo disse Aristóteles 70 .<br />
está velha <strong>de</strong>mais para seduzir <strong>Péricles</strong>.<br />
68 Plutarco preten<strong>de</strong> pôr mais uma vez em evidência a praotes <strong>de</strong><br />
<strong>Péricles</strong>. É provavelmente por essa razão que o relato do episódio<br />
assume contornos totalmente diferentes consoante a personagem<br />
que é objecto <strong>de</strong> biografia: aqui, o Queroneu sugere que <strong>Péricles</strong><br />
<strong>de</strong>u pouca importância à oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prejudicar o adversário;<br />
porém, em Címon 14. 5, afirma que aquele soube tirar partido das<br />
circunstâncias em benefício da sua carreira. Na Vida <strong>de</strong> Címon,<br />
Plutarco parece partilhar da opinião <strong>de</strong> Aristóteles (Constituição <strong>de</strong><br />
Atenas 27. 1), que faz coincidir o acontecimento com a primeira<br />
vitória política <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> antes <strong>de</strong> se tornar lí<strong>de</strong>r dos populares.<br />
69 Idomeneu <strong>de</strong> Lâmpsaco (ca. 325-270 a.C.) foi amigo <strong>de</strong><br />
Epicuro e participou activamente na vida política da sua cida<strong>de</strong>.<br />
Conservam-se fragmentos <strong>de</strong> três obras com carácter biográfico<br />
<strong>de</strong> sua autoria: Dos Socráticos, Dos Demagogos e História da<br />
Samotrácia.<br />
70 Constituição <strong>de</strong> Atenas 25. 4.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
Entretanto, Címon morreu em Chipre durante<br />
uma campanha.<br />
11. 1. Os aristocratas, ao verem <strong>Péricles</strong>, como<br />
aliás já antes 71 , tornar-se o mais po<strong>de</strong>roso dos cidadãos,<br />
<strong>de</strong>sejavam que houvesse na cida<strong>de</strong> alguém que se lhe<br />
opusesse e que lhe abatesse o po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> modo que não<br />
se tornasse por completo numa monarquia. Destacaram<br />
para li<strong>de</strong>rar a oposição Tucídi<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Alópece, um<br />
homem sensato e parente <strong>de</strong> Címon, que, embora<br />
fosse menos dotado para a guerra do que Címon, era<br />
melhor orador e político. Este manteve-se vigilante na<br />
cida<strong>de</strong>, competiu com <strong>Péricles</strong> na tribuna e rapidamente<br />
criou um equilíbrio <strong>de</strong> forças políticas. 2. Não <strong>de</strong>ixou<br />
que a chamada “nata da socieda<strong>de</strong>” se dispersasse e se<br />
misturasse com o povo, como antes, o que fazia com<br />
que a sua dignida<strong>de</strong> fosse ofuscada pela massificação;<br />
tratou <strong>de</strong> marcar as diferenças e <strong>de</strong> os reunir todos num<br />
corpo coeso, <strong>de</strong> modo a pôr um contrapeso no prato da<br />
balança.<br />
3. É que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio, subjacente aos factos,<br />
havia, tal como no ferro, uma fenda que marcava<br />
a divergência entre a preferência <strong>de</strong>mocrática e a<br />
aristocrática; mas a rivalida<strong>de</strong> e a ambição <strong>de</strong>stes dois<br />
tornou a clivagem da cida<strong>de</strong> mais profunda e fez com<br />
que a uma facção se chamasse povo e a outra, oligarcas.<br />
4. Foi nestas circunstâncias que <strong>Péricles</strong> afrouxou<br />
as ré<strong>de</strong>as ao povo mais do que em qualquer outra ocasião<br />
71 Referência à época em que <strong>Péricles</strong> conseguiu o ostracismo<br />
<strong>de</strong> Címon.<br />
78
79<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
e tomou medidas políticas para lhe agradar, imaginando<br />
constantemente na cida<strong>de</strong> um espectáculo para todos<br />
ou um banquete ou uma procissão, e procurando<br />
diverti-la com prazeres não estranhos às musas. Enviava<br />
anualmente para fora sessenta trirremes em que<br />
embarcavam muitos cidadãos assalariados durante oito<br />
meses, que ao mesmo tempo praticavam e aprendiam<br />
a arte naval. 5. Além disso, enviou mil clerucos para<br />
o Quersoneso 72 , quinhentos para Naxos 73 , meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste<br />
número para Andros 74 ; mil para a Trácia com o intuito<br />
<strong>de</strong> fundarem uma colónia com os Bisaltas 75 ; outros para<br />
a Itália na altura do restabelecimento <strong>de</strong> Síbaris 76 , à qual<br />
chamaram Túrios. 6. Tomou estas medidas para aliviar<br />
a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma multidão inactiva que, por causa da<br />
72 O Quersoneso da Trácia, além <strong>de</strong> possuir um solo muito<br />
fértil, era um território estratégico, porque se situava na passagem<br />
da Europa para a Ásia, pelo que o seu domínio permitia controlar a<br />
afluência dos cereais vindos do Mar Negro para Atenas. No séc. VI<br />
a.C., foi proprieda<strong>de</strong> da família <strong>de</strong> Milcía<strong>de</strong>s; no princípio do séc.<br />
V a. C., a região ficou sob o domínio persa até que por volta <strong>de</strong> 450<br />
os Atenienses a integraram na Simaquia <strong>de</strong> Delos e aí fundaram<br />
várias cleruquias.<br />
73 Trata-se da ilha mais rica das Cícla<strong>de</strong>s, famosa pelos seus<br />
vinhos, que foi um dos primeiros membros da Simaquia <strong>de</strong> Delos<br />
e também a primeira a revoltar-se em 460 a.C. Mas, apesar da<br />
tentativa <strong>de</strong> secessão, foi forçada a permanecer como tributária e<br />
passou a cleruquia por volta <strong>de</strong> 450 a.C.<br />
74 Ilha mais setentrional das Cícla<strong>de</strong>s e provavelmente também<br />
um dos primeiros membros da Simaquia <strong>de</strong> Delos. Este é o único<br />
texto que faz referência a esta cleruquia.<br />
75 Povo trácio que habitava a Oeste do rio Estrímon.<br />
76 Antiga cida<strong>de</strong> da Magna Grécia que ficou conhecida pela sua<br />
riqueza e que foi <strong>de</strong>struída por Crotona em 510 a.C. Em 452 a.C.,<br />
alguns cidadãos tentaram reconstruí-la, sem gran<strong>de</strong> sucesso, pois<br />
foram expulsos. Só em 443 a.C., sob a li<strong>de</strong>rança dos Atenienses, é<br />
que, com a nova <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> Túrios, a cida<strong>de</strong> voltou a existir.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
ociosida<strong>de</strong> 77 , se intrometia nas reformas políticas, e para<br />
atenuar as dificulda<strong>de</strong>s do povo 78 ; ao mesmo tempo que<br />
instalava junto aos aliados medo e vigilância para que<br />
não se revoltassem.<br />
12. 1. O que trouxe encanto e beleza perfeitos a<br />
Atenas e originou a maior admiração junto dos outros<br />
povos – e que é o único testemunho a favor da Grécia,<br />
<strong>de</strong> que o seu tão celebrado po<strong>de</strong>r e antiga prosperida<strong>de</strong><br />
não são falácia –, foi a construção dos monumentos.<br />
De todas as medidas políticas <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> 79 foi esta a que<br />
os inimigos mais criticaram e atacaram na assembleia.<br />
Gritavam aos sete ventos que o povo perdia a reputação<br />
e era mal falado, porque transferira <strong>de</strong> Delos para o seu<br />
próprio terreno o tesouro comum dos Gregos 80 ; e que<br />
a justificação mais verosímil que podia contrapor aos<br />
que o acusavam era que, temendo os bárbaros, tirara o<br />
tesouro dali para o guardar num local seguro – <strong>de</strong>sculpa<br />
que <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>itou por terra. 2. E a Grécia consi<strong>de</strong>ra-<br />
77 Com esta afirmação, Plutarco <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> da acusação<br />
que alguns, nomeadamente Platão (Górgias 515e), lhe faziam <strong>de</strong> ser<br />
o responsável pela ociosida<strong>de</strong> do povo.<br />
78 As razões até agora apontadas correspon<strong>de</strong>m ao conteúdo<br />
do <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> fundação <strong>de</strong> Breia (Meiggs- Lewis 1969: 128-129,<br />
<strong>de</strong>creto n.º 49), segundo o qual são propostos como colonos os<br />
tetas e os zeugitas, as classes censitárias mais baixas <strong>de</strong> Atenas.<br />
79 Foi Isócrates (15. 234) que atribuiu as construções do século<br />
V a.C. à responsabilida<strong>de</strong> individual <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, que interpreta<br />
como manifestação da vonta<strong>de</strong> imperialista <strong>de</strong> Atenas (7. 66).<br />
80 Refere-se à transferência do tesouro da Simaquia <strong>de</strong> Delos,<br />
inicialmente <strong>de</strong>positado na ilha que dá nome à coligação, para<br />
Atenas por volta do ano 453 a.C., sob o pretexto <strong>de</strong> que em Delos<br />
estaria mais exposto a um hipotético saque bárbaro. Sobre este<br />
assunto, vi<strong>de</strong> Pritchett (1969: 17-21).<br />
80
81<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
se vítima <strong>de</strong> uma terrível violência e <strong>de</strong> uma tirania<br />
manifesta, ao ver-nos, com o contributo a que se viu<br />
forçada para as necessida<strong>de</strong>s bélicas, recobrir <strong>de</strong> ouro e<br />
embelezar a cida<strong>de</strong>, como a uma mulher vaidosa, que<br />
se cobre <strong>de</strong> pedras preciosas e <strong>de</strong> estátuas e templos que<br />
valem mil talentos 81 .<br />
3. Por seu lado, <strong>Péricles</strong> explicava ao povo que não<br />
<strong>de</strong>via satisfações dos fundos aos aliados, pois combatia<br />
por eles e mantinha os bárbaros afastados, sem que<br />
aqueles contribuíssem com um só cavalo, barco, ou<br />
hoplita 82 que fosse, mas apenas com dinheiro. E esse<br />
não pertence aos que o dão, mas aos que o recebem,<br />
se cumprem aquilo por que o recebem. 4. Se a cida<strong>de</strong><br />
já está convenientemente apetrechada com o que é<br />
necessário para a guerra, é preciso aplicar os exce<strong>de</strong>ntes<br />
nestas obras, que, uma vez concluídas, lhe trarão fama<br />
eterna, e, enquanto <strong>de</strong>correm, ocasionam prosperida<strong>de</strong><br />
imediata: é que vão proporcionar todo o tipo <strong>de</strong> trabalho<br />
e necessida<strong>de</strong>s diversas, que, ao incitar as várias artes e<br />
ao pôr em movimento todas as mãos, darão emprego à<br />
81 Os “adornos” a que o texto faz referência têm um<br />
correspon<strong>de</strong>nte nas obras da cida<strong>de</strong>: as “pedras preciosas” dizem<br />
respeito ao mármore utilizado na construção dos monumentos; as<br />
“estátuas”, entre outras, alu<strong>de</strong>m certamente à <strong>de</strong> Atena Parthenos; os<br />
“templos <strong>de</strong> mil talentos” são uma menção, ainda que hiperbólica,<br />
aos custos da construção dos templos. Isócrates (7. 66), por<br />
exemplo, estimava que se tivesse dispendido uma soma <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong><br />
mil talentos para construí-los. Mas a quantia exacta foi sempre alvo<br />
<strong>de</strong> polémica: Heliodoro (FGrHist 373 F 1) diz que os Propileus<br />
custaram dois mil e doze talentos; Diodoro Sículo (12. 40. 2), por<br />
sua vez, fala em quatro mil.<br />
82 Stadter (1989: 155) afirma que se trata <strong>de</strong> um argumento<br />
falso, já que, por exemplo, em 450 a.C., os aliados auxiliaram<br />
Atenas com barcos em Egina e no Egipto e por terra em Tânagra.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
cida<strong>de</strong> quase inteira, que se auto-embeleza ao mesmo<br />
tempo que se alimenta com os próprios recursos.<br />
5. Com efeito, aos que tinham juventu<strong>de</strong> e vigor,<br />
as expedições proviam <strong>de</strong> recursos oriundos do tesouro<br />
público; quanto à <strong>de</strong>sorganizada multidão operária,<br />
<strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>sejava que não fosse excluída do pagamento, e<br />
muito menos que fosse paga pelo ócio e inactivida<strong>de</strong>. Por<br />
isso, propôs entusiasticamente ao povo gran<strong>de</strong>s projectos<br />
<strong>de</strong> construções e planos <strong>de</strong> obras que implicavam muitas<br />
artes e muito tempo <strong>de</strong> execução, para que a população<br />
que ficava em casa não tivesse menos oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
beneficiar e receber a sua parte do tesouro público do<br />
que as tripulações que navegavam, as guarnições e os<br />
militares.<br />
6. As matérias-primas eram pedra, bronze, marfim,<br />
ouro, ébano e cipreste; os ofícios para as trabalharem<br />
e elaborarem eram os dos carpinteiros, fabricantes <strong>de</strong><br />
mol<strong>de</strong>s, forjadores, pedreiros, douradores, artistas do<br />
ouro e do marfim 83 , pintores, cravejadores, cinzeladores;<br />
já para não falar dos transportadores e fornecedores: por<br />
mar 84 , os comerciantes, marinheiros e pilotos; por terra,<br />
os carreteiros, os donos <strong>de</strong> juntas, os cocheiros; e ainda<br />
os cordoeiros, os tecelães, os curtidores, os empreiteiros<br />
<strong>de</strong> estradas, os mineiros. Cada ofício, como um general o<br />
seu exército particular, tinha uma multidão organizada <strong>de</strong><br />
trabalhadores não especializados, como um instrumento<br />
83 Sobre o trabalho do marfim, que requer um tratamento para<br />
torná-lo manuseável, nos fala Plutarco em Obras Morais 499e.<br />
84 O bronze, o marfim, o ouro, o ébano e os ciprestes chegavam a<br />
Atenas por mar, porque eram materiais que não existiam na Ática.<br />
82
83<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
e corpo <strong>de</strong> serviço 85 . Assim, as necessida<strong>de</strong>s repartiram<br />
e distribuíram o bem-estar pelas pessoas a bem dizer <strong>de</strong><br />
todas as ida<strong>de</strong>s e condições.<br />
13. 1. Os edifícios erguiam-se imponentes<br />
<strong>de</strong> proporções e <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> uma beleza e graça<br />
inimitáveis, pois os artistas esforçavam-se por superar a<br />
prática da sua arte com a perfeição técnica; mas o mais<br />
admirável foi a rapi<strong>de</strong>z da execução. 2. É que se previa<br />
que cada uma <strong>de</strong>ssas obras levaria várias gerações a ser<br />
concluída, mas todas chegaram ao fim durante o apogeu<br />
<strong>de</strong> um único governo.<br />
3. Diz-se, no entanto, que uma vez Zêuxis 86 ,<br />
ao ouvir o pintor Agatarco 87 vangloriar-se alto e bom<br />
som da rapi<strong>de</strong>z e facilida<strong>de</strong> com que pintava as figuras,<br />
replicou: 4. “Pois eu levo muito tempo”. É que a<br />
<strong>de</strong>streza e a rapi<strong>de</strong>z na execução não conferem à obra<br />
soli<strong>de</strong>z estável, nem beleza perfeita; porém o tempo<br />
aplicado <strong>de</strong> antemão na fadiga da execução dá em troca<br />
85 Segundo Ferguson (1904: 5-20), é possível que, para esta<br />
comparação, Plutarco tivesse em mente a medida <strong>de</strong> Adriano que<br />
or<strong>de</strong>nou a organização <strong>de</strong> certos ofícios quais cohortes, como se <strong>de</strong><br />
legiões militares se tratasse (cf. S. Aurélio Victor, Epítome <strong>de</strong> César<br />
14. 5).<br />
86 Pintor <strong>de</strong> Heracleia, no sul da Itália, que iniciou a sua activida<strong>de</strong><br />
em 435 a.C. Mais novo do que Agatarco, ficou conhecido pela<br />
subtileza das sombras que fazia. Há uma anedota que ilustra bem<br />
o realismo das suas obras: umas uvas pintadas, provavelmente num<br />
cenário para um drama satírico, chegaram a ser <strong>de</strong>bicadas pelos<br />
pássaros. Sobre este e os outros artistas referidos neste capítulo,<br />
veja-se Woodford (1982).<br />
87 Pintor <strong>de</strong> Samos que viveu no séc. V a.C. Segundo Plutarco<br />
(Obras Morais 346a), terá sido o inventor da perspectiva, do<br />
sombreado e do uso <strong>de</strong> cores mistas em vez <strong>de</strong> puras
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
a durabilida<strong>de</strong> na preservação do que foi criado. Daí que<br />
as obras <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> sejam mais dignas <strong>de</strong> admiração, já<br />
que foram produzidas em pouco tempo, para durarem<br />
muito.<br />
5. No que respeita à beleza, cada obra se mostrou<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo venerável; quanto ao esplendor, está ainda<br />
agora fresco, como se tivesse sido acabada <strong>de</strong> fazer.<br />
Deste modo, nelas floresce continuamente uma certa<br />
juventu<strong>de</strong>, que conserva um aspecto incorruptível pelo<br />
tempo, como se as obras incorporassem um espírito<br />
sempre jovem e uma alma que não envelhece.<br />
6. Fídias ocupou-se <strong>de</strong> tudo e <strong>de</strong> tudo foi<br />
o supervisor 88 , embora as obras tivessem gran<strong>de</strong>s<br />
arquitectos e artífices. 7. Calícrates 89 e Ictino 90 fizeram<br />
88 É apenas neste passo e em Per. 13. 14 que se atribui a Fídias<br />
um papel tão importante no projecto <strong>de</strong> embelezamento da cida<strong>de</strong>.<br />
No entanto, não é possível i<strong>de</strong>ntificar as fontes que Plutarco utiliza<br />
para fazer tal afirmação. Parece, porém, pouco provável que este<br />
escultor tenha sido tão influente. Este passo é certamente hiperbólico<br />
e provavelmente consequência da famosa história segundo a qual<br />
<strong>Péricles</strong> e Fídias eram amigos íntimos (vi<strong>de</strong> Per. 31. 1).<br />
89 Este arquitecto do século V a.C. trabalhou na construção<br />
das muralhas e fez o projecto do templo <strong>de</strong> Atena Nike, em estilo<br />
iónico. Também lhe é atribuído o terceiro templo <strong>de</strong> Apolo em<br />
Delfos.<br />
90 Segundo Estrabão (9. 395) e Pausânias (8. 41. 9), foi o único<br />
arquitecto do Pártenon. Parece que chegou a escrever um livro sobre<br />
esta obra, on<strong>de</strong> explicava os princípios utilizados na sua construção.<br />
Estrabão (9. 395) afirma que Ictino foi também o autor do telestério<br />
<strong>de</strong> Elêusis, embora Plutarco, seguindo fonte <strong>de</strong>sconhecida, atribua<br />
a sua construção a Corebo e Metágenes apenas. De acordo com<br />
Pausânias (8. 41. 9), foi também o responsável pelo templo <strong>de</strong><br />
Apolo em Figália. Terá sido o primeiro arquitecto a introduzir<br />
elementos iónicos na or<strong>de</strong>m dórica.<br />
84
85<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
o Pártenon hecatômpedo 91 ; em Elêusis 92 , Corebo<br />
começou a construir o telestério – implantou as colunas<br />
no pavimento e uniu-as às arquitraves; <strong>de</strong>pois da sua<br />
morte, Metágenes <strong>de</strong> Xípeto 93 acrescentou os frisos e as<br />
colunas superiores; Xénocles <strong>de</strong> Colarges 94 concluiu a<br />
clarabóia sobre o santuário. A gran<strong>de</strong> muralha, sobre<br />
a qual Sócrates diz ter ouvido pessoalmente <strong>Péricles</strong><br />
propor o projecto, foi Calícrates que a construiu 95 . 8.<br />
Cratino parodia essa obra pela lentidão com que foi<br />
executada (fr. 326 K.-A.): “Há tempos infinitos que<br />
<strong>Péricles</strong>, em palavras, é um vê se te avias, mas em obras<br />
nem se mexe.” 96<br />
91 “De cem pés”. Consta que o Pártenon, templo <strong>de</strong> Atena<br />
Parthenos, divinda<strong>de</strong> que protegia a cida<strong>de</strong>, foi construído entre<br />
447-432 a.C. no local anteriormente ocupado por um templo<br />
rectangular <strong>de</strong> cem pés áticos (29, 57 m.). Para mais informações<br />
sobre este edifício, leia-se Dinsmoor (1950: 159-179).<br />
92 Elêusis era uma cida<strong>de</strong> da Ática situada entre Atenas e Corinto,<br />
on<strong>de</strong> se celebrava o culto <strong>de</strong> mistérios mais famoso da Grécia: os<br />
mistérios <strong>de</strong> Elêusis, <strong>de</strong>dicados a Deméter e Perséfone. Este culto<br />
<strong>de</strong>corria a expensas da pólis e a sala dos mistérios – telestério –<br />
foi alargada e reconstruída por várias vezes: no séc. VI a.C., por<br />
Pisístrato; nos princípios do séc. V a.C. (antes <strong>de</strong> 480 a.C.) e anos<br />
mais tar<strong>de</strong> por <strong>Péricles</strong>.<br />
93 Metágenes apenas é mencionado por Plutarco. Pertencia a<br />
uma trítia urbana e à tribo Cecrópida.<br />
94 Apenas é referido por Plutarco.<br />
95 Esta é a única obra <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> que Platão menciona (Górgias<br />
455e). Trata-se do muro central (cf. Plutarco, Obras Morais 351a)<br />
que unia directamente o Pireu a Atenas e que era paralelo ao muro<br />
que ficava mais a norte e que fora construído entre 445-443 a.C.<br />
96 A <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> construir o muro data da primavera <strong>de</strong> 445<br />
a.C., mas o seu projecto é provavelmente anterior. Para a lentidão<br />
dos trabalhos contribuíram a crise em Atenas no ano <strong>de</strong> 446 a.C.,<br />
as exigências da guerra com Mégara e Eubeia e uma invasão dos<br />
Lace<strong>de</strong>mónios à Ática.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
9. O O<strong>de</strong>ão 97 , que tinha, no interior, muitos<br />
assentos e muitas colunas e cujo tecto era inclinado <strong>de</strong><br />
todos os lados partindo <strong>de</strong> um único vértice, dizem que<br />
foi feito à imagem e semelhança da tenda do Rei Persa,<br />
e a sua construção foi presidida por <strong>Péricles</strong>. 10. Por<br />
isso, Cratino, em Trácias, troça <strong>de</strong>le mais uma vez (fr. 73<br />
K.-A.): “Aí vem o Zeus-<strong>Péricles</strong> cabeça <strong>de</strong> cebola com o<br />
O<strong>de</strong>ão enterrado na tola, agora que a história do caco<br />
foi à viola.” 98<br />
11. Por ambição política, <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>cretou 99<br />
então pela primeira vez que houvesse um concurso<br />
<strong>de</strong> música nas Panateneias 100 e ele próprio, <strong>de</strong>signado<br />
97 Sala <strong>de</strong> música situada na vertente sul da Acrópole e a este<br />
do teatro <strong>de</strong> Dioniso. Este edifício tinha 62,4 m x 68,6 m e era<br />
constituído por <strong>de</strong>z filas <strong>de</strong> nove colunas. Segundo Pausânias<br />
(1. 20. 4), foi incendiado por Sila quando este invadiu Atenas.<br />
Consequentemente, Plutarco conheceu uma reconstrução posterior.<br />
A reprodução do edifício po<strong>de</strong> ver-se em Izenour (1992: 34-35).<br />
98 O ostrakon era o caco on<strong>de</strong> se fazia a votação do ostracismo,<br />
medida instituída possivelmente por Clístenes para punir aqueles<br />
que <strong>de</strong> algum modo agissem contra a polis. Anualmente, na reunião<br />
da Assembleia, cada membro escrevia num “caco” o nome do<br />
indivíduo que enten<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>ver ser afastado. O nome que reunisse<br />
mais votos era exilado por <strong>de</strong>z anos. Este era um meio a que, até<br />
443 a.C., frequentemente se recorria para tentar afastar inimigos<br />
políticos. Ao que parece, <strong>Péricles</strong> terá usado este estratagema,<br />
nomeadamente para afastar Tucídi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Melésias (Per. 14.<br />
3).<br />
99 Tal <strong>de</strong>creto <strong>de</strong>ve ser anterior a 446 a.C., data provável da<br />
conclusão dos trabalhos do O<strong>de</strong>ão.<br />
100 As Panateneias eram um festival que se celebrava anualmente<br />
a 28 <strong>de</strong> Hecatombéon (Julho-Agosto) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos <strong>de</strong> Pisístrato<br />
para comemorar o nascimento <strong>de</strong> Atena. De quatro em quatro anos,<br />
porém, eram celebradas com especial solenida<strong>de</strong>, dando origem<br />
às Gran<strong>de</strong>s Panateneias. Nestas eram <strong>de</strong> especial importância a<br />
procissão, as competições <strong>de</strong> ginástica, as corridas <strong>de</strong> cavalos, os<br />
86
87<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
presi<strong>de</strong>nte do júri, dispôs como convinha que os<br />
concorrentes tocassem flauta, cantassem, ou tangessem<br />
cítara. Assistiu-se, então, como em outros momentos, a<br />
concursos <strong>de</strong> música no O<strong>de</strong>ão.<br />
12. Os Propileus 101 da Acrópole, construídos pelo<br />
arquitecto Mnésicles, foram concluídos num quinquénio.<br />
Um acontecimento fantástico, que teve lugar durante a<br />
sua construção, revelou que a <strong>de</strong>usa Atena não lhe era<br />
indiferente, mas até ajudava a construir e concluir a obra.<br />
13. O mais activo e zeloso dos artífices escorregou e caiu<br />
do cimo do edifício 102 ; ficou num estado <strong>de</strong> tal maneira<br />
lamentável, que foi <strong>de</strong>senganado pelos médicos. <strong>Péricles</strong><br />
estava <strong>de</strong>sanimado, mas a <strong>de</strong>usa apareceu-lhe em sonhos<br />
concursos <strong>de</strong> música e as recitações dos Poemas Homéricos. Sobre<br />
este assunto, vi<strong>de</strong> Parke (1977: 33-50); Rocha Pereira ( 8 1998).<br />
O primeiro vencedor musical que se conhece é Frinis, que<br />
segundo Aristófanes (escólio a Nuvens 969), obteve a vitória em<br />
446 a.C. No entanto, há vestígios arqueológicos que evi<strong>de</strong>nciam<br />
a existência <strong>de</strong> competições musicais nas Panateneias <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o séc.<br />
VI a.C., que provavelmente terão sido interrompidas e mais tar<strong>de</strong><br />
retomadas por <strong>Péricles</strong> quando construiu o O<strong>de</strong>ão. Vi<strong>de</strong> Davison<br />
(1958: 23-42).<br />
101 Porta monumental da Acrópole que foi construída entre<br />
437-6 e 433-2 a.C.: são estes os dois monumentos mais famosos<br />
edificados sob o domínio <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. Os Propileus foram construídos<br />
em mármore pentélico e seguem o estilo iónico no interior, mas o<br />
dórico no exterior. Para mais pormenores sobre este monumento,<br />
leia-se Dinsmoor (1950: 199-205).<br />
102 Plínio (História Natural 22. 43-44) refere-se ao indivíduo em<br />
questão, dizendo que era um escravo muito estimado por <strong>Péricles</strong><br />
que teria caído do cimo <strong>de</strong> um templo. Segundo Plutarco, o artífice<br />
teria sofrido o aci<strong>de</strong>nte enquanto trabalhava nos Propileus. O certo<br />
é que chegaram até nós numerosas variações sobre o sucedido<br />
(uma, por exemplo, conta que o escravo teria caído do cimo <strong>de</strong><br />
uma oliveira), o que mostra que esta anedota se transformou num<br />
topos retórico, como sugere Pérez Jiménez (1996: 449).
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
e indicou-lhe um remédio 103 , com o qual <strong>Péricles</strong> tratou<br />
e curou o homem com toda a rapi<strong>de</strong>z e facilida<strong>de</strong>. Por<br />
isso, erigiu uma estátua em bronze <strong>de</strong> Atena Higia 104 na<br />
Acrópole, junto do altar da <strong>de</strong>usa que, segundo dizem,<br />
já existia antes.<br />
14. Foi Fídias quem executou a estátua <strong>de</strong> ouro<br />
da <strong>de</strong>usa 105 e, como seu autor, tem o nome inscrito<br />
na estela. Quase todos os trabalhos estavam sob a sua<br />
orientação e, como disse, superintendia a todos os<br />
artistas por causa da amiza<strong>de</strong> com <strong>Péricles</strong>. 15. Tal facto<br />
valeu invejas a um e calúnias ao outro, pois constava que<br />
Fídias arranjava, para <strong>Péricles</strong>, encontros com mulheres<br />
livres que vinham <strong>de</strong> visita às obras. Os cómicos <strong>de</strong>itaram<br />
mão à história e espalharam muita sem-vergonhice a seu<br />
respeito, com insinuações contra a mulher <strong>de</strong> Menipo,<br />
seu amigo e subalterno 106 , e contra a criação <strong>de</strong> aves<br />
<strong>de</strong> Pirilampes 107 , também amigo <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, que era<br />
103 Segundo Plínio (História Natural 22. 43-44), tratava-se da<br />
herba urceolaris ou astercum.<br />
104 Epíteto que Atena recebia enquanto protectora da saú<strong>de</strong> (cf.<br />
Pausânias 1. 23. 4).<br />
105 A estátua em questão, com cerca <strong>de</strong> <strong>de</strong>z metros <strong>de</strong> altura, era<br />
constituída por uma estrutura <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira abundantemente recoberta<br />
<strong>de</strong> ouro (no que respeita à figuração das roupas) e <strong>de</strong> marfim<br />
(no rosto, nas armas e nos pés) – daí ser chamada <strong>de</strong> criselefantina.<br />
106 Menipo apenas é referido em Obras Morais 812c, on<strong>de</strong> se diz<br />
que foi um colaborador militar <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />
107 Filho <strong>de</strong> Antifonte, casou-se em segundas núpcias com a<br />
mãe <strong>de</strong> Platão que era sua sobrinha (cf. Platão, Cármi<strong>de</strong>s 158a,<br />
Parméni<strong>de</strong>s 126b). Foi como embaixador à Ásia Menor e à Pérsia,<br />
<strong>de</strong> on<strong>de</strong> trouxe, em 440 a.C., pavões reais oferecidos pelo Rei. Estes<br />
animais exóticos foram durante cerca <strong>de</strong> trinta anos atracção em<br />
Atenas (Stadter 1989: 179).<br />
88
89<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
acusado <strong>de</strong> se servir dos pavões para subornar as mulheres<br />
com quem <strong>Péricles</strong> andava metido. 16. E porque há<strong>de</strong><br />
alguém surpreen<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> que homens que levam<br />
uma vida libertina sacrifiquem constantemente à inveja<br />
geral, como a uma divinda<strong>de</strong> malfazeja, calúnias contra<br />
quem lhes é superior, quando até Estesímbroto <strong>de</strong> Tasos<br />
se atreveu a publicitar, contra <strong>Péricles</strong>, um sacrilégio<br />
terrível e repugnante com a mulher do próprio filho 108 ?<br />
Assim parece ser penoso e difícil a quem investiga<br />
encontrar a verda<strong>de</strong>: os que vêm <strong>de</strong>pois têm o tempo<br />
entretanto <strong>de</strong>corrido a obscurecer o conhecimento<br />
dos factos; por seu lado a contemporaneida<strong>de</strong> com os<br />
acontecimentos e com as vidas corrompe e distorce a<br />
verda<strong>de</strong> ora por invejas e hostilida<strong>de</strong>s, ora por favores e<br />
adulações.<br />
14. 1. Quando os oradores apoiantes <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s<br />
clamavam contra <strong>Péricles</strong>, acusando-o <strong>de</strong> <strong>de</strong>lapidar o<br />
dinheiro e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdiçar os lucros, este perguntou ao<br />
povo na assembleia se lhe parecia que gastava muito.<br />
Como lhe respon<strong>de</strong>ram que gastava muitíssimo,<br />
retorquiu: “Pois bem, imputem-me a mim as <strong>de</strong>spesas e<br />
não mais a vocês!... mas apenas o meu nome constará das<br />
<strong>de</strong>dicatórias dos monumentos.” 2. Ora quando <strong>Péricles</strong><br />
fez esta afirmação, ou por admirarem a sua gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong><br />
alma, ou por rivalizarem pela glória dos edifícios, foi<br />
aos gritos que o exortaram a gastar do erário público e a<br />
usá-lo sem olhar a poupanças.<br />
3. Por fim, ousou fazer frente a Tucídi<strong>de</strong>s e arriscar<br />
108 Vi<strong>de</strong> Per. 36. 6.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
uma campanha pelo ostracismo, que lhe permitiu<br />
expulsá-lo e <strong>de</strong>rrubar a facção oposta 109 .<br />
15. 1. Foi então, quando esta divergência ficou<br />
inteiramente resolvida e a cida<strong>de</strong> se tornou homogénea<br />
e bem unida, que chamou a si Atenas e os assuntos que<br />
<strong>de</strong>pendiam dos Atenienses: tributos, tropas, trirremes,<br />
ilhas, mar, o potencial <strong>de</strong> que dispunha entre Helenos<br />
e Bárbaros e a hegemonia, garantida pela obediência<br />
dos povos, pelas alianças com reis e pelos acordos com<br />
dinastas. Ele próprio já não era o mesmo na tolerância<br />
para com o povo, nem na complacência para se submeter<br />
ou ce<strong>de</strong>r aos <strong>de</strong>sejos da multidão, que eram como o<br />
vento. Por oposição àquela <strong>de</strong>magogia transigente e por<br />
vezes branda, qual melodia florida e <strong>de</strong>licada, tangeu<br />
as cordas <strong>de</strong> um governo aristocrático e régio que usou<br />
com as melhores intenções <strong>de</strong> modo justo e inflexível.<br />
Na maior parte das vezes, conduziu, pela persuasão e<br />
com sentido pedagógico, o povo que o seguia <strong>de</strong> bom<br />
grado. Mas, quando o via muito <strong>de</strong>scontente, retesavalhe<br />
os freios e obrigava-o a agir <strong>de</strong> acordo com o que era<br />
do interesse público. Parecia realmente um médico 110<br />
109 De um modo geral, aponta-se como data do ostracismo<br />
<strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Melésias, o ano <strong>de</strong> 443 a.C., pois em Per.<br />
16. 3, Plutarco afirma que a supremacia <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> se prolongou<br />
por quinze anos após este acontecimento. No entanto, esta data<br />
não é aceite sem controvérsia: se admitirmos que o último ano<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> no po<strong>de</strong>r é o da sua <strong>de</strong>posição (Outono <strong>de</strong> 430 a.C.),<br />
então o ostracismo <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s foi votado no início <strong>de</strong> 444 a.C.;<br />
se consi<strong>de</strong>rarmos que <strong>Péricles</strong> só abandona o po<strong>de</strong>r com a morte<br />
(novamente reeleito estratego na Primavera <strong>de</strong> 429 a.C.) a data é,<br />
<strong>de</strong> facto, 443 a.C.<br />
110 Também Platão (Fedro 270b-d) comparou o verda<strong>de</strong>iro<br />
90
91<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
que, perante uma doença complicada e longa, conforme<br />
a ocasião, consente prazeres inofensivos, ou prescreve<br />
remédios cáusticos que trazem a cura.<br />
2. Como é natural, paixões <strong>de</strong> todos os tipos<br />
nasceram numa multidão com tamanho po<strong>de</strong>r; <strong>Péricles</strong><br />
era o único capaz <strong>de</strong> controlar convenientemente cada<br />
uma, utilizando sobretudo esperanças e medos, como<br />
um leme, para dominar a arrogância dos Atenienses ou<br />
para animar e consolar o seu <strong>de</strong>salento. Mostrou que<br />
a eloquência é, como diz Platão 111 , a arte <strong>de</strong> conduzir<br />
o espírito e que o seu principal papel é dar acesso aos<br />
sentimentos e às paixões, que são as cordas e sons da<br />
alma e que pe<strong>de</strong>m um <strong>de</strong>dilhar hábil e harmonioso. 3.<br />
A causa do sucesso que granjeou não foi somente a força<br />
do discurso, mas, como diz Tucídi<strong>de</strong>s 112 , a reputação<br />
da sua vida e o crédito <strong>de</strong> que gozava, como alguém<br />
manifestamente incorruptível e inacessível a subornos.<br />
Assim, fez da cida<strong>de</strong> que recebeu forte, a mais forte<br />
e a mais rica, e ele próprio, no que respeita ao po<strong>de</strong>r,<br />
ultrapassou muitos reis e tiranos. Várias <strong>de</strong> entre essas<br />
personalida<strong>de</strong>s o <strong>de</strong>signaram até como tutor dos seus<br />
fihos. Mas não acrescentou uma única dracma ao<br />
património que o pai lhe <strong>de</strong>ixara.<br />
orador a um médico. Segundo o fundador da Aca<strong>de</strong>mia (República<br />
425a-426b), ambos recorrem a pharmaka, kauseis e tomai. Sobre<br />
o uso que Plutarco faz da imagética médica quando se refere ao<br />
homem <strong>de</strong> Estado, leia-se Fuhrmann (1964: 238-240).<br />
111 Fedro 271 c-d.<br />
112 Tucídi<strong>de</strong>s 2. 65. 8.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
16. 1. Todavia, quanto ao po<strong>de</strong>r que <strong>de</strong>tinha,<br />
Tucídi<strong>de</strong>s <strong>de</strong>screve-o com clareza 113 , e mesmo os cómicos<br />
(a<strong>de</strong>sp. 703 K.-A.), com os seus azedumes, o <strong>de</strong>ixam<br />
patente, quando chamam aos seus correligionários a<br />
nova geração dos Pisistrátidas; exortam-no, por outro<br />
lado, a jurar que não se irá transformar num tirano,<br />
como se fosse <strong>de</strong>smesurada e opressiva para o sistema<br />
<strong>de</strong>mocrático a sua supremacia.<br />
2. Telecli<strong>de</strong>s diz que os Atenienses lhe confiaram<br />
(fr. 45 K.-A.) “as taxas das cida<strong>de</strong>s e as próprias cida<strong>de</strong>s,<br />
umas para serem subjugadas, outras libertadas; as<br />
muralhas <strong>de</strong> pedra, umas para construir, outras, pelo<br />
contrário, para <strong>de</strong>itar <strong>de</strong> novo abaixo, as alianças, a<br />
força, o po<strong>de</strong>r, a paz, a riqueza e a felicida<strong>de</strong>”.<br />
3. E esta situação não foi resultado <strong>de</strong> uma<br />
conjuntura, <strong>de</strong> um momento <strong>de</strong> auge ou da popularida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um governo que floria na sua estação, pois, durante<br />
quarenta anos 114 , <strong>Péricles</strong> manteve a primazia entre<br />
homens como Efialtes, Leócrates 115 , Miróni<strong>de</strong>s 116 ,<br />
113 Vi<strong>de</strong> Per. 9. 1.<br />
114 Este número é tradicional e surge também em Cícero,<br />
Do Orador 3. 138. Assim, <strong>Péricles</strong> teria ascendido ao po<strong>de</strong>r por<br />
volta <strong>de</strong> 468 a.C., tendo em conta que a sua morte ocorreu em<br />
429 a.C. Mas os estudiosos mo<strong>de</strong>rnos, <strong>de</strong> um modo geral, não o<br />
aceitam, pois acreditam que <strong>Péricles</strong> apenas se tornou proeminente<br />
após a morte <strong>de</strong> Efialtes, em 461 a.C., um ano após a reforma<br />
do Areópago. Sobre a posição dos mo<strong>de</strong>rnos, veja-se Meinhardt<br />
(1957: 46, n. 132).<br />
115 Filho <strong>de</strong> Estrebo, foi estratego ateniense entre 479-478 a.C.<br />
em Plateias e, em 459-458 a.C., ocupando o mesmo cargo, sitiou<br />
Egina (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 105. 2).<br />
116 Também foi estratego em Plateias e membro <strong>de</strong> uma<br />
embaixada a Esparta, enviada por Aristi<strong>de</strong>s em 480-479 a.C., na<br />
qual participaram ainda Címon e Xantipo (Heródoto, Histórias 9.<br />
92
93<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
Címon, Tólmi<strong>de</strong>s 117 e Tucídi<strong>de</strong>s [o filho <strong>de</strong> Melésias]. E<br />
<strong>de</strong>pois da <strong>de</strong>rrota e do ostracismo <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, durante<br />
não menos <strong>de</strong> quinze anos 118 , manteve um po<strong>de</strong>r único e<br />
contínuo que lhe advinha do cargo anual <strong>de</strong> estratego 119 .<br />
Conservou-se impermeável ao dinheiro, embora não<br />
6. 11; Plutarco, Aristi<strong>de</strong>s 10. 10). Venceu, como estratego, em 458<br />
a.C., os Coríntios em Mégara; em 456 a.C., os Tebanos em Enófita;<br />
dois anos mais tar<strong>de</strong>, comandou uma expedição à Tessália.<br />
117 Democrata radical que ficou conhecido pela expedição naval<br />
à volta do Peloponeso em 456/455 a.C., quando incendiou os<br />
estaleiros espartanos em Gítio. Conquistou as cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Cefalénia,<br />
Naupacto e Cálcis, no Golfo <strong>de</strong> Corinto, e saqueou as terras <strong>de</strong><br />
Sícion (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 108. 5). Li<strong>de</strong>rou cleruquias em Eubeia e Naxos<br />
e morreu em Coroneia como comandante das tropas enviadas em<br />
447 a.C. para pôr fim às sublevações na Beócia.<br />
118 Estes anos incluem-se, obviamente, nos hipotéticos quarenta<br />
em que <strong>Péricles</strong> esteve no po<strong>de</strong>r, com ou sem oposição. Caso<br />
contrário, isto é, se a estes quinze anos somássemos os quarenta,<br />
<strong>Péricles</strong> teria sido figura activa nas Guerras Pérsicas, o que é<br />
impensável se tivermos em conta que ele nasceu em 492 a.C.<br />
119 Os estrategos constituíam um colégio <strong>de</strong> <strong>de</strong>z membros<br />
oriundos da classe censitária mais elevada (pentacosiomedimnos).<br />
Não eram sorteados como a maioria dos magistrados, mas eleitos<br />
anualmente (à razão <strong>de</strong> um por tribo) pela Assembleia, que lhes<br />
indicava as directrizes a seguir e à qual tinham <strong>de</strong> prestar contas.<br />
Os membros <strong>de</strong>sta magistratura – que nos séculos V e IV a.C. foi<br />
uma das principais do regime <strong>de</strong>mocrático – podiam ser reeleitos<br />
sem limite <strong>de</strong> mandatos, como aconteceu com <strong>Péricles</strong> durante<br />
quinze anos consecutivos. Além do po<strong>de</strong>r militar, que era o que<br />
originalmente possuíam, tinham também autorida<strong>de</strong> política e<br />
administrativa, pelo que necessitavam <strong>de</strong> ser bons oradores para<br />
convencerem a Assembleia das suas opções políticas. A partir do<br />
início da Guerra do Peloponeso, porque ficavam muito tempo no<br />
campo <strong>de</strong> batalha e afastados da tribuna, vão-se assumindo cada vez<br />
mais como técnicos militares <strong>de</strong>sligados da política e passam a ser<br />
eleitos, já não um por tribo, mas indiferentemente <strong>de</strong>ntre todos os<br />
cidadãos. Para mais pormenores sobre esta magistratura, leiam-se,<br />
por exemplo, Ribeiro Ferreira (1990: 112-113); Mossé (1992:<br />
457-459).
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
fosse totalmente indiferente a questões <strong>de</strong> negócios.<br />
Assim, para que, por <strong>de</strong>scuido, o património paterno e<br />
legítimo não se esvaísse, e para que não trouxesse ainda<br />
mais afazeres e preocupações a quem já estava muito<br />
ocupado, organizou uma forma <strong>de</strong> administração que<br />
pensava ser a mais fácil e exacta. 4. Vendia por junto toda a<br />
colheita anual e <strong>de</strong>pois comprava na ágora cada produto<br />
à medida que era necessário ao seu dia-a-dia e regime <strong>de</strong><br />
vida. 5. Por isso não agradava aos filhos quando adultos,<br />
nem era um administrador generoso para as mulheres<br />
<strong>de</strong>les: criticavam-lhe essa gestão limitada ao dia-a-dia<br />
e sujeita a restrições, on<strong>de</strong> não havia as superfluida<strong>de</strong>s<br />
habituais numa casa gran<strong>de</strong> e rica, e qualquer <strong>de</strong>spesa<br />
ou lucro se contrabalançavam com peso e medida. 6.<br />
Quem lhe controlava toda esta disciplina era o criado<br />
Evângelo, que ou era dotado, como nenhum outro, <strong>de</strong><br />
capacida<strong>de</strong>s inatas para a administração, ou tinha sido<br />
instruído por <strong>Péricles</strong> para o efeito. 7. Esta conduta<br />
estava em <strong>de</strong>sacordo com a doutrina <strong>de</strong> Anaxágoras, se é<br />
realmente verda<strong>de</strong> que aquele <strong>de</strong>ixou a casa e abandonou<br />
os campos que possuía incultos para pasto das ovelhas,<br />
por inspiração divina e por gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> alma 120 . Mas<br />
120 Anaxágoras era oriundo <strong>de</strong> família rica e influente. No<br />
entanto, teria abdicado da sua herança e das facilida<strong>de</strong>s e sucesso<br />
político, que po<strong>de</strong>ria alcançar se daquela dispusesse, para se<br />
entregar à ciência e à filosofia (cf. Platão, Hípias Maior 281c, 283a;<br />
Diógenes Laércio 2. 6-7). Para ele a vida só tinha valor se servisse<br />
para uma melhor compreensão do cosmos a que se pertence; tudo<br />
o resto é supérfluo: o apego aos bens materiais e à felicida<strong>de</strong> terrena<br />
não vale a pena, pois todo o homem é mortal e, mais cedo ou<br />
mais tar<strong>de</strong>, todos têm o mesmo <strong>de</strong>stino (vi<strong>de</strong> Guthrie 1969: 266<br />
sq.). <strong>Péricles</strong>, embora admirasse Anaxágoras como ninguém (Per. 5.<br />
1), tinha uma visão mais pragmática da vida e nisso não seguia os<br />
94
95<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
penso que a vida <strong>de</strong> um filósofo contemplativo e a <strong>de</strong> um<br />
político não são a mesma coisa: o primeiro estimula a<br />
inteligência para o Bem sem precisão <strong>de</strong> instrumentos ou<br />
materiais externos; porém, para o político que mistura a<br />
excelência com as carências humanas, há circunstâncias<br />
em que a riqueza não só é uma necessida<strong>de</strong>, mas mesmo<br />
uma virtu<strong>de</strong>, como era o caso <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> que socorria<br />
muitos pobres 121 . 8. Na verda<strong>de</strong>, contam que o próprio<br />
Anaxágoras, já velho, sentindo-se abandonado por<br />
<strong>Péricles</strong> que estava sempre ocupado, se <strong>de</strong>itou e cobriu<br />
para morrer <strong>de</strong> fome. Quando o sucedido chegou aos<br />
ouvidos <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, este, aturdido, foi logo a correr para<br />
junto do amigo e dirigiu-lhe todo o tipo <strong>de</strong> súplicas, e<br />
não era por aquele que se lamentava, mas por si próprio,<br />
se per<strong>de</strong>sse tal conselheiro dos assuntos <strong>de</strong> Estado. 9.<br />
Anaxágoras <strong>de</strong>scobriu-se e disse-lhe: “<strong>Péricles</strong>, também<br />
os que necessitam <strong>de</strong> uma lâmpada lhe <strong>de</strong>itam azeite.”<br />
17. 1. Quando os Lace<strong>de</strong>mónios começaram<br />
a ficar incomodados com a ascensão dos Atenienses,<br />
<strong>Péricles</strong>, para exaltar o povo a orgulhar-se ainda mais e<br />
a julgar-se digno <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empresas, promulgou um<br />
<strong>de</strong>creto 122 , <strong>de</strong>terminando que todos os Gregos, habitantes<br />
ensinamentos do seu mestre, como no-lo diz Plutarco neste passo.<br />
121 É costume <strong>de</strong> Plutarco atribuir a virtu<strong>de</strong> da carida<strong>de</strong> às suas<br />
personagens (cf. Sólon. 2. 1), bem como reflectir sobre o uso que<br />
um político <strong>de</strong>ve fazer do dinheiro (cf. Publícola 1. 2, Fab. 7. 7, 8,<br />
Per.-Fab. 3. 5). Mas não consta que <strong>Péricles</strong> fosse possuidor <strong>de</strong> uma<br />
generosida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sinteressada, no que contrasta com Címon (10) e<br />
Nícias (3. 1).<br />
122 Este é o único testemunho <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, <strong>de</strong><br />
autenticida<strong>de</strong>, data e natureza controversas. A indicação temporal
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
<strong>de</strong> qualquer parte da Europa ou da Ásia, <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong><br />
pequena ou gran<strong>de</strong> 123 , enviassem embaixadores a Atenas<br />
para uma reunião: para falarem sobre os templos<br />
gregos 124 , que os bárbaros tinham incendiado; sobre os<br />
sacrifícios que os Gregos prometeram, quando lutaram<br />
contra os bárbaros, e que ainda <strong>de</strong>vem aos <strong>de</strong>uses; e<br />
também sobre o mar, para que todos naveguem em<br />
segurança e mantenham a paz 125 .<br />
2. Para o efeito, foram enviados vinte homens com<br />
mais <strong>de</strong> cinquenta anos 126 , dos quais cinco para convidar<br />
que Plutarco avança é muito vaga – “Quando os Lace<strong>de</strong>mónios<br />
começaram a ficar incomodados com o ascensão dos Atenienses” –,<br />
o que sugere que também ele não <strong>de</strong>ve ter tido acesso a informação<br />
mais precisa ou, pelo menos, não sentiu necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fornecer<br />
esse elemento. Assim, <strong>de</strong> acordo com o que o Queroneu nos diz,<br />
este <strong>de</strong>creto po<strong>de</strong> datar <strong>de</strong> qualquer altura entre 460 a.C. e o início<br />
da Guerra do Peloponeso. Tendo em conta que não faria sentido<br />
<strong>de</strong>bater a <strong>de</strong>struição dos templos levada a cabo pelos Persas após a<br />
reconstrução do Pártenon (447 a.C.), po<strong>de</strong>mos indicar essa data<br />
como terminus ante quem. Para terminus post quem, é possível<br />
sugerir que coincida com o período da Paz <strong>de</strong> Cálias, o que faz<br />
com que a data oscile entre 460 e 449 a.C. Sobre este <strong>de</strong>creto, vi<strong>de</strong><br />
Macdonald (1982: 120-123).<br />
123 Excluindo os Gregos da Itália e da Sicília.<br />
124 Além dos templos <strong>de</strong> Atenas, também foram incendiados<br />
os da Fócida, <strong>de</strong> Téspias e Plateias (Heródoto, Histórias 8. 32-33,<br />
50, 53).<br />
125 Aceita-se <strong>de</strong> um modo geral que esta menção diga respeito à<br />
Paz <strong>de</strong> Cálias. No entanto, po<strong>de</strong> perfeitamente ser uma referência a<br />
outro tratado, nomeadamente o <strong>de</strong> cinco anos datado <strong>de</strong> 451 a.C.<br />
(Tucídi<strong>de</strong>s 1. 112. 1).<br />
126 Os <strong>de</strong>cretos atenienses que se conservam fixam a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
cinquenta anos como mínima para que se possa <strong>de</strong>sempenhar<br />
o cargo <strong>de</strong> embaixador (vi<strong>de</strong> Todd 1948: inscr. 61. 1. 17 sq.).<br />
Este <strong>de</strong>creto não foi citado por nenhum outro autor cujos textos<br />
chegaram até nós, pelo que esta referência <strong>de</strong> Plutarco tem dado<br />
azo a diversas discussões sobre a sua data e veracida<strong>de</strong>. A frase em<br />
96
97<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
os Iónios, os Dórios da Ásia, e os ilhéus até Lesbos e<br />
Ro<strong>de</strong>s; cinco percorreram locais do Helesponto e da<br />
Trácia até Bizâncio; outros cinco foram para a Beócia,<br />
para a Fócida e para o Peloponeso e daí se afastaram,<br />
através da Lócrida, para o território vizinho até à<br />
Acarnânia e à Ambrácia. 3. Os restantes foram por Eubeia<br />
para Eta, para o golfo Malíaco e para a Ftia, para a Acaia<br />
e para a Tessália, exortando-os a irem tomar parte na<br />
reunião sobre a paz e as activida<strong>de</strong>s conjuntas da Grécia.<br />
4. Mas, nada foi feito nem as cida<strong>de</strong>s se reuniram,<br />
porque os Lace<strong>de</strong>mónios se opuseram secretamente,<br />
segundo se diz, já que o projecto foi recusado primeiro<br />
no Peloponeso. Se conto este episódio é para mostrar a<br />
sua nobreza <strong>de</strong> espírito e gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> alma.<br />
18. 1. Nas questões militares tem boa reputação<br />
sobretudo pela prudência, pois não se aventurava<br />
voluntariamente se a guerra oferecesse um risco muito<br />
incerto, nem invejava ou imitava os gran<strong>de</strong>s generais que<br />
se expunham ao perigo, <strong>de</strong>le tiravam gran<strong>de</strong>s sucessos<br />
e colhiam muita admiração. Dizia muitas vezes aos<br />
cidadãos que, no que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>le, permaneceriam<br />
para sempre imortais.<br />
2. Ao ver que Tólmi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Tolmeu, graças<br />
ao êxito anterior e à honra com que era distinguido<br />
causa e as que se lhe seguem são o maior indício <strong>de</strong> que se trata <strong>de</strong><br />
um <strong>de</strong>creto verídico, pois reflecte o estilo formular dos <strong>de</strong>cretos do<br />
séc. V a.C. Além disso, se o consi<strong>de</strong>rarmos autêntico, aceitamos,<br />
com Plutarco, que se trata <strong>de</strong> uma importante indicação acerca da<br />
política externa <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, que queria ultrapassar a proeminência<br />
<strong>de</strong> Esparta relativamente aos aliados.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
pelos seus feitos militares, se preparava para atacar a<br />
Beócia num momento pouco oportuno e persuadira<br />
os mais valentes e ambiciosos jovens em ida<strong>de</strong> militar<br />
a proporem-se como voluntários para a luta – eram mil<br />
além das outras tropas –, tentou impedi-lo e dissuadilo<br />
na assembleia, proferindo aquela frase que ainda é<br />
lembrada: se não acreditava em <strong>Péricles</strong>, não perdia por<br />
dar tempo ao tempo, que é o conselheiro mais avisado.<br />
3. Na ocasião essa frase foi pouco apreciada, mas alguns<br />
dias <strong>de</strong>pois, quando foi anunciado que o próprio<br />
Tólmi<strong>de</strong>s tinha morrido, vencido numa batalha junto<br />
<strong>de</strong> Coroneia, e que com ele tinham perecido muitos<br />
nobres 127 , o facto trouxe a <strong>Péricles</strong> gran<strong>de</strong> reputação e<br />
simpatia como homem pru<strong>de</strong>nte e patriota.<br />
19. 1. Das suas expedições, a do Quersoneso 128<br />
foi a mais apreciada, pois trouxe a salvação para os<br />
Gregos que ali habitam. Não só fortaleceu as cida<strong>de</strong>s<br />
com homens vigorosos ao enviar mil colonos atenienses,<br />
mas também cintou o istmo com fortalezas e muralhas<br />
<strong>de</strong> mar a mar, impediu as incursões dos Trácios<br />
espalhados ao redor do Quersoneso e pôs fim a uma<br />
guerra contínua e penosa, pela qual a região esteve<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre oprimida, em contacto com vizinhos<br />
bárbaros e infiltrada <strong>de</strong> tropas piratas nas fronteiras e no<br />
interior. 2. Foi admirado e ficou mesmo célebre entre os<br />
127 Dentre os quais Clínias, o pai <strong>de</strong> Alcibía<strong>de</strong>s (Plutarco,<br />
Alcibía<strong>de</strong>s 1. 1; Platão. Alcibía<strong>de</strong>s 112c; Isócrates 16. 28).<br />
128 A campanha, que libertou a região do flagelo dos piratas,<br />
bem como a cleruquia, <strong>de</strong>ve datar <strong>de</strong> 447 a.C., segundo parece<br />
indicar uma inscrição (IG I 2 943).<br />
98
99<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
estrangeiros por ter circum-navegado o Peloponeso 129 ,<br />
fazendo-se ao mar a partir <strong>de</strong> Pegas 130 em Mégara, com<br />
cem trirremes 131 . Não só <strong>de</strong>vastou gran<strong>de</strong> parte da costa,<br />
como antes Tólmi<strong>de</strong>s 132 , mas avançou para o interior<br />
com a infantaria que seguia nos barcos. Fez recuar para<br />
<strong>de</strong>ntro das muralhas todos os que temiam os seus ataques;<br />
em Nemeia 133 , <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter posto em fuga, pela força,<br />
os Siciónios que lhe ofereceram resistência e com ele<br />
combateram, erigiu um monumento comemorativo. 3.<br />
Depois <strong>de</strong> receber da Acaia, que era sua aliada, soldados<br />
para as trirremes, avançou com a frota para o continente<br />
<strong>de</strong>fronte; costeando o Aqueloo 134 , assolou a Acarnânia e<br />
aprisionou os Enéadas <strong>de</strong>ntro das muralhas. E <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> lhes <strong>de</strong>vastar e saquear o território, retornou a casa,<br />
mostrando-se terrível aos inimigos, pru<strong>de</strong>nte e eficaz<br />
aos concidadãos. Nenhum obstáculo, nem mesmo<br />
aci<strong>de</strong>ntal, surpreen<strong>de</strong>u os seus soldados.<br />
129 Ao contrário <strong>de</strong> Tólmi<strong>de</strong>s que realmente <strong>de</strong>u a volta ao<br />
Peloponeso, <strong>Péricles</strong> atravessou o golfo <strong>de</strong> Corinto, partindo <strong>de</strong><br />
Pegas e regressando ao mesmo porto. Esta expedição também é<br />
mencionada por Tucídi<strong>de</strong>s (1. 111. 2-3).<br />
130 Este porto no golfo <strong>de</strong> Corinto foi uma das principais<br />
conquistas dos Atenienses após a aliança com Mégara no princípio<br />
da década <strong>de</strong> 450 a.C. (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 103. 4), porque dava acesso<br />
directo ao golfo. Tal acesso era importante, pois se <strong>de</strong>le não<br />
pu<strong>de</strong>ssem usufruir, teriam <strong>de</strong> dar a volta ao Peloponeso.<br />
131 Segundo Diodoro Sículo (11. 85. 1), eram apenas cinquenta.<br />
132 Em 456-455 a.C. segundo Tucídi<strong>de</strong>s (1. 108. 5) e Diodoro<br />
Sículo (11. 84).<br />
133 Vale no território <strong>de</strong> Cleonas, on<strong>de</strong> se situava o santuário <strong>de</strong><br />
Zeus Nemeu e on<strong>de</strong> se realizavam os jogos do mesmo nome.<br />
134 Rio mais largo da Grécia que atravessa o Noroeste da Etólia,<br />
fazendo fronteira entre esta região e a Acarnânia, na costa oci<strong>de</strong>ntal<br />
do continente.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
20. 1. Navegou para o Ponto 135 com uma gran<strong>de</strong><br />
frota, magnificamente equipada. Aí conce<strong>de</strong>u às cida<strong>de</strong>s<br />
gregas o que pediam e tratou-as com humanida<strong>de</strong>;<br />
perante os povos bárbaros das redon<strong>de</strong>zas e os seus reis<br />
e príncipes, exibiu a gran<strong>de</strong>za do seu po<strong>de</strong>r, a segurança<br />
e a audácia com que podiam, se <strong>de</strong>sejassem, navegar e<br />
dominar todo o mar. Deixou aos Sinópios 136 treze naus<br />
e uma força <strong>de</strong> infantaria sob o comando <strong>de</strong> Lâmaco 137<br />
para lutar contra o tirano Timesilau 138 . 2. Expulso este<br />
e os seus partidários, <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>cretou que seiscentos<br />
135 Esta expedição, que apenas é mencionada por Plutarco, terá<br />
ocorrido entre a Guerra <strong>de</strong> Samos e a do Peloponeso e, segundo<br />
Stadter (1989: 217) terá sido uma tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração<br />
<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r da parte <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> aquando da ascensão <strong>de</strong> uma nova<br />
dinastia no Bósforo (cf. Diodoro Sículo 12. 31. 1).<br />
136 Sinope foi um importante empório do centro da costa<br />
meridional do Mar Negro, fundado por Mileto no séc. VII a.C.<br />
(Heródoto faz-lhe referência, por exemplo em 2. 34. 2; 4. 12.1).<br />
Em 437 a.C., <strong>Péricles</strong> pôs fim à tirania que aí existia e fundou uma<br />
cleruquia.<br />
137 Trata-se, provavelmente, do filho <strong>de</strong> Xenófanes e do mesmo<br />
indivíduo que, como general, per<strong>de</strong>u <strong>de</strong>z navios em 424 a.C. por<br />
ocasião da recolha dos tributos na região do Ponto (Tucídi<strong>de</strong>s<br />
4. 75. 1-2). Também participou na expedição à Sicília em 415-<br />
414 a.C., já com cerca <strong>de</strong> cinquenta anos e muita experiência<br />
militar acumulada. Quando teve lugar a campanha a que Plutarco<br />
se refere neste passo, <strong>de</strong>veria ser co-general com <strong>Péricles</strong>. Foi<br />
ridicularizado por Aristófanes em Acarnenses e Paz pela posição<br />
belicista assumida durante a Guerra do Peloponeso, e elogiado pelo<br />
mesmo comediógrafo por causa da sua morte heróica em Siracusa<br />
(Rãs1039).<br />
138 Na década <strong>de</strong> 1980, foi encontrada em Ólbia uma inscrição<br />
on<strong>de</strong> figura o nome <strong>de</strong> Timesilau. Por isso se pensa que o tirano e o<br />
seu irmão se refugiaram em Ólbia – cida<strong>de</strong> na costa do Mar Negro,<br />
habitada pelos Olbiopolitai (Heródoto 4. 18) –, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terem<br />
abandonado Sinope.<br />
100
101<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
Atenienses voluntários navegassem para Sinope e<br />
coabitassem com os Sinópios, partilhando as casas e as<br />
terras que o tirano e seus sequazes antes possuíam.<br />
3. Mas noutros aspectos, não ce<strong>de</strong>u aos impulsos<br />
dos cidadãos, nem permitiu que, estimulados pelo<br />
po<strong>de</strong>rio e êxito conseguidos, atacassem <strong>de</strong> novo o<br />
Egipto 139 e perturbassem as zonas costeiras do império<br />
persa. 4. Então já a muitos dominava aquela obsessão<br />
infeliz e <strong>de</strong>sgraçada da Sicília 140 , que <strong>de</strong>pois Alcibía<strong>de</strong>s<br />
139 A primeira campanha terá sido organizada em 460-459 a.C.<br />
para ajudar Inaro, rei da Líbia, que pretendia criar no Egipto um<br />
reino in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do persa. Depois <strong>de</strong> conquistar Mareia (região<br />
próxima da futura Alexandria), sentiu dificulda<strong>de</strong>s em controlar o<br />
resto do território e, consequentemente, pediu ajuda aos Atenienses.<br />
Os aliados, escolhidos sobretudo pelo seu po<strong>de</strong>rio naval, não<br />
hesitaram, já que era uma óptima oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mostrar à Pérsia<br />
que era preferível ter Atenas do seu lado a tê-la como inimiga. Na<br />
sequência do pedido <strong>de</strong> Inaro, partiu em direcção ao Egipto parte<br />
do contingente da Simaquia <strong>de</strong> Delos que então se encontrava<br />
em Chipre. Nos primeiros tempos, os Atenienses conseguiram<br />
correspon<strong>de</strong>r ao objectivo (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 104). Mas ao fim <strong>de</strong> seis<br />
anos, foram <strong>de</strong>rrotados por Megabizo e per<strong>de</strong>ram duzentos navios<br />
junto à ilha <strong>de</strong> Prosopítis (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 109-110).<br />
140 O interesse <strong>de</strong> Atenas pela Sicília e pelo Sul <strong>de</strong> Itália <strong>de</strong><br />
um modo geral era muito anterior à primeira expedição que<br />
empreen<strong>de</strong>ram àquela zona entre 427-424 a.C. (Tucídi<strong>de</strong>s 3. 86,<br />
88, 90, 99, 103, 4. 1-2, 25, 48. 6, 65). Na verda<strong>de</strong>, o crescente<br />
po<strong>de</strong>rio <strong>de</strong> Siracusa constituía uma ameaça para o império<br />
ateniense, já que esta era aliada da inimiga Corinto. <strong>Péricles</strong>, porém,<br />
não julgava necessária uma intervenção <strong>de</strong> peso contra esse perigo,<br />
nem oportuno alargar o domínio ateniense para Oeste, numa<br />
altura em que alguns aliados começavam a manifestar interesse pelo<br />
abandono da Simaquia <strong>de</strong> Delos. Consequentemente, como diz<br />
Plutarco, o estadista fez o possível por evitar o avanço das propostas<br />
expansionistas e limitou-se a fomentar uma aliança com Régio e<br />
Leontinos, <strong>de</strong> modo a terem um observador atento dos movimentos<br />
<strong>de</strong> Siracusa. Porém, em 427 a.C., já <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, os<br />
Atenienses acabaram por se envolver com os problemas da Sicília,
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
inflamou. Outros já sonhavam com a Etrúria e Cartago,<br />
não sem fundamento, dada a gran<strong>de</strong>za da hegemonia<br />
presente e o curso favorável dos acontecimentos.<br />
21. 1. Mas <strong>Péricles</strong> continha esse ímpeto e sustinha<br />
esse afã. Aplicou a maior parte da força existente para<br />
guardar e assegurar o que já possuíam, pois pensava<br />
que era <strong>de</strong> si uma gran<strong>de</strong> tarefa manter afastados os<br />
Lace<strong>de</strong>mónios; a este adversário opunha-se totalmente,<br />
como mostrara muitas outras vezes, sobretudo na forma<br />
como agira na Guerra Sagrada 141 . 2. Os Lace<strong>de</strong>mónios<br />
visto que os aliados <strong>de</strong> Atenas combatiam contra Siracusa e estavam<br />
a passar por sérias dificulda<strong>de</strong>s. O apoio seguiu sob a forma <strong>de</strong> vinte<br />
trirremes comandadas por Laques e Caroéa<strong>de</strong>s que regressaram em<br />
424 a.C. A segunda expedição à Sicília ocorreu em 415 a.C., mais<br />
uma vez para socorrer os aliados. Desta feita, os habitantes <strong>de</strong> Segesta<br />
e uma facção <strong>de</strong> Leontinos buscaram o auxílio <strong>de</strong> Atenas para a<br />
guerra que travavam com Selinunte, cida<strong>de</strong> apoiada por Siracusa.<br />
Embora houvesse a obrigação <strong>de</strong> não abandonar um aliado que se<br />
encontrava em dificulda<strong>de</strong>s, o certo é que nem todos se mostravam<br />
a favor <strong>de</strong>sta expedição que viria a ser o <strong>de</strong>sastre que faltava para o<br />
princípio do fim do império ateniense. Nícias representava aqueles<br />
que não viam o aparecimento <strong>de</strong> uma nova frente <strong>de</strong> batalha com<br />
bons olhos: segundo Tucídi<strong>de</strong>s (6. 9 sq.), aquele general <strong>de</strong>sconfiava<br />
das pretensões expansionistas que estariam por trás do nobre<br />
propósito <strong>de</strong> socorrer quem se encontrava em dificulda<strong>de</strong>s, por isso<br />
<strong>de</strong>fendia que não precisavam <strong>de</strong> mais inimigos (pois já tinham que<br />
fazer frente ao inimigo espartano) e que <strong>de</strong>viam conservar o que<br />
já possuíam e <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado ambições <strong>de</strong>snecessárias. Alcibía<strong>de</strong>s<br />
era a favor: <strong>de</strong>fendia acerrimamente o apoio <strong>de</strong>vido aos aliados e<br />
menosprezava quer o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Siracusa, quer o dos Espartanos;<br />
o que o movia era o sonho <strong>de</strong>, conquistada a Sicília, verem o seu<br />
po<strong>de</strong>r reforçado e assim terem meios para subjugar toda a Grécia.<br />
Sobre este tema, vi<strong>de</strong> Kagan (1981: 157 sq.).<br />
141 A guerra em questão recebeu este nome pois a sua causa foi<br />
o controlo do santuário <strong>de</strong> Delfos e do seu tesouro (Tucídi<strong>de</strong>s 1.<br />
112. 5), disputado por Fócios (aliados <strong>de</strong> Atenas) e Delfos. Sobre<br />
102
103<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
fizeram uma expedição militar a Delfos e restituíram ao<br />
seu povo o templo, que estava na posse dos Fócios. Mal se<br />
retiraram, <strong>Péricles</strong> interveio com o exército e reconduziu<br />
os Fócios. 3. Como os Lace<strong>de</strong>mónios tinham gravado o<br />
direito <strong>de</strong> consultar primeiro o oráculo 142 , que os Delfos<br />
lhes tinham concedido, na frente do lobo <strong>de</strong> bronze 143 ,<br />
<strong>Péricles</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> assegurar esse direito aos Atenienses,<br />
gravou-o no mesmo lobo, mas do lado direito 144 .<br />
este acontecimento bélico, há versões distintas da responsabilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Filócoro (FGrHist 328 F 34), Teopompo (FGrHist 115 F 156),<br />
Eratóstenes (FGrHist 241 F 38), mas Plutarco parece ter seguido a<br />
<strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, segundo o qual os Atenienses reagiram imediatamente<br />
a seguir à intervenção dos Lace<strong>de</strong>mónios (em 448 a.C.). O facto<br />
<strong>de</strong> os Atenienses apenas avançarem após a retirada dos Espartanos<br />
evitou o recontro que seria uma violação da paz firmada entre as<br />
duas cida<strong>de</strong>s.<br />
A Guerra Sagrada em causa foi a segunda; a primeira ocorreu<br />
por volta <strong>de</strong> 590 a.C. e as duas últimas já no séc. IV a.C.,<br />
respectivamente entre 356 e 346 a.C. e entre 340-338 a.C.<br />
142 Devido à importância dos oráculos <strong>de</strong> Delfos, o santuário<br />
<strong>de</strong> Apolo era muito concorrido. De todos os pontos do mundo<br />
antigo chegavam peregrinos para consultar os <strong>de</strong>sígnios divinos.<br />
Com tamanha afluência, a espera era naturalmente longa e difícil,<br />
até porque o clima da região é bastante rigoroso, quer no Inverno,<br />
quer no Verão. A or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> atendimento era <strong>de</strong>cidida por sorteio.<br />
No entanto, <strong>de</strong>terminados povos gozaram do direito <strong>de</strong> consultar<br />
o oráculo em primeiro lugar – a promanteia. Essa regalia era muito<br />
<strong>de</strong>sejada e acabava por traduzir a importância da polis que a possuía<br />
– daí a rivalida<strong>de</strong> entre Atenas e Esparta pela <strong>de</strong>tenção <strong>de</strong>sse<br />
privilégio que era concedido pelo povo responsável pelo santuário.<br />
143 O testemunho <strong>de</strong> Pausânias (10. 14. 7) indica-nos que o<br />
lobo ficava junto do altar-mor e que tinha sido oferecido pelos<br />
Delfos. Enquanto sacerdote do templo <strong>de</strong> Delfos e curioso <strong>de</strong> tudo<br />
o que lhe dizia respeito, é natural que o próprio Plutarco tenha lido<br />
as inscrições em questão.<br />
144 O direito <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong> na consulta do oráculo é também<br />
mencionado por Filócoro (FGrHist 328 F 34), que po<strong>de</strong>rá ter sido<br />
a fonte <strong>de</strong> Plutarco.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
22. 1. Que com razão canalizava as forças<br />
dos Atenienses para a Grécia, os acontecimentos<br />
testemunharam-no. Primeiro sublevaram-se os Eubeus,<br />
contra os quais marchou com as tropas 145 . Imediatamente<br />
<strong>de</strong>pois, foi anunciado que os Megarenses tinham<br />
<strong>de</strong>clarado guerra e que um exército <strong>de</strong> Peloponésios,<br />
conduzido pelo rei Plistóanax 146 <strong>de</strong> Esparta, assolava as<br />
fronteiras da Ática.<br />
2. <strong>Péricles</strong> regressou com prontidão <strong>de</strong> Eubeia<br />
para a guerra na Ática, mas não se atreveu a combater<br />
contra tantos e valorosos hoplitas que o provocavam.<br />
Ao aperceber-se <strong>de</strong> que Plistóanax era extremamente<br />
jovem e <strong>de</strong> que, <strong>de</strong>ntre os conselheiros, seguia sobretudo<br />
Cleândridas 147 , que os éforos enviaram com ele como<br />
guarda e assessor, por causa da sua juventu<strong>de</strong>, <strong>Péricles</strong><br />
abordou-o em segredo; rapidamente o convenceu<br />
145 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 114. 1. Esta é a segunda incursão <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />
contra Eubeia. A primeira teve lugar pouco <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong><br />
Tólmi<strong>de</strong>s em combate, altura em que os Eubeus se rebelaram contra<br />
Atenas. A insurreição não foi logo dominada, porque, entretanto,<br />
surgiu uma nova frente <strong>de</strong> batalha, já que também Mégara causava<br />
problemas e estava iminente uma invasão da Ática li<strong>de</strong>rada pelos<br />
Peloponésios (Per. 22. 1). Só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> resolvidos estes problemas é<br />
que <strong>Péricles</strong> se pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>dicar à questão <strong>de</strong> Eubeia.<br />
146 Filho <strong>de</strong> Pausânias que reinou entre 458 e 408 a.C. (cf.<br />
Diodoro Sículo 11. 88. 3). Por esta altura <strong>de</strong>via ser muito jovem –<br />
com cerca <strong>de</strong> vinte e cinco ou trinta anos – já que Plutarco salienta<br />
a sua juventu<strong>de</strong>. Depois do fracasso <strong>de</strong>sta expedição, refugiou-se<br />
na Arcádia (Per. 22. 3). Só regressou a Esparta em 427 a.C., após a<br />
morte <strong>de</strong> Arquidamo e influenciado por um oráculo pítico.<br />
147 Era provavelmente um éforo (cf. Suda, s. v. ἔφοροι) que<br />
lutara com Terina (Polieno 2. 10. 1) e Tégea (id. 2. 10. 3). Após o<br />
<strong>de</strong>sterro a que Plutarco alu<strong>de</strong> em Per. 22. 3, participou na fundação<br />
<strong>de</strong> Túrios (id. 2. 10).<br />
104
105<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
a <strong>de</strong>ixar-se subornar e a retirar os Peloponésios da<br />
Ática 148 .<br />
3. Quando o exército bateu em retirada e se<br />
dispersou pelas diversas cida<strong>de</strong>s, os Lace<strong>de</strong>mónios,<br />
indignados, impuseram uma multa em dinheiro ao<br />
rei 149 . Como ele não tinha a quantia suficiente para<br />
pagar, <strong>de</strong>ixou a Lace<strong>de</strong>mónia 150 . Quanto a Cleândridas,<br />
que se tinha afastado, foi con<strong>de</strong>nado à morte 151 . 4. Este<br />
era pai daquele Gilipo que <strong>de</strong>rrotou os Atenienses na<br />
Sicília 152 . Parece que a natureza transmitiu ao filho,<br />
como uma doença hereditária, a mesma ambição; esse<br />
foi o motivo por que, surpreendido em <strong>de</strong>lito, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
actos notáveis, foi também vergonhosamente expulso <strong>de</strong><br />
Esparta. Contámos este episódio na Vida <strong>de</strong> Lisandro.<br />
23. 1. <strong>Péricles</strong> registou, nas contas do seu<br />
mandato <strong>de</strong> estratego, uma <strong>de</strong>spesa <strong>de</strong> <strong>de</strong>z talentos<br />
148 O suborno <strong>de</strong> Cleândridas é apontado como causa da<br />
retirada espartana em Tucídi<strong>de</strong>s 2. 21. 1, 5. 16. 3. Éforo (FGrHist<br />
70 F 193) relaciona-o com os vinte talentos que faltavam nas<br />
contas apresentadas por <strong>Péricles</strong> (em Per. 23. 1, o valor indicado é<br />
<strong>de</strong> apenas <strong>de</strong>z talentos).<br />
149 Quinze talentos segundo Éforo (FGrHist 70 F 193) e cinco<br />
segundo Suda, s. v. δέον.<br />
150 Plistóanax refugiou-se no santuário <strong>de</strong> Zeus Liceu, na<br />
fronteira com a Arcádia. Foi-lhe permitido regressar a Esparta e ao<br />
trono em 427 a.C. Segundo Tucídi<strong>de</strong>s (5. 16. 1-3), apoiou a Paz <strong>de</strong><br />
Nícias em 421 a.C. e reinou até à sua morte em 408 a.C.<br />
151 Viveu exilado em Túrios, on<strong>de</strong> ficou famoso como general<br />
(cf. D. S. 13. 106. 10; Antíoco Histórico FGrHist 555 F 11;<br />
Tucídi<strong>de</strong>s 6. 93. 2; Polieno 2. 10.).<br />
152 Em 414-413 a.C. Cf. Plutarco, Nícias 28. Foi <strong>de</strong>sterrado<br />
porque, após a rendição dos Atenienses, roubou trinta dos mil<br />
talentos <strong>de</strong> saque que Lisandro lhe confiara e escon<strong>de</strong>u-os <strong>de</strong>baixo<br />
do telhado da sua casa (cf. Plutarco, Lísias 16. 2-17).
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
dispendidos como gastos diversos 153 . O povo aprovou<br />
sem se intrometer e sem questionar o mistério. 2.<br />
Contam alguns 154 , <strong>de</strong>ntre os quais o filósofo Teofrasto,<br />
que iam anualmente para Esparta da parte <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />
<strong>de</strong>z talentos, com os quais, adulando todos os que<br />
estavam no po<strong>de</strong>r, adiava a guerra. Não comprava a paz,<br />
comprava tempo, para se preparar calmamente para<br />
combater com vantagem.<br />
3. Voltou-se <strong>de</strong> novo contra os rebel<strong>de</strong>s, atravessou<br />
Eubeia com cinquenta navios e cinco mil hoplitas e<br />
submeteu as várias cida<strong>de</strong>s 155 . 4. Expulsou <strong>de</strong> Cálcis<br />
os chamados Hipóbotas 156 , que se distinguiam pela<br />
riqueza e pela reputação. Fez partir da sua terra todos os<br />
Hestieus e aí instalou Atenienses 157 – só a estes tratou <strong>de</strong><br />
153 Este episódio também é mencionado por Aristófanes<br />
em Nuvens 858-859. Segundo o escoliasta <strong>de</strong>ste passo, que<br />
provavelmente se baseou em Éforo (FGrHist 70 F 193), a soma era<br />
<strong>de</strong> vinte talentos. Suda s.v. δέον refere cinquenta talentos.<br />
154 Apesar do plural, é provável que Plutarco apenas tivesse<br />
em mente Teofrasto, já que este episódio não é relatado em mais<br />
nenhuma parte. No entanto, a reacção dos Espartanos face ao<br />
comportamento <strong>de</strong> Plistóanax e Cleândridas não confere gran<strong>de</strong><br />
veracida<strong>de</strong> ao testemunho <strong>de</strong> Teofrasto: se não conseguiram admitir<br />
um suborno momentâneo, como iriam suportá-lo por <strong>de</strong>z anos?<br />
155 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 114. 3; Plutarco supra Per. 22. 1.<br />
156 “Criadores <strong>de</strong> cavalos”. Trata-se da classe rica <strong>de</strong> Cálcis que<br />
foi muito penalizada pela cleruquia <strong>de</strong> 506 a.C. (Heródoto 5. 74-<br />
77). Segundo Stadter (1989: 232), os Hipóbotas teriam li<strong>de</strong>rado<br />
uma revolta contra os Atenienses para instaurar uma oligarquia,<br />
mas acabaram por ser expulsos; assim, após o estabelecimento da<br />
cleruquia, só em 446 a.C. teria sido possível pôr termo à oposição da<br />
classe rica. Manfredini (1968: 199-212) pensa que esta referência<br />
<strong>de</strong> Plutarco é uma versão errada da narração <strong>de</strong> Heródoto sobre os<br />
factos <strong>de</strong> 506 a.C.<br />
157 Esta colónia recebeu o nome <strong>de</strong> Oreu e foi uma importante<br />
base ateniense na costa norte <strong>de</strong> Eubeia até ao fim da Guerra do<br />
106
107<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
modo inflexível, porque tomaram uma nau ática como<br />
prisioneira <strong>de</strong> guerra e mataram a tripulação 158 .<br />
24. 1. De seguida, firmada uma trégua <strong>de</strong> trinta<br />
anos entre Atenienses e Lace<strong>de</strong>mónios 159 , <strong>de</strong>cretou<br />
uma expedição naval contra Samos 160 , acusando os seus<br />
habitantes <strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> exortados a terminarem a guerra<br />
contra Mileto, não obe<strong>de</strong>cerem. 2. Mas, como parece que<br />
fez guerra contra Samos para agradar a Aspásia 161 , talvez<br />
seja então a melhor ocasião para questionar esta mulher,<br />
que arte ou po<strong>de</strong>r tão gran<strong>de</strong> tinha, que dominava os<br />
Peloponeso (Tucídi<strong>de</strong>s 8. 95. 7). Teopompo (FGrHist 115 F 387)<br />
acrescenta ainda que os clerucos eram em número <strong>de</strong> mil e que os<br />
Hestieus emigraram para a Macedónia.<br />
158 Esta explicação é exclusiva <strong>de</strong> Plutarco.<br />
159 No Inverno <strong>de</strong> 445-444 a.C. (cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 115. 1).<br />
160 A guerra <strong>de</strong> Samos ocorreu entre 441-439 a.C., cinco anos<br />
após a celebração do tratado <strong>de</strong> paz (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 115. 2). Samos<br />
fazia parte da Simaquia, mas tinha uma frota própria e tinha<br />
entrado em guerra com Mileto pela posse <strong>de</strong> Priene.<br />
161 A extraordinária influência que se atribui a Aspásia na<br />
socieda<strong>de</strong> ateniense fez com que fosse a mulher grega que<br />
melhor se conhece. No entanto, a informação <strong>de</strong> que dispomos é<br />
invariavelmente escassa e por vezes pouco fi<strong>de</strong>digna. As principais<br />
fontes sobre esta figura são as comédias e ainda os diálogos<br />
socráticos, nomeadamente as duas Aspásia <strong>de</strong> Ésquines Socrático<br />
e <strong>de</strong> Antístenes e o Menéxeno <strong>de</strong> Platão. Importa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já lembrar<br />
que da mulher ateniense não se esperava um empenho activo na<br />
vida pública; o próprio facto <strong>de</strong> se conversar ou beber com um<br />
homem era sinónimo <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>vassa. Recor<strong>de</strong>mo-nos, contudo,<br />
<strong>de</strong> que Aspásia era estrangeira e possivelmente hetera – e o facto <strong>de</strong><br />
ela conseguir vencer essas limitações só reforça a excepcionalida<strong>de</strong><br />
do seu carácter.<br />
Para um melhor conhecimento da situação da mulher na Grécia<br />
antiga, leiam-se, por exemplo, Gomme (1937: 89-115); Mossé<br />
(1983).
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
principais políticos e aos filósofos oferecia matéria, nem<br />
má nem pouca, para falarem <strong>de</strong>la. 3. Que era <strong>de</strong> origem<br />
milésia e filha <strong>de</strong> Axíoco, todos estão <strong>de</strong> acordo. Dizem<br />
que era para igualar Targélia 162 , uma das antigas cortesãs<br />
iónicas, que se entregava aos homens mais po<strong>de</strong>rosos. 4.<br />
Targélia, que era bela e combinava graça com subtileza,<br />
teve muitíssimos homens gregos e atraía para a causa do<br />
rei persa todos os que <strong>de</strong>la se aproximavam. E assim, por<br />
meio <strong>de</strong>les, que eram homens po<strong>de</strong>rosos e influentes,<br />
espalhou nas respectivas cida<strong>de</strong>s sementes <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são à<br />
Pérsia. 5. Há quem afirme que Aspásia conquistou o<br />
apreço <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> pela inteligência e capacida<strong>de</strong> política<br />
<strong>de</strong> que era dotada. Também Sócrates a visitava algumas<br />
vezes com os discípulos, e os que lhe eram íntimos<br />
levavam as mulheres para a escutarem, embora dirigisse<br />
um negócio que era tudo menos honrado e digno,<br />
pois mantinha jovens prostitutas. 6. Ésquines diz que<br />
Lísicles 163 , o comerciante <strong>de</strong> gado, um sujeito <strong>de</strong> origem<br />
humil<strong>de</strong> e <strong>de</strong> baixa índole, se tornou o primeiro dos<br />
Atenienses, por ter passado a viver com Aspásia <strong>de</strong>pois<br />
da morte <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. 7. No Menéxeno 164 <strong>de</strong> Platão,<br />
162 Famosa cortesã <strong>de</strong> Mileto que fez com que a Tessália, <strong>de</strong><br />
cujo monarca era amante, ce<strong>de</strong>sse à Pérsia por altura da invasão <strong>de</strong><br />
Xerxes.<br />
163 F8, 46 Krauss. Trata-se <strong>de</strong> um dos <strong>de</strong>magogos que antece<strong>de</strong>ram<br />
Cléon. Alu<strong>de</strong>-se ao matrimónio <strong>de</strong> Lísicles e Aspásia no escólio a<br />
Platão, Menéxeno 235e, que menciona o filho <strong>de</strong> ambos, Poristes,<br />
e informa também que Aspásia fez <strong>de</strong>le um importante orador.<br />
Aristófanes faz referência a Lísicles em Cavaleiros132 e 765.<br />
164 Menéxeno 235e. Neste diálogo, durante um encontro com<br />
Menéxeno, Sócrates recita uma oração fúnebre fictícia <strong>de</strong>stinada às<br />
celebrações públicas dos caídos em 386 a.C. na expedição à Sicília,<br />
e que teria sido escrita por Aspásia.<br />
108
109<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
embora o texto <strong>de</strong> abertura esteja escrito em tom<br />
jocoso, existe algum fundamento histórico no facto <strong>de</strong><br />
Aspásia ter fama <strong>de</strong> se reunir com muitos Atenienses<br />
com objectivos retóricos. Mas, parece que a afeição <strong>de</strong><br />
<strong>Péricles</strong> por Aspásia foi certamente <strong>de</strong> índole amorosa.<br />
8. <strong>Péricles</strong> tinha por mulher uma sua parente<br />
consanguínea 165 , que casara em primeiras núpcias com<br />
Hiponico 166 , <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>u à luz Cálias, o milionário.<br />
De <strong>Péricles</strong>, teve Xantipo e Páralo. Depois, como a<br />
convivência entre eles não era agradável, entregou-a –<br />
<strong>de</strong> comum acordo – a outro; e ele ficou com Aspásia,<br />
a quem amou com especial ternura. 9. Diz-se 167 que,<br />
todos os dias, quando saía da ágora ou nela entrava a<br />
saudava com um beijo. Nas comédias, ela aparece como<br />
uma nova Ônfale, Dejanira e como Hera. Cratino<br />
chama-lhe directamente concubina nestes versos:<br />
“A Sem-Vergonhice dá à luz esta Hera, Aspásia, uma<br />
concubina <strong>de</strong> olhos <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>la.” 168<br />
165 Não se sabe ao certo quem foi a primeira esposa <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />
Bicknell (1972: 79) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> tratar-se <strong>de</strong> uma irmã <strong>de</strong> Dinómaca,<br />
mãe <strong>de</strong> Alcibía<strong>de</strong>s. Já Cromey (1982: 203-212) admite que se trata<br />
da própria Dinómaca.<br />
166 Filho <strong>de</strong> Cálias e Elpinice, a irmã <strong>de</strong> Címon. Fazia parte <strong>de</strong><br />
uma família muito rica e politicamente activa. Em 427-426 a.C.,<br />
dirigiu como estratego a expedição contra Tânagra. Faleceu pouco<br />
antes <strong>de</strong> 422 a.C. O Protágoras <strong>de</strong> Platão <strong>de</strong>corre em casa <strong>de</strong> Cálias,<br />
que hospedou o famoso sofista (315e).<br />
167 Antístenes (F1 Dittmar).<br />
168 Fr. 259 K.-A. Neste fragmento, faz-se a genealogia <strong>de</strong><br />
Aspásia, transformando a normal conotação <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> e nobreza<br />
do tom épico em vulgarida<strong>de</strong> gritante. O epíteto homérico <strong>de</strong><br />
Hera – boopis – cujo significado literal é “<strong>de</strong> olhos <strong>de</strong> vaca”, ao que<br />
parece, a simbolizar a gran<strong>de</strong>za dos olhos e a mansidão do olhar –,<br />
é adaptado para kynopis “olhos <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>la”, como sinónimo <strong>de</strong> sem-
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
10. Parece que teve <strong>de</strong>la um bastardo 169 , sobre<br />
quem Êupolis, em Demos, faz <strong>Péricles</strong> perguntar<br />
assim:<br />
“E o meu bastardo, está <strong>de</strong> boa saú<strong>de</strong>?”<br />
E Piróni<strong>de</strong>s respon<strong>de</strong>-lhe:<br />
“Está e <strong>de</strong> há muito seria um homem feito, se não o abalasse<br />
o mal da marafona.” 170<br />
11. Dizem que Aspásia se tornou tão célebre<br />
e famosa que até Ciro 171 , aquele que disputou com o<br />
Rei Persa a soberania, chamou Aspásia à sua concubina<br />
preferida, que antes se chamava Milto. 12. Era essa<br />
mulher <strong>de</strong> origem fócia e filha <strong>de</strong> Hermotimo. Quando<br />
Ciro morreu em combate, foi levada para junto do Rei<br />
e tornou-se influente. Este caso veio-me à memória<br />
enquanto escrevia – e era talvez pouco natural omiti-lo<br />
e passá-lo por alto.<br />
25. 1. Quanto à guerra contra Samos, acusam<br />
<strong>Péricles</strong> <strong>de</strong> a ter <strong>de</strong>cretado sobretudo por causa <strong>de</strong> Mileto,<br />
vergonhice, o que mostra bem que, pelo menos entre os cómicos,<br />
Aspásia não era muito bem vista.<br />
169 Filho <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> mencionado em Per. 37. 2-5. Esta peça, que<br />
data <strong>de</strong> 412 a.C., é já bastante posterior à morte do estadista.<br />
170 Refere-se provavelmente ao medo que o filho teria <strong>de</strong> se propor<br />
para cargos públicos <strong>de</strong>vido à fama da mãe.<br />
171 Ciro o Moço, filho <strong>de</strong> Dario II e Parisátis, que, em 401<br />
a.C., organizou uma expedição para retirar o po<strong>de</strong>r ao seu irmão<br />
Artaxerxes (cf. Xenofonte, Anábase 1). Sobre o seu amor por esta<br />
Aspásia, vi<strong>de</strong> Eliano, Varia Historica 12. 1; Plutarco, Artaxerxes 26.<br />
5-9.<br />
110
111<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
a pedido <strong>de</strong> Aspásia 172 . As duas cida<strong>de</strong>s estavam em<br />
guerra por causa <strong>de</strong> Priene 173 e os Sâmios, que levavam<br />
vantagem, não obe<strong>de</strong>ceram quando os Atenienses<br />
mandaram terminar o combate e <strong>de</strong>ixar a resolução do<br />
litígio a seu cargo 174 .<br />
2. <strong>Péricles</strong> fez-se ao mar e <strong>de</strong>rrubou a oligarquia<br />
que existia em Samos. Tomou cinquenta dos principais<br />
cidadãos e igual número <strong>de</strong> crianças como reféns e<br />
enviou-os para Lemnos 175 . Diz-se que cada um <strong>de</strong>stes<br />
reféns lhe ofereceu um talento em favor próprio; e<br />
que os que não queriam que na cida<strong>de</strong> existisse uma<br />
<strong>de</strong>mocracia lhe ofereceram muito mais. 3. Além disso o<br />
persa Pissutnes 176 , que tinha certa simpatia pelos Sâmios,<br />
enviou-lhe <strong>de</strong>z mil moedas <strong>de</strong> ouro, interce<strong>de</strong>ndo pela<br />
cida<strong>de</strong>. Contudo, <strong>Péricles</strong> não aceitou nenhuma <strong>de</strong>ssas<br />
172 Importa recordar que Aspásia era natural <strong>de</strong> Mileto, cida<strong>de</strong><br />
hostil a Samos.<br />
173 Pequena cida<strong>de</strong> iónia na foz do Meandro, próxima <strong>de</strong> Mileto<br />
(a Norte) e <strong>de</strong> Mícale, que controlava o santuário comum <strong>de</strong> Paniónion.<br />
A guerra po<strong>de</strong> ter sido motivada pela mudança da festa <strong>de</strong><br />
Priene para Éfeso. Cf. Hornblower (1982: 241-245).<br />
174 Provavelmente os Atenienses argumentavam que os membros<br />
da Simaquia <strong>de</strong> Delos <strong>de</strong>veriam respeitar os aliados uns dos<br />
outros.<br />
175 O número <strong>de</strong> reféns coinci<strong>de</strong> com o que Tucídi<strong>de</strong>s (1. 115.<br />
3) apresenta. Fazer reféns era um hábito, cujo principal objectivo<br />
era garantir o bom comportamento da cida<strong>de</strong> sobre a qual recaíam<br />
as suspeitas. Neste caso, os reféns foram enviados para Lemnos porque<br />
era uma ilha próxima da Ásia Menor on<strong>de</strong> havia uma cleruquia<br />
ateniense (conquistada por Milcía<strong>de</strong>s em 500 a.C.) e porque também<br />
era membro da Simaquia <strong>de</strong> Delos.<br />
176 Filho <strong>de</strong> Histaspes, sátrapa <strong>de</strong> Sar<strong>de</strong>s e provavelmente<br />
sobrinho <strong>de</strong> Xerxes, que fomentou a revolta dos Sâmios e também<br />
se intrometeu nos assuntos gregos durante a revolta <strong>de</strong> Mitilene.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
ofertas 177 , tratou os Sâmios como pensara e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
estabelecer a <strong>de</strong>mocracia, zarpou para Atenas.<br />
4. Mal os Atenienses se afastaram, Pissutnes<br />
roubou os reféns para os <strong>de</strong>volver a Samos e ultimou<br />
todos os preparativos para a guerra 178 . Então <strong>Péricles</strong><br />
fez-se novamente à vela contra eles 179 , que nem estavam<br />
inactivos nem com medo; pelo contrário, estavam<br />
terminantemente <strong>de</strong>cididos a apo<strong>de</strong>rar-se do mar. 5.<br />
Depois <strong>de</strong> um combate marítimo violento ao redor<br />
da ilha a que chamam Trágia, <strong>Péricles</strong> obteve uma<br />
esplêndida vitória, <strong>de</strong>rrotando, com quarenta e quatro<br />
barcos, setenta, vinte dos quais transportavam tropas 180 .<br />
177 Plutarco, ao referir a tentativa <strong>de</strong> suborno dos Sâmios e <strong>de</strong><br />
Pissutnes, foge ao texto <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, que nada diz a esse respeito.<br />
Ao que parece, era até normal tentar dar dinheiro em troca <strong>de</strong><br />
reféns. Mas <strong>Péricles</strong>, ao contrário <strong>de</strong> Plistóanax (Per. 22. 2), não<br />
cai em tentação. Outras fontes, no entanto, não apoiam <strong>de</strong> forma<br />
tão evi<strong>de</strong>nte a incorruptibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. Diodoro Sículo (12.<br />
27. 2), por exemplo, diz que aquele recebeu oitenta talentos dos<br />
Sâmios e que enviou para Lemnos oitenta crianças.<br />
178 Tucídi<strong>de</strong>s explica que foi uma revolta levada a cabo por um<br />
grupo <strong>de</strong> Sâmios que, aquando da primeira expedição, se haviam<br />
refugiado no continente. O primeiro passo <strong>de</strong>sta sublevação foi<br />
pren<strong>de</strong>r os <strong>de</strong>mocratas e libertar os reféns e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> entregarem<br />
a guarnição e os magistrados atenienses a Pissutnes, logo voltaram<br />
a atacar os Milésios (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 115. 4-5).<br />
179 Tucídi<strong>de</strong>s (1. 116. 1) precisa que <strong>Péricles</strong> era um dos <strong>de</strong>z<br />
generais e que a expedição era constituída por um total <strong>de</strong> sessenta<br />
embarcações, das quais <strong>de</strong>zasseis foram para a Cária vigiar os navios<br />
fenícios e buscar ajuda a Quios e a Lesbos.<br />
180 Os números aqui apresentados são os mesmos que surgem<br />
em Tucídi<strong>de</strong>s 1. 116. 1. Quanto à ilha <strong>de</strong> Trágia, situa-se a doze<br />
milhas ao sul <strong>de</strong> Samos e a <strong>de</strong>zasseis a oeste <strong>de</strong> Mileto.<br />
112
113<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
26. 1. Com a vitória e a retirada do inimigo,<br />
apo<strong>de</strong>rou-se do porto, sitiou os Sâmios, que, <strong>de</strong> uma<br />
maneira ou <strong>de</strong> outra, ainda se atreveram a sair e a<br />
combater em frente às muralhas 181 . Mas <strong>de</strong>pois que<br />
chegou <strong>de</strong> Atenas uma outra frota maior 182 , os Sâmios<br />
ficaram completamente encurralados. <strong>Péricles</strong>, levando<br />
sessenta trirremes, navegou para o mar largo, como é<br />
voz corrente 183 , para interceptar os navios fenícios 184<br />
que vinham em auxílio dos Sâmios, pois queria ir ao<br />
seu encontro e lutar o mais longe possível; ou, segundo<br />
Estesímbroto 185 , porque tinha por objectivo Chipre – o<br />
que não se afigura verosímil.<br />
2. Qualquer que fosse a sua intenção, parece<br />
que cometeu um erro. Mal partiu, Melisso 186 , filho <strong>de</strong><br />
181 Esta fase da guerra, que <strong>de</strong>correu no período entre a batalha<br />
<strong>de</strong> Trágia e a chegada <strong>de</strong> novos contingentes, não é <strong>de</strong>scrita nem<br />
por Tucídi<strong>de</strong>s nem por Diodoro Sículo.<br />
182 Constituída por quarenta navios vindos <strong>de</strong> Atenas e vinte e<br />
cinco <strong>de</strong> Lesbos e Quios, o que perfazia o total <strong>de</strong> cento e vinte e<br />
cinco embarcações (cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 116. 2).<br />
183 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 116. 3; Diodoro Sículo 12. 27. 5.<br />
184 Os Atenienses, por causa <strong>de</strong> Pissutnes, temiam que a Pérsia<br />
tentasse aproveitar-se da revolta <strong>de</strong> Samos para fragilizar o controlo<br />
que tinham do mar Egeu, muito embora a Paz <strong>de</strong> Cálias estivesse<br />
em vigor.<br />
185 FGrHist 107 F 8.<br />
186 Pouco se sabe acerca da vida <strong>de</strong> Melisso, filho <strong>de</strong> Itágenes e<br />
um dos últimos representantes da escola eleática, além do facto <strong>de</strong><br />
ter sido estadista <strong>de</strong> Samos e <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>rrotado <strong>Péricles</strong> no combate<br />
naval <strong>de</strong> 441 a.C. Este filósofo seguia as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Parméni<strong>de</strong>s,<br />
embora não se possa garantir que alguma vez se tivessem conhecido<br />
pessoalmente. Vi<strong>de</strong> Guthrie (1969: 101 sq.). Sobre a batalha<br />
em causa no texto em estudo, cf. Plutarco, Temístocles 2. 5. Nem<br />
Tucídi<strong>de</strong>s, nem Diodoro Sículo referem a sua participação neste<br />
combate.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
Itágenes, um filósofo que era então general <strong>de</strong> Samos<br />
menosprezando o pequeno número <strong>de</strong> barcos 187 e a<br />
inexperiência dos estrategos 188 , convenceu os concidadãos<br />
a atacar os Atenienses. 3. Na batalha que teve lugar, os<br />
Sâmios saíram vencedores, capturaram muitos inimigos,<br />
<strong>de</strong>struíram muitos barcos, ganharam o controlo do mar<br />
e abasteceram-se do que necessitavam para a guerra e<br />
que antes não possuíam. Aristóteles diz mesmo que<br />
<strong>Péricles</strong> já tinha sido vencido por Melisso num combate<br />
marítimo anterior 189 .<br />
4. Os Sâmios, em retaliação, tatuaram a testa dos<br />
prisioneiros atenienses com corujas: é que os Atenienses<br />
tinham-no feito com uma samena 190 . A samena é um<br />
187 Sobre o número <strong>de</strong> embarcações que estariam naquela altura<br />
na região, vi<strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s 1.116. 1-2.<br />
188 Andrócion (FGrHist 324 F38) indica o nome <strong>de</strong> oito dos<br />
generais <strong>de</strong> 441-440 a.C., entre os quais se encontram o próprio<br />
<strong>Péricles</strong> e Sófocles (cf. Per. 8. 8).<br />
189 Este passo é o próprio fragmento (fr. 577 Rose). É provável<br />
que Plutarco tenha colhido esta informação na Constituição <strong>de</strong><br />
Samos ou em outras fontes sâmias que consi<strong>de</strong>ravam a batalha <strong>de</strong><br />
Trágia vitória sua, já que os Sâmios tinham sido capazes <strong>de</strong> regressar<br />
<strong>de</strong> Mileto em segurança.<br />
190 A tatuagem na fronte era frequente entre os Gregos, sobretudo<br />
entre os escravos, com o objectivo <strong>de</strong> indicar proprieda<strong>de</strong>. Segundo<br />
vários testemunhos, também os vencedores <strong>de</strong> guerra marcavam o<br />
inimigo com o símbolo da sua cida<strong>de</strong>. Por exemplo, os Siracusanos<br />
tatuaram um cavalo, símbolo <strong>de</strong> Siracusa, nos Atenienses capturados<br />
na expedição <strong>de</strong> Nícias e Demóstenes (cf. Plutarco, Nícias 29.<br />
2). Este episódio que Plutarco aqui relata tem como fonte Dúris<br />
(FGrHist 76 F 66). Mas, ao que parece, o Queroneu “troca” alguns<br />
dados da história: é que segundo vários testemunhos (e. g. Fócio e<br />
Suda s. v. Σαμίων ὁ δῆμος; Eliano, Varia Historica 2. 9), teriam<br />
sido os Atenienses a utilizar a coruja nos Sâmios; estes, por sua<br />
vez, “presentearam” os Atenienses com samenas. Mas a versão <strong>de</strong><br />
Plutarco surge também em Fócio s. v. τὰ Σαμίων ὑποπτεύεις.<br />
114
115<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
barco <strong>de</strong> proa em forma <strong>de</strong> focinho <strong>de</strong> porco, muito<br />
côncava e bojuda, boa para transportar cargas e navegar<br />
com rapi<strong>de</strong>z 191 . Chama-se assim porque apareceu pela<br />
primeira vez em Samos e foi construída pelo tirano<br />
Polícrates 192 . Dizem que a estas tatuagens faz alusão<br />
o verso <strong>de</strong> Aristófanes: “O povo <strong>de</strong> Samos, que gente<br />
letrada!” 193<br />
27. 1. Ora, quando <strong>Péricles</strong> foi informado do<br />
revés da armada, acorreu rapidamente em seu socorro 194 ;<br />
191 Embora outros autores se refiram a esta embarcação (e.<br />
g. Quérilo <strong>de</strong> Samos, F. 6, 269 Hinke), esta é a <strong>de</strong>scrição mais<br />
completa que se possui. Sobre este assunto, leia-se Casson (1971:<br />
63). 192 Tirano que esteve no po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 538 até 522 a.C., ano<br />
em que foi assassinado pelo sátrapa persa Oretes (Heródoto,<br />
Histórias 3. 120-125). Subjugou as cida<strong>de</strong>s costeiras da Ásia Menor<br />
e as ilhas e, segundo indicação do livro 2 <strong>de</strong> Nostoi do gramático<br />
Lisímaco (vi<strong>de</strong> Fócio, s.v. Σαμίων ὁ δῆμος), foi sob a sua égi<strong>de</strong> que<br />
apareceram as primeiras samenas.<br />
193 F. 71 K.-A. Este trímetro iâmbico era parte da peça Babilónios<br />
(426 a.C.), na qual os Sâmios eram comparados a escravos. Fócio<br />
e Suda (nas entradas já citadas) propuseram explicações para<br />
este verso na Antiguida<strong>de</strong>. Welsh (1983: 137-150) sugere que o<br />
adjectivo polygrammatos faz ironicamente alusão às samenas que os<br />
Atenienses tatuaram nos Sâmios por ocasião da rebelião <strong>de</strong> 440<br />
a.C., como marca da submissão <strong>de</strong>vida ao lí<strong>de</strong>r da Simaquia <strong>de</strong><br />
Delos. Penso que esta interpretação é legítima, na medida em que<br />
o sentido <strong>de</strong>notativo <strong>de</strong> polygrammatos é, precisamente, “marcado<br />
com muitos traços ou letras”. Houve ainda outro motivo que me<br />
fez optar por traduzir polygrammatos por “letrado”: é que já entre<br />
os latinos esta palavra servia para <strong>de</strong>signar o tipo <strong>de</strong> marcas em<br />
causa no contexto <strong>de</strong>ste verso, como atestam K.-A. (1983-1995:<br />
III. 2, 66) – litteratus appellatur apud Plautum seruus stigmatis nota<br />
inustus.<br />
194 Tucídi<strong>de</strong>s (1. 117. 2) refere-se a um reforço constituído por<br />
quarenta barcos sob o comando <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, Hágnon e Formião
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
venceu Melisso, que lhe fez frente, e logo <strong>de</strong>pois,<br />
perseguiu e sitiou os inimigos no interior das muralhas,<br />
pois preferia dominá-los e conquistar a cida<strong>de</strong> à força<br />
<strong>de</strong> dinheiro e <strong>de</strong> tempo a fazê-lo com feridas e perigos<br />
para os seus concidadãos. 2. Como era obra conter os<br />
Atenienses quando ficaram impacientes com a <strong>de</strong>mora<br />
e <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> combater, <strong>Péricles</strong> dividiu toda a tropa<br />
em oito partes e fez um sorteio: à que obtinha a fava<br />
branca 195 , permitia que fizesse um festim e <strong>de</strong>scansasse,<br />
enquanto as outras se afadigavam. 3. É este o motivo<br />
por que se diz que, por causa da fava branca, quem passa<br />
um dia na farra lhe chama “dia branco” 196 .<br />
Éforo 197 diz que <strong>Péricles</strong> se servia <strong>de</strong> engenhos<br />
<strong>de</strong> guerra, na admiração que sentia pela sua novida<strong>de</strong>,<br />
e que era assistido pelo engenheiro Ártemon 198 . Este,<br />
e por vinte sob o <strong>de</strong> Tlepólemo e Ânticles (num total <strong>de</strong> sessenta<br />
barcos vindos <strong>de</strong> Atenas) e mais trinta oriundos <strong>de</strong> Quios e Lesbos.<br />
195 O meio mais frequente <strong>de</strong> se fazer um sorteio em Atenas era<br />
retirar <strong>de</strong> um recipiente a fava branca que estava misturada com<br />
pretas.<br />
196 Trata-se <strong>de</strong> uma expressão grega utilizada para referir dias<br />
festivos.<br />
197 FGrHist 70 F 194. Éforo <strong>de</strong> Cime (ca. 405-330 a.C.) foi<br />
contemporâneo <strong>de</strong> Teopompo e discípulo <strong>de</strong> Isócrates. Este<br />
historiador escreveu um livro sobre as tradições da sua cida<strong>de</strong> natal e<br />
um tratado sobre aspectos que <strong>de</strong>spertavam a curiosida<strong>de</strong> das gentes<br />
do tempo, intitulado Sobre Invenções; mas a sua obra principal é<br />
Histórias, a primeira história universal, em trinta volumes, que serviu<br />
<strong>de</strong> fonte a vários autores, <strong>de</strong>ntre os quais Diodoro Sículo, Estrabão,<br />
Polieno e Plutarco. Foi, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Xenofonte, o historiador mais<br />
importante do séc. IV a.C. Vi<strong>de</strong> Lesky (1995: 659-660).<br />
198 Trata-se <strong>de</strong> um engenheiro oriundo <strong>de</strong> Clazómenas, ao qual<br />
se atribui a invenção do testudo militar (testudines) para cobrir o<br />
aríete (Diodoro Sículo 12. 28. 3; Plínio, História Natural 7. 201).<br />
Consta que era coxo e que, por essa razão, se fazia transportar em<br />
116
117<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
como era coxo, era transportado numa liteira para os<br />
trabalhos urgentes, pelo que lhe chamavam Periforeto.<br />
4. Mas Heracli<strong>de</strong>s Pôntico 199 refuta essa afirmação com<br />
poemas <strong>de</strong> Anacreonte, nos quais se menciona um<br />
Ártemon periforeto muitas gerações antes da Guerra<br />
<strong>de</strong> Samos e daqueles acontecimentos. Diz ainda que<br />
Ártemon tinha hábitos sofisticados e, diante do medo,<br />
era cobar<strong>de</strong> e assustadiço; assim ficava muito tempo em<br />
casa com dois escravos que lhe seguravam um escudo <strong>de</strong><br />
bronze sobre a cabeça para que nada do tecto lhe caísse<br />
em cima. Se era forçado a sair, fazia-se transportar numa<br />
liteira suspensa a pouca distância do chão e por isso lhe<br />
chamaram periforeto.<br />
28. 1. Quando, oito meses passados, Samos se<br />
ren<strong>de</strong>u, <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>struiu-lhe as muralhas, confiscou-lhe os<br />
navios e impôs-lhe pesadas multas em dinheiro, <strong>de</strong> que os<br />
Sâmios entregaram logo parte; o resto, comprometeramse<br />
a pagá-lo em tempo convencionado e <strong>de</strong>ram reféns <strong>de</strong><br />
garantia 200 .<br />
liteiras, o que lhe valeu a alcunha <strong>de</strong> Periforeto – “o que vai <strong>de</strong><br />
liteira”. No entanto, Anacreonte já havia atribuído a mesma alcunha<br />
a um outro indivíduo chamado Ártemon, famoso pelo seus hábitos<br />
sofisticados, que se fazia transportar não por <strong>de</strong>ficiência física, mas<br />
por comodida<strong>de</strong> e ostentação. Vi<strong>de</strong> fr. 43 Page.<br />
199 F. 60 Wehrli. Heracli<strong>de</strong>s (ca. 390-310 a.C.) era um filósofo<br />
académico, oriundo <strong>de</strong> Heracleia, no Mar Negro. Almejou, em vão,<br />
ace<strong>de</strong>r à direcção da Aca<strong>de</strong>mia em 339 a.C., facto que o fez regressar<br />
então à sua terra natal. Conhecemos os títulos <strong>de</strong> quarenta e seis<br />
diálogos da sua autoria; <strong>de</strong> acordo com Diógenes, subdividiam-se<br />
em três grupos: o primeiro <strong>de</strong> cariz cómico, o segundo trágico,<br />
e o terceiro mais <strong>de</strong>stinado a filósofos, políticos e militares. Vi<strong>de</strong><br />
Guthrie (1969: 483-489).<br />
200 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 117. 3. Este acontecimento teve lugar
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
2. Dúris <strong>de</strong> Samos 201 imaginou a propósito <strong>de</strong>stes<br />
acontecimentos uma gran<strong>de</strong> tragédia, acusando os<br />
Atenienses e <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong> muita cruelda<strong>de</strong>, o que nem<br />
Tucídi<strong>de</strong>s, nem Éforo ou Aristóteles registam. Mas não<br />
parece que diga a verda<strong>de</strong>, quando afirma que então<br />
<strong>Péricles</strong> levou os trierarcas e os marinheiros dos Sâmios<br />
para a ágora dos Milésios e os crucificou durante <strong>de</strong>z<br />
dias. E, quando já estavam mal, mandou matá-los<br />
com pauladas na cabeça e em seguida abandonar os<br />
corpos insepultos. 3. Mas Dúris que, nem mesmo<br />
quando não tinha interesses particulares envolvidos,<br />
costumava manter a narrativa <strong>de</strong>ntro da verda<strong>de</strong>, com<br />
toda a probabilida<strong>de</strong>, neste caso em especial, exagerou<br />
os sofrimentos da sua pátria para <strong>de</strong>ixar mal vistos os<br />
Atenienses 202 .<br />
4. Quando, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter dominado Samos,<br />
<strong>Péricles</strong> regressou a Atenas, fez funerais gloriosos aos que<br />
morreram durante a guerra e granjeou muita admiração,<br />
provavelmente nos princípios <strong>de</strong> 439 a.C.<br />
201 FGrHist 76 F 67. Dúris (ca. 340 – 260 a.C.) foi historiador,<br />
discípulo <strong>de</strong> Teofrasto e suce<strong>de</strong>u ao seu irmão Linceu na tirania<br />
<strong>de</strong> Samos, sua terra natal. Escreveu, entre outros títulos, uma obra<br />
chamada Histórias (sobre o período entre 370 e 281 a.C.) e uma<br />
Crónica <strong>de</strong> Samos (que abrangia os acontecimentos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século<br />
VII ao V a.C.). Não foi um autor muito influente, porque além <strong>de</strong><br />
o seu estilo ser pobre, era <strong>de</strong>masiado sensacionalista. Vi<strong>de</strong> Lesky<br />
(1995: 806 sq.).<br />
202 Plutarco tinha interesses biográficos ao refutar as acusações<br />
<strong>de</strong> Dúris, pois pretendia pôr em evidência a mo<strong>de</strong>ração e a<br />
humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. No entanto, consta que os Atenienses,<br />
em tempo <strong>de</strong> guerra, aplicavam duros castigos aos traidores ou a<br />
qualquer outro tipo <strong>de</strong> “criminoso” (isto é, a quem quer que fosse<br />
responsável por uma conduta menos própria), como testemunha<br />
Diodoro Sículo (12. 28. 3).<br />
118
119<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
quando, como é costume, proferiu um discurso junto<br />
aos túmulos 203 . 5. Mas ao <strong>de</strong>scer da tribuna, enquanto as<br />
outras mulheres lhe apertavam a mão e o galardoavam<br />
com coroas e fitas, como a um atleta vencedor, Elpinice<br />
aproximou-se e disse-lhe: 6. “Que feitos admiráveis e<br />
dignos das coroas os teus, <strong>Péricles</strong>! Tu que fizeste perecer<br />
muitos dos nossos valorosos cidadãos, não a fazer guerra<br />
contra os Fenícios e contra os Medos, como o meu<br />
irmão Címon, mas a <strong>de</strong>struir uma cida<strong>de</strong> aliada e da<br />
mesma raça da nossa.” 7. Contam que, ao ouvir Elpinice,<br />
<strong>Péricles</strong> sorriu calmamente e lhe recitou este verso <strong>de</strong><br />
Arquíloco: “Velha como és, não <strong>de</strong>vias encharcar-te em<br />
perfumes.” 204<br />
Íon 205 afirma que <strong>Péricles</strong> sentia um orgulho<br />
fantástico e imenso por ter vencido os Sâmios, já que, em<br />
nove meses, conquistou os primeiros e mais po<strong>de</strong>rosos<br />
dos Iónios, enquanto Agamémnon levou <strong>de</strong>z anos a<br />
tomar uma cida<strong>de</strong> bárbara. 8. E não era <strong>de</strong>scabida essa<br />
opinião, porque, na verda<strong>de</strong>, a guerra trouxe muita<br />
203 Tucídi<strong>de</strong>s <strong>de</strong>screve a cerimónia em 2. 34. A oração fúnebre<br />
(epitaphios logos) era um elogio feito anualmente em Atenas aos<br />
que perdiam a vida no campo <strong>de</strong> batalha. Servia, assim, não só<br />
para glorificar os heróis (e, <strong>de</strong>ste modo, convencer os vivos <strong>de</strong><br />
que morrer por Atenas era uma honra), como a própria polis e os<br />
i<strong>de</strong>ais por ela <strong>de</strong>fendidos. Para isso, segundo Aristóteles, que na<br />
Retórica nos fala dos discursos epidícticos (nos quais o epitaphios<br />
logos se inclui), estes <strong>de</strong>vem incluir referências aos acontecimentos<br />
passados e especulações sobre os futuros – o que equivale a dizer<br />
que é preciso apelar às memórias gloriosas e aos sonhos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za<br />
dos ouvintes. É esse o esquema <strong>de</strong> oração fúnebre que Tucídi<strong>de</strong>s<br />
atribui a <strong>Péricles</strong>, uma das poucas que chegaram até nós.<br />
204 Fr. 27 Diehl, também citado por Ateneu 688e.<br />
205 FGrHist 392 F 16.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
incerteza e gran<strong>de</strong> perigo, se, como diz Tucídi<strong>de</strong>s 206 , a<br />
cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Samos por pouco não usurpou aos Atenienses<br />
o domínio do mar.<br />
29. 1. Depois <strong>de</strong>stes acontecimentos, quando a<br />
Guerra do Peloponeso começou a fervilhar, convenceu o<br />
povo a enviar auxílio aos Corcireus no seu diferendo com<br />
Corinto e a associar-se a uma ilha forte pelo seu po<strong>de</strong>r<br />
naval, já que os Peloponésios estavam quase a <strong>de</strong>clararlhes<br />
guerra 207 . Mal o povo aprovou a ajuda, enviou<br />
206 8.76.4.<br />
207 Por causa dos interesses biográficos que o levam a salientar o<br />
protagonismo <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, Plutarco omite várias vitórias que tiveram<br />
lugar entre a expedição contra Samos e a embaixada <strong>de</strong> Corcira,<br />
motivada pela disputa da posse <strong>de</strong> Epidamno com Corinto (em<br />
meados <strong>de</strong> 443 a.C.).<br />
Epidamno era uma colónia <strong>de</strong> Corcira, que, por sua vez, era<br />
colónia <strong>de</strong> Corinto. Situada na costa norte da Ilíria, viu-se <strong>de</strong>vastada<br />
por uma luta interna que culminou numa guerra com os bárbaros<br />
vizinhos incitados pelos aristocratas exilados <strong>de</strong> Epidamno. Aos<br />
<strong>de</strong>mocratas, <strong>de</strong>vastados por terra e mar, não restou alternativa senão<br />
pedir auxílio a Corinto, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Corcira lho ter recusado. Se o<br />
objectivo <strong>de</strong> Corinto era atacar a sua colónia, foi bem sucedido,<br />
pois Corcira <strong>de</strong> imediato contactou os Epidamnianos para que se<br />
servissem da sua ajuda e dispensassem a dos Coríntios. Aqueles<br />
recusaram e Corcira cercou então a sua colónia. Como verificou<br />
que Corinto persistia, <strong>de</strong>terminada, naquela política, Corcira<br />
enviou, em 435 a.C., uma embaixada à sua metrópole, mas não<br />
alcançou os seus intentos. Na Primavera <strong>de</strong> 433 a.C., <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
cerca <strong>de</strong> um ano e meio <strong>de</strong> combates, e como Corinto persistia na<br />
guerra, Corcira cumpriu a ameaça feita por ocasião da embaixada e<br />
pediu ajuda a Atenas. Depois <strong>de</strong> um <strong>de</strong>bate aceso entre Atenienses,<br />
Coríntios e Corcireus, os primeiros <strong>de</strong>cidiram auxiliar Corcira.<br />
Aristo<strong>de</strong>mo (FGrHist 104, 17) resume este episódio e, como<br />
Tucídi<strong>de</strong>s (1. 55. 2), apresenta-o como uma das causas da Guerra<br />
do Peloponeso.<br />
120
121<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
Lace<strong>de</strong>mónio 208 , filho <strong>de</strong> Címon, com apenas <strong>de</strong>z navios,<br />
como para insultá-lo. De facto, a família <strong>de</strong> Címon tinha<br />
muita simpatia e amiza<strong>de</strong> pelos Peloponésios. 2. Assim,<br />
para que Lace<strong>de</strong>mónio fosse ainda mais contestado<br />
pelo seu laconismo, se nenhum feito gran<strong>de</strong> ou notável<br />
fosse executado sob seu comando, entregou-lhe poucas<br />
embarcações e enviou-o contra a sua vonta<strong>de</strong>. Em geral,<br />
passou a vida a <strong>de</strong>sacreditar os filhos <strong>de</strong> Címon que<br />
nem sequer nos nomes eram genuínos, mas ilegítimos<br />
e estrangeiros, porque um se chamava Lace<strong>de</strong>mónio, o<br />
outro Téssalo, e o terceiro, Eleio. Julgava-se que todos<br />
nasceram <strong>de</strong> uma mulher da Arcádia 209 .<br />
3. Quando <strong>Péricles</strong> foi duramente criticado por<br />
causa das tais <strong>de</strong>z trirremes, por ter oferecido pequena<br />
ajuda aos necessitados e gran<strong>de</strong> pretexto aos <strong>de</strong>tractores,<br />
enviou então muitas outras para Corcira, que chegaram<br />
<strong>de</strong>pois da batalha 210 . 4. Aos Coríntios, que se irritaram<br />
208 Tucídi<strong>de</strong>s (1. 45. 1-2) refere ainda como estrategos Diótimo<br />
<strong>de</strong> Estrômbico e Próteas <strong>de</strong> Épicles.<br />
209 Os nomes dos três filhos <strong>de</strong> Címon correspon<strong>de</strong>m a regiões<br />
da Grécia: Lace<strong>de</strong>mónia e Éli<strong>de</strong>, que se situam no Peloponeso, e<br />
Tessália, a Norte da Península dos Balcãs. A origem estrangeira da<br />
mãe tornava-os vulneráveis por causa da lei <strong>de</strong> 451 a.C., segundo a<br />
qual, para que um filho fosse legítimo, ambos os pais teriam <strong>de</strong> ser<br />
cidadãos atenienses. Embora não afectasse os filhos <strong>de</strong> Címon, por<br />
não ser retroactivo, este <strong>de</strong>creto impedia o reconhecimento legal do<br />
filho <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e Aspásia. Sobre este assunto vi<strong>de</strong> Per. 37. 5.<br />
210 Tucídi<strong>de</strong>s (1. 50. 5) e Diodoro Sículo (12. 33. 4) falam em<br />
mais vinte embarcações, cujo envio, segundo este último, já estava<br />
previsto em caso <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>. De acordo com estes historiadores,<br />
os barcos chegaram quando os Corcireus já batiam em retirada<br />
das ilhas Síbotos. Ao ver os Atenienses, também os Coríntios se<br />
retiraram, o que <strong>de</strong>u a vitória aos aliados.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
e acusaram os Atenienses em Esparta 211 , associaramse<br />
os Megarenses, culpando aqueles <strong>de</strong> os afastarem e<br />
excluírem <strong>de</strong> todos os mercados e <strong>de</strong> todos os portos<br />
que dominavam, contra os direitos comuns e os<br />
juramentos feitos pelos Gregos. 5. Os Eginetas, que se<br />
julgavam oprimidos e maltratados 212 , pediram às ocultas<br />
ajuda aos Lace<strong>de</strong>mónios, pois não se atreviam a acusar<br />
publicamente os Atenienses. 6. Entretanto também<br />
Poti<strong>de</strong>ia 213 , cida<strong>de</strong> aliada <strong>de</strong> Atenas, mas colónia <strong>de</strong><br />
Corinto, <strong>de</strong>sertou e foi bloqueada, o que apressou ainda<br />
mais a guerra.<br />
7. Apesar <strong>de</strong> tudo, foram enviadas embaixadas a<br />
Atenas 214 e Arquidamo, rei dos Lace<strong>de</strong>mónios, procurou<br />
resolver a maior parte das queixas e acalmar os aliados 215 .<br />
211 Sobre as acusações em causa, feitas em Esparta durante uma<br />
reunião que <strong>de</strong>correu em 432 a.C. (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 67), as fontes nada<br />
nos dizem <strong>de</strong> concreto. De acordo com Tucídi<strong>de</strong>s, os principais<br />
instigadores da guerra foram precisamente os Megarenses e os<br />
Eginetas (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 67. 2), mas refere-os por or<strong>de</strong>m diferente<br />
da <strong>de</strong> Plutarco, o que realça a importância que o biógrafo dá ao<br />
<strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Mégara (Per. 30. 2-4) como causa da guerra.<br />
212 Uma das cláusulas da Trégua dos Trinta Anos foi a concessão<br />
<strong>de</strong> autonomia a Egina, embora a ilha continuasse a pagar tributo a<br />
Atenas e a fazer parte da Simaquia <strong>de</strong> Delos. Nos <strong>de</strong>bates em Esparta,<br />
que antece<strong>de</strong>ram o eclodir da Guerra do Peloponeso, os Eginetas<br />
acusaram os Atenienses <strong>de</strong> não terem cumprido o combinado, pelo<br />
que incorriam em violação do acordo, legitimando assim o início<br />
<strong>de</strong> hostilida<strong>de</strong>s militares.<br />
213 Colónia coríntia, situada no istmo da península <strong>de</strong> Palene,<br />
que apesar dos fortes laços que a ligavam à metrópole era aliada <strong>de</strong><br />
Atenas. Descontente por ter visto o valor do seu tributo duplicar,<br />
revoltou-se em 433 a.C., quando, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Síbotos, Atenas,<br />
suspeitando dos planos <strong>de</strong> secessão, or<strong>de</strong>nou que <strong>de</strong>itassem as<br />
muralhas abaixo (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 56-66).<br />
214 Vi<strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s 1. 85-139.<br />
215 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 80-85. 2.<br />
122
123<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
Ao que parece, não era pelos outros motivos que a<br />
guerra teria sobrevindo aos Atenienses, se se tivessem<br />
comprometido a revogar o <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Mégara 216 e a<br />
reconciliar-se com eles 217 . 8. Foi por isso que <strong>Péricles</strong>,<br />
que se opunha a essa cedência mais do que ninguém<br />
e incitava o povo a persistir na rivalida<strong>de</strong> com os<br />
Megarenses, foi consi<strong>de</strong>rado o único responsável pela<br />
guerra 218 .<br />
30. 1. Conta-se que quando chegou a Atenas<br />
uma embaixada da Lace<strong>de</strong>mónia para discutir a famosa<br />
questão e <strong>Péricles</strong> se escudou numa lei que proibia a<br />
<strong>de</strong>struição da tabuinha on<strong>de</strong> o tal <strong>de</strong>creto se encontrava<br />
escrito, um dos embaixadores, Polialces, disse: “Muito<br />
216 O <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Mégara proibia os seus habitantes, acusados <strong>de</strong><br />
acolherem escravos fugitivos, <strong>de</strong> entrar nos mercados <strong>de</strong> Atenas e<br />
das cida<strong>de</strong>s aliadas. Esta proibição punha em causa a subsistência<br />
dos Megarenses, que, <strong>de</strong>vido à exiguida<strong>de</strong> do seu território, eram<br />
forçados a obter os bens <strong>de</strong> primeira necessida<strong>de</strong> nas cida<strong>de</strong>s<br />
vizinhas. Sobre este assunto, vi<strong>de</strong> Fornara (1975: 213-228).<br />
Mas os ressentimentos dos Atenienses eram mais antigos:<br />
datavam <strong>de</strong> 446 a.C., altura em que Mégara se rebelou contra<br />
Atenas e massacrou a guarnição que se encontrava no seu território.<br />
Assim sendo, o <strong>de</strong>creto vem vingar todos os ressentimentos (mesmo<br />
o cultivo do território sagrado e a morte <strong>de</strong> Antemócrito) dos<br />
Atenienses contra um antigo aliado. Sobre as causas das medidas<br />
contra os Megarenses, vi<strong>de</strong> De Sainte Croix (1972: 225-289).<br />
217 Tucídi<strong>de</strong>s 1. 139. 1. Diodoro Sículo (12. 39) afirma que essa<br />
era a condição imposta pelos Lace<strong>de</strong>mónios.<br />
218 Aristófanes (Acarnenses 515-539, Paz 601-611) bem como<br />
alguns historiadores (Diodoro Sículo 12. 39. 3-4; Aristo<strong>de</strong>mo,<br />
FGrHist 104. 16; Éforo, FGrHist 70 F 196) explicam a obstinação<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> na não revogação do <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Mégara como meio <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sviar a atenção dos processos que corriam contra os seus amigos e<br />
que eram causa do <strong>de</strong>créscimo da sua popularida<strong>de</strong>. Para isso, nada<br />
melhor do que provocar uma guerra.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
bem, não <strong>de</strong>struas a tabuinha! Vira-a ao contrário!<br />
De certeza que não existe lei que o impeça.” Embora<br />
a observação parecesse subtil, <strong>Péricles</strong> não ce<strong>de</strong>u um<br />
ponto.<br />
2. Ao que parece, nutria um ódio pessoal contra os<br />
Megarenses; mas apresentou contra eles, como acusação<br />
pública e oficial, a apropriação da terra sagrada 219 . Promulgou<br />
um <strong>de</strong>creto para que se lhes enviasse um arauto e o mesmo<br />
também aos Lace<strong>de</strong>mónios, acusando os Megarenses. 3.<br />
Ora, este <strong>de</strong>creto, certamente <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, é pru<strong>de</strong>nte e<br />
usa argumentos mo<strong>de</strong>rados. Mas quando Antemócrito,<br />
o arauto enviado, morreu – ao que parece às mãos dos<br />
Megarenses 220 –, foi Carino 221 quem escreveu um <strong>de</strong>creto<br />
contra eles: existiria um ódio irreconciliável e inegociável<br />
entre as duas cida<strong>de</strong>s; qualquer Megarense que entrasse na<br />
Ática seria castigado com a morte 222 ; os generais, quando<br />
fizessem o juramento da tomada <strong>de</strong> posse, acrescentariam<br />
219 Refere-se a orgas, uma terra fértil que não se podia cultivar<br />
por estar consagrada à <strong>de</strong>usa <strong>de</strong> Elêusis, na fronteira com Mégara.<br />
A violação <strong>de</strong> território sagrado era uma ofensa muito grave<br />
(incorria-se em asebeia) e <strong>de</strong>u origem a outros conflitos ao longo da<br />
história da Grécia antiga: o cultivo da planície sagrada <strong>de</strong> Delfos,<br />
por exemplo, foi a causa da Guerra Sagrada <strong>de</strong> 350 a.C. (supra n.<br />
141). Para mais pormenores e bibliografia, veja-se Stadter (1989:<br />
277).<br />
220 Esta responsabilida<strong>de</strong> não foi provada e talvez a morte <strong>de</strong><br />
Antemócrito tenha sido utilizada como propaganda ateniense para<br />
justificar o <strong>de</strong>creto.<br />
221 Colaborador <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. Plutarco justifica este <strong>de</strong>creto contra<br />
os Megarenses com o cultivo da terra sagrada e do assassinato <strong>de</strong><br />
Antemócrito. Stadter (1989: 279) pensa que a atribuição <strong>de</strong>sta lei<br />
a <strong>Péricles</strong> é provavelmente uma simplificação cómica da parte <strong>de</strong><br />
Aristófanes (Acarnenses 532).<br />
222 Cf. escólio a Paz 246.<br />
124
125<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
o compromisso <strong>de</strong> invadir Mégara duas vezes por ano 223 ;<br />
que se tributassem honras fúnebres a Antemócrito junto às<br />
portas triásias 224 , agora chamadas Dípilo.<br />
4. Mas os Megarenses 225 negaram o assassinato <strong>de</strong><br />
Antemócrito e atribuíam as culpas a Aspásia e <strong>Péricles</strong>,<br />
citando estes versos célebres e conhecidos <strong>de</strong> Acarnenses 226 :<br />
“Jovens embriagados 227 que iam para Mégara, roubaram<br />
uma prostituta, Simeta: Os Megarenses excitados pelo<br />
<strong>de</strong>sgosto roubam, por sua vez, duas prostitutas <strong>de</strong><br />
Aspásia.” 228<br />
223 Alguns estudiosos, como Gomme (1945-56: II, 93)<br />
relacionaram com esta cláusula do <strong>de</strong>creto as invasões anuais <strong>de</strong><br />
Mégara durante os primeiros anos da Guerra do Peloponeso (cf.<br />
Tucídi<strong>de</strong>s 2. 31. 3, 4. 66)<br />
224 Saída a Noroeste <strong>de</strong> Atenas, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> partia a via sagrada para<br />
Elêusis e para a planície <strong>de</strong> Tria.<br />
225 Plutarco po<strong>de</strong> estar a referir-se aos historiadores <strong>de</strong> Mégara<br />
que <strong>de</strong> um modo geral são evocados em grupo (Piccirilli: 1975)<br />
ou aos Megarenses coevos do biógrafo (Connor 1970: 305-308;<br />
De Sainte Croix 1972: 387).<br />
226 Acarnenses 524-527. Aristófanes justifica a origem da Guerra<br />
do Peloponeso <strong>de</strong> modo fantasioso: tendo em consi<strong>de</strong>ração a alegada<br />
influência <strong>de</strong> Aspásia sobre <strong>Péricles</strong>, faz com que a guerra pareça<br />
consequência <strong>de</strong> uma vingançazinha pessoal por causa do rapto <strong>de</strong><br />
duas cortesãs da companheira do estadista. Essa represália assumiu<br />
a forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>creto, proibindo os Megarenses <strong>de</strong> praticarem trocas<br />
comerciais com Atenas.<br />
227 O cótabo era um jogo muito em voga na Grécia entre os<br />
séculos VI e IV a.C.: <strong>de</strong> pé ou <strong>de</strong>itado, o jogador lançava os restos<br />
<strong>de</strong> vinho do seu copo para uma lâmina <strong>de</strong> metal equilibrada na<br />
ponta <strong>de</strong> uma barra, que, por sua vez, caía sobre outra lâmina <strong>de</strong><br />
metal colocada por baixo, produzindo um som. Segundo outros<br />
testemunhos, <strong>de</strong>itavam-se os restos do vinho num recipiente<br />
metálico enquanto se pronunciava o nome da amada: se produzisse<br />
um som vibrante, era sinal <strong>de</strong> sorte no amor.<br />
228 Como já se viu anteriormente (24. 5), Plutarco aceita como<br />
histórico o facto <strong>de</strong> Aspásia ser uma alcoviteira. A explicação que
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
31. 1. Ora, não é fácil conhecer-lhe a origem 229 ,<br />
mas todos, em uníssono, atribuem a <strong>Péricles</strong> a culpa <strong>de</strong><br />
não revogar o <strong>de</strong>creto. Excepto os que dizem que ele<br />
não ce<strong>de</strong>u por gran<strong>de</strong> prudência, com a convicção <strong>de</strong><br />
que agia pelo melhor, pois julgava aquela exigência uma<br />
tentativa <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nciar a cedência, transigência e uma<br />
confissão <strong>de</strong> fraqueza 230 . Outros dizem que <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhou<br />
dos Lace<strong>de</strong>mónios por uma certa arrogância, <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
vencer e <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>.<br />
2. A acusação pior <strong>de</strong> todas e que tem mais<br />
testemunhas 231 resume-se assim: o escultor Fídias, como<br />
atrás se referiu 232 , estava encarregado da execução da<br />
estátua, por se ter tornado amigo <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, junto <strong>de</strong><br />
quem tinha muita influência: arranjou, por isso mesmo,<br />
uns tantos inimigos por motivo <strong>de</strong> inveja. Outros 233 ,<br />
para experimentarem através <strong>de</strong>le que tipo <strong>de</strong> juiz o povo<br />
seria para <strong>Péricles</strong>, convenceram um tal Ménon, um dos<br />
atribuía a <strong>Péricles</strong> e a Aspásia a responsabilida<strong>de</strong> da Guerra do<br />
Peloponeso surge, segundo Harpocrácion, s. v. Ἀσπασία, em Dúris<br />
e Teofrasto.<br />
229 Po<strong>de</strong> referir-se à origem do <strong>de</strong>creto (morte <strong>de</strong> Antemócrito,<br />
ódio <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> pelos Megarenses por razões pessoais <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e<br />
Aspásia), como sugere Stadter (1989: 283); ou à guerra, segundo<br />
Flacelière (1969: 41), ou Santoni (1991: 217). Cf. Aristófanes,<br />
Acarnenses 528.<br />
230 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 140. 5.<br />
231 Quando se refere aos testemunhos, provavelmente Plutarco<br />
tem em mente Aristófanes, Éforo e os autores que os seguiram.<br />
232 Per. 13. 14-15.<br />
233 Plutarco menciona não só os inimigos <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> que se<br />
servem <strong>de</strong> Fídias para atacar o estadista, mas também os inimigos<br />
pessoais do escultor, pois gosta <strong>de</strong> mostrar os efeitos negativos da<br />
inveja sobre os homens influentes.<br />
126
127<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
colaboradores <strong>de</strong> Fídias, a apresentar-se como suplicante<br />
na ágora, pedindo imunida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>nunciar e acusar o<br />
escultor 234 . 3. O povo acolheu o pedido do homem e a<br />
acusação foi formalizada na assembleia 235 , mas os roubos<br />
não foram provados. É que Fídias, logo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio,<br />
a conselho <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, tinha trabalhado e colocado o<br />
ouro na estátua, <strong>de</strong> tal maneira que fosse possível retirálo<br />
todo e <strong>de</strong>monstrar-lhe o peso, o que <strong>Péricles</strong> mandou<br />
nesse momento os acusadores fazerem 236 . Mas a fama<br />
dos seus trabalhos suscitava inveja contra Fídias, em<br />
especial porque, quando cinzelou o combate contra as<br />
Amazonas no escudo 237 , gravou a sua própria figura,<br />
como um velho calvo que levantava uma pedra com<br />
ambas as mãos, e incluiu também um belíssimo retrato<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> em luta contra as Amazonas 238 . 4. A posição<br />
234 De acordo com Diodoro Sículo (12. 39. 1), os inimigos <strong>de</strong><br />
<strong>Péricles</strong> fizeram com que alguns colaboradores <strong>de</strong> Fídias se sentassem<br />
junto ao altar dos Doze Deuses (no centro da Ágora) para <strong>de</strong>nunciar<br />
o roubo que Fídias teria realizado com o conhecimento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />
235 Cf. Diodoro Sículo 12. 39. 1-2. Sempre que um escravo<br />
quisesse fornecer informações ao Conselho ou à Assembleia sobre<br />
um <strong>de</strong>lito, tinha direito a imunida<strong>de</strong> (a<strong>de</strong>ia), a menos que a acusação<br />
não tivesse fundamentos – nesse caso, po<strong>de</strong>ria incorrer em pena <strong>de</strong><br />
morte. Era a Assembleia que <strong>de</strong>cidia quem seria responsável pelo<br />
julgamento: o Tribunal da Helieia ou o Conselho ou a própria<br />
Assembleia. No caso <strong>de</strong> Ménon, tudo leva a crer que seria cúmplice<br />
no roubo.<br />
236 Segundo Tucídi<strong>de</strong>s (2. 13), o objectivo inicial <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> era<br />
utilizar o ouro numa eventual situação <strong>de</strong> guerra e não <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se<br />
<strong>de</strong> calúnias.<br />
237 O tema do escudo <strong>de</strong> Atena, na representação criselefantina<br />
da <strong>de</strong>usa no Pártenon, era a batalha <strong>de</strong> Teseu contra as Amazonas.<br />
Sobre a história da batalha, vi<strong>de</strong> Plutarco, Teseu 26-28.<br />
238 É natural que o escultor sentisse a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estabelecer<br />
uma ligação mais estreita com a sua obra – e, para isso, nada melhor
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
da mão, que erguia uma lança diante do rosto <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>,<br />
estava feita com habilida<strong>de</strong>, como se quisesse disfarçar<br />
a semelhança, que se nota claramente dos dois lados.<br />
5. Fídias por fim foi levado para a prisão 239 e lá morreu<br />
<strong>de</strong> doença, ou, como dizem alguns, vítima <strong>de</strong> venenos,<br />
preparados pelos inimigos <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> para <strong>de</strong>sacreditá-lo 240 .<br />
Ao <strong>de</strong>lator Ménon, o povo, por proposta <strong>de</strong> Glauco,<br />
do que fazer uma espécie <strong>de</strong> auto-retrato disfarçado. Essa fraqueza,<br />
parece, afectou outros artistas, mesmo séculos mais tar<strong>de</strong>: há, por<br />
exemplo, quem afirme que a pessoa retratada por Leonardo da<br />
Vinci em Mona Lisa é o próprio pintor. Quanto a <strong>Péricles</strong>, é talvez<br />
difícil saber se a sua representação foi um tributo inocente <strong>de</strong> Fídias,<br />
para imortalizar o político nunca esquecido nos séculos seguintes<br />
por causa das suas qualida<strong>de</strong>s morais e <strong>de</strong> estadista, ou se foi feita<br />
a pedido do <strong>Péricles</strong>. O certo é que Fídias parece ter previsto que a<br />
imagem <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> eternizada na sua obra suscitaria nos <strong>de</strong>tractores<br />
e invejosos do filho <strong>de</strong> Xantipo o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição. Mas, segundo<br />
voz corrente na Antiguida<strong>de</strong>, o escultor apren<strong>de</strong>ra com <strong>Péricles</strong> a<br />
ser previ<strong>de</strong>nte, pois a imagem estaria <strong>de</strong> tal modo posicionada, que<br />
retirá-la implicaria a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> toda a estátua (cf. e. g. Aristóteles,<br />
Sobre o Universo 399b; Valério <strong>Máximo</strong> 8. 14. 6).<br />
239 Como nos relata Plutarco, a <strong>de</strong>fesa proposta por <strong>Péricles</strong><br />
não resultou e Fídias foi con<strong>de</strong>nado. Segundo Diodoro Sículo<br />
(12. 39. 1), Fídias foi preso e <strong>Péricles</strong> acusado <strong>de</strong> roubar o templo.<br />
Filócoro (FGrHist 328 F 121), porém, indica-nos que o escultor<br />
foi <strong>de</strong>sterrado para a Éli<strong>de</strong> on<strong>de</strong> executou a estátua <strong>de</strong> Zeus em<br />
Olímpia e que pouco <strong>de</strong>pois foi assassinado pelos habitantes,<br />
acusado <strong>de</strong> roubo.<br />
240 Plutarco não esclarece <strong>de</strong> que modo a morte <strong>de</strong> Fídias<br />
po<strong>de</strong>ria influenciar a reputação <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. Assim, são três as<br />
hipóteses que po<strong>de</strong>mos levantar: ou o estadista era afectado já<br />
que ficava <strong>de</strong>sacreditado por não ter conseguido ajudar o amigo;<br />
ou porque o aparente suicídio resultava numa confissão <strong>de</strong> culpa<br />
(logo, <strong>Péricles</strong> estaria, também ele, implicado); ou ainda visto que<br />
o filho <strong>de</strong> Xantipo acaba por surgir como um indivíduo capaz <strong>de</strong><br />
matar o cúmplice para se proteger.<br />
128
129<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
conce<strong>de</strong>u a isenção <strong>de</strong> impostos e encarregou os generais<br />
<strong>de</strong> lhe garantirem a segurança 241 .<br />
32. 1. Por essa altura, Aspásia sofreu uma acusação<br />
<strong>de</strong> impieda<strong>de</strong> 242 , quando o comediógrafo Hermipo 243<br />
a perseguiu e acusou <strong>de</strong> receber mulheres livres num<br />
lugar on<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> pu<strong>de</strong>sse ter encontros com elas 244 .<br />
2. Então Diopites 245 propôs um <strong>de</strong>creto (psephisma),<br />
segundo o qual quem não acreditasse nas divinda<strong>de</strong>s ou<br />
ministrasse ensinamentos sobre fenómenos celestes, seria<br />
241 Plutarco <strong>de</strong>ve ter tido acesso a este <strong>de</strong>creto na colecção<br />
epigráfica do macedónio Crátero (cf. Plutarco, Címon 13. 1; Aristi<strong>de</strong>s<br />
26. 1-2). Sobre Glauco, não há qualquer outra informação.<br />
242 Esta informação surgia no diálogo Aspasia <strong>de</strong> Antístenes<br />
Socrático (cf. Aristóteles, Constituição <strong>de</strong> Atenas 589e; Aristófanes,<br />
escólio a Cavaleiros 969; Hermógenes, escólio 7. 165 Walz). A<br />
historicida<strong>de</strong> da acusação <strong>de</strong> asebeia é negada por Montuori<br />
(1981: 87-109), porque Aspásia não era cidadã ateniense, logo não<br />
podia incorrer neste <strong>de</strong>lito.<br />
243 Os temas preferidos <strong>de</strong>ste comediógrafo eram a política<br />
contemporânea, a paródia <strong>de</strong> mitos e teorias filosóficas. <strong>Péricles</strong>,<br />
Hipérbolo, e talvez mesmo Alcibía<strong>de</strong>s, sentiram na pele tal<br />
incómodo. Segundo Montuori (1981: 92, n. 33), a atribuição da<br />
autoria <strong>de</strong>sta acusação a Hermipo coaduna-se com os frequentes<br />
ataques feitos a <strong>Péricles</strong> nas suas comédias. Em Moirai (430 a.C.),<br />
ataca violentamente o estadista pela sua estratégia na Guerra do<br />
Peloponeso (Per. 33. 8).<br />
244 Cf. Per. 13. 15, on<strong>de</strong> se faz uma acusação semelhante contra<br />
Fídias.<br />
245 Adivinho que os comediógrafos (e. g. Aristófanes, Cavaleiros<br />
1085, Vespas 380, Aves 988) ridicularizavam com bastante<br />
frequência pelo seu fanatismo, pelo que se compreen<strong>de</strong> que fosse<br />
contra uma interpretação racional dos fenómenos naturais. Segundo<br />
Aristófanes (escólio a Cavaleiros 1085) foi companheiro <strong>de</strong> Nícias,<br />
o que, por si só, não permite consi<strong>de</strong>rá-lo um. Era sobretudo um<br />
oportunista que aproveitava as superstições dos Atenienses nas suas<br />
intervenções políticas.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
sujeito a um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia pública 246 , dirigindo<br />
as suspeitas contra <strong>Péricles</strong>, por causa <strong>de</strong> Anaxágoras 247 .<br />
3. O povo acolhia e aceitava este tipo <strong>de</strong> ataque, <strong>de</strong> tal<br />
maneira que, aproveitando a ocasião, foi aprovado um<br />
<strong>de</strong>creto por proposta <strong>de</strong> Dracônti<strong>de</strong>s 248 , exigindo que<br />
<strong>Péricles</strong> apresentasse as contas dos dinheiros públicos 249<br />
246 Eisangelia era um tipo <strong>de</strong> processo reservado para questões<br />
graves e urgentes que não admitiam atrasos.<br />
247 Cf. Diodoro Sículo (12. 39. 2) e Diógenes Laércio (2. 12-<br />
14), que narra quatro versões do julgamento. Quer a sua data,<br />
quer a própria cronologia da vida <strong>de</strong> Anaxágoras têm sido alvo <strong>de</strong><br />
acesa controvérsia. Quanto ao primeiro, propõem-se datas entre<br />
450-430 a.C. Para um estudo mais aprofundado <strong>de</strong>ste assunto,<br />
vi<strong>de</strong> Mansfeld (1980: 80-84). A melhor solução é admitir com<br />
Plutarco que o julgamento <strong>de</strong> Anaxágoras teve lugar pouco <strong>de</strong>pois<br />
do <strong>de</strong> Fídias. No entanto, em Per. 32. 5, o biógrafo sugere que, com<br />
a ajuda <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, Anaxágoras nunca chegou a ir a tribunal, mas<br />
muitos estudiosos, como Mansfeld (1980: 82-84), discordam.<br />
248 Dracônti<strong>de</strong>s e o seu <strong>de</strong>creto são mencionados apenas por<br />
Plutarco. Trata-se provavelmente do mesmo Dracônti<strong>de</strong>s que era<br />
epistates da Boulê por altura da aprovação do <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Cálcis em<br />
446-445 a.C. e do general que em 433-432 a.C, acompanhou<br />
Glauco na expedição a Corcira. Segundo Meinhardt (1957: 61),<br />
a fonte <strong>de</strong> Plutarco em relação a este assunto terá sido a colecção <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>cretos <strong>de</strong> Crátero.<br />
249 Segundo Stadter (1989: 301), há uma anedota que<br />
seguramente está relacionada com esta situação: Alcibía<strong>de</strong>s, ao ver<br />
<strong>Péricles</strong> preocupado, diz-lhe que não <strong>de</strong>via pensar na maneira <strong>de</strong><br />
apresentar as contas, mas sim em como não fazê-lo. O estratego,<br />
seguindo o seu conselho, <strong>de</strong>u início à guerra (Diodoro Sículo 12.<br />
38. 3-4 e 39. 3; Aristo<strong>de</strong>mo, FGrHist 104 F 16 e Valério <strong>Máximo</strong><br />
3. 1). Alguns autores i<strong>de</strong>ntificam o processo em causa nesta anedota<br />
com o <strong>de</strong> 430 a.C., na sequência do qual <strong>Péricles</strong> foi <strong>de</strong>stituído<br />
(vi<strong>de</strong> Gomme 1945: 187). Frost (1964: 69-72) e Donnay (1968:<br />
19-36) não aceitam esta interpretação, argumentando que a<br />
acusação <strong>de</strong> 430 a.C. dizia respeito a questões militares (para estes,<br />
o processo em causa data <strong>de</strong> 438-437 a.C.).<br />
130
131<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
aos prítanes 250 ; e que os juízes, com pedras <strong>de</strong> voto do<br />
altar <strong>de</strong> Atena 251 , <strong>de</strong>cidissem na Acrópole. 4. Hágnon 252 ,<br />
porém, suprimiu esta cláusula do <strong>de</strong>creto e propôs que<br />
o processo fosse julgado diante <strong>de</strong> mil e quinhentos<br />
juízes 253 , quer se quisesse enten<strong>de</strong>r o caso como <strong>de</strong> roubo<br />
e corrupção, quer <strong>de</strong> malversação.<br />
5. Por Aspásia, <strong>Péricles</strong> 254 interce<strong>de</strong>u <strong>de</strong>rramando,<br />
como diz Ésquines 255 , durante o processo, lágrimas sem<br />
conta fazendo apelos aos juízes. Quanto a Anaxágoras,<br />
250 Os prítanes eram uma comissão <strong>de</strong> cinquenta elementos <strong>de</strong><br />
uma tribo que presidiam às reuniões do conselho e da assembleia,<br />
mas apenas num período curto: um décimo do ano, sendo <strong>de</strong>pois<br />
substituídos por outra comissão, <strong>de</strong> outra tribo, até perfazerem as<br />
<strong>de</strong>z existentes.<br />
251 Conferia-se, assim, mais solenida<strong>de</strong> ao veredicto. O altar<br />
mencionado é o <strong>de</strong> Atena na Acrópole, junto à fachada oriental do<br />
Erecteion, on<strong>de</strong> terminava a procissão das Panateneias.<br />
252 Filho <strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> nome Nícias, participou na Guerra<br />
<strong>de</strong> Samos, em 440 a.C., como estratego (Tucídi<strong>de</strong>s 1. 117).<br />
É comummente aceite como provável fundador <strong>de</strong> Anfípolis<br />
(Tucídi<strong>de</strong>s 4. 102. 3, 5. 11. 1). Foi novamente estratego em 431<br />
a.C. (por ocasião do cerco <strong>de</strong> Poti<strong>de</strong>ia – cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 58) e em<br />
429 a.C. (Tucídi<strong>de</strong>s 2. 95. 3). Participou na assinatura da Paz <strong>de</strong><br />
Nícias (Tucídi<strong>de</strong>s 5. 19. 2, 24. 1) e, em 413 a.C., foi eleito proboulos.<br />
Esta sua emenda ao <strong>de</strong>creto sugere que era apoiante <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />
253 Consequentemente, o julgamento que <strong>de</strong> início assumia um<br />
carácter extraordinário, tornou-se um processo ordinário, embora<br />
o júri fosse mais numeroso do que o habitual.<br />
254 É razoável pensar que agisse como seu <strong>de</strong>fensor, já que<br />
Aspásia era meteca. Provavelmente por altura da sua chegada <strong>de</strong><br />
Mileto, <strong>Péricles</strong> assumiu as funções <strong>de</strong> seu representante (prostates)<br />
e a inerente responsabilida<strong>de</strong> pela sua conduta moral e civil. Vi<strong>de</strong><br />
Montuori (1981: 93).<br />
255 Ateneu (589e) atribui esta notícia a Ésquines, segundo o<br />
qual <strong>Péricles</strong> chorou mais por Aspásia do que nos momentos em<br />
que a sua vida ou riqueza correram perigo.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
por receio, enviou-o para fora da cida<strong>de</strong> 256 . 6. Como, no<br />
caso <strong>de</strong> Fídias, <strong>de</strong>sagradara ao povo, tinha medo <strong>de</strong> um<br />
julgamento; avivou então o fogo 257 da guerra que estava<br />
iminente e que ardia em segredo, esperando dissipar<br />
as acusações e diminuir as más vonta<strong>de</strong>s; é que, nas<br />
empresas gran<strong>de</strong>s e arriscadas, era só nele que a cida<strong>de</strong><br />
confiava por causa do prestígio e do po<strong>de</strong>r que <strong>de</strong>tinha.<br />
São estas as razões apresentadas para não ter permitido<br />
que o povo ce<strong>de</strong>sse aos Lace<strong>de</strong>mónios – mas a verda<strong>de</strong><br />
é incerta.<br />
33. 1. Os Lace<strong>de</strong>mónios, apercebendo-se <strong>de</strong> que,<br />
se o <strong>de</strong>stituíssem, encontrariam os Atenienses mais<br />
complacentes para tudo, exortaram-nos a expiar o crime<br />
sacrílego <strong>de</strong> Cílon 258 , no qual, como contou Tucídi<strong>de</strong>s 259 ,<br />
a família materna <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> estava envolvida. 2. Mas,<br />
para os que tomaram essa iniciativa, o projecto resultou<br />
ao contrário: é que em vez <strong>de</strong> suspeita e calúnia,<br />
256 Segundo Diodoro Sículo (12. 39. 2), Anaxágoras foi acusado<br />
<strong>de</strong> impieda<strong>de</strong> e, em Plutarco, Nícias 23. 4, diz-se que chegou a estar<br />
preso.<br />
257 Imagem também usada por Aristófanes (Paz 608-610).<br />
258 Cílon, ateniense nobre e influente, vencedor dos Jogos<br />
Olímpicos, casou-se com a filha do tirano <strong>de</strong> Mégara. Quando,<br />
certa vez, consultou o oráculo <strong>de</strong> Delfos, convenceu-se <strong>de</strong> que<br />
<strong>de</strong>via tornar-se tirano em Atenas, ocupando a Acrópole. Falhada<br />
a tentativa – os Atenienses aperceberam-se e houve um confronto<br />
–, Cílon fugiu com o irmão, mas os outros que o ajudaram foram<br />
assassinados, alguns dos quais no interior dos templos, pelo que se<br />
consi<strong>de</strong>rava que os assassinos tinham cometido sacrilégio contra os<br />
<strong>de</strong>uses. Exortar à exclusão dos que eram amaldiçoados por assassinar<br />
suplicantes <strong>de</strong>ve ter parecido uma excelente réplica àquela a que os<br />
Atenienses votaram os <strong>de</strong> Mégara por sacrilégio.<br />
259 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 126-127.<br />
132
133<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
<strong>Péricles</strong> obteve ainda mais confiança e prestígio entre<br />
os cidadãos, como alguém que os inimigos o<strong>de</strong>iam e<br />
temem particularmente. 3. Por isso, antes <strong>de</strong> Arquidamo<br />
atacar a Ática com os Peloponésios, <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>clarou aos<br />
Atenienses que, se Arquidamo, embora <strong>de</strong>vastando as<br />
restantes, poupasse as suas proprieda<strong>de</strong>s, ou por laços<br />
<strong>de</strong> hospitalida<strong>de</strong> que existiam entre eles, ou para dar aos<br />
seus inimigos motivos <strong>de</strong> calúnia, entregaria à cida<strong>de</strong> a<br />
terra e as casas <strong>de</strong> campo que lhe pertenciam 260 .<br />
4. Os Lace<strong>de</strong>mónios e seus aliados atacaram a<br />
Ática com um gran<strong>de</strong> exército, sob o comando do rei<br />
Arquidamo; e, <strong>de</strong>vastando a região, avançaram para<br />
Acarnas 261 on<strong>de</strong> acamparam, pois julgavam que os<br />
Atenienses não o suportariam, mas lutariam contra eles<br />
por raiva e orgulho 262 .<br />
5. No entanto, parecia a <strong>Péricles</strong> perigoso envolver<br />
a cida<strong>de</strong> num combate contra sessenta mil hoplitas do<br />
Peloponeso e da Beócia – tantos eram os que participaram<br />
na primeira invasão. Acalmou por isso os que, indignados 263<br />
com os acontecimentos, queriam combater, dizendo que as<br />
árvores cortadas e abatidas voltavam a crescer rapidamente,<br />
mas que não é fácil recuperar os homens <strong>de</strong>struídos.<br />
260 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 13. 1.<br />
261 Na Primavera <strong>de</strong> 431 a.C. (cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 18-20; Diodoro<br />
Sículo 12. 42). Acarnas era o maior dos <strong>de</strong>mos da Ática e situava-se<br />
a sessenta estádios a Norte <strong>de</strong> Atenas, perto da planície <strong>de</strong> Triásia.<br />
Aristófanes <strong>de</strong>dicou uma das suas comédias – intitulada Acarnenses<br />
– a essa região tão afectada pela guerra.<br />
262 Este passo é o resumo <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s 2. 19-20. Segundo o<br />
historiador, Arquidamo baseava as suas esperanças na juventu<strong>de</strong><br />
dos Atenienses e na atitu<strong>de</strong> dos Acarnenses que não permitiriam o<br />
saque da sua região.<br />
263 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 21.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
6. Deixou <strong>de</strong> reunir o povo em assembleia 264 ,<br />
temendo ser forçado a agir contra a sua vonta<strong>de</strong>. Como<br />
o piloto <strong>de</strong> um barco que, quando sopra o vento no altomar,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> pôr tudo em or<strong>de</strong>m e <strong>de</strong> esticar as velas,<br />
usa a sua técnica, sem se preocupar com as lágrimas dos<br />
passageiros que sofrem <strong>de</strong> náuseas e <strong>de</strong> medo, também<br />
<strong>Péricles</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter fechado as portas <strong>de</strong> Atenas e <strong>de</strong>,<br />
por segurança, a ter protegido toda com guardas, seguiu<br />
os seus planos, pouco se inquietando com protestos e<br />
<strong>de</strong>scontentamentos 265 . 7. Na verda<strong>de</strong>, muitos dos amigos<br />
pressionaram-no com súplicas e muitos dos inimigos<br />
fizeram ameaças e acusações, os coros entoaram canções<br />
e piadas contra a sua honra, insultando a estratégia que<br />
<strong>de</strong>fendia como cobar<strong>de</strong> e <strong>de</strong>masiado frouxa para com os<br />
inimigos 266 .<br />
264 A Ecclesia reunia obrigatoriamente pelo menos uma vez por<br />
mês. Não temos qualquer indicação que nos diga que os generais<br />
tinham o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> suspen<strong>de</strong>r as reuniões regulares da Assembleia.<br />
Sabemos, porém, que em situações <strong>de</strong> emergência podiam convocar<br />
uma sessão extraordinária. Sobre a acção <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> neste momento<br />
<strong>de</strong> crise, leia-se Tucídi<strong>de</strong>s 2. 22.<br />
265 Plutarco aproveita o texto <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s (2. 22) para<br />
evi<strong>de</strong>nciar, mais uma vez, a calma e a segurança <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. A<br />
comparação platónica (República 488a-e; Górgias 512b-d) com o<br />
piloto <strong>de</strong> um navio mostra as preocupações literárias do biógrafo,<br />
que procura adornar a imagem do político ateniense como homem<br />
sábio e pru<strong>de</strong>nte, que, em situações difíceis, apenas ouve a voz da<br />
razão.<br />
266 Está em causa a controversa estratégia adoptada por <strong>Péricles</strong>:<br />
não ripostar aos ataques terrestres que os inimigos faziam à Ática<br />
(o que iria certamente aumentar a <strong>de</strong>struição), mas contra-atacar<br />
por mar (pois o po<strong>de</strong>rio ateniense a este nível era manifestamente<br />
reconhecido por todos). Segundo Tucídi<strong>de</strong>s, este plano era muito<br />
pru<strong>de</strong>nte e teria tido hipóteses <strong>de</strong> sair vencedor, não fosse o <strong>de</strong>flagrar<br />
da peste em Atenas. Implicava, contudo, que a população assistisse<br />
134
135<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
8. Já também Cléon 267 o atacava, aproveitando<br />
a ira dos cidadãos contra ele para alcançar a li<strong>de</strong>rança<br />
do povo, como mostram estes anapestos da autoria <strong>de</strong><br />
Hermipo (fr. 47 K.-A.):<br />
“Ó rei dos sátiros, porque não queres empunhar<br />
a lança e pronuncias em vez disso extraordinários<br />
discursos sobre a guerra? É a alma <strong>de</strong> Teleto 268 que se<br />
te insinua sob a pele? Enquanto o punhal se afia na<br />
pedra <strong>de</strong> amolar, tu arreganhas os <strong>de</strong>ntes por causa das<br />
facadinhas e mordi<strong>de</strong>las que já sentes do Cléon, essa<br />
linguinha cortante.”<br />
34. 1. <strong>Péricles</strong> não se perturbou com nenhuma<br />
<strong>de</strong>ssas investidas e suportava com calma e em silêncio a<br />
impopularida<strong>de</strong> e o ódio. Enviou para o Peloponeso uma<br />
frota <strong>de</strong> cem navios 269 , mas ele próprio não embarcou,<br />
antes ficou a vigiar e a controlar a cida<strong>de</strong> até que os<br />
Peloponésios se retirassem.<br />
2. Para acalmar a multidão irritada por causa da<br />
guerra, atraiu-a com subsídios e propôs cleruquias. Assim,<br />
à <strong>de</strong>struição e pilhagem dos seus bens sem nada po<strong>de</strong>r fazer. O<br />
povo, talvez por não compreen<strong>de</strong>r o alcance <strong>de</strong>sta estratégia, acusa<br />
o estratego <strong>de</strong> cobardia e tolerância em relação aos inimigos.<br />
267 Um dos principais sucessores <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> que quer Aristófanes<br />
quer Tucídi<strong>de</strong>s atacaram pela <strong>de</strong>magogia que representava (cf.<br />
Aristófanes, Cavaleiros, Vespas, Paz; Tucídi<strong>de</strong>s 3. 36. 6). Consta que<br />
nos princípios da Guerra do Peloponeso (429 a.C.) atacou <strong>Péricles</strong><br />
(cf. Per. 35. 5) com graves acusações. Foi intransigente na oposição<br />
aos Espartanos e morreu em 422 a.C. na batalha <strong>de</strong> Anfípolis.<br />
268 Trata-se <strong>de</strong> uma personagem conhecida pela cobardia, mas<br />
que não se encontra i<strong>de</strong>ntificada. Stadter (1989: 313) sugere que<br />
talvez corresponda a Téleas (cf. Aristófanes, Paz 1008; Aves 167-<br />
170 e respectivo escólio).<br />
269 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 143.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> expulsar todos os Eginetas, distribuiu a ilha, por<br />
tiragem à sorte, entre Atenienses 270 . 3. Alguma consolação<br />
resultou também dos danos causados aos inimigos. De<br />
facto, os que circum-navegavam o Peloponeso <strong>de</strong>struíram<br />
muitos campos, al<strong>de</strong>ias e pequenas cida<strong>de</strong>s 271 ; enquanto<br />
ele próprio se dirigiu por terra para Mégara e a <strong>de</strong>vastou<br />
completamente 272 . 4. Assim, era evi<strong>de</strong>nte que se os inimigos<br />
causavam, por terra, muitos danos aos Atenienses, também<br />
sofriam por mar muito graças a eles; nem teriam prolongado<br />
tanto a guerra e teriam cedido rapidamente, como <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o príncipio <strong>Péricles</strong> previra 273 , se a vonta<strong>de</strong> divina não se<br />
opusesse secretamente às intenções humanas 274 .<br />
5. Foi então que, pela primeira vez 275 , um surto<br />
270 Segundo Tucídi<strong>de</strong>s (2. 27. 1), a razão é estratégica e não<br />
pessoal como em Plutarco: é que Egina era muito próxima do<br />
Peloponeso e da Ática e, além disso, esta era uma boa forma <strong>de</strong><br />
acomodar os <strong>de</strong>salojados que se encontravam nessa situação por<br />
causa da invasão efectuada pelos Espartanos.<br />
271 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 25; Diodoro Sículo 12. 42. 7; Justiniano 3. 7. 5-6.<br />
272 Esta acção vem muito provavelmente na sequência do<br />
<strong>de</strong>creto <strong>de</strong> Mégara (Per. 30. 3). Ao contrário <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s (2. 31)<br />
e <strong>de</strong> Diodoro Sículo (12. 44. 3), Plutarco esbate o protagonismo<br />
do estadista nesta ofensiva, pois não preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>screver a acção <strong>de</strong><br />
<strong>Péricles</strong> enquanto estratego durante a Guerra do Peloponeso.<br />
273 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 1. 141-144, on<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> respon<strong>de</strong> aos<br />
argumentos dos Coríntios e analisa as hipóteses <strong>de</strong> ambas as<br />
potências (Atenas e Esparta).<br />
274 Plutarco aproveita a única referência <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s à divinda<strong>de</strong><br />
(2. 64. 1) como elemento que altera a seu prazer os planos humanos.<br />
Note-se o paralelo com Fab. 17. 1, on<strong>de</strong> se diz que Aníbal se <strong>de</strong>svia<br />
<strong>de</strong> Roma por vonta<strong>de</strong> divina.<br />
275 O surto surgiu nos começos do Verão <strong>de</strong> 430 a.C. Por<br />
causa do enca<strong>de</strong>amento do raciocínio que o levou a passar da<br />
responsabilida<strong>de</strong> divina pela <strong>de</strong>rrota ateniense para a peste, Plutarco<br />
omitiu <strong>de</strong>terminados acontecimentos cruciais no <strong>de</strong>curso da guerra<br />
(cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 47 e 55; Diodoro 12. 45. 1), nomeadamente a<br />
136
137<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
<strong>de</strong> peste os atacou e lhes <strong>de</strong>vastou em pleno vigor a<br />
juventu<strong>de</strong> e a força. Atingidos no corpo e no espírito por<br />
causa da doença, foi geral o exaspero contra <strong>Péricles</strong> e a<br />
tentativa <strong>de</strong> o molestar, como os enfermos que <strong>de</strong>liram<br />
fazem ao médico ou ao pai. Deixaram-se persuadir pelos<br />
inimigos <strong>de</strong>le <strong>de</strong> que a concentração da multidão do<br />
campo na cida<strong>de</strong> originara a doença, pois, no Verão,<br />
muitos eram forçados a viver amontoados em casas<br />
pequenas e barracas abafadas, numa vida se<strong>de</strong>ntária<br />
e ociosa em vez da anterior passada ao ar livre. E o<br />
responsável pela situação era quem, por causa da guerra,<br />
encurralou a multidão do campo <strong>de</strong>ntro das muralhas<br />
sem dar nada que fazer a estes homens, permitindo assim<br />
que se empestassem uns aos outros ao aprisioná-los<br />
como gado, sem lhes proporcionar nenhuma mudança<br />
ou melhoria 276 .<br />
35. 1. No <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> remediar a situação e <strong>de</strong> causar<br />
algum dano aos inimigos, equipou cento e cinquenta<br />
barcos e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> embarcar muitos e valentes hoplitas<br />
e cavaleiros, preparava-se para partir, causando gran<strong>de</strong><br />
esperança aos cidadãos e medo não pequeno aos<br />
inimigos com tamanha força 277 . 2. Quando os navios<br />
já estavam prontos e <strong>Péricles</strong> tinha embarcado na sua<br />
segunda invasão lace<strong>de</strong>mónia que motivou a concentração da<br />
população no interior das muralhas.<br />
276 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 47-54 que Plutarco aqui resume, acrescentando<br />
a reacção do povo em relação à estratégia <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>.<br />
277 Tucídi<strong>de</strong>s 2. 56. 1-2 fala da frota em questão, constituída<br />
por cem embarcações fornecidas por Atenas e cinquenta por Quios<br />
e Lesbos. Este número, aliado aos quatro mil hoplitas e trezentos<br />
cavaleiros, mostra bem a dimensão e potencial <strong>de</strong> uma tal força.
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
própria trirreme, suce<strong>de</strong>u que o sol se eclipsou e as trevas<br />
apareceram 278 , o que a todos perturbou como um sinal<br />
tremendo. Ora <strong>Péricles</strong>, ao ver o piloto muito assustado<br />
e hesitante, pôs-lhe o manto diante dos olhos e, <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> os tapar, perguntou-lhe se não via naquele gesto algo<br />
terrível ou um sinal <strong>de</strong> algo terrível. Como ele respon<strong>de</strong>u<br />
que não, disse-lhe: “Em que é que a outra situação difere<br />
<strong>de</strong>sta, a não ser porque o factor que provoca as trevas é<br />
maior do que o meu manto?” Pelo menos, esta episódio<br />
contada nas escolas <strong>de</strong> filosofia 279 .<br />
3. Então <strong>Péricles</strong> zarpou, mas parece não ter<br />
conseguido nada digno dos preparativos. Cercou a<br />
sagrada Epidauro 280 , que lhe <strong>de</strong>spertou a esperança <strong>de</strong><br />
cair em seu po<strong>de</strong>r, e no entanto falhou por causa da<br />
278 O eclipse aqui mencionado teve lugar a 3 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 431<br />
a.C., como afirma Tucídi<strong>de</strong>s (2. 28).<br />
279 Cícero (República 1. 16) e Valério <strong>Máximo</strong> (8. 11, ext. 1)<br />
mostram <strong>Péricles</strong> a explicar o eclipse, sem no entanto relacionarem<br />
tal explicação com o momento da partida da expedição. Segundo<br />
Stadter (1989: 320), esta pequena incongruência <strong>de</strong> Plutarco<br />
relativamente a outras fontes (já que combina uma expedição<br />
que teve lugar em 430 a.C. com um eclipse que, como já vimos,<br />
ocorreu em 431 a.C.) resulta do próprio método <strong>de</strong> composição do<br />
biógrafo: embora estivesse a seguir <strong>de</strong> perto o texto <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s, ao<br />
<strong>de</strong>dicar-se à narrativa da peste, ter-se-á esquecido da referência que<br />
o historiador faz ao fenómeno e <strong>de</strong> imediato passa para o episódio<br />
anedótico (<strong>de</strong> fonte diversa). Assim, po<strong>de</strong>-se partir do princípio <strong>de</strong><br />
que lia as notas para organizar o pensamento, mas que nem sempre<br />
ia reconfirmar os dados. Esta anedota também lembra a importância<br />
que o conhecimento filosófico adquiriu com Anaxágoras.<br />
280 Epidauro era a segunda cida<strong>de</strong> da Argólida e forneceu oito navios<br />
em Artemísio e <strong>de</strong>z em Salamina. A sua hostilida<strong>de</strong> com Argos, primeira<br />
cida<strong>de</strong> da região, fez com que fosse partidária <strong>de</strong> Esparta. Epidauro era<br />
famosa pelo santuário <strong>de</strong>dicado a Asclépio. O facto <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> atacar<br />
esta região durante uma situação <strong>de</strong> peste causa admiração, pois era<br />
mais lógico que tentasse pedir ajuda ao <strong>de</strong>us da medicina.<br />
138
139<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
doença. Na verda<strong>de</strong>, a peste não dizimou apenas os<br />
Atenienses, como também os que <strong>de</strong> algum modo se<br />
aproximavam do seu exército 281 . Quando, por causa do<br />
sucedido, os Atenienses ficaram furiosos com ele, tentou<br />
consolá-los e encorajá-los. 4. Mas não lhes apazigou a<br />
cólera nem os dissuadiu enquanto, com votos contra<br />
ele na mão e reinvestidos na sua autorida<strong>de</strong>, lhe não<br />
tiraram o comando do exército e lhe não impuseram<br />
uma multa em dinheiro; essa soma era inferior a quinze<br />
talentos, segundo os que contam por baixo; ou superior<br />
a cinquenta, <strong>de</strong> acordo com os que contam por cima 282 .<br />
5. O acusador que o processou foi Cléon, segundo diz<br />
Idomeneu 283 ; Símias, segundo Teofrasto 284 ; Heracli<strong>de</strong>s<br />
Pôntico 285 indica Lacrátidas.<br />
281 Neste passo, Plutarco fun<strong>de</strong> dois acontecimentos diferentes:<br />
o cerco <strong>de</strong> Epidauro (Tucídi<strong>de</strong>s 2. 56. 4) e o <strong>de</strong> Poti<strong>de</strong>ia (Tucídi<strong>de</strong>s<br />
2. 58. 1-2), interrompido por causa da peste que atacou o exército<br />
ateniense. A confusão justifica-se mais uma vez pelo método <strong>de</strong><br />
Plutarco, que se baseia sobretudo na memória.<br />
282 Sobre este assunto, veja-se Tucídi<strong>de</strong>s 2. 65. 3 (em parte<br />
parafraseado por Plutarco) e Diodoro Sículo 12. 45. 4. Segundo<br />
Platão (Górgias 516a), o facto <strong>de</strong> o povo afastar <strong>Péricles</strong> do comando<br />
é sinónimo <strong>de</strong> que o estadista não estava a tornar os cidadãos<br />
melhores. De acordo com esta mesma fonte, <strong>Péricles</strong> era acusado<br />
<strong>de</strong> roubar o erário público.<br />
O processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>posição chamava-se epicheirotonia. Votava-se,<br />
então, no princípio <strong>de</strong> cada pritania, a actuação dos generais e magistrados.<br />
Se essa fosse consi<strong>de</strong>rada negativa, o general ou magistrado<br />
seria objecto <strong>de</strong> julgamento: se fosse con<strong>de</strong>nado, o tribunal<br />
estabeleceria a pena; se fosse absolvido, reassumiria o seu cargo (cf.<br />
Aristóteles, Constituição <strong>de</strong> Atenas 61. 2).<br />
283 FGrHist 338 F 9.<br />
284 O facto <strong>de</strong> o nome Símias ser raro em Atenas reforça a<br />
autenticida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta referência. Plutarco também o invoca em Obras<br />
Morais 805c.<br />
285 Fr. 47 Wehrli. Lacrátidas é referido apenas neste passo. Trata-se
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
36. 1. Mas os problemas públicos que o afectavam<br />
haviam <strong>de</strong> cessar rapidamente, pois o povo <strong>de</strong>scarregou a<br />
ira contra ele na picada, como um ferrão 286 . Foram então as<br />
questões domésticas que se lhe tornaram penosas: durante<br />
a peste, per<strong>de</strong>ra não poucos familiares e as relações em casa<br />
vinham sendo, <strong>de</strong> há muito, perturbadas pela discórdia. 2.<br />
Xantipo, o mais velho dos seus filhos legítimos 287 , que era<br />
por natureza gastador e estava casado com uma mulher<br />
nova e esbanjadora, filha <strong>de</strong> Tisandro e neta <strong>de</strong> Epílico 288 ,<br />
suportava com dificulda<strong>de</strong> a economia do pai, que lhe<br />
dava pouco e … com peso e medida. 3. Por isso, dirigiuse<br />
a um amigo e pediu-lhe dinheiro emprestado, como se<br />
o fizesse por indicação <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. 4. Mais tar<strong>de</strong>, quando<br />
provavelmente <strong>de</strong> um membro <strong>de</strong> uma família antiga. Vi<strong>de</strong> Davies<br />
(1971: 43-47).<br />
286 Introduz-se neste momento uma quebra do relato<br />
cronológico – que só será retomado em 37. 1 – para dar a conhecer<br />
os problemas pessoais <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> com a família. Nesta comparação<br />
com o ferrão das abelhas, Plutarco foi provavelmente influenciado<br />
por Platão (Fedro 91c) e Aristófanes (Vespas 405 sq., on<strong>de</strong> os juízes<br />
atenienses <strong>de</strong>liberam como quem distribui ferrões para punir os<br />
que têm comportamentos indignos).<br />
287 Filho da primeira esposa <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, provavelmente nascido<br />
em 457 a.C. Era costume dar ao filho mais velho o nome do avô<br />
paterno. Segundo Platão (Menéxeno 94b), <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>u aos filhos<br />
uma excelente educação no que concerne à arte da cavalaria,<br />
música e ginástica, mas não conseguiu fazer <strong>de</strong>les agathoi. Ésquines<br />
Socrático (5. 220d) critica-os pelas más companhias.<br />
288 Membro da família dos Filía<strong>de</strong>s (embora <strong>de</strong> um ramo diferente<br />
do <strong>de</strong> Milcía<strong>de</strong>s e do <strong>de</strong> Címon), nasceu cerca do ano 490 a.C. Teve<br />
certa importância política, <strong>de</strong> tal modo que o seu nome chega a<br />
aparecer num ostrakon, como candidato ao ostracismo (440 a.C.). Vi<strong>de</strong><br />
Meiggs & Lewis (1969: 45-46). A referência à natureza dissipadora<br />
das mulheres <strong>de</strong> boas famílias faz recordar as queixas <strong>de</strong> Estrepsía<strong>de</strong>s<br />
em relação à sua consorte (vi<strong>de</strong> Aristófanes, Nuvens 46-68).<br />
140
141<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
o amigo pediu ao pai o reembolso, <strong>Péricles</strong> intentou um<br />
processo contra ele 289 . O jovem Xantipo, irritado com o<br />
assunto, insultou o pai. Primeiro divulgou, para o meter<br />
a ridículo, a forma como geria a casa e as discussões<br />
que mantinha com os sofistas. 5. Durante um pentatlo,<br />
por exemplo, alguém ferira involuntariamente com um<br />
dardo Epítimo <strong>de</strong> Farsália 290 que acabou por morrer – e<br />
<strong>Péricles</strong>, durante um dia inteiro, pôs-se a discutir com<br />
Protágoras 291 quem se <strong>de</strong>via consi<strong>de</strong>rar, numa perspectiva<br />
rigorosa, o responsável pelo inci<strong>de</strong>nte, se o dardo 292 , se<br />
quem o lançou, se os juízes dos jogos.<br />
289 A anedota, aparentemente, omite pormenores: é provável que o<br />
credor tivesse accionado os tribunais para recuperar o dinheiro. Nestas<br />
circunstâncias, <strong>Péricles</strong> terá replicado também com recurso aos tribunais.<br />
290 Segundo a lei ateniense, matar involuntariamente um<br />
adversário durante os jogos não era <strong>de</strong>lito (cf. Aristóteles,<br />
Constituição <strong>de</strong> Atenas 57. 3). Quanto a Epítimo, não é referido em<br />
mais nenhuma fonte.<br />
291 Protágoras <strong>de</strong> Ab<strong>de</strong>ra (ca. 490-420 a.C.) foi um dos<br />
primeiros sofistas e talvez o mais famoso, conhecido pela célebre<br />
máxima “o homem é a medida <strong>de</strong> todas as coisas”. Consta que<br />
visitou Atenas algumas vezes e que se tornou amigo <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> –<br />
que lhe confiou a legislação <strong>de</strong> Túrios (444 a.C.). Stadter (apud<br />
Pérez Jiménez 1996: 510), porém, <strong>de</strong>monstra a incompatibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>stas personagens e nega a veracida<strong>de</strong> das anedotas que se referem<br />
às discussões entre ambos, consi<strong>de</strong>rando-as um topos retórico na<br />
época <strong>de</strong> Plutarco. Fontes tardias informam-nos <strong>de</strong> que Protágoras<br />
foi julgado e con<strong>de</strong>nado a sair <strong>de</strong> Atenas (ou mesmo à morte) por<br />
asebeia (cf. Diodoro Sículo 9. 54). Terá morrido por afogamento a<br />
caminho do exílio. Para pormenores a respeito da sua vida e obra,<br />
vi<strong>de</strong> Guthrie (1969: 262-269).<br />
292 A lei ateniense <strong>de</strong>terminava que os animais ou objectos<br />
responsáveis pela morte <strong>de</strong> um homem fossem julgados (cf.<br />
Aristóteles, Constituição <strong>de</strong> Atenas 57. 4) e atirados para fora das<br />
fronteiras da Ática, caso fossem consi<strong>de</strong>rados culpados. Vi<strong>de</strong><br />
Macdowell (1963: 85-89).
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
6. Em cima <strong>de</strong> tudo isto, Estesímbroto 293 conta<br />
que as calúnias sobre a sua própria mulher foram<br />
trazidas a público por Xantipo e que, em traços gerais, a<br />
divergência com o pai se manteve inalterável por parte<br />
do jovem até à morte: é que Xantipo morreu vítima<br />
<strong>de</strong> peste. 7. <strong>Péricles</strong> per<strong>de</strong>u então também a irmã e a<br />
maioria dos parentes e amigos, além dos seus melhores<br />
colaboradores no governo. 8. No entanto, não ce<strong>de</strong>u<br />
nem abandonou a nobreza e a elevação <strong>de</strong> alma por<br />
causa <strong>de</strong>stas <strong>de</strong>sgraças, nem foi visto a chorar, nem a<br />
celebrar os funerais, nem junto do túmulo <strong>de</strong> nenhum<br />
dos seus 294 , até que, por fim, per<strong>de</strong>u Páralo 295 , o único<br />
sobrevivente dos seus filhos legítimos. 9. Embora abatido<br />
por este golpe, esforçou-se por ser fiel ao seu carácter e<br />
manter a coragem. Porém, ao colocar a coroa <strong>de</strong> flores<br />
sobre o cadáver, <strong>de</strong>ixou-se vencer pela dor daquela<br />
visão, <strong>de</strong> tal maneira que <strong>de</strong>satou a gemer e a chorar<br />
gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lágrimas, o que nunca tinha feito<br />
no resto da vida.<br />
37. 1. Entretanto, a cida<strong>de</strong> experimentava outros<br />
generais e oradores para conduzirem a guerra – mas<br />
293 FGrHist 107 F 11.<br />
294 Para Plutarco, o controlo do sofrimento <strong>de</strong>monstra a<br />
virtu<strong>de</strong> filosófica do autodomínio. A serenida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> em tais<br />
circunstâncias causou a admiração <strong>de</strong> Valério <strong>Máximo</strong> (5. 10. ext.<br />
1) que, na ignorância da reacção do estadista por altura da morte <strong>de</strong><br />
Páralo, o apresenta como exemplo <strong>de</strong> fortaleza e estabelece a relação<br />
entre essa característica e a alcunha <strong>de</strong> Olímpico.<br />
295 Recebeu o seu nome, como uma das duas trirremes sagradas,<br />
do filho <strong>de</strong> Poséidon, herói <strong>de</strong> Atenas e protector dos marinheiros.<br />
Pouco se sabe a seu respeito. Cf. Platão, Protágoras 315, 319e,<br />
328c.<br />
142
143<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
nenhum revelou ter a autorida<strong>de</strong> a<strong>de</strong>quada ou um<br />
prestígio que garantisse semelhante li<strong>de</strong>rança. Sentindo<br />
a falta <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>, chamou-o para a tribuna e para o<br />
exército. Este permanecia em casa, <strong>de</strong>sanimado pela dor,<br />
mas foi persuadido a regressar por Alcibía<strong>de</strong>s 296 e por<br />
outros amigos. 2. Depois que o povo pediu <strong>de</strong>sculpas da<br />
sua ingratidão para com ele, <strong>Péricles</strong> retomou o governo<br />
e foi eleito general 297 . Pediu que fosse revogada a lei<br />
sobre os bastardos 298 , que ele próprio promulgara antes,<br />
pois não queria <strong>de</strong>ixar o seu nome e linhagem privados<br />
<strong>de</strong> sucessão.<br />
3. Eis as circunstâncias em que a lei surgiu: muito<br />
tempo antes, quando <strong>Péricles</strong> estava no auge da sua<br />
carreira política e tinha, como se disse, filhos legítimos,<br />
296 <strong>Péricles</strong> e Árifron, seu irmão, tornaram-se tutores <strong>de</strong><br />
Alcibía<strong>de</strong>s após a morte do pai <strong>de</strong>ste, Clínias (batalha <strong>de</strong> Coroneia,<br />
446 a.C.).<br />
297 Cf. Tucídi<strong>de</strong>s 2. 65. 4; Diodoro Sículo 12. 45. 5. A data<br />
da reeleição é controversa: Tucídi<strong>de</strong>s diz que tal aconteceu pouco<br />
<strong>de</strong>pois do afastamento <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> – assim, ou foi convocada uma<br />
eleição extraordinária algumas semanas após a <strong>de</strong>stituição, ou os<br />
Atenienses aguardaram o escrutínio regular, que teria lugar na<br />
Primavera <strong>de</strong> 429 a.C. (neste caso, <strong>Péricles</strong> apenas teria reassumido<br />
funções em Julho do mesmo ano). Importa salientar que, muito<br />
provavelmente, o estratego nunca chegou a pagar a multa<br />
<strong>de</strong>terminada (Per. 35. 4).<br />
298 Tucídi<strong>de</strong>s e Diodoro Sículo nada dizem a este respeito.<br />
Plutarco combina neste relato elementos que não surgem juntos<br />
em nenhuma outra fonte: a reeleição <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>; o pedido <strong>de</strong><br />
revogação da lei; a distribuição <strong>de</strong> cereais vindos do Egipto; a ironia<br />
da posição <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>; o registo do seu filho como cidadão. Uma<br />
<strong>de</strong>scrição tão pormenorizada justifica-se pela necessida<strong>de</strong> que o<br />
biógrafo sentiu <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver com realismo a situação dramática.<br />
Este tema <strong>de</strong>ve ter alimentado as comédias, nomeadamente Demos<br />
<strong>de</strong> Êupolis (Per. 24. 10).
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
propôs uma lei segundo a qual apenas eram Atenienses os<br />
que tivessem nascido <strong>de</strong> Atenienses pelas duas partes 299 .<br />
4. Depois, quando o rei do Egipto enviou como presente<br />
ao povo quarenta mil medimnos <strong>de</strong> cereal 300 , era preciso<br />
distribuí-lo pelos cidadãos. Por causa daquela lei,<br />
muitos processos foram levantados contra bastardos,<br />
até então ignorados e <strong>de</strong>sconhecidos. E muitos foram<br />
vítimas <strong>de</strong> acusações caluniosas. Após avaliação, foram<br />
discriminados e con<strong>de</strong>nados pouco menos <strong>de</strong> cinco mil;<br />
os que mantiveram a cidadania e foram consi<strong>de</strong>rados<br />
Atenienses <strong>de</strong>pois do exame perfaziam a soma <strong>de</strong> catorze<br />
mil e quarenta 301 .<br />
5. Embora fosse estranho que uma lei severamente<br />
aplicada contra tantos fosse revogada outra vez pelo<br />
mesmo que a propôs, a <strong>de</strong>sgraça familiar que sobreveio<br />
a <strong>Péricles</strong>, como se tivesse representado um castigo<br />
pela arrogância e orgulho que manifestara, comoveu os<br />
299 Esta lei data <strong>de</strong> 451-450 a.C., período do arcontado <strong>de</strong><br />
Antídoto (cf. Aristóteles, Constituição <strong>de</strong> Atenas 26. 4). Para mais<br />
pormenores sobre as leis atenienses que concernem casamentos<br />
entre cidadãos e não cidadãos e também sobre filhos ilegítimos,<br />
veja-se Harrison (1968: 61-68). Segundo Aristóteles, a única<br />
fonte antiga a avançar com uma explicação, o que conduziu à<br />
aprovação <strong>de</strong>sta lei foi a dimensão excessiva do corpo <strong>de</strong> cidadãos<br />
(Constituição <strong>de</strong> Atenas 26. 4; cf. Política 1278a). Para as várias<br />
justificações apresentadas pelos estudiosos mo<strong>de</strong>rnos, vi<strong>de</strong> Stadter<br />
(1989: 334-335).<br />
300 Um medimno equivale a cerca <strong>de</strong> 41.5 litros. É provável<br />
que se trate da distribuição <strong>de</strong> cereais mencionada por Filócoro<br />
(FGrHist 328 F 119 = escólio a Aristófanes, Vespas 718) e atribuída<br />
ao rei egípcio Psamético, não claramente i<strong>de</strong>ntificado.<br />
301 Também Filócoro (FGrHist 328 F 119) avança dados<br />
muito semelhantes aos <strong>de</strong> Plutarco: 4.760 excluídos e 14.240<br />
reconhecidos.<br />
144
145<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
Atenienses: estes, consi<strong>de</strong>rando que ele sofrera uma pena<br />
justa e pedia algo humano, permitiram que inscrevesse<br />
o bastardo nos registos da sua fratria e lhe <strong>de</strong>sse o seu<br />
próprio nome 302 . 6. Foi esse o filho que mais tar<strong>de</strong>,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> vencer os Peloponésios em Arginusas, o povo<br />
con<strong>de</strong>nou à morte com os seus co-generais.<br />
38. 1. Parece que foi então que a peste atingiu <strong>Péricles</strong>.<br />
Mas, no caso <strong>de</strong>le, não se manifestou <strong>de</strong> forma tão aguda e<br />
intensa como nos outros; apresentou-se como uma doença<br />
branda e prolongada, com altos e baixos, que lhe esgotava<br />
lentamente o corpo e lhe minava a força <strong>de</strong> espírito.<br />
2. De facto, Teofrasto, na sua obra Ética 303 ,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se ter questionado sobre se o carácter se<br />
transforma conforme as circunstâncias e, se, perturbada<br />
pelo sofrimento físico, a excelência <strong>de</strong>genera, conta<br />
que, quando <strong>Péricles</strong> estava doente, mostrou a um dos<br />
amigos que o foi visitar um amuleto 304 que as mulheres<br />
lhe tinham posto ao pescoço, porque a verda<strong>de</strong> é que<br />
302 A fratria é uma subdivisão da tribo ateniense na qual<br />
apenas se podiam inscrever os filhos legítimos que atingissem os<br />
<strong>de</strong>zasseis anos. Este <strong>Péricles</strong> <strong>de</strong>ve ser fruto do relacionamento do<br />
pai com Aspásia e <strong>de</strong>ve ter nascido por volta <strong>de</strong> 440 a.C. Em 406<br />
a.C., foi um dos generais que participou na batalha <strong>de</strong> Arginusas<br />
(arquipélago constituído por três pequenas ilhas a Sul <strong>de</strong> Lesbos),<br />
no final da qual os Lace<strong>de</strong>mónios, comandados por Calicráti<strong>de</strong>s,<br />
foram <strong>de</strong>rrotados. No entanto, uma tempesta<strong>de</strong> que os apanhou<br />
<strong>de</strong> surpresa impediu que resgatassem e sepultassem os cadáveres. O<br />
povo, furioso, levou a tribunal os seis comandantes que regressaram<br />
e con<strong>de</strong>nou-os à morte (cf. Xenofonte, Helénicas 1. 6. 28).<br />
303 Fr. 463 Fortenbaugh.<br />
304 Os amuletos eram habitualmente usados por ocasião <strong>de</strong><br />
doenças e febres (cf. Platão, República 426b; Plutarco, Obras Morais<br />
920b).
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
só estando muito doente suportaria uma tolice <strong>de</strong>ssas.<br />
3. Quando já estava às portas da morte 305 , os cidadãos<br />
mais eminentes e os amigos que tinham sobrevivido,<br />
sentados à sua volta, falavam da sua superiorida<strong>de</strong> e<br />
po<strong>de</strong>r – quão gran<strong>de</strong> fora! – e recordavam os seus feitos<br />
e a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> troféus 306 : eram nove os que tinha<br />
erigido, como general vitorioso, em honra da cida<strong>de</strong>.<br />
4. Falavam uns com os outros, como se ele já não os<br />
escutasse e tivesse perdido a consciência: mas <strong>Péricles</strong>,<br />
perfeitamente consciente, estava atento a tudo o que<br />
diziam e levantou a voz para se meter na conversa. Disse<br />
que se admirava <strong>de</strong> os ver louvar e recordar os seus feitos,<br />
on<strong>de</strong> a fortuna tem também parte activa e que já foram<br />
executados por muitos generais, e <strong>de</strong> não mencionar o<br />
mais belo e importante: “É que nenhum Ateniense” –<br />
disse – “se vestiu <strong>de</strong> luto por culpa minha 307 ”.<br />
39. 1. Foi, sem dúvida, um homem admirável,<br />
não só pela mo<strong>de</strong>ração e serenida<strong>de</strong> que conservou<br />
no meio <strong>de</strong> tantas responsabilida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> tão gran<strong>de</strong>s<br />
animosida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> que foi alvo; mas também pela gran<strong>de</strong>za<br />
305 Outono <strong>de</strong> 429 a.C.<br />
306 Os troféus eram compostos das armas capturadas e erigiamse,<br />
normalmente, no fim <strong>de</strong> cada batalha.<br />
307 Esta mesma anedota surge em Obras Morais 543b. Plutarco<br />
explica (Per. 39. 1) que ela alu<strong>de</strong> ao facto <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> não ter recorrido<br />
à violência nem à guerra civil para obter o po<strong>de</strong>r, como tantos<br />
outros. Mas, no contexto em que surge neste passo – logo a seguir<br />
à referência aos troféus –, faz lembrar outra qualida<strong>de</strong> fundamental<br />
<strong>de</strong>ste estadista, muito apreciada pelo biógrafo: a asphaleia. É que,<br />
apesar das inúmeras batalhas e da Guerra do Peloponeso, nenhuma<br />
morte po<strong>de</strong>ria ser atribuída à falta <strong>de</strong> cuidado ou <strong>de</strong> sensatez do<br />
comandante (cf. 18. 1-3).<br />
146
147<br />
Vi d a d e <strong>Péricles</strong><br />
<strong>de</strong> alma, dado que consi<strong>de</strong>rava a mais importante das<br />
suas virtu<strong>de</strong>s o facto <strong>de</strong>, <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> tão gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,<br />
nunca ter cedido nem à inveja, nem à ira, nem ter<br />
tratado qualquer inimigo como irreconciliável.<br />
2. E parece-me que apenas este facto torna<br />
aceitável e explica aquela famosa alcunha pueril e<br />
arrogante que lhe <strong>de</strong>ram: só um carácter benévolo e<br />
uma vida limpa e imaculada no exercício do po<strong>de</strong>r lhe<br />
permitiram ser chamado Olímpico 308 ; do mesmo modo<br />
que consi<strong>de</strong>ramos correcto que, à raça dos <strong>de</strong>uses, que<br />
governa e presi<strong>de</strong> ao universo, só se po<strong>de</strong>, por natureza,<br />
atribuir o bem e não o mal. Demarcamo-nos dos poetas<br />
que nos confun<strong>de</strong>m com as suas opiniões ignorantes e se<br />
contradizem nas invenções que engendram; chamam ao<br />
lugar, on<strong>de</strong> dizem que os <strong>de</strong>uses vivem, morada segura e<br />
tranquila, on<strong>de</strong> não penetram ventos nem nuvens, que<br />
goza, por toda a eternida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma atmosfera agradável<br />
e <strong>de</strong> uma luz puríssima 309 : e afirmam que assim <strong>de</strong>ve ser<br />
a vida porque convém aos bem-aventurados e imortais.<br />
Em contrapartida, apresentam os próprios <strong>de</strong>uses dados<br />
a perturbações, hostilida<strong>de</strong>s, ódio e outras paixões, que<br />
nem aos homens <strong>de</strong> bom-senso são convenientes. 3.<br />
Mas este é talvez assunto para outro estudo.<br />
Os acontecimentos inspiraram aos Atenienses<br />
um rápido reconhecimento e uma sauda<strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nte<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>. Aqueles que, enquanto ele vivia, estavam<br />
<strong>de</strong>scontentes com o seu po<strong>de</strong>r, porque os obscurecia,<br />
<strong>de</strong>pois da sua morte, mal experimentaram outros<br />
308 Vi<strong>de</strong> Per. 8. 3.<br />
309 Plutarco <strong>de</strong>veria ter em mente a <strong>de</strong>scrição do Olimpo no<br />
canto 6 da Odisseia (vv. 42-45).
Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira<br />
oradores e <strong>de</strong>magogos, concluíram que nunca existira<br />
carácter mais mo<strong>de</strong>rado na majesta<strong>de</strong> e mais imponente<br />
na con<strong>de</strong>scendência. 4. Aquele tipo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r contestado,<br />
a que antes se chamava monarquia e tirania, revelou-se<br />
então como um baluarte salvador do Estado – tal era<br />
a corrupção e a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vícios que ameaçavam<br />
os assuntos políticos; esses <strong>de</strong>feitos, ao <strong>de</strong>bilitá-los e<br />
reprimi-los, tinha-os ele mantido ocultos, impedindo<br />
<strong>de</strong>ste modo que se tornassem numa realida<strong>de</strong><br />
incontornável 310 .<br />
310 Plutarco, como realça Stadter (1989: 350), <strong>de</strong>ixa-se levar<br />
pelo entusiasmo nas últimas reflexões sobre a importância política<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> e esquece-se <strong>de</strong> mencionar as indicações relativas à<br />
sua sepultura – que seguramente visitou mais do que uma vez.<br />
A referência às sepulturas é um topos comum às outras <strong>Vidas</strong> que<br />
escreveu, pelo que só assim se justifica este esquecimento. Segundo<br />
Pausânias (1. 28. 2-3), ficava próxima da Aca<strong>de</strong>mia, junto às <strong>de</strong><br />
Trasibulo, Cábrias e Fócio (cf. Cícero, Dos Limites Extremos 5. 5).<br />
148
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o
In t r o d u ç ã o<br />
151<br />
in t r o d u ç ã o<br />
Ecco Fabio! Nella serenità <strong>de</strong>l cielo la Somma Maestà<br />
vuol ch’egli dimori.<br />
Guarda che gran<strong>de</strong> condottiero! Sebbene da tutto il<br />
popolo fosse <strong>de</strong>tto Temporeggiatore, tuttavia una gran<strong>de</strong><br />
gloria meritatamente risplen<strong>de</strong> ai cauti consigli.<br />
(Petrarca, África 1. 371 sqq.)<br />
O fresco <strong>de</strong> Pietro Vannucci, o Perugino, intitulado<br />
“alegoria da Prudência e da Justiça” (1497) 1 , não podia<br />
ser mais expressivo na representação <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, o<br />
primeiro na prudência, seguindo-se Sócrates e só <strong>de</strong>pois<br />
Numa Pompílio. Sob este trio paira a <strong>de</strong>usa da Prudência.<br />
Do mesmo modo, a prudência 2 (phronesis)<br />
constitui a virtu<strong>de</strong> política e militar que, segundo<br />
Plutarco, melhor <strong>de</strong>finiu <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, sendo o traço<br />
forte do seu ethos. Esta tendência da natureza (physis),<br />
fortalecida pela formação intelectual, foi ampliada e<br />
1 Trata-se do fresco do Colégio <strong>de</strong> Cambio (Sala da Audiência)<br />
em Perugia, Itália. As figuras são i<strong>de</strong>ntificadas pelos nomes que<br />
aparecem aos pés <strong>de</strong> cada uma. Da esquerda para a direita: <strong>Fábio</strong><br />
<strong>Máximo</strong>, Sócrates e Numa Pompílio; seguem-se Fúrio, Pítaco<br />
<strong>de</strong> Mitilene e Trajano. Numa posição superior, encontram-se as<br />
virtu<strong>de</strong>s da Prudência e da Justiça.<br />
2 Vi<strong>de</strong> os seguintes passos <strong>de</strong>sta Vida 4.4.3; 5.1.4; 17.6.4;<br />
29.2.4.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
posta em prática na comunida<strong>de</strong>, quando apresentou,<br />
em 217 a.C., a célebre táctica militar contra a invasão<br />
cartaginesa que consistia em não fazer guerra, <strong>de</strong>ixando<br />
que a força <strong>de</strong> Aníbal se extinguisse por si mesma (2.4) 3 .<br />
Esta estratégia cristalizou a memória do general romano,<br />
fixando um modo <strong>de</strong> actuação militar <strong>de</strong>terminante<br />
na Segunda Guerra Púnica (218-201 a.C.), que, não<br />
tendo expulsado os Cartagineses <strong>de</strong> Roma, sempre<br />
evitou um <strong>de</strong>sastre pior. Tal prática valeu-lhe, na<br />
posterida<strong>de</strong>, o título <strong>de</strong> cunctator, “contemporizador”,<br />
conforme o poeta Énio, um dia, reconheceu: Unus<br />
Homo nobis cunctando restituit rem (12. 363), “Um só<br />
homem, contemporizando, restaurou-nos o Estado” 4 .<br />
Todavia, apenas em retrospectiva, reconhecemos o<br />
sentido heróico <strong>de</strong>stas palavras; na verda<strong>de</strong>, o momento<br />
histórico (kairos) em que <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> foi agente não<br />
reconheceu o carácter provi<strong>de</strong>ncial <strong>de</strong>sta táctica militar,<br />
tão alheia à agressivida<strong>de</strong> bélica dos Romanos.<br />
Tal como Énio, assim Plutarco o representa:<br />
unus homo, isolado, impassível perante as calúnias,<br />
conquistando o outro pelo silêncio e pela paciência, qual<br />
sapiens estóico. Plutarco evi<strong>de</strong>ncia mesmo esta solidão<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância, uma prefiguração do seu carácter e, por<br />
extensão, da acção que marcou a sua conduta política e<br />
militar. Ainda jovem, são-lhe reconhecidas qualida<strong>de</strong>s<br />
éticas como “doçura” (praotes, 3.5), “tranquilida<strong>de</strong>”<br />
(hesychion, 3.5), “silêncio” (siopelon, 3.5), “muita<br />
3 Outras fontes que atestam esta táctica <strong>de</strong> batalha campal:<br />
Políbio 3. 82.4 e Tito Lívio 22. 3.8-9.<br />
4 Sobre este verso <strong>de</strong> Énio, vi<strong>de</strong> o recente estudo <strong>de</strong> Elliott<br />
(2009).<br />
152
153<br />
in t r o d u ç ã o<br />
prudência” (polles men eulabeia, 3.5), que se reflectiam<br />
na própria aprendizagem: “a muita prudência que tinha<br />
em entregar-se aos prazeres infantis, a lentidão e a<br />
dificulda<strong>de</strong> com que aprendia as matérias, a complacência<br />
e a submissão para com os seus amigos” (1.5). Muitos,<br />
porém, <strong>de</strong>sconfiavam <strong>de</strong> alguma “estupi<strong>de</strong>z e preguiça”,<br />
e apenas alguns reconheciam, então, a superiorida<strong>de</strong><br />
daquele ethos que <strong>de</strong>spontava (1.5). Com efeito, é nesta<br />
dialéctica que se vai construir e <strong>de</strong>finir a figura <strong>de</strong>ste<br />
general romano, entre a estima <strong>de</strong> poucos e o <strong>de</strong>sprezo<br />
<strong>de</strong> muitos. Na República, quando discute a educação<br />
dos guardiães, Platão refere também que aqueles que se<br />
revelam seres <strong>de</strong> tempero estável e resistente a qualquer<br />
inconstância da vida têm, geralmente, dificulda<strong>de</strong>s na<br />
aprendizagem (503c-d) 5 . Contudo, logo o biógrafo<br />
<strong>de</strong>sconstrói estes atributos: “a todos provou que a<br />
aparente apatia era, na verda<strong>de</strong>, impassibilida<strong>de</strong>, a<br />
precaução, prudência e a falta <strong>de</strong> reacção e agilida<strong>de</strong><br />
perante qualquer circunstância antes eram constância e<br />
firmeza” (1.6).<br />
Assim, a pai<strong>de</strong>ia e o contacto com a comunida<strong>de</strong><br />
permitiriam <strong>de</strong>spertar e optimizar qualida<strong>de</strong>s já<br />
<strong>de</strong>tectadas na infância, convertendo em acto o que era<br />
potência. O que não constava na physis, recebeu-o <strong>Fábio</strong><br />
da comunida<strong>de</strong>, “treinou o seu corpo para o combate,<br />
5 “Os caracteres sólidos e difíceis <strong>de</strong> alterar, em quem se podia<br />
confiar mais, e que em combate são inabaláveis perante o temor,<br />
comportam-se do mesmo modo nos estudos. São parados e apren<strong>de</strong>m<br />
com dificulda<strong>de</strong>, como se estivessem entorpecidos, cheios <strong>de</strong> sono e<br />
a bocejar, quando têm <strong>de</strong> executar um trabalho <strong>de</strong>ssa espécie.” (503<br />
c-d). Tradução <strong>de</strong> Rocha Pereira ( 10 2007: 299).
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
como uma arma natural, e o discurso como instrumento<br />
<strong>de</strong> persuasão dirigido ao povo” (1.7). Virtu<strong>de</strong>s como<br />
praotes (doçura), pronoia (providência) e eulabeia<br />
(prudência), acompanharão sempre este general, sendo<br />
invocadas nos momentos mais cruciais do seu percurso,<br />
sobretudo a primeira, que, apesar <strong>de</strong> estar geralmente<br />
associada à physis, amplia os seus contextos <strong>de</strong> ocorrência<br />
até ao domínio político 6 , como veremos.<br />
Membro da antiga aristocracia romana, pertenceu<br />
àquela geração <strong>de</strong> varões, como Marcelo (19), por<br />
exemplo, que alcançou a maturida<strong>de</strong> durante a Primeira<br />
Guerra Púnica e que se encarregou <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rar Roma durante<br />
a crise gerada neste período. Nomeado cinco vezes cônsul,<br />
como o seu bisavô, ficou conhecido pelo triunfo sobre os<br />
Lígures no primeiro consulado (233 a.C.), exerceu a censura<br />
em 230 a.C., conquistando uma autorida<strong>de</strong> ímpar junto<br />
dos seus pares e do povo. Depois <strong>de</strong> um breve capítulo (1)<br />
sobre os antepassados e a educação <strong>de</strong>ste general, Plutarco<br />
inicia o relato da Vida quando <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> teria por<br />
volta <strong>de</strong> 66 anos 7 , <strong>de</strong>ixando em branco a maior parte <strong>de</strong>la,<br />
dada a escassez <strong>de</strong> fontes. O biógrafo inicia a narrativa no<br />
ano <strong>de</strong> 217 a.C. para <strong>de</strong>screver os sinais que antece<strong>de</strong>ram a<br />
batalha do Trasimeno (2.2).<br />
6 Note-se o último capítulo do proémio <strong>de</strong> Címon (3), on<strong>de</strong><br />
Plutarco conclui que ambos os homens (Címon e Luculo) foram<br />
calmos (praoi) a nível político, pelo que proporcionaram às suas<br />
cida<strong>de</strong>s uma pausa da guerra civil. Martin Jr. (1960); Vi<strong>de</strong> De<br />
Romilly (1979); Ribeiro Ferreira (2008a) e (2008b).<br />
7 A data <strong>de</strong> nascimento <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> é incerta. A primeira referência<br />
mais segura é a indicação da sua eleição como áugure em 265 a.C.,<br />
pelo que se fixou, a partir daí, a data <strong>de</strong> nascimento no ano 283<br />
a.C. Vi<strong>de</strong> F. Münzer (1909: col. 1815).<br />
154
155<br />
in t r o d u ç ã o<br />
Ano <strong>de</strong> 217 a.C., fórum <strong>de</strong> Roma: o pretor<br />
Pompónio dirige-se ao povo e, friamente, anuncia<br />
o <strong>de</strong>sastre do lago Trasimeno: morrera o cônsul<br />
Flamínio e, com ele, os melhores dos homens do<br />
exército. A crise exigia uma autorida<strong>de</strong> única que<br />
garantisse a segurança. Naquele ano, <strong>Fábio</strong> contava já<br />
dois consulados (233 a.C., 228 a.C.), um triunfo sob<br />
os Lígures (233 a.C.) e uma ditadura (ca. 221 a.C.) 8<br />
e distinguia-o a sabedoria (phronema) e a nobreza <strong>de</strong><br />
carácter (axioma tou ethous). <strong>Fábio</strong> é eleito dictator<br />
nesse ano (3.6) 9 . A sua acção política começa pelos<br />
<strong>de</strong>uses – o mais belo (kallisten, 4.4) dos inícios – <strong>de</strong><br />
forma a que o povo recuperasse <strong>de</strong> novo a confiança<br />
(4.4-6). O mesmo se repete, em 215 a.C. quando for<br />
eleito cônsul, <strong>de</strong>pois da Batalha <strong>de</strong> Canas (18.2-4).<br />
Com efeito, o seu percurso político foi paralelo ao<br />
<strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> cargos <strong>de</strong> natureza religiosa: aos 28<br />
anos, foi eleito áugure, e mais tar<strong>de</strong>, em 216 a.C.,<br />
é nomeado Pontifex Maximus 10 , funções que exerceu<br />
até à sua morte (203 a.C.).<br />
Conquistado o povo, <strong>Fábio</strong> e as tropas vão ao<br />
encontro <strong>de</strong> Aníbal, não para oferecer combate, mas para<br />
o seguir ao longe e para esgotar pouco a pouco a sua força<br />
e, com o tempo, tirar vantagem da falta <strong>de</strong> recursos e <strong>de</strong><br />
8 Este dado não consta no relato <strong>de</strong> Plutarco. A eleição terá<br />
ocorrido seguramente entre 221 e 219 a.C. Vi<strong>de</strong> Pérez Jiménez<br />
(1996: 65 n. 130).<br />
9 Vi<strong>de</strong> “Introdução Geral”, n. 5 e Vida <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> n. 27.<br />
10 Vi<strong>de</strong> 4.4; 4.5; 5.1; 8.1; 17.1; 18.2; 19.8.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
tropas 11 . Embora estranha ao típico general romano 12 ,<br />
esta atitu<strong>de</strong> coaduna-se com os padrões da teoria militar<br />
contemporânea, conforme afirma o historiador militar<br />
A. Goldsworthy ( 2 2007:46): “<strong>Fábio</strong>, tal como o bom<br />
comandante dos manuais militares, evitava a batalha e<br />
procurava os meios para mudar as circunstâncias a seu<br />
favor.”. Com efeito, o general só <strong>de</strong>ve arriscar quando a<br />
perspectiva <strong>de</strong> sucesso for favorável e, após as <strong>de</strong>rrotas<br />
romanas <strong>de</strong> Trébia e Trasimeno, a confiança das tropas<br />
<strong>de</strong> Aníbal era elevadíssima.<br />
Criticado por Minúcio Rufo, o chefe <strong>de</strong> cavalaria 13 ,<br />
pelas tropas, pelo Senado e pelo povo, <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong><br />
recebera já a alcunha <strong>de</strong> paedagogus <strong>de</strong> Aníbal. Este,<br />
porém, revelava-se confuso e perturbado, pois, como<br />
11 O exército <strong>de</strong> que <strong>Fábio</strong> dispunha era precário, sendo<br />
constituído por sobreviventes da guerra <strong>de</strong> Trébia, cuja única<br />
experiência <strong>de</strong> guerra que tinham era a <strong>de</strong>rrota; as quatro legiões<br />
estavam <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> cavalaria, que havia sido <strong>de</strong>struída no lago<br />
Trasimeno e o resto do exército tinha apenas umas semanas <strong>de</strong><br />
existência. “Seja como for, por muito impressionante que o exército<br />
<strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> pu<strong>de</strong>sse parecer, <strong>de</strong> modo algum podia equivaler às tropas<br />
veteranas <strong>de</strong> Aníbal”, reconheceu Goldsworthy ( 2 2007: 46). É<br />
neste contexto que <strong>de</strong>vemos analisar a campanha levada a cabo<br />
pelo ditador. Sobre esta táctica fabiana, vi<strong>de</strong> Frontino, Estratagemas<br />
(1.3.3; 10) e Polieno, Estratagemas (8.14.1).<br />
12 Onasandro, filósofo do séc. I d.C., autor <strong>de</strong> um comentário à<br />
República <strong>de</strong> Platão – hoje perdido – legou-nos o tratado O General,<br />
no qual <strong>de</strong>fine o perfil do general perfeito (agathos strategos, cap. 2).<br />
Este mo<strong>de</strong>lo reflecte um estilo <strong>de</strong> comando tipicamente romano,<br />
que persistiu, pelo menos, durante setecentos anos: “O general,<br />
quando é recrutado, <strong>de</strong>ve ser útil, afável, diligente, calmo, não tão<br />
brando ao ponto <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sautorizado, não tão severo que ponto<br />
<strong>de</strong> odiado, pelo que nem <strong>de</strong>ve relaxar o exército com favores, nem<br />
afastar o exército através do medo.” (2. 2-3). Vi<strong>de</strong> também o passo<br />
<strong>de</strong> Estratagemas (1.3.3) <strong>de</strong> Frontino.<br />
13 Vi<strong>de</strong> “Introdução Geral”, n. 5.<br />
156
157<br />
in t r o d u ç ã o<br />
compreen<strong>de</strong>ra o objectivo daquela táctica, procurava,<br />
a todo a momento, criar alarmes e emboscadas para o<br />
atrair para o combate (5.4). No seio da turbulência <strong>de</strong><br />
medos, ânsias e precipitações, conservava-se <strong>Fábio</strong> “fiel<br />
e inalterável” (5.5); é ele a personagem tese, o sapiens<br />
que conserva a apatheia perante a adversida<strong>de</strong>, um<br />
exemplo prático <strong>de</strong> uma ética, sempre lida, mas raro<br />
experimentada ou <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> provada. Com efeito,<br />
nada é mais indigno do que ce<strong>de</strong>r ao insulto do mais<br />
insensato ou da maioria (5.8):<br />
Não é vergonhoso temer pela pátria e não me parece digno<br />
<strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> tamanho cargo <strong>de</strong>ixar-se influenciar<br />
pelas calúnias e censuras dos homens, mas antes próprio<br />
do escravo que se submete aos insensatos, sobre os quais ele<br />
<strong>de</strong>ve ser chefe e mestre.<br />
Pouco <strong>de</strong>pois, porém, <strong>Fábio</strong> seria vítima da sua<br />
própria estratégia. Enganado pelo ardil dos bois <strong>de</strong> cornos<br />
em chamas (6; 7.3), a maior parte dos Romanos lança-se em<br />
fuga. Ainda assim, <strong>Fábio</strong>, receando um ataque nocturno,<br />
não avançou e, pela manhã, sofre um ataque que ditou a<br />
<strong>de</strong>rrota romana (7.1-2) e são feitos vários prisioneiros <strong>de</strong><br />
ambos os lados. Depois disto, Aníbal, querendo <strong>de</strong>spertar<br />
a ira contra <strong>Fábio</strong>, manda incendiar várias proprieda<strong>de</strong>s,<br />
poupando apenas aquela do dictator (7.4). Esta, porém,<br />
não permaneceria sua por muito mais tempo, pois vendêla-ia<br />
para pagar o resgate dos soldados feitos reféns pelos<br />
Cartagineses, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o Senado se ter recusado a garantir<br />
a quantia que ele acordada com Aníbal (7.7).
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
Constituiu este o primeiro acto <strong>de</strong> “doçura” (praotes)<br />
<strong>de</strong>sta biografia, isto é, a manifestação pública <strong>de</strong> um traço<br />
da physis, que se irá revelar em mais quatro momentos<br />
(12.3; 18.4; 20.2; 20.5). O maior oponente público era o<br />
seu chefe <strong>de</strong> cavalaria, Minúcio Rufo que, encorajado pelos<br />
últimos acontecimentos, procurava a todos convencer da<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ataque directo. Certa vez, quando<br />
meta<strong>de</strong> do exército <strong>de</strong> Aníbal tinha saído em busca <strong>de</strong><br />
provisões, ficando, por isso, mais vulnerável, Minúcio,<br />
com alguns homens, ataca <strong>de</strong> surpresa e faz algumas<br />
baixas. A Roma chega a notícia <strong>de</strong> algo mais grandioso<br />
do que realmente acontecera; a ira do povo e do Senado<br />
contra <strong>Fábio</strong> aumenta e evi<strong>de</strong>ncia-se numa nova resolução,<br />
inédita 14 : a nomeação <strong>de</strong> Minúcio como co-ditador (9.3).<br />
14 Esta resolução é inédita na história da república romana, pois<br />
a magistratura dictatura concedia ao magistrado o po<strong>de</strong>r absoluto<br />
e, segundo algumas fontes (Tito Lívio 2.18.8/ 3.20.8; Dionísio<br />
<strong>de</strong> Halicarnasso, Antiguida<strong>de</strong>s Romanas 10.24.2) sem direito a<br />
provocatio, isto é, o direito que assiste qualquer cidadão romano <strong>de</strong><br />
chamar (prouocare) o povo para se opor a uma coacção ou morte<br />
imposta pelo magistrado. Este ius prouocationis aplicava-se somente<br />
a cidadãos e estrangeiros, não abrangendo a esfera militar. Contudo,<br />
embora fosse uma prática corrente, nenhum ditador terá, <strong>de</strong> facto,<br />
abolido esta lei, conforme sugerem as fontes (Lintott 2003: 111).<br />
Deste modo, o dictator não teria paralelo no imperium (Fab. 4.3), caso<br />
contrário não po<strong>de</strong>ria cumprir a função primeira <strong>de</strong>sta magistratura:<br />
o comando unificado do exército. Note-se que o chefe <strong>de</strong> cavalaria<br />
(magister equitum), apenas tinha direito a seis lictores com fasces,<br />
enquanto o dictator possuía vinte e quatro. Assim, esta equiparação<br />
<strong>de</strong> Minúcio Rufo ao cargo <strong>de</strong> dictator <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> partiu da população<br />
que temia que <strong>Fábio</strong> usasse <strong>de</strong> um direito que lhe assistia na qualida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> ditador: “como o ditador tinha o direito <strong>de</strong> pren<strong>de</strong>r e con<strong>de</strong>nar<br />
à morte sem julgamento prévio, pensavam que o espírito <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>,<br />
agora sem a sua mansidão, se tornaria inflexível e implacável” (Fab.<br />
9.1). Sem o direito <strong>de</strong> provocar o povo para uma sedição contra uma<br />
eventual con<strong>de</strong>nação, Minúcio contou com o apoio <strong>de</strong> Metílio (Fab.<br />
158
159<br />
in t r o d u ç ã o<br />
Impopular e com menos po<strong>de</strong>r, <strong>Fábio</strong> passa a<br />
comandar duas legiões, o seu colega outras duas e o<br />
acampamento divi<strong>de</strong>-se. Pouco tempo <strong>de</strong>pois, <strong>Fábio</strong><br />
tem que se <strong>de</strong>slocar a Roma para oferecer sacrifícios<br />
aos <strong>de</strong>uses e Minúcio aproveita a ocasião para atacar<br />
Aníbal (11). O <strong>de</strong>sastre <strong>de</strong>sta ofensiva só não foi maior,<br />
porque <strong>Fábio</strong> acorreu ao local para salvar o colega<br />
Minúcio. Constituiu este acto o segundo momento <strong>de</strong><br />
praotes que, no enquadramento moral dos Romanos,<br />
encontra expressão no valor da clementia, “a mansidão<br />
e a misericórdia, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar e <strong>de</strong> perdoar” 15 e<br />
no interesse da res publica, que é superior a qualquer<br />
diferença. Comovido por este acto, Minúcio, com a<br />
sua parte do exército, a ele se dirige para o aclamar<br />
como “pai”, reconhecendo que tem mais capacida<strong>de</strong><br />
para obe<strong>de</strong>cer do que para li<strong>de</strong>rar (13). Esta cena é<br />
plena <strong>de</strong> dramatismo, pois Plutarco <strong>de</strong>screve todos os<br />
movimentos dos intervenientes como <strong>de</strong> didascálias<br />
se tratassem (13.5-6; 13.9), atribuindo duas falas<br />
extensas a Minúcio (13.2-4; 13.7). O pathos atinge<br />
o clímax no momento em que ambos se abraçam e<br />
beijam, à semelhança dos próprios soldados 16 . Esta<br />
9.2) que, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tribuno da plebe – a única magistratura<br />
que não per<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r durante a dictatura – <strong>de</strong>cretou, por votação,<br />
que o cargo <strong>de</strong> general (magister equitum) se equiparava ao <strong>de</strong> chefe<br />
e actuava na guerra com a mesma autorida<strong>de</strong> que o ditador (rogatio<br />
Metilia). A propósito <strong>de</strong>sta lei, vi<strong>de</strong> Políbio 3.103.3-5, Cornélio<br />
Nepos, Aníbal 5.3 e Tito Lívio 22.25-26. Note-se que Metílio era,<br />
segundo Plutarco, parente <strong>de</strong> Minúcio (Fab. 7.5).<br />
15 Salústio, Catilina 54, em tradução <strong>de</strong> Rocha Pereira ( 5 2005:<br />
103). Sobre este valor romano, vi<strong>de</strong> Rocha Pereira ( 3 2002: 368-73).<br />
16 O pormenor da <strong>de</strong>scrição aprofunda, com efeito, o pathos e<br />
a psicologia das personagens. Encontra-se também em Tito Lívio
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
cena <strong>de</strong> reconciliação inspirou artistas como Peter Paul<br />
Rubens 17 e Francesco <strong>de</strong> Siena 18 , que ilustrou também<br />
outras sequências narrativas da vida do general<br />
romano.<br />
Seis meses <strong>de</strong>pois 19 , <strong>Fábio</strong> termina o seu mandato<br />
e regressa a Roma. No ano seguinte (216 a.C.), um<br />
<strong>de</strong>sastre maior haveria <strong>de</strong> sobrevir: a <strong>de</strong>rrota <strong>de</strong> Canas 20 .<br />
Nova crise política e <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> é reeleito para o<br />
quarto consulado em 214 a.C. O seu colega é Marcelo 21 ,<br />
arrojado e agressivo em combate e fazia, com <strong>Fábio</strong>, o<br />
par perfeito: um era o escudo e o outro a espada 22 (19.4).<br />
(22. 30, 6), embora sem a carga emotiva e patética que Plutarco<br />
lhe confere.<br />
17 Von Alten (1933).<br />
18 Vi<strong>de</strong> as reproduções que constam em Guerrini (1991b).<br />
Eis as sequências que foram representadas: a eleição como ditador<br />
(Fab. Max. ditactor <strong>de</strong>signiatus [sic]), o sacrifício aos <strong>de</strong>uses<br />
(Fab. Sacrificium), lealda<strong>de</strong> para com Aníbal (Fab. Fi<strong>de</strong>s Erga<br />
Hannibalem), a astúcia no confronto com Aníbal (Fab. Astutia<br />
in Hannibalem), o socorro a Minúcio (Fab. Minutio Succurso<br />
penos fugat), a reconciliação com Minúcio (Fab. Minutius<br />
Patrem appellat), a reconquista <strong>de</strong> Tarento (Fab. Tarentum<br />
recuperat), em honra da memória do filho falecido (Fabius<br />
filium consulem honorat). Esta colecção encontra-se no Palácio<br />
Abadia <strong>de</strong> Grottaferrata (Lácio, Roma).<br />
19 Vi<strong>de</strong> “Introdução Geral”, n. 5.<br />
20 Sobre a disposição campal das tropas nesta batalha, vi<strong>de</strong><br />
Cambell (2004: 109).<br />
21 Marco Cláudio Marcelo, plebeu, fora cônsul em 222 a.C. e<br />
pretor em 224 a.C. Quando era mais jovem, combatera na Sicília<br />
durante a Primeira Guerra Púnica, e conseguiu várias con<strong>de</strong>corações<br />
por actos individuais <strong>de</strong> heroísmo, uma corona ciuica, a maior<br />
con<strong>de</strong>coração <strong>de</strong> Roma, concedida pelo seu irmão Otacílio, por<br />
aquele lhe ter salvo a vida.<br />
22 Posidónio (FGrH 87 F 42). Sobre esta dupla <strong>de</strong> generais,<br />
afirma Goldsworthy ( 2 2007: 54): “Uma significativa experiência<br />
em campanhas passadas, aliada à capacida<strong>de</strong> natural, permitiu<br />
160
161<br />
in t r o d u ç ã o<br />
A acção <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> era como um rio que “fluía sem ruído<br />
e pouco a pouco e consumia continuamente as suas<br />
bordas” (19.5), enquanto a <strong>de</strong> Marcelo era como um<br />
“rio violento”. Não conquistaram uma <strong>de</strong>rrota <strong>de</strong>finitiva<br />
dos Cartagineses, mas conseguiram evitar um <strong>de</strong>sastre<br />
pior. Ambos os generais são reeleitos para um quinto<br />
consulado em 209 a.C., o último.<br />
Nesta altura, em plena invasão cartaginesa,<br />
quando se torna mais premente resolver a questão<br />
do afastamento das cida<strong>de</strong>s e da revolta dos aliados,<br />
<strong>Fábio</strong> é chamado a resolver dois casos <strong>de</strong> indisciplina<br />
no exército. O primeiro trata-se <strong>de</strong> um soldado marso,<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> mérito militar, que tentara <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar um<br />
revolta contra <strong>Fábio</strong>; este, em vez <strong>de</strong> o repreen<strong>de</strong>r,<br />
ofereceu-lhe um cavalo <strong>de</strong> guerra e outros prémios como<br />
reconhecimento do seu valor. No outro caso, um soldado<br />
lucano, também ele muito corajoso, ausentava-se do<br />
acampamento para ir pernoitar com uma mulher que<br />
morava longe. Nisto, <strong>Fábio</strong> mandou vir a mulher para<br />
o acampamento <strong>de</strong> forma a que ele não tivesse que fazer<br />
mais caminhadas e, por isso, diminuir o seu contributo<br />
ao exército. Estas acções constituem também expressão<br />
<strong>de</strong> praotes, pois aquele que comanda os homens <strong>de</strong>ve usar<br />
da benevolência e da mansidão para conquistar lealda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> quem mais precisa (20.4), algo peculiar à conduta<br />
do herói, como refere J. Ribeiro Ferreira (2008b: 116):<br />
“Em Plutarco encontramos frequentes vezes sublinhada<br />
a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a humanida<strong>de</strong> do herói para com os<br />
a Marcelo e a <strong>Fábio</strong> distinguirem-se da maioria dos restantes<br />
comandantes romanos seus contemporâneos e tornou o seu estilo<br />
<strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança em algo bastante próximo do helenístico”.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
vencidos ou os subordinados é muitas vezes mais eficaz<br />
do que a violência e a dureza.” 23<br />
<strong>Fábio</strong>, já <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> avançada, recupera Tarento à<br />
traição (21-24). É a partir <strong>de</strong>ste momento que se dá<br />
a chamada “metamorfose” 24 ética que inicia a uma<br />
inesperada fase <strong>de</strong> insolência que ensombra a constância<br />
<strong>de</strong>ste percurso ético. Em primeiro lugar, ainda em<br />
Tarento, assassina os cidadãos brútios mais importantes<br />
para que não se soubesse da traição (22.5), e, por isto,<br />
“recebeu a acusação <strong>de</strong> <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong> e cruelda<strong>de</strong>”; levou<br />
consigo o património artístico da cida<strong>de</strong>, nomeadamente<br />
a estátua colossal <strong>de</strong> Hércules que colocou no Capitólio,<br />
erigindo, ao lado, uma estátua equestre <strong>de</strong> si próprio<br />
em bronze (22.7-8), celebrando o triunfo da tomada <strong>de</strong><br />
Tarento, “com mais pompa que o primeiro” (23.2).<br />
Neste ponto, a perspectiva <strong>de</strong> Plutarco torna-se<br />
ambivalente, pois, apesar <strong>de</strong>stes factos, parece forçado<br />
a continuar a mesma linha luminosa <strong>de</strong> constância e<br />
pon<strong>de</strong>ração que fora perspectivada no início e que<br />
vinha sendo confirmada pelo percurso <strong>de</strong> vida. Com<br />
efeito, neste momento já não reconhecemos o mesmo<br />
“cor<strong>de</strong>irinho” (ovicula, 1.4) da infância ou o político<br />
<strong>de</strong> oratória transparente e mo<strong>de</strong>rada (1.8). Contudo,<br />
esta tendência já antes se manifestara <strong>de</strong> forma pontual:<br />
<strong>de</strong>pois da eleição <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> como dictator, o primeiro<br />
pedido que fez ao Senado foi o <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ir a cavalo<br />
23 Cf. Marcelo 19. 2-6, 12; Aristi<strong>de</strong>s 23.1; Címon 6.2; Flamínio<br />
2.5, 5.7.<br />
24 Vi<strong>de</strong> Rebuffat, M. R. (1978), “Métamorphose <strong>de</strong> Fabius<br />
Cunctator: Thomas Diaforius”, in Colloques d’Histoire et<br />
Historiographie, Paris, pp. 335-sqq. apud Guerrini (1991a: 256).<br />
162
163<br />
in t r o d u ç ã o<br />
durante as expedições militares, algo proibido por ser<br />
mais uma marca <strong>de</strong> ostentação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> alguém que<br />
já <strong>de</strong>tinha o po<strong>de</strong>r absoluto (4.1-2), bem como o facto<br />
<strong>de</strong> querer mostrar a gran<strong>de</strong>za do cargo da ditadura ao<br />
<strong>de</strong>sfilar em público com vinte e quatro lictores reunidos<br />
à sua volta, <strong>de</strong> forma a conquistar a obdiência dos<br />
cidadãos (4.3).<br />
Nesta medida, a tendência mais evi<strong>de</strong>nciada na<br />
fase final da sua vida não é inédita, mas já se encontrava<br />
em potência, na physis, mas refreada pela pai<strong>de</strong>ia e pela<br />
vivência em comunida<strong>de</strong> durante a sua fase mais activa.<br />
Esta fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência ética torna-se ainda mais óbvia<br />
pela atribuição <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s do campo semântico<br />
da senilida<strong>de</strong>, como “velhice” (geras), “<strong>de</strong>bilida<strong>de</strong>”<br />
(astheneia 24.1), “intratável” (dyskolos), “invejoso”<br />
(baskanos), “cobar<strong>de</strong>” (atolmos) e “pessimista” (dyselpis,<br />
26.3), “antiquado” (arcaios), “obsoleto” (presbytikos,<br />
25.1) adjectivos que caracterizam a sua táctica <strong>de</strong> batalha<br />
campal. Longe do tom encomiástico, estas qualida<strong>de</strong>s<br />
apresentam um carácter disfórico, um estado que é uma<br />
consequência da <strong>de</strong>generescência natural e, como tal, já<br />
distante das exigências do presente.<br />
Aberta esta crise na constância do ethos, Plutarco<br />
intercala dois episódios que, <strong>de</strong> certa forma, anunciam<br />
o final da carreira política <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> como prefigurações.<br />
O primeiro tem lugar quando o seu filho é eleito cônsul<br />
e surge uma menção à velhice do pai (24.1); num outro<br />
momento, Plutarco recorda um episódio do bisavô <strong>de</strong><br />
<strong>Fábio</strong>, quando regressava com o seu filho da guerra no<br />
<strong>de</strong>sfile triunfal. Aquele seguia-o a cavalo com os outros
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
elementos da comitiva e mostrava-se orgulhoso, pois<br />
estava subordinado à lei e ao magistrado, o seu filho<br />
(24.5). Além do elogio das tradições militares e <strong>de</strong><br />
enaltecer o sentido aristocrático da família, o biógrafo<br />
estabelece este paralelo entre Q. <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> Ruliano<br />
e <strong>Fábio</strong> para <strong>de</strong>monstrar que a finitu<strong>de</strong> do exercício<br />
político é inevitável e necessária à comunida<strong>de</strong>.<br />
Depois <strong>de</strong>stes momentos, Plutarco <strong>de</strong>dica os<br />
capítulos seguintes (25-27) à última fase da vida do<br />
general, tempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência política, que contrasta<br />
com a audácia <strong>de</strong> Cipião 25 . <strong>Fábio</strong> ce<strong>de</strong>ra, enfim, aos<br />
imperativos da natureza humana: agora, cego pelo<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> glória, temia ser ultrapassado por um general<br />
mais jovem e brilhante que pusesse fim à guerra contra<br />
Aníbal, algo nunca conquistado por ele. Pela primeira<br />
vez, <strong>de</strong>u primazia ao interesse privado (ἑαυτὸν, 25.3)<br />
em <strong>de</strong>trimento da res publica: expulsar os Cartagineses<br />
e <strong>de</strong>slocar a guerra para o norte <strong>de</strong> África. Pela primeira<br />
vez, a comparação pendia negativamente para <strong>Fábio</strong>,<br />
ao contrário do que antes suce<strong>de</strong>ra nos paralelos com<br />
Gaio Flamínio (2.4), Minúcio Rufo (9) e Terêncio<br />
Varrão (14).<br />
Esta angústia do inesperado <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou, em<br />
<strong>Fábio</strong>, uma série <strong>de</strong> comportamentos contrários à<br />
apatheia que antes o caracterizava e que se afiguravam<br />
ridículos no palco político. O antigo ditador tentava<br />
agora travar os planos <strong>de</strong> Cipião: infundia todo o tipo<br />
<strong>de</strong> medos na cida<strong>de</strong>, acusando Cipião <strong>de</strong> insensatez e<br />
25 Plutarco valorizou especialmente esta vida, pois teria sido um<br />
dos elementos do primeiro par <strong>de</strong> <strong>Vidas</strong>, Cipião-Epaminondas,<br />
hoje perdido. Vi<strong>de</strong> Crespo ( 4 2007: 314).<br />
164
165<br />
in t r o d u ç ã o<br />
inexperiência, encarregou o colega Crasso <strong>de</strong> <strong>de</strong>mover<br />
o colega <strong>de</strong> atacar Aníbal, e ainda impedia os jovens<br />
que se queriam alistar na sua campanha. Mais tar<strong>de</strong>,<br />
quando começaram a chegar notícias das façanhas <strong>de</strong><br />
Cipião, exigiu o envio <strong>de</strong> um substituto para Cipião,<br />
alegando que é difícil que a mesma pessoa seja sempre<br />
afortunada. E nem <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Aníbal ter abandonado<br />
Itália, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> o criticar ou <strong>de</strong> incutir o receio e a<br />
<strong>de</strong>sconfiança nos cidadãos (25.3; 26), algo tão diverso<br />
da acção <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> enquanto ditador (4.4). Nesta fase,<br />
repete-se a mesma situação que ocorrera com Minúcio<br />
Rufo, quando <strong>Fábio</strong> o advertiu <strong>de</strong> que “o seu combate<br />
não era contra <strong>Fábio</strong>, mas sim contra Aníbal” (10.7).<br />
Com efeito, também agora o seu inimigo <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong><br />
ser Aníbal para passar a ser Cipião, já que era contra<br />
ele que <strong>Fábio</strong> se pronunciava no Senado, em vez <strong>de</strong><br />
encontrar soluções conjuntas para vencer o po<strong>de</strong>roso<br />
exército cartaginês. Assim, o verda<strong>de</strong>iro inimigo<br />
parece ser a ambição, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> glória pessoal<br />
e reconhecimento público, pois <strong>de</strong>terminaram as<br />
acções <strong>de</strong> Minúcio Rufo, Terêncio Varrão e agora,<br />
nesta última fase, até <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>; o drama <strong>de</strong>sta<br />
Vida centra-se mais na <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> psicológica <strong>de</strong>stas<br />
lutas internas, do que no combate contra Aníbal, cujo<br />
retrato é sobretudo encomiástico.<br />
Nesta medida, o julgamento do biógrafo torna-se<br />
já artificial, pois se, por um lado, há a tendência para<br />
completar i<strong>de</strong>almente este perfil, por outro não po<strong>de</strong><br />
corrigir a história e os traços negativos também têm <strong>de</strong><br />
ser “contemplados”. Tal oscilação é evi<strong>de</strong>nte quando
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
procura justificar este comportamento com a prudência<br />
habitual – “é provável que o propósito inicial <strong>de</strong> se<br />
opor a estes planos se tenha <strong>de</strong>vido mais à segurança<br />
e à prudência” (25.3) –, mas logo acrescenta que foi,<br />
afinal, “arrastado por uma certa ambição e rivalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
modo a impedir o engran<strong>de</strong>cimento <strong>de</strong> Cipião” (25.3).<br />
Concluiu, portanto, que se tratava <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong><br />
<strong>Fábio</strong> que “estava em conformida<strong>de</strong> com a sua natureza<br />
[heautou physin]” (26.2). Com efeito, sendo um traço<br />
excessivo da sua essência, converteu-se numa afecção<br />
da qual ficou prisioneiro. Po<strong>de</strong>mos, assim, comparar<br />
esta última fase <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> com as figuras com que ele<br />
se confrontou ao longo do seu percurso político: Gaio<br />
Flamínio (2.3.3; 3.3.6), Minúcio Rufo (10.4.1) e<br />
Terêncio Varrão (14.2), que personificaram eles mesmos<br />
estas afecções, das quais <strong>Fábio</strong> sempre se <strong>de</strong>marcou por<br />
apresentar uma atitu<strong>de</strong> contrária à guerra. Na verda<strong>de</strong>,<br />
os confrontos entre <strong>Fábio</strong> e a figura <strong>de</strong> outro estadista,<br />
um sensato e um ambicioso num eixo <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong><br />
e inferiorida<strong>de</strong>, constitui um eco platónico da forma<br />
<strong>de</strong> governo timocrática, uma mistura <strong>de</strong> bem e mal<br />
(República 548c7). Note-se que ambas as expressões<br />
assinaladas apresentam os mesmos termos gregos:<br />
philotimia e philonikia.<br />
Contudo, tornou-a uma questão pessoal e foi mais longe<br />
arrastado por uma certa ambição e se<strong>de</strong> <strong>de</strong> vencer, <strong>de</strong><br />
modo a impedir o engran<strong>de</strong>cimento <strong>de</strong> Cipião.<br />
166<br />
<strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> 25. 3. 4
167<br />
in t r o d u ç ã o<br />
- A forma <strong>de</strong> governo a que te referes é uma mistura<br />
completa, <strong>de</strong> bem e <strong>de</strong> mal.<br />
- É uma mistura, efectivamente – disse eu – Mas há uma<br />
característica evi<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>vido a ser governada por um<br />
exaltado, que é a ambição e o gosto <strong>de</strong> honrarias 26 .<br />
Platão, República 548c7<br />
Tal ambivalência teve lugar durante a ditadura<br />
“dupla” em 217 a.C. <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> e Minúcio Rufo, e em 216<br />
a.C., com Gaio Flamínio e Terêncio Varrão, aquando<br />
da <strong>de</strong>rrota <strong>de</strong> Canas. Neste caso, o confronto entre<br />
<strong>Fábio</strong> e Cipião só engran<strong>de</strong>ce este último; o primeiro,<br />
outrora referência <strong>de</strong> prudência, <strong>de</strong>sloca-se para um<br />
ponto diametralmente oposto.<br />
Só a geração mais jovem, li<strong>de</strong>rada por Cipião,<br />
conquistou a vitória contra os Cartagineses na batalha<br />
<strong>de</strong> Zama, mas <strong>Fábio</strong> já não viveu para assistir a esta<br />
glória. A <strong>de</strong>scrição do funeral <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> é outro dos<br />
momentos <strong>de</strong> pathos <strong>de</strong>sta Vita. O título <strong>de</strong> pater que<br />
Minúcio lhe atribuíra é recuperado para completar o<br />
clímax da cena, que apresenta o <strong>de</strong>sfecho i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> uma<br />
vida exemplar do ponto <strong>de</strong> vista ético e filosófico: “cada<br />
particular contribuiu com a mais pequena das moedas,<br />
não por falta <strong>de</strong> ajuda por causa da sua pobreza, mas<br />
porque o povo o enterrou como a um pai.” (27.3).<br />
Este final <strong>de</strong>monstra que a fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência <strong>de</strong><br />
<strong>Fábio</strong> foi completamente superada e, como tal, recebeu,<br />
na morte, as honras que merecia enquanto pai. Assim<br />
26 Tradução <strong>de</strong> Rocha Pereira ( 9 2001: 369).
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
se fixou a memória <strong>de</strong> um homem pru<strong>de</strong>nte, religioso,<br />
dotado <strong>de</strong> uma perspicácia invulgar e com um profundo<br />
sentido <strong>de</strong> res publica, apesar <strong>de</strong>, no final da vida, ter<br />
revelado excessos contrários a esses i<strong>de</strong>ais. Com efeito,<br />
<strong>de</strong>nunciar os <strong>de</strong>feitos em paralelo com as virtu<strong>de</strong>s estava<br />
já previsto no programa moral das <strong>Vidas</strong>, pois como o<br />
biógrafo afirmou no proémio da Vida <strong>de</strong> Címon (2.3).<br />
Assim, do mesmo modo que o pintor não po<strong>de</strong> enfatizar<br />
os traços negativos, pois produz uma imagem vergonhosa<br />
(aischran opsin), também não os po<strong>de</strong> omitir, sob pena<br />
<strong>de</strong> parecer inverosímil (anomoian), também para o<br />
biógrafo é pouco provável apresentar um percurso <strong>de</strong><br />
vida irrepreensível 27 .<br />
Desta Vita, salientamos o valor da praotes<br />
(doçura) que, em conjunto com a pronoia (providência),<br />
caracteriza F. <strong>Máximo</strong> a nível físico (1.5; 17.7), moral<br />
(1.4) e político (20.4), manifestando-se na infância com<br />
os colegas, alargando-se mais tar<strong>de</strong> à esfera pública, tendo<br />
ainda marcado a sua conduta política e a intervenção na<br />
Segunda Guerra Púnica. Trata-se <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> vida<br />
essencialmente grego, que tudo comanda, que exprime<br />
tolerância e indulgência e que na obra <strong>de</strong> Plutarco atinge<br />
o seu apogeu, como sublinhou J. De Romilly (1979:<br />
275): “Le vocabulaire <strong>de</strong> la douceur est, chez lui, plus<br />
riche et plus complet que chez aucun autre écrivain.”<br />
A praotes consiste assim numa resistência interior à<br />
violência e aos prazeres 28 , pelo que entra plenamente em<br />
27 Vi<strong>de</strong>, a propósito, Stadter (1997).<br />
28 Cf. Bruto 1.3. Esta virtu<strong>de</strong> é também <strong>de</strong>scrita por Aristóteles<br />
(Ética a Nicómaco 1126a1): “Porque o gentil [praos] quer<br />
permanecer imperturbável e não quer ser levado pela emoção, e<br />
168
169<br />
in t r o d u ç ã o<br />
diálogo com outra tendência <strong>de</strong>ste general já referida, a<br />
apatheia, traço do sapiens estóico.<br />
A praotes, à luz da ética do povo romano, aproximase<br />
da clementia que consiste na mansidão, misericórdia,<br />
na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar e perdoar 29 , mas esta é menos<br />
ampla por se tratar <strong>de</strong> uma prática da esfera política, ao<br />
contrário da grega, que começa por ser um traço da physis,<br />
alargando-se ao campo político e social. Os actos referidos<br />
como expressão <strong>de</strong> praotes seriam <strong>de</strong>signados por outros<br />
conceitos que reflectem valores específicos romanos. Por<br />
exemplo, o facto <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> ter cumprido o compromisso<br />
que firmou com Aníbal, contra a vonta<strong>de</strong> do Senado e<br />
tendo, para isso, que ven<strong>de</strong>r a sua proprieda<strong>de</strong>, trata-se <strong>de</strong><br />
um acto <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>s, a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> a um juramento; o gesto <strong>de</strong><br />
Minúcio Rufo que aclama <strong>Fábio</strong> <strong>de</strong> “pai”, reconhecendo<br />
a sua imprudência face à gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> espírito do general,<br />
po<strong>de</strong> ser visto como uma manifestação <strong>de</strong> pietas, um<br />
sentimento <strong>de</strong> obrigação para com aqueles a quem se<br />
tem uma ligação familiar, com pais e parentes, ou social,<br />
como outros membros da comunida<strong>de</strong> 30 . Expressão <strong>de</strong>ste<br />
mesmo valor é também a relação <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> com os <strong>de</strong>uses,<br />
que manifestava publicamente uma relação <strong>de</strong> temor para<br />
com a divinda<strong>de</strong> (4.4; 8.1; 18, 2), tendo <strong>de</strong>sempenhado<br />
cargos religiosos, como vimos.<br />
apenas o sentido orientador lhe po<strong>de</strong>rá prescrever as situações em<br />
que <strong>de</strong>ve irritar-se e durante quanto tempo. Ou seja, o gentil parece<br />
pecar mais por <strong>de</strong>feito, porque não é do tipo vingativo mas mais do<br />
género que perdoa.” Tradução <strong>de</strong> Caeiro (2004: 98). Vi<strong>de</strong> ainda<br />
Ribeiro Ferreira (2008b: 112).<br />
29 Vi<strong>de</strong> n. 15 <strong>de</strong>ste estudo.<br />
30 A este respeito, vi<strong>de</strong> Rocha Pereira ( 3 2002: 338-9).
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
Com efeito, o acto <strong>de</strong> receber, em festa, Terêncio<br />
Varrão que tinha <strong>de</strong>saparecido <strong>de</strong>pois do <strong>de</strong>sastre <strong>de</strong><br />
Canas (18.4), também po<strong>de</strong> ser entendido como um<br />
acto <strong>de</strong> clementia: “elogiaram-no por não ter renunciado<br />
à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tamanho infortúnio e por estar ali<br />
presente para <strong>de</strong>sempenhar o seu cargo, velar pelas leis<br />
dos cidadãos” (18.5). O ponto <strong>de</strong> vista do biógrafo é<br />
grego, pelo que faz correspon<strong>de</strong>r estas acções a conceitos<br />
existentes na cultura helénica, permitindo assim<br />
uniformizar o valor programático inerente a cada par <strong>de</strong><br />
<strong>Vidas</strong> – neste caso, a praotes.<br />
Constatámos, ao longo <strong>de</strong>sta Vida, que certos<br />
momentos são invulgarmente extensos, recorrendo<br />
ao biógrafo ao uso do discurso directo conferindo<br />
verosimilhança à cena <strong>de</strong>scrita, <strong>de</strong> forma a conquistar<br />
a empatia do ouvinte e garantir a a<strong>de</strong>são ao mo<strong>de</strong>lo<br />
ético apresentado. A inclusão <strong>de</strong> certos momentos<br />
aparentemente sem importância para a economia<br />
narrativa (12.2; 5.7-8; 15.3) cumpre, afinal, outro<br />
objectivo: iluminar e fixar a memória <strong>de</strong> uma figura 31 ,<br />
como esclareceu Plutarco no início da Vida <strong>de</strong> Alexandre<br />
(1. 1-2):<br />
(...) nem sequer é nos acontecimentos mais espectaculares<br />
que resi<strong>de</strong> especialmente a <strong>de</strong>monstração da virtu<strong>de</strong> e do<br />
31 A verda<strong>de</strong> é que quase toda a narrativa está concentrada entre<br />
a Batalha do lago Trasimeno (217 a.C.) e a <strong>de</strong> Canas (216 a.C.), pois<br />
aí se localizam as <strong>de</strong>scrições mais completas e dramatizadas <strong>de</strong>sta<br />
Vida, tendo como tema principal, o confronto com Aníbal. Depois<br />
<strong>de</strong> Canas, a narrativa só retoma o ritmo mais lento e <strong>de</strong>scritivo<br />
aquando da tomada <strong>de</strong> Tarento (214 a.C.), o último momento <strong>de</strong><br />
expressão heróica <strong>de</strong>ste general.<br />
170
171<br />
in t r o d u ç ã o<br />
vício; pelo contrário, muitas vezes um pequeno gesto, uma<br />
palavra ou uma brinca<strong>de</strong>ira reflectem melhor o carácter<br />
do que os combates com baixas incontáveis (...) 32<br />
Na verda<strong>de</strong>, “os combates com baixas incontáveis”<br />
constituem o objecto <strong>de</strong> histórias mais pormenorizadas<br />
(16.6; 21.5), fontes para a construção das <strong>Vidas</strong>, neste<br />
caso as obras <strong>de</strong> Tito Lívio, Políbio ou a História <strong>de</strong><br />
Posidónio <strong>de</strong> Apameia (que não chegou até nós). Em<br />
relação aos episódios ocorridos no final do século III,<br />
por altura da <strong>de</strong>rrota <strong>de</strong> Canas (216 a.C.) terá recorrido<br />
aos testemunhos <strong>de</strong> Díon Cássio, à Guerra <strong>de</strong> Aníbal <strong>de</strong><br />
Apiano, ao [anónimo] Sobre os varões ilustres, a Valério<br />
<strong>Máximo</strong>, e outros autores do século II e I, como os<br />
historiadores Célio Antípatro e Valério Ântias 33 . Assim,<br />
enquanto estas fontes se ocupam da história <strong>de</strong> um povo<br />
em geral, as <strong>Vidas</strong> <strong>de</strong> Plutarco são expressão do fascínio<br />
pelo particular, a vida <strong>de</strong> um homem, ainda que muitas<br />
vezes se confunda com a história do seu povo. Como ele<br />
mesmo afirma “nós não escrevemos histórias [historias]<br />
mas sim biografias [bious]” (Alexandre 1.2).<br />
A experiência <strong>de</strong> guerra seria algo familiar aos<br />
ouvintes e leitores das <strong>Vidas</strong>, pelo que o comportamento<br />
do político teria uma função didáctica e um efeito<br />
performativo, pois apresenta a história <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s<br />
homens em acção, conforme lembra P. A. Stadter<br />
(1997: 69): “Plutarch’s biographies respond to this<br />
<strong>de</strong>eply felt need among the elite of the empire”. Esta<br />
32 Tradução <strong>de</strong> Leão (2008: 103).<br />
33 Vi<strong>de</strong> Pérez Jiménez (1996: 37).
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
premência <strong>de</strong> exempla era já sentida nos escritos <strong>de</strong> ética<br />
romana, como no De Officiis 34 (3.19) <strong>de</strong> Cícero, que<br />
representa já um estádio significativo do pensamento<br />
ético e permite explicar a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> Plutarco <strong>de</strong> escrever<br />
biografias, algo também expresso por Séneca 35 . Assim,<br />
estas Vitae combinam história e filosofia ética, <strong>de</strong> forma<br />
a <strong>de</strong>monstrar a utilida<strong>de</strong> dos princípios filosóficos, que,<br />
por si só, não são suficientes. Com efeito, como nota<br />
Stadter (1997: 67), as circunstâncias reais <strong>de</strong> uma acção<br />
afectam a avaliação ética da mesma: por exemplo, matar<br />
um homem é um princípio errado, mas po<strong>de</strong> não ser<br />
reprovável se se tratar <strong>de</strong> um tirano.<br />
Com efeito, para o mesmo fim fora criada a Ética<br />
a Nicómaco <strong>de</strong> Aristóteles, <strong>de</strong> forma a fixar padrões<br />
<strong>de</strong> conduta, analisando o problema ético face ao seu<br />
horizonte prático, on<strong>de</strong> as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> variação<br />
se multiplicam consoante as circunstâncias, pois “a<br />
excelência ética constitui-se, portanto, em vista <strong>de</strong><br />
fenómenos <strong>de</strong> prazer e <strong>de</strong> sofrimento (1104b3)” 36 .<br />
Nesta medida, a biografia plutarquiana a<strong>de</strong>qua-se a<br />
um <strong>de</strong>terminado programa moral previamente <strong>de</strong>lineado,<br />
partindo já <strong>de</strong> um referencial, <strong>Péricles</strong>, com o qual o general<br />
romano se assemelha ou diverge. Assim, a história <strong>de</strong> uma<br />
34 Vi<strong>de</strong> Stadter (1997: 67 sqq.).<br />
35 Em Cartas a Lucílio 94, Séneca expõe, com clareza, esta<br />
questão: “O problema da parenética divi<strong>de</strong>-se, portanto, em duas<br />
questões: ela é útil ou inútil? É por si só capaz <strong>de</strong> formar o homem<br />
<strong>de</strong> bem ou não? Em suma, ela é supérflua, ou, pelo contrário, torna<br />
supérfluo todo o resto da filosofia?”. Tradução <strong>de</strong> Campos ( 2 2004:<br />
480).Vi<strong>de</strong> também Stadter (1997: 69).<br />
36 Tradução <strong>de</strong> Caeiro (2004: 46).<br />
172
173<br />
in t r o d u ç ã o<br />
vida é moldada para se ajustar a um <strong>de</strong>terminado conjunto<br />
<strong>de</strong> valores políticos e éticos.<br />
Do mesmo modo, <strong>Fábio</strong> suportou os seus ultrajes,<br />
impassivelmente (apathos) e com mansidão, <strong>de</strong> forma a<br />
servir <strong>de</strong> exemplo (apo<strong>de</strong>ixin) aos filósofos que sustentam<br />
que não é possível nem insultar, nem <strong>de</strong>sonrar o homem<br />
bom e virtuoso (10.2)<br />
O biografado torna-se assim um actor moral, cujo<br />
comportamento é apresentado com vista a confirmar<br />
dogmata, que carecem <strong>de</strong> exemplos práticos que<br />
reflictam a sua utilida<strong>de</strong> 37 . Assim, a vida <strong>de</strong>ste general<br />
parece construída para confirmar o axioma da apatheia 38 ,<br />
a impassibilida<strong>de</strong> face aos afectos da natureza humana.<br />
Com efeito, não po<strong>de</strong>mos per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista o intuito<br />
didáctico da sua obra, pois Plutarco era sobretudo um<br />
gran<strong>de</strong> divulgador da filosofia.<br />
Só o tempo <strong>de</strong>volveu justiça e actualida<strong>de</strong> a esta<br />
figura. Além <strong>de</strong> ter conhecido alguns florescimentos na<br />
posterida<strong>de</strong>, com referências pontuais a nível literário 39 ,<br />
no domínio da arte 40 , a sua táctica <strong>de</strong> batalha campal<br />
37 Stadter (1997: 70): “A few examples of Plutarch’s use of history<br />
to create moral portraits will help us appreciate his ability to highlight<br />
the moral dimensions of political action, and allow his rea<strong>de</strong>rs to have<br />
that bonorum uirorum conversatio urged by Seneca”.<br />
38 Além da ocorrência acima mencionada, há outro registo<br />
do mesmo termo em 1.6.2, quando tratava a sua caracterização<br />
espiritual na infância: “a todos provou que a aparente inacção era,<br />
na verda<strong>de</strong>, impassibilida<strong>de</strong> [apatheian]”.<br />
39 Uma antologia <strong>de</strong> textos sobre <strong>Fábio</strong> consta em Santoni<br />
(1991: 287-99).<br />
40 Vi<strong>de</strong> nota 18 <strong>de</strong>ste estudo.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
teve também muita repercussão na teoria militar<br />
contemporânea, como vem confirmar Goldsworthy<br />
( 2 2007: 46): “(...) o ditador agia correctamente. Muita<br />
<strong>de</strong>sta literatura cita o exemplo <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> na abordagem<br />
das circunstâncias em que um chefe militar <strong>de</strong>ve travar<br />
abertamente uma batalha.”<br />
Contudo, nenhuma recepção se po<strong>de</strong> equiparar<br />
àquela que teve lugar no final do século XIX, no Reino<br />
Unido e na Irlanda. Recuperada no âmbito da filosofia<br />
política, a estratégia militar <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> actualizou-se numa<br />
nova dimensão, com a fundação, em 1884, da Socieda<strong>de</strong><br />
Fabiana 41 . A criação <strong>de</strong>ste movimento intelectual é<br />
atribuída a Thomas Davidson, um filósofo escocês, e<br />
reunia cientistas, escritores, políticos e intelectuais como<br />
George Bernard Shaw, Sidney Webb e Berthand Russell.<br />
Com efeito, tal como <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> optava pela ausência<br />
<strong>de</strong> combate como estratégia, também esta socieda<strong>de</strong><br />
tinha como fim estabelecer um Estado <strong>de</strong>mocrático<br />
baseado no socialismo, renunciando à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
criar uma revolução para operar esta mudança social e<br />
política. Assim, esta filosofia é implantada na socieda<strong>de</strong><br />
mediante uma educação <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> eventos públicos<br />
criados para este efeito, como palestras – cerca <strong>de</strong> 700 no<br />
ano <strong>de</strong> 1888 –, grupos <strong>de</strong> discussão, conferências e escolas<br />
<strong>de</strong> verão 42 . Em 1906, a Socieda<strong>de</strong> Fabiana conhecia já<br />
41 Eis a primeira resolução da Socieda<strong>de</strong> tomada na reunião<br />
intitulada “The Fellowship of a New Life”, datada <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> Dezembro<br />
<strong>de</strong> 1884: “That the Society be called The Fabian Society (as Mr.<br />
Podmore explained in allusion to the victorious policy of Fabius<br />
Cunctator) was carried by 9 votes to 2.” in Pease (2008: 21).<br />
42 Em 1889, G. Bernard Shaw publica aquele que é o seu tratado<br />
mais conhecido da Socieda<strong>de</strong>, Fabian Essays in Socialism, seguindo-se<br />
174
175<br />
in t r o d u ç ã o<br />
alguns frutos, sendo uma uma das responsáveis pela<br />
fundação do Partido Trabalhista britânico (1900).<br />
Além da Socieda<strong>de</strong> a nível nacional, outras emergiram<br />
em âmbito local – actualmente cerca <strong>de</strong> 63 –, tendo-se<br />
difundido na América e na Austrália já na década <strong>de</strong><br />
cinquenta do século passado 43 .<br />
Actualmente, esta Socieda<strong>de</strong> continua bastante<br />
activa: publica a revista Fabian Review, lança várias<br />
edições <strong>de</strong> matéria política, organiza seminários,<br />
conferências e <strong>de</strong>bates sobre temas cívicos. Além disso,<br />
ainda criou recentemente, em 2005, outra vertente,<br />
a Fabian Women’s Network, que reúne cerca <strong>de</strong> 2000<br />
mulheres.<br />
Unus homo – um homem só visionário que<br />
empreen<strong>de</strong>u uma táctica militar tão criticada, mas que<br />
vigora, afinal, até aos nossos dias, como paradigma<br />
político e com repercussões efectivas na socieda<strong>de</strong>,<br />
inspirando, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIX, gerações <strong>de</strong> políticos.<br />
em 1952, New Fabian Essays, editado por Richard H. S. Crossman.<br />
43 In “Fabian Society”, The New Encyclopaedia Britannica,<br />
vol. 4 ( 15 1995: 647-8). A obra <strong>de</strong> Edward R. Pease, secretário da<br />
Socieda<strong>de</strong> durante vários anos, History of the Fabian Society: The<br />
Origins of English Socialism <strong>de</strong> 1916, conheceu duas reedições nos<br />
últimos dois anos.
Tábua Cronológica<br />
Tá b u a c r o n o l ó g i c a 1<br />
ro m a /Vi d a d e Fá b i o má x i m o<br />
Sé c u l o iii a.c.<br />
ca. 283 Ano provável do nascimento <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong><br />
<strong>Máximo</strong> 2 .<br />
265 Eleito áugure, cargo que exerceu até à sua morte,<br />
durante 62 anos.<br />
237-219 Os Barcas chegam à Hispânia e lá<br />
permaneceram durante 18 anos.<br />
233 Cônsul pela primeira vez. Triunfo sob os Lígures<br />
(2. 1; 29 (2)) 3 .<br />
230 Eleito censor.<br />
228 Segundo consulado. Oposição à Lei Flamínia que<br />
propunha a distribuição do terreno, o ager Gallicus 4 ,<br />
pelos colonos romanos mais necessitados.<br />
221-19 Ditador pela primeira vez. Provavelmente<br />
em 221 5 .<br />
218 Avanço <strong>de</strong> Aníbal. Vitória cartaginesa em Trébia (2. 2).<br />
1 Para o estabelecimento <strong>de</strong>sta cronologia, baseámo-nos<br />
sobretudo nas fixadas por R. Guerrini (1991: 285-286) e A. Pérez<br />
Jiménez (1996: 64-66)<br />
2 Vi<strong>de</strong> nota 7 do capítulo “Introdução”.<br />
3 Estas referências dizem respeito à Vida <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>.<br />
4 Terreno dos Sénones, situado entre Sena Gálica e Ravena, que<br />
fora conquistado pelos Romanos.<br />
5 Cf. Valério <strong>Máximo</strong> 1. 1. 5.<br />
176
177<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
217 Derrota do lago Trasimeno a 21 <strong>de</strong> Junho (3. 3).<br />
<strong>Fábio</strong> é nomeado ditador pelo povo (3. 7).<br />
Coloca em prática a estratégia contra Aníbal: adiar o<br />
ataque até que o inimigo <strong>de</strong>sgaste a sua força com a<br />
falta <strong>de</strong> recursos (5. 1-2).<br />
<strong>Fábio</strong> é enganado pela estratégia dos bois <strong>de</strong> cornos<br />
em chamas e soldados romanos são feitos prisioneiros<br />
(6.6-10).<br />
O general ven<strong>de</strong> a sua proprieda<strong>de</strong> para po<strong>de</strong>r pagar<br />
o resgate dos soldados (7.7).<br />
Minúcio Rufo, o seu chefe <strong>de</strong> cavalaria, é eleito<br />
co-ditador, algo inédito (9.3-4).<br />
<strong>Fábio</strong> salva Minúcio Rufo e suas legiões das tropas <strong>de</strong><br />
Aníbal (12.4).<br />
Termina o período <strong>de</strong> ditadura e são nomeados novos<br />
cônsules, G. Servílio Gémino e M. Atílio Régulo (14.1).<br />
216 Derrota romana na Batalha <strong>de</strong> Canas (15-16).<br />
Morte do cônsul Emílio Paulo (16.9) e fuga do<br />
colega Terêncio Varrão para a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Venúsia.<br />
Regressa, mais tar<strong>de</strong>, a Roma (18.4).<br />
<strong>Fábio</strong> é eleito Pontífice <strong>Máximo</strong>.<br />
215 Terceiro consulado na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consul<br />
suffectus 6 , <strong>de</strong>pois da morte do cônsul L. Postúmio<br />
Albino e da renúncia <strong>de</strong> M. Cláudio Marcelo, pois a sua<br />
eleição não foi validada pelos áugures (19.1).<br />
214 Cônsul pela quarta vez juntamente com M. Cláudio<br />
6 Substituto do cônsul que morre antes do termo da<br />
magistratura.
Tábua Cronológica<br />
Marcelo, a chamada dupla “O escudo e a espada <strong>de</strong><br />
Roma” (19.4). Ambos <strong>de</strong>frontaram Aníbal (19. 5-6).<br />
213 Q. <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, filho <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, é eleito cônsul<br />
(24. 1-4).<br />
211 Aníbal marcha sobre Roma (17.1). Cápua é reconquistada<br />
por Fúlvio e Ápio (29. (2)).<br />
210 Cipião é nomeado procônsul na Hispânia (25.1).<br />
209 Quinto consulado <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> juntamente com<br />
Q. Fúlvio Flaco. Reconquista <strong>de</strong> Tarento à traição (21-24).<br />
205 Consulado <strong>de</strong> Cipião com Licínio Crasso (25.1).<br />
Morte do filho <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>. Encómio ao filho falecido<br />
(1.9; 24.6).<br />
<strong>Fábio</strong> tenta impedir a expedição <strong>de</strong> Cipião ao norte<br />
<strong>de</strong> África (25. 2-26).<br />
204 Cipião prossegue a campanha em África e conquista<br />
as primeiras vitórias (26.3).<br />
203 Aníbal abandona Itália (26.4).<br />
Morte <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> (27.2).<br />
202 Cipião vence <strong>de</strong>finitivamente Aníbal na batalha <strong>de</strong><br />
Zama (27.1).<br />
201 Tratado <strong>de</strong> paz entre Roma e Cartago.<br />
178
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o
181<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
1. Depois <strong>de</strong> expor o que foi <strong>Péricles</strong> nas acções<br />
dignas <strong>de</strong> memória, tal como as recebemos, passamos<br />
agora à história <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>.<br />
2. Dizem que <strong>de</strong> uma ninfa ou, segundo outros,<br />
<strong>de</strong> uma mulher daquele sítio, que se uniu a Herácles na<br />
margem do rio Tibre, nasceu <strong>Fábio</strong>, o fundador da família<br />
dos <strong>Fábio</strong>s, numerosa e notável em Roma 1 . Contudo,<br />
alguns autores estabeleceram que os primeiros membros<br />
<strong>de</strong>sta família se chamavam, antigamente, Fódios pelo<br />
facto <strong>de</strong> caçarem com buracos, pelo que ainda hoje se<br />
dá o nome <strong>de</strong> fossae aos buracos e fo<strong>de</strong>re à acção <strong>de</strong> cavar;<br />
mas, com o tempo, alteraram-se as duas letras e foram<br />
apelidados <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>s.<br />
3. Muitos e gran<strong>de</strong>s homens produziu aquela<br />
casa, nomeadamente Ruliano 2 , o mais importante, que<br />
por isso era chamado <strong>Máximo</strong> entre os Romanos, sendo<br />
<strong>de</strong>le que <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>, em quarta geração 3 , o <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong><br />
1 Este dado é também testemunhado por Juvenal, Sátiras 8. 14.<br />
2 Q. <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> Ruliano foi cinco vezes cônsul em 322, 310,<br />
308, 297, 295 a.C., pelo que foi o elemento mais influente <strong>de</strong>sta<br />
família no século IV a. C. Durante os seus consulados, obteve a<br />
vitória sobre os Samnitas, Apúlios, Etruscos, bem como na batalha<br />
<strong>de</strong> Sentino, em 295 a.C.<br />
3 Reconhecida também por Plínio, História Natural 7.133, a<br />
genealogia em que Plutarco se baseia é a seguinte: Q. F. <strong>Máximo</strong><br />
Ruliano foi pai <strong>de</strong> Q. F. <strong>Máximo</strong> Gurges, <strong>de</strong> quem proce<strong>de</strong> Q.<br />
F. <strong>Máximo</strong> Gurges, que tem como <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte o <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong><br />
biografado. O avô <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> – segundo a genealogia seguida<br />
por Plutarco – teve dois consulados em 292 e 276 a.C.; o pai <strong>de</strong>
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
sobre quem escrevemos a biografia. 4. Um pormenor<br />
físico valeu-lhe o apelido <strong>de</strong> Verrugoso 4 , pois tinha uma<br />
pequena verruga a crescer acima do lábio; o <strong>de</strong> Ovícula,<br />
que significa “cor<strong>de</strong>irinho”, foi-lhe atribuído graças<br />
à doçura e tranquilida<strong>de</strong> do seu carácter, quando era<br />
ainda uma criança. 5. A sua calma e silêncio, e a muita<br />
prudência com que se entregava aos prazeres infantis, a<br />
lentidão e a dificulda<strong>de</strong> com que aprendia as matérias, a<br />
complacência e a submissão para com os seus amigos, fez<br />
com que aqueles que o conheciam mal suspeitassem <strong>de</strong><br />
alguma estupi<strong>de</strong>z e preguiça. Apenas alguns distinguiam,<br />
no fundo, a firmeza, a generosida<strong>de</strong> e a coragem leonina<br />
na sua natureza. 6. Contudo, o tempo rapidamente<br />
passou, sendo <strong>de</strong>spertado pela activida<strong>de</strong> política, e a<br />
todos provou que a sua aparente apatia era, na verda<strong>de</strong>,<br />
impassibilida<strong>de</strong>, a precaução, prudência, e a falta <strong>de</strong><br />
reacção e agilida<strong>de</strong> perante qualquer circunstância antes<br />
eram constância e a firmeza. 7. Observando a gran<strong>de</strong>za do<br />
Estado e as numerosas guerras, treinou o seu corpo para<br />
o combate, como uma arma natural, e o discurso como<br />
instrumento <strong>de</strong> persuasão dirigido ao povo, a<strong>de</strong>quandose<br />
perfeitamente ao seu modo <strong>de</strong> vida. 8. Não havia, no<br />
seu discurso, nem o ornamento nem a vã eloquência<br />
forense, mas a razão tomava nas suas palavras um estilo<br />
particular e uma profundida<strong>de</strong> invulgar nas sentenças,<br />
<strong>Fábio</strong>, homónino <strong>de</strong>ste último, teria sido também cônsul em 265<br />
a.C. Os testemunhos divi<strong>de</strong>m-se quanto à paternida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>,<br />
pois enquanto uns consi<strong>de</strong>ram que F. <strong>Máximo</strong> Ruliano é avô (Tito<br />
Lívio 30. 26. 8), outros <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m, como Plutarco e Plínio, que é<br />
seu bisavô.<br />
4 Cf. Sobre os varões ilustres 43. 1 e Cícero, Bruto 57.5.<br />
182
183<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
muito semelhantes, dizem, àquelas <strong>de</strong> Tucídi<strong>de</strong>s. 9.<br />
Conservamos ainda, com efeito, um discurso <strong>de</strong>le<br />
proferido diante do povo: um encómio ao filho 5 que<br />
morreu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido cônsul.<br />
2. Dos cinco consulados que exerceu, no primeiro<br />
conquistou o triunfo sobre os Lígures 6 . Vencidos por<br />
ele na batalha, quando muitos tinham já perdido<br />
contra eles, foram repelidos até aos Alpes, <strong>de</strong>ixando<br />
<strong>de</strong> pilhar e fazer estragos na região fronteiriça à Itália.<br />
2. Aníbal, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> invadir a Itália e vencer a primeira<br />
batalha nas margens do rio Trébia 7 , penetrou através<br />
da Etrúria e arrasou o país, provocando em Roma<br />
consternação e um medo terrível. Sinais surgiram,<br />
alguns familiares aos Romanos como os raios, outros<br />
completamente inéditos e muito estranhos 8 . Diz-se,<br />
por exemplo, que certos escudos transpiraram, eles<br />
mesmos, sangue, que perto <strong>de</strong> Âncio se cortaram<br />
espigas <strong>de</strong> trigo ensanguentadas, que do ar caíram<br />
pedras <strong>de</strong> fogo ar<strong>de</strong>ntes, que sobre os Falérios 9 se via<br />
o céu abrir-se e, nisto, caíam numerosas tabuinhas,<br />
que se espalhavam aqui e ali, numa das quais, estava<br />
5 Cf. Cícero, Da Velhice 12-13, Tusculanas 3, 70, Cartas aos<br />
Amigos 4. 6.1.<br />
6 A vitória teve lugar no ano <strong>de</strong> 233 a.C.<br />
7 Em Dezembro <strong>de</strong> 218 a.C., Aníbal venceu P. Cornélio Cipião<br />
e T. Semprónio.<br />
8 Estes prodígios e outros mais são mencionados por Tito<br />
Lívio 22.1, 8-12, ao contrário <strong>de</strong> Políbio, historiador racionalista,<br />
que não faz referência a estes acontecimentos. Vi<strong>de</strong> o tratado <strong>de</strong><br />
Plutarco, Da Superstição (164e-171f).<br />
9 Cida<strong>de</strong> capital dos Faliscos, situada na zona meridional da<br />
Etrúria, actualmente <strong>de</strong>signada por Cività Castellana.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
escrito com todas as letras: “Marte agita as suas<br />
armas.” 10<br />
3. Nenhum <strong>de</strong>stes prodígios impressionou Gaio<br />
Flamínio 11 . Homem <strong>de</strong> natureza ar<strong>de</strong>nte e ambiciosa,<br />
exaltado pelos gran<strong>de</strong>s sucessos que antes conseguira <strong>de</strong><br />
forma imprevista, quando, apesar da or<strong>de</strong>m do Senado e da<br />
veemente oposição do seu colega <strong>de</strong> consulado, empreen<strong>de</strong>u<br />
uma guerra contra os Galos e os <strong>de</strong>rrotou 12 . <strong>Fábio</strong>, por<br />
sua vez, apesar <strong>de</strong> muitos terem ficado impressionados,<br />
não se <strong>de</strong>ixou perturbar por aqueles sinais, dada a sua<br />
irracionalida<strong>de</strong>. 4. Informado, porém, do número reduzido<br />
<strong>de</strong> inimigos e da sua escassez <strong>de</strong> recursos, aconselhou os<br />
Romanos a ter paciência e a não fazer guerra contra um<br />
homem que comandava um exército treinado em muitos<br />
combates para aquele em concreto, e, em vez disso, a enviar<br />
ajuda aos aliados <strong>de</strong> forma a manter o controlo sobre estas<br />
cida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>ixando que a força <strong>de</strong> Aníbal se extinguisse por<br />
si mesma, como uma chama que brilha com todo o vigor<br />
até ficar pequena e fraca 13 .<br />
10 Vi<strong>de</strong> Tito Lívio 21. 11.<br />
11 Gaio Flamínio foi nomeado tribuno da plebe em 232 a.C.<br />
e era um novus homo, ou seja, o primeiro elemento da sua família<br />
a alcançar um lugar no Senado, tendo levado a cabo uma política<br />
agrária contrária à classe senatorial. Eleito pretor em 227 a.C.,<br />
Flamínio foi o primeiro governador anual da Sicília, mas foi no<br />
seu consulado (223 a.C.) que alcançou maior notorieda<strong>de</strong>, pela sua<br />
vitória contra os Ínsubres. Nomeado <strong>de</strong>pois censor em 220 a.C.,<br />
foi o único <strong>de</strong>fensor <strong>de</strong> Q. Cláudio em 218 a.C. na lex Claudia.<br />
Este acto público e a sua origem conquistaram a confiança do povo,<br />
que o elevou ao consulado em 217 a.C.<br />
12 A vitória teve lugar em 223 a.C., durante o seu primeiro<br />
consulado sobre os Galos. Cf. Políbio 2. 32-33; Plutarco, Marcelo<br />
4. 2-6.<br />
13 Imagem homérica; Ilíada 9. 212.<br />
184
185<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
3. Não convenceu, contudo, Flamínio. Este<br />
<strong>de</strong>clarou que não consentiria que a guerra se aproximasse<br />
<strong>de</strong> Roma e que não faria como o antigo Camilo 14 , que<br />
travou um combate pela cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da mesma 15 ,<br />
pelo que or<strong>de</strong>nou aos tribunos que mandassem sair o<br />
exército e ele mesmo saltou para o cavalo. O animal, sem<br />
causa aparente, começou a tremer <strong>de</strong> forma inesperada,<br />
assustou-se e Flamínio foi <strong>de</strong>rrubado e caiu <strong>de</strong> cabeça 16 .<br />
Este inci<strong>de</strong>nte, contudo, não alterou a sua resolução e<br />
seguiu o seu primeiro impulso: ir ao encontro <strong>de</strong> Aníbal<br />
e colocar as suas tropas em linha <strong>de</strong> batalha perto do<br />
chamado lago <strong>de</strong> Trasimeno, na Etrúria 17 . 2. Quando os<br />
exércitos se preparavam para o combate, precisamente<br />
no momento crucial da batalha, ocorre um terramoto<br />
que arrasou cida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>sviou os rios dos seus leitos e<br />
abriu fendas nas montanhas até à base. Contudo, apesar<br />
14 Trata-se <strong>de</strong> Fúrio Camilo, tribuno consular em 401, 398,<br />
394, 386, 384, 381 a.C., supostamente censor em 403 e dictator<br />
em 396, 390, 389, 368, 367 a. C. e que conduziu uma investida<br />
contra os Gauleses em 390 a.C.<br />
15 Cf. Tito Lívio 22. 3. 10.<br />
16 Tito Lívio (22. 3. 11) quando menciona este episódio, refere<br />
que “o cavalo se abateu subitamente e fez cair o cônsul por cima da<br />
sua cabeça” [equus repente corruit consulemque lapsum super caput<br />
effudit]. É, por isso, provável que Plutarco não tenha compreendido<br />
o texto latino. O biógrafo reconheceu, com efeito, estas limitações<br />
em Demóstenes 2. 2-3, recordando que quando se encontrava em<br />
Roma não tinha tempo para se <strong>de</strong>dicar ao estudo da língua latina<br />
pois tanto os afazeres públicos como os que buscavam os seus<br />
conhecimentos <strong>de</strong> filosofia absorviam todo o tempo. Só mais tar<strong>de</strong>,<br />
pô<strong>de</strong> começar a estudar a literatura romana.<br />
17 O combate teve lugar na Primavera <strong>de</strong> 217 a.C., no dia 21 <strong>de</strong><br />
Junho, segundo Ovídio, Fastos 6. 765-768.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
da violência do fenómeno, nenhum dos combatentes se<br />
apercebeu 18 . 3. Flamínio, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter dado provas <strong>de</strong><br />
muitos actos <strong>de</strong> audácia e coragem, morreu e, com ele,<br />
os melhores homens. Os restantes entregaram-se à fuga<br />
e houve gran<strong>de</strong> mortanda<strong>de</strong>: quinze mil foram talhados<br />
em pedaços e outros tantos foram feitos prisioneiros 19 .<br />
Aníbal, querendo dignificar o corpo <strong>de</strong> Flamínio com<br />
ritos fúnebres e prestar-lhe honra pelo seu valor, não o<br />
encontrou, entre os cadáveres, e jamais souberam como<br />
<strong>de</strong>sapareceu 20 .<br />
4. A <strong>de</strong>rrota ocorrida junto ao rio Trébia, nem o<br />
general que escreveu a notícia, nem o mensageiro enviado,<br />
a anunciaram claramente, tendo mentido, dizendo que<br />
a vitória tinha sido controversa e duvidosa 21 . Contudo,<br />
assim que o pretor Pompónio teve conhecimento <strong>de</strong>sta<br />
notícia, reunindo o povo em assembleia geral e sem<br />
perífrases ou mais ro<strong>de</strong>ios, avançou e disse abertamente:<br />
5. “Romanos, fomos vencidos numa gran<strong>de</strong> batalha 22 ;<br />
o exército foi <strong>de</strong>struído e o cônsul Flamínio morreu.<br />
Deliberai agora sobre a vossa salvação e segurança.” 6.<br />
Esta <strong>de</strong>claração lançada sob uma multidão tão ingente,<br />
como um furacão no mar, espalhou a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m na cida<strong>de</strong>,<br />
e diante <strong>de</strong> tamanho terror, as faculda<strong>de</strong>s racionais não<br />
se pu<strong>de</strong>ram conservar ou manter firmes. 7. Nisto, todos<br />
18 Cf. Tito Lívio 22.5.8.<br />
19 Estes números coinci<strong>de</strong>m com os <strong>de</strong> Políbio 3.84-85 e Tito<br />
Lívio 22.7, 2-5, menciona o número <strong>de</strong> mortos, mas não refere<br />
prisioneiros.<br />
20 Cf. Tito Lívio 22.7.5 e Valério <strong>Máximo</strong> 1.6.6, que fazem<br />
também referência ao <strong>de</strong>saparecimento do corpo.<br />
21 Cf. Políbio 3.75.<br />
22 Cf. Tito Lívio 22.7.8 e Políbio 3.85.7.<br />
186
187<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
chegaram a um acordo: a situação exigia uma autorida<strong>de</strong><br />
e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> um só, o que chamam <strong>de</strong> ditadura 23 , e um<br />
homem que o exercesse sem hesitação e com segurança;<br />
e este homem só podia ser <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, que possuía a<br />
sabedoria, e a nobreza <strong>de</strong> carácter à altura daquele cargo,<br />
além <strong>de</strong> que estava na ida<strong>de</strong> em que o vigor do corpo<br />
suporta as resoluções do espírito e em que a audácia se<br />
alia à prudência.<br />
4. Tomada esta <strong>de</strong>cisão, <strong>Fábio</strong>, nomeado ditador 24 ,<br />
<strong>de</strong>signou ele próprio Marco Minúcio 25 para a função <strong>de</strong><br />
comandante da cavalaria 26 . O primeiro pedido que fez<br />
23 Vi<strong>de</strong> “Introdução Geral”, n. 5.<br />
24 Neste caso, o título seria, em rigor, prodictator, pois a<br />
nomeação foi feita pelo voto popular nos comitia centuriata.<br />
Outros testemunhos como Tito Lívio 22.8 e Políbio 3. 87. 6-9<br />
não atribuem a eleição do ditador ao povo. Com efeito, só um<br />
magistrado com imperium (cônsul, pretor ou interrex) tinha o<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nomear, em público (dictatorem dicere) e com autorização<br />
prévia do Senado, o ditador ou magister populi. Contudo, não<br />
era possível fazer as eleições por esta via, pois um cônsul, Gaio<br />
Flamínio, tinha morrido em combate enquanto o seu colega, o<br />
cônsul Servílio, estava ausente <strong>de</strong> Roma. Semelhante à monarquia<br />
(Cícero, República 2. 59), raramente se recorria a esta forma <strong>de</strong><br />
governo, sendo usada apenas em situações <strong>de</strong> crise militar, pois o<br />
eleito <strong>de</strong>tinha po<strong>de</strong>r absoluto sobre as instituições políticas, ainda<br />
que fosse apenas por seis meses.<br />
25 M. Minúcio Rufo tinha sido nomeado cônsul em 221 a.C.<br />
em conjunto com P. Cipião Ásina. Morrerá, no ano seguinte na<br />
batalha <strong>de</strong> Canas (216 a.C.).<br />
26 O relato <strong>de</strong> Plutarco diverge daquele <strong>de</strong> Tito Lívio (22.8.7)<br />
e <strong>de</strong> Políbio (3.87.9). Com efeito, ambos os historiadores dizem<br />
que foi o povo quem elegeu o magister equitum juntamente com<br />
o ditador. Como refere, a propósito <strong>de</strong>sta eleição, o historiador<br />
Goldsworthy ( 2 2007: 44): “Normalmente, o ditador escolhia<br />
o seu chefe da Cavalaria, mas, nas excepcionais circunstâncias em
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
ao Senado foi o po<strong>de</strong>r ir a cavalo durante as expedições<br />
militares. 2. Ele não tinha, com efeito, este direito:<br />
uma antiga lei o proibia, seja porque consi<strong>de</strong>ravam a<br />
infantaria a força principal do seu exército e julgavam<br />
que o general <strong>de</strong>via permanecer junto da falange, não a<br />
po<strong>de</strong>ndo abandonar, seja porque o po<strong>de</strong>r que o cargo,<br />
lhe conce<strong>de</strong> é enorme e tem todas as características da<br />
tirania, e é suposto que ao menos nisto pareça que o<br />
ditador está subordinado ao povo.<br />
3. Com efeito, o próprio <strong>Fábio</strong>, querendo logo<br />
mostrar a gran<strong>de</strong>za e a majesta<strong>de</strong> do cargo, <strong>de</strong> forma<br />
a tornar mais dóceis e obedientes os cidadãos, saiu a<br />
público com vinte e quatro lictores reunidos à sua<br />
volta 27 . Assim, quando o outro cônsul ia ao seu encontro,<br />
enviou o seu ajudante e or<strong>de</strong>nou-lhe que mandasse<br />
embora os lictores, <strong>de</strong>ixasse as insígnias daquele cargo e<br />
se apresentasse como um cidadão comum.<br />
4. Depois disto, inaugurou o cargo com o mais<br />
belo princípio, começando pelos <strong>de</strong>uses, dando a<br />
enten<strong>de</strong>r ao povo que a <strong>de</strong>rrota tinha ficado a <strong>de</strong>ver-se<br />
que <strong>Fábio</strong> foi eleito, foi <strong>de</strong>cidido conce<strong>de</strong>r também aos eleitores<br />
o direito <strong>de</strong> escolher o seu subordinado.” Este título po<strong>de</strong> ser um<br />
vestígio dos tempos arcaicos da história <strong>de</strong> Roma, quando a maioria<br />
do exército correspondia à falange hoplita, e, enquanto o ditador<br />
comandava a infantaria pesada, o subordinado, magister equitum,<br />
dirigia a cavalaria. Tal como o do dictator, este cargo tinha também<br />
um carácter temporário, terminando com o fim da ditadura. Sobre<br />
os problemas associados às eleições <strong>de</strong> 217 a.C., vi<strong>de</strong> Sumner<br />
(1975).<br />
27 A cada cônsul era permitido ter doze lictores, mas o ditador,<br />
como concentrava em si todo o imperium, teria direito a vinte e<br />
quatro, símbolo <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r pleno equivalente a dois cônsules.<br />
Sobre este episódio, cf. Tito Lívio 22.11.5-6.<br />
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189<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
à negligência e ao <strong>de</strong>sprezo do general pelos <strong>de</strong>uses, e<br />
não à incapacida<strong>de</strong> dos combatentes; exortou-o a não<br />
temer os inimigos, encorajando-o antes a apaziguar e<br />
honrar os <strong>de</strong>uses 28 . Não para alimentar a superstição,<br />
mas para fortalecer com a pieda<strong>de</strong> e a coragem, e, com<br />
as esperanças postas nos <strong>de</strong>uses, apagar o medo dos<br />
inimigos, reconfortando-os. 5. Recorreu-se, então,<br />
a muitos livros secretos utilizados pelos Romanos,<br />
que se chamavam sibilinos 29 e diz-se que algumas das<br />
profecias que aí constavam se reportavam a situações<br />
e a acontecimentos <strong>de</strong> então. 6. A nenhuma outra<br />
pessoa era permitido saber o que lá se lia, à excepção<br />
do ditador. Este, apresentando-se diante da multidão,<br />
fez o voto <strong>de</strong> oferecer aos <strong>de</strong>uses tudo quanto se<br />
produzisse na Itália inteira, entre cabras, porcos, reses<br />
e bois, tanto nas montanhas como nas planícies, nos<br />
rios e pradarias, na Primavera seguinte 30 ; <strong>de</strong> celebrar<br />
espectáculos musicais e cénicos 31 no valor <strong>de</strong> trezentos e<br />
trinta e três sestércios e trezentos e trinta e três <strong>de</strong>nários<br />
28 Cf. Tito Lívio 22. 9. 7 e Políbio 3.88.7.<br />
29 Designados também <strong>de</strong> Livros do Destino (libri fatales), os<br />
Livros Sibilinos eram uma colectânea muito antiga <strong>de</strong> oráculos<br />
gregos provenientes, segundo a lenda, da Etrúria e <strong>de</strong> Cumas, na<br />
Campânia, sendo na realida<strong>de</strong> uma herança etrusca. A leitura <strong>de</strong>stes<br />
livros permitia conhecer a vonta<strong>de</strong> divina e era solicitada em alturas<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> infortúnio, tendo tal acontecido pela primeira vez em<br />
436 a.C. No tempo <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, a consulta <strong>de</strong>stes livros era<br />
exclusiva <strong>de</strong> um colégio, o grupo dos Decemviri sacris faciundis.<br />
30 Trata-se do Ver sacrum (“Primavera sagrada”), prática religiosa<br />
itálica que consistia na consagração aos <strong>de</strong>uses, em momentos <strong>de</strong><br />
crise, <strong>de</strong> tudo o que nascesse na Primavera seguinte.<br />
31 Segundo Tito Lívio (22.10.7), tratavam-se dos Ludi Magni,<br />
oferecidos em honra <strong>de</strong> Jupiter Optimus Maximus.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
e ainda um tritartemórion 32 , soma que hoje equivale a<br />
oitenta e três mil, quinhentas e oitenta e três dracmas e<br />
dois óbolos. 7. É, com efeito, difícil dizer qual a razão<br />
da exactidão e da minúcia <strong>de</strong>ste montante, a não ser<br />
que, porventura, quisesse enaltecer o valor do número<br />
três, já que é ele, por natureza, o número perfeito: o<br />
primeiro dos números ímpares, o princípio causal da<br />
pluralida<strong>de</strong>, reúne em si mesmo as primeiras diferenças<br />
e os elementos <strong>de</strong> todos os números, combinando-os, e<br />
harmonizando-os numa união conjunta 33 .<br />
5. Ao levantar o ânimo da multidão por meio da<br />
religião, <strong>Fábio</strong> inspirou mais confiança no futuro. Com<br />
efeito, colocando em si mesmo todas as esperanças<br />
na vitória, convencido <strong>de</strong> que os <strong>de</strong>uses conce<strong>de</strong>m<br />
os sucessos mediante o valor e a sabedoria, irá ao<br />
encontro <strong>de</strong> Aníbal, não com a intenção <strong>de</strong> combater,<br />
mas <strong>de</strong>cidido a <strong>de</strong>sgastar e consumir a sua força com o<br />
tempo, a falta <strong>de</strong> recursos <strong>de</strong>le com o seu dinheiro, e<br />
a falta <strong>de</strong> homens daquele com a abundância <strong>de</strong>les da<br />
sua parte 34 . 2. Por esta razão, ficava sempre nas alturas,<br />
acampando em zonas montanhosas, longe do alcance<br />
da cavalaria inimiga, tranquilo quando o inimigo estava<br />
calmo, e, quando este se movia, andava às voltas sem<br />
<strong>de</strong>ixar os pontos altos, mostrando-se à distância e <strong>de</strong><br />
32 Moeda <strong>de</strong> prata que equivale a três quatros <strong>de</strong> um óbolo e a<br />
um oitavo <strong>de</strong> um dracma. Cf. Pólux 9.65.<br />
33 Sobre o interesse <strong>de</strong> Plutarco pelo número três, vi<strong>de</strong> Obras<br />
Morais 288 D, 374 A, 738 F, 744 F, 1020 D.<br />
34 É esta a estratégia que celebrizou <strong>Fábio</strong> como Cunctator, o<br />
contemporizador. Cf. Políbio 3, 82, 4 e Tito Lívio 22.3, 8-9.<br />
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191<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
forma a não apresentar combate sem querer, e, com a<br />
espera, fomentar o medo nos inimigos como se fosse<br />
apresentar combate a qualquer momento.<br />
3. Contudo, por <strong>de</strong>ixar o tempo passar, era<br />
criticado por todos. Falava-se mal <strong>de</strong>le no acampamento<br />
e, entre os inimigos, era visto como cobar<strong>de</strong> e inútil; à<br />
excepção <strong>de</strong> Aníbal. 4. Era este o único que reconhecia<br />
a habilida<strong>de</strong> e a forma como ele conduzia a guerra,<br />
convencido <strong>de</strong> que ou o obrigava a combater por meio<br />
<strong>de</strong> qualquer estratégia ou pela força ou, caso contrário,<br />
estaria perdida a causa dos Cartagineses. Como não<br />
podiam servir-se <strong>de</strong> armas que os tornariam mais fortes<br />
e, sendo inferiores em homens e dinheiro, via os seus<br />
recursos diminuírem e esgotarem-se em vão. Aníbal<br />
recorreu a todo o tipo <strong>de</strong> estratégias e manobras, fazendo<br />
constantes intentos, como um hábil atleta que procura<br />
a ocasião para atacar: aproximava-se, criava confusão e<br />
procurava atrair <strong>Fábio</strong> para diversos lugares, querendo<br />
que ele <strong>de</strong>sistisse da táctica que garantia a sua segurança.<br />
5. Contudo, como este estava convencido da sua<br />
utilida<strong>de</strong>, a sua resolução permanecia fiel e inalterável.<br />
Importunava, porém, Minúcio, o comandante da<br />
cavalaria, que, se<strong>de</strong>nto <strong>de</strong> combate, com impertinência<br />
procurava seduzir os soldados, encorajando-os para um<br />
acto tresloucado, enchendo-os <strong>de</strong> vãs esperanças. Assim,<br />
estes faziam pouco e <strong>de</strong>sprezavam <strong>Fábio</strong>, chamando-o<br />
<strong>de</strong> pedagogo 35 <strong>de</strong> Aníbal, e a Minúcio, por sua vez,<br />
35 Esta acusação era especialmente ofensiva, pois indicava uma<br />
relação <strong>de</strong> subordinação e inferiorida<strong>de</strong>. O pedagogo era o escravo<br />
que tinha a missão <strong>de</strong> acompanhar a criança à escola e vigiá-la on<strong>de</strong><br />
quer que ela estivesse. Cf. Tito Lívio 22.12.11-12.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
viam-no como um gran<strong>de</strong> homem e um general digno<br />
<strong>de</strong> Roma. 6. Este, <strong>de</strong>ixando-se levar pelo orgulho e pela<br />
insolência, ridicularizava o facto <strong>de</strong> ter acampado nas<br />
alturas, dizendo que <strong>de</strong>ste modo o ditador oferecia bons<br />
lugares para assistir ao belo espectáculo <strong>de</strong> uma Itália<br />
<strong>de</strong>vastada e queimada; e perguntava aos amigos <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong><br />
se, com tanto subir, pretendia levar o exército para o<br />
céu, como se tivesse já <strong>de</strong>sistido da terra, ou se, para<br />
escapar aos inimigos, lhes atiraria nuvens e neblinas.<br />
7. Quando os amigos contaram a <strong>Fábio</strong> estas notícias<br />
e o aconselharam a libertar-se <strong>de</strong>stas afrontas com uma<br />
empresa arriscada, ele respon<strong>de</strong>u: “Assim, certamente”,<br />
disse, “parece-me que seria mais cobar<strong>de</strong> do que agora<br />
pareço se, por temer sarcasmos e injúrias, <strong>de</strong>ixasse cair<br />
a minha estratégia. 8. Além disso, não é vergonhoso<br />
temer pela pátria e não me parece digno <strong>de</strong> um homem<br />
<strong>de</strong> tamanho cargo <strong>de</strong>ixar-se influenciar pelas calúnias e<br />
censuras dos homens, mas antes próprio do escravo que<br />
se submete aos insensatos, sobre os quais ele <strong>de</strong>ve ser<br />
chefe e mestre” 36 .<br />
6. Algum tempo <strong>de</strong>pois, Aníbal cometeu um erro 37 .<br />
Querendo levar o seu exército para bem longe <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> e<br />
ocupar as planícies que tivessem pasto, or<strong>de</strong>nou aos guias<br />
que, <strong>de</strong>pois do jantar, o conduzissem até à região <strong>de</strong> Casino.<br />
2. Estes, porém, não enten<strong>de</strong>ram bem a or<strong>de</strong>m por causa<br />
da sua pronúncia bárbara e levaram-no até aos limites<br />
36 Cf. Plutarco, Obras Morais 195 C e Marcelo 9.7; Diodoro<br />
26.3.<br />
37 Para os assuntos narrados neste capítulo 6, cf. Tito Lívio 22.<br />
13-17 e Políbio 2.92-94.<br />
192
193<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
da Campânia e fizeram o exército entrar nas imediações<br />
<strong>de</strong> Casilino, região que dividia em duas meta<strong>de</strong>s o rio<br />
Lótrono, que os Romanos chamavam <strong>de</strong> Volturno 38 . 3.<br />
A região está coroada <strong>de</strong> montanhas por todos os lados,<br />
menos por um, abrindo-se um canal para o mar, on<strong>de</strong> se<br />
revela um rio que forma pauis e tem profundos bancos<br />
<strong>de</strong> areia que culminam numa praia com forte ondulação<br />
e <strong>de</strong> difícil acesso. 4. Quando Aníbal <strong>de</strong>scia por ali, <strong>Fábio</strong><br />
<strong>de</strong>u uma volta, e aproveitando o facto <strong>de</strong> conhecer bem<br />
os caminhos, bloqueou a saída dispondo lá quatro mil<br />
homens da infantaria; <strong>de</strong>pois, tendo colocado o resto do<br />
seu exército num lugar estratégico nos pontos mais altos,<br />
ataca, com as tropas mais ligeiras e melhor organizadas,<br />
a retaguarda do inimigo, gerando confusão em todo o<br />
exército e matando cerca <strong>de</strong> oitocentos combatentes. 5.<br />
Aníbal, querendo bater em retirada com o exército dali<br />
para fora, reconheceu o erro e o perigo daquele lugar,<br />
crucificou os guias, mas renunciou empreen<strong>de</strong>r uma<br />
luta contra os inimigos, pois eram superiores nas zonas<br />
altas. 6. Vendo os soldados <strong>de</strong>sanimados e temerosos<br />
por pensarem que estavam cercados por todos os lados<br />
e sem escapatória, Aníbal arquitectou um ardil para<br />
enganar os inimigos 39 . O estratagema era o seguinte:<br />
mandou recolher cerca <strong>de</strong> dois mil bois entre os <strong>de</strong>spojos,<br />
atando a cada corno uma tocha, um feixe <strong>de</strong> vime <strong>de</strong><br />
sarça ou <strong>de</strong> mato seco. Mais tar<strong>de</strong>, quando a noite<br />
sobreveio, acen<strong>de</strong>ram as tochas e conduziram os bois<br />
38 Cf. Tito Lívio 22.13.5-6.<br />
39 Cf. Tito Lívio 22.16.17 e Políbio 3.93-94.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
até às alturas, em direcção aos <strong>de</strong>sfila<strong>de</strong>iros e aos vigias<br />
dos inimigos. 7. Enquanto uns recebiam or<strong>de</strong>ns para<br />
fazer os preparativos necessários, ele mesmo colocou em<br />
marcha o resto do exército, já na escuridão, fazendo-os<br />
avançar lentamente.<br />
Os bois, enquanto o fogo era fraco e ardiam apenas<br />
as ramas, avançavam lentamente, sendo conduzidos até<br />
ao cume das montanhas: os fogos que brilhavam no alto<br />
dos cornos constituíam um espectáculo para pastores e<br />
boieiros que observavam do alto, pensando que era um<br />
exército que marchava or<strong>de</strong>nado à luz <strong>de</strong> muitas tochas.<br />
8. Mas quando o fogo queimou as hastes e atingiu a<br />
raiz dos cornos, então sentiu-se o odor a carne, as reses<br />
dispersaram-se, sacudindo as cabeças, pegaram fogo<br />
umas às outras e já não se mantiveram na or<strong>de</strong>m em<br />
que caminhavam. Aterrorizadas e flageladas pela dor,<br />
lançaram-se em corrida pelos montes abaixo, com os<br />
rabos e a testa em chamas, e no mato, por on<strong>de</strong> fugiam,<br />
espalhavam o fogo. 9. Horrível era a visão para os<br />
Romanos que vigiavam as zonas mais altas. De facto, as<br />
chamas pareciam tochas carregadas por homens correndo,<br />
e com isto instala-se entre eles muita confusão e pânico,<br />
pois acreditavam que os inimigos viriam <strong>de</strong> todos os lados<br />
e que estavam cercados por toda a parte; por isso, não<br />
ousaram permanecer nos seus postos, e retirou-se a maior<br />
parte do exército, abandonando os <strong>de</strong>sfila<strong>de</strong>iros.<br />
10. Neste momento, as tropas ligeiras <strong>de</strong> Aníbal<br />
alcançam e ocupam as alturas, enquanto o resto do<br />
exército avança sem temor, arrastando consigo um<br />
volumoso e pesado <strong>de</strong>spojo.<br />
194
195<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
7. Ainda durante a noite, <strong>Fábio</strong> apercebeu-se do<br />
ardil, pois alguns bois, que se dispersaram durante a<br />
fuga, foram cair nas suas mãos; mas porque temia alguma<br />
emboscada, não avançou e manteve o seu exército em<br />
alerta. 2. Quando nasceu o dia, começou a perseguição<br />
e atacou a retaguarda do inimigo. Ocorreram confrontos<br />
em terrenos aci<strong>de</strong>ntados e o tumulto foi gran<strong>de</strong>, até que<br />
da parte <strong>de</strong> Aníbal foram enviados os ágeis e rápidos<br />
Iberos 40 , treinados para subir montanhas, que atacaram<br />
a pesada infantaria dos Romanos, e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> matarem<br />
alguns homens, obrigaram <strong>Fábio</strong> a recuar 41 .<br />
3. Este recebe, então, as piores imprecações e<br />
<strong>de</strong>sprezo 42 . Ao renunciar à audácia das armas, <strong>de</strong> forma<br />
a fazer guerra à força <strong>de</strong> prudência e previsão, foi ele<br />
quem, afinal, saiu <strong>de</strong>rrotado por estas e vítima da sua<br />
própria estratégia 43 .<br />
4. Aníbal, querendo incendiar ainda mais a ira<br />
dos Romanos contra ele, quando se aproximou das suas<br />
terras, or<strong>de</strong>nou que <strong>de</strong>struíssem e queimassem todas as<br />
outras, mas proibiu que tocassem nos campos <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong><br />
– e apenas nestes 44 – e colocou mesmo aí um vigia que<br />
não permitisse qualquer dano ou ataque.<br />
40 Designação étnica <strong>de</strong> um dos primitivos povos da<br />
Hispânia. No final do século V a.C., os Iberos eram conhecidos<br />
como mercenários: habituados às adversida<strong>de</strong>s das montanhas,<br />
caracterizavam-se pela sua agilida<strong>de</strong> e rapi<strong>de</strong>z e correspondiam à<br />
maior parte do exército <strong>de</strong> Aníbal.<br />
41 Cf. Políbio 3.94. 6.<br />
42 Cf. Políbio 3.94. 8.<br />
43 Cf. Tito Lívio 22.23.4.<br />
44 O mesmo suce<strong>de</strong>u ao primeiro elemento <strong>de</strong>ste par <strong>de</strong> <strong>Vidas</strong>,<br />
<strong>Péricles</strong> (33.2).
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
5. Quando estas notícias chegaram a Roma,<br />
aumentaram as calúnias contra <strong>Fábio</strong>. Os tribunos da<br />
plebe não paravam <strong>de</strong> gritar contra ele diante da multidão.<br />
Quem os incitava e provocava ainda mais era Metílio,<br />
não por ódio pessoal contra <strong>Fábio</strong>, mas por ser parente<br />
<strong>de</strong> Minúcio, o comandante da cavalaria, e por pensar<br />
que aquelas maledicências traziam a este último honra<br />
e glória. Acontece que também o Senado estava irado<br />
contra ele e o censurava sobretudo por causa do acordo<br />
que tinha firmado com Aníbal em relação aos cativos<br />
<strong>de</strong> guerra: tinham acordado entre si trocar homem por<br />
homem dos prisioneiros, e a dar-se o caso <strong>de</strong> um ter<br />
mais do que o outro, pagar por cada um dos capturados<br />
duzentas e cinquenta dracmas. 6. Com efeito, realizadas<br />
as permutas <strong>de</strong> homens, <strong>de</strong>scobriu-se que duzentos e<br />
quarenta romanos 45 estavam em po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Aníbal, pelo<br />
que o Senado <strong>de</strong>cidiu não enviar o montante e culpou<br />
<strong>Fábio</strong> pelo facto <strong>de</strong>, sem olhar à honra nem ao interesse,<br />
querer resgatar soldados tão cobar<strong>de</strong>s que se <strong>de</strong>ixaram<br />
capturar pelo inimigo. 7. <strong>Fábio</strong>, tendo conhecimento<br />
da recusa, suportou, pacientemente, a ira dos cidadãos.<br />
Assim, como não tinha riquezas, mas tampouco<br />
queria faltar à palavra a Aníbal ou abandonar os seus<br />
concidadãos, enviou o seu filho a Roma, or<strong>de</strong>nou-lhe<br />
que ven<strong>de</strong>sse as terras 46 e que lhe remetesse o dinheiro o<br />
mais rápido possível para o acampamento.<br />
8. Quando o jovem ven<strong>de</strong>u as terras e regressou,<br />
<strong>Fábio</strong> enviou a importância a Aníbal e recuperou os<br />
45 Cf. Tito Lívio 22.23.7.<br />
46 Cf. supra 7.2.<br />
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197<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
cativos. Mais tar<strong>de</strong>, muitos quiseram <strong>de</strong>volver-lhe a<br />
quantia, mas não aceitou da parte <strong>de</strong> ninguém e perdoou<br />
a todos.<br />
8. Pouco tempo <strong>de</strong>pois, os sacerdotes chamaramno<br />
a Roma para alguns sacrifícios; entregou as forças a<br />
Minúcio, proibindo-o expressamente <strong>de</strong> oferecer guerra<br />
ou confrontar-se com o inimigo, não só na qualida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> ditador, mas fazendo também muitas exortações e<br />
pedidos 47 . 2. Ele, porém, não os levou em conta e atacou<br />
logo o inimigo. Certo dia, tendo reparado que Aníbal<br />
tinha enviado a maior parte do exército para recolher<br />
provisões, atacou aqueles que tinham permanecido no<br />
acampamento, empurrou-os para <strong>de</strong>ntro da paliçada,<br />
matou um número não pequeno, e aterrorizou todos<br />
aqueles que estavam cercados por ele. 3. Nisto,<br />
enquanto Aníbal reunia <strong>de</strong> novo as suas forças para o<br />
acampamento, retirou-se <strong>de</strong> forma segura. Tal sucesso<br />
encheu-o a ele e aos soldados, <strong>de</strong> uma soberba <strong>de</strong>smedida<br />
e <strong>de</strong> insolência.<br />
4. Rapidamente se espalhou em Roma uma<br />
fama maior do que a própria acção. <strong>Fábio</strong>, tomando<br />
conhecimento do sucedido, disse que temia mais<br />
o sucesso <strong>de</strong> Minúcio do que o insucesso. O povo,<br />
porém, exaltou-se e, alvoraçado, reuniu-se no fórum.<br />
Metílio, tribuno da plebe, quando subiu à tribuna,<br />
discursou enaltecendo Minúcio e acusando <strong>Fábio</strong>, não<br />
<strong>de</strong> brandura ou cobardia, mas já <strong>de</strong> traição. Culpava,<br />
ao mesmo tempo, os mais po<strong>de</strong>rosos e importantes<br />
47 Cf. Tito Lívio 22.18. 8-10; Políbio 3.94.9.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
entre os Romanos pela forma como a guerra tinha sido<br />
conduzida, <strong>de</strong>terminando a ruína do povo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />
início, lançando directamente a cida<strong>de</strong> para um po<strong>de</strong>r<br />
único sem controlo; e <strong>Fábio</strong>, por sua vez, per<strong>de</strong>ndo<br />
tempo na sua estratégia, oferecera a Aníbal comodida<strong>de</strong><br />
e tempo para trazer novas forças da Líbia, como se fosse<br />
dono <strong>de</strong> Itália 48 .<br />
9. <strong>Fábio</strong> apareceu diante <strong>de</strong> todos e não procurou<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se do tribuno e disse apenas que era necessário<br />
celebrar o quanto antes os sacrifícios 49 e as cerimónias<br />
religiosas, <strong>de</strong> forma a regressar ao acampamento e<br />
impor a Minúcio o castigo por ter apresentado batalha<br />
aos inimigos, contra a sua proibição. Espalhou-se então<br />
pelo povo um gran<strong>de</strong> tumulto, por causa do risco que<br />
ameaçava Minúcio. Com efeito, como o ditador tinha o<br />
direito <strong>de</strong> pren<strong>de</strong>r e con<strong>de</strong>nar à morte sem julgamento<br />
prévio, pensavam que o espírito <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, agora sem a<br />
sua mansidão, se tornaria inflexível e implacável 50 . 2.<br />
Assim, todos os outros, assustados, fizeram silêncio,<br />
mas Metílio, graças à imunida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>tinha enquanto<br />
tribuno – é a única magistratura que não per<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r<br />
quando é eleito o ditador, conservando-o enquanto que<br />
os outros são dissolvidos – perseguia insistentemente<br />
o povo e pedia-lhe que não abandonasse Minúcio<br />
nem o <strong>de</strong>ixasse sofrer o que Mânlio Torquato 51 fez<br />
48 Cf. Tito Lívio 22.25.3-11.<br />
49 Cf. Tito Lívio 22.18.8 e Políbio 3.94.9.<br />
50 Cf. Tito Lívio 22.25.2 e Plutarco, Obras Morais 195 C.<br />
51 T. M. Imperioso Torquato teve uma carreira política<br />
fulgurante, tendo sido o membro mais influente da sua família no<br />
198
199<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
a seu filho, que, apesar <strong>de</strong> estar triunfante e coroado<br />
<strong>de</strong> louros, cortou-lhe o pescoço com um machado;<br />
que retirasse a tirania a <strong>Fábio</strong> e transferisse os assuntos<br />
públicos para quem podia e queria salvá-los. 3. Exaltada<br />
com estes discursos, a multidão não se atreveu a pedir<br />
a <strong>Fábio</strong> que <strong>de</strong>pusesse o po<strong>de</strong>r absoluto, apesar da<br />
sua impopularida<strong>de</strong>. Ao invés, no que a Minúcio diz<br />
respeito, <strong>de</strong>cretou, por votação, que o cargo <strong>de</strong> general<br />
se equiparava ao <strong>de</strong> chefe e actuava na guerra com a<br />
mesma autorida<strong>de</strong> que o ditador. 4. Com efeito, esta<br />
situação nunca se tinha dado antes em Roma, e repetiuse<br />
mais tar<strong>de</strong> aquando do <strong>de</strong>sastre <strong>de</strong> Canas.<br />
Então, quando Marco Júnio, o ditador, estava à<br />
frente do exército, na cida<strong>de</strong>, nomearam como segundo<br />
ditador <strong>Fábio</strong> Butéon 52 , <strong>de</strong> forma a completar o Senado,<br />
já que muitos senadores tinham morrido na batalha.<br />
5. A única diferença foi que este, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> eleito, tão<br />
<strong>de</strong>pressa quanto nomeou membros e completou o<br />
Senado, no mesmo dia, <strong>de</strong>spediu os lictores, livrou-se<br />
da sua escolta e, misturando-se no meio da multidão,<br />
com ela se confundiu, e, como um particular, regressou<br />
século IV: tribuno militar em 361 a.C., três vezes ditador (353,<br />
349, 320 a.C.), foi também cônsul por três vezes em 347, 344,<br />
340 a.C. Um dos episódios mais conhecidos com ele relacionado<br />
diz respeito à con<strong>de</strong>nação do seu filho Tito Mânlio à morte por ter<br />
avançado contra o inimigo, contra as suas or<strong>de</strong>ns. Apesar <strong>de</strong> o filho<br />
ter <strong>de</strong>rrotado o inimigo em 340 a.C., não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> lhe aplicar a<br />
pena <strong>de</strong> morte. Cf. Tito Lívio 8.7.<br />
52 Cf. Tito Lívio 23, 22, 10. M. <strong>Fábio</strong> Butéon foi eleito cônsul<br />
em 245 a.C. e censor em 241 a.C. Após o <strong>de</strong>sastre da batalha <strong>de</strong><br />
Canas, como era o censor mais antigo, foi eleito ditador no final<br />
<strong>de</strong>sse ano (216 a.C.) <strong>de</strong> forma a reunir po<strong>de</strong>res para completar o<br />
Senado.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
ao fórum para controlar e tratar dos seus próprios<br />
negócios 53 .<br />
10. Depois <strong>de</strong> terem atribuído a Minúcio<br />
as mesmas funções do ditador, julgavam ver <strong>Fábio</strong><br />
diminuído e humilhado, mas não conheciam bem este<br />
homem. 2. Com efeito, não consi<strong>de</strong>rava <strong>de</strong>sgraça sua<br />
a ignorância dos outros, mas antes agia como o sábio<br />
Diógenes 54 quando alguém lhe disse “Este riem-se <strong>de</strong><br />
ti”, e ele respon<strong>de</strong>u “mas eu, não me rio”, pois entendia<br />
que os únicos que eram alvo <strong>de</strong> riso eram aqueles<br />
que fraquejavam e se <strong>de</strong>ixavam perturbar perante tais<br />
situações. Do mesmo modo, <strong>Fábio</strong> suportou os seus<br />
ultrajes, impassivelmente e com serenida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> forma a<br />
servir <strong>de</strong> exemplo aos filósofos que sustentam que não é<br />
possível insultar ou <strong>de</strong>sonrar o homem bom e virtuoso. 3.<br />
Lamentava, contudo, a irreflexão das massas em relação<br />
ao interesse público, já que tinham proporcionado<br />
oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> guerra à insana ambição daquele<br />
homem. 4. E, temendo que Minúcio, completamente<br />
<strong>de</strong>sequilibrado pela sua vanglória e orgulho, se apressasse<br />
a fazer algum disparate, saiu escondido <strong>de</strong> todos. 5.<br />
Com efeito, ao chegar ao acampamento, constatou<br />
que Minúcio já não era controlável, pois, insolente e<br />
arrogante, exigia o comando alternado do exército 55 .<br />
53 Cf. Tito Lívio 23.22.10 e 23.<br />
54 Trata-se <strong>de</strong> Diógenes <strong>de</strong> Sinope (ca. 412/403- ca. 324/321<br />
a.C.), famoso Cínico. Vi<strong>de</strong> Halliwell (2008: 375-81).<br />
55 Esta resolução confere a Minúcio Rufo o título <strong>de</strong> co-ditador,<br />
colocando <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> numa situação ambígua. O mesmo<br />
se repete com <strong>Fábio</strong> Butéon, <strong>de</strong>pois da batalha <strong>de</strong> Canas, facto<br />
referido mais adiante (9. 4-5).<br />
200
201<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
Este, porém, não aceitou, tendo dividido com ele as<br />
forças, <strong>de</strong> forma a controlar uma das partes, que era<br />
melhor do que comandar todo o exército <strong>de</strong> forma<br />
alternada. 6. Tomou para si a primeira e quarta legiões<br />
e entregou àquele a segunda e a terceira, repartindo<br />
por igual as tropas aliadas 56 . 7. Minúcio estava muito<br />
jactante e contente porque o fausto do cargo mais<br />
elevado foi rebaixado e ultrajado por sua causa. Nisto,<br />
<strong>Fábio</strong> recorda-o <strong>de</strong> que o seu combate não era contra<br />
<strong>Fábio</strong>, mas sim contra Aníbal, se era sensato, e que, se<br />
queria competir com o seu colega, se preocupasse então<br />
em evitar que aquele que tinha sido honrado e saído<br />
vitorioso diante dos cidadãos parecesse cuidar menos da<br />
segurança e estabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les do que aquele que tinha<br />
sido vencido e ultrajado.<br />
11. Pretensões senis, lhe pareciam estas<br />
advertências. Tomou a parte do exército que lhe coube<br />
em sorte e acampou à parte e noutro lugar 57 . Aníbal não<br />
ignorava nada do que acontecia, e prestava atenção a<br />
todas as movimentações. Entre Cartagineses e Romanos<br />
havia uma colina ao meio, que não era difícil <strong>de</strong> tomar,<br />
mas que uma vez ocupada seria uma posição forte para<br />
56 Segundo Políbio (3.103.5-8), <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> permitiu que<br />
Minúcio escolhesse uma das duas possibilida<strong>de</strong>s e este escolheu a<br />
que Plutarco atribui a <strong>Fábio</strong>. Este relato coinci<strong>de</strong> com Tito Lívio<br />
22.27, mas difere do mesmo no que respeita às escolhas das legiões,<br />
pois aquelas que Plutarco atribui a <strong>Fábio</strong>, são as mesmas que Tito<br />
Lívio diz terem sido escolhidas por Minúcio.<br />
57 Os dados dos capítulos 11 e 12 coinci<strong>de</strong>m com os testemunhos<br />
<strong>de</strong> Tito Lívio 22.28-29 e Políbio, 3.104-105.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
um acampamento e suficiente para todas as precisões 58 .<br />
2. A planície que a ro<strong>de</strong>ava, vista <strong>de</strong> longe, parecia<br />
uniforme por ser calva e lisa, mas havia nela alguns fossos<br />
não profundos e também covas. Apesar <strong>de</strong> ser possível<br />
tomar, com facilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> forma secreta, a colina,<br />
Aníbal não o quis fazer, mas <strong>de</strong>ixou-a no meio como<br />
pretexto para <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar o combate. 3. Quando viu<br />
Minúcio separado <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, espalhou, durante a noite,<br />
alguns soldados pelos fossos e pelas covas 59 , e no dia<br />
seguinte enviou ostensivamente não muitos para tomar<br />
a colina, <strong>de</strong> forma a atrair Minúcio para se encontrarem<br />
naquele lugar. 4. E assim suce<strong>de</strong>u. Primeiro, este enviou<br />
a infantaria ligeira, <strong>de</strong>pois a cavalaria, e, por último,<br />
vendo que Aníbal vinha em socorro daqueles que se<br />
encontravam na colina, acabou por pôr todo o exército<br />
em or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> batalha.<br />
5. Desenca<strong>de</strong>ou-se um violento combate e os<br />
Romanos <strong>de</strong>fendiam-se dos soldados cartagineses que<br />
atacavam a partir do alto da colina; o combate permanecia<br />
incerto, até que Aníbal, vendo que Minúcio caíra<br />
bem na armadilha, e que tinha retaguarda <strong>de</strong>scoberta,<br />
vulnerável ao ataque inimigo, fez sinal. 6. Nisto, estes<br />
soldados levantaram-se, ao mesmo tempo, <strong>de</strong> muitos<br />
lugares e com gritaria atacaram e foram matando os<br />
que estavam nas últimas filas. A <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e o terror<br />
58 Para uma versão mais <strong>de</strong>talhada, vi<strong>de</strong> Políbio 3.104 sqq. e<br />
Tito Lívio 22.28 sqq.<br />
59 Segundo Tito Lívio (22.28), tratava-se <strong>de</strong> cinco mil cavaleiros<br />
e soldados a pé, enquanto Políbio (3.104) faz referência a cinco mil<br />
homens armados e outra infantaria, além <strong>de</strong> quinhentos elementos<br />
<strong>de</strong> cavalaria.<br />
202
203<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
que se apo<strong>de</strong>raram dos Romanos eram in<strong>de</strong>scritíveis e<br />
a audácia do próprio Minúcio caiu por terra. Ele não<br />
fazia mais do <strong>de</strong>itar um olhar inquieto a cada um dos<br />
seus oficiais; nenhum se atrevia a permanecer no seu<br />
posto, lançavam-se numa fuga sem salvação possível. 7.<br />
Os cavaleiros Númidas, que já dominavam a situação,<br />
andavam em círculo na planície e matavam os que<br />
fugiam.<br />
12. Os Romanos encontravam-se numa situação<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraça, mas o perigo não escapou a <strong>Fábio</strong>. Com<br />
efeito, prevendo, como parece, o que ia acontecer, tinha já<br />
colocado as suas forças em linha <strong>de</strong> batalha e providas <strong>de</strong><br />
armas; preocupava-se em saber o que se passava, não por<br />
meio <strong>de</strong> mensageiros, mas tendo ele próprio uma atalaia<br />
diante da paliçada. 2. Quando viu que o exército estava<br />
cercado e em <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e ouviu os gritos daqueles que,<br />
não mais resistindo, se lançavam em fuga aterrorizados,<br />
bateu na coxa 60 e, suspirando profundamente, disse para<br />
aqueles que estavam perto <strong>de</strong> si: “Por Héracles! Como<br />
Minúcio se per<strong>de</strong>u mais rápido do que eu esperava,<br />
mas já tar<strong>de</strong> para o que foi a sua precipitação!”. 3. Em<br />
seguida, mandou o exército <strong>de</strong>senrolar os estandartes o<br />
mais rápido possível, or<strong>de</strong>nou que o seguissem e gritou:<br />
“Agora, soldados, que cada um, recordando Marco<br />
Minúcio, corra em sua ajuda, pois é um homem corajoso<br />
e um patriota, e se com a sua precipitação em expulsar<br />
o inimigo cometeu algum erro, logo lhe pediremos<br />
contas.” 4. Com efeito, assim que apareceu, afugentou<br />
60 Gesto peculiar ao herói homérico. Cf. Ilíada 16.124-5.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
e dispersou os cavaleiros Númidas, que cercavam<br />
a planície; atacou <strong>de</strong>pois aqueles que combatiam e<br />
estavam na retaguarda dos Romanos e matou aqueles<br />
que resistiam; os restantes, por sua vez, antes <strong>de</strong> sofrer e<br />
receber em troca o mesmo que eles tinham infligido aos<br />
Romanos, ce<strong>de</strong>ram e puseram-se em fuga. 5. Aníbal,<br />
vendo a mudança da situação e que <strong>Fábio</strong>, com um vigor<br />
superior à sua ida<strong>de</strong>, empurrando, abria caminho no<br />
meio dos combatentes, para subir a colina em socorro <strong>de</strong><br />
Minúcio, suspen<strong>de</strong>u o combate. Com a trombeta, <strong>de</strong>u<br />
sinal <strong>de</strong> retirada, fez voltar os Cartagineses à paliçada e,<br />
contentes, regressaram também os Romanos. 6. Diz-se<br />
que, na volta, o próprio Aníbal disse aos seus camaradas,<br />
em tom jocoso, algo semelhante sobre <strong>Fábio</strong>: “Não vos<br />
tinha já eu avisado, várias vezes, que essa nuvem que<br />
pendia sobre os cumes, um dia, haveria <strong>de</strong> rebentar em<br />
granizo e tempesta<strong>de</strong>s?” 61 .<br />
13. Depois da batalha, <strong>Fábio</strong> <strong>de</strong>spojou todos os<br />
inimigos que tinha matado e retirou-se sem proferir<br />
palavra alguma, insolente ou ofensiva, sobre o seu<br />
colega. Quanto a Minúcio, reuniu o seu exército e<br />
2. disse: “Soldados, o não errar em gran<strong>de</strong>s empresas<br />
está acima da condição humana. Contudo, errar e<br />
aproveitar os insucessos como lição para o futuro, isso<br />
é próprio do homem bom e sensato. 3. Na verda<strong>de</strong>,<br />
eu confesso que se, por alguns motivos, me queixo da<br />
fortuna, mais razões tenho para a bendizer. O que, em<br />
tanto tempo, não me <strong>de</strong>i conta, num instante <strong>de</strong> um<br />
61 Cf. Tito Lívio 22.30.10 e Plutarco, Obras Morais 195 D.<br />
204
205<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
só dia o aprendi: reconheci que não tenho capacida<strong>de</strong><br />
para mandar nos outros, mas preciso que outro man<strong>de</strong><br />
em mim, e não <strong>de</strong>vo aspirar a vencer aqueles para quem<br />
é mais belo ser <strong>de</strong>rrotado.<br />
4. Para vós, daqui em diante, não haverá outro<br />
chefe além do ditador; mas como forma <strong>de</strong> gratidão<br />
para com ele, eu mesmo irei à vossa frente para lhe<br />
<strong>de</strong>monstrar o nosso reconhecimento, assegurando-lhe<br />
que serei o primeiro a obe<strong>de</strong>cer-lhe e a cumprir o que<br />
ele me or<strong>de</strong>nar”. 5. Depois <strong>de</strong>stas palavras, or<strong>de</strong>nou que<br />
se erguessem as águias e que todos o seguissem, levou<br />
o seu exército para a paliçada <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> e caminhou<br />
em direcção à tenda do general, perante a admiração<br />
e espanto <strong>de</strong> todos. 6. Quando <strong>Fábio</strong> saiu, Minúcio,<br />
colocou diante <strong>de</strong> si os estandartes e chamou-o <strong>de</strong> pai<br />
em alta voz. Os soldados saudavam os <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> como<br />
patronos, título que os libertos atribuem a quem os<br />
libertou.<br />
7. Feito silêncio, Minúcio disse: “Duas vitórias,<br />
ó ditador, conquistaste neste mesmo dia: uma face a<br />
Aníbal, pela tua coragem, e outra face ao teu colega<br />
pela prudência e bonda<strong>de</strong>. Se com uma nos salvaste,<br />
com a outra a todos nos <strong>de</strong>ste uma lição. Vítimas <strong>de</strong><br />
uma vergonhosa <strong>de</strong>rrota face a Aníbal, mas bela e<br />
libertadora face a ti. 8. Como um pai benévolo te<br />
saúdo, pois não tendo outro título mais honroso,<br />
já que maior do que a gratidão <strong>de</strong>vida a um pai é<br />
a gratidão que eu te <strong>de</strong>vo. Daquele recebi apenas a<br />
vida, enquanto <strong>de</strong> ti recebi a salvação, como muitos
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
outros 62 ”. 9. Depois <strong>de</strong>stas palavras, acercou-se<br />
<strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> e abraçou-o. O mesmo se via fazerem os<br />
soldados: abraçavam-se e beijavam-se uns aos outros,<br />
<strong>de</strong> tal modo que o acampamento estava pleno <strong>de</strong><br />
júbilo e <strong>de</strong> lágrimas <strong>de</strong> alegria 63 .<br />
14. Depois <strong>de</strong>sta campanha, <strong>Fábio</strong> <strong>de</strong>pôs o cargo<br />
e <strong>de</strong>signaram-se novos cônsules 64 . Destes, os primeiros<br />
nomeados continuaram a mesma táctica bélica: evitar<br />
combater com Aníbal em batalha campal, ir em socorro<br />
dos aliados para prevenir revoltas 65 . 2. Contudo, quando<br />
Terêncio Varrão 66 foi elevado a cônsul, <strong>de</strong> família nada<br />
ilustre, ficou conhecido pela sua atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>magógica e<br />
temerária. Era evi<strong>de</strong>nte que, pela sua inexperiência e<br />
excesso <strong>de</strong> ousadia, iria arriscar, como quem joga um<br />
dado, o <strong>de</strong>stino do Estado. Gritava nas assembleias que<br />
a guerra ia continuar, enquanto a cida<strong>de</strong> se servisse <strong>de</strong><br />
<strong>Fábio</strong>s como generais e que, num mesmo dia, ele veria e<br />
venceria os inimigos. 3. Ao mesmo tempo que dizia isto,<br />
reunia e alistava um exército tão gran<strong>de</strong> como nunca<br />
antes os Romanos tinham utilizado contra nenhum<br />
inimigo: oitenta e oito mil 67 foram os homens dispostos<br />
62 Estes dois discursos <strong>de</strong> Minúcio constam já em Tito Lívio<br />
22.29 e 30.<br />
63 Cf. Tito Lívio 22.29.7-11 e 30.1-7.<br />
64 Os cônsules Gneu Servílio Gémino e M. Atílio Régulo<br />
recuperam o po<strong>de</strong>r.<br />
65 Cf. Tito Lívio 22.32.1-3.<br />
66 Cônsul em 216 a.C. Tito Lívio (22.25) refere que seu pai era<br />
talhante e que se ocupava do pequeno comércio.<br />
67 Políbio 3.107.9 faz referência a oito legiões <strong>de</strong> 5000 homens<br />
cada, às quais se juntaram os aliados.<br />
206
207<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
para a batalha. Este era um motivo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> temor<br />
para <strong>Fábio</strong> e para os Romanos sensatos, pois não tinham<br />
esperança <strong>de</strong> que a cida<strong>de</strong> recuperasse se uma <strong>de</strong>rrota<br />
fizesse per<strong>de</strong>r tamanha juventu<strong>de</strong>. 4. <strong>Fábio</strong> dirigiu-se ao<br />
colega <strong>de</strong> Terêncio, Paulo Emílio, homem <strong>de</strong> experiência<br />
militar que não era grato ao povo e estava receoso em<br />
relação à plebe, na sequência <strong>de</strong> uma con<strong>de</strong>nação que<br />
lhe fora atribuída num processo contra o Estado 68 .<br />
<strong>Fábio</strong> incitava-o e encorajava-o a refrear a loucura do<br />
colega, 5. Advertiu-o <strong>de</strong> que a sua luta pela pátria não<br />
seria tanto contra Aníbal quanto contra Terêncio, pois<br />
apressavam-se ambos para a batalha, um por não estar<br />
ciente da força do inimigo e o outro por estar ciente<br />
da fraqueza da sua posição. 6. “Eu, Paulo”, disse <strong>Fábio</strong>,<br />
“mereço, no que toca à questão <strong>de</strong> Aníbal, mais crédito<br />
do que Terêncio, e asseguro-te que, se ninguém lhe<br />
apresentar batalha este ano, ele sucumbirá se permanecer<br />
ou fugirá e abandonará a Itália; pois mesmo agora que<br />
nos parece ter vencido e dominado a situação, nenhum<br />
dos seus inimigos passou para o seu lado e das forças da<br />
pátria não sobrará, no total, nem sequer um terço.” 7.<br />
A isto, dizem que Paulo respon<strong>de</strong>u: “Para mim, <strong>Fábio</strong>,<br />
se olho pelos meus interesses, é melhor cair <strong>de</strong>baixo das<br />
lanças dos inimigos novamente do que submeter-me<br />
68 O patrício L. Emílio Paulo foi cônsul em 219 a.C. e obteve o<br />
triunfo contra os Ilírios. O seu filho, L. Emílio Paulo da Macedónia,<br />
foi o vencedor <strong>de</strong> Perseu na batalha <strong>de</strong> Pidna (168 a.C.), sobre o<br />
qual Plutarco escreveu uma biografia (Timoleonte – Emílio Paulo).<br />
Ele e o seu colega M. Lívio Salinator criticaram os seus chefes pelo<br />
facto <strong>de</strong> os <strong>de</strong>spojos <strong>de</strong> guerra terem sido mal repartidos. Segundo<br />
Tito Lívio 22.35.5, Emílio Paulo não foi con<strong>de</strong>nado, ao contrário<br />
do seu colega.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
aos votos dos cidadãos. No entanto, se a República se<br />
encontra em tal situação, esforçar-me-ei por parecer a<br />
ti um bom general, mais do que a todos os outros, que<br />
me pressionam para o contrário.” Com estes intentos,<br />
partiu Paulo para a guerra 69 .<br />
15. Terêncio, contudo, que se tinha proposto a<br />
comandar em dias alternados e estava acampado próximo<br />
<strong>de</strong> Aníbal, junto ao rio Áufido 70 e à cida<strong>de</strong> chamada<br />
Canas, ao amanhecer lançou o sinal <strong>de</strong> combate – uma<br />
túnica púrpura que se esten<strong>de</strong> sobre a tenda do general<br />
– <strong>de</strong> tal modo que os Cartagineses, a princípio, ficaram<br />
perturbados, vendo a ousadia do general e o numeroso<br />
exército, enquanto eles não eram nem meta<strong>de</strong>. 2.<br />
Aníbal, porém, or<strong>de</strong>nou às suas forças que pegassem<br />
nas armas, subiu a cavalo e, acompanhado <strong>de</strong> alguns<br />
homens, subiu a uma colina para ver os inimigos que se<br />
estavam formados em linha <strong>de</strong> batalha.<br />
3. Um elemento da comitiva <strong>de</strong> Aníbal, chamado<br />
Gíscon 71 , da mesma condição que ele, comentou que<br />
lhe parecia <strong>de</strong>scomunal a quantida<strong>de</strong> dos inimigos,<br />
ao que Aníbal, franzindo a face, retorquiu: “Outra<br />
coisa, Gíscon, ainda mais extraordinária te esqueceste<br />
<strong>de</strong> admirar.” “Qual?”, perguntou Gíscon. “É que, <strong>de</strong><br />
todos quantos ali estão”, respon<strong>de</strong>u o general “nenhum<br />
se chama Gíscon.” Esta graça tão inesperada fez rir<br />
quantos lá estavam, e, <strong>de</strong>scendo a colina, não <strong>de</strong>ixavam<br />
<strong>de</strong> a transmitir a todos os que ali se encontravam, <strong>de</strong> tal<br />
69 Cf. Tito Lívio 22.39 e 40, 1-3.<br />
70 Rio da região <strong>de</strong> Apúlia, actualmente <strong>de</strong>signado <strong>de</strong> Ofanto.<br />
71 Nem Políbio, nem Tito Lívio fazem referência a esta figura.<br />
208
209<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
forma que a graça passou por muitos e nem a escolta<br />
<strong>de</strong> Aníbal conseguiu ficar séria. 4. A visão <strong>de</strong> tanto riso<br />
encheu os Cartagineses <strong>de</strong> coragem, que pensaram que,<br />
se o seu general dizia piadas em face do perigo, isso era<br />
sinal evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>sprezava profundamente 72 .<br />
16. Naquela batalha, Aníbal serviu-se <strong>de</strong> duas<br />
estratégias. A primeira, em relação ao terreno: colocou<br />
as suas tropas <strong>de</strong> forma a que ficasse <strong>de</strong> costas para o<br />
vento, pois um furacão, semelhante a um sopro <strong>de</strong> fogo,<br />
tinha-se <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ado e levantado, daquelas planícies<br />
arenosas e abertas, uma terrível poeira, que se alçava por<br />
cima da falange dos Cartagineses contra os Romanos e<br />
agredia-lhe as faces, fazendo-os voltar para trás e alterar<br />
a formação 73 . 2. A segunda estratégia dizia respeito à<br />
forma <strong>de</strong> dispor as tropas: colocou em ambos os lados<br />
do centro aquela que é a parte mais forte e combativa do<br />
exército, tendo enchido o centro com as menos capazes,<br />
utilizando-os como uma saliência que se <strong>de</strong>stacava do<br />
resto da falange. Instruiu as melhores tropas para que,<br />
quando os Romanos abrissem um espaço na frente e se<br />
precipitassem para o centro, que ce<strong>de</strong>ndo pela acção da<br />
força <strong>de</strong>ixaria uma reentrância; que eles permanecessem<br />
no interior da falange, voltando-se rapidamente<br />
<strong>de</strong> ambos os lados, os atacassem pelos flancos e os<br />
cercassem, fechando a retaguarda. 3. Foi esta manobra,<br />
ao que parece, que produziu maior mortanda<strong>de</strong>, já que o<br />
centro ce<strong>de</strong>u e absorveu os Romanos que os perseguiam.<br />
72 Sobre a dimensão apotropaica do riso, vi<strong>de</strong> Halliwell (2008:<br />
199-201).<br />
73 Cf. Tito Lívio 22.46.8.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
Nisto, a falange <strong>de</strong> Aníbal alterou o esquema e adoptou<br />
a forma em meia-lua e então os oficiais das melhores<br />
tropas, carregando com os seus homens uns à esquerda,<br />
outros à direita, lançaram-se sobre os flancos <strong>de</strong>scobertos<br />
do inimigo; e, com isto, fecharam no centro e mataram<br />
todos os que não se apressaram a fugir daquele enlace.<br />
4. Conta-se também que, à cavalaria dos<br />
Romanos, aconteceu um inesperado aci<strong>de</strong>nte. Paulo,<br />
segundo parece, foi <strong>de</strong>itado abaixo pelo seu cavalo,<br />
que se tinha ferido, e aqueles que estavam perto <strong>de</strong><br />
si abandonaram os cavalos e foram a pé, a partir <strong>de</strong><br />
vários sítios, para o socorrem. 5. Quando os cavaleiros<br />
viram isto, pensando que se tratava <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m<br />
geral, <strong>de</strong>sceram todos do cavalo e lutaram a pé com<br />
os inimigos. Deparando-se com tal situação, Aníbal<br />
disse “antes isto do que terem-mos entregado atados.” 74<br />
6. Mas estas coisas são transmitidas por aqueles que<br />
escreveram histórias muito pormenorizadas 75 .<br />
Dos cônsules, Varrão chegou a cavalo com alguns<br />
à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Venúsia, enquanto que Paulo, entre o<br />
abismo e a onda daquela fuga, com o corpo coberto <strong>de</strong><br />
feridas por causa dos muitos dardos e com o espírito<br />
oprimido por tamanho sofrimento, sentou-se junto a<br />
uma pedra à espera <strong>de</strong> receber o golpe <strong>de</strong> misericórdia<br />
dos inimigos 76 . 7. Contudo, por causa da abundância do<br />
74 Cf. Tito Lívio 22.49.<br />
75 Aqueles que escreveram relatos mais <strong>de</strong>talhados são Políbio<br />
(3.110-117) e Tito Lívio (22.44-50). Com efeito, no início da vida<br />
<strong>de</strong> Alexandre, Plutarco acentua a diferença estes os dois registos, a<br />
biografia, que relata o percurso do indivíduo, e a história, <strong>de</strong> tema<br />
mais amplo.<br />
76 Cf. Tito Lívio 22.38.6-13.<br />
210
211<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
sangue, que lhe <strong>de</strong>sfigurava a cabeça e o rosto, muitos<br />
não o distinguiam, e amigos e servidores que passaram<br />
não o reconheceram. Apenas Cornélio Lêntulo 77 , jovem<br />
patrício, o viu e se apercebeu <strong>de</strong> quem era, <strong>de</strong>sceu do<br />
cavalo, acercou-se <strong>de</strong>le e exortou-o a salvar-se para bem<br />
dos cidadãos, que nunca antes precisaram tanto <strong>de</strong> um<br />
bom general. 8. Este, contudo, não aceitou o pedido e<br />
obrigou o jovem, apesar das lágrimas, a montar <strong>de</strong> novo<br />
o cavalo e logo, tomando a sua mão direita, levantou-se<br />
ao mesmo tempo que ele e disse: “Anuncia, Lêntulo,<br />
a <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, e sê tu mesmo testemunha, <strong>de</strong> que<br />
Paulo Emílio permaneceu fiel às suas resoluções até ao<br />
fim, e que não quebrou nenhum acordo com ele, mas<br />
foi vencido primeiro por Varrão e <strong>de</strong>pois por Aníbal.”<br />
9. Com tais instruções, <strong>de</strong>spediu-se <strong>de</strong> Lêntulo,<br />
abandonou-se às mãos dos seus assassinos e morreu.<br />
Conta-se que, nesta batalha, caíram cinquenta mil<br />
Romanos, foram feitos prisioneiros quatro mil e que,<br />
<strong>de</strong>pois do combate, foram capturados não menos <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />
mil em ambos os campos.<br />
17. Depois <strong>de</strong> tamanha vitória, os amigos <strong>de</strong><br />
Aníbal incitavam-no a aproveitar a fortuna, a seguir<br />
os inimigos em fuga para entrar com eles na cida<strong>de</strong> e,<br />
no quinto dia da vitória, jantar no Capitólio 78 . Com<br />
efeito, não é fácil dizer por que razão terá recuado nessa<br />
intenção, mas parece que a hesitação e receio foram<br />
77 Gneu Cornélio Lêntulo era então tribunus militum. Em 201<br />
a.C., seria eleito cônsul e comandante da frota na Sicília.<br />
78 Cf. Catão, Origens fr. 86 Peter; Tito Lívio 22.51.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
mais obra <strong>de</strong> algum génio ou <strong>de</strong>us que o <strong>de</strong>moveram 79 .<br />
2. Por isso, dizem que o cartaginês Barca, enraivecido,<br />
terá comentado: “Tu sabes vencer, mas não sabes tirar<br />
proveito da vitória.” 80 3. Não obstante, a vitória trouxe<br />
uma gran<strong>de</strong> mudança. Antes da batalha, Aníbal não<br />
dispunha, em Itália, nem <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>, nem <strong>de</strong> mercado ou<br />
<strong>de</strong> porto, e só com dificulda<strong>de</strong> conseguia provi<strong>de</strong>nciar<br />
o indispensável ao exército através do roubo; não havia<br />
qualquer base firme para empreen<strong>de</strong>r uma batalha, senão<br />
através da pilhagem e indo <strong>de</strong> um lado para outro com<br />
o exército, como um bando <strong>de</strong> piratas. Naquela altura,<br />
pelo contrário, quase toda a Itália ficou submetida à sua<br />
obediência.<br />
4. Na verda<strong>de</strong>, os povos mais numerosos e<br />
importantes a ele a<strong>de</strong>riram voluntariamente, e até mesmo<br />
Cápua, a cida<strong>de</strong> mais importante <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Roma, a ele<br />
se juntou. Com efeito, uma gran<strong>de</strong> adversida<strong>de</strong> serve<br />
para provar não só, como diz Eurípi<strong>de</strong>s 81 , quem são os<br />
amigos, mas também os generais sensatos. 5. Assim, o<br />
que antes da batalha se pensava ser cobardia e apatia da<br />
parte <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, imediatamente a seguir à batalha não<br />
parecia já perspicácia humana, mas alguma obra da<br />
inteligência celeste ou divina, pois previra com muita<br />
antecipação acontecimentos futuros e que mesmo agora<br />
pareciam apenas verosímeis para aqueles que os sofriam.<br />
6. Por isso, assim que Roma <strong>de</strong>positou nele as últimas<br />
79 Segundo Sílio Itálico 10.337, Juno teria enviado a Aníbal um<br />
sonho para o dissuadir <strong>de</strong> avançar sobre Roma.<br />
80 Este comentário foi igualmente referido por Tito Lívio 22.51.<br />
2-4. 81 Verso <strong>de</strong> uma tragédia perdida (fr. 993 Nauck 2 ).<br />
212
213<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
esperanças e se refugiou na resolução daquele homem<br />
como em um templo e altar, foi essa a primeira e<br />
principal razão pela qual a cida<strong>de</strong> se manteve firme, em<br />
vez <strong>de</strong> dispersar, como suce<strong>de</strong>u *** durante a invasão<br />
gaulesa. 7. Com efeito, ele que, quando parecia não<br />
haver nenhum perigo, se revelava pru<strong>de</strong>nte e pessimista,<br />
naquela altura, quando todos se tinham entregado a<br />
uma dor infinita e ao temor, sem capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reacção,<br />
era o único a passear tranquilamente pela cida<strong>de</strong> com<br />
um passo calmo, <strong>de</strong> aparência serena e falava às pessoas<br />
com mansidão. Eliminou os lamentos femininos,<br />
eliminou os ajuntamentos dos que se agrupavam em<br />
espaços públicos para lamentar as <strong>de</strong>sgraças em comum.<br />
Convenceu, o Senado a reunir-se e a inspirar confiança<br />
aos magistrados, tornou-se assim a força e o suporte e<br />
tinha todos os olhares virados para si.<br />
18. Colocou então vigias nas portas, <strong>de</strong> modo a<br />
evitar que a multidão saísse e abandonasse a cida<strong>de</strong>, e<br />
fixou lugar e tempo para o lamento, permitindo, a quem<br />
quisesse, chorar em casa durante trinta dias. Contudo,<br />
terminado este período, teria que eliminar todo o lamento<br />
e purificar a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tais manifestações, 2. pois as<br />
celebrações <strong>de</strong> Deméter 82 teriam lugar naqueles dias, pelo<br />
que pareceu melhor cessar completamente os sacrifícios<br />
e a procissão, antes que se evi<strong>de</strong>nciasse a gran<strong>de</strong>za do<br />
<strong>de</strong>sastre com a fraca concorrência e o <strong>de</strong>salento dos<br />
assistentes. Além disso, é também agradável aos <strong>de</strong>uses ser<br />
82 Designação correspon<strong>de</strong>nte à <strong>de</strong>usa Ceres.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
honrados por homens contentes 83 . 3. Nisto, cumpriu-se<br />
tudo quanto os sacerdotes aconselharam para propiciar<br />
os <strong>de</strong>uses e afastar os males. Com efeito, enviou-se<br />
também a Delfos, para consultar o oráculo, Pictor 84 ,<br />
um familiar <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>. Quando se <strong>de</strong>scobriu que as duas<br />
Vestais se <strong>de</strong>ixaram seduzir, uma foi sepultada viva 85 ,<br />
conforme o costume, enquanto que a outra, infligiu a<br />
morte a si mesma. 4. Contudo, o mais admirável foi a<br />
generosida<strong>de</strong> e a clemência da cida<strong>de</strong>, quando o cônsul<br />
Varrão regressava da sua fuga – tal como regressa alguém<br />
que se comporta <strong>de</strong> forma vergonhosa e lamentável,<br />
humilhado e cabisbaixo –, o senado e todo o povo foram,<br />
ao seu encontro até às portas da cida<strong>de</strong> para o receber. 5.<br />
Os magistrados e os principais do Senado, entre os quais<br />
se encontrava <strong>Fábio</strong>, quando se fez silêncio, elogiaramno<br />
por não ter renunciado à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tamanho<br />
infortúnio e por estar ali presente para <strong>de</strong>sempenhar o<br />
seu cargo, por velar pelas leis dos cidadãos e por achar<br />
que era ainda possível a salvação 86 .<br />
83 Cf. Tito Lívio 22.56.4. Tratava-se do sacrum anniversarium<br />
Cereris.<br />
84 Cf. Tito Lívio 22.57.2-6. Trata-se <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> Pictor, o primeiro<br />
historiador romano. Como membro do Senado, combateu contra<br />
os Cartagineses na Segunda Guerra Púnica (218-201 a.C.). Após<br />
o <strong>de</strong>sastre <strong>de</strong> Canas, foi enviado numa embaixada ao oráculo <strong>de</strong><br />
Delfos em 216 a.C. A sua obra, hoje perdida, relata os primeiros<br />
tempos da história <strong>de</strong> Roma e rapidamente passa para o momento<br />
histórico coevo. Escreveu em grego, não só pela qualida<strong>de</strong> literária<br />
<strong>de</strong>sta língua, mas também para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a política romana no<br />
mundo grego. Mais tar<strong>de</strong>, historiadores como Políbio, Dionísio <strong>de</strong><br />
Halicarnasso e Tito Lívio recorreram à sua obra como fonte.<br />
85 Cf. Plutarco, Numa 10.4 sqq.<br />
86 Cf. Tito Lívio 22.61.14.<br />
214
215<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
19. Quando souberam que Aníbal, <strong>de</strong>pois<br />
da batalha, se tinha afastado para o outro extremo<br />
da Itália, ganharam confiança e enviaram outra vez<br />
generais e exércitos. Daqueles, os mais ilustres eram<br />
<strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> e Cláudio Marcelo 87 , ambos igualmente<br />
admirados, apesar das suas orientações políticas serem<br />
quase totalmente opostas.<br />
2. Quanto a Marcelo, como se disse na biografia<br />
escrita sobre ele 88 , distinguia-se pela sua acção brilhante<br />
e impetuosa, como um homem <strong>de</strong> braço <strong>de</strong> ferro e <strong>de</strong><br />
natureza semelhante àqueles a quem Homero chama<br />
sobretudo <strong>de</strong> “belicosos” e “orgulhosos” 89 ; por isso,<br />
travou os seus primeiros combates com uma táctica<br />
bélica vigorosa e temerária e, a um homem ousado como<br />
Aníbal, opunha igualmente a sua audácia. 3. <strong>Fábio</strong>, por<br />
outro lado, levando em mente os planos iniciais, tinha a<br />
esperança <strong>de</strong> que, se ninguém combatesse ou provocasse<br />
Aníbal, ele se prejudicaria a si mesmo e acabaria por<br />
<strong>de</strong>sgastar-se com a guerra, como acontece com a energia<br />
do corpo <strong>de</strong> um atleta, quando se submete a um esforço<br />
excessivo e exaustivo. 4. Por esta razão, disse Posidónio 90<br />
87 Cônsules em 214 a.C.<br />
88 Cf. Plutarco, Marcelo 1 e 9.<br />
89 E.g. Ilíada 3.36 e 16. 65.<br />
90 FGrHist 87 F 42. Cf. Plutarco, Marcelo 9.7. Posidónio<br />
<strong>de</strong> Apameia (sécs. II-I a.C.), filósofo estóico, escreveu um relato<br />
histórico em cinquenta e dois livros, que abarcava acontecimentos<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 146 a.C. até à ditadura <strong>de</strong> Sila. Consi<strong>de</strong>rado o pensador<br />
mais influente do Império Romano seria comparável apenas a<br />
Aristóteles, superando-o mesmo no que respeitava à unida<strong>de</strong><br />
sistemática da sua ciência. Representante do Estoicismo médio,<br />
foi discípulo <strong>de</strong> Panécio em Atenas e mestre <strong>de</strong> ilustres romanos<br />
como Cícero e Pompeu. Como é o único autor mencionado nesta
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
que os Romanos lhe chamariam o escudo e a Marcelo, a<br />
espada e que a firmeza e a segurança <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, misturadas<br />
com o ímpeto <strong>de</strong> Marcelo, eram a salvação dos Romanos.<br />
5. Por um lado, Aníbal confrontando-se muitas vezes<br />
com este, como um rio violento, sacudia e aniquilava a<br />
sua força; por outro, <strong>Fábio</strong>, semelhante a um rio que fluía<br />
sem ruído e pouco a pouco, consumia continuamente as<br />
suas bordas. Assim chegou a um impasse que consistia<br />
em per<strong>de</strong>r o ânimo quando lutava com Marcelo e recear<br />
<strong>Fábio</strong> quando com ele não lutava. 6. Em suma, po<strong>de</strong><br />
dizer-se que a maior parte do tempo se fez guerra contra<br />
estes, ora generais, ora procônsules, ora cônsules e cada<br />
um <strong>de</strong>les foi cônsul cinco vezes 91 . Marcelo, porém,<br />
durante o seu quinto consulado, caiu numa emboscada<br />
e morreu 92 . <strong>Fábio</strong>, por outro lado, muitas vezes foi alvo<br />
<strong>de</strong> todo o tipo <strong>de</strong> ardis e provas, mas nada resultou.<br />
Excepto uma única vez em que se lhe preparou uma<br />
cilada que esteve a ponto <strong>de</strong> o enganar: 7. Aníbal forjou<br />
umas cartas dos cidadãos mais influentes e po<strong>de</strong>rosos do<br />
Metaponto e remeteu-as a <strong>Fábio</strong>, como se a cida<strong>de</strong> a ele<br />
se fosse entregar caso ele se apresentasse; e aqueles que<br />
o pediam esperariam que ele chegasse e que estivesse<br />
nas proximida<strong>de</strong>s. 8. Estas cartas convenceram, com<br />
biografia e na <strong>de</strong> Marcelo, por quatro vezes, é verosímil que tenha<br />
sido uma das principais fontes <strong>de</strong> Plutarco na elaboração da Vida<br />
<strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>.<br />
91 Cláudio Marcelo foi eleito cônsul em 222, 215, 214, 210<br />
e 208 a.C., enquanto que <strong>Fábio</strong> granjeara essa distinção em 233,<br />
228, 215, 214 e 209 a.C., tal como o seu bisavô, Q. F. <strong>Máximo</strong><br />
Ruliano.<br />
92 Em 208 a.C. na Lucânia. Vi<strong>de</strong> Plutarco, Marcelo 29. Cf. Tito<br />
Lívio 27.26-27.<br />
216
217<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
efeito, <strong>Fábio</strong>, e estava disposto a actuar durante a noite<br />
com uma parte do exército. Contudo, como o vaticínio<br />
do voo das aves não foi favorável, <strong>de</strong>sistiu. Em pouco<br />
tempo se <strong>de</strong>scobriu que a carta a ele dirigida tinha sido<br />
escrita por Aníbal para o enganar, e que este o aguardava<br />
numa armadilha ao pé da cida<strong>de</strong>. Este sucesso, porém,<br />
teríamos <strong>de</strong> o atribuir ao favor dos <strong>de</strong>uses 93 .<br />
20. Em relação ao afastamento das cida<strong>de</strong>s e<br />
das revoltas dos aliados, <strong>Fábio</strong> pensava que <strong>de</strong>viam ser<br />
controlados e trazidos <strong>de</strong> volta à razão <strong>de</strong> forma suave<br />
e afável, antes <strong>de</strong> investigar qualquer suspeita ou ser<br />
<strong>de</strong>masiado severo para com os suspeitos. 2. Diz-se que,<br />
ao saber que um soldado marso 94 , o primeiro entre os<br />
aliados na bravura na linhagem, tinha falado <strong>de</strong> revolta<br />
com alguns do acampamento, <strong>Fábio</strong> não se irritou<br />
com ele, antes admitiu que o seu mérito não tinha sido<br />
reconhecido e disse, naquele momento, que a culpa era<br />
dos generais por distribuírem as recompensas conforme<br />
os favores e não <strong>de</strong> acordo com o mérito; mas que daí<br />
em diante, seria ele o culpado se não lhe manifestasse<br />
a sua vonta<strong>de</strong> e a ele não recorresse quando tivesse<br />
alguma reclamação. 3. Dito isto, ofereceu-lhe um cavalo<br />
<strong>de</strong> guerra e distinguiu-o com outros prémios <strong>de</strong> valor,<br />
<strong>de</strong> forma que, a partir <strong>de</strong> então, aquele homem foi um<br />
93 Este episódio data do ano 209 a.C. Tito Lívio (27.16.9-16)<br />
apresenta um testemunho mais completo, referindo que a armadilha<br />
tinha sido confessada pelos próprios habitantes <strong>de</strong> Metaponto que<br />
vieram pedir que <strong>Fábio</strong> se aproximasse da cida<strong>de</strong>.<br />
94 Valério <strong>Máximo</strong> (7.3.7) refere que se trata <strong>de</strong> um soldado<br />
originário <strong>de</strong> Nola <strong>de</strong> nome Mário Estatílio. Vi<strong>de</strong> também Sobre os<br />
varões ilustres 43.5; Frontino 4.7.36.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> e zelo. 4. Com efeito, <strong>Fábio</strong> achava<br />
incompreensível que os criadores <strong>de</strong> cavalos e <strong>de</strong> cães <strong>de</strong><br />
caça recorressem a cuidados, atenções e à alimentação,<br />
mais do que a açoites e coleiras, para retirar aos animais<br />
a aspereza, o temperamento selvagem e a rebeldia.<br />
Aquele que governa os homens, pelo contrário, não<br />
faz da benevolência e da mansidão o meio principal<br />
para corrigir os <strong>de</strong>feitos, mas age com mais dureza e<br />
violência do que aquela com que os camponeses tratam<br />
as figueiras, pereiras e oliveiras selvagens, quando as<br />
cultivam e as convertem em oliveiras, pereiras e figueiras<br />
mansas, respectivamente 95 . 5. Os oficiais informaramno<br />
sobre outro homem <strong>de</strong> origem lucana que fugira do<br />
acampamento e abandonara muitas vezes o seu posto.<br />
<strong>Fábio</strong> perguntou-lhes como era ele visto em tudo o<br />
resto. 6. Com efeito, todos testemunharam que não seria<br />
fácil encontrar outro soldado igual, ao mesmo tempo<br />
que lhe contavam algumas das suas notáveis proezas e<br />
façanhas. Questionou, então, a causa da sua indisciplina<br />
e <strong>de</strong>scobriu que, por estar dominado pelo amor a uma<br />
mulher, se arriscava a fazer gran<strong>de</strong>s caminhadas longe<br />
do acampamento, <strong>de</strong> cada vez que a visitava. 7. Enviou<br />
alguns, sem que ele o soubesse, e fazendo vir a mulher,<br />
escon<strong>de</strong>ram-na na tenda. Chamou, em seguida, o<br />
lucano em privado e disse-lhe: “Não ignoro o facto<br />
<strong>de</strong>, contrariamente às tradições e leis romanas, teres<br />
pernoitado muitas vezes fora do acampamento, mas<br />
95 A mesma i<strong>de</strong>ia aparece expressa em Plutarco, Obras Morais<br />
492 E-F. A doçura e a tolerância são qualida<strong>de</strong>s peculiares tanto<br />
a <strong>Fábio</strong> como a <strong>Péricles</strong>, algo que será bem evi<strong>de</strong>nciado na<br />
comparação final.<br />
218
219<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
também não ignoro o facto <strong>de</strong> seres um bom soldado. 8.<br />
Assim, que sejam as tuas faltas compensadas pelas tuas<br />
proezas, e daqui em diante, colocarei a tua vigilância<br />
a cargo <strong>de</strong> outra pessoa.” 9. E, perante o espanto do<br />
soldado, mandou sair a jovem e entregou-a aos seus<br />
braços, dizendo: “É esta a minha garantia <strong>de</strong> que vais<br />
permanecer no acampamento connosco. Tu, com o teu<br />
trabalho, <strong>de</strong>monstrarás se nos abandonas por alguma<br />
outra malda<strong>de</strong> e se o amor e esta mulher eram apenas<br />
um pretexto que usavas.” É o que contam sobre estes<br />
episódios 96 .<br />
21. <strong>Fábio</strong> tomou ainda a cida<strong>de</strong> dos Tarentinos por<br />
meio <strong>de</strong> traição 97 , conquistando-a da seguinte maneira:<br />
um jovem tarentino do seu exército tinha, em Tarento,<br />
uma irmã que lhe <strong>de</strong>dicava gran<strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> e afecto. 2.<br />
Estava apaixonado por ela um brútio 98 que integrava a<br />
guarnição encarregada por Aníbal <strong>de</strong> manter a cida<strong>de</strong><br />
sob o seu controlo; esta situação criou no tarentino a<br />
expectativa <strong>de</strong> um plano e, com o conhecimento <strong>de</strong><br />
<strong>Fábio</strong>, regressou à cida<strong>de</strong> dizendo que tinha <strong>de</strong>sertado<br />
para se juntar à irmã. Os primeiros dias <strong>de</strong>correram e<br />
96 Vi<strong>de</strong> Plutarco, Obras Morais 195 E, Valério <strong>Máximo</strong> 7.3.7,<br />
Sobre os varões ilustres 43.5<br />
97 Em 209 a.C. Cf. Tito Lívio 27.15.9-11. Aníbal tinha<br />
conquistado Tarento em 212 a.C. O domínio, contudo, não foi<br />
absoluto, pois a acrópole manteve uma guarnição romana. Durante<br />
esse mesmo ano, Aníbal tomara aliás quase todas as cida<strong>de</strong>s do<br />
Golfo <strong>de</strong> Tarento.<br />
98 Brútio correspon<strong>de</strong> à periferia da actual Calábria. Este foi<br />
o último refúgio <strong>de</strong> Aníbal em Itália, que lhe valeu uma severa<br />
punição da parte dos Romanos, <strong>de</strong>pois da vitória.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
o brútio ficava em casa, pois pensava que o irmão não<br />
estava inteirado da relação <strong>de</strong>les. 3. Nisto, o jovem disse<br />
à irmã: “Circulava por aí, com frequência, o boato <strong>de</strong><br />
que tu mantinhas relações com um homem <strong>de</strong> influência<br />
e po<strong>de</strong>roso. De quem se trata? Se se trata, como dizem,<br />
<strong>de</strong> alguém bem conceituado e distinto, não importa a<br />
origem, pois a guerra tudo confun<strong>de</strong>. Além disso, com<br />
a necessida<strong>de</strong> nada é vergonhoso, mas é, pelo contrário,<br />
uma sorte no momento em que a justiça não tem força,<br />
ser tratado com benevolência por quem tem mais<br />
po<strong>de</strong>r.” 4. Em sequência disto, a mulher mandou vir o<br />
brútio e apresentou-lhe o seu irmão. Este, por sua vez,<br />
favorecendo a paixão do bárbaro e parecendo-lhe ficar<br />
a sua irmã mais apaixonada e submissa do que antes a<br />
seu respeito, ganhou a sua confiança a ponto <strong>de</strong>, sem<br />
dificulda<strong>de</strong>, conseguir mudar o pensamento <strong>de</strong> um<br />
homem apaixonado e mercenário com a expectativa das<br />
gran<strong>de</strong>s recompensas que, segundo este lhe dizia, <strong>Fábio</strong><br />
lhe oferecia. 5. É esta a versão, com efeito, que a maioria<br />
dos autores tem escrito sobre este tema 99 . Alguns,<br />
contudo, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que a mulher pela qual brútio<br />
mudou <strong>de</strong> ala não era tarentina <strong>de</strong> nascimento, mas<br />
antes brútia, e ainda que ela seria concubina <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>.<br />
Ao tomar conhecimento <strong>de</strong> que o chefe dos Brútios era<br />
concidadão e conhecido seu, revelou-o a <strong>Fábio</strong> e, numa<br />
conversa que teve com ele ao pé da muralha, conseguiu<br />
convencer e vencer o homem por completo 100 .<br />
99 Vi<strong>de</strong> Tito Lívio 27. 15. 9-11.<br />
100 Não se conhecem outros testemunhos que atestem esta<br />
versão.<br />
220
221<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
22. Enquanto <strong>de</strong>corriam estes factos, <strong>Fábio</strong><br />
engendrou algo para distrair Aníbal; or<strong>de</strong>nou aos<br />
soldados que estavam em Régio para fazer uma incursão<br />
por Brútia e acampar junto a Caulónia <strong>de</strong> forma a tomála<br />
pela força. Os soldados, cerca <strong>de</strong> oito mil, eram na sua<br />
maioria <strong>de</strong>sertores e os mais inúteis dos proscritos entre<br />
os homens enviados por Marcelo da Sicília, pelo que<br />
a sua morte traria menos dor e prejuízo à cida<strong>de</strong> 101 . 2.<br />
Ele esperava que, enviando-os a Aníbal, pu<strong>de</strong>sse afastálo<br />
<strong>de</strong> Tarento, algo que, <strong>de</strong> facto, aconteceu, pois logo<br />
Aníbal se lançou a persegui-los com as suas forças 102 . 3.<br />
No sexto dia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>Fábio</strong> acampou em Tarento, o<br />
jovem, que antecipadamente entrara em acordo com o<br />
brútio, veio <strong>de</strong> noite com a irmã à sua presença, pois<br />
conhecia com exactidão e tinha marcado o lugar on<strong>de</strong>,<br />
estando <strong>de</strong> vigia, o brútio se ia entregar e ren<strong>de</strong>r-se aos<br />
atacantes. 4. <strong>Fábio</strong>, porém, fez com que a empresa não<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>sse unicamente da traição; ele apresentou-se<br />
no lugar combinado e manteve-se calmo, enquanto<br />
que o resto do exército assaltava as muralhas a partir<br />
da terra e do mar, ao mesmo tempo que se fazia uma<br />
gran<strong>de</strong> gritaria e se gerava confusão. Nisto, enquanto a<br />
maior parte dos Tarentinos acorria em socorro e lutava<br />
contra os que assaltavam a muralha, o brútio indicou a<br />
<strong>Fábio</strong> o momento oportuno, este subiu a uma escada<br />
e tomou a cida<strong>de</strong>. 5. Parece, porém, que nesta altura<br />
terá sido dominado pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> glória, pois mandou<br />
<strong>de</strong>capitar os Brútios importantes, <strong>de</strong> modo a evitar que<br />
101 Segundo Tito Lívio 23.25.7, estes soldados <strong>de</strong>sertores<br />
provinham, na sua maioria, <strong>de</strong> Canas.<br />
102 Cf. Tito Lívio 27.12.4-6.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
se <strong>de</strong>scobrisse que tinha tomado a cida<strong>de</strong> por meio <strong>de</strong><br />
uma traição. Contudo, não obteve o efeito esperado,<br />
recebendo pelo contrário a acusação <strong>de</strong> <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong> e<br />
cruelda<strong>de</strong> 103 . 6. Morreram também muitos Tarentinos<br />
e ven<strong>de</strong>ram-se trinta mil, o exército saqueou a cida<strong>de</strong> e<br />
foram enviados para o tesouro público três mil talentos.<br />
7. Diz-se que, quando todos estavam a roubar e a levar<br />
bens, o secretário <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> perguntou-lhe quais eram<br />
as suas or<strong>de</strong>ns em relação aos <strong>de</strong>uses, referindo-se<br />
<strong>de</strong>ste modo a quadros e estátuas. <strong>Fábio</strong>, perante isso,<br />
respon<strong>de</strong>u: “Deixemos aos Tarentinos os seus <strong>de</strong>uses<br />
irritados” 104 . 8. Contudo, levou consigo <strong>de</strong> Tarento a<br />
estátua colossal <strong>de</strong> Héracles que colocou no Capitólio, ao<br />
lado da qual erigiu uma estátua sua equestre em bronze.<br />
Nisto se mostrou mais extravagante que Marcelo, ou<br />
melhor, fez com que aquele varão fosse mais admirado<br />
pela sua clemência e humanida<strong>de</strong>, como se escreveu na<br />
sua biografia.<br />
23. Diz-se que Aníbal veio em socorro, mas<br />
terá ficado a uma distância <strong>de</strong> quarenta estádios, e que<br />
disse em público: “Havia, sem dúvida, algum outro<br />
Aníbal entre os Romanos; pois per<strong>de</strong>mos a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Tarento da mesma forma como a ganhámos” 105 . E em<br />
particular, reconheceu, pela primeira vez, perante os seus<br />
companheiros, que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito tempo, via que seria<br />
103 Cf. Tito Lívio 27.15.9-16.6.<br />
104 Este comentário <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> consta igualmente em Tito Lívio<br />
27.16.7-8.<br />
105 Cf. Plutarco, Obras Morais 195 F; Tito Lívio 27.16.10;<br />
Cícero, O Orador 2.273; Da Velhice 11.<br />
222
223<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
difícil para eles, mas que agora lhe parecia impossível<br />
apo<strong>de</strong>rar-se <strong>de</strong> Itália naquelas circunstâncias.<br />
2. Este segundo triunfo, celebrou-o <strong>Fábio</strong> com<br />
mais pompa do que o primeiro 106 . Viam-no agora como<br />
um bom atleta que, lutando com Aníbal, facilmente se<br />
liberta dos ataques do adversário, como se a presa e seu<br />
nó não tivessem já o mesmo vigor <strong>de</strong> outrora. 3. Com<br />
efeito, parte das suas forças estava <strong>de</strong>slumbrada pelo luxo<br />
e pelas riquezas, enquanto que a outra estava <strong>de</strong>bilitada<br />
e esgotada por causa dos contínuos combates. Havia um<br />
certo Marco Lívio 107 , que comandava a guarnição <strong>de</strong><br />
Tarento quando Aníbal conseguiu que esta <strong>de</strong>sertasse.<br />
Ocupou então a acrópole que continuou a proteger<br />
sem ser expulso <strong>de</strong>la, vigiando-a até que os tarentinos<br />
voltassem a cair novamente nas mãos dos Romanos.<br />
4. A este importunavam-no as honras que se<br />
prestavam a <strong>Fábio</strong>, e um dia, movido pela inveja e pela<br />
ambição, disse perante o Senado que não era <strong>Fábio</strong>, mas<br />
ele próprio, o responsável pela conquista <strong>de</strong> Tarento.<br />
<strong>Fábio</strong>, rindo-se, disse: “Tens razão! Pois se não tivesses<br />
perdido a cida<strong>de</strong>, eu não a teria recuperado.” 108 .<br />
106 O primeiro triunfo conquistado foi sobre os Lígures, referido<br />
anteriormente em 2.1.<br />
107 Cf. Tito Lívio 27.25.34 e Plutarco, Obras Morais 195 F.<br />
108 Referido em Marcelo 21.4. Afirma Plutarco que Marcelo<br />
levara para Roma, a maior parte das estátuas e objectos artísticos e<br />
que com eles <strong>de</strong>sfilou no cortejo do triunfo. Cf. Tito Lívio 27.16.8<br />
que estabelece a mesma comparação, mas manifesta preferência<br />
pela conduta <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, pois Marcelo tinha saqueado Siracusa e<br />
levado vários tesouros artísticos.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
24. Os Romanos, além das várias honras que<br />
conce<strong>de</strong>ram a <strong>Fábio</strong>, nomearam cônsul o seu filho<br />
<strong>Fábio</strong> 109 . Quando tomou posse do cargo e estava ocupado<br />
com um certo assunto relacionado com a guerra, o seu<br />
pai, seja por velhice seja por <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> ou para por o<br />
filho à prova, aproximou-se <strong>de</strong>le montado a cavalo entre<br />
aqueles que ali se encontravam e ro<strong>de</strong>avam o cônsul. 2.<br />
O jovem vendo-o ao longe, não o permitiu, e mandou<br />
um lictor que or<strong>de</strong>nasse ao seu pai que <strong>de</strong>smontasse e<br />
se apresentasse pelo próprio pé, se tinha algo a pedir<br />
ao cônsul. 3. A todos os outros importunou a or<strong>de</strong>m,<br />
e olharam para <strong>Fábio</strong> em silêncio, como se tivesse sido<br />
alvo <strong>de</strong> um tratamento indigno. Aquele, contudo,<br />
rapidamente se <strong>de</strong>sceu do cavalo e acelerou o passo em<br />
direcção ao seu filho e, abraçando-o e beijando-o, disse:<br />
4. “Filho, pensas e proce<strong>de</strong>s bem. Pois conheces aqueles<br />
em que mandas e a gran<strong>de</strong>za do cargo que recebeste.<br />
Assim foi como nós próprios e os nossos antepassados<br />
engran<strong>de</strong>cemos Roma, colocando sempre os pais e filhos<br />
em segundo lugar, <strong>de</strong>pois do bem da pátria.” 110 .<br />
5. Na verda<strong>de</strong>, diz-se que o bisavô <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> 111<br />
era um homem muito conceituado e influente entre os<br />
Romanos, pois foi cinco vezes cônsul e celebrou triunfos<br />
das maiores guerras. Quando, porém, já velho, partiu<br />
com o filho para a guerra, fez a entrada numa quadriga<br />
109 No ano <strong>de</strong> 213 a.C., juntamente com Tibério Semprónio<br />
Graco. Sobre o combate do filho <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> em Arpos, vi<strong>de</strong> Frontino,<br />
Estratagemas 3.9.2.<br />
110 Cf. Plutarco, Obras Morais 196 A; Tito Lívio 24. 44. 9;<br />
Valério <strong>Máximo</strong> 2. 2. 4.<br />
111 Este episódio refere-se a <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> Ruliano, já<br />
mencionado em 1.3.<br />
224
225<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
no <strong>de</strong>sfile triunfal, seguindo-o com o seu cavalo e com<br />
os outros elementos da comitiva 112 . Disto se orgulhava,<br />
porque ele, apesar <strong>de</strong> ter sob o seu filho o po<strong>de</strong>r<br />
paternal 113 e ser consi<strong>de</strong>rado o mais importante entre os<br />
cidadãos, estava subordinado à lei e àquele magistrado.<br />
6. Com efeito, nem só por isto aquele foi admirável.<br />
Aconteceu falecer o filho <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, e ele suportou<br />
com muita contenção a <strong>de</strong>sgraça, como um homem<br />
pru<strong>de</strong>nte e bom pai. Ele mesmo pronunciou, da tribuna<br />
do foro, o elogio que nos enterros <strong>de</strong> individualida<strong>de</strong>s<br />
ilustres compõem os familiares e, redigindo o discurso,<br />
publicou-o.<br />
25. Cornélio Cipião, que tinha sido enviado à<br />
Hispânia, expulsou os Cartagineses, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> os vencer<br />
em muitas batalhas e <strong>de</strong> conseguir para os Romanos<br />
muitos povos, gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s e brilhantes empresas,<br />
regressando enquanto <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> popularida<strong>de</strong> e glória<br />
como nenhum outro. Nomeado cônsul 114 , apercebeuse<br />
<strong>de</strong> que o povo pedia e esperava <strong>de</strong>le uma façanha.<br />
Pareceu-lhe muito antiquado e obsoleto continuar<br />
a ofensiva contra Aníbal em Itália, pelo que planeava<br />
112 Cf. Valério <strong>Máximo</strong> 5.7.1. Este episódio teve lugar durante<br />
o primeiro consulado do seu filho Q. <strong>Fábio</strong> Cruges, avô <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong><br />
<strong>Máximo</strong>, em 292 a.C.<br />
113 Trata-se da patria potestas, que estabelecia que o paterfamilias<br />
tinha o direito <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> morte sobre o seu filho.<br />
114 Em 205 a.C. A estratégia romana consistiu em invadir a<br />
Hispânia <strong>de</strong> forma <strong>de</strong> impedir a renovação do exército <strong>de</strong> Aníbal<br />
em Itália, retirando-lhe assim as suas bases <strong>de</strong> apoio. Como tal,<br />
a conquista e presença romanas na Hispânia resultaram <strong>de</strong> uma<br />
manobra <strong>de</strong>fensiva contra Cartago.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
navegar directamente para Cartago e para a Líbia,<br />
enchendo-as <strong>de</strong> armas e exércitos, e transferir a guerra<br />
<strong>de</strong> Itália para esse lugar, incitando o povo com todas as<br />
suas forças a executar este plano. 2. <strong>Fábio</strong> infundia todo<br />
o tipo <strong>de</strong> medos na cida<strong>de</strong>, como se fosse levada por<br />
um homem insensato e jovem ao mais extremo e grave<br />
perigo. Não poupava palavras ou acções para afastar os<br />
cidadãos <strong>de</strong>stes projectos, e ia conseguindo convencer o<br />
Senado. Contudo, ao povo parecia-lhe que estava contra<br />
Cipião por inveja dos seus êxitos e que temia que, se ele<br />
realizasse alguma façanha gran<strong>de</strong> e notável, terminaria<br />
<strong>de</strong>finitivamente com a guerra ou a afastaria <strong>de</strong> Itália, e<br />
ele pareceria uma pessoa indolente e cobar<strong>de</strong> por não ter<br />
concluído a guerra em tanto tempo.<br />
3. Com efeito, é provável que o propósito<br />
inicial <strong>de</strong> se opor a estes planos se tenha <strong>de</strong>vido mais<br />
à segurança e à prudência, pois temia o perigo que este<br />
constituía. Contudo, tornou-a uma questão pessoal e<br />
foi mais longe, arrastado por uma certa ambição e se<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> vencer, <strong>de</strong> modo a impedir o engran<strong>de</strong>cimento <strong>de</strong><br />
Cipião. A verda<strong>de</strong> é que fazia o possível para convencer<br />
Crasso, colega <strong>de</strong> Cipião no consulado, para que não<br />
autorizasse a expedição nem ce<strong>de</strong>sse, a não ser que, se<br />
assim <strong>de</strong>cidisse, que navegasse ele mesmo contra os<br />
cartagineses. Além disso, também não <strong>de</strong>ixou que se<br />
aprovassem os fundos para a guerra.<br />
4. Deste modo, Cipião vendo-se obrigado a<br />
arranjar, por sua própria conta, o dinheiro, reuniu das<br />
cida<strong>de</strong>s na Etrúria aquelas que se encontravam numa<br />
relação <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> para com ele e disponíveis para<br />
226
227<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
comparecer. Quanto a Crasso, permaneceu na sua<br />
pátria, por um lado pela sua natureza tranquila e pouco<br />
conflituosa 115 , e por outro por respeito à lei divina, pois<br />
era Pontífice <strong>Máximo</strong>.<br />
26. Então, <strong>Fábio</strong> voltou a opor-se a Cipião por<br />
outra via: impedia os jovens que se queriam alistar com<br />
ele e retinha-os, gritando nas reuniões do Senado e nas<br />
assembleias que Cipião tinha, não só, tentado escapar a<br />
Aníbal, como também pretendia sair <strong>de</strong> Itália, levando<br />
com ele o exército que ali estava, seduzindo a juventu<strong>de</strong><br />
com esperanças e convencendo-os a abandonar os seus<br />
pais, as suas mulheres e a sua cida<strong>de</strong>, no momento em<br />
que o inimigo, vitorioso e imbatível, estava às suas<br />
portas. 2. Com estes discursos assustou os Romanos,<br />
que <strong>de</strong>cretaram, por votação, que Cipião só iria fazer<br />
uso dos exércitos que estavam na Sicília e que não levaria<br />
mais do que trezentos dos que tinham estado com na<br />
Hispânia e nos quais <strong>de</strong>positava especial confiança. Esta<br />
política <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> estava em conformida<strong>de</strong> com a sua<br />
natureza.<br />
3. Contudo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Cipião passar a Líbia 116 ,<br />
começaram a chegar a Roma notícias das suas<br />
notáveis acções e façanhas, que se <strong>de</strong>stacavam pela sua<br />
gran<strong>de</strong>za e beleza extraordinárias 117 . Estas notícias foram<br />
confirmadas pela chegada <strong>de</strong> muitos <strong>de</strong>spojos e <strong>de</strong> um<br />
115 Os discursos pronunciados por <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong> e Cornélio<br />
Cipião diante do Senado foram relatados por Tito Lívio 28.40-45.<br />
116 Em 204 a.C.<br />
117 Trata-se da batalha nos Campi Magni.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
rei dos Númidas cativo 118 . Soube-se também que dois<br />
acampamentos foram <strong>de</strong>struídos e incendiados num<br />
único dia e que com eles ar<strong>de</strong>ram muitos homens,<br />
muitas armas e cavalos. Chegaram também a Aníbal<br />
embaixadas <strong>de</strong> Cartagineses, chamando-o e pedindolhe<br />
que abandonasse aquelas vãs esperanças e fosse em<br />
socorro da sua pátria 119 . Por causa <strong>de</strong> tais sucessos, em<br />
Roma, não havia ninguém que não falasse no nome<br />
<strong>de</strong> Cipião. Apesar disso, <strong>Fábio</strong> exigiu o envio <strong>de</strong> um<br />
substituto para Cipião, e, não alegando mais nenhum<br />
pretexto, foi dizendo o que já tinha sido dito, que era<br />
arriscado confiar assuntos tão importantes a um só<br />
homem, pois é difícil que a mesma pessoa seja sempre<br />
afortunada. Com ele se incompatibilizou o povo que<br />
o consi<strong>de</strong>rava já um homem intratável e invejoso, que<br />
com a velhice se tornara muito cobar<strong>de</strong> e pessimista, e<br />
que se assustava com Aníbal além da medida.<br />
4. Com efeito, nem sequer <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Aníbal se<br />
fazer ao largo com as suas forças e abandonar a Itália 120 ,<br />
<strong>de</strong>ixou livre <strong>de</strong> medos e segura a alegria e a confiança<br />
dos cidadãos; pelo contrário, repetia que a conjuntura<br />
era frágil e que a cida<strong>de</strong> corria perigo extremo, pois<br />
na Líbia, diante <strong>de</strong> Cartago, Aníbal cairia sobre eles<br />
com todo o seu peso 121 e colocaria diante <strong>de</strong> Cipião<br />
um exército ainda quente com o sangue <strong>de</strong> numerosos<br />
118 Plutarco não respeita aqui a cronologia dos acontecimentos:<br />
os campos cartaginês e númida foram incendiados antes da prisão<br />
Sífax, o rei númida.<br />
119 Cf. Tito Lívio 30.19.<br />
120 Em 203 a.C. Cf. Tito Lívio 30.26.<br />
121 Cf. Tito Lívio 28.42.18.<br />
228
229<br />
Vi d a d e Fá b i o Má x iM o<br />
generais, ditadores e cônsules. A cida<strong>de</strong> voltou, por isso,<br />
a ficar perturbada com estes discursos e, apesar <strong>de</strong> a<br />
guerra ter sido trasladada para a Líbia, parecia que o<br />
perigo estava ainda mais próximo <strong>de</strong> Roma.<br />
27. Pouco tempo <strong>de</strong>pois, Cipião, porém, vence<br />
Aníbal numa batalha 122 e além <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrubar e pisar o<br />
orgulho <strong>de</strong> Cartago <strong>de</strong>finitivamente caído, conce<strong>de</strong> aos<br />
seus concidadãos uma alegria maior que toda a esperança<br />
e a hegemonia <strong>de</strong> Roma, realmente<br />
sacudida por uma gran<strong>de</strong> agitação, voltou a erguê-la 123 .<br />
2. <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>, contudo, não viveu o suficiente<br />
para ver o fim da guerra, não teve conhecimento da<br />
<strong>de</strong>rrota <strong>de</strong> Aníbal, nem pô<strong>de</strong> contemplar a gran<strong>de</strong> e<br />
sólida prosperida<strong>de</strong> da pátria, pois por volta da altura em<br />
que Aníbal zarpava <strong>de</strong> Itália, ficou doente e morreu 124 .<br />
3. A Epaminondas 125 , enterraram-no os Tebanos<br />
a expensas do Estado por causa da sua pobreza, pois,<br />
na altura da sua morte, dizem que acabou por não se<br />
encontrar nada à excepção <strong>de</strong> uma moeda <strong>de</strong> ferro. 4. A<br />
<strong>Fábio</strong>, os Romanos não realizaram o funeral a expensas<br />
122 A batalha <strong>de</strong> Zama, que pôs fim à Segunda Guerra Púnica,<br />
teve lugar em Outubro <strong>de</strong> 202 a.C. A vitória <strong>de</strong> Cipião, nesta<br />
batalha, valeu-lhe o título <strong>de</strong> “Africano”.<br />
123 Sófocles, Antígona 163.<br />
124 Em 203 a.C. Cf. Tito Lívio 30.26.7.<br />
125 Plutarco também escreveu a vida <strong>de</strong> Epaminondas, famoso<br />
general, responsável pela hegemonia tebana no século IV a.C., que<br />
venceu os Espartanos em Leuctras e morreu na batalha <strong>de</strong> Mantineia<br />
em 371 a.C. Esta Vida <strong>de</strong> Plutarco, contudo, não chegou até nós.
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
da República, mas cada particular contribuiu com a<br />
mais pequena das moedas, não por falta <strong>de</strong> ajuda por<br />
causa da sua pobreza, mas porque o povo o enterrou<br />
como a um pai 126 . Assim, a sua morte recebeu a honra e<br />
a glória que o distinguiam em vida.<br />
126 Cf. Valério <strong>Máximo</strong> 5.2.3.<br />
230
Co m p a ra ç ã o e n t r e<br />
périCles e Fá b i o má x i m o
Co m p a ra C ç ã o e n t r e périCles e Fá b i o má x i m o<br />
28 (1) Eis a história das vidas <strong>de</strong>stes homens 1 .<br />
Como ambos <strong>de</strong>ixaram muitos e belos exemplos <strong>de</strong><br />
virtu<strong>de</strong> política e militar, tomemos em primeiro lugar<br />
aquele relativo aos méritos militares. Por um lado,<br />
<strong>Péricles</strong> governou um povo que se encontrava na maior<br />
prosperida<strong>de</strong>, muito gran<strong>de</strong> por si mesmo e no cume<br />
do po<strong>de</strong>r, pelo que podia parecer que se manteve até ao<br />
final seguro e intacto <strong>de</strong>vido ao bem-estar comum e à<br />
força do Estado. As acções <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, por outro lado, que<br />
recebeu a cida<strong>de</strong> nas circunstâncias <strong>de</strong> maior infortúnio<br />
e mais lamentáveis, não pu<strong>de</strong>ram garantir a segurança,<br />
mas soube erguer a cida<strong>de</strong> a partir da <strong>de</strong>sgraça e melhorar<br />
a sua situação. 2. Além disso, as façanhas <strong>de</strong> Címon,<br />
os troféus <strong>de</strong> Miróni<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> Leócrates e os numerosos<br />
e grandiosos sucessos <strong>de</strong> Tólmi<strong>de</strong>s, serviram a <strong>Péricles</strong><br />
mais para engran<strong>de</strong>cer a cida<strong>de</strong> com festas e solenida<strong>de</strong>s<br />
do que para fazer guerra e salvaguardar o império.<br />
3. <strong>Fábio</strong>, porém, assistiu a muitas fugas e<br />
<strong>de</strong>rrotas, a muitas mortes e assassínios <strong>de</strong> generais em<br />
pleno po<strong>de</strong>r e pretores, a lagos, planícies e bosques<br />
cheios <strong>de</strong> cadáveres <strong>de</strong> soldados e rios que corriam<br />
1 Plutarco i<strong>de</strong>ntifica semelhanças éticas entre <strong>Péricles</strong> e <strong>Fábio</strong><br />
<strong>Máximo</strong>, como a mo<strong>de</strong>ração, a tolerância em relação à maledicência<br />
dos seus pares e do povo. O facto <strong>de</strong> os inimigos, quando saquearam<br />
a cida<strong>de</strong>, terem respeitado apenas as suas proprieda<strong>de</strong>s; o não serem<br />
supersticiosos; a prudência antes <strong>de</strong> avançar para uma batalha,<br />
bem como o facto <strong>de</strong> resistirem com dignida<strong>de</strong> à morte dos seus<br />
familiares.<br />
233
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
para o mar com sangue e morte. Assim, tomando<br />
em seu po<strong>de</strong>r a cida<strong>de</strong>, não permitiu, pela sua força e<br />
constância, que se <strong>de</strong>struísse totalmente, arrastada pelos<br />
erros dos outros. 4. Com efeito, po<strong>de</strong> parecer que, ao<br />
homem sensato, não é tão difícil exercer po<strong>de</strong>r sobre<br />
uma cida<strong>de</strong>, humilhada em circunstâncias ruinosas, e<br />
torná-la obediente pela necessida<strong>de</strong> quanto refrear o<br />
povo quando está excitado por um sucesso, cheio <strong>de</strong><br />
orgulho e temerida<strong>de</strong>. E foi sobretudo <strong>de</strong>sta maneira<br />
que <strong>Péricles</strong> revelou aos Atenienses a sua superiorida<strong>de</strong>.<br />
5. Contudo, a magnitu<strong>de</strong> e o número dos flagelos que<br />
então se abateram sobre os Romanos revelou <strong>Fábio</strong><br />
como homem <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão e gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> carácter que<br />
não se <strong>de</strong>ixou abalar nem abandonou as convicções que<br />
orientaram a sua conduta.<br />
29 (2) A conquista <strong>de</strong> Samos por <strong>Péricles</strong> po<strong>de</strong><br />
comparar-se à tomada <strong>de</strong> Tarento e à <strong>de</strong> Eubeia, por<br />
Zeus, à das cida<strong>de</strong>s da Campânia, com excepção <strong>de</strong><br />
Cápua, que foi conquistada pelos cônsules Fúlvio e<br />
Ápio 2 . Não parece que <strong>Fábio</strong> tenha vencido numa<br />
batalha campal, à excepção daquela com a qual obteve<br />
o primeiro triunfo 3 , enquanto que <strong>Péricles</strong> ergueu nove<br />
troféus por vitórias conseguidas aos inimigos em terra e<br />
no mar. 2. De <strong>Péricles</strong> também não se relata nenhuma<br />
façanha semelhante àquela que realizou <strong>Fábio</strong> quando<br />
livrou Minúcio <strong>de</strong> Aníbal e conseguiu salvar, completo,<br />
um exército <strong>de</strong> Romanos, pois foi uma magnífica acção<br />
2 Em 212 a.C.<br />
3 Trata-se do triunfo sob os Lígures, já mencionado em <strong>Fábio</strong><br />
<strong>Máximo</strong> 2.1.<br />
234
Co m p a ra C ç ã o e n t r e périCles e Fá b i o má x i m o<br />
e nela participaram, ao mesmo tempo, a coragem,<br />
a prudência e a bonda<strong>de</strong>. Do mesmo modo, não se<br />
relata qualquer erro <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> como a <strong>de</strong>rrota que<br />
sofreu <strong>Fábio</strong> quando se <strong>de</strong>ixou enganar por Aníbal<br />
com estratagema dos bois: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter apanhado o<br />
inimigo, que avançou pelos <strong>de</strong>sfila<strong>de</strong>iros por acaso e<br />
espontaneamente, <strong>de</strong>ixou-o, sem dar conta, escaparse<br />
durante a noite, e no dia seguinte, recorre à força e<br />
antecipa-se a quem já estava para o fazer e é <strong>de</strong>rrotado<br />
quando já o tinha nas mãos 4 .<br />
3. Contudo, se um bom general <strong>de</strong>ve não só<br />
guiar-se pelo presente, mas também prever sensatamente<br />
o futuro, para os Atenienses a guerra terminou tal<br />
como <strong>Péricles</strong> tinha previsto e predito: por estarem<br />
envolvidos em <strong>de</strong>masiadas frentes, <strong>de</strong>itaram a per<strong>de</strong>r a<br />
sua hegemonia.<br />
Os Romanos, por outro lado, ao enviarem, contra<br />
os planos <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong>, Cipião contra os Cartagineses,<br />
tornaram-se donos <strong>de</strong> tudo, não por acaso, mas graças<br />
à habilida<strong>de</strong> e à coragem do seu general que venceu os<br />
inimigos. Nesta medida, para aquele os fracassos da<br />
pátria foram o testemunho <strong>de</strong> que as suas previsões<br />
estavam correctas, enquanto que para este se provou,<br />
pelos êxitos, que estava completamente errado. 4. De<br />
igual modo erra um general quando cai em <strong>de</strong>sgraça sem<br />
o esperar, como o que <strong>de</strong>ixa passar a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
um êxito por <strong>de</strong>sconfiança. Com efeito, segundo parece,<br />
somente a inexperiência produz a temerida<strong>de</strong> e suprime<br />
a audácia. Eis os factos sobre as questões bélicas.<br />
4 Vi<strong>de</strong> capítulos 6 e 7.<br />
235
Ália Rosa Conceição Rodrigues<br />
30 (3) No âmbito político, a gran<strong>de</strong> acusação<br />
contra <strong>Péricles</strong> era a guerra. Diz-se, com efeito, que foi<br />
ele quem a suscitou por se opor a qualquer concessão<br />
aos Lace<strong>de</strong>mónios. Parece-me a mim que nem <strong>Fábio</strong><br />
<strong>Máximo</strong> teria feito qualquer concessão aos Cartagineses,<br />
antes teria, com nobreza, enfrentado o perigo para<br />
assegurar a hegemonia. 2. Certamente que a bonda<strong>de</strong><br />
e a amabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> para com Minúcio são a<br />
con<strong>de</strong>nação das intrigas contra Címon e Tucídi<strong>de</strong>s,<br />
homens nobres e aristocratas que, por acção <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>,<br />
foram votados ao ostracismo e ao <strong>de</strong>sterro. Contudo, a<br />
influência e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> foram, indubitavelmente,<br />
maiores. 3. Com efeito, não <strong>de</strong>ixou que nenhum outro<br />
general atirasse a cida<strong>de</strong> para a <strong>de</strong>sgraça com más<br />
resoluções. Somente Tólmi<strong>de</strong>s lhe escapou, rejeitando<br />
veementemente a sua influência, e sofreu uma <strong>de</strong>rrota<br />
com os Beócios 5 ; todos os outros a<strong>de</strong>riram e alinharam<br />
com o seu parecer por causa da sua gran<strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>.<br />
4. Quanto a <strong>Fábio</strong>, apesar <strong>de</strong> ser seguro e infalível,<br />
não foi capaz <strong>de</strong> controlar os que cometeram os erros,<br />
pelo que parece inferior a <strong>Péricles</strong>. A verda<strong>de</strong> é que os<br />
Romanos não teriam sofrido tamanhas <strong>de</strong>rrotas se <strong>Fábio</strong><br />
tivesse sido tão influente entre os Romanos quanto o foi<br />
<strong>Péricles</strong> em Atenas.<br />
5. Em relação à gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> espírito perante as<br />
riquezas, um manifestou-a ao não aceitar nada do que<br />
lhe ofereciam, enquanto o outro ao dar muito àqueles<br />
que lhe pediam, quando libertou, com o seu próprio<br />
5 Em 447 a.C. na batalha <strong>de</strong> Coroneia.<br />
236
Co m p a ra C ç ã o e n t r e périCles e Fá b i o má x i m o<br />
dinheiro, os prisioneiros; 6. é verda<strong>de</strong> que neste caso a<br />
soma não era elevada, apenas seis talentos 6 . Contudo,<br />
<strong>de</strong> <strong>Péricles</strong> não se po<strong>de</strong> dizer, com segurança, quanto<br />
proveito e favor terá recebido <strong>de</strong> aliados e reis, graças à<br />
sua influência, mas manteve-se absolutamente íntegro e<br />
sem mácula.<br />
7. Quanto à gran<strong>de</strong>za dos monumentos e templos<br />
e à magnificência das edificações com que <strong>Péricles</strong><br />
embelezou Atenas, não são dignos <strong>de</strong> comparação nem<br />
com todos os monumentos juntos <strong>de</strong> Roma antes dos<br />
Césares, pois a gran<strong>de</strong>za e a elegância das obras <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong><br />
são superiores àquelas e não consentem comparação.<br />
6 Em função do que se disse em 7. 5-6, Plutarco estaria a referirse<br />
a <strong>de</strong>z talentos.<br />
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Stadter, P. A. (1975), “Plutarch’s Comparison of Pericles<br />
and Fabius Maximus”, GRBS 16.1, pp. 77-85.<br />
__ (1997), “Plutarch’s Lives: The Statesman as Moral<br />
Actor” in C. Schra<strong>de</strong>r, Vicente Ramón, J. Vela<br />
(eds.), Plutarco y la Historia. Actas <strong>de</strong>l V Simposio<br />
Español sobre Plutarco, Zaragoza, pp. 65-81.<br />
Sumner, G. V. (1975), “Elections at Rome in 217 a.C.”,<br />
Phoenix 29, pp. 250-9.<br />
Von Alten, W. (1933), “Two works by Rubens”, The<br />
Burlington Magazine for Connoisseurs vol. 62 (nº<br />
358), pp. 15-7.<br />
Williamson, G. C. (1990), Pietro Vannucci called<br />
Perugino, London.<br />
Ziegler, K. (1951), “Plutarchos”, RE 21, col. 899.<br />
248
Ín d i c e d e n o m e s<br />
Acaia: Per. 19. 3<br />
Acamante: Per. 3. 1.<br />
Acrópole: Per. 3. 6; 13. 12; 32. 3.<br />
Agamémnon: Per. 28. 7.<br />
Agariste: Per. 3. 2.<br />
Agatarco: Per. 13. 3.<br />
Ágora: Per. 5. 2: 7. 5; 16. 4; 24. 9; 28. 2.; 31. 2.<br />
Alcibía<strong>de</strong>s: Per. 20. 4; 37. 1.<br />
Alópece: Per. 11. 1.<br />
Alpes: Fa b. 2. 1.<br />
Ambrácia: Per. 17. 2<br />
Anacreonte: Per. 2. 1; 27. 4.<br />
Anaxágoras <strong>de</strong> Clazómenas: Per. 4. 6; 6. 1-3; 8. 1; 16. 7-9; 32. 2, 5.<br />
Âncio: Fa b. 2. 2.<br />
Andros: Per. 11. 5.<br />
Aníbal: Per. 2. 5. Fa b. 2. 2, 4; 3. 1, 3; 5. 1, 3, 5; 6. 1, 4, 5, 10; 7.<br />
2-8; 8. 2, 3, 4; 10. 7; 11. 1, 2, 4, 5; 12. 5-6; 13, 7; 14. 1, 5, 6;<br />
15.1-3; 16. 3, 5, 8; 17. 1; 19. 1-3, 5; 21. 2; 22. 1-2; 23.1-3; 25. 1;<br />
26. 1, 3, 4; 27. 1, 2. Co m P . Per.-Fa b. 29 (2) 2.<br />
Antemócrito: Per. 30. 3-4.<br />
Antístenes Socrático: Per. 1. 5.<br />
Aqueloo: Per. 19. 3.<br />
Arcádios: Per. 29. 2.<br />
Arcanânia: Per. 17. 2; 19. 3.<br />
Arcanas: Per. 33. 4.<br />
Arginusas: Per. 37. 6.<br />
Argos: Per. 2. 1.<br />
Marte: Fa b. 2. 2.<br />
Aristódico <strong>de</strong> Tânagra: Per. 10. 8.<br />
Aristófanes: Per. 26. 4<br />
aC a r n e n s e s: Per. 30. 4.<br />
Aristóteles: Per. 4. 1; 9. 2; 10. 8; 26. 3; 28. 2.<br />
Arquidamo: Per. 8. 5; 29. 7; 33. 3, 4.<br />
Arquíloco: Per. 2. 1; 28. 7.<br />
Ártemon: Per. 27. 3, 4.<br />
Ásia: Per. 17. 1, 2.<br />
Aspásia: Per. 24. 2, 5, 6, 8, 11; 25. 1; 30. 4; 32. 1, 5. Vi<strong>de</strong> Hera-Aspásia.<br />
Atena (Higia): Per. 13. 13.<br />
Atenas: Co m P . Per./Fa b. 30 (3). 4.<br />
249
Atenienses: Per. 9. 2; 10. 1; 17. 1; 20. 2; 22. 4; 23. 3; 24. 1, 6, 7;<br />
26. 2, 4; 27. 2; 28. 2, 3, 8; 29. 4-7; 33. 1, 3-4; 34. 2, 4; 35. 3;<br />
37. 3-5; 38. 4; 39. 3. Co m P . Per./Fa b. 28 (1). 4; 29 (2). 3<br />
Ática: Per. 10. 3; 22. 1, 2; 30. 3; 33. 3, 4.<br />
Áufido: Fa b. 15.1.<br />
Axíoco: Per. 24. 3.<br />
Barca: Fa b. 17. 2.<br />
Bárbaros: Per. 9. 6; 12. 1; 15. 1; 17. 1; 19. 1; 20. 1; 28. 7. Fab. 21. 4.<br />
Beócia: Per. 17. 2; 18. 2; 33. 5.<br />
Bisaltas: Per. 11. 5.<br />
Bizâncio: Per. 17. 2.<br />
Brútia: Fa b. 22. 1.<br />
Brútios: Fa b. 21. 2, 4, 5; 22. 3, 4, 5.<br />
Butéon (<strong>Fábio</strong>): Fa b. 9. 4.<br />
Cálcis: Per. 23. 3.<br />
Cálias: Per. 24. 8.<br />
Calícrates: Per. 13. 7.<br />
Camilo: Fa b. 3. 1.<br />
Campânia: Fa b. 6. 2. Co m P . Per./Fa b. 29 (2). 1.<br />
Canas: Fa b. 9.4; 15. 1.<br />
Carino: Per. 30. 3.<br />
Capitólio: Fa b. 17. 1; 22. 8.<br />
Cápua: Fa b. 17. 4. Co m P . Per./Fa b. 29 (2). 1.<br />
Cartagineses: Fa b. 5. 4; 11. 1, 5; 12. 5; 15. 1, 4; 16. 1; 17. 2; 25. 1,<br />
3; 26. 3. Co m P . Per./Fa b. 29 (2). 3; 30 (3). 1.<br />
Cartago: Per. 20. 4. Fa b. 25. 1; 26. 4; 27. 1.<br />
Casilino: Fa b. 6. 2.<br />
Casino: Fa b. 6. 1.<br />
Caulónia: Fa b. 22. 1.<br />
César (Augusto): Per. 1. 1.<br />
Césares: Co m P . Per.-Fa b. 30 (3).7.<br />
Chipre: Per. 10. 8; 26. 1.<br />
Cílon: Per. 33. 1.<br />
Címon: Per. 5. 3; 7. 3, 4; 9. 2, 6; 10. 1-3, 5-6, 8; 11. 11; 16. 3; 28.<br />
6; 29. 1-2. Co m P . Per.-Fa b. 28 (1). 2; 30 (3). 2.<br />
Cipião (Cornélio): Fa b. 25. 1, 2, 3, 4; 26. 1-4; 27. 1. Co m P . Per.-<br />
Fa b. 29 (2). 3.<br />
Ciro, o Moço: Per. 24, 11, 12.<br />
Claúdios: vi<strong>de</strong> Marcelo.<br />
Clazómenas: Per. 4. 6.<br />
Cleândridas: Per. 22. 2, 3.<br />
250
Cléon: Per. 33. 8; 35. 5.<br />
Clístenes: Per. 3. 2.<br />
Colarges: Per. 3.1.<br />
Comédia: Per. 8. 4; 24. 9.<br />
Comediógrafos: Per. 7. 8; 13. 15; 16. 1; 24. 9.<br />
Conselho: Per. 7. 5.<br />
Corcira: Per. 29. 3.<br />
Corcireus: Per. 29. 1.<br />
Corebo: Per. 13. 7.<br />
Coríntios: Per. 29. 1, 4, 6.<br />
Cornélio: Vi<strong>de</strong> Cipião, Lêntulo.<br />
Coroneia (Batalha <strong>de</strong>): Per. 18. 3.<br />
Crasso: Fa b. 25. 3, 4.<br />
Cratino: Per. 3. 5; 13. 8, 10; 24. 9.<br />
nemesis: Per. 3. 5.<br />
Qu í r o n e s: Per. 3. 5.<br />
Trá C i a s: Per. 13.10.<br />
Critolau: Per. 7. 7.<br />
Cronos: Per. 3. 5.<br />
Dámon: Per. 4. 1-3.<br />
Damóni<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Ea: Per. 9. 2.<br />
Delfos: Per. 21. 2. Fa b. 18. 3.<br />
Delos: Per. 12. 1.<br />
Deméter: Fa b. 18. 2.<br />
Diógenes: Fa b. 10. 2.<br />
Diopites: Per. 32. 2.<br />
Dípilo (Portas): Per. 30. 3.<br />
Dórios: Per. 17. 2.<br />
Dracônti<strong>de</strong>s: Per. 32. 3.<br />
Dúris <strong>de</strong> Samos: Per. 28. 2, 3.<br />
Ea: Per. 9. 2.<br />
Efialtes: Per. 7. 8; 9. 5; 10. 7-8; 16. 3.<br />
Éforo: Per. 27. 3; 28. 2.<br />
Egina: Per. 8. 7.<br />
Eginetas: Per. 29. 5; 34. 2.<br />
Egípcios: Per. 37. 4.<br />
Egipto: Per. 20. 3.<br />
Eleia: Per. 4. 5.<br />
Eleio: Per. 29. 2.<br />
Elêusis: Per. 13. 7.<br />
Elpinice: Per. 10. 5, 6; 28. 5, 7.<br />
251
Emílio (Paulo): Fa b. 14. 4, 6, 7; 16. 4, 6, 8.<br />
Enéadas: Per. 19. 3.<br />
Epaminondas: Fa b. 27. 3.<br />
Epidauro: Per. 35. 3.<br />
Epílico: Per. 36. 2.<br />
Epítimo <strong>de</strong> Farsália: Per. 36. 5.<br />
Esparta: Per. 22. 4; 23. 2.<br />
Ésquines Socrático: Per. 24. 6; 32. 5; 32. 5.<br />
Esquinocéfalo: Per. 3. 4.<br />
Eta: Per. 17. 3.<br />
Estesímbroto <strong>de</strong> Tasos: Per. 8. 9; 14. 16; 26. 1; 36. 6.<br />
Ética (Teofrasto): Per. 38. 2.<br />
Etrúria: Per. 20. 4. Fa b. 2. 2; 3. 1; 25. 4.<br />
Eubeia: Per. 7. 8; 17. 3; 22. 2; 23. 3. Co m P . Per./Fa b. 29 (2). 1.<br />
Eubeus: Per. 22. 1.<br />
Êupolis: Per. 3. 7; 24. 10.<br />
De m o s : Per. 3. 7; 24. 10.<br />
Eurípi<strong>de</strong>s: Fa b. 17. 4.<br />
Euriptólemo: Per. 7. 5.<br />
Europa: Per. 17. 1.<br />
Evângelo: Per. 16. 6.<br />
<strong>Fábio</strong> (filho <strong>de</strong> <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>): Fa b. 24. 1.<br />
<strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>: Per. 2. 5.<br />
<strong>Fábio</strong>s: Fa b. 1. 2. Vi<strong>de</strong> Butéon, Pictor.<br />
Falérios: Fa b. 2. 2.<br />
Farsália: Per. 36. 5.<br />
Fenícios: Per. 28. 6.<br />
Fídias: Per. 2. 1; 13. 6,15; 31. 2-3, 5; 32. 6.<br />
Filémon: Per. 2. 1.<br />
Filipe: Per. 1. 6.<br />
Flamínio (Gaio): Fa b. 2. 3; 3. 1, 3, 5.<br />
Fliunte: Per. 4. 5.<br />
Fócida: Per. 17. 2.<br />
Fócios: Per. 21. 2; 24. 12.<br />
Fódios: Fa b. 1. 2.<br />
Fórum: Fa b. 1. 8; 8. 4; 9. 5; 24. 6.<br />
Fúlvio: Co m P . Per.-Fa b. 29 (2). 1.<br />
Galos: Fa b. 2. 3.<br />
Gilipo: Per. 22. 4.<br />
Gíscon: Fa b. 15. 3, 4.<br />
Glauco: Per. 31. 5.<br />
252
Grécia: Per. 7. 3; 12. 1, 2; 17. 1, 3; 22. 1.<br />
Gregos: Per. 15. 1; 17. 1; 19. 1; 20. 1; 24. 4; 29. 4.<br />
Ha<strong>de</strong>s: Per. 3.7.<br />
Hágnon: Per. 32. 4.<br />
Helenos: Per. 15.1.<br />
Helesponto: Per. 17. 2.<br />
Hestieus: Per. 23. 3.<br />
Hera: Per. 2. 1; 24. 9.<br />
Hera-Aspásia: Per. 24. 9.<br />
Héracles: Fa b. 1. 2; 22. 8.<br />
Heracli<strong>de</strong>s Pôntico: Per. 27. 4; 35. 5.<br />
Hermipo, o comediógrafo: Per. 32. 1; 33. 8.<br />
Hermótimo: Per. 24. 12.<br />
Hipóbotas: Per. 23. 4.<br />
Hipónico (pai <strong>de</strong> Cálias): Per. 24. 8.<br />
Homero: Fa b. 19. 2.<br />
Iberos: Fa b. 7. 2.<br />
Ictino: Per. 13. 7.<br />
Idomeneu <strong>de</strong> Lámpsaco: Per. 10. 7; 35. 5.<br />
Íon <strong>de</strong> Quios: Per. 5. 3; 28. 7.<br />
Iónios: Per. 17. 2; 24. 3; 28.7.<br />
Isménias: Per. 1. 5.<br />
Itália: Per. 11. 5; Fa b. 2. 1-2; 4. 6; 5. 6; 8. 4; 14. 6; 17. 3-4; 19. 1;<br />
23. 1; 25. 1, 2; 26. 1, 4; 27. 2.<br />
Itágenes: Per. 26. 2.<br />
Júnio (Marco): Fa b. 9. 4.<br />
Lace<strong>de</strong>mónia: 30.1.<br />
Lace<strong>de</strong>mónios : Per. 8. 5; 9. 6; 10. 1, 4; 17. 1, 4; 21. 1, 2; 22. 1, 3;<br />
24.1; 29. 1, 5, 7; 30. 2, 5; 31. 1; 33. 1, 4. Co m P. Per./Fab. 30 (3). 1.<br />
Lacrátidas: Per. 35. 5.<br />
Lâmaco: Per. 20. 1.<br />
Lâmpon: Per. 6. 2-3.<br />
Lemnos: Per. 25. 2.<br />
Lêntulo (Cornélio): Fa b. 16. 7, 8, 9.<br />
Leócrates: Per. 16. 3; Co m P . Per.-Fa b. 30 (3). 3.<br />
Lesbos: Per. 17. 2.<br />
Líbia: Fa b. 8. 4; 25. 1; 26. 3-4.<br />
Lígures: Fa b. 2.1.<br />
Lísicles: Per. 24. 6.<br />
Lívio (Marco): Fa b. 23. 3.<br />
Lócrida: Per. 17. 2.<br />
253
Lótrono: Fa b. 6. 2.<br />
Lucano: Fa b. 20. 5-7.<br />
Malíaco (Golfo): Per. 17. 3.<br />
Mânlio: v i D e Torquato.<br />
Marcelo (Claúdio): Fa b. 19. 1, 4-6; 22. 1, 8.<br />
Marso: Fa b. 20. 2.<br />
<strong>Máximo</strong>: vi<strong>de</strong> Ruliano.<br />
Mégara: Per. 19. 2; 29. 7; 30. 3, 4; 34. 3.<br />
Melisso: Per. 26. 2-3; 27. 1.<br />
Menéxeno: Per. 24. 7.<br />
Menipo: Per. 13. 15.<br />
Ménon: Per. 31. 2, 5.<br />
Medos: Per. 28. 6.<br />
Megarenses: Per. 22. 1; 29. 4, 8; 30. 2-4.<br />
Metágenes <strong>de</strong> Xípeto: Per. 13. 7.<br />
Metaponto: Fa b. 19. 7.<br />
Metílio: Fa b. 7. 5; 8. 4; 9. 2.<br />
Mícale: Per. 3. 2.<br />
Mileto: Per. 24. 1.<br />
Milésios: Per. 25. 1; 28. 2.<br />
Milto: Per. 24. 11.<br />
Minúcio Rufo (Marco): Fa b. 4. 1; 5. 5; 7. 5; 8. 1, 4; 9. 1-3; 10. 1,<br />
4-7; 11. 3, 5, 6; 12. 2-4; 13. 1, 7. Co m P . Per.-Fa b. 29 (2). 2; 30<br />
(3). 2.<br />
Miróni<strong>de</strong>s: Per. 13. 12.<br />
Mnésicles: Per. 13.12.<br />
Musas: Per. 1.5; 11. 4.<br />
“Novos Pisistrátidas”: Per. 16. 1.<br />
Naxos: Per. 11. 5.<br />
Nemeia: Per. 19. 2.<br />
Númidas: Fa b. 11. 7; 12. 4; 26. 3.<br />
Olímpico (<strong>Péricles</strong>): Per. 8. 3; 39. 2.<br />
Ônfale (Aspásia): Per. 24. 9.<br />
ov i C u l a (cor<strong>de</strong>irinho): Fa b. 1. 4.<br />
Páralo: Per. 24. 8; 36. 8.<br />
Parméni<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Eleia: Per. 4. 5.<br />
Paulo: vi<strong>de</strong> Emílio.<br />
Pegas: Per. 19. 2.<br />
Peloponésios : Per. 22. 1-2; 29. 1; 33. 3, 5; 34. 1; 37. 6.<br />
Peloponeso : Per. 8. 7; 17. 2, 4; 19. 2; 29. 1; 33.5; 34. 1, 3.<br />
Periforeto: Per. 27. 3, 4.<br />
254
Pictor (<strong>Fábio</strong>): Fa b. 18. 3.<br />
Pireu: Per. 8. 7.<br />
Pirilampes: Per. 13. 15.<br />
Piróni<strong>de</strong>s: Per. 24. 10.<br />
Pisa: Per. 2. 1.<br />
Pisistrátidas: Per. 3. 2. Vi<strong>de</strong> “Novos”<br />
Pisístrato: Per. 7. 1.<br />
Pissutnes: Per. 25. 3, 4.<br />
Pitocli<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Ceos: Per. 4. 1.<br />
Platão: Per. 7. 8; 8. 2; 15. 2; 24. 7.<br />
Platão, o Cómico: Per. 4. 4.<br />
Plistóanax: Per. 22. 1-2.<br />
Plutarco:<br />
Cí m o n: Per. 9. 6.<br />
li s a n D r o: Per. 22. 4.<br />
ma rC e l o: Fa b. 19. 2; 22. 8.<br />
Poetas Áticos: Per. 3. 4.<br />
Polialces: Per. 30. 1.<br />
Policleto: Per. 2. 1.<br />
Polícrates <strong>de</strong> Samos: Per. 26. 4.<br />
Pompónio: Fa b. 3. 4.<br />
Ponto: Per. 20.1.<br />
Posidónio <strong>de</strong> Apameia: Fa b. 19. 4.<br />
Poti<strong>de</strong>ia: Per. 29. 6.<br />
Priene: Per. 25. 1.<br />
Protágoras: Per. 36. 5.<br />
Quersoneso: Per. 11. 5: 19. 1.<br />
Régio: Fa b. 22. 1.<br />
Ro<strong>de</strong>s: Per. 17. 2<br />
Roma: Per. 1. 1. Fa b. 1. 2; 2. 2; 7. 5, 7; 8. 4; 9. 4; 17. 4, 6; 24. 4; 26.<br />
3-4; 27. 1. Co m P . Per./Fa b. 30 (3). 7.<br />
Romanos: Fa b. 2. 4; 3. 5; 6. 9; 7. 2; 11. 6; 12. 1, 4-5; 14. 3; 16. 1-3,<br />
9; 19. 4; 23. 1, 3; 24. 1, 5; 25. 1; 26. 2; 27. 3. Co m P. Per./Fab. 28<br />
(1). 5; 29 (2). 2, 3; 30 (3). 4.<br />
Ruliano (<strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>): Fa b. 1. 3.<br />
Samos: Per. 8. 9; 24. 1, 2; 25. 2; 26. 2, 4; 27. 4; 28. 4. Co m P . Per./<br />
Fa b. 29 (2). 1.<br />
Sâmios: Per. 25. 1, 3; 26. 1-2, 4; 28. 1-2, 7.<br />
Síbaris: Per. 11. 5.<br />
Sícilia: Per. 20. 4; 22. 4. Fa b. 22. 1; 26. 2.<br />
Siciónios: Per. 19. 2.<br />
255
Simeta: Per. 30. 4.<br />
Símias: Per. 35. 5.<br />
Sinope: Per. 20. 2.<br />
Sinópios: Per. 20. 1, 2.<br />
Sócrates: Per. 13. 7; 24. 5.<br />
Sófocles: Per. 8. 8.<br />
Tânagra: Per. 10. 1, 8.<br />
Targélia: Per. 24. 3-4.<br />
Tarentinos: Fa b. 21. 1-2, 5; 22. 3-7; 23. 1, 3, 4.<br />
Tarento: Fa b. 21. 1; 22. 2, 8; 23. 3. Co m P . Per./Fa b. 29 (2). 1.<br />
Tebanos: Fa b. 27. 3.<br />
Teofrasto: Per. 23. 2; 35. 5; 38. 2.<br />
Teleto: Per. 33. 8.<br />
Tessália: Per. 17. 3.<br />
Tessalo: Per. 29. 2.<br />
Tibre: Fa b. 1. 2.<br />
Timesilau: Per. 20. 1.<br />
Timon <strong>de</strong> Fliunte: Per. 4. 5.<br />
Tisandro: Per. 36. 2.<br />
Tólmi<strong>de</strong>s, o <strong>de</strong> Tolmeu: Per. 16. 3; 18. 2-3; 19. 2. Co m P . Per.-Fa b.<br />
28 (1). 2; 30 (3). 3.<br />
Tolmeu: Per. 18. 2.<br />
Torquato (Mânlio): Fa b. 9. 2.<br />
Trácia: Per. 11. 5; 17. 2.<br />
Trácios: Per. 19. 1.<br />
Trágia: Per. 25. 5.<br />
Trasimeno: Fa b. 3. 1.<br />
Trébia: Fa b. 2. 2; 3. 4.<br />
Triásias (Portas): Per. 30. 3.<br />
Tucídi<strong>de</strong>s, filho <strong>de</strong> Melésias: Per. 6. 2-3; 8. 5; 11. 1; 14. 1, 3; 16.<br />
3. Co m P . Per.-Fa b. 30 (3). 2.<br />
Tucídi<strong>de</strong>s: Per. 9. 1; 15. 3; 16. 1; 28. 2, 8; 33. 1. Fa b. 1. 9.<br />
Túrios: Per. 11. 5.<br />
Varrão (Terêncio): Fa b. 14. 2, 4-6; 15. 1; 16. 6, 8; 18.4.<br />
Venúsia: Fa b. 16. 6.<br />
Verrugoso: Fa b. 1. 4.<br />
Volturno: Fa b. 6. 1.<br />
Xantipo (pai <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>): Per. 3. 2.<br />
Xantipo (filho <strong>de</strong> <strong>Péricles</strong>): Per. 24. 8; 36. 2, 4, 6.<br />
Xénocles <strong>de</strong> Colarges: Per. 13.7.<br />
Xerxes: Per. 3. 2; 10. 5; 13. 9.<br />
256
Zenão <strong>de</strong> Eleia: Per. 4. 5; 5. 3.<br />
Zeus/Júpiter: Per. 2. 1; 3. 5.<br />
257
Vo l u m e s p u b l i c a d o s n a Co l e C ç ã o Au t o r e s<br />
Gr e G o s e lA t i n o s – sé r i e te x t o s<br />
1. Delfim F. Leão e Maria do Céu Fialho: Plutarco. <strong>Vidas</strong><br />
<strong>Paralelas</strong> – Teseu e Rómulo. Tradução do grego,<br />
introdução e notas (<strong>Coimbra</strong>, CECH, 2008).<br />
2. Delfim F. Leão: Plutarco. Obras Morais – O banquete dos<br />
Sete Sábios. Tradução do grego, introdução e notas<br />
(<strong>Coimbra</strong>, CECH, 2008).<br />
3. Ana Elias Pinheiro: Xenofonte. Banquete, Apologia <strong>de</strong><br />
Sócrates. Tradução do grego, introdução e notas<br />
(<strong>Coimbra</strong>, CECH, 2008).<br />
4. Carlos <strong>de</strong> Jesus, José Luís Brandão, Martinho Soares,<br />
Rodolfo Lopes: Plutarco. Obras Morais – No Banquete<br />
I – Livros I‑IV. Tradução do grego, introdução e notas.<br />
Coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> José Ribeiro Ferreira (<strong>Coimbra</strong>,<br />
CECH, 2008).<br />
5. Ália Rodrigues, Ana Elias Pinheiro, Ândrea Seiça, Carlos<br />
<strong>de</strong> Jesus, José Ribeiro Ferreira: Plutarco. Obras Morais<br />
– No Banquete II – Livros V‑IX. Tradução do grego,<br />
introdução e notas. Coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> José Ribeiro<br />
Ferreira (<strong>Coimbra</strong>, CECH, 2008).<br />
6. Joaquim Pinheiro: Plutarco. Obras Morais – Da Educação<br />
das Crianças. Tradução do grego, introdução e notas<br />
(<strong>Coimbra</strong>, CECH, 2008).<br />
7. Ana Elias Pinheiro: Xenofonte. Memoráveis. Tradução<br />
do grego, introdução e notas (<strong>Coimbra</strong>, CECH,<br />
2009).
8. Carlos <strong>de</strong> Jesus: Plutarco. Obras Morais – Diálogo<br />
sobre o Amor, Relatos <strong>de</strong> Amor. Tradução do grego,<br />
introdução e notas (<strong>Coimbra</strong>, CECH, 2009).<br />
9. Ana Maria Gue<strong>de</strong>s Ferreira e Ália Rosa Conceição:<br />
Plutarco. <strong>Vidas</strong> <strong>Paralelas</strong> – <strong>Péricles</strong> e <strong>Fábio</strong> <strong>Máximo</strong>.<br />
Tradução do grego, introdução e notas (<strong>Coimbra</strong>,<br />
CECH, 2010).