01.07.2013 Views

grafite urbana em movimento - Grupo DEC

grafite urbana em movimento - Grupo DEC

grafite urbana em movimento - Grupo DEC

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES DA<br />

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO<br />

Dissertação apresentada à Escola de<br />

Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,<br />

como exigência parcial para obtenção do título de Mestre<br />

<strong>em</strong> Ciências da Comunicação.<br />

Alves<br />

Orientador: Prof. Dr. Luiz Roberto<br />

Orientando: Arthur Hunold Lara


São Paulo-1996<br />

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES DA<br />

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO<br />

GRAFITE<br />

ARTE URBANA EM MOVIMENTO<br />

32


33<br />

Dissertação apresentada à Escola de<br />

Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,<br />

como exigência parcial para obtenção do título de Mestre<br />

<strong>em</strong> Ciências da Comunicação.<br />

Alves<br />

São Paulo-1996<br />

Orientador: Prof. Dr. Luiz Roberto<br />

Orientando: Arthur Hunold Lara


arbárie"<br />

34<br />

"Pintamos como bárbaros <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos de


Cobra)<br />

(<strong>Grupo</strong><br />

35


---------------------------------------------------------------------<br />

---------------------------------------------------------------------<br />

----------------------------------------------------------------------<br />

Assinaturas da Comissão Julgadora<br />

36


AGRA<strong>DEC</strong>IMENTOS<br />

Para um artista plástico, fazer uma dissertação é tarefa bastante difícil.<br />

Como traduzir para a linguag<strong>em</strong> escrita experiências que são essencialmente visuais?<br />

Para qu<strong>em</strong> está acostumado a trabalhar com arte <strong>urbana</strong>, nas ruas e praças da cidade,<br />

fazer uma dissertação também não é tarefa fácil. Como traduzir <strong>movimento</strong> e<br />

irreverência para o universo acadêmico? Ao longo destes anos do curso de mestrado<br />

muitos amigos, antigos e novos, me acompanharam. Quero agradecer a todos,<br />

principalmente aos meus alunos das oficinas de <strong>grafite</strong>, aos meus companheiros do<br />

grupo “Rastronautas”, Ciro Cozzolino e Carlos Delfino, aos pichadores Psico, The End,<br />

aos ex-pichadores Juneca, Binho, aos <strong>grafite</strong>iros Zé Carratu, Carlos Matuck, Jaime<br />

Prades, Maurício Vilaça, Rui Amaral, Daniel Rodrigues, Júlio Barreto, Ivan Taba, Os<br />

Gêmeos, Speto! & Binho, Job Leocádio e John Howard. A estes artistas mencionados<br />

aqui e a todos os outros que participaram das Mostras Paulistas de Grafite; aos artistas<br />

plásticos Luiz Paulo Baravelli, José Roberto Aguilar, Guto Lacaz , Celestino Bourroul<br />

Neto; aos artistas performáticos Otávio Donacci, Vera Abud e Regiane Cannini; aos<br />

críticos de arte Olney Krüse, Antônio Santoro Júnior e Marcelo Kahns; aos arquitetos<br />

Naia e Darcon da 2d Programação Visual; aos fotógrafos Paulo Lara, Fabiana<br />

Marchesi, Sidney Haddad, Marcos Muzi, Luigi Stavale, e Leonardo Hanselma além do<br />

38


agradecimento sincero só posso dizer que nada teria acontecido s<strong>em</strong> a colaboração e o<br />

apoio que deles recebi. Trabalharam, literalmente, pelo amor à arte.<br />

Agradeço também ao meu orientador, pela paciência e dedicação ao<br />

longo destes anos, à Capes, que apoiou a pesquisa com uma bolsa de estudos, ao<br />

pessoal do LSI da Poli-USP, Rodrigo Siqueira e Alexandre Dupont e ao corpo técnico<br />

do Museu da Imag<strong>em</strong> e do Som e aos patrocinadores das Mostras Paulistas de Grafite.<br />

À minha família, <strong>em</strong> especial a meus pais e minha irmã Silvia, que s<strong>em</strong>pre me<br />

apoiaram de todos os modos possíveis, digo também muito obrigado, <strong>em</strong>bora sabendo<br />

que isto ainda é pouco.<br />

39


RESUMO<br />

40


RESUMO<br />

No final dos anos 70, uma nova forma de manifestação artística surgiu<br />

nos grandes centros urbanos, trazendo novos ares para o panorama artístico<br />

internacional. Com raízes na Europa e Estados Unidos, o <strong>grafite</strong> se fez presente nas<br />

grandes cidades e passou a influenciar novas gerações, extrapolando as fronteiras<br />

nacionais e continentais. Esta dissertação investiga as origens deste <strong>movimento</strong>, as<br />

características e a diversidade dos estilos do <strong>grafite</strong> na cidade de São Paulo, focalizando<br />

especialmente o período de 1990 a 1995. Além da coleta de dados e da pesquisa<br />

bibliográfica, este trabalho procurou discutir e interferir na arte <strong>urbana</strong>, utilizando-se do<br />

espaço do Museu da Imag<strong>em</strong> e do Som de São Paulo para realizar três Mostras<br />

Paulistas de Grafite, nos anos de 1992, 1993 e 1994, que permitiram ao autor um<br />

amplo contato com <strong>grafite</strong>iros e pichadores e uma ativa participação no <strong>movimento</strong><br />

<strong>grafite</strong>.<br />

Nesse espaço de pesquisa, interação e participação, estabeleceu-se um<br />

diálogo entre as diversas gerações de <strong>grafite</strong>iros que permitiu aprofundar a análise desta<br />

forma de comunicação <strong>urbana</strong>, registrando sua história, seus estilos e formas de<br />

manifestação, b<strong>em</strong> como analisar as questões relativas aos conflitos e à aproximação do<br />

<strong>grafite</strong> com a pichação. Ao acompanhar as tendências, a trajetória das várias gerações<br />

de artistas e as novas direções estéticas e os novos suportes dessa arte de vanguarda,<br />

esta dissertação aborda o <strong>grafite</strong> como um processo comunicacional característico dos<br />

grandes centros urbanos que deve ser contextualizada no interior de um quadro mais<br />

amplo do desenvolvimento dos meios de comunicação e da produção cultural nas<br />

grandes cidades.<br />

41


SUMMARY<br />

At the end of the 1970’s a new form of artistic manifestation arouse in<br />

the great urban centers, bringing new ideas to the international artistic community.<br />

With roots in Europe and the United States, graffiti appeared in the large cities and<br />

influenced new generations extending beyond national and continental frontiers. This<br />

dissertation investigates the origins of the mov<strong>em</strong>ent, the characteristics and diversity<br />

of graffiti styles in the city of São Paulo, focusing on the period 1990 to 1995. Besides<br />

the data collection, this work att<strong>em</strong>pts to discuss and make inferences about urban art,<br />

utilising the Museum of Image and Sound of São Paulo to mount three exhibitions of<br />

São Paulo’s Graffiti during the years of 1992, 1993 and 1994. This allowed the author<br />

the ample contact with graffiti artist and wall painters actively involved in the graffiti<br />

mov<strong>em</strong>ent.<br />

In this piece of research, with interaction and participation, a dialogue<br />

was established among various generations of graffiti artists allowing a deepening of<br />

this form of urban communication. Its history, styles and forms of manifestation, as<br />

well as the analysis of questions relative to the conflicts and approximation of the<br />

graffiti with wall marking were registered. In the course of following the tendencies<br />

and supports of this vanguard art, this dissertation approaches graffiti as a<br />

communication process characteristic of the great urban centers which must be seen<br />

within the context of a more ample picture of the development of means of<br />

communication and cultural production in the great cities.<br />

42


AGRA<strong>DEC</strong>IMENTOS<br />

RESUMO<br />

ÍNDICE<br />

Resumo <strong>em</strong> inglês ( abstract) 9<br />

INTRODUÇÃO<br />

SONHOS TROCADOS 1<br />

UMA PESQUISA EM MOVIMENTO 2<br />

CAPÍTULO I HISTÓRIA E SIGNIFICAÇÃO<br />

43<br />

1<br />

2<br />

2<br />

5<br />

7<br />

1<br />

3


URBANAS<br />

PAULO<br />

ACOMODAÇÕES<br />

1. INSCRIÇÕES: MAGIA, TÉCNICA E VELOCIDADE 3<br />

2. O MOVIMENTO GRAFITE 4<br />

3.GRAFITE COMO FORMA DE COMUNICAÇÃO URBANA 5<br />

CAPÍTULO II A LINGUAGEM DAS INSCRIÇÕES<br />

1. ASPECTOS DA COMUNICAÇÃO URBANA EM SÃO<br />

2. AS INSCRIÇÕES URBANAS 7<br />

3. GRAFITAGEM E PICHAÇÃO: TENSÕES E<br />

4. TERRITÓRIOS 9<br />

44<br />

1<br />

2<br />

8<br />

7<br />

6<br />

7<br />

2<br />

0<br />

1<br />

6<br />

6<br />

8


CAPÍTULO III O GRAFITE EM SÃO PAULO<br />

1. HISTÓRIAS, EVENTOS, VERTENTES 1<br />

2. AS TÉCNICAS DO GRAFITE NOS ANOS 70 A 90 1<br />

3. GRAFITE E PICHAÇÃO: INTERAÇÕES VIRTUAIS 1<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

FONTES E BIBLIOGRAFIA<br />

ANEXOS<br />

45<br />

9<br />

00<br />

17<br />

26<br />

41<br />

47<br />

53<br />

9<br />

1<br />

1<br />

1


I-CATÁLOGOS DAS MOSTRAS PAULISTAS DE GRAFITES<br />

II-HOME PAGES “ARTE URBANA”<br />

http://www.artgarag<strong>em</strong>.com.br/<strong>grafite</strong>/paginas/textos-teses.htm<br />

INTRODUÇÃO<br />

46


INTRODUÇÃO<br />

SONHOS TROCADOS<br />

A Europa dos anos 80 transpirava contra-cultura. Os jovens se reuniam<br />

<strong>em</strong> squatts1 e achavam um jeito alternativo de viver com mais liberdade <strong>em</strong> uma<br />

sociedade cheia de regras e imposições, na qual o mercado governava tudo e todos e a<br />

comercialização se fazia <strong>em</strong> escala global. Nesses centros ocupados, a vida era<br />

comunitária e podia-se viver, s<strong>em</strong> gastar muito, uma vez que não se pagavam impostos<br />

e muito menos aluguel. Tudo ali respirava arte e vários ateliês foram construídos <strong>em</strong><br />

fábricas abandonadas e tiveram uma grande influência no estilo de vida da baixa classe<br />

média européia. Era possível encontrar mímicos, músicos, artistas e artesãos <strong>em</strong> ateliês<br />

desse tipo, oferecendo produtos e serviços os mais diversos com preços b<strong>em</strong> menores<br />

que nos locais institucionalizados. Novas bandas de música e grupos de artistas<br />

plásticos começaram a apresentar seus trabalhos nos pubs, fazendo sucesso também <strong>em</strong><br />

Amsterdã e Paris. Selos alternativos surgiram, apoiando nomes como Nina Hagen e Sex<br />

Pistols, entre outros.<br />

A proposta pacifista , multicultural e anarquista se fazia presente nessas<br />

pequenas comunidades vestidas de preto, ornamentadas com objetos pontudos ou<br />

alfinetes e ostentando cabelos coloridos. A descartabilidade era presente no dia a dia: os<br />

móveis eram improvisados com objetos achados no lixo ou peças recuperadas.<br />

Convivia-se com a possibilidade da expulsão por parte da polícia, que aparecia de vez<br />

<strong>em</strong> quando para recuperar os imóveis para seus antigos proprietários. Os estrangeiros<br />

1 Squatt era a denominação dada para as moradias ocupadas, e seus ocupantes eram, por decorrência,<br />

chamados squatters. Embora a palavra seja de orig<strong>em</strong> inglesa, ela passou a ser utilizada <strong>em</strong> vários<br />

países da Europa e também nos EUA para designar um <strong>movimento</strong> específico dos invasores de<br />

edifícios abandonados, que possuía as características descritas aqui.<br />

47


eram aceitos e atividades culturais (exposições, shows, etc.) serviam para d<strong>em</strong>onstrar a<br />

utilização pública dos espaços invadidos. Amsterdã, Londres, Berlim e Paris foram o<br />

centro dessa contra-cultura, que acabou por influenciar as artes e a música <strong>em</strong> todo o<br />

mundo e passou a ser cada vez mais identificada com a cultura punk2.<br />

Assim, um enorme circuito alternativo se desenvolvia, competindo com<br />

a arte oficial e patrocinada. A rua era uma enorme fonte de inspiração, e palco destas<br />

atividades. Ela se transformava, no processo alternativo de recuperação e revitalização<br />

dos espaços urbanos abandonados; também era o lugar onde formas descartáveis e<br />

improvisadas da performance apareciam e onde o <strong>grafite</strong> se tornava um meio de<br />

comunicação e uma marca identificadora deste <strong>movimento</strong> cultural. A música das<br />

rádios livres, os bares dos squatters e suas exposições transformaram o panorama das<br />

artes européias.<br />

Muitos <strong>grafite</strong>iros viveram e trabalharam abrigados nesses espaços e só<br />

depois começaram a internacionalizar e institucionalizar suas carreiras. Viver numa<br />

casa abandonada, invadida por uma dezena de punks que faziam reuniões periódicas e<br />

discutiam idéias anarquistas, passou a ser uma rotina para várias pessoas que, depois, se<br />

tornaram grandes nomes do <strong>grafite</strong>. Nestes espaços alternativos, deixar uma marca e<br />

imprimir um estilo próprio nas fachadas para sinalizar a ocupação, o espírito do<br />

<strong>movimento</strong> e d<strong>em</strong>onstrar de forma visível sua força eram práticas constantes e<br />

necessárias3. Foi assim que o <strong>grafite</strong> foi amplamente utilizado e se desenvolveu <strong>em</strong><br />

territórios urbanos, criando uma nova identidade visual nas grandes cidades.<br />

2 Para um breve panorama sobre o <strong>movimento</strong> punk, vide Antônio Bivar - O Que é Punk. São Paulo,<br />

Brasiliense, 1984.<br />

3 Um bom ex<strong>em</strong>plo deste processo pode ser acompanhado através do artigo de Alexandre Thoele - ‘O<br />

fim do lixo ‘cult’ ” revista Domingo, 972, Jornal do Brasil, 18 de dez<strong>em</strong>bro de 1994. A<br />

reportag<strong>em</strong> descreves os squatts,. seus moradores e o tipo de vida que levavam <strong>em</strong> Berlim na época<br />

da derrubada do muro e da unificação das duas Al<strong>em</strong>anhas. Nessa reportag<strong>em</strong> é possível ver alguns<br />

<strong>grafite</strong>s utilizados nas fachadas dos edifícios ocupados, b<strong>em</strong> como algumas pichações.<br />

48


Com o <strong>movimento</strong> dos squatters a rua passou a ter um papel<br />

significativo, sendo não apenas o lugar de manifestação de muitas vertentes alternativas<br />

mas, também, o símbolo de uma nova ord<strong>em</strong> que desafiava e obrigava a cidade a<br />

repensar seus espaços vazios. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, verdadeiras batalhas foram travadas<br />

pela disputa e legalização dos squatters. Enquanto muitos inquilinos inadimplentes ou<br />

“invasores” procuravam advogados para defender seus direitos, novas leis foram<br />

elaboradas tentando impedir a continuidade deste <strong>movimento</strong>. No contexto de uma<br />

nova perspectiva européia que preparava a unificação econômica e com surgimento de<br />

<strong>movimento</strong>s nacionalistas e neo-nazistas, os squatters foram perdendo sua força nas<br />

cidades, mas não sua influência nas artes. Forçado de certo modo a algum tipo de<br />

institucionalização, o <strong>movimento</strong> procurou novos espaços políticos nas Organizações<br />

Não Governamentais, na busca de atuações mais especializadas e diversificadas, muitas<br />

das quais com características internacionais. Isto contribuiu para a difusão do<br />

<strong>movimento</strong> dentro e fora da Europa, fortalecendo e sobretudo popularizando a arte do<br />

<strong>grafite</strong> e seus artistas.<br />

Ao longo desse tortuoso caminho, gerações distantes passaram a ter seus<br />

sonhos trocados: a geração jov<strong>em</strong> brasileira sonhava com a Europa e os jovens<br />

europeus buscavam a aventura nos trópicos. Apesar das diferenças, a geração dos anos<br />

80 tinha a rua e o espaço urbano como lugares privilegiados para expressão de suas<br />

idéias e deles recebiam toda a influência. Mas é preciso considerar também que, no<br />

Brasil, a influência se deu através da repercussão que este <strong>movimento</strong> artístico obteve<br />

<strong>em</strong> espaços mais institucionalizados. As revistas internacionais de arte que eram lidas<br />

no Brasil4 mostravam a efervescência das novas tendências da arte européia. Em São<br />

Paulo, durante a XVII Bienal, houve manifestações contra certas tradições e artistas<br />

4 Como, por ex<strong>em</strong>plo, as nova-iorquinas Art in America, publicada por Elizabeth C. Baker, e Flash Art,<br />

editada por Helena Kontova e Giancarlo Politi, entre outras.<br />

49


como Keith Haring e Kenny Scharf, que haviam iniciado suas carreiras nas ruas de<br />

New York, foram recebidos (a sua revelia) com certa cerimônia. 5<br />

No final dos anos 80, o <strong>movimento</strong> <strong>grafite</strong> estava <strong>em</strong> alta e ganhava as<br />

galerias de arte. Nas ruas havia muita agitação e brigas por territórios. Em São Paulo, o<br />

bairro de Vila Madalena abrigava a maioria dos <strong>grafite</strong>iros e começava a ter seus muros<br />

transformados <strong>em</strong> verdadeiros murais urbanos. Os espaços eram disputados; havia<br />

muitos grupos e grande diversidade de estilos. O <strong>grafite</strong> conquistava rapidamente os<br />

jornais, as galerias e ganhava espaço também na programação das secretarias estaudais<br />

e municipais de cultura. Num momento de crise econômica, a rua e o <strong>grafite</strong> passaram<br />

também a constituir um espaço de sobrevivência para uma grande parte dos jovens das<br />

cidades.<br />

Foi neste contexto que o autor dessa dissertação retornou ao Brasil,<br />

depois de três anos <strong>em</strong> Amsterdã. Do contato com o <strong>movimento</strong> <strong>grafite</strong> paulista<br />

surgiram várias constatações e muitas idéias. A primeira delas foi verificar como um<br />

<strong>movimento</strong>, que havia surgido como alternativo, estava cada vez mais se<br />

institucionalizando. A efervescência do <strong>grafite</strong> na cidade pedia um estudo e, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po, uma intervenção prática. Havia uma brasilidade na interpretação dos princípios<br />

e idéias originais que haviam inspirado o <strong>movimento</strong> europeu e norte-americano. Mas,<br />

aqui, a relação ambígua entre marginalidade e institucionalização se desenvolvia num<br />

momento de abertura política e de crise econômica: o <strong>grafite</strong> significava uma<br />

alternativa para o jovens deixar<strong>em</strong> as páginas policiais dos jornais e configurava-se<br />

como um meio de expressão cultural e artística com grandes potencialidades. Havia<br />

também muitos probl<strong>em</strong>as. As investigações acadêmicas a respeito dos <strong>movimento</strong>s<br />

artísticos tendiam muitas vezes a privilegiar uma abordag<strong>em</strong> teórica (através da<br />

s<strong>em</strong>iologia, da psicologia gestalt, etc.), adotando modelos importados de interpretação.<br />

5 Durante a XVII Bienal, <strong>em</strong> 1983 houve grande valorização do <strong>grafite</strong> figurativo na mídia. A<br />

repercussão também foi grande com a participação de <strong>grafite</strong>iros brasileiros como Zaidler, Matuck<br />

e Vallauri na XVIII Bienal <strong>em</strong> 1985.<br />

50


Além disso, havia pouco interesse <strong>em</strong> aspectos mais “práticos”. O <strong>movimento</strong> <strong>grafite</strong><br />

paulista possuía características que o diferenciavam positivamente do <strong>movimento</strong><br />

europeu mas também possuía muitos conflitos internos; o contato entre as várias<br />

gerações e um diálogo entre o <strong>grafite</strong> e outras formas de comunicação <strong>urbana</strong> eram<br />

bastante restritos. Diante disso, uma atitude ao mesmo t<strong>em</strong>po analítica e participativa,<br />

sobretudo por parte de alguém que havia muito t<strong>em</strong>po se dedicava às artes plásticas,<br />

parecia o caminho mais interessante a ser adotado.<br />

A primeira possibilidade surgiu com a participação <strong>em</strong> um curso de<br />

especialização <strong>em</strong> arte, comunicação e educação, ministrado pelo Departamento de<br />

Comunicações e Artes da ECA-USP6. Este curso forneceu um panorama das teorias e<br />

conceitos básicos na área da comunicação, instrumentalizando a elaboração de um<br />

projeto de trabalho, ativo e reflexivo, voltado para o <strong>movimento</strong> dos <strong>grafite</strong>iros e<br />

pichadores <strong>em</strong> São Paulo. Este trabalho foi adensado e ampliado através do contato<br />

com outros projetos institucionais que também lidavam com o mesmo t<strong>em</strong>a e a mesma<br />

questão.<br />

O “Projeto Grafite-se” foi o primeiro deles. Elaborado pela Secretaria<br />

Estadual de Cultura de São Paulo, visava levar o <strong>grafite</strong> para o interior do Estado7 e<br />

contava com a participação de <strong>grafite</strong>iros8 que concebiam o <strong>grafite</strong> como algo próximo<br />

à arte mural, enfatizando seu aspecto plástico. A aceitação do projeto foi um tanto<br />

tumultuada e alguns episódios revelam algumas de suas contradições. Numa grafitag<strong>em</strong><br />

realizada na cidade de Mococa <strong>em</strong> 1989, por ex<strong>em</strong>plo, o contato entre os <strong>grafite</strong>iros<br />

envolvidos no projeto e os jovens da cidade foi bastante restrito. Um dos <strong>grafite</strong>s, <strong>em</strong><br />

um muro de uma escola local, retratava uma mulher nua. Os organizadores do evento<br />

6 Trata-se do curso “Ação Educacional <strong>em</strong> Comunicação Social”, ministrado <strong>em</strong> 1987 pelo Prof. Dr.<br />

Ismar de Oliveira Soares, oferecido pelo CCA da ECA-USP como especialização na área de “Arte e<br />

Educação”.<br />

7 Em especial para as grandes cidades do interior, como Ribeirão Preto, Mococa e Piracicaba.<br />

8 Entre eles, os artistas Jaime Prades, Júlio Barreto, Zé Carratu, Carlos Delfino e Carlos Matuck.<br />

51


na cidade delicadamente reprovaram a idéia e pediram que o <strong>grafite</strong> fosse modificado,<br />

alegando que a escola era freqüentada por crianças pequenas. No dia seguinte, os<br />

<strong>grafite</strong>iros colocaram um avental de professora na figura, contornando o probl<strong>em</strong>a mas<br />

eliminando a intenção provocativa e irreverente do <strong>grafite</strong>. A grafitag<strong>em</strong> contava com o<br />

apoio da prefeitura local, havendo fartura de tintas e locais planejados para a atividade.<br />

No entanto, a parte mais interessante do trabalho acontecia quando os <strong>grafite</strong>iros<br />

resolviam improvisar. Em Mococa, para continuar com o mesmo ex<strong>em</strong>plo, os<br />

<strong>grafite</strong>iros resolveram pintar as pontes da cidade com motivos do campo. Como elas<br />

ficavam próximas a alguns bares e eram ponto de muita circulação, o esperado contato<br />

com a população finalmente aconteceu, mostrando que a improvisação e o descontrole<br />

podiam resultar numa experiência significativa.<br />

Estes dois episódios mostram como o <strong>grafite</strong>, mesmo dentro do<br />

permitido e passando a conviver com projetos e iniciativas institucionais, podia<br />

acarretar experiências inéditas no panorama das artes <strong>em</strong> São Paulo. Ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />

indicam como a interferência e a participação direta e prática no <strong>movimento</strong> podiam<br />

resultar <strong>em</strong> espaços revitalizados e <strong>em</strong> atitudes que tinham muito <strong>em</strong> comum com o<br />

<strong>grafite</strong> internacional.<br />

Em 1991 houve uma segunda experiência importante. O “Projeto<br />

Passag<strong>em</strong> da Consolação”, <strong>em</strong>preendido <strong>em</strong> São Paulo pelo governo municipal através<br />

da Administração Regional da Sé, atravessava dificuldades. Por falta de verbas, a<br />

coordenadora do projeto pintou o mural existente naquela passag<strong>em</strong> subterrânea de<br />

amarelo, esperando com isso provocar alguma reação nas pessoas. Em resposta,<br />

<strong>grafite</strong>iros e músicos se reuniram e, através de performances realizadas no local,<br />

fizeram uma leitura sonora e visual do imaginário da cidade. A reação do público foi<br />

intensa: todos queriam pintar e tocar. Como não havia nenhum esqu<strong>em</strong>a de produção,<br />

foi difícil controlar a situação. A banda formada produzia sons primitivos e gritos sob<br />

muita improvisação; as partituras eram histórias <strong>em</strong> quadrinhos. Isto colocou os<br />

52


<strong>grafite</strong>iros muito próximos ao imaginário urbano e resultou <strong>em</strong> uma fusão público-<br />

banda-<strong>grafite</strong>9.<br />

O contraste entre as atividades deste projeto e as do anterior é gritante. O<br />

público urbano, sobretudo metropolitano, é mais solitário e carente que o do interior e<br />

participou mais ativamente do nosso trabalho. Por outro lado, tínhamos a sensação de<br />

estarmos sendo compreendidos e que nossa linguag<strong>em</strong> se exprimia <strong>em</strong> uma estética<br />

apropriada: o <strong>grafite</strong>.<br />

Mas havia ainda a diferença entre <strong>grafite</strong>iros e pichadores. A<br />

oportunidade de entrar <strong>em</strong> contato com este grupo, tão marginalizado pelas instituições<br />

e pela política <strong>urbana</strong> oficial, surgiu com a iniciativa do autor desta dissertação de<br />

realizar um trabalho, <strong>em</strong> caráter experimental, junto à Administração da Regional do<br />

Butantã, também <strong>em</strong> São Paulo10. Assim surgiram as “Oficinas de Out-Door”, que<br />

reuniam <strong>grafite</strong>iros e pichadores num trabalho experimental conjunto. Este projeto<br />

encontrou respaldo na Prefeitura pois funcionava como a possibilidade de abrir um<br />

canal de comunicação com a população do bairro, especialmente com a sua parte mais<br />

jov<strong>em</strong>, e de “resolver” o probl<strong>em</strong>a dos gastos com a caiação dos muros pichados.<br />

As “Oficina de Out-Door”11 iniciaram suas atividades utilizando um<br />

out-door no qual simplesmente se escreveu: "Admite-se pichadores. Telefone: 842-<br />

6936". A idéia era chamar os pichadores do bairro para participar<strong>em</strong> das oficinas, que<br />

acabaram contando também com artistas plásticos, como Celestino Bourroul Neto, e<br />

9 Este trabalho foi realizado durante várias s<strong>em</strong>anas. Logo depois outros <strong>grafite</strong>iros, como Jaime Prades,<br />

Rui Amaral e Celso Gitahy, também realizaram grafitagens na Passag<strong>em</strong> da Consolação. Isto<br />

ajudou o Projeto a ganhar força novamente, chegando inclusive a obter prêmios no exterior e a<br />

publicar um catálogo com os artistas participantes.<br />

10 A proposta de trabalhar diretamente com pichadores resultava também das discussões e debates<br />

realizados durante o evento "Cidade-Cidadão-Cidadania", promovido pela Secretaria Municipal de<br />

Cultura de São Paulo, <strong>em</strong> 1989.<br />

11 As “Oficinas de Out-Door” foram realizadas entre 1990 e 1991 na Casa de Cultura do Butantã. Elas<br />

resultaram <strong>em</strong> mais de cinco painéis colocados na ponte da Av. Euzébio Matoso, <strong>em</strong> São Paulo.<br />

53


ex-pichadores, como Juneca. Este chegou a ressaltar a necessidade de mudar da<br />

pichação para algo diferente: "já faz t<strong>em</strong>po que estamos nessas letrinhas e nada de novo<br />

acontece". As tentativas de associar técnicas plásticas ao spray foram b<strong>em</strong> sucedidas e<br />

o trabalho desenvolvido logo chegou aos meios de comunicação de massa12.<br />

Estas três frentes de trabalho resultaram <strong>em</strong> um contato intenso com a<br />

sociedade <strong>urbana</strong> que evidenciou, mais uma vez, o quanto ela é classista e capaz de<br />

segregar culturalmente um grupo - o dos pichadores e <strong>grafite</strong>iros. Estes projetos,<br />

desenvolvidos <strong>em</strong> um momento de certa abertura d<strong>em</strong>ocrática, puderam mostrar que<br />

estas pessoas eram trabalhadores cheios de energia e tinham capacidade para achar<br />

meios adequados para se exprimir<strong>em</strong>. A sociedade apenas os reprimia, tratando-os<br />

como marginais e vagabundos. A polícia os espancava, obrigando-os a trabalhos<br />

forçados, a pintar viadutos e pontes, sob a mira de armas pesadas. Isto só incentivava o<br />

segregamento, tornando cada vez mais difícil penetrar nesta nova forma de arte <strong>urbana</strong><br />

e entender seu conteúdo.<br />

Foi a partir destas questões que surgiu o projeto de pesquisa, <strong>em</strong> nível de<br />

mestrado na área de cultura e comunicação, que deu orig<strong>em</strong> a esta dissertação. Seu<br />

objetivo mais amplo foi o de tentar, através da atitude reflexiva e da ação direcionada,<br />

registrar, resgatar e modificar o panorama da arte <strong>urbana</strong> que se desenvolvia nas ruas de<br />

São Paulo.<br />

UMA PESQUISA EM MOVIMENTO<br />

S<strong>em</strong> investimentos na educação e com o agravamento da situação<br />

ambiental, do trânsito, da saúde e da moradia, além do acúmulo de obras viárias<br />

voltadas para o transporte individual, a cidade de São Paulo não t<strong>em</strong> convivido com<br />

12 Este trabalho t<strong>em</strong> sido noticiado tanto por jornais de bairro como de grande circulação, merecendo<br />

ainda reportagens especiais na TV Bandeirantes.<br />

54


projetos culturais de grande porte. Eventos esporádicos, como o teatro de rua, o projeto<br />

Arte/Cidade13, a corrida de São Silvestre ou a Maratona de São Paulo, não são capazes<br />

de proporcionar à cidade um nível de qualidade de vida comparável ao de outras<br />

cidades com população s<strong>em</strong>elhante. Quase não há participação da comunidade na<br />

organização desses eventos e fica evidente o paternalismo na direção e condução da<br />

arte e das manifestações <strong>urbana</strong>s. Os museus, com exceção do Museu de Arte<br />

Cont<strong>em</strong>porânea e do Museu de Arte Moderna, têm uma visão conservadora da arte e<br />

são profundamente elitistas diante de uma população cada vez mais diversificada e<br />

numerosa.<br />

Ao se propor a aprofundar o estudo sobre o <strong>grafite</strong> na cidade de São<br />

Paulo, o projeto de mestrado enfrentou o desafio de <strong>em</strong>preender uma ação direta e<br />

prática que fosse capaz de interferir e documentar as experiências desta arte <strong>urbana</strong>. Foi<br />

assim que surgiu a idéia das Mostras Paulistas de Grafites, que aproveitaram as<br />

experiências acumuladas nos anos anteriores (durante a participação do autor no<br />

“Projeto Grafite-se”, no “Projeto Passag<strong>em</strong> da Consolação” e na “Oficinas de Out-<br />

Door”).<br />

Estas Mostras realizaram-se no Museu da Imag<strong>em</strong> e do Som de São<br />

Paulo nos anos de 1992, 1993 e 1994 (vide catálogos no Anexo I). Concebidas pelo<br />

autor desta dissertação, que coordenava todos os trabalhos de curadoria, organização e<br />

produção, as Mostras envolviam também os <strong>grafite</strong>iros da cidade. A equipe de<br />

produção era formada ainda por estagiários da ECA-USP e técnicos do Museu da<br />

Imag<strong>em</strong> e do Som de São Paulo.14. A I Mostra Paulista de Grafite, realizada de 12 a<br />

13 Em 1994 este projeto instalou e revitalizou a área central da cidade, convidando artistas e arquitetos<br />

para interferir no espaço da cidade. No ano seguinte atuou diretamente sobre os trens urbanos,<br />

recuperando sua m<strong>em</strong>ória e sua capacidade transformadora.<br />

14 A produção desses eventos enfrentou grandes dificuldades pois, além de sucessivos planos econômicos<br />

e suas respectivas recessões, havia o probl<strong>em</strong>a básico de financiamento da produção de um evento<br />

de grandes proporções, que ocupava todo um andar do Museu e envolvia grande número de artistas<br />

e pessoas. Para tanto, conseguiu captar recursos na iniciativa privada para custear a exposição e a<br />

55


31 de maio de 1992, contou com a participação de artistas da primeira e da segunda<br />

gerações do <strong>grafite</strong> paulista, b<strong>em</strong> como de principiantes que tiveram seus trabalhos<br />

selecionados pela curadoria da exposição, num total de 18 artistas15. Além da<br />

exposição das obras, houve vários eventos paralelos envolvendo grupos de teatro de<br />

rua, conversas com radioamadores, execução de <strong>grafite</strong>s de super-heróis <strong>em</strong> vários<br />

pontos da cidade, <strong>em</strong> especial nas colunas da Estação do Metrô de Santana, e uma<br />

homenag<strong>em</strong> a Wilson Limongelli16.<br />

Há, no entanto, um fato que merece atenção. A I Mostra coincidia com<br />

outras exposições coletivas realizadas no Museu, cujos artistas recusaram-se a expor<br />

seus trabalhos juntamente com o "pessoal do <strong>grafite</strong>". Vários preconceitos serviram de<br />

base para justificar esta atitude e, na incompatibilidade do trabalho conjunto, acabamos<br />

por ocupar o primeiro andar inteiro, já que os outros artistas transferiram ou cancelaram<br />

suas exposições. Esse fato contribuiu para o sucesso do primeiro evento e garantiu a<br />

agenda para a II Mostra. A I Mostra não teve um processo de seleção e os <strong>grafite</strong>iros<br />

convidados a participar do evento viram com bons olhos a presença de outros<br />

<strong>grafite</strong>iros principiantes, com exceção dos mais velhos, que ameaçaram sair se outros<br />

nomes com menor expressão viess<strong>em</strong> a expor seus trabalhos na mesma sala que eles.<br />

Para resolver o impasse, ficou acertado que a ala mais velha do <strong>grafite</strong> ficaria <strong>em</strong> uma<br />

sala especial. Com esses pequenos acertos, a exposição prosseguiu com êxito e s<strong>em</strong><br />

nenhuma desistência. Este fato evidencia o quanto o proposta de intervenção no<br />

impressão dos catálogos, utilizando-se não apenas do plano de mídia do próprio Museu mas<br />

também do auxílio de alguns alunos da área de marketing da ECA-USP, que realizaram um estágio<br />

junto a este Projeto. Para os estagiários foi uma oportunidade de participar<strong>em</strong> da produção de um<br />

evento de grande porte, efetivando uma ponte entre a universidade e a realidade cotidiana desta<br />

profissão.<br />

15 Alex Vallauri (in m<strong>em</strong>oriam), Arthur Lara, Carlos Delfino, Carlos Matuck, Celso Gitahy, Daniel<br />

Rodrigues, Ivan Taba, Jaime Prades, Júlio Barreto, Juneca, Lucila Maia, Moacir Vasquez, Rui<br />

Amaral, Speto! & Binho, Tina Vieira, Wald<strong>em</strong>ar Zaidler e Zé Carratu. Para maiores informações<br />

sobre estes artistas, vide respectivo catálogo, no Anexo I.<br />

16 Wilson Limongelli grafitava os muros do bairro de Pinheiros nas décadas de 40 e 50, desenhando<br />

super-heróis com carvão.<br />

56


<strong>movimento</strong> e de promover o diálogo entre seus participantes, que estava na base de<br />

nosso projeto de pesquisa, mostrava-se oportuna e necessária.<br />

A partir da I Mostra, houve necessidade de fazer uma seleção prévia<br />

mais rigorosa, pois o Museu da Imag<strong>em</strong> e do Som de São Paulo não comportava um<br />

número maior de participantes. Assim, a II Mostra foi precedida por atividades<br />

preparatórias, que envolviam o processo de divulgação e de seleção dos artistas<br />

interessados <strong>em</strong> participar dela. Usando a experiência da I Mostra, trabalhou-se no<br />

sentido de produzir um evento de grafitag<strong>em</strong> no muro da Estação Jaguaré da FEPASA,<br />

de modo a selecionar os 30 concorrentes. Essas áreas no Jaguaré e também as de<br />

Santana (utilizadas na I Mostra) foram as primeiras (e únicas) a abrigar<strong>em</strong> uma<br />

experiência de recuperação e revitalização de regiões degradadas da cidade<br />

inteiramente comandada por artistas urbanos. A crise econômica e as dificuldades de<br />

organização foram superadas pela força e a grande participação de <strong>grafite</strong>iros nos<br />

eventos, que possibilitaram essa experiência singular na cidade.<br />

Este trabalho coletivo também esteve presente na preparação da III<br />

Mostra, quando foram realizadas oficinas de <strong>grafite</strong> que colocaram <strong>em</strong> contato a<br />

primeira e a terceira gerações do <strong>movimento</strong> <strong>em</strong> São Paulo 17 . Neste processo, as<br />

Mostras Paulistas de Grafite ofereceram um panorama dos estilos do <strong>movimento</strong><br />

<strong>grafite</strong> desde seu início até suas manifestações mais recentes e contaram ainda com<br />

debates, palestras, vídeos e performances18. Através destes eventos, o <strong>grafite</strong> pôde<br />

17 Vide catálogos no Anexo I<br />

18 A II Mostra Paulista de Grafite contou com a participação dos seguintes artistas: grupo Xavantes,<br />

Gustavo Lima, gêmeos & Speto!. Neto e Mona, Job Leocádio, Jorge Tavares, Silvio Vieira Lima,<br />

Achiles, Lore, Os Gêmeos e Edinho. Além disso, promoveu a apresentação de vídeos gráficos<br />

cedidos pela MTV, Globograph e TV Cultura, performances realizadas por Tina Vieira, exibição de<br />

vídeos, implantação de instalações, confecção de out-doors <strong>em</strong> vários pontos da cidade, debates<br />

com especialistas <strong>em</strong> técnicas projetivas gráficas, e uma exposição paralela de fotografia no Espaço<br />

Banco Nacional “O <strong>grafite</strong> <strong>em</strong> Nova Iorque”. A III Mostra Paulista de Grafite contou com a<br />

participação de Alexandre da Silva, Arnaldo Vuolo, Arthur Lara, Binho, Carlos Delfino, Carlos<br />

Matuck, Chico Américo, Edinho, Fabiana Marchesi, German, Gilberto R. M. Filho, Herbert<br />

Baglione, Job Leocádio, Jorge Tavares, Júlio Dojcsar, Júlio Barreto, Juneca, Luigi Stavale, Marcelo<br />

57


incar com a idéia de entrar no museu, atingir um público diferenciado, inclusive<br />

viajando por outras cidades. Esta idéia possibilitou ainda que várias outras coletivas<br />

foss<strong>em</strong> organizadas, mostrando a vitalidade deste <strong>movimento</strong>.<br />

Por outro lado, já na II Mostra iniciava-se a experimentação com a arte<br />

eletrônica, que começava a se desenvolver rapidamente no Brasil. A experiência de<br />

reunir os <strong>grafite</strong>iros com as Mostras Paulistas de Grafite foi gratificante, pois eles<br />

souberam aproveitar a oportunidade e um público diferenciado passou a freqüentar o<br />

museu pela primeira vez. Esse público era bastante jov<strong>em</strong> e caracterizava-se por<br />

consumir com fascínio novas tecnologias (sua habilidade com as máquinas de vídeo-<br />

games e computadores é b<strong>em</strong> superior ao de pessoas pertencentes a gerações<br />

anteriores). Por isso, o casamento dos <strong>grafite</strong>s com as máquinas eletrônicas era um<br />

passo a ser dado, um desafio a ser enfrentado. A II Mostra Paulista de Grafite<br />

<strong>em</strong>preendeu algumas experiências neste sentido, mas teve dificuldades <strong>em</strong> encontrar<br />

patrocinadores. A III Mostra continuou a investir nesta direção e, <strong>em</strong> 1995, deu-se<br />

finalmente início à passag<strong>em</strong> do <strong>grafite</strong> para o meio virtual. Este meio, mais<br />

especificamente a rede Internet, surgia então como alternativa válida para ultrapassar<br />

limites geográficos e as barreiras políticas: um novo espaço de atuação que permitia a<br />

d<strong>em</strong>ocratização e a popularização da arte e que já possuia várias galerias e revistas<br />

virtuais19. As Mostras Paulistas de Grafite, que levaram a arte <strong>urbana</strong> das ruas para o<br />

interior dos museus, começam agora a freqüentar estes novos caminhos.<br />

Bassarani, Marcos Muzi, Sebastião Alexandre, Sidney Haddad, Tinho, Ulisses Marcelus, Zé<br />

Carratu e dos grupos Bill & Fábio, Bride, Brisola & Kobra, Os Gêmeos e Rice & Beans - que<br />

participaram de trabalhos coletivos -, b<strong>em</strong> como de artistas especialmente convidados para expor<br />

suas obras individualmente, como Ivan Taba, Jaime Prades, John Howard e Rui Amaral. A III<br />

Mostra expôs ainda trabalhos inéditos de Maurício Vilaça.<br />

19 Na década de 90 a ilustração e os efeitos de computador influenciaram os estilos e aproximaram o<br />

<strong>grafite</strong> do suporte digital. Em 1994 a internet, através da galeria virtual “Art Crimes”, mostrava<br />

obras do <strong>grafite</strong>iro John Howard, como ver<strong>em</strong>os mais adiante. Esta galeria se transformou, <strong>em</strong><br />

pouco t<strong>em</strong>po, na maior coleção virtual do <strong>movimento</strong> <strong>grafite</strong>, com imagens de várias cidades de<br />

diferentes países. Já no final de 1995 a galeria virtual “Art Crimes” passou a incluir obras dos<br />

<strong>grafite</strong>iros de São Paulo, por da iniciativa desta pesquisa, que contou com o auxílio do Laboratório<br />

de Sist<strong>em</strong>as Integráveis da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.<br />

58


Elaborar as Mostras, desenvolver a pesquisa, registrar os estilos de<br />

<strong>grafite</strong> e atuar no <strong>movimento</strong> tentando valorizá-lo foram trabalhos árduos que se<br />

estenderam durante os cinco anos do curso de mestrado. Durante esse t<strong>em</strong>po, o <strong>grafite</strong><br />

passou por diversas fases, transferindo-se para a legalidade. A pichação, no entanto,<br />

continuou marginalizada, encontrando uma forma de se legitimar perante a sociedade<br />

ao se transformar na letra grafitada ou no chamado estilo hip hop. Além da pesquisa,<br />

que se consubstanciou na realização das Mostras Paulistas de Grafite, a elaboração<br />

desta dissertação também envolveu percorrer diversos caminhos teóricos para<br />

fundamentar uma análise do <strong>grafite</strong> e da pichação <strong>em</strong> São Paulo. Não é d<strong>em</strong>ais repetir,<br />

porém, que, mais que um percurso teórico, esta pesquisa nasceu de uma atividade<br />

prática e experimental que, além de sua própria produção e de seu caráter documental,<br />

pretendeu avançar no sentido de uma análise crítica envolvendo arte, comunicação e<br />

educação. Deste ponto de vista, este texto preocupa-se menos com a construção de uma<br />

análise teórica e explicativa do <strong>grafite</strong>, e mais com o confronto entre as diversas<br />

interpretações possíveis e a experimentação e registro dos desdobramentos do<br />

<strong>movimento</strong> <strong>grafite</strong> <strong>em</strong> São Paulo, especialmente quanto às conexões entre <strong>grafite</strong> e arte<br />

<strong>urbana</strong>.<br />

Adotando por metodologia a experimentação e o acompanhamento<br />

direto do processo de desenvolvimento do <strong>grafite</strong> <strong>em</strong> São Paulo, pretendeu-se registrar<br />

sua história, seus estilos, suas apropriações e suas novas formas, b<strong>em</strong> como apontar as<br />

questões relativas à aproximação do <strong>grafite</strong> com a pichação, no sentido de colocá-los no<br />

interior de um quadro mais amplo do desenvolvimento dos meios de comunicação e da<br />

produção cultural nas grandes cidades. Neste sentido, a ênfase deste trabalho está <strong>em</strong><br />

analisar e relacionar as diferentes linguagens presentes no <strong>grafite</strong>, não só do ponto de<br />

vista de seus aspectos teóricos mas, sobretudo, a partir do processo mesmo da sua<br />

produção e experimentação. Assim, a pesquisa realizada possuiu dois aspectos<br />

integrados: um é o estudo mais teórico destas questões e outro, talvez o mais<br />

59


importante, é justamente a experimentação, a participação e a interferência no<br />

<strong>movimento</strong> de arte <strong>urbana</strong>20.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po, esta participação e interferência direta nas<br />

manifestações da arte <strong>urbana</strong> <strong>em</strong> São Paulo, ao utilizar espaços institucionalizados<br />

como os museus de arte para a produção de exposições, promoveu um diálogo entre o<br />

"velho" e o "novo" e buscou novos espaços que permitiss<strong>em</strong> uma reflexão mais<br />

aprofundada sobre o imaginário da cidade. Por isso, a pesquisa envolveu também um<br />

trabalho comunitário que, confrontado sist<strong>em</strong>aticamente com leituras e investigações<br />

teóricas, chega agora a uma dissertação de mestrado que pretende oferecer uma<br />

reflexão crítica sobre a história do <strong>grafite</strong> <strong>em</strong> São Paulo e apontar alternativas possíveis<br />

para futuros desdobramentos da arte <strong>urbana</strong>, tirando-a do estigma da marginalidade e da<br />

violência.<br />

Com este objetivo, o texto foi dividido <strong>em</strong> três capítulos, ao longo dos<br />

quais o <strong>grafite</strong> é tratado como um dos agentes propulsores da arte <strong>urbana</strong>, que adquiriu<br />

diferentes suportes e significados através das sucessivas gerações de <strong>grafite</strong>iros na<br />

cidade de São Paulo.<br />

Assim, o primeiro capítulo discute as relações entre a arte das antigas<br />

inscrições e o impacto da velocidade e da tecnologia nas grandes cidades<br />

cont<strong>em</strong>porâneas, mostrando como, ao longo do t<strong>em</strong>po, os <strong>movimento</strong>s da arte <strong>urbana</strong><br />

se estabeleceram como um fenômeno de interferência, de manifestação artística e<br />

comunicacional.<br />

A linguag<strong>em</strong> das inscrições <strong>urbana</strong>s, seus aspectos comunicativos e as<br />

tensões e conflitos entre a grafitag<strong>em</strong> e a pichação são analisados no segundo capítulo.<br />

20 Trabalhar com experimentação <strong>em</strong> arte <strong>urbana</strong> requer um amplo contato com a rua, o bairro, as<br />

pessoas. No caso do <strong>grafite</strong> e da pichação, este trabalho envolve um contato direto com a<br />

marginalidade e a violência. Em geral os pichadores são marginalizados e acusados de "sujar<strong>em</strong>" a<br />

cidade. O <strong>grafite</strong>, porém, t<strong>em</strong> tido uma aceitação parcial por parte do grande público.<br />

60


Nestes dois primeiros momentos, o texto se situa num plano mais geral, procurando<br />

realizar um diálogo entre a escassa bibliografia sobre o t<strong>em</strong>a e os el<strong>em</strong>entos coletados<br />

durante a pesquisa. O capítulo III dedica-se a analisar a história do <strong>grafite</strong> <strong>em</strong> São Paulo<br />

e suas diversas gerações, aprofundando a discussão de suas formas e estilos,<br />

<strong>em</strong>preendendo uma classificação do <strong>grafite</strong> produzido nos anos 70 e 80 a partir de seus<br />

el<strong>em</strong>entos plásticos. Finalmente, as considerações finais indicam caminhos e<br />

possibilidades para essa arte do <strong>grafite</strong> que, com o passar dos anos, se popularizou nos<br />

grandes centros urbanos. Uma arte <strong>urbana</strong> que ainda é um tanto mal compreendida e<br />

sofre sob o estigma da marginalidade, mas que possui o vigor e a alegria de estar<br />

s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> <strong>movimento</strong>.<br />

61


CAPÍTULO I<br />

62


CAPÍTULO I<br />

HISTÓRIA E SIGNIFICAÇÃO<br />

1. INSCRIÇÕES: MAGIA, TÉCNICA E VELOCIDADE<br />

O ato da inscrição anônima é tão antigo quanto a descoberta do fogo. No<br />

entanto, o significado que estas incisões, sinais e desenhos assum<strong>em</strong> muda com a<br />

própria evolução do hom<strong>em</strong>. No paleolítico, as inscrições nas paredes profundas de<br />

uma caverna possuíam um caráter mágico; acreditava-se que, ao se construir a imag<strong>em</strong><br />

de um animal na pedra, um outro animal estaria se materializando no mundo real 21 . O<br />

hom<strong>em</strong> estava sujeito às leis da natureza, um raio ou uma chuva eram manifestações de<br />

deuses poderosos e tudo era mistificado. Os territórios eram sinalizados com essas<br />

pinturas e o hom<strong>em</strong> primitivo, durante toda a pré história, desenvolveu sua capacidade<br />

de fixar imagens <strong>em</strong> diferentes superfícies, conseguindo materializar externamente sua<br />

comunicação. De modos diversos, conforme os meios e as culturas, o imaginário se<br />

desenvolveu juntamente com as habilidades de desenhar, pintar e comunicar. As<br />

21 "Nos recessos profundos das cavernas de calcário, (...) os artistas-mágicos pintavam ou gravavam os<br />

rinocerontes, mamutes, bisões e renas que lhes serviam de alimento. Com a mesma segurança com<br />

que um bisão era reproduzido na parede da caverna pelos golpes hábeis do artista, apareceria s<strong>em</strong><br />

dúvida um bisão real para que seus companheiros matass<strong>em</strong> e comess<strong>em</strong>" Cf. V. Gordon Childe - O<br />

Que Aconteceu na História. (trad.) 3. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1973, p. 43.<br />

63


inscrições evoluírrram diferenciadamente, criando técnicas e estilos. Talvez o ato de<br />

inscrever, sinalizar e indicar tenha antecedido à própria fala, ou a fala tenha sido<br />

originalmente composta de sinais, marcas ou inscrições que se ass<strong>em</strong>elhass<strong>em</strong> ao<br />

mundo exterior ou ao imaginado. Algumas inscrições rupestres no Brasil, por ex<strong>em</strong>plo,<br />

se ass<strong>em</strong>elham a uma escrita, <strong>em</strong>bora não se consiga saber o real objetivos dessas<br />

pinturas realizadas pelos povos nômades do nordeste. Para Gabriela Martin,<br />

“não é preciso ser especialista <strong>em</strong> línguas mortas para perceber que<br />

os petrógrifos do Ingá não são uma escrita e que os sinais,<br />

caprichosamente dispostos, não guardam entre si ord<strong>em</strong>, simetria ou<br />

relação de tamanho, de vez que muito poucos estão repetidos”. 22<br />

A arte de representar, de formar uma imag<strong>em</strong>, resultava num poder que<br />

dava ao artista um lugar especial <strong>em</strong> todas as sociedades. Se a fala necessita da<br />

presença simultânea do <strong>em</strong>issor e do receptor para que o processo comunicacional<br />

aconteça; já com as inscrições, imagens desenhadas ou sinais grafados tal não acontece.<br />

O <strong>em</strong>issor, ao fixar uma imag<strong>em</strong> com um traço sobre uma superfície, amplia seu poder<br />

de comunicação. Ele pode estar ausente e, mesmo assim, atingir um grande número de<br />

receptores. Por outro lado, a imag<strong>em</strong> fixada pelas inscrições também pode adquirir vida<br />

própria, multiplicando e desenvolvendo significados, conforme a diversidade dos<br />

receptores.<br />

22 Gabriela Martin, apud: José Rolin Valença - Herança. A expressão visual do brasileiro antes da<br />

influência do europeu. São Paulo, Empresas Dow, 1984, p. 37.<br />

64


As primeiras formas da escrita eram compostas de sinais e desenhos <strong>em</strong><br />

relevo, ass<strong>em</strong>elhando-se às inscrições e pinturas rupestres. Durante toda a Antigüidade,<br />

as pessoas que dominavam o código escrito tinham também o poder para estabelecer as<br />

leis, as normas de conduta ou as regras religiosas. A associação entre a religião, o poder<br />

e a arte se desenvolveu tanto quanto o código escrito e falado. Podendo ser entendido e<br />

obedecido, foi também instrumento de contestação, de expressão de opiniões contrárias<br />

ou dissidentes. Um bom ex<strong>em</strong>plo pode ser encontrado na cidade de Pompéia nos anos<br />

70 da era cristã. Muitas inscrições, geralmente anônimas e feitas nas paredes e colunas<br />

de áreas públicas, quebravam os meios de comunicação das elites, comentando com<br />

ironia as campanhas eleitorais ou os personagens da política 23 .<br />

A arte de comunicar, sobretudo aquela que envolvia a comunicação<br />

pública, desenvolveu-se numa estreita relação com os mecanismos de dominação.<br />

Durante a Idade Média, os artistas trabalhavam para a igreja e para os reis. Acreditava-<br />

se que a inspiração era um sopro divino: as obras não podiam ser assinadas e os mestres<br />

e seus ajudantes trabalhavam juntos numa mesma obra. Colocar-se acima de Deus seria<br />

uma injúria e poderia espantar a inspiração. Diretamente associada ao poder, a arte<br />

medieval era sobretudo religiosa, assim como as igrejas e mosteiros eram os guardiões<br />

da escrita. Neles não penetravam as obras profanas, que ficavam restritas às ruas e<br />

tavernas.<br />

23 Vide, a este respeito, a interessante análise de Pedro Paulo Funari a respeito dos <strong>grafite</strong>s <strong>em</strong> Pompéia<br />

antiga. Cf. Pedro Paulo Funari - Cultura Popular na Antigüidade Clássica. São Paulo, Contexto,<br />

1989, especialmente pp. 20-42.<br />

65


A igreja era o principal centro produtor e consumidor: nela e para ela<br />

treinavam-se artistas e copistas, nela os pintores se esforçavam para envolver cada vez<br />

mais seus espectadores. Essa relação permitiu o desenvolvimento das técnicas de<br />

representação, o aprimoramento da perspectiva e da maneira de representar a figura<br />

humana. As obras começaram a se diferenciar, assumindo estilos pessoais, mas a<br />

assinatura das obras só passou a aparecer quando o hom<strong>em</strong> já se colocava como o<br />

centro de referência. Essa atitude era ousada e extr<strong>em</strong>amente perigosa, como o eram<br />

também as primeiras teorias e postulados que questionavam a forma da Terra ou a<br />

órbita dos astros. A arte se desenvolvia com as descobertas de novos materiais,<br />

acompanhando as descobertas científicas que entravam <strong>em</strong> confronto com os dogmas<br />

religiosos.<br />

O domínio da técnica e o conhecimento científico começavam a divergir<br />

dos postulados religiosos e passaram a crescer fora do domínio da igreja. Uma nova<br />

classe social começava a se desenvolver e a aplicar essas técnicas na produção, no<br />

comércio e nas artes. Com o Renascimento, a igreja e a Corte tiveram que enfrentar um<br />

novo poder, advindo dessa classe que detinha o comércio e a técnica. A descoberta de<br />

novas terras além mar, b<strong>em</strong> como o desenvolvimento industrial posterior contribuíram<br />

para transferência do poder político para essa nova classe, que detinha o poder<br />

econômico, da produção à ciência.<br />

A arte passou a servir ao individualismo burguês, com sede de poder e<br />

gosto extravagante. O artista assumiu a postura de um decorador e, com o mecenato,<br />

66


surgiram as coleções individuais e o reconhecimento da obra individual e única. O<br />

hom<strong>em</strong> e a ciência passaram a ser o centro de referência, o centro do universo.<br />

O desenvolvimento técnico também permitiu a fabricação de máquinas<br />

que poderiam reproduzir, aumentar e acumular. Se antes a arte necessitava de um certo<br />

t<strong>em</strong>po para sua execução, agora ela podia acompanhar as mudanças técnicas,<br />

transformando-se para atender às novas solicitações impostas pela revolução industrial.<br />

O t<strong>em</strong>po na produção de um objeto de arte foi reduzido, e ele pôde ser copiado. A arte<br />

tradicional se viu ameaçada pois t<strong>em</strong>ia-se que a produção <strong>em</strong> grande escala pudesse<br />

distanciar o hom<strong>em</strong> da natureza. Ao se destruir caráter único da obra de arte, pensava-<br />

se que esta poderia desaparecer, pois tudo poderia ser copiado, reproduzido milhares de<br />

vezes 24 . A reprodução e a repetição, no entanto, penetraram de diversos modos na arte<br />

cont<strong>em</strong>porânea e vários artistas passaram a usar cada vez mais estes recursos técnicos,<br />

como a produção de estampas com motivos florais ou adornos que l<strong>em</strong>bravam ramos<br />

silvestres: a arte passou a invadir outros lugares, mais cotidianos e corriqueiros.<br />

Enquanto isso, as cidades aumentavam de tamanho e de população,<br />

tornado-se poluídas e ameaçadoras. O hom<strong>em</strong> já não acreditava ser o centro do<br />

universo e começava a t<strong>em</strong>er a perda de controle sobre as coisas que inventava,<br />

principalmente por sua capacidade de autodestruição. Comentando como o cin<strong>em</strong>a, a<br />

velocidade da máquina e a multidão condicionaram a sensibilidade, impondo um novo<br />

24 Vide, a este respeito, Walter Benjamim - “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”<br />

Walter Benjamin - Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre literatura e história da<br />

cultura. (trad.) São Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 165-196.<br />

67


itmo, com <strong>movimento</strong>s inacessíveis ao olhar comum e gestos que não mais podiam ser<br />

reproduzidos pelo corpo humano, Brissac Peixoto afirma que:<br />

"A técnica está na orig<strong>em</strong> da experiência moderna da desregulação.<br />

A multidão, as avenidas e os espetáculos enlevam. A percepção<br />

moderna é a da dispersão, do olhar fugaz, da diversão. (...) A<br />

renovação permanente, o anúncio e a vitrina criam o que é moderno.<br />

(...) Na época clássica, do desenvolvimento mercantil-capitalista,<br />

tudo encontrava sua identidade e lugar num mundo plenamente<br />

ordenado. (...) A modernidade iria bloquear e explodir este sist<strong>em</strong>a.<br />

As primeiras décadas do século articularam um campo da reflexão e<br />

da arte, da produção e da vida cotidiana, assentado sobre a<br />

iminência da crise e da dissolução. (...) Da ruptura da representação,<br />

da dissolução e perda das identidades constituídas por seu<br />

mecanismo de expressão, nasc<strong>em</strong> a experiência e o pensamento<br />

modernos. 25<br />

A escrita, o livro, o disco, o cin<strong>em</strong>a acompanharam a velocidade e<br />

multiplicaram o imaginário do hom<strong>em</strong>: este perdia o controle e já t<strong>em</strong>ia os efeitos de<br />

suas descobertas. Sua identidade dissolveu-se na massa de consumidores urbanos. A<br />

velocidade da máquina, do carro, tiveram um efeito devastador sobre as artes. As novas<br />

formas de comunicação eram mais rápidas e mais populares que a representação da<br />

pintura. O quadro teria que envolver mais o espectador. Os dadaístas começaram a<br />

fazer performances <strong>em</strong> seus agitados cafés, misturando teatro, música e máquinas<br />

25 Cf. Nelson Brissac Peixoto - A Sedução da Barbárie. São Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 9-10.<br />

68


arulhentas com um pouco de loucura. A velocidade e a cinestesia estavam presentes<br />

na ord<strong>em</strong> do dia:<br />

"A iconoclastia do dadaísmo, que trabalha com detritos, é aqui<br />

compl<strong>em</strong>entar à angústia do colecionador de arte ante a ruína da<br />

cultura. Isto fez com que o caos fosse assimilado ao comportamento<br />

cotidiano, que se introduzisse o não-sentido e o absurdo, a<br />

fragmentação e o brilho ofuscante no próprio modo de pensar e<br />

expressar das pessoas. O surrealismo é a arte deste período. Nos seus<br />

filmes aparec<strong>em</strong> objetos cintilantes e espirais girando, fogos de<br />

espelhos e engrenagens mecânicas <strong>em</strong> funcionamento. Paisagens<br />

<strong>urbana</strong>s de multidões e automóveis são justapostos para multiplicar o<br />

<strong>movimento</strong>. A velocidade das cenas é intensa." 26<br />

Aos poucos, a propaganda descobriu o artista e esse passou a servi-la, na<br />

arte de iludir e atingir o hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> suas carências, impelindo-o a comprar mais e mais.<br />

A arte passou a questionar seu papel na sociedade de massas. Vários artistas<br />

trabalharam no sentido de inverter os rumos da arte oficial dos museus e galerias:<br />

rótulos de produtos viraram obras de arte nas mãos de artistas que ironizavam a<br />

abstração, a banalização e a popularização desenfreada. Primeiro as indústrias e, depois,<br />

os governos, <strong>em</strong> suas disputas por mercados consumidores, ocuparam o lugar de deuses<br />

e promoveram guerras devastadoras nas quais o número de mortos assustou a<br />

sociedade. Um grupo de artistas, impressionados com a barbárie, passou a pintar (como<br />

26 Nelson Brissac Peixoto - op. cit., p. 135. A respeito dos dadaístas veja também Walter Benjamin - op.<br />

cit., pp. 190-192.<br />

69


se foss<strong>em</strong>) garatujas de crianças: "Pintamos como bárbaros <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos de barbárie" 27 .<br />

Acreditavam que a pureza, a ingenuidade, a esperança estavam nas mãos das futuras<br />

gerações. A bomba nuclear, além da destruição <strong>em</strong> grande escala, havia dado a<br />

sensação de perda de controle e o passado passou a ser revisitado na tentativa de<br />

recuperar o indivíduo. Se o carro e a máquina haviam transformado a arte, a partir de<br />

então, os meios de comunicação, as televisões e rádios (e logo depois os computadores)<br />

acabaram por constituir novas fronteiras, diminuindo as distâncias físicas entre as<br />

sociedades e foram, aos poucos sendo usados na tentativa de recuperação do indivíduo<br />

massificado 28 .<br />

Os meios de comunicação, que por um lado ajudaram a massificar<br />

sociedades distantes, abriram também a possibilidade da interação, da interferência do<br />

indivíduo; esta participação se tornou cada vez mais veloz e rápida. Da arte feita para<br />

multidões foram surgindo formas de produção artística que passaram a envolver um<br />

número crescente de pessoas. A participação no resultado final da obra tornou-se<br />

aberta, feita por telefone, pelo computador pessoal. Pelo mesmo caminho, hoje é<br />

possível decidir o enredo da novela, jogar vídeo-game por televisão, consultar a própria<br />

conta bancária ou ir a uma biblioteca pública. Cada vez mais, o cotidiano das pessoas<br />

está envolvido com lugares b<strong>em</strong> distantes e diferentes. Um mundo paralelo ao real foi e<br />

27 Este era o l<strong>em</strong>a do grupo Cobra composto de artistas de Copenhague, Bruxelas e Amsterdã (Corneille,<br />

de Copenhague, Alechinski, de Bruxelas, e Karel Appel, de Amsterdã); o grupo foi formado logo<br />

após a segunda guerra mundial.<br />

28 Para uma breve revisão das relações entre a arte e a indústria cultural, vide Renato Ortiz - A Moderna<br />

Tradição Brasileira. Cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo, Brasiliense, 1988,<br />

especialmente pp. 144-148.<br />

70


está sendo erguido. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, para mostrar a fragilidade desse mundo, uma<br />

série de interferências foram e são construídas sob a forma de intervenções que<br />

estabelec<strong>em</strong> ruídos na interação das partes <strong>em</strong> comunicação. Assim, vírus, <strong>grafite</strong>s e<br />

outras interferências anônimas passaram a fazer parte do dia-a-dia dos usuários dessa<br />

nova sociedade automatizada 29 . Perdido <strong>em</strong> meio a essa pulverização, à segmentação e<br />

dispersão propiciada pela sociedade de massas, o hom<strong>em</strong> começa, até mesmo, a duvidar<br />

de sua própria existência. Entediado e isolado, ele se retrai no passado ou agarra<br />

qualquer modismo como se fosse a solução de todos os probl<strong>em</strong>as.<br />

A arte foi obviamente influenciada por esta dinâmica e a velocidade das<br />

imagens passou a formar uma linguag<strong>em</strong> específica. Um novo código de sinais teve que<br />

ser padronizado para regulamentar a vida diante da máquina: placas, símbolos, marcas,<br />

leis de transito padronizaram a sobrevivência no mundo da velocidade e precisavam ser<br />

aprendidos e compreendidos rapidamente 30 . As pessoas passaram a conviver num<br />

mundo de códigos e sinais, de signos cada vez mais sintéticos e dirigidos. Os<br />

conteúdos, gostos e os costumes tornaram-se segmentados. As imagens aceleradas dos<br />

vídeo-clipes e dos vídeo-games foram incorporadas <strong>em</strong> vídeos experimentais de artistas<br />

29 Estas interferências pod<strong>em</strong>, às vezes, assumir um papel de mídia paralela ou, até mesmo, criar<br />

situações constrangedoras. A invasão de centros de m<strong>em</strong>ória de grandes computadores ou a<br />

divulgação de listas de telefones secretos através da internet são bons ex<strong>em</strong>plos, que já se tornaram<br />

t<strong>em</strong>as de filmes e aparec<strong>em</strong> com freqüência nas páginas dos jornais. Em 1995, a polícia norteamericana<br />

começou a prender e a processar várias pessoas por crimes virtuais cometidos na<br />

liberação de informações na internet e as autoridades daquele país se preparam para regulamentar e<br />

controlar a pornografia na rede e seu livre acesso.<br />

30 Uma análise bastante interessante da importância dos símbolos na sociedade massificada é<br />

desenvolvida por Serge Tchakhotine - A Mistificação das Massas pela Propaganda Política.<br />

(trad.) Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967.<br />

71


de vanguarda, principalmente na Al<strong>em</strong>anha. Ali, a televisão e o cin<strong>em</strong>a se<br />

desenvolveram juntos, criando uma nova geração de cineastas que iniciaram suas<br />

carreiras na televisão, passando depois para o cin<strong>em</strong>a. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, essa<br />

linguag<strong>em</strong> acabou por influenciar toda uma nova geração, com sua difusão massificada<br />

através dos vídeo-games e dos vídeo-clipes. Um canal de televisão que rapidamente se<br />

tornou internacional, a MTV, dedicou-se inteiramente a esta linguag<strong>em</strong>. Através dele, o<br />

"jov<strong>em</strong>" passou a ser associado à rapidez na seqüência das imagens, ritmada pela<br />

música, como uma nova maneira de editar e transmitir conceitos e comportamentos.<br />

Com as transmissões por cabo, satélite e por assinaturas, a segmentação da televisão<br />

alastrou-se, atingindo um número cada vez maior de pessoas, através do processo de<br />

globalização.<br />

Nesse mundo segmentado, a propaganda passou a ter uma importância<br />

enorme. Os espaços públicos foram sendo vendidos e preenchidos, destinados à<br />

comercialização de produtos. Se, no passado, as inscrições haviam ajudado o hom<strong>em</strong><br />

primitivo a se estruturar, sobreviver e a materializar seu imaginário, agora elas<br />

ganhavam uma nova forma e ajudavam a produzir e materializar desejos que surgiam<br />

de fora para dentro. Na era da comunicação de massa e da velocidade, um mundo<br />

virtual passou a ser sobreposto ao mundo real. Do ponto de vista político, as fronteiras<br />

foram se tornando cada vez mais difusas e grandes blocos continentais formaram<br />

mercados comuns protegendo grandes interesses. O antigo conceito de nação parece<br />

definhar cada vez mais, perante a internacionalização do mercado, do gosto, do<br />

consumo.<br />

72


Mas um <strong>movimento</strong> de resistência foi se formando, a partir de grupos<br />

organizados que inicialmente agiam de forma marginal e, depois, de maneira<br />

alternativa. Frente às complicadas questões da internacionalização do capital neo-<br />

liberal, os <strong>movimento</strong>s alternativos passaram a agir dentro do sist<strong>em</strong>a. No passado, a<br />

ação de resistência se fazia na clandestinidade, de maneira mais contestatória que<br />

propriamente ativa. Esse fato se deveu principalmente à articulação dos <strong>movimento</strong>s e<br />

partidos de oposição que, ao se legitimar<strong>em</strong> na sociedade d<strong>em</strong>ocrática, abriram a<br />

possibilidade para que <strong>movimento</strong>s de minorias e ativistas se organizass<strong>em</strong><br />

rapidamente. Um leque enorme de possibilidades se abriu e muitos modelos de atuação<br />

foram copiados do esqu<strong>em</strong>a italiano, francês e holandês. A cultura foi se transformando<br />

<strong>em</strong> contra-cultura e uma série enorme de entidades e grupos passou a se utilizar das<br />

inscrições para divulgar suas idéias, marcar seu território e garantir sua sobrevivência. 31<br />

Neste contexto, os espaços ociosos no meio urbano, como muros, portas<br />

e marquises, passaram a ser disputados, ganhando um poder s<strong>em</strong>elhante ao da<br />

propaganda. Primeiro, com inscrições políticas, que tornaram-se uma bandeira utilizada<br />

<strong>em</strong> quase todos os <strong>movimento</strong>s, na tentativa de romper com os modelos de<br />

comportamento sociais 32 . Depois, as inscrições reapareceram sob a forma de <strong>grafite</strong>,<br />

31 As relações entre o <strong>movimento</strong> hippie, punk, a contra-cultura e o <strong>grafite</strong> são enfatizados por John<br />

Bushnell <strong>em</strong> sua análise sobre os <strong>grafite</strong>s moscovitas. Sua análise é bastante interessante pois<br />

recupera as tradições soviéticas do <strong>grafite</strong> devocional e do <strong>grafite</strong> infantil, mostrando suas<br />

s<strong>em</strong>elhanças e diferenças <strong>em</strong> relação ao <strong>grafite</strong> feito pelos jovens soviéticos na atualidade. Vide<br />

John Bushnell - Moscow Graffiti. Language and subculture. Winchester, Unwin Hyman, 1990.<br />

32 Este aspecto mereceu atenção especial de Tchakhotine. Vide S. Tchakhotine - op. cit., especialmente<br />

capítulos VII a XIX.<br />

73


agora com el<strong>em</strong>entos poéticos e reivindicando uma nova maneira de pensar e agir,<br />

como no <strong>movimento</strong> francês de maio de 1968. Mais tarde, determinados artistas se<br />

aventuraram pelo <strong>grafite</strong>, trazendo el<strong>em</strong>entos do cotidiano, do humor das histórias <strong>em</strong><br />

quadrinhos e seus heróis com poderes extraterrenos. As imagens eram coloridas e<br />

fortes, aproximando-se das artes gráficas e circenses, na tentativa de recuperar a alegria<br />

e o riso da praça pública. A irreverência quase medieval contrastava com a violência e<br />

o cinza da poluída cidade moderna.<br />

Nos países europeus, os grupos ecológicos já se organizavam <strong>em</strong><br />

organizações não governamentais, e seu peso político acabou por influenciar decisões<br />

de governos <strong>em</strong> nível internacional, principalmente depois de ações direcionadas do<br />

Greenpeace 33 . Esse clima acabou por se difundir por toda a geração dos anos 80 e teve<br />

uma participação importante nas vanguardas artísticas, valorizando el<strong>em</strong>entos da<br />

contra-cultura com um t<strong>em</strong>pero punk, elaborada nos squatters 34 londrinos, o centro<br />

gerador desse <strong>movimento</strong>. Cultura, arte e política reuniam-se e utilizava-se essa força<br />

para substituir a família e as formas tradicionais de comportamento. Novos códigos<br />

eram criados e reinventados, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre destinados à comunicação. Sinais e inscrições<br />

33 Partido ecológico de nível internacional que se popularizou por ações arriscadas no mar, com seus<br />

militantes abordando navios baleeiros ou com cargas perigosas <strong>em</strong> pleno oceano. Essas ações eram<br />

acompanhadas pela mídia televisiva e tiveram um forte impacto, expondo governos e companhias a<br />

situações delicadas e constrangedoras.<br />

34 Como vimos na introdução, jovens da classe média européia obtinham dinheiro do seguro des<strong>em</strong>prego<br />

e invadiam fábricas e lojas abandonadas, vivendo paralelamente à sociedade. Este meio de vida<br />

facilitou a rápida difusão de rádios piratas, ateliês livres, bares e restaurantes alternativos por onde<br />

se difundiu a cultura punk, que se misturava a outras culturas devido ao forte número de imigrantes<br />

que habitavam esses territórios livres.<br />

74


não eram mais usados para procurar se fazer entender. A comunicação tornava-se<br />

restrita ao grupo e assumia um papel identificatório.<br />

A importância do <strong>movimento</strong> foi grande, pois <strong>em</strong> todos os países os<br />

jovens começaram a lutar contra o racismo, a poluição, a opressão e o tédio do capital<br />

neo-liberal. Na arte, essas influências tiveram uma repercussão no nível t<strong>em</strong>ático e<br />

principalmente no que se refere ao suporte e seus meios. A vanguarda se distanciou da<br />

arte conceitual, partindo para uma manifestação na qual os materiais, as cores e a<br />

mensag<strong>em</strong> a ser transmitida se alinhavam de acordo com a nova postura do hom<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

relação ao planeta. As imagens da Terra e da guerra do Golfo, transmitidas ao vivo via<br />

satélite pela televisão, tiveram uma forte influência estética sobre essa maneira global<br />

de ver os probl<strong>em</strong>as atuais. Já nos anos 90, a ecologia e o misticismo tentaram uma<br />

recuperação do sujeito destruído pelo individualismo neo-liberal. Essa nova postura,<br />

facilitada pela tecnologia, ampliou uma série de questionamentos e apontou direções<br />

que serão apenas tocadas pelo presente trabalho, podendo ser retomados mais tarde para<br />

maior aprofundamento.<br />

O Estado, na sua ação paternalista, não conseguiu mais gerir e patrocinar<br />

uma “arte <strong>urbana</strong>” que correspondesse aos valores artísticos e culturais de uma ampla<br />

camada de cidadãos. Esse fato tendeu a marginalizar ainda mais os jovens, que se<br />

sentiram excluídos de um papel ativo nas decisões sobre seus bairros, praças e ruas de<br />

sua própria cidade. Essa exclusão se deu também no processo educacional, pois a<br />

educação formal passou a geralmente perder terreno para a informal, transmitida<br />

através da televisão, dos vídeo-games, vídeo-clipes, das histórias <strong>em</strong> quadrinhos e da<br />

75


propaganda. A união dos mercados consumidores através de uma globalização cultural<br />

acabou por massificar as culturas locais, padronizando atitudes, estilos de vida e<br />

comportamentos. As modas e as vanguardas passam a se desterritorializar, assumindo<br />

um caráter internacional.<br />

Contudo, ao penetrarmos com mais devagar nesta probl<strong>em</strong>ática,<br />

ver<strong>em</strong>os que as culturas locais também acabaram por resistir às culturas importadas,<br />

mesmo quando copiavam seus modelos. Segundo Ortiz, seria mais convincente<br />

compreender a globalização como um processo e não uma totalidade mundial:<br />

“A totalidade penetra as partes no seu âmago, redefinindo-as nas<br />

suas especificidades. Nesse sentido seria impróprio falar de uma<br />

cultura mundo (...) Para existir, ele [o processo de mundialização]<br />

deve se localizar, enraizar-se nas práticas cotidianas dos homens,<br />

s<strong>em</strong> o que seria uma expressão abstrata das relações sociais. Com a<br />

<strong>em</strong>ergência de uma sociedade globalizada, a totalidade cultural<br />

r<strong>em</strong>odela portanto, s<strong>em</strong> a necessidade de raciocinarmos <strong>em</strong> termos<br />

sistêmicos, a ‘situação’ na qual se encontram as múltiplas<br />

particularidades”. 35<br />

Os antropólogos relacionam estas particularidades às<br />

desterritorializações, podendo uma mesma cultura assumir várias línguas ou formas de<br />

se expressar, hábitos alimentares distintos ou diferenças até mesmo nas formas de se<br />

vestir, escrever ou pensar. Isto pode acontecer s<strong>em</strong> que haja perda da base cultural,<br />

35 Cf. Renato Ortiz - Mundialização e Cultura. São Paulo, Brasiliense, 1994, pp. 30-31.<br />

76


vivenciando-se um processo múltiplo. É preciso l<strong>em</strong>brar, no entanto, que a América<br />

Latina possui uma identidade cultural de resistência e é comum que “processos<br />

importados” se transform<strong>em</strong>, muitas vezes, adquirindo um valor maior do que no país<br />

de orig<strong>em</strong>.<br />

“Na América Latina, vários autores começaram a diferenciar, por<br />

esse motivo, do ponto de vista metodológico e epist<strong>em</strong>ológico, a<br />

socialidade, uma outra dimensão da sociedade. Com isso, há que se<br />

repensar o conceito de heg<strong>em</strong>onia, não <strong>em</strong> termos da heg<strong>em</strong>onia<br />

ideológica do grupo que dirige a sociedade, mas de uma sociedade<br />

muito mais fragmentada, uma sociedade que não t<strong>em</strong> um só centro,<br />

como diz<strong>em</strong> os pós-modernos, e na qual a vida cotidiana t<strong>em</strong> um<br />

papel muito mais importante na produção incessante do tecido social.<br />

Ou seja, a vida cotidiana é o lugar <strong>em</strong> que os atores sociais se faz<strong>em</strong><br />

visíveis do trabalho ao sonho, da ciência ao jogo....”. 36<br />

Desta forma, a especificidade da América Latina no processo de<br />

globalização possui rupturas, valores de resistência, fragmentações e vai adquirindo e<br />

incorporando valores novos, sobrepondo-os aos antigos. A sociedade latino-americana<br />

forma uma verdadeira colcha de retalhos, com modelos importados e el<strong>em</strong>entos da vida<br />

cotidiana, com valores transformados e traduzidos <strong>em</strong> modismos, adaptações,<br />

resistências, interpretações e rupturas. Por isso, a cópia ou as imitações de modelos<br />

externos têm de ser analisadas como processos comunicacionais; somente assim é<br />

36 Cf. Jesús Martín-Barbero - “América Latina e os anos recentes: o estudo da recepção e comunicação<br />

social” in: Mauro Wilton de Sousa (org.) - Sujeito. O lado oculto do receptor. São Paulo, Editora<br />

Brasiliense, 1995, p. 59.<br />

77


possível resgatar as adaptações e interpretações de um receptor, que é ativo e nada<br />

ingênuo.<br />

Do ponto de vista das inscrições ver<strong>em</strong>os que as influências<br />

internacionais forneceram as matrizes das valorizações na arte <strong>urbana</strong>. Mais tarde, essas<br />

matrizes se desdobraram <strong>em</strong> outras e, já <strong>em</strong> São Paulo, adaptaram-se, transformaram-se<br />

e assinalaram seu distanciamento <strong>em</strong> relação às motivações do país de orig<strong>em</strong>. Eis o<br />

que, <strong>em</strong> parte, configura e simtetiza o <strong>movimento</strong> do <strong>grafite</strong>.<br />

2. O MOVIMENTO GRAFITE<br />

Na França, assim como <strong>em</strong> outros lugares, as regras de conduta e a<br />

estruturação da sociedade de consumo oprimiam o indivíduo; o controle social sobre<br />

tudo e todos era rigoroso. Produzir havia passado a ser a palavra de ord<strong>em</strong> e a anarquia<br />

era duramente combatida. Jovens estudantes universitários se revoltaram contra a<br />

massificação e, <strong>em</strong> maio de 68, explodiu um forte <strong>movimento</strong> estudantil que ganhou<br />

rapidamente as ruas para se internacionalizar, exportando uma nova maneira de se<br />

comportar, de se vestir e de pensar. Desafiando o sist<strong>em</strong>a e provocando uma reação<br />

imediata das forças repressivas, os estudantes utilizaram como meio de comunicação<br />

frases poéticas e políticas inscritas nos muros de Paris. Tais inscrições, ainda que<br />

78


contendo só frases, davam um toque poético ao <strong>movimento</strong> - que rapidamente ganhou<br />

as ruas e travou batalhas com a polícia francesa 37 .<br />

De forma assustadora, o <strong>movimento</strong> ultrapassou as fronteiras da França,<br />

ganhando apoio nas universidades européias, nos EUA e na América Latina. O<br />

<strong>movimento</strong> estudantil transformou-se numa grande revolta do indivíduo contra o<br />

Estado e utilizou meios alternativos de comunicação, tais como as inscrições <strong>em</strong> faixas,<br />

muros e panfletos. Toda uma geração foi influenciada pelo <strong>movimento</strong> que<br />

impulsionava uma nova ord<strong>em</strong> e uma nova maneira de pensar. Entretanto, o impulso<br />

renovador de maio de 68 foi rapidamente absorvido e diluído; suas metas e propostas<br />

acabaram tomando um sentido liberador de desejos reprimidos por uma sociedade<br />

voltada para o trabalho e para a racionalidade. Sob a crítica dos anos 90, maio de 68<br />

não conseguiu nada mais do que exportar um modelo a ser seguido, padronizando<br />

gostos e internacionalizando o desejo. Ou seja, o <strong>movimento</strong> foi absorvido pela<br />

sociedade que tentava modificar 38 .<br />

Se este <strong>movimento</strong> tentava resgatar o indivíduo frente à grande<br />

massificação imposta pelo "sist<strong>em</strong>a", o resgate do humanismo foi traído pela rápida<br />

absorção do <strong>movimento</strong> de 68, pelos novos mercados e pela internacionalização, que<br />

diluiu seus conteúdos iniciais. Assim, o novo humanismo proposto pelo <strong>movimento</strong> de<br />

37 Para uma breve mas interessante análise do <strong>movimento</strong> francês de 1968, veja Olgária C. F. Matos -<br />

Paris, 1968. As barricadas do desejo. 2. ed. São Paulo, Brasiliense, 1981.<br />

38 A respeito do impacto e da absorção do pensamento de 68, vide Luc Ferry e Alain Renaut -<br />

Pensamento 68. Ensaio sobre o anti-humanismo cont<strong>em</strong>porâneo. (trad.) São Paulo, Ensaio,<br />

1988, especialmente pp. 67-80.<br />

79


68 foi absorvido no processo de sua internacionalização e, no plano filosófico, foi<br />

sendo substituído pelas idéias anti-humanistas tais como a "diferença" e a ef<strong>em</strong>eridade,<br />

de Derrida, ou a "metafísica da subjetividade", de M. Foucault. O hom<strong>em</strong> continuou<br />

dominado pela sociedade de massas e sua condição de consumidor no mercado<br />

permaneceu mais forte que sua identidade. S<strong>em</strong> dúvida, o <strong>movimento</strong> de 68 contribuiu<br />

de forma significativa para questionar esta condição, levantando questões <strong>em</strong> relações<br />

ao "sujeito" e suas relações com a ciência e a sociedade e, ao ajudar a<br />

internacionalização do gosto e do desejo, exportando a revolução sexual. Mas a moda e<br />

o consumismo acabaram por diluir suas idéias no plano do cotidiano, restando apenas o<br />

plano das idéias mais sofisticadas, no terreno dos teóricos que sustentaram uma nova<br />

atitude no pensamento, entre eles os filósofos dos sixties 39 .<br />

Do ponto de vista da reformulação dos conceitos de comportamento, foi<br />

a partir de maio de 68 que os alcancaram importânncia e visibilidade. A rua passou a<br />

ocupar o papel dos cafés das antigas vanguardas, influenciando a arte com seus<br />

panfletos, cartazes e <strong>grafite</strong>s. Os centros acadêmicos de todas as universidades<br />

passaram a ter uma relação direta com as passeatas e reuniões, com a produção de<br />

faixas e panfletos de fundo libertário, anunciando a produção independente, a contra-<br />

cultura, a vida alternativa e a necessidade de se desvincular<strong>em</strong> do "sist<strong>em</strong>a".<br />

A contra-cultura encontrou um terreno fértil nas universidades norte-<br />

americanas e no extraordinário e rico lixo urbano do mais b<strong>em</strong> sucedido país capitalista<br />

39 Cf. Luc Ferry e Alain Renaut - op. cit. , especialmente pp. 25-49.<br />

80


da América. Comunidades hippies encontraram na Califórnia um paraíso: surfe, terras<br />

baratas e sol, muito sol... Vivendo à marg<strong>em</strong> da sociedade e consumindo um lixo<br />

extr<strong>em</strong>amente rico, o <strong>movimento</strong> de contra-cultura aproveitou também a técnica<br />

avançada para dar forma real à utopia hippie. Na arquitetura, esta forma foi a<br />

geodésica 40 ; na arte, o <strong>grafite</strong>. O sentimento anti-imperialista, a guerra fria e o<br />

desconforto dos jovens estudantes diantes das guerras coloniais internacionalizaram<br />

rapidamente o <strong>movimento</strong>. A contra-cultura era uma maneira de se revoltar contra a<br />

ord<strong>em</strong> vigente; a anarquia e a revolta pacífica eram pregadas pelo <strong>movimento</strong>s dos<br />

estudantes contra o “sist<strong>em</strong>a”; as armas eram as idéias, as atitudes, o <strong>grafite</strong> e as flores.<br />

O princípio da auto-gestão e a organização das comunidades desencadeavam o<br />

<strong>movimento</strong> do flower power, a cultura hippie.<br />

Como afirma Olgária Matos,<br />

“Os estudantes não pretend<strong>em</strong> adaptar a universidade à vida<br />

moderna, mas recusam-se à vida burguesa, medíocre, reprimida,<br />

opressiva; eles não se interessariam pela carreira; pelo contrário,<br />

desprezavam as carreiras de quadros técnicos que os esperavam; eles<br />

não procuravam se integrar o mais rapidamente possível na vida<br />

adulta, mas representavam sua contestação radical... 41<br />

40 Na arquitetura, as idéias de sinergia e ecologia eram pregadas por Buckminster Fuller, filósofo<br />

naturalista que, na sua utopia, utilizava a geodésica como sist<strong>em</strong>a construtivo. Vide R. Buckminster<br />

Fuller - Novas Explorações na Geometria do Pensamento. Coleção de Treze Artigos preparada<br />

pela Agência Internacional de Comunicação dos EUA. São Paulo, 1975 (ex. mimeo).<br />

41 Cf. Olgária C. F. Matos - op. cit., p. 49.<br />

81


No entanto, de forma repetitiva e muitas vezes totalitária, o <strong>movimento</strong><br />

originado <strong>em</strong> maio de 68 foi sendo filtrado pelos meios de comunicação de massas,<br />

impondo uma maneira de se vestir, de se comportar e se expressar que ganhou um<br />

alcance além das ruas de Paris. Nos anos 90, quando a moda retoma a maneira de vestir<br />

dos anos 70, fica evidente como os modelos acabaram impondo um estilo "psicodélico"<br />

que preparou a globalização econômica e o consumo "s<strong>em</strong> fronteiras".<br />

Na arte, a fórmula foi parecida: o conceitual e o abstracionismo<br />

tornaram-se modelos a ser<strong>em</strong> seguidos internacionalmente pelo fechado meio artístico<br />

internacional. Nos anos 70 e 80, a vanguarda artística contestou a predominância<br />

internacional da abstração e da arte conceitual sobre livre-figuração, passando a pintar<br />

sobre grandes telas. A reprodução fotográfica destas obras, feita por magazines<br />

especializados, ajudou a popularizar o <strong>movimento</strong> internacionalmente, dando uma<br />

qualidade de reprodução às revistas que rapidamente penetraram no mercado artístico e<br />

popularizaram a livre figuração e seus artistas punks, com suas performances e<br />

interferências.<br />

Mas, para muitos dos artistas da geração dos anos 80, essa questão<br />

estava simplesmente resolvida quando os squatters invadiram propriedades<br />

abandonadas e as transformavam <strong>em</strong> grandes ateliês. Na Holanda dos anos 80, podia-se<br />

82


comer <strong>em</strong> vários squatters por preços módicos. Agitados cafés recebiam artistas e<br />

cantores de Londres, Paris e Berlim 42 .<br />

O <strong>grafite</strong> também fazia parte da bandeira anarquista européia que, ao<br />

ultrapassar as fronteiras continentais, encontrou nos EUA uma sociedade aberta à<br />

contra-cultura e às novas influências e um mercado de arte carente de novas tendências.<br />

Di Rosa, Speed Graphito, Combas, Blais, Boisrond, Costa e Les Frères Ripolin, são<br />

<strong>grafite</strong>iros que trabalhavam na França e foram influenciados pelo <strong>movimento</strong> punk.<br />

Seus ateliês localizavam-se <strong>em</strong> bairros invadidos e transpiravam a contra-cultura dos<br />

anos 80. O gesto, a liberdade de <strong>movimento</strong>, a figuração e o spray eram as novas armas<br />

contra o abstracionismo, o concretismo e outros "ismos" que estavam na moda artística<br />

e circulavam pelas galerias. Em 1983, os pintores-<strong>grafite</strong>iros Combas e Di Rosa 43<br />

ganharam uma bolsa para estudar <strong>em</strong> New York onde conheceram outros <strong>grafite</strong>iros<br />

importantes, como Keith Haring e Kenny Scharf.<br />

Nos grandes centros urbanos norte-americanos, o <strong>grafite</strong> havia se<br />

iniciado com inscrições feitas inicialmente com pincel atômico e depois com spray, nos<br />

muros dos bairros e paredes do metrô. Eram as tags, ou "assinaturas". O fenômeno se<br />

42 Para uma visão geral do <strong>grafite</strong> na Al<strong>em</strong>anha e Suíça, vide Beat Suter et. al - Anarchie und Aerosol.<br />

Wandsprüche und Graffiti, 1980-1995. Wettingen, Beluga Verlag, 1995; sobre os <strong>grafite</strong>s <strong>em</strong><br />

Berlim vide também Heinz J. Kuzdas - Berliner Mauerkunst. Berlim, Elefanten Press, 1990.<br />

43 Combas e Di Rosa expuseram seus trabalhos na galeria de Tony Shafrazi, que havia pichado a obra<br />

Guernica no Moma, <strong>em</strong> New York, na década de 70. Com a fama adquirida ele abrira essa galeria<br />

com uma nova proposta de arte jov<strong>em</strong>, conceituando uma nova forma de interferir no mercado de<br />

arte. Este novo espaço acabou lançando artistas como Keith Haring, Combas, Ronny Coltrone e<br />

Kenny Scharf. Uma exposição com<strong>em</strong>orativa dos 10 anos de existência desta galeria foi realizada<br />

<strong>em</strong> maio-junho de 1993. Vide Art in America, junho de 1993, p. 16.<br />

83


alastrou por toda a cidade de New York atingindo os trens, tapumes, carros e<br />

caminhões, postes e tudo que pudesse servir de superfície para estas inscrições.<br />

Verdadeiras assinaturas identificavam a gangue que dominava aquele território. Muitas<br />

vezes, acrescentavam às tags os números das ruas freqüentadas pelos <strong>grafite</strong>iros.<br />

“Marca adotada de uma forma elaborada, signo distintivo simples e<br />

facilmente reconhecível, ele é traçado de início com pincel atômico e<br />

depois com spray por todas a cidade. Um dos mais célebres é o TAKI<br />

183 (Taki é um garoto que tornou-se famoso após espalhar seu Tag<br />

pela cidade, sobre muros, portas, placas, metrô, etc., e ser descoberto<br />

e entrevistado pelo jornal The New York Times <strong>em</strong> 71)”. 44<br />

Grande parte dos jovens que compunham estas gangues tinha orig<strong>em</strong><br />

hispânica ou negra, e eles começaram a ser identificados com as pinturas que apareciam<br />

nos vagões de trens e de metrôs estacionados à noite nos pátios 45 . As letras distorcidas e<br />

desenhos feitos a mão livre, que estavam associados às atitudes e costumes de suas<br />

gangues, representavam um <strong>movimento</strong> que se espalhou de forma rápida (constituindo<br />

o início do hip hop), mas que também foi fort<strong>em</strong>ente reprimido.<br />

Alguns <strong>grafite</strong>iros, como Jean-Michel Basquiat, Keith Haring e Kenny<br />

Scharf partiram para a livre figuração, elaborando o <strong>grafite</strong> no sentido plástico e se<br />

distanciando das tags. Imediatamente a crítica, os jornalistas e a população <strong>em</strong> geral<br />

44 Cf. Nelson E. da Silveira Jr. - Superfícies Alteradas: Uma cartografia dos <strong>grafite</strong>s na cidade de<br />

São Paulo. Campinas, dissertação de mestrado, UNICAMP, 1991, p. 12.<br />

45 Há um belíssimo trabalho sobre a arte feita nos vagões do metrô de N. York, feito por Marta Cooper &<br />

Henry Chalfant - Subway Art. New York, Henry Holt and Company, 1984. Este livro se tornou um<br />

“cult” entre os artistas do hip hop no Brasil.<br />

84


passou a ver com outros olhos esse tipo de <strong>grafite</strong> figurativo, carregado de el<strong>em</strong>entos<br />

psicológicos e com estilos definidos. A reação foi a mesma por parte dos museus e<br />

galerias que rapidamente acolheram os "jovens pintores da rua" 46 . Keith Haring, que<br />

havia começado pintando suas figuras nos metrôs de New York, <strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po já<br />

tinha percorrido o mundo todo, passando até pelo Brasil. Seguindo o mesmo caminho,<br />

vários outros artistas de rua também ganharam as galerias, internacionalizando a<br />

figuração livre. O <strong>movimento</strong> não só deu fama e riqueza a seus autores, como também<br />

ajudou a popularizar esta arte, fazendo-a chegar aos guetos nova-iorquinos 47 . Nos anos<br />

90, o hip hop soube aproveitar o <strong>grafite</strong> para colocar de forma colorida suas<br />

reivindicações, utilizando-o como el<strong>em</strong>ento de identidade e meio para a<br />

internacionalização de suas questões, especialmente as raciais e as ligadas ao consumo<br />

exagerado de drogas pesadas.<br />

A contra-cultura protegia e lançava novos nomes no cenário musical e<br />

artístico, estabelecendo uma relação de ruptura com a forma tradicional de um artista se<br />

relacionar com a sociedade e produzir sua obra. Talvez venha daí a liberdade, a grande<br />

identificação e o carisma dessa geração que, mesmo depois de oficializada e abrigada<br />

no aconchego do sist<strong>em</strong>a, conseguiu que suas obras tivess<strong>em</strong> uma vitalidade e uma cor<br />

46 As carreira de Basquiat e Haring são bons ex<strong>em</strong>plos deste percurso. Vide Bell Hooks - “Altars of<br />

Sacrifice: Re-m<strong>em</strong>bering Basquiat”, Art in America, junho de 1993, pp. 69-75 e Shaun Caley -<br />

“Keith Haring”, Flash Art, XXIII, nº 153, 1990, pp. 124-129.<br />

47 Alguns bairros de N. York são particularmente importantes neste <strong>movimento</strong>, como o Village e o<br />

Soho. Para uma visão geral do <strong>grafite</strong> no Soho durante os anos 80 e 90 vide David Robinson - Soho<br />

Walls. Beyond Graffiti. Londres, Thames and Hudson, 1990.<br />

85


diferentes do cinza e dos tons fúnebres dos artistas de ateliês 48 . Surgia, assim, uma<br />

diferença e uma tensão entre a arte de galeria e a arte <strong>urbana</strong>. A comparação entre elas<br />

também é interessante pois permite um aprofundamento das questões relativas ao<br />

montante dos investimento e da produção artística atual. O valor dos investimentos e o<br />

nível de regulamentação da arte <strong>urbana</strong> são desprezíveis se comparados com os da arte<br />

das galerias e museus. Se para estes a situação já é difícil, resta muito pouco dos<br />

investimentos públicos e particulares para a arte <strong>urbana</strong>. Para viadutos e muros<br />

públicos, o orçamento é quase zero: além de pintá-los de branco com a cal, a<br />

administração municipal parece se <strong>em</strong>penhar apenas na vigilância e na captura dos que<br />

ousam "invadir" o patrimônio público. As tensões e as polêmicas tornam-se ainda mais<br />

acirradas quando os pichadores "atacam" patrimônios culturais ou esculturas públicas.<br />

3. GRAFITE COMO FORMA DE COMUNICAÇÃO<br />

URBANA<br />

Quando se menciona a palavra <strong>grafite</strong>, uma das primeiras questões que<br />

se levanta é se ele t<strong>em</strong> que ser marginal (ou seja, feito de forma ilegal e à noite).<br />

Mesmo para qu<strong>em</strong> pertence ao <strong>movimento</strong>, é difícil responder a essa questão. Em<br />

primeiro lugar porque o <strong>grafite</strong>, como <strong>movimento</strong>, nasceu de uma manifestação política<br />

48 Na década de 80, os tons cinzas, ferrugens e o preto dominavam nas obras do circuito artístico oficial,<br />

nas bienais e nas galerias. A metáfora da decadência da sociedade é evidente. Na década de 90, as<br />

obras se tornaram escatológicas e putrefatas utilizando materiais orgânicos como sangue, esperma,<br />

etc.<br />

86


(o <strong>movimento</strong> estudantil francês de 68) e não tinha a intenção plástica, n<strong>em</strong> o caráter<br />

institucional. Reprimido desde seu início e mantido sob a forma marginal, o <strong>grafite</strong><br />

incorporou el<strong>em</strong>entos plásticos e conteúdos psicológicos, que foram mantidos na<br />

relação com a livre figuração internacional 49 . No início seu autor agia de forma<br />

clandestina e, depois de conhecido, passou a atuar no <strong>movimento</strong> da livre figuração,<br />

saindo do anonimato e da clandestinidade. Assim, muitos <strong>grafite</strong>iros de Paris acabaram<br />

ganhando uma fama inesperada e rápida, até chegar às galerias de arte e revistas<br />

especializadas 50 . A aceitação desse tipo de <strong>grafite</strong>, carregado de el<strong>em</strong>entos figurativos e<br />

r<strong>em</strong>etendo a conteúdos psicológicos, é muito diferente da dos <strong>grafite</strong>s de banheiros.<br />

Ambas, no entanto, têm <strong>em</strong> comum espontaneidade, a rapidez e a ef<strong>em</strong>eridade, <strong>em</strong>bora<br />

o motivo e as influências sejam b<strong>em</strong> distintas.<br />

A escola francesa de 68 (especialmente Deleuze, Guattari e Foucault) ou<br />

a filosofia dos 60', como a denominam Ferry e Renaut 51 , mostra como a subjetividade<br />

pode ser influenciada por deslocamentos do desejo e pulsões e fornece os instrumentais<br />

teóricos e conceituais que permit<strong>em</strong> transformar a análise das relações entre as<br />

49 Armando Silva Tellez destaca sete características importantes do <strong>grafite</strong>, sendo a marginalidade a<br />

primeira delas. Segu<strong>em</strong>-se o anonimato, a espontaneidade, a teatralidade, a velocidade,<br />

precariedade e fugacidade. Cf. Armando Silva Tellez - Graffiti: Una ciudad imaginada. 2 ed.<br />

Bogotá, Tercer Mundo Editores, 1988, pp. 26-29.<br />

50 Um bom ex<strong>em</strong>plo deste tipo de publicação é o livro de fotografias de Joerg Huber - Paris Graffiti.<br />

Londres, Thames and Hudson, 1986.<br />

51 Luc Ferry e Alain Renaut - op. cit., p. 54.<br />

87


manifestações <strong>urbana</strong>s e seus "desajustes sociais". Vários pensadores 52 trabalharam no<br />

sentido de definir os processos da linguag<strong>em</strong> de natureza marginal e clandestina como<br />

ligados às pulsações do desejo e a impulsos analisados a partir de teorias da psicologia,<br />

mais precisamente da teoria do espelho 53 . Encaradas sob esse ponto de vista do<br />

deslocamento da subjetividade e do desejo do outro, as manifestações <strong>urbana</strong>s tend<strong>em</strong><br />

a se repetir no tecido social, utilizando formas importadas moldadas à necessidades<br />

locais. Deste modo, o fenômeno de rádios piratas, dos <strong>grafite</strong>s e das pichações<br />

assum<strong>em</strong> forças simulacrais, propagando-se no meio urbano e adquirindo os mais<br />

variados valores <strong>em</strong> diversos suportes.<br />

Por conseguinte, é difícil estabelecer um critério rígido entre o permitido<br />

e o marginal. Também não se deve achar que uma repressão forte e eficaz pode "livrar"<br />

a sociedade desses acontecimentos. Ao contrário, é preciso tratar os <strong>grafite</strong>s como<br />

linguag<strong>em</strong> e, portanto, como algo passível de interferência e análise. Este é o<br />

procedimento adotado por Armando Silva Tellez, ao estudar os <strong>grafite</strong>s <strong>em</strong> Bogotá: “O<br />

<strong>grafite</strong> é um tipo de comunicação b<strong>em</strong> qualificado”, afirma ele logo no início de sua<br />

obra. 54 S<strong>em</strong>iólogo e investigador de arte e dos processos visuais, este autor estuda e<br />

dimensiona estética e antropologicamente este fenômeno comunicacional, que serve a<br />

diferentes agentes sociais. Sua análise está pautada na estruturação de certas<br />

52 Entre eles, especialmente Gilles Deleuze e Félix Guattari. Vide Félix Guattari e Suely Rolnik -<br />

Micropolítica. Cartografia do desejo. Vozes, Petrópolis, 1986 e Félix Guattari - Revolução<br />

Molecular. Pulsações políticas do desejo. 2 ed. São Paulo, Brasiliense, 1985.<br />

53 Cf. Jacques Lacan - "Variaciones de la cura tipo". Escritos. (trad.) México, Ed. Siglo XXI, 1966, pp.<br />

112 e 185.<br />

54 Cf. Armando Silva Tellez - op. cit., p. 23.<br />

88


características do <strong>grafite</strong>, tais como marginalidade, anonimato, espontaneidade e<br />

velocidade, construídas através de um paralelo desta forma de expressão com as de<br />

outras manifestações sociais, estéticas e econômicas. Essas relações permit<strong>em</strong> ao autor<br />

analisar o <strong>grafite</strong> político colombiano no qual o social é um forte t<strong>em</strong>a central,<br />

estabelecendo certas relações da estrutura lingüística dos <strong>grafite</strong>s com postulados<br />

s<strong>em</strong>ióticos, antropológicos e psicológicos.<br />

Sua análise é instigante e permite formular a base de uma das linhas<br />

mestras desta dissertação, que entende o <strong>grafite</strong> como uma forma de comunicação<br />

<strong>urbana</strong>. Mas este aspecto não esgota a questão. O <strong>grafite</strong> é, também, um <strong>movimento</strong><br />

social, característico das grandes cidades cont<strong>em</strong>porâneas. Este é o el<strong>em</strong>ento<br />

privilegiado pela abordag<strong>em</strong> do t<strong>em</strong>a <strong>em</strong>preendida por Nelson E.da Silveira Jr.<br />

Incorporando aspectos metodológicos da antropologia <strong>urbana</strong> e conceitos da cartografia<br />

guattariana 55 , este autor analisa os fluxos do <strong>grafite</strong> no ambiente pós-moderno da<br />

metrópole paulistana, suas "transgressões e suas territorialidades", concebendo-o como<br />

parte da "flânerie" dos anos 80 e do devir neo-tribal. Ao tratar os signos das imagens do<br />

<strong>grafite</strong> sob o ponto de vista das trajetórias e da experiência nômade, Silveira Jr. aponta<br />

para outro el<strong>em</strong>ento presente na grafitag<strong>em</strong>: suas relações com o imaginário lúdico<br />

urbano.<br />

55 “Cartografia é um método com dupla função: detectar a paisag<strong>em</strong>, seus acidentes, suas mutações e, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po, criar vias de passag<strong>em</strong> através deles. A cartografia se faz ao mesmo t<strong>em</strong>po que o<br />

território. A cartografia se distingue do mapa (...) pois acompanha a transformação da paisag<strong>em</strong>. É<br />

para isso aliás que ela serve.” Cf. Suely Rolnik e Félix Guattari - op. cit., p. 6.<br />

89


“A experiência do <strong>grafite</strong> permite pensá-la como espaço de<br />

circulação desejante. Ao lançar<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> deriva percorrendo as<br />

madrugadas pelo simples ‘barato’ de pichar muros, ao interferir<strong>em</strong><br />

esteticamente na paisag<strong>em</strong> produzindo imagens anônimas, frases,<br />

desenhos multicoloridos que parec<strong>em</strong> dar certo charme à cidade -<br />

contraponto lúdico ao cinza-poluição, à monotonia do cotidiano, ao<br />

mau humor metropolitano, à pressa capitalista -, os <strong>grafite</strong>iros<br />

mostram que é possível perder t<strong>em</strong>po na grande cidade, não na<br />

paranóia dos congestionamentos, mas saborosamente, na experiência<br />

intensa do investimento lúdico, na elegia do banal”. 56<br />

Neste trecho já se pode perceber um outro el<strong>em</strong>ento que, no entanto,<br />

permanece quase intocado por este autor e por outros da bibliografia: trata-se do<br />

aspecto plástico, da “interferência estética” na paisag<strong>em</strong> <strong>urbana</strong>. S<strong>em</strong> dúvida, o <strong>grafite</strong><br />

lida com el<strong>em</strong>entos da comunicação e da arte de uma forma integrada. Por isso, uma<br />

das possibilidades da análise é oferecida pela produção sobre história e teoria da arte,<br />

mais especificamente pela bibliografia que trata das relações entre urbanismo, política e<br />

cultura de massa. Como propõe a coletânea organizada por Hertz e Klein 57 , não<br />

dev<strong>em</strong>os analisar as questões atuais da arte como uma sucessão de "<strong>movimento</strong>s<br />

artísticos", mas sim como um processo cultural, intimamente relacionado com o<br />

processo político e social e com o contexto das novas tecnologias. Abre-se aqqui<br />

portanto, a possibilidade de tratar o t<strong>em</strong>a da arte <strong>urbana</strong> como um processo cultural,<br />

56 Cf. Nelson E. da Silveira Jr. - op. cit., pp. 45-46.<br />

57 Richard Hertz & Norman M. Klein (orgs.) - Twentienth Century Art Theory. Urbanism, politics,<br />

and mass culture. Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1990, especialmente pp. 27-38.<br />

90


intimamente relacionado com o processo político e social no contexto das novas<br />

tecnologias e sua d<strong>em</strong>ocratização.<br />

Reunindo as três abordagens, pode-se dizer, de maneira clara, que o<br />

<strong>grafite</strong>, enquanto forma de comunicação, constitui-se como interferência artística no<br />

tecido urbano, não podendo ser tratado simplesmente como "vandalismo infantil". Esta<br />

foi uma questão constante no trabalho de pesquisa, que tentou aproveitar da melhor<br />

maneira a oportunidade oferecida pela abertura política (com a d<strong>em</strong>ocratização das<br />

Secretarias da Cultura, <strong>em</strong> governos ligados a partidos de forte expressão popular) e<br />

pelo desenvolvimento de uma novas perspectivas com as interferências no mundo<br />

digital das redes mundiais de computadores. Pensando na globalização e nas<br />

desterritorializações propostas pela perspectiva de Renato Ortiz 58 , pode-se dizer que o<br />

encaminhamento da pesquisa e deste trabalho foram importantes no sentido de<br />

questionar a imposição dos meios e da indústria cultural e buscar uma afirmação<br />

singular, resistindo à nivelação imposta à subjetividade e procurando os agenciamentos<br />

possíveis, nos fluxos e refluxos da aventura <strong>urbana</strong>. 59 .<br />

A pesquisa foi fiel a uma das característica importantes do <strong>grafite</strong> que,<br />

desde cedo, assumiu o caráter de interferência. Podia ser feito sobre cartazes - como<br />

Costa, <strong>em</strong> Paris, que alterava anúncios publicitários. Alterar, comentar, interferir,<br />

marcar uma diferença: estes são el<strong>em</strong>entos constantes que aparec<strong>em</strong> nas tags, nas letras<br />

58 Cf. Renato Ortiz - Mundialização e Cultura, pp. 185-186.<br />

59 É interessante ver a aplicação dos conceitos introduzidos por Félix Guattari na tese de Nelson E. da<br />

Silveira Jr. <strong>em</strong> sua tese de mestrado - op. cit.; especialmente Cap. IV p. 51-60.<br />

91


grafitadas ou nos <strong>grafite</strong>s propriamente ditos. Trata-se também de uma manifestação<br />

efêmera, que guarda características e tensões próprias dos meios urbanos<br />

cont<strong>em</strong>porâneos.<br />

Os t<strong>em</strong>as e motivos de muitos <strong>grafite</strong>s feitos no Brasil, por ex<strong>em</strong>plo,<br />

chegaram através de pessoas que estiveram vivendo fora do país, ou receb<strong>em</strong><br />

informações pela mídia televisiva ou escrita. Da mesma forma que o <strong>movimento</strong> de 68<br />

na França popularizou certos valores e influenciou uma geração inteira, modificando<br />

costumes, quebrando tabus e liberando a sexualidade, o <strong>grafite</strong> dos anos 80 influenciou<br />

muitos artistas e se constituiu como uma moda por várias gerações. Em São Paulo, há<br />

oficinas de <strong>grafite</strong> espalhadas por quase toda a cidade. Nelas, é muito freqüente ouvir<br />

alguém dizer que bastou ver uma reportag<strong>em</strong> na televisão sobre um <strong>grafite</strong>iro para ficar<br />

motivado a se tornar um <strong>grafite</strong>iro. Estas oficinas surgiram muitas vezes de programas<br />

oficiais, patrocinados por secretarias e administrações regionais. Apesar de<br />

institucionalizadas, são lugares onde se respira um clima de liberdade e descontração e,<br />

desde sua orig<strong>em</strong>, ajudaram a popularizar o <strong>grafite</strong> e a promover sua aceitação por parte<br />

da população dos bairros. Através delas, áreas degradadas pela sujeira se transformaram<br />

<strong>em</strong> áreas revitalizadas e coloridas.<br />

Tal aceitação por parte da população e dos meios de comunicação de<br />

massa, b<strong>em</strong> como a presença de certas instituições governamentais, não quer dizer que<br />

o <strong>grafite</strong> se oficializou ou se tornou algo permitido <strong>em</strong> todos os lugares. Nos anos 90,<br />

com o surgimento da letra grafitada, a periferia de São Paulo se tornou um território<br />

conquistado e defendido por um batalhão de pichadores. Se um <strong>grafite</strong>iro ou pichador<br />

92


de outra região invadir esse território certamente terá probl<strong>em</strong>as... Muitos <strong>grafite</strong>iros<br />

pod<strong>em</strong> ter seus <strong>grafite</strong>s pichados e chegam a ser perseguidos por ter<strong>em</strong> feito seus<br />

trabalhos por cima de pichações. Outras vezes, o <strong>grafite</strong>iro pode ser contratado para<br />

fazer um <strong>grafite</strong> <strong>em</strong> um muro já pichado e, ao executar o trabalho, acaba comprando<br />

uma briga e passsa a ter seus <strong>grafite</strong>s, <strong>em</strong> outros lugares, destruídos. Alguns <strong>grafite</strong>iros<br />

mais experientes costumam procurar e saber qu<strong>em</strong> são os pichadores locais e às vezes<br />

até fornec<strong>em</strong> o material restante do trabalho para o pichador respeitar o <strong>grafite</strong>. Mas a<br />

pergunta ainda fica no ar: se o <strong>grafite</strong> convive com a população, sendo parcialmente<br />

aceito, por que ele continua sendo mal visto pelos pichadores?<br />

Tais tensões revelam que o importante não é definir se o <strong>grafite</strong> é algo<br />

oficializado ou marginal, mas saber como ele se insere na disputa de territórios,<br />

rivalizando com a propaganda com, os pichadores e a própria população. Tais<br />

territórios urbanos aparec<strong>em</strong> como ilhas de liberdade e o que é permitido <strong>em</strong> alguns<br />

lugares não é necessariamente permitido <strong>em</strong> outros. Além disso, a questão pode ser<br />

também abordada por outro ângulo. Com efeito, a arte oficial das galerias e dos museus<br />

não pode acompanhar a evolução que se deu na propaganda, no cin<strong>em</strong>a e na televisão.<br />

Perdida numa forma elitista e dominada por uma arte conceitual e decadente, que<br />

adquire tons enferrujados e pretos, a maioria dos artistas plásticos (incluindo os<br />

figurativos) passa ao largo da intenção e da proposta levantadas pela barbárie da rua.<br />

Para a maioria dos artistas, através dos t<strong>em</strong>pos, o fazer da arte está<br />

relacionado com o poder. Como vimos anteriormente, a técnica e a máquina mudaram<br />

essa relação, levando o artista da igreja para a Corte, e da Corte para o braços dos<br />

93


poderosos industriais. De uma forma ou de outra, os artistas s<strong>em</strong>pre estiveram sob um<br />

teto seguro e a arte que sai às ruas incomoda esta aparente estabilidade. Por isso<br />

mesmo, s<strong>em</strong>pre terá seus críticos, como o artista plástico Luiz Paulo Baravelli, que<br />

escreveu no catálogo da I Mostra Paulista de Grafite 60 :<br />

"Parece que o graffiti é uma atividade que não t<strong>em</strong> maior interesse<br />

para os teóricos da arte. Tratado condescendent<strong>em</strong>ente como uma<br />

molecag<strong>em</strong> <strong>urbana</strong>, apenas matéria para sociologias ligth, não é<br />

levado a sério como manifestação artística. Como muita gente, não<br />

gosto do graffiti (...) O graffiti é hoje o único <strong>movimento</strong> organizado<br />

nas artes plásticas. (...) oferece uma utopia: arte grátis, talvez o<br />

único produto grátis numa sociedade ferozmente argentária como a<br />

nossa. (...) O graffiti é uma arte pública que não passa pelo poder<br />

público. (...) O <strong>grafite</strong>iro é rejeitado pela população <strong>em</strong> dois níveis:<br />

um, ético, ao invadir propriedades particulares e outro, estético ao<br />

impor uma linguag<strong>em</strong> e uma iconografia pessoais." 61<br />

60 Luiz Paulo Baravelli é artista plástico figurativo e pertenceu ao <strong>Grupo</strong> da Escola Brasil, na década de<br />

70, depois na década de noventa trabalha exclusivamente para a Galeria São Paulo nos jardins e faz<br />

uma polêmica exposição no Paço das Artes provocando uma grande reação no circuito "dos jardins<br />

"das artes plásticas Atrai pintores populares para o museu, chocando os críticos que viam na sua<br />

atitude uma forma promocional e provocativa. Vide, a respeito, Folha de São Paulo, Caderno<br />

Folha Ilustrada, 18 de maio de 1990.<br />

61 Catálogo da I Mostra Paulista de Grafite, MIS - São Paulo, 1992. Vide Anexo I.<br />

94


CAPÍTULO II<br />

95


CAPÍTULO II<br />

A LINGUAGEM DAS INSCRIÇÕES URBANAS<br />

1. ASPECTOS DA COMUNICAÇÃO URBANA EM SÃO<br />

PAULO<br />

Ao contrário de outras cidades, São Paulo não sabe como fazer para que<br />

sua cultura flua através das ruas. Paris e New York, por ex<strong>em</strong>plo, têm ruas, praças e<br />

igrejas que ficaram conhecidas pela sua vitalidade <strong>em</strong> termos de arte. Aqui, além da<br />

praça da República e do Embu, encontramos apenas eventos isolados no Bexiga e na<br />

Praça Benedito Calixto. Como vimos, o investimento <strong>em</strong> arte <strong>urbana</strong> é quase nulo, e<br />

não há regulamentação ou qualquer diretriz política sobre o t<strong>em</strong>a. Concebidas para<br />

escoar e circular mercadorias, as ruas possu<strong>em</strong> um papel apenas funcional, enquanto os<br />

parques e praças mal serv<strong>em</strong> para purificar o ar e aliviar o stress. As esculturas <strong>urbana</strong>s<br />

ainda se caracterizam pelo abstracionismo limpo e b<strong>em</strong> comportado, exigindo o<br />

pedestal e distanciando-se do lúdico e da interatividade com os passantes. É evidente a<br />

disparidade de investimento entre esta arte oficial, <strong>em</strong> que o poder público habilita o<br />

96


artista a expor suas imagens e sua estética pessoal ao comum dos mortais, como propõe<br />

Baravelli 62 , e a arte <strong>urbana</strong> das ruas.<br />

O sist<strong>em</strong>a se organiza para que os poucos espaços livres da cidade<br />

pass<strong>em</strong> a abrigar mega-shows e eventos musicais. Não há nenhuma representatividade<br />

da arte <strong>urbana</strong> e, <strong>em</strong> lugares de maior investimento público existentes na cidade, como<br />

o Metrô e o M<strong>em</strong>orial da América Latina, o que se vê é uma arte elitista que, de certa<br />

forma, se distancia do público e o inibe.<br />

Algumas festas populares, como as da s<strong>em</strong>ana santa, com procissões<br />

percorrendo as ruas cobertas de flores, festas religiosas como as da comunidade italiana<br />

no Bexiga ou manifestações coletivas de torcedores por ocasião da Copa do Mundo são<br />

as expressões mais conhecidas da comunicação <strong>urbana</strong>. Ambulantes vend<strong>em</strong> gravuras<br />

impressas nas calçadas e feiras de artistas expõ<strong>em</strong> quadros e móveis antigos <strong>em</strong><br />

algumas praças. Estes eventos são ocasionais e difer<strong>em</strong> da arte da propaganda, dos out-<br />

doors, das pichações e cartazes tipo lambe-lambe. Poucos artistas utilizam out-doors<br />

como meio de difusão de sua obra, a não ser <strong>em</strong> ocasiões específicas e esporádicas. Só<br />

recent<strong>em</strong>ente o mercado MIX, que abriga toda a cultura cluber de São Paulo conseguiu<br />

se transferir do porão apertado de um cineclube para as galerias de um prédio <strong>em</strong> frente<br />

ao Museu de Arte de São Paulo e, logo depois, para um casarão antigo da Av. Paulista.<br />

Assim é o panorama da arte <strong>urbana</strong> <strong>em</strong> São Paulo.<br />

62 Luiz Paulo Baravelli - “Sobre o Graffiti” Catálogo da I Mostra Paulista de Grafite. S. Paulo, 1992.<br />

97


Como <strong>em</strong> outros grandes centros, a cultura <strong>urbana</strong> paulista também foi<br />

influenciada pelo <strong>movimento</strong> de 68, com suas inscrições políticas, pelos modismos<br />

psicodélicos e por toda a cultura globalizada e ecológica dos anos 80. Atualmente,<br />

cidades como São Paulo são cada vez mais influenciadas por essas posturas e passam<br />

por transformações drásticas, pois os mercados internacionalizados, a cultura<br />

globalizada, os desastres e as guerras contribu<strong>em</strong> para um forte desgaste nessas<br />

instituições locais e culturalmente resistentes. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, como uma forma de<br />

resistência, as instituições mais tradicionais passam a ser substituídas por grupos e<br />

associações, que compet<strong>em</strong> entre si no meio urbano por territórios, por poder, por um<br />

número maior de m<strong>em</strong>bros. <strong>Grupo</strong>s religiosos, quadrilhas ou comandos e gangues<br />

lutam por espaço <strong>em</strong> bairros populares ou de trabalhadores e nas favelas,<br />

transformando-os <strong>em</strong> territórios.<br />

O meio urbano passa a ser cada vez mais loteado e marcado por<br />

inscrições. Recent<strong>em</strong>ente a construção civil passou a tomar atitudes mais agressivas,<br />

colocando cartazes nas esquinas e pintando os tapumes das construções para impedir<br />

qualquer tipo de interferência que esteja fora de seu controle. Na disputa por territórios,<br />

a comunicação <strong>urbana</strong> torna-se uma superposição de códigos, numa comunicação<br />

fechada, dirigida e valorizada apenas internamente.<br />

Em São Paulo, por ex<strong>em</strong>plo, a inscrição "CV", <strong>em</strong> vermelho, pode<br />

passar desapercebida. No Rio de Janeiro, entretanto, este sinal é logo identificado como<br />

as iniciais do "Comando Vermelho" e a reação é imediata. Há poucos anos, <strong>em</strong> São<br />

Paulo, o bairro de Pinheiros era conhecido como uma região de perigosos maníacos que<br />

98


freqüent<strong>em</strong>ente atacavam mulheres com estiletes. Na ocasião, uma pichação <strong>em</strong><br />

vermelho do "maníaco do estilete" provocava uma reação local que seria inconcebível<br />

nos dias de hoje. Em São Paulo, a inscrição "MANCHA", <strong>em</strong> verde, se feita nas<br />

proximidades do Estádio do Morumbi pode não ser entendida pelos moradores do<br />

bairro de classe alta. Para a torcida do Palmeiras que vai àquele estádio, no entanto, ela<br />

é perfeitamente compreensível, e este grupo se sente valorizado, principalmente depois<br />

que a torcida uniformizada Mancha Verde foi proibida de freqüentar os estádios da<br />

cidade pelo excesso de violência.<br />

Estes ex<strong>em</strong>plos mostram como as inscrições assum<strong>em</strong> um valor<br />

comunicacional fechado e pod<strong>em</strong> não ser entendidas pela maioria dos receptores. A<br />

comunicação <strong>urbana</strong> oficial elaborada pelos órgãos de cultura, pela prefeitura e pelas<br />

agências de propaganda s<strong>em</strong>pre procuram fazer com que suas mensagens sejam<br />

compreendidas rapidamente por todos. Trabalhando <strong>em</strong> sentido oposto, a maioria das<br />

inscrições é executada sobre as placas, aparelhos e cartazes da comunicação oficial.<br />

Esta, por sua vez, gasta t<strong>em</strong>po e dinheiro tentando limpá-las, mas as inscrições<br />

reaparec<strong>em</strong> novamente e assim o <strong>movimento</strong> se repete indefinidamente 63 . São ações<br />

que revelam um grande distanciamento, que só acabam gerando isolamento e<br />

confronto.<br />

63 Silveira Jr. já alertava <strong>em</strong> sua dissertação ser preciso “analisar como os fenômenos de poder atuam no<br />

nível do micro, para verificar como eles se deslocam e são investidos e anexados por fenômenos<br />

mais gerais, s<strong>em</strong> deixar de preservar certa autonomia”. Cf. Nelson E. da Silveira Jr. - Superfícies<br />

Alteradas. Uma cartografia dos <strong>grafite</strong>s na cidade de São Paulo. Campinas, dissertação de<br />

mestrado, UNICAMP, 1991, p. 26.<br />

99


100<br />

Fugindo ao estigma do vandalismo, pode-se observar que certas<br />

inscrições e manifestações passaram a ter um conteúdo diferente das inscrições feitas<br />

por grupos e partidos políticos. Manifestações culturais populares e <strong>movimento</strong>s<br />

organizados têm atuado no meio urbano, alguns esporadicamente outros n<strong>em</strong> tanto, já<br />

com estilos e gerações - como é o caso da grafitag<strong>em</strong>, conforme ver<strong>em</strong>os mais adiante.<br />

Assim, o olhar que percorre o meio urbano paulistano nos anos 90<br />

encontra uma sobreposição de inscrições e códigos de orig<strong>em</strong> variada. Além dos<br />

cartazes, luminosos e outros el<strong>em</strong>entos da propaganda, as inscrições pod<strong>em</strong> ser<br />

políticas, de grupos e <strong>movimento</strong>s populares, pod<strong>em</strong> ter sido feitas por marginais, por<br />

quadrilhas ou comandos, mas também <strong>grafite</strong>iros, pichadores e até mesmo ser<strong>em</strong><br />

oficiais (como no caso dos avisos, placas, etc.). O hom<strong>em</strong> moderno deve saber se situar<br />

neste mundo de signos que permeia o meio urbano e decifrar um número cada vez<br />

maior de códigos e sinais que, de uma maneira ou de outra, influenciam seu dia a dia.<br />

Evident<strong>em</strong>ente esta dissertação não pretende abordar todos estes signos<br />

e códigos. Realizando um recorte, ela privilegia antes de mais nada, as inscrições,<br />

dando especial ênfase à grafitag<strong>em</strong> e à pichação. Nos anos 90, a quantidade e a força<br />

destas manifestações que vamos analisar entraram para as manchetes dos jornais e<br />

influenciaram a arte e a cultura. Destacaram-se da simples inscrição <strong>urbana</strong> que<br />

acompanhava o <strong>movimento</strong> estudantil ou as manifestações políticas, ganharam estilos<br />

próprios e passaram a fazer parte da arte <strong>urbana</strong>, saindo das ruas para penetrar nas<br />

paredes dos museus e galerias. Acompanhando o <strong>movimento</strong> mundial, estão hoje<br />

penetrando no espaço virtual da internet.


2. AS INSCRIÇÕES URBANAS<br />

101<br />

Uma análise mais detalhada das inscrições encontradas no meio urbano<br />

necessita, <strong>em</strong> primeiro lugar, de distinções e classificações. Os critérios que permit<strong>em</strong><br />

este procedimento analítico estão baseados na concepção de que se está lidando, aqui,<br />

com formas de comunicação <strong>urbana</strong>. É importante, portanto, que se tenha <strong>em</strong> mente o<br />

tipo de agente urbano que produz estas inscrições e sua motivação, seus conteúdos e<br />

suas formas (incluindo o suporte e os materiais utilizados), e qu<strong>em</strong> com elas interage.<br />

A partir destes critérios, pode-se classificar as inscrições encontradas na<br />

cidade de São Paulo durante o período da pesquisa <strong>em</strong> cinco tipos básicos: inscrições<br />

publicitárias, panfletárias, latrinárias, a grafitag<strong>em</strong> e a pichação.<br />

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que não se está tratando aqui da<br />

propaganda de um modo geral, mas apenas das inscrições que têm características da<br />

propaganda. Aproveitando a brecha existente entre as várias manifestações publicitárias<br />

algumas lojas ou pessoas utilizam-se das inscrições para vender um produto ou<br />

conquistar um público jov<strong>em</strong>. As primeiras inscrições deste tipo diziam apenas<br />

"CASAS PERNAMBUCANAS" e eram feitas <strong>em</strong> pedras, nas estradas. Logo depois<br />

apareceu um outro tipo de inscrição "CÃO FILA KM16", que passou a ocupar também<br />

o espaço urbano, no final da década de 60.<br />

É interessante observar que poucas pessoas realmente eram capazes de<br />

saber o significado desta inscrição. Tratava-se de um vendedor de cães fila, cujo canil


ficava no quilômetro 16, mas de que rodovia? Na verdade, a repetição e a insistência<br />

destas inscrições <strong>em</strong> vários locais da cidade criaram um sentido próprio, que chegou a<br />

ser utilizado como forma de propaganda também para outros produtos.<br />

102<br />

Tais inscrições eram (ou são) feitas, <strong>em</strong> geral, por uma pessoa<br />

contratada por comerciantes para executar os serviço de pintar com cal as letras ou<br />

marcas nos muros e paredes. A motivação é óbvia, ligada diretamente à necessidade de<br />

fazer propaganda de um produto ou serviço. Por economia, lança-se mão de um meio<br />

alternativo de propaganda. O conteúdo não é definido, forja-se uma necessidade do<br />

objeto anunciado, do produto a ser conhecido ou reconhecido.<br />

Nos anos 90, vários outros produtos e marcas também utilizaram-se<br />

desta forma de propaganda, sobretudo com a intenção identificá-los com o público<br />

jov<strong>em</strong> e segmentado. É o caso, por ex<strong>em</strong>plo, da propaganda de jeans da Ônix, ou dos<br />

óculos escuros da marca Spy. Essas firmas marcam seus logotipos nos muros urbanos<br />

para reforçar a identificação da marca com o público jov<strong>em</strong>.<br />

Em todos estes ex<strong>em</strong>plos, a forma das inscrições é simples, constituída<br />

por frases já conhecidas ou logotipos. Utilizando suportes disponíveis, como muros,<br />

portas, paredes, placas e cartazes, as inscrições são feitas com tinta (inicialmente a cal e<br />

depois látex), spray, carvão, etc. A interação no meio urbano acarreta um <strong>em</strong>issor ativo<br />

e conhecido (<strong>em</strong> geral, uma pessoa jurídica) e um receptor passivo, que é apenas<br />

motivado a se identificar com o produto ou mesmo comprá-lo, ao reconhecer a<br />

necessidade anunciada.


103<br />

As inscrições panfletárias foram, de certa forma, as pioneiras <strong>em</strong><br />

espaços públicos abertos. O <strong>movimento</strong> estudantil francês de 68 utilizou-se largamente<br />

deste tipo de inscrição, inspirando fort<strong>em</strong>ente o <strong>movimento</strong> estudantil internacional e<br />

influenciando várias gerações, principalmente o <strong>movimento</strong> estudantil brasileiro na<br />

época do regime militar. Frases de conteúdo poético, filosófico e panfletário, que<br />

serviam de bandeira para o <strong>movimento</strong>, eram rapidamente transportadas para as<br />

paredes, muros e cartazes.<br />

Mas este tipo de inscrição foi também muito usada por grupos<br />

religiosos, ao longo dos anos 80 e 90. Através delas seus agentes identificam-se (ou<br />

quer<strong>em</strong> ser identificados) apenas coletivamente, como <strong>movimento</strong>s ou grupos<br />

politizados ou religiosos. A motivação fica por conta do proselitismo político ou<br />

religioso, da necessidade de expressar idéias que são reprimidas assim como os grupos<br />

e <strong>movimento</strong>s que lhes dão orig<strong>em</strong>. Geralmente o conteúdo traz reivindicações,<br />

mensagens, avisos, etc. Assum<strong>em</strong> a forma de frases escritas a mão livre, <strong>em</strong> muros,<br />

portas, paredes, placas e cartazes elaborados com os seguintes materiais: tinta, spray,<br />

carvão, sangue, etc.<br />

A palavra graffiti foi muitas vezes utilizada para designar inscrições<br />

deste tipo,<strong>em</strong> espeial as que pertenciam ao <strong>movimento</strong> estudantil 64 Pode-se até associar<br />

64 A respeito da orig<strong>em</strong> da palavra <strong>grafite</strong> e de seus significados vide Armando Silva Tellez - Graffiti:<br />

Una ciudad imaginada. 2. ed. Bogotá, Tercer Mundo Editores, 1988, p. 27 e Nelson E. da Silveira<br />

Jr. - op. cit., p. 8.


esta denominação, do graffiti com conteúdo social e contestatório, com o graffiti<br />

plástico dos anos 70, que se desdobrou <strong>em</strong> vários estilos até a década de 90. Preferimos,<br />

no entanto, manter a distinção, não utilizando a palavra para designar este tipo de<br />

inscrição, pelos motivos que ver<strong>em</strong>os adiante.<br />

104<br />

No caso das inscrições panfletárias, a interação que se forma com o<br />

meio urbano é s<strong>em</strong>elhante à das publicitárias, com um <strong>em</strong>issor ativo e um receptor<br />

passivo, no máximo reflexivo, se motivado a pensar sobre a mensag<strong>em</strong> das inscrições.<br />

Algumas vezes, se se tratar de um receptor mais informado, ele pode chegar a<br />

reconhecer a causa anunciada e identificar o grupo que a fez. Bons ex<strong>em</strong>plos deste tipo<br />

pod<strong>em</strong> ser encontrados facilmente: “LEIA A BÍBLIA”, “ABAIXO A DITADURA”,<br />

“JESUS TE AMA”, “QUÉRCIA VEM AÍ !”<br />

Há ainda outro tipo de inscrições bastante comum, feita nos banheiros<br />

públicos da cidade. Estas manifestações são anônimas e assum<strong>em</strong> freqüent<strong>em</strong>ente a<br />

forma de desenhos figurativos, frases ou ícones, utilizando como suporte as portas,<br />

paredes e acessórios situados <strong>em</strong> torno da latrina nos banheiros públicos. Os materiais<br />

mais usados são o lápis e a caneta, ou ainda o canivete, mas até excr<strong>em</strong>entos pod<strong>em</strong> ser<br />

encontrados nestas inscrições, geralmente de formas toscas, que se aproximam de<br />

garatujas.<br />

Tais rabiscos ou desenhos pod<strong>em</strong> ser alimentados pela repressão sexual<br />

ou por distúrbios de identidade, mas também pod<strong>em</strong> ser resultado de interferências<br />

humorísticas, já que o conteúdo destas inscrições latrinárias são populares e, além do


sexo, traz<strong>em</strong> piadas, etc. O livro de Gustavo Barbosa 65 trata especificamente deste tipo<br />

de inscrição, com base numa abordag<strong>em</strong> antropológica e psicológica do t<strong>em</strong>a. Para os<br />

propósitos desta dissertação, observamos apenas que, aqui, o tipo de interação<br />

proporcionado faz com que o <strong>em</strong>issor seja ativo e o receptor passivo, mas podendo ser<br />

também ativo, se motivado a fazer novas inscrições ou a interferir nas existentes.<br />

105<br />

Estas três formas de inscrições presentes na cidade prepararam, de certo<br />

modo, o terreno para um novo tipo de relacionamento com espaço urbano: a<br />

grafitag<strong>em</strong>. No sentido mais amplo, ela surgiu com a crise das instituições sociais<br />

tradicionais e com a produção massificada dos meios informais de educação: televisão,<br />

vídeo-game, vídeo-clipes, computadores, internet, etc. <strong>Grupo</strong>s ou tribos <strong>urbana</strong>s<br />

iniciaram suas grafitagens, adotando práticas nos moldes das tribos européias e norte-<br />

americanas, como ver<strong>em</strong>os adiante, formando diversos estilos com diferentes<br />

influências e agindo de forma organizada no tecido urbano.<br />

Inicialmente, os <strong>grafite</strong>iros da primeira geração foram perseguidos e<br />

alguns foram processados, mas isso não conseguiu controlar o <strong>movimento</strong>. Com o<br />

t<strong>em</strong>po, a grafitag<strong>em</strong> foi se estabelecendo <strong>em</strong> alguns bairros e lugares, que<br />

posteriormente, chegaram até mesmo a se tornar "cartões-postais" da cidade. Uma<br />

reação <strong>em</strong> cadeia, ajudada pela mídia e pelo cenário cultural artístico que as adotou, fez<br />

com que estas inscrições invadiss<strong>em</strong> os jornais, as galerias de arte e as bienais. Os<br />

<strong>grafite</strong>iros, depois do sucesso, souberam encaminhar e difundir o <strong>movimento</strong> através de<br />

65 Gustavo Barbosa - Grafites de Banheiro. Rio de Janeiro, Ânima, 1986.


oficinas culturais ou de projetos que criaram novos seguidores: os <strong>grafite</strong>iros da<br />

segunda geração, que ajudaram a popularizar a arte da grafitag<strong>em</strong> e contribuíram com<br />

novas influências.<br />

106<br />

Com a popularização, esta arte se diversificou, penetrando nos bairros<br />

populares, saíndo do domínio da classe média e afirmando territorialidades próprias. Da<br />

marginalidade e da ação rápida, a grafitag<strong>em</strong> passou a ter uma inserção social, sendo<br />

aceita por parte da população, principalmente diante da ação radical da pichação, que<br />

será tratada separadamente mais adiante.<br />

A motivação que precede a grafitag<strong>em</strong> está alicerçada <strong>em</strong> grandes<br />

manifestações culturais, especialmente na contra-cultura, <strong>em</strong> atividades políticas,<br />

poéticas e até artísticas. O <strong>movimento</strong> cultural encontra ressonância <strong>em</strong> determinados<br />

grupos que adotam seus conteúdos, utilizando t<strong>em</strong>as do cotidiano, humor, heróis das<br />

histórias <strong>em</strong> quadrinhos como bandeiras ou formas de se afirmar culturalmente no meio<br />

urbano e d<strong>em</strong>arcar seu território.<br />

Diferent<strong>em</strong>ente das inscrições anteriormente analisadas, a forma da<br />

grafitag<strong>em</strong> se caracteriza pelo requinte técnico e pelo planejamento, que resulta <strong>em</strong> uma<br />

maior qualidade das frases poéticas ou dos desenhos, elaborados com máscaras ou a<br />

mão livre. O t<strong>em</strong>po de execução e o lugar são anteriormente estudados e a ação é<br />

pr<strong>em</strong>editada e cuidadosamente planejada, diminuindo os riscos. Os suportes utilizados<br />

são os que ating<strong>em</strong> de alguma forma o grupo ou o espaço onde o grupo se relaciona<br />

com a cidade. Assim muros, portas, paredes, placas e cartazes são grafitados com tinta,


spray, carvão, giz, etc.O <strong>grafite</strong>iro é s<strong>em</strong>pre um <strong>em</strong>issor ativo, geralmente conhecido<br />

ou que se faz conhecer por seu estilo ou através da própria assinatura de suas obras e o<br />

receptor é passivo, motivado a se identificar com os t<strong>em</strong>as ou mesmo reconhecer a<br />

causa proposta.<br />

107<br />

Há ainda uma outra inscrição <strong>urbana</strong>, geralmente chamada de pichação,<br />

que t<strong>em</strong> uma estrutura s<strong>em</strong>elhante à da grafitag<strong>em</strong>. Diferent<strong>em</strong>ente dela, porém, trata-<br />

se de uma forma de comunicação fechada, executada inicialmente por um único<br />

indivíduo mas que, <strong>em</strong> seguida, passa por um processo de identificação coletiva e a ser<br />

realizada por grupos, espalhando-se por todo o tecido urbano de forma repetitiva e<br />

desordenada.<br />

As inscrições são constituídas por letras estilizadas ou distorcidas,<br />

formando nomes, apelidos individuais ou de gangues. Este signos são traçados com<br />

tinta, spray ou carvão sobre muros, portas, paredes, placas, cartazes, prédios,<br />

parapeitos, soleiras, beirais, etc. Sua linguag<strong>em</strong> é praticamente cifrada, de caráter<br />

anarquista e se faz compreender somente pelos grupos envolvidos no jogo.<br />

Embora sejam realizadas por indivíduos anônimos ou gangues, sua<br />

motivação é a fuga do anonimato: através da pichação procura-se a fama rápida, a<br />

difusão do nome da gangue e, também, a destruição da ord<strong>em</strong> vigente, a aventura, o<br />

risco, a satisfação do vício. Assim, a interação se faz entre um <strong>em</strong>issor ativo e<br />

conhecido apenas por sua marca e um receptor passivo. Apenas os m<strong>em</strong>bros da própria<br />

comunidade de pichadores decifram o conteúdo das pichações. Em geral, há rejeição


por parte do público maior, por causa da falta de compreensão e intelecção das<br />

inscrições.<br />

108<br />

Com seus significados fechados e assumindo um caráter epidêmico, as<br />

pichações formam um território próprio contra o qual se arma uma ação repressiva que<br />

tenta inibir e frear o <strong>movimento</strong>. A repressão, no entanto, acaba por incentivar os<br />

pichadores, colocando suas ações fora do controle e dos limites toleráveis pela<br />

sociedade e suas instituições tradicionais. Inúmeras inscrições desse tipo passam a se<br />

sobrepor, numa competição feroz que leva as gangues a procurar lugares cada vez mais<br />

altos e perigosos. Desta forma, os topos dos edifícios, as marquises e os monumentos<br />

são alvos sist<strong>em</strong>áticos deste tipo de ação que, com os anos, vêm adquirindo uma lenta<br />

evolução pela precariedade dos seus agentes e pela recusa de uma estética <strong>em</strong> moldes<br />

aceitáveis. As inscrições justamente procuram uma anti-estética, utilizando nomes<br />

putrefatos e escatológicos para atingir uma repulsa ainda maior que o próprio ato.<br />

A análise <strong>em</strong>preendida até aqui, como se pode observar, está baseada<br />

essencialmente nos aspectos comunicacionais da inscrições <strong>urbana</strong>s. Dentre todos os<br />

tipos de inscrições <strong>urbana</strong>s esta dissertação privilegia especialmente a grafitag<strong>em</strong>, uma<br />

linguag<strong>em</strong> <strong>urbana</strong> que, no entanto, como vimos, também possui um caráter artístico.<br />

Grafitag<strong>em</strong> e pichação estão intimamente relacionadas, possu<strong>em</strong> vários el<strong>em</strong>entos <strong>em</strong><br />

comum e muitos chegam até mesmo a confundi-las, usando os termos como sinônimos.


3. GRAFITAGEM E PICHAÇÃO: TENSÕES E<br />

ACOMODAÇÕES<br />

109<br />

As diferenças entre o <strong>grafite</strong> e a pichação são enfatizadas pelos dois<br />

autores que já se dedicaram à análise do <strong>grafite</strong> <strong>em</strong> São Paulo. Silveira Jr., apoiado <strong>em</strong><br />

depoimentos de alguns <strong>grafite</strong>iros 66 , enfatiza que<br />

“Apesar da repressão, os <strong>grafite</strong>s continuam sua deriva pela cidade.<br />

Em 88 os <strong>grafite</strong>s figurativos conhec<strong>em</strong> o auge da fama e prestígio. O<br />

termo ‘<strong>grafite</strong>iro’ torna-se status. Enquanto os pichadores inovam <strong>em</strong><br />

ousadia e grafia (a ex<strong>em</strong>plo dos nova-iorquinos, criam seus próprios<br />

tags - assinaturas -, com letra sinuosas e formas barroquizadas),<br />

invadindo monumentos, fachadas de edifícios, lugares quase<br />

inacessíveis, sendo cada vez mais discriminados, os <strong>grafite</strong>iros<br />

passam a ser convidados a grafitar espaços privados, o que vai<br />

provocar uma divisão no <strong>grafite</strong> figurativo: de um lado aqueles (...)<br />

que entram definitivamente no circuito comercial, de outro os<br />

defensores do ‘<strong>grafite</strong> autêntico, (...) que só pode existir livre na rua,<br />

sendo marginal, nômade e realizado <strong>em</strong> espaços proibidos.” 67<br />

Como se pode observar, apesar da terminologia conceitual um tanto<br />

sofisticada, Silveira Jr. acaba reiterando uma tensão que alguns artistas, especialmente<br />

os da primeira geração, fizeram do <strong>movimento</strong> <strong>grafite</strong> na cidade. Além disso, para este<br />

autor, é a diferença entre o permitido e o proibido que diferencia, essencialmente, as<br />

66 Cf. Nelson E. da Silveira Jr. - op. cit., especialmente capítulo V.<br />

67 Id<strong>em</strong>, pp. 19-20.


duas atividades. Este é também o procedimento adotado por Célia Ramos que, ao<br />

assentar sua análise no conceito de transgressão, reduz a discussão apenas a um dos<br />

aspectos presentes no <strong>movimento</strong> <strong>grafite</strong> 68 .<br />

110<br />

S<strong>em</strong> dúvida, as tensões entre <strong>grafite</strong>iros e pichadores são constantes e<br />

dev<strong>em</strong> ser observadas na análise sobre o t<strong>em</strong>a. Após a primeira inscrição efetuada no<br />

espaço urbano, o fenômeno da repetição começa a se desencadear. Uma verdadeira<br />

batalha por espaços começa a ser travada. Apesar de algumas s<strong>em</strong>elhanças, as<br />

inscrições e seus agentes se relacionam diferent<strong>em</strong>ente com a sociedade, como vimos<br />

acima, e compet<strong>em</strong> entre si de forma agressiva para garantir seu espaço e perpetuar sua<br />

marca. Os espaços vazios da cidade são territórios disputados, nos quais as pichações e<br />

a grafitag<strong>em</strong> vão aos poucos formando seus domínios e multiplicando seus estilos e<br />

tendências.<br />

A rivalidade entre <strong>grafite</strong>iros e pichadores está povoada de confrontos e<br />

deixa suas marcas nas obras, nos muros e na vida real. Existe uma concorrência pelos<br />

muros de casas, c<strong>em</strong>itérios, viadutos, postes, etc. A superposição de obras de autores<br />

diferentes num mesmo lugar e a intervenção de pichações sobre <strong>grafite</strong>s e vice-versa<br />

expressam os conflitos entre a grafitag<strong>em</strong> e a pichação, que acabam separando as<br />

intenções e os ideais iniciais dessas propostas e resultam na aproximação da grafitag<strong>em</strong><br />

com a arte institucional, enquanto a pichação se torna isolada e marginalizada.<br />

68 Vide Célia Maria Antonacci Ramos - Grafite, Pichação & Cia. São Paulo, Annablume, 1994.


Figura 1- Detalhe do painel elaborado por Rui Amaral no “Buraco da<br />

Paulista”. Para evitar a ação de interferências <strong>em</strong> seu trabalho, Rui o<br />

compl<strong>em</strong>entou com várias figuras menores e barras decorativas, não<br />

deixando espaço livre para a ação dos pichadores.<br />

111<br />

Mas a identificação direta entre <strong>grafite</strong> e artes plásticas não é tão<br />

simples. N<strong>em</strong> mesmo os próprios <strong>grafite</strong>iros da primeira geração tinham uma posição<br />

comum a este respeito, ou variavam suas opiniões. Matuck, por ex<strong>em</strong>plo, declarou que<br />

“aquilo tudo era uma grande brincadeira” concordando com Beto Lima que dizia não<br />

fazer “aquilo com uma proposta artística”; <strong>em</strong> outra ocasião, no entanto, afirmou:<br />

“Nós somos artistas plásticos. Eu nunca gostei desse rótulo<br />

‘<strong>grafite</strong>iro’... Eu não só trabalho com <strong>grafite</strong> (...) Continuo fazendo<br />

pintura, continuo fazendo um monte de coisa.” 69<br />

Se não há acordo com relação às artes plásticas, também parece não<br />

haver acordo entre <strong>grafite</strong>iros e pichadores. Para haver uma briga entre um pichador e<br />

69 Depoimento de Carlos Matuck, apud: Nelson E. da Silveira Jr. - op. cit.,, pp. 63 e 68.


um <strong>grafite</strong>iro, basta que este último cubra uma pichação com seu <strong>grafite</strong>. Isto<br />

desencadeia imediatamente a perseguição e esse <strong>grafite</strong>iro terá s<strong>em</strong>pre seus trabalhos<br />

pichados, não importa onde tenham sido feitos. Algo desse tipo aconteceu entre o<br />

<strong>grafite</strong>iro Rui Amaral e o pichador Bacal. Rui possuía seu ateliê na Vila Madalena e<br />

Bacal morava nas proximidades; ambos se conheciam e Bacal e outros pichadores<br />

costumavam freqüentar o ateliê de Rui, que dava tintas para alguns amigos de Bacal<br />

que desenhavam e estavam passando para a grafitag<strong>em</strong>. Mas, depois de uma briga,<br />

Bacal chegou a invadir e depredar o ateliê de Rui, para provocá-lo e conseguir tinta<br />

para suas pichações. Rui acabou chamando a polícia e Bacal foi perseguido. A<br />

rivalidade entre os <strong>grafite</strong>iros e pichadores foi aumentando com vários episódios deste<br />

tipo.<br />

112<br />

Geralmente, a perseguição contra os pichadores é maior que aquela<br />

contra os <strong>grafite</strong>iros. No caso das pichações, o <strong>movimento</strong> é, cada vez mais,<br />

considerado como invasivo da propriedade particular e pública, e seus participantes são<br />

considerados marginais e perseguidos como tais. Esta perseguição possui, no entanto,<br />

um duplo significado: <strong>em</strong>bora a maior parte das pessoas não consiguia entender o<br />

significado das pichações e os considere marginais, entre os pichadores, a ação<br />

repressiva transforma o ato de pichar <strong>em</strong> uma "façanha".<br />

O significado duplo da pichação pode ser entendido como um processo<br />

comunicacional: a reação negativa por parte do público é compreendida como positiva<br />

para o grupo e sua atuação, cuidadosamente planejada e trabalhada, não passa de algo<br />

anti-estético para a maior parte das pessoas. Desta forma, o pichador equaciona o


seguinte raciocínio: quanto maior a repressão maior a aventura; quanto maior a<br />

aventura maior a fama; quanto maior a fama, maior o destaque do grupo, mais<br />

publicidade, e maior influência na área, aumentando seu território s<strong>em</strong> correr muitos<br />

perigos e s<strong>em</strong> gastar muita tinta.<br />

113<br />

Assim, a ação repressiva ou julgamento depreciativo por parte da<br />

população e da mídia apenas valorizam o que se quer combater. Os pichadores do<br />

Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, por ex<strong>em</strong>plo, planejaram a ação e, depois de<br />

executar<strong>em</strong>-na, ligaram para a redação de vários jornais. Desta forma, deixaram-se<br />

prender, numa ação <strong>em</strong> parceria com a imprensa, que acionou a polícia 70 . S<strong>em</strong> a<br />

repercussão negativa da prisão e da publicação do feito pelos jornais, o efeito da ação<br />

seria visivelmente menor 71 .<br />

As depredações a monumentos e edifícios públicos têm<br />

simultaneamente, portanto, um valor enorme na pichação e um efeito negativo na<br />

população. As notícias na imprensa acabam mais por satisfazer a necessidade dos<br />

grupos de pichadores do que contribuir para uma diminuição efetiva das pichações.<br />

70 Estas informações circulavam entre os <strong>grafite</strong>iros e pichadores, <strong>em</strong>bora não foss<strong>em</strong> de conhecimento<br />

público.<br />

71 O ex<strong>em</strong>plo da pichação no Cristo Redentor é significativo. A repercussão na mídia logo provocou uma<br />

reação das gangues do Rio, que passaram a planejar ações <strong>em</strong> São Paulo - tudo noticiado e até<br />

mesmo fomentado pela imprensa. Veja, por ex<strong>em</strong>plo, a reportag<strong>em</strong> “Começa a guerra do Spray”,<br />

Folha de São Paulo, 20 de nov<strong>em</strong>bro de 1991, p.4-1.


Elas tend<strong>em</strong> somente a reforçar a afirmação interna aos grupos de pichadores, dentro de<br />

sua própria escala de valores. 72<br />

114<br />

Os pichadores cultuam suas aventuras <strong>em</strong> agendas pessoais, com<br />

notícias ou recortes de jornais onde aparece uma determinada pichação. Estes recorte<br />

ou as assinaturas dos grupos são objetos valiosos, trocados <strong>em</strong> encontros entre as<br />

gangues, onde também se conversa sobre as aventuras e estratégias vividas. Assim,<br />

além da linguag<strong>em</strong> cifrada, os truques para abrir portas e cadeados, e as estratégias para<br />

atingir os pontos mais altos e cobiçados da cidade faz<strong>em</strong> parte do ritual da pichação 73 .<br />

Para alcançar seus objetivos, o pichador necessita de uma estratégia e de um bom<br />

conhecimento da área onde vai atuar. A cidade passa a ser um campo de batalha, o<br />

território que possibilita a fama rápida e o escândalo <strong>em</strong>inente.<br />

72 As reações da população diante das inscrições são muito variadas. Geralmente, quando uma pessoa<br />

t<strong>em</strong> seu muro pichado ou grafitado, sua primeira reação é pintá-lo novamente de branco. Mas é<br />

exatamente isto que ela não deve fazer, pois assim estará incentivado a repetição da interferência.<br />

Uma “saída” t<strong>em</strong> sido eliminar o suporte da comunicação, colocando plantas no muro ou<br />

substituindo-o por grades de ferro ou madeira. Transformar o suporte, de maneira a impedir ou<br />

dificultar este tipo de comunicação pode resultar numa boa “saída” para os proprietários, mas não<br />

para a cidade. Contratar <strong>grafite</strong>iros para executar trabalhos <strong>em</strong> seus muros de modo a economizar<br />

dinheiro com caiações e ter algum controle sobre a decoração de suas paredes t<strong>em</strong> sido outra<br />

alternativa acionada pelos proprietários. Outras pessoas têm agido com indiferença ao <strong>grafite</strong> e<br />

assim os muros são sist<strong>em</strong>aticamente pichados e grafitados, sobrepondo-se numa mesma parede<br />

várias imagens e pichações, indefinidamente. Já alguns gastam uma enorme quantidade de dinheiro<br />

mantendo o muro vigiado e sist<strong>em</strong>aticamente pintando-o de branco, utilizando até tintas especiais<br />

que facilitam a limpeza. Entretanto, as ações direcionadas <strong>em</strong> conjunto com a população, a ex<strong>em</strong>plo<br />

de outras cidades, parec<strong>em</strong> ser a melhor forma de equacionar esse probl<strong>em</strong>a de comunicação nos<br />

grandes centros urbanos. Tratando o fenômeno das inscrições como fenômeno comunicacional e<br />

passível de interferência, pode-se se chegar a outros resultados que agrad<strong>em</strong> as partes envolvidas. O<br />

uso da força, da humilhação <strong>em</strong> público, das multas, da repressão violenta pode ser substituído pelo<br />

diálogo, equacionando as diferenças culturais e acumulando experiências que servirão de ex<strong>em</strong>plo<br />

para outras cidades.<br />

73 Este aspecto é destacado por Silveira Jr., que oferece um pequeno glossário da gíria utilizada por<br />

<strong>grafite</strong>iros e pichadores. Cf. Nelson E. da Silveira Jr. - op. cit., pp. 90-91. Um glossário é elaborado<br />

também pela reportag<strong>em</strong> local que acompanha o artigo “Garotos se arriscam pela fama das<br />

pichações”, Folha de São Paulo, 18 de set<strong>em</strong>bro de 1990, p. D-3.


115<br />

Competindo entre si, com letras quebradas (estilo gótico) ou letras<br />

grafitadas, os pichadores estão s<strong>em</strong>pre invadindo novos espaços. A concorrência entre<br />

as gangues se concretiza <strong>em</strong> ações destinadas a fazer uma pichação <strong>em</strong> local de mais<br />

difícil acesso ou de maior repercussão na mídia. Apoiada na legislação que não pune o<br />

menor infrator, a pichação acaba concentrando-se nos segmentos jovens da população,<br />

especialmente na faixa etária que antecede os dezoitos anos. Ao atingir a maioridade, os<br />

pichadores pod<strong>em</strong> ser presos pela polícia, tendo que responder a processos por danos à<br />

propriedade, sendo liberados apenas mediante pagamento de fiança. Este ato<br />

constrangedor faz com que muitas gangues adot<strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos mais jovens para<br />

continuar a marca do grupo. Os mais velhos param de pichar ou se tornam <strong>grafite</strong>iros,<br />

continuando a fazer obras mais leves, durante o dia, como a letra grafitada, por<br />

ex<strong>em</strong>plo.<br />

A trajetória de muitos artistas urbanos é, de certa forma, povoada de<br />

aventuras, brigas e correrias. Com a fama e o reconhecimento público adquiridos, o<br />

<strong>grafite</strong>iro e o pichador têm seus momentos de glória quando são entrevistados pelos<br />

meios de comunicação de massa ou uma grafitag<strong>em</strong> ou pichação torna-se notícia. Uma<br />

agenda pessoal, contendo recortes de reportagens com fotos e assinaturas dos colegas, é<br />

instrumento obrigatório de trabalho. Uma boa agenda conquista novas amizades e<br />

trabalhos esporádicos, como a pintura de fachadas de bares e oficinas.<br />

De maneira s<strong>em</strong>elhante à pichação, a repressão à grafitag<strong>em</strong> também se<br />

espalhou e, muitas vezes, ajudou a diss<strong>em</strong>inar outros <strong>grafite</strong>s. Se um <strong>grafite</strong> é<br />

imediatamente apagado, há um processo ou efeito dominó que se inicia: o mesmo


<strong>grafite</strong> passa a ser pintado <strong>em</strong> outros lugares ou muitas vezes retorna ao muro de onde<br />

foi apagado, que é incessant<strong>em</strong>ente grafitado ou pichado.<br />

116<br />

Tanto os <strong>grafite</strong>iros como os pichadores vê<strong>em</strong> com bons olhos a<br />

repressão a esse tipo de trabalho: para muitos grupos, o comentário- mesmo <strong>em</strong> tom<br />

pejorativo- sobre um trabalho, na mídia, é a única e rara oportunidade de se tornar<br />

conhecido. Após todo acontecimento televisivo, é comum grupos se destacar<strong>em</strong> no<br />

cenário da pichação e da grafitag<strong>em</strong>. Para os <strong>grafite</strong>iros, a repressão à pichação também<br />

é favorável, uma vez que seu trabalho começa ser diferenciado e tratado como arte.<br />

Muitas pessoas procuram trabalhos de <strong>grafite</strong>iros para cobrir seus muros<br />

e fachadas, pois eles permanecer<strong>em</strong> um t<strong>em</strong>po maior s<strong>em</strong> interferências do que um<br />

muro sist<strong>em</strong>aticamente pintado de branco. O <strong>grafite</strong>iro procura se integrar à população<br />

e trabalha sob a forma de encomenda ou conseguindo uma autorização do proprietário<br />

do muro para não ser perturbado pela polícia. Ainda, ao terminar o seu trabalho, o<br />

<strong>grafite</strong>iro consciente distribui as sobras do material utilizado entre os pichadores e um<br />

pacto de não interferência no trabalho é acertado. Os <strong>grafite</strong>s passam a ser mais<br />

elaborados e se multiplicam no meio urbano rapidamente, numa reação <strong>em</strong> cadeia.<br />

O período de maior repressão à grafitag<strong>em</strong> se deu quando ela iniciou seu<br />

processo de desenvolvimento no meio urbano. Quando ainda se apresentava s<strong>em</strong> a<br />

concorrência da pichação, a grafitag<strong>em</strong> podia continuar sendo perseguida e ter seus<br />

resultados sist<strong>em</strong>aticamente apagados. Mas o aparecimento da pichação foi um forte<br />

motivo para a tolerância da grafitag<strong>em</strong>, no caso da cidade de São Paulo. Em outras


cidades norte-americanas e européias, há uma polícia especializada no combate à<br />

grafitag<strong>em</strong> e a indústria química também se aparelhou com tintas laváveis e produtos<br />

anti-spray. Muitas cidades no primeiro mundo consegu<strong>em</strong>, através de ações<br />

direcionadas e conjuntas, que envolv<strong>em</strong> a polícia, os legisladores e a comunidade,<br />

diminuir a criminalidade e os <strong>grafite</strong>s. Nestas ações, é comum a participação da<br />

população através do telefone, estabelecendo uma linha direta para denúncias à polícia.<br />

Os legisladores, por sua vez, acabam por <strong>em</strong>pregar severas restrições aos terrenos e<br />

casas abandonadas a fim de evitar, desta forma, espaços ociosos onde a marginalidade<br />

possa vir a crescer. O plano educacional não é colocado de lado nestas ações e um<br />

trabalho conjunto com as escolas é um fator determinante na orientação dos jovens.<br />

117<br />

As experiências <strong>em</strong> São Paulo passaram por tentativas de liberação de<br />

algumas áreas <strong>em</strong> determinadas gestões da prefeitura. Projetos isolados da Secretaria do<br />

Estado da Cultura também foram direcionados para o <strong>grafite</strong>. Estes projetos, descritos<br />

na introdução dessa dissertação, constituíram uma saída profissionalizante para o<br />

<strong>grafite</strong>iro atuar como educador, formando alunos e participando dos probl<strong>em</strong>as dos<br />

bairros e das populações onde ocorriam as oficinas e projetos.<br />

Desta forma, a segunda geração de <strong>grafite</strong>iros, que passou por essas<br />

experiências, pode aprimorar suas técnicas e elaborar melhor seu trabalho. A primeira<br />

geração, mais autêntica e ligada às influências externas, ficou esquecida. Sua absorção<br />

pelas galerias e bienais não resultou na formação de artistas de grande expressão, e<br />

estes n<strong>em</strong> chegaram a ser reconhecidos internacionalmente. Pode-se afirmar, tendo<br />

como base estas experiências, que os ideais da grafitag<strong>em</strong> foram diluídos e sua


aceitação pela sociedade acabou absorvendo e profissionalizando seus agentes, b<strong>em</strong><br />

como adaptando seus conteúdos.<br />

118<br />

Na década de 90, os <strong>grafite</strong>iros e pichadores já possu<strong>em</strong> um espírito<br />

comercial. É comum ver números de telefone para contato, ao lado de <strong>grafite</strong>s ou nos<br />

cantos das obras. Já os pichadores chegam a se utilizar de cartões comerciais e são<br />

contratados para decorar palcos de bandas de rap ou pistas de skates. Muitos <strong>grafite</strong>iros<br />

e pichadores acabam encontrando uma forma de sobrevivência no competitivo mercado<br />

das inscrições <strong>urbana</strong>s e ainda manter ou participar de cursos <strong>em</strong> oficinas e casas de<br />

cultura.<br />

A análise das relações conflituosas e das dinâmicas entre <strong>grafite</strong>iros e<br />

pichadores e destes com a cidade evidencia, mais uma vez, as características<br />

comunicacionais deste <strong>movimento</strong>, ao mesmo t<strong>em</strong>po que ressalta seus el<strong>em</strong>entos<br />

ligados às formas de sociabilidade nos grandes centros urbanos, t<strong>em</strong>a do próximo it<strong>em</strong>.<br />

4. TERRITÓRIOS<br />

Nas décadas de 70 a 90 os territórios 74 da arte <strong>urbana</strong> apresentaram um<br />

<strong>movimento</strong> expansivo dos bairros de classe média <strong>em</strong> direção aos da periferia. A<br />

grafitag<strong>em</strong> chegou como inscrição poética e panfletária, penetrando neste segmento<br />

74 O termo, aqui, possui um significado mais descritivo, com conteúdos geográficos e sociais, e não t<strong>em</strong><br />

pretensões conceituais mais densas como as formuladas por Guattari. Para uma análise de<br />

inspiração guattariana, vide Nelson E. da Silveira Jr. - op. cit., pp. 100-106.


social através do <strong>movimento</strong> estudantil. Como vimos, a grafitag<strong>em</strong>, como <strong>movimento</strong><br />

artístico, teve sua orig<strong>em</strong> <strong>em</strong> bairros de classe média <strong>em</strong> grandes cidades da Inglaterra,<br />

Al<strong>em</strong>anha, Holanda e França. Ali, jovens beneficiados pela social d<strong>em</strong>ocracia podiam<br />

ter um nível de vida razoável s<strong>em</strong> ter que estudar ou trabalhar. O seguro des<strong>em</strong>prego e<br />

o auxílio social criavam uma geração que começou a viver <strong>em</strong> grupos, dividindo<br />

moradias ocupadas de modo alternativo. Estes grupos foram substituindo a influência<br />

do meio familiar e criando novas maneiras de se comportar socialmente.<br />

119<br />

De modo s<strong>em</strong>elhante, <strong>em</strong> São Paulo, foi <strong>em</strong> bairros de classe média,<br />

como Pinheiros e Vila Madalena, que alguns grupos começaram a se organizar<br />

culturalmente com o início da abertura política. Bares, pequenos teatros e casas<br />

noturnas começaram a reunir cantores e poetas que lançaram modas e costumes, além<br />

de seus discos gravados <strong>em</strong> selos alternativos. Espaços culturais como o Madame Satã,<br />

no Bixiga, ou o Teatro Lira Paulistana, <strong>em</strong> Pinheiros, fizeram um rápido sucesso,<br />

imitando costumes europeus, e passaram a ser freqüentados por grupos de teatro,<br />

bandas e jovens da classe média. Feiras de artesanato como a da Vila Madalena<br />

passaram a ser expressão de uma cultura alternativa e irreverente.<br />

Foi neste contexto que a grafitag<strong>em</strong> se desenvolveu, como ver<strong>em</strong>os mais<br />

detalhadamente no próximo capítulo. Nos bairros do Bixiga, Pinheiros e Vila<br />

Madalena, os primeiros <strong>grafite</strong>iros foram fixando seus territórios, apoiados pelas<br />

galerias e pela mídia. Rapidamente o <strong>grafite</strong> foi ganhando notoriedade e seus autores


passaram a receber influência da presença dos <strong>grafite</strong>iros norte-americanos presentes na<br />

XVII Bienal de São Paulo 75 . Com a presença destes artistas, esse tipo de atuação nas<br />

ruas, que estava sendo valorizado na França e nos EUA, também despertou a<br />

curiosidade do circuito das artes plásticas. Suas obras tornaram-se cada vez mais<br />

freqüentadoras de espaços fechados, nas galerias e espaços culturais dos Jardins e Vila<br />

Madalena. Enquanto isso, o sucesso rápido atraiu vários outros artistas para o trabalho<br />

de rua e popularizou o <strong>grafite</strong>, que continuou especialmente restrito aos bairros de<br />

classe média.<br />

120<br />

Diante de alguns retrocessos políticos, com a presença de governos mais<br />

autoritários na gestão da prefeitura, os <strong>grafite</strong>s passaram a ser perseguidos<br />

indiscriminadamente. Mesmo saindo diretamente das bienais para a marginalidade,<br />

especialmente sob o governo Jânio Quadros, quando a perseguição a <strong>grafite</strong>iros e<br />

pichadores foi intensa, o <strong>movimento</strong> se fortaleceu. A volta de governos mais<br />

d<strong>em</strong>ocráticos significou a adoção do <strong>grafite</strong> e a continuidade da perseguição apenas<br />

para os pichadores. Governos estaduais e municipais criaram casas de cultura com<br />

oficinas de <strong>grafite</strong> e projetos envolvendo os <strong>grafite</strong>iros 76 . Espaços d<strong>em</strong>arcados, tintas<br />

fornecidas pelas prefeituras, etc. resultaram numa estética diferente da grafitag<strong>em</strong> dos<br />

anos 70. Com a profissionalização, assiste-se à diluição de conteúdos e a<br />

75 Keith Haring e Kenny Scharf estiveram <strong>em</strong> São Paulo nesta época e Rui Amaral que era monitor desta<br />

bienal, acabou saindo com Haring <strong>em</strong> grafitagens por São Paulo.<br />

76 Entre este projetos pod<strong>em</strong>os citar o "Projeto Grafite-se", o "Tr<strong>em</strong> da FEPASA" e outros, que<br />

envolveram a revitalização de bairros, escolas, etc. Alguns projetos chegaram a incorporar<br />

pichadores, mas foram poucos e raros.


predominância do uso de máscaras e a adoção de desenhos e ilustrações de outros<br />

autores. Um <strong>grafite</strong> descartável, que não possui identidade n<strong>em</strong> autoria, mas que pode<br />

estar <strong>em</strong> vários lugares da cidade.<br />

121<br />

Ao ser executado <strong>em</strong> plena luz do dia, o <strong>grafite</strong> parece ter saído da<br />

marginalidade 77 . Desenvolvimentos estilísticos que serão melhor analisados no<br />

próximo capítulo, como o hip hop, aproximaram a grafitag<strong>em</strong> da forma de desenhar da<br />

ilustração, aproximando-a de públicos específicos, como os skatistas e rappers. Por<br />

outro lado, as produtoras de televisão começaram a valorizar este estilo, pelo seu<br />

desenho b<strong>em</strong> acabado e limpo, incorporando-o aos meios de comunicação. A ilustração<br />

com desenhos b<strong>em</strong> acabados e comportados, feita pelo <strong>grafite</strong>iro que atua nas ruas nas<br />

horas vagas (quase como um profissional liberal), passou a ocupar outros espaços, tais<br />

como lojas, bares, oficinas mecânicas, boates. O <strong>grafite</strong> chegou até mesmo ser colocado<br />

no painel eletrônico do Vale do Anhangabaú e foi projetado com raios lazer sobre<br />

prédios na Avenida Paulista, durante uma com<strong>em</strong>oração de aniversário do jornal A<br />

Folha de São Paulo.<br />

Paralelamente, alguns locais da cidade foram consagrados para a<br />

grafitag<strong>em</strong>. É o caso do "Buraco da Paulista" (o complexo de viadutos que liga a<br />

Avenida Paulista à Avenida Rebouças), dos subterrâneos da Praça Roosevelt e dos<br />

muros existentes na Vila Madalena, que vêm abrigando gerações de <strong>grafite</strong>iros durante<br />

77 Como já notamos anteriormente, este é o aspecto ressaltado por Célia Ramos, que chega a denominar a<br />

oba de alguns destes <strong>grafite</strong>iros de “pseudo<strong>grafite</strong> ou pseudomuralismo”. Vide Célia Maria<br />

Antonacci Ramos - op. cit., pp. 59-64.


mais de quinze anos de <strong>movimento</strong>. Mesmo nesses espaços há muita competição e<br />

disputas entre os vários estilos de <strong>grafite</strong> e pichações. Para os <strong>grafite</strong>iros, a experiência<br />

deste confronto mostra que é bom desenhar completamente todos os espaços para evitar<br />

interferências dos pichadores nos seus trabalhos. Cores b<strong>em</strong> contrastantes e o<br />

preenchimento do espaço utilizado com figuras menores entre os desenhos, como no<br />

caso da a Figurra 1, também evitam que o <strong>grafite</strong> sofra interferência das pichações.<br />

122<br />

O <strong>grafite</strong> de Rui Amaral com aproximadamente mil metros quadrados na<br />

Avenida Paulista foi considerado patrimônio da cidade <strong>em</strong> 1994 pelo Departamento do<br />

Patrimônio Histórico municipal, durante a gestão do diretor Marcos Faerman. Em 1995,<br />

com ajuda da prefeitura, foi restaurado por seu autor, já que desenho original havia sido<br />

apagado por outros <strong>grafite</strong>s e pichações: o "Buraco da Paulista" foi inicialmente pintado<br />

de branco e, aos poucos, Rui foi refazendo seu <strong>grafite</strong> 78 . Um segundo desenho foi<br />

colocado por cima do muro, preservando as cores originais. Mas, nesta tarefa, Rui<br />

Amaral laçou mão de "ajudantes", o que fez com que o segundo desenho perdesse <strong>em</strong><br />

qualidade, diferenciando-se do primeiro. Neste processo, foram apagados pela cal<br />

branca da administração regional muitos <strong>grafite</strong>s, de vários estilos. Este descompasso<br />

indica que os t<strong>em</strong>pos mudaram e coloca <strong>em</strong> cheque a dificuldade de preservar um estilo<br />

<strong>em</strong> detrimento de outros. A oficialização do <strong>grafite</strong> figurativo de Rui aumentou a<br />

78 Os motivos dos desenhos são seres extraterrenos e robôs, misturados com personagens da vida<br />

cotidiana de Rui: a mulher, os filhos, o cachorro. A insistência nesse t<strong>em</strong>a consiste <strong>em</strong> um alerta,<br />

segundo Rui, para que o público se acostume com a existência de vida <strong>em</strong> outros planetas. Este<br />

mural é um dos maiores <strong>grafite</strong>s realizados no local, com nítidas pretensões de marcar sua presença<br />

<strong>em</strong> São Paulo, como parte do "patrimônio cultural da cidade". Detalhe deste mural é reproduzido na<br />

Figura 1.


ivalidade entre os <strong>grafite</strong>iros, colocando os ideais da grafitag<strong>em</strong> <strong>em</strong> uma posição<br />

delicada.<br />

123<br />

A pichação, por sua vez, também originou-se <strong>em</strong> bairros de classe<br />

média, como a Lapa mas, depois da reação provocada por reportagens e pela própria<br />

curiosidade do público, começou a ser diss<strong>em</strong>inada pelos bairros mais afastados da<br />

periferia. A perseguição do governo Jânio Quadros aos pichadores Juneca, Bilão e<br />

Pessoinha fez com que estes ganhass<strong>em</strong> fama, incentivando ainda mais a pichação<br />

como forma do jov<strong>em</strong> excluído da sociedade ganhar uma rápida notoriedade.<br />

Diferent<strong>em</strong>ente do <strong>grafite</strong>, a pichação marcou um território na cidade, havendo uma<br />

identidade entre a pichação e a periferia. Fora destes bairros, as letras pichadas são<br />

entendidas como uma "invasão", <strong>em</strong>bora os grupos s<strong>em</strong>pre inscrevam sua presença <strong>em</strong><br />

muros e paredes de toda a cidade, procurando points mais altos e cobiçados que<br />

possibilit<strong>em</strong> um escândalo retumbante e a fama rápida.<br />

A notoriedade dos pichadores entre os jovens da periferia fez com que,<br />

nos bailes funk e de rap, bonés, camisetas e até roupas íntimas das admiradoras 79 . Além<br />

dos muros de c<strong>em</strong>itérios, placas de ônibus e de propaganda, topo dos edifícios e<br />

monumentos novos “lugares”foram incluídos no repertório espacial onde se realizam as<br />

pichações. Para as reuniões e a troca de informação entre os pichadores é comum haver<br />

um local de encontro. Inicialmente, estes encontros eram feitos na lanchonete Mac<br />

79 Cf. George Alonso - “Pichador autografa calcinhas de meninas, Folha de São Paulo, 22 de nov<strong>em</strong>bro<br />

de 1991, p. 4-3.


Donald's da Lapa, mudando-se depois para o Mac Donald's da Zona Sul, devido à<br />

grande quantidade de pichadores nesta região da cidade 80 .<br />

124<br />

Os pichadores identificam na própria pichação a região de orig<strong>em</strong> do<br />

grupo. São utilizadas letras iniciais para este tipo de marca; algumas vezes utiliza-se a<br />

inscrição “Z.O.” ou “TODOS”, por ex<strong>em</strong>plo, indicando que os grupo pertence à “Zona<br />

Oeste” da cidade ou que todos os m<strong>em</strong>bros do grupo estavam presentes na ação da<br />

pichação. Estas marcas tanto se refer<strong>em</strong> à definição do território, como pod<strong>em</strong> indicar<br />

que a pichação foi feita por um grupo fora de sua região, <strong>em</strong> uma outra zona da cidade -<br />

o que passa a dar um valor ainda maior para a pichação realizada.<br />

Figura 2 - Ex<strong>em</strong>plo de pichação com comentários, encontrada <strong>em</strong> São<br />

Paulo.<br />

Ações planejadas para outras cidades são também executadas como<br />

operações de guerra. É comum os grupos viajar<strong>em</strong> e, no caminho, ir<strong>em</strong> colocando suas<br />

80 Veja a reportag<strong>em</strong> de José Carlos Urbano - “As gangues que picham a cidade” Gazeta de Pinheiros,<br />

13 de fevereiro de 1990, caderno A, p. 4.


marcas, assinalando a presença no novo território. Nos finais de s<strong>em</strong>anas, os jovens se<br />

reún<strong>em</strong> e iniciam suas aventuras dormindo debaixo de marquises e parapeitos,<br />

atravessando noites inteiras pichando. Na segunda feira, voltam ao trabalho habitual, de<br />

preferência s<strong>em</strong> uma marca de tinta.<br />

125<br />

Estas questões revelam o quanto é difícil e complicada a análise dos<br />

acontecimentos envolvendo as inscrições <strong>urbana</strong>s, especialmente o <strong>grafite</strong>, e a<br />

pichação. Tomar partido s<strong>em</strong> um conhecimento aprofundado dos fatores que envolv<strong>em</strong><br />

o processo comunicacional do <strong>grafite</strong>, dessas interferências e seus suportes, pode gerar<br />

equívocos. Impondo sua concepção amparada pelo monumentalismo da arquitetura<br />

moderna brasileira, a política da arte oficial faz com que os poucos espaços urbanos<br />

sejam tratados paternalisticamente. Nele, as figuras populares e outros el<strong>em</strong>entos da<br />

vida brasileira não encontram lugar a não ser nos carros alegóricos do carnaval...<br />

Neste contexto, a arte <strong>urbana</strong> está aberta só para aventureiros. O mesmo<br />

não acontece com as estradas digitais, que permit<strong>em</strong> transpor os limites culturais e<br />

físicos impostos e encontrar formas de expressão mais fortes e capazes de romper com<br />

o controle oficial, como ver<strong>em</strong>os no próximo capítulo.


CAPÍTULO III<br />

O GRAFITE EM SÃO PAULO<br />

1. HISTÓRIAS, EVENTOS, VERTENTES<br />

126<br />

No Brasil, como vimos, o <strong>grafite</strong> surgiu há quase trinta anos atrás,<br />

durante a década de 60, quando grupos políticos pichavam nos muros das cidades frases<br />

tais como "ABAIXO A DITADURA". Em São Paulo, inscrições do tipo "CASAS<br />

PERNAMBUCANAS" e "CÃO FILA KM 26" já eram conhecidas dos paulistanos mas<br />

não pertenciam a um <strong>movimento</strong> organizado n<strong>em</strong> despertavam muitas reações,<br />

servindo como reforço de imag<strong>em</strong> para alguns comerciantes. A inscrição política<br />

nasceu no meio universitário com influência direta do <strong>movimento</strong> estudantil de maio de<br />

68 e definiu uma estética própria e uma certa agilidade, fruto da necessidade de escapar<br />

da repressão que na época atingia seu limite extr<strong>em</strong>o.<br />

A ex<strong>em</strong>plo do que ocorria na Europa, os estudantes chamavam essas<br />

inscrições de graffiti e seu conteúdo expressava uma estética poética, com as atitudes e<br />

os conteúdos do <strong>movimento</strong>. Sua difusão <strong>em</strong> larga escala no meio urbano produziu<br />

novas influências, fazendo surgir letras pintadas nos muros de terrenos baldios,<br />

construções públicas, paredes de viadutos - por toda a cidade e também <strong>em</strong> pedras nas


estradas. As expressões eram pintadas por militantes (no caso da pichação política) ou<br />

por pessoas especialmente contratadas para isso (no caso da propaganda comercial).<br />

127<br />

Essas inscrições da propaganda política ou comercial, visavam a difusão<br />

de uma mensag<strong>em</strong> através de um meio alternativo e seu significado podia ser entendido<br />

por todas as pessoas, diferenciando-se da pichação, que nascia com um conteúdo<br />

restrito e fechado. Nesta época, graffiti e pichação eram sinônimos e as inscrições<br />

caracterizavam-se pela ausência de el<strong>em</strong>entos plásticos, com letras (geralmente<br />

maiúsculas) feitas à mão com tinta nas cores branca, vermelha ou preta.<br />

Aos poucos a pichação foi deixando de ser reconhecida como sinônimo<br />

da palavra graffiti e passou a assumir uma forma específica. Em São Paulo, as<br />

primeiras pichações foram feitas por jovens do bairro da Lapa e Alto de Pinheiros que<br />

resolveram associar seus nomes e lançaram nos muros da cidade a inscrição "GONHA<br />

MÓ BREU", dando início ao <strong>movimento</strong> que, nos anos 90, é conhecido como<br />

"<strong>movimento</strong> dos pichadores". Seus autores eram desconhecidos pela maior parte das<br />

pessoas, <strong>em</strong>bora se saiba que faziam parte de um grupo de adolescentes, cujo<br />

procedimento começou a ser imitado por outros grupos. O processo de imitação e<br />

difusão da prática da pichação se acelerou depois da divulgação do "Gonha Mó Breu"<br />

pela mídia. Surgiram assim outras pichações como: "SUBIR... SUBIR... SUBIR...<br />

VOAR ERA INEVITÁVEL", "JUNECA PESSOINHA BILÃO" e "CELACANTRO<br />

PROVOCA MAREMOTO".


128<br />

No início dos anos 70, as inscrições e frases pichadas <strong>em</strong> muros e<br />

paredes eram freqüentes <strong>em</strong> determinados lugares da cidade. Novos grupos foram<br />

surgindo, usando a pichação como uma forma de identificação e passaram a fazer<br />

questão de diferenciar suas próprias inscrições das feitas por outros grupos. Assim as<br />

letras começaram a ter desenhos próprios, buscando-se tipos da letras diferentes, com<br />

quebras l<strong>em</strong>brando o estilo gótico. As mensagens continuaram a ser codificadas, quase<br />

indecifráveis, não podendo ser entendidas por todo mundo. A evolução da pichação se<br />

deu por simples imitação dos grupos que tentavam conquistar territórios no meio<br />

urbano. Nos anos 90, a pichação já tomou todos os bairros da cidade de São Paulo,<br />

alastrando-se pelas cidades do interior e passando a ser a maior manifestação de<br />

interferência na paisag<strong>em</strong> <strong>urbana</strong>.<br />

Foi, entretanto com Alex Vallauri que o <strong>grafite</strong>, com as características<br />

plásticas que são hoje <strong>em</strong> dia associadas à grafitag<strong>em</strong>, ganhou uma dimensão popular.<br />

Vallauri trabalha sozinho, utilizando máscaras simples, nas quais o contorno da figura<br />

predominava, para formar imagens de el<strong>em</strong>entos do cotidiano, tais como o telefone, o<br />

cachorrinho, e as famosas botas. Sua figura mais conhecida foi a "Rainha do Frango<br />

Assado", mas seu repertório de imagens logo ganhou um vasto público nos bairros de<br />

classe média paulistana, como Pinheiros, Bexiga e Vila Madalena. Depois, quando<br />

ficou mais conhecido, passou a fazer trabalhos mais elaborados e tinha alguns<br />

assistentes, como Carlos Matuck e Júlio Barreto.<br />

O <strong>grafite</strong> conservava ainda muito da utopia do <strong>movimento</strong> de 68 e<br />

prescindia da assinatura. Seus poucos autores eram reconhecidos pelo estilo e pelas


eferências utilizadas, s<strong>em</strong> qualquer sinal específico para diferenciá-los. Através da<br />

imprensa e da televisão, ou mesmo das galerias de arte, ficava-se sabendo que Vallauri<br />

desenhava a "Rainha do Frango Assado", a estampa do "Tin Tin" era feita por Matuck e<br />

que Júlio Barreto fazia de uma lambretinha uma personag<strong>em</strong> igualmente famosa quanto<br />

o "Spirit" correndo que desenhava nas esquinas do bairro de Pinheiros.<br />

129<br />

As figuras transformavam-se <strong>em</strong> ícones, formando um repertório de<br />

imagens e uma narrativa que comentava el<strong>em</strong>entos da cultura popular e da cultura de<br />

massas. A idéia era criar, a partir deste repertório icononográfico, uma leitura do<br />

cotidiano urbano, estabelecendo uma ponte entre imaginário e a realidade cinza da<br />

cidade. A linguag<strong>em</strong> plástica podia ser decifrada <strong>em</strong> diferentes níveis pelas pessoas,<br />

dependendo de sua relação com este repertório. De certo modo, o conteúdo das<br />

histórias <strong>em</strong> quadrinhos e dos personagens de Vallauri acabavam transformando o<br />

<strong>grafite</strong> <strong>em</strong> uma espécie de poesia <strong>urbana</strong>. Sua plasticidade e facilidade de compreensão<br />

facilitaram uma maior aceitação pela população, acelerando o processo de<br />

diferenciação entre o <strong>grafite</strong> e pichação.<br />

Quase paralelamente a este <strong>movimento</strong>, grupos de teatro de rua e artistas<br />

de vanguarda passaram a atuar no espaço urbano como <strong>em</strong> um grande ateliê, fazendo<br />

experiências plásticas que utilizavam ruas e viadutos, causando confusão no trânsito,<br />

como no caso dos carros que batiam uns nos outros, assustados com simples faixas de<br />

plástico celofane que "impediam" sua passag<strong>em</strong>. O "<strong>Grupo</strong> Tupi Não Dá" formou-se a


partir de experiências performáticas deste tipo 81 , impulsionando ainda mais o <strong>grafite</strong> na<br />

direção plástica e afastando-o da divulgação de slogans políticos.<br />

130<br />

Da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo<br />

surgiram vários artistas <strong>grafite</strong>iros que valorizavam o trabalho gráfico das histórias <strong>em</strong><br />

quadrinhos, dando um tom humorístico e alegre ao <strong>movimento</strong>. Entre eles destacavam-<br />

se Carlos Matuck, ex-assistente de Vallauri, que difundiu seu trabalho elaborando<br />

máscaras requintadas que permitiam a impressão <strong>em</strong> várias cores, atingindo um público<br />

jov<strong>em</strong> e influenciando vários seguidores. Matuck e muitos outros <strong>grafite</strong>iros desta<br />

geração ofereceram seus trabalhos <strong>em</strong> oficinas e casas de cultura pelo capital e interior.<br />

Formaram a segunda geração de <strong>grafite</strong>iros que, direta ou indiretamente, participou do<br />

processo de popularização o <strong>movimento</strong>.<br />

Esta primeira geração da grafitag<strong>em</strong> paulistana produziu basicamente<br />

três tipos de <strong>grafite</strong>s. T<strong>em</strong>os primeiramente aqueles realizados com máscaras que<br />

evidenciam o contorno da figuras, com t<strong>em</strong>áticas do cotidiano, e valorização do humor.<br />

O pioneiro <strong>em</strong> levantar a t<strong>em</strong>ática do cotidiano foi Alex Vallauri seguido por<br />

Wald<strong>em</strong>ar Zaidler. Em seguida os <strong>grafite</strong>s com ênfase na plasticidade e influência das<br />

artes gráficas, influenciados pelos artistas franceses e americanos da livre figuração.<br />

Carlos Delfino, Ciro Cozzolino, John Howard, Jaime Prades, Rui Amaral e Zé Carratu<br />

são os principais representantes desta vertente. E, finalmente, os <strong>grafite</strong>s elaborados<br />

81 O grupo era formado inicialmente por Zé Carratú, John Howard, Rui Amaral e Jaime Prades. Depois Rui, Prades e<br />

John fizeram suas carreiras individuais, e outros artistas como Carlos Delfino e Ciro Cozzolino, entre outros,<br />

participaram deste grupo.


com máscaras ou técnicas da stencil art, com ênfase <strong>em</strong> personagens das histórias <strong>em</strong><br />

quadrinhos, portanto com valorização da repetição e da ilustração. Entre os autores<br />

desta vertente situam-se Carlos Matuck, Júlio Barreto e, depois, Maurício Villaça 82<br />

131<br />

Assim era o <strong>grafite</strong> neste período: desenhos feitos à mão livre. O<br />

repertório de imagens era bastante variado e lúdico, com grande influência dos<br />

el<strong>em</strong>entos da comunicação de massas (personagens de histórias <strong>em</strong> quadrinhos, vídeo<br />

clipes e vídeo games) ou com referência às artes gráficas, usando cores contrastantes. O<br />

trabalho de grafitag<strong>em</strong> feito era feito à luz do dia, de modo elaborado e com técnica<br />

apurada; muitas vezes era acompanhado de performances e/ou happenings.<br />

Os autores do <strong>grafite</strong> eram artistas plásticos e gráficos ou arquitetos,<br />

pessoas da classe média e influenciadas pela vida estudantil e acadêmica ou pelas<br />

performances de pintores americanos e franceses na década de 80. Muitos possuíam<br />

ateliês coletivos na Vila Madalena, onde eram discutidas e planejadas "as ações". Os<br />

trabalhos sob encomenda subsidiavam os trabalhos "não pagos".<br />

A competição por espaços para a grafitag<strong>em</strong> na Vila Madalena fez com<br />

que este bairro se tornasse um território dos <strong>grafite</strong>iros. A palavra de ord<strong>em</strong> era<br />

"detonar", que significa fazer, espalhar <strong>grafite</strong>s na cidade. Qu<strong>em</strong> mais detonasse<br />

(grafitasse) ficava "dono da cidade".<br />

82 Indicamos aqui apenas os principais representantes desta geração, evidenciados por ser<strong>em</strong> artistas que marcaram<br />

estilos e transmitiram técnicas a outras gerações.


132<br />

Mas a corrida pela fama estava começando e a competição gerava<br />

conflitos internos entre os m<strong>em</strong>bros da comunidade <strong>grafite</strong>ira. Houve dissidências e<br />

"carreiras" que começaram a ser individuais. John Howard transformou a Rua<br />

Aspicuelta, no bairro da Vila Madalena, <strong>em</strong> uma galeria aberta 83 . Possuía um repertório<br />

individual, que caracterizava e identificava seus trabalhos. Assim como Rui Amaral,<br />

John Howard procurava, com suas famosas cabeças, apresentar sue universo alienígena<br />

para a população. Maurício Villaça, que andava com Vallauri, assumiu a camisa de<br />

<strong>grafite</strong>iro, trabalhando individualmente <strong>em</strong> seu ateliê e atraindo para si toda a atenção<br />

da mídia. 84 Tornou-se um artista plástico, dando aulas de <strong>grafite</strong> e formando a segunda<br />

geração.<br />

Este processo e a utilização da técnica das máscaras ajudaram a difundir<br />

e a popularizar ainda mais o <strong>grafite</strong>, que começou a se parecer com um "<strong>movimento</strong>".<br />

Com a dissolução dos grupos, os artistas começaram a trabalhar individualmente<br />

diss<strong>em</strong>inado a prática da grafitag<strong>em</strong> principalmente na Vila Madalena. Este fato<br />

ganhou maior importância quando outros assistentes de Vallauri e os integrantes do<br />

grupo Tupi Não Dá também passaram a trabalhar <strong>em</strong> projetos culturais e exposições.<br />

No começo dos anos 80, <strong>em</strong> São Paulo, o <strong>movimento</strong> <strong>grafite</strong> era<br />

constituído por uma geração de <strong>grafite</strong>iros que se inspiravam nos trabalhos do francês<br />

83 Veja reportag<strong>em</strong> de Francis Jones no jornal O Estado de São Paulo, caderno seu Bairro (Oeste) de 31 de outubro<br />

de 1995.<br />

84 A revista Veja de 28 de outubro de 1987 <strong>em</strong> histórica reportag<strong>em</strong> de Wagner Barreira e Simone Fiamenghi trata<br />

dos conflitos e mapeia o <strong>grafite</strong> <strong>em</strong> São Paulo no auge do <strong>movimento</strong>.


Di Rosa e do norte-americano Keith Haring. O resultado era mais gráfico e a<br />

aproximação com as galerias e o mercado também seguia os moldes europeus e<br />

americanos. A livre figuração vivia seu grande momento e uma geração de artistas<br />

jovens começava a se afirmar no mercado.<br />

133<br />

De modo sintético, pode-se dizer que a segunda geração manteve<br />

basicamente as mesmas técnicas utilizadas pela primeira geração, porém com variações<br />

que indicam o aparecimento de novas vertes. Os <strong>grafite</strong>s com ênfase na plasticidade,<br />

influenciados pelas artes gráficas e por artistas franceses e americanos da livre<br />

figuração continuam a aparecer pelos muros da cidade. Entre seus principais<br />

representantes encontram-se Marcelo Bassarani, Daniel Rodrigues, Ivan Taba, Celso<br />

Gitahy e Moacir Vasquez. Também têm continuidade os <strong>grafite</strong>s elaborados com<br />

máscaras e outras técnicas da stencil art, com ênfase nos personagens das histórias <strong>em</strong><br />

quadrinhos e valorização da repetição e da ilustração; entre eles encontram-se os<br />

trabalhos de Juneca, Job Leocádio, Jorge Tavares e Chico Américo. Mas a novidade<br />

está no aparecimento dos <strong>grafite</strong>s com influência do hip hop ou street art e das<br />

pichações, geralmente palavras escritas que faz<strong>em</strong> sentido apenas para os próprios<br />

pichadores, com grande valorização do grupo. Os principais representantes desta<br />

vertente são Speto e Binho 85 .<br />

85 Novamente, indicamos aqui apenas os principais representantes desta geração, evidenciados por ser<strong>em</strong> artistas que<br />

marcaram estilos e transmitiram técnicas a outras gerações.


134<br />

A competição e a atividade fora dos grupos de orig<strong>em</strong> fazia com que o<br />

<strong>grafite</strong> se espalhasse por toda a cidade. O aparecimento de governos mais d<strong>em</strong>ocráticos<br />

e sensíveis à grafitag<strong>em</strong> abriu um espaço profissionalizante e o <strong>grafite</strong>iro passou a atuar<br />

sob a forma de um agente cultural, difundindo suas técnicas para uma população cada<br />

vez maior. A força do <strong>movimento</strong> pricipalmente depois da "Trama do Gosto" 86 e da<br />

Bienal <strong>em</strong> que Vallauri foi curador acirrou a disputa entre o <strong>grafite</strong>iro e o artista<br />

plástico. A profissionalização dos <strong>grafite</strong>iros da segunda geração, associada a<br />

desdobramentos do <strong>movimento</strong>, como o hip hop, fez com que o graffiti fosse absorvido,<br />

passando a atuar totalmente fora da marginalidade. Muitos jovens passaram a ter no<br />

<strong>grafite</strong>, agora <strong>em</strong> grafia portuguesa e plenamente incorporado à linguag<strong>em</strong> cotidiana,<br />

uma alternativa econômica e a possibilidade de participação social. Seja pela fama<br />

adquirida ou pela saída do anonimato, o <strong>movimento</strong> <strong>grafite</strong> se alastrou também pelos<br />

bairros populares e ganhou novos conteúdos.<br />

De maneira s<strong>em</strong>elhante, a segunda geração de <strong>grafite</strong>iros também criou<br />

seus seguidores, que formam a terceira geração, já nos anos 90. O <strong>movimento</strong> vai se<br />

tornando repetitivo, com sucessivas gerações de <strong>grafite</strong>iros. Maurício Villaça, Rui<br />

Amaral, John Howard e Jaime Prades, por ex<strong>em</strong>plo, iniciaram carreiras solo,<br />

separando-se dos grupos e passando a ter ateliês individuais. Villaça formou vários<br />

novos artistas entre eles o pichador Juneca, que logo <strong>em</strong> seguida passou a fazer o<br />

mesmo, iniciando uma carreira individual e formando novos alunos.<br />

86 A TRAMA DO GOSTO foi uma exposição no pavilhão da bienal tendo Alex Vallauri foi curador, a exposição<br />

procurava caracterizar o espaço urbano de São Paulo, vários outros <strong>grafite</strong>iros estiveram presentes.


135<br />

A terceira geração produziu <strong>grafite</strong>s mantendo algumas características<br />

das gerações anteriores, mas introduzindo suas próprias variações e novidades. Os<br />

t<strong>em</strong>as do cotidiano da cidade continuaram presentes, também com valorização do<br />

humor e da caricatura, como nos trabalhos de Brisola & Kobra. Do mesmo modo, os<br />

<strong>grafite</strong>s elaborados com máscaras ou técnicas da arte estêncil com ênfase nos<br />

personagens das histórias <strong>em</strong> quadrinhos, valorização da repetição e da ilustração,<br />

como os de Júlio Dojcsar, Rice & Bean, entre outros. Aqueles que davam ênfase à<br />

plasticidade, com influência das artes cênicas, também persistiram, como nas obras de<br />

Neto e Mona, assim como os influenciados pelo hip hop ou street art e pelas pichações,<br />

com palavras escritas que faz<strong>em</strong> sentido apenas para os próprios pichadores e<br />

valorização do grupo, como nos trabalhos de Os Gêmeos, Tinho e Edinho 87 .<br />

Se olharmos a quantidade de portas de oficinas e lojas desenhadas pelos<br />

<strong>grafite</strong>iros da terceira geração na periferia (vide figura abaixo), pode-se ter uma clara<br />

noção da força do <strong>movimento</strong> e de sua penetração nestes bairros.<br />

Enquanto isso, os <strong>grafite</strong>iros da primeira geração, <strong>em</strong> geral, depois de<br />

passar<strong>em</strong> pelo circuito tradicional das artes plásticas, abandonaram o modismo das<br />

galerias e passaram para a computação gráfica e outras formas computadorizadas de<br />

arte 88 . Alguns chegaram a voltar para o circuito comercial das artes plásticas ou<br />

87 Não é d<strong>em</strong>ais repetir que os nomes aqui citados refer<strong>em</strong>-se aos principais representantes desta geração, destacados<br />

por ser<strong>em</strong> artistas cujos trabalhos caracterizam os estilos deste período.<br />

88 Rui Amaral, é um bom ex<strong>em</strong>plo. Ele participou do grupo "Tupi Não Dá" e depois fez uma carreira solo como<br />

<strong>grafite</strong>iro, utilizando a estética da livre figuração e criando personagens no interior de uma t<strong>em</strong>ática espacial. O<br />

extraterreno Bicudo é uma de suas criações que, do <strong>grafite</strong>, foi transformado <strong>em</strong> personag<strong>em</strong> de desenho


procuraram um novo mercado nas acad<strong>em</strong>ias de ginásticas, institutos de idiomas e<br />

bares da moda. Das ruas o <strong>grafite</strong> deslocou-se rapidamente para espaços culturais,<br />

bares, clubes, pistas de skates, etc. Nos anos 90, a terceira geração de <strong>grafite</strong>iros utiliza<br />

muitas vezes as mesmas referências do <strong>grafite</strong>, como no caso da retomada do trabalho<br />

de Vallauri; mas com sentido é bastante diferente: os ícones são agora usados para<br />

identificar um produto comercial e os <strong>grafite</strong>iros ag<strong>em</strong> de forma bastante profissional e<br />

profissionalizante.<br />

136<br />

Assim como os <strong>grafite</strong>iros da nova geração que haviam formado,<br />

acabaram achando meios alternativos de sobrevivência, s<strong>em</strong> depender do marchand e<br />

das formas tradicionais do mercado de arte, que se tornou cada vez mais fechado à<br />

novas experiências. O <strong>grafite</strong>, contudo, abriu um espaço popular e uma nova categoria<br />

de manifestação artística no meio urbano, ao mesmo t<strong>em</strong>po individual e coletiva,<br />

conseguindo subsidiar parte de sua produção com verbas vindas da r<strong>em</strong>uneração obtida<br />

com trabalhos encomendados.<br />

Enquanto a rápida absorção do <strong>grafite</strong> o levava a ser socialmente<br />

tolerado, principalmente depois da atuação de grupos como o "Tupi Não Dá" na Vila<br />

Madalena, a pichação se desenvolvia com grande velocidade e uma enorme briga por<br />

espaços começou a ser travada.<br />

animado. Na década de 90, Rui, assim como outros <strong>grafite</strong>iros, penetrou na computação gráfica e desenvolveu<br />

vários trabalhos para a propaganda.


137<br />

Os desdobramentos da difusão das pichações do tipo "Gonha Mó Breu",<br />

com a formação de diversas gangues de pichadores passaram a ser uma constante. Nos<br />

anos 90, predominam os t<strong>em</strong>as fúnebres ou relacionados com a violência, havendo uma<br />

forte identificação do <strong>movimento</strong> da pichação com grupos de adolescentes da periferia.<br />

A violência e a incompreensão por parte da população fez várias vítimas<br />

na pichação 89 - o que apenas contribuiu para fortalecer o <strong>movimento</strong>, que cada vez mais<br />

passou a se utilizar de um vocabulário cheio de gírias e de meios de impedir a ação da<br />

repressão, que foi insuficiente para frear o <strong>movimento</strong>. Na maior parte das vezes, no<br />

caso de São Paulo, a repressão teve até mesmo um efeito contrário ao desejado pelas<br />

autoridades. O melhor ex<strong>em</strong>plo é o da perseguição a Juneca feita pelo então prefeito<br />

Jânio Quadros. Suas ameaças e atitudes repressivas apenas ajudaram a difundir a<br />

imag<strong>em</strong> ousada dos pichadores que queria combater. Jânio n<strong>em</strong> sequer chegou a<br />

prender Juneca, como preconizava, e isto ajudou ainda mais a reverter sua ação <strong>em</strong><br />

favor dos pichadores, que deram muito trabalho na sua gestão.<br />

As notícias veiculadas pela mídia deram destaque à perseguição a certos<br />

grupos ou pessoas que, assim, passaram a ter notoriedade. Além de Juneca, pod<strong>em</strong>os<br />

l<strong>em</strong>brar das pichações no Monumento à Imigração Japonesa feito por Tomie Otake e o<br />

89 Veja reportages no jornal Folha de São Paulo, Estudante de 13 anos morre depois de ser baleado na avenida<br />

Rebolças de 18 de set<strong>em</strong>bro de 1990,caderno cidades e Pichador é assinado na zona sul de São Paulo de 25<br />

de fevereiro de 1990.


ataque paulista ao Cristo Redentor 90 . Algumas pichações passam a ter autoria, como no<br />

caso de Juneca, que continuou a pichar, enquanto Bilão e Pessoinha pararam de agir.<br />

138<br />

Assim, o pichador Juneca, antes de se tornar um <strong>grafite</strong>iro, adquiriu com<br />

as perseguições uma grande notoriedade no <strong>movimento</strong>. Desta forma, sua pichação<br />

tornou-se muito valorizada, dando sentido de autoria ou "assinatura" a uma inscrição<br />

que antes era anônima. Casos s<strong>em</strong>elhantes ocorreram e muitos grupos passaram a<br />

identificar, junto com o nome do grupo, os autores daquela tag, b<strong>em</strong> como a zona da<br />

cidade de onde vinham. Isto aconteceu principalmente depois que alguns pichadores<br />

começaram a trocar de grupo ou <strong>em</strong>prestar a "grife" de outros, que haviam deixado a<br />

pichação ou haviam desaparecido ou se tornaram <strong>grafite</strong>iros. 91 E comum, aliás, um<br />

pichador sumir por um t<strong>em</strong>po e depois reaparecer novamente.<br />

Para identificar uma pichação coloca-se ao lado dela uma indicação<br />

pessoal ou do grupo que a realizou. Uma pichação é, portanto, rodeada de comentários<br />

que indicam sua procedência, as pessoas que a realizaram, se foram convidadas ou<br />

participam do grupo. No caso de pichadores que reaparec<strong>em</strong> ou de marcas retomadas<br />

depois de ter<strong>em</strong> sido abandonadas, é comum usar-se a expressão "estamos de volta".<br />

90 Reportag<strong>em</strong> de capa do jornal Folha de São Paulo de 18 de nov<strong>em</strong>bro de 1991, reportag<strong>em</strong> de Irene Rubert,<br />

caderno cotiano- acidade é sua p.,2.<br />

91 No dia 7 de outubro de 1991 a Folha escreve a manchete: “Grafiteiros se dão b<strong>em</strong> com jato de spray - artistas<br />

faz<strong>em</strong> capas de discos, cenários, stands e camisetas mas não desist<strong>em</strong> de colorir os muros das ruas” a<br />

reportag<strong>em</strong> assinado por Daniela Broitman exalta no caderno folhateen a profissão <strong>grafite</strong>iro e a reportag<strong>em</strong><br />

menciona vários pichadores entre eles Juneca.


139<br />

A reação favorável à pichação resultou de iniciativas da própria<br />

população principalmente depois que a polícia foi orientada a soltar os pichadores<br />

menores de dezoitos anos. A população e muitos moradores e lojas passaram a<br />

encomendam trabalhos de <strong>grafite</strong> para evitar pichações. Houve tentativas de cooptação<br />

por parte de órgãos culturais públicos (secretarias de cultura, etc.) principalmente<br />

durante a gestão da prefeita Luíza Erundina que proporcionou um encontro com entre<br />

<strong>grafite</strong>iros que fez parte do projeto Cidade, Cidadão, Cidadania 92 . Deste trabalho<br />

participou a então secretária de cultura Marilena Chauí e, <strong>em</strong> conjunto com os<br />

<strong>grafite</strong>iros, decidiu-se liberar certas áreas para o <strong>grafite</strong>. Além da Vila Madalena,<br />

surgia então o "Buraco da Paulista" e outras áreas que passaram a ser reconhecidas e<br />

tratadas como territórios livres 93 . O <strong>grafite</strong> passou a ser entendido como uma<br />

"manifestação de jovens" e foi incorporado <strong>em</strong> cenários de comerciais, começando a<br />

aparecer como pano de fundo para propagandas na televisão e sendo consumido como<br />

uma meracadoria qualquer. Alguns grupos do <strong>grafite</strong> se revoltaram e passaram a<br />

desfigurar seus trabalhos <strong>em</strong> protesto contra a apropriação da propaganda 94 .<br />

A pichação também achou um jeito especial de ser tolerada,<br />

principalmente com o desenvolvimento do hip hop norte-americano e das letras<br />

grafitadas, novo estilo que passou a d<strong>em</strong>arcar seu território nos bairros periféricos,<br />

92 Projeto coordenado por Marilena Chauí pela Secretária Munipal de Cultura na gestão da prefeita Luiza Erundina.<br />

93 A pichação soube aproveitar este fato e começou a pichar sist<strong>em</strong>aticamente as áreas liberadas.<br />

94 veja reportag<strong>em</strong> sobre a Bat-caverna de francis Jones, op.cit.


feitas principalmente <strong>em</strong> muros de terrenos baldios que não eram reclamados pelos<br />

proprietários.<br />

140<br />

Pode-se afirmar que estas vertentes, iniciadas com o trabalho do "<strong>Grupo</strong><br />

Tupi Não Dá", com o de Alex Vallauri, dos artistas plásticos da Faculdade de<br />

Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e dos jovens do "Gonha Mó<br />

Breu" configuram, na prática, <strong>em</strong> São Paulo, estilos de <strong>grafite</strong> que foram se<br />

desdobrando através de sucessivas gerações de <strong>grafite</strong>iros e pichadores. Apesar da<br />

variedade de grupos que atuam até hoje na cidade, o <strong>grafite</strong> continuou a se desenvolver<br />

e achar novos caminhos pelo tecido urbano, chegando até as infovias eletrônicas.<br />

2. AS TÉCNICAS DO GRAFITE NOS ANOS 70/90<br />

Do ponto de vista da técnica <strong>em</strong>pregada na elaboração dos <strong>grafite</strong>s, se<br />

desconsiderarmos a ord<strong>em</strong> cronológica, é possível chegar a uma descrição melhor e<br />

mais detalhada do <strong>movimento</strong> da grafitag<strong>em</strong> <strong>em</strong> São Paulo. Cada um dos recursos<br />

técnicos <strong>em</strong>pregados possui influências e diferentes instrumentos de trabalho que<br />

detalhar<strong>em</strong>os a seguir, com base nos dados coletados durante a pesquisa e que<br />

estiveram presentes nas Mostras Paulistas de Grafite realizadas no Museu da Imag<strong>em</strong> e<br />

do Som <strong>em</strong> São Paulo.


141<br />

É preciso mencionar ainda que muitas vezes a grafitag<strong>em</strong> paulistana,<br />

como já observamos anteriormente, esteve acompanhada de atuações performáticas,<br />

associando-se a vários grupos de teatro de rua que também atuavam no meio urbano,<br />

utilizando-se de recursos cênicos, mímicos e da dança. As Mostras Paulistas de Grafite<br />

incorporaram este el<strong>em</strong>ento, com várias performances <strong>em</strong> suas vernissagens, de modo a<br />

recuperar o clima festivo das ruas. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, <strong>em</strong> São Paulo, como <strong>em</strong> outras<br />

grandes cidades de outros países, também é comum a interferência <strong>em</strong> cartazes de<br />

propaganda e out-doors.<br />

Contudo, a propaganda no Brasil t<strong>em</strong> conseguido uma grande<br />

respeitabilidade, devido ao grande número de profissionais da área artística<br />

comprometidos com a publicidade e a televisão. Muitos <strong>grafite</strong>iros acabam trabalhando<br />

<strong>em</strong> agências de propaganda ou até mesmo como atores. Alguns projetos envolvendo<br />

artistas de rua e out-doors foram realizados no início dos anos 90, criando uma imag<strong>em</strong><br />

positiva e respeitada deste meio de propaganda junto ao público. Campanhas como a<br />

elaborada pela Beneton, colocando t<strong>em</strong>as como a AIDS e a discriminação racial <strong>em</strong><br />

plena rua, também ajudaram a reverter a imag<strong>em</strong> negativa da propaganda durante as<br />

décadas de 60 e 70. A difusão das novelas e a respeitabilidade dos prêmios concedidos<br />

à propaganda brasileira também contribuíram para criar uma mentalidade na população<br />

que acabou atingindo também os integrantes do <strong>movimento</strong>s <strong>grafite</strong>, que<br />

freqüent<strong>em</strong>ente se abstiveram deste tipo de interferência nos out-doors.<br />

Estes aspectos e as manifestações "paralelas" que muitas vezes<br />

acompanham a grafitag<strong>em</strong> não serão tratadas aqui. Neste it<strong>em</strong>, o que se pretende é


aprofundar a análise deste <strong>movimento</strong> artístico, explorando suas técnicas, suas<br />

variações e possibilidades. Assim, passar<strong>em</strong>os a descrever separadamente cada um dos<br />

tipos de <strong>grafite</strong> existentes <strong>em</strong> São Paulo nas décadas de 70 a 90, que se agrupam <strong>em</strong><br />

três grandes conjuntos: o <strong>grafite</strong>, o hip hop e a letra grafitada. Em cada um deles, é<br />

possível a utilização de técnicas e instrumentos diferenciados, como os da livre<br />

figuração ou os da máscara ou stencil art, como ver<strong>em</strong>os a seguir.<br />

A) GRAFITE<br />

142<br />

Uma das primeiras características do <strong>grafite</strong> é o fato de que ele permite<br />

que uma pessoa que não saiba desenhar obtenha resultados plásticos de modo quase<br />

imediato. As técnicas são facilmente apreendidas e o resultado é rápido. Talvez a<br />

descartabilidade e rapidez do <strong>grafite</strong> sejam fatores importantes <strong>em</strong> sua propagação. Não<br />

há nenhum probl<strong>em</strong>a na utilização de referências de outros artistas, pois o <strong>grafite</strong><br />

assume no início uma identidade anônima. Qualquer um pode executar o desenho de<br />

outro <strong>grafite</strong>iro rapidamente. Direitos autorais e copyright não preocupam os agentes<br />

deste <strong>movimento</strong>. Nas oficinas e casas de cultura o <strong>grafite</strong> foi transmitido livr<strong>em</strong>ente<br />

s<strong>em</strong> interferência nos conteúdos e nas t<strong>em</strong>áticas.<br />

As principais técnicas utilizadas e desenvolvidas pelo <strong>grafite</strong> <strong>em</strong> São<br />

Paulo durante estes anos foram o uso das máscaras e o recurso à livre figuração:<br />

De início, o <strong>grafite</strong> era elaborado com máscaras simples, feitas com<br />

recortes vazados <strong>em</strong> cartolina ou papel duplex de modo a revelar o contorno da figura e


o auto contraste. As máscaras são fixadas com fita crepe na parede e por cima é<br />

jogado um jato de spray ou passado um rolo ou pincel <strong>em</strong>bebido com tinta. As imagens<br />

formadas pelas máscaras pod<strong>em</strong> ser compl<strong>em</strong>entadas a mão livre, davam agilidade e<br />

ajudavam a cobrir espaços maiores.<br />

143<br />

Ou então pod<strong>em</strong> ser repetidas, como um carimbo, até formar um<br />

conjunto, que é o desenho final, dando uma textura ao desenho. Este procedimento é<br />

utilizado para fazer fundos.<br />

Os primeiros trabalhos com máscaras eram mais simples, não eram<br />

assinados n<strong>em</strong> possuíam qualquer identificação de autoria, como no caso dos trabalhos<br />

elaborados por Júlio Barreto, Carlos Matuck, Maurício Villaça. O <strong>grafite</strong> era proibido e<br />

as máscaras, ainda pequenas, facilitavam a rápida execução.<br />

Com a popularização do <strong>grafite</strong>, o uso das máscaras e do spray também<br />

se popularizou e se aprimorou. Vários <strong>grafite</strong>iros passaram a utilizar o xerox para<br />

ampliar desenhos ou imagens de histórias <strong>em</strong> quadrinhos ou de outros meios de<br />

comunicação de massa, <strong>em</strong> máscaras de várias cores. Outros recorriam a técnicas da<br />

fotografia, utilizando slides e projetores para obter o aumento do tamanho das imagens,<br />

que também passaram a usar maior número de cores. O aumento no tamanho e a<br />

variedade das cores fez com que alguns artistas passass<strong>em</strong> a utilizar até compressores<br />

nos trabalhos de grande porte.<br />

As máscaras passaram a ser feitas <strong>em</strong> cartolina grossa, utilizando-se o<br />

estilete para vazar os moldes, que se tornavam cada vez mais complexos e continuaram


a ser confeccionados <strong>em</strong> locais separados do lugar da grafitag<strong>em</strong> (ateliês, oficinas, etc.)<br />

e ser<strong>em</strong> aplicados à parede com sprays. Os desenhos passam a ser sofisticados e<br />

assinados (como vimos, alguns colocando até o telefone para contato direto com o<br />

artista). As cores passam a ser suaves e <strong>em</strong> alguns casos se aproximando muito de<br />

fotografias. Para isso se desenvolv<strong>em</strong> técnicas especiais tais como:<br />

144<br />

_ colocação de uma rede de tecido fino e perfurado (filó) atrás da<br />

cartolina para estruturar o desenho a ser cortado. Assim é possível ir além do simples<br />

contorno, já que as partes internas do desenho não se soltam e o filó permite a<br />

passag<strong>em</strong> da tinta spray.<br />

_ estruturação do desenho com interrupção do traço a ser recortado,<br />

chamadas "pontes", que aparec<strong>em</strong> lev<strong>em</strong>ente na impressão e, portanto, no resultado<br />

final.<br />

_ divisão do desenho <strong>em</strong> várias partes, cada uma com sua respectiva<br />

máscara, devidamente numerada de modo a permitir a elaboração de impressões mais<br />

elaboradas e complexas, atingindo-se o tamanho desejado e aumentando o impacto<br />

visual.<br />

Do ponto de vista t<strong>em</strong>ático, a proposta dos <strong>grafite</strong>iros que se utilizavam<br />

esta técnica na década de 80 valorizava a intervenção e a ironia. Já os <strong>grafite</strong>iros da<br />

década de 90 que usam máscaras valorizam a facilidade da cópia indiscriminada, para<br />

atingir o sucesso rapidamente. Aproximam-se assim da ilustração, distanciando-se


adicalmente das propostas colocadas por Alex Vallauri, que introduziu o uso das<br />

máscaras <strong>em</strong> São Paulo.<br />

145<br />

A técnica da livre figuração está fundamentada na utilização do traço a<br />

mão livre, com el<strong>em</strong>entos figurativos e abstratos, utilizando-se cores contrastantes e<br />

muita liberdade de t<strong>em</strong>as e de figuras. Os desenhos são feitos aleatoriamente s<strong>em</strong> um<br />

compromisso estético definido, incorporando el<strong>em</strong>entos da performance e utilizando de<br />

todos os suportes encontrados no local. O traço é feito com rolinhos de espuma (de<br />

pintura de parede) e o spray não é muito utilizado, ficando reservado apenas para<br />

alguns detalhes. O contraste entre as cores é obtido com tintas látex ou com pigmentos.<br />

Muitos desenhos são concebidos graficamente e sua reprodução é feita também de<br />

modo aleatório com um trecho sendo repetido até compor o conjunto final. Esta prática<br />

da repetição pode ser feita por várias pessoas, compondo-se um <strong>grafite</strong> coletivo, onde<br />

cada componente do grupo deixa sua marca pessoal. Assim o resultado é uma espécie<br />

de colag<strong>em</strong>; mas na qual é possível reconhecer as partes do <strong>grafite</strong> feitas por cada um<br />

seus integrantes do grupo.<br />

Os que se utilizam da livre figuração costumam valorizar a<br />

representação figurativa, adotando t<strong>em</strong>as ligados ao imaginário psicológico, com forte<br />

influência dos vídeos-clipes e vídeos-games. Abaixo reproduzimos alguns ex<strong>em</strong>plos<br />

deste tipo de <strong>grafite</strong>.<br />

ex<strong>em</strong>plos: os Labirintos de Carlos Delfino (abstrato), as figuras<br />

alienígenas de Jaime Prades (figurativo) Rui Amaral, John Howard.


B) HIP HOP<br />

146<br />

O hip hop é praticamente um estilo específico de <strong>grafite</strong>, caracterizado<br />

pela presença das letras que cobr<strong>em</strong> quase todo o desenho, que geralmente é central no<br />

<strong>grafite</strong>. Embora haja valorização da técnica do desenho a mão livre, dá-se especial<br />

atenção às letras distorcidas que formam o nome da gangue ou expressam t<strong>em</strong>as<br />

comuns ao grupo.<br />

Influenciados pela revistas de música americanas e pelas imagens da<br />

MTV (na qual o rap e a break music apareciam juntas com um tipo de <strong>grafite</strong> associado<br />

às gangues americanas e seus probl<strong>em</strong>as), alguns jovens de São Paulo copiaram esse<br />

estilo de <strong>grafite</strong> do <strong>movimento</strong> negro norte-americano. Nele as figuras geralmente são<br />

ilustrações efetuadas a mão livre, <strong>em</strong> várias cores. Um mesmo desenho aparece <strong>em</strong><br />

vários <strong>grafite</strong>s do grupo juntamente com as letras do mesmo tipo que as vezes falam de<br />

t<strong>em</strong>as diferentes. O contraste entre as cores também é valorizado.<br />

C) LETRAS GRAFITADAS<br />

As letras grafitadas surgiram a partir da incorporação das técnicas do<br />

<strong>grafite</strong> à pichação. Assim, ao invés das letras estilizadas, pintadas com traços simples,<br />

feitos com rolos de espuma ou spray, <strong>em</strong> uma só cor, a letra grafitada passa a ser uma<br />

pichação ampliada e colorida. O estilo se ass<strong>em</strong>elha ao hip hop norte-americano mas<br />

não há a presença de desenho. Do mesmo modo que nas pichações, o desenho é


acompanhado de algumas identificações do grupo, da zona <strong>urbana</strong> à qual ele pertence.<br />

Esse estilo utiliza os mesmos materiais dos <strong>grafite</strong>s e é feito à luz do dia não sofrendo<br />

perseguição ou discriminação. De certo modo, este tipo de <strong>grafite</strong> constitui uma espécie<br />

de "legalização da pichação". Convém ressaltar que o estilo é quantitativamente mais<br />

numeroso que o hip hop mas significativamente mais pobre <strong>em</strong> relação aos desenhos,<br />

com o <strong>grafite</strong>iro restringindo-se apenas a colorir as letras.<br />

3. GRAFITE E PICHAÇÃO: INTERFERÊNCIAS E<br />

INTERAÇÕES<br />

147<br />

É difícil conceituar a diferença entre <strong>grafite</strong> e pichação a partir de uma<br />

primeira aproximação, essencialmente visual. Assim, o primeiro caracteriza-se por uma<br />

certa plasticidade e enquanto o segundo parece um monte de letras indecifráveis e s<strong>em</strong><br />

cor. Entretanto é bom l<strong>em</strong>brar que ambos são efêmeros, estabelec<strong>em</strong> comunicação com<br />

um público específico, são elaborados rapidamente, quase que com os mesmos<br />

materiais e usam os mesmos suportes urbanos.<br />

Ambas as formas de manifestação souberam sair da clandestinidade e<br />

conquistar sua sobrevivência no mercado competitivo. Os <strong>grafite</strong>iros na década de 70<br />

se aproximaram das galerias abrindo o mercado para um novo tipo de arte, elaborada<br />

<strong>em</strong> madeira recortada e outros suportes que pudess<strong>em</strong> abrigar essa arte efêmera. Já os


pichadores acharam na letra grafitada uma forma de saír<strong>em</strong> da marginalidade e se<br />

tornar<strong>em</strong> "<strong>grafite</strong>iros". Neste período o <strong>grafite</strong>iro gozou de um certo status, pois seu<br />

trabalho agradava a uma parcela da sociedade, permitindo que ele atuasse à luz do dia.<br />

Muitas vezes uma pessoa que tinha um muro de sua casa pichado "preferia" deixá-lo<br />

assim ao invés de pintá-lo de branco. O <strong>grafite</strong> durava um t<strong>em</strong>po maior que o branco<br />

dos muros.<br />

148<br />

Com o processo de d<strong>em</strong>ocratização política, as oficinas oferecidas pelas<br />

secretarias de cultura abriram projetos culturais envolvendo os <strong>grafite</strong>iros e<br />

possibilitando a criação de oficinas de <strong>grafite</strong>, nas quais nasceram sucessivas safras de<br />

novos artistas urbanos. Esta institucionalização do <strong>grafite</strong> resultou <strong>em</strong> um<br />

direcionamento para a arte mural, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que permitiu que o <strong>movimento</strong><br />

conseguisse patrocínio de <strong>em</strong>presas particulares. Assim o <strong>grafite</strong> ganhou novas<br />

condições de sobrevivência e passou a atingir um público cada vez mais amplo, com<br />

um aprimoramento constante de suas técnicas, mas se distanciou das idéias iniciais que<br />

o inspiraram .<br />

A pichação, por sua vez, continuou na marginalidade, adotando um<br />

vocabulário próprio e cada vez mais inacessível ao grande público. Continuou a<br />

experimentar grandes dificuldades e perseguições: "Bayan" foi assassinado <strong>em</strong> 1991


quando pichava um bar na zona sul da cidade 95 , outros pichadores foram caçados como<br />

bandidos e alguns acabaram se tornando <strong>grafite</strong>iros, como já vimos anteriormente.<br />

149<br />

A diversidade de grupos e estilos existente hoje no <strong>movimento</strong> <strong>em</strong> São<br />

Paulo implica um público cada vez maior e mais diferenciado, estabelecendo novas<br />

opções para o artista se relacionar com a sociedade. Além disso, o <strong>movimento</strong> permite<br />

que jovens se express<strong>em</strong>, atravessando os meios habituais e elitistas da produção<br />

cultural.<br />

As questões e discussões envolvendo o <strong>grafite</strong> e a pichação parec<strong>em</strong><br />

hoje, sob o olhar dos anos 90, um pouco fora e s<strong>em</strong> sustentação, mas nas décadas<br />

anteriores eram válidas e provocavam dissidências no <strong>movimento</strong>. Havia uma grande<br />

discussão sobre o nome dado a esta forma de comunicação <strong>urbana</strong>. Na década de 80,<br />

quando o <strong>grafite</strong> chegou às galerias de arte, brigava-se para saber se a palavra devia ser<br />

escrita da maneira americana, com dois éfes e i no final, graffiti, ou de acordo com a<br />

grafia brasileira. A língua inglesa havia <strong>em</strong>prestado a palavra do italiano, no plural, o<br />

que causava uma confusão ainda maior.<br />

Quando se realizou a I Mostra Paulista de Grafite, o uso da palavra na<br />

grafia portuguesa provocou uma reação imediata, que quase fez com que certos grupos<br />

da primeira geração se retirass<strong>em</strong> da exposição 96 . Criticava-se o abrasileiramento da<br />

palavra, argumentando-se que <strong>grafite</strong> designava a mina da lapiseira e não o <strong>movimento</strong>.<br />

95 Reportag<strong>em</strong> Folha de São Paulo, domingo 25 de fevereiro de 1990, caderno cidades.<br />

96 Veja nos artigos do catálogo da I Mostra,MIS-Sào Paulo 1992, a palavra <strong>grafite</strong> aparece na forma americana.


Além disso, o uso da palavra graffiti era valorizado pelo grupo que estava mais<br />

próximo a uma aceitação pelo mercado de arte <strong>em</strong> São Paulo. Verificou-se também que<br />

muitos faziam a maior confusão ao escrever a palavra <strong>em</strong> língua estrangeira,<br />

aparecendo as variantes graffite e grafiti.<br />

150<br />

No final da década de 80, com o declínio do <strong>grafite</strong> plástico e da livre<br />

figuração, com o <strong>movimento</strong> do hip hop ganhando força e com a difusão dos vídeo-<br />

clipes, muitas gangues usavam a palavra no f<strong>em</strong>inino "a <strong>grafite</strong>". O hip hop também<br />

adotou palavras inglesas para designar seu <strong>movimento</strong>, chamando-o de "street art" ou<br />

"stencil art", mas era comum ver muitos erros de grafia na escrita de formas<br />

adaptadas 97 . Com a popularização do <strong>movimento</strong>, os próprios <strong>grafite</strong>iros, sobretudo os<br />

da terceira geração, passaram a utilizar a palavra abrasileirada.<br />

A mudança na denominação foi acompanhada também pela mudança no<br />

público que interagia com o <strong>grafite</strong>. O graffiti tinha um público composto de artistas<br />

plásticos, músicos, pessoas ligadas ao teatro e jornalistas, com uma forte aceitação<br />

junto à classe média e entre os universitários.<br />

Freqüent<strong>em</strong>ente havia graffitis decorando paredes de centros<br />

acadêmicos, ajudando a divulgar peças de teatro e bandas de música jov<strong>em</strong>. O graffiti<br />

des<strong>em</strong>penhava um papel de mídia alternativa e atingia o público como um <strong>movimento</strong><br />

97 Para se ter idéia do tamanho da confusão, na III Mostra Paulista de Grafite um grupo se denominava "stencil art"<br />

e desenhava a mão livre, apesar de stencil ser uma palavra inglesa que significa molde ou matriz utilizada para<br />

reproduções. No <strong>grafite</strong>, como vimos, as máscaras são os moldes usados para reproduzir os desenhos e, por<br />

isso, o <strong>grafite</strong> pode ser reconhecido como parte da stencil art.


alternativo, especialmente com a livre figuração. A palavra utilizada na forma inglesa<br />

enfatizava o lado artístico do <strong>movimento</strong>, valorizando suas origens e relações com<br />

outras manifestações plásticas. A absorção pelo mercado de arte e pela mídia<br />

necessitavam legitimar o papel do <strong>grafite</strong>iro equiparando-o ao <strong>movimento</strong> europeu e<br />

norte-americano, dando-lhe credibilidade e criando um modismo. Este fator<br />

possibilitou um valioso passaporte para muitos jovens da classe média brasileira que<br />

ingressaram desta forma no fechado circuito das artes plásticas.<br />

151<br />

O <strong>grafite</strong> constituiu uma forma mais popular do graffiti e segmentou-se<br />

depois da difusão entre os grupos de skatistas, de break music, rappers e hip hop. Os<br />

<strong>grafite</strong>iros da segunda geração ficaram distantes dos conteúdos e da vida cultural dos<br />

anos 70. A competição, a crise econômica, os planos econômicos tornaram a vida dos<br />

jovens mais difícil obrigando muitos a ter<strong>em</strong> <strong>em</strong>pregos t<strong>em</strong>porários para custear os<br />

estudos ou a própria sobrevivência. O meio artístico foi obrigado a ver na propaganda,<br />

na televisão, no rádio e nas casas de cultura uma saída para sua sobrevivência<br />

econômica.<br />

Desta maneira o <strong>grafite</strong> encontrou um novo público, junto aos<br />

comerciantes e produtores ligados diretamente à televisão, concentrando-se nos bairros<br />

populares. O <strong>grafite</strong> passou a ser feito nas portas das lojas e oficinas e ainda podia ser<br />

feito <strong>em</strong> roupas e camisetas da moda destes grupos.<br />

A pichação, por sua vez, ficava restrita ao público da periferia, aos office<br />

boys, escriturários, des<strong>em</strong>pregados, bandas e turmas de bairros periféricos e das cidades


operárias, que encontrava nos bailes de funk, rap, lambada, forró, nos bingos e nas<br />

danceterias uma diversão e uma forma de identificação grupal. Nestes locais a disputa<br />

entre os <strong>grafite</strong>iros pela atenção, pelo destaque se fazia através da força física, da roupa,<br />

e da propaganda de seus feitos.<br />

152<br />

Pertencer a determinado grupo podia ser objeto de status e um passe<br />

livre junto às garotas do bairro, o mesmo ocorrendo com a pichação, na qual muitos<br />

chegavam a arriscar a vida para se destacar. Como vimos, alguns utilizam-se do nome<br />

de outros pichadores que haviam desistido da pichação como forma de encurtar o<br />

caminho <strong>em</strong> direção ao reconhecimento. Alguns se aproximaram do <strong>grafite</strong> e<br />

abandonaram a pichação, sendo então mal vistos pelos companheiros. Mas logo a nova<br />

fama possibilitada pelo <strong>grafite</strong> trazia novos resultados, constituindo-se num instrumento<br />

subsistência e educação. Como vimos, é comum os <strong>grafite</strong>iros da segunda geração<br />

passar<strong>em</strong> seus conhecimentos a pichadores, principalmente aqueles que, pela idade<br />

avançada, têm que largar a pichação. Nas oficinas e casas de cultura <strong>grafite</strong>iros e<br />

pichadores encontravam um meio mais amplo, recebendo e trocando informações e<br />

influências, através do contato com outras formas de expressão artística e com novos<br />

públicos.<br />

Como se pode observar, ao se tratar o <strong>grafite</strong> como uma interferência<br />

que estabelece uma comunicação no meio urbano entre diferentes agentes perceb<strong>em</strong>os<br />

o quanto seu público pode ser variado. Utilizando os mais diversos suportes, o <strong>grafite</strong>


assume diferentes ritmos de fluxo e refluxo atravessando o tecido comunicacional das<br />

grandes cidades 98 .<br />

153<br />

Durante toda esta dissertação, o <strong>grafite</strong> foi tratado essencialmente como<br />

um fenômeno comunicacional, através do qual o indivíduo massificado procura sua<br />

própria identificação e valorização diante de uma sociedade que valoriza só o trabalho,<br />

o sacrifício, a submissão, a poupança, a racionalização, a técnica e a elitização, e etc. A<br />

partir desta concepção, torna-se fácil entender como o <strong>grafite</strong> passa das interferências<br />

<strong>urbana</strong>s para o meio digital possibilitado pela internet e pelas redes de computadores.<br />

Assim, a característica da interferência do <strong>grafite</strong> é inteiramente preservada quando ele<br />

chega ao suporte eletrônico, continuando a refletir nesse meio as valorizações pessoais<br />

de seus agentes.<br />

S<strong>em</strong> dúvida, o meio digital possibilita uma expansão desta característica<br />

de interferência do <strong>grafite</strong>. Basta pensar que o meio digital não t<strong>em</strong> fronteiras, que nele<br />

a comunicação pode ser feita por imagens coloridas, textos, sons, animações. Há<br />

grande liberdade e as ações deixam um rastro quase invisível; o anonimato é um<br />

el<strong>em</strong>ento essencial da rede virtual. Se todas as atenções estão hoje <strong>em</strong> dia voltadas para<br />

esse novo meio de comunicação, que t<strong>em</strong> recebido grandes investimentos e do qual se<br />

espera que determine mudanças radicais de comportamento da sociedade de forma<br />

global, a rede virtual torna-se um lugar privilegiado de atuação dos <strong>grafite</strong>iros. Sendo<br />

uma das características do <strong>grafite</strong> é a da interferência pode-se considerar que ele atue<br />

98 Vide Nelson da Silveira Junior - op.cit.


<strong>em</strong> vários suportes, tanto <strong>em</strong> uma porta de banheiro, numa esquina, na fachada de um<br />

prédio ou <strong>em</strong> rodovias digitais. Várias outras interferências na teia digital assum<strong>em</strong><br />

uma característica de <strong>grafite</strong>s virtuais.<br />

154<br />

As primeiras interferências se estabeleceram sob a forma de vírus, de<br />

acesso a arquivos restritos, de imagens lúdicas colocadas <strong>em</strong> telas ligadas <strong>em</strong> redes de<br />

computadores do trabalho, além das próprias práticas da pirataria e do roubo de<br />

programas. Em seguida, estes procedimentos foram acrescidos com a interferência<br />

direta <strong>em</strong> certos programas, por analogia aos vírus, através da inserção ou troca dos<br />

ícones de acesso aos comandos por ícones mais pessoais.<br />

As interferências eletrônicas se diss<strong>em</strong>inaram rapidamente e foram<br />

copiadas irrestritamente, da mesma forma que no fenômeno das rádios piratas. Assim<br />

como as rádios FM souberam aproveitar a estética das rádios clandestinas, na qual a<br />

programação assumia um caráter mais bairrista e popular, as primeiras interferências na<br />

internet foram aproveitadas para possibilitar um aprimoramento da rede e de suas<br />

possibilidades.<br />

Originada na área militar, durante a guerra fria, a internet logo passou a<br />

constituir uma rede de comunicação essencialmente acadêmica. A partir daí, s<strong>em</strong>pre<br />

sofreu interferências, que propiciaram sua difusão e popularização. Num primeiro<br />

momento, isto se fez de modo clandestino, com grupos deixavam de lado o contexto<br />

acadêmico pela divulgação da pornografia, num paralelo com as inscrições latrinárias.<br />

Uma série de restrições e perseguições passaram a tentar controlar a rede, mas o


<strong>movimento</strong> já era incontrolável. A pirataria, os grupos de discussão os mais diversos e<br />

várias outras formas de interferência se popularizaram, assumindo cada vez mais uma<br />

estética anárquica e d<strong>em</strong>ocrática saindo do controle regional e do contexto da guerra<br />

fria que havia idealizado esta forma de comunicação como algo restrito e secreto.<br />

155<br />

A transmissão de mensagens individuais, o contato virtual,<br />

primeiramente sob a forma de texto e depois com imagens e sons permitiram o<br />

surgimento dos primeiros casamentos virtuais e que a rede também abrisse <strong>em</strong> termos<br />

comerciais. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, a rede possibilitou e abrigou a atuação de vários tipos de<br />

arte, com a formação de galerias virtuais.<br />

A primeira galeria virtual especializada <strong>em</strong> <strong>grafite</strong> foi a ART CRIMES.<br />

Uma galeria virtual é, na verdade, uma home page que fica 24 horas no ar, através da<br />

WWW, parte interativa da internet. Esta home page permite que uma pessoa com<br />

acesso à rede tenha livre acesso às informações, imagens e sons, que ficam disponíveis<br />

para todos os que nela entram e navegam. Estas páginas pod<strong>em</strong> também r<strong>em</strong>eter o<br />

navegante à interatividade e a outras páginas ou galerias, através de links (ligações). Em<br />

algumas páginas é possível que o navegante deixe sua marca ou até algum desenho que<br />

passa, então, a fazer parte da galeria.<br />

Essas galerias tend<strong>em</strong> com o t<strong>em</strong>po a se tornar<strong>em</strong> cada vez maiores e<br />

com mais gente participando. Por isso mesmo transformam-se de simples home pages<br />

<strong>em</strong> sites (sítios, teias ou cidades virtuais) com pessoas encarregadas de sua<br />

administração e manutenção. É importante salientar que as home pages e os


administradores de um mesmo site pod<strong>em</strong> estar localizados <strong>em</strong> pontos fisicamente<br />

distantes, daí a necessidade do desenvolvimento técnico e de uma boa administração<br />

para facilitar o usuário e diminuir o t<strong>em</strong>po de acesso aos arquivos e home pages.<br />

156<br />

A velocidade é importante para facilitar o acesso do usuário aos<br />

arquivos de imagens que são d<strong>em</strong>orados. É comum as galerias virtuais anunciar<strong>em</strong><br />

exposições <strong>em</strong> outros países, a Art Crimes por ex<strong>em</strong>plo anunciou a exposição uma<br />

exposição importante na Suíça “Anarchie und Aerosol “. Através da internet a presente<br />

pesquisa pode trocar informações com seu curador Mr. Beat Suter.<br />

Primeiro a internet operou apenas com de textos, e depois a imag<strong>em</strong><br />

passou a ser comprimida de diferentes maneiras e decodificada <strong>em</strong> texto, para que<br />

pudesse ser transmitida pela rede. A imag<strong>em</strong> era comprimida, decodificada e voltava a<br />

ser imag<strong>em</strong> novamente s<strong>em</strong> perda de qualidade. Hoje os compressores de imag<strong>em</strong><br />

consegu<strong>em</strong> uma boa resolução e a imag<strong>em</strong> é transmitida s<strong>em</strong> decodificação, <strong>em</strong>bora o<br />

t<strong>em</strong>po de transmissão varie de acordo com a qualidade das linhas telefônicas e dos<br />

aparelhos envolvidos. Assim, a imag<strong>em</strong> está cada vez mais acessível e veloz. Até<br />

efeitos de sombra e textura aparec<strong>em</strong> agora ilustrando textos. A fusão texto - imag<strong>em</strong> -<br />

<strong>movimento</strong> está cada vez mais veloz e cada vez mais ela se aproxima das outras mídias<br />

como o jornal, a televisão e o vídeo.<br />

Nos dois últimos anos o progresso foi muito rápido e atingiu as galerias<br />

virtuais, que estão s<strong>em</strong>pre se adequando às modernizações da rede. Os arquivos foram<br />

reformados para os novos formatos e novas apresentações foram elaboradas. Uma nova


dinâmica surgiu, favorecendo um olhar rápido e possibilitando uma melhor navegação<br />

para que o usuário gaste cada vez mais um t<strong>em</strong>po menor para atingir a informação<br />

desejada. Qualquer evolução na rede modifica a forma e a maneira do olhar; as páginas<br />

eletrônicas assum<strong>em</strong> um caráter diretivo na informação, podendo levar o usuário a<br />

determinados links, orientando e direcionando a navegação. O retorno possibilitado<br />

pela navegação na rede é feito de forma progressiva diretamente proporcional ao fluxo<br />

de informações. Isso faz com que certas rodovias virtuais sejam b<strong>em</strong> freqüentadas e<br />

possam se constituir <strong>em</strong> verdadeiras cidades virtuais. A interação e as interferências dão<br />

à rede uma estética hippie e um clima de muita liberdade. Apenas alguns casos isolados<br />

forçam a lei a agir e coibir certos crimes eletrônicos.<br />

157<br />

No Brasil, o <strong>grafite</strong> se faz presente na internet pela primeira vez através<br />

do artista John Haward que, beneficiado pela sua orig<strong>em</strong> americana, rapidamente<br />

digitalizou seus trabalhos, enviando-os para a ART CRIMES 99 . Essa galeria logo se<br />

tornou mundialmente conhecida, abrigando uma coleção de <strong>grafite</strong>s de todo o mundo.<br />

Assim, a interação entre o <strong>grafite</strong> e a rede informatizada já havia dado seus primeiros<br />

passos. John Howard logo recebeu algumas propostas de publicação de seu trabalho no<br />

exterior mas passou a ter probl<strong>em</strong>as, sentindo que qualquer pessoa podia usufruir de<br />

seu trabalho s<strong>em</strong> o seu consentimento. Isto o assustou, pois John Howard é um<br />

<strong>grafite</strong>iro da primeira geração e fiel a certos princípios, não querendo que sua arte possa<br />

ser mal utilizada. Assim, decidiu não desenvolver esse projeto devido à facilidade de<br />

99 Foi, aliás, através de uma reportag<strong>em</strong> <strong>em</strong> um jornal de bairro que entramos <strong>em</strong> contato com esta manifestações do<br />

<strong>grafite</strong> virtual. Cf. Jornal do Bairro de Pinheiros de 31 de março a 6 de abril de 1995, caderno informática.


sofrer interferências a fim de evitar que sua arte pudesse ilustrar coisas s<strong>em</strong> seu<br />

consentimento.<br />

158<br />

Mas, mesmo assim a presença do <strong>grafite</strong> paulistano na rede virtual se<br />

desenvolveu, sobretudo a partir dos desdobramentos da pesquisa realizada para esta<br />

dissertação 100 . Hoje o site dos <strong>grafite</strong>s brasileiros está localizado no Laboratório de<br />

Sist<strong>em</strong>as Integrados da Faculdade Politécnica da Universidade de São Paulo, estando<br />

conectado ao site da ART CRIMES nos EUA. Este, por sua vez, t<strong>em</strong> um espelho 101 na<br />

Inglaterra facilitando o acesso para os países europeus. A rede ainda possibilitou o<br />

contato com o editor da revista eletrônica BITNIK, Mauro Cavallet, que construiu essa<br />

galeria especializada <strong>em</strong> arte virtual. Deste contato resultou um link com a home page<br />

dos <strong>grafite</strong>s paulistanos elaborada durante esta a pesquisa e a construção e o<br />

desenvolvimento de um muro interativo que permite aos usuários a interagir com essas<br />

novas possibilidades eletrônicas oferecidas pela rede.<br />

Na WWW encontramos também outros grupos atuantes, especializados<br />

<strong>em</strong> combater o <strong>grafite</strong>, assim como outras galerias que oferec<strong>em</strong> a possibilidade do<br />

usuário fazer uma pichação virtual. Trata-se de um verdadeiro muro virtual interativo.<br />

100 Partindo da constatação de que o <strong>grafite</strong> é interferência, conlui-se que seja passível de também sofrer<br />

interferência. Por isso, resolveu-se entrar <strong>em</strong> contato com a ART CRIMES e disponibizar parte da pesquisa à<br />

rede, estabelece uma conecção direta com a galeria. As paginas eletrônicas foram desenvolvidas tentando<br />

fornecer as caracteristicas gerais dos <strong>grafite</strong>s de São Paulo, trabalho que acompanhou a redação da dissertação.<br />

A manipulação e a capacidade de digitalizar fotos, b<strong>em</strong> como a possibilidade de interagir na internet no Brasil<br />

não é uma tarefa simples: há grande dificuldade de se obter a informação necessária, a lingua é uma barreira<br />

que dificulta a comunicação e o acesso à rede ainda não possui espaços d<strong>em</strong>ocráticos. As linhas telelefônicas e<br />

a aparelhag<strong>em</strong> que possibilitam a conecção à rede são muito precárias e caras. O acesso apenas se torna<br />

possível através da inserção no meio das universidades e nos internetcafés, que começam a surgir.<br />

101 Espelho é uma cópia do site colocada num outro ponto da rede, com a finalidade de encurtar o t<strong>em</strong>po durante o<br />

acesso aos dados das várias home pages que o compõ<strong>em</strong>.


Esta diversidade de opiniões é comum na rede; nela acha-se de tudo, com seus prós e<br />

contras.<br />

159<br />

De forma precária e rápida a pesquisa, no seu último ano, passou a<br />

registrar as manifestações na rede e conseguiu detectar algumas formas de<br />

interferências e interagir com algumas delas.<br />

A mais simples é denominada chat 102 . Trata-se da interação entre dois<br />

ou mais usuários que ficam abertos à comunicação on line. Este procedimento era<br />

inicialmente utilizado pelos programadores de redes para ajustar os equipamentos, mas<br />

logo passou a ser utilizado para reunir usuários de uma mesma rede. A economia e<br />

facilidade de comunicação logo se desenvolveram bastante na internet, possibilitando<br />

também as interferências on line <strong>em</strong> canais já estabelecidos e <strong>em</strong> pleno funcionamento.<br />

Quando um chat (ou um destes canais) é invadido por terceiros, seus usuários são<br />

obrigados a ler textos e caracteres colocados ali a sua revelia. A sensação inicial é de<br />

desastre completo, porque não se pode fazer nada a não ser esperar que os invasores<br />

saiam do canal ou desligu<strong>em</strong> seus computadores. Não se trata de um vírus n<strong>em</strong> de um<br />

robô ou de outro tipo de interferência mecânica que um usuário enfrenta na internet 103 .<br />

Ao contrário, estes grupos de invasores ag<strong>em</strong> de modo s<strong>em</strong>elhante aos grupos de<br />

pichadores <strong>em</strong> relação aos muros da cidades.<br />

102 O Chat ou papo virtual é feito por provedores na Internet de IRC (Internet Relay Chat)Estas máquinas operam<br />

também <strong>em</strong> redes secundárias ou sub-redes (undernet)tornado o acesso mais restrito e privado.<br />

103 Para evitar interferências, há filtro seletivos, senhas e programas que pod<strong>em</strong> impedir ou eliminar pessoas<br />

indesejadas.


160<br />

Como vimos, o <strong>movimento</strong> <strong>grafite</strong> possui refluxos e expansões de<br />

acordo com a dinâmica de seu próprio processo de desenvolvimento e de sua aceitação<br />

pela sociedade paulista. Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que assumiu suas influências, pôde<br />

influenciar e modificar tanto suas tendências como outras manifestações. Isto é<br />

particularmente significativo quando a interação se dá através da mídia escrita,<br />

televisiva e, sobretudo, pela rede internet. O processo comunicacional apresentado pelo<br />

<strong>grafite</strong>, visto pelo angulo da interferência, é carente de investimentos, direcionamentos<br />

e pesquisa. As Mostras Paulistas de Grafite mantiveram uma estrutura dinâmica, capaz<br />

de se adequar e se adaptar constant<strong>em</strong>ente às mudanças, de modo a integrar novas<br />

formas estéticas e reunir e valorizar os agentes polarizadores desse processo.<br />

Caracterizaram-se como uma experiência que se aproximou da idéia de um museu<br />

aberto valorizando as interferências cotidianas <strong>urbana</strong>s e ajudando a preservar<br />

manifestações de uma arte que pode rapidamente desaparecer dada a sua fragilidade.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!