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livro AGROFLORESTA, ECOLOGIA E SOCIEDADE - ICMBio

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<strong>AGROFLORESTA</strong>,<br />

E C O L O G I A e<br />

S O C I E D A D E


Conselho Editorial<br />

Adriana Espíndola Corrêa<br />

José Antônio Peres Gediel<br />

José Juliano de Carvalho Filho<br />

Eduardo Faria Silva<br />

Myrian Del Vecchio de Lima<br />

Wilson da Costa Bueno


ORGANIZADORES<br />

Walter Steenbock | Letícia da Costa e Silva<br />

Rodrigo Ozelame da Silva | Almir Sandro Rodrigues<br />

Julian Perez-Cassarino | Regiane Fonini<br />

COLABORADORES<br />

Carlos Eduardo Seoane | Luís Cláudio Maranhão Froufe


© Cooperafloresta (Associação de Agricultores Agroflorestais de Barra do Turvo<br />

e Adrianópolis) 2013<br />

Depósito legal junto à Biblioteca Nacional, conforme Lei n.º 10.994 de 14 de dezembro<br />

de 2004.<br />

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)<br />

Index Consultoria em Informação e Serviços S/C Ltda.<br />

Curitiba - PR<br />

A281 Agrofloresta, ecologia e sociedade / organizador Walter Steenbock... et al. ;<br />

colaboradores Carlos Eduardo Seoane, Luís Cláudio Maranhão Froufe.—<br />

Curitiba : Kairós, 2013.<br />

422 p.<br />

ISBN 978-85-63806-15-4<br />

1. Agrossilvicultura. 2. Agrofloresta. 3. Sistemas agroflorestais. 4. Ecologia.<br />

5. Desenvolvimento sustentável. 6. Cooperafloresta. I. Steenbock, Walter.<br />

II. Costa e Silva, Letícia da. III. Silva, Rodrigo Ozelame da. IV. Perez-Cassarino,<br />

Julian. V. Fonini, Regiane. VI. Seoane, Carlos Eduardo. VII. Froufe, Luís<br />

Cláudio Maranhão. VIII. Título.<br />

CDD (20.ed.) 634.9<br />

CDU (2.ed.) 631-61<br />

IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL<br />

Permitida a reprodução parcial ou total desta obra, em diferentes meios,<br />

desde que citada a fonte e não se preste a fins comerciais.<br />

Antônia Schwinden (Coordenação)<br />

Glauce Midori Nakamura (Capa e Projeto Gráfico)<br />

Ivonete Chula dos Santos (Editoração Eletrônica)


Aos agricultores e agricultoras agroflorestais da Cooperafloresta,<br />

cujo trabalho, saber e dedicação foram a base da elaboração deste <strong>livro</strong>.<br />

Em especial ao Pedro Oliveira de Souza (Pedro Baiano), Sezefredo<br />

Gonçalves da Cruz, Sidinei Maciel dos Santos, Maria de Lourdes Feltz<br />

Bonaldi, Gilmar Batista de Souza, José Moreira de Souza (Zé Baiano),<br />

Benedito de Paula Moura (Ditão), José Gustavo da Silva (Zé Baleia),<br />

Maria Lúcia Moreira (Dona Maria), Inês Maciel dos Santos (Dona Inês),<br />

Clóvis Ribeiro Maciel, Claudinei Maciel dos Santos, Mauro Xavier da<br />

Rocha, Adão Monteiro da Paixão, Joana Morato de Lima, Jorlene<br />

Boaventura Rosa, Urias de Assis Mota, Maria Aparecida da Silva Mota,<br />

Osni Alves Lourenço, Sebastião Farias dos Santos, João Paulo Maciel, José<br />

da Silva (Zé Silva), Teresa Gonçalves de Oliveira (Dona Teresa), Thiago<br />

(neto do Zé Silva), Paulina Pontes Maciel, Ana Rosa Ribeiro da Cruz (Dona<br />

Ana), Reinaldo Batista Moreira (Nardo), Aparecido Ribeiro Maciel<br />

(Aparecido), Dolíria Rodrigues de Paula Reis, Dalcides Marques dos Reis<br />

(Darço), Maria Aparecida Santos (Aparecida), Francisca Xavier da Rocha<br />

Pedroso, Vanilda Souza Santos de Paula e Pedrina de Paula Pereira que<br />

participaram diretamente das atividades de pesquisa sistematizadas neste<br />

<strong>livro</strong>. Igualmente à equipe técnica da Cooperafloresta entre os anos de<br />

2011 e 2012 pelo trabalho e apoio a realização desse <strong>livro</strong>: Nelson<br />

Eduardo Corrêa Netto, Lucilene Vanessa Andrade, Eliziana Vieira de<br />

Araujo, Rodrigo Ozelame da Silva, Artur Dalton Lima, Namastê Ganesh<br />

Maranhão Messerschmidt, Fernando Passos, Joana de Souza Mamedes,<br />

Márcio Farias Maciel, Renata Rocha Gadelha, Claudio Leme Ferreira,<br />

Osvaldo Luis de Sousa (Osvaldinho), Carlos Carriel de Castro, Claudiana<br />

Bonrruque da Mota, Adilson Gonçalves Batista e Jakson Barros Batista.


SUMÁRIO<br />

Prefácio<br />

Dos sonhos à utopia e à criação de alternatividades:<br />

o (re)conhecimento da experiência da COOPERAFLORESTA____________ 9<br />

Angela Duarte Damasceno Ferreira<br />

Capítulo 1<br />

Primeiras palavras___________________________________________________ 15<br />

Comitê Organizador e Fabiane Machado Vezzani<br />

Capítulo 2<br />

BREVE HISTÓRIA DA COOPERAFLORESTA E DO PEDRO,<br />

CONTADA POR ELE MESMO______________________________________________ 25<br />

Pedro Oliveira de Souza e Rodrigo Ozelame da Silva<br />

Capítulo 3<br />

Agroflorestas e sistemas agroflorestais<br />

no espaço e no tempo________________________________________________ 39<br />

Walter Steenbock, Rodrigo Ozelame da Silva,<br />

Luis Claudio Maranhão Froufe e Carlos Eduardo Seoane<br />

Capítulo 4<br />

Aspectos pedagógicos no processo de ensino-aprendizagem<br />

de agrofloresta, no âmbito da COOPERAfloresta___________________ 61<br />

Rodrigo Ozelame da Silva e Walter Steenbock<br />

Capítulo 5<br />

As vozes da floresta e a ecologia dos saberes______________________ 89<br />

Rodrigo Ozelame da Silva, José Edmilson de Souza-Lima,<br />

Sandra Mara Maciel-Lima e Walter Steenbock<br />

Capítulo 6<br />

As estratégias da reprodução social dos agricultores<br />

familiares da Cooperafloresta: um estudo de caso sobre<br />

os processos de reciprocidade e solidariedade____________________ 125<br />

Almir Sandro Rodrigues e Angela Duarte Damasceno Ferreira<br />

Capítulo 7<br />

A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira______ 155<br />

Priscila Cazarin Braga e Rômulo Macari da Silva


Capítulo 8<br />

Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da<br />

relação sociedade-ambiente_________________________________________ 197<br />

Regiane Fonini e José Edmilson de Souza Lima<br />

Capítulo 9<br />

Agrofloresta, autonomia e projeto de vida:<br />

uma leitura a partir da construção social dos mercados_________ 233<br />

Julian Perez-Cassarino<br />

Capítulo 10<br />

A gestão da informação No processo de comercialização da<br />

Cooperafloresta_____________________________________________________ 273<br />

Letícia da Costa e Silva<br />

Capítulo 11<br />

Geração e uso de indicadores de monitoramento de agroflorestas<br />

por agricultores associados à Cooperafloresta___________________ 305<br />

Walter Steenbock, Rodrigo Ozelame da Silva, Carlos Eduardo Seoane,<br />

Luís Cláudio Maranhão Froufe, Priscila Cazarin Braga e Rômulo Macari da Silva<br />

Capítulo 12<br />

Características estruturais das agroflorestas desenvolvidas<br />

no âmbito da Cooperafloresta______________________________________ 321<br />

Walter Steenbock, Rodrigo Ozelame da Silva, Fabiane Machado Vezzani,<br />

Carlos Eduardo Seoane e Luis Cláudio Maranhão Froufe<br />

Capítulo 13<br />

Avaliação da dinâmica do carbono em agroflorestas<br />

desenvolvidas por agricultores associados à Cooperafloresta___ 345<br />

Walter Steenbock, Rodrigo Ozelame da Silva, Fabiane Machado Vezzani,<br />

Patrikk John Martins, Luis Cláudio Maranhão Froufe e Carlos Eduardo Seoane<br />

Capítulo 14<br />

Por quE as agroflorestas da Cooperafloresta<br />

são como são e para onde evoluirão?_______________________________ 363<br />

Felipe Almeida Biguzzi, Carlos Armênio Khatounian,<br />

Elisabete A. De Nadai Fernandes e Guilherme Henrique Machado Faganello<br />

Capítulo 15<br />

Vozes da permanência: a conservação ambiental alcançada<br />

com o sistema da agrofloresta______________________________________ 393<br />

Martin Ewert, Rafaelle Mendes, Soraya Rédua e Carlos Eduardo Seoane<br />

SOBRE OS AUTORES_____________________________________________________ 421


Prefácio<br />

Dos sonhos à utopia e à criação de alternatividades:<br />

o (re)conhecimento da experiência da COOPERAFLORESTA<br />

Angela Duarte Damasceno Ferreira<br />

Nas situações-limite, mais além das quais se encontra o inédito-viável,<br />

às vezes perceptível, às vezes não, se encontram razões de ser de ambas<br />

posições, a esperançosa e a não esperançosa. Uma das tarefas do educador<br />

ou educadora progressista…é desvelar as possibilidades, não importam os<br />

obstáculos, para a esperança…<br />

(Paulo Freire. A pedagogia da esperança, 1992, p.6)<br />

Na história, temos visto com frequência, infelizmente, que o possível se<br />

torna impossível e podemos pressentir que as mais ricas possibilidades<br />

humanas permanecem ainda impossíveis de se realizar. Mas vimos também<br />

que o inesperado torna-se possível e se realiza; vimos com frequência que<br />

o improvável se realiza mais que o provável; saibamos, então, esperar o<br />

inesperado e trabalhar pelo improvável.<br />

(Edgar Morin. Os setes saberes necessários à educação do futuro, 2000, p. 92)<br />

Este <strong>livro</strong> trata da construção de alternatividades vivenciadas por<br />

agricultores e agricultoras ligados à Cooperafloresta, uma organização que<br />

reúne famílias rurais dos municípios de Barra do Turvo, em São Paulo,<br />

Adrianópolis e Bocaiúva do Sul, no Paraná, na região do Vale do Ribeira,<br />

fronteiriça entre os dois estados.<br />

Ali está em curso uma experiência agroecológica de produção<br />

agroflorestal, pela qual esses homens e mulheres enfrentaram problemas<br />

ecológicos e sociais, cuja magnitude ameaçava a sua própria reprodução<br />

social como agricultores e a de sua natureza próxima (JOLLIVET, 1999) – a<br />

terra em que vivem, sua disponibilidade de água, a qualidade do solo, ou<br />

seja, a base material de sua existência.<br />

– 9 –


Em sua parte do mundo, receberam pessoas de fora que lhes trouxeram<br />

ideias e propostas de mudança. Interagindo com essas ideias, iniciaram o<br />

caminho de transformação de suas relações com a natureza e com outros<br />

homens e mulheres. Foram alçados a patamares extralocais de vivência ao se<br />

inserirem em redes regionais como a Rede Ecovida de Agroecologia que, por<br />

sua vez, os vinculou a outras redes nacionais e internacionais. Participaram de<br />

encontros em que trocaram conhecimentos e construíram laços de identidade<br />

com muitos que também se viram em situações-limite e procuraram gestar o<br />

inédito viável nas suas trajetórias. Em redes, começaram a se inserir em uma<br />

incipiente e intermitente globalização alternativa (SOUSA SANTOS, 2005).<br />

A percepção da riqueza dessa experiência levou muitos a visitá-la e a<br />

querer participar dela, seja como técnicos, colaboradores e pesquisadores.<br />

Os trabalhos aqui reunidos foram realizados por um grupo de técnicos<br />

e pesquisadores de órgãos de pesquisa e de universidades públicas – destas,<br />

professores e estudantes de graduação, mestrado e doutorado. Compartilhando<br />

o interesse despertado pelos processos em curso na Cooperafloresta,<br />

empreenderam, em conjunto com agricultores e agricultoras, estudos sobre<br />

distintas dimensões de tais processos. Como eram muitos e tinham em comum<br />

a intenção de ser também colaboradores dos agricultores, organizaram-se<br />

para discutir algumas prioridades de pesquisa para a associação e seus<br />

membros. Procuraram articulá-las aos seus próprios interesses mais gerais,<br />

dados pelas suas formações e inserções profissionais, institucionais e<br />

políticas. Foi um esforço coletivo de produção de conhecimento. Envolveu a<br />

construção de um diálogo de saberes com as comunidades e um encontro<br />

entre diferentes disciplinas.<br />

Olhares convergentes sobre o mesmo espaço social e natureza, ambos<br />

heterogêneos: os resultados mostram a emergência de um outro modelo<br />

produtivo que se acompanha por novas percepções sobre a vida, sobre a<br />

sociedade e as condições naturais de sua existência.<br />

Para o leitor que vai iniciar seu caminho por este <strong>livro</strong> pode ser que<br />

sobrevenham duas perguntas: a primeira, o que esta experiência apresenta<br />

de importante a ponto de mobilizar tantas pessoas para estudá-la? A segunda,<br />

inevitavelmente, é uma questão de hermenêutica: os autores conseguiram<br />

apreender dinâmicas relevantes para sua compreensão?<br />

– 10 –


Podemos responder às duas perguntas paralelamente, antecipando<br />

elementos dos resultados de pesquisa que são amplamente desenvolvidos no<br />

corpo do <strong>livro</strong>.<br />

Em primeiro lugar, há a constatação de que a história recente dos<br />

agricultores locais era marcada pelo aprofundamento de uma crise<br />

socioambiental ligada aos limites de seu acesso a meios para produzir e<br />

prover suas necessidades de reprodução biológica e social, assim como de<br />

reprodução do meio natural em que viviam. Eram, na sua maioria, agricultores<br />

tradicionais, muitos pertencentes a comunidades quilombolas e também<br />

trabalhadores que vieram para a região se instalar como agricultores. Muitos<br />

haviam feito a incorporação parcial de insumos convencionais (venenos,<br />

adubos) e faziam uso de maquinário alugado os quais, associados à coivara<br />

(queimadas) e desmatamento, aprofundaram seus problemas com a<br />

produção, especialmente no que diz respeito aos impactos sobre o solo e<br />

demais recursos naturais. Muito além de locais, seus limites produtivos e de<br />

comercialização os uniam de forma dramática ao conjunto do campesinato<br />

nacional, marcado por uma precariedade estrutural que bloqueou seu<br />

desenvolvimento nos marcos da sociedade brasileira, assim como em outros<br />

países do mundo (WANDERLEY, 1996).<br />

A crise era também de identidade e de sentido: famílias que deixavam<br />

para trás sua condição social de agricultores porque saiam da terra; filhos que<br />

não se viam com futuro na agricultura e empreendiam a jornada para a cidade<br />

onde nunca entravam, ficando nas periferias das cidades e das ocupações<br />

urbanas (WANDERLEY, 2002), em uma precariedade aumentada pela perda<br />

dos meios de consumo que a produção de subsistência proporcionava;<br />

agricultores que se sentiam em situação de fracasso e cuja existência era<br />

ignorada porque não se moldavam aos pré-requisitos para a modernização<br />

convencional. Crise, enfim, pela percepção difusa de sua subalternidade.<br />

Com a disposição e vontade de criar opções, de ensinar e aprender,<br />

alguns encontros inesperados com técnicos e colaboradores “de fora” geraram<br />

conhecimentos que deram início à implantação de sistemas agroflorestais<br />

de base agroecológica. Vincularam-se em associação. Para além das<br />

determinações sociais maiores, começaram a trabalhar pelo improvável e<br />

seus sonhos de mudança começaram a ser gestados. Tornaram-se sujeitos<br />

– 11 –


dessa transformação. O inédito viável é, hoje, uma realidade em criação.<br />

Suas vidas mudaram, o sentido readquirido fez deles porta-vozes do cuidado<br />

com a natureza, agentes da sustentabilidade em todas as acepções do termo.<br />

Recriaram em outro patamar a sociabilidade camponesa – a reciprocidade e<br />

solidariedade – agora permeada por um discurso ecológico que transcende a<br />

escala local. Um novo pacto com a natureza e a vida que os coloca em<br />

relação com os consumidores dos alimentos que produzem, com a humanidade<br />

e o planeta.<br />

Imbuídos dessa percepção, buscam ultrapassar a sociabilidade típica<br />

do mercado, baseada na predominância do comércio e dos benefícios pessoais<br />

(SOUSA SANTOS, 2005).<br />

Os estudos aqui reunidos nos mostram essas mudanças, mas não<br />

deixam de explicitar limites, debilidades, conflitos. Se a ênfase recaiu sobre<br />

o resgate da alternatividade desta experiência, foi no esforço de recuperar e<br />

valorizar aquilo que a ortodoxia produtivista capitalista ocultou ou desacreditou<br />

(SOUSA SANTOS, 2005). Assim fez historicamente e continua fazendo<br />

porque tais sistemas de produção alternativos “põem diretamente em questão<br />

os paradigmas do desenvolvimento e do crescimento econômico ilimitado e a<br />

lógica da primazia dos objetivos de acumulação sobre os objetivos de<br />

distribuição que sustenta o capitalismo global. É, no entanto hoje evidente<br />

que este paradigma e esta lógica nunca dispensaram outras formas de<br />

produção e apenas as desqualificaram para as manter na relação de<br />

subalternidade.” (SOUSA SANTOS, 2005, p.20).<br />

Se as aquisições produtivas, sociais, de valorização da identidade e do<br />

seu papel no mundo estão mais presentes em uns do que em outros, essa<br />

situação não deixa de indicar uma transformação importante. Os obstáculos<br />

persistem, as desagregações acontecem e os conflitos permeiam momentos<br />

da interação entre os membros da Cooperafloresta. Isso, no entanto, nada<br />

mais é do que o desdobramento da vida quando empenhada em ser mais<br />

vida. (FREIRE, 1987).<br />

Qualquer análise voltada ao reconhecimento e divulgação das<br />

experiências de alternatividade, como faz este <strong>livro</strong>, deve ter claro que elas<br />

são incipientes e ainda frágeis, já que nasceram em um sistema que lhes<br />

– 12 –


hegemoniza (SOUSA SANTOS, 2005). Por isso o valor de compreendê-las<br />

com uma perspectiva que<br />

(...) interprete de maneira abrangente a forma como as organizações,<br />

movimentos e comunidades resistem à hegemonia do capitalismo e aderem<br />

a alternativas econômicas baseadas em princípios não capitalistas. Esta<br />

perspectiva amplia e desenvolve as características emancipatórias dessas<br />

alternativas para as tornar mais visíveis e credíveis. Isto não implica que a<br />

hermenêutica das emergências renuncie à análise rigorosa e à crítica das<br />

alternativas analisadas. Todavia, a análise e a crítica procuram fortalecer as<br />

alternativas, e não propriamente diminuir o seu potencial. (SOUSA SANTOS,<br />

2005, p.26)<br />

Assim, o leitor que se dispuser a percorrer os caminhos que este <strong>livro</strong><br />

desvela perceberá que alguns desses princípios alternativos germinam na<br />

Cooperafloresta: uma disposição de não excluir, de distribuir os ganhos, de<br />

compartilhar o poder; a (re)criação de sociabilidades de ajuda mútua,<br />

reciprocidade e uma abertura para a solidariedade mais plena que a dos<br />

limites da família e da comunidade; o cuidado em reproduzir-se socialmente,<br />

reproduzindo e não destruindo a natureza. Ainda em criação, parcial,<br />

imperfeita, mas certamente uma iniciativa que nos faz confiar que um outro<br />

mundo é possível, como ensinaram os protagonistas dos fóruns sociais:<br />

(…) afirmamos que não estamos no melhor dos mundos possíveis, que esta<br />

atual situação do mundo não é inevitável, e que “outro mundo é possível”.<br />

No entanto, o outro mundo possível não cairá do céu, nem surgirá de manhã<br />

num dia qualquer... Como virá? Quem o construirá? O que fará com que ele vá<br />

surgindo? A primeira coisa que terá de ser feita para construir o novo mundo<br />

será sonhá-lo. O novo não virá, a menos que muitos e muitas o sonhem<br />

utopicamente, esforcem-se para configurá-lo como sonho e projeto, como<br />

esperança. (Casaldáliga, 2011, p.1)<br />

Referências<br />

CASALDÁLIGA, Dom Pedro, Bispo de São Félix do Araguaia. Rumo à Internacional<br />

Humana. Artigo publicado em meio eletrônico pela ADITAL - Agência de Informação Frei<br />

Tito para a América Latina, em 11 de fevereiro de 2011.<br />

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido.<br />

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.<br />

– 13 –


MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez;<br />

Brasilia: UNESCO, 2000.<br />

SOUSA SANTOS, Boaventura. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das<br />

emergências. In: BARREIRA, César (Ed.). Sociologia e conhecimento além das fronteiras.<br />

Porto Alegre: Tomo Editorial, 2006.<br />

SOUSA SANTOS, Boaventura. Produzir para viver: os caminhos da produção não<br />

capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.<br />

WANDERLEY, Maria de Nazareth. Raízes históricas do campesinato brasileiro. Texto<br />

apresentado no XX Encontro Anual da ANPOCS, GT Processos Sociais Agrários. Caxambu,<br />

outubro de 1996.<br />

WANDERLEY, Maria de Nazareth. Palestra proferida aos alunos da Pós-Graduação em<br />

Sociologia da UFPR. Curitiba, 2002.<br />

– 14 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 1<br />

Primeiras palavras<br />

Comitê Organizador<br />

Fabiane Machado Vezzani<br />

Atualmente, a agricultura é uma das atividades mais impactantes<br />

sobre o ambiente, em nível mundial, utilizando em torno de 80% da água<br />

doce disponível e provocando processos erosivos e contaminações ambientais<br />

em elevada escala (FAO, 2006). No Brasil, este quadro é grave, com o país<br />

passando a ser, nos últimos anos, o maior consumidor de agrotóxicos do<br />

mundo, utilizando mais de 1 milhão de toneladas destes produtos por ano,<br />

o que significa aproximadamente 25 kg de agrotóxicos (equivalente a 10 a<br />

25 mil litros de calda) por hectare de área plantada (SINDAG, 2010).<br />

A agricultura é também uma das principais fontes de emissão de Gases<br />

de Efeito Estufa (GEEs). Atividades como o preparo convencional de solo e<br />

práticas não conservacionistas como desmatamentos e queimadas são<br />

responsáveis por parte expressiva da liberação de GEEs para a atmosfera. No<br />

Brasil, dados recentes divulgados pelo Ministério da Ciência e Tecnologia<br />

apontam que a Mudança no Uso da Terra e Florestas e a Agropecuária são<br />

responsáveis por aproximadamente 76% das emissões de CO 2<br />

e por 80% das<br />

emissões líquidas de gases de efeito estufa no país, no período de 1994 a<br />

2005 (MCT, 2009).<br />

O desmatamento mundial, constituindo-se fundamentalmente na<br />

conversão de florestas tropicais para terras agrícolas, continua em ritmo<br />

alarmante, de acordo com a Avaliação dos Recursos Florestais Mundiais<br />

2010/FAO. O estudo cobre 223 países e territórios e conclui que,<br />

mundialmente, cerca de 130 milhões de hectares de florestas foram<br />

convertidos para outros usos ou perdidos por causas naturais no período<br />

– 15 –


PRIMEIRAS PALAVRAS<br />

entre 2000 e 2010. Entre os continentes, a América do Sul teve a maior<br />

perda líquida de cobertura florestal neste período, desmatando 40 milhões de<br />

hectares, sendo 26 milhões no Brasil.<br />

Este estudo também aponta que as florestas estão entre os maiores<br />

depósitos de carbono do mundo, detendo aproximadamente de 289<br />

gigatoneladas (Gt) de carbono. Entretanto, mundialmente, os estoques de<br />

carbono na biomassa florestal diminuíram cerca de 0,5 Gt por ano entre<br />

2000-2010, principalmente por causa da redução na área florestal total<br />

(FAO, 2009).<br />

Em termos gerais, de acordo com dados da Global Footprint Network<br />

(EWING et al., 2009), a população mundial atual consome quase 1,5<br />

planetas Terra por ano, com base nos dados de 2006. Ou seja, a população<br />

hoje usa em um ano recursos que o planeta só consegue repor em dezoito<br />

meses. Como, obviamente, só temos um planeta, fica claro que, caso não<br />

haja uma mudança significativa nas práticas produtivas e nos padrões de<br />

consumo da humanidade, as políticas de conservação ou de compensação<br />

ambiental não encontrarão, em médio prazo, espaços suficientes no planeta<br />

para serem efetivadas.<br />

Assim, caso não seja possível produzir alimentos, fibras, madeira e<br />

outros produtos no mesmo espaço em que se produza biodiversidade e que o<br />

balanço de carbono seja positivo, a escassez de recursos naturais pode se<br />

tornar realidade ainda antes de 2050 (EWING et al., 2009).<br />

Apesar do caráter alarmante desses dados, é comum a aceitação<br />

conformada dos mesmos por tomadores de decisão na esfera das políticas<br />

públicas, sob o argumento de que “não se pode ficar sem comida”.<br />

Entretanto, o desafio de conservar as áreas de florestas e recuperar as<br />

áreas degradadas, harmonizando agricultura e conservação dos recursos<br />

naturais, pode ter nos Sistemas Agroflorestais (SAFs) uma alternativa viável e<br />

eficiente. Para Farrell (1984) e Gliessman (2001), as agroflorestas contemplam<br />

os princípios básicos e preenchem os requisitos da sustentabilidade, em função:<br />

a) da inclusão de árvores no sistema de produção; b) do uso de recursos<br />

endógenos; c) do uso de práticas de manejo que otimizam a produção<br />

combinada; e d) da geração de numerosos serviços ambientais, além de<br />

– 16 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

possibilitar renda ao longo do ano, por meio da comercialização dos diferentes<br />

produtos obtidos escalonadamente neste agroecosistema.<br />

Assim, a prática agroflorestal pode representar uma resposta ao desafio<br />

da conciliação entre a sustentabilidade na produção de alimentos e a<br />

sustentabilidade ambiental. Em função disso, a implantação de agroflorestas,<br />

inclusive em Áreas de Preservação Permanente, passou a ser reconhecida<br />

legalmente como de interesse social no Brasil desde 2001, permanecendo<br />

dessa forma no atual Código Florestal (BRASIL, 2012). Paralelamente,<br />

segmentos expressivos da sociedade brasileira apontam a inequívoca<br />

necessidade do uso sustentável da diversidade biológica, instituindo-se áreas<br />

protegidas e incentivando e apoiando a agricultura familiar camponesa,<br />

assentados de reforma agrária, populações tradicionais e povos indígenas a<br />

manter seu modo de vida associado à conservação e ao melhoramento<br />

genético da diversidade silvestre e cultivada, os quais contribuem<br />

fundamentalmente para formar o patrimônio genético e cultural do país, em<br />

sua sociobiodiversidade.<br />

Entretanto, é fundamental e urgente o desenvolvimento de políticas<br />

públicas efetivas que caminhem neste sentido. Para tanto, ainda existem<br />

grandes barreiras no cenário histórico-político brasileiro. Nesse contexto, a<br />

sistematização de experiências que possam servir para apoiar políticas de<br />

ensino, pesquisa, crédito, regulamentação ambiental e assistência técnica e<br />

extensão rural é de grande importância.<br />

Esse é o esforço deste <strong>livro</strong>, buscando sistematizar resultados de<br />

pesquisas realizadas junto a agricultores e técnicos que vivenciam a<br />

experiência agroflorestal desde 1996, envolvidos na Associação de<br />

Agricultores Agroflorestais de Barra do Turvo e Adrianópolis – a Cooperafloresta,<br />

cuja proposta é unir “Gentes e Natureza”.<br />

De acordo com seu Estatuto, a Cooperafloresta busca o fortalecimento<br />

da agricultura familiar e do desenvolvimento de uma consciência ambiental,<br />

visando à construção da agroecologia e da prática agroflorestal para o<br />

enfrentamento da exclusão social mediante alternativas de produção e<br />

renda para os trabalhadores e trabalhadoras rurais. Para tal, a Cooperafloresta<br />

se propõe a facilitar os processos de organização, formação e capacitação<br />

das famílias agricultoras, planejamento dos sistemas agroflorestais, além<br />

– 17 –


PRIMEIRAS PALAVRAS<br />

do beneficiamento, agroindustrialização e comercialização da produção<br />

(COOPERAFLORESTA, 2004).<br />

Nesse sentido, a experiência da Cooperafloresta coloca-se como uma<br />

referência consolidada. Atuando na região do Alto Vale do Ribeira (PR/SP)<br />

junto às comunidades quilombolas e agricultores familiares, vem construindo<br />

caminhos de superação da exclusão social e da degradação dos recursos<br />

naturais. Por meio da agrofloresta, tem conseguido desencadear um processo<br />

de organização das famílias agricultoras, dentro do enfoque participativo,<br />

resgatando os conhecimentos tradicionais e promovendo o diálogo com o<br />

universo técnico-científico, na busca de alternativas de produção, geração de<br />

renda e adequação ambiental.<br />

O trabalho com associativismo, produção agroflorestal, sistemas<br />

participativos de garantia e comercialização coletiva ética e solidária vem<br />

gerando resultados significativos no âmbito econômico, ambiental, social e<br />

cultural. Atualmente, são 112 famílias que antes da agrofloresta sobreviviam<br />

com rendas declinantes da produção do feijão cultivado em terras com<br />

acentuado processo de degradação, comercializada de forma individualizada<br />

em mercados distantes e com elevados custos. Atualmente, essa renda é<br />

expressivamente maior, crescente e conciliada com a conservação da<br />

sociobiodiversidade e com a promoção da segurança alimentar, conforme<br />

será detalhado neste <strong>livro</strong>.<br />

Diante desses resultados, a Cooperafloresta consolidou-se como<br />

uma referência nacional em agrofloresta, recebendo mais de mil pessoas<br />

por ano – agricultores e agricultoras, organizações, técnicos, universitários,<br />

consumidores e estudantes – em visitas, intercâmbios, estágios, cursos etc.<br />

Dessa forma, tem contribuído para a sensibilização, divulgação e multiplicação<br />

da agrofloresta como instrumento de recuperação e conservação dos recursos<br />

naturais e de geração de renda para as famílias agricultoras.<br />

Cabe ressaltar a importância da construção dessa referência justamente<br />

no Vale do Ribeira (Figura 1), onde ainda é expressiva a sociobiodiversidade,<br />

mesmo que o desmatamento e o êxodo rural sejam preocupantes.<br />

– 18 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Figura 1: Localização dos municípios onde se insere a Cooperafloresta.<br />

(Cooperafloresta, 2011-2012)<br />

O Vale do Ribeira chega ao início do século XXI com significativo<br />

patrimônio ambiental. São mais de 21 milhões de hectares de florestas,<br />

equivalentes a aproximadamente 21% dos remanescentes de Mata Atlântica<br />

do país, além de abrigar um dos mais importantes patrimônios espeleológicos<br />

do Brasil (BORN; TALOCCHI, 2002). Em 1999, a Reserva de Mata Atlântica<br />

do Sudeste, constituída por 17 municípios do Vale do Ribeira, tornou-se uma<br />

das seis áreas brasileiras que passaram a ser consideradas pela UNESCO<br />

(Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura) como<br />

Patrimônio Natural da Humanidade (IPHAN, 1999).<br />

Outro aspecto peculiar do Vale do Ribeira é que mais da metade de<br />

seu território está inserido num mosaico integrado de unidades de<br />

conservação marinhas e terrestres, como Parques, Estações Ecológicas e<br />

Áreas de Proteção Ambiental, as quais buscam formar um cordão de<br />

– 19 –


PRIMEIRAS PALAVRAS<br />

proteção do patrimônio natural, socioambiental, cultural, arqueológico,<br />

espeleológico e histórico (BORN; TALOCCHI, 2002). Parte destes espaços<br />

formam o Mosaico do Jacupiranga, que integra dezesseis unidades de<br />

conservação, totalizando 240 mil hectares (SÃO PAULO, 2007).<br />

No entanto, não é só a riqueza ambiental que torna a região do Vale do<br />

Ribeira singular. Seu patrimônio cultural é igualmente valioso. Em seu<br />

território concentra-se o maior número de comunidades remanescentes de<br />

quilombos de todo o Estado de São Paulo, comunidades caiçaras, índios<br />

Guarani, pescadores tradicionais e agricultores familiares. Entretanto, é<br />

também no Vale do Ribeira que estão os mais baixos índices sociais e<br />

econômicos da Região Sudeste do Brasil.<br />

Nos últimos anos, contando com o patrocínio da Petrobras Ambiental,<br />

a Cooperafloresta vem implementando o “Projeto Agroflorestar – Cooperando<br />

com a Natureza”. O objetivo deste Projeto, na Petrobras, é contribuir para o<br />

desenvolvimento sustentável do Brasil com investimentos em iniciativas<br />

voltadas à conservação e preservação dos recursos ambientais e consolidação<br />

da consciência ambiental brasileira.<br />

Nesse contexto, o “Projeto Agroflorestar” envolve, basicamente, três<br />

eixos de atuação: qualificar e ampliar a produção agroflorestal junto às<br />

famílias agricultoras e quilombolas no Vale do Ribeira, contribuindo para a<br />

redução da emissão de gases do efeito estufa na atmosfera e promovendo a<br />

captura de gás carbônico por meio da restauração da cobertura vegetal das<br />

unidades produtivas envolvidas; apoiar a “Escola Agroflorestal”, aprimorando<br />

o espaço de formação, capacitação e educação ambiental voltado para<br />

quilombolas, agricultores, estudantes e técnicos do Vale do Ribeira e de<br />

outras regiões; e implementar ações de pesquisa para caracterização,<br />

sistematização e monitoramento das agroflorestas, envolvendo os processos<br />

ecológicos, sociais, de impactos ambientais e econômicos da implantação<br />

dos sistemas agroflorestais.<br />

Assim, em termos gerais, o projeto objetiva promover a recuperação e<br />

conservação dos recursos naturais, com foco na fixação de carbono e emissões<br />

evitadas, por meio do aprimoramento e ampliação da prática agroflorestal<br />

junto à agricultura familiar e comunidades quilombolas, gerando referenciais<br />

técnicos e metodológicos e socializando e multiplicando os conhecimentos e<br />

– 20 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

experiências construídos por meio de atividades de formação, capacitação,<br />

intercâmbios, pesquisa e educação ambiental. Baseia-se em uma prática<br />

ancorada em metodologias participativas, que têm buscado privilegiar o<br />

protagonismo e o empoderamento das famílias agricultoras e quilombolas.<br />

Ao mesmo tempo, oportuniza o diálogo entre o conhecimento acadêmicocientífico<br />

e o saber popular, na busca de uma síntese que contribua para a<br />

definição de estratégias para a ampliação da prática agroflorestal.<br />

Esse projeto envolve, além da Cooperafloresta, 31 organizações<br />

governamentais e não governamentais, que vêm edificando uma parceria<br />

consistente em torno das questões socioambientais, particularmente na<br />

construção da proposta agroflorestal no Vale do Ribeira.<br />

A partir da implementação do Projeto Agroflorestar, nos anos de 2011<br />

e 2012, várias ações de pesquisa buscaram resgatar, identificar e sistematizar<br />

informações relativas a aspectos ambientais, sociais, econômicos e culturais<br />

associados ao desenvolvimento dos sistemas agroflorestais pelas famílias<br />

envolvidas na Cooperafloresta. Essas ações foram efetivadas a partir de um<br />

esforço conjunto entre os agricultores associados, a equipe técnica da<br />

Cooperafloresta e pesquisadores da Universidade Federal do Paraná<br />

(Departamento de Solos e Engenharia Agrícola, Programa de Pós-Graduação<br />

em Ciência do Solo, Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e<br />

Desenvolvimento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia), do Instituto<br />

Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Floresta Nacional do<br />

Açungui e Centro Nacional de Pesquisa em Populações Tradicionais e<br />

Sociobiodiversidade), da Embrapa-Florestas e da Escola Superior de<br />

Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ/USP).<br />

Neste <strong>livro</strong>, busca-se reunir resultados dessas ações de pesquisa.<br />

Obviamente, não se pretende aqui esgotar a síntese de informações acerca da<br />

prática agroflorestal e da experiência da Cooperafloresta, até porque uma das<br />

conclusões deste trabalho é que muito ainda precisa se pesquisar, nesta área.<br />

Além disso, é importante considerar que as diferentes metodologias de<br />

pesquisa utilizadas encontram sempre os limitantes do tempo e da<br />

amostragem, além da própria necessidade de adaptação de métodos, em<br />

diferentes situações, dadas as peculiaridades sociais, ecológicas e produtivas<br />

dos sistemas agroflorestais. Considerando-se esses aspectos, é importante<br />

– 21 –


PRIMEIRAS PALAVRAS<br />

deixar claro que, muito embora este <strong>livro</strong> seja um produto do Projeto<br />

Agroflorestar, coordenado pela Cooperafloresta e patrocinado pela Petrobras<br />

Ambiental, as metodologias, os dados, os resultados e as conclusões de<br />

cada capítulo são de responsabilidade exclusiva dos respectivos autores.<br />

Assim, ao leitor atento não escapará, em alguns momentos, ainda que<br />

raros, a sensação de aparente contradição de informações ou idiossincrasias<br />

entre diferentes capítulos. Optou-se justamente por manter esta situação,<br />

evitando-se a realização de cortes e visando, assim, garantir a autonomia<br />

dos autores, bem como estimular, no leitor, a curiosidade e a análise<br />

sistêmica dos vários capítulos.<br />

Espera-se que este <strong>livro</strong> possa ser utilizado em escolas, universidades,<br />

instituições de pesquisa, órgãos ambientais, instituições de assistência<br />

técnica e extensão rural, associações de agricultores e demais espaços que<br />

buscam a construção do conhecimento e da prática para a promoção da<br />

produção de alimentos em parceria com a conservação ambiental, com a<br />

segurança alimentar e com a valorização social e cultural dos agricultores<br />

familiares e comunidades tradicionais, no rumo da construção de uma<br />

sociedade mais justa, inclusiva e capaz de se alimentar em longo prazo, sem<br />

correr o risco de sua própria extinção.<br />

Referências<br />

BRASIL, 2012. Lei n.º 12.651, de 25 de maio de 2012. Diário Oficial da União.<br />

25.05.2012.<br />

BORN, R; TALOCCHI, S. (Coord.). Payment for Environmental Services: Brazil. Relatório<br />

elaborado como parte do projeto “Payment for Environmental Services in the Americas”<br />

financiado pela Fundação FORD e dirigido pela Fundação PRISMA sob coordenação de<br />

Herman Rosa and Susan Kandel, 2002.<br />

COOPERAFLORESTA: Projeto Agroflorestar, semeando um mundo de amor, harmonia e<br />

fartura. Programa Petrobras Ambiental. Barra do Turvo SP e Adrianópolis PR. 2011-2012.<br />

COOPERAFLORESTA. Estatuto Social. [S.l.: s.n.], 2004.<br />

EWING, B. S.; GOLDFINGER, A.; OURSLER, A.; REED, D; WACKERNAGEL, M. The<br />

ecological footprint atlas. Oakland: Global Footprint Network, 2009.<br />

GLIESSMAN, S. R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. Porto<br />

Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. 2001.<br />

– 22 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

IPHAN. Instituto do Patrimônio histórico e Artístico Nacional: Reservas da Mata Atlântica.<br />

Brasília, 1999.<br />

FARRELL, J. G. Sistemas agroflorestais. In: ALTIERI, M. A. (Org.). Agroecologia: bases<br />

cientificas de la agricultura alternativa. Santiago, Chile: CIAl, 1984. p.15-27.<br />

FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations. “The State of World<br />

Fisheries and Aquaculture”. Viale delle Terme di Caracalla, Rome, Italy 2006.<br />

FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations. “Desmatamento mundial<br />

diminui, mas segue alarmante em muitos países”. 2010. Disponível em: . Acessado em 05 de outubro de 2012.<br />

FAO. Food and Agriculture Organization. Review of Evidence on Drylands Pastoral Systems<br />

and Climate Change: Implications and Opportunities for Mitigation and Adaptation. Viale<br />

delle Terme di Caracalla, Rome, Italy, 2009.<br />

MCT- Ministério da Ciência e Tecnologia. Inventário Brasileiro das Emissões e Remoções<br />

Antrópicas de Gases de Efeito Estufa. – novembro de 2009.<br />

SÃO PAULO, 2007: Lei n.º 638, 20 de Dezembro de 2007. Assembleia legislativa de<br />

São Paulo: 21.12.2012.<br />

SINDAG – Sindicato nacional da indústria de produtos para defesa agrícola. Relatório de<br />

mercado de defensivos agrícolas 2009-2010. In: Jornal Vetquímica, publicado em 11 de<br />

maio de 2010.<br />

– 23 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 2<br />

BREVE HISTÓRIA DA COOPERAFLORESTA E DO PEDRO,<br />

CONTADA POR ELE MESMO<br />

Pedro Oliveira de Souza e<br />

Rodrigo Ozelame da Silva<br />

Contextualizando...<br />

A proposta deste capítulo é apresentar brevemente parte da história de<br />

vida de Pedro Oliveira, descrita por ele mesmo. Pedro é agricultor agroflorestal<br />

e um dos fundadores da Associação dos Agricultores Agroflorestais de Barra<br />

do Turvo, SP, e Adrianópolis, PR, Cooperafloresta. Nasceu no interior da<br />

Bahia, passou alguns anos na grande São Paulo até ir morar no Sítio Bom<br />

Recanto, na cidade de Barra do Turvo, onde reside até hoje.<br />

Foi presidente da Cooperafloresta no período entre 2000 a 2004 e<br />

2008 a 2012. Nesse período, participou de diversas reuniões do Conselho de<br />

Representantes da Cooperafloresta, de inúmeras discussões acerca de<br />

políticas públicas e de várias palestras dos benefícios socioambientais do<br />

sistema agroflorestal, além de receber milhares de pessoas em seu sítio.<br />

Nesses espaços, notabilizou-se por sua paixão pelo sistema agroflorestal,<br />

bem como suas sábias falas acerca da relação ente homens, mulheres e<br />

natureza, e como a Cooperafloresta contribui para criação de novos elementos<br />

deste processo. Neste capítulo, busca-se socializar algumas das experiências<br />

vividas por ele durante sua trajetória.<br />

Para a elaboração deste capítulo, utilizou-se como inspiração o projeto<br />

“Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos” (SOUSA SANTOS,<br />

2009). Procurou-se seguir a posição político-epistemológica de “evitar sobrepor<br />

o conhecimento científico social à narrativas das Vozes do Mundo” (SOUSA<br />

SANTOS, 2009, p. 19), buscando fazer algo minimamente próximo do volume<br />

– 25 –


Breve história da Cooperafloresta e do Pedro,<br />

contada por ele mesmo<br />

seis do projeto, intitulado “As Vozes do Mundo” (SOUSA SANTOS, 2009). Esse<br />

<strong>livro</strong>, ”em vez de se centrar na análise científica – social das lutas e dos<br />

movimentos sociais, centra-se no discurso e no conhecimento prático dos<br />

protagonistas dessas lutas e movimentos” (SANTOS, 2009. p. 13).<br />

Usou-se como referencial metodológico a historia oral de vida, que “é<br />

a história do tempo presente, pois implica a percepção do passado como algo<br />

que tem continuidade hoje, e cujo processo histórico não está acabado. Nesta<br />

medida, ela não só oferece uma mudança no conceito de História; mais que<br />

isso, dá um sentido social à vida de depoentes e leitores, que passam a<br />

entender a sequência histórica e a sentir-se parte do contexto em que vivem”<br />

(ICHIKAWA e SANTOS, 2003, p. 182).<br />

A partir da provocação inicial para que contasse em poucas palavras<br />

sua história, a história oral de Pedro Oliveira foi gravada e, após, transcrita.<br />

Foi então apresentada a ele, o qual propôs algumas adequações ao texto.<br />

Assim, no texto final, foram mantidas a forma e a estrutura da fala gravada.<br />

Como em sua trajetória a Cooperafloresta tem grande relevância, em<br />

alguns momentos sua história de vida mescla-se com a história da associação.<br />

Porém, cabe ressaltar que a sequência de informações e as datas presentes<br />

neste capítulo são provenientes da memória de Pedro Oliveira e da metodologia<br />

empregada para tal resgate, não possuindo caráter oficial da Cooperafloresta.<br />

Portanto, tais palavras não têm como objetivo apresentar a totalidade<br />

de experiências do Pedro e muito menos da Cooperafloresta, mas sim provocar<br />

nas leitoras e leitores deste capítulo o sentimento que outros mundos estão<br />

sendo construídos e a percepção da necessidade de escutar outros sujeitos<br />

para construção de novas relações entre mulheres, homens e natureza.<br />

Enfim, também cabe o convite para quem possa escutar pessoalmente<br />

os saberes, sonhos, sabores e cheiros da deliciosa comida “servida” no Sítio<br />

Bom Recanto, lar de Pedro Oliveira, um local onde se vive a União de Gentes<br />

e Natureza, construída pela Cooperafloresta.<br />

O olhar de Pedro sobre a sua história e da Cooperafloresta<br />

Meu nome é Pedro Oliveira de Souza, nasci em 02 de Maio de 1960,<br />

moro na cidade de Barra do Turvo, São Paulo, no Sítio Bom Recanto, que<br />

fica no Km 7 da estrada Indaiatuba-Barra do Turvo. Sou um dos fundadores<br />

– 26 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

da Cooperafloresta e de 2000 a 2004 e 2008 a 2012 fui presidente dela.<br />

Aqui no sítio, a gente recebe umas 700 pessoas por ano. São agricultores,<br />

estudantes, professores e uns doidos que aparecem do nada pra ver essa tal<br />

de Agrofloresta.<br />

Contar quem eu sou e a história da “Coopera” é bem difícil, porque a<br />

gente vai ficando velho e acaba não lembrando das coisas direito. E saber<br />

quem eu sou é algo que estou até hoje querendo saber, mas vamos tentar...<br />

Foto 1: Pedro Oliveira e sua esposa, Maria de Lurdes<br />

Nasci na Bahia, num lugar chamado Rio do Ouro, perto de Itapetinga,<br />

que é região sul da Bahia. Eu saí de lá, tinha seis anos e meio, fui morar em<br />

Arujá, São Paulo. Lá eu fiquei até completar dez anos e depois fui morar na<br />

zona sul da cidade de São Paulo, no Jardim Primavera. Dessa época, o que<br />

mais me lembro é que eu nunca tinha visto tanto balão. Era 1970 e o Brasil<br />

tinha acabado de ganhar a Copa. Eu saí na rua e via aquele monte de balão,<br />

era a coisa mais estranha, mais diferente que eu vi, porque a gente que<br />

vinha lá do mato não imaginava que tinha isso.<br />

Eu estudei até a quinta série. Não consegui passar mais de ano de<br />

jeito nenhum! Acho que as bagunças não deixavam e a confusão mental<br />

– 27 –


Breve história da Cooperafloresta e do Pedro,<br />

contada por ele mesmo<br />

também. Parece que coisa que tem aplicação prática a gente consegue até<br />

aprender, mas coisa que a gente não sabe pra que serve, fica difícil, pelo<br />

menos foi esse meu caso.<br />

Eu passei a minha fase jovem lá em São Paulo, até os dezenove anos.<br />

Na verdade eu nunca me identifiquei com a vida nas Vilas, sabe. Era muito<br />

ônibus cheio, desemprego. Eu achava que aquilo não era uma coisa certa.<br />

Eu tinha vontade de morar no sítio. A gente assistia àqueles filmes de “bang<br />

bang” e achava bonito o cara ser fazendeiro. Que se tivesse oportunidade<br />

de morar no campo, eu ia criar gado.<br />

Aí, quando eu tinha uns dezenove anos, uns amigos meus que eram<br />

crentes vieram participar de um batismo em Barra do Turvo e me convidaram.<br />

Nós saímos de lá de noite e chegamos de madrugada em Barra do Turvo.<br />

Tava tudo meio cinzento, por causa dessa cerração típica daqui. Quando o<br />

mundo começou a clarear, vi aquela montanha linda, maravilhosa... Achei<br />

aquilo fantástico... Eu era acostumado lá com São Paulo, que Deus me<br />

perdoe, mas com aquela água nojenta da Billings, e de repente você chegar<br />

num lugar e encontrar um rio atravessando a estrada de água cristalina... eu<br />

gamei nesse lugar.<br />

Sabe, desde criança eu ficava tentando entender isso, eu via um<br />

riacho enorme de água suja entrando na represa e eu sabia que o povo<br />

bebia daquela água, eu ficava espantado como é que pode a gente beber<br />

esse tipo de água. O esgoto lá na Vila andava por cima da terra. Era tudo<br />

nojento aquilo... Aí de repente você chega num lugar que tem água correndo<br />

transparente. Dá um choque, né?...<br />

Lá em São Paulo meu pai vivia de cavar poço, eu também nos<br />

intervalos ajudava ele, e com a entrada da SABESP 1 os trabalhos de poço<br />

estavam se acabando e meu pai tinha vontade de voltar pra terra também.<br />

E através dessa viagem que eu fiz com meus amigos (os crentes que eu te<br />

falei), aqui pra Barra do Turvo, falei pra meu pai desse lugar. Daí a gente<br />

vendeu o que tinha lá e veio pra cá. Isso foi lá pela década de 80, no final<br />

de 70 para o começo dos 80. Nessa época houve uma crise de desemprego<br />

na cidade de São Paulo, isso fez muita gente também sair de lá. Por causa<br />

1<br />

SABESP é a Companhia de Abastecimento do Estado de São Paulo.<br />

– 28 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

desse êxodo, muita gente vendeu o que tinha lá e foi pra roça. Só que<br />

chegava na roça, não tinha onde comercializar a produção e alguns não<br />

sabiam trabalha mais. Daí muitos tiveram que voltar pra cidade, pior do que<br />

saíram. Graças a Deus, nós viemos e estamos até hoje aí, grudado.<br />

Foto 2: Imagens da trajetória do Pedro<br />

No começo meu pai veio pra cá, procurou uma terra pra comprar,<br />

exatamente esse pedaço onde a gente mora hoje, e daí em seguida o José,<br />

meu irmão, tinha sido dispensado da firma, porque foi uma época de um<br />

– 29 –


Breve história da Cooperafloresta e do Pedro,<br />

contada por ele mesmo<br />

desemprego feroz. Trabalhava numa metalúrgica, naquela época o salário<br />

era bom. Aí eu acho que 1981 pra 1982 a gente comprou essa terra aqui,<br />

no princípio era de 6 alqueires depois a gente foi comprando mais.<br />

Outra parte da história é que eu fiquei desempregado lá em São Paulo<br />

também e vim pra cá, cheio das esperanças, achando que só porque tinha um<br />

trabalho pra fazer, a gente com vontade de trabalhar fazia, a gente se dá bem<br />

né... Tipo assim, eu tinha vinte e três anos, e você passar por uma situação<br />

de desemprego, uma pessoa que trabalhou a vida inteira, sempre ajudou em<br />

casa... de repente você cai numa situação de não ter nada pra fazer, isso é<br />

muito ruim. E eu voltei de lá nesse espírito muito aborrecido com o desemprego,<br />

cheio de saúde pra trabalhar. Eu tinha uma ilusão de que a gente tendo um<br />

pedaço de terra pra plantar e pra colher tudo se resolve, mas a coisa não é<br />

desse jeito, e a gente foi fazendo as coisas e estava vendo que não estava<br />

dando certo. Às vezes produzia alguma coisa, mas não tinha onde vender.<br />

Do ano 1983 a 1985 eu fiquei só aqui no sítio, daí meu irmão arrumou<br />

um emprego pra mim lá em São Paulo num trabalho que a gente já fazia<br />

antes e eu fui trabalhar pra lá. Num espaço de poucos meses a minha situação<br />

melhorou bastante porque eu ganhava um dinheirinho razoável lá, tinha<br />

condição de pagar uma pessoa pra trabalhar por mês aqui pra fazer o trabalho<br />

que eu estaria fazendo aqui. Nessa época, um dia de serviço meu lá era o<br />

suficiente pra pagar 20 dias de uma pessoa aqui, que trabalhava aqui na<br />

roça. Porém, hoje eu analiso que naquela época um dia de serviço de um<br />

homem aqui, gerava dinheiro pra pagar uma lata de óleo de soja...<br />

Bom, em 1985 eu voltei pro sítio, tinha uma firma que de vez e<br />

quando me contratava. A estratégia era: se eu ganhasse algum dinheiro<br />

fazia alguma coisa; se não eu ficava aqui no sítio trabalhando, e eu faço<br />

isso até hoje. Se me entra um dinheirinho, eu construo alguma coisa; se não<br />

entra, não construo nada, assim não me aperto! Sabe, eu tenho muito medo<br />

de ficar devendo pras pessoas e ficar louco! Mas esse trabalho foi diminuindo,<br />

a empresa foi pegando menos trabalho, esse espaço de um serviço pro outro<br />

foi ficando mais distante e a situação foi ficando mais difícil.<br />

Eu saí de uma situação que eu contribuía com a casa, saí de uma<br />

situação de provedor para uma situação de consumidor... Aí a impressão<br />

que a gente tem é que tudo em volta da gente vai desmoronando, pode ser<br />

– 30 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

até que não seja verdade tentando ser benevolente na situação, mas você<br />

começa a achar que as pessoas só te consideram pelo que você tem, não<br />

pelo que você é. Mas nesse tempo eu tive muito apoio também de outros<br />

irmãos que não moram aqui no sítio.<br />

Nessa época o sítio ainda não era pasto. Mas a terra toda era um solo<br />

tão desgastado que acho que por isso que venderam. Acho que era uma<br />

agricultura de coivara com feijão, milho, mandioca, arroz e porco. Mas tudo<br />

isso dava pouca produção. Mas era um povo que já tinha meio se equilibrado,<br />

eles não se batiam demais, tipo assim, parece que acharam um equilíbrio<br />

que não tinha grandes investimentos mas se sobrevivia, com dignidade,<br />

com casinhas de barro cobertas com sapé, bem caprichadinha.<br />

Daí a gente começou a plantar. Meu pai toda vida plantou coisas juntas,<br />

ele plantava mandioca junto com abóbora, com cana, com milho, com feijão<br />

de corda, banana bem pouca, muito pouca, mas plantava também... Às vezes<br />

ele não sabia direito, plantava um pesão bem alto já quase dando banana.<br />

Era tipo isso, a gente criava galinha, porco, pato, tudo solto zuando a roça.<br />

Depois adquirimos uns gados. Chegamos a ter mais de cem cabeças de gado.<br />

Daí a pastagem que a gente tinha não era o suficiente, tinha que ir lá pro<br />

Indaiatuba alugar pasto. Imagine, tinha que andar uns quinze quilômetros<br />

com o gado e chegava lá nem era pasto, era só uma quiçaça...loucura! Isso<br />

foi de 1990 até 1996. A gente também fazia farinha de mandioca, tentava<br />

vender, mas era muito barato e difícil de conseguir comércio.<br />

Do que minha memória lembra, as coisas antes da Cooperafloresta<br />

eram mais ou menos assim. Daí, lá por 1995, veio um cara trabalhar aqui<br />

na Barra do Turvo, o Osvaldinho. Ele veio da CATI 2 pra fazer acompanhamento<br />

pros agricultores e a especialidade dele era formar feiras. Ele formou uma<br />

feira no centro da Barra do Turvo, e foi legal porque a gente levava as coisas<br />

pra vender e sempre a gente trazia algum dinheirinho. Ele sempre percebeu<br />

alguma coisa de diferente na gente... Ele chegou assim meio cabreiro, dizia<br />

que queria vender o peixe, e o tal do peixe era a Agrofloresta. Mas ele<br />

cativou também pela forma que ele se coloca, difícil a gente ver um<br />

funcionário público que leva as coisas a sério, e o Osvaldinho se misturava<br />

2<br />

Casa da Agricultura, órgão de extensão rural do Governo de São Paulo.<br />

– 31 –


Breve história da Cooperafloresta e do Pedro,<br />

contada por ele mesmo<br />

com as pessoas, carregava caixa, andava pro mato, dormia em qualquer<br />

lugar, comia o que o agricultor comia... Ele não tinha luxo. Isso faz a gente<br />

respeitar, né?<br />

Osvaldinho, junto com o que hoje é SINTRAVALE 3 , mais o PROTER 4 e<br />

mais a entidade Visão Mundial 5 , mais o Nelson, organizaram um evento<br />

para o Ernest 6 vir aqui em Barra do Turvo pra falar de Agrofloresta. Isso foi<br />

lá no bairro Anhemas, na casa do Henrique ou na casa de algum irmão dele<br />

lá. Aí nós ficamos empolgados com a história. Depois de novo o Osvaldinho<br />

conseguiu levar a gente pra fazer um estágio lá na Bahia, na casa do Ernest.<br />

A Visão Mundial e até o Nelson mesmo ajudou com passagem. Aí passei uns<br />

dias lá na Bahia e voltei furioso pra fazer agrofloresta.<br />

Outra pessoa muito importante que tá com a gente desde o começo é<br />

o Nelson, que já comecei a falar. Ele chegou junto com o Ernst. No mesmo<br />

dia que conheci o Ernst conheci o Nelson, que está aqui até hoje.<br />

Daí, como eu já disse a gente foi pra Bahia, o Claudenir 7 também foi<br />

junto. Passamos uns dias lá. A gente tinha mais que observar do que fazer,<br />

porque era muito risco de pisar nas plantas, cortar plantas e o gringo ficava<br />

louco de bravo. Então eu não tinha pressa de fazer, porque eu sabia que tinha<br />

uma terra que podia fazer, errar e acertar quantas vezes fosse necessário.<br />

Bom, daí voltando aqui pra casa, a gente começou a botar Agrofloresta...<br />

eu plantava abóbora e banana no meio do sapezal e samambaia, em um<br />

3<br />

SINTRAVALE: Associação de Trabalhadores da Agricultura Familiar do Vale do Ribeira e Litoral<br />

Sul de São Paulo.<br />

4<br />

PROTER – Programa da Terra Assessoria, Pesquisa e Educação Popular no Meio Rural, fundado<br />

em 1985, é uma ONG (Organização não Governamental) sediada em Registro (SP), tendo como<br />

objetivo principal contribuir para a construção de novos modelos de desenvolvimento rural que<br />

permitam o aprofundamento da democracia, a redução das desigualdades sociais, a preservação<br />

do meio ambiente e o fortalecimento da agricultura familiar.<br />

5<br />

A Visão Mundial é uma organização não governamental cristã, brasileira, de desenvolvimento,<br />

promoção de justiça e assistência, que, combatendo as causas da pobreza, trabalha com crianças,<br />

famílias e comunidades a fim de que alcancem seu potencial pleno. Dedica-se a trabalhar lado a<br />

lado com as populações mais vulneráveis e a servir a todas as pessoas, sem distinção de religião,<br />

raça, etnia ou gênero.<br />

6<br />

Ernst Götsch é agricultor e pesquisador, grande inspirador do trabalho agroflorestal no âmbito da<br />

Cooperafloresta.<br />

7<br />

Claudenir Gonçalves é filho de Sezefredo Gonçalves. Ambos ajudaram na fundação da Cooperafloresta.<br />

– 32 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

lugar de terra magra, e as coisas não iam nem lascando. Quem salvou o time<br />

foi o seu Sezefredo que tinha uma terra boa, e ele era mais agricultor do que<br />

eu. Daí de vez em quando ele aparecia com algum resultado positivo. Uma<br />

coisa curiosa que eu percebia, é que sempre tivemos visita de gente<br />

interessada em agrofloresta, desde quando nós começamos. Sempre aparecia<br />

alguém pra ver, interessado, mesmo que a gente não tinha nada ainda, isso<br />

era curioso.<br />

Aí a coisa começou a crescer, foi entrado mais gente. Através da<br />

AOPA 8 e com a ajuda do Nelson, foi aberto espaço pra gente comercializar<br />

nossas coisas no Passeio Público, em Curitiba. Como tinha muita coisa nos<br />

matos por aí que era naturalmente Agrofloresta, tipo uma capoeira<br />

abandonada, um quintal abandonado, que as pessoas não tinham o hábito<br />

de botar veneno, e nem nada dessas coisas, as bananeiras que ficavam<br />

cresciam junto com o mato, algumas frutas também cresciam junto com o<br />

mato, e isso era uma coisa que o agricultor não tinha como comercializar,<br />

essa feira do Passeio Público abriu possibilidade pra isso, e quando ninguém<br />

tinha de onde tirar nenhum dinheirinho, aquilo veio que veio que nem uma<br />

luva, nós chegamos a ter trinta pessoas envolvidas nessa feira.<br />

Nessa época a prefeitura começou a ajudar. A Coopera tava crescendo,<br />

mas ainda tava crescendo mole, com gente que não tinha ideia do que<br />

tava fazendo, não tinha compromisso sério com a Agrofloresta, não tinha<br />

esse fanatismo doente que a gente tem, ou sadio, sei lá. Nessa época<br />

tinha muita coisa que gerava muito problema pra gente, e o povo numa<br />

miséria muito grande começava a reclamar na prefeitura que as coisas<br />

não tava dando certo. A Coopera tava grande, mas mole, cheia de<br />

problema, cheia de gente reclamando. Sabe, aquela dificuldade louca pra<br />

carregar o trem, e um monte de gente pra reclamar. A prefeitura parou de<br />

ajudar, e só depois que ela parou, uma coisa que parecia ser um grande<br />

mal, acabou sendo um grande bem, porque as pessoas que não queriam e<br />

não tinham compromisso começaram a sair, foram esvaziando... Aí baixou<br />

8<br />

AOPA: Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia, com forte atuação na Região<br />

Metropolitana de Curitiba e responsável pelo início do desenvolvimento de feiras orgânicas e<br />

agroecológicas na região, durante a década de 1990.<br />

– 33 –


Breve história da Cooperafloresta e do Pedro,<br />

contada por ele mesmo<br />

o número de pessoas, voltou para umas trinta de novo. Isso facilitou a<br />

vida, porque ela ficou com poucas pessoas, mas ficou mais forte. Isso foi<br />

o que ajudou a gente a ir estruturando tudo.<br />

Daí a gente resolveu criar uma associação, só que o povo tinha muito<br />

problema de documentação. Acabava que sempre alguém tinha problema<br />

com a documentação e atrapalhava o processo. Às vezes conseguia consertar<br />

de um e o outro falhava, e aí ficava aquela agonia.<br />

No Ano de 2001, a gente registrou a Associação. Com isso a gente teve<br />

a esperança de poder escrever projetos, que pudessem ser aprovados, pra<br />

gente ter recurso pra fazer as coisas que a gente acreditava. Por exemplo, a<br />

história dos banheiros secos, era um sonho que a gente tinha, porque 99%<br />

não tinham um banheiro pra usar, e a gente sabia a necessidade que era isso.<br />

Um dia, em parceria com a AOPA e mais algumas pessoas lá de Curitiba,<br />

conseguimos aprovar o projeto Iguatu, e esse projeto facilitou a vida muito,<br />

porque os agricultores podiam ir visitar o Ernst lá na Bahia, viram Agrofloresta,<br />

e depois teve dinheiro pra comprar muda e espalhar pela associação toda.<br />

Isso fez com que aumentasse a produção de uma forma violenta.<br />

Daí começou crescer a produção violentamente e a gente começou<br />

a fazer parte da Rede Ecovida 9 . E começamos a fazer as primeiras feiras<br />

fora da Barra do Turvo. Um tal de Marcio Carriel tinha um caminhão que<br />

buscava coisas no CEASA 10 . Como ele ia vazio, levava nossos produtos na<br />

feira orgânica do Passeio Público em Curitiba. Ele deixava a gente na feira<br />

e depois ia embora. Quando dava meio-dia, a gente desmontava a barraca,<br />

a guardava, desmontava as caixas e voltava de ônibus pra Barra do Turvo.<br />

Hoje a gente tem cento e dez famílias engajadas no trabalho, é uma média<br />

de 80 famílias que mais atuam na comercialização. A gente paga para os<br />

agricultores em média R$ 45.000,00 por mês, só que em compensação a<br />

gente tem uma média de R$ 22.000,00 de despesas por mês para poder<br />

9<br />

A Rede Ecovida é formada por agricultores familiares, técnicos e consumidores reunidos em<br />

associações, cooperativas e grupos informais que, juntamente com pequenas agroindústrias,<br />

comerciantes ecológicos e pessoas comprometidas com o desenvolvimento da agroecologia<br />

promovem a certificação participativa da produção agroecológica, no âmbito do Sul do Brasil.<br />

10<br />

CEASA é a Central de Abastecimento do Paraná.<br />

– 34 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

viabilizar essa comercialização. Isso quer dizer que a gente comercializa<br />

quase R$ 70.000,00 por mês em média. Mas também tem que pensar a<br />

história da variedade de produtos que as pessoas têm na mesa hoje.<br />

O fato é que a gente tem problemas hoje. Mas antes tinha gente que<br />

não tinha nem problema. Ficava na porta da prefeitura mendigando e hoje<br />

eu não sei se é pelo fato da prefeitura não dar mais nada, mas o povo saiu<br />

dali. As pessoas já estão se virando por conta própria. E isso a gente deve<br />

muito pelos técnicos que ajudaram e ajudam a gente até hoje. Por isso<br />

acho importante falar um pouco deles. Eu já falei do Osvaldinho e do<br />

Nelson, que segue trabalhando forte na organização, comercialização,<br />

assistência técnica ... mesmo sem recurso.<br />

Mais recente chegou o Artur, acho que em 2007. O curioso é que ele<br />

chegou aqui procurando Agrofloresta como quem procura Saci. Por que o<br />

povo falava que existia essa tal de Agrofloresta, mas ninguém via. Mas numa<br />

dessas andanças ele encontrou o Osvaldinho, que disse pra ele vir até a Barra<br />

do Turvo. Ele chegou e já foi numa reunião do Conselho da Cooperafloresta,<br />

e foi ficando, e se envolveu firme no trabalho. Eu fico imgainando que o<br />

Artur, assim como o Nelson, é um desses anjos que Deus põe no caminho<br />

quando a gente precisa.<br />

Além desses técnicos, teve vários que ajudaram, como o Japa. O nome<br />

dele era Tiago Mocelin. Fora o Japa, teve o Bernardo, que trabalhou aqui<br />

contratado. Outro presente que apareceu foi a Renata. Ela chegou num<br />

momento que os agricultores começaram a se envolver mais na organização<br />

da comercialização. Foi nesse contexto que chegou a Renata e por incrível<br />

que pareça, ela botou ordem na coisa. Às vezes eu fico pensando como uma<br />

professora de filosofia consegue fazer um trabalho desse, quem explica<br />

essas coisas? Bem, por isso acredito que ela também é um desses anjos que<br />

Deus coloca no nosso caminho. E olha que ela tá aqui há pouco tempo, acho<br />

que ela chegou aqui em 2011, mas mesmo assim ela já colocou seu nome<br />

na Cooperafloresta. Também tem o Marcio, que ajuda na comercialização.<br />

Ele é filho da terra. Nasceu aqui pertinho, mas precisou de ir pra Curitiba<br />

uns anos atrás. Lá em Curitiba ele até se deu bem, financeiramente ele<br />

tava bem, mas espiritualmente ele não tava e resolveu voltar. Ainda bem<br />

– 35 –


Breve história da Cooperafloresta e do Pedro,<br />

contada por ele mesmo<br />

pra nós que isso aconteceu, porque ele se encantou com a agrofloresta e<br />

comprou essa luta junto com a gente! Hoje ele é um espécie de coordenador<br />

da comercialização.<br />

Também tem o Carlos. Um dia apareceu o Carlos trazendo um pessoal<br />

que tinha chegado atrasado no centro da Barra do Turvo, e eu não conhecia<br />

ele. Ele foi ficando, a gente foi se conhecendo mais, ele foi se aproximando<br />

da Cooperafloresta, começou a trabalhar na comercialização. Teve um<br />

período que ele teve que assumir a comercialização e quase ficou louco.<br />

Hoje ele trabalha na educação dos jovens, já que ele era professor é o local<br />

onde mais se insere. Bem, esse trabalho começou há pouco tempo, mas o<br />

fato é que os jovens do curso gostam muito dele.<br />

Bem, além desses técnicos teve várias pessoas que passaram por<br />

aqui e contribuíram. Às vezes com uma frase de apoio do tipo: “Parabéns,<br />

você está no caminho certo”, “fique firme!”. Às vezes as pessoas não tinham<br />

mais do que contribuir que isso, mas isso também é importante! Isso porque<br />

tem uma coisa que une os técnicos, agricultores e visitantes – a Agrofloresta!<br />

Sabe, tem muita gente falando que o mundo está acabando. Outros<br />

dizem que o mundo está recomeçando. Eu prefiro ficar no lado dos que<br />

acreditam que o mundo tá recomeçando! Por isso estou aqui falando pra<br />

vocês de agrofloresta. Por que é a única coisa que vi que pode dar certo! E<br />

acho que esse povo todo que vem aqui visitar e trabalhar com a gente acha<br />

a mesma coisa. Fui convidado para fazer parte de um encontro lá pelos<br />

lados da Europa. Sabe, o que mais me chamou a atenção lá foi a estrutura<br />

que eles possuem para embalar as frutas que produzem. Mas eu não consigo<br />

entender como um povo com um clima daqueles pode ser chamado de rico.<br />

Quando eu cheguei lá, a temperatura tinha chegado a menos vinte e três<br />

graus, tinha morrido uns pés de pêssego. Dizem que tem época com tanta<br />

neve que cobre quase todas as árvores daquela fruta, o Kiwi, e mesmo<br />

assim eles conseguiam montar uma estrutura daquelas. Tudo bem que eles<br />

têm aqueles castelos com um monte de ouro (e olha que aquele ouro tem<br />

um cheiro danado de Brasil!!!), mas eles não podem ser chamados de ricos.<br />

Não sei se foi coincidência, mas quando voltei pra casa, tinha acabado de<br />

chover e estava um sol danado. Daí eu olhei pra a Agrofloresta de casa, vi<br />

aquelas folhas de abacate brilhando por causa do resto de água que tinha<br />

ali, aquele verde mais lindo, aquele sol e pensei: Rico é a gente.<br />

– 36 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Eu cometi muitos erros. Mas estou vendo que a agrofloresta é<br />

fundamental para toda humanidade. Eu falo isso por que a gente não consegue<br />

fazer tudo em uma geração. A gente tem que fazer experiências. Assim<br />

vamos aprendendo, fazendo e aprendendo a fazer. Tem uma coisa que eu<br />

sempre faço quando recebo visita. Eu levo o povo na divisa do sítio e falo:<br />

Gostaria de convidar vocês a olharem essas áreas e fazer um pensamento.<br />

Essa área aqui tem a mesma qualidade de solo do que essa outra área<br />

(Foto 8). O que mudou na nossa propriedade foi a atitude! Agora eu pergunto<br />

para vocês, qual tipo de área vocês querem deixar para seus filhos?<br />

Foto 3: À esquerda, a Agrofloresta da unidade Familiar de Pedro Oliveira.<br />

À direita, o uso do solo preponderante na unidade familiar de seu vizinho.<br />

Mas a gente mesmo antigamente tratava a natureza igual nosso<br />

vizinho. Uma época a gente queria aprender a fazer agricultura. Pagamos<br />

um trator de uma associação para virar a terra. Ele passou aqueles discos<br />

no solo e virou a terra toda para cima. Ficou a parte amarela pra cima e a<br />

parte preta para baixo. Essa terra ficou tão dura que parecia paralelepípedo.<br />

Hoje a gente sabe que têm organismos que são especialistas em viver na<br />

parte de cima, que recebe mais luz, mais ar, e têm aqueles que trabalham<br />

na ausência de luz e com pouco oxigênio. O que nós fizemos foi inverter a<br />

situação, matamos um sufocado e outro por insolação.<br />

Depois que a gente começou a trabalhar com Agrofloresta, hoje<br />

compreendo que há toda uma dinâmica, é uma coisa incrível para gente<br />

aprender. Em terra tão pobre a gente queria colher coisa de terra rica. Uma<br />

das coisas de fazer Agrofloresta é identificar o momento para ver o que a<br />

– 37 –


Breve história da Cooperafloresta e do Pedro,<br />

contada por ele mesmo<br />

terra pode me dar agora, e não o que eu quero tirar dela. Porque na<br />

agricultura convencional a gente não pensa isso, só vem e tira. Não há<br />

relação de amor com a terra. Isso faz com que a gente não compreenda que<br />

a terra é um organismo vivo, que é como nossa mãe. Que vai sempre no<br />

caminho da riqueza. A vida anda no sentido do pobre para o rico. A gente<br />

que às vezes luta em querer ficar sempre no sentido da pobreza.<br />

Bem, acho que essa é a coisa que minha memória lembra... Deve ter<br />

um monte de outras coisas, mas a gente vai ficando velho, chorão e<br />

esquecido. Por último, queria dizer que tudo o que tá vivo, vive pra fazer do<br />

mundo um lugar melhor. Não há sustentabilidade no empate! A função de<br />

todo ser vivo é melhorar o mundo! Aqueles que não conseguem contribuir,<br />

acabam vivendo com depressão. Hoje tá meio na moda falar dessa tal de<br />

sustentabilidade, né? Mas pra mim sustentabilidade na verdade é o papel<br />

do indivíduo, dando sentido à própria vida, contribuindo com a história do<br />

mundo. Por isso o que importa é o que estamos fazendo. Lógico que a gente<br />

tem problemas, mas quem não tem? O legal é que a gente sabe que está no<br />

caminho certo. Imagine um alvo que você vê, mas não tem mais nada além<br />

dele. Isso faz com que você não tenha noção de distância ou profundidade.<br />

Esse alvo é a agrofloresta. Às vezes você lança o dardo, ele cai muito pra<br />

baixo, muito pro alto, mais pra esquerda ou direita do centro. Mas de<br />

qualquer forma, o simples fato de atirar na direção dele, você já faz pontos!<br />

Claro que o ideal seria a gente acertasse o centro, mas a agrofloresta é tão<br />

perfeita, que por mais que você erre, ela torna sua vida possível.<br />

Acertar o centro desse alvo é trabalho para gerações.<br />

Referências<br />

ICHIKAWA, E. Y.; SANTOS, L. W. dos. Vozes da História: Contribuições da História<br />

Oral à Pesquisa Organizacional. Anais... ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO<br />

DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO, 27, 2003, Atibaia:<br />

ANPAD, 2003.<br />

SOUSA SANTOS, B. (Org.). As Vozes do Mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2009.<br />

– 38 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 3<br />

Agroflorestas e sistemas agroflorestais<br />

no espaço e no tempo 1<br />

Walter Steenbock,<br />

Rodrigo Ozelame da Silva,<br />

Luis Claudio Maranhão Froufe e<br />

Carlos Eduardo Seoane<br />

Introdução<br />

Conforme será retratado em diferentes capítulos deste <strong>livro</strong>, a prática<br />

agroflorestal realizada pelas famílias de agricultores associados à<br />

Cooperafloresta tem sido uma estratégia de reprodução social na qual estão<br />

inseridos aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais.<br />

Neste capítulo procura-se descrever brevemente os princípios e<br />

fundamentos do trabalho agroflorestal e de que forma as agroflorestas vêm<br />

sendo estabelecidas, ao longo do tempo. Procura-se descrever como elementos<br />

das paisagens das unidades familiares 2 dos agricultores vêm sendo alteradas,<br />

em decorrência de ser a prática agroflorestal o principal sistema produtivo<br />

dessas unidades. Ao final, busca-se uma definição ampla para as agroflorestas<br />

e os sistemas agroflorestais desenvolvidos no âmbito da Cooperafloresta.<br />

1<br />

Os autores agradecem a Bernardo B. S. Niebuhr por sua contribuição em vários aspectos do texto.<br />

2<br />

Entende-se aqui por Unidade Familiar o espaço onde o associado da Cooperafloresta declara<br />

sob a responsabilidade de sua família. Esta definição se justifica em função da vasta gama de<br />

situações presentes na Cooperafloresta em relação à titulação das unidades familiares, como a<br />

presença de Quilombos institucionalizados ou em processo de institucionalização, terras sem<br />

titulação e outras situações.<br />

– 39 –


Agroflorestas e sistemas agroflorestais<br />

no espaço e no tempo<br />

Trabalhar junto com a sucessão natural –<br />

uma prática comum há muito tempo<br />

A prática agroflorestal é, em uma análise simples, um processo de<br />

produção de alimentos, uma prática de agricultura. A agricultura, entretanto,<br />

é definida nos dicionários de língua portuguesa como “a arte de cultivar os<br />

campos” ou o “cultivo da terra, lavoura.” O prefixo “agro” tem origem no<br />

verbete latino agru, que significa “terra cultivada ou cultivável”; “campo”.<br />

De acordo com Leach (1997), seria uma visão reducionista caracterizar<br />

a ampla diversidade de sistemas de produção de alimentos (e de outros<br />

produtos) existentes ao redor do mundo apenas como sinônimo de agricultura,<br />

se neste conceito estiver inserido apenas o “cultivo dos campos”.<br />

O espaço florestal tem sido, ao longo da história, o espaço no qual se<br />

introduzem práticas produtivas. Com exceção das regiões dos polos e de<br />

ocorrência de alguns poucos ecossistemas, não existe espaço terrestre em<br />

que a sucessão natural, no rumo da floresta diversificada, não esteja atuando<br />

constantemente. É, entretanto, em ambientes de clima tropical que essa<br />

atuação é mais marcante. Se é forçoso reconhecer que o modelo da agricultura<br />

convencional moderna tem como foco o controle total desta sucessão,<br />

priorizando o uso da mecanização e de insumos químicos para este fim,<br />

várias práticas de produção de alimentos, em diferentes regiões, por diferentes<br />

grupos e em distintas épocas se utilizaram e se utilizam da sucessão natural<br />

como aliada do processo produtivo.<br />

Assim, o uso das florestas, ao longo da história, não pressupõe<br />

necessariamente a transformação delas em uma paisagem de monocultura,<br />

mas resultando em mosaicos de florestas manejadas e sistemas<br />

agroflorestais. No manejo desses mosaicos, pode-se destacar o plantio de<br />

espécies desejadas, introdução de novas espécies, eliminação das espécies<br />

competidoras, abertura de clareiras, uso do fogo, entre outras técnicas.<br />

Nesse processo, ocorre uma ampla variedade de sistemas de domesticação<br />

das paisagens (CLEMENT, 1999), associada com sistemas de domesticação<br />

de espécies, que podem atuar no sentido da conservação ambiental, de<br />

forma associada ao processo produtivo.<br />

Exemplos desses manejos estão sendo cada vez mais estudados e<br />

disponibilizados na literatura.<br />

– 40 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Entre esses exemplos, a formação de solo denominado Terra Preta de<br />

Índio (TPI) tem recebido cada vez mais atenção. A TPI tem sido interpretada<br />

como produto da domesticação da paisagem sob grandes adensamentos<br />

populacionais ribeirinhos desde o Peru, Colômbia até a foz do Rio Amazonas<br />

e Ilha de Marajó (WOODS, McCANN, 1999). Este tipo de solo, com teor de<br />

carbono, fósforo e cálcio superiores às áreas circunvizinhas, tem sido<br />

relacionado a depósitos, intencionais ou não, datados do meio do Holoceno,<br />

de matéria orgânica (como restos de comida, ossos, carvão e cinzas),<br />

fragmentos de vestimenta, vasos de cerâmica e ferramentas de pedra (NEVES,<br />

2003). As áreas em que ocorre TPI foram enriquecidas com plantas trazidas<br />

pelo homem ou vindas espontaneamente, sempre em sistemas consorciados,<br />

formando pomares caseiros. Tais sistemas incluíam plantas com o mais alto<br />

grau de domesticação, mas também espécies selvagens ou incipientemente<br />

domesticadas (de acordo com a classificação de Clement, 1999).<br />

Apresentavam maior diversidade de espécies e densidade de plantas nos<br />

cultivos do que em áreas adjacentes, além da presença de endemismos,<br />

sendo recentemente incluídas entre os “hotspots” de biodiversidade<br />

(HECKENBERGER et al., 2003). Atualmente, os agricultores locais preferem<br />

plantar nos solos de TPI (MAJOR et al., 2005) e mostram a importância<br />

dessas áreas para a experimentação e plantios de espécies conhecidas como<br />

mais exigentes.<br />

Como outro exemplo de manejo ou domesticação de paisagens, na<br />

borda entre os Cerrados e a Floresta Amazônica, no Centro-Oeste brasileiro,<br />

os Kayapó tiveram suas práticas agroflorestais descritas por Darrell Posey<br />

(1984). São comuns entre os Kayapó critérios de zoneamento de áreas,<br />

criação de ilhas de vegetação no cerrado e de clareiras na mata, manejo do<br />

fogo para estimular a caça, adubação específica de determinadas plantas,<br />

produção de adubo orgânico pelo uso de vegetação e cupinzeiros e introdução<br />

de agentes biológicos para controle de formigas. O conhecimento é<br />

especializado e, de 120 espécies inventariadas nas ilhas de vegetação, pelo<br />

menos 90 foram reconhecidas como sendo plantadas. Essas intervenções se<br />

dão em uma multiplicidade de formas e locais: junto às casas, dentro do<br />

perímetro da aldeia, com a formação de pomares, hortas medicinais e de<br />

plantas manufatureiras; nas roças que distam de 5 a 10km da aldeia; nas<br />

– 41 –


Agroflorestas e sistemas agroflorestais<br />

no espaço e no tempo<br />

trilhas que ligam aldeias e roças entre si; em pequenas clareiras feitas nas<br />

trilhas; em locais onde encontram clareiras naturais ou onde derrubam<br />

árvores para a coleta de madeira ou de mel; em sítios abertos em memória<br />

do pai ou da mãe que morrera; ou em micronichos especiais, tais como nas<br />

proximidades de rochas provenientes de basalto (POSEY, 1984). Essas<br />

práticas, portanto, não são aleatórias, mas sim orientadas por um zoneamento,<br />

o qual cria uma diversidade de estágios de sucessão, oportunizando uma<br />

grande diversidade de recursos, em ciclos determinados pelo clima e<br />

previsíveis pelo movimento dos astros e constelações, expresso, de modo<br />

geral, na cosmologia deste grupo.<br />

No Sul do Brasil, em assentamentos rurais do planalto norte de Santa<br />

Catarina, o manejo de bracatingais – formações em que a bracatinga (Mimosa<br />

scabrella Benth.) é espécie dominante – tem sido responsável pela maior parte<br />

da renda familiar (STEENBOCK, 2009). Embora a legislação brasileira<br />

considere os bracatingais como florestas nativas, estes são em geral artefatos<br />

humanos, paisagens manejadas para a promoção da bracatinga, que apresenta<br />

múltiplo uso (lenha, carvão, tábuas, escoras etc.). Esse manejo inclui um<br />

grande número de estratégias de intervenção, as quais, se não forem praticadas,<br />

não geram ou não mantêm a formação florestal. No conjunto dessas estratégias,<br />

a preocupação em manter e promover o banco de sementes e o banco de<br />

plântulas, bem como em procurar garantir a rápida cobertura do solo e o<br />

acréscimo de fertilidade após a renovação dos bracatingais, via sucessão<br />

natural secundária, são aspectos fundamentais, e indicam o conhecimento e o<br />

uso da sucessão natural no manejo (STEENBOCK, 2009).<br />

Outro exemplo de manejo da sucessão natural, no processo produtivo,<br />

é a agricultura de coivara, amplamente praticada por comunidades rurais no<br />

Brasil, sendo uma prática tradicional na região do Vale do Ribeira, onde a<br />

Cooperafloresta passou a atuar.<br />

De acordo com Martins (2005), a concepção básica da agricultura de<br />

coivara é a abertura de clareiras na floresta, em diferentes estágios<br />

sucessionais, a aplicação de fogo (incorporando nutrientes ao solo) e o<br />

estabelecimento e o manejo de uma comunidade de plantas, que apresenta<br />

uma grande diversidade inter e intraespecífica. Portanto, as espécies que<br />

compõem uma comunidade de roça teriam surgido por domesticação<br />

– 42 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

simultânea de espécies invasoras de clareiras (algumas, provavelmente, de<br />

domesticação incidental, segundo a classificação proposta por CLEMENT,<br />

1999), guiadas pela habilidade de combinação ecológica daquelas espécies.<br />

Após a roça, são tradicionalmente mantidos pousios de dez a quinze anos,<br />

recuperando os nutrientes retirados durante as colheitas e restabelecendo as<br />

características florestais.<br />

Nas roças do sistema de agricultura de coivara, o padrão de<br />

domesticação se direcionou para espécies perenes, ao contrário do que<br />

prevaleceu em áreas de clima temperado e mediterrâneo, onde plantas anuais<br />

de ciclo curto, como os cereais e leguminosas, formam a base da dieta<br />

(MARTINS, 2005). Entre essas espécies, prevalecem a mandioca (Manihot<br />

esculenta), a batata-doce (Ipomoea batatas), a taioba (Xanthosma sp), o ariá<br />

(Maranta lutea), a araruta (Maranta arundinacea) e o inhame (Dioscorea<br />

alata), entre outras (MARTINS, 2005), cuja parte comestível é, em geral, a<br />

raiz ou o tubérculo, ou seja, os órgãos subterrâneos.<br />

O uso de órgãos subterrâneos é uma adaptação cultural dos agricultores<br />

dos trópicos, em resposta aos problemas de armazenamento inerentes a<br />

climas quentes e úmidos. Em contraposição aos grãos, as raízes não precisam<br />

ser colhidas todas ao mesmo tempo e nem em uma estação específica. O<br />

ritmo de colheita é ditado pelo homem, e não pela planta, pois o<br />

armazenamento é feito na natureza e o abastecimento de alimentos pode ser<br />

garantido o ano todo. Neste sistema, baseado na propagação vegetativa, o<br />

agricultor geralmente planta logo depois que colhe. Como a produção não é<br />

concentrada numa única época, o plantio também não é concentrado. Em<br />

termos de demografia, esta prática cria uma heterogeneidade etária dentro da<br />

roça, ou seja, as gerações são sobrepostas (MARTINS, 2005).<br />

Em relação à mandioca (e provavelmente a outras espécies), identificase<br />

que a possibilidade de trocas alélicas entre gerações e entre as espécies da<br />

roça e seus parentes selvagens permitem a hibridação inter e intraespecífica,<br />

produzindo recombinantes e amplificando a variabilidade genética (MARTINS,<br />

2005; EMPERAIRE 2002, PERONI, 2007). Esses aspectos, associados ao<br />

mecanismo cultural de seleção de propágulos para novos plantios e da troca de<br />

variedades cultivadas dentro ou entre comunidades de agricultores, aumentam<br />

em muito a variabilidade e a capacidade de adaptação dos cultivos (MARTINS,<br />

– 43 –


Agroflorestas e sistemas agroflorestais<br />

no espaço e no tempo<br />

2005; EMPERAIRE 2002, PERONI, 2007). Caboclos do baixo Rio Negro<br />

(AM), por exemplo, utilizam 38 variedades de mandioca, enquanto populações<br />

indígenas do noroeste amazônico, tais como os Baniwa e os Tukano, utilizam<br />

74 e 89 variedades da espécie, respectivamente (EMPERAIRE, 2002). No<br />

litoral sul do Estado de São Paulo (municípios de Cananéia, Iguape e Ilha<br />

Comprida), grupos caiçaras utilizam 58 variedades de mandioca e, no litoral<br />

norte daquele estado (município de Ubatuba), estes grupos utilizam 53<br />

variedades da espécie (EMPERAIRE 2002, PERONI, 2007).<br />

Assim, as comunidades de caboclos, índios e caiçaras, ao produzirem<br />

roças, estão potencialmente mantendo e amplificando a diversidade genética<br />

dos cultivos, além da conservação in situ de várias espécies autóctones<br />

(MARTINS, 2005; EMPERAIRE 2002, PERONI, 2007). Por outro lado, os<br />

ciclos das roças na agricultura de coivara promovem, ao longo do tempo, um<br />

mosaico de unidades de paisagem formadas por florestas secundárias em<br />

diferentes estágios sucessionais, amplificando a biodiversidade local<br />

(SIMINSKI, 2004; SIMINSKI E FANTINI, 2007). Dean (1996), comparando<br />

a agricultura de coivara com os sistemas agrícolas convencionais, aponta que<br />

a primeira é menos invasiva, porque imita a escala natural de perturbação e,<br />

em vez de congelar permanentemente o processo de sucessão, apenas o<br />

explora de forma temporária.<br />

A intenção de trazer os exemplos descritos acima a este capítulo não é<br />

a de esgotar o tema, mas sim de procurar fundamentar que, apesar de<br />

negligenciados pela agricultura convencional moderna, os sistemas produtivos<br />

tradicionais se utilizam da sucessão natural de diferentes formas, acabam<br />

sendo grandes responsáveis pela configuração das paisagens e da<br />

sociobiodiversidade e, potencialmente, pelo acréscimo de fertilidade do solo<br />

e produtividade primária. Essa utilização da sucessão natural é o eixo<br />

formador das práticas agroflorestais, no âmbito da Cooperafloresta.<br />

Fundamentos gerais de sistemas agroflorestais e agroflorestas<br />

Para o ICRAF (International Centre of Research in Agroforestry),<br />

“sistemas agroflorestais (SAFs) são combinações do elemento arbóreo com<br />

herbáceas e (ou) animais, organizados no espaço e (ou) no tempo”.<br />

– 44 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

A legislação brasileira, em diferentes instrumentos legais (BRASIL,<br />

2009, BRASIL, 2010), tem definido sistemas agroflorestais como “sistemas<br />

de uso e ocupação do solo em que plantas lenhosas perenes são manejadas<br />

em associação com plantas herbáceas, arbustivas, arbóreas, culturas<br />

agrícolas, forrageiras em uma mesma unidade de manejo, de acordo com<br />

arranjo espacial e temporal, com alta diversidade de espécies e interações<br />

entre estes componentes”.<br />

Os SAFs, quando caracterizados pela alta diversidade de espécies e<br />

pela ocupação vertical de diversos estratos são comumente chamados, na<br />

literatura, de SAFs multiestrata, ocorrendo na Indonésia (SUYANTO et al.,<br />

2005), em Gana (ISAAC et al., 2007) e em diversos países da América<br />

Latina (BENJAMIN et al., 2001; CAJA-GIRON, SINCLAIR, 2001; STAVER<br />

et al., 2001; ANGEL-PÉREZ, MENDOZA B., 2004; GRANADOS, 2005;<br />

SILVEIRA 2005; HOLGUIN et al., 2007). No Brasil, são identificados na<br />

Amazônia Ocidental (LEHMAN et al., 2001; SANTOS et al., 2002), no sul<br />

da Bahia (SCHROTH et al., 2002), na região do Alto Vale do Ribeira (FROUFE<br />

et al., 2011) e na Floresta Atlântica do litoral norte do Rio Grande do Sul<br />

(VIVAN 2000, 2002), além de várias outras regiões. Os SAFs multiestrata<br />

são geralmente do tipo sucessionais, quando implantados e manejados com<br />

a tendência de imitar a dinâmica de sucessão ecológica de restauração<br />

natural de uma floresta nativa, porém com composição e manejo que atendam<br />

à segurança alimentar e ao aumento da renda familiar (MICHON, De<br />

FORESTA, 1998 apud MAY, TROVATTO, 2008).<br />

De forma geral, os SAFs multiestrata sucessionais apresentam grande<br />

potencial para a conservação da biodiversidade (McNELLY, SCHROTH,<br />

2006; FROUFE, SEOANE, 2011), podendo ser utilizados para a recuperação<br />

de pastagens (FRANCO, 2000), de áreas degradadas (YOUNG, 1997), de<br />

fragmentos florestais (AMADOR, VIANA, 1998) e de áreas de Reserva Legal<br />

(BELTRAMI et al., 2006; RODRIGUES, GALVÃO, 2006). Outros benefícios<br />

são o favorecimento da sustentabilidade ambiental, por meio da ciclagem de<br />

nutrientes no ambiente edáfico (FRANKE et al., 1998), a atenuação de<br />

extremos climáticos (LIN, 2007; GAMBOA, CRIOLLO, 2011) e o elevado<br />

potencial de sequestro de carbono (SCHOENEBERGER, 2009; FROUFE et<br />

al., 2011). Em princípio, são os sistemas de produção agrícola com o maior<br />

– 45 –


Agroflorestas e sistemas agroflorestais<br />

no espaço e no tempo<br />

potencial de minimizar os impactos da agricultura nos mais importantes<br />

biomas brasileiros (KHATOUNIAN, 2001).<br />

Por mais que as definições acima retratem, de forma ampla, a paisagem<br />

ou os impactos positivos resultantes de uma prática agroflorestal, não estão<br />

nelas embutidos os mecanismos de uso do processo de sucessão ou das<br />

intervenções de manejo associadas a esta prática.<br />

A fundamentação conceitual do trabalho da Cooperafloresta partiu,<br />

de forma expressiva, dos conceitos propostos por Ernst Götsch (citado no<br />

capítulo 2). Para Götsch (1997), “os sistemas agroflorestais, conduzidos<br />

sob uma lógica agroecológica, transcendem qualquer modelo pronto e<br />

sugerem sustentabilidade por partir de conceitos básicos fundamentais,<br />

aproveitando os conhecimentos locais e desenhando sistemas adaptados<br />

para o potencial natural do lugar”. Buscando exatidão para o termo<br />

sustentável, Götsch (1997) define que “uma intervenção é sustentável se o<br />

balanço de energia complexificada e de vida é positivo, tanto no subsistema<br />

em que essa intervenção foi realizada quanto no sistema inteiro, isto é, no<br />

macroorganismo planeta Terra; sustentabilidade mesmo só será alcançada<br />

quando tivermos agroecossistemas parecidos na sua forma, estrutura e<br />

dinâmica ao ecossistema natural e original do lugar da intervenção e quando<br />

se fizer agricultura sem o uso de máquinas pesadas, sem adubos trazidos<br />

de fora do sistema e sem agrotóxicos”.<br />

No âmbito da Cooperafloresta, costuma-se chamar de agrofloresta<br />

uma paisagem formada a partir de intervenções baseadas nesta noção de<br />

sustentabilidade, em uma área definida, cuja cobertura anterior pode ser um<br />

pasto, uma lavoura ou uma capoeira (floresta secundária), em diferentes<br />

estágios de sucessão.<br />

Na implantação de uma agrofloresta, o material vegetal existente é<br />

cortado e disposto de forma ordenada e com arranjo definido no solo, sem a<br />

utilização de fogo. Após, efetua-se um plantio adensado e diversificado,<br />

planejado para a composição dos diferentes estratos verticais da agrofloresta.<br />

Procurando imitar os processos naturais, planta-se uma quantidade de<br />

sementes ou propágulos muito maior do que a que se espera de plantas<br />

adultas, considerando-se os efeitos da seleção de indivíduos que ficarão no<br />

sistema, seja naturalmente, seja a partir do manejo.<br />

– 46 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Em ambientes naturais, principalmente em ambientes declivosos,<br />

geralmente se acumulam solo e matéria orgânica em locais de microrrelevo<br />

côncavo. Nesses locais, em florestas sem manejo, consórcios vegetais típicos<br />

de florestas em estágios mais avançados de sucessão se desenvolvem ao lado<br />

dos consórcios típicos de etapas anteriores, que vegetam nos locais de<br />

microrrelevo convexo, atraindo e alimentando micro e macro-organismos que<br />

aos poucos dinamizam a evolução de todo o sistema. Por outro lado, nas<br />

etapas iniciais da sucessão natural, a pequena capacidade de armazenar<br />

água e a baixa quantidade ou disponibilidade de nutrientes minerais que<br />

regulam a atividade vegetal não possibilita a captação máxima de energia<br />

solar, nem mesmo se fosse possível serem disponibilizados nutrientes em<br />

quantidades suficientes. Nessas condições, a produção de biomassa de baixa<br />

digestibilidade pelos micro-organismos é condição imprescindível para o<br />

acúmulo da matéria orgânica que possibilitará o aumento da capacidade<br />

produtiva do ambiente. As plantas típicas desses consórcios e etapas<br />

produzem justamente este tipo de biomassa, que se caracteriza por elevada<br />

quantidade de carbono em relação à quantidade de nitrogênio. Nas<br />

agroflorestas, para a adaptação das espécies aos ambientes, esses são alguns<br />

aspectos considerados.<br />

Ao longo do tempo, após a implantação de uma agrofloresta, várias<br />

espécies de plantas originadas de regeneração natural são promovidas,<br />

ampliando a densidade de indivíduos e a diversidade de espécies. Procura-se<br />

manter, a cada etapa de sucessão da agrofloresta, espécies adequadas às<br />

condições de luminosidade e fertilidade em que ela se encontra, tanto<br />

considerando a agrofloresta como um todo quanto cada estrato (ou cada<br />

andar) dela.<br />

Nas agroflorestas, há um manejo intensivo da vegetação, especialmente<br />

no plantio, na poda e na disposição do material podado no solo. Constantemente,<br />

são plantadas novas espécies, aproveitando-se nichos específicos;<br />

paralelamente, retiram-se galhos ou, por vezes, árvores inteiras, de espécies e<br />

indivíduos que contribuíram no processo de sucessão, mas que não devem<br />

mais fazer parte do sistema, por não estarem mais adaptados à nova etapa do<br />

processo sucessional. Todo o material podado é picado e disposto de forma a<br />

facilitar o processo de decomposição, garantir a cobertura do solo e reduzir a<br />

– 47 –


Agroflorestas e sistemas agroflorestais<br />

no espaço e no tempo<br />

regeneração de espécies inadequadas, considerando-se a adaptação ou não<br />

delas aos diferentes estágios de sucessão da agrofloresta.<br />

Resumidamente, entre as principais técnicas relacionadas à prática<br />

agroflorestal, estão: plantar ao mesmo tempo plantas que ocuparão todos os<br />

andares e nichos ao longo do processo sucessional; usar cada planta conforme<br />

o nicho e função que exerce no ecossistema do qual se origina; plantar<br />

predominantemente por sementes e em quantidade suficiente para que se<br />

desenvolvam plântulas em quantidades muito maiores que as que se tornarão<br />

adultas; promover espécies e indivíduos provenientes da regeneração natural;<br />

podar de acordo com estado sanitário e a função ecológica que cada indivíduo<br />

está realizando no ambiente que o circunvizinha e usar todo o material<br />

podado possível para cobrir o solo e incrementar a ciclagem de nutrientes.<br />

Com base nas dinâmicas naturais e intervenções discutidas acima, a<br />

prática da agrofloresta visa potencializar os processos de acumulação de<br />

biomassa. Buscam-se, dessa maneira, sistemas altamente produtivos e, pelos<br />

mesmos motivos, altamente eficientes em funções ambientais mais amplas<br />

como a fixação de carbono e a manutenção da integridade do ciclo hidrológico.<br />

Medindo as agroflorestas no espaço e no tempo<br />

Foi a partir dos fundamentos descritos brevemente acima que a<br />

Cooperafloresta alicerçou a implantação de agroflorestas, as quais se tornaram<br />

a principal prática produtiva dos agricultores associados.<br />

Visando identificar a área de agroflorestas e de outros usos do solo nas<br />

unidades familiares no âmbito da Cooperafloresta, foram georreferenciados<br />

os diferentes usos de solo em cada uma delas, em conjunto com seus<br />

responsáveis. Durante a coleta de dados a campo (realizada com GPS de<br />

mão), cada tipo de uso foi indicado pelo agricultor responsável. Com tal<br />

informação, foram confeccionados mapas georrefenciados de uso e ocupação<br />

do solo.<br />

Em 13 unidades de produção, foi também solicitado que cada agricultor<br />

responsável indicasse qual era o uso do solo na unidade antes da experiência<br />

da prática agroflorestal. A partir da indicação dos limites geográficos dos<br />

diferentes tipos de uso anteriores, foram marcados os pontos que indicavam<br />

esses limites, formando o que se denominou “mapas históricos”.<br />

Os mapas foram elaborados utilizando-se o programa Arc View GIS 3.3.<br />

– 48 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Paisagens agroflorestais<br />

Até o presente momento, foi georreferenciada 90% da área total das<br />

unidades familiares dos agricultores associados à Cooperafloresta, totalizando<br />

1.347,27 hectares mapeados. A área média das unidades de produção é de<br />

25.42 ha (variando de 0.31 a 371,04 ha).<br />

A partir deste trabalho, pode-se constatar que, em média, 16% da<br />

área das unidades familiares correspondem a agroflorestas, implantadas em<br />

diferentes épocas; 58% da área são florestas em estágio inicial ou médio de<br />

regeneração; 13% da área são florestas em estágio avançado de regeneração<br />

e apenas 13% da área das unidades de produção são utilizadas para outros<br />

fins (geralmente a área da sede e das pequenas criações).<br />

A área total de agroflorestas, em cada unidade, constitui-se no<br />

somatório de áreas de agroflorestas implantadas em diferentes anos. Assim,<br />

é comum, em cada unidade, haver agroflorestas de diferentes idades e<br />

diferentes tamanhos, distribuídas de forma heterogênea no espaço (Figura 1).<br />

Figura 1: Mapa de uso e ocupação do solo de Sidinei Maciel<br />

(Cooperafloresta, 2011-2012)<br />

– 49 –


Agroflorestas e sistemas agroflorestais<br />

no espaço e no tempo<br />

No exemplo de mapa indicado na Figura 1, correspondente à<br />

unidade familiar de Sidinei Maciel, percebe-se que existem, na Unidade,<br />

sete agroflorestas, implantadas nos anos de 2003, 2005, 2006, 2007 e<br />

2010, as quais totalizam, neste caso, 2,64 hectares.<br />

De acordo com os agricultores, é importante a implantação gradativa<br />

de novas agroflorestas, ao longo do tempo, seja visando manter espaços de<br />

produção de espécies adaptadas a diferentes estágios de sucessão no conjunto<br />

da área de cada unidade, seja visando implantar agroflorestas cada vez mais<br />

“completas”, ou seja, cada vez mais densas, com mais potencial produtivo e<br />

com maior diversidade vegetal, em seus diferentes “andares”.<br />

Considerando esses aspectos, tem havido uma tendência de redução<br />

na área das novas agroflorestas, em comparação com a área utilizada para<br />

a implantação de agroflorestas mais antigas. Por outro lado, há também<br />

uma tendência de aumento do número de agroflorestas ao longo do tempo<br />

(Figura 2).<br />

Figura 2: Área média e número médio de agroflorestas ao longo do tempo<br />

(tendo no eixo das abcissas diferentes classes de idade das agroflorestas)<br />

(Cooperafloresta, 2011-2012).<br />

– 50 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Para que as agroflorestas possam ser mais “completas”, os agricultores<br />

relatam que é importante otimizar o trabalho em áreas menores, ampliando<br />

o número de áreas, e não o tamanho de cada área, conforme indica o relato<br />

a seguir:<br />

Trabalhando aos pouquinhos você vai fazendo. Não precisa de tanta terra como<br />

acontece em outros lugares da onde eu vim. Precisa ter muita terra e toda<br />

maquinada. Aqui não, aqui você acha um pedacinho, faz e o resultado aparece.<br />

Se torna parte de sua vida (Maria de Lurdes, citado por SILVA, 2011).<br />

Em função disso é que existe a tendência indicada no gráfico da<br />

Figura 2. Enquanto o número de agroflorestas cresceu 605% nos últimos<br />

16 anos (de 19 AFs para 115 AFs atualmente mapeadas), a área média<br />

das agroflorestas reduziu 52,4% (de 2,90ha para 1,38ha), nesse mesmo<br />

período. É da área das agroflorestas que provém quase a totalidade da renda<br />

e da segurança alimentar dos agricultores associados à Cooperafloresta.<br />

Considerando-se apenas o valor dos produtos comercializados, pode-se inferir<br />

um aumento médio de 71% na renda anual dos agricultores associados à<br />

Cooperafloresta, após a experiência agroflorestal. Antes do envolvimento na<br />

Associação, a renda anual era de no máximo 2 salários mínimos por família.<br />

No ano de 2011, a média da renda anual foi de R$ 3.513,00 por família<br />

(mais de 5 salários mínimos por família) (COSTA E SILVA, 2012), sendo<br />

muito superior para agricultores mais envolvidos nas práticas agroflorestais.<br />

Além disso, relacionado ao aumento de renda proveniente do valor dos<br />

produtos comercializados, há um aumento do autoconsumo, no sentido da<br />

segurança alimentar, como indica o trecho a seguir:<br />

Há 10 anos atrás, eu, minha esposa e um menino gastávamos R$ 250,00<br />

a R$ 300,00 por mês, de rancho. Hoje, o menino cresceu e veio mais uma,<br />

que está com 5 anos. Hoje a gente gasta de R$ 120,00 a R$ 150,00 por<br />

mês. A família aumentou, o tempo passou e hoje eu gasto menos, e como<br />

melhor. Quando a feira é muito boa eu chego a tirar R$ 800,00 a R$ 900,00<br />

por quinzena. A média é de R$ 600,00 a R$ 700,00 por quinzena. Mas a<br />

maior parte das plantas tá começando a produzir agora. E destes R$ 600,00,<br />

sobra mais ou menos R$ 400,00, pois quase todo o rancho vem do sistema<br />

agroflorestal (Sidinei Maciel, citado por SILVA, 2011).<br />

– 51 –


Agroflorestas e sistemas agroflorestais<br />

no espaço e no tempo<br />

Apesar de as agroflorestas se constituírem na base da produção, da<br />

segurança alimentar e da renda dos agricultores, é importante notar que o<br />

uso mais comum do solo, em termos de área, é a manutenção de capoeiras<br />

(florestas secundárias em estágio inicial e médio de regeneração), que<br />

correspondem a mais da metade da área das propriedades (58% da área das<br />

unidades de produção, em média).<br />

À primeira vista, as capoeiras podem ser entendidas como áreas sem<br />

uso. Entretanto, de acordo com os relatos dos agricultores, agroflorestas<br />

implantadas em áreas de capoeiras tendem a ser muito mais férteis e mais<br />

fáceis de se tornarem “completas”, quando transformadas em agroflorestas.<br />

Quando se corta uma capoeira para implantação de uma agrofloresta, parte<br />

dos indivíduos e das espécies cortadas rebrota, vindo a fazer parte do sistema.<br />

Uma grande quantidade de raízes é degradada, aumentando a fertilidade<br />

do solo e, especialmente, uma grande quantidade de matéria orgânica,<br />

proveniente da parte aérea das plantas cortadas, é cuidadosamente disposta<br />

no solo, garantindo um grande aporte de nutrientes e um forte estímulo à<br />

produtividade primária. De fato, há uma diferença significativa no incremento<br />

anual de carbono entre agroflorestas implantadas sobre lavouras ou pastos e<br />

agroflorestas implantadas sobre capoeiras<br />

Por outro lado, os agricultores identificam nas capoeiras espaços<br />

de produção de sementes que serão naturalmente dispersas para as<br />

agroflorestas. Também identificam nessas áreas espaços de vida de animais<br />

importantes para as agroflorestas, especialmente pássaros e abelhas, que<br />

trazem sementes e contribuem na polinização. Essas características são<br />

consideradas importantes para o aumento da diversidade e da produção das<br />

agroflorestas. Além disso, vários agricultores afirmam que semeiam nas<br />

capoeiras espécies como o palmito Juçara (Euterpe edulis) e, eventualmente,<br />

manejam indivíduos próximos às trilhas da unidade familiar<br />

(COOPERAFLORESTA 2011-2012). Existe, portanto, uma intencionalidade<br />

na promoção da regeneração natural nas capoeiras, seja ela relacionada com<br />

a manutenção de matrizes, seja como fonte de fertilidade e espécies para<br />

uso futuro, em agroflorestas a serem implantadas.<br />

– 52 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

O número e a área das agroflorestas a serem implantadas no futuro é<br />

consequência da análise de vários fatores, tais como capacidade de mão de<br />

obra, periodicidade dos mutirões, disponibilidade de sementes, estratégias<br />

de mercado etc. Esses fatores são variáveis ao longo do tempo. Não há,<br />

portanto, uma correspondência exata entre as áreas em capoeira e áreas de<br />

futuras agroflorestas. Além disso, as próprias agroflorestas também são<br />

“renovadas”, em períodos geralmente de 10 a 15 anos, de acordo com os<br />

agricultores. Outras são apenas deixadas de manejar, em função do<br />

direcionamento do manejo para outras áreas, havendo o “encapoeiramento”<br />

delas. Mesmo dentro de uma agrofloresta, é possível observar divisões de<br />

áreas, formando-se agroflorestas menores com diferentes tipos de manejo,<br />

inclusive a partir do corte total da parte aérea.<br />

É importante considerar, todavia, que a rotação entre agroflorestas e<br />

capoeiras, desenvolvida há quase duas décadas pelos agricultores associados<br />

à Cooperafloresta, gera uma relação entre as áreas destes dois usos de<br />

praticamente quatro hectares de capoeiras para um hectare de agrofloresta<br />

(as agroflorestas se constituem em 21,5 % da área constituída por agroflorestas<br />

e capoeiras).<br />

A associação da importância das capoeiras para as agroflorestas é de<br />

tal forma que, antes da prática agroflorestal, não era comum a manutenção<br />

de capoeiras, por um ciclo muito mais longo que um a dois anos. Na Figura<br />

3, por exemplo, está indicado o uso do solo na unidade de produção indicada<br />

na Figura 1, antes do envolvimento dos agricultores com a prática agroflorestal,<br />

neste caso no ano de 2001.<br />

– 53 –


Agroflorestas e sistemas agroflorestais<br />

no espaço e no tempo<br />

Figura 3: Mapa histórico do uso e ocupação do solo da Unidade Familiar<br />

de Sidinei Maciel referente ao ano de 2001<br />

(Cooperafloresta, 2011; 2012).<br />

Na comparação entre a Figura 1 e a Figura 3, nota-se que, ao se<br />

iniciar a prática agroflorestal, na unidade familiar de Sidinei Maciel, 83% do<br />

uso do solo era vinculado à agricultura convencional. Atualmente, 87,5% da<br />

paisagem é manejada sobre a égide do sistema agroflorestal, sendo que 29%<br />

do sistema é referente a agroflorestas em diferentes idades e 71% são de<br />

capoeiras em estágios médios e iniciais de regeneração (CONAMA, 2008).<br />

Ao dialogar com o agricultor responsável pela unidade mapeada nas<br />

Figuras 1 e 3, pode-se perceber as dificuldades relacionadas aos resultados<br />

econômicos e à qualidade ambiental do manejo da paisagem utilizado antes<br />

da inserção na Cooperafloresta:<br />

Cheguei aqui quando tinha só um ano, então não lembro como era aqui quando<br />

cheguei. Meus pais diziam que era tudo capoeira alta, tinha muito mato e<br />

bicho. Eles chegaram e começaram a plantar no sistema convencional, e só<br />

entraram em dívida. Era muita química, pra plantar tomate, feijão, abobrinha,<br />

vagem, abóbora. A venda não compensava o gasto. Muitas vezes a gente<br />

trocou o tomate pelo valor da caixa pra colocar ele dentro. Começamos a<br />

alugar terra pra plantar. Aí o pai derrubou mais uma capoeira que tinha e<br />

– 54 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

plantaram banana, que começou a produzir bem, mas logo veio a broca e<br />

outras coisas. O pai queimou o bananal e plantou mandioca, que produziu<br />

pouco e, do pouco, o rato comeu. Também lembro que nesse período, antes<br />

de 1995, ficava duas semana sol, já não tinha água, chegava a pegar água<br />

do rio (rio Pardo) pra tomar por que não tinha. Antes nós tinha água, mas na<br />

maneira de trabalhar, queimar todas as cabeceiras, a água secou. Só tinha<br />

água quando chovia. Ficava um período de quinze dias, vinte dias a água<br />

secava tudo e tinha que correr atrás de água do rio. Daí depois que a gente<br />

começou a fazer agrofloresta e a capoeira a se formar, a água foi ressuscitando.<br />

Antes noventa por cento era capim e dez por cento era capoeira. Era capim<br />

de tanto queimar. A parte de cima a gente queimava menos, então o terreno<br />

estava mais fértil e a parte de baixo era queimado mais, cultivado com enxada<br />

e em umas partes veneno. Tinha matado todas as brotações, por isso tinha<br />

tomado conta o capim. Um ano a mãe, eu e o Claudio fizemos cinco alqueires<br />

de roça, quase o tamanho da nossa propriedade. Roçava, plantava milho,<br />

feijão, arroz. Roçava, queimava e plantava... Mas no final a gente avaliou que<br />

o que tinha feito não compensava (Sidinei Maciel, citado por SILVA, 2011).<br />

A situação identificada na unidade familiar das Figuras 1 e 3 é típica<br />

no conjunto das unidades. Em termos gerais, o uso do solo antes da<br />

experiência agroflorestal propiciada pelo envolvimento na Cooperafloresta,<br />

nas 13 unidades em que foram realizados os mapas históricos, está indicado<br />

na Figura 4.<br />

Figura 4: Porcentagem do Uso do Solo de treze famílias<br />

antes do início das atividades da Cooperafloresta<br />

(Cooperafloresta, 2011-2012).<br />

– 55 –


Agroflorestas e sistemas agroflorestais<br />

no espaço e no tempo<br />

Os 13 mapas históricos apontam para o aumento significativo da área<br />

ocupada por capoeiras e agroflorestas. Numa área total de 660,72 ha, o<br />

espaço utilizado pela agricultura convencional reduziu de 78,50% para<br />

7,96%, enquanto as áreas com capoeiras e agroflorestas passaram a ocupar<br />

70,54% da área dos estabelecimentos.<br />

Considerações finais<br />

Considerando o exposto, é possível propor que, no âmbito da<br />

Cooperafloresta, os sistemas agroflorestais são formados por uma combinação<br />

de dois sistemas de manejo de paisagens: um relacionado ao manejo intensivo<br />

da vegetação, nas agroflorestas, e outro relacionado à regeneração de<br />

capoeiras para conservação florestal e uso futuro. Nas agroflorestas sob<br />

manejo intensivo, a abundância de espécies, a densidade de indivíduos e<br />

a taxa de incremento de carbono é otimizada (ver capítulos 12 e 13).<br />

A regeneração de capoeiras, por sua vez, vem ocupando aproximadamente<br />

quatro vezes a área de agroflorestas.<br />

A manutenção e a geração das áreas com maior ou menor intensidade<br />

de manejo não é algo estanque. Tal processo funciona em forma de<br />

equilíbrio dinâmico, no qual um conjunto de fatores ambientais e sociais se<br />

retroalimentam, gerando sazonalidade temporal e espacial para manutenção,<br />

criação ou abandono de agroflorestas ou florestas em estágios iniciais e<br />

médios de regeneração.<br />

Assim, no sistema agroflorestal praticado pelos associados da<br />

Cooperafloresta existem dois mecanismos, um formador de agrofloresta e<br />

outro de capoeira que, rotacionados ao longo do tempo no espaço das<br />

propriedades ocupam hoje 74% da paisagem das áreas das famílias<br />

agricultoras associados.<br />

Assim, o sistema agroflorestal, no âmbito da Cooperafloresta, tem sido<br />

um modelo de praticar agricultura que mescla áreas com maior e menor<br />

intensidade de manejo, em um processo de domesticação da paisagem para<br />

o aumento da segurança alimentar, da renda e da autonomia, associado à<br />

recuperação de áreas degradadas pela agricultura convencional.<br />

– 56 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

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<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 4<br />

Aspectos pedagógicos no processo de<br />

ensino-aprendizagem de agrofloresta,<br />

no âmbito da COOPERAfloresta<br />

Rodrigo Ozelame da Silva,<br />

Walter Steenbock<br />

Introdução<br />

O termo “desenvolvimento sustentável” foi cunhado a partir do Relatório<br />

Bruntland, denominado “Our common future”, em 1988 (BRUNTLAND,<br />

1988), como resultado de amplas discussões mundiais sobre desenvolvimento<br />

e necessidade de conservação ambiental.<br />

Muito embora o acúmulo de projetos e políticas implementados desde<br />

então, em vários países, no sentido do tão almejado desenvolvimento<br />

sustentável, é forçoso reconhecer que a maioria deles tem gerado resultados<br />

insuficientes. Durante quase 25 anos após a edição do Relatório Bruntland,<br />

os impactos ambientais do processo de desenvolvimento, em nível global, ao<br />

invés de diminuir, aumentaram significativamente.<br />

Um elemento de fundamental importância, na busca do<br />

desenvolvimento sustentável, tem sido a educação ambiental. O lema<br />

“conhecer para preservar” foi estabelecido antes mesmo da 1ª Conferência<br />

Mundial dobre Meio Ambiente, ocorrida em Estocolmo, em 1972. A Educação<br />

Ambiental mereceu diversas conferências internacionais, tais como as<br />

ocorridas em Tbilisi (1975), em Geórgia (1977) e em várias outras regiões.<br />

Essas discussões, em nível mundial, geraram políticas e instrumentos legais<br />

em diferentes países. No Brasil, a Lei Federal de Educação Ambiental foi<br />

sancionada em 1997, propondo conceitos e ações bastante progressistas<br />

sobre o tema.<br />

– 61 –


Aspectos pedagógicos no processo de ensino/aprendizagem de agrofloresta,<br />

no âmbito da agrofloresta<br />

Entretanto, diversos autores questionam a eficiência da educação<br />

ambiental para a efetivação do chamado desenvolvimento sustentável.<br />

Grande parte desses questionamentos parte da constatação de que são<br />

justamente os países onde há maior desenvolvimento da educação formal –<br />

tais como os países da América do Norte ou da Europa – que promovem os<br />

maiores impactos ambientais, tanto em seus próprios países quanto nos<br />

outros países do mundo. “Conhecer”, portanto, não tem sido suficiente para<br />

“preservar”. As últimas reuniões internacionais sobre o Meio Ambiente, tais<br />

como a Rio + 20, têm sido palco desta triste constatação.<br />

Guimarães (1997) aponta que a ineficiência da Educação Ambiental<br />

está associada a uma ineficiência mais profunda do processo educacional,<br />

fragmentado e baseado, desde o Renascimento, na associação entre civilidade<br />

e afastamento da natureza.<br />

Porto Gonçalves (2006) vai mais além, destacando que a educação<br />

ambiental tem sido ineficiente justamente porque, para que ela fosse<br />

efetiva, seria necessário questionar as bases do processo de produção e<br />

consumo, que é o eixo do desenvolvimento das políticas do sistema<br />

capitalista. Assim, para esse autor, não vivemos apenas numa crise<br />

ambiental, mas sim numa crise civilizatória, na qual está claro que, para<br />

continuarmos existindo, em médio prazo, deveremos urgentemente alterar<br />

elementos do nosso modus vivendi.<br />

De acordo com Morin (2002; 2003), há uma crise nos fundamentos<br />

da ciência que afeta todo o pensamento contemporâneo, o que vem ao<br />

encontro do que Leff (2011) também considera, ao tratar a crise ambiental,<br />

como crise do conhecimento, da razão, que problematiza o pensamento<br />

científico e a racionalidade dominante (MORALES, 2007).<br />

Independentemente da discussão deste cenário, existem, no Vale do<br />

Ribeira, famílias de agricultores que vêm desenvolvendo a experiência<br />

agroflorestal como principal estratégia de produção e reprodução social, na<br />

qual estão incorporados elementos que podem contribuir para a promoção de<br />

práticas de produção de alimentos em parceria com a conservação<br />

socioambiental. Identificar de que forma isso pode ser efetivado passa pela<br />

elaboração de uma proposta pedagógica, que possa ser útil em diferentes<br />

– 62 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

espaços de formação. Conforme propõe Kramer (1997), “uma proposta<br />

pedagógica é um caminho, não é um lugar. Uma proposta pedagógica é<br />

(também) construída no caminho, no caminhar”. Assim, uma proposta<br />

pedagógica deve nascer justamente de uma realidade em construção, com<br />

elementos já assentados e elementos a construir, de valores, sonhos e<br />

problemas a serem superados. Portanto, ela emerge das experiências de<br />

homens e mulheres na busca de respostas para as dificuldades encontradas<br />

no caminho.<br />

Este capítulo busca apresentar os fundamentos da construção de um<br />

projeto pedagógico, a partir e para o desenvolvimento de uma lógica<br />

produtiva e de reprodução social relacionada a sistemas agroflorestais, a<br />

partir da experiência de homens e mulheres que vivenciam esta práxis, no<br />

âmbito da Cooperafloresta.<br />

São apresentadas, aqui, as bases de um Projeto Pedagógico,<br />

sistematizado para contribuir em processos de formação e capacitação<br />

relacionados à prática agroflorestal. Este Projeto foi construído no âmbito de<br />

um projeto maior denominado “Sistematização do Processo de Rede<br />

Capacitação-Conhecimento em Mutirões Agroflorestais de Agricultor para<br />

Agricultor: Escolinha Agroflorestando o Vale do Ribeira” (COOPERAFLORESTA,<br />

2010-2011) apoiado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) por meio do<br />

Subprograma Projetos Demonstrativos (PDA). Tal subprograma foi criado em<br />

1995, resultado de um processo de negociação envolvendo o Governo<br />

Brasileiro, organismos de cooperação internacional, redes de Movimentos<br />

Sociais da Amazônia (GTA) e Mata Atlântica (RMA). Implementado pelo<br />

Ministério do Meio Ambiente no âmbito do Programa Piloto para a Proteção<br />

das Florestas Tropicais (PPG7), recebeu apoio financeiro principalmente da<br />

Cooperação Internacional Alemã e tem como principais desafios demonstrar<br />

por meio de experiências inovadoras a possibilidade efetiva de construção,<br />

em bases socioambientais, de estratégias de promoção do desenvolvimento<br />

sustentável e, a partir dos aprendizados produzidos por estas experiências,<br />

estimular a formulação de políticas públicas que contribuam para a difusão e<br />

incorporação dessas estratégias por outras comunidades, organizações e<br />

instituições governamentais (BRASIL, 2012).<br />

– 63 –


Aspectos pedagógicos no processo de ensino/aprendizagem de agrofloresta,<br />

no âmbito da agrofloresta<br />

Questões norteadoras<br />

Se é verdade – como apontam diversos autores e múltiplos dados<br />

relacionados à degradação ambiental, em nível mundial – que estamos<br />

vivendo uma crise ambiental associada a uma crise civilizatória, é razoável<br />

supor que a educação ambiental (e demais ações de formação/capacitação<br />

no escopo ambiental) também esteja em crise.<br />

Em outras palavras, passados quase quarenta anos do início da<br />

implementação da educação ambiental, em vários países do mundo, é notório<br />

que sejamos tão mal educados no que tange ao cuidado com o ambiente.<br />

Não se trata, é claro, de desconsiderar os avanços no conhecimento e na<br />

valorização da natureza, propiciados muitas vezes justamente por ações<br />

nesta área, em todo o mundo. Além disso, é importante considerar que<br />

qualquer esforço do sentido do aumento de cuidado ambiental encontra pela<br />

frente a pressão de sistemas econômicos de máxima produção e consumo,<br />

contraditórios ao cuidado.<br />

Entretanto, considerar a educação ambiental, dentro dos moldes<br />

convencionais da educação, como eixo propulsor do desenvolvimento<br />

sustentável, como foi e vem sendo feito há décadas, é, no mínimo, ingênuo,<br />

tão só pela constatação de que nunca se conheceu mais sobre meio ambiente<br />

e sua importância do que nos últimos anos e, paralelamente, nunca se<br />

degradou tanto a natureza quanto neste período.<br />

Assim, é fundamental que se questione como a educação ambiental<br />

pode atingir seu objetivo de otimização humana do cuidado com o ambiente.<br />

A questão é tão simples quanto a complexidade da resposta, ainda longe de<br />

ser consensuada entre filósofos, acadêmicos e educadores. Talvez, a própria<br />

questão possa ser subdividida em várias outras, visando identificar melhor a<br />

complexidade da resposta.<br />

Nessa complexidade, um dos contextos importantes é o da epistemologia<br />

sobre a natureza, ou seja, como se constrói o conhecimento sobre o ambiente.<br />

Em diferentes épocas, distintas ferramentas foram pensadas para ser<br />

utilizadas nesta construção. Algumas dessas ferramentas são contraditórias a<br />

outras e, naturalmente, nem todas são utilizadas hoje em dia, nos sistemas<br />

convencionais de educação. Além disso, esses sistemas de educação são<br />

fortemente influenciados por visões de mundo codificadas a partir de<br />

– 64 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

determinadas ferramentas, em detrimento de outras, as quais podem estar<br />

em uso por diferentes pessoas e comunidades. Assim, uma questão importante<br />

é: os sistemas educacionais se utilizam de um conhecimento realmente<br />

adequado da natureza, construído com as ferramentas adequadas?<br />

Por outro lado, em geral assume-se que os sistemas convencionais de<br />

educação educam, de forma relativamente uniforme, todos os que passam<br />

pelos mesmos. Se isso encontra argumentos favoráveis (ao menos em parte)<br />

para disciplinas, cujos sistemas de avaliação possibilitam identificar se o<br />

aluno aprendeu o conteúdo ou não, o mesmo não se pode afirmar em relação<br />

a condutas sobre o ambiente. É bastante provável que esta conduta seja<br />

muito mais influenciada por outros elementos do que pela educação<br />

convencional. A psicologia social, ramo da psicologia fortemente influenciada<br />

pelos trabalhos de Kurt Lewin (LEWIN, 1975), tem aberto nas últimas<br />

décadas um grande leque de estudos e constatações nesse sentido.<br />

Utilizando um exemplo, é razoável supor que, para um cidadão urbano<br />

de uma grande metrópole, a água, o transporte ou o tempo representem<br />

valores diferenciados do que para um pescador artesanal. Essas diferenças<br />

de valores geram tradições e regras diferenciadas. Na Índia, por exemplo,<br />

tradicionalmente nunca se cortam árvores de Ficus religiosa, não se permite<br />

pesca em tanques sagrados e nunca se matam cobras (GAGDIL, 1985). Com<br />

base nessa gama de variações de valores, outra questão fundamental é:<br />

até que ponto a educação ambiental é adaptada à multiplicidade de<br />

processos cognitivos e à multiplicidade de valores ambientais das diferentes<br />

comunidades humanas?<br />

Essa multiplicidade de naturezas, valores e usos de conhecimentos<br />

está associada a diferentes modelos de desenvolvimento local, bem como<br />

a diversos contextos culturais e ambientais, com valores, tecnologias,<br />

conhecimentos e formas de organização social próprias. Nesses distintos<br />

contextos, a forma de construir o conhecimento sobre a natureza é,<br />

naturalmente, diferenciada. Em princípio (e esta é a base de diferentes<br />

escolas pedagógicas), uma educação que considere o conhecimento local,<br />

bem como os mecanismos do desenvolvimento local, tende a ser mais efetiva<br />

neste local. Neste sentido, é preciso questionar a suposta ascendência do<br />

conhecimento técnico-científico sobre o conhecimento popular, no trato com<br />

– 65 –


Aspectos pedagógicos no processo de ensino/aprendizagem de agrofloresta,<br />

no âmbito da agrofloresta<br />

o ambiente. Muitas vezes, a educação ambiental considera o “educando”<br />

como um desconhecedor dos processos ecológicos ou de outras questões<br />

ambientais, impondo uma outra forma de codificar o ambiente como elemento<br />

a ser apreendido, em um processo de desvalorização do conhecimento local<br />

que, como consequência, reduz a autonomia e o senso de autogestão em<br />

comunidades locais. Assim, uma outra questão importante é: como o saber<br />

ambiental de cada comunidade humana, com seus valores e culturas<br />

embutidas, pode ser útil à educação ambiental, de forma a adaptar esta<br />

educação a cada realidade? Como valorizar, enfim, o conhecimento local<br />

em um processo de desenvolvimento do saber?<br />

Inúmeras outras questões poderiam ser propostas, na tentativa de<br />

direcionar a resposta para a efetividade da educação ambiental. Não é<br />

pretensão deste texto, todavia, construir uma tese sobre a educação ambiental<br />

ou a construção do saber, e nem tampouco tentar responder às questões<br />

formuladas acima. Obviamente, também é preciso considerar as inúmeras<br />

ações em educação ambiental que levam em conta as questões acima<br />

propostas, bem como vários outros aspectos, e que contribuem, de fato, para<br />

a evolução da consciência ambiental em diferentes níveis e espaços. Não se<br />

tem a pretensão, aqui, de estar “descobrindo a roda”, neste campo.<br />

Entretanto, em última análise, as questões propostas acima se<br />

constituem na base da reflexão deste Projeto Pedagógico. Para sua elaboração,<br />

tentou-se considerar os processos cognitivos e os valores ambientais dos<br />

agricultores agrofloresteiros associados à Cooperafloresta, buscando propor<br />

ferramentas de aplicação desses valores e processos em atividades de<br />

educação. Tenta-se, com isso, fermentar a reflexão e proposição deste<br />

Projeto com a Teoria da Complexidade que, de acordo com seu propositor,<br />

Edgar Morin, é um “tecido de constituintes heterogêneos inseparavelmente<br />

associados, unidos de acontecimentos, ações, interações, retroações,<br />

determinações, acasos, que constituem o nosso mundo fenomenal. Trata-se,<br />

portanto, de colocar em exercício um pensamento capaz de abordar o real,<br />

de dialogar com os outros saberes e de negociar com o pensamento simples,<br />

em reorganização permanente” (MORIN, 2003).<br />

Nesse propósito, o conceito de Racionalidade Ambiental, de Enrique<br />

Leff (2011) se acopla adequadamente.<br />

– 66 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

A racionalidade ambiental como práxis da educação<br />

Considerando a existência de múltiplos saberes sobre a natureza,<br />

não valorizados nem pela ciência e nem pela educação convencional, Leff<br />

(2011) propõe o conceito de racionalidade ambiental, em um cenário de<br />

questionamento da racionalidade econômica.<br />

Para ele, a construção de uma racionalidade ambiental, baseada na<br />

conjunção de diferentes valores e saberes sobre a natureza e o ambiente, de<br />

forma articulada e inserida em movimentos sociais e ambientais, poderia ser<br />

um caminho de práxis de uma educação ambiental efetiva.<br />

De acordo com Leff (2011), com a emergência da crise ambiental, o<br />

processo educacional orientou um processo de conscientização para regular<br />

condutas sociais que evitem efeitos negativos sobre o ambiente e criar<br />

habilidades técnicas para resolver problemas ambientais. Entretanto, a lógica<br />

dessa orientação continuou inserida na racionalidade econômica. A educação<br />

relativa ao ambiente passou a ser concebida, em geral, como um “treinamento<br />

em proteção ambiental”, ou como uma “instrução que permita aos estudantes<br />

resolver problemas ambientais e lhes dê uma visão e convicções como base<br />

para um comportamento responsável da natureza”.<br />

A questão ambiental, contudo, não é apenas um problema ecológico<br />

ou técnico. Sua solução não se reduz a incorporar normas ecológicas aos<br />

agentes econômicos ou dispositivos tecnológicos aos processos produtivos. O<br />

saber ambiental deve se constituir a partir de uma nova percepção das<br />

relações entre processos naturais, tecnológicos e sociais, na qual estes<br />

últimos devem ocupar um lugar preponderante em sua gênese e em suas vias<br />

de resolução. Infelizmente, são apenas incipientes os programas de formação<br />

ambiental orientados para a construção de uma racionalidade alternativa,<br />

capaz de compreender, promover, mobilizar e articular os processos naturais,<br />

tecnológicos e sociais que abram opções para outro tipo de desenvolvimento<br />

(HUNDT, 1986; LEFF, 2011).<br />

O conceito de racionalidade ambiental, apresentado por Leff (2011),<br />

transcende à lógica convencional da educação ambiental ou dos processos de<br />

formação/capacitação na área ambiental. Para ele, a construção de uma<br />

racionalidade ambiental resulta de um conjunto de processos que integram<br />

diferentes “esferas de racionalidade”. Esses processos vão legitimando a<br />

– 67 –


Aspectos pedagógicos no processo de ensino/aprendizagem de agrofloresta,<br />

no âmbito da agrofloresta<br />

tomada de decisões, dando funcionalidade a suas operações práticas e<br />

eficácia a seus processos produtivos. O conceito de racionalidade conecta<br />

os processos “superestruturais” da razão com a racionalidade dos processos<br />

que constituem a base produtiva. Dessa forma, nas práticas de apropriação<br />

e transformação da natureza se confrontam e amalgamam diferentes<br />

racionalidades: a racionalidade capitalista de uso dos recursos; a racionalidade<br />

ecológica de práticas produtivas; a racionalidade dos estilos étnicos de uso<br />

da natureza (LEFF, 2011).<br />

Nesse processo, a constituição de uma racionalidade ambiental exige<br />

mudanças sociais que vão além do confronto entre duas lógicas (econômicaecológica)<br />

opostas. Essa constituição é um processo político que mobiliza<br />

a transformação de ideologias teóricas, instituições políticas, funções<br />

governamentais, normas jurídicas e valores culturais de uma sociedade; que<br />

se insere na rede de interesses de classes, grupos e indivíduos que mobilizam<br />

as mudanças históricas, transformando os princípios que regem a organização<br />

social (LEFF, 2011).<br />

Portanto, a racionalidade ambiental não é a extensão da lógica do<br />

mercado à capitalização da natureza, mas a resultante de um conjunto de<br />

significações, normas, valores, interesses e ações socioculturais; é a expressão<br />

do conflito entre o uso da lei do mercado por uma classe, a busca do<br />

bem comum com a intervenção do Estado e a participação da sociedade<br />

civil num processo de reapropriação da natureza, orientando seus valores e<br />

potenciais para um desenvolvimento sustentável e democrático. Nesse<br />

contexto, a racionalidade ambiental se constrói desconstruindo a hegemonia<br />

da racionalidade capitalista dominante em todas as ordens da vida social,<br />

visando a construção de uma nova ordem global capaz de integrar as<br />

economias autogestionárias das comunidades e permitir que construam suas<br />

próprias formas de desenvolvimento a partir de uma gestão participativa e<br />

democrática de seus recursos ambientais (LEFF, 2011).<br />

A construção de uma racionalidade ambiental implica a formação de<br />

um novo saber e a integração interdisciplinar do conhecimento, para explicar<br />

o comportamento de sistemas socioambientais complexos. Entretanto, o<br />

saber ambiental excede as ciências ambientais, abrindo-se ao terreno dos<br />

– 68 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

valores éticos, dos conhecimentos práticos e dos saberes tradicionais; emerge<br />

do espaço de exclusão gerado no desenvolvimento das ciências, centradas<br />

em seus objetos de conhecimento, e que produz o desconhecimento de<br />

processos complexos que escapam à explicação dessas disciplinas. Assim, o<br />

saber ambiental problematiza o conhecimento fragmentado em disciplinas e<br />

a administração setorial do desenvolvimento, para constituir um campo de<br />

conhecimentos teóricos e práticos orientado para a rearticulação das relações<br />

sociedade-natureza. Esta nova epistemologia, centrada no diálogo de saberes,<br />

contém, em si, um processo educativo, que envolve a conscientização, a<br />

produção teórica, a articulação social e a pesquisa científica.<br />

Elementos metodológicos<br />

Considerando estes aspectos, para a construção deste Projeto, procurouse<br />

identificar elementos potencialmente constitutivos de uma racionalidade<br />

ambiental vinculada à experiência agroflorestal dos agricultores associados<br />

à Cooperafloresta.<br />

Utilizou-se como metodologia a execução de entrevistas semiestruturadas<br />

e entrevistas abertas junto a agricultores da Cooperafloresta, além do<br />

acompanhamento de mutirões de trabalho e de mutirões de visita. Foram<br />

realizadas vinte e duas entrevistas, e acompanhados quatro mutirões de<br />

trabalho e cinco mutirões de visita 1 . As “falas” ou relatos dos agricultores<br />

foram gravadas, nestes eventos. Durante a transcrição, quando foram<br />

identificadas “falas” que estavam de alguma forma relacionadas ao processo<br />

de aprendizado em sistemas agroflorestais, estas foram selecionadas. Em<br />

outras palavras, foram selecionadas todas as “falas” que indicassem algum<br />

elemento que foi importante, para o agricultor, para se aprender sobre como<br />

fazer agroflorestas. À medida que estas “falas” foram sendo selecionadas,<br />

buscou-se agregá-las em diferentes linhas temáticas, para uma análise<br />

conjunta, visando identificar eixos do processo de aprendizado.<br />

1<br />

Os mutirões de trabalho têm como principal característica a troca de dias de trabalho e saberes<br />

entre os associados da Cooperafloresta, sedo que normalmente sua sazonalidade é semanal. Já<br />

nos mutirões de visita, a maior característica é a presença de visitantes aos sistemas agroflorestais<br />

utilizado na Cooperafloresta.<br />

– 69 –


Aspectos pedagógicos no processo de ensino/aprendizagem de agrofloresta,<br />

no âmbito da agrofloresta<br />

A partir da identificação desses eixos, estes foram propostos justamente<br />

como linhas temáticas para um processo pedagógico que amplifique o<br />

saber ambiental a partir de sistemas agroflorestais (SAFs), considerando a<br />

necessidade de sua articulação étnica, disciplinar e institucional para a<br />

crescente construção da racionalidade ambiental associada a este saber.<br />

Considera-se, portanto, que a utilização desses eixos em atividades de<br />

extensão rural e educação ambiental formais e não formais pode ser útil a<br />

esta construção.<br />

Na sequência do texto, são apresentados esses eixos, contextualizados<br />

a partir de algumas “falas” ou relatos dos agricultores.<br />

Oito eixos no caminho<br />

De acordo com Margalef (1968), a sucessão natural é o acréscimo<br />

de informação em um ecossistema. Obviamente, está implícito neste<br />

conceito que é necessária a capacidade humana de percepção deste<br />

acúmulo de informação. O desenvolvimento dos sistemas agroflorestais, na<br />

medida em que trabalha promovendo a sucessão natural, parece ser percebido<br />

como um elemento norteador de um processo de aumento de fartura,<br />

dissonante com o processo de redução de autonomia e riqueza da agricultura<br />

convencional. O aumento da dependência externa, a redução da autonomia e<br />

o empobrecimento, associados à perda de biodiversidade no processo de<br />

produção, podem ser observados nos diferentes relatos, em relação ao período<br />

em que não se praticava agrofloresta.<br />

Uma provocação de Pedro Oliveira, agricultor associado à<br />

Cooperafloresta para alguns visitantes em relação à autonomia que o Sistema<br />

Agroflorestal (SAF) proporciona e a dependência que a agricultura convencional<br />

impõe, contextualiza essa diretriz:<br />

Gostaria de convidar vocês a olharem essas áreas e fazer um pensamento.<br />

Essa área (Sistema Agroflorestal) tem a mesma qualidade de solo que essa<br />

outra propriedade (agricultura convencional) aqui do lado. O que mudou na<br />

nossa propriedade foi a atitude! Agora eu pergunto para vocês, qual tipo de<br />

área vocês querem deixar para seus filhos? (Silêncio) Agora vocês imaginem<br />

se eu derrubo tudo a quantidade de matéria orgânica que vai ter. Galho, folha,<br />

tronco. Vai dar um salto de qualidade tremendo. Assim a gente não precisa de<br />

– 70 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

adubo, por que adubo é como uma muleta. No começo a gente usa ele, depois<br />

passa a caminhar sozinho. Na agrofloresta a gente beneficia de tal modo o<br />

sistema que todo bichinho põe lá todos seus excrementos. Esse excremento foi<br />

nosso adubo, melhorou o solo aqui desse lado da propriedade. Agora é aqui<br />

que vamos trabalhar. (Pedro Oliveira, citado por SILVA, 2011).<br />

Dentro desse contexto, a dicotomia entre a dependência e a autonomia<br />

e entre a pobreza e a fartura são nítidas, diferenciando o período anterior à<br />

prática da agrofloresta com o período atual. Em vários relatos, os agricultores<br />

apontam para a complexificação do sistema produtivo, a partir do início da<br />

agrofloresta. É implícito, nesses relatos, a relação entre o acúmulo de<br />

informação do ecossistema, a percepção da diversidade de formas de vida e<br />

o aumento do senso de autonomia. Neste texto, para esta análise, destacamos<br />

o relato de Sidinei Maciel.<br />

Há 10 anos atrás, começamos a fazer agrofloresta. Logo que começamos,<br />

já veio visitas pra ver o que a gente tava fazendo, e isso me animou. A<br />

principal lógica da agrofloresta é plantar muito mais do que vai mesmo virar<br />

planta adulta, porque semear é o mais fácil. Depois, a gente raleia e poda.<br />

Nisso, a gente tá adubando e formando o sistema. A gente já planta bastante<br />

porque vai ter formiga, vai ter o manejo da adubação, e vai sobrar o que é<br />

mesmo bom praquele lugar. De fruta, aqui, plantei banana, abacate, graviola,<br />

fruita do conde, cabeludinha, jaca, café... Também plantei muito palmito,<br />

cedro, jatobá, cajarana, urucurana, ingá, ipê-roxo, tarumã e canela amarela.<br />

Foi colocada também muita semente de citrus, junto com milho e guandu,<br />

para fazer enxerto na roça. Hoje, as frutas estão começando a produzir, mas<br />

muita ficou no chão. Já cortei árvores aqui por seis vezes. Por exemplo, hoje<br />

tem mais ou menos 1000 pés de jaca, com nada embaixo. É preciso cortar<br />

umas tantas e podar outras. Isso vai ajudar a decompor as raízes e aumentar<br />

a infiltração de água, fazendo adubo pras outras plantas. A ideia é deixar<br />

umas 50 árvores de jaca, e usar o resto pra madeira, pra lenha, e pra adubo.<br />

Também dá boa canoa. Embaúva, grandiúva, jaborandi e outras vêm criando<br />

a floresta. No meio do caminho, você vai batendo numa, tirando a outra, como<br />

a mata faz. Aquelas que não têm mais o lugar delas, tem que renovar. A gente<br />

usa esse conhecimento da mata para implantar o sistema. Há 10 anos atrás,<br />

eu, minha esposa e um menino gastávamos R$ 250,00 a R$ 300,00 por<br />

mês, de rancho. Hoje, o menino cresceu e veio mais uma, que tá com 5 anos.<br />

Hoje a gente gasta de R$ 120,00 a R$ 150,00 por mês. A família aumentou,<br />

o tempo passou e hoje eu gasto menos, e como melhor. Destes 2,5 alq de<br />

– 71 –


Aspectos pedagógicos no processo de ensino/aprendizagem de agrofloresta,<br />

no âmbito da agrofloresta<br />

agrofloresta, quando a feira é muito boa eu chego a tirar R$ 800,00 a R$<br />

900,00 por quinzena. A média é de R$ 600,00 a R$ 700,00 por quinzena.<br />

Mas a maior parte das plantas tá começando a produzir agora. E destes R$<br />

600,00, sobra mais ou menos R$ 400,00, pois quase todo o rancho vem<br />

do sistema. Não penso em aumentar a área. Minha ideia é derrubar tudo,<br />

aos pouquinhos, e fazer de novo... Uns pedaços ainda incompletos, fazer<br />

completos. Se eu aumentar a área, vai aumentar muito o manejo, vou ter<br />

que contratar gente. Não é muito fácil achar gente pra ajudar, pois não é fácil<br />

achar gente que sabe fazer agrofloresta, vão fazer muita cagada... Uma vez<br />

eu peguei um cara que me cortou um monte de planta do mato que eu tinha<br />

plantado... E o pior é que sofreu pra fazer isso...Vou manter estes 2,5 alq, e<br />

os outros 6 alq, que já estão em capoeira, vou deixar virar capoeira cada vez<br />

maior. Hoje, dá mais trabalho do que quando trabalhava antigamente. Só que<br />

antigamente eu trabalhava hoje para pagar amanhã... Hoje eu trabalho para<br />

ir tendo sempre. E trabalho de cabeça erguida. (Sidinei Maciel, Citado por<br />

SILVA, 2011).<br />

Em um fragmento de sua fala, Gilmar Batista cita:<br />

Eu acho que aqui durante esse tempo eu mudei muito sabe. Aprendi a<br />

observar mais a natureza, as coisas em redor da gente, a valorizar mais as<br />

coisas. Também na parte de alimentação a gente aprendeu a se alimentar.<br />

Comer muito alimento que a gente não ligava muito, hoje a gente aproveita<br />

mais. Eu acho que a qualidade de vida é outra sabe, mudou e mudou muito...<br />

Que nem outro dia eu vi o Pedro falar aqui que ele conta a vida dele depois<br />

da agrofloresta, que antes não tinha muito valor né... Ele tava falando e eu<br />

fiquei pensando: acho que comigo foi a mesma coisa. Por que lá pra trás no<br />

passado, não tenho vontade de viver naquele tempo, dali pra cá a gente tem...<br />

(Gilmar Batista, citado por SILVA, 2011).<br />

Esse maior senso de autonomia, ou de felicidade, associado ao<br />

desenvolvimento das agroflorestas, é acompanhado por uma racionalidade<br />

espiritual, ou religiosa. Pois, em vários relatos, indicações de senso de<br />

pertencimento à natureza, a partir do trabalho em agroflorestas. Esse outro<br />

tema, identificado como um dos eixos importantes no processo de construção<br />

do conhecimento dos agricultores em sistemas agroflorestais, está relacionado<br />

à dimensão espiritual, ou religiosa. Há, em vários relatos, indicações de senso<br />

de pertencimento à natureza, a partir do trabalho em agroflorestas, como o<br />

exemplo a seguir.<br />

– 72 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Teve dias, épocas, que eu tava com depressão, meio esquisito. Parece que<br />

tudo tava, sei lá, meio desorganizado por dentro de mim. Ai eu cheguei em<br />

um pé de palmito que eu tinha plantado e uns três anos depois ver aquele<br />

negócio tão bonito. Encostei nele e daquele dia pra cá nunca mais tive aquele<br />

problema de depressão, de ficar meio pra baixo, eu me sinto bem e graças a<br />

Deus eu tô trabalhando até hoje e está bom, tá ótimo! Eu acho que depois<br />

desse dia eu tive certeza que vou fazer agrofloresta pro resto da vida, porque<br />

eu me entreguei para a juçara e ela se entregou para mim. Isso que naquela<br />

época não tinha semente, de lá pra cá começou a ter semente. Aí eu plantei<br />

bem mais. Estando aqui embaixo da agrofloresta, eu não sei se foi a Juçara<br />

que fez eu gostar tanto, mas eu gosto muito desses palmitos. Me parece que<br />

ele tem alguma coisa mágica. É algo bem interessante. Além de tudo dá uns<br />

cachos, como aquele lá, madurinho. Isso dá um suco que é uma delícia. Eu<br />

me sinto muito bem embaixo de um pé de juçara desses. Parece que passa<br />

algum tipo de energia interessante...Parece que eu sinto um prazer de viver<br />

(José Moreira, citado por SILVA, 2011).<br />

Nessa fala do Sr. José Moreira, fica nítido que a produção que vem da<br />

juçara é só uma consequência de uma relação muito mais transcendente,<br />

dele com a agrofloresta. Essa lógica se mantém em outros relatos:<br />

Quero dizer que eu sou um católico, e na campanha da fraternidade desse<br />

ano, Deus tá pedindo pra que a gente faça esse serviço. O planeta Terra<br />

tá gemendo em dores de parto, como está escrito na carta de São Paulo<br />

aos romanos... O planeta geme em dores de parto e é uma dor muito triste.<br />

Eu acho que o trabalhão que a gente anda fazendo é abençoado por Deus.<br />

Deus tá nos abençoando e dando mais coragem pra gente lutar. Tá mandando<br />

cada vez mais pessoas pra amanhã nós tenhamos agrofloresta sustentável<br />

pra nossa família e também ter nossa mãe Terra e a própria natureza com a<br />

criação de Deus! (Benedito de Moura, citado por SILVA, 2011).<br />

Essa busca de (re)ligação entre homens e natureza é uma tarefa que<br />

tem desafiado e tem sido a expressão de homens e mulheres de várias<br />

culturas, porém nas falas aqui apresentadas, fica latente que tal vínculo está<br />

ganhando força. Esse desafio tem sido vivenciado pela Cooperafloresta, e<br />

estimulado em suas práticas de capacitação.<br />

Outro elemento de análise se relaciona à importância das visitas a<br />

experiências de agroflorestas para o estímulo ao desenvolvimento de<br />

agroflorestas próprias, tanto no sentido de receber visitas – valorizando a<br />

– 73 –


Aspectos pedagógicos no processo de ensino/aprendizagem de agrofloresta,<br />

no âmbito da agrofloresta<br />

própria atividade – quanto para verificar resultados de outros agricultores.<br />

José Gustavo, associado da Cooperafloresta, comenta como a visita na<br />

unidade familiar de Sidinei Maciel e Gilmar Batista impulsionou o início da<br />

sua experiência agroflorestal:<br />

A primeira vez que ouvi falar de agrofloresta foi um dia quando eu tava<br />

plantando mandioca. Daí chegou uma pessoa falando (Nelson) pra plantar<br />

guandu e uma coisarada assim. Isso parecia loucura. Um dia a gente foi<br />

andar por umas áreas. Andamos pelo Sidiney, Gilmar... Daí eu vi que tava<br />

dando certo, que eles tavam tirando uma boa renda e recuperando o solo<br />

e passei a acreditar na coisa e tamo na luta até hoje! (José Gustavo, citado<br />

por SILVA, 2011).<br />

Outro relato que indica a importância de conhecer outras agroflorestas<br />

é a de Maria Lúcia.<br />

Eu tava junto na capacitação que foi visitar a área do Nardo. Olha gente, eu<br />

fiquei dias com nó na garganta! Falei pro Pedro meu marido, que era como se<br />

tivesse tudo que Deus fez no mesmo lugar, tudo junto... (Maria Lúcia, citada<br />

por SILVA,2011).<br />

A forte impressão das visitas, como elemento importante para estimular<br />

o início ou o desenvolvimento de agroflorestas, também é identificada em<br />

“falas” de agricultores familiares de outras regiões, ao visitarem agricultores<br />

da Cooperafloresta, como comenta Karina Gonçalves da Cruz, que mora no<br />

Assentamento Contestado/Lapa/PR e trabalha na equipe pedagógica da<br />

Escola Latino-americana de Agroecologia:<br />

Foi uma experiência única. Toda essa vivência que eles tiveram aqui vai ser<br />

útil pro resto da vida. Os jovens que estão aqui visitando são acostumados<br />

a trabalhar no sistema da agricultura tradicional. Aqui a experiência foi<br />

totalmente diferente. Você descobrir que você pode manejar a uma forma<br />

totalmente diferente que estamos acostumado que é queimar, roçar, plantar e<br />

usar veneno. O que mais me marcou foi o fato de você poder ter alimentação<br />

sem usar veneno, e o aproveitamento do solo. Eu também tinha a concepção<br />

que a gente não podia cortar nada, que é essa coisa da ecologia. E de repente<br />

a gente percebe que não tem problema cortar, porque tudo isso é aproveitado.<br />

A árvore, o galho, a folha, a flor tudo faz parte da natureza. Além da própria<br />

concepção filosófica das pessoas que é ver o mundo como um todo, que tudo<br />

está interligado. As pessoas, a natureza está tudo junto, interligado. Eu vi isso<br />

– 74 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

no Pedro, no Gilmar, no Sidinei pela forma que eles agem. No jeito de ser, no<br />

respeito pela natureza, por tudo que está em volta. Sem aquela preocupação<br />

de cortar, plantar, vou fazer isso e aquilo por que eu quero ganhar dinheiro.<br />

Você percebe que eles lidam com a natureza, que o alimento é algo sagrado e<br />

não uma mercadoria (Karina, citada por SILVA, 2011).<br />

Logo, o processo de realizar visitas se configura em uma alternativa<br />

utilizada pela Cooperafloresta no processo de ensino-aprendizagem dos<br />

sistemas agroflorestais. Porém, quando se realiza tal evento, não só os<br />

visitantes aumentam seu conhecimento, pois o agricultor que recebe a visita<br />

também aumenta sua saber agroflorestal. Portanto, receber visitas, a partir<br />

da experiência de agroflorestas, acaba sendo de grande importância para a<br />

valorização do trabalho e autoestima, conforme indicam os relatos:<br />

Nasci e me criei por aqui, no Cedro. Antes era tudo queima. Um dia chegou<br />

um povo aqui ensinando a fazer agrofloresta. A terra era meio fraca, mas<br />

agora tá melhorando. Tem pouquinha planta aqui, mas quando eu vejo esse<br />

multidão de gente, fico contente. Eu deito na cama e agradeço a Deus. É<br />

muito bonita essas reunião, a gente se anima a continua na luta! Eu queria<br />

dizer eu não esperava ver um monte de gente aqui em casa hoje, eu fico<br />

muito contente. Isso encoraja a gente no trabalho (Joana Moura, citado por<br />

SILVA, 2011).<br />

José Gustavo socializa sua felicidade ao receber um grupo de visitantes:<br />

Eu gostaria de dizer que fico feliz por que tô vendo um monte de jovens!<br />

A gente precisa disso cada vez! Por que agrofloresta não é serviço para uma<br />

geração, é serviço pra varias geração (José Gustavo, citado por SILVA, 2011).<br />

Outro trecho que sugere a importância de receber visitantes no processo<br />

de ensino e aprendizagem é o agradecimento de Benedito de Moura aos<br />

visitantes de sua unidade familiar.<br />

Quero dizer que eu gostei muito do dia. A gente visitou umas áreas que não dá<br />

vergonha de mostrar. Quero agradecer o pessoal que veio fazer essas pesquisas<br />

também. Isso dá mais ânimo pra gente seguir na luta (Benedito de Moura,<br />

citado por SILVA, 2011).<br />

Assim, fica claro que o trabalho em grupo é, sem dúvida, um dos eixos<br />

principais da formação em agrofloresta, permitindo muito mais do que o<br />

– 75 –


Aspectos pedagógicos no processo de ensino/aprendizagem de agrofloresta,<br />

no âmbito da agrofloresta<br />

aprendizado técnico. Dentre esses trabalhos, o mutirão tem uma função<br />

fundamental. O mutirão também é o espaço do convívio e da troca comunitária,<br />

bem como, muitas vezes, a “porta de entrada” para o envolvimento mais<br />

profundo dos agricultores e agricultoras em questões comunitárias.<br />

É no mutirão, também, que além de ideias, se trocam mudas e<br />

sementes, permitindo um espaço de intercâmbio de materiais genéticos.<br />

Além disso, o aumento do rendimento do trabalho em grupo é visto como<br />

essencial para o desenvolvimento das áreas de agrofloresta, como ressalta<br />

Gilmar Batista ao ser perguntado sobre o que mudou em sua vida depois da<br />

entrada na Cooperafloresta.<br />

Ah, mudou muita coisa na vida depois que entramos na Cooperafloresta...<br />

A convivência com os vizinhos. A gente antes ficava um pouco mais isolado,<br />

mais sozinho, não participava muito da comunidade. Agora nesse grupo a<br />

gente participa mais com os vizinhos no trabalho de mutirão, então toda<br />

semana a gente tá se encontrando, trocando experiência, conversando,<br />

trabalhando junto e tenho aprendido muita coisa durante esse tempo (Gilmar<br />

Batista, citado por SILVA, 2011).<br />

Outra associada que comenta a importância do mutirão é Inês Maciel:<br />

Eu gosto de trabalhar no mutirão. Aprendo, a gente passa também o que a<br />

gente sabe para o outro. Troca e reparte semente, muda... até uma verdura<br />

que o outro não tem a gente reparte. Pra mim não ir no mutirão só se eu<br />

estiver doente. Eu gosto de ir para roça! Não gosto de ficar em casa (Inês<br />

Maciel, citada por SILVA, 2011).<br />

Além de fortalecer os laços sociais mediante a troca de saberes, os<br />

mutirões têm um forte caráter prático na medida em que a qualidade e<br />

quantidade de serviço conseguidos por meio do mutirão são maiores do que<br />

aqueles individuais, como diz outro associado.<br />

O mutirão ajuda nós bastante. Você veja, eu sozinho não ia conseguir aprontar<br />

uma área em um dia como gente fez hoje, muita fruta ia perder também. Por<br />

isso que digo por ai que nossa vida é outra depois dos mutirão (Clovis Maciel,<br />

citado por SILVA, 2011).<br />

Seguindo a lógica de identificação de eixos relacionados a uma<br />

racionalidade ambiental associada à prática agroflorestal, um elemento de<br />

– 76 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

aparentemente grande importância é o vínculo entre a agrofloresta e a<br />

oportunidade da comercialização, por meio do associativismo. Claudinei<br />

conta que, antes da agrofloresta, “obtinham muita produção, mas não<br />

conseguiam comercializar, com muito prejuízo. Não tinha resultado positivo,<br />

só acúmulo de dívida” (Claudinei Maciel, citado por SILVA, 2011). De acordo<br />

com Claudinei, quando ele começou a trabalhar na feira de Curitiba passou a<br />

conhecer outra realidade, pois antes só tinha a visão da produção em grande<br />

escala. Então, passou a acreditar que a agrofloresta era uma alternativa, que<br />

tinha gente que valorizava e comprava os produtos agroflorestais. Ainda para<br />

Claudinei, o processo de organização e o fato de não estar sozinho, de estar<br />

escorado, contribuem em muito para as famílias abraçarem a agrofloresta.<br />

“A estrutura da comercialização atrai. Os agricultores da região não têm<br />

onde vender. Quando tem onde vender, as pessoas produzem mais,<br />

diversificam e também melhora a qualidade da alimentação da família”<br />

(Claudinei Maciel, citado por SILVA, 2011).<br />

A racionalidade capitalista, portanto, também está presente junto aos<br />

agricultores da Cooperafloresta. Entretanto, é evidente, pelos relatos, que ela<br />

está inserida em meio a outras racionalidades, de ordem social, ambiental e<br />

espiritual. Vários relatos indicam este contexto:<br />

Eu acho que tem muito grupo por ai que às vezes a pessoa tem terra para<br />

produzir, mas não tem mercado pro cara sozinho. Então se monta um grupo<br />

e tem que correr atrás depois pra vender seu produto. Tem agricultor que<br />

comercializa aí e vende a oito reais o quilo da polpa da goiaba. Mas eu vejo<br />

que não é só dinheiro, eu vejo que é diferente o manejo, é mais organizado,<br />

tem uma diferença de quem não tá fazendo e de quem tá fazendo agrofloresta.<br />

Apesar que não parece, por que a gente tá tão acostumado assim com o diadia,<br />

mas a gente nota que há uma diferença nas famílias (Gilmar Batista,<br />

citado por SILVA, 2011).<br />

Assim, a construção do conhecimento e a prática agroflorestal parecem<br />

estar bastante associadas à construção das alternativas de comercialização<br />

dos produtos da agrofloresta. Para ambas as construções, o apoio técnico e<br />

organizativo, de forma diferenciada, tem sido fundamental, já que uma<br />

assistência técnica que priorize a construção coletiva dos processos a partir da<br />

realidade local, que exponha os vínculos das atividades humanas e suas ações<br />

– 77 –


Aspectos pedagógicos no processo de ensino/aprendizagem de agrofloresta,<br />

no âmbito da agrofloresta<br />

e reações no Planeta são componentes indispensáveis para a consolidação de<br />

um processo pedagógico associado a sistemas agroflorestais. Um relato de<br />

Sidinei Maciel traz um exemplo do caminho seguido:<br />

No projeto Iguatu foi dado capacitação durante seis meses para 12 agentes<br />

multiplicadores, onde fizemos varias oficinas. Observamos capoeira, pastagem,<br />

mato, mato virgem, o solo, conhecimento de planta, nome de planta. Foi<br />

ai que os técnicos começaram a despertar o conhecimento que nós tinha<br />

e aprenderam muito com nós. A gente entrava em uma mata, tinha cem<br />

espécies, o técnico sabia duas ou três. Perguntava para nós, fechava quase<br />

todas as espécies, era pouquinha que a gente não sabia. Era uma troca de<br />

experiência, eles estavam ensinando e aprendendo com nós (Sidinei Maciel,<br />

citado por SILVA, 2011).<br />

Outros trechos reforçam a importância de uma assistência técnica<br />

diferenciada na construção do saber agroflorestal, como quando Claudinei<br />

cita que “Osvaldinho e Nelson foram fundamentais para o início da<br />

proposta e para a ampliação” (Claudinei Maciel, citado por SILVA, 2011).<br />

Mauro relata que “Osvaldinho e Nelson, depois a Lucilene, incentivaram a<br />

iniciar a agrofloresta, trouxeram mudas de árvores e o trabalho técnico foi<br />

muito importante para desenvolverem as áreas” (Mauro Xavier, citado por<br />

SILVA, 2011).<br />

Além dos aspectos já citados, a aprendizagem de processos ecológicos<br />

fomentada pela implantação de sistemas agroflorestais é outro eixo a ser<br />

considerado nesta análise. Chama atenção a construção do conhecimento<br />

em agrofloresta, associado a conhecimentos de ecologia, sem, necessariamente,<br />

a codificação acadêmica deste conhecimento. Analisando os relatos<br />

agregados, é possível perceber que diversos processos ecológicos são<br />

apreendidos e vivenciados pelos agricultores, na prática da agrofloresta, sem<br />

a intervenção acadêmica.<br />

Dentro desse contexto, o Sr. Sidinei Maciel, por exemplo, explica como<br />

ele maneja seu sistema, com base no conhecimento “da mata”:<br />

Já cortei árvores aqui por seis vezes. Por exemplo, hoje tem mais ou menos<br />

1000 pés de jaca, com nada embaixo. É preciso cortar umas tantas e podar<br />

outras. Isso vai ajudar a decompor as raìzes e aumentar a infiltração de<br />

água, fazendo adubo pras outras plantas. A ideia é deixar umas 50 árvores<br />

– 78 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

de jaca, e usar o resto pra madeira, pra lenha e pra adubo. Também dá boa<br />

canoa. Embaúva, grandiúva, jaborandi e outras vem criando a floresta. No<br />

meio do caminho, você vai batendo numa, tirando a outra, como a mata faz.<br />

Aquelas que não têm mais o lugar delas, tem que renovar. A gente usa esse<br />

conhecimento da mata para implantar o sistema (Sidinei Maciel, citado por<br />

SILVA, 2011).<br />

No relato de Sidinei, colocado no início deste texto, vários trechos<br />

podem ser citados, nesse sentido. De acordo com ele, “A principal lógica da<br />

agrofloresta é plantar muito mais do que vai mesmo virar planta adulta,<br />

porque semear é o mais fácil” (Sidinei Maciel, citado SILVA, 2011). De fato,<br />

apesar da ciência agronômica ter sempre se baseado no plantio de mudas, ou<br />

na semeadura homogênea, valorizando os indivíduos plantados, a ecofisiologia<br />

da imensa maioria das espécies indica a elevada produção de sementes como<br />

estratégia clara de reprodução, especialmente nas plantas estrategistas-R<br />

(Pinn, 1996). Diferentemente de ambientes de clima temperado – cuja<br />

lógica da formação em agricultura e silvicultura ainda domina as escolas<br />

brasileiras – em clima tropical as clareiras são os grandes “motores da<br />

biodiversidade”, conforme indica Kageyama (2001). Sidinei cita ainda que<br />

“Embaúva, grandiúva, jaborandi e outras vem criando a floresta. No meio do<br />

caminho, você vai batendo numa, tirando a outra, como a mata faz. Aquelas<br />

que não tem mais o lugar delas, tem que renovar... A gente usa esse<br />

conhecimento da mata para implantar o sistema” (Sidinei Maciel, citado<br />

SILVA, 2011). Essa citação indica a clara noção da sucessão florestal, e do<br />

agricultor como ajudante desse processo.<br />

Em ambiente tropical, é muito comum a formação de bancos de<br />

plântulas, especialmente de espécies secundárias, quando há redução da<br />

luminosidade (Clark e Clark, 1999; Reis, 2003; Kageyama e Gandara,<br />

1996). Essa formação é indicada, por exemplo, por Sezefredo, quando<br />

explica que “quando a área não é manejada, sem abrir luz, as jaqueira e as<br />

outras ficam sem subir” (Sezefredo Gonçalves, citado SILVA, 2011).<br />

Por outro lado, o conhecimento da dinâmica de clareiras é também<br />

apontado pelos agricultores da Cooperafloresta. Gilmar, por exemplo, descreve:<br />

Há uns treze anos atrás, eu comecei a fazer agrofloresta. Fui fazendo e<br />

mexendo com o gado. Como eu parei de roçar o pasto, o gado passou a<br />

– 79 –


Aspectos pedagógicos no processo de ensino/aprendizagem de agrofloresta,<br />

no âmbito da agrofloresta<br />

plantar várias plantas. Há seis anos atrás eu parei de mexer com o gado e<br />

fiquei só com agrofloresta. Hoje já fiz área onde antes era só pasto. Têm umas<br />

agrofloresta que mesmo sem manejo, sem poda, ainda ela tá produzindo. Mas<br />

se quiser produzir milho, é só derruba um pedaço. Ai você consegue produzir<br />

plantas de ciclos mais curtos como milho, feijão, arroz. Agora aqui a ideia<br />

não é derrubar mais, aqui agora é completar ela e deixar que isso aqui vire<br />

uma floresta produtiva, muita fruta, muito alimento. Mas esses pedaços onde<br />

tem trabalho mal feito eu vou uma hora ou outra resolver plantar um pouco<br />

de milho, feijão, tomatinho. Eu derrubo um pedaço aí dessas árvores, corto<br />

bananeira, corto tudo e faço o serviço que não foi feito na área (Gilmar Batista,<br />

citado por SILVA, 2011).<br />

Vários outros relatos indicam o uso do conhecimento da dinâmica de<br />

clareiras, de sua relação com as características de fertilidade do solo e da<br />

relação das espécies com o estágio sucessional adequado a elas. Nesse sentido,<br />

utilizando ainda como referência o relato de Sidinei Maciel, descrito nas páginas<br />

78-79, é importante destacar a percepção da importância da decomposição de<br />

raízes para a produção de matéria orgânica no solo e das relações ecológicas<br />

em sua micro e mesofauna. Esses aspectos são raramente considerados em<br />

sua devida importância em cultivos agrícolas, mesmo dentro da agricultura<br />

orgânica. Nas agroflorestas, esse processo é visto como fundamental.<br />

Por outro lado, o caminho da sucessão ecológica, no rumo do aumento<br />

de biodiversidade, parece indicar e estimular vivências sociais diferenciadas.<br />

Sezefredo coloca que:<br />

Outra importância é que a gente aprende a conviver... com a mulher, com os<br />

filhos, com os vizinhos e com as pessoas que vêm visitar a gente. A gente<br />

sozinho não faz nada. (...) antes a gente só queria desdobrar a mata, a gente<br />

não conhecia isso. Hoje a gente vê que em Barra do Turvo, nesses morros<br />

todos, o melhor jeito de conviver com a terra é com agrofloresta, não tem<br />

outro sentido.. Quem mexe com pasto é um pecado, um acidente maior,<br />

daqui a pouco vira deserto, vai destruir a água. O melhor investimento para<br />

a nossa mãe natureza, pro mundo é investir em árvore, é conviver com as<br />

árvores. A gente se anima com a sombra, ela anima. A planta não gera só<br />

fruto e dinheiro, gera oxigênio, segura água, pra mãe natureza, pra mãe terra.<br />

A agrofloresta é uma roça que se multiplica, os passarinhos e os bichos vêm<br />

chegando. A natureza está chegando de volta. Inseto não é praga...praga é a<br />

gente que não sabe viver com a natureza. A melhor poupança é trabalhar com<br />

a Natureza, é plantar árvore, insistir em reflorestar este lugar que está bem<br />

– 80 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

judiadão. Deus deixou as coisas todas bem feitas, nós é que descontrolamos<br />

tudo e depois queremos dizer que Deus é o culpado. Pode vir alguém aqui me<br />

perguntar se eu tiro alguma coisa daqui. Hoje eu não to tirando, mas já tirei<br />

muita coisa daqui. E to deixando ar puro, tirando gás carbônico, dando comida<br />

pros macuco, pros tucano, que vão trazer mais comida pra mim (Sezefredo<br />

Gonçalves, citado por SILVA, 2011).<br />

Assim, existe um elemento de construção cultural e de crescimento<br />

social no processo de construção do conhecimento em agrofloresta, que se dá<br />

de forma articulada ao processo de construção do conhecimento das práticas<br />

agroflorestais. Em ambos, os processos ecológicos, aprendidos sob processos<br />

cognitivos característicos, são grandes mestres.<br />

Considerando os aspectos discutidos, de forma sucinta, os principais<br />

eixos relacionados ao processo de construção do conhecimento em<br />

agrofloresta, analisados a partir da observação dos relatos, são:<br />

1. Autoconscientização da relação de dependência e pobreza com a<br />

agricultura convencional e da relação de autonomia e fartura a<br />

partir da experiência em agrofloresta;<br />

2. Dimensão espiritual-religiosa na relação com a natureza e com as<br />

agroflorestas, contribuindo para a aprendizagem e prática dos<br />

sistemas agroflorestais, para a autoestima e para o bem-estar<br />

pessoal e comunitário;<br />

3. Recebimento de visitas, tanto em mutirões quanto por agricultores,<br />

pesquisadores e técnicos de outras regiões;<br />

4. Realização de visitas em outros agricultores e suas agroflorestas;<br />

5. Valorização do associativismo, especialmente voltado à comercialização;<br />

6. Assistência técnica diferenciada, baseada na construção de<br />

conhecimentos a partir de bases ecológicas e da valorização do<br />

conhecimento dos agricultores;<br />

7. Realização de mutirões e outras formas de trabalho em grupo;<br />

8. Aprendizagem de processos ecológicos a partir da prática da<br />

agrofloresta e da observação dos processos ecológicos.<br />

– 81 –


Aspectos pedagógicos no processo de ensino/aprendizagem de agrofloresta,<br />

no âmbito da agrofloresta<br />

É possível que, a partir de um maior número de relatos, ou de novos<br />

processos de pesquisa, sejam identificados outros eixos relacionados com a<br />

aprendizagem em agrofloresta, considerando a experiência dos agricultores.<br />

De qualquer forma, os eixos aqui apresentados podem ser muito úteis<br />

para a ampliação de atividades pedagógicas relacionadas ao desenvolvimento<br />

de sistemas agroflorestais, no âmbito de atuação da Cooperafloresta ou<br />

de outras iniciativas em regiões com características ambientais e culturais<br />

semelhantes.<br />

Aparentemente, uma vez que esses eixos são frutos de experiências<br />

reais, de agricultores que praticam a agrofloresta e passaram (e continuam<br />

passando) por um processo de aprendizado, em um sentido amplo da palavra,<br />

o uso dos eixos em processos pedagógicos, envolvendo agricultores familiares,<br />

pode constituir as bases de uma racionalidade ambiental instrumental para o<br />

desenvolvimento de sistemas agroflorestais.<br />

É importante considerar que, para o desenvolvimento desses eixos, em<br />

um processo pedagógico, deve-se lançar mão de metodologias que valorizem<br />

não só o processo racional de aprendizagem, mas também a multiplicidade<br />

de dimensões aqui relatadas.<br />

Considerações finais<br />

Na construção de um processo pedagógico voltado à amplificação do<br />

conhecimento sobre agroflorestas, é importante buscar criar laços entre<br />

diferentes formas de abordagens, tanto interdisciplinares quanto considerando<br />

as diferenças entre o saber popular e o saber científico.<br />

Em outras palavras, é importante buscar o diálogo entre os diferentes<br />

saberes, contando com esse diálogo como uma das bases do próprio processo<br />

de construção do saber.<br />

O desafio é incorporar, nos processos pedagógicos, atividades cuja<br />

intencionalidade e método sejam direcionados para desenvolver estes eixos.<br />

A Figura 1 traz os eixos desta racionalidade, captados neste trabalho.<br />

– 82 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Figura 1: Eixos da racionalidade ambiental instrumental para o desenvolvimento de<br />

processos pedagógicos em sistemas agroflorestais, no âmbito da Cooperafloresta<br />

Na estruturação de ações de capacitação e de educação ambiental,<br />

considerando os elementos da análise aqui discutida, é fundamental<br />

a proposição da experienciação da agrofloresta, como ferramenta de<br />

construção multidimensional do conhecimento. É a partir da experienciação<br />

que, junto aos agricultores que praticam agrofloresta, se desenvolveu o<br />

aumento da autoestima, a redução da dependência e a dimensão espiritual/<br />

religiosa, tão importantes para o desenvolvimento da racionalidade ambiental<br />

dessas pessoas.<br />

As múltiplas formas dessa racionalidade podem ser trazidas, em um<br />

processo de formação, a partir de visitas e palestras desses agricultores.<br />

Nesse processo de experienciação, é também importante a discussão<br />

teórica de elementos conjunturais políticos e econômicos, visando fomentar<br />

a conscientização em relação aos aspectos de dependência e pobreza<br />

relacionados à agricultura convencional, de forma antagônica a autonomia e<br />

fartura proporcionadas pela agrofloresta.<br />

Em todo o processo de formação, deve ser dada especial ênfase ao<br />

trabalho em grupo, seja na implantação/monitoramento de agroflorestas, seja<br />

em trabalhos teóricos ou práticos relacionados a atividades de aprendizagem.<br />

– 83 –


Aspectos pedagógicos no processo de ensino/aprendizagem de agrofloresta,<br />

no âmbito da agrofloresta<br />

De acordo com os relatos dos agricultores, é a partir do trabalho em grupo<br />

que vários elementos do conhecimento das agroflorestas foram e são<br />

desenvolvidos, e que vão muito além da maior efetividade de um trabalho,<br />

quando desenvolvido de forma grupal.<br />

Visando à construção do conhecimento teórico relacionado aos<br />

processos ecológicos, é importante o uso de estudos de caso das dinâmicas<br />

naturais. Esses estudos de caso poderiam ser representados por atividades de<br />

pesquisa, conduzidas em forma de pesquisa-ação transdisciplinares. Nesse<br />

processo, é fundamental incorporar metodologias que deem conta da<br />

multidimensionalidade envolvida nos processos cognitivos de aprendizado da<br />

agrofloresta, com vistas a evitar a separação entre observador e natureza,<br />

comum à ciência convencional.<br />

Esses elementos gerais, aqui propostos, são provenientes dos resultados<br />

apontados neste trabalho, de forma generalista. Entretanto, a pertinência dos<br />

dados aqui discutidos, bem como, em especial, as propostas a serem<br />

construídas em um projeto pedagógico devem, necessariamente, ser<br />

discutidas em um âmbito mais amplo, envolvendo agricultores, técnicos,<br />

educadores e pesquisadores de diferentes áreas.<br />

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– 87 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 5<br />

As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

Rodrigo Ozelame da Silva,<br />

José Edmilson de Souza-Lima,<br />

Sandra Mara Maciel-Lima e<br />

Walter Steenbock<br />

Primeiras palavras<br />

Aos leitores e leitoras destas palavras, além de nosso sincero<br />

agradecimento, cabe uma advertência. A pedra fundamental na qual vemos<br />

o mundo, ou como diz o complexo Morin, nosso paradigma (MORIN, 2007),<br />

está alicerçada por aqueles que Paulo Freire chama de “Oprimidos” (FREIRE,<br />

2005) e Boaventura de Sousa Santos de pessoas que estão “do outro lado da<br />

linha”, considerados pela ciência moderna como sub-humanos, servindo<br />

apenas como objeto para inquirição científica dos que estão “deste lado da<br />

linha” (SOUSA SANTOS, 2010); por milhões e bilhões que “gritam<br />

caninamente ao céu pedindo um pouco de compaixão e misericórdia na<br />

forma de pão, de água potável, de saúde, de moradia, de reconhecimento e<br />

de inclusão na família humana” (BOFF, 2011. p.10); por mulheres que<br />

andam cada vez mais longe à procura de lenha para suas casas, por homens<br />

que cavam poços cada vez maiores em busca de água, como diz Guha ao<br />

contextualizar o Ecologismo dos Pobres (GUHA, 1994).<br />

A expressão “Primeiras Palavras” é uma analogia e uma homenagem a<br />

Paulo Freire que costumava usar essa mesma expressão no início de suas<br />

obras. A justificativa desta pesquisa se baseia na premissa de que toda<br />

experiência social produz e reproduz conhecimento, portanto todos os atores<br />

dela têm um arcabouço de conhecimentos que é usado em suas relações com<br />

os outros e a natureza. Todavia, para parte de nossa sociedade que divide o<br />

– 89 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

mundo em duas linhas abissais, essas experiências não existem. Não existir<br />

significa que elas não são legais ou ilegais, corretas ou erradas, significa ser<br />

ausentes, invisíveis, sub-humanas. Assim, junto com os envolvidos e<br />

responsáveis por essas experiências, suas relações, símbolos, intervenções<br />

no real e seu método de validação do conhecimento também não existem,<br />

pois apenas a epistemologia do pensamento moderno é aceita (SOUSA<br />

SANTOS, 2010).<br />

Como consequência, um epistemicídio 1 (SOUSA SANTOS, 2010)<br />

imenso está acontecendo e uma riqueza de relações que pode alterar as<br />

vicissitudes de todos os processos está sendo desperdiçada. Dentro desse<br />

contexto, estas palavras apresentam as seguintes perguntas:<br />

Será que realmente há apenas uma única maneira de se relacionar<br />

com a natureza?<br />

Se a resposta for negativa, como as pessoas desses mundos<br />

alternativos sentem o mundo? E como dialogar com esses sentimentos e o<br />

conhecimento científico?<br />

A perspectiva desta pesquisa é que existem mais do que uma maneira<br />

de se relacionar com a natureza. O objetivo deste capítulo é identificar<br />

indícios de uma relação diferente entre mulheres e homens com a natureza<br />

na Cooperafloresta, mas na perspectiva das experiências de mulheres e<br />

homens que constroem tal Associação. Buscou-se realizar dois processos:<br />

primeiramente identificar indícios de como os homens e as mulheres da<br />

Associação percebem o mundo e, a partir daí, dialogar com o alicerce<br />

acadêmico de Boaventura de Sousa Santos se tais sentimentos estão a<br />

fomentar uma Ecologia de Saberes.<br />

Para isso, inicialmente este capítulo mostra como foi a maneira de<br />

escutar e sistematizar experiências sociais características dos associados à<br />

Cooperafloresta – aqui chamadas de Vozes da Floresta – no item Procedimentos<br />

Metodológicos. Na segunda parte, As Vozes da Ecologia, a intenção é trazer<br />

1<br />

O Pensamento Moderno ao considerar apenas um método de validação do conhecimento como<br />

válido, ocasionou (e ocasiona) o assassinato de diversas epistemologias. Para Santos, esse<br />

processo é intitulado como epistemicidio (SANTOS, 2010). Note-se que tal termo é uma analogia<br />

e consequência dos genocídios que os países do Sul Global como a América Latina e a África<br />

sofreram, e quiçá sofrem desde o período colonial.<br />

– 90 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

a dimensão conceitual da Ecologia de Saberes (SOUSA SANTOS, 2010) para<br />

contribuir na contextualização das Vozes das Floresta. Na terceira parte,<br />

apresentam-se as considerações finais da pesquisa.<br />

Procedimentos metodológicos<br />

Para buscar sistematizar experiências sociais e percepções dos<br />

agricultores associados à Cooperafloresta, foram transcritas “falas” destes<br />

atores em diferentes momentos. As “falas” expostas são oriundas de fragmentos<br />

de histórias orais, chamadas aqui de Vozes da Floresta. Tais Vozes são<br />

intituladas desta maneira em analogia à destreza que os agricultores possuem<br />

no manejo da floresta e ao <strong>livro</strong> Vozes do Mundo (SOUSA SANTOS, 2009).<br />

Sendo o projeto “Reinventar a Emancipação Social: Para Novos<br />

Manifestos” (SOUSA SANTOS, 2009), a inspiração para a gravação e<br />

sistematização das Vozes deste artigo, buscou-se seguir a posição políticoepistemológica<br />

de “evitar sobrepor o conhecimento científico social às<br />

narrativas das Vozes coletadas” (SOUSA SANTOS, 2009, p. 19).<br />

Buscou-se, como referência metodológica principal, fazer algo<br />

minimamente próximo do volume seis do projeto, intitulado “As Vozes do<br />

Mundo” (SOUSA SANTOS, 2009). Esse <strong>livro</strong>, “em vez de se centrar na análise<br />

científica-social das lutas e dos movimentos sociais, centra-se no discurso e<br />

no conhecimento prático dos protagonistas dessas lutas e movimentos”<br />

(SOUSA SANTOS, 2009, p. 13).<br />

O tempo cronológico referente ao prazo de realização da pesquisa e<br />

uma relação de confiança mútua entre associados e autores são os critérios<br />

de seleção das histórias orais de vida. A maneira que foi realizada leva em<br />

conta que:<br />

A história oral é a história do tempo presente, pois implica a percepção do<br />

passado como algo que tem continuidade hoje, e cujo processo histórico não<br />

está acabado. Nesta medida, ela não só oferece uma mudança no conceito de<br />

História; mais que isso, dá um sentido social à vida de depoentes e leitores,<br />

que passam a entender a sequência histórica e a sentir-se parte do contexto<br />

em que vivem (ICHIKAWA e SOUSA SANTOS, 2003, p. 182).<br />

A ideia inicial era que não houvesse roteiro pré-elaborado durante as<br />

histórias orais de vida. Todavia, na primeira experiência irrompeu a vontade<br />

– 91 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

de caminharmos sob uma agrofloresta. Nessa caminhada foi dialogado sobre<br />

qual é o sentimento de estar transitando por um local daqueles e se a vida da<br />

pessoa mudou depois da entrada na Cooperafloresta. Essa estratégia permitiu<br />

maior fluidez às conversas. Sendo assim, usaram-se a caminhada e o<br />

questionamento nas demais histórias de vida.<br />

Foram sistematizadas três histórias orais de vida. Elas foram gravadas<br />

e transcritas na íntegra, delas retirando trechos de situações de momentos<br />

da vida pessoal do entrevistado. Os critérios de retirada foram a presença<br />

de trechos da vida amorosa, relatos de vícios e falas em que o associado<br />

indica que outro associado está fazendo algo “errado”. Antes do início de<br />

cada gravação foi explicado o porquê, para que e por quem seriam utilizadas<br />

as informações das entrevistas. No início de cada gravação esse diálogo<br />

foi repetido e durante o processo procurou-se não interromper o associado.<br />

Quando surgia algum tema que suscitava dúvida, os pesquisadores esperavam<br />

o silêncio do entrevistado para argumentar sobre o tema, mas sempre de<br />

forma sucinta. Como procedimento pós-gravação, levaram-se o texto<br />

digitalizado e a gravação para o membro da Cooperafloresta decidir se teria<br />

algo que gostaria de não socializar. Embora cada gravação tenha uma maneira<br />

própria de acontecer, todas foram propostas depois de um período de trabalho<br />

em conjunto com os sujeitos da pesquisa, no âmbito da Cooperafloresta. Esse<br />

foi o principal critério de seleção dos sujeitos da pesquisa e, nesse sentido,<br />

não obedeceu a nenhum critério geral de representatividade. Foi reconhecida<br />

como válida a premissa de que:<br />

As Vozes são apenas representativas pela sua exemplaridade, pelo caráter<br />

único do desenvolvimento dos seus titulares nas lutas sociais, pela intensidade<br />

das narrativas e Histórias de vida que nos transmitem com insuperável<br />

transparência. Milhões de outras Vozes, igualmente representativas pela<br />

sua exemplaridade, poderiam ter sido escolhidas. As Vozes não ouvidas<br />

constituem o inabarcável silêncio planetário de que emergem as Vozes aqui<br />

ouvidas, um silêncio, que, ao ouvi-las, se torna ainda mais pesado (SOUSA<br />

SANTOS, 2009, p. 14).<br />

Outro processo utilizado para captar as Vozes da Floresta foi a<br />

construção de mapas históricos. Eles foram construídos em parceira com os<br />

agricultores, já que foram eles que mostraram onde são as divisas de suas<br />

– 92 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

propriedades, bem como os tipos de solos (glebas) e qual nome deve ser<br />

atribuído a ela. Após a confecção do mapa, ele foi levado em meio digital<br />

para o agricultor, e perguntado se ele estava de acordo com o resultado<br />

indicando. Durante esse processo foram realizados eventuais ajustes, além<br />

de ser construído um mapa de como era sua propriedade no início da<br />

Associação junto com o histórico de cada gleba.<br />

Mais um procedimento realizado foi o acompanhamento dos mutirões,<br />

não havendo critérios específicos para a seleção dos mutirões a serem<br />

acompanhados. Também foram usadas falas e situações que os pesquisadores<br />

acompanharam durante algumas situações vivenciadas em campo. Foi<br />

solicitada permissão para manter os nomes originais das Vozes da Floresta.<br />

Além disso, foi pedido aos sujeitos da pesquisa o registro fotográfico e sua<br />

publicação. Todavia, nos casos em que há Vozes de pessoas de outros lugares,<br />

foram criados nomes fictícios para aqueles que não foram consultados.<br />

As vozes da ecologia<br />

Visando escapar a uma eventual hierarquia entre saberes, este tópico<br />

traz o diálogo entre agricultores da Cooperafloresta, que talvez façam parte<br />

das “Vozes do Mundo” (SOUSA SANTOS, 2009) com a “Ecologia de<br />

Saberes” (SOUSA SANTOS, 2010) de tal modo que se provoque uma<br />

fundamentação mútua.<br />

Para SOUSA SANTOS (2010), o pensamento moderno é um<br />

“pensamento abissal”. Abissal porque separa a realidade social em dois<br />

universos distintos: o universo “desse lado da linha” e o universo do “outro<br />

lado da linha”, além de ser constituído por um conjunto de distinções visíveis<br />

e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis” (SOUSA<br />

SANTOS, 2010). A origem dessa nefasta linha global é o colonialismo, que,<br />

para além de outras dominações e eliminações conhecidas, foi também uma<br />

usurpação e um assassinato de saberes, práticas e relações societais de<br />

mulheres e homens entre si e com a natureza (SOUSA SANTOS e MENESES,<br />

2010, p.11). Desse modo, a linha invisível que define o que é “desse lado da<br />

linha” e o “outro lado da linha” tem uma origem cartográfica fixa, o Tratado<br />

de Tordesilhas, assinado entre Portugal e Espanha em 1494 (SOUSA<br />

SANTOS, 2010, p.35). Porém, a linha visível que separa a América do Sul<br />

– 93 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

entre leste para Portugal e oeste para a Espanha, é fomentada por uma linha<br />

invisível que separa civilizados de selvagens, dominantes de dominados.<br />

Estar do “outro lado da linha” é estar onde:<br />

Não há conhecimento real, existem crenças, opiniões, magia, idolatria,<br />

entendimento intuitivos ou subjetivos, que na melhor das hipóteses, podem<br />

tornar-se objetos ou matéria-prima para a inquirição científica. Compreende<br />

assim, uma vasta gama de experiências desperdiçadas, tornadas invisíveis, tal<br />

como seus autores, e sem uma localização territorial fixa (SOUSA SANTOS,<br />

2010, p. 34-35).<br />

Dessa maneira, o colonialismo constitui o grau zero, a partir do qual<br />

são construídas as modernas concepções de conhecimento e do direito.<br />

O conhecimento e o direito moderno representam as manifestações mais<br />

bem conseguidas do pensamento abissal [...]. No campo do conhecimento, o<br />

pensamento abissal consiste na concessão à ciência moderna do monopólio<br />

da distinção universal entre o verdadeiro e o falso, em detrimento de dois<br />

conhecimentos alternativos: a filosofia e a teologia [...]. Essas tensões entre a<br />

ciência, a filosofia e a teologia têm sido altamente visíveis, mas como defendo,<br />

todas elas têm estado desse lado da linha [...]. A sua viabilidade assenta na<br />

invisibilidade de formas de conhecimento que não se encaixam em nenhuma<br />

destas formas de conhecer. Refiro-me aos conhecimentos populares, leigos,<br />

plebeus, camponeses, ou indígenas do outro lado da linha (SOUSA SANTOS,<br />

2010, p.33).<br />

Portanto, a linha abissal colonial se estende para além do legal ou ilegal,<br />

o verdadeiro do falso. Ela separa o invisível do visível, o estado de natureza do<br />

homem civilizado, o subdesenvolvido do desenvolvido. Juntas, essas formas de<br />

negação produzem uma ausência de humanidade, a sub-humanidade:<br />

Assim a exclusão torna-se simultaneamente radical e inexistente, uma vez que<br />

seres sub-humanos não são considerados sequer candidatos à inclusão social.<br />

A humanidade moderna não se concebe sem uma sub-humanidade moderna<br />

(SOUSA SANTOS, 2010, p.38-39).<br />

No bojo desse debate, Boaventura de Sousa Santos argumenta que<br />

esta realidade é tão verdadeira na contemporaneidade como o era no período<br />

colonial, principalmente no que tange ao campo epistemológico e jurídico do<br />

pensamento hegemônico (SOUSA SANTOS e MENESES, 2010). Contudo,<br />

– 94 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

vários processos dessas linhas abissais se modificaram no decorrer dos<br />

últimos séculos. Um elemento dessa transformação é o embate da<br />

Globalização Hegemônica com a Contra-Hegemônica. Desse embate se<br />

estariam tecendo novos caminhos à emancipação social. Metaforicamente,<br />

essa luta pode também ser definida como o choque entre o “Sul Global” com<br />

o “Norte Global”. Cabe ressaltar que o termo “Norte Global” e “Sul Global”<br />

não são representações geográficas, pois há no Norte geográfico povos que<br />

fazem parte da Globalização Contra-Hegemônica, como os povos autóctones<br />

da América do Norte, bem como sujeitos que pertencem ao Norte e estão<br />

geograficamente no Sul, como as elites dos países latino-americanos. Assim,<br />

o Sul Global é concebido como a metáfora do sofrimento humano sistêmico<br />

e injusto provocado pelo capitalismo global e pelo colonialismo, estando no<br />

“outro lado da linha”. O Norte Global, por sua vez, é a institucionalização da<br />

verdade, do legal, dos homens civilizados considerados como “desse lado da<br />

linha” (SOUSA SANTOS, 2010, p.53).<br />

Uma preocupação, neste trabalho, é que além de ouvir os sujeitos<br />

que constroem novos caminhos, x’ devemos escutar as Vozes do “outro<br />

lado” da linha, temos que articular um pensamento sem as linhas abissais,<br />

um pensamento pós-abissal. A construção do pensamento pós-abissal deve<br />

se assentar na eliminação das linhas que separam “esse lado” da linha do<br />

“outro lado” da linha. Desse modo, é imprescindível ir além da construção<br />

de um “pensamento alternativo, pois a tarefa que se avizinha não pode ser<br />

limitada à geração de alternativas. Ela requer de fato, um pensamento<br />

alternativo de alternativas” (SOUSA SANTOS, 2010, p.49.). Por conseguinte,<br />

parece imperativo diferenciar alternativas dentro do capitalismo, de<br />

alternativas ao capitalismo.<br />

Entretanto, por um período possivelmente longo, será preciso conviver<br />

com as linhas abissais. Dentro dessa conjuntura, emerge um conceito<br />

que pode contemplar os saberes dos sujeitos “do outro” lado da linha que<br />

articulam a Globalização Contra-Hegemônica, uma Epistemologia do Sul<br />

(SOUSA SANTOS, 2010). Ela pode ser sumariada como um aprender com o<br />

Sul usando uma Epistemologia do Sul. Nesse sentido, uma definição prudente<br />

para a epistemologia nesse momento seria:<br />

– 95 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

Toda a noção de idéia, refletida ou não, sobre as condições do que conta<br />

como conhecimento válido. É por via do conhecimento válido que uma dada<br />

experiência social se torna inteligível e intencional. Não há, pois, conhecimento<br />

sem práticas e atores sociais (SOUSA SANTOS, 2010, p.15).<br />

Logo, qualquer conhecimento válido ou não, é sempre contextual.<br />

Assim, se “toda experiência social produz e reproduz conhecimento” (SOUSA<br />

SANTOS, 2010, p.15) diferentes tipos de contextos sociais podem dar origem<br />

a vários tipos de conhecimento e, consequentemente, a intervenções e<br />

relações na natureza e sociedade. Esse aporte é um dos pilares para<br />

construção de uma Ecologia de Saberes, uma vez que ela se fundamenta no<br />

prestígio da pluralidade de conhecimentos heterogêneos, com interações<br />

sustentáveis e dinâmicas entre as partes, porém sem corromper a autonomia<br />

de cada saber. Para isso a Ecologia de Saberes baseia-se na ideia de que<br />

conhecimento é interconhecimento (SOUSA SANTOS, 2010).<br />

A Ecologia de Saberes é uma contraepistemologia, pois no momento<br />

que vivemos é forçosa uma epistemologia geral da impossibilidade de uma<br />

epistemologia geral. O impulso básico que faz emergir esse processo seria a<br />

proliferação de diversas alternativas que não se podem rotular como iguais,<br />

pois cada uma tem maneiras de produzir, reconhecer as diferenças, saber,<br />

compreender o tempo e representações de escalas distintas. Desses conflitos<br />

emerge algo que pode dar consistência epistemológica às interações desses<br />

mundos, de forma dinâmica, sustentável e que fomente a tradução entre as<br />

partes, contudo sem exigir que cada uma abandone sua autonomia, ou seja,<br />

uma Ecologia de Saberes. Desse modo, tal axioma é o responsável por gerar<br />

o amálgama epistemológico da Globalização Contra-Hegemônica (SOUSA<br />

SANTOS, 2010).<br />

A seguir, elencamos nove indicadores de uma Ecologia de Saberes<br />

(SOUSA SANTOS, 2010) e um diálogo destes com as Vozes da Floresta.<br />

A Crença na ciência é relativamente tênue e outros<br />

conhecimentos não científicos prevalecem diante dos científicos<br />

Nas Vozes da Floresta, encontramos uma confiança relativamente<br />

tênue na ciência moderna, pois é mais latente nas histórias de vida de membros<br />

da Globalização Contra-Hegemônica o vínculo entre dominação e espoliação<br />

– 96 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

causado pelo colonialismo e a ciência moderna. Assim, os conhecimentos não<br />

científicos parecem ser mais presentes no cotidiano dessas comunidades<br />

(SOUSA SANTOS, 2010). Esses fatores – uma crença mais tênue na ciência<br />

moderna e uma maior relevância dos conhecimentos não científicos – se<br />

constituem em dois indicadores de uma Ecologia de Saberes.<br />

Nas Vozes da Floresta podemos escutar alguns indícios desse processo,<br />

como na História de Vida do Sezefredo.<br />

Eu tenho falado para as pessoas, e já falei pra várias pessoas que vem visitar<br />

nós que ainda bem que o pessoal tá aprendendo a comer com a boca, quando<br />

eu falo assim o pessoal pergunta qual o sentido disso. Eu digo por que tem<br />

gente que tem que olhar, se o olho gostou a boca come. Mas tem um pessoal<br />

que já tá aprendendo a comer com a boca. Isso acontece por que eles estão<br />

vendo que a parte do veneno tá acabando com nossa mãe natureza tem que<br />

procurar se não largar pelo menos diminuir. E outra, se quiser colocar veneno<br />

procure não colocar perto da água, trabalhe lá longe (Vozes da Floresta:<br />

Sezefredo Gonçalves).<br />

Nesse trecho, ao usar a metáfora do porquê as pessoas estão deixando<br />

de comer com os olhos vinculados ao uso de veneno, há índicos de descrédito<br />

com parte do conhecimento científico que fomenta a revolução verde 2 .<br />

A revolução verde pode ser um exemplo de “Monocultura do sabor e do<br />

saber do rigor” (SOUSA SANTOS, 2002, p.149) à medida que suprime a<br />

criatividade e a possibilidade de novas formas de conhecimento pela entrada<br />

de insumos produzidos fora das propriedades em larga escala e com uma<br />

receita prévia do que e quando fazer. Assim, ao defrontar essa lógica, está se<br />

colocando em xeque parte da ciência que deseja unificar os processos de<br />

produção e comercialização.<br />

Outro sujeito que relata uma confiança mais tênue nesse campo da<br />

ciência é Maria de Lurdes.<br />

2<br />

Trata-se de um modelo agrícola institucionalizado pelo estadunidense Norman Ernst Bourlag.<br />

Funciona com elevada quantidade de insumos agrícolas, sementes selecionadas, fertilizantes,<br />

maquinário e uso excessivo de água e energia. Por ter como horizonte a grande propriedade<br />

capitalizada e apoiada por determinadas políticas de governo, foi um modelo que empurrou<br />

para as margens a pequena agricultura camponesa, acirrando as desigualdades no meio rural,<br />

sobretudo em países do hemisfério Sul.<br />

– 97 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

A terra era ruim, eu falava: como vou plantar numa terra dessas? Só pedra e<br />

só barranco! A terra era magra, magra e feia! Ai o pessoal: Ah, passa veneno!<br />

Ah passa roçadeira! Queima! Eu digo não! Se eu não puder roçar, eu deixo<br />

que o mato cresça! Mas ninguém vai queimar! Ninguém vai passar veneno!<br />

A hora que eu puder pagar pra alguém roçar o capim vai derreter e vai virar<br />

terra preta. E assim comecei minhas plantas e a terra começou a pegar uma<br />

corzinha (Vozes da Floresta: Maria de Lurdes).<br />

Ou seja, ambos desconfiam do papel científico incorporado no manejo<br />

que a revolução verde fomenta. Um exemplo é o critério de validação que<br />

Maria usa quando quer saber qual é a situação da terra. Não é uma análise<br />

de laboratório feita ou assinada por um perito e sim algo que não é bem<br />

aceito em todos os corredores da ciência, a “corzinha do solo”.<br />

Voltando para o Senhor Sezefredo.<br />

Eu falo que a agrofloresta veio para ficar, porque é uma coisa que veio dando<br />

certo e vai melhorando a vida da natureza e deixando a natureza trabalhar do<br />

jeito dela e deixando herança pra nosso futuros filhos, nossos neto ter com o<br />

que ficar para valer o trabalho (Vozes da Floresta: Sezefredo Gonçalves).<br />

Ao se escutar essa Voz argumentar os motivos que seu trabalho veio<br />

para ficar, não vemos vínculos com os cânones produtivos como a acumulação<br />

de capital que tende a ser fomentado por parte da ciência, mas sim em deixar<br />

a natureza trabalhar do jeito dela, que o futuro vai valer a pena. Portanto, a<br />

confiança em parte da ciência fica em segundo plano, emergindo como<br />

critério de validação o jeito que a natureza trabalha. Nesse contexto a natureza<br />

fica “embebecida” em uma cortina de fumaça um tanto quanto mística, quem<br />

sabe não científica. Como segue:<br />

Então eu vejo isso ai como um certo valor, eu com o Pedro Oliveira mesmo,<br />

nós entramos numa coisa meio saber se dava certo ou não. Uma boa pergunta<br />

é por que eu entrei numa coisa que eu não sabia se ia dar certo, se eu tava<br />

vendendo o sítio pra ir não se sabe pra onde? É que tinha um poço pra mim<br />

entrar nele. Um poção bem fundo cheio de água e uns dez metro de labareda de<br />

fogo pra mim passar. Daí eu tava sujeito a qualquer coisa. Eu tava próximo de<br />

me acidentar, eu e minha família. Então com isso ai Deus evitou de acontecer.<br />

Hoje o sítio tá ai, sendo um sitio modelo, com três nascentes d’água (Vozes da<br />

Floresta: Sezefredo Gonçalves).<br />

– 98 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

O que fez o senhor Sezefredo acreditar no sistema implantado em seu<br />

sítio não são informações científicas, mas a necessidade e a influência de<br />

Deus. Portanto, reforçam-se processos não científicos como aporte para as<br />

decisões tomadas.<br />

Essa ligação com Deus também é ouvida em outras Vozes.<br />

Eu agradeço a Deus pelo serviço. Acredito que é uma roça sem fim. Por que<br />

a gente sempre tá tendo mais coisa. O terreno que a gente começou não<br />

tava dando mais quase nada. Agora tem cateto, tatu, tucano, jacu, papagaio,<br />

lagarto porque tem espaço pra eles morar (Vozes da Floresta: Ditão 3 ).<br />

Ditão considera Deus como responsável por sua roça sem fim. Não<br />

algum processo com nomenclatura científica como sucessão vegetal, relação<br />

carbono/nitrogênio do solo ou a interação fauna e flora. Desse modo, é um<br />

saber não científico que faz acreditar no sistema que trabalha, Deus. Ou seja,<br />

um elemento não científico.<br />

Há troca de ignorâncias<br />

Se for verdade que é vasta a diversidade de leituras do mundo possível<br />

na Globalização Contra-Hegemônica (como presumimos), a riqueza de<br />

saberes do mundo quem sabe seja infinita. Todavia ao trocar visões de<br />

mundo, na Ecologia de Saberes também acontece a troca de ignorância,<br />

sendo esse outro indicativo de uma Ecologia de Saberes. Porém, a ignorância<br />

não é o estado original em que se articulam saberes; ela pode ser um ponto<br />

de chegada, de troca de dúvidas, de informações que o outro não vê, pois<br />

cada conhecimento responde e desconsidera apenas parte das intervenções<br />

possíveis no mundo. Desses embates nascem novas dúvidas intercambiadas<br />

pelas cosmovisões e deste intercâmbio podem irromper novas soluções<br />

para a construção de um mundo mais justo. Esse processo faz parte,<br />

inclusive, do processo amplo de reciprocidade, discutido no capítulo 6,<br />

presente neste <strong>livro</strong>.<br />

Presumimos que as trocas de felicidades, ambições, dúvidas, sonhos e<br />

experiências que ocorrem nos mutirões da Cooperafloresta são um ambiente<br />

3<br />

Ditão é como se conhece o senhor Benedito Gonçalves. Por sua vontade, tal sujeito é identificado<br />

neste texto por Ditão.<br />

– 99 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

fértil para socializar o que se vê e sabe com o que não se vê e não se sabe.<br />

Como disse o agricultor Sidinei Maciel acerca da sua experiência em dividir<br />

seus conhecimentos, “trabalhei com o pessoal como multiplicador 4 . Ensinei<br />

tudo que deu certo e o que não. Eu não faço e falo para os outros que não<br />

façam” (Vozes da Floresta: Sidinei Maciel). Portanto, Sidinei Maciel troca mais<br />

do que saberes, troca o que deu certo e também o que não deu. Uma Voz da<br />

Floresta que visitou o senhor Sidinei Maciel reforça a importância da troca de<br />

informações durante uma visita.<br />

A primeira vez que ouvi falar de agrofloresta foi um dia quando eu tava<br />

plantando mandioca. Daí chegou uma pessoa falando 5 pra plantar guandu<br />

e uma coisarada assim. Isso parecia loucura. Um dia a gente foi andar<br />

por umas áreas. Andamos pelo Sidinei, Gilmar. Daí eu vi que tava dando<br />

certo, que eles tavam tirando uma boa renda e recuperando o solo (Vozes da<br />

Floresta: José Gustavo).<br />

Se a busca de socializar o que o Sidinei Maciel sabe e o que ele não<br />

sabe (mesmo sendo para alguns loucura acreditar) foi o que fez o senhor José<br />

Gustavo confiar na agrofloresta, provavelmente seja um indício de que as<br />

trocas de saberes e ignorâncias têm influência na agregação de agricultores<br />

para a Cooperafloresta.<br />

Outra voz que contribuiu na discussão foi a de Pedro Oliveira.<br />

Eu cometi muitos erros. Mas tô vendo que a agrofloresta é fundamental para<br />

toda humanidade. Eu falo isso por que a gente não consegue fazer tudo em<br />

uma geração. A gente tem que fazer experiências. Assim vamos aprendendo,<br />

fazendo e aprendendo a fazer agrofloresta! (Vozes da Floresta: Pedro Oliveira).<br />

Desse modo, no fazer e aprender estão sendo trocados os erros<br />

cometidos (ignorâncias) com os acertos. E como tal processo pode perdurar<br />

por gerações, a troca de ignorâncias e saberes ainda terá vários outros<br />

4<br />

Agentes Multiplicadores foram criados durante o PROJETO IGUATU. Consiste em intensificar<br />

para 12 membros da Associação a troca de informações sobre o sistema Agroflorestal. Como se<br />

procurou eleger pessoas em diferentes grupos de trabalho, os agentes têm a missão de dividir e<br />

replicar com seu grupo o conhecimento adquirido (COOPERAFLORESTA, 2005-2011)<br />

5<br />

Essa pessoa chama-se Nelson. Ele é técnico da Cooperafloresta, sendo um dos responsáveis pelo<br />

fomento e pela manutenção da Associação.<br />

– 100 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

assuntos. Note-se que o intercâmbio de ignorâncias indica distanciamento da<br />

ciência moderna, cujos relatos se limitam aos casos “bem-sucedidos”.<br />

O conhecimento é validado como intervenção (ou impedimento)<br />

no real, não como representação<br />

Se é na articulação de saberes e ignorâncias que irrompe a Ecologia de<br />

Saberes, não seria prudente extirpar nenhum tipo de conhecimento do<br />

arcabouço de visões que podem ser alcançadas em nosso tempo, inclusive as<br />

intervenções oriundas da ciência moderna. Entretanto, faz-se necessário<br />

analisar os limites internos e externos de todos os saberes e suas vicissitudes,<br />

como a discrepância que a ciência moderna está distribuída entre os dois<br />

lados da linha e como sua intervenção no real tende a favorecer os grupos<br />

sociais com maior acesso a esse conhecimento, ou seja, os grupos “desse<br />

lado” da linha (SOUSA SANTOS, 2010).<br />

Em outros termos, o valor do conhecimento está intrinsecamente<br />

relacionado com sua capacidade de intervenção ou impedimento no real que<br />

proporciona, e não no que ele pode representar, sendo esse mais um indicativo<br />

de uma Ecologia de Saberes.<br />

Nesse contexto, Sidinei Maciel argumenta o que alteraria no manejo de<br />

sua propriedade, durante a elaboração do mapa histórico dela.<br />

Nas Agroflorestas mais jovens, eu consegui melhorar algumas coisas que eu<br />

acabei não fazendo nas Agroflorestas mais antigas. Por exemplo, pegar uma<br />

planta que é exigente de terra e botar em uma terra fraca, como o café. Plantei<br />

café de muda, um trabalhão. Tinha uma época que eu estava com cinco mil<br />

pés de muda no saquinho, um trabalho danado. Botei em uma terra ruim que<br />

até a braquiária estava sofrendo para sair. Se eu tivesse feito um trabalho com<br />

adubo, o café iria sair. Mas naquela maneira a terra não estava adequada.<br />

Todas as áreas têm café e hoje eu não faço isso. Eu não faço e falo para os<br />

outros que não façam (Vozes da Floresta: Sidinei Maciel).<br />

Portanto, o aprendizado no decorrer dos anos trabalhando no sistema<br />

agroflorestal tem forte influência na intervenção no real. Um exemplo é a<br />

crítica ao grande volume de trabalho para usar plantas que não são adequadas<br />

para um dado local. Ou seja, o resultado da atividade que seu conhecimento<br />

cria proporciona impedimento do processo novamente.<br />

– 101 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

Já o trecho da História de Vida do Sr. Sezefredo ilustra o porquê se<br />

aplica certa atividade.<br />

A terra era boa, o ar era mais puro a quantia de água era mais, as cor dela era<br />

mais. Aí quando começo a entrar comprador do terreno aqui na Barra do Turvo,<br />

foi mais ou menos por 1965, a gente começo a ver o plantio de capim aqui na<br />

Barra do Turvo que é o caso que acidentou o município e azar de nós, por que<br />

venho falando para as pessoas que não é lugar certo de ter criação de gado, né?<br />

O gado tem má qualidade, a carne é dura e não produz vaca de leite, não dá a<br />

quantia de leite suficiente (Vozes da Floresta: Sezefredo Gonçalves).<br />

Nesse espaço da História de Vida, o conhecimento que trouxe a criação<br />

de gado para a cidade onde o Sr. Sezefredo mora está sendo colocado em<br />

dúvida pela intervenção no real que proporciona, ao ser indicado como os<br />

resultados dessa atividade modificaram as características da terra, da água e<br />

do ar, além de fazer com que o município fique “acidentado”, bem como<br />

deixar a qualidade da carne “dura” e as vacas com pouco de leite. Ou seja, o<br />

valor do conhecimento está sendo criticado pela intervenção no real que ele<br />

proporciona. Nesse caso está contribuindo para que tal processo não seja<br />

implantado nem replicado pelo Sr. Sezefredo.<br />

Seguindo os passos do Sr. Sezefredo, iremos acompanhar alguns motivos<br />

que fazem com que essa Voz da Floresta acredite no seu trabalho atual.<br />

Você veja, uma roça como essa daqui, pra quem não sabe que é uma<br />

agrofloresta diz que tamô no meio de uma capoeira. Mas não valoriza a vida<br />

que tem aqui, espécie de alimento, da qualidade do ar que respiramos, de<br />

madeira né. Criando os pássaros, os bichos e dando oportunidade da natureza<br />

se completar (Vozes da Floresta: Sezefredo Gonçalves).<br />

Desse modo, está explícito nesta fala que o valor do conhecimento está<br />

vinculado com a quantidade de madeira, água e alimento que ela proporciona.<br />

Não obstante, ao deixar a natureza se completar, o conhecimento desta<br />

Voz da Floresta tende a criar um modo de fazer “roça” que conserva a<br />

natureza. Ou seja, é a intervenção no real a responsável por validar um dado<br />

conhecimento que, ao deixar a natureza se completar, possivelmente esteja<br />

fomentando um processo de conservação, além de estar “semeando outras<br />

soluções” como as que os conhecimentos indígenas e camponeses estão a<br />

conseguir na Globalização Contra-Hegemônica (SOUSA SANTOS, 2005).<br />

– 102 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Gilmar Batista, outra Voz da Floresta, contribui para discutir como o<br />

conhecimento é valorizado:<br />

Mas se quiser produzir milho, é só derrubá um pedaço. Ai você consegue<br />

produzir plantas de ciclos mais curtos como milho, feijão, arroz. Agora<br />

aqui a idéia não é derrubar mais, aqui agora é completar ela e deixar que<br />

isso aqui vire uma floresta produtiva, muita fruta, muito alimento. Mas, esses<br />

pedaços onde tem trabalho mal feito eu vou uma hora ou outra resolver<br />

plantar um pouco de milho, feijão, tomatinho. Eu derrubo um pedaço aí<br />

dessas árvores, corto bananeira, corto tudo e faço o serviço que não foi<br />

feito na área.<br />

E outra coisa que eu fiz é não utilizar arame. A maioria dos agricultores<br />

que plantam vagem e tomate amarram as madeiras com arame, fica um<br />

aramão só. Eu dei um jeito aqui, podei o mato, tirei cipó, folha de banana e<br />

amarrei. Finquei as varinhas e amarrava três juntas. Pra tirar o arame é um<br />

trabalho danado e o cipó apodrece no meio do caminho... (Vozes da Floresta:<br />

Gilmar Batista).<br />

Assim, a ideia (ou conhecimento) é validada nesse caso pela intervenção<br />

no real que gera muita fruta e alimento. Ou o jeito criado para acabar com a<br />

dificuldade de trabalho com arame. Do mesmo modo, são as consequências<br />

das suas atividades o motivo para considerar um mal resultado de parte do<br />

processo. Ou seja, são os resultados da intervenção no real do conhecimento<br />

da dinâmica florestal (que ele usa para conjugar plantas de ciclo curto e ciclo<br />

longo), da ciclagem de carbono (que faz com que a madeira usada no lugar do<br />

arame decomponha-se) o critério de validação ou não de seus conhecimentos.<br />

Seguindo as Vozes da Floresta chegamos ao processo de implantação<br />

da área de agrofloresta do senhor José Moreira:<br />

Aqui mesmo essa área que estamos aqui, já foi pasto. Aí depois quando<br />

começamos a fazer agrofloresta. Roçamos tudo e plantamos arroz, banana. Na<br />

época a gente não tinha todas essas mudas que tem hoje. Aí fomos arrumando<br />

umas de juçara e fomos completando e com outras árvores que estão faltando.<br />

Mesmo hoje não tem tudo. Estamos contando esses casos. Mas falta ainda<br />

fazer muita coisa. Para ficar bem completa, tinha que derrubar quase tudo e<br />

plantar tudo de novo. Tinha que renovar todo o sistema. Renovar o sistema é<br />

tirar as coisas mais velhas e plantar coisas novas. O que talvez tornaria mais<br />

produtiva. Nesse caso aqui, eu poderia derrubar tudo e começar plantar tudo<br />

de novo. A juçara talvez nem precisa porque essa aqui já deu sementeira, já<br />

– 103 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

vai nascer bastante. Nesse caso pra renovar a gente podia deixar só uma mãe.<br />

Por que ela distribui semente por tudo o chão, vai que é uma beleza (Vozes da<br />

Floresta José Moreira).<br />

É possível analisar que ao se relatar a implantação e renovação do<br />

sistema agroflorestal, existe uma tendência de se articular o conhecimento<br />

válido por meio do resultado das atividades. Assim, o saber que o Sr. José<br />

Moreira demonstra ter em relação à dinâmica florestal da juçara tem valor<br />

pela intervenção no real que proporciona ao deixar uma “mãe” como matriz<br />

para distribuir as sementes.<br />

Embora implícito, esse conhecimento também está fomentando um<br />

novo caminho para conservação. A próxima passagem de sua História de<br />

Vida pretende deixar isso mais explícito.<br />

Quando eu falo de ajudar a natureza, é porque vamo trabalhando em<br />

harmonia os dois. Você observa, por exemplo: se eu planto uma coisa que<br />

está atrapalhando a outra, eu podo. Aquilo que vai cair, a matéria orgânica<br />

no chão, a terra vai comer aquilo e a outra planta vai ficando bonita. Se eu<br />

fosse deixar só pela natureza iria demorar muito pra podar ela. Então eu to<br />

adiantando o trabalho da própria natureza. Ai ela me ajuda e vai produzindo<br />

também. Então aquele velho ditado, uma mão lava a outra e vamo que vamo<br />

(Vozes da Floresta Vida José Moreira).<br />

Assim, um novo caminho para a conservação que estava implícito na<br />

outra passagem fica mais evidente ao escutarmos a vontade de trabalhar em<br />

parceria com a natureza e “vamo que vamo”. Além disso, esse trecho indica<br />

como é vasto o saber dele em relação às observações do que e quando podar,<br />

a ciclagem de nutrientes que acontece ao podar algo, bem como a dinâmica<br />

da floresta que ao ser manejada cresce com mais rapidez. Enfim, o amplo<br />

conhecimento do Sr. José Moreira tem um viés prático que impede ou justifica<br />

suas intervenções no real.<br />

O conhecimento preserva modos de vida, universos simbólicos e<br />

informações vitais para a sobrevivência em ambientes hostis<br />

Os “novos” modos de vida, intervenções no real, universos simbólicos<br />

e informações tendem a fortalecer a sobrevivência em ambientes hostis,<br />

sendo esse outro indicador de uma Ecologia de Saberes. Aqui, é prudente<br />

– 104 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

relativizar o termo “ambiente hostil”, pois as cosmovisões presentes na<br />

diversidade dos conhecimentos do mundo tendem a gerar diversos sentimentos<br />

em relação ao assunto. Um exemplo é imaginar um habitante de uma aldeia<br />

Ianomâmi 6 chegando a um centro urbano pela primeira vez. Provavelmente,<br />

ele irá sentir que está num ambiente hostil. Já um habitante de um centro<br />

urbano que vá a uma aldeia longínqua pela primeira vez, tende a ter o mesmo<br />

sentimento. Assim, o termo sobrevivência a um ambiente hostil tenderia a<br />

estar vinculado à coexistência 7 de alguns povos com o ambiente ao seu redor,<br />

em virtude do seu universo de informações e símbolos.<br />

Dentro desse contexto, ouvimos os saberes das Vozes da Floresta:<br />

A nossa região não é apropriada para a agricultura convencional. Por isso a<br />

gente não tem outro jeito de trabalhar sem ser agrofloresta. Hoje posso dizer<br />

que sou patrão de mim mesmo! A gente vê que quem tá no convencional<br />

tá passando dificuldade, que não pode dizer o mesmo. É uma questão de<br />

sobrevivência pra nós. Eu falo isso por que a Cooperafloresta tá produzindo<br />

mais alimento pra nossa mesa! Mas também tá preservando a natureza, por<br />

que se as plantas estiverem todas jogadas de qualquer jeito a chuva vem e<br />

leva tudo. Agora se tá tudo picado, tudo certinho em fileira e bem espalhado,<br />

isso segura à terra boa quanto chove (Vozes da Floresta: Adão Monteiro.).<br />

Portanto, a dificuldade de trabalhar no ambiente da região é cambiada<br />

por uma prática que fomenta a adequação ao meio e gera mais fartura na<br />

mesa, capacidade de ser patrão de si mesmo, além de conservar a natureza.<br />

Desse modo, o ambiente que antes era fomentador de mazelas passa a ser<br />

objeto de cuidado desse sujeito que aprendeu a usar a agrofloresta como<br />

técnica para ir além das adversidades impostas pela racionalidade que acredita<br />

6<br />

Os Ianomâmis são povos que habitam o norte do Estado do Amazonas e noroeste do Estado de<br />

Roraima, além de parte do sul da Venezuela. No Brasil, vivem cerca de quinze mil Ianomâmis em<br />

duzentas e vinte e cinco aldeias, sendo que a maior parte desse território tem como característica<br />

fitofisionomia a floresta amazônica (FUNAI, 2011).<br />

7<br />

O termo Coexistência é intercambiável com coevolução. Como esse trabalho tem sua episteme<br />

nas ciências sociais optou-se pelo axioma coexistência. Todavia a título de provocação, Fritjof<br />

Capra compreende que toda aprendizagem de um ser vivo deve resultar em transformação<br />

individual e coevolução da espécie (CAPRA, 1997). Para Ricklefs, coevolução significa uma<br />

resposta recíproca entre populações ao ambiente. Com o passar do tempo essas interações<br />

afetam o ajustamento evolutivo de ambas as populações (RICKLEFS, 1996).<br />

– 105 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

ter apenas um molde para produção de alimentos, ou seja, os cânones do<br />

pensamento moderno, sobretudo os vinculados à “revolução verde”.<br />

Seguindo na escuta das Vozes, é hora de ouvir como acontece a<br />

adaptação ao ambiente:<br />

Outra coisa é que nessa história da minha vida eu larguei os remédios para<br />

depressão. Já vai pra dois anos que não tomo nada! Só curto minha vida! Eu<br />

parei de tomar por que passou as coisas ruim. Hoje, não tenho motivo pra<br />

depressão, tenho apenas coisas boas. Eu acredito que essa cura foi graças ao<br />

ambiente, a comunidade. Essas pessoas que estão aqui que é uma família me<br />

trouxeram uma paz e uma saúde que eu não preciso mais de medicamentos”<br />

(Vozes da Floresta: Maria e Lurdes).<br />

Logo, mais do que se adaptar ao ambiente a vida desta voz está<br />

coexistindo com ele. Mas, para tal processo, o Presidente da Cooperafloresta,<br />

Pedro Oliveira, ensina que nossa atitude tem de mudar.<br />

Gostaria de convidar vocês a olharem essas áreas e fazer um pensamento.<br />

Essa área aqui (Sistema Agroflorestal) tem a mesma qualidade de solo do que<br />

essa outra área (agricultura convencional). O que mudou na nossa propriedade<br />

foi a atitude! Agora eu pergunto para vocês, qual tipo de área vocês querem<br />

deixar para seus filhos? (Silêncio no grupo como resposta!) (Vozes da Floresta:<br />

Pedro Oliveira).<br />

Mas, ao ser indagado sobre o processo, durante o mutirão emerge<br />

uma novidade.<br />

Mas Pedro Oliveira, como você conseguiu, aprender a fazer tudo isso? Você<br />

nasceu sabendo de tudo isso? (Visitante I durante visita ao sítio de Pedro Oliveira)<br />

Eu acho que a gente nasceu sabendo! As outras pessoas que fizeram a gente<br />

esquecê. Quando eu fico dentro de uma agrofloresta, o sistema me acolhe.<br />

Acaba que eu me sinto parte do sistema (Vozes da Floresta: Pedro Oliveira).<br />

Nesse contexto, a coexistência com o ambiente passa a ser fruto da<br />

luta, da mudança de atitude. Essa fala também revela o que poderia se<br />

caracterizar como uma consciência da dependência em relação ao ambiente.<br />

Esta dependência é o principal pré-requisito para a conservação do bem<br />

comum, a terra, ou na cosmovisão de diversos grupos indígenas, a Pacha<br />

Mama, uma divindade feminina que representa a mãe terra. Desse modo,<br />

– 106 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

esse trecho trouxe que ao mesmo tempo deve-se mudar a atitude, mas<br />

também resgatar algo esquecido, resgatar que fazemos parte do sistema.<br />

Somos todos contemporâneos em termos igualitários<br />

(Copresença Radical)<br />

Nesse contexto de coexistência aos ambientes, e novamente<br />

valendo-se da inesgotável gama de experiências sociais que possuímos,<br />

surge outro indicativo para uma Ecologia de Saberes, a copresença radical.<br />

O aforismo trata da necessidade de compreendermos todas as práticas e os<br />

agentes de ambos os “lados da linha” como contemporâneos em termos<br />

igualitários (SOUSA SANTOS, 2010). Ou seja, é necessário ir além da<br />

monocultura do tempo linear, que reduz a única concepção de tempo aceitável<br />

e possível ao tempo linear (SOUSA SANTOS, 2002).<br />

O conceito primordial da monocultura do tempo linear se assenta na<br />

ideia de que a história tem sentindo e direção únicos. Nos últimos duzentos<br />

anos existiram alguns axiomas sobre o tema como progresso, revolução,<br />

modernização, desenvolvimento, crescimento e globalização. Comum a<br />

todos é a ideia de que o tempo é linear e que na frente do tempo estão os<br />

países centrais do sistema mundial e, com eles, os conhecimentos, as<br />

instituições e as formas de sociabilidade que neles dominam. Essa lógica<br />

produz não existência ao afirmar atrasado tudo aquilo que, segundo a<br />

norma temporal, é assimétrico em relação ao que é declarado avançado<br />

(SOUSA SANTOS, 2002).<br />

Isso redundou em um desperdício de experiências e atores<br />

sociais que poderiam ter modificado o caminho da emancipação social.<br />

O reconhecimento e a valorização dessas falas, atores, práticas e relações<br />

tende a dilatar a compreensão do mundo pela complementaridade dos<br />

conhecimentos científicos e não científicos. Ou seja, a copresença radical<br />

(SOUSA SANTOS, 2010).<br />

Uma Voz da Floresta relata como a “monocultura do tempo linear”<br />

(SOUSA SANTOS, 2002) o enxerga.<br />

Eu agradeço a Deus pelo serviço. Acredito que é uma roça sem fim. Por que<br />

a gente sempre tá tendo mais coisa. O terreno que a gente começou não<br />

tava dando mais quase nada. Agora tem cateto, tatu, tucano, jacu, papagaio,<br />

– 107 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

lagarto por que tem espaço pra eles mora.Tem gente que pode passa aí na<br />

frente e falar que aqui tem um bando de vagabundo. Mas eles não vê que<br />

a gente tá refazendo as coisas. Melhorando a terra, colocando mais planta,<br />

árvore e tirando nosso sustento. Por que esse nosso planeta tá precisando da<br />

gente pra toma conta dele (Vozes da Floresta: Ditão).<br />

Mesmo em tempos em que as roças têm fim e sua manutenção<br />

precisa de muita ajuda externa, a criação de uma roça sem fim que sempre<br />

tem produtos, resgata parte da fauna e recupera um solo que antes “não<br />

dava nada” são subjugadas, bem como as Vozes da Floresta que fomentam<br />

tal sistema.<br />

Quiçá, isso ocorra porque as preocupações sejam retirar o sustento e<br />

ajudar a tomar conta do planeta. Não a acumulação de capital, um plano de<br />

negócio, expansão do capital e outros símbolos do sistema capitalista, que ao<br />

não serem seguidos, transformam as pessoas que querem cuidar da natureza<br />

e sobreviver em “vagabundos”.<br />

Todavia, se parte do povo “desse lado da linha” enxerga as Vozes<br />

“do outro lado da linha” com desprezo, as Vozes da Floresta pensam de<br />

forma diferente.<br />

Quero dizer que eu gostei muito do dia. A gente visitou umas áreas que não<br />

dá vergonha de mostrar. Quero agradecer o pessoal que veio fazer essas<br />

pesquisas também. Isso dá mais ânimo pra gente seguir na luta (Vozes da<br />

Floresta: Joana de Lima).<br />

De tal modo, o agradecimento é para todos, independente do lado da<br />

linha que se encontre. Isso porque talvez seja pertinente acreditar que os<br />

pesquisadores que vão visitar as áreas estejam “deste lado da linha”. Desse<br />

modo, essa Voz da Floresta compreende que todos são “contemporâneos em<br />

termos igualitários” (SOUSA SANTOS, 2010).<br />

Sidinei Maciel colabora no processo ao falar das atividades durante as<br />

capacitações dos agentes multiplicadores.<br />

No projeto Iguatu foi dado capacitação durante seis meses para doze agentes<br />

multiplicador. Onde fizemos várias oficinas. Observamos capoeira, pastagem,<br />

mato, mato virgem, o solo, conhecimento de planta, nome de planta. Foi aí que<br />

os técnicos começaram a despertar o conhecimento que nós tinha. Aprenderam<br />

muito com nós. A gente entrava em uma mata, tinha cem espécies, o técnico<br />

– 108 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

sabia duas ou três. Perguntava para nós, fechava quase todas as espécies, era<br />

pouquinha que a gente não sabia. Era uma troca de experiência, eles estavam<br />

ensinando e aprendendo com nós (Vozes da Floresta: Sidinei Maciel).<br />

Ao relatar que na capacitação o técnico (que para alguns deveria ser um<br />

repassador do conhecimento “correto”) desperta o que eles já sabem, mostra<br />

que todos estão no mesmo espaço-tempo de forma de Copresença Radical.<br />

Sr. Sezefredo traz novas informações sobre esse processo.<br />

Mas é assim, eu faço parte do sindicato, faço parte da associação. Por que<br />

eu vejo a vida assim: um dependendo do outro, o outro é o tudo. Sozinho<br />

a gente não vale nada depende do outro pra concretizar, esse outro é a<br />

sociedade. Quanto mais companheiros tive na associação, no conhecimento<br />

aprendendo buscar a conquista pelo seus direitos a vida tem tudo pra<br />

melhorar. O pessoal parece que pensa que não tem jeito mais, a situação<br />

da vida, né? Esse é um ponto muito rico né, a gente fala que tem muitas<br />

pessoas que só sabem reclamar e não sabem cobrar os direitos deles. Eu<br />

acho que nós temos de tudo através das nossas organização ir ensinado as<br />

pessoas a saber cobrar seus direitos. Porque pagar imposto nós pagamos<br />

então falta nós cobrar nosso direito. Eu vejo assim como uma falha. Porque<br />

eu tô vendo bastante gente, já digo aqui no meu bairro, eu falo pra tar indo<br />

nas reunião, mas eles falam: eu não vou em reunião, reunião é só pra perder<br />

tempo, falam assim. Outros falam que tão sem tempo, que tem que fazer não<br />

sei o que e deixa de fazer o mais importante pra fazer o mais simples. Coisa<br />

que as vez podia deixar pra outro dia. Nós não podemos perder oportunidade<br />

(Vozes da Floresta: Sezefredo Gonçalves).<br />

Assim, esse saber pondera algo semelhante à copresença radical ao<br />

avaliar que um depende do outro. Dentro dessa dependência, ele vai atrás de<br />

companheiros de conhecimentos que conquistem seus direitos a um mundo<br />

melhor, sem colocar hierarquias entre o conhecimento de cada companheiro.<br />

Entretanto, os demais compartes de bairros não estão totalmente engajados<br />

nessa luta.<br />

Mas, além dos elementos da copresença entre os saberes, há indícios<br />

de outra copresença que ultrapassa os saberes, a copresença da vida.<br />

Eu acho que quando a gente melhora a vida da natureza estamos melhorando<br />

a vida de não sei de quantos. Não só de nós seres humanos, mas da natureza<br />

porque tem bem mais vida que nós ser humano, né? Nós pensamos que<br />

– 109 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

somos a maioria não somos nem um terço dessa vida que a natureza tem. Eu<br />

venho falando que a natureza, a floresta não precisa da gente, é a gente que<br />

precisa dela. Eu falei várias vezes da mãe natureza, eu considero que a mãe<br />

natureza começa de uma árvore, é a árvore que faz a diferença. Daí vem a<br />

vida que a natureza tem, que não sabemos quantas tem. Então a natureza se<br />

junta um passarinho, uma paca, a água dos rincão dela. Quando se vê vários<br />

tipos de zuada na floresta, ali tá a natureza. Desde um pernilongo que tá na<br />

frente nossa (risos), um pica-pau, um tucano, um jacu, uma sabiá tudo esses<br />

espécies eu acho que são uma das contribuinte. E eu? Faço parte depois que<br />

comecei a trabalha desse jeito (Vozes da Floresta Sezefredo Gonçalves).<br />

Outra Voz que declina seu saber sobre esse processo é Maria de Lurdes.<br />

Eu sai de Paranaguá para ser aluna de plantas e bichos, mas hoje acho que<br />

sou mais aluna. A gente pensa que sabe tudo, mas essas plantas, esses<br />

animais é que ensinam a gente a viver! Mas do que a gente pensa que sabe...<br />

(silêncio) (Vozes da Floresta: Maria de Lurdes).<br />

Desse modo, aqui nas Vozes da Floresta a copresença do conhecimento<br />

alarga suas feições humanas, demasiadamente humanas e insere bichos e<br />

plantas no processo de aprendizagem.<br />

Há maior participação dos grupos sociais envolvidos na<br />

concepção, na execução, no controle e na fruição da intervenção<br />

Do exposto, é possível inferir que há diversas zonas de contato entre a<br />

Globalização Hegemônica e a Globalização Contra-Hegemônica. Assim<br />

emerge uma ideia pragmática, a de que é necessária uma reavaliação das<br />

relações simbólicas, mas principalmente de nossas atitudes em relação à<br />

natureza e à sociedade. Dentro dessa conjuntura, a Ecologia de Saberes seria<br />

a responsável em gerir as hierarquias que se estabelecem em nossas<br />

intervenções. Contudo, não é possível subscrever uma hierarquia única a<br />

todas as zonas de contato intra e entre monoculturas e ecologias (SOUSA<br />

SANTOS, 2010).<br />

Desses embates emerge um princípio como referência para ser usado<br />

durantes as intervenções no real, o princípio da precaução. No contexto de<br />

uma Ecologia de Saberes, ele deve ser formulado assim: “deve dar-se<br />

preferência às formas de conhecimento que garantam maior participação dos<br />

– 110 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

grupos sociais envolvidos na concepção, na execução, no controle e na fruição<br />

da intervenção” (SOUSA SANTOS, 2010, p.60).<br />

Portanto, uma Ecologia de Saberes tem hierarquia de saberes. Mas,<br />

ela teve ser gerida com base no principio citado. Boaventura de Sousa Santos<br />

coloca que para construção de uma nave espacial, deve-se levar em conta o<br />

conhecimento dos cientistas, mas para a conservação da biodiversidade,<br />

deve-se levar em conta os conhecimentos camponeses e indígenas (SOUSA<br />

SANTOS, 2005).<br />

Dentro do nosso contexto de tentar dialogar entre as Vozes e a Ecologia<br />

de Saberes, partimos para o diálogo entre a Voz da Floresta de um dos<br />

fundadores da associação com o princípio da precaução formulado:<br />

Quando veio esse conhecimento, como eu já falei do Osvaldinho que deu esse<br />

nome de agrofloresta para você trabalhar nela. Ele conheceu isso lá da Bahia.<br />

Ai eu disse: ai meu Deus do céu, tem tudo para dar certo isso aí porque a<br />

gente planta do jeito da gente isso ai e não é o suficiente. Mas acho que se<br />

tornou insuficiente porque nós tinha um sindicato, mas o sindicato não tinha<br />

força para nós juntar os produtos e vender direto para o consumidor, né?...<br />

(Vozes da Floresta:Sezefredo Gonçalves).<br />

Assim, há indícios de que a chegada do conhecimento é algo exógeno.<br />

Todavia as práticas antigas não possuíam força suficiente para fruir suas<br />

atividades, já que esbarravam no gargalo da comercialização. Mas o novo<br />

conhecimento quer modificar esta situação.<br />

Outra coisa importante que o Osvaldinho ensinou em fazer agrofloresta é<br />

criar uma feira livre na Barra do Turvo. Tem essa feirinha até hoje na Barra.<br />

Se ela não tá montada, assim bem forte é porque as pessoas já entregam<br />

seus produtos alguns pela Cooperafloresta, outros pelo SINTRAVALE, então já<br />

desfaz do produto. Mas mesmo assim tem que dar investindo nessa feirinha<br />

que é uma coisa muito importante (Vozes da Floresta: Sezefredo Gonçalves).<br />

Embora hoje a feira na cidade não seja capaz de garantir toda a<br />

demanda da comercialização, no início ela garante. Assim sendo, este<br />

conhecimento consegue sobrepor-se ao gargalo da comercialização, pois<br />

procura um caminho alternativo para as mercadorias produzidas, gerando<br />

maior participação na execução do processo.<br />

Gilmar Batista comenta algo nesse sentido também:<br />

– 111 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

Eu acho pra grupo assim às vezes a pessoa tem terra para produzir, mas não<br />

tem mercado, né? pro cara sozinho. Então se monta um grupo e tem que<br />

correr atrás depois pra vender teu produto.Outra coisa importante é que aqui<br />

você trabalha em sistema de cooperativa, então tudo que vocês faz tem um<br />

mercado pronto. E outra coisa o mais difícil é a concorrência muito grande no<br />

mercado. Tem associação que chega até parar a atividade (Vozes da Floresta:<br />

Gilmar Batista).<br />

Mesmo sendo difícil correr atrás da construção de um grupo para<br />

venda, a forma de se reunir fomenta uma maior resistência aos embates com<br />

o grande e, por consequência, uma maior fruição e controle das atividades.<br />

O Sr. Sezefredo conta como foi essa união:<br />

Então a vantagem que eu vi foi que nós se unimo nessa associação, no<br />

sindicato nós tivemos dificuldade, mas mesmo assim na Coopera nós<br />

tivemos mais. Nós tivemos esses políticos que estão no poder que lutaram<br />

para matar nós, né? Mas Deus foi mais poderoso. O conhecimento do<br />

Nelson, do Osvaldinho e os demais professor que veio acompanhar nós aí<br />

deu fortalecimento para nós, né? Então isso pra nós foi um passo adiante<br />

(Vozes da Floresta: Sezefredo Gonçalves).<br />

Ao relatar como todos os associados se uniram na Cooperafloresta<br />

mostra o controle do processo, todavia continua o reconhecimento de quem<br />

trouxe o conhecimento das novas práticas, os técnicos Nelson e Osvaldinho.<br />

No entanto, mesmo o conhecimento se originando fora da comunidade,<br />

é importante escutar como foi esse processo.<br />

Como eu falei há pouco, foi o Osvaldinho o primeiro contato. Foi que quando<br />

ele falou de adubo verde, compostagem, eu fiquei tudo com dúvida. Não sabia<br />

que hoje, até uma folha que cai de uma árvore é adubo, virava composto,<br />

adubo e coisa. Então quando que ele disse que ia ajudar a fazer mudar, que<br />

ia botar a mão na massa. Ele veio e disse por primeiro que veio pra aprender<br />

e não pra ensinar. Daí eu disse: como é que você veio pra aprender com um<br />

caboclo que nem eu que nem sei esse tal de adubo verde. Daí ele explicou<br />

bem direito e eu entendi (Vozes da Floresta: Sezefredo Gonçalves).<br />

Esse trecho reforça a origem exógena do conhecimento, mas também<br />

mostra certa tendência de hibridação, já que a primeira coisa que o técnico<br />

se propôs foi aprender com o agricultor, colocar a mão na massa. Desse<br />

– 112 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

modo, tal fala expõe como as técnicas de manejo foram ensinadas, mas deixa<br />

nas estrelinhas algo sutil, porém importante.<br />

Quando se fala em colocar a mão na massa, implicitamente está se<br />

fomentando que os agricultores aprendam na prática os processos ecológicos<br />

essenciais que são um dos fundamentos dos sistemas agroflorestais, ou<br />

seja, além de aprender com o técnico está se aprendendo com a natureza.<br />

Um exemplo:<br />

Uma área que foi aberta ai com três meses, dois meses e pouco eu já vi que<br />

essa coisa tinha tudo pra dar certo mesmo. Por que o adubo nós temos na<br />

própria natureza, mas destruímos com fogo, né? E a chuva lava, enfraquece a<br />

terra, mata as vidas que a terra tem. Primeiro é as minhocas que vai embora,<br />

os besouros. Depois é aqueles bichinhos bem miudinho que só com aparelho<br />

pra ver. Então eu vejo isso aí com um certo valor, depois que a gente aprende<br />

sabe que você precisa protege ele, né? (Voz da Floresta: Sezefredo Gonçalves).<br />

Nesse relato, ao falar da origem natural do adubo, da ação das chuvas,<br />

do fogo e “dos bichinhos bem miudinho”, reforça-se a ideia que, além de<br />

aprender com o técnico, está se aprendendo com a natureza.<br />

Portanto, ao fomentar o aprendizado com a natureza está se contribuindo<br />

para um maior controle e fruição da intervenção, já que a vida dessas Vozes<br />

é fortemente vinculada à natureza.<br />

Há privilégio da força interior, em vez da exterior<br />

Outro indicativo de uma Ecologia de Saberes é o privilégio da força<br />

interna em detrimento das forças externas (SOUSA SANTOS, 2010). Para<br />

isso é necessário ir além do cânone científico que privilegia essas forças de<br />

forma oposta. Desse modo, a Ecologia de Saberes, além de modificar “o<br />

plano do logos modifica também o plano do mythos” (SOUSA SANTOS,<br />

2010, p.63).<br />

No “plano do mythos”, uma mudança é questionar o sentido e a direção<br />

única que a história tem. Assim, é preciso reavaliar alguns cânones que<br />

pregam o futuro como algo pronto e acabado (SOUSA SANTOS, 2002), em<br />

que os pensamentos tendem a procurar soluções que mitigam os processos<br />

já existentes, e não procurar novas relações.<br />

– 113 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

Porém, junto com essa necessidade de procurar novas relações, é<br />

prudente imaginar o amanhã como algo incomensurável e, a partir deste<br />

ponto, criar soluções para futuros menores (SOUSA SANTOS, 2002).<br />

Portanto, o futuro passa a ser algo indefinido, merecedor de soluções regidas<br />

pelo sentimento do cuidado.<br />

A ideia de Ernest Bloch de “Ainda Não” (BLOCH, 1995 citado por<br />

SOUSA SANTOS, 2010, p. 241) é fundamental nesse processo:<br />

Bloch insurge-se contra o fato de a filosofia ocidental ter sido dominada<br />

pelos conceitos de Tudo (Alles) e Nada (Nichts), nos quais tudo parece estar<br />

contido como latência, mas donde nada de novo pode surgir. Daí que a<br />

filosofia ocidental seja um pensamento estático [...]. No entanto só o possível<br />

permite revelar a totalidade inesgotável do mundo. Bloch introduz dois novos<br />

conceitos, o Não (Nicht) e o Ainda-Não (Noch Nicht). O Não é a falta de algo<br />

e a expressão da vontade de superar essa falta. O Ainda-Não é o modo que o<br />

futuro se inscreve no presente e o dilata [...]. Esta incerteza faz com que toda<br />

a mudança tenha um elemento de acaso, de perigo. É esta incerteza que ao<br />

mesmo tempo dilata o presente, contrai o futuro, tornando-o escasso e objeto<br />

de cuidado. (SOUSA SANTOS, 2010. p.63).<br />

Assim sendo, segundo SOUSA SANTOS, nasce...<br />

(...) a identificação de uma leitura potenciadora de tendências objetivas que<br />

emprestam força a uma possibilidade auspiciosa, mas frágil, decorrente de<br />

uma compreensão mais profunda das possibilidades humanas com base<br />

nos saberes que privilegiam a força interior em vez da força exterior (SOUSA<br />

SANTOS, 2010. p.63).<br />

Por isso, a busca por vozes, intervenções, símbolos e relações,<br />

tenderia a um alargamento do que é considerado como conhecimento<br />

válido e diminuiria a certeza da continuidade linear dos acontecimentos,<br />

consequentemente daria uma maior pujança aos conhecimentos de dentro<br />

dos territórios. Logo, aumentaria a força interior desses processos ao diminuir<br />

a dependência de fatores exógenos, acrescentando a autonomia e credibilidade.<br />

Entre as vozes da Floresta, o Sr. Sezefredo argumenta que:<br />

Essa agrofloresta era só banana, agora mudou tudo. Já o Sezefredo como<br />

pessoa mudou também. Eu fiquei mais obediente, mais humilde, mudei tudo.<br />

Subê valorizar mais minha família, meus vizinhos, minha comunidade, minha<br />

– 114 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

consciência com Deus foi o primeiro ponto que comecei a valorizar. Sei que<br />

me mudou bastante. Hoje tô sabendo que a gente é feliz com os outros,<br />

sozinho não vale nada (Vozes da Floresta: Sezefredo Gonçalves).<br />

Quando essa Voz da Floresta fala que outrora sua propriedade era o<br />

bananal, pode-se relacionar o bananal com as forças externas que implantaram<br />

tal sistema de produção e comercialização na cidade de Barra do Turvo.<br />

Embora o conhecimento atual também seja exógeno, a maneira que ele<br />

articula o processo tende a fomentar a força interna ao valorizar os vizinhos,<br />

a família, a comunidade, o outro, enfim.<br />

Entretanto, como na copresença, esse outro vai além dos seres<br />

humanos, como comenta Gilmar Batista:<br />

A gente as vez acaba não reparando muito. A gente tem que reparar o meio<br />

onde se vive, começar a prestar mais atenção nas coisas. As vezes a gente tá<br />

muito ligado no mundo lá fora, né? (Gilmar Batista).<br />

Logo, para essa Voz, é no ambiente ao redor que se deve reparar e, ao<br />

fazê-lo, está se privilegiando as forças internas da região, como nas relações<br />

da natureza em seu extorno.<br />

José Moreira descreve algo relacionado com a força interna e o<br />

sistema agroflorestal.<br />

Pra mim agrofloresta é assim: faz uma carpina seletiva, corta todo os matos,<br />

joga no chão e planta tudo junto. Planta feijão, planta de tudo. Até alface,<br />

rabanete, cebola, tudo, tudo dá pra plantar junto! Sem queimar, né? Aí planta<br />

as árvores, as frutas e as coisas vão crescendo. Quando você acha que tem<br />

coisa de mais, você vai lá e raleia um pouquinho. Poda umas, deixa outras<br />

crescer. Aí a terra vai tendo adubo. Eu falo que esse é o melhor serviço que<br />

já tive. Olha é uma coisa que eu não preciso esquentar a cabeça, todos os<br />

outros serviços que eu fazia tinha que esquentar muita a cabeça, esse não,<br />

é só trabalhar. A natureza me ajuda, eu tento ajudar a natureza e a coisa vai<br />

bem. Eu percebo que estou melhorando o solo percebo que a água aumenta.<br />

Então pra mim está ótimo! Eu ganho meu salarinho que não é muito, mas dá<br />

pra ir vivendo. (Vozes da Floresta: José Moreira)<br />

Seu “Zé” quando fala de reutilizar as folhas, os galhos, os troncos e<br />

espécimes do próprio sistema agroflorestal como adubo aponta para um<br />

fortalecimento da força interna na medida em que não é preciso “esquentar<br />

– 115 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

a cabeça”. Essa força interior passa a ter como elemento fundamental a<br />

própria natureza. Desse modo, as forças internas da Cooperafloresta fomentam<br />

o sentimento que esse é o melhor trabalho de vida de José Moreira.<br />

Outro elemento que indica algo nesse sentido é a atividade de mutirão<br />

que acontece na Associação. Tal processo, além de um indicador de troca de<br />

ignorâncias, também é um elemento a ser considerado quando se pensa no<br />

fomentar das forças internas.<br />

Acompanhando um mutirão de visita na casa de Gilmar Batista, ele<br />

comenta como mudou depois de fazer parte da Associação.<br />

Ah mudou muita coisa... (silêncio). A convivência com os vizinhos. A gente<br />

antes ficava um pouco mais isolado, mais sozinho, não participava muito da<br />

comunidade. Agora nesse grupo a gente participa mais com os vizinhos no<br />

trabalho de mutirão, então toda semana a gente tá se encontrando, trocando<br />

experiência, conversando, trabalhando junto e tenho aprendido muita coisa<br />

durante esse tempo. Eu acho que aqui durante esse tempo eu mudei muito<br />

sabe. Aprendi a observar mais a natureza, as coisas em redor da gente, a<br />

valorizar mais as coisas. Também na parte de alimentação a gente aprendeu<br />

a se alimentar. Comer muito alimento que a gente não ligava muito, hoje a<br />

gente aproveita mais. Eu acho que a qualidade de vida é outra sabe, mudou e<br />

mudou muito” (Vozes da Floresta: Gilmar Batista).<br />

Assim, o aumento da qualidade de vida e a convivência com os vizinhos<br />

são provocados pela troca de experiências e conversa que acontece nos<br />

mutirões de grupos. Portanto, são os saberes de dentro da comunidade que<br />

contribuem para mudanças nos comportamentos e na soberania alimentar.<br />

Gilmar Batista traz mais luz para esse debate.<br />

Não é mais só de consumo. Mas tá dando bem. Tem agricultor que<br />

comercializa aí e vende a oito reais o quilo da polpa da goiaba. Mas eu<br />

vejo que é diferente o manejo é organizado, tem uma diferença de quem<br />

não tá fazendo e de quem tá fazendo agrofloresta. Apesar que não parece,<br />

porque a gente tá tão acostumado assim com o dia-dia, mas a gente nota que<br />

há uma diferença nas famílias (Vozes da Floresta: Gilmar Batista).<br />

Há, refletida nessa fala, uma articulação diferente dos processos,<br />

mesmo que para alguns isso não seja tão claro, por estarem dentro dessa<br />

articulação. Porém, se as coisas estão dando bem é graças à força interna<br />

– 116 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

que promove esse manejo organizado, que é fomentado principalmente<br />

pelos mutirões.<br />

Dona Joana de Lima reforça a importância do mutirão como articulador<br />

das forças internas.<br />

Nasci e me criei por aqui, no Cedro. Antes era tudo queima. Um dia chego um<br />

povo aqui ensinando a fazer agrofloresta. A terra era meio fraca, mas agora tá<br />

melhorando. Tem pouquinha planta aqui, mas quando eu vejo essa multidão<br />

de gente, fico contente. Eu deito na cama e agradeço a Deus. É muito bonito<br />

essas reunião, a gente se anima a continua na luta! (Vozes da Floresta: Dona<br />

Joana de Lima).<br />

Desse modo, para D. Joana, a reunião de visitantes, colegas de<br />

Associação e técnicos da Cooperafloresta em sua propriedade dá ânimo de<br />

continuar na luta. Assim, reforça-se a hipótese de que o mutirão é um<br />

articulador das forças internas.<br />

Dona Inês Maciel fala algo a respeito também:<br />

Eu gosto de trabalhar no mutirão. Aprendo, a gente passa também o que a<br />

gente sabe para o outro. Troca e reparte semente muda, até uma verdura<br />

que o outro não tem a gente reparte. Pra mim não ir no mutirão só se eu<br />

estiver doente. Eu gosto de ir para roça! Não gosto de ficar em casa” (Vozes<br />

da Floresta: Inês Maciel).<br />

Quando Dona Inês Maciel fala do prazer em trabalhar nos mutirões, da<br />

importância de aprender com o que o outro e a geração de solidariedade das<br />

trocas, são poderosos indícios que tal processo está privilegiando a força do<br />

saber do vizinho, a companhia do vizinho, a preocupação com o vizinho, ou<br />

seja, a força interna da comunidade.<br />

Nesse contexto Sidinei Maciel argumenta que:<br />

Depois a gente fez um curso de multiplicador com os técnicos, visitando as<br />

propriedades. Nesse curso a gente aprendeu que tinha um conhecimento<br />

muito grande. Mas a gente não sabia disso. Conhecimento da mata, como é<br />

que funciona. A gente começa a dialoga com os técnicos e eles começaram a<br />

despertar isso na gente (Vozes da Floresta: Sidinei Maciel).<br />

Portanto, o curso realizado desperta o sentimento de acreditar em seu<br />

conhecimento. Pois, quiçá, forças externas tenham reprimido esse valor em<br />

detrimento de sua validação.<br />

– 117 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

Ocorre a construção de sujeitos desestabilizadores (individuais<br />

ou coletivos) e constituintes da Globalização Contra-Hegemônica<br />

Nas vivências com os agricultores foi possível localizar outro indicador<br />

de uma Ecologia de Saberes, a construção de sujeitos desestabilizadores<br />

(individuais ou coletivos) e constituintes da Globalização Contra-Hegemônica.<br />

Eles desenvolvem a capacidade de “inquirição e indignação, capaz de<br />

fundamentar teorias e práticas novas, inconformistas e mesmo rebeldes”<br />

(SOUSA SANTOS, 2010, p.63). Trata-se de uma postura que desestabiliza<br />

os cânones da monocultura, tributários do conhecimento científico, e<br />

reivindicam um mundo diferente que acreditam ser possível e que se acham<br />

capazes de construir.<br />

Para exemplificar de forma concreta este sujeito desestabilizador, uma<br />

Voz da Floresta (Gilmar Batista) não poderia passar despercebida:<br />

A gente não tem energia da rede, um dia pensei: vou ter que dar um jeito<br />

de gerar energia. Tirei a madeira do mato e comecei. Demorei um ano pra<br />

fazer. Hoje uso a energia em casa, moendo cana, na obra da casa nova. Tem<br />

funcionado bem (Vozes da Floresta: Gilmar Batista).<br />

Assim, a falta de energia elétrica, que revela a ausência de qualquer<br />

apoio em termos de política pública, é resolvida pelo sentimento de indignação<br />

de querer dar um jeito de gerar energia e a capacidade de inquirição em<br />

descobrir como criar um sistema descentralizado de geração de energia com<br />

madeiras do mato, mesmo com a demora de um ano. Portanto, na articulação<br />

desses dois sentimentos, emerge uma prática inconformada com a situação<br />

e capaz de se rebelar contra as dificuldades. Todavia, essa voz vai além ao<br />

aprender e socializar com outros elos do coletivo sua rebeldia por meio da<br />

construção de sistemas descentralizados de tratamento de água, esgoto, um<br />

biodigestor e telhado verde.<br />

Aprendi a fazer fossas e filtros pelo projeto Iguatu, da Petrobrás. Depois fizemos<br />

em várias casas por aí. Hoje têm várias pessoas que sabem fazer. Outra coisa<br />

que fazemos foi um filtro para tratamento de água. Hoje, várias pessoas têm<br />

e sabem fazer. Outra coisa que ajudei a fazer foi o banheiro seco. Nós fizemos<br />

alguns aqui na Coopera. Eu tive que fazer um aqui em casa primeiro, porque<br />

nas reuniões o povo até brincava comigo, não acreditava. Porque a gente foi<br />

acostumando a usar o do outro jeito e olha que tem pessoas aqui na coopera<br />

que não tinham banheiro, usavam o rio (Vozes da Floresta: Gilmar Batista).<br />

– 118 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Portanto, estão se tecendo novos caminhos para a construção de<br />

práticas a partir das inquirições e indignações das mazelas que o Gilmar<br />

Batista e o coletivo sofrem. Ao ser exemplo, fazer e ensinar a fazer, ao inventar,<br />

readaptar e mostrar, o Sujeito Gilmar Batista estaria desestabilizando algumas<br />

certezas e articulando novos futuros, para ele e para o coletivo.<br />

Porém, não há como falar de Cooperafloresta e Sujeitos Desestabilizadores,<br />

sem pensar no Pedro Oliveira, em seu relato à página 37.<br />

Ao pagar para um trator fazer o manejo no solo que o pensamento<br />

hegemônico considera como trivial, os agricultores da Cooperafloresta<br />

utilizaram sua capacidade de inquirição para descobrir a existência de<br />

organismos que vivem em diferentes níveis de luz, água e nutrientes. Portanto,<br />

mesmo com provável formação híbrida, a capacidade de inquirição de Pedro<br />

Oliveira gera uma ação inconformada que não replica o modelo hegemônico<br />

sem considerar as intervenções no real que proporciona. Nessa articulação<br />

emergiu uma nova prática, como segue.<br />

Hoje eu compreendo que há toda uma dinâmica, é uma coisa incrível para<br />

gente aprender. Então nessa terra tão pobre a gente queria colher coisa de<br />

terra rica. Uma das coisas de fazer agrofloresta é identificar o momento para<br />

ver o que essa terra pode me dar agora e não o que eu quero tirar dela. Por<br />

que na agricultura convencional a gente não pensa isso, só vem e tira. Não<br />

há relação de amor com a terra. Isso faz com que a gente não compreenda<br />

que a terra é um organismo vivo, que é como nossa mãe. Que vai sempre no<br />

caminho da riqueza. A vida anda no sentido do pobre para o rico. A gente<br />

que às vezes luta em querer ficar sempre no sentido da pobreza. Agora vocês<br />

imaginem se eu derrubo tudo a quantidade de matéria orgânica que vai ter.<br />

Galho, folha tronco. Vai dar um salto de qualidade tremendo. Assim a gente<br />

não precisa de adubo, porque adubo é como uma muleta. No começo a gente<br />

usa ele, depois passa a caminhar sozinho (Vozes da Floresta: Pedro Oliveira).<br />

Assim, a prática impulsiona uma rebeldia que não replica as<br />

informações, mas vai além, ao inserir novos símbolos no processo como a<br />

necessidade de cuidado e de amor em relação à terra. Essa nova relação quer<br />

levar homens e mulheres não ao crescimento econômico, mas à riqueza. Não<br />

riqueza monetária, mas uma riqueza que ele aprendeu com a natureza, uma<br />

riqueza de bem viver. Sem muletas e com autoestima.<br />

– 119 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

Enfim, é na articulação de forma dinâmica destes nove indicadores<br />

que uma Ecologia de Saberes parece emergir. O diálogo promovido neste<br />

item, entretanto, não tem a pretensão de indicar certezas, pois ele é resultado<br />

de um recorte da realidade que envolve algumas vivências das Vozes da<br />

Floresta, alguns conceitos extraídos dos <strong>livro</strong>s de Boaventura de Sousa e as<br />

“mãos” dos pesquisadores. Porém, tal recorte deseja ajudar a provocar<br />

reflexões, a gerar (re)olhares e acreditar nas utopias de outros caminhos entre<br />

mulheres, homens e natureza.<br />

Considerações finais<br />

Acredita-se que nas histórias orais de vida, acompanhamento de<br />

mutirões e construção dos mapas históricos das unidades familiares, foram<br />

encontrados alguns indicativos de como os associados da Cooperafloresta<br />

sentem o mundo. O diálogo entre as Vozes da Floresta e a Ecologia de Saberes<br />

gerou algumas fundamentações mútuas, complementos, mas também<br />

distanciamentos de alguns conceitos. Desse processo, foram identificados<br />

nove aforismos que articulam uma ecologia de saberes:<br />

1) A Crença na ciência é relativamente tênue;<br />

2) Outros conhecimentos não científicos prevalecem diante dos científicos;<br />

3) Há troca de ignorâncias;<br />

4) O conhecimento é validado como intervenção (ou impedimento) no<br />

real, não como representação;<br />

5) O conhecimento preserva modos de vida, universos simbólicos e<br />

informações vitais para a sobrevivência em ambientes hostis;<br />

6) Somos todos contemporâneos em termos igualitários (Copresença<br />

Radical);<br />

7) Há maior participação dos grupos sociais envolvidos na concepção,<br />

na execução, no controle e na fruição da intervenção;<br />

8) Há privilégio da força interior, em vez da exterior;<br />

9) É constituída por sujeitos desestabilizadores (individuais e (ou)<br />

coletivos) e é, ao mesmo tempo, constitutiva deles. Ocorre a<br />

– 120 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

construção de sujeitos desestabilizadores (individuais ou coletivos)<br />

e constituintes da Globalização Contra-Hegemônica<br />

Durante o diálogo entre as Vozes e as Ecologias, procurou-se ir<br />

“amarrando” onde eles se complementam ou não. Todavia, sucintamente<br />

reforçamos algumas passagens.<br />

Em relação à confiança mais tênue na ciência proposta por Sousa<br />

Santos (SOUSA SANTOS, 2010), há indícios de uma confiança menor em<br />

parte da ciência, principalmente no conhecimento acadêmico que gerou a<br />

revolução verde e os cânones econômicos do crescimento. Porém, baseado<br />

na própria diversidade interna da ciência, outros conhecimentos como a<br />

“teoria de Gaia” (LOVELOCK, 2010), a ciclagem de nutrientes, a sucessão<br />

vegetal e alguns princípios ecológicos podem ser identificados como algo que<br />

se confia. Todavia, está obscura essa relação na medida em que é provável<br />

que as Vozes tenham chegado a tais conclusões observado a natureza e com<br />

base em seus conhecimentos. Mas também pelo diálogo entre técnicos da<br />

Cooperafloresta e visitantes, pois há uma grande “cablocagem” de saberes<br />

entre eles. Assim sendo, permanece a dúvida nesse indicador.<br />

Já no indicador Outros conhecimentos não científicos prevalecem<br />

diante dos científicos, pode-se ver certa aproximação no parâmetro que Maria<br />

usa para validar a qualidade do solo, ou a vontade de Sezefredo em deixar a<br />

natureza trabalhar, mas principalmente no vínculo de alguns processos com<br />

Deus que em diversos momentos aparece.<br />

Outro indicador de uma Ecologia de Saberes, conforme discutido, é a<br />

Troca de Ignorâncias. Presume-se que nos mutirões essas trocas estão<br />

acontecendo, como, por exemplo, na explicação do Sidinei Maciel da maneira<br />

que ele ensina o que deu certo como o que não deu certo; na passagem em<br />

que o senhor José Moreira Gustavo lembra como as visitas em outras áreas<br />

foram importantes no início do trabalho; e o processo de aprender, fazer e<br />

aprender do Pedro Oliveira, baseado nos erros.<br />

O descrédito da intervenção no real que o conhecimento que trouxe a<br />

criação de gado, bem como a quantidade de madeira, água e alimento que<br />

as agroflorestas trazem são indícios de que o conhecimento está sendo<br />

validado pela intervenção (ou impedimento) no real que proporciona. Tais<br />

– 121 –


As vozes da floresta e a ecologia dos saberes<br />

intervenções tendem a gerar novos caminhos para a conservação. Desses<br />

novos caminhos, as Vozes da Floresta estão preservando modos de vida que,<br />

além de se adaptar ao ambiente, estão coexistindo com ele.<br />

Há indicativos da copresença radical, nos mutirões e processos<br />

vinculados à assistência técnica. Todavia, o diálogo neste indicador traz<br />

algo inusitado. O fato de que em alguns casos a copresença alarga as<br />

feições humanas ao inserir plantas e bichos como contemporâneos em<br />

termos igualitários.<br />

Em relação ao princípio da precaução, pode-se inferir que a origem do<br />

conhecimento é externa. Todavia, a maneira que ele chega tende a gerar<br />

maior controle, fruição e participação no processo em virtude de seu estreito<br />

laço com a observação de ecossistemas naturais e a articulação da<br />

comercialização em forma de rede.<br />

No entanto, de tal processo emerge conhecimentos exógenos como a<br />

tirolesa criada pelo Pedro Oliveira, que por servir para mitigar mazelas<br />

comuns a todos, gera participação e consequentemente controle, execução e<br />

fruição da atividade. Tal processo tende, junto às atividades de mutirão, a<br />

fomentar a força interna em detrimento das forças externas.<br />

Da articulação desses processos, emergem sujeitos desestabilizadores<br />

que com sua capacidade de inquirição e indignação criam uma Associação<br />

que busca não o isolamento, mas uma nova maneira de se relacionar com o<br />

coletivo. Portanto, essa prática é rebelde e ao mesmo tempo inconformista<br />

com as algemas que o pensamento moderno deseja implantar, como livre<br />

concorrência, revolução verde, crescimento sustentável, acumulação de<br />

capital e tantos outros axiomas que coadunam apenas uma verdade, o lucro<br />

econômico em curto prazo.<br />

Assim, podemos afirmar que há indícios de uma Ecologia de Saberes<br />

na Cooperafloresta, e consequentemente uma relação diferente entre homens,<br />

mulheres e a natureza. Quiçá, uma “União de Gentes e Natureza”, como<br />

define o nome da Cooperafloresta.<br />

Obedecendo à busca de linhas não abissais que se almeja como arrimo<br />

nesta pesquisa, e observando as características da Ecologia de Saberes<br />

identificadas junto às Vozes da Floresta, emerge a necessidade da valorização<br />

do fato de que existe mais de uma maneira de se relacionar com a natureza.<br />

– 122 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Diferentes Vozes, no mundo, em coro com as Vozes de Sezefredo Gonçalves,<br />

Pedro Oliveira, Sidinei Maciel, Maria de Lurdes, Inês Maciel, Joana de Lima<br />

e com todas as outras Vozes trazidas neste trabalho, acreditam que outros<br />

mundos são possíveis, vivenciando formas alternativas de relação com a<br />

natureza. Valorizar e lutar com essas Vozes, buscando um caminho latino,<br />

sul-americano, brasileiro ou caboclo pode se constituir, entre outros aspectos,<br />

na construção de uma episteme que leve realmente em conta os processos<br />

sociais e ecológicos que acontecem de forma sui generis no Sul Global.<br />

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– 124 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 6<br />

As estratégias da reprodução social dos agricultores<br />

familiares da Cooperafloresta: um estudo de caso<br />

sobre os processos de reciprocidade e solidariedade 1<br />

Almir Sandro Rodrigues<br />

Angela Duarte Damasceno Ferreira<br />

Para além da solidariedade que se manifesta no nível real, da<br />

produção e da partilha de bens, há a registrar aquela de natureza<br />

propriamente simbólica, que a complementa e que dá sentido à<br />

construção de uma identidade coletiva, expressa nos sentimentos de<br />

pertencimento, na partilha e na transmissão dos saberes e na<br />

adesão a valores humanos compartilhados.<br />

(Maria de Nazareth Baudel WANDERLEY, 2011)<br />

No âmbito da vasta categoria da agricultura familiar, os estudos de<br />

caso abordados confirmam a existência de uma agricultura com<br />

características camponesas, marcada principalmente pela<br />

autonomia perante o mercado de troca capitalista e pela<br />

permanência de estruturas de reciprocidade, entre outros elementos<br />

essenciais. A autonomia do sistema de troca livre resulta em uma<br />

produção diversificada em mercados locais e regionais,<br />

autoconsumo e práticas de redistribuição local e interfamiliar.<br />

(Eric SABOURIN, 2009)<br />

1<br />

Este trabalho foi realizado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal<br />

do Paraná (linha: Ruralidades e Meio Ambiente), mas integrou-se, no que diz respeito à pesquisa<br />

da tese, ao Grupo de Pesquisa sobre a Questão Agroalimentar do Programa de Pós-Graduação<br />

em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Federal do Paraná (MADE-UFPR). Nesse<br />

período, esse grupo investigou os processos de desenvolvimento e organização da Rede Ecovida<br />

de Agroecologia, considerando-a, como hipótese, portadora de alternatividades socioambientais<br />

para o enfrentamento dos limites e potenciais da questão alimentar. Por sua vez, os agricultores<br />

familiares da Cooperafloresta são o caso estudado nesta pesquisa, de forma específica, pois<br />

manifestam várias dinâmicas exemplares no que tange à reciprocidade e solidariedade.<br />

– 125 –


As estratégias da reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta:<br />

um estudo de caso sobre os processos de reciprocidade e solidariedade<br />

As principais características do mundo atual se definem pelas dinâmicas<br />

construídas pela globalização dos modelos hegemônicos de base capitalista.<br />

Ao mesmo tempo, multiplicam-se crises de diversas dimensões (sociais,<br />

econômicas, políticas, ambientais e culturais), perante as quais se manifestam<br />

movimentos e processos alternativos, de resistência, que podemos nomear<br />

de possibilidades contra-hegemônicas. Essas manifestações muitas vezes<br />

não têm ressonância para além do local, mas crescentemente seus atores se<br />

organizam em redes regionais, nacionais e internacionais, colocando suas<br />

ideias e práticas em consonância com outros atores com os quais compartilham<br />

seu descontentamento com os que os excluem, os subalternizam.<br />

Partindo dessa constatação e entendendo que é fundamental<br />

compreender tais experiências para não desperdiçá-las na história (SOUSA<br />

SANTOS, 2007), este trabalho analisou as perspectivas e estratégias de<br />

organização dos agricultores ecológicos e agrofloresteiros da região do Vale<br />

do Ribeira, agricultores associados à Cooperafloresta. Esta pesquisa teve por<br />

interesse compreender como tal forma de organização resgatou ou consolidou<br />

ações de solidariedade e reciprocidade, potencializando formas de reprodução<br />

social dos agricultores associados que têm implicado uma melhoria da<br />

qualidade de vida e do ambiente. Ao mesmo tempo, partiu-se do pressuposto<br />

que tal experiência situa-se nesse processo mais geral de construção de<br />

alternatividades aos modelos de produção agrícola e produção da vida<br />

cotidiana que são hegemônicos.<br />

A Cooperafloresta, como sujeito e objeto de um estudo de caso,<br />

potencializa os objetivos deste trabalho. A Cooperafloresta é uma associação<br />

que tem como objetivo a inclusão social dos associados e a recuperação<br />

ambiental do território local, por meio da valorização dos recursos dos<br />

próprios agricultores familiares, na adoção da agroecologia com o uso de<br />

técnicas agroflorestais.<br />

As comunidades de agricultores familiares associados à Cooperafloresta<br />

manifestam características de uma comunidade rural, transparecendo<br />

elementos de uma cultura camponesa, porém, esta pesquisa focou-se na<br />

seguinte questão: de que forma a opção pelo sistema agroflorestal e<br />

agroecológico, nas atividades produtivas, mediante a organização de uma<br />

associação de base (no caso a Cooperafloresta, integrante da Rede Ecovida),<br />

– 126 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

representa uma possibilidade de reprodução social dos agricultores<br />

associados, tornando-os agentes de um projeto de vida e projeto comunitário<br />

que se pretendem alternativos em múltiplas dimensões (produtivas, sociais,<br />

econômicas, políticas, ambientais, culturais)?<br />

Para tanto, construiu-se uma reflexão sobre as teorias, as categorias e<br />

os conceitos de análise de nosso problema de pesquisa e das diversas<br />

questões que norteiam este percurso investigativo. Nesse sentido, podemos<br />

destacar algumas categorias e conceitos, dentre estas, a reprodução social e<br />

suas estratégias, a teoria da dádiva e a teoria da reciprocidade, e suas<br />

interfaces no campo social da agricultura familiar e na cultura camponesa.<br />

Esta pesquisa empírica, como um estudo de caso de base qualitativa,<br />

foi analisada com elementos advindos da pesquisa bibliográfica e documental<br />

que possibilitou a organização de um quadro teórico cujos referenciais serão<br />

apresentados nas próximas partes deste capítulo. E, na pesquisa de campo,<br />

os dados coletados foram organizados e sistematizados a partir de vários<br />

momentos e no uso de diversos instrumentos de pesquisa, dos quais<br />

destacamos: entrevistas semiestruturadas, observação participante, vivência<br />

dos mutirões e de vários espaços comunitários e intercomunitários, com o<br />

intuito de adentrar nas dinâmicas dos quadros de vida e das situações de<br />

vida dos agricultores da Cooperafloresta.<br />

Globalização hegemônica, crises e um projeto de alternatividade<br />

Numa época marcada pela ideia de crise, emergem no cenário atual as<br />

formas mais diversas de resistência e de construção de alternativas que se<br />

contrapõem ao modelo hegemônico global de sociedade que conforma a vida<br />

humana e a natureza. Pelo seu localismo com alcance global, têm sido<br />

denominadas genericamente como globalização solidária (SOUSA SANTOS,<br />

2005), globalização contra-hegemônica e globalização alternativa (SOUSA<br />

SANTOS; 2005, 2007), como outra globalização (vários, dentre eles<br />

FONTAN, 2007; SANTOS, 2008).<br />

No esteio das crises, a crise alimentar, tal como discutida recentemente,<br />

pode ser compreendida como uma manifestação conjuntural de uma questão<br />

agroalimentar estrutural: questão intrinsicamente crítica por implicar restrições<br />

e exclusão para a maior parte dos agricultores familiares e campesinato, por<br />

– 127 –


As estratégias da reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta:<br />

um estudo de caso sobre os processos de reciprocidade e solidariedade<br />

gerar insegurança alimentar para a população urbana e por impactar o<br />

ambiente de forma frequentemente irreversível.<br />

Os movimentos sociais e organizações que têm lutado contra esse<br />

modelo em suas diferentes dimensões criam o que se poderiam denominar<br />

projetos de alternatividades.<br />

Importante frisar que, a partir das experiências construídas pela<br />

Cooperafloresta e, em seu turno, pela Rede Ecovida, são explicitadas diversas<br />

iniciativas que revelam alternativas aos modelos hegemônicos de fazer<br />

agricultura, de produzir e fazer chegar às pessoas os alimentos, mas que, em<br />

geral, não são reconhecidas como tal. Como assinala Boaventura de Sousa<br />

Santos (2007), existe uma predominância das racionalidades dominantes<br />

que descartam e desperdiçam essas experiências e outras realizadas em<br />

diferentes âmbitos da vida como não sendo viáveis ou credíveis. Essa é uma<br />

estratégia corriqueira dos representantes do modelo hegemônico globalizado.<br />

No entanto, deve-se dar visibilidade às ricas experiências realizadas pelos<br />

diversos movimentos sociais, para evitar que se anunciem os catastrofismos<br />

de uma só via de desenvolvimento – o do modelo atual e que se pense,<br />

portanto, que:<br />

Não há alternativa, que a história chegou ao fim. Para se pôr fim ao desperdício,<br />

há de se tornar visíveis tais iniciativas e movimentos e dar-lhes credibilidade,<br />

temos de propor uma nova racionalidade que ele propõe ser a racionalidade<br />

cosmopolita que terá de expandir o presente e contrair o futuro. Só assim<br />

será possível criar o espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a<br />

inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje. (SOUSA<br />

SANTOS, 2007, p. 238)<br />

A Rede Ecovida, mediante sua articulação dos agricultores ecológicos,<br />

é uma dessas experiências que potencializam projetos de sustentabilidade<br />

vinculados à busca de alternatividades nos espaços rurais, assim como as<br />

lutas pela terra e organização participativa dos assentamentos desenvolvidos<br />

pelo Movimento dos Sem Terra (MST), a organização das comunidades<br />

quilombolas, as novas formas de representação dos trabalhadores do campo,<br />

a realização dos diversos fóruns de mobilização dos movimentos sociais que<br />

debatem as questões de gênero, étnicas, tecnológicas, ambientais, dentre<br />

outras. Essas e outras experiências, no Brasil e no mundo, corroboram para<br />

– 128 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

a construção de novos referenciais para o desenvolvimento e para a reflexão<br />

sobre novas dinâmicas sociais e identitárias.<br />

A análise das experiências, aqui trabalhadas como alternativas, parte<br />

do pressuposto de que, de alguma maneira, efetivam-se “numa perspectiva<br />

que interpreta de maneira abrangente a forma como as organizações,<br />

movimentos e comunidades resistem à hegemonia do capitalismo e aderem<br />

a alternativas econômicas baseadas em princípios não capitalistas” (SOUSA<br />

SANTOS, 2005, p. 26). As estratégias construídas nessa perspectiva podem<br />

ser desenvolvidas como ações locais. Contudo, essas ações por meio das<br />

múltiplas articulações podem ter reflexos para os espaços regionais, nacional<br />

ou global. “Para isso, é preciso passar da imagem da comunidade como uma<br />

coletividade fechada e estática para uma imagem da comunidade como uma<br />

entidade viva e dinâmica”, portanto, deve estar “aberta simultaneamente ao<br />

contato e à solidariedade com outras comunidades, em diferentes escalas, e<br />

decidida a defender as alternativas contra-hegemônicas que surjam no seu<br />

interior” (SOUSA SANTOS, 2005, p. 53). Existem, nesse aspecto, processos<br />

sociais que se amplificam nas mais diversas dinâmicas em um mundo<br />

globalizado e evidenciam características e concepções que são reproduzidas<br />

perante as contradições da globalização, pois:<br />

Vivemos tempos complexos, tempos de crises, dados pelas grandes questões<br />

ambientais e pelos graves problemas sociais que ficaram evidentes em todo<br />

o planeta. Em tempos de globalização, um debate importante ancora-se nas<br />

possibilidades de resistência e construção de outras formas de produzir, de<br />

consumir, de viver, de outras sociabilidades em geral marcadas por lógicas<br />

que não as que se centrem na produtividade, na competitividade, no controle<br />

da natureza e seu uso irrestrito como recurso. (...) são identificados vários<br />

movimentos e processos sociais cujo traço em comum é colocar em andamento<br />

práticas distintas das que são hegemônicas e que, nesse sentido, podem ser<br />

vistas como potencialmente construtoras de alternatividades. Poderiam-se<br />

denominá-las de práticas de resistência, de movimentos sociais de resistência,<br />

amplamente baseadas nos territórios locais, mas conectados em redes que<br />

lhes dão uma dimensão global. (FERREIRA et al., 2008)<br />

As relações de ajuda mútua são resgatadas no âmbito da produção,<br />

possível por meio da agrofloresta e agroecologia, porém essas ações de<br />

solidariedade e reciprocidade, que tornaram isso vivenciado, foram causa e<br />

– 129 –


As estratégias da reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta:<br />

um estudo de caso sobre os processos de reciprocidade e solidariedade<br />

são resultado de processos de aprendizado e ensino, de ações de troca e<br />

interconhecimento que se dão em outros âmbitos nas dinâmicas de<br />

convivência comunitária. Relações de ajuda mútua que são instituídas no<br />

âmbito de uma cultura camponesa – relações de interconhecimento nas<br />

comunidades, trocas em diferentes aspectos da vida cotidiana e dos aspectos<br />

simbólicos de pertencimento às comunidades. Ao mesmo tempo, nascem<br />

dela e a transformam em novas práticas e simbologias. Essa nova realidade<br />

implica uma revalorização da condição camponesa – pensada agora como<br />

base para serem agentes da sustentabilidade não só de sua unidade familiar,<br />

mas também da comunidade, da sociedade e do planeta.<br />

Dádiva, reciprocidade e solidariedade<br />

Os processos de compreensão das relações sociais de confiança e<br />

respeito mútuo podem ser melhor trabalhados a partir dos conceitos de<br />

reciprocidade e dádiva. Sendo assim, torna-se estratégico entender como se<br />

organizam os elementos de análise da teoria da dádiva e teoria da<br />

reciprocidade. Como ponto de partida, compreende-se inicialmente por<br />

dádiva o dom, o presente, aquilo que se dá, como oferta ou donativo.<br />

A teoria da dádiva tem como sua principal referência a obra de Marcel<br />

Mauss, o Ensaio sobre a dádiva, publicada em 1923-24, em que faz uma<br />

análise dos processos de troca em sociedades arcaicas, sobretudo na reflexão<br />

da obrigatoriedade de retribuir as dádivas, os dons, os presentes. Mauss<br />

(2003, p. 188), nesse sentido, organiza algumas indagações, formuladas<br />

como um problema de pesquisa: “Qual é a regra de direito e de interesse que,<br />

nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz que o presente recebido seja<br />

obrigatoriamente retribuído? Que força existe na coisa dada que faz que o<br />

donatário o retribua?”<br />

Percebe-se no problema proposto uma das características essenciais<br />

da dádiva, que é justamente a construção de interconexões sociais<br />

possibilitadas pela troca de dons, presentes, donativos, em virtude de criar<br />

laços de reciprocidade. Ao receber um dom, o recebedor deste dom passa a<br />

assumir compromisso de retribuição, isto é, define-se a necessidade de<br />

retorno deste dom. Por sua vez, esse retorno não necessariamente se<br />

– 130 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

materializa da mesma forma, pois não se trata de uma troca monetária, e<br />

sim, manifesta-se como uma troca de caráter mais societal, moral, simbólica.<br />

Sabourin (2006, p. 9), em seus estudos sobre a teoria da dádiva,<br />

salienta estas dimensões social e simbólica:<br />

A relação de ajuda mútua depende de laços sociais, sentimentais e até<br />

simbólicos e se diferencia da troca ou do intercâmbio mercantil primeiro<br />

porque não implica numa retribuição equivalente ou monetária que livraria<br />

o beneficiário da sua divida. De fato, existe uma expectativa de retorno da<br />

ajuda, encorajada pela pressão social e por valores de honra e prestígio,<br />

mas, essa devolução não é contratual nem obrigatória. Pode ser diferida no<br />

tempo, assumida por outro membro da família e se traduzir também, por uma<br />

prestação de natureza diferente do trabalho, uma dádiva de sementes, um<br />

gesto de amizade, uma presença pessoal num momento de necessidade.<br />

A dádiva estabelece vínculos entre as pessoas por meio dos processos<br />

de dar e aceitar o dom como um símbolo, isto é, ao dar um dom constrói-se<br />

um vínculo social e simbólico com aquele que aceita o dom que demos.<br />

Dessa maneira, tornamo-nos anfitriões no processo de presentear, pois aquele<br />

que é presenteado ao receber passa a ser um hóspede, por outro lado, ao<br />

mesmo tempo, somos potencialmente hóspedes – isso em função da possível<br />

ação recíproca.<br />

Mauss (2003, p. 263) afirma que “(...) a circulação dos bens<br />

acompanha a dos homens, das mulheres e das crianças, dos festins, dos<br />

ritos, das cerimônias e das danças, mesmo a dos gracejos e das injúrias. No<br />

fundo, ela é a mesma”. Pois, “se coisas são dadas e retribuídas, é porque se<br />

dão e se retribuem ‘respeitos’ – podemos dizer igualmente ‘cortesias’. Mas é<br />

também porque as pessoas se dão ao dar, e, se as pessoas se dão, é porque<br />

se ‘devem’ – elas e seus bens – aos outros”.<br />

Entretanto, não existe a necessidade de haver uma ação recíproca<br />

exatamente com os mesmos parâmetros no que concerne ao presente a ser<br />

retribuído. Isso salienta o caráter simbólico da relação entre dom e contradom.<br />

Dessa maneira, evidenciam-se dinâmicas de sociabilidade por meio da<br />

dádiva, permitindo um processo de vínculo entre os indivíduos, mas, também,<br />

entre grupos sociais, caracterizando aspectos de aliança, de laços sociais.<br />

Esses laços sociais podem se estender em várias dimensões da comunidade,<br />

pois estabelecem redes sociais de confiança e troca, ajuda mútua.<br />

– 131 –


As estratégias da reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta:<br />

um estudo de caso sobre os processos de reciprocidade e solidariedade<br />

A reciprocidade, por sua vez, pode explicitar ações de solidariedade<br />

entre os indivíduos e grupos sociais, construindo um espírito de<br />

compartilhamento no âmbito da comunidade, por meio de diversas ações<br />

tanto materiais quanto simbólicas. Revela-se, também, pela ação de<br />

reciprocidade, a definição de laços entre os envolvidos, pois possibilita o<br />

reconhecimento do outro e efetiva sua participação nos espaços sociais,<br />

havendo um duplo sentido (reprodução) nas ações e nos dons (TEMPLE, 2010).<br />

É fundamental explicar que Temple salienta que se deve diferenciar a<br />

reciprocidade (reprodução de dádivas) da simples troca (permuta de objetos),<br />

pois, de acordo com Sabourin (2009, p. 56), “Temple constata que a dádiva<br />

não é desinteressada; porém, é motivada, antes de tudo, pelo interesse pelo<br />

outro, pelo reconhecimento do outro (...). Faz distinção entre a troca e a<br />

reciprocidade”, e continua citando o próprio Temple:<br />

A troca é motivada pelo interesse que se dá às coisas por elas mesmas ou<br />

por seu valor simbólico. Ela é feudatária da posse e até do acúmulo. Pelo<br />

contrário, com a dádiva recíproca, o ato prevalece sobre a coisa. Mas a troca<br />

é por vezes dita recíproca, porque satisfaz o interesse de cada parceiro. Mas<br />

então, no que difere da reciprocidade? A reciprocidade envolve a preocupação<br />

pelo outro, ou seja, valores afetivos, tais como a paz, a confiança, a amizade<br />

e a compreensão mútua. (...) A troca é uma relação de interesses, mas que<br />

supõe uma reciprocidade mínima. Assim, uma possível confusão entre a troca<br />

e determinada forma de reciprocidade é compreensível. Porém, na realidade,<br />

a troca inverte o movimento da reciprocidade; pois ao invés de visar o bem<br />

do outro, busca satisfazer o interesse próprio. Ela é especialmente esta<br />

inversão, esta transformação da reciprocidade em seu contrário. (TEMPLE<br />

apud SABOURIN, 2009, p. 56)<br />

A reciprocidade, portanto, é referenciada a partir dos valores<br />

afetivos, morais, como o respeito mútuo, a amizade e a confiança. Por sua<br />

vez, pode ser expresso também em processos que geram o sentimento de<br />

responsabilidade e justiça. Revela-se nas relações sociais a produção desses<br />

sentimentos e valores morais, principalmente, nessas ações intersubjetivas.<br />

Como vemos, a confiança (dentre outras características) é um dos<br />

elementos centrais no estabelecimento da rede de relações sociais (inclusive<br />

nas ações de reciprocidade), produzindo nódulos no tecido social entre os<br />

indivíduos e grupos, que mobilizam recursos nos processos de organização<br />

– 132 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

da vida social, os quais superam possíveis transações de mercado<br />

(FUKUYAMA, 2000).<br />

A reciprocidade permite a realização das ações de solidariedade. As<br />

características de reciprocidade revelam a formação de um espírito de<br />

solidariedade, potencializando várias formas de redes sociais. A solidariedade,<br />

como modo de vida, pode ser caracterizada como espaço e momento em que<br />

as diversas possibilidades de conceber o desenvolvimento podem acontecer.<br />

A partir da ressignificação das redes, potencializam-se os espaços de<br />

companheirismo, ajuda mútua, colaboração, cooperação, e não somente<br />

entre as pessoas ou grupos sociais, mas também na relação do ser humano<br />

com a natureza. A solidariedade pode permitir uma reorientação do<br />

desenvolvimento, tornando-o mais fraterno (RODRIGUES, 2004).<br />

Por sua vez, a solidariedade pode ser vista em uma perspectiva de<br />

gestão socioambiental que potencializa uma reorientação estratégica na<br />

organização sustentável da sociedade e, também, pode produzir ações que<br />

promovem resistência aos impactos da sociedade globalizante.<br />

Sobre solidariedade e a influência das redes pode-se propor a seguinte<br />

relação interpretativa: “Para os agricultores que compartilham o espaço das<br />

organizações comunitárias, as práticas culturais que se realizam na comunidade<br />

reforçam valores do grupo e preservam uma rede de relações face a face que<br />

os distingue do mundo exterior” (MENDRAS, 1978). E, dessa maneira, “as<br />

atividades comunitárias, nesse sentido, valorizam positivamente a solidariedade,<br />

criam novas formas de integração (como a troca de dias, aquisição conjunta de<br />

mercadorias) fortalecem as instituições que os promovem e reforçam a<br />

identidade de grupo” (BRANDENBURG, 1999, p.119).<br />

A reprodução social, como conceito e (ou) categoria de análise nesta<br />

pesquisa, apresenta variações em sua construção e, por sua vez, sempre<br />

representa um processo dinâmico, com transformações e adaptações, assim<br />

como possíveis ações de manutenção das estruturas sociais. Essas ações são<br />

compreendidas por meio da análise das estratégias tanto do senso prático<br />

dos indivíduos quanto das interações entre estes, diante das condições<br />

de sobrevivência.<br />

A noção de estratégia deve ser compreendida em conjunto com as<br />

noções de habitus e senso prático, e tem por função, como utilizado por<br />

– 133 –


As estratégias da reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta:<br />

um estudo de caso sobre os processos de reciprocidade e solidariedade<br />

Bourdieu em sua obra “Coisas Ditas”, ser um “instrumento de ruptura com o<br />

ponto de vista objetivista”, ao mesmo tempo, busca “recusar a ver a estratégia<br />

como o produto de um programa inconsciente, sem fazer dela o produto de<br />

um cálculo consciente e racional. Ela é o produto do senso prático como<br />

sentido do jogo, de um jogo particular, historicamente definido, que se adquire<br />

desde a infância, participando das atividades sociais” (BOURDIEU, 1990, p.<br />

81). Não existe, por isso, uma obediência mecânica às regras estabelecidas<br />

no jogo, implicando sim, o desejo, o interesse em fazer o que deve ser feito,<br />

o que é estabelecido ou demandado pelo jogo.<br />

O princípio da estratégia não deve ser visto como um cálculo consciente,<br />

mas “uma relação inconsciente entre um habitus e um campo (...). O habitus,<br />

sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explícita<br />

que funciona como um sistema de esquemas geradores, é gerador de<br />

estratégias que podem ser objetivamente afins aos interesses objetivos de<br />

seus atores sem terem sido expressamente concebidas para este fim”. Assim,<br />

“há toda uma reeducação a ser feita para escapar à alternativa entre o<br />

finalismo ingênuo e a explicação de tipo mecanicista” (BOURDIEU, 1983,<br />

p. 93-94).<br />

As estratégias utilizadas pelos indivíduos e (ou) grupos de indivíduos<br />

possibilitam sua disposição no interior de um campo e na manutenção de seu<br />

posicionamento. Para tanto, as regras do jogo são percebidas e vivenciadas<br />

por meio das práticas engendradas em função do habitus. As estratégias<br />

são definidas, portanto, pela busca da reprodução da vida nos espaços<br />

sociais, econômicos, culturais, políticos, sendo isso não um processo<br />

mecânico, mas, sobretudo, de características dinâmicas propulsoras de<br />

transformações e (ou) adaptações.<br />

A reprodução da vida, assim, pode ser verificada em vários domínios,<br />

e de acordo com Claude Raynaut, a reprodução, como processo dinâmico,<br />

manifesta-se em múltiplas dimensões. Raynaut desenvolve o conceito<br />

buscando apresentar características em cada uma dessas dimensões, para<br />

ser analisado nas avaliações empíricas, sendo elas:<br />

a) A reprodução social se refere às “dinâmicas sociais e culturais pelas quais<br />

um grupo social, uma comunidade, uma sociedade global buscam perpetuarse<br />

ao longo da história como sistema organizado, ao mesmo tempo que se<br />

ajustam e se transformam ao passar por períodos de crise”;<br />

– 134 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

b) A reprodução biodemográfica se refere às “dinâmicas populacionais pelas<br />

quais a composição de um grupo humano e o estado de saúde de seus<br />

membros evoluem, se adaptam e se regulam”;<br />

c) A reprodução econômica se refere aos processos “técnicos e econômicos<br />

segundo os quais um sistema de produção funciona e se modifica de<br />

maneira a produzir e a fazer circular os bens e as mercadorias necessários<br />

para que um grupo humano possa continuar a existir e a manter suas<br />

trocas com o exterior”;<br />

d) A reprodução ecológica se refere às “dinâmicas próprias aos sistemas<br />

físicos e naturais, em relação com as modificações introduzidas pela ação dos<br />

homens (antropização)”. (RAYNAUT et al., 1994, p. 6).<br />

A multidimensionalidade da reprodução dos agricultores familiares da<br />

Cooperafloresta, em nosso caso, verifica-se pelos diversos elementos que<br />

tornam este processo dinâmico e complexo, inclusive no âmbito real. Esse<br />

processo de reprodução pode ser traduzido por contradições internas em suas<br />

próprias características, além de construir interfaces com elementos externos<br />

(nos sentidos tanto de dentro para fora quanto de fora para dentro – das<br />

suas comunidades) – elementos esses que podem representar aproximações<br />

e distanciamentos, equilíbrios e desequilíbrios, tensões e conflitos, assim<br />

como transformações e adaptações que possibilitam sua reprodução social,<br />

cultural, econômica, ambiental. Os avanços em um domínio podem muitas<br />

vezes representar os limites e barreiras em outros domínios e, para tanto,<br />

como os processos de reprodução não garantem transformações permanentes,<br />

foi importante estar sempre atentos às observações, análises e sistematizações<br />

dessas dinâmicas sociais, como buscamos fazer nesta pesquisa em relação<br />

aos processos de reciprocidade e solidariedade, como estratégias de<br />

reprodução social.<br />

Nesse sentido, podem-se perceber características das estratégias da<br />

reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta. Nessa<br />

perspectiva, estaremos na sequência abordando as características do mutirão<br />

construído pelos agricultores da Cooperafloresta, justamente como espaço de<br />

experimentação da reciprocidade e ajuda-mútua, assim como outras formas<br />

e processos de reciprocidade como construção de estratégias de reprodução.<br />

– 135 –


As estratégias da reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta:<br />

um estudo de caso sobre os processos de reciprocidade e solidariedade<br />

Mutirão na cooperafloresta: ações recíprocas na área produtiva e<br />

nas relações com a natureza<br />

O mutirão expressa umas das formas mais claras de solidariedade e<br />

reciprocidade nas comunidades rurais, evidenciando os processos de entre<br />

ajuda e troca entre as famílias de agricultores.<br />

Dessa forma, um resgate importante foi o realizado por Clovis Caldeira,<br />

em sua obra intitulada Mutirão: formas de ajuda mútua no meio rural,<br />

publicada em 1956, em que desenvolve não só uma revisão das práticas do<br />

mutirão nas várias regiões do Brasil, mas também das diversas linguagens<br />

utilizadas sobre ele, e enfatiza que o mutirão é:<br />

Um contrato com fundamento moral e não legal, no qual... existe o importante<br />

característico da retribuição, cuja unidade é o dia de serviço (sem que se<br />

confunda com a instituição do “dia de serviço”, também usado no meio rural,<br />

mas diferente do mutirão). O organizador pede ao vizinho ou amigo um dia<br />

de serviço, unidade essa que será oportunamente retribuída, de maneira<br />

sagrada. Aquele devedor que por qualquer motivo – sem se desculpar – falta<br />

ao mutirão do seu credor, sofre a sanção moral coercitiva da comunidade em<br />

que vive, a qual, na maioria das vezes, é mais rígida que aquelas previstas nos<br />

códigos, porque é simples, dura, impiedosa e não depende de interpretações.<br />

(MARCONDES apud CALDEIRA, 1956, p. 32)<br />

Nessa perspectiva, pode-se perceber um dos aspectos centrais nas<br />

práticas do mutirão, que é justamente o efeito de retribuição, mas, sobretudo,<br />

de ajuda mútua e disponibilidade entre os atores sociais de uma comunidade<br />

e vizinhança.<br />

O mutirão possibilita diversas maneiras de efetivar ações recíprocas<br />

entre membros de uma comunidade, ou mesmo, as ajudas intercomunitárias.<br />

Essas ações de ajuda mútua são trabalhadas por Sabourin (2009, p. 66):<br />

No caso do mutirão, o número de diárias de trabalho por família não é<br />

contabilizado. Todavia, a pressão social supõe a participação de todas<br />

as famílias da comunidade. Os homens jovens e adultos são mobilizados<br />

para os trabalhos pesados; as crianças e adolescentes cuidam da limpeza<br />

dos pontos de água; as mulheres raspam a mandioca na hora de torrar a<br />

farinha. Se alguma forma de concorrência pode existir, é na redistribuição<br />

de alimentos ou bebidas pela família que acolhe. A prodigalidade confere<br />

prestígio e reputação, que são sinônimos de autoridade e poder nos sistemas<br />

– 136 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

de reciprocidade. Partindo de observações entre as comunidades indígenas<br />

e camponesas da América Latina, Temple (1983) já havia proposto que a<br />

reciprocidade seja considerada não apenas como contra-dádiva igualitária e<br />

sim como “a obrigação que cada um tem de reproduzir a dádiva, como forma<br />

de organização da redistribuição econômica”.<br />

Para tanto, o mutirão é o resgate da solidariedade entre os vizinhos,<br />

entre os atores sociais de uma comunidade. É o construir com o outro um<br />

projeto comum, sendo necessário acreditar que o outro pode ajudar, pode<br />

contribuir, deve ser valorizado.<br />

Nessa perspectiva, tornou-se relevante em nosso trabalho a<br />

apresentação e análise das experiências de mutirão construídas pelos<br />

agricultores da Cooperafloresta. No aspecto produtivo, a adoção dos SAFs<br />

(Sistemas Agroflorestais) só se tornou possível pelas ações recíprocas<br />

construídas entre as famílias de agricultores, das quais a mais significativa é<br />

a organização do trabalho em mutirões e a organização de instâncias de<br />

discussão e organização comunitárias. Além de alterar as relações de<br />

sociabilidade entre as famílias, a experiência proporcionou o resgate de uma<br />

relação de integração com a natureza, uma espécie de consciência ecológica<br />

dada pela prática de novas formas de produzir e lidar com a terra e os recursos<br />

naturais. Esse processo é identificado na fala de um agricultor da comunidade<br />

dos Três Canais – Adrianópolis/PR, associado da Cooperafloresta, que lembra<br />

como anteriormente utilizavam uma prática que agredia a natureza e, por<br />

consequência, as dificuldades que tiveram com recursos naturais, porém<br />

ressalta a importância em ter adotado a agrofloresta:<br />

Teve uma época que nós passamos apertados aqui com água, nós<br />

derrubávamos as árvores, queimávamos e plantávamos perto da nascente,<br />

então num inverno a água secou. Depois, com a agrofloresta plantada<br />

naquela área, as bananeiras e as árvores começaram a puxar a água e<br />

fizeram ela rebrotar, hoje, graças a Deus temos água da nascente de novo,<br />

esta foi uma das coisas mais importantes que a agrofloresta me mostrou!<br />

(POUBEL, 2008, p. 95, citando entrevista que realizou na Cooperafloresta.)<br />

Evidencia-se, assim, no âmbito do interesse pelos processos de<br />

recuperação de áreas degradadas, uma busca da qualidade de vida e saúde<br />

socioambiental. Essas comunidades de agrofloresteiros percebem que certas<br />

– 137 –


As estratégias da reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta:<br />

um estudo de caso sobre os processos de reciprocidade e solidariedade<br />

ações tradicionais, que eram utilizadas, implicavam impactos negativos para<br />

suas vidas, principalmente pelo uso da “coivara” (sistema agrícola que era<br />

comum na região, fundado nas práticas de corte e queima da floresta), que<br />

está sendo substituído pelos SAFs e uma concepção de agroecologia. Esta<br />

transição permite uma mudança de postura em relação à produção, ao<br />

mesmo tempo que possibilita uma releitura moral da sua própria situação<br />

como agricultores, já que passam a ter práticas menos impactantes, em<br />

acordo – no mínimo – com as técnicas da agroecologia (que proíbem a prática<br />

da coivara).<br />

Essa mudança não ocorre somente em relação à coivara, mas os<br />

agricultores da Cooperafloresta também deixam de utilizar os adubos químicos<br />

e veneno, como explicita a agricultora Jorlene, em depoimento relacionado ao<br />

Projeto Abelhas da associação:<br />

Antes a gente vivia um outro tipo de vida, agora vê as plantas, os pássaros.<br />

Antes a gente mexia com veneno, fazia as coisas que não eram certas. Não<br />

tinha aquela visão de como era a natureza. Agora a gente tá cuidando da<br />

natureza. Agora a gente produz as coisas mais saudáveis, nossa vida mudou<br />

muito, principalmente na alimentação. (JORLENE, comunidade Três Canais –<br />

Adrianópolis/PR – Cooperafloresta, 2010)<br />

Essas mudanças ocorrem de forma obrigatória para todos agricultores<br />

que pretendem se tornar um associado da Cooperafloresta, pois devem<br />

seguir as normas técnicas e associativas estipuladas em seus regimentos.<br />

A fala de Dona Inês, associada da Cooperafloresta, descreve justamente essa<br />

perspectiva de construção de alternativas, tanto no âmbito da família quanto<br />

da comunidade, e, sobretudo, em um processo de diálogo e esperança por<br />

mudanças sociais, econômicas, políticas e ambientais, além de explicitar<br />

seus valores de solidariedade e participação.<br />

No começo nós sofríamos, achava estranho plantar sem queimar, mas agora<br />

acostumamos, agora parece que nós não conseguimos trabalhar daquele<br />

outro jeito mais. [...] Ah eu pra mim foi muito bom quando nós entramos na<br />

Coopera por causa de eu incentivei as criança... conversava com o Gilmar aqui<br />

na comunidade sobre agroecologia, daí eles (Nelson e Lucilene) convidaram<br />

nós pra entrar na Coopera. Daí eu participei de mutirão no Indaiatuba, acho<br />

que um ano e pouco eu participei lá, por causa de uns veneno que nós usamos<br />

– 138 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

aqui. Trabalhava lá... Pra daí conseguir vender. Daí até um dia nós estava<br />

bem precisando, nós fazia feira lá na Barra daí eu falei pra Nossa Senhora<br />

que estava esperando, que queria um sinal pra saber se tava fazendo a coisa<br />

certa... É, no ponto da feira. Aí era uma época de carnaval eu cheguei lá e<br />

tinha uma imagem de Nossa Senhora Aparecida ali no chão, uma imagem<br />

assim de prata que eu tenho até os dias de hoje. Daí quando foi na outra<br />

semana eles me liberaram pra mim vender o que tinha aqui, e graças a Deus<br />

nós estamos vendendo até hoje. (DONA INÊS, comunidade Três Canais –<br />

Adrianópolis/PR – entrevista em janeiro de 2011)<br />

O mutirão também resulta num duplo benefício: de um lado, é uma<br />

forma de garantir adendo de força de trabalho, de outro, resgata princípios de<br />

solidariedade no interior dessas comunidades e possibilita a formação de redes<br />

de ajuda mútua fundamentais na organização das práticas agroflorestais.<br />

Funciona também como um processo de troca de conhecimentos e aprendizado,<br />

de debate das formas de produção agroecológica e agroflorestal, para além da<br />

troca de trabalho, conforme destaca um dos coordenadores de grupo:<br />

Desde que começou a Coopera tem estes mutirão – puxirão, pixiram. Tem<br />

algumas horas de palestra... eu trabalho de uma maneira o desbaste – a<br />

troca de experiência entre nós é muito importante, considero isto fantástico,<br />

a própria natureza já nos mostra como fazer – aquela fruteira tem que dar luz<br />

para a outra ... isto é encantado. Nos reunimos meio dia (7 às 11 horas)...<br />

antes era o dia todo... Em nosso grupo – aqui toda sexta-feira fazemos o<br />

mutirão. Nesses pixirom – na hora da palestra – se tem problema é nesta<br />

hora que vai buscar resolver os problemas – como deveria ser feito, é passado<br />

sobre todos os problemas e o que foi discutido no grupo, por exemplo, como<br />

tá o andamento da Coopera ... (ZÉ BALEIA – comunidade Arueira – Barra do<br />

Turvo/SP, entrevista em fevereiro/2010)<br />

O mutirão, porém, constitui uma estratégia que os fez ultrapassar os<br />

limites da comunidade, especialmente pela sua integração na Rede Ecovida:<br />

propiciou aos seus membros ligarem-se a redes mais amplas de produção<br />

agroecológica, no comércio direto de produtos orgânicos, no intercâmbio de<br />

experiências tecnológicas e organizacionais, nas formas participativas de<br />

certificação, entre outras.<br />

Mesmo se previsto regimentalmente, o mutirão é praticado e percebido<br />

pelos agricultores como uma expressão de ajuda mútua e de reciprocidade.<br />

– 139 –


As estratégias da reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta:<br />

um estudo de caso sobre os processos de reciprocidade e solidariedade<br />

Para a maioria, constituiu-se na recriação de uma prática antiga que tinha<br />

sido abandonada por contingências diversas, entre elas o próprio abandono<br />

da terra que estava sem condições de cultivo pelo desmatamento e<br />

monoculturas. O mutirão pode ser visto como uma das expressões da<br />

solidariedade que, por sua vez, caracteriza-se pela construção de redes<br />

comunitárias que privilegiam os processos de companheirismo e boa<br />

convivência, em um ambiente de respeito e reconhecimento mútuo. Isso não<br />

significa que dissolve o conflito. O importante é que o ideário de solidariedade<br />

coloca formas diversas de se conceber o desenvolvimento a partir da<br />

ressignificação das relações sociais, potencializando os espaços de<br />

companheirismo, ajuda mútua, colaboração, cooperação, e não somente<br />

entre as pessoas ou grupos sociais, mas também na relação do ser humano<br />

com a natureza.<br />

Podem-se perceber elementos desses objetivos nas falas de Urias e<br />

Maria, casal do grupo da comunidade do Estreitinho (Adrianópolis/PR), mas<br />

que moram no bairro de Indaiatuba (Barra do Turvo/SP), em que se revela a<br />

importância da agrofloresta nas mudanças em suas vidas, desde a organização<br />

da produção como nos processos de participação e desenvolvimento local –<br />

reprodução social da agricultura familiar.<br />

Por causo disso que a gente tem esse sistema agroflorestal, que além de<br />

ser um sistema bom pro solo que você faz, você prepara a sua terra, deixa<br />

melhor a tua terra e é uma saída também pro coitado do agricultor aqui.<br />

É uma saída porque se ele faz isso, pelo menos ele vai ter alimento pra<br />

comer. (...) Esse sistema agroflorestal no caso faz isso, ele une mais as<br />

pessoas. Tem mais união porque tem diálogo. Porque o problema deles aqui<br />

(tá falando sobre os problemas da comunidade em geral) também é falta<br />

de sentar e discutir. Porque na Cooperafloresta acontece isso: senta, discute<br />

o que tá acontecendo, o porquê, o que é que vão fazer pra resolver. (URIAS<br />

de Assis Mota, comunidade do Estreitinho – entrevista em janeiro de 2011)<br />

(grifo do autor)<br />

É que depois da agrofloresta, a alimentação ficou melhor, né? Que a gente<br />

aprende mais coisa, a gente aprende a comer mais verdura, mais essas<br />

coisas. Um passa pra outro o que é bom e o que não é. Que nem eu aqui –<br />

fui na Jorlene (comunidade Três Canais) lá embaixo, eles tinham tipo um,<br />

eu achava que era um mato, né? que dá umas florzinha só que ela falou,<br />

– 140 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

perguntou pra mim: você já comeu esse aqui?. Daí eu falei: não, eu nunca<br />

comi. Ela falou assim: esse aqui é uma beleza pra fazer salada, ele é bem<br />

azedinho, só que você faz salada. E se eu come eu achava que era um mato.<br />

E ela passou pra mim que era de comer, e eu tive que aprender que aquilo<br />

lá já se pode colher e fazer uma salada, e eu não sabia. Então o que a gente<br />

não sabe a outra passa pra gente, o que ela não sabe a gente passa. É assim,<br />

um vai passando pro outro as coisa. E vai aprendendo. (MARIA Aparecida<br />

da Silva Mota, comunidade do Estreitinho – entrevista em janeiro de 2011)<br />

(grifo do autor)<br />

Outra experiência que explicita essas ações de solidariedade nos<br />

espaços da Cooperafloresta pode ser a disponibilidade de um de seus<br />

agricultores que concedeu uma área de sua propriedade familiar para outro<br />

agricultor da comunidade, que não tinha uma área que garantisse produção<br />

para sua família.<br />

Então, eu tocava só aqui (minha área pequena da família) ... daí me reuni a<br />

minha área aqui e daí ele me ofereceu (Urias) pra mim lá esse pedaço de terra<br />

lá (no Estreitinho) – espaço de terra para fazer agrofloresta. Ah mas eu fiquei<br />

contente porque às vezes nem um parente faz isso com a gente, né? Eu fiquei<br />

muito contente, nem tenho como agradecer ele. Mas só Deus mesmo pra<br />

agradecer ele aí. Então eu tiro a minha, a maior parte eu tiro lá, né? da minha<br />

produção do terreno. Então as plantações, essas frutas são até minha que eu<br />

planto. (OSNI, comunidade do Estreitinho – Adrianópolis/PR – entrevista em<br />

janeiro/2011)<br />

A Cooperafloresta pode ser considerada não somente uma associação<br />

dos agricultores familiares, mas também um instrumento de construção de<br />

autonomia dos seus integrantes, potencializando tanto a sua formação<br />

intracomunitária quanto garantindo espaços de intercâmbio com agricultores<br />

de outras regiões. E, a partir disso, ocorreu o estímulo para formação da<br />

juventude e participação das mulheres, por exemplo:<br />

Participação das mulheres – a Rede Ecovida estimula a participação. Aqui<br />

antes era todo mundo meio arredio. Depois com as reuniões isso mudou, todo<br />

mundo interage mais. As mulheres viajaram. Antes a gente tinha vergonha<br />

de conversar com os outros, hoje não. Na reunião do conselho têm várias<br />

mulheres hoje como representantes dos grupos. Antes era só homem. Hoje<br />

é quase a metade. (JORLENE. Comunidade Três Canais – Adrianópolis/PR –<br />

entrevista realizada em fevereiro de 2009).<br />

– 141 –


As estratégias da reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta:<br />

um estudo de caso sobre os processos de reciprocidade e solidariedade<br />

Na Figura 1 [conjunto de fotos de mutirão na propriedade da família do<br />

Sidinei], mostro um momento interessante de vivência de mutirão no grupo<br />

da Comunidade Três Canais [Figura 2 – mapa da comunidade Três Canais],<br />

uma área para reimplantação de agrofloresta, onde foi feita capina. Estiveram<br />

presentes representantes de todas as famílias do grupo, demonstrando um<br />

processo claro de reciprocidade simétrica.<br />

Figura 1: Mutirão na Comunidade Três Canais – Propriedade do Sidinei<br />

Realizado em 22 de Janeiro de 2011.<br />

Observação: Estavam presentes nesse mutirão: Claudinei, Sebastião, Dona Inês, João Paulo, Gilmar,<br />

Sidinei, Rodrigo (técnico da Cooperafloresta e pesquisador), Almir (Filó, autor deste capítulo). No<br />

capítulo 3 deste <strong>livro</strong> (“Agroflorestas e sistemas agroflorestais, no espaço e no tempo”), esta propriedade<br />

do Sidinei é utilizada para análise e exemplicação do manejo agroflorestal.<br />

– 142 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Figura 2: Comunidade Três Canais – Adrianópolis/PR<br />

Fonte: Áreas georreferenciadas de cada família da comunidade Três Canais<br />

(organizado pelo Rodrigo – técnico da Cooperafloresta e pesquisador).<br />

A comunidade Três Canais tem dois grupos de famílias associadas na Cooperafloresta.<br />

A propriedade da família do Sidinei é a área 5.<br />

Outras dinâmicas de reciprocidade e projetos de<br />

desenvolvimento: processos de intercâmbio e ações recíprocas<br />

nas relações intercomunitárias<br />

O fato de você andar em direção ao uso sustentável dos recursos, só por isso já<br />

contribui, uma relação saudável de humanos com a natureza. Sustentabilidade:<br />

papel do indivíduo, dando sentido à própria vida, contribuindo com a história<br />

do mundo. Contribui para reduzir os efeitos do câmbio climático. O que importa<br />

é o que estamos fazendo. (PEDRO BAIANO, Comunidade Córrego do Franco,<br />

Adrianópolis/PR – Cooperafloresta, entrevista em fevereiro de 2010)<br />

As ações da Cooperafloresta não se reduzem aos territórios locais, mas<br />

expandem suas fronteiras mediante processos de intercâmbio com outras<br />

organizações, com o intuito de troca de experiências técnicas e organizacionais.<br />

Essas ações manifestam dinâmicas de reciprocidade e solidariedade que podem<br />

– 143 –


As estratégias da reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta:<br />

um estudo de caso sobre os processos de reciprocidade e solidariedade<br />

permitir uma reorientação do desenvolvimento no sentido contra-hegemônico,<br />

amplificando as redes sociais em torno da agroecologia e agrofloresta.<br />

Projetos e ações de parceria e intercâmbio: construção de redes de<br />

colaboração e reciprocidade<br />

Como exemplo dessas experiências, dentre outras, destacamos:<br />

• Movimento do Mutirão Agroflorestal (que reúne diversas comunidades<br />

e organizações de agricultores de vários estados do país desde<br />

1996) desenvolve vivências de manejo agroflorestal, integração de<br />

conhecimentos e avaliação do uso de técnicas.<br />

• Rede Ecovida de Agroecologia (reúne agricultores, ONGs e<br />

cooperativas de consumidores em diversos núcleos na Região Sul)<br />

promove a construção da certificação participativa dos seus<br />

produtos, estabelecendo uma rede de credibilidade e solidariedade<br />

(este item será discutido à frente).<br />

• AOPA (Associação de Agricultura Orgânica do Paraná – fundada em<br />

1995), proporciona a integração na produção e comercialização,<br />

não só em feiras de orgânicos em Curitiba e Região, mas permite<br />

acesso às redes de comercialização em outros estados.<br />

• Projeto Iguatu, financiado pela Petrobras, viabilizou e qualificou as<br />

ações agroflorestais e teve por objetivo “realizar ações de formação<br />

e capacitação, adoção de tecnologias, geração de referências<br />

técnico-científicas, contribuindo para a recuperação e conservação<br />

ambiental e para a melhoria da qualidade de vida dessas<br />

comunidades” (PETROBRAS, 2008). Importante frisar que este<br />

projeto expandiu as interconexões da Cooperafloresta, sendo:<br />

Resultado da ação e articulação de seis organizações: Associação para o<br />

Desenvolvimento da Agroecologia (AOPA), Cooperativa Central de Reforma<br />

Agrária do Paraná (CCA), Federação dos Agricultores da Agricultura Familiar<br />

da Região Sul (FETRAF/SUL) Associação dos Agricultores Agroflorestais<br />

de Barra do Turvo (Cooperafloresta), Centro Nacional de Pesquisas em<br />

Florestas (Embrapa Florestas) e Universidade Federal do Paraná (UFPR).<br />

(PETROBRAS, 2008)<br />

– 144 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Após esses projetos houve um processo de fortalecimento das redes de<br />

intercâmbio e sociopolíticas da Cooperafloresta e, que atualmente, se<br />

legitimaram em novos projetos, aprovados ao longo do ano de 2010, mas,<br />

que iniciaram suas ações em 2011, dentre eles:<br />

• <strong>AGROFLORESTA</strong>S, em parceria com a EMBRAPA Florestas, cujo<br />

título é “Sustentabilidade de Sistema Agroflorestal Multiestrata<br />

Sucessional na Floresta Atlântica Densa do Estado do Paraná –<br />

Projeto Agroflorestas”.<br />

• <strong>AGROFLORESTA</strong>R, com recursos da PETROBRAS, e que tem<br />

por objetivo ampliar os espaços de formação dos agricultores<br />

agrofloresteiros, mas, também expandir a tecnologia dos sistemas<br />

agroflorestais com visitas técnicas e intercâmbio.<br />

Por meio de alguns desses projetos e dessas redes, os associados da<br />

Cooperafloresta e outros participantes destes projetos, viram-se alçados a<br />

uma discussão globalizada – foi o caso da participação da Rede Ecovida nos<br />

Fóruns Sociais Mundiais.<br />

A vinculação com a Cooperafloresta começa a permitir aos agricultores<br />

dessas comunidades a reconstrução de suas vidas nos seus diversos aspectos –<br />

econômicos, políticos, sociais, culturais, ambientais. A lógica que adquirem<br />

é mais ampla e não se restringe à dimensão econômica da produção:<br />

Sidinei conta que no princípio sua intenção era de poder ter retorno financeiro<br />

maior do que vinha tendo, mas que hoje tem sua atenção voltada para o seu<br />

sustento alimentar saudável, com variedade de alimentos orgânicos, sua água<br />

e ambiente conservado e o futuro financeiro garantido pela grande quantidade<br />

de espécies ali plantada, que frutificarão ao longo de anos de forma permanente<br />

com uma tendência de melhorar a qualidade da terra e, consequentemente,<br />

da vida. Sidinei vê hoje a solução para a sua insegurança crescendo com o<br />

reflorestamento ao redor de sua casa. (POUBEL, 2008, p. 100)<br />

Os agricultores vinculados à Cooperafloresta estão, assim, redefinindo<br />

suas estratégias e práticas de organização e construindo sua própria experiência<br />

de alternatividade cujos efeitos, segundo sua percepção, ultrapassam em muito<br />

o território local. Com a agrofloresta redefinem seu papel no mundo:<br />

– 145 –


As estratégias da reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta:<br />

um estudo de caso sobre os processos de reciprocidade e solidariedade<br />

Este trabalho de agrofloresta é aprender a viver com a natureza, contribuir<br />

para que ela possa ser essa mãe natureza que a gente tanto precisa; contribuir<br />

para que dá água, dá oxigênio, dá saúde pra tudo, pois não é só nós que<br />

precisamos desta floresta, mas os vivente que tem na face desta terra”.<br />

(SEZEFREDO – Sítio Ana Rosa. In: REPORTERECO, 2008).<br />

Nesse sentido, a análise das experiências construídas na Cooperafloresta<br />

é central em nosso trabalho, no intuito de compreender de que forma os<br />

agricultores e suas famílias (re)constroem as dinâmicas de uma cultura<br />

camponesa. Como um exemplo de representação dessas transformações,<br />

podemos analisar as figuras 3 e 4 [fotos que demonstram a mesma área do<br />

seu Zé Silva, em épocas diferentes, na comunidade do Estreitinho –<br />

Adrianópolis/PR], que explicitam claramente esta mudança (não somente de<br />

paisagem), mas, sobretudo, mudança na perspectiva de projeto de vida,<br />

mudanças a partir da agrofloresta em busca de um modelo sustentável.<br />

Figura 3 Figura 4<br />

* Década 1990: Zé Silva e Dona Tereza * Janeiro de 2011: Zé Silva e Thiago (neto)<br />

Certificação participativa: expressão dos elementos de confiança nas<br />

ações de reciprocidade<br />

Destaca-se como importante elemento agregador na Cooperafloresta<br />

e, neste caso, muito em função de seu vínculo à Rede Ecovida, o processo<br />

de certificação de produtos agroecológicos. Para isso, a Rede procurou<br />

desenvolver de per se uma metodologia para comprovar a qualidade e<br />

origem da produção dos grupos a ela vinculados. Esse processo, desenvolvido<br />

no ano 2000, envolve um conjunto de procedimentos para garantir que o<br />

– 146 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

produto, processo ou serviço oferecido sigam os padrões estabelecidos para<br />

a agricultura orgânica (REDE ECOVIDA, Caderno de formação, 2004). Tal<br />

iniciativa surgiu com uma série de debates ocorridos pela ação do Ministério<br />

da Agricultura que, a partir de 1994, iníciou discussões para normatizar a<br />

produção, a circulação e o comércio de orgânicos no Brasil. Por questionar a<br />

eficácia dos modelos propostos pelo Estado e também por aqueles que<br />

defendiam a necessidade de criação de órgãos certificadores externos, a Rede<br />

Ecovida criou um sistema diferenciado, denominado de certificação participativa,<br />

no qual o controle é realizado a partir da ação dos próprios agricultores, em<br />

conjunto com técnicos e consumidores. A certificação participativa:<br />

É um sistema solidário de geração de credibilidade, onde a elaboração e a<br />

verificação das normas de produção ecológica são realizadas com a participação<br />

efetiva de agricultores e consumidores, buscando o aperfeiçoamento constante<br />

e o respeito às características de cada realidade. O selo Ecovida é obtido após<br />

uma série de procedimentos desenvolvidos dentro de cada núcleo regional.<br />

Ali ocorre a filiação à Rede, a troca de experiências e verificação do Conselho<br />

de Ética. A certificação participativa é uma forma diferente de certificação<br />

que além de garantir a qualidade do produto ecológico, permite o respeito<br />

e a valorização da cultura local através da aproximação de agricultores<br />

e consumidores e da construção de uma Rede que congrega iniciativas de<br />

diferentes regiões. (REDE ECOVIDA, 2008)<br />

Nessa perspectiva, Nelson e Lucilene, técnicos da Cooperafloresta,<br />

comentam as vantagens e desvantagens da certificação participativa,<br />

comparando-a com a certificação convencional de terceira parte (de<br />

auditagem):<br />

A confiança é um elemento importante da certificação participativa, porém<br />

diria que a confiabilidade não é o maior benefício, e sim o sistema participativo<br />

é incomparável. Porque ele pressupõe um processo educativo que gera<br />

responsabilidades. E você envolve necessariamente a comunidade que está<br />

no entorno. Não é só um técnico. A maior vantagem é isso, a responsabilidade<br />

coletiva, que gera troca de conhecimento. E também não é ética delegar<br />

responsabilidades que deveria ser dos atores para um inspetor (auditor). A<br />

certificação participativa não traz desvantagens, mas apresenta dificuldades.<br />

A capacidade de aceitar críticas das pessoas, de falar para o outro, de não se<br />

omitir, tudo isso é difícil na responsabilidade coletiva. Nossa cultura é diferente<br />

– 147 –


As estratégias da reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta:<br />

um estudo de caso sobre os processos de reciprocidade e solidariedade<br />

disso. Mas estamos construindo esse aprendizado coletivamente. (NELSON<br />

e LUCILENE, técnicos da Cooperafloresta, Barra do Turvo/SP, entrevista em<br />

fevereiro de 2010)<br />

A certificação participativa indica a construção de uma relação de<br />

confiança, na qual se ressaltam os aspectos alternativos de organização<br />

aos espaços mercantis. A metodologia da certificação participativa é um<br />

importante aspecto de unificação dentro da Rede, justamente pela<br />

originalidade de sua proposta. Isso porque a comercialização dos produtos<br />

procura não fazer uso das certificações por auditagem, feitas por empresas<br />

especializadas e órgãos públicos. Esse sistema foi reconhecido como uma<br />

das formas oficiais de certificação através da Lei n.º 10.831/2003.<br />

Para fins de garantir a regularidade do processo de certificação a Rede<br />

constituiu no ano de 2009 uma pessoa jurídica única, a Associação Ecovida<br />

de Certificação Participativa, uma entidade sem fins lucrativos de direito<br />

privado que é responsável pelas ações desenvolvidas nos três Estados<br />

(PR, SC e RS). Essa associação dispõe de uma Comissão Técnica, um<br />

Conselho de Certificação e um Conselho de Ética ou de Recursos, além das<br />

demais instâncias (tesouraria, administração) que são responsáveis por<br />

auxiliar os núcleos no cumprimento de todas as exigências estabelecidas para<br />

a conformidade da produção orgânica.<br />

O procedimento necessário para a certificação realiza-se nos núcleos<br />

regionais, mediante solicitação do grupo interessado na certificação, que<br />

preenche um formulário especialmente criado para este fim. O Conselho de<br />

Ética do núcleo, após análise do formulário e demais informações, realiza<br />

visitas periódicas (estabelecidas conforme a necessidade observada) nas<br />

propriedades, que é documentada por meio de relatórios escritos elaborados<br />

individualmente por cada membro presente à visita. Após, o Conselho emite<br />

um parecer favorável ou não à obtenção da certificação. Em caso de parecer<br />

desfavorável, o Conselho sugere possíveis melhorias na propriedade ou<br />

agroindústria. O resultado favorável autoriza o uso do Selo Ecovida (Figura 5)<br />

e também a emissão de certificados e demais atestados de conformidade<br />

(REDE ECOVIDA, Caderno de Formação, 2004, p. 11).<br />

– 148 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Figura 5: Selo Ecovida<br />

Fonte: REDE ECOVIDA, Caderno de Formação, 2004.<br />

Os pedidos de selos são formulados pelo núcleo regional ao Conselho<br />

de Certificação, que integra a Coordenação da Associação. As quantidades<br />

devem ser definidas nas reuniões dos núcleos a fim de atender a todos os<br />

grupos certificados. Há regras para a impressão do selo em rótulos e ainda é<br />

permitida a sua utilização em feiras, bancas, propriedades, agroindústrias –<br />

desde que não exista a produção simultânea de produtos não ecológicos<br />

(REDE ECOVIDA, Caderno de Formação, 2004, p. 12).<br />

O processo de certificação da rede encontra-se atualmente em fase de<br />

discussões internas para fins de adaptação à legislação. A Instrução Normativa<br />

de nº. 64, do Ministério da Agricultura, publicada em 18 de dezembro de<br />

2008, traz algumas exigências que neste momento estão sendo adaptadas<br />

ao sistema de certificação já desenvolvido pela Rede, incluindo detalhamentos<br />

sobre a documentação referente aos planos de conversão, de manejo e<br />

controle da produção. A organização jurídico-representativa da Rede também<br />

se encontra em processo de avaliação, com a finalidade de adaptar-se às<br />

exigências do Decreto n.º 6323, de 23 de dezembro de 2007. Tal Decreto<br />

institui regras tanto para os sistemas participativos de garantia da qualidade<br />

orgânica (que é a denominação legal para o caso da certificação participativa<br />

promovida pela Rede) como para a formação de Organizações de Controle<br />

Social (OCS) nos casos de venda direta sem certificação (atividade esta que<br />

também é frequente nas ações dos grupos vinculados à Rede).<br />

– 149 –


As estratégias da reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta:<br />

um estudo de caso sobre os processos de reciprocidade e solidariedade<br />

No entanto, há de se destacar que a metodologia de certificação<br />

participativa é um importante aspecto de unificação dentro da Rede,<br />

dando originalidade à sua proposta. Isso porque se negam as certificações<br />

tradicionais, feitas por empresas especializadas, pois esse processo não<br />

criaria novos referenciais para a produção e comercialização dos produtos<br />

agroecológicos. Para Souza (2003, p. 25):<br />

A certificação participativa pode ser explicada da seguinte forma. Inversamente<br />

ao enfoque da certificação convencional, que trabalha com o princípio da<br />

desconfiança, e gera uma série de providências de fiscalização do agricultor<br />

pelas certificadoras, a certificação participativa parte do princípio da<br />

confiança, ou seja – de que é possível criar processos geradores de<br />

credibilidade, que além de serem educativos e muito mais construtivos, a<br />

prática tem mostrado que podem oferecer a mesma segurança da certificação<br />

convencional. O processo de geração de credibilidade começa pelo<br />

pertencimento do agricultor a um grupo, a um núcleo da Rede, a processos<br />

locais de comercialização direta onde exista transparência do processo<br />

produtivo junto aos consumidores e acompanhamento técnico no âmbito<br />

da Rede. Tomando isto como ideia geral, a Rede desenvolveu um sistema<br />

de normas técnicas, que abrange todo o processo produtivo (que consta<br />

na legislação nacional sobre orgânicos), e um sistema de procedimentos<br />

a serem seguidos pelos núcleos a fim de viabilizar a liberação do selo de<br />

orgânico para os agricultores. (grifo do autor)<br />

A certificação participativa contribuiria, nesse sentido, para recriar<br />

esses referenciais. Assim, a partir desse pressuposto, os agricultores, técnicos<br />

de ONGs e cooperativas de consumo passaram a se organizar em grupos, em<br />

que acontece essa certificação participativa baseada no “autocontrole”. Esse<br />

pressuposto foi adotado na própria organização da Rede, pois não há um<br />

grupo diretivo como há em outras organizações sociais.<br />

Um aspecto forte nos processos de reciprocidade ou reconhecimento<br />

dos outros grupos sociais deu-se com destaque nos espaços de comercialização,<br />

tanto na organização das feiras (entre os integrantes do grupo ou núcleo) quanto<br />

da relação com os consumidores. Nesses espaços, ressaltam-se aspectos de<br />

valorização da agroecologia, da agricultura familiar (relativos à qualidade do<br />

alimento), mas, também, ampliam-se as redes de relações sociais pelas quais<br />

valores de confiança, respeito mútuo e solidariedade são fortalecidos.<br />

– 150 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Eu vejo, por exemplo, que em toda agroecologia está presente o mesmo tipo<br />

de espírito da agrofloresta (que vai até mais longe) que é a construção de uma<br />

ética de amor, das pessoas entre si, com a natureza, um outro fundamento<br />

para a vida. Isso passa na organização social, das pessoas trabalharem unidas,<br />

com amor, entre si e que rompe com a lógica darwinista de que o mundo é uma<br />

competição. Ou se quisesse usar Adam Smith um mundo que só se explica<br />

por competição. O elemento amor quando está incorporado é a agroecologia.<br />

A antítese é o agronegócio. (NELSON – técnico da Cooperafloresta, entrevista<br />

em fevereiro de 2010)<br />

A confiança estabelecida entre os atores envolvidos nesse processo de<br />

certificação se expande para outros espaços, para além da relação produtorconsumidor,<br />

permitindo a organização de movimentos de resistência que<br />

ganham ressonância em diversos contextos, com foco principal na redefinição<br />

dos modelos de desenvolvimento alicerçado em ações de caráter não<br />

capitalistas, contra-hegemônicas.<br />

Considerações finais<br />

A Cooperafloresta trabalha nesta linha porque nosso processo de organização<br />

sempre teve este foco na agrofloresta e no desenvolvimento do conhecimento<br />

sobre a natureza que nossas famílias tinham. Se a pessoa vai fazer agrofloresta,<br />

então vamos trabalhar com horta, adubação verde, árvores adubadeiras,<br />

fruteiras, madeiras de lei e todas as plantas que permanecerão no futuro,<br />

já começando em sucessão, copiando o que a mão divina faz, através da<br />

natureza. A cada dia vamos acreditando mais e isto vem acontecendo através<br />

do conhecimento local, da forma participativa de nossa organização, de um<br />

estimular e cobrar os outros... Isto também varia de agricultor pra agricultor,<br />

que cada dia, vem, dentro de si mesmo, buscando o próprio crescimento.<br />

Cada vez melhorando e criando coisas diferentes e desta maneira contribuindo<br />

com a construção de um mundo cultural, social, ambiental e economicamente<br />

sustentável. (CLAUDINEI, grupo Três Canais, entrevista em fevereiro de 2010)<br />

Pode-se perceber que as dinâmicas de solidariedade e reciprocidade<br />

explícitas nas comunidades de agricultores familiares associados à<br />

Cooperafloresta transparecem características de uma comunidade rural,<br />

com elementos de uma cultura camponesa, nas quais se destacam ações<br />

de ajuda mútua no uso de mutirão nas atividades produtivas, por exemplo,<br />

mas que muitas vezes se multiplicam para outros setores da vida em<br />

comunidade. Elaboram práticas que definem as mais diversas interconexões<br />

– 151 –


As estratégias da reprodução social dos agricultores familiares da Cooperafloresta:<br />

um estudo de caso sobre os processos de reciprocidade e solidariedade<br />

identitárias, característico de processos de reciprocidade e que constroem<br />

um projeto de alternatividade.<br />

Manifesta-se, assim, que essa forma alternativa de produzir, baseada<br />

na agroecologia e agrofloresta, introduziu, nas comunidades da Cooperafloresta,<br />

necessidades de trabalho e de organização do processo de produção que não<br />

se circunscrevem mais à unidade familiar. O processo se tornou coletivo, ou<br />

melhor, tornou-se comunitário – termo este que expressa melhor os<br />

sentimentos camponeses que os potencializaram. Isso não gerou o fim da<br />

“terra da família”, nem da sua apropriação familiar, mas possibilitou um<br />

trabalho que cuida da natureza e, por isso, transcende às fronteiras dos<br />

imóveis; não usam agroquímicos e, por isso, utilizam mais mão de obra,<br />

organizaram as práticas do mutirão (como ação recíproca), para ampliar o<br />

potencial produtivo, mas, também, como espaço de troca de conhecimento e<br />

dinâmica de sociabilidade.<br />

Dessa maneira, engendrou novos laços e dinâmicas entre as unidades<br />

de produção familiar e propiciou condições para outras formas de ação<br />

coletiva e sociabilidades, também as ligadas à inserção da Cooperafloresta na<br />

Rede Ecovida.<br />

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– 153 –


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– 154 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 7<br />

A construção do sujeito agroflorestal por meio da<br />

ética do habitar: resistência e autonomia na visão de<br />

mundo agrofloresteira<br />

Priscila Cazarin Braga<br />

Rômulo Macari da Silva<br />

E o que eu penso é que o mundo não tá pronto ainda, ele está sendo<br />

feito a cada dia e agora a gente tá tendo a nossa oportunidade de<br />

também ajudar nessa, como é que eu vou chamar, nessa “fazeção”<br />

do mundo. E eu acho que é o fato de muita gente estar doente,<br />

depressão, é falta de saber disso! Sabe, você... não tem sentido,<br />

não... porquê tem bactérias, tem coisas assim minúsculas que<br />

segundo o que dizem alguns, nem cérebro não tem e elas sabem<br />

qual que é a função delas e elas executam com perfeição. E agora<br />

nós com tudo isso de...e dizer que somos o topo da cadeia alimentar<br />

e tudo mais, ficamos loucos, a gente destrói o mundo a nossa volta.<br />

Suicídio? Assim consciente mas é um suicídio! E esse trabalho<br />

(agroflorestas) te dá a possibilidade de você compreender isso e de<br />

você fazer parte do todo e penso eu que inclusive, se curar desse<br />

vazio que as pessoas tem.<br />

(Agricultor grupo Córrego do Franco).<br />

Introdução<br />

Este capítulo trata da união de duas pesquisas realizadas em diálogo e<br />

inter-relação. Os dois pesquisadores desenvolveram os trabalhos no âmbito<br />

do curso de Mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade<br />

Federal do Paraná (PPG-MADE/UFPR) inseridos no grupo de pesquisa<br />

intitulado Questão Alimentar e Agroecologia, compartilhando os métodos de<br />

pesquisa, o público-alvo e os dados. Um dos trabalhos enfocou a construção<br />

do sujeito agroflorestal a partir do estudo de duas das suas principais<br />

– 155 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

características, a autonomia em relação aos projetos de vida dos agricultores<br />

e a resistência aos meios instituídos de produção de alimentos. O outro<br />

trabalho objetivou compreender as transformações vividas pelos agricultores<br />

a partir do contato com o saber agroflorestal, bem como suas novas estratégias<br />

de conhecimento baseadas em uma “nova” visão de mundo.<br />

Pretendemos apresentar aqui a construção desse sujeito agroflorestal e<br />

sua visão de mundo expressas numa ética do habitar encetando novas<br />

possibilidades de relação homem e natureza. Propomo-nos então a descrever<br />

as relações sociais e ambientais que emergem da visão de mundo reelaborada<br />

pelos sujeitos da pesquisa. Há que se estar atento para o fato de que muito<br />

do que se tem escrito sobre a história dessas populações se foca nas categorias<br />

de exploração, colonização e dominação, sendo que incorreríamos num grave<br />

erro se não reconhecêssemos esta “herança”. No entanto, é importante trazer<br />

para a discussão as estratégias que tais populações vêm traçando, mesmo<br />

que nem todas sejam institucionalizadas, para manterem um certo nível de<br />

autonomia, bem como seu estilo de vida, demonstrando também que as<br />

formulações culturais não são de modo nenhum estanques, estando em<br />

permanente relação com processos histórico-sociais e ambientais.<br />

Como metodologia para a construção deste capítulo optamos pelo<br />

diálogo e a discussão conjunta dos resultados das pesquisas realizadas<br />

buscando revelar seus pontos de intersecção. Para as pesquisas de campo,<br />

essencialmente qualitativas, foram priorizadas como técnicas de coleta de<br />

dados a observação participante e entrevistas semiestruturadas, que juntas<br />

atingiram um contingente de 40 agricultores e dois técnicos da Associação<br />

Cooperafloresta. Participamos nesse processo de cinco mutirões de trabalho<br />

e capacitação dos grupos. Os dados foram analisados mediante a aproximação<br />

dos referenciais teóricos aos diálogos com os agricultores e das características<br />

da Associação e seu histórico.<br />

Anúncios de outras possibilidades ante a modernização da agricultura<br />

A questão alimentar, gerada pela transformação dos sistemas de<br />

produção de alimentos e respectivas mudanças nas relações socioambientais<br />

e culturais no campo, denuncia o processo de distribuição desigual dos<br />

benefícios e malefícios da modernização da agricultura. Longe de estarem<br />

– 156 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

plenamente estabelecidas, as populações rurais veem-se ainda ameaçadas<br />

pelo acirramento do projeto de modernização e crescimento representado<br />

sobretudo pela intensificação das novidades oriundas da “Revolução Verde”.<br />

A Revolução Verde no Brasil pode ser entendida como “um programa<br />

de remoção dos obstáculos à entrada do capital no campo, de estímulo a<br />

modernização da agropecuária” (MARTINS, 1986 p.94); processo este<br />

levado a cabo sobretudo pelos governos militares entre 1964 e 1984,<br />

aliados aos grandes capitalistas e também aos donos de terras. Diante da<br />

Revolução Verde, os agricultores que não dispunham de capital financeiro<br />

para consumir as novas tecnologias dificilmente permaneceriam no campo, o<br />

que gerou, portanto, a perda do controle da produção agrícola pela população<br />

local, a concentração fundiária e a exclusão dos camponeses (ASSIS, 2006;<br />

GLIESSMAN, 2002).<br />

Para compreender a organização moderna da agricultura, Ploeg (2008)<br />

caracteriza o sistema de monocultivo como a emergência de um “Império”,<br />

entendido como um modelo de ordenamento com tendências para instituir-se<br />

como dominante. Algumas das características marcantes para o “império”<br />

seriam a escala mundial de abrangência e o somatório de expressões<br />

centralizadas com objetivos econômicos e instrumentais. Tal ordenamento<br />

partiu do pressuposto de que a produção de alimentos poderia converter-se<br />

em um procedimento técnico aos moldes industriais.<br />

Esse mesmo autor define três trajetórias que acredita coexistirem<br />

na agricultura atualmente, quais sejam: a desativação, a industrialização e<br />

a recampenização. As três trajetórias interagem em movimentos e níveis<br />

diferentes. A desativação se explica pelas grandes áreas agricultáveis<br />

abandonadas, substituídas por áreas de conservação ou por avanços da<br />

urbanização. Já a industrialização representa os propósitos da modernidade<br />

transformando e uniformizando os modos de produção e a cadeia como um<br />

todo. Ao contrário da industrialização, o movimento de recampenização é<br />

defendido como uma saída para os conflitos em torno da questão ambiental<br />

originada pela modernidade. Caracteriza-se pela afirmação da não extinção<br />

da agricultura camponesa, presente em quase todos os lugares. Defende<br />

que o camponês possui uma posição de agente e é consciente das suas<br />

necessidades e possibilidades (PLOEG, 2008).<br />

– 157 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

Nesse sentido, desenvolve um conceito que agrega as características<br />

constituintes do modo de vida do camponês que define como a “condição<br />

camponesa”. Esta última está vinculada a diversos fatores, tais quais: o<br />

enfrentamento de um ambiente hostil, de marginalização, submissão,<br />

privação e dependência e por isso sempre na luta pela autonomia. A autonomia<br />

nessa condição articula-se como “processo contínuo de construção,<br />

aperfeiçoamento, ampliação e defesa de uma base de recursos autocontrolada,<br />

sendo a terra e a natureza viva (cultivos, animais, luz solar, água)<br />

suas partes essenciais” (PLOEG, 2008, p. 20).<br />

Outro fator essencial na “condição camponesa” se refere à ideia de<br />

coprodução que “diz respeito à interação e transformação mútua constantes<br />

entre o homem e a natureza viva”, ou seja, a transformação da natureza pela<br />

intervenção do agricultor camponês permite alianças entre o agricultor e a<br />

natureza podendo em alguns casos acelerar os processos naturais, ao mesmo<br />

tempo em que transforma o próprio agricultor e lhe permite garantir seus<br />

meios de vida. A relação de coprodução favorável para ambas as partes<br />

beneficia o exercício da autonomia do agricultor, reduzindo sua dependência<br />

ao mercado industrial (PLOEG, 2008, p. 40).<br />

O mesmo autor compreende que a diversificação das atividades no<br />

meio rural, a pluriatividade 1, se constitui como um fator intrínseco da condição<br />

camponesa. Além disso, destaca as relações de cooperação presentes entre<br />

as famílias dos camponeses. Dessa forma, são menos vulneráveis às variações<br />

do mercado industrial ou às intempéries climáticas.<br />

Concordamos, assim, que estamos diante de uma realidade no campo<br />

em constante movimento, pois se os camponeses coexistem e resistem ao<br />

modo “imperial” de se fazer agricultura há fortes processos sociais no campo<br />

que permitem essa existência. Essa autonomia do agricultor, ou a luta por<br />

ela, também pode ser percebida pelos engajamentos em movimentos de<br />

resistência e de defesa dos próprios interesses (BRANDENBURG, 2008).<br />

Mediante a condição camponesa e suas lutas pela autonomia ante<br />

a modernização da agricultura, apresentamos este estudo acreditando na<br />

1<br />

A pluriatividade é aqui entendida como o desenvolvimento de diversas atividades no contexto<br />

da propriedade rural, por exemplo a atividades de turismo rural, a vinculação a programas de<br />

prestação de serviços ambientais, o beneficiamento de produtos, entre outros (PLOEG, 2010).<br />

– 158 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

possibilidade da construção de novos futuros em que os sujeitos estão<br />

emergindo como protagonistas a partir de sua instância moral, os direitos<br />

humanos. O sujeito é entendido aqui como um princípio universal aliado<br />

aos direitos humanos que gera novos sentidos às ações. Por meio do<br />

reconhecimento dos direitos humanos de todos, os sujeitos transformam suas<br />

lutas em resistências aos poderes instituídos buscando encontrar o sentido 2<br />

de suas ações. Esse processo está na base da defesa de direitos e valores<br />

como igualdade, justiça, liberdade e respeito, por isso resistem aos imperativos<br />

de modelos hegemônicos 3 de ordenamento da vida. O sujeito se incorpora<br />

em situações concretas especialmente em movimentos coletivos com<br />

reivindicações culturais, sociais, ambientais e políticas (TOURAINE, 2011).<br />

A ideia de autonomia, elemento fundamental na construção do sujeito<br />

e à condição camponesa também se refere à construção de si próprio a<br />

partir de seus sentidos para a ação. Porém, defender seus próprios sentidos<br />

não significa ignorar os sentidos do outro, compreendendo o outro como um<br />

sujeito em potencial (TOURAINE, 2011). A autonomia em relação aos<br />

projetos de vida dos agricultores se relaciona à possibilidade de autogestão<br />

de suas vidas, decidindo sobre suas condições materiais e imateriais de<br />

sobrevivência, o que, para o caso dos agricultores, se refere também à<br />

gestão de sua base de recursos tangíveis e intangíveis (insumos, sementes,<br />

conhecimentos, organizações sociais, valores etc.) e dos meios de<br />

comercialização, especialmente os que privilegiem o contato com o consumidor<br />

(PLOEG, 2008, 2010).<br />

2<br />

Sentido: Entende-se a ideia de sentido relacionada ao significado, considerando desde os<br />

sentidos da própria existência, quanto ao significado da ação social para si e para o coletivo<br />

(TOURAINE, 2011).<br />

3<br />

Hegemonia: do grego “hegemon” líder. Em primeira instância, hegemonia significa liderança,<br />

derivada diretamente de seu sentido etimológico. O termo ganhou um segundo significado,<br />

desenvolvido por Gramsci para designar um tipo particular de dominação. Nessa acepção,<br />

hegemonia é dominação consentida, especialmente de uma classe social ou nação sobre seus<br />

pares. Na sociedade capitalista, a burguesia detém a hegemonia mediante a produção de<br />

uma ideologia que apresenta a ordem social vigente, e sua forma de governo em particular, a<br />

democracia como se não perfeita, a melhor organização social possível. Quanto mais difundida<br />

a ideologia, tanto mais sólida a hegemonia e tanto menos necessidade do uso de violência<br />

explícita. (GRAMCI, 1998)<br />

– 159 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

Outras formas de garantir a autonomia na produção agrícola seriam<br />

a diversidade de cultivos e a busca de crédito informal (acordos entre<br />

grupos de agricultores, associações etc.) (PLOEG, 2010). A diversidade na<br />

organização da propriedade é defendida também por Assis (2006), pois se<br />

alia à condição de diversificação dos agroecossistemas, um dos princípios<br />

da produção agroecológica.<br />

É importante percebermos que as concepções de resistência e<br />

autonomia tal como apresentadas medram num ambiente hostil, pois a<br />

tendência imperial apontada por Ploeg, representada na atual Revolução<br />

Verde por uma agricultura sempre mais dependente de insumos externos,<br />

longe de estar restrita à agricultura, é, antes, a expressão nesse nicho de um<br />

processo paradigmático engendrado pelo Ocidente. Tal paradigma se<br />

manifesta no capitalismo, na tecnificação e na exclusão de outras formas de<br />

saber que não o científico moderno:<br />

O mundo aparece agora como um objeto sobre o qual o pensar que calcula<br />

dirige seus ataques, e a estes nada mais deve resistir. A natureza torna-se um<br />

único reservatório gigante, uma fonte de energia para a técnica e a indústria<br />

modernas (Heidegger, 1994).<br />

Podemos falar aqui no que Heidegger (2004) chama de crise<br />

habitacional, não como uma simples falta de moradias, mas de um<br />

desenraizamento do homem como ser que tem no habitar sua essência.<br />

Habitar para Heidegger é se demorar junto às coisas, é resguardá-las e<br />

cultivá-las para que sejam o que são. Opõe-se assim à lógica representada<br />

por uma agricultura moderna gerida desde fora, em que os produtos e a<br />

própria Terra estão convertidos em mercadoria e a condição camponesa em<br />

que o processo produtivo é parte de um todo social e culturalmente significado<br />

prenhe de relações não mercantilizáveis que tem como meta a satisfação de<br />

necessidades endógenas.<br />

Pensamos que a qualificação do Brasil até recentemente como país<br />

de terceiro mundo e mais atualmente como país em desenvolvimento (em<br />

industrialização) se, por um lado, representa a falta de assistência por parte<br />

do Estado para uma ampla parcela da população, por outro nos faz perceber<br />

que várias comunidades tiveram de se estabelecer autonomamente em sua<br />

– 160 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

relação com a sociedade envolvente, dispondo para tal de uma racionalidade<br />

e visões de mundo próprias. As práticas de subsistência determinam assim<br />

uma aproximação fundamental dos ecossistemas atualizando relações mais<br />

harmônicas com o meio, muitas vezes idealizada e tida como utópica perante<br />

as condições postas pela modernidade.<br />

Nessa sua forma de colocar-se em seu meio, o camponês amalgama<br />

vida e saber, por que acolhe no ritmo de seu trabalho, desde a jornada diária<br />

até os ciclos sazonais. Utilizando os recursos de que dispõem, seu fazer se<br />

entretece ao entorno que lhe dá a vida. Sua abordagem não subjuga o<br />

ambiente, mas sim estabelece relações de reciprocidade que salvaguardam a<br />

vida de ambos os polos da relação.<br />

A construção dos sujeitos agroflorestais e a ética do habitar na<br />

Cooperafloresta: Gerando novas realidades<br />

Brasileiros que são, o histórico desses agricultores associados à<br />

Cooperafloresta, ainda que nem todos sejam quilombolas, está ligado ao<br />

histórico dos ciclos produtivos que se fizeram como expressão de um modelo<br />

colonizador. Calcados na escravidão, na acumulação e escoamento do capital<br />

e no favorecimento das lavouras de plantation em detrimento de uma vasta<br />

população camponesa, que chegou a ser reputada como inexistente, tais<br />

ciclos impuseram situações sociais, culturais e políticas semelhantes, o que<br />

fez com que populações heterogêneas tivessem de enfrentar desafios comuns,<br />

gerando diferentes formas de (r)existir.<br />

Vale lembrar que a região do Vale do Rio Ribeira do Iguape, onde<br />

está localizada a Cooperafloresta, foi uma das primeiras regiões onde se<br />

encontrou ouro no Brasil, constituindo cenário de alguns dos primeiros<br />

contatos entre portugueses e indígenas, mas também entre esses indígenas e<br />

os africanos escravizados. Após a brusca diminuição da extração do ouro que<br />

deu lugar à mineração de chumbo e alguns outros minerais (séc. XVIII) a<br />

região também teve um curto mas importante ciclo de produção de arroz que<br />

abastecia a capital do Império (séc. XIX), então a cidade do Rio de Janeiro, e<br />

era até exportado. A expansão econômica e social gerada por esses ciclos foi<br />

a responsável pelo aporte de escravos na região, ao passo que a retração<br />

desses ciclos e o abandono de áreas geravam um contingente de escravos<br />

– 161 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

não propriamente alforriados mas livres pela ausência do senhor, sendo que<br />

esses, então camponeses, foram responsáveis pela formação de várias das<br />

comunidades quilombolas na região (ITESP, 2000; CARENO, 1995;<br />

VALENTIN, 2006; DIEGUES, 2007).<br />

Os modos de produção das populações tradicionais que habitam o<br />

território brasileiro normalmente aparecem como fruto de diferentes níveis de<br />

hibridação entre tribos indígenas, africanos e colonos portugueses ou de<br />

outras etnias europeias. Quanto mais incipiente o grau da produção voltado<br />

para a comercialização de larga escala, tipicamente direcionada para o<br />

exterior e promotora de um desenvolvimento deformado, maior a harmonia<br />

entre os sistemas naturais e as formações sociais porque são baseadas num<br />

potencial produtivo desses ecossistemas naturais (LEFF, 2009 p.35). No<br />

caso da região podemos dizer que, embora sua condição não fosse a de<br />

isolamento, a troca de excedentes se resumia a uma pequena quantidade<br />

com vistas à aquisição de víveres como sal, querosene, pólvora e algum<br />

tecido (VALENTIN, 2006).<br />

Os agricultores (agrofloresteiros) em questão são vistos assim a partir<br />

desse pano de fundo comum. É importante notarmos que o momento em<br />

que começam a implantar o sistema agroflorestal (meados da década de<br />

1990) era um momento crítico, uma vez que o confronto com a ordem<br />

hegemônica mais uma vez colocava limites claros ao seu modelo tradicional<br />

de desenvolvimento. Tal momento se caracterizava sobretudo pela crescente<br />

onda de concentração fundiária e pela baixa dos preços dos gêneros<br />

alimentícios; ambos os fatores geravam uma superexploração das parcelas<br />

de cultivo que, diminuídas, não passavam mais pelos períodos de pousio e se<br />

tornavam constantemente menos férteis (ver capítulo 3).<br />

Nesse movimento de coexistência com o hegemônico, os sujeitos<br />

da Cooperafloresta passam a construir espaços de resistência, ou seja,<br />

desenvolvem processos de organização sociocultural que não se rendem aos<br />

estabelecimentos e as regulamentações impostos por modelos hegemônicos<br />

de produção de alimentos (ver capítulo 5). As resistências tais quais<br />

observamos no caso em questão não se configuram como modelos estáticos<br />

ou inertes de desobediência civil, ao contrário, trabalhamos com a perspectiva<br />

em que as resistências estão diretamente relacionadas à ação – tanto a ação<br />

– 162 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

social de engajamento em um movimento coletivo quanto à construção de<br />

modelos alternativos de produção de alimentos (PLOEG, 2008).<br />

Portanto, é no momento em que a pressão exercida pelo capitalismo<br />

hegemônico desafia a possibilidade de permanecerem fiéis ao seu projeto de<br />

vida que esses camponeses passam, a partir da assimilação de um modelo<br />

produtivo alternativo que já traz em seu bojo o diálogo entre tradição e<br />

modernidade, a rearticular seus “modos de existir”. A questão é que isso não<br />

se pauta somente numa revalorização da tradição, mas também na formação<br />

de alianças com saberes que desafiam as linhas abissais traçadas pelo<br />

cânone científico moderno (SOUSA SANTOS, 2010) e que, portanto, abrem<br />

“espaço” para a sua afirmação e valorização perante parcelas sempre maiores<br />

da sociedade (ver capítulo 5).<br />

A realização de nossa proposta inicial de compreender a visão de<br />

mundo desses agricultores nos levou à constatação de que esta não se<br />

dissocia do seu próprio ser e fazer. Por isso vimos emergir a proposta de uma<br />

ética. Ou seja, mais importante do que uma definição estanque do mundo ou<br />

da própria natureza é a atitude que assume a necessidade de integração entre<br />

uma forma de compreender e uma forma de viver. Se essa proposição ela<br />

mesma é novamente uma forma de compreender, afirmamos que ela é<br />

tributária de uma experiência que unifica pensar e existir num agir.<br />

Assim este caminho passa pela desconstrução do critério que definia o<br />

conhecimento tradicional como algo estanque; ousamos dizer que o que<br />

separa o tradicional do moderno é a posição que o sujeito do conhecimento<br />

assume perante o Universo, conhecido e desconhecido. Diferente da proposta<br />

universalista do conhecimento científico moderno, o conhecimento tradicional<br />

não tem a pretensão de se desvincular de um todo cultural, social, biológico,<br />

ecológico e espiritual.<br />

A força desse processo de resistência, além de alicerçada na busca<br />

pela manutenção de uma forma de viver, radica sobretudo numa concepção<br />

de si plena de sentido que emerge de um processo de autossócio-ecoeducação.<br />

Essa concepção de educação está alicerçada na inseparabilidade dessas três<br />

instâncias, sem deixar de se referir a cada uma delas em suas especificidades.<br />

A educação de si, a partir de uma atitude de busca perante o mundo,<br />

reconhecendo-se como responsável por seu próprio processo de educação<br />

– 163 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

vivendo formas de comunidade e solidariedade com um outro em relação<br />

imediata com o entorno.<br />

Em consonância com o verdecer de uma ética somamos alguns fatores<br />

que consideramos essenciais na construção do sujeito agroflorestal e no<br />

cultivo do habitar. Tais fatores resumem e descrevem a identidade da<br />

Cooperafloresta como um agente na geração de novas realidades em que<br />

estes cinco princípios são vivenciados num processo de construção de<br />

autonomia e resistência, são eles: o engajamento e a condução de movimentos<br />

coletivos em prol dos direitos humanos e de novas formas de produção, o<br />

desenvolvimento da agrofloresta como uma proposta de vida, o processo de<br />

gestão participativa na organização da Associação, a organização de trabalho<br />

e capacitação por meio de mutirões e a valorização da fé nos projetos de vida.<br />

Engajamento e organização de movimentos coletivos<br />

Os movimentos na Barra do Turvo para o reconhecimento das<br />

comunidades quilombolas e a formação da Cooperafloresta, emergentes nos<br />

últimos 16 anos, são fertilizados por um conteúdo étnico e um processo de<br />

valorização de condições locais e modos tradicionais de vida resultantes de<br />

um forte processo de miscigenação entre africanos, brancos e indígenas. Tais<br />

movimentos se configuram como movimentos com reivindicações muito<br />

próximas das defendidas por Touraine (2004, 2007, 2011) em sua análise<br />

sobre os Novos Movimentos Culturais passíveis à emergência de sujeitos.<br />

A associação dos quilombos já tá com seis anos. Ela veio dos tempos dos<br />

meus antepassados. Meus avós vieram lá de Iporanga e Indaiatuba, que fica<br />

lá do outro lado do rio. Vieram pra fazer roça, aqui era mata virgem. Eles<br />

eram descendentes de negros desses tempos de escravos. Eles eram umas<br />

pessoas meio corrida né, descendentes de negros. A minha mãe contava que<br />

eles eram umas pessoas muito sofridas, a avó dela era pegada a laço era índia<br />

misturada daí casou. Daí de lá eles vieram aqui nessa beira de rio aqui (Terra<br />

Seca) eles traziam farinha de lá, acampavam na beira do rio e pescavam<br />

peixe com ferramenta e armadilha, cascudo pra fazer sopa, daí eles abriram<br />

a roça aqui, dessa época em diante foram aumentando, daí foram buscar as<br />

mulheres que tinham deixado lá. Vieram dois casais de lá as duas moças eram<br />

irmãs. Construíram as casinhas deles e fizeram as primeiras rocinhas. E tinha<br />

muito bicho aqui, peixe, carne de anta. Daí eles combinaram, uns ficaram<br />

– 164 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

aqui (Terra Seca), outros lá no Ribeirão Grande. A minha mãe era a mais<br />

nova da família deles. Daí vieram os fazendeiros querendo comprar, aí eles<br />

entregaram de mão beijada. Achavam que aquele dinheiro valia. Aí perdiam<br />

a terra e o dinheiro, porque dinheiro evapora. Minha mãe é falecida, ela teria<br />

uns 79 anos. Daí agora naquelas igrejas católicas, eles que puxaram esse<br />

movimento pelos direitos, eles criaram esse negócio de quilombo ai dizendo<br />

que eles eram muito discriminados. Daí criaram a associação e hoje está aí<br />

[Agricultora do Bairro Terra Seca, Associada à Cooperafloresta e à Associação<br />

dos Quilombolas]<br />

Considera-se, a exemplo de um dos depoimentos, que o grupo de<br />

agricultores se identificou e se engajou no movimento pelo reconhecimento<br />

de seus direitos culturais e também com a questão produtiva da<br />

agrofloresta. Um dos fatores decisivos para essa identificação é o de<br />

nessas comunidades a sedentarização ser, historicamente, bastante elevada.<br />

Os laudos antropológicos (ITESP, 2000) indicam que muitas dessas famílias<br />

habitavam a mesma região por mais de um século. O uso comunal da terra 4 ,<br />

aliado à baixa densidade demográfica na região, permitia longos períodos de<br />

pousio que mantinham famílias extensas no mesmo território, contribuindo<br />

para a formação de um sentimento de estima pela terra e pela mata,<br />

característico das populações camponesas.<br />

Podemos supor que o movimento do reconhecimento dos quilombos<br />

demonstra um processo de transformação socioambiental, originado dentro de<br />

uma forte corrente de resistência dentro do instituído (Estado e igrejas), mas<br />

tornou-se legitimo na medida em que foi apropriado e desenvolvido pelos<br />

agricultores. Se esta interpretação for verdadeira é possível aproximá-los da<br />

ideia de autonomia do sujeito de Touraine (2007), pois encontraram os<br />

significados de suas ações e continuam lutando por eles apesar das dificuldades.<br />

É interessante confrontar a realidade da Barra do Turvo, com a<br />

característica da conflituosidade que Touraine define como uma situação<br />

social que pode despertar no indivíduo a capacidade de olhar para si e<br />

4<br />

Percebemos no levantamento histórico a delicada situação da titulação das terras, que começa<br />

muitas vezes com a primeira “lei de terras” (1850), e indica que, quando existiam, os documentos<br />

se referiam a um representante da comunidade que podia se declarar por ser livre, sendo que<br />

tais terras abrigavam um contingente muito maior de habitantes, fossem membros da família ou<br />

fugitivos de outras localidades.<br />

– 165 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

desenvolver a subjetivação (encontro consigo mesmo). O autor diferencia a<br />

conflituosidade do sofrimento, tendo em vista que o sofrimento e a opressão<br />

contínua suprimem a capacidade de construção do sujeito (KHOSROKHAVAR<br />

e TOURAINE, 2004, p.137). O acesso à energia elétrica, à escola e aos<br />

programas estatais ainda é restrito e recente para os associados, nos incitando<br />

a imaginar uma situação de conflituosidade vivenciada, e até de abandono.<br />

Sob essa perspectiva, podemos inferir que ao se perceberem em uma situação<br />

de subordinação e abandono, mas munidos de uma observação positiva de<br />

si, de suas capacidades de criação e luta, se engajaram nos projetos coletivos<br />

e resistiram à dominação total.<br />

Os atores, tais quais os relatos históricos apontaram, estavam sendo<br />

vencidos por uma situação de exclusão a ponto de deixarem seus territórios.<br />

Mesmo nessas condições, se engajaram nos movimentos institucionalizantes<br />

numa frente de resistência, como o da Cooperafloresta e o processo de<br />

reconhecimento dos quilombos que permitiram o acesso a outras instituições,<br />

como a escola, o Estado e a mídia, por meio da energia elétrica. Nesse sentido<br />

eles estão acessando as comodidades da modernidade em um momento<br />

em que a comunicação, antes muito difícil, pôde tornar-se instantânea, o<br />

que pode ser positivo caso eles consigam afirmar sua resistência à dominação.<br />

Podemos afirmar que esses movimentos, o de desenvolver a agrofloresta<br />

associados à Cooperafloresta e o de afirmar sua identidade negra, como<br />

remanescentes de quilombos, são os caminhos encontrados por essas<br />

comunidades como facilitadores da construção desses sujeitos em busca<br />

de autonomia.<br />

Agrofloresta como proposta de vida<br />

O processo de envolvimento com a agrofloresta, segundo os técnicos<br />

da Associação, ainda que já fosse previsto por seus planejamentos, se deu de<br />

maneira espontânea: “pela incapacidade de controlar todo o processo”<br />

(Técnico da Associação). Brinca-se com a ideia do “contaminar” (termo<br />

usado pelos próprios agricultores), dada a força que os primeiros contatos<br />

com essas ideias têm sobre certas pessoas. Podemos dizer que a clareza<br />

conceitual e prática trazida pelo saber agroflorestal acaba por formalizar um<br />

sentimento ancestral presente sobretudo na alma camponesa: viver na e com<br />

– 166 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

a Terra contribuindo para um contínuo aumento da quantidade e qualidade<br />

de vida. O agricultor “contaminado”, imbuído da proposta agroflorestal, passa<br />

a implantar seu sistema de forma independente, viabilizando diferentes<br />

respostas a diferentes desafios. A perda dos referenciais tradicionais de<br />

relação com a terra, como as orações pelas colheitas e a afinidade com os<br />

vegetais e animais, além de uma propensão intuitiva para com o meio que,<br />

segundo Cândido (1977), era destruído pela cultura e pela técnica capitalistas,<br />

são ao menos parcialmente resguardados por uma esfera de autonomia<br />

engendrada pela Associação e os valores, técnicas e princípios por ela<br />

propugnados (ver capítulo 4).<br />

Percebemos que os agricultores estavam muito interessados nesse<br />

novo modelo agrícola ao refletir sobre a ideia de sinergia referida por um dos<br />

técnicos como um dos elementos essenciais na organização da Associação.<br />

Os agricultores, que antes viviam em uma situação de abandono e exclusão,<br />

quando descobriram que tinham direito de ter direitos se organizaram e<br />

buscaram lutar por eles. É possível relacionar a condição dos técnicos como<br />

coprotagonistas dessas lutas ao lado dos agricultores porque passaram a<br />

viver junto a eles somando seus conhecimentos e se abrindo para a construção<br />

de novas realidades de forma compartilhada. Tal fato está em consonância<br />

com o depoimento do mesmo técnico da Associação quando indagado sobre<br />

a receptividade do sistema agroflorestal pelos agricultores da região:<br />

Eles tinham tudo pra dizer que a gente era maluco, mas o que ajudou foi<br />

que no sistema de derrubada e queimada que eles praticavam, a fertilidade<br />

da terra já era recuperada pela floresta, por um período florestal, a porteiras<br />

fechadas (Técnico da Cooperafloresta).<br />

Essa ligação com a localidade é o germe fundamental para a noção de<br />

cuidado, tão cara às concepções ecológicas da agricultura. Tal processo nos<br />

remete ao princípio da reinserção do humano na natureza, pois ao internalizar<br />

os primeiros fundamentos da agrofloresta é o próprio agricultor que passa a<br />

adentrar o entorno.<br />

Alguns dos moradores mais jovens começaram a trabalhar na atividade<br />

agrícola já no sistema mais “moderno,” usando adubos e alguns pesticidas<br />

ainda que em pequena escala. Os resultados insuficientes e os danos que iam<br />

– 167 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

se somando acabavam por acumular uma dívida moral: “a gente via que não<br />

dava mais, mas não sabia fazer diferente” (Agricultora do grupo Terra Seca).<br />

Basta, no entanto, retrocedermos uma geração para chegarmos ao<br />

sistema tradicional de coivara. Por isso, mesmo os jovens, já tinham um<br />

conhecimento bastante abrangente sobre as espécies florestais da região,<br />

como um deles nos diz: “Parece que a agrofloresta já estava dentro da gente,<br />

só precisava lembrar e aprimorar” (Agricultor do grupo Três Canais). Frisamos<br />

essa questão para que se perceba o elemento de continuidade que há na<br />

transição para esse “novo” sistema.<br />

É bem verdade, no entanto, que esses elementos de continuidade são<br />

mais facilmente percebidos por agricultores que já realizaram a transição e<br />

deixaram uma série de práticas que a agrofloresta reputa como nocivas e até<br />

antagônicas ao que se deseja, como é o caso do fogo, por exemplo, que<br />

nunca é usado no sistema agroflorestal, já que é o símbolo máximo da<br />

simplificação do sistema; assim também como a ampla diversidade de<br />

espécies, a ausência ou diminuição drástica de revolvimentos do solo são<br />

características da agrofloresta que destoam do modelo tradicional.<br />

Outro exemplo de continuidade, contudo, se dá no manejo de espécies<br />

florestais que se já era praticado, agora se solidifica pois que essas,<br />

progressivamente, adentram as áreas produtivas. Em algumas áreas mais<br />

antigas, o observador mais destreinado tem dificuldades para enxergar onde<br />

começa e onde termina a agrofloresta. Prova disso são os resultados dos<br />

levantamentos da diversidade vegetal discutidos no capítulo 12, realizados<br />

pelos grupos de pesquisa que apontam para uma alta porcentagem de<br />

espécies nativas dentro das agroflorestas dos SAFs(sistemas agroflorestais).<br />

Logo, podemos frisar que momentos distintos do sistema tradicional (cultivo<br />

e pousio) agora se sobrepõem, havendo uma inter-relação profunda entre<br />

produção e regeneração, somando-se a isso o fato de que muitas das espécies<br />

produtivas cultivadas são perenes, produzindo por muitos anos. Tal processo<br />

é fundamental na medida em que se coaduna com o referido sentimento de<br />

estima pela terra permitindo e ampliando a estabilidade da família, inclusive<br />

supondo seu crescimento.<br />

A agrofloresta é uma área da propriedade que é produtiva o ano todo e com<br />

isso ai a gente se torna mais feliz. Que é uma poupança que estamos fazendo<br />

– 168 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

na própria terra, né! Nem que não tenha dinheiro na conta, lá bastante... Mas<br />

temos as planta produzindo aí. Vendo a natureza falando com a gente né!<br />

Através dos passarinhos e tudo! Porque a natureza ela conversa, e a gente<br />

precisa saber conversar com ela também, né! Então, vamos aprender a viver<br />

com a natureza [Agricultor do Grupo Ribeirão Grande].<br />

É muito mais do que a relação com as plantas, é aquela pergunta assim:<br />

será que eu interferindo aqui, o resultado da minha interferência vai gerar<br />

saldo ou vai virar dívida? Entende? Essa consciência de questionar porque<br />

que eu vou fazer alguma coisa será que isso vai valer a pena, o mundo vai<br />

ficar melhor depois que eu fizer isso? Para mim este é um pensamento<br />

agroflorestal, não precisa ser na roça, em qualquer outra coisa [Agricultor do<br />

grupo Córrego do Franco].<br />

As narrativas dos agricultores expressam a concepção de agrofloresta<br />

que é defendida na Associação, ou seja, uma relação que está para além do<br />

sistema de produção de alimentos e a sustentação do agricultor. Elas abordam<br />

a ideia de se relacionar com a natureza por meio da agrofloresta, sendo esta<br />

relação fundamentada no referido princípio de reciprocidade: “Como eu quero<br />

receber algo se eu não dei nada ainda” (agricultor grupo Três Canais). Nessa<br />

relação demonstram também uma posição reflexiva sobre os próprios atos na<br />

geração de uma consciência sobre as ações e uma relação de si para com o<br />

ambiente ou para com o outro.<br />

Essa concepção de agrofloresta, como um modo de viver e pensar,<br />

pode modificar as formas de relação com o mundo, para os agricultores<br />

agrofloresteiros. Eles abordam noções abrangentes e abstratas, mas que se<br />

relacionam à perspectiva de Touraine (2004) ao elemento consciência,<br />

constituinte da ideia de resistência do sujeito. A produção sem veneno e a<br />

escolha pelo produto originário da agrofloresta podem contribuir para a<br />

saúde do consumidor, para o sustento e saúde do agricultor e para a saúde<br />

do planeta. Tendo conhecimento sobre a importância de suas ações para a<br />

saúde, eles se tornam mais fortes contra as imposições do modelo instituído.<br />

Essa última interpretação nos indica a ideia de responsabilidade, um<br />

dos elementos constitutivos da autonomia de Touraine (2007). Ao contribuírem<br />

com a saúde assumem a responsabilidade pela produção de alimentos<br />

que beneficiem o coletivo, em detrimento das produções voltadas ao mercado<br />

e simplesmente à geração de renda, tal qual a agricultura moderna,<br />

– 169 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

desvencilhada da responsabilidade com a saúde e adepta da transgenia e dos<br />

agrotóxicos para servir um mercado industrial. Soma-se a responsabilidade<br />

ao cultivo do princípio de respeito pela natureza, como nos atesta a fala de<br />

um dos agricultores:<br />

Para mim, eu acho que até este goiabal misturado com o pasto é um<br />

sistema agroflorestal. Eu acho que a atitude da pessoa ela é uma<br />

agrofloresta, não é só a área de roça, é um jeito de ver o mundo diferente<br />

que... é um outro paradigma, para mim isto é uma agrofloresta, porque<br />

eu acho que você pode fazer agrofloresta em todas as suas atitudes não<br />

precisa ser só plantando. Vai desde o jeito que a gente trata um cachorro,<br />

ou que a gente trata uma criança, que a gente trata um bicho,que a gente<br />

trata uma planta...é eu acho que isso tudo é uma atitude agroflorestal. O<br />

que você me diz disso, é só fazer uma agrofloresta, e plantar árvores e não<br />

se relacionar com as pessoas, ou com os bichos, não é agrofloresta! Eu<br />

acho...(Agricultor grupo Córrego do Franco)<br />

Outra característica também relacionada à construção da autonomia<br />

do sujeito se refere à autoafirmação (TOURAINE, 2011). Defender a<br />

agrofloresta como uma forma de agricultura que promove a valorização do<br />

agricultor e para a saúde, demonstra que eles reconhecem os sentidos de<br />

suas práticas para o coletivo, para a sociedade, um forte indício da autonomia<br />

do sujeito.<br />

Se a lógica da agricultura moderna, que define os interesses humanos<br />

como imperativos, rompe os nós da teia que sustém a vida, viciando o sistema<br />

numa sempre mais exigente importação de insumos, planificando o<br />

ecossistema ao eliminar todos os resquícios da vegetação e da fauna<br />

espontânea, podemos dizer, por outro lado, que a agrofloresta reinsere o<br />

homem na dinâmica da vida apertando os laços que nos conectam ao<br />

ambiente, recriando nichos ecológicos onde uma diversidade de espécies<br />

exerce sua “função” como promotoras da vida. Desde essa perspectiva, o<br />

mundo da vida não pode mais ser “explicado” de fora, o vínculo que une o<br />

humano e o natural é um vínculo afetivo que nos preenche com sentido a<br />

partir de um lógica de reciprocidade.<br />

A ideia já expressa de que o saber agroflorestal “contamina” pode ser<br />

entendida como um processo de aprendizado que reforça e esclarece um<br />

– 170 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

vínculo biológico, social e cultural fundamental com o meio e com um todo<br />

abrangente. Essa tomada de consciência própria do sujeito ressignifica seu<br />

próprio ser no mundo, elaborando sua identidade que se realiza num processo<br />

de integração entre os âmbitos teóricos e práticos de construção da existência,<br />

constituindo um agir, uma instância ética.<br />

Começamos, assim, a evidenciar o grande distanciamento entre o que a<br />

modernidade compreendeu por autonomia e liberdade e a liberdade que emerge<br />

do aprofundamento da relação com a natureza mediada pela agrofloresta.<br />

Cada vez que a modernidade, assentada sobre uma proposta de<br />

dominação da natureza, quebrou seus vínculos com as tradições estabelecidas,<br />

pretendeu refundar-se a partir de sua argumentação demasiado humana.<br />

Seja a partir da análise materialista ou de um pensamento especulativo, cada<br />

vez mais toda a moral e a ética foram esvaziadas por interpretações que as<br />

relativizavam, como simplesmente contingentes, e depois as restauravam em<br />

nome das vantagens que proporcionavam à “comunidade”. (LASH, 1995)<br />

No entanto, para Heidegger, com quem concordamos, o sentido que<br />

tanto e tão dignamente buscamos, não pode ser encontrado no mundo<br />

construído pelo homem a partir de um sentido de separação e dominação<br />

com relação a natureza. Tal sentido emana do próprio cosmos, é o amor que<br />

nos une e nos perpassa. Não podemos fundar nosso mundo a partir do retrato<br />

deste que nos pinta a razão; trata-se de assumirmos uma posição dentro do<br />

fluxo da vida que se assemelha a um diálogo, a uma via de mão dupla.<br />

Os mortais habitam à medida que salvam a terra, tomando-se a palavra<br />

salvar em seu sentido antigo, ainda usado por Lessing. Salvar não diz<br />

apenas erradicar um perigo. Significa, na verdade: deixar alguma coisa livre<br />

em seu próprio vigor. (...) Os mortais habitam à medida que acolhem o céu<br />

como céu. Habitam quando permitem ao sol e à lua a sua peregrinação, às<br />

estrelas a sua via, às estações dos anos a sua benção e seu rigor, sem fazer<br />

da noite dia nem do dia uma agitação açulada. (HEIDEGGER, 2004.)<br />

A agrofloresta, portanto, não se trata somente de um sistema lógico.<br />

Cada “agrofloresteiro” constrói suas agroflorestas na medida em que se<br />

reconhece ou redescobre os sentidos dessa prática em si mesmo. A substituição<br />

do sistema produtivo não depende apenas da transformação das técnicas de<br />

manejo, mas também de uma percepção e observação do agricultor de suas<br />

– 171 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

próprias condições e objetivos em relação ao trabalho, à produção e ao<br />

engajamento no projeto coletivo. Podemos inferir duas interpretações para o<br />

reconhecimento do agricultor com a agrofloresta e com a Cooperafloresta.<br />

A primeira possibilidade supõe que a transformação do agricultor em<br />

“agrofloresteiro” depende da submissão deste às normas da Associação e ao<br />

sistema de produção agroflorestal. Pois essa submissão (se ela existir) é<br />

sustentada pela força do projeto da Cooperafloresta, pela garantia da<br />

comercialização e pela fonte de educação para os filhos mediante os projetos<br />

de educação para os jovens. Se esta interpretação estivesse correta, o projeto<br />

da Cooperafloresta geraria dependência da Associação e ainda certo grau de<br />

dominação social, o que é contrário à autonomia. Entretanto, a própria<br />

interpretação nos permite uma crítica, pois se o projeto gera educação para<br />

jovens, relacionada com a agrofloresta, ou seja, com a permanência desses<br />

no campo, podemos sugerir que o projeto prevê um futuro mais autônomo<br />

para esses jovens. Assim desconsideramos esta interpretação.<br />

A segunda possibilidade supõe que o agricultor reconhece em sua<br />

experiência a agrofloresta como um sistema promotor da vida (GÖTSCH,<br />

1997), inclusive da própria vida. Esse reconhecimento deriva de uma<br />

autoconstrução como sujeito de seu próprio projeto de vida (TOURAINE,<br />

2004) tendo em vista que se engaja na batalha por seus interesses e direitos<br />

pessoais e coletivos. A questão do coletivo nos remete ao outro, do sujeito de<br />

Touraine, tendo em vista que a luta por direitos e a construção da autonomia<br />

envolvem a necessidade dessa relação. Cada um tem que trabalhar em sua<br />

agrofloresta a partir de seus objetivos e sentidos pessoais, ao mesmo tempo<br />

em que trabalha para a coletividade. Aqui podemos identificar os elementos<br />

“construção dos próprios sentidos” e “responsabilidade” (outro), constitutivos<br />

da autonomia do sujeito e para a autonomia do camponês (TOURAINE,<br />

2007, PLOEG, 2010).<br />

Nesse prisma, o projeto coletivo da Cooperafloresta requer a iniciativa<br />

de cada um para compreender os sentidos de sua própria luta como agricultor<br />

de áreas de conservação, com relevo acidentado e condições sociais, até<br />

recentemente, de abandono. O que nos incita a inferir a existência das<br />

características de consciência de si e de seus direitos e engajamento no<br />

movimento coletivo, ambos reveladores da resistência ao instituído.<br />

– 172 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

O projeto coletivo pode também ser fruto da assunção do princípio<br />

produtivo básico da agrofloresta. Esse princípio se refere à inter-relação<br />

entre as espécies por meio dos consórcios (GÖTSCH, 1997). Assim, ao se<br />

perceber como parte do sistema, o agricultor passa a desempenhar seu papel<br />

no coletivo, Cooperafloresta, e também no coletivo de espécies animais e<br />

vegetais, agrofloresta. Esta última sentença nos permite lembrar a ideia de<br />

coprodução, elemento constituinte da autonomia para Ploeg (2008).<br />

Em síntese, podemos dizer que eles estão engajados em movimentos<br />

de luta coletiva pelos direitos ao reconhecerem os sentidos de suas práticas<br />

agroflorestais como uma possibilidade de geração de outras relações com a<br />

natureza, que não só econômicas e instrumentais. Essa perspectiva foi<br />

observada na consciência que eles apresentam em relação a sua ação de<br />

produção de alimentos agroflorestais e a repercussão dela para a saúde integral.<br />

Sobre a geração de autonomia promovida pela gestão dos recursos<br />

disponíveis, verificamos que os princípios teóricos e práticas observados na<br />

Cooperafloresta demonstram a inter-relação com a floresta promovida pela<br />

agrofloresta. Isto pôde ser comprovado pela ideia de coprodução, apresentada<br />

em diversos discursos; esta última é e promotora da responsabilidade,<br />

elemento também gerador da autonomia. Observamos a construção da<br />

autonomia também na autoafirmação das próprias práticas e na autoafirmação<br />

dos sentidos dessas práticas.<br />

Sem subestimar a importância no aumento da renda dessas famílias<br />

(discutida no capítulo 9), percebemos que a constante busca pela construção<br />

de um modo de ser se concretizou em estratégias autônomas de vida,<br />

destacadas sobretudo pela expectativa de permanência dos filhos na atividade<br />

e na terra. Como pretendemos evidenciar, o conceito de autonomia aqui<br />

proposto passa por uma nova elaboração: fazer suas próprias leis, normas,<br />

além de como já normalmente aceito pelo pensamento filosófico e social que<br />

insere este processo num âmbito coletivo de indivíduos que pretendem um<br />

acordo e consenso, passa aqui pela compreensão da natureza como sujeito<br />

com seus próprios sentidos, dentro da qual o homem é um dos seres que<br />

tem de apreender a viver a comunidade já operante do mundo natural. Essa<br />

necessidade não surge apenas a partir de uma aspiração estética ou altruísta,<br />

mas porque a terra e a fertilidade dos solos são vínculos essenciais para a<br />

– 173 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

manutenção da própria vida, não apenas em sua dimensão biológica, mas,<br />

como um todo, também culturalmente significada como identidade individual<br />

e coletivamente construída.<br />

A aliança que doravante se atualiza, entre o homem e natureza<br />

(ecossistema), numa relação recíproca de cuidado porque ambos em sua<br />

plenitude permitem ao outro também sua plenitude, tem se realizado em<br />

diferentes partes do globo terrestre onde os “pobres” da Terra passam a afirmar<br />

seus modos de ser perante a crescente inserção da racionalidade “exógena”<br />

movida pelo capital que pretende drenar os recursos para alimentar uma<br />

globalização hegemônica, de mão única. Tais estratégias vêm sendo identificadas<br />

como o “Ecologismo dos Pobres” (GUHA, 1994) e se caracterizam por uma<br />

recusa da redução da Terra e seus recursos a valores mercantilizáveis; trata-se<br />

de valores inalienáveis e da busca pela sua proteção.<br />

A organização institucional baseada em processos participativos<br />

Eu vejo a Cooperafloresta que nem um ônibus, cheio de gente, só que não tem<br />

motor ... são pessoas que empurram esse ônibus. Então cada vez que um tá<br />

lá dentro, acorda e ajuda a empurrar ele vai ficando mais leve, mais rápido..é<br />

assim que funciona. Tem gente que só fica lá dentro reclamando, mas uma<br />

hora ele começa a despertar e aí ajuda a empurrar... e é gozado que aí cessa<br />

a reclamação porque percebe a qualidade e a natureza das coisas (Presidente<br />

da Associação).<br />

Consideramos significativa a narrativa anterior, pois podemos observar<br />

a analogia feita pelo presidente da Associação, supondo que ao assumir para<br />

si as responsabilidades pelo coletivo o indivíduo promove mudanças em suas<br />

atitudes, o que por sua vez afeta o coletivo. Nessa perspectiva, revelamos um<br />

indício de constituição de si em relação ao outro e também o engajamento<br />

em um movimento coletivo para gerar resistências, elementos constituintes<br />

da autonomia do sujeito (TOURAINE, 2007).<br />

A Cooperafloresta desenvolve um sistema de certificação participativa<br />

da produção agroecológica, vinculado à Rede Ecovida de Agroecologia, em<br />

que há regras definidas para os associados, como, por exemplo, a proibição<br />

de queimadas e utilização de agrotóxicos e adubos químicos. Em caso de<br />

desrespeito a essas regras, as famílias poderão ser expulsas da Associação.<br />

– 174 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Os procedimentos de certificação obedecem ao mesmo processo exigido para<br />

a filiação de novos integrantes. Os interessados devem ser vinculados a um<br />

grupo de mutirão, em que se desenvolvem as relações de autoavaliação entre<br />

os agricultores e se organizam os acordos em torno da certificação.<br />

Assim, é contundente analisar o processo de certificação participativo<br />

como gerador de autonomia, associando-o aos elementos de responsabilidade,<br />

autoconstrução, independência e cooperação inerentes à autonomia do<br />

sujeito. Ao mesmo tempo, a certificação participativa se constitui como um<br />

elemento forte da resistência ao instituído, tendo em vista que foi gerado no<br />

contexto da própria institucionalização das agriculturas ecológicas e sugerido<br />

aos mecanismos instituintes.<br />

Cerca de 50% da produção da Associação é direcionada para os<br />

programas públicos federais de fomento e apoio ao desenvolvimento da<br />

agricultura familiar e agroecologia como o PAA 5 (Programa de Aquisição de<br />

Alimentos) e o PNAE 6 (Programa Nacional de Alimentação Escolar). Podemos<br />

observar a situação sob a perspectiva de luta por direitos de Touraine (1998).<br />

O autor defende a reordenação de um processo de democracia participativa,<br />

social e cultural, no qual o sujeito esteja mais presente. Para ele, os princípios<br />

de igualdade e liberdade podem promover uma profunda transformação no<br />

5<br />

O PAA configura-se como uma das ações do Programa Fome Zero desenvolvido pelo Ministério<br />

do Desenvolvimento Social e Combate a Fome – MDS em parceria com o MDA e a CONAB,<br />

instituído por meio da Lei Federal n° 10.696 de 2003, visa estabelecer a garantia do direito<br />

à alimentação e segurança alimentar de populações em situações de insegurança alimentar e<br />

nutricional e promover a inclusão social de agricultores familiares. Consiste na compra de gêneros<br />

alimentícios provenientes dos agricultores familiares e grupos de agricultores cadastrados no<br />

PRONAF(Programa nacional de fortalecimento da Agricultura familiar), os quais serão destinados<br />

à diversas instituições e ações de cunho assistencial como restaurantes populares, cozinhas<br />

comunitárias, cestas beneficentes, entre outros. Esses gêneros alimentícios também são<br />

adquiridos sem processo licitatório, e, no caso dos sistemas agroecológicos, o preço do produto<br />

é 30% superior ao convencional (BRASIL, sd a).<br />

6<br />

O PNAE garante alimentação de qualidade para as crianças e adolescentes em idade escolar.<br />

Seus recursos são originários do Fundo nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE que<br />

também regulamenta o programa por meio da Resolução n°38 do Conselho Deliberativo em<br />

julho de 2009. A resolução garante o direcionamento de, no mínimo, 30% do valor destinado<br />

à compra dos gêneros alimentícios para a alimentação escolar, aos agricultores familiares e<br />

empreendedores familiares rurais que comprovem aptidão ao PRONAF. De acordo com o<br />

Artigo 20° desta resolução sempre que possível devem ser priorizados os alimentos orgânicos<br />

e agroecológicos sendo que a um preço-prêmio de 30% para os alimentos produzidos nesses<br />

sistemas (BRASIL, 2009).<br />

– 175 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

pensamento democrático. A igualdade de direitos de acesso aos recursos<br />

pode ser importante no momento da construção de novas realidades. A situação<br />

dos agricultores de Barra do Turvo, historicamente excluídos do foco de<br />

atenção do Estado, os configura como um grupo de minorias, pelas quais<br />

Touraine defende a igualdade de direitos.<br />

Podemos sugerir que, para os agricultores agroflorestais, ao iniciarem<br />

um programa de desenvolvimento ou da construção da própria autonomia,<br />

o direito de igualdade por acessar os benefícios estatais é uma opção<br />

interessante. Contudo, sua continuidade ou aumento de porcentagem pode<br />

se converter em um risco como seria também um risco comercializar grande<br />

porcentagem de sua produção para uma outra única fonte. Entretanto,<br />

compreendemos a importância da conquista desse direito do agricultor para<br />

fornecer ao Estado alimentos ecológicos, o que alimentam também a<br />

educação e saúde.<br />

Observamos a institucionalização das ferramentas de autogestão para<br />

a reconstrução de modelos de produção de alimentos contra-hegemônico,<br />

tanto no âmbito individual (familiar) quanto no coletivo. O plano de manejo<br />

da propriedade, revisitado anualmente, como pré-requisito para a entrada na<br />

Associação e a construção das “estrelas da agrofloresta” (descrito no capítulo<br />

11) são as ferramentas de autogestão que auxiliam o agricultor a organizar<br />

sua produção, haja vista que todos podem ajudar a construir avaliações<br />

contundentes porque participam do manejo das áreas dos vizinhos. Dentro<br />

dos grupos de mutirão, os instrumentos de autogestão se referem às reuniões<br />

mensais de gestão e os próprios mutirões. Convém destacar a mobilidade e o<br />

dinamismo desse processo de planejamento, haja vista que a produção<br />

agroflorestal é alimentada pela observação do ambiente e a ação está em<br />

consonância com o processo de relação com a natureza de coprodução<br />

(PLOEG, 2008).<br />

Em relação aos meios de autogestão coletiva, eles se organizam no<br />

Conselho de Representantes e se necessário no Conselho de Ética. Ainda há<br />

um processo de formação de agentes multiplicadores e as assembleias<br />

gerais da Associação. Nesses espaços e processos, identificamos também<br />

os elementos constituintes de autonomia do sujeito de cooperação, de<br />

responsabilidade pelo coletivo e de construção dos próprios sentidos.<br />

– 176 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Os encontros frequentes nas diferentes instâncias demonstram a continuidade<br />

do processo. Assim, evidenciado o processo de autogestão da Associação,<br />

aproximamos a organização institucional da Cooperafloresta da construção<br />

da autonomia em virtude da autogestão de sua base de recursos sociais<br />

(PLOEG, 2008).<br />

No processo de construção da Associação identificamos algumas<br />

formas de subsídio e proteção, como a assessoria técnica, o pagamento de<br />

“diárias” para o envolvimento no processo de gestão e especialmente a<br />

garantia de compra total dos produtos entregues para o processo de<br />

comercialização. Esses fatores demonstram um possível grau de dependência<br />

dos agricultores em relação à Cooperafloresta, mas que se justifica pelo<br />

direito de acessar os direitos antes negados a esses agricultores.<br />

Não podemos negar que mesmo o modelo agroflorestal adotado pela<br />

Associação continua a “rivalizar” contra o êxodo e a busca por outros modos<br />

de vida. Mas é também notável o aumento da coesão familiar a partir do<br />

momento em que os membros da família passam a retirar grande parte de<br />

sua renda de suas propriedades, ao mesmo tempo em que se veem envolvidos<br />

num projeto coletivo. Isso é grandemente facilitado pela regeneração das<br />

parcelas, que ocorre concomitantemente ao seu uso; logo o período de pousio<br />

é substituído pela constante regeneração do sistema que propicia colheitas<br />

em cada uma de suas etapas, caminhando num sentido crescente, tanto no<br />

que diz respeito ao autoconsumo quanto à comercialização, o que permite<br />

um maior aproveitamento da terra.<br />

Na conversão para esse projeto coletivo, que começa no âmbito<br />

familiar, tem sido bastante importante ao longo da história da Cooperafloresta<br />

o protagonismo desempenhado pelas mulheres (ver capítulo 8). Em várias<br />

famílias foram elas que começaram a participar das primeiras reuniões<br />

iniciando os primeiros plantios em suas propriedades. Muitas vezes<br />

enfrentaram resistência por parte de maridos e filhos que as taxavam de<br />

loucas por fazerem essas “plantações bagunçadas, com tudo misturado”.<br />

As primeiras colheitas, o aumento de alimentos para a própria família e a<br />

garantia da comercialização dos produtos começaram a mudar a visão das<br />

famílias sobre a atividade, como visualizamos no depoimento a seguir:<br />

– 177 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

Daí nessa época a minha vida foi só mudando, né? Mas eu esperava o marido<br />

pra resolver as coisas, ele saiu pra trabalhar fora. Eu construí essa casa. Ai<br />

fui me esforçando assim, mais que eu era uma pessoa livre para mim cuidar<br />

dos meus filhos, eu que não tinha uma pessoa comigo, né? Daí pra frente eu<br />

me soltei. A COOPERA me ajudou muito e também eu tive necessidade de me<br />

virar né, eu tinha que dar roupa, dar calçado e escola. Eu tinha mais saúde,<br />

mais força. Enfrentei e hoje eu só tenho que agradecer a Deus, né? porque<br />

enquanto minhas plantas tá no mato, eu to não to dando conta de limpar,<br />

Deus tá tomando conta a natureza tá tomando conta (Agricultora do grupo<br />

Terra Seca).<br />

Estando esse processo alicerçado numa convivência cada vez mais<br />

estreita com a crescente floresta, a relação com o lugar e com a Terra se torna<br />

um reenraizamento e a atenção que se voltava para fora agora se torna<br />

convergente. Podemos inferir que a geração de garantias e a atuação de<br />

um corpo técnico e administrativo podem ser consideradas elementos<br />

fundamentais para a constituição da Associação naquele contexto social, o<br />

que se converteu em resistência às especificidades e artimanhas do mercado<br />

hegemônico da produção de alimentos. Por isso as projeções de melhoria nos<br />

procedimentos de comercialização e os demais dados apontam para a<br />

construção de um caminho de independência no processo de comercialização<br />

em relação ao mercado hegemônico, o que para este trabalho já indica a<br />

geração de autonomia do agricultor, pois utiliza vias de comercialização direta<br />

ou alternativas como o Circuito Sul, um circuito de comercialização interno<br />

da Rede Ecovida de Agroecologia (ver capítulo 9, para mais detalhes sobre do<br />

que se trata o Circuito Sul).<br />

A comercialização direta (PLOEG, 2010) é fundamental na geração de<br />

uma relação com o consumidor e na construção de novos mercados, por isso<br />

é um elemento constituinte da autonomia. Essas colocações nos permitem<br />

lembrar do caráter relativo da autonomia, considerando que sempre ela é<br />

relativa a um determinado fator.<br />

Em geral, podemos inferir que a organização institucional da<br />

Cooperafloresta tem um propósito gerador de autonomia. É possível afirmar<br />

que os agricultores refletem e se autoavaliam, criando possibilidades para<br />

autogerir os seus projetos de vida dentro da agrofloresta em convivência<br />

com a Associação.<br />

– 178 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

O mutirão<br />

Da sociabilidade fundada na família que toma suas decisões em<br />

conjunto e que agora pode voltar a fazer planos também para os filhos, o<br />

modelo agroflorestal passa a influir num âmbito mais amplo de socialização<br />

por meio dos mutirões. Ao observamos a situação social anterior à Associação,<br />

relatada por eles, percebemos um contexto de abandono social. Assim<br />

podemos ver de forma clara como atua o processo de fragmentação das<br />

instâncias sociais tradicionais em prol de uma individualização crescente,<br />

sobretudo pelo chamado mundo do trabalho, processo descrito na obra já<br />

citada de Antônio Cândido (1977). Tal processo já naturalizado nas grandes<br />

cidades ainda impacta com o projeto de vida do agricultor camponês: “Eu<br />

não sei o que eles vão procurar na cidade, pra mim tudo lá é ilusão, eles são<br />

agricultor, deviam ficar aqui na Natureza” exclama um agrofloresteiro,<br />

agricultor do Bairro Ribeirão Grande, se referindo aos filhos, sendo que de<br />

sete apenas um permanece trabalhando na agricultura.<br />

O mutirão na Cooperafloresta se desenvolve mediante a troca de dias<br />

de trabalho entre os grupos e também como uma metodologia de capacitação<br />

orientada pela construção do conhecimento na aliança teórico prática. Essa<br />

característica nos indica que há uma relação diferenciada no que concerne à<br />

organização do trabalho. Podemos inferir que esse modelo se aproxima de<br />

uma atitude de resistência aos instrumentos normatizadores do trabalho e<br />

ainda reorganiza e reinterpreta velhas formas de organização do trabalho,<br />

com suas próprias normas. Por meio dos mutirões os agricultores aumentam<br />

sua capacidade de produção se tornando independentes, na maioria dos<br />

casos, da contratação de mão de obra extra para a propriedade.<br />

A importância do mutirão (puxirão) é reconhecida sobretudo pelos<br />

moradores antigos, que viveram a época em que estes se constituíam como<br />

laço social básico para a subsistência e reprodução de seu modo de vida.<br />

Tal prática é especialmente interessante por atualizar um sistema econômico<br />

baseado no princípio da reciprocidade (ver capítulo 5). Em muitas comunidades,<br />

quilombolas ou não, tal prática vem se perdendo em detrimento de relações<br />

capitalistas em que os agricultores vendem sua força de trabalho nas fazendas<br />

vizinhas ou nas cidades. Esse fato está em relação com a pressão exercida<br />

sobre os pequenos agricultores que vêm suas terras cercadas por plantios de<br />

– 179 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

pinus e eucalipto ou criadores de gado que não vivem na região. Os mutirões<br />

foram institucionalizados pela Cooperafloresta no ano 2000, sendo que hoje<br />

ocupam um papel central no processo produtivo. Como já frisamos, a<br />

territorialidade, mais ligada ao trabalho e menos à propriedade da terra, é<br />

fundamental para o estilo de vida dessas populações, pois ao perderem seus<br />

lugares de vida têm sua capacidade de resistir drasticamente diminuída,<br />

assim os trabalhos em mutirão têm sido fundamentais no processo de<br />

implantação de novas agroflorestas, rearranjando uma prática social tradicional.<br />

Pensamos junto com Martins (1986, p.102) que:<br />

Nessa composição aparentemente conservadora, de apego ao “passado” e de<br />

resistência aparente à “nova” situação econômica, à realidade da empresa<br />

capitalista, é que estão sendo construídas as novas relações sociais.<br />

Essas “novas” relações sociais desafiam a ética individualista<br />

predominante em nossa sociedade e optam por, conscientemente, renovar<br />

vínculos sociais que são uma conquista decisiva na medida em que<br />

permitem a construção de uma coletividade que resguarda interesses<br />

comuns e coloca barreiras a capitalização e mercantilização de suas formas<br />

de produzir a existência.<br />

Um dos pontos de proximidade entre os mutirões e a construção da<br />

autonomia do sujeito de Touraine (2007) é a relação com o outro. Nesse<br />

sentido, o processo de integração gerado pela necessidade de participar dos<br />

mutirões para receber a certificação e comercializar seus produtos, ambos<br />

instituídos pela Associação, favorece as relações entre os agricultores<br />

fortalecendo a construção do respeito mútuo, condição fundamental da<br />

autonomia do sujeito de Touraine (2004).<br />

Ao observarmos que cada um dos integrantes das famílias administra<br />

pequenas parcelas de agrofloresta, podemos dizer que as famílias são<br />

independentes no que se refere à gestão de suas propriedades, mesmo que<br />

estejam vinculadas a um projeto coletivo. Essa independência seria um fator<br />

muito interessante na autoconstrução de si mesmos, pois estariam gerindo<br />

seus projetos de vida (PLOEG, 2010).<br />

Compreendemos que os agricultores são interdependentes dos demais<br />

no processo de geração de tecnologias e também na soma das forças de<br />

– 180 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

trabalho. O que potencializa os resultados em relação à produtividade e à<br />

capacidade de manejo e ainda garante a autorização para comercialização<br />

dos produtos pela Associação.<br />

A interdependência entre os agricultores os aproxima da proposta de<br />

Touraine (2011, p. 161) quando este indica que há necessidade de gerar<br />

algumas condições para a ascensão dos direitos universais na criação de<br />

uma nova ordem social. Entre essas condições, o autor explica que o<br />

restabelecimento do vínculo social 7 pode nos dirigir “contra um individualismo<br />

que carregaria em si mesmo a desconstrução de toda organização social e<br />

confiança entre os atores”. Inferimos que o mutirão incentiva a geração de<br />

vínculos sociais favoráveis ao desenvolvimento da confiança e da solidariedade.<br />

Essas duas últimas características são citadas por Touraine (2011, p. 160)<br />

como fundamentais para o reconhecimento dos direitos para todos, visto que<br />

todos se posicionam em uma situação de igualdade.<br />

A concepção da “condição camponesa” de Ploeg (2008) anuncia<br />

outras possibilidades em relação à organização do trabalho agrícola em que<br />

os agricultores continuam na posição de produtores na cadeia produtiva<br />

detentores dos meios de produção. A geração de independência da “condição<br />

camponesa” é promotora da inclusão dos pequenos agricultores e, portanto,<br />

fundamental na geração da autonomia.<br />

Se aproximarmos os mutirões da Cooperafloresta dessa concepção<br />

identificamos alguns fatores muito próximos. Os “agrofloresteiros” detêm os<br />

meios de produção e ainda promovem a troca e a construção de conhecimentos<br />

constantes por meio dos mutirões. Percebemos que a metodologia utilizada<br />

pelos técnicos nos mutirões de capacitação prioriza a troca de experiências<br />

entres os agricultores facilitando o compartilhamento de suas dúvidas e<br />

saberes. Ao participarmos dos mutirões observarmos que há interesse<br />

pessoal em aprender e trocar experiências. Entretanto, a origem das técnicas<br />

difundidas nos mutirões constituiu um fator problematizador da ideia de que<br />

o mutirão é gerador de autonomia. Estudamos que a agrofloresta como um<br />

campo de conhecimentos em constante construção e mutação, haja vista<br />

sua característica empírica e as experiências compartilhadas dentro de um<br />

7<br />

Os destaques são apropriados do autor.<br />

– 181 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

movimento de expansão nacional. Essas técnicas são frutos de experiências<br />

externas à Associação inseridas pelas consultorias e pelos cursos de qualificação<br />

participados pelos técnicos e agentes multiplicadores.<br />

É preciso lembrar que um dos princípios essenciais do conhecimento<br />

agroflorestal é a valorização do conhecimento do agricultor e das necessidades<br />

do ecossistema local (GÖTSCH, 1997). Foi notável, em um dos mutirões<br />

dos quais participamos, a análise dos agricultores que formavam o grupo<br />

acerca de algumas novas experiências de manejo que chegavam a Associação,<br />

pelas mãos do próprio Ernst Götsch. Longe de as aceitarem imediatamente,<br />

implantaram-nas, mas como experimentos, uma vez que se sentiam<br />

confiantes e seguros de seus métodos. Sua experiência de diálogo não anula<br />

o outro, tampouco o aceita sem refletir, garantindo o caráter autêntico de seu<br />

aprendizado tem hoje a clareza de um caminho de melhora constante do solo<br />

que os nutre e de si mesmos:<br />

...Porque quando a gente não tem esta consciência, eu acho que é certo de<br />

pensar que tudo aquilo que a gente põe a mão a gente destrói, mas depois<br />

desta consciência, não é assim mais. Eu não tenho medo algum de destruir<br />

coisa alguma, porque eu sei que não destruo. Embora para alguns, os tais dos<br />

“ecochatos”, né? Não se derruba uma árvore nunca. O crime mesmo é não<br />

deixar elas crescerem, não deixar que elas existam...(Agricultor grupo Córrego<br />

do Franco)<br />

Se pensarmos o processo de conversão da agricultura tradicional para<br />

o cultivo agroflorestal como um processo educativo, podemos dizer que não<br />

houve uma sobreposição dos conhecimentos novos sobre o conhecimento<br />

tradicional, que constituiria o que Paulo Freire (1987;1983) chama de uma<br />

educação bancária ou de extensão. Ao contrário, o processo tem levado em<br />

conta, como chave para o sucesso da empreitada, a apreensão dos princípios<br />

agroflorestais pelos agricultores que de diferentes modos os incluem em suas<br />

práticas, daí termos enfocado os elementos de continuidade.<br />

Mas se o conhecimento agroflorestal tem de partir dessa compreensão<br />

e apropriação interna típicas da atitude do sujeito, como apreender ou ensinar<br />

aquilo que não se ensina? Lembramos com Paulo Freire (1987) que: “ninguém<br />

liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os pessoas se libertam em<br />

comunhão”. Assim, o processo social alicerçado na associação e cotidianamente<br />

– 182 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

realizado nos mutirões, dinamiza a capacidade de aprendizagem. Ousamos<br />

dizer, no entanto, que o meio não é apenas uma instância de mediação entre<br />

os homens, mas que voltando-nos à natureza, manifesta em pedras, terra,<br />

água, plantas, animais, Sol e céu, tornamo-nos também interlocutores do<br />

universo, a observação atenta desvela sentidos do mundo e de si. Da onde<br />

poderia provir o seguinte diálogo realizado entre um dos pesquisadores (B) e<br />

o já citado agricultor do grupo Córrego do Franco (A)?<br />

A: O que é o mundo pra você?<br />

B: Ora, essa pergunta é difícil, não sei o que dizer assim de pronto.<br />

A: Porque pra mim existe assim esse mundo dos homens, que tanto falam,<br />

que querem dizer que é isso ou aquilo. Mas se você olhar bem vai ver que<br />

existe um mundo da natureza, que não para, ele tá sempre ali, os insetos e as<br />

plantas trabalhando, e nós também fazemos parte desse mundo.<br />

B: Pensando nisso o que mais me impressiona na Natureza é que não importa<br />

o jeito que você trate ela, ela sempre faz a vida crescer, ela sempre quer<br />

arrumar tudo de novo!<br />

A: Não é isso que chamam de amor incondicional?!<br />

Por isso Leff (2007, p.95) nos diz:<br />

No entanto a produtividade cultural, gerada a partir da reconstrução das<br />

práticas produtivas e dos processos de trabalho a partir dos valores culturais<br />

que regulam a organização produtiva de uma formação social, não pode ser<br />

avaliada em termos de produtividade do capital, do trabalho e da tecnologia<br />

investidas no processo produtivo. O desenvolvimento das forças produtivas<br />

de uma formação social a partir da criatividade, as habilidades e motivações<br />

da comunidade, bem como dos valores culturais inscritos nas práticas de<br />

cooperação no trabalho, de reciprocidade e de intercâmbio simbólico (que<br />

incluem atividades “não-produtivas” de caráter ritual, lúdico e recreativo), são<br />

impossíveis de serem medidas como taxas anuais de produção e de serem<br />

avaliadas em termos de racionalidade e de eficiência econômica; tão somente<br />

pode-se dar conta desta dimensão cultural da produção através de seus efeitos<br />

sobre um processo sustentado de desenvolvimento e de melhoria da qualidade<br />

de vida das comunidades avaliadas em termos de seus próprios valores.<br />

Assim, a convivência entre iguais, a inserção num processo social<br />

dinamizado pelos mutirões e o trabalho junto com a floresta criam uma<br />

relação sinérgica capaz de inserir o trabalhador num processo de profunda<br />

aprendizagem já que recuperada sua dimensão de ser frente ao mundo.<br />

– 183 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

Pensamos que essa dimensão de ser se caracteriza por uma abertura para<br />

além da obviedade do conhecimento socialmente instituído, que pode no<br />

máximo promover uma repetição que funciona, no entanto não para descartálo<br />

mas, quando seu sentido já não está mais presente, para ressignificá-lo.<br />

Não se trata assim de instaurar aleatoriamente um campo de tentativa<br />

e erro. A observação acurada relacionada a princípios como os de respeito<br />

pela natureza, a cooperação de todas as formas de vida, a reciprocidade, o<br />

constante aprimoramento operado pelo “trabalho da natureza”, a inserção do<br />

humano no ecossistema, ambos os polos mediados por uma relação de “amor<br />

e carinho” permitem uma experimentação baseada na intuição criando um<br />

novo caminho de descoberta e aprimoramento.<br />

A falta de uma definição fechada para o sistema agroflorestal num<br />

sentido lato, que inclui o ser humano em suas múltiplas dimensões, justificada<br />

pela resposta dada pelo próprio Götsch 8 , ao ser indagado a respeito de sua<br />

recusa a formalizar um manual de seu sistema: “O Tao é tão belo que não<br />

existem palavras para descrevê-lo”, nos coloca novamente em relação com a<br />

proposta de um sistema aberto não apenas no sentido material e energético,<br />

mas também aberto à subjetividade daqueles que forem silenciosos o bastante<br />

para participar da sinfonia onipresente da vida. A atualização do sistema<br />

agroflorestal só pode se dar a partir de sua assunção por um sujeito que<br />

livremente elabora sua sempre presente aliança com a vida.<br />

Sobre a construção de seu conhecimento e a aplicação dos métodos<br />

e técnicas apreendidos é interessante afirmarmos que o sistema agroflorestal<br />

está baseado numa dinâmica natural que comporta variáveis infinitas,<br />

sendo assim, uma sistematização, ainda que possível, não poderia ser<br />

tomada como algo exato a ser seguido cabalmente, sob o risco de cortarmos<br />

o fluxo que o constitui. Assim, sua identidade fundamental, ou o fechamento<br />

como sistema agroflorestal, está na abertura ao fluxo dinâmico que<br />

constitui os ecossistemas. Essa abertura confere ao sistema justamente sua<br />

capacidade de resistir, de se autoequilibrar, uma vez que permanece no<br />

8<br />

Entrevista para o sítio: . Acessado em:<br />

18/03/12.<br />

– 184 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

rumo da complexificação operada pela dinâmica natural, sendo que em<br />

níveis ótimos o manejo poderia acelerar os processos naturais. Um exemplo<br />

interessante dessa abertura são as frutas consumidas e posteriormente<br />

plantadas por pássaros que acabam “replicando” o sistema em benefício,<br />

também, do agricultor.<br />

O próprio Götsch (1995) propõe que áreas da propriedade sejam<br />

deixadas para que se regenerem naturalmente, áreas onde “se deixa Deus<br />

trabalhar” como falam os agricultores da Cooperafloresta. Tais áreas<br />

“serviriam” como gabaritos para a conferência do manejo adotado pelo<br />

agricultor para saber se suas ações caminham no sentido sintrópico ou no<br />

sentido entrópico. A vida é apreendida assim como uma unidade maior, como<br />

expressão de uma Natureza que trabalha para seu constante aprimoramento.<br />

Tal fato nos faz pensar que tão importante quanto o aprendizado de<br />

técnicas de plantio e de quantos conhecimentos forem possíveis acerca da<br />

ecologia e das mais variadas espécies, é a formação de uma atitude de<br />

observador perante os fenômenos da l(v)ida diária, que faz, segundo nos diz<br />

um agricultor, com que:<br />

Cada pessoa vai ter uma forma de fazer e ainda que seja numa mesma<br />

direção ninguém vai fazer igual. A agrofloresta de cada um vai ser uma<br />

marca pessoal. Nem a gente faz uma agrofloresta igual a outra. Eu acho<br />

que o estado de espírito das pessoas também interfere. Talvez a própria fé<br />

que a gente tem na vida 9 .<br />

Em suma, considerando que, para Touraine (2007), a autonomia e a<br />

subjetivação (encontro consigo mesmo) somente podem ser construídas<br />

mediante a relação com o outro e o restabelecimento de vínculos sociais,<br />

afirmamos que a interdependência promovida pela institucionalização dos<br />

mutirões na Cooperafloresta incetiva uma resistência e desconstrução do<br />

individualismo gerado pelo trabalho instituído pela modernidade industrial,<br />

haja vista o reconhecimento da igualdade e do respeito ao outro. E também<br />

fortalece o desenvolvimento de processos educativos baseados na construção<br />

coletiva do conhecimento mediante a relação do sujeito com a natureza.<br />

9<br />

Agricultor grupo Córrego do Franco fonte: Calendário Cooperafloresta, 2010-2011.<br />

– 185 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

Os sujeitos agroflorestais e a afirmação de Valores<br />

Sujeito pode ser considerado um princípio “metassocial” anterior ao<br />

ator, que inunda o indivíduo de uma experiência de si numa constante<br />

construção de sentido embebido pelos direitos humanos. Ao ser fecundado<br />

pelo sujeito o indivíduo age no social transformando-o, se torna aqui o ator,<br />

ao passo que o sujeito coletivo pode ser visto como o grupo consciente dos<br />

sentidos da ação coletiva a partir de uma autorreflexão e consciência dos<br />

direitos humanos. Se essa interpretação estiver correta, o sujeito coletivo só<br />

se constitui de sujeitos individuais.<br />

O exercício de luta por direitos coletivos na construção do sujeito está<br />

diretamente permeado por valores que reiteram e assentam as práticas dos<br />

grupos atribuindo sentidos ocultos ao trabalho da Cooperafloresta. Indicamos<br />

que o sentido oculto e o sentido mais alto da ação social do movimento<br />

agroflorestal da Cooperafloresta consiste na construção de relações sociais<br />

mais “humanas” tendo em vista a igualdade entre os associados. Nesse sentido,<br />

ressaltamos o respeito como um dos sentidos ocultos e não oculto, um valor<br />

primordial muito observado no campo. Essas interpretações nos remetem à<br />

afirmação de fé e de valores na construção da agrofloresta na Associação.<br />

Então por menos que a pessoa esteja consciente ela também tá botando a<br />

ficha dela com isso. E talvez a ficha dela seja do tamanho da minha ou maior,<br />

porque cada um põe a ficha que tem né?... então se ela tem a consciência que<br />

imagina que eu tenho, a minha contribuição deveria de ser infinita eu luto pra<br />

entender. O normal é viver o agora e amanhã a Deus pertence, né?... é só a<br />

continuação do hoje... não dá pra esperar que a vida seja ruim se você planta<br />

fruta. Como pode ser ruim ? Não faz sentido. Você se cultiva a si próprio.<br />

Acaba atraindo coisas boas... ah, sei lá... não deveria de ter essa preocupação<br />

com o que vai ser, talvez o ideal é que o agora me baste e pronto [Agricultor<br />

do Córrego do Franco].<br />

A agrofloresta remete aos valores fundamentais para os humanos e os<br />

não humanos. Sendo assim, podemos dizer que existem condições e<br />

elementos muito favoráveis para a emergência do sujeito agroflorestal.<br />

Inicialmente vimos que os agricultores gostam de enaltecer suas práticas e<br />

as reafirmam como adequadas e positivas para si e para o coletivo. Essas<br />

afirmações estão relacionadas à autonomia, a qual está baseada na<br />

autoafirmação e no encontro dos sentidos. A autoafirmação também se<br />

– 186 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

configura como um mecanismo de proteção; este último estratégico para a<br />

situação de abandono social vivenciada por essa população.<br />

Aproximamos as concepções dos agricultores da ideia de fé como um<br />

apelo ao Divino interno partindo de si. O “agrofloresteiro” como parte da<br />

natureza age nela de acordo com os princípios de confiança e amor conhecendo<br />

os sentidos de sua ação no ambiente. Nesse sentido, observamos anúncios de<br />

outras possibilidades de viver por meio da satisfação gerada no cultivo de<br />

agroflorestas, aprendendo a agradecer, a encarar os sofrimentos e a redescobrir<br />

a sua força interna, sua fé, a exemplo do depoimento do Técnico da Associação.<br />

A agrofloresta acaba mexendo na crença da pessoa, mas ela tem que acreditar.<br />

Se você acredita em Deus, o quando você está vendo disso, a gente é o que a<br />

gente acredita. Agrofloresta é um processo de iniciação espiritual, eu não tenho<br />

dúvida disso, é fruto da comunhão, esse sentimento de amor, de Deus está<br />

muito presente na Cooperafloresta. E a própria linguagem técnica esta cheia<br />

destes elementos de ligação com a natureza, e de unidade da vida. E isso é<br />

diferente do mercado hegemônico, é antagônico. E tem um componente da<br />

fé que já existia aqui. Houve uma mudança do meu discurso em agrofloresta<br />

muito grande, eu já era uma pessoa muito religiosa quando eu cheguei aqui.<br />

Eu percebia que havia uma relação entre agrofloresta e a espiritualidade. Deus<br />

está presente em toda a natureza e de qualquer forma nessa organicidade<br />

imensa na natureza, que gosto de chamar da presença de Deus na natureza.<br />

Se você não usa essa língua da espiritualidade, que é a língua como os povos<br />

das Américas explicavam, quando faziam a agrofloresta. Essa compreensão de<br />

que a natureza é viva, de que Deus está ali. Eu acho que um dos elementos<br />

do sucesso da Cooperafloresta, não fui eu que trouxe, mas fui encarregado<br />

pelas pessoas para esse tipo de fala, a minha forma de explicar tem uma<br />

forte contribuição de Ernesto, que também teve uma contribuição dos povos<br />

da floresta, aqui isso está tão presente a partir de uma comunhão de saberes<br />

de grandes sínteses e de fé que está presente nas falas dos técnicos inclusive<br />

[Técnico da Associação].<br />

Podemos considerar que, por meio da autoafirmação de seus valores,<br />

os agricultores agroflorestais demonstram uma atitude de autonomia em<br />

relação aos seus projetos de vida afirmando os valores confiança, respeito,<br />

amor, fé, solidariedade e carinho essenciais para a autoconstrução e o<br />

encontro dos seus projetos de vida, esses últimos fertilizados pelos sentidos<br />

da agrofloresta.<br />

– 187 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

Creio que, religioso ou não religioso, o sujeito está sempre presente. O sujeito<br />

é não social, apesar de ter sempre uma capacidade de ação sobre o social.<br />

É deles que vêm os valores, ao passo que da sociedade vêm as normas.<br />

Normas são utilitárias: o que é bom para a sociedade é bom para mim. Já<br />

os valores são os limites, os direitos humanos, por exemplo, fundados nos<br />

poderes da sociedade sobre mim e sobre si própria (KHOSROKHAVAR e<br />

TOURAINE, 2004, p. 207).<br />

Apontamentos, inter-relações, esperanças e angústias<br />

Parece autoevidente; entretanto, é fundamental reafirmarmos a prática<br />

da agrofloresta como um modelo alternativo de produção de alimentos, fato<br />

que gerou toda a organização da Cooperafloresta e que demonstra a resistência<br />

essencial à lógica instituída pela produção industrial de descaracterização do<br />

ecossistema de origem. Constitui um modelo alternativo porque conjuga<br />

técnicas tradicionais de cultivo, como os períodos de plantio e o consorciamento<br />

de espécies, com conhecimentos de outras regiões, utilizando inclusive plantas<br />

exóticas, o que é possibilitado pelos contatos interétnicos de um mundo<br />

“globalizado”. É importante lembrar, contudo, que o sistema agroflorestal<br />

também se alimenta de novos conhecimentos gerados pela observação e<br />

experimentação com a natureza.<br />

Os agricultores da Barra do Turvo foram desafiados a assumir para si<br />

as reflexões agroflorestais. Passaram a observar a floresta e compreender<br />

qual seria a melhor forma de, estando junto dela, se tornar parte dela e fazer<br />

prosperar sua produção, garantindo o sustento de suas famílias, dentro de<br />

uma relação diferenciada com o mercado. O sentimento que ora nos invade<br />

é de profunda gratidão por esses homens e mulheres que nos acolheram para<br />

mostrar de forma tão bela suas vidas e sua incrível coragem de ousar ser<br />

quem são. Sem mistificações indevidas, sua busca é parte de um caminho<br />

fundamental para a humanidade de nossos dias. Não há serenidade que não<br />

tenha encontrado na Natureza a expressão da perfeição, do amor, da força e<br />

da beleza feitos formas. É esse o sentimento de estar em casa, de finalmente<br />

habitar. A Associação que esses agrofloresteiros vêm construindo parece ter<br />

permitido, a partir da relação decisiva com um conhecimento que chega até<br />

eles por um viés alternativo da modernidade, uma transformação na sua<br />

– 188 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

forma de viver que resguarda e incrementa traços importantes de sua<br />

identidade histórica – coletiva e individual.<br />

Diante disso, a forma como seus antepassados viviam não precisa mais<br />

ser interpretada como arcaica ou atrasada, sendo ainda, assim, reinterpretada<br />

e revalorizada. Em alguns momentos das narrativas eles relatam os próprios<br />

diálogos internos, como por exemplo, quando descrevem sobre o passado e<br />

sua transição para o sistema de produção agroflorestal. Com histórias de vida<br />

recheadas de sofrimentos, quase sem recursos para a sobrevivência, mudaram<br />

suas maneiras de se relacionar, de produzir e comercializar alimentos. E, em<br />

meio a essas situações de conflituosidade (TOURAINE, 2004), os agricultores<br />

em parceria com técnicos desenvolveram um modelo específico e próspero<br />

de viver com a natureza, orientado pela coprodução.<br />

Os percalços e desafios do caminho sem dúvida que os há, mas a vida<br />

de nossa sociedade tem se constituído em tamanho desvio que urge falarmos<br />

novamente em princípios, em perseverança e em virtude, mas antes de tudo<br />

em sermos um pouco ainda crianças. Despreconceber e olharmos a vida<br />

desde nosso ser inteiro, sejamos arrebatados. Ali onde o coração se faz<br />

sincero se desvelam sentidos do mundo, segredos guardados no íntimo de<br />

tudo que há. Disso, como falamos, não se pretende uma fuga do mundo<br />

demasiado concreto do capital e da técnica, ao contrário se pretende encontrar<br />

outros sentidos de ser: o que é mais concreto o amor ou o dinheiro? O que é<br />

mais real a vida ou a técnica? Responder a essas perguntas perante um<br />

mundo que nos é dado traz importantes consequências para o nosso agir.<br />

O convívio com as matas e os animais, a sociabilidade mais ampla, a<br />

família e a garantia de um futuro melhor para os filhos, a conexão do ritmo<br />

do trabalho com os ritmos do ano são traços de uma identidade coletiva,<br />

agora salvaguardada por um projeto coletivo que permite e garante sua<br />

expressividade perante uma sociedade nem sempre amistosa, mas sempre<br />

mais envolvente. Também aprendizes do legado agroflorestal recobram o<br />

pensar meditativo, que indaga o mundo e a natureza e passam a construir<br />

uma forma de produzir que por sua simples existência desafia a lógica<br />

exploratória da civilização atual. Resistem aos imperativos dos modelos<br />

industriais de produção de alimentos por meio da observação da lógica da<br />

– 189 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

floresta de organizar e fortalecer parcerias e cooperações para o dinamismo<br />

dos sistemas agroflorestais e promover o aumento da vida (GÖTSCH, 1997).<br />

A organização da Associação possibilitou aos agricultores da Barra do<br />

Turvo e região o acesso e construção de um processo de institucionalização<br />

que se propõe aberto às renovações constantes, mediante formas<br />

participativas de gestão. Entre as instâncias de gestão participativas se<br />

destacam o envolvimento das unidades familiares, os grupos de agricultores,<br />

o conselho de representantes, o conselho de ética e a Associação. Entre<br />

as práticas de gestão se relacionam os planos de manejo familiares, as<br />

reuniões das instâncias anteriores e o exercício de autoavaliação denominado<br />

“estrelas da agrofloresta”.<br />

Foram encontrados na Cooperafloresta os seguintes elementos<br />

constituintes da autonomia dos sujeitos que vêm emergindo numa relação<br />

de igualdade e respeito o que pode ser gerador de uma nova realidade<br />

social, envolta por direitos: autoafirmação, autoconstrução, encontro dos<br />

próprios sentidos, respeito pelo outro e responsabilidade, essenciais para a<br />

autonomia do sujeito de Touraine. Encontramos também a autogestão da<br />

base de recursos dos agricultores, a coprodução, comercialização direta,<br />

independência, pluriatividade, diversidade e cooperação, elementos<br />

fundamentais para a geração da autonomia para Ploeg.<br />

Como nos indica Touraine (2004), para compreender o sujeito é preciso<br />

que ele seja observável e que se somem o maior número de suas características.<br />

Assim, se quisermos inferir sobre a emergência de sujeitos no movimento<br />

agroflorestal da Cooperafloresta, é possível afirmar a existência de muitas das<br />

características do sujeito de Touraine, especialmente a resistência ao controle<br />

do mercado hegemônico de produção de alimentos e a construção da<br />

autonomia baseada no respeito ao outro. Esse sujeito individual e coletivo,<br />

presente na Cooperafloresta, está se constituindo à sua maneira, permeado<br />

por sua historicidade e, portanto, apresenta singularidades.<br />

os atores definidos em termos “morais” não podem ainda ser definidos pelas<br />

implicações institucionais, e em particular jurídicas, já que o sujeito não se<br />

constitui senão acima da organização social. É um apelo à vida contra a<br />

morte, aos direitos contra os interesses, aos princípios primeiros antes que<br />

suas implicações. (TOURAINE, 2011, p.131)<br />

– 190 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

A busca de si no movimento de construção do sujeito de Touraine está<br />

relacionada a um processo interno de busca de sentido. Esse processo pode ser<br />

ocasionado por uma situação de conflituosidades vivenciadas por esse ou esses<br />

indivíduos. Entende-se para o caso em destaque, o processo de mudança nos<br />

padrões de produção, a conversão para o sistema agroflorestal como uma<br />

busca pela sobrevivência. A afirmação da identidade negra e a construção<br />

participativa de modelos de produção, alimentados pela lógica agroflorestal,<br />

configuram processos que expressam a resistência desses agricultores às<br />

submissões de condições de sobrevivência que não foram atendidas pelo<br />

modelo industrial de produção de alimentos, da situação social e da degradação<br />

ambiental e êxodo rural presente no histórico da região.<br />

Pensamos assim ter descoberto um processo de amor: “Não há diálogo,<br />

porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível<br />

a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há, amor<br />

que a infunda” (FREIRE, 1987). Esse amor se traduz numa educação em<br />

comunhão, numa pequena e silenciosa revolução do homem sobre si mesmo<br />

ao recuperar o sentido de ser, ao ver renascer a vida não só no convívio com<br />

seus semelhantes, mas a vida como diversidade essencial de seres. É esse<br />

sentimento de ligação com o mundo e com a humanidade que doravante nos<br />

anima a conhecer, sendo conhecer também uma dimensão do cuidar, do<br />

habitar, por que compreender a cada um segundo suas próprias determinações<br />

e valor. Esse diálogo com a vida, que chamamos aqui de reciprocidade,<br />

confia, com olhos e ouvidos atentos, na certeza da resposta: a volta do ser<br />

simples, uma ética do habitar.<br />

A vida mais simples, mais simples os problemas a resolver: valor é ver<br />

medrar de cada ponto do chão o vigor, da Terra, do Sol e da chuva. Voltar-se<br />

ao ser é um ato de coragem, porque também de renúncia ao parecer, às<br />

nossas pretensas verdades. É caminho serra acima, pisando em pontas<br />

agudas. Mas é também caminho de cura, de abandono, progressivo, dos<br />

remédios, caminho de regeneração. Revolução é regeneração. Porque tudo<br />

aquilo que não se remete a sua origem e a sua destinação só pode perecer.<br />

A almejada transformação do mundo só pode nascer como resultado<br />

de um profundo pensar o mundo, acreditamos que a profundidade desse<br />

pensar se dá pela preconizada abertura perante o nosso ser e o ser mesmo do<br />

– 191 –


A construção do sujeito agroflorestal por meio da ética do habitar:<br />

resistência e autonomia na visão de mundo agrofloresteira<br />

mundo. Na raiz da proposta agroflorestal está esta jornada, jornada sem volta<br />

que vem encontrando, como ousamos dizer, certos princípios que,<br />

reafirmamos: 1- O respeito pela natureza, 2-A Reciprocidade, 3- A reinserção<br />

do humano no ecossistema, 4- A cooperação de todas as formas de vida e<br />

5- o constante aprimoramento operado pelo “trabalho da Natureza”.<br />

Atentamos ainda para o risco de repousarmos sobre tais princípios, o<br />

que acabaria por, antes, acomodá-los ao nosso fazer. Daí a necessidade de<br />

manter o sistema aberto, de manter-nos nessa constante busca, de ser<br />

sempre um sujeito em construção, mas que já tem direção e que sempre que<br />

se vê enredado, silencia para encontrar e se reconectar ao fundo que lhe dá<br />

origem, e assim poder agir. A ação do sujeito não pode prescindir desse ato<br />

de subjetivação, a ética do habitar não é um processo mecânico de aplicação<br />

de princípios, é antes uma experiência de educação de si, em comunhão com<br />

os outros homens e com a vida.<br />

Nesse sentido pensamos ter demonstrado que se o sujeito é um princípio<br />

metassocial isso não quer dizer que ele não esteja encarnado. O sujeito é vivo<br />

e a sua coragem de desfiar segredos de sua própria existência é uma atitude<br />

fundamental para a construção do que propusemos como uma ética do habitar.<br />

O conceito de autonomia, que nos remete aos de autenticidade e genuinidade,<br />

é fecundado aqui, porque na situação em questão encontra seu sentido e sua<br />

aplicação num contato renovado com a Natureza. A compreensão de sua<br />

ligação com o meio faz com que esses agrofloresteiros reconheçam na<br />

transformação de seu ambiente e na regeneração de seus solos um caminho de<br />

transformação e prosperidade para a sua própria vida, de suas famílias e para<br />

o planeta. O outro que constitui o sujeito é aqui também a própria natureza,<br />

irredutível a compreensão que dela temos ao mesmo tempo em que nos<br />

permeia até o íntimo daquilo que nós mesmos somos.<br />

Essa superação do antagonismo homem e natureza, vista como<br />

superação porque é concretizada num agir e não apenas teorizada, nos indica<br />

um outro paradigma que orienta outras formas de relação, cultivando outros<br />

fundamentos para a investigação científica, baseados no respeito para com a<br />

vida, mas sobretudo porque os sujeitos se veem numa rede de relações que<br />

ecologiza o ser, pois nos remete à origem e destinação do que somos e fazemos.<br />

– 192 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Eu acredito que se você cumpriu bem a sua função, o mundo e todas as<br />

energias que nele existem vão suprir as suas necessidades… para mim é isso<br />

o básico de tudo ... Então é isso, eu acho que, tipo assim, eu não sei se a<br />

gente é agricultor, se a gente é jardineiro ou a gente é só ser humano. Não dá<br />

para rotular! E pense assim, se você fosse Deus e tivesse um jardineiro, você<br />

ia querer ver o seu jardineiro na miséria? Pois é, é nisso que eu acredito, que<br />

quando a gente trabalha neste jardim a abundância vem naturalmente não é<br />

um lugar para ter miséria (Agricultor, grupo Córrego do Franco)<br />

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– 195 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 8<br />

Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador<br />

da relação sociedade-ambiente<br />

Regiane Fonini e<br />

José Edmilson de Souza Lima<br />

Introdução<br />

A discussão acerca destes temas complexos – alimentação, produção e<br />

consumo e meio ambiente – tem sido cada vez mais evidentes nos embates<br />

políticos e traz por si a necessidade de tratá-los além das fronteiras disciplinares.<br />

Assim como já afirmava Josué de Castro, um dos grandes obstáculos no tocante<br />

ao entendimento da alimentação reside na visão unilateral que se projeta sobre<br />

o tema e no pouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, como<br />

um complexo de manifestações simultaneamente biológicas, econômicas,<br />

sociais, culturais e ambientais (CASTRO, 1946/2008). Igualmente, faz-se<br />

necessário considerar a centralidade do alimento e da alimentação na relação<br />

sociedade-ambiente, visto suas características multidimensionais e seu caráter<br />

de necessidade vital.<br />

A reflexão sobre o acesso a alimentos de qualidade envolve sobremaneira<br />

as formas como a agricultura se desenvolve no Brasil. De um lado está a<br />

agricultura hegemônica, baseada em grandes áreas de terra, produtora de<br />

commodities e dependente de insumos químicos. Do outro lado está a<br />

agricultura não hegemônica, da qual faz parte a agricultura camponesa, de<br />

agricultores familiares, quilombolas, caiçaras e outros grupos, a qual por<br />

vezes busca adequar-se ao modelo hegemônico sem sucesso, bem como atua<br />

na contra-hegemonia, desenvolvendo novas formas de produção. Posta assim<br />

esta questão, percebe-se que a atual condição de pobreza existente em<br />

comunidades rurais de agricultores familiares e camponeses está relacionada<br />

– 197 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

ao fato de terem passado longo tempo distantes do intensivo processo de<br />

modernização ocorrido no país voltado à agricultura hegemônica. Essa<br />

modernidade assentada numa visão urbano-industrial tornou o rural não<br />

hegemônico invisível, à medida que priorizava investimentos nas regiões<br />

mais urbanizadas e desenvolvidas e na agricultura hegemônica, contribuindo<br />

para um desenvolvimento regional desigual.<br />

Por outro lado, as próprias condições naturais e sociais de algumas<br />

comunidades rurais, como a que evidenciamos aqui pertencente ao território<br />

do Vale do Ribeira, dificultaram sua inserção em um desenvolvimento<br />

agrícola nos moldes capitalistas, devido ao relevo e ao grau de isolamento<br />

e pobreza que as comunidades sofriam e algumas ainda sofrem. Esse<br />

processo de modernização pautado numa racionalidade conservadora e<br />

instrumental levou ao agravamento da condição de pobreza das populações<br />

rurais, bem como aumentou os conflitos relacionados à manutenção do<br />

trabalhador na terra, obrigando muitas famílias a buscarem estratégias de<br />

adaptação e sobrevivência.<br />

Em face deste contexto, surge a necessidade de buscar e dar<br />

visibilidade às alternativas no campo da produção e do consumo de<br />

alimentos. Dentre essas estratégias ou alternativas, destacamos a<br />

agroecologia e suas vertentes, como a agrofloresta aqui demonstrada, que<br />

possibilita um novo tipo de interação do homem com a natureza e a<br />

produção de alimentos em consonância com os pressupostos da<br />

sustentabilidade e do direito ao acesso a uma alimentação saudável e de<br />

qualidade. Dessa forma, este capítulo visa trazer à discussão estratégias<br />

contra-hegemônicas na produção e consumo de alimentos e que fomentam<br />

a relação entre sociedade e ambiente, a qual vem se transformando desde<br />

a industrialização e da mecanização no meio rural.<br />

Ao compreender a complexidade da relação entre a produção e o<br />

consumo de alimentos na sociedade atual e considerando a agrofloresta<br />

como estratégia de adaptação e alternativa contra-hegemônica, questiona-se<br />

como a introdução da agrofloresta interferiu na vida das famílias e na<br />

alimentação delas?<br />

Dessa forma, esse capítulo tem por objetivo trazer elementos de como<br />

a experiência de produção agroflorestal desenvolvida aproximadamente há<br />

– 198 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

16 anos influenciou na vida e na alimentação das famílias agrofloresteiras<br />

em Barra do Turvo, São Paulo (presente também em outros municípios da<br />

região), conduzida pelos agricultores associados à Associação de Agricultores<br />

Agroflorestais de Barra do Turvo e Adrianópolis – Cooperafloresta. Aliado<br />

à apresentação de dados objetivos sobre o consumo e a produção na<br />

Cooperafloresta, o capítulo busca evidenciar a vivência com um grupo de<br />

agricultores pertencentes a uma comunidade de remanescentes de quilombos,<br />

o bairro Terra Seca. Cumpre ressaltar que este artigo tem sua origem a<br />

partir da pesquisa de campo parte integrante da dissertação de mestrado<br />

apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e<br />

Desenvolvimento (PPGMADE) da Universidade Federal do Paraná (UFPR),<br />

sob o título – Agrofloresta e Alimentação: estratégias de adaptação de um<br />

grupo quilombola em Barra do Turvo-SP.<br />

Compete notar que se trata aqui de um rural como um sistema vivo<br />

que passa por um processo de recomposição no qual a fronteira entre ruralurbano<br />

é cada vez mais tênue e o componente socioambiental torna-se mais<br />

relevante, evidenciada principalmente ao assumir a produção agroflorestal<br />

como meio de vida e sistema de produção. É oportuno destacar do mesmo<br />

modo que é um espaço onde resistem as singularidades de modos de vida<br />

das populações rurais, visto que se baseia em um estudo realizado em um<br />

território de remanescentes de quilombos.<br />

Considerando a complexidade do tema e a perspectiva de tratá-lo de<br />

forma interdisciplinar, este capítulo se organiza apresentando inicialmente<br />

alguns apontamentos acerca do debate atual sobre a questão alimentar e sua<br />

relação com a questão ambiental. Em seguida, enfatiza-se o papel da<br />

agricultura familiar e da agroecologia na relação entre produção e consumo<br />

de alimentos e na sustentabilidade. Ressalta-se que não se pretende aqui<br />

exaurir as discussões acerca desses temas, mas apenas apontar um<br />

referencial. Parte-se, então, na segunda parte, para apresentação da<br />

experiência da agrofloresta desenvolvida na pesquisa dissertativa e sua<br />

relação com a alimentação, considerada com central na discussão entre<br />

relação sociedade-ambiente.<br />

– 199 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

O contexto atual em torno da questão alimentar e a relação<br />

sociedade-ambiente<br />

Ao observar o atual modelo predatório de desenvolvimento e seus<br />

efeitos, sentidos pelo aumento da degradação ambiental em seus aspectos<br />

naturais – mediante o esgotamento dos recursos não renováveis, poluição e<br />

contaminação dos recursos hídricos, do ar e do solo, redução da diversidade<br />

ecológica que levam aos conflitos atuais entre preservação ambiental e<br />

desenvolvimento – e em seus aspectos sociais – tais como a fome e<br />

insegurança alimentar, a concentração da riqueza, o aumento da miséria<br />

(ZANONI, et.al., 2000) e o novo estilo de vida delineado pela sociedade de<br />

consumo – vê-se que há uma demanda crescente pela inclusão dessas<br />

questões na pauta das políticas nacionais e internacionais a respeito da<br />

insustentabilidade deste modelo de desenvolvimento e os limites do<br />

crescimento econômico.<br />

Ilustrando a assertiva, estimativas da Food and Agriculture Organization<br />

(FAO), órgão das Nações Unidas (ONU), mostram que no ano de 2009 o<br />

número de famintos bateu seu recorde, chegando a um bilhão de pessoas no<br />

mundo. Este número alarmante de cerca de 1/6 da população mundial da<br />

época passando fome e em estado de insegurança alimentar nos alerta sobre<br />

os modelos de produção e consumo que estão se reproduzindo. A mesma<br />

agência internacional relata que a maioria dos famintos do mundo está nos<br />

países ditos em desenvolvimento, boa parte na América Latina e Caribe, onde<br />

estão cerca de 53 milhões de pessoas nessa situação. Convém ressaltar que<br />

as reflexões sobre o tema da alimentação e os problemas relacionados, assim<br />

como o debate sobre a consolidação do direito à alimentação, têm percorrido<br />

um longo processo de disputas políticas, no qual têm acentuado papel os<br />

movimentos sociais e as organizações da sociedade civil, bem como as<br />

pesquisas científicas que trazem à tona esta discussão.<br />

É oportuno ressaltar que mesmo diante do aumento de conflitos e<br />

riscos relacionados ao desenvolvimento pautado no crescimento econômico<br />

– relacionados ao uso indiscriminado do ambiente natural cujas consequências<br />

apresentam-se no plano da saúde e do desenvolvimento humano – há uma<br />

complexidade em definir um caminho para o desenvolvimento sustentável,<br />

até porque não existe um consenso em torno deste conceito. Esta discussão<br />

– 200 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

por vezes se detém nas questões relacionadas à preservação e ao<br />

assistencialismo. No entanto, é evidente a necessidade de mudança de<br />

postura na utilização dos recursos naturais e na redução da contaminação e<br />

poluição do ambiente natural e no provimento de direitos à população, como<br />

o acesso a alimentos de qualidade.<br />

Nessa esteira, ao observar a produção agrícola realizada em larga<br />

escala pelo agronegócio no Brasil, o qual é dependente de insumos químicos<br />

e de organismos geneticamente modificados (OGMs) (ou transgênicos – uso<br />

de sementes e plantas derivadas de manipulações genéticas sustentado sobre<br />

três argumentos principais: preservação ambiental, aumento da produção e<br />

combate à fome e redução dos custos de produção que, no entanto, oferece<br />

riscos à saúde humana e ao ambiente 1 ), percebe-se o aumento da poluição e<br />

degradação do ambiente, pautado na produção de alimentos voltados para a<br />

exportação visando ao equilíbrio da Balança Comercial brasileira.<br />

Tal insustentabilidade não é questionada, pois está relacionada à alta<br />

lucratividade para o agronegócio e ao crescimento econômico do país. No<br />

entanto, está diametralmente oposta à garantia do direito à alimentação<br />

adequada para a população brasileira e ao desenvolvimento sustentável,<br />

questões cada vez mais evidentes nos embates políticos. Cumpre salientar<br />

que o atual modelo de produção agrícola que fundamenta a visão da eficiência<br />

produtiva do sistema agroalimentar e do agronegócio, assim como afirma<br />

Maluf (2009), dá origem a conflitos entre estratégias produtivistas e a<br />

preservação do meio ambiente ao pressionar a base de recursos naturais,<br />

além dos impactos sociais de êxodo rural, fome e desemprego urbano.<br />

Do mesmo modo, torna-se relevante destacar que em direção a esse<br />

quadro de fome e pobreza e do acesso restrito a alimentos de qualidade estão<br />

as grandes corporações transnacionais que dominam a cadeia agroalimentar,<br />

das sementes às prateleiras dos mercados e, consequentemente, têm grande<br />

influência sobre as condições de alimentação da população. Cumpre lembrar<br />

que essas empresas movimentam mais recursos que alguns países, tendo<br />

enorme impacto sobre a economia global, principalmente ao atuar além das<br />

1<br />

Para saber mais: ZANONI, Magda; FERMENT, Gilles (Orgs.). Transgênicos para quem? Agricultura,<br />

Ciência e Sociedade. Brasília: MDA, 2011.<br />

– 201 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

fronteiras, com acentuado alcance sobre os países menos ricos. Nesse<br />

contexto situa-se o debate sobre a soberania alimentar e as crises alimentar<br />

e ambiental, deflagradas por uma série de conflitos socioambientais em torno<br />

da fome, da alta dos preços dos alimentos, da sobreutilização do ambiente e<br />

da insustentabilidade do sistema econômico vigente que respalda o<br />

crescimento destas transnacionais.<br />

Ao tratar sobre essas questões – direito à alimentação e desenvolvimento<br />

sustentável – é necessário compreender as relações intrínsecas na produção<br />

e no consumo de alimentos, considerando a centralidade da alimentação<br />

na vida humana. Dessa forma, cabe reconhecer quais as influências e<br />

interferentes brevemente apresentadas aqui que vão culminar nos processos<br />

atuais relacionados a um grande contingente de famintos, à pauperização do<br />

agricultor familiar, à ampliação de modelos alimentares baseados em alimentos<br />

industrializados, ao domínio dos monopólios na cadeia agroalimentar, entre<br />

outros fatores.<br />

De tal modo que é necessário compreender como se dá a produção e<br />

o acesso aos alimentos, considerando igualmente a qualidade, os aspectos<br />

culturais, sociais, ambientais, políticos e econômicos envolvidos na escolha<br />

e disponibilidade desses alimentos. Nessa relação o papel do agricultor,<br />

especialmente o agricultor familiar e camponês, e do consumidor é de extrema<br />

importância para definir e intermediar esta relação entre produção e consumo.<br />

O que se observa, entretanto, são as indústrias de alimentos mediando cada<br />

vez mais esta relação, dando a ela um caráter impessoal, em que só<br />

permanecem as relações de mercado. Ilustrando a assertiva, lembra-se que a<br />

partir da industrialização uma ampla variedade de alimentos naturais e<br />

culturalmente aceitos foi reduzida a algumas commodities e transformados<br />

em mercadorias com sabores homogeneizados.<br />

Para alcançar essa compreensão, cabe inicialmente compreender<br />

que a alimentação é uma construção social desempenhada em razão de um<br />

imperativo biológico, posto seu caráter de necessidade vital, mas que se dá<br />

a partir da relação entre ser humano e natureza, então transformada em<br />

cultura. Nesse sentido a alimentação como base material, mas também<br />

imaterial (alimentamos não só o corpo como o espírito, e ao transformar o<br />

alimento em comida, transformamó-lo em cultura), é essencial para a<br />

– 202 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

reprodução biológica e social dos grupos humanos. Por um lado, as escolhas<br />

alimentares dependem dos hábitos, da cultura, das relações em sociedade,<br />

do vínculo afetivo e de gosto estabelecido com os alimentos, da compreensão<br />

acerca do que é saudável, do ambiente do entorno, bem como convicções<br />

de ordem moral, ética e política, ou seja, questões em constante movimento,<br />

interação e transformação, cuja concepção se dá a partir da realidade<br />

histórica, social e ambiental de cada grupamento humano. Por outro lado,<br />

dependem do acesso aos alimentos que por sua vez está relacionado à<br />

renda e à facilidade ou dificuldade em termos de acesso físico, ao preço dos<br />

alimentos, às políticas no campo da agricultura e abastecimento, entre<br />

outros fatores de ordem socioeconômica.<br />

Afora a interferência da indústria e dos monopólios, sabe-se que as<br />

formas locais de alimentação, os produtos consumidos e a forma de cozinhálos<br />

relacionam-se com os recursos locais, as características do clima e dos<br />

solos, com o território, as formas de produção, a agricultura e a pecuária, o<br />

ambiente ao redor e as possibilidades de transformá-lo. Estes fatores<br />

interferem sobremaneira na condição de Segurança Alimentar e Nutricional<br />

(SAN) 2 de um povo. Ao considerar a complexidade da alimentação, a definição<br />

de políticas voltadas ao abastecimento e distribuição de alimentos torna-se<br />

mais factível quando consideradas as diferentes realidades locais.<br />

Visto esse caráter multidimensional da alimentação, o debate sobre<br />

as relações de produção e consumo de alimentos é fundamental para<br />

compreender as razões que levam a observar na atualidade um paradoxo<br />

entre a grande produção de alimentos (commodities) e um contingente de<br />

pessoas em situações de fome ou insegurança alimentar, esta última<br />

compreendida como a falta de acesso a uma alimentação adequada qualitativa<br />

e quantitativamente percebida por meio dos problemas relacionados à<br />

obesidade, à má alimentação, ao consumo de alimentos prejudiciais à saúde,<br />

bem como aos modelos predatórios de produção, entre outras dimensões.<br />

Nesse sentido, a dissolução desse paradoxo pressupõe a definição de<br />

2<br />

SAN: É o direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em<br />

quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como<br />

base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam<br />

social, econômica e ambientalmente sustentáveis (BRASIL, 2004).<br />

– 203 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

estratégias políticas que considerem a relação estabelecida localmente entre<br />

produção e consumo e tornem acessíveis esses alimentos apoiados no<br />

desenvolvimento local.<br />

Percebe-se, portanto, que a garantia da SAN está diretamente<br />

relacionada à produção de alimentos de forma sustentável o que requer o<br />

exercício soberano de um país em relação à cadeia agroalimentar que<br />

compreende a produção até a distribuição dos alimentos, com políticas que<br />

se sobreponham à lógica mercantil estrita e incorporem a perspectiva do<br />

direito humano à alimentação (MALUF, 2009). Para a plena garantia da SAN,<br />

o país deve ter a soberania sobre o que produz e o que consome. A Soberania<br />

Alimentar por sua vez é entendida como o direito de cada país em definir<br />

suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e<br />

consumo de alimentos que garantam o direito humano à alimentação<br />

adequada para a população, respeitando as múltiplas características culturais<br />

dos povos (BRASIL, 2007a). O Brasil ainda tem muito a avançar nesse<br />

sentido, para alcançar plena soberania sobre o que produz e consome.<br />

Sem descartar as grandes variações nas formas de alimentação<br />

derivadas de diferentes culturas alimentares já evidenciadas, é preciso<br />

insistir no fato de que atualmente a alimentação se vê comprometida devido<br />

à redução de espécies e pela substituição de alimentos naturais por<br />

industrializados, o que vai implicar situações de insegurança alimentar.<br />

Ante as transformações advindas da urbanização e da globalização, a<br />

alimentação passou e continua passando por mudanças, tal como podemos<br />

observar pelo distanciamento do consumidor de todo o ciclo produtivo do<br />

alimento que vai deflagrar um novo estilo de vida, em que surgem novas<br />

expectativas de consumo. Isso está diretamente relacionado ao aumento<br />

da industrialização e mecanização e especialização no meio rural e à<br />

transformação do alimento em mercadoria, cujo processo acarretou na<br />

homogeneização de sabores ao reduzir as variedades vegetais e animais<br />

que constituíam a base da dieta dos povos.<br />

Assim, como afirma Polanyi (1980), separar o ser humano de seu<br />

ambiente biofísico foi elemento fundante da economia de mercado. Essas<br />

mudanças impressas na cadeia agroalimentar fizeram com que se perdesse<br />

todo o contato com o ciclo produtivo do alimento, desestruturando os sistemas<br />

– 204 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

normativos e os controles sociais tradicionais que regiam as práticas e<br />

representações alimentares (FISCHLER, 1995 apud HERNÁNDEZ, 2005).<br />

As expectativas de consumo por sua vez são influenciadas pelo apelo<br />

contemporâneo que promete uma conexão entre os alimentos industrializados<br />

e a natureza, observado pelo aumento de alegações em produtos<br />

industrializados envolvendo sustentabilidade – alimentos “orgânicos”,<br />

“verdes”, “tradicionais”, “caseiros” – levando à reorientação das escolhas<br />

alimentares. Assim, percebe-se que a discussão atual acerca da questão<br />

alimentar e a questão ambiental conecta-se no que tange à emergência de<br />

um capitalismo verde e de um novo mercado em torno dos alimentos<br />

(orgânicos, sustentáveis), que têm na sua base a sociedade de consumo<br />

estimulada pelo apelo à sustentabilidade. Esse apelo, por sua vez, alcança o<br />

meio rural, estimulando a produção de orgânicos para o alcance do mercado.<br />

Ainda que as relações de mercado existam e permeiem as relações<br />

entre o produtor e o consumidor, a produção de alimentos da agricultura<br />

familiar e da agroecologia e o comércio através de circuitos curtos de<br />

comercialização reforçam outro tipo de relação, mais humana e que deve<br />

considerar toda a rede complexa em que a alimentação está envolvida. Da<br />

agricultura familiar provém a maior parte dos alimentos da população<br />

brasileira, e a agroecologia está cada vez mais sendo assumida como modelo<br />

de produção por essa categoria, a fim de prover alimentos saudáveis e que<br />

não agridem o ambiente nem a saúde do trabalhador, visto que não utiliza<br />

insumos químicos. Além disso, reforça as relações de sociabilidade entre os<br />

agricultores, fortalecendo o seu papel de ator social na cadeia agroalimentar.<br />

Por fim, diante da conjuntura atual que revela a permanência de um<br />

grande número de famintos, ao passo que enfrentamos uma crescente alta do<br />

preço dos alimentos relacionado ao modelo de consumo exacerbado<br />

estimulado pelo apelo à sustentabilidade e ao padrão hegemônico na<br />

produção de alimentos, cujas consequências transparecem na exacerbação<br />

de conflitos socioambientais, ressaltamos que é necessário o enfrentamento<br />

teórico e prático dessas questões. Dessa forma, para fazer frente a esse<br />

contexto estão cada vez mais evidentes estratégias alternativas na produção<br />

e consumo de alimentos em consonância com a necessidade de prover<br />

e promover o acesso a alimentos de qualidade e sustentáveis. Ou seja,<br />

– 205 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

alimentos saudáveis do ponto de vista nutricional, biológico e sanitário, livre<br />

de agrotóxicos ou outros insumos químicos, que respeitem a diversidade<br />

cultural e não expropriem a natureza tanto menos o trabalhador responsável<br />

pela sua produção, garantindo assim a SAN local. Para evidenciar o papel do<br />

agricultor neste processo, seguem os apontamentos do próximo tópico.<br />

A produção de alimentos pela agricultura familiar e camponesa e a<br />

agroecologia<br />

Em função de uma lógica de desenvolvimento voltada a uma minoria,<br />

houve a destruição de sistemas sociais e culturais enraizados em várias<br />

comunidades camponesas. Os povos e comunidades camponesas diante da<br />

transformação da terra e do alimento em mercadorias (tendo como pior<br />

consequência a fome) foram levados a uma mudança e assim buscaram<br />

alternativas senão estariam fadados ao desaparecimento. Dessa forma, o<br />

alcance mais amplo dos interesses sociais vitais, dentre os quais podemos citar<br />

a alimentação, de acordo com o Polanyi (1980), fez surgir diversos contramovimentos<br />

como resposta à mercantilização da terra, do alimento, do trabalho.<br />

Dentre os que dizem respeito à produção e consumo de alimentos, está a<br />

agroecologia. Nesse sentido, houve um confronto entre duas racionalidades, a<br />

hegemônica que é a voltada para o mercado e que desmantela as formas<br />

genuínas de viver e se relacionar com o ambiente, e outra, não hegemônica,<br />

baseada numa racionalidade substantiva definida por valores e objetivos<br />

permeados pela cultura local e orientados para as necessidades de<br />

desenvolvimento e de proteção dos grupos sociais (LEFF, 2001).<br />

É importante ressaltar que no Brasil, antes da Revolução Verde –<br />

responsável pela intensificação do uso de insumos químicos e pela<br />

mecanização no meio rural por meio de créditos agrícolas em que este pacote<br />

tecnológico era imposto aos agricultores – permanecia uma agricultura<br />

baseada na relação com o ambiente e com os recursos naturais disponíveis.<br />

Marginalizados no processo de modernização da agricultura, o modelo<br />

baseado na Revolução Verde tornou-se instrumento de fragilização e<br />

expropriação da agricultura familiar, de acordo com Almeida (2002), mediante<br />

um processo de desqualificação das formas tradicionais de manejo dos<br />

recursos naturais, que passaram a ser associadas ao atraso, à improdutividade,<br />

– 206 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

à indolência, ao parasitismo e à falta de conhecimentos. Esses fatores estão<br />

igualmente relacionados ao que Polanyi (1980) compreende por desintegração<br />

do tecido social.<br />

Preciosa tem sido a contribuição da agroecologia nesse sentido ao<br />

fazer enfrentamento do modelo produtivo hegemônico apoderada pelos<br />

agricultores familiares e camponeses. Nessa perspectiva teórica, a<br />

agroecologia como ciência e prática se apresenta como uma aspiração geral<br />

a outra forma de desenvolvimento, capaz de servir como instrumento de<br />

resistência e de reprodução de grupos sociais no respeito a sua diversidade e<br />

abrir novas vias de afirmação no domínio das maneiras de produzir e viver<br />

(ALMEIDA, 1998). A agroecologia tem em seu escopo a prática de agricultura<br />

levando em consideração tecnologias e técnicas que otimizem o uso dos<br />

recursos naturais com respeito à diversidade ecológica e cultural, melhorando<br />

a produção de alimentos sem o uso de insumos químicos externos e<br />

agrotóxicos, bem como OGMs prejudiciais ao ambiente e à saúde humana.<br />

Compreende também que é de fundamental importância a articulação do<br />

conhecimento técnico com os conhecimentos tradicionais dos agricultores.<br />

Dessa forma, percebe-se que a agroecologia ultrapassa os aspectos<br />

produtivos, articulando aspectos econômicos, sociais, culturais, políticos e<br />

ambientais que envolvem a produção de alimentos, bem como busca<br />

influenciar o consumo responsável de alimentos favorecendo a saúde dos<br />

consumidores. Como um grande guarda-chuva, a agroecologia abarca a<br />

produção agroflorestal como uma de suas técnicas possíveis. O método<br />

utilizado na elaboração e condução das agroflorestas é uma tentativa de<br />

replicar as estratégias usadas pela natureza para aumentar a vida e melhorar<br />

o solo, indo ao encontro da agricultura sustentável na perspectiva de uma<br />

maior e melhor relação do ser humano com a natureza; relação esta que tem<br />

o alimento e a alimentação como elementos de ligação.<br />

Ao pensar na agricultura de base familiar e camponesa, observa-se que<br />

o que se produz se relaciona diretamente com o que se come, e a cultura<br />

alimentar local resulta dessa relação, assim como foi possível observar na<br />

comunidade rural onde foi realizada esta pesquisa. A agricultura então faz<br />

parte da cozinha e a cozinha da agricultura, em que o rural e o agricultor<br />

assumem acentuada importância ao se constituírem em mediadores da<br />

– 207 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

relação sociedade-natureza por meio da produção de alimentos. Assim como<br />

afirma Cândido,<br />

A alimentação ilustra o caráter de sequência ininterrupta, de continuidade,<br />

que há nas relações de grupo com o meio. Ela é de certo modo um vínculo<br />

entre ambos, um dos fatores da sua solidariedade profunda e, na medida<br />

em que consiste em uma incorporação ao homem dos elementos extraídos<br />

da natureza, é o seu primeiro e mais constante mediador, lógica e por certo<br />

historicamente anterior à técnica (CÂNDIDO, 2010, p. 33, grifo nosso).<br />

Nessa linha de análise, percebe-se que cada vez mais têm sido<br />

enfraquecidas as formas de alimentação tradicionais, baseadas em alimentos<br />

locais, naturais, livres de agrotóxicos e outros insumos químicos e<br />

culturalmente aceitas, dando lugar a alimentos industrializados, distantes da<br />

sua origem e cultura. Compete, então, buscar alternativas que estejam<br />

preocupadas com a produção de alimentos de forma sustentável, culturalmente<br />

referenciada, visando ao abastecimento local.<br />

Em face disto, muitas ações da agroecologia estão contribuindo para a<br />

construção da Soberania Alimentar e da SAN, tais como: a produção de<br />

alimentos saudáveis, o resgate de sementes crioulas, a diversificação dos<br />

sistemas agrícolas para a produção de alimentos, a valorização da produção<br />

voltada para o autoconsumo, o resgate de práticas e culturas alimentares, a<br />

melhoria da saúde, assim como ações que tratam o mercado a partir da<br />

relação produtor/consumidor, da valorização do alimento de qualidade e que<br />

influenciam as políticas públicas (ANA, 2007). Os alimentos de origem<br />

agroecológica ajudam a preservar a diversidade e são mais saudáveis do<br />

ponto de vista nutricional, pois mantêm os nutrientes naturalmente contidos<br />

no alimento e o sabor característico, sobretudo por não utilizar insumos<br />

químicos que prejudicam a saúde e ao ambiente, assim como também<br />

observou Rigon (2005).<br />

A identificação da agroecologia como outro paradigma de produção<br />

expressa uma forma de relação entre ser humano e natureza mediada por<br />

uma representação que não exclui a natureza do ser humano, pois permanecem<br />

ligados por elementos comuns, entre os quais consideramos central o alimento<br />

e a alimentação. A natureza então é vista como elemento de preservação e<br />

de recriação da vida fazendo parte de um projeto social destes novos atores<br />

– 208 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

que são tidos como responsáveis por essa mudança de relação com o<br />

ambiente natural (BRANDENBURG, 2002). Atualmente há uma percepção<br />

positiva sobre o rural como detentor de uma melhor qualidade de vida devido<br />

à intensa relação com o ambiente e pelo aprofundamento de relações sociais<br />

mais pessoais, tidas como predominantes entre os habitantes do campo<br />

(WANDERLEY, 2001). É notável igualmente que os produtos da agricultura<br />

camponesa enfatizam a importância de uma maior aproximação entre<br />

produção e consumo e maior valorização do consumo local, produtos que<br />

precisam passar pelo crivo da cultura (WILKINSON, 2007).<br />

Para finalizar, o incentivo a agricultura familiar, especialmente a<br />

produção de alimentos de base agroecológica, sobressai como uma alternativa<br />

contra-hegemônica ao buscar resgatar saberes e conhecimentos tradicionais<br />

e propor novas formas de organização social que respondam à crescente<br />

demanda por formas de desenvolvimento mais justas e ambientalmente<br />

equilibradas. O agricultor familiar então é visto como novo ator social,<br />

portadores de outra concepção de agricultura. Nesse compasso estão as lutas<br />

dos movimentos sociais do campo e a formulação de políticas voltadas a esse<br />

público, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar<br />

(PRONAF), o Programa de Aquisição de alimentos (PAA) e a nova lei do<br />

Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) (Lei n.º 11947/2009)<br />

que fortalece a agricultura familiar por meio da compra institucional dos<br />

alimentos produzidos por eles.<br />

O alimento como mediador: a experiência da Cooperafloresta<br />

Diante desse contexto, este trabalho enfocou na produção e consumo<br />

de alimentos por meio da agroecologia como estratégia contra-hegemônica,<br />

especificamente no sistema agroflorestal (SAF) e o desenvolvimento dessa<br />

experiência em um bairro de remanescentes de quilombos em Barra do Turvo,<br />

São Paulo (bairro Terra Seca), assim como já foi assinalado. Esta seção tem<br />

como pano de fundo a articulação gerada entre as famílias de agricultores,<br />

com objetivo central de apontar alguns indicativos de como a agrofloresta<br />

influenciou a vida e a alimentação das famílias no bairro estudado. Para isso,<br />

cumpre apresentar brevemente o universo em que a pesquisa foi realizada,<br />

bem como os procedimentos metodológicos utilizados que possibilitaram<br />

– 209 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

compreender em que aspectos a alimentação era influência e era influenciada.<br />

Em seguida, apresentam-se alguns achados de pesquisa com vistas a<br />

aprofundar a discussão sobre a relação entre produção e consumo baseada<br />

na experiência da agrofloresta.<br />

Procedimentos Metodológicos e o Universo de Pesquisa<br />

A pesquisa dissertativa que deu origem a esse trabalho baseou-se na<br />

concepção de que para conhecer uma dada realidade é necessário “analisar<br />

o conjunto de dados materiais ou fatos e mais a percepção que deles esteja<br />

tendo a população neles envolvida” (FREIRE, 1985, p. 35). Assim sendo,<br />

nota-se que a realidade dessas famílias de agricultores está ligada em todos<br />

os seus aspectos. A alimentação, sendo um desses aspectos, deve ser<br />

entendida a partir da sua relação com os outros fenômenos envolvidos e de<br />

seu movimento, transformação, conflitos e contradições presentes. Por<br />

conseguinte, a pesquisa se desenvolveu observando a realidade local a partir<br />

da análise dos fenômenos, centrado na alimentação, e da sua interação com<br />

as condições que os determinam e explicam.<br />

Além disso, mediante um olhar sobre os grupos sociais não<br />

hegemônicos, tomou-se como perspectiva o pressuposto epistemológico de<br />

que a interdisciplinaridade só surge na prática social, na qual surge a<br />

construção do conhecimento sobre a relação sociedade-ambiente. Dessa<br />

forma, os procedimentos metodológicos utilizados visaram investigar as<br />

relações intrínsecas em torno da alimentação e dos alimentos, assumindo<br />

um caráter qualitativo ao fazer uso de três metodologias complementares<br />

para a investigação do fenômeno, quais sejam: observação participante, que<br />

permitiu construir a investigação com base no contexto rural apresentado,<br />

histórias de vida e registros alimentares com enfoque qualitativo.<br />

Como se observa, a compreensão do universo do bairro Terra Seca e<br />

de certa forma do Vale do Ribeira, região onde está inserido o bairro,<br />

principalmente no que se refere às visões de mundo de seus habitantes,<br />

implica uma imersão na realidade local e na maneira como os moradores do<br />

bairro concebem suas próprias vidas. Tais concepções constituem uma<br />

maneira específica de se relacionar com o entorno (ambiente natural) e com<br />

o outro (sociedade), tendo influências marcantes nas relações com o alimento<br />

– 210 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

e a alimentação. Nesse sentido, ressalta-se que a opção pela análise da<br />

alimentação e de seus vínculos com a agrofloresta foi oferecida pelo próprio<br />

contexto de pesquisa.<br />

Cabe destacar que a pesquisa de campo foi realizada no período de<br />

dezembro de 2010 a dezembro de 2011, intensificada nos últimos seis<br />

meses. Foram seis famílias que participaram mais intensamente da pesquisa,<br />

porém o contexto local foi levado em consideração, principalmente por se<br />

tratar de uma comunidade de remanescentes de quilombos, no qual a história<br />

e a cultura local são elementos fundamentais para se compreender as relações<br />

estabelecidas com o meio ambiente e com o alimento. Do mesmo modo, os<br />

dados objetivos sobre produção e consumo da Cooperafloresta como um todo<br />

serviram para dar amplitude ao trabalho, e têm sua origem a partir da tese<br />

de doutorado de Julian Perez Cassarino, cujo questionário socioeconômico foi<br />

disponibilizado para as pesquisas coletivas e no qual foram entrevistadas 61<br />

famílias igualmente associadas à Cooperafloresta.<br />

Esses agricultores inserem-se num contexto maior – o Vale do Ribeira –,<br />

campo de disputa entre a preservação ambiental e o desenvolvimento local<br />

que conduziu à elaboração de estratégias de adaptação e de sobrevivência do<br />

grupo, dentre as quais destacamos a produção agroflorestal. Sabe-se que a<br />

região do Vale do Ribeira abriga municípios dos estados de São Paulo e<br />

Paraná que possuem uma unidade histórica e um perfil socioeconômico e<br />

ambiental semelhante e é reconhecida pela sua paisagem exuberante por<br />

abrigar a maior parte dos remanescentes de Mata Atlântica no Brasil, pela<br />

sua riqueza cultural, pois estão concentradas comunidades de agricultores<br />

familiares, camponeses, caiçaras, remanescentes de quilombos, assentados<br />

da reforma agrária, povos indígenas entre outros, mas é também reconhecida<br />

pela paupérrima condição de boa parte da população que lá reside.<br />

Dessa forma, o contexto em que está inserido o universo desta<br />

pesquisa por si só representa um repertório de obstáculos à reprodução<br />

social dos grupos que vivem nesta região. O ambiente natural por vezes se<br />

impõe de forma restritiva à agricultura e assim estimula a busca por práticas<br />

alternativas (BRANDENBURG; FERREIRA; SANTOS, 2004). No caso do<br />

bairro Terra Seca, além das restrições no ambiente à agricultura e à vida<br />

dessas famílias, existem as restrições da legislação ambiental, que exigem<br />

– 211 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

um tratamento diferenciado à natureza visando à preservação. Essas<br />

condições histórico-sociais e naturais possibilitam compreender as formas<br />

de apropriação da natureza e o desenvolvimento de técnicas e práticas<br />

como estratégias que permitiram a sobrevivência e adaptação dessas<br />

famílias às condições do meio, inclusive no estabelecimento de uma dieta<br />

mínima baseada nos quatro elementos básicos, quais sejam: arroz, feijão,<br />

milho e mandioca, assim como também observou Antonio Candido em seu<br />

<strong>livro</strong> – Os Parceiros do Rio Bonito (2010).<br />

Quando então alguns dos agricultores do bairro estudado assumem o<br />

sistema agroflorestal como sistema produtivo, rompem em parte com a lógica<br />

tradicional, pois o objetivo mais premente é o de desenvolver estratégias que<br />

permitam sua sobrevivência e adaptação às condições do meio. Conforme<br />

apresentado nos diferentes capítulos deste <strong>livro</strong>, diferentemente da produção<br />

tradicional baseada na agricultura de corte e queima, as agroflorestas são<br />

conduzidas desde seu início, quando se plantam as culturas de crescimento<br />

mais rápido conjuntamente a árvores de grande e médio porte, visando à<br />

proteção do solo e ao equilíbrio entre plantas, fauna e solo. Conforme se<br />

desenvolvem, vão se assemelhando a uma floresta, mas com alta produtividade<br />

de alimentos, pois são constantemente manejadas pelos agricultores. Fornecem<br />

ao longo do tempo uma variedade de alimentos para o consumo familiar,<br />

possibilitando aumento da renda por meio da comercialização via associação e<br />

canais diferenciados, como feiras, além de programas e políticas públicas de<br />

abastecimento. Nesse sentido, a introdução da agrofloresta no bairro representou<br />

uma estratégia de desviar dos imperativos ambientais e legais, bem como<br />

possibilitou o desenvolvimento da comunidade estudada.<br />

No presente estudo, as famílias de agricultores produzem no sistema<br />

agroflorestal sucessional, no qual há uma sucessão entre espécies em áreas de<br />

Mata Atlântica, coexistindo árvores e outras plantas alimentícias e em que a<br />

intervenção humana é intensa. As agroflorestas apresentam grande potencial<br />

para a conservação dos solos, da água e da diversidade ecológica, sem uso de<br />

insumos químicos como agrotóxicos, apropriado à agricultura de base familiar<br />

e agroecológica. Esses sistemas rompem com conceitos clássicos no campo da<br />

agricultura, pois há o plantio de várias espécies muito próximas umas das<br />

outras, cada qual com uma função e atuação sobre o sistema, dando a ele um<br />

– 212 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

formato mais sustentável que o presente na agricultura hegemônica. Além<br />

disso, as agroflorestas visam a uma maior relação do ser humano com o<br />

ambiente, inclusive em sua vertente cósmica. Uma descrição mais detalhada<br />

sobre o sistema agroflorestal pode ser encontrada no capítulo 3.<br />

Em virtude dessas considerações, apresentam-se alguns indicativos da<br />

relação estabelecida, por meio do alimento, entre ser humano e natureza na<br />

experiência da agrofloresta.<br />

A Produção e o Consumo de Alimentos pelas famílias agroflorestais<br />

Quando se trata de analisar as mudanças na vida dessas famílias<br />

relacionadas à agrofloresta, ficam evidentes duas questões: o aumento da<br />

renda e da diversidade da produção para o autoconsumo. Ambas favorecem<br />

a situação de Segurança Alimentar e Nutricional das famílias, ao passo que<br />

contribuem para o acesso a alimentos de forma regular e permanente. Além<br />

disso, atribui-se à produção para o autoconsumo a redução dos custos da<br />

alimentação e ao aumento da variedade de alimentos nas refeições habituais;<br />

alimentos estes em consonância com hábitos alimentares saudáveis e que<br />

favorecem a relação do ser humano com o ambiente.<br />

A relação entre produção e consumo se reflete de forma positiva na<br />

ampla maioria dos agricultores investigados por Perez-Cassarino (2012).<br />

De acordo com os dados socioeconômicos, cerca de 30% da produção serve<br />

apenas para o consumo familiar, não sendo comercializada. A outra parte<br />

é consumida e comercializada havendo sempre essas duas utilidades.<br />

Reforçando a assertiva anterior, a economia com a produção para o<br />

autoconsumo alcança, em pouco mais da metade dos entrevistados (33),<br />

cerca de R$180 a R$550 em se tratando da Cooperafloresta.<br />

A respeito da diversidade da produção, apresentam-se próximo a 108<br />

espécies diferentes nas agroflorestas em Barra do Turvo. Isso representa maior<br />

garantia e segurança da produção, além de favorecer a variedade na mesa das<br />

famílias. Evidencia-se a mesma diversidade de produção no bairro Terra Seca,<br />

demonstrada mais adiante. A produção diversificada é um dos fatores que mais<br />

distancia a produção agroecológica da agricultura hegemônica, além do fato de<br />

ser voltada ao abastecimento local. Quando ao tratar da redução da diversidade<br />

ecológica e da especialização da agricultura relacionada ao processo de<br />

– 213 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

mecanização do meio rural e industrialização, percebe-se que aqui se trata<br />

exatamente de uma contra-hegemonia fomentando o debate sobre a questão<br />

alimentar e ambiental tratado anteriormente. Ademais, a diversidade ecológica<br />

está relacionada à diversidade cultural, em que as formas de se apropriar da<br />

natureza se refletem na cultura, especialmente na cultura alimentar, favorecendo<br />

igualmente a SAN.<br />

O fator renda tem papel relevante no acesso econômico aos alimentos<br />

e consequentemente nas escolhas alimentares e de acordo com os agricultores<br />

esse foi o principal fator relacionado à melhoria substancial na vida das<br />

famílias desde a entrada da agrofloresta. Assim como foi possível observar, a<br />

agrofloresta diversificou a produção, possibilitando a esta uma maior segurança,<br />

principalmente por viabilizar o escoamento da produção via Programa de<br />

Aquisição de Alimentos (PAA), Programa Nacional de Alimentação Escolar<br />

(PNAE), em feiras agroecológicas em Curitiba, além de no Circuito Sul de<br />

circulação e comercialização de produtos da Rede Ecovida de Agroecologia 3 .<br />

De acordo com os dados levantados por Perez-Cassarino (2012), 77% dos<br />

entrevistados declararam que houve aumento da renda após a entrada na<br />

agrofloresta, ao passo que 98,5% dos entrevistados declaram renda bruta<br />

acima de R$300 até R$2180.<br />

Para exemplificar com o estudo de caso no bairro Terra Seca, em se<br />

tratando de renda, as seis famílias de agricultores relataram que a produção<br />

ecológica é a principal fonte de renda dessas famílias. A renda familiar bruta<br />

neste bairro varia entre R$301 até R$1100, que está diretamente relacionado<br />

aos meses em que há maior fartura de produtos da agrofloresta. Os meses<br />

mais fracos são de setembro a novembro quando a renda média não passa<br />

de R$400. Além do acesso à renda, é relevante considerar os gastos não<br />

realizados com alimentos por serem obtidos diretamente da produção para o<br />

autoconsumo. Essas seis famílias relataram economizar entre R$180 a<br />

R$550 por mês com a produção de alimentos voltados para o abastecimento<br />

da família.<br />

3<br />

O Circuito Sul de Circulação da Rede Ecovida é formado por quatro organizações que fazem parte<br />

da Rede Ecovida, incluindo a Cooperafloresta, no qual é feita a troca e circulação de produtos<br />

visando complementar a oferta de produtos às instituições mercados, entre os estados do Paraná,<br />

Santa Catarina e Rio Grande do Sul (REDE ECOVIDA DE AGRO<strong>ECOLOGIA</strong>, 2011).<br />

– 214 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Certamente o os hábitos alimentares, as maneiras de comer e os usos<br />

dos alimentos agroflorestais são diferentes nos diversos grupos de agricultores,<br />

visto que possuem origens e histórias diferentes. Acerca dos hábitos<br />

alimentares e as estratégias de alimentação, serão evidenciadas a partir<br />

daqui as características especificamente do bairro Terra Seca.<br />

Quando se trata especificamente do bairro Terra Seca, inicialmente, é<br />

relevante explicar que as práticas e técnicas tradicionais desenvolvidas ao<br />

longo do tempo nesta comunidade estavam diretamente relacionadas ao<br />

acesso a recursos e à forma como essa comunidade buscou se adaptar às<br />

condições do ambiente natural e à influência da sociedade. Percebe-se que<br />

as famílias viviam segundo os mínimos vitais e sociais, assim como descrito<br />

por Cândido (2010), em que a alimentação era a mínima necessária para a<br />

manutenção vital, mas também relacionada à necessidade de interromper<br />

o mínimo possível a jornada de trabalho, repetindo-se ao longo dos dias.<br />

O autor afirma que “esse mínimo alimentar corresponde a um mínimo vital e<br />

social: alimentação apenas suficiente para sustentar a vida; organização<br />

social limitada à sobrevivência do grupo” (CÂNDIDO, 2010, p. 60). Assim,<br />

neste grupo estudado, a alimentação constituía-se daqueles alimentos<br />

em que se poderia garantir a continuidade, pela produção, raramente<br />

complementada com outros elementos, como a carne. A alimentação das<br />

famílias a partir dos recursos naturais baseava-se na extração de frutas, nas<br />

verduras “do mato”, no palmito, na carne de caça, na produção de alimentos<br />

na roça e na criação de animais nos terreiros ou quintais. Adentra a categoria<br />

de verduras do mato a beldroega, o picão, a serralha, a alface do mato, a<br />

jurubeba, o almeirão roxo, a abóbora, além de outras. A introdução das hortas<br />

é recente e teve influência da atuação da Cooperafloresta.<br />

Dessa forma, a transição para o sistema agroflorestal representou uma<br />

mudança, na vida e na alimentação das famílias. Baseadas antes no plantio<br />

das quatro culturas tradicionais – feijão, milho, mandioca e arroz –, as<br />

famílias tiveram que se adaptar ao plantio de uma variedade de sementes,<br />

preservando as potencialidades locais e manejando o sistema conforme a<br />

necessidade. A agrofloresta representou para as famílias deste estudo uma<br />

mudança na prática de plantio e de relação com o ambiente, na medida em<br />

– 215 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

que introduziu uma técnica externa à comunidade, mas que buscava se<br />

equiparar ao ecossistema local e considerar os saberes genuínos, tradicionais.<br />

Essa mudança ao longo do tempo representou também uma alteração na<br />

forma de se relacionar com o ambiente, pois os agricultores são estimulados<br />

a perceber as mudanças e a dar um tratamento diferenciado a cada nível da<br />

agrofloresta, também a cuidar da cobertura do solo e das qualidades da terra,<br />

saberes já presentes, mas que são reforçados vista a importância da dimensão<br />

ambiental neste tipo de produção. Com isso, alterou a forma de ver a natureza,<br />

da produção das sementes até o alimento e a alimentação, e a repensar<br />

atitudes que estariam se contrapondo a essa visão.<br />

Pouco dependente de tecnologias externas modernas, a agrofloresta<br />

tem seu trabalho voltado ao cuidado, ao manejo intensivo, à percepção do<br />

ambiente e das necessidades deste, e assim observou-se que as mulheres<br />

têm papel fundamental na manutenção das agroflorestas e esta na construção<br />

de autonomia dessas mulheres. De tal modo que a entrada na agrofloresta<br />

representa para as mulheres assumir a responsabilidade pela manutenção da<br />

produção e da família enquanto os homens saíam para trabalhar em outros<br />

setores até mesmo nas cidades afora Barra do Turvo. Dessa forma, elas<br />

desenvolveram habilidades e liberdade para tomar decisões sobre suas<br />

próprias vidas, influenciando a vida de toda a família afirmando-se como<br />

detentoras do processo de transformação do alimento em comida, bem como<br />

seu papel central na perpetuação social e biológica da família.<br />

A produção voltada ao consumo familiar tem relevante participação na<br />

autonomia dos grupos, assim como aponta Gazolla e Schneider (2007),<br />

sendo que as mulheres detinham o controle sobre o que seria produzido, de<br />

que forma e onde, e também do que ia à mesa e seria ofertado à família,<br />

garantido o maior acesso à renda e contribuindo para o alcance da Segurança<br />

Alimentar e Nutricional da família. Destaca-se a fala de uma das agricultoras<br />

que evidencia o papel da agrofloresta na autonomia.<br />

Nóis temo reunida assim, nóis tudo mulherada tá trabalhando, eles ficam meio<br />

rebaixado, meio sem graça, mas foram eles que deram a chance. A chance era<br />

pra eles, mas num quiseram, aí nóis fiquemo. Agora nóis trabalhamo direto,<br />

graças a Deus. Agora já tenho minha continha na poupança, o dinheirinho<br />

– 216 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

que faço na agrofloresta já caí lá pra mim. Só pego lá e acerto mercado. Pra<br />

mim, tá um mar de rosa. [risada] Não é bastante, mas pra gente passá em<br />

casa já tá dando, tranquilo (Pesquisa de campo, PAULINA, 2011 In: FONINI,<br />

2012, p.186) 4 .<br />

Essa fala é bastante representativa da mudança na vida dessas<br />

mulheres depois da entrada na agrofloresta e ao assumir a responsabilidade<br />

pela manutenção da produção e da família. O acesso e a escolha do uso<br />

desse recurso revelam um maior grau de independência econômica dessas<br />

mulheres, que se reflete positivamente sobre a vida das famílias e<br />

invariavelmente representa uma maior autonomia dessas mulheres. Um<br />

destaque especial à autonomia dos grupos associados à Cooperafloresta é<br />

feito no capítulo 9.<br />

As diferenças entre o plantio tradicional realizado por meio da queima<br />

na agricultura de coivara e o plantio em agrofloresta são percebidas de forma<br />

positiva pela maioria dos agricultores. Na agrofloresta, relatam não perder<br />

nada, o que não comem, vendem, e o que não vendem, de acordo com os<br />

agricultores, alimenta os passarinhos que assim ajudam na diversidade do<br />

ambiente. A agrofloresta ajudou também na manutenção de nascentes e<br />

minas d’água, que segundo contam os moradores estavam diminuindo ano a<br />

ano, muito provavelmente devido ao plantio muito próximo dos córregos e da<br />

utilização da queima que deixa a terra sem cobertura para que absorva a<br />

água da chuva.<br />

Além das criações de animais, a produção de alimentos realizada pelas<br />

famílias deste estudo mescla áreas de agrofloresta mais antigas, com árvores<br />

de grande porte como abacateiros e uma grande quantidade de pupunha e<br />

banana, com áreas mais novas que possibilitam o plantio de alimentos<br />

básicos como o feijão e o milho conjuntamente a árvores frutíferas. Além das<br />

agroflorestas, cada família reserva um pequeno espaço para o plantio de<br />

horta, seja no meio da agrofloresta, seja nos terreiros em volta das casas.<br />

Assim, possibilita o maior acesso físico a uma grande variedade de alimentos.<br />

4<br />

Os nomes utilizados nesse trabalho e na pesquisa dissertativa são fictícios, a fim de preservar<br />

os interlocutores.<br />

– 217 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

Na presente pesquisa, a agrofloresta permitiu a diversificação da<br />

produção que teve como consequência o aumento da renda das famílias e a<br />

maior frequência do retorno financeiro da produção, e que também contribuiu<br />

destacadamente na alimentação das famílias, assim como já foi reforçado<br />

anteriormente. Estas afirmações estão registradas na fala de vários<br />

agricultores, como a que se escreve a seguir:<br />

Através da agrofloresta a gente conseguiu plantá tudo essas arvores de frutas<br />

e comer tudo essas frutas, fazer horta, plantar verdura, come sempre com<br />

salada que antes a gente não plantava, não ligava pra isso, o mais que a<br />

gente comia era só arroz e feijão... come mais essas coisas da terra, legumes,<br />

come mais mandioca, inhame, taiá, taioba, chuchu, abacate [...] (Pesquisa de<br />

Campo, D. DIRCE, 2011 In: FONINI, 2012, p.194).<br />

Ressaltando a questão da produção de alimentos nas agroflorestas,<br />

destaca-se que o principal alimento produzido pelos agricultores da<br />

Cooperafloresta, em termos quantitativos, é a banana, principalmente a<br />

banana caturra e a banana prata e também outras variedades. Mas há uma<br />

variedade de alimentos produzidos nas agroflorestas dos mais de cem<br />

agricultores associados na Cooperafloresta. Notemos na Tabela 1 os alimentos<br />

produzidos e comercializados por sete famílias da Terra Seca, nos anos de<br />

2009 a 2011.<br />

As agroflorestas são ricas em diversidade de plantas, alimentares e<br />

não alimentares (ver capítulo 12). Na tabela apresentada, no entanto, estão<br />

incluídos apenas os alimentos produzidos e comercializados, que são registrados<br />

pela Cooperafloresta para posteriormente fazer o pagamento. Porém, durante<br />

o convívio e conversando com as agricultoras foram vistos alguns alimentos<br />

produzidos que eram usados para o consumo, comercializando somente o<br />

excedente, enquanto outros alimentos eram mais vendidos do que consumidos.<br />

Os alimentos mais vendidos dependiam da quantidade em que eram colhidos.<br />

Se produzidos em pouca quantidade, podiam ou não ser vendidos. No caso<br />

da banana, por exemplo, em que a produção é grande, nota-se maior saída<br />

do alimento para venda do que para o consumo familiar. Há também a lógica<br />

do lucro, pois se a venda do alimento proporciona maior lucro, como é o<br />

caso dos palmitos pupunha e açaí, são revendidos em quase totalidade.<br />

– 218 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Obviamente, o fator cultural é relevante nessas escolhas, em que alimentos<br />

cultural e nutricionalmente importantes quase não são comercializados,<br />

como o feijão e a mandioca.<br />

TABELA 1 – ALIMENTOS COMERCIALIZADOS NO BAIRRO TERRA SECA – 2009 A 2011<br />

TIPOS<br />

ALIMENTOS<br />

Ameixa, abacate, abacaxi, cabeludinha, cajá-manga, carambola,<br />

fruta de pupunha, fruta do conde, goiaba, jabuticaba, jaca, jambo,<br />

mamão, maracujá, pêssego, pitanga, tomate, tomatinho, uvaia<br />

Banana-abóbora, banana-caturra, banana-prata, banana-maçã,<br />

Frutas banana-ouro, banana-pacovã, banana-pão, banana-são-tomé,<br />

banana-da-terra. Laranja bahia, laranja kinkan, laranja lima, laranja<br />

murcot, laranja suco, lima da pérsia, limão galego, limão rosa, limão<br />

taiti, mexerica azeda, mexerica mimosa, mexerica murcot, mexerica<br />

ponkan<br />

Abóbora seca, abobrinha, almeirão, berinjela, cenoura, cebola, cheiro<br />

verde, chuchu chinês, chuchu japonês, couve, jiló, moranga<br />

Hortaliças<br />

Palmito pupunha, palmito real, pepino, pimenta ardida, pimenta<br />

cambuci, pimentão, quiabo<br />

Leguminosas Feijão azuque, feijão carioca, feijão novo, vagem<br />

Cereais Milho verde<br />

Tubérculos e Açafrão, batata-doce, batata-inglesa, batata salsa branca, cará de<br />

raízes<br />

sopa, gengibre, inhame, mandioca<br />

Processados Açúcar mascavo, melado, rapadura com gengibre, rapadura pura<br />

Outros Cana-de-açúcar<br />

FONTE: Cooperafloresta (2011). In: Fonini (2012), elaborado pela autora.<br />

Ademais, assim como afirma Perez-Cassarino (2012), a garantia da<br />

produção de autoconsumo possibilita maiores e melhores condições de troca<br />

com o mercado, definindo uma característica que foi denominada “princípio<br />

da alternatividade”, pelo qual o agricultor ‘joga’ com as condições de mercado<br />

a partir de sua base produtiva, realizando incursões mais ousadas em<br />

momentos em que este lhe é favorável ou retraindo-se em momentos em que<br />

a relação lhe é prejudicial. O autor afirma que mesmo a produção inicialmente<br />

destinada ao autoconsumo poderá ser comercializada caso as condições<br />

sejam favoráveis, apelando, então, para aquisição dos alimentos que lhe<br />

faltem, do contrário, utiliza toda a produção para seu consumo, comercializando<br />

somente aquilo que seja indispensável à garantia de suas necessidades<br />

– 219 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

externamente à unidade produtiva. Dessa forma, a produção para autoconsumo<br />

assume o caráter de ‘valores de uso ou não mercantis’ ou de ‘valor de troca<br />

ou mercantil’ de acordo com o contexto e a realidade do momento. É nesse<br />

sentido que o autoconsumo consolida-se como importante elemento no<br />

alargamento e contração dos espaços de autonomia em que a categoria<br />

agricultura familiar e camponesa se movimenta, uma vez que:<br />

Não existe, atualmente, apenas uma “agricultura de subsistência” assim como<br />

tampouco existe um agricultor familiar totalmente mercantilizado do ponto de<br />

vista social e econômico. O que existe é um agricultor familiar que possui sua<br />

lógica de produção e reprodução social assentada tanto no mercado como na<br />

produção para autoconsumo, como duas esferas integradas dialeticamente e<br />

sobrepostas à unidade de produção e ao grupo doméstico, determinando e<br />

apontando os “caminhos” que a reprodução social do agricultor familiar vai<br />

seguir (GAZOLLA; SCHNEIDER, 2007, p. 104).<br />

De forma positiva, a associação Cooperafloresta permitiu que os<br />

agricultores tivessem como escoar sua produção e assim garantir renda para<br />

sustentar a família. Ademais, as agroflorestas possibilitaram o acesso a uma<br />

variedade de alimentos, principalmente frutas, que têm elevado valor nutricional<br />

e riqueza em vitaminas e minerais essenciais ao organismo. Por outro lado, a<br />

associação influenciou na proibição do uso da queima no plantio – agricultura<br />

tradicional de coivara – o que interferiu sobremaneira na relação das famílias<br />

de agricultores com a roça, reduzindo o plantio de alimentos básicos,<br />

principalmente o arroz.<br />

De um passado de fome e de insegurança alimentar, as famílias do<br />

bairro Terra Seca chegam ao acesso à variedade de alimentos que plantam e<br />

servem nas refeições. Além disso, percebeu-se que o autoconsumo da família<br />

era entendido como mais importante que a comercialização, pois possibilitava<br />

a manutenção sociobiológica dos indivíduos. Essas práticas de produção para<br />

autoconsumo estão associadas também às estratégias de reprodução social.<br />

Assim também aponta o trabalho de Rigon (2005) realizado com um grupo<br />

de agricultores agroecológicos da região centro-sul do Paraná, no qual a<br />

prática da produção para autoconsumo é considerada estratégia tradicional<br />

de reprodução social, econômica e biológica dos agricultores camponeses.<br />

– 220 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Em relação à alimentação, no contexto atual percebem-se algumas<br />

mudanças ainda que a base alimentar continue a mesma. Atualmente as<br />

famílias têm maior influência da sociedade englobante, principalmente por<br />

meio da publicidade e do maior contato com os mercados locais. Por outro<br />

lado, já superaram diversos imperativos ambientais, relacionados ao<br />

relevo e também à legislação ambiental. Entretanto, novas dificuldades<br />

apareceram, bem como formas de enfrentamento e adaptação, entre as<br />

quais se encontra a produção agroflorestal e as mudanças derivadas dela.<br />

Atualmente incorporam-se à alimentação habitual os produtos oriundos das<br />

compras no mercado local, da agrofloresta e das hortas. Vale dizer que<br />

ainda que se altere o acesso a esses alimentos, as práticas de preparo e<br />

pré-preparo estão consolidadas historicamente e permanecem refletindo a<br />

cultura alimentar local.<br />

Ainda que sejam observados alimentos de origem industrializada<br />

inseridos na alimentação habitual dessas famílias, permanecem hábitos e<br />

práticas alimentares tradicionais das comunidades quilombolas agregados<br />

agora de alimentos das agroflorestas. Essas práticas também estão<br />

relacionadas a um maior grau de interação dessas famílias, mediante as<br />

relações de troca e reciprocidade em torno do alimento, seja para plantar,<br />

seja para comer. Culturalmente enraizada, a alimentação das famílias<br />

visitadas tem em sua base os produtos outrora obtidos somente na roça, mas<br />

que atualmente são comprados pela maioria das famílias nos mercados<br />

locais, como é o caso do arroz e da farinha de milho e, em menor proporção,<br />

do feijão.<br />

Em consonância com esse entendimento, Woortmann (1978)<br />

demonstra que tanto pelo autoconsumo quanto pela compra de alimentos em<br />

mercado, o agricultor sobrevive, se adaptando conforme suas necessidades e<br />

também de acordo com a sociedade e os recursos naturais disponíveis.<br />

É apenas em parte que a reprodução da força de trabalho camponesa se realiza<br />

pelo autoconsumo; com a comercialização de seus produtos o camponês<br />

apura uma renda monetária indispensável à sua subsistência, inclusive para a<br />

compra de alimentos (WOORTMANN, 1978, p.5).<br />

É preciso insistir também no fato de que, assim como afirmam Menasche,<br />

Marques e Zanetti (2008), o alimento produzido localmente em geral contrapõe-<br />

– 221 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

se ao comprado, visto que este último causa insegurança devido a sua origem<br />

desconhecida. A produção para o autoconsumo ou “pro gasto”, baseada em<br />

uma diversidade de elementos, e o consumo desses alimentos considerados<br />

mais “fortes” estão associados a um maior grau de segurança para as famílias.<br />

Por tais razões as autoras deflagram um conflito entre a produção para o<br />

consumo e a maior quantidade de alimentos industrializados compondo a<br />

alimentação, transparecendo a relação híbrida da alimentação nesses<br />

grupos, em que o moderno e o antigo, o tradicional e o novo, o da roça e o<br />

industrializado convergem. E essas mudanças e incorporações têm em suas<br />

causas os imperativos ambientais e da sociedade englobante.<br />

Acrescenta-se a isso, assim como afirmam Gazolla e Schneider (2007)<br />

nesta mesma linha, que a produção voltada para “o gasto”, para o consumo<br />

familiar, é relevante na autonomia dos grupos, na sociabilidade comunitária<br />

e familiar e nas trocas de conhecimentos entre as famílias, contribuindo<br />

para o alcance à Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) das famílias e,<br />

acrescenta-se, dos grupos sociais. Por outro lado, não se pode deixar de<br />

considerar a importância da comercialização dos alimentos como fonte de<br />

renda, pois assim como aponta Woortmann (1978), no parágrafo transcrito<br />

há pouco, parte da reprodução desses grupos sociais depende da<br />

comercialização de seus produtos, contribuindo igualmente para o alcance<br />

da SAN do grupo.<br />

A relação entre produção e consumo está bastante equilibrada quando<br />

se avaliam esses dois quesitos no bairro Terra Seca. Atualmente, as famílias<br />

relatam, dentre os alimentos lembrados, que consomem em geral tudo o que<br />

produzem, assim como ficou igualmente demonstrado na totalidade dos<br />

agricultores entrevistados por Perez-Cassarino (2012). Alguns alimentos<br />

como a banana, o abacate, a fruta do conde, o inhame, a laranja, a mexerica,<br />

o limão, a mandioca e a pupunha, produzidos em maior quantidade, são os<br />

mais referenciados como consumidos e vendidos por essas famílias. Já os<br />

alimentos como a alface, o café, o cheiro verde, a couve, o feijão, o milho<br />

verde e o pepino estão entre os alimentos relatados como apenas consumidos<br />

pela maioria das famílias da Terra Seca (Questionário socioeconômico,<br />

PEREZ-CASSARINO, 2012). Aqui se destacam aqueles produtos da horta,<br />

produzidos em pequena quantidade, e aquele de grande importância na<br />

– 222 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

alimentação das famílias, como o feijão e o milho, dificilmente comercializados.<br />

A produção diversificada e voltada para o autoconsumo, como podemos ver<br />

nas agroflorestas, estão diretamente relacionadas à garantia da Segurança<br />

Alimentar e Nutricional e a Soberania Alimentar em nível domiciliar e local.<br />

As frutas são a maior contribuição da agrofloresta, presentes nas refeições<br />

das famílias, principalmente, sob a forma de sucos. Algumas das frutas que<br />

compõem a agrofloresta, no entanto, não são variedades locais. As frutas de<br />

antigamente citadas pelas agricultoras, como jataí, maracujá vermelho,<br />

mexerico, vacupari, entre outras, aparecem pouco nas agroflorestas e em geral<br />

não são utilizadas para comercialização, mas ainda são consumidas. Apesar<br />

disso, as famílias aprenderam a consumir aquelas frutas tidas como novas e<br />

que hoje já se incorporam aos hábitos alimentares, utilizando-as em uma<br />

variedade de preparações. Dentre os sucos destacam-se os sucos de abacate<br />

com limão, suco de Juçara, suco de jaca, suco de pupunha com leite, de cajámirim,<br />

cajá-manga, carambola, entre outros. Por outro lado, sabe-se que o<br />

consumo de frutas é diretamente afetado pela sazonalidade. Conforme se pode<br />

observar, na época de convívio com os agricultores, durante a pesquisa, o<br />

consumo de frutas foi parco, pois não havia produção da maioria das frutas<br />

(últimos meses do ano). Certamente esse perfil deve se alterar nos meses de<br />

maior fartura, porém sua análise não adentrou a pesquisa realizada. Assim<br />

como afirma Brandão (1981), existe uma sequência anual na alimentação,<br />

caracterizada como suficiente nos meses de colheita e nos primeiros meses<br />

subsequentes, mas que se torna progressivamente reduzida.<br />

Ressalva-se a importância do consumo de frutas juntamente com as<br />

verduras que provêm grande quantidade de vitaminas e minerais necessários<br />

à manutenção de funções vitais do organismo. Ademais, as frutas compõem<br />

um variado cardápio de sabores, cores e texturas que aproximam o ser<br />

humano da sua cultura e da natureza. A presença desses alimentos na<br />

alimentação das famílias tem resultado positivo sobre o afastamento de<br />

problemas relacionados à fome oculta, como classificava Josué de Castro as<br />

deficiências em nutrientes encontradas nas diversas regiões do país (CASTRO,<br />

1946/2008).<br />

Em se tratando das estratégias utilizadas na alimentação, que<br />

evidenciam um hibridismo alimentar – entrelaçamento entre o moderno e o<br />

– 223 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

antigo, entre o alimento da roça e o industrializado – percebe-se nessa<br />

comunidade uma mistura entre o que se produz e o que se compra, entre o<br />

alimento fresco e o industrializado, entre comidas novas e outras antigas,<br />

assim como também observou Ramos (2007) em seu trabalho com<br />

agricultores familiares da região litorânea do Rio Grande do Sul. A autora<br />

demonstra que entre as principais mudanças associadas ao rural estudado<br />

relacionados a essa alimentação híbrida estão: o abandono de cultivos e<br />

práticas alimentares; a incorporação de alimentos industrializados; o aumento<br />

da necessidade de compra, entre outros. Apesar disso, relata que a comida<br />

“pro gasto”, voltada para o consumo familiar, ainda é significativa nas famílias<br />

estudadas na manutenção de saberes, no acesso a uma alimentação de<br />

qualidade e na manutenção de práticas de sociabilidade. Esta relação entre<br />

a alimentação comprada e a produção para o gasto igualmente é evidenciada<br />

na pesquisa presente.<br />

Wedig, Martins e Menasche (2008) relatam também haver entre os<br />

agricultores pesquisados por elas algumas transformações no que concerne<br />

às práticas alimentares pautadas na presença cada vez maior de alimentos<br />

industrializados. De acordo com as autoras, no Vale do Taquari (RS) isso está<br />

relacionado à especialização da produção e da criação de animais voltadas<br />

para o mercado e, assim como aparece nesta pesquisa, ao maior acesso à<br />

renda. Além disso, apropriando-se da cultura alimentar brasileira, a indústria<br />

fez dos seus produtos mais baratos e acessíveis, substituindo os alimentos<br />

tradicionais e caseiros. Por outro lado, cumpre destacar que a incorporação<br />

de novos produtos de origem industrial não significa que haja menor interesse<br />

em manter a cultura local, mas está mais próximo da necessidade de<br />

adaptar-se ao novo e às condições e aos anseios específicos de cada local e<br />

de cada grupo, bem como à sociedade englobante.<br />

Incorpora-se a essa discussão, no entendimento de Amon e Menasche<br />

(2008), que ao adotarem o produto industrializado, símbolo de modernidade,<br />

revela-se o desejo de também estabelecer relações de identidade com uma<br />

nova época. Ademais, a incorporação de produtos industrializados não mostra<br />

só o contato com a modernidade, mas também que houve mudança no meio<br />

rural, integrado parcialmente ao meio urbano. Mantêm-se as singularidades<br />

do rural, mas agora adaptado a outro formato. De acordo com Cambuy<br />

– 224 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

(2011), a introdução desses alimentos representa também um distanciamento<br />

simbólico do meio rural, preferido pelos mais novos, mas negado pelos mais<br />

velhos, demonstrando um conflito entre as gerações. Estes alimentos marcam<br />

de igual forma as diferenças entre idades, o status social, além da presença<br />

da influência da mídia e da publicidade em torno dos alimentos.<br />

Mediante a observação, pode-se verificar que algumas famílias<br />

incorporam os alimentos vindos da agrofloresta o que pode ter uma forte<br />

relação com a capacitação realizada pela Cooperafloresta juntamente com<br />

os agricultores. A incorporação dos produtos agroflorestais na alimentação<br />

cotidiana indica uma estratégia de adaptação, pois se tratava de um fator<br />

novo e externo à história do grupo estudado. Nesse sentido, reforça-se que a<br />

produção voltada ao autoconsumo familiar, baseada em práticas que não<br />

utilizam insumos químicos e adaptadas ao ambiente, em geral produzem<br />

uma variedade de alimentos e têm estimulado hábitos alimentares saudáveis.<br />

A entrada da Cooperafloresta na comunidade modificou sobremaneira<br />

a vida destas famílias, influenciando inclusive na permanência de muitas<br />

famílias na terra, visto que não possuíam alternativas para sobrevivência.<br />

A vida dessas famílias de acordo com elas vem melhorando substancialmente<br />

desde a entrada da agrofloresta. O principal fator para essa melhoria foi o<br />

aumento da renda, citado pelos agricultores, o que possibilitou maior acesso<br />

a novos produtos. Cumpre ressaltar que o aparecimento de mercados e a<br />

facilidade de compra de alguns produtos fizeram com que diminuíssem a<br />

produção e o consumo de alguns alimentos e preparações tradicionais.<br />

Compreende-se que a chegada dos mercados no bairro acentuou os processos<br />

de irrupção de estratégias de adaptação, como a incorporação de produtos<br />

externos à cultura local, mas que com o tempo estão sendo utilizados com<br />

maior frequência.<br />

Antes da criação da agrofloresta, muitos desses agricultores praticavam<br />

monoculturas de banana, arroz, milho e feijão e criação de porcos, além de<br />

trabalho assalariado. A ampla maioria dependia de atravessadores para<br />

revender os alimentos produzidos, recebendo o pagamento entre uma a<br />

quatro vezes ao ano. Além disso, dependiam das determinações de preço dos<br />

atravessadores, que por vezes pagavam abaixo do valor de custo e produção,<br />

de acordo com os relatos. O aumento da renda, a maior frequência de<br />

– 225 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

recebimento do pagamento (atualmente é mensal) e a proximidade ao<br />

mercado local influenciaram no acesso aos alimentos industrializados com<br />

maior frequência, sendo hoje alguns preferidos aos alimentos produzidos,<br />

como é o caso do arroz.<br />

Como se sabe, o fator renda tem papel relevante no acesso econômico<br />

aos alimentos e consequentemente nas escolhas alimentares. Assim como foi<br />

possível observar, a agrofloresta diversificou a produção, possibilitando uma<br />

maior segurança em relação à renda. De acordo com Woortmann (1978), a<br />

base da ideologia alimentar para os camponeses é dada pela produção<br />

“comercial-subsistência”, ou seja, uma readaptação ecológica e econômica<br />

que se reflete no plano dos hábitos alimentares. Nesse sentido, as práticas<br />

antigas de produção baseada nas trocas de dia de trabalho ou no trabalho<br />

assalariado conciliado ao serviço na roça e nas agroflorestas, bem como a<br />

existência de circuitos de trocas, mutirões de plantio ou de colheita e as<br />

trocas de alimentos são vistos como estratégias de sobrevivência ou de<br />

adaptação desses grupos sociais que, de acordo com o mesmo autor, são<br />

possíveis de se transformar em estratégia de ascensão, ou também de<br />

emancipação social daquele indivíduo e grupo. Assim, observa-se que na<br />

comunidade estudada a agrofloresta representou um estratégia de adaptação<br />

que, além disso, influenciou em outros fatores da vida desse grupo.<br />

O reflexo da entrada da agrofloresta na comunidade e da atuação da<br />

Cooperafloresta é observado por meio dos seus papéis fundamentais<br />

destacadamente no que concerne à maior autonomia dessas famílias,<br />

principalmente das mulheres ao terem acesso à renda e liderar a produção<br />

agroflorestal no bairro estudado; ao maior acesso a alimentos saudáveis, livres<br />

de agrotóxicos; à proteção do tecido social representada pelo enfrentamento<br />

dado aos imperativos legais que a Cooperafloresta articulou e obteve sucesso;<br />

ao acesso à renda e ao escoamento da produção via canais diferenciados<br />

como feiras e por meio de políticas e programas públicos; à institucionalização<br />

das práticas em comunidade, como os mutirões, reforçando os laços de<br />

solidariedade; ao resgate da relação ser humano e natureza e consequentemente<br />

com os alimentos, entre outras imbricadas com a garantia da Segurança<br />

Alimentar e Nutricional e na consolidação da Soberania Alimentar local.<br />

– 226 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Por fim, cumpre destacar que as relações estabelecidas com a agrofloresta<br />

envolvem não somente a produção e o consumo ou a renda, mas também uma<br />

dimensão de segurança e autonomia como estratégia adaptativa às dificuldades<br />

passadas por essas famílias antigamente, falas presentes no diálogo com as<br />

agricultoras. Uma das agricultoras refere-se à entrada da agrofloresta na<br />

comunidade de uma forma bastante representativa – “Até que agora chegou...<br />

chegou as benção de Deus” (Pesquisa de campo, D. ANA, 2011 In: FONINI,<br />

2012, p.189). Fazer parte da agrofloresta significa uma conversão a um novo<br />

modelo, uma transformação, no qual elementos como a fé, o amor e até mesmo<br />

o divino se misturam e configuram uma nova visão sobre o ambiente e sobre a<br />

vida, fortalecendo e atuando no restabelecimento da relação entre ser humano<br />

e natureza (ver capítulos 4, 5 e 6).<br />

Considerações finais<br />

Dessa forma, no âmbito das discussões sobre os caminhos para o<br />

desenvolvimento sustentável e a busca pela realização plena do direito à<br />

alimentação adequada e saudável, este capítulo buscou dar visibilidade a<br />

alternativas mais sustentáveis ambiental, social e economicamente em<br />

especial no campo da produção e consumo de alimentos, em face do contexto<br />

rural atual de pobreza e esmagamento da agricultura familiar e camponesa<br />

pelo agronegócio.<br />

Até aqui foi possível visualizar a rede complexa em que está envolvida<br />

a alimentação, em que se conectam aspectos culturais, sociais, econômicos,<br />

políticos e ambientais. As formas como as famílias vêm se adaptando a esses<br />

imperativos demonstram a fundamental importância da articulação social,<br />

como na organização em associação que permitiu o acesso a políticas, bem<br />

como da entrada da agrofloresta no bairro, que lhes possibilitou maior acesso<br />

a renda e a alimentos diferenciados.<br />

Na presente pesquisa, a agrofloresta permitiu uma maior diversificação<br />

da produção que teve como consequência o aumento da renda das famílias,<br />

com maior frequência do retorno financeiro da produção, mas também<br />

contribui destacadamente na alimentação das famílias. Ainda que sejam<br />

observados alimentos de origem industrializada inseridos na alimentação<br />

habitual dessas famílias, permanecem hábitos e práticas alimentares<br />

– 227 –


Agrofloresta e alimentação: o alimento como mediador da relação sociedade-ambiente<br />

tradicionais das comunidades quilombolas agregados aos alimentos das<br />

agroflorestas. Essas práticas também estão relacionadas a um maior grau de<br />

interação dessas famílias, por meio das relações de troca e reciprocidade em<br />

torno do alimento, seja para plantar, seja para comer.<br />

Destaca-se ainda neste trabalho o papel da agrofloresta no maior grau<br />

de autonomia das famílias de agricultores, notadamente às mulheres, nas<br />

relações sociais, principalmente na reconstituição do tecido social contribuindo<br />

para a manutenção de práticas tradicionais como os mutirões e no resgate da<br />

relação entre ser humano e natureza, se apresentando como alternativa ao<br />

modelo hegemônico de produção de alimentos com forte relação com a<br />

Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional local. Ademais, a agrofloresta<br />

compreende um maior aprofundamento da relação ser humano e natureza<br />

no que concerne à produção e consumo de alimentos, exemplificada<br />

principalmente pela prática de autoconsumo.<br />

Dessa forma, as agroflorestas vão ao encontro dos pressupostos de<br />

uma agricultura sustentável, com perspectiva de uma maior e melhor relação<br />

do ser humano com a natureza, na qual o alimento e a alimentação aparecem<br />

como elemento de ligação.<br />

A despeito das limitações destas laudas, a pesquisa permitiu avanços<br />

na compreensão da complexidade em torno da alimentação. Com efeito,<br />

diante do contexto atual de crises no campo da alimentação e do meio<br />

ambiente, acredita-se que ela contribui para pensar políticas públicas à<br />

medida que dá voz aos grupos sociais não hegemônicos, principalmente para<br />

a elaboração de políticas sensíveis às demandas sociais, criadas a partir das<br />

necessidades daqueles que de fato farão uso dela. Ademais, como é possível<br />

notar, na sociedade atual a discussão sobre os processos de homogeneização e<br />

perda gradual de aspectos culturais da alimentação está cada vez mais<br />

acentuada. Em face disso, buscam-se alternativas no campo da produção e<br />

consumo de alimentos que priorizem formas sustentáveis e uma maior relação<br />

do ser humano com o ambiente, do qual destacamos o sistema agroflorestal<br />

devido ao grande potencial em fazer frente a essas demandas.<br />

Em virtude dessas considerações, é importante frisar que a inserção da<br />

agroecologia na pauta nacional e nos planos e políticas públicas ambientais<br />

e sociais se faz necessária para alçarmos a produção de alimentos de base<br />

– 228 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

sustentável e promovermos o desenvolvimento da agricultura familiar e<br />

camponesa. Destaca-se nesta arena o papel dos movimentos sociais de luta<br />

pela terra e pelo fim da fome e da miséria em toda a América Latina,<br />

envolvidos nas transformações nos sistemas políticos e na realidade social de<br />

seus países. Espera-se com isso contribuir com o debate sobre as questões<br />

políticas, sociais, econômicas e ambientais que envolvem a alimentação não<br />

só no meio acadêmico, mas também junto aos movimentos sociais, às<br />

comunidades e povos tradicionais, camponeses e agricultores familiares,<br />

construindo uma ponte entre esses grupos e a esfera acadêmica, além de<br />

colaborar com uma mudança de paradigma científico e técnico acerca da<br />

produção e consumo de alimentos.<br />

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– 231 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 9<br />

Agrofloresta, autonomia e projeto de vida:<br />

uma leitura a partir da construção social<br />

dos mercados 1<br />

Julian Perez-Cassarino<br />

Introdução<br />

O desenvolvimento de formas alternativas de agricultura já pode<br />

ser considerado uma realidade nos dias atuais. Se há alguns poucos anos<br />

considerava-se uma ‘mera’ utopia a possibilidade de gerar e implementar<br />

tecnologias de produção que respeitassem as condições dos ecossistemas<br />

nativos e ao mesmo tempo garantissem alimentação de qualidade para os<br />

consumidores e viabilidade econômica para os agricultores, hoje pode-se<br />

dizer que são inúmeras, e em franco processo de expansão, as iniciativas de<br />

promoção da agroecologia.<br />

Muito possivelmente a expressão mais bem acabada do avanço das<br />

técnicas e formas de manejo na produção agroecológica se manifeste por<br />

meio do desenvolvimento de sistemas agroflorestais, em particular dos<br />

sistemas agroflorestais multiestrata sucessionais, que resgatam e atualizam<br />

saberes indígenas e de agricultores, no intuito de possibilitar a produção de<br />

alimentos, madeira e fibras, respeitando as dinâmicas ecológicas dos<br />

ecossistemas florestais, abundantes em nosso território.<br />

O desenvolvimento de sistemas agroflorestais possibilita uma mudança<br />

de paradigma não somente técnico-produtivo, mas também revela novas<br />

1<br />

O presente trabalho foi elaborado com base na tese de doutoramento do autor, intitulada “A<br />

construção social de mecanismos alternativos de mercado no âmbito da Rede Ecovida de<br />

Agroecologia”, que contou com apoio da CAPES, por meio de concessão de bolsa de estágio no<br />

exterior (PDEE), sob o Processo n.º 5387/10-8.<br />

– 233 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

dimensões a serem exploradas, particularmente quando analisados a<br />

partir do enfoque da soberania e segurança alimentar e nutricional (SSAN).<br />

A implantação e difusão dos sistemas agroflorestais incorpora às já<br />

conhecidas e amplamente analisadas neste <strong>livro</strong>, contribuições ambientais<br />

desta forma de manejo, aspectos relativos à melhoria da qualidade e<br />

diversidade de alimentação das famílias agricultoras e consumidoras, bem<br />

como demanda um redesenho das atividades agroalimentares em sua<br />

totalidade, particularmente no que tange aos processos de beneficiamento e<br />

comercialização da produção agroflorestal. Agreguem-se a essas dimensões<br />

aspectos relativos à demanda por processos organizativos diferenciados e o<br />

resgate e valorização da cultura das comunidades envolvidas no processo.<br />

Entende-se que para compreender os reais efeitos do desenvolvimento<br />

dos sistemas agroflorestais, faz-se necessário estender o olhar para o âmbito<br />

do sistema agroalimentar como um todo, de forma a compreender que as<br />

mudanças técnicas e ambientais tornam-se possíveis dentro de um marco de<br />

redesenho das demais atividades dos sistema agroalimentar. O trabalho<br />

desenvolvido pela Cooperafloresta ao longo do tempo, buscou atender a esta<br />

perspectiva, articulando as mudanças técnicas a processos organizativos, a<br />

construção social de mercados, a valorização cultural, ao desenho de<br />

processos diferenciados de beneficiamento dos produtos, entre outras ações,<br />

que têm possibilitado a consolidação da agrofloresta como meio de vida para<br />

dezenas de famílias do Vale do Ribeira.<br />

Nesse sentido, o texto aqui apresentado pretende aprofundar aspectos<br />

relacionados à construção social de mercados no âmbito da Cooperafloresta,<br />

com a finalidade de lançar um olhar sobre as possibilidades desta construção<br />

para gerar melhores condições de promoção da soberania e segurança alimentar<br />

e nutricional e o consequente redesenho de sistemas agroalimentares locais.<br />

Agroecologia, agrofloresta e a construção social dos mercados<br />

O estabelecimento de formas solidárias de comercialização, bem<br />

como a busca de eliminação de intermediários e de relações de exploração<br />

nos mercados, tem sido objeto de ação de muitas das organizações e dos<br />

movimentos do campo agroecológico nos últimos anos. Mais recente tem<br />

sido a construção teórica sobre as questões relacionadas ao papel da ciência<br />

– 234 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

e práticas agroecológicas neste campo, seja da leitura do sistema<br />

agroalimentar em sua totalidade, seja do que podem ser consideradas<br />

como formas alternativas e contrapostas a este sistema na atualidade.<br />

Nesta seção trata-se de abordar estes aspectos, no sentido de agregar as<br />

diferentes abordagens sobre a relação e ação da agroecologia no âmbito da<br />

questão da comercialização dos alimentos ecológicos e da interação dos<br />

atores dos processos com os mercados.<br />

O avanço das grandes redes supermercadistas e seu intenso processo<br />

de concentração corporativa levam a um equivalente poder de definição dos<br />

padrões de produção e consumo, respectivamente, aos agricultores e<br />

consumidores, por dominarem a etapa final do processo alimentar, a<br />

comercialização direta ao consumidor. Dentro dos padrões estabelecidos por<br />

essas grandes redes, os produtos orgânicos ou ecológicos encontram um<br />

espaço a ser ocupado, dado pela perspectiva de acesso a mercados de nicho,<br />

que privilegiam os produtos diferenciados, orientados por uma motivação de<br />

saúde, da denominação de origem, da delicatessen, da artesanalidade,<br />

voltados a atender a um consumidor também diferenciado e, na grande<br />

maioria dos casos, de maior poder aquisitivo (WILKINSON, 2008).<br />

Inserir-se nessa dinâmica ou estender a abordagem crítica proposta<br />

por uma leitura multidimensional da agroecologia resulta em um dos<br />

principais pontos de estrangulamento da práxis agroecológica. Tal processo<br />

se torna ainda mais complexo se considerada a importância para afirmação<br />

e construção da autonomia do campesinato que possui a relação com os<br />

mercados. Da mesma forma, as relações comerciais e a decisão sobre que<br />

tipo de mercado, bem como as formas de inserção nestes, configuram-se<br />

como um espaço de tensão na construção política crítica da proposta da<br />

agroecologia, uma vez que este é o espaço ‹privilegiado› – o espaço do(s)<br />

mercado(s) – de tensionamento entre a prática e o discurso de enfrentamento<br />

e construção de alternativas aos padrões hegemônicos estabelecidos e (ou)<br />

a conveniência com determinadas condições – que muitas vezes também<br />

são oportunidades – de inserção nos mecanismos hegemônicos de<br />

organização da comercialização, notadamente na relação com as grandes<br />

redes supermercadistas e na exportação. Dessa forma, as iniciativas<br />

desenvolvidas pelas organizações no âmbito da agroecologia “deparam-se<br />

– 235 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

no seu dia a dia, com uma sociedade intensamente colonizada pelas<br />

relações de mercado capitalistas, ainda que outras lógicas econômicas (da<br />

partilha, da reciprocidade) não tenham deixado de existir” (SCHMITT;<br />

TYGEL, 2009, p. 118).<br />

Nesse sentido, “os limites da produção ecológica como alternativa para<br />

o meio rural aparecem em direta conexão com os canais de comercialização<br />

dominados por grandes corporações onde dominam critérios de rentabilidade<br />

econômica ficando a atenção das necessidades básicas subordinada ao<br />

mecanismo de preços” (SOLER; CALLE, 2010, p. 263, tradução livre). Essa<br />

contradição é praticamente constante no debate interno ao movimento<br />

agroecológico, embora também se encontra presente nos debates teóricos<br />

tanto do campo da agroecologia como da agricultura familiar e camponesa<br />

como um todo.<br />

O reconhecimento das limitações de uma participação nos mercados<br />

formalmente estabelecidos como meio para comercialização da produção<br />

orgânica (supermercados e exportação) é bastante evidente e, em certo ponto<br />

consensual, nos calorosos debates em torno da ciência e prática agroecológica.<br />

No entanto, a abertura dada pelas grandes redes supermercadistas à<br />

comercialização de orgânicos, bem como a demanda para exportação de<br />

produtos orgânicos no sentido Sul-Norte global, configura-se como<br />

considerável espaço de viabilização econômica das diversas iniciativas de<br />

produção ecológica, as quais se multiplicam a passos muito mais tímidos do<br />

que a demanda do mercado (SCHMITT; GUIMARÃES, 2008; SOLER, 2009).<br />

Não obstante, são conhecidos os limites dos fornecedores,<br />

particularmente da agricultura familiar e camponesa, nos processos de<br />

negociação com estas grandes redes ou intermediários internacionais, que<br />

formam parte ou configuram-se em “impérios alimentares” (PLOEG, 2008),<br />

cuja lógica e dinâmica sobrepassa e subjuga as estruturas sociais e econômicas<br />

a eles adjacentes. Alguns dos limites dessa inserção nos mecanismos<br />

estabelecidos de mercado são apontados de forma clara por Soler, abordando<br />

especificamente as possibilidades da agricultura familiar e camponesa no<br />

mercado de orgânicos nestes espaços:<br />

Em geral, as explorações familiares com produção limitada se encontram<br />

neste modelo em uma situação de debilidade devido à sua incapacidade<br />

– 236 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

de produzir os grandes volumes demandados pelas grandes superfícies e de<br />

responder de forma flexível às mudanças na demanda. (…) Ademais, resulta<br />

previsível que a crescente demanda de produtos ecológicos se traduza no<br />

interesse por parte das grandes empresas de distribuição alimentar em abrir<br />

linhas brancas [marcas próprias] de produtos ecológicos. (…) Por outra parte,<br />

nesse modelo a agricultura ecológica é concebida essencialmente como uma<br />

atividade fornecedora de produtos frescos de qualidade e como fornecedora<br />

de insumos para uma nova indústria transformadora de alimentos ecológicos.<br />

(…) O poder de negociação destas multinacionais alimentares unido à sua<br />

capacidade de fornecer grandes volumes de forma estável e flexível coloca em<br />

um lugar subordinado as explorações agrárias e industriais locais de tamanho<br />

médio do setor da agricultura ecológica (SOLER, 2009, p. 26, tradução livre).<br />

Muito além de querer atribuir à agroecologia o papel ou mesmo a<br />

condição de ser o elemento de reversão dessa dinâmica, o que se busca<br />

salientar é que a reprodução desta realidade significa a extensão de seus efeitos<br />

no dia a dia das comunidades rurais. Dessa forma, “uma agricultura ecológica<br />

orientada à distribuição comercial massiva e vinculada a uma indústria<br />

concentrada e localizada preferencialmente nos países industrializados<br />

pretenderá manter a atual especialização agrária em grande propriedades<br />

onde predominam os grandes cultivos” (SOLER, 2009, p. 27, tradução livre).<br />

Nesse sentido, a construção teórica em torno da agroecologia, bem<br />

como o discurso das organizações que a promovem, ganha o âmbito do<br />

debate do sistema agroalimentar, colocando em questão a necessidade de,<br />

ao lado do desenvolvimento de formas ambientalmente sustentáveis de<br />

produção, desenvolver mecanismos diferenciados de comercialização, uma<br />

vez que “o objetivo da Agroecologia não é, simplesmente, contribuir para<br />

uma produção mais sustentável, dentro dos mecanismos do desenvolvimento<br />

limpo, ou para ocupar nichos de mercado de produtos «verdes» dentro das<br />

políticas da globalização econômico-ecológica” (LEFF, 2002, p. 44).<br />

A proposta passa então a centrar-se na busca de formas alternativas<br />

de comercialização dos produtos, que objetivam, por um lado, permitir<br />

melhores condições de construção de mercados por parte dos agricultores<br />

e, por outro, possibilitar maiores condições de acesso aos alimentos<br />

ecológicos por parte dos consumidores, bem como vislumbrar a construção<br />

de processos contra-hegemônicos aos padrões da globalização capitalista,<br />

– 237 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

especificamente dentro do sistema agroalimentar (MEIRELLES, 2004;<br />

PEREZ-CASSARINO, 2004; ANA, 2006; REDE ECOVIDA, 2007; SCHMITT;<br />

GUIMARÃES, 2008; SEVILLA-GUZMÁN; SOLER, 2010). Procura-se, então,<br />

no âmbito da ciência e da práxis agroecológica, construir um arcabouço<br />

teórico e uma vivência prática e cotidiana de iniciativas que configurem<br />

mecanismos alternativos de mercado. Tais iniciativas consolidam processos<br />

diferenciados de desenvolvimento rural, baseados na construção de sistemas<br />

agroalimentares alternativos em escala local, dessa forma:<br />

a práxis socioeconômica da Agroecologia avança na construção de sistemas<br />

agroalimentares alternativos que se caracterizam por reequilibrar as relações<br />

de poder entre produção e consumo, aproximando aos agricultores e criadores<br />

aos espaços de consumo estabelecendo relações cooperativas equilibradas<br />

e negociadas com os consumidores sobre bases comuns que transcendem<br />

as exclusivamente mercantis, atualizando assim valores historicamente<br />

vinculados ao campesinato na construção de sociedades mais justas e<br />

sustentáveis no contexto atual da globalização (SEVILLA-GUZMÁN; SOLER,<br />

2010, p. 205, tradução livre).<br />

No âmbito específico da Cooperafloresta, esta articula-se à Rede<br />

Ecovida de Agroecologia desde o seu surgimento. Nesse espaço, o debate<br />

em torno das formas de comercialização está nas origens de seu processo<br />

de formação, bem como na construção de seus princípios e objetivos. Em<br />

grande parte, a demanda concreta em torno da necessidade de certificação<br />

dos produtos – por exigências legais ou de mercado – que consolidou a<br />

metodologia e proposta política diferenciadas que a Rede propôs, mediante<br />

a certificação participativa, origina-se na construção de formas alternativas<br />

de comercialização dos produtos, notadamente por meio das feiras ecológicas<br />

(REDE ECOVIDA, 2007). Já quando da sua constituição como rede, a Ecovida<br />

estabelecia entre seus princípios, como elemento estrutural da proposta<br />

agroecológica, “trabalhar na construção do comércio justo e solidário”, tendo<br />

como objetivo “aproximar, de forma solidária, agricultores e consumidores”<br />

(REDE ECOVIDA, 2000, p. 4), finalidades às quais, a Cooperafloresta aderiu<br />

e se propôs a construir em sua territorialidade.<br />

Assume-se, então, o entendimento de que “a Rede se pauta pelo incentivo<br />

à agroecologia por seus méritos próprios (sustentabilidade, protagonismo do<br />

agricultor etc.) e não pela existência de um mercado diferenciado” (REDE<br />

– 238 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

ECOVIDA, 2004, p. 16). Nessa perspectiva, os critérios propostos no âmbito<br />

da comercialização centravam-se nos seguintes objetivos:<br />

- O acesso de toda a população aos produtos ecológicos, independente do<br />

nível de renda. Para isto os produtos devem ser ofertados a preços que sejam<br />

justos ao produtor e acessíveis aos consumidores;<br />

- O estabelecimento de relações mais próximas entre agricultores e<br />

consumidores através de formas de comercialização que priorizem a venda<br />

direta e/ou que reduzam ao máximo as intermediações;<br />

- A valorização e priorização no atendimento ao mercado interno (ibid).<br />

A tradução concreta dessa construção se dá no estabelecimento<br />

do que alguns autores definem como ‘circuitos ou canais curtos de<br />

comercialização’, focados em estratégias variadas de aproximação agricultorconsumidor,<br />

bem como tendo a clara prioridade de abastecimento local e<br />

regional, fundamentada na economia energética, na redução de deslocamentos,<br />

na valorização da produção local e na compreensão da sazonalidade produtiva<br />

regional (MEIRELLES, 2004; PEREZ-CASSARINO, 2004; SOLER; CALLE, 2010).<br />

Da mesma forma, um dos aspectos que diferencia a concepção do<br />

desenvolvimento de circuitos curtos de comercialização, em relação às<br />

estratégias de nichos de mercado de produtos orgânicos, é a busca por<br />

democratizar e popularizar, enfim, universalizar o acesso aos alimentos<br />

ecológicos. Dentro dessa perspectiva, compreende-se como aspecto<br />

fundamental o estabelecimento de novas relações de mercado, que não<br />

passam somente por criar as ‹estruturas› de aproximação entre produtores e<br />

consumidores, mas também o espaço social de diálogo, intercâmbio de<br />

conhecimentos, enfim de sociabilidade entre os atores envolvidos, no caso,<br />

agricultores e consumidores, em que a transparência, a cooperação e a<br />

partilha de benefícios estejam presentes como elemento estruturador da<br />

construção dos mercados em uma perspectiva agroecológica (MEIRELLES,<br />

2004; PEREZ-CASSARINO, 2004; ANA, 2006; SCHMITT; TYGEL, 2009).<br />

Assim, faz-se necessário refazer e atualizar técnicas, processos e mesmo<br />

relações e valores, com vistas a que o tradicional dialogue com o moderno,<br />

sem que este diálogo signifique um processo de exclusão. Nesse sentido:<br />

O movimento da agricultura agroecológica ganha força precisamente porque<br />

promove standars que oferecem uma alternativa sistêmica aos standars<br />

– 239 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

dominantes, e que são, ao mesmo tempo, afinadas com alguns dos valores<br />

fundamentais que motivam estes novos standars. (WILKINSON, 2008, p.<br />

135, grifos do autor).<br />

A abordagem de Wilkinson reflete a dinâmica observada no âmbito<br />

das inciativas do campo agroecológico. De fato, muitas das técnicas e dos<br />

procedimentos desenvolvidos a partir da prática agroecológica têm sido<br />

institucionalizados e(ou) aceitos socialmente pelos consumidores. O que se<br />

considera relevante destacar é que o estabelecimentos de novos padrões é<br />

resultado da construção social da agroecologia, a qual inclui a questão dos<br />

mercados diferenciados. Tal dinâmica reflete o caráter multidimensional da<br />

agroecologia, uma vez que técnicas, processos sociais e articulação política<br />

se integram no sentido de consolidar uma estratégia alternativa de<br />

desenvolvimento e organização dos sistemas agroalimentares.<br />

A incorporação do debate em torno das formas de comercialização da<br />

produção ecológica vêm assumindo força e importância no âmbito da<br />

agroecologia, seja no campo da ciência, seja entre os movimentos sociais que<br />

a desenvolvem. Nesse espaço, os debates têm evoluído para a incorporação<br />

no discurso e na prática diária de propostas concretas de formas alternativas<br />

de comercialização ao debate historicamente construído de crítica ao mercado<br />

como forma de regulação e princípio orientador da sociedade. Da mesma<br />

maneira, a crítica em torno da mercantilização do alimento e dos recursos<br />

naturais passa a motivar a construção de mecanismos de mercado, que<br />

possam se caracterizar como alternativas a esse processo de mercantilização.<br />

Assim, começam a tomar corpo as discussões em torno de um tema<br />

‹espinhoso› tanto para movimento sociais quanto para a academia, dado que<br />

a contradição entre a crítica ao capitalismo e a necessidade de acessar o<br />

mercado passa a ser tratada nesses âmbitos como um tema importante<br />

ao desenvolvimento das iniciativas agroecológicas. Começa-se a soltar as<br />

amarras (políticas, ideológicas, culturais...) que asfixiavam este debate e<br />

passa-se a expor a questão como tema a ser enfrentado e a partir do qual<br />

urgem reflexões e boas análises das ações concretas em andamento a campo.<br />

Conforme destacam Schmitt e Tygel (2009, p. 118), analisando as<br />

aproximações entre agroecologia e economia solidária:<br />

– 240 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

um elemento comum a essas duas visões é a percepção de que o dilema<br />

dos mercados não envolve apenas uma questão de ‹produtos›, mas, sim, de<br />

‹processos›, ou seja, o que está em jogo são as relações sociais que perpassam<br />

a produção, o processamento e a distribuição dos produtos [...].<br />

Longe de estabelecer consensos, o que tem se produzido em torno do<br />

debate dos mercados na agroecologia caracteriza-se ainda como aproximações<br />

ao tema, carregadas das contradições inerentes a esta problemática, dada a<br />

centralidade do processo de acumulação capitalista, bem como da<br />

mercantilização de bens, valores e serviços, na ordem hegemônica atual, à<br />

qual a proposta da agroecologia quer se apresentar como um de seus<br />

contrapontos. Tais contradições se refletem no que se considera uma certa<br />

‹timidez› com que se aborda o tema e nas próprias dinâmicas sociais em que<br />

a prática agroecológica se configura, desvelando concepções políticas e<br />

ideológicas, interesses comuns e particulares e perspectivas mais coletivas e<br />

integradoras e outras voltadas à viabilização de espaços ou setores específicos<br />

da população. Conforme destacam Schmitt e Guimarães (2008, p. 8):<br />

É importante ter presente que as percepções em relação à forma como essas<br />

estratégias de resistência se articulam, ou não, com um movimento mais<br />

amplo de construção de alternativas econômicas emancipadoras em diferentes<br />

escalas – regional, nacional e global – variam bastante. É preciso lembrar,<br />

entretanto, que a prática muitas vezes aproxima aqueles que acreditam na<br />

integração competitiva da produção ecológica ao mercado global e os que<br />

defendem uma transformação mais radical na organização atual do sistema<br />

agroalimentar. Ao mesmo tempo, é nesse contexto que se revelam os inúmeros<br />

conflitos e tensionamentos presentes na construção de formas alternativas de<br />

produção e comercialização que buscam se contrapor ao modelo dominante.<br />

Neste ponto, faz-se relevante a compreensão de que novos espaços e<br />

formatos devem ser constituídos, com as mais diferentes perspectivas e<br />

dentro das mais diversas realidades. O que aqui se considera é que mais<br />

do que simplesmente ‹acessar› o mercado – conforme abordado na seção<br />

anterior – deve-se pensar no que em outro momento denominamos<br />

‹desenvolver› mercados (PEREZ-CASSARINO, 2004). Trata-se do que Maluf<br />

(2002, 2004) propõe como ‹construir› novos mercados, que sejam adequados<br />

à realidade e condições sociais, econômicas, culturais e ambientais deste<br />

– 241 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

público. Conforme destacado por Sabourin (2009), torna-se necessário,<br />

nessa perspectiva, identificar os princípios que conduzem as relações de<br />

mercado, de que maneira, os valores humanos da reciprocidade e solidariedade<br />

se formam e passam a definir as práticas de mercado socialmente construídas.<br />

O desenvolvimento da prática dos sistemas agroflorestais, particularmente<br />

os sistemas agroflorestais multiestrata sucessionais, favorece o surgimento e<br />

aprofunda a necessidade da construção de mecanismos alternativos de<br />

mercados. Conforme descrito por Steenbock et al. nesta publicação, o plantio<br />

em sistemas agroflorestais pressupõe uma diversificação dos sistemas de<br />

produção, elemento afinado ao perfil dos chamados circuitos curtos. Da mesma<br />

forma, a sazonalidade da produção, a introdução de novas espécies demandam<br />

uma maior aproximação entre agricultores e consumidores, de forma a<br />

possibilitar uma maior compreensão dos processos produtivos e articular<br />

formatos sociais que possibilitem o resgate e a revalorização de alimentos que<br />

não se conhecem ou se haviam perdido ou esquecido no âmbito da cultura<br />

alimentar de agricultores e consumidores, aspecto bastante destacado no<br />

trabalho de Fonini e Lima neste <strong>livro</strong>, no que tange às mudanças de perfil<br />

alimentar dos agricultores agroflorestais da Cooperafloresta.<br />

Dessa forma, partindo da compreensão de que a implantação da<br />

agrofloresta caracteriza-se como estratégia integrante da ciência e práxis<br />

agroecológica, entende-se que a construção de mecanismos alternativos de<br />

mercados se configura como elemento inerente ao desenvolvimento dos<br />

sistemas agroflorestais. Nesse sentido, as formas diferenciadas de manejo<br />

dos sistemas de produção encontram-se intrinsecamente ligadas aos<br />

processos organizativos dos agricultores e ao perfil dos mercados a serem<br />

construídos, estabelecendo uma relação de interdependência entre esses<br />

elementos que encerram um corpo de ações voltadas à promoção da soberania<br />

e segurança alimentar e nutricional, tanto das famílias agricultoras quanto<br />

das consumidoras.<br />

Assim, a delimitação de um enfoque de construção de mercados em<br />

uma perspectiva agroecológica, dentro da qual a agrofloresta se posiciona,<br />

demanda um grande acúmulo em torno da análise dos mecanismos de<br />

mercado construídos e as relações que se dão em seu âmbito, a fim de<br />

possibilitar a elaboração de um corpo teórico e prático que permita estabelecer<br />

diretrizes sobre o que e como seria essa construção. Conforme abordado,<br />

– 242 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

esse debate é particularmente relevante no que se refere ao desenvolvimento<br />

das iniciativas agroecológicas como proposta alternativa aos padrões<br />

hegemônicos de organização dos sistema agroalimentares. Sobre isso, Baque<br />

(2011, p. 35) alerta e indaga:<br />

a integração, ou não, dos valores sociais e ecológicos no centro das<br />

preocupações dos produtores, intermediários e consumidores dos orgânicos<br />

determinará seu futuro. Tornar-se-á uma simples face do mercado, submissa<br />

aos únicos interesses do liberalismo econômico? Ou será ainda mensageira de<br />

uma alternativa a esse liberalismo?<br />

A questão está lançada e o desafio passa a se configurar em torno<br />

dos subsídios conceituais a serem formulados e da inovação na construção e<br />

no fortalecimento das iniciativas em andamento. Nesse sentido, algumas<br />

das noções a serem aprofundadas, no intuito de fornecer fundamentos<br />

ao estabelecimento de mecanismos alternativos de mercado, integram a<br />

perspectiva da construção de mercados ao marco mais amplo da constituição<br />

de sistemas agroalimentares alternativos. O aprofundamento das noções de<br />

soberania e segurança alimentar e nutricional amplia este debate, orientando<br />

a construção de mercados pela lógica do abastecimento e da garantia do<br />

direito humano à alimentação, base conceitual a partir da qual se realizará, nas<br />

seções a seguir, a análise dos mecanismos de mercado construídos no âmbito<br />

da Cooprefaloresta. Para tanto, inicialmente serão apresentadas algumas<br />

informações no que tange ao perfil das famílias que compõem a organização.<br />

A Cooperafloresta e os agricultores agroflorestais:<br />

perfil socioeconômico e alimentar das famílias<br />

A constituição da Cooperafloresta como organização, seu histórico e<br />

formas de organização e funcionamento já puderam ser observados nos<br />

capítulos anteriores destes <strong>livro</strong>. Parte-se, aqui, do pressuposto comum no<br />

qual se apoiam os textos desta publicação, de analisar a dinâmica de<br />

implantação dos sistemas agroflorestais na Cooperafloresta, em suas mais<br />

diversas dimensões. Estas aprofundadas leituras foram motivadas pelo<br />

caráter inovador da proposta em construção e pela sua contemporaneidade<br />

no que se refere à necessidade de se buscar formas diferenciadas de<br />

organizar a produção, o beneficiamento e a comercialização de alimentos<br />

em sociedades que vivem em tempos de crises (ambiental, alimentar,<br />

– 243 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

econômica, de representatividade etc.). Seu valor reside, entre outros<br />

aspectos, na possibilidade de indicar possíveis caminhos de superação a essas<br />

crises – em maior ou menor intensidade de acordo com a problemática – e<br />

para as quais faz-se necessário que a academia se debruce, de forma crítica,<br />

sobre seus processos e procedimentos, de forma a captar os elementos que a<br />

constituem e possibilitar sua difusão e adequação a outras realidades.<br />

Partindo do pressuposto de uma prévia compreensão do(a) leitor(a)<br />

sobre o que é e como se organizar e atua a Cooperafloresta, passa-se a<br />

seguir a apresentar algumas informações sobre o perfil das famílias que<br />

constituem a organização, aspectos considerados fundamentais para a<br />

compreensão dos processos sociais, econômicos, políticos, alimentares e<br />

ambientais que sustentam o perfil de construção de mercados desenvolvido<br />

pela Cooperafloresta ao longo do tempo.<br />

As informações apresentadas a seguir são oriundas da pesquisa<br />

realizada no âmbito da tese de doutorado do autor (PEREZ-CASSARINO,<br />

2012), que contou com a aplicação de 72 questionários nas 110 famílias<br />

que compõem a Cooperafloresta. Os questionários estavam organizados em<br />

três grandes seções. Uma primeira de descrição do perfil socioeconômico das<br />

famílias, uma segunda com dados sobre a comercialização, seja ela antes do<br />

trabalho com a agrofloresta e depois deste, e uma terceira seção que tratava<br />

de aspectos relativos à autonomia das famílias e seu projeto de vida. Os<br />

dados coletados forma basicamente de caráter quantitativo, sendo que<br />

complementam a metodologia de trabalho deste artigo – e da tese a partir da<br />

qual se origina – a realização de entrevistas semiestruturadas com gestores<br />

do processo de comercialização, de entrevistas coletivas em grupos focais<br />

com agricultores e de observação participante, realizada durante eventos e<br />

atividades da organização. O número de questionários aplicados é menor que<br />

o total de famílias devido a que algumas famílias consideradas como sócias<br />

na Cooperafloresta trabalham em áreas comuns e em conjunto, o que, para<br />

o perfil do questionário, convinha obter as respostas de forma conjunta.<br />

De uma forma geral, os dados permitiram observar que, conforme<br />

prevalece na região, há um predomínio de minifúndios entre as famílias da<br />

Cooperafloresta, sendo que mais de 70% destas possuem, no máximo 10<br />

hectares de área, conforme pode ser observado no Gráfico 1. No que tange<br />

à situação fundiária das unidades familiares, o Gráfico 2 demonstra que<br />

– 244 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

predominam situações de informalidade, ou seja, menos de 30% das<br />

famílias possuem área regularizadas. Nos demais casos, prevalecem as<br />

áreas cedidas por familiares, próprias sem regularizar e arrendadas. Esta<br />

situação retrata o perfil de ocupação da Vale do Ribeira, bem como a<br />

situação de precariedade vivida pelos agricultores familiares, pela<br />

instabilidade das situações de posse e regularização de terras, fator<br />

fundamental à autonomia da agricultura familiar.<br />

Gráfico 1: Distribuição percentual das famílias por<br />

faixa de área total dos estabelecimentos.<br />

Fonte: Perez-Cassarino (2012).<br />

Gráfico 2: Distribuição percentual das famílias por<br />

situação legal dos estabelecimentos.<br />

Fonte: Perez-Cassarino (2012).<br />

– 245 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

Particular destaque pode ser feito no que se refere ao elemento<br />

identidade dos agricultores que pertencem à Cooperafloresta. Na sua grande<br />

maioria, quando perguntados sobre qual a sua identidade ou como você se<br />

define, os agricultores revelam uma identidade não só com a condição de<br />

agricultor familiar como também de agricultores agroflorestais ou ecologistas,<br />

sinalizando para a compreensão e identificação com a proposta levada a<br />

cabo pela Associação. Mais de 35% do(a)s agricultore(a)s entrevistados<br />

identificam-se como agricultores agroflorestais, a segunda identidade mais<br />

informada é a de agricultor ecologista com cerca de 23% e de quilombolas<br />

por cerca de 20% do(a)s agricultore(a)s, conforme pode ser observado no<br />

Gráfico 3.<br />

Gráfico 3: Distribuição percentual dos agricultores por identidades.<br />

Fonte: Perez-Cassarino (2012).<br />

No que tange ao aspecto renda, os dados já evidenciam uma melhora<br />

nos números no âmbito das famílias da Cooperafloresta. Tomando como<br />

referência estudo realizado pelo IPARDES (2007) no vale do Ribeira-PR, nos<br />

dois municípios de abrangência da Cooperafloresta – Adrianópolis e Bocaiúva<br />

do Sul –, o PIB dos municípios dividido pela população atinge valores próximos<br />

a R$ 450,00/mês. Desconsiderando o predomínio de população empobrecida<br />

no campo, o que reduziria ainda mais esta média, observa-se que, no âmbito<br />

da Cooperafloresta, as famílias apresentam renda mensal acima desta média<br />

geral, estando cerca de 36% das famílias entre R$ 301,00 e R$ 550,00<br />

– 246 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

mensais, em torno de 40% entre R$ 551,00 e R$ 1.110,00 e cerca de<br />

um quinto das famílias com renda mensal acima de R$ 1600,00/mês,<br />

evidenciando importantes incrementos entre as famílias ecologistas, conforme<br />

se pode observar no Gráfico 4. Esta análise pode ser complementada com a<br />

leitura feita do Gráfico 5; segundo as informações do gráfico, mais de 60%<br />

das famílias da associação têm na produção ecológica a sua principal fonte<br />

de renda, evidenciando a efetividade e viabilidade da proposta de implantação<br />

dos sistemas agroflorestais.<br />

Gráfico 4: Distribuição percentual das famílias por<br />

faixa de renda bruta mensal.<br />

Fonte: Perez-Cassarino (2012).<br />

Gráfico 5: Distribuição percentual das famílias por<br />

principal fonte de renda dos estabelecimentos.<br />

Fonte: Perez-Cassarino (2012).<br />

– 247 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

Os agricultores foram questionados, ainda, sobre sua projeção em<br />

relação ao que considera ser a economia gerada pela produção para o<br />

autoconsumo, fortalecida por meio da implantação dos sistemas agroflorestais.<br />

Cerca de 39% das famílias informar economizar até R$ 180,00/mês e outros<br />

35% afirmam economizar entre R$ 181,00 e R$ 300,00/mês com o que se<br />

deixa de adquirir fora da propriedade para a alimentação. Por outro lado,<br />

72% das famílias afirmam gastar entre R$ 200,00 a R$ 400,00 com a<br />

compra de alimentos. Dentre estes, predominam o sal, farinha de trigo, arroz,<br />

óleo, com mais de 95% das famílias, seguidos pela carne (85%), café (78%),<br />

panifícios (72%), sucos e enlatados (cerca de 65%).<br />

Segundo a pesquisa realizada, os agricultores da Cooperafloresta<br />

cultivam em média 17,7 tipos de produtos diferentes, totalizando na<br />

associação, mais de 114 cultivos diferentes. Da produção agrícola e florestal<br />

das famílias, cerca de 98% é cultivada de forma ecológica, sendo que algo<br />

em torno de 30% da produção é destinada somente ao consumo, praticamente<br />

70% é destinada ao consumo e alimentação e menos de 1% possui finalidade<br />

única para comercialização.<br />

Tais informações revelam uma significativa influência da estratégia<br />

de implantação e desenvolvimento das agroflorestas no comportamento<br />

alimentar, geração de renda e, consequentemente, na qualidade de vida das<br />

famílias. Considerando a base produtiva da região, centrada em lavouras de<br />

subsistência de milho, feijão e mandioca, além da presença da criação de<br />

gado de forma extensiva, observa-se grande diversidade de produtos<br />

cultivados pelos agricultores agroflorestais (17,7 produtos diferentes). De tal<br />

informação pode-se considerar uma provável melhoria de hábitos alimentares,<br />

conforme destacado por Fonini e Lima neste <strong>livro</strong>. Essa melhoria na qualidade<br />

alimentar também pode ser evidenciada pelo perfil de produtos adquiridos de<br />

fora das unidades familiares, sendo, na sua grande maioria, alimentos que<br />

não são possíveis de produzir nas condições ambientais da região.<br />

Enfim, dos dados levantados pela pesquisa realizada pode-se concluir<br />

que a inserção na dinâmica social e econômica da Cooperafloresta e,<br />

consequentemente, a implantação dos sistemas agroflorestais têm levado a<br />

importantes mudanças na geração de renda e nos hábitos e qualidade alimentar<br />

das famílias, em grande parte, em função da mudança da matriz produtiva e<br />

– 248 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

das formas de manejo propiciadas pelos sistemas agroflorestais. A análise que<br />

se pretende realizar daqui em diante remete às estratégias econômicas e sociais<br />

desenvolvidas pela Cooperafloresta em função das mudanças depreendidas do<br />

desenvolvimento dos sistemas agroflorestais nas unidades familiares de<br />

produção e vida. O enfoque a partir do qual se analisará esta realidade parte<br />

da leitura das estratégias de mercado construídas pela associação, de forma a<br />

que estas viessem responder à realidade socioambiental das famílias que<br />

integram a organização, desenvolvendo, a partir desta análise, uma leitura<br />

desta construção de mercados sob a óptica da promoção da soberania e<br />

segurança alimentar e nutricional.<br />

Caracterização dos mecanismos de mercado e formas de gestão<br />

da Cooperafloresta<br />

A comercialização feita pela Cooperafloresta é toda coletiva, ou seja, as<br />

famílias comercializam seus produtos via Associação, que entrega os produtos<br />

aos compradores como sendo da organização, sem individualizar os produtos.<br />

No que tange aos canais de comercialização, os principais mecanismos são<br />

as feiras ecológicas de Curitiba e o Programa de Aquisição de Alimentos<br />

(PAA), 2 que na sua grande maioria, também atinge entidades beneficentes de<br />

Curitiba. Para além dessas duas inciativas, há pequenas vendas no varejo,<br />

em lojas especializadas e distribuidores de produtos orgânicos, bem como no<br />

Circuito Sul (Figura 1).<br />

2<br />

O Programa de aquisição de alimentos (PAA) foi criado em 2003 dentro da estratégia Fome Zero<br />

do Governo Lula, mediante uma proposta do CONSEA. Executado pela Companhia Nacional de<br />

Abastecimento (CONAB), Estados e municípios, encontra-se voltado para a aquisição de produtos<br />

oriundos da agricultura familiar, assentados de reforma agrária e comunidades tradicionais. Os<br />

alimentos adquiridos são distribuídos a entidades beneficentes para o atendimento de pessoas<br />

em situação de insegurança alimentar ou utilizados para formação de estoques. O programa<br />

prevê a aquisição de um valor determinado por família, no ano de 2011 esse valor era de R$<br />

4.500/família/ano. O programa prevê o pagamento de um valor 30% maior sobre os preços de<br />

referência do programa para alimentos orgânicos (CONAB, 2009). O programa possui diversas<br />

linhas, na Rede Ecovida a linha mais acessada é a de ‘Doação Simultânea’, ou seja, os grupos de<br />

agricultores fazem as entregas diretamente às entidades beneficiárias.<br />

– 249 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

Figura 1: Fluxograma simplificado de comercialização da Cooperafloresta.<br />

Fonte: Perez-Cassarino (2012).<br />

O principal produto de comercialização da Cooperafloresta é a banana,<br />

no entanto, ao trabalhar com sistemas agroflorestais diversificados, há uma<br />

base extensa de produtos comercializados pela Associação. À exceção de<br />

hortaliças, que pela distância dos agricultores de Curitiba não são possíveis<br />

de comercializar com qualidade, os agricultores produzem frutas, tubérculos,<br />

palmitos, verduras e processam bananada e goiabada, além do mel.<br />

A Associação possui um salão de embalagem e um dos agricultores uma<br />

microagroindústria para processamento da bananada e goiabada, além de uma<br />

casa para processamento do mel. No momento está em fase final de montagem<br />

uma agroindústria da Associação, que ampliará a gama de produtos a serem<br />

processados (polpas, sorvetes, hortaliças minimamente processadas, doces e<br />

conservas) e comportará também a maturação da banana e a classificação<br />

dos produtos.<br />

No que tange às feiras, a Cooperafloresta participa de quatro feiras<br />

orgânicas em Curitiba. Tais feiras já se encontram institucionalizadas, sendo<br />

– 250 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

administradas pela prefeitura do município. A Associação participa com<br />

bancas em duas feiras aos sábados e duas às quartas-feiras. Para além das<br />

feiras orgânicas, a partir do segundo semestre de 2011, a Associação realizou<br />

durante o final de 2010 e início de 2011 um processo de articulação com<br />

organizações de economia popular solidária de Curitiba, principalmente<br />

padarias comunitárias, a fim de pensar estratégias comuns de comercialização.<br />

A partir desse trabalho, duas feiras foram organizadas em parceria em bairros<br />

da periferia de Curitiba (Sítio Cercado) e na região metropolitana, no município<br />

de Almirante Tamandaré, no Jardim Roma.<br />

As feiras representaram uma importante inovação em termos de<br />

comercialização, por articular grupos urbanos de economias solidária e<br />

agricultores ecologistas. No caso da feira do Sítio Cercado, foram comercializados<br />

produtos ecológicos da Cooperafloresta, de uma horta comunitária do bairro e<br />

pães convencionais da padaria comunitária do bairro, funcionando aos sábados.<br />

Em Almirante Tamandaré as famílias das associação pegavam produtos para<br />

comercializar durante a semana em atividades na sede da associação,<br />

juntamente com os produtos das padarias e a organização de bazares de roupas<br />

usadas (Figura 2). No momento, tanto os grupos quanto a Cooperafloresta<br />

parecem estar revendo o formato de comercialização, visando ampliar os<br />

volumes de comercialização, a proposta é de articular grupos urbanos de base<br />

para realização de compras coletivas, processo que se encontra em discussão<br />

entre as organizações urbanas e a associação.<br />

No que se refere à gestão, a Cooperafloresta realiza a comercialização<br />

de forma centralizada, via associação. O transporte é próprio da associação<br />

(três caminhões), e os custos da comercialização (manutenção e combustível,<br />

funcionários da câmara de maturação da banana e classificação, motoristas,<br />

energia etc.) são cobertos com a diferença entre o valor pago pelo produto ao<br />

agricultor e o valor recebido na venda. Os agricultores entregam sua produção<br />

e recebem um preço acordado internamente pelo produto. A diferença entre<br />

este preço pago ao produtor e o valor vendido em cada canal cobre os custos<br />

da associação. A contabilidade é feita por funcionária contratada e apresentada<br />

nas reuniões mensais da Associação (conselho de representantes), os<br />

pagamentos são mensais. Apesar de não cobrar porcentagem, o custo de<br />

– 251 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

comercialização, por exemplo, o frete, acaba sendo dividido de forma<br />

proporcional de acordo com os volumes entregues de produtos por cada<br />

agricultor, afinal aquele que envia maiores volumes gera maiores diferenças<br />

para a Associação (Quadro 1). Possibilita-se, assim, maior equidade no<br />

processo, ou seja, independente da distância que o agricultor se encontre,<br />

ele paga o frete de acordo com o volume de produto enviado, fazendo com<br />

que aqueles que enviam mais produtos, portanto possuem maior renda,<br />

tenham maior participação nos custos, mesmo que estejam mais próximos<br />

da sede da Associação. Desta forma, possibilita-se uma maior inclusão dos<br />

agricultores ao processo, uma vez que, mesmo estando distante e entregando<br />

pequenas quantidades, o agricultor pode viabilizar sua venda, o que não<br />

ocorreria caso o frete fosse cobrado pela distância percorrida ou, obviamente,<br />

a comercialização fosse feita de forma individual.<br />

Quadro 1 – Instrumentos de Gestão da COOPERAFLORESTA<br />

- Entregas: Feiras e PAA em Curitiba duas vezes por semana (quarta e sábado). Circuito<br />

e lojas, uma vez por semana em Curitiba. PNAE e PAA Barra do Turvo, uma vez por<br />

semana (quartas).<br />

- Frete: Contabilizado como um todo (salário motoristas, manutenção e combustível) e<br />

pago com a diferença de preço entre os produtos pagos aos agricultores e recebidos na<br />

comercialização.<br />

- Operacionalização: Todas as tarefas são realizadas por pessoas contratadas pela<br />

Associação, na grande maioria agricultores membros. Agricultores organizam produtos<br />

nas caixas, motorista recolhe, pesa, classifica e faz os romaneios. No salão de<br />

embalagem os produtos são reclassificados, a banana maturada e é feita a divisão por<br />

canal de comercialização. As sobras são absorvidas pela Associação.<br />

- Gestão: Feita por secretária e gestor da comercialização contratados de fora da<br />

Associação. A Associação possui um acordo interno pelo qual se estabelece um preço<br />

pago ao agricultor independente do canal de comercialização, a diferença entre o preço<br />

pago ao agricultor e o preço vendido viabiliza os custos da comercialização. Romaneios<br />

são feitos pelo motorista e contabilidade pela secretária. Pagamentos são feitos em conta<br />

bancária uma vez ao mês. A prestação de contas é feita mensalmente nas reuniões do<br />

conselho da Associação. A equipe de comercialização (gestão e funcionários) se reúne<br />

uma vez ao mês, assim como a equipe de gestão (gestores e diretoria).<br />

- Produtos: variedades de banana. Bananada, goiabada, balas de banana e goiaba,<br />

mel, frutas, verduras, palmitos e tubérculos.<br />

Fonte: Perez-Cassarino (2012).<br />

– 252 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

A Associação possui uma estrutura organizacional relativamente sólida,<br />

com uma diretoria de quatro membros, um conselho fiscal e um conselho de<br />

representantes de grupo, que se reúne mensalmente. A partir do ano de<br />

2011 a gestão política e econômica da comercialização passou a ser mais<br />

diretamente assumida por estas estruturas, estando anteriormente ainda<br />

muito vinculadas a um papel decisivo da assessoria técnica da Cooperafloresta.<br />

LEGENDA: 1 e 3. Feiras em parceria com grupos de economia solidária; 2 e 4. Feiras orgânicas<br />

de Curitiba; 5. Um dos caminhões da Cooperafloresta; 6. Caminhão realizando carregamento;<br />

7. Descarregamento feito no salão de embalagem e maturação da Associação; 8 e 10. Produtos<br />

da Cooperafloresta; 9. Controle de entregas dos agricultores feito pelo motorista.<br />

Figura 2: Imagens da comercialização na Cooperafloresta.<br />

Fonte: Cooperafloresta (2011). Imagens 5, 6, 7 e 9, O autor (2012).<br />

– 253 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da<br />

agrofloresta e dos mecanismos de mercado a ela associados<br />

A (re)construção da autonomia a partir dos aspectos produtivos e<br />

alimentares presentes nos mecanismos de mercados da Cooperafloresta<br />

Alguns elementos podem ser destacados quando se analisa com<br />

maior profundidade a estratégia de construção de mercados desenvolvida<br />

no âmbito da Cooperafloresta. Conforme já ressaltado, o manejo possibilitado<br />

pelos sistemas agroflorestais tem fortalecido as estratégias de diversificação<br />

da produção e, consequentemente, de fortalecimento do autoconsumo das<br />

famílias que integram a associação. No entanto, cabe ressaltar que essa<br />

estratégia técnica e produtiva tem sua consolidação fortemente atrelada à<br />

construção de mecanismos de mercados que atendam às demandas ambientais,<br />

sociais e econômicas da Associação.<br />

Em outras palavras, faz-se necessário construir e consolidar espaços<br />

de comercialização que se adequem ao perfil da nova produção em<br />

implantação, mas que também possibilitem uma nova relação das famílias<br />

agricultoras com a sociedade, pautada pela configuração de espaços que<br />

possibilitem a expressão de maiores níveis de autonomia destas, uma vez que<br />

é por meio da relação com os mercados que se estabelecem os principais<br />

diálogos dos agricultores familiares com a sociedade como um todo. Nesse<br />

sentido, os vínculos mercantis são particularmente determinantes para a<br />

estruturação de maiores ou menores espaços de autonomia, assim, a<br />

participação nos mercados pode-se constituir no momento de consolidação<br />

de uma estratégia de busca de autonomia ou tornar-se o momento em que<br />

esse esforço pode ser comprometido (WANDERLEY, 2009).<br />

Um dos aspectos centrais à constituição dos sistemas agroflorestais é<br />

o fortalecimento da produção para o autoconsumo, a partir, principalmente,<br />

de um amplo processo de diversificação dos sistemas de produção. Conforme<br />

destacado anteriormente, os dados levantados junto às famílias da<br />

Cooperafloresta apontam para uma média de mais de 17 cultivos diferentes<br />

por família, sendo que muito possivelmente esta média seja mais alta, uma<br />

vez que as famílias ressaltaram durante as entrevistas a dificuldade em<br />

recordar de todas as plantas cultivadas no último período. Da mesma forma,<br />

– 254 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

este levantamento se torna um tanto quanto cansativo para o entrevistado,<br />

fazendo com que acabe por resumir as informações fornecidas. Tais<br />

características possuem importante influência no fortalecimento da autonomia<br />

das famílias; mais de 90% das famílias afirmam que passaram a cultivar<br />

novos produtos a partir da inserção na Cooperafloresta, entre os principais<br />

foram citados os palmitos (Euterpe edulis e Bactris gasipaes), cajá (Spondias<br />

lutea), lixia (Litchi chinensis), cabeludinha (Eugenia tomentosa), jaca<br />

(Artocarpus integrifloia), abiu (Pouteria caimitu), carambola (Avehrroa<br />

carambola), inhame (Colocasia esculenta) e manga (Mangifera indica).<br />

A adesão à agroecologia e, no caso da Cooperafloresta, especificamente<br />

aos sistemas agroflorestais, acaba por motivar, então, o redesenho dos<br />

sistemas de produção, no sentido de aproximá-los e adequá-los aos aspectos<br />

sociais, culturais e ambientais que historicamente constituem a racionalidade<br />

camponesa. Esse redesenho, porém, atualiza as técnicas, o manejo e o próprio<br />

discurso em torno desta racionalidade. A dimensão ambiental passa a ser<br />

valorizada e difundida como diferencial, em relação à saúde das próprias<br />

famílias e no que se refere à sua relação com a sociedade, de forma mais<br />

concreta, mediante as formas de percepção do que significam os mercados<br />

construídos por elas (relações com os consumidores concretos e com a ideia<br />

geral de produzir alimentos saudáveis e uma agricultura sustentável). Retoma-se,<br />

aqui, o ideário social e cultural identificado por Brandão (1981), ao falar da<br />

relação dos lavradores (agricultores) com a natureza e, consequentemente,<br />

de sua relação com as dimensões produtiva e alimentar na família:<br />

A possibilidade de múltiplas relações entre natureza (habitat), local preferencial<br />

da fonte de alimento e aspectos externos pode ser aceita se lembrarmos<br />

que, em seu sistema geral de crenças, o lavrador percebe a natureza como<br />

determinante das alternativas do homem, e o homem como um agente<br />

modificador da natureza através de trocas múltiplas que oscilam entre o<br />

mágico e o tecnológico. Quase não existe uma atividade ligada à produção<br />

de comida que não esteja ao mesmo tempo: a) regida por princípios<br />

divulgados de uma tecnologia rústica de cuja eficiência há poucas dúvidas<br />

entre lavradores; b) regida pro princípios de eficácia simbólica determinantes<br />

da atividade do produtor devido ao conhecimento de condições dadas pela<br />

natureza, com graus variáveis de possibilidades de manipulação direta<br />

(BRANDÃO, 1981, p. 129).<br />

– 255 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

No entanto, esse ideário ganha nova dimensão ao se vincularem tais<br />

relações sociais, culturais e ambientais com a construção social dos mercados.<br />

Segundo Wanderley (2009), a articulação entre autoconsumo e a relação<br />

com o mercado está presente na história de constituição do campesinato<br />

no Brasil, e, segundo a autora: “esta dupla preocupação – a integração ao<br />

mercado e a garantia do consumo – é fundamental para a constituição do que<br />

estamos aqui chamando de ‘patrimônio sócio-cultural’, do campesinato<br />

brasileiro” (WANDERLEY, 2009, p. 172).<br />

Não obstante, a própria autora destaca o caráter excludente e<br />

desestruturador da racionalidade camponesa pela modernidade, efetivado<br />

principalmente pelas relações de mercado. Todos os movimentos oriundos do<br />

‘exterior’ se direcionam no sentido do rompimento deste ideário – que possui<br />

reflexos diretos na qualidade de vida das famílias e na sustentabilidade<br />

ecológica dos sistemas de produção. Assim, o perfil das relações de mercado<br />

estabelecidas possui marcante influência na promoção, ou não, de estratégias<br />

de fortalecimento do autoconsumo.<br />

Esse movimento de inversão se dá a partir de várias pressões exercidas<br />

desde fora, a partir do modelo técnico-industrial de agricultura, pela maior<br />

dependência de insumos externos, pela especialização da produção, mas,<br />

principalmente, pela pressão exercida pelo mercado, que atua no sentido de<br />

aprofundar o distanciamento da produção para o autoconsumo.<br />

A construção de mecanismos de mercados alternativos possibilita a<br />

abertura de espaços de retomada e atualização desta racionalidade. Observase<br />

no trabalho de campo realizado uma clara relação entre o perfil do mercado<br />

acessado e o perfil de manejo das unidades produtivas. Notadamente, as feiras<br />

e os mercados locais em construção favorecem a diversificação da produção,<br />

possibilitam uma maior amplitude de oferta de alimentos e resgatam elementos<br />

da cultura alimentar local. Nesse sentido, pode-se falar da reversão de uma<br />

tendência geral à especialização e redução da diversidade, bem como da<br />

homogeneização dos padrões alimentares, aspectos que influenciam<br />

diretamente na segurança alimentar das próprias famílias produtoras.<br />

Essa realidade motiva e é motivada pelo resgate e pela valorização da<br />

cultura e dos hábitos alimentares locais, fazendo com que esses mercados<br />

alternativos se tornem espaços abertos à incorporação de alimentos típicos e<br />

– 256 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

característicos da realidade local. Há, neste aspecto, uma forte correlação<br />

entre as dimensões sociais, culturais, ambientais e econômicas. A dimensão<br />

social, dada pelo diálogo e estabelecimento de relações entre agricultores<br />

e consumidores, possibilita a troca de informações sobre a história dos<br />

produtos, receitas, hábitos e costumes alimentares, articula-se com o resgate<br />

da cultura alimentar local. Esse novo campo de relações fomenta a<br />

diversificação da produção e a valorização de culturas e variedades esquecidas<br />

e subjugadas dentro dos padrões do sistema agroalimentar hegemônico,<br />

possibilitando a reconversão dos sistemas de produção, no sentido de uma<br />

maior adequação ambiental, conforme se apresenta na Figura 2.<br />

Figura 3: Relação entre autoconsumo, mercados alternativos<br />

e o resgate e valorização da cultura alimentar.<br />

Fonte: Adaptado de Perez-Cassarino (2012).<br />

No entanto, há de se fazer algumas ressalvas no sentido das ameaças<br />

à garantia dessa estratégia de autoconsumo. O mercado institucional, por<br />

exemplo, ainda tem se mostrado um mecanismo adequado a essa realidade<br />

e, em partes, a Cooperafloresta tem conseguido conduzir sua participação<br />

– 257 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

nele, garantindo esses princípios. Porém, a pressão pela produção de<br />

volumes em escala e a segurança que o mercado possibilita, em que pese<br />

a burocracia para sua implementação, têm estabelecido tensões dentro da<br />

organização e das famílias, no sentido de estimular certa especialização da<br />

produção, principalmente com o avanço no atendimento à alimentação<br />

escolar. Por um lado, o PAA absorve uma grande diversidade de produtos,<br />

por se tratar de um programa de doações, portanto aberto a uma gama<br />

diversa de produtos, processo facilitado pela opção da Cooperafloresta de<br />

doar os alimentos a um grande banco de alimentos gestionado pela ação<br />

social da Igreja Católica, ou seja, demandador de grandes quantidades de<br />

produto. Por outro, na alimentação escolar, mesmo aberta também a uma<br />

diversidade de produtos, há uma restrição dada pelos cardápios e cotas a<br />

serem garantidas de determinados produtos para poder atender regularmente<br />

à necessidade dos escolares.<br />

No caso da Cooperafloresta, essa realidade se encontra em um<br />

momento de inflexão, pois ainda há grande dependência da banana como<br />

produto central do processo de comercialização, com mais de 60% do volume<br />

total de produtos comercializados (COOPERAFLORESTA, 2011), havendo,<br />

ainda, uma demanda crescente pela banana principalmente no mercado<br />

da alimentação escolar. Nesse sentido, apesar de as áreas de SAFs serem<br />

implantadas com base em uma ampla diversidade de culturas, esta ainda<br />

não tem se refletido nos números da comercialização, havendo forte<br />

dependência da banana. Assim, há um elemento a ser aprofundado em<br />

termos da articulação entre as estratégias de manejo produtivos e construção<br />

de mercados, devido à pressão exercida pelo mercado pela oferta de maiores<br />

volumes de banana – cultivo de grande potencial produtivo na região –<br />

e a necessidade e o perfil da proposta tecnológica de estabelecer áreas<br />

diversificadas e que, em seu processo de evolução técnica, tendem a,<br />

inclusive, substituir a banana por outras culturas no processo de produção.<br />

No entanto, há de se destacar a mudança profunda no perfil de<br />

mercados acessados e construídos pelas famílias da Cooperafloresta antes<br />

e depois do trabalho com a agrofloresta. Quando perguntados sobre sua<br />

posição em relação ao processo de comercialização na Associação, a grande<br />

maioria dos agricultores se diz satisfeito ou muito satisfeito com o processo.<br />

– 258 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Segundo os depoimentos de um dos agricultores entrevistados “Antes a<br />

gente trabalhava muito e não dava para manter a casa. Hoje é mais tranquilo<br />

e a produção é maior” (Ag 1), outros destacam ainda a importância de se<br />

poder comercializar uma diversidade maior de produtos, afirmando que<br />

“Toda a produção é bem comercializada” (Ag 2) ou que “Antigamente<br />

perdia-se produtos, agora não” (Ag 3) e que “Quando produzia não vendia,<br />

hoje, tudo que produz, vende” (Ag 4).<br />

Enfim, torna-se bastante evidente a melhoria possibilitada pelo<br />

processo em andamento, apesar de algumas queixas feitas pelos agricultores,<br />

principalmente em relação ao preço pago pelos produtos por parte da<br />

associação. Porém, de uma forma geral, os relatos apontam para uma<br />

leitura onde “Antigamente não tinha nada, hoje vende a sua produção”<br />

(Ag 12) ou que “Depois que começaram esse trabalho, as coisas começaram<br />

a melhorar” (Ag 18). Muito possivelmente a diferença mais relevante<br />

destacada pelos agricultores e pela leitura realizada no âmbito da associação<br />

refere-se à reconstrução da autonomia das famílias. Conforme destacado<br />

nas questões referentes ao fortalecimento do autoconsumo, o perfil de<br />

mercados construídos pela Cooperafloresta tem, também em outras<br />

dimensões, possibilitado a abertura de maiores espaços de autonomia para<br />

o(a)s agricultore(a)s da organização.<br />

Quando motivados a realizar comparações entre o processo de<br />

comercialização antes e depois do trabalho com a agrofloresta, algumas<br />

questões podem ser destacadas. Antes da inserção na Cooperafloresta,<br />

os agricultores acessavam em média somente um tipo de canal de<br />

comercialização, em sua grande maioria, o atravessador de grãos ou de<br />

banana. A partir da inserção na Cooperafloresta, pelo menos cinco canais de<br />

comercializam passaram a compor a estratégia de comercialização das<br />

famílias (feiras, paa, pnae, restaurantes e lojas), ampliando a margem de<br />

negociação e a diversidade de produtos comercializados. Nesse aspecto,<br />

aliás, a diferença é expressiva, antes do trabalho com a agrofloresta, as<br />

famílias da Cooperafloresta comercializavam em média 2,7 tipos de produtos<br />

diferentes, passando a comercializar mais de 15 por meio da Associação.<br />

A lista de produtos comercializados pela Cooperafloresta durante o ano passa<br />

dos 80 itens diferentes (COOPERAFLORESTA, 2011).<br />

– 259 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

Enfim, esses espaços têm possibilitado uma aproximação das estratégias<br />

de mercado construídas com a lógica técnica, produtiva, ambiental e econômica<br />

característica da agricultura familiar e camponesa. Em outro sentido, para além<br />

da maior dependência e menor capacidade de ingerência nos espaços de<br />

comercialização, o perfil dos mercados acessados anteriormente à agrofloresta<br />

demonstra uma tendência à especialização produtiva.<br />

Além dos aspectos relacionados à demanda para o autoconsumo e<br />

pelo próprio caráter ambientalmente adequado, portanto, mantendo a<br />

capacidade produtiva das áreas, há uma racionalidade embutida neste<br />

processo que responde a uma lógica de garantir segurança e eficiência à ação<br />

econômica. Ao buscar não depender de uma ou poucas culturas em seu<br />

processo de comercialização, os agricultores reduzem as possibilidades de<br />

perdas por problemas climáticos ou de pragas ou doenças, que podem afetar<br />

umas culturas com maior e outras com menor intensidade. Da mesma forma,<br />

protegem-se de variações de preço e de oferta e demanda no mercado, bem<br />

como articulam virtudes e problemas de diferentes culturas, no sentido de<br />

garantir um maior equilíbrio à atividade produtiva. Ou seja, realiza-se um<br />

arranjo entre culturas que demandam mais ou menos mão de obra, são mais<br />

ou menos produtivas, de melhor ou pior preço, de maior ou menor aceitação<br />

por parte dos consumidores. No entanto, tal estratégia não se sustenta se não<br />

estiver atrelada a uma construção diferenciada de mecanismos de mercado,<br />

que abram espaços e potencializem estas características.<br />

Essa condição de maior diversificação da produção, associada a um<br />

perfil de mercado que se adéqua a esta dinâmica produtiva, amplia as<br />

possibilidade dos agricultores, no sentido de lançar mão do ‘princípio da<br />

alternatividade’, proposto por Garcia Jr (1990). Ou seja, o agricultor passa a<br />

ter mais possibilidades no sentido de jogar com as condições que o mercado<br />

lhe impõe, sendo que a oportunidade de retorno econômico pode significar a<br />

comercialização de produtos orientados para o autoconsumo apelando, se<br />

necessário, para a aquisição de alimentos de fora. Ou seja, uma maior<br />

diversificação produtiva e a consequente melhoria nos níveis de autoconsumo<br />

possibilitam maior flexibilidade aos agricultores na condução das relações<br />

de mercado. Para tanto, deve-se considerar esta ‘bagagem’ sociocultural<br />

construída ao longo da história pelo campesinato brasileiro, que sustenta esta<br />

– 260 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

construção social diferenciada dos mercados, conforme destaca Wanderley<br />

(2009, p. 172):<br />

É este saber que fundamenta a complementação e a articulação entre a<br />

atividade mercantil e a de subsistência, efetuada sobre a base de uma divisão<br />

do trabalho interna da família ou da prática do “princípio da alternatividade”,<br />

formulado por Afrânio R Garcia Jr.<br />

Da mesma forma, há uma inversão no papel cumprido pelos diferentes<br />

canais de comercialização. Antes do trabalho com a agroecologia, há um<br />

predomínio de mercados convencionais, nos quais há pouca capacidade de<br />

intervenção e ingerência por parte dos agricultores, tais como a comercialização<br />

via atravessadores (intermediários). A partir do trabalho com a agrofloresta,<br />

essa relação se inverte, a organização passa a priorizar o escoamento de sua<br />

produção via mecanismos alternativos de mercado. O acesso a mercados<br />

convencionais passa a ser operado na lógica de estes se constituírem em um<br />

‹apoio› ou ‹válvula de escape› em relação aos mecanismos alternativos. Ou<br />

seja, esses canais convencionais passam a ser um elemento a mais na<br />

composição da estratégia geral de construção de mercados, perdendo o<br />

caráter central e determinante que possuíam anteriormente ao trabalho com<br />

a agrofloresta.<br />

Da mesma forma pode-se dizer do fortalecimento de espaços de<br />

autonomia quando se trata da regularidade de pagamentos. Se anteriormente<br />

a renda estava concentrada em pagamentos recebidos duas a três vezes ao<br />

ano, no âmbito da Cooperafloresta os agricultores recebem mensalmente o<br />

valor de toda a produção entregue no mês anterior, facilitando a gestão<br />

financeira da família e lhes possibilitando maior autonomia. Os dados aqui<br />

apresentados podem ser observados no Quadro 2.<br />

– 261 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

Quadro 2 – Análise comparativa da comercialização das famílias da<br />

Cooperafloresta antes e depois do trabalho com a Agrofloresta<br />

Antes da Agrofloresta<br />

Média de canais acessados/construídos<br />

Depois da Agrofloresta<br />

1,1 5<br />

Diversidade de produtos comercializados (média)<br />

2,7 15<br />

% da comercialização por canal<br />

65,3% atravessador 78% associação/cooperativa<br />

9,7% na comunidade 6,1% feira ecológicas<br />

9,7% na minha casa 6,1% na minha casa<br />

Frequência de pagamentos<br />

41,4% duas vezes no ano 97% mensal<br />

14,3% quatro vezes no ano 2% semanal<br />

12,9% uma vez ao ano<br />

Produção de novos cultivos<br />

91,7% das famílias<br />

Fonte: Elaboração do autor, com base em Perez-Cassarino (2012)<br />

Para as famílias, de uma forma geral, a estratégia de construção social<br />

de mercados propiciada pelo trabalho com a agroecologia/agrofloresta revela<br />

que sua capacidade de diálogo e intervenção no mercado foi ampliada, da<br />

mesma forma que a liberdade para gerir seus processos produtivos. Nesta<br />

questão, foram apresentados diversos aspectos relacionados ao processo de<br />

comercialização e demandado às famílias que atribuíssem uma escala de 0<br />

a 3 para cada aspecto, na comparação entre o processo de comercialização<br />

prévio e posterior ao trabalho com a agroecologia (Gráfico 6). Os aspectos<br />

apresentados foram:<br />

A - Aumentou a diversidade de produtos plantados e comercializados;<br />

B - Melhorou sua capacidade de negociação na hora da comercialização;<br />

C - Tem mais autonomia para decidir onde vender seus produtos;<br />

D - Tem mais dificuldade para comercializar seus produtos;<br />

E - Tem mais liberdade para decidir o que plantar e vender;<br />

F - Tem mais possibilidades de comercializar seu produto.<br />

– 262 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Gráfico 6: Distribuição percentual da frequência de respostas em escala na<br />

comparação entre a comercialização antes e depois da agroecologia.<br />

Fonte: Perez-Cassarino (2012)<br />

Dessa forma, no processo de (re)construção de espaços de autonomia,<br />

vários aspectos sociais, econômicos, culturais e ambientais são importantes.<br />

No entanto, os vínculos mercantis são particularmente determinantes<br />

para a estruturação de maiores ou menores espaços de autonomia<br />

(WANDERLEY, 2009).<br />

Assim, a participação nos mercados pode-se constituir no momento<br />

de consolidação de uma estratégia de busca de autonomia ou tornar-se o<br />

momento em que esse esforço pode ser comprometido (WANDERLEY,<br />

2009). Cabe, então, particular atenção à maneira como se constroem as<br />

relações de mercado, uma vez que este aspecto é predominantemente visto<br />

como uma relação de mão única, na qual os agricultores se integram ou<br />

não, ou se incorporam em diferentes níveis de intensidade a um mercado<br />

tido como dado.<br />

Repensar as relações de mercado implica compreender as<br />

possibilidades da agricultura familiar e camponesa, quando das suas<br />

interações mercantis. Conforme já abordado até o momento, um aspecto<br />

considerado fundamental dessas relações refere-se à capacidade dos<br />

agricultores e suas organizações de construir mecanismos que se adequem<br />

– 263 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

ou respondam à sua racionalidade e forma de organização e funcionamento<br />

social, econômica, produtiva e ambiental.<br />

Essa perspectiva encontra-se marcadamente presente na realidade<br />

pesquisada a campo na Cooperafloresta. Cabe ressaltar, no entanto que,<br />

conforme apontado por Costa e Silva neste <strong>livro</strong>, há ainda aspectos a serem<br />

aprofundados no que se refere à gestão interna dos processo na Associação.<br />

Quando da realização desta pesquisa de campo, ano de 2010, a gestão da<br />

comercialização (logística, negociação com compradores, elaboração de<br />

projetos para mercado institucional etc.) encontrava-se centralizada em parte<br />

da equipe técnica da organização, o que gerava uma defasagem na circulação<br />

de informações sobre o funcionamento do processo de comercialização,<br />

inicialmente entre equipe técnica e diretoria, mas fundamentalmente com os<br />

grupos de agricultores. Nesse sentido, o processo de tomada de decisão, tanto<br />

nas questões mais técnicas e práticas quanto nas políticas e de ordem<br />

burocrática, encontrava-se centralizado na equipe técnica.<br />

Estabelece-se, assim, um paradoxo no processo de construção da<br />

autonomia das famílias; por um lado, o perfil dos mercados construídos<br />

propicia uma condição de abertura e reconstrução de espaços de autonomia,<br />

mas, por outro, no que se refere à dinâmica interna de organização social e<br />

política dos processos de comercialização, ainda se verificam limitações no<br />

que tange a um maior envolvimento e participação dos agricultores. Quando<br />

da aplicação dos questionários de campo, esta realidade tornava-se bastante<br />

evidente, ao perguntar aos agricultores sobre qual consideram ser o melhor<br />

local para comercializar seus produtos, as respostas foram quase unânimes<br />

afirmando ser a Associação o melhor espaço.<br />

Esta resposta é compreensível por ser a comercialização da<br />

Cooperafloresta realizada toda via Associação, sendo distribuída depois nos<br />

canais de comercialização. O que chama atenção, no entanto, são as<br />

justificativas dos agricultores por essa escolha, em geral, demonstrando<br />

pouco compromisso e envolvimento das famílias com o processo de<br />

comercialização, para um dos agricultores, vender via Associação é bom<br />

porque “Ela pega toda semana e se encarrega de tudo” (Ag 2). para outros,<br />

a vantagem está em que “É só colocar na fonte (ponto de recolhimento)<br />

e depois receber” (Ag 3) ou ainda que “É só por no ponto e ficar sem<br />

– 264 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

preocupação” (Ag 16) ou ainda, afirmações do tipo “A gente manda o<br />

produto e é só esperar o pagamento” (Ag 23). Claramente observava-se um<br />

descomprometimento dos agricultores em relação ao processo de<br />

comercialização, o que, por vezes, gera dificuldades em aspectos como<br />

padrão de qualidade dos produtos e principalmente no que tange ao<br />

planejamento da comercialização, uma vez que a política adotada até o<br />

momento é de absorver todo produto colocado pelo agricultor no ponto<br />

de recolhimento, sem haver necessidade de planejamento ou limites<br />

de comercialização.<br />

Tal realidade foi observada pela diretoria e equipe técnica que, no<br />

decorrer do ano de 2011, buscaram reestruturar e aprimorar as instâncias<br />

de tomada de decisão e o perfil da equipe de gestão da comercialização<br />

de forma a que se possibilitasse maior envolvimento das famílias e maior<br />

autonomia à diretoria e conselho de representantes na gestão da<br />

comercialização. Apesar de essa realidade não ter sido captada no momento<br />

da pesquisa de campo, a vivência do autor junto ao processo de comercialização<br />

da organização nos últimos meses permite afirmar que alguns avanços já<br />

podem ser observados no que se refere à descentralização das informações e<br />

tomadas de decisão, bem como ao empoderamento da diretoria da associação<br />

em relação à gestão dos processos de comercialização, havendo, ainda, um<br />

caminho a ser trilhado no sentido dessa incorporação por parte dos grupos<br />

de base.<br />

Nessa perspectiva, um importante elemento a ser analisado no que<br />

tange à influência dos mercados em construção na Cooperafloresta tem a ver<br />

com a relação dessa construção com elementos ligados às relações de<br />

solidariedade e reciprocidade no âmbito da organização, bem como no<br />

restabelecimento de uma perspectiva de projeto de vida entre as famílias que<br />

integram a associação.<br />

Sociabilidades e projeto de vida e sua relação com a construção<br />

de mercados<br />

As relações de solidariedade encerram importante fator para garantia<br />

da autonomia de agricultores familiares e camponeses. O estabelecimento de<br />

uma sociabilidade intensa, centrada na comunidade, a partir de relações de<br />

– 265 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

reciprocidade, é parte constituinte da racionalidade camponesa, estando<br />

intrinsecamente vinculado à organização e dinâmica social das comunidades<br />

rurais (BRANDENBURG, 1998; CANDIDO, 2009).<br />

De uma forma geral, a construção de mercados incorporada à proposta<br />

da agroecologia pressupõe um reordenamento das relações de mercado,<br />

articulando à troca econômica uma série de outros valores e atitudes que<br />

possibilitam a (re)construção de sociabilidades entre as famílias, conforme<br />

pode ser apreciado no trabalho desenvolvido por Rodrigues neste <strong>livro</strong>.<br />

A relevância das relações de troca e reciprocidade no interior do campesinato,<br />

bem como para a constituição e estruturação de espaços de autonomia são<br />

bem desenvolvidas pelo autor ao analisar a importância dos mutirões dentro<br />

da Cooperafloresta.<br />

Cabe aqui extrair elementos desse debate em torno da solidariedade<br />

e reciprocidade para o âmbito das relações de mercado, pois novos marcos<br />

são estabelecidos neste processo, agregando novos atores, no caso, os<br />

consumidores e consumidoras dos produtos da associação. Da mesma forma,<br />

na proposta aqui desenvolvida se buscou articular esses elementos à<br />

perspectiva de projeto de vida das famílias, fortemente influenciado pelos<br />

valores éticos vinculados à agrofloresta, mas também à concretude<br />

possibilitada pela construção de mercados diferenciados, em termos de<br />

geração de renda, estabilidade econômica e sustentação dos sistemas de<br />

produção em implantação, no caso, as agroflorestas.<br />

Nesse sentido, as famílias vinculadas à Cooperafloresta reafirmam a<br />

perspectiva apontada por Brandenburg (1998), de combinar a condição<br />

camponesa com elementos da modernidade de forma a sustentar sua<br />

reprodução social. Nesse contexto, se constrói uma identidade apoiada nas<br />

formas comunitárias de organização social, mas que se atualiza em uma<br />

perspectiva de revalorização do ideário ambiental e cultural proposto a partir da<br />

agroecologia, que, ao mesmo tempo, nutre e é nutrido pelo ideário camponês.<br />

Tal processo implicou efeitos sobre o resgate da autoestima e a<br />

reconstrução de sua identidade, que por muitas vezes se via subjugada aos<br />

padrões da modernidade, tendo o rural como espaço do atraso e rusticidade<br />

e, dentro deste, a agricultura familiar e camponesa como a imagem mais<br />

visível deste retrocesso.<br />

– 266 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

O espaço aberto pela construção social de mercados alternativos e, por<br />

conseguinte, do estabelecimento de novas sociabilidades com o público<br />

urbano, abriu novas perspectivas. De uma forma geral, observa-se um<br />

processo de resgate de autoestima, que desemboca na reconstrução de um<br />

projeto de vida, de uma perspectiva de futuro na unidade familiar de produção<br />

e vida, que se encontrava em grande parte esquecida, pelo histórico abandono<br />

vivenciado pelas famílias por parte do Estado, bem como pela dificuldade<br />

de garantir uma viabilidade econômica e qualidade de vida mínima dentro<br />

do modelo de agricultura desenvolvida na região nas últimas décadas. Ao<br />

incorporar a agroecologia e o trabalho com os sistemas agroflorestais, essas<br />

famílias passam a assumir novos papéis na sociedade, agora como<br />

representantes de um ideário contemporâneo e humanitário, de preservação<br />

ambiental e retomada de valores éticos como a cooperação, a solidariedade,<br />

a confiança e a credibilidade.<br />

Essa mudança na sua percepção de si mesmo reforça a perspectiva de<br />

que a agroecologia tem se constituído numa redescoberta do rural por parte<br />

das famílias, fazendo com que a vida no meio rural apresente perspectiva de<br />

futuro para elas. Da mesma forma, a projeção do futuro revela muito das<br />

condições dadas para viabilizar a reprodução social dos estabelecimentos,<br />

uma vez que as famílias passam a visualizar uma condição concreta para<br />

sustentação desta condição. Quando as famílias da Cooperafloresta foram<br />

questionadas se acreditam no potencial de trabalho e a qualidade de vida no<br />

meio rural, prevaleceram as respostas de cunho positivo e motivador,<br />

conforme demonstrado no Gráfico 7.<br />

– 267 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

Gráfico 7: Porcentagem de respostas dos agricultores<br />

quando perguntados se acreditam no potencial de<br />

trabalho e qualidade de vida no meio rural<br />

Fonte: Perez-Cassarino (2012).<br />

Da mesma forma, pelo menos 31% das famílias da Cooperafloresta<br />

afirmam que um membro da família voltou à propriedade após iniciar o<br />

trabalho com agrofloresta. Cabe ressaltar que a grande maioria das<br />

comunidades encontra-se a menos de 150 km de Curitiba, havendo um forte<br />

atrativo pelo abandono da atividade rural em função da possibilidade de<br />

emprego no meio urbano. Sendo assim, torna-se mais relevante ainda o dado<br />

de pelo menos 1/3 das famílias reincorporarem integrantes ao processo<br />

produtivo agroflorestal, ou seja, pessoas que haviam saído, em geral por falta<br />

de opção no meio rural, mas que com a inserção na agrofloresta animaram-se<br />

a retomar as atividades agrícolas. Destes mais de 30% de famílias, cerca de<br />

14% que os membros que retornaram o fizeram por acreditar que têm mais<br />

qualidade de vida no meio rural, 11% por não terem se adaptado à realidade<br />

da cidade grande e 5% acreditam ter mais oportunidades agora (PEREZ-<br />

CASSARINO, 2012).<br />

Sobre sua avaliação quanto ao padrão de vida que conquistaram até o<br />

presente momento, cerca de 46% das famílias se dizem muito satisfeitas e<br />

53% satisfeitas com a qualidade de vida que possuem, sendo que menos de<br />

2% afirmaram estar pouco satisfeitas ou insatisfeitas. Complementando essa<br />

percepção das famílias, mais de 80% delas afirmam que sua situação vai<br />

– 268 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

melhorar no futuro, demonstrando grande confiança no projeto em<br />

desenvolvimento, sendo que cerca de 16% afirmam que a situação já está<br />

melhorando e menos de 2% dizem que vai piorar. Nesse cenário, há uma<br />

prevalência de mais de 90% das famílias que sustentam a posição de que<br />

acreditam que possuem as condições para manter seus filhos no meio rural,<br />

sendo que mais de 85% delas afirmam ter o desejo de que estes permaneçam<br />

na atividade (ibid).<br />

Enfim, as informações apresentadas acima revelam uma profunda<br />

confiança na proposta representada pelos sistemas agroflorestais, havendo<br />

uma relação estreita com o perfil de mercados construídos pela organização<br />

nesta condição, dada pela segurança econômica que essas estratégias<br />

de comercialização têm lhes possibilitado. Ou seja, o conjunto de ações<br />

que compõe o ‘programa’ de implantação dos sistemas agroflorestais na<br />

Cooperafloresta tem exercido influência decisiva na reconstrução do projeto<br />

de vida e no redesenho das relações sociais no âmbito das comunidades,<br />

realidade acada vez mais difícil de ser observada no contexto das comunidades<br />

de agricultores familiares paranaenses e brasileiras.<br />

Algumas considerações finais<br />

A proposta em desenvolvimento no âmbito da Cooperafloresta tem se<br />

caracterizado por uma aproximação aos conceitos de uma agroecologia<br />

‘forte’, nos termos de Sevilla-Guzmán e Soler (2010), que se propõe a uma<br />

abordagem da produção agrícola que amplie seu foco para uma leitura dos<br />

sistemas agroalimentares como um todo, ou seja, tratando desde os aspectos<br />

da organização social e comunitária das famílias, passando pelas construção<br />

de alternativas ténico-produtiva, por formatos diferenciados de processamento<br />

dos alimentos e, finalmente, pela construção de mecanismos alternativos de<br />

mercados, conforme pode-se observar ao analisar o perfil das estratégias de<br />

comercialização da associação.<br />

Essa construção alternativa significou importante momento de<br />

afirmação dos sistemas agroflorestais como alternativa tecnológica, ao<br />

desenhar mecanismos de mercado que se adequem ao seu perfil produtivo,<br />

notadamente em termos da diversidade de produtos comercializados, da<br />

sazonalidade da produção e da qualidade dos produtos. Nesse sentido,<br />

– 269 –


A (re)construção da autonomia e projeto de vida a partir da Agrofloresta:<br />

uma leitura a partir da construção social de mercados<br />

esses mecanismos possibilitaram a reconstrução de espaços de autonomia<br />

para essas famílias, no sentido de uma menor dependência do mercado, de<br />

uma ampliação da base de produtos comercializados, de uma maior<br />

regularidade e distribuição da renda obtida e consequentemente na melhoria<br />

da qualidade de vida destas famílias. Embora, considere-se ainda que há<br />

elementos importantes a serem tratados no âmbito da organização, no que<br />

se refere à gestão interna dos processos de comercialização, de forma a<br />

possibilitar uma maior inserção das famílias nesta gestão, bem como uma<br />

melhor compreensão de seu mecanismo de funcionamento, de forma a<br />

garantir maior autonomia destes nas tomadas de decisão sobre as estratégias<br />

de comercialização a serem construídas.<br />

No entanto, é evidente a retomada de um projeto de vida possibilitada<br />

pelo trabalho desenvolvido pela Cooperafloresta. Todas as informações<br />

coletadas apontam para uma grande confiança na proposta em implantação<br />

e uma perspectiva de esperança em relação ao futuro das famílias e à<br />

condição para que seus filhos sigam na atividade. Enfim, a agrofloresta<br />

e o perfil de mercados construídos a partir desta têm possibilitado uma<br />

ressignificação da vida no rural para estas famílias, que hoje, mais do que se<br />

carregarem de esperança em relação ao seu futuro, abrem importantes<br />

caminhos no sentido de uma reconstrução da sociedade e, particularmente,<br />

dos sistemas agroalimentares em bases mais justas, solidárias e sustentáveis.<br />

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– 271 –


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– 272 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 10<br />

A gestão da informação No processo de<br />

comercialização da Cooperafloresta<br />

Letícia da Costa e Silva<br />

Introdução<br />

Este capítulo foi elaborado a partir da dissertação “Necessidades e<br />

fontes de informação para a comercialização de produtos agroecológicos na<br />

Região Metropolitana de Curitiba: um estudo de caso na Cooperafloresta”<br />

(COSTA E SILVA, 2012), no âmbito do Programa de Pós-Graduação em<br />

Ciência, Gestão e Tecnologia da Informação, do setor de Ciências Sociais<br />

Aplicada da Universidade Federal do Paraná. A proposta da pesquisa é de<br />

levar discussões da área da Administração para a realidade de organizações<br />

ligadas à agroecologia, por considerar que técnicas de gestão podem auxiliar<br />

essas organizações no gerenciamento de suas atividades e no estabelecimento<br />

de sua estratégia. O processo da gestão da informação é o foco deste<br />

trabalho ao ser relacionado com as atividades comerciais da Cooperafloresta.<br />

Essa técnica de gestão propõe um modelo para o gerenciamento da<br />

informação, modelo esse entendido como ‘racional’, por compreender que<br />

a sua aplicação tem o potencial de melhorar a coordenação das diferentes<br />

atividades de uma organização.<br />

Hoje, a informação e o conhecimento são reconhecidos por seu caráter<br />

transversal, interdisciplinar e integrativo presentes em diversos elementos de<br />

um sistema – nas trocas sociais, nos processos de trabalho, nas reflexões,<br />

nas convicções, nos documentos, nas máquinas, em qualquer atividade<br />

humana, nos seres vivos, no processamento e troca de matéria e energia, nos<br />

ambientes etc. –, conforme apontam Ferraz et al. (2006), Santos e Carvalho<br />

(2009), Rodrigues (2010) e Zins (2007). Nas relações humanas, observa<br />

– 273 –


A gestão da informação do processo de comercialização da Cooperafloresta<br />

Barreto (2002), eles são responsáveis por modificar a consciência do homem<br />

sendo propulsores das interações não só sociais, mas também econômicas,<br />

políticas e culturais.<br />

Nesse contexto, as organizações, segundo Dante (2008), ao se<br />

beneficiarem das vantagens trazidas pela criação das tecnologias da<br />

informação e comunicação (TIC) e das mudanças conjunturais ocorridas na<br />

sociedade nesse último século – o deslocamento do paradigma da sociedade<br />

industrial para a sociedade da informação, da economia nacional para a<br />

mundial e da centralização para a descentralização (BORGES, 1995) –,<br />

passaram a enxergar a necessidade de gerenciar a informação como recurso.<br />

O entendimento, alega Choo (2003), é de que, quando bem<br />

gerenciadas, as informações podem criar conhecimentos que conduzam a<br />

organização a melhores decisões. Entretanto, ainda persiste a preocupação<br />

de como lidar e o que fazer com o volume crescente de informações produzidas<br />

e disponibilizadas. É importante, dessa forma, a aplicação de técnicas e<br />

métodos para usar a informação de maneira racional, em que são considerados<br />

os aspectos cognitivos e situacionais dos agentes envolvidos (TAYLOR, 1986).<br />

Uma dessas técnicas é o processo da gestão da informação, o qual<br />

pode ser aplicado em qualquer processo, atividade ou tarefa organizacional.<br />

Esse processo compreende atividades que vão desde a identificação das<br />

necessidades de informação até o seu uso pelos indivíduos, e é orientado pela<br />

determinação de uma situação problema.<br />

No âmbito da agroecologia no Paraná, observa-se que as organizações<br />

de agricultores familiares podem usufruir dos benefícios trazidos por essa<br />

técnica no melhoramento de seu funcionamento interno, bem como na sua<br />

maior inserção no mercado e no seu diálogo com a comunidade, no sentido<br />

de garantir a viabilidade econômica ao mesmo tempo em que fortalecem<br />

os seus princípios agroecológicos. Essas vantagens fazem frente à estrutura<br />

organizacional frágil geralmente percebida nessas organizações, a qual,<br />

observam o IPARDES e IAPAR (2007) e Schultz (2001), dizem respeito à<br />

coordenação de suas atividades, à capacitação de pessoal para funções<br />

administrativas ou que exijam qualificação e à utilização de informações para<br />

empreender o seu objetivo. Ainda, nota-se que são poucas as ações comerciais<br />

conhecidas dessas organizações, levando em conta que no Paraná as<br />

– 274 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

iniciativas agroecológicas estiveram mais voltadas para a conversão dos<br />

sistemas produtivos convencionais aos orgânicos 1 (IPARDES; IAPAR, 2007).<br />

Dessa forma, este capítulo procura identificar as atividades relacionadas<br />

ao processo de gestão da informação presentes na comercialização de<br />

uma organização ligada à agroecologia atuante na RMC, a Associação dos<br />

Agricultores Agroflorestais de Barra do Turvo e Adrianópolis, a Cooperafloresta.<br />

Por meio dessa identificação busca-se aumentar o conhecimento sobre o<br />

contexto atual da comercialização de produtos agroecológicos na RMC, assim<br />

como apoiar os processos de comercialização de associações de agricultores<br />

familiares agroecológicos da região.<br />

Informação<br />

As organizações processam continuamente informações e criam<br />

conhecimento, por meio de dados coletados tanto de seu ambiente interno<br />

quanto externo. Dados por si só não garantem a ação organizacional, somente<br />

quando transformados em informação e estes em conhecimento. Geralmente,<br />

tanto dado como conhecimento são tratados ou entendidos como informação,<br />

ocasionando seu difícil gerenciamento nas organizações.<br />

Dado possui um caráter objetivo, quantificável, desprovido de<br />

significado, sendo fácil a sua estruturação e transferência entre humanos ou<br />

máquinas. Informação possui um caráter objetivo-subjetivo, pois, apesar de<br />

poder ser descrita e captada de forma objetiva, conforme afirma Setzer<br />

(1999), depende da intervenção humana para a sua apreensão, uma vez que<br />

lhe acrescenta tratamento, significado, contexto, relevância e propósito.<br />

Conhecimento é gerado a partir da interpretação de informações advindas de<br />

diversas fontes. A essa interpretação são acrescentadas, segundo Nonaka e<br />

Takeuchi (1997), as crenças e os compromissos do seu detentor, o que lhe<br />

1<br />

Em conformidade à Lei n.º 10.831 (BRASIL, 2003), que dispõe sobre a agricultora orgânica<br />

no país, a agroecologia neste artigo será entendido como agricultura orgânica. Essa escolha se<br />

faz devido ser esse o termo comumente utilizado por estudos que procuram explorar a história<br />

da agroecologia e o mercado em que ela está inserida no Paraná (IPARDES; IAPAR, 2007;<br />

KIRCHNER, 2006; DAROLT, 2004). A fim de apresentar uma coerência entre os argumentos e as<br />

ideias dos estudos citados neste trabalho, o termo orgânico é referenciado de maneira equivalente<br />

ao agroecológico.<br />

– 275 –


A gestão da informação do processo de comercialização da Cooperafloresta<br />

impregna, conforme afirma Setzer (1999), o seu caráter puramente subjetivo,<br />

pois se encontra tacitamente na mente de cada indivíduo, sendo assim de<br />

difícil transferência.<br />

Tanto a informação como o conhecimento são frutos da interação<br />

social, específicos ao contexto e relacionais na medida em que dependem da<br />

situação e são criados de forma dinâmica entre as pessoas (CHOO, 2003;<br />

NONAKA; TAKEUCHI, 1997; SETZER, 1999).<br />

Apesar da complexidade das interações e dinâmicas sociais, a<br />

transferência da informação se torna possível se o receptor tiver capacidade<br />

cognitiva de lhe compreender. Já a transferência ou externalização do<br />

conhecimento, para Setzer (1999), Le Coadic (1996) e Robredo (2003),<br />

resulta em informação para o receptor. Assim, levando a informação ao contexto<br />

organizacional, a sua percepção e utilização dependerão das habilidades<br />

cognitivas do usuário em extrair informação de dados e identificar a qualidade<br />

que a tornará relevante para o empreendimento de suas tarefas organizacionais.<br />

Gestão da informação nas organizações<br />

Ao reconhecer a informação como um ativo importante para as<br />

organizações, uma ação, em especial, facilita o seu uso racional: o<br />

gerenciamento das informações. A sua principal técnica é o processo de<br />

gerenciamento da informação, cuja aplicação se dá em qualquer atividade<br />

ou tarefa organizacional.<br />

O processo de gerenciamento da informação consiste em identificar,<br />

coletar, tratar, armazenar, disponibilizar, usar e descartar a informação e<br />

retroalimentar o processo. A definição das atividades desse processo e o nível<br />

de importância e valor de cada uma, segundo McGee e Prusak (1994),<br />

variam de autor para autor, e principalmente, de organização para organização,<br />

a fim de melhor adaptação às suas atividades organizacionais. O Quadro 1 a<br />

seguir relaciona as atividades desse processo conforme a definição de três<br />

autores diferentes:<br />

– 276 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

QUADRO 1 – ATIVIDADES DO PROCESSO DA GESTÃO DA INFORMAÇÃO, SEGUNDO<br />

BEAL, McGEE E PRUSAK E DAVENPORT E PRUSAK<br />

Atividades<br />

Autores<br />

Beal McGee e Prusak Davenport e Prusak<br />

Identificar<br />

Identificação de Identificação de<br />

Determinação<br />

necessidades necessidades<br />

das exigências de<br />

e requisitos<br />

e requisitos<br />

informação<br />

informacionais informacionais<br />

Coletar Obtenção Coleta e entrada Obtenção<br />

Tratar<br />

Tratamento,<br />

classificação,<br />

análise, síntese e<br />

apresentação<br />

Tratamento e<br />

apresentação<br />

-----------------<br />

Armazenar -----------------<br />

Classificação e<br />

armazenamento<br />

-----------------<br />

Disponibilizar Distribuição<br />

Desenvolvimento de<br />

produtos e serviços/<br />

Distribuição e<br />

Distribuição<br />

disseminação<br />

Usar Uso e armazenamento Uso Utilização<br />

Descartar Descarte ----------------- -----------------<br />

FONTE: Adaptado de Beal (2008, p. 29-32) McGee e Prusak (1994, p. 108) e Davenport e Prusak<br />

(1998, p. 175).<br />

A identificação das necessidades, assevera Taparanoff (2006), não é<br />

uma atividade óbvia e fácil, trata-se da identificação de um problema a ser<br />

resolvido, de uma tarefa a ser realizada ou uma área ou assunto a ser<br />

analisado (TAYLOR, 1982). Envolve identificar como as pessoas percebem<br />

seus ambientes informacionais, sob a perspectiva política, psicológica,<br />

cultural e estratégica (DAVENPORT; PRUSAK, 1998). Sonnenwald (1999)<br />

atesta que a forma como essas necessidades são percebidas é orientada pelo<br />

comportamento informacional dos indivíduos, mas também pelo organizacional,<br />

segundo Taylor (1982).<br />

Vale destacar que a necessidade por informação, por si só, não garante<br />

a busca por ela, conforme afirma Ingwersen (1996). Esta atividade depende<br />

das decisões tomadas pela organização em relação à pertinência da<br />

necessidade aos objetivos da organização, o tempo e os custos envolvidos na<br />

sua procura.<br />

– 277 –


A gestão da informação do processo de comercialização da Cooperafloresta<br />

A próxima atividade, a aquisição ou coleta de informações, requer um<br />

plano sistemático para adquiri-la de suas fontes (McGEE; PRUSAK, 1994).<br />

São desenvolvidas tarefas de criação, recepção ou captura de informações<br />

externas e internas, em qualquer formato. Essa atividade, para Beal (2008),<br />

é ininterrupta e precisa ser estruturada em um sistema de aquisição contínua<br />

e engloba todos os tipos de informações.<br />

A classificação da informação, conforme Davenport e Prusak<br />

(1998), ocorre durante e após a coleta de informações. É uma atividade,<br />

essencialmente, humana, arbitrária e favorece uma visão de mundo em<br />

detrimento de outras.<br />

O tratamento da informação, por meio de sua formatação, estruturação<br />

e apresentação, envolve, conforme McGee e Prusak (1994), o desenvolvimento<br />

de produtos e serviços. Para Davenport e Prusak (1998) e Beal (2008), a<br />

forma como elas serão apresentadas atrairão o seu uso ou não. Durante a sua<br />

apresentação, faz-se necessário selecionar o melhor lugar (a mídia) para<br />

armazenar a informação, de modo que os usuários tenham acesso às<br />

informações necessárias (McGEE; PRUSAK, 1994).<br />

A distribuição será afetada pela arquitetura, a política, o investimento<br />

tecnológico em informações e a rede de comunicações da organização.<br />

Para empreender esta atividade é, primeiramente, importante saber para<br />

quem distribuí-la e quando comunicá-la. Mesmo sendo mais conveniente a<br />

distribuição via computador, pela agilidade e facilidade de envio a várias<br />

pessoas, conversas informais e telefone continuarão sendo utilizados, pois<br />

muitos acreditam que somente o computador não fornecerá todas as<br />

informações necessárias. Sendo assim, sistemas de distribuição híbridos são<br />

os mais indicados (DAVENPORT; PRUSAK, 1998; BEAL, 2008; McGEE;<br />

PRUSAK, 1994).<br />

O uso é pessoal, a maneira como alguém absorve e digere a informação<br />

antes de decidir ou utilizar depende da capacidade cognitiva do usuário e o<br />

contexto em que se insere. O seu uso efetivo, assevera Taparanoff (2006),<br />

aumenta tanto o conhecimento individual como o coletivo garantindo<br />

melhores resultados (BEAL, 2008).<br />

Ainda há a retroalimentação, em que é avaliado se o uso da informação<br />

está de acordo com as necessidades identificadas. Por fim, conforme Beal<br />

– 278 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

(ibid.), a informação pode ser descartada, caso se torne obsoleta, a fim de<br />

economizar os recursos de armazenamento e aumentar o seu desempenho de<br />

recuperação e de visibilidade.<br />

Todas as atividades do processo, em determinada organização, devem<br />

ser identificadas e integradas, na busca de gerenciar os fluxos de informação,<br />

formais ou informais, contidos nos diferentes suportes e fontes, tanto interno<br />

como externo (documentos, bancos e bases de dados, pessoas etc.). Esse<br />

processo é apoiado por recursos financeiros e humanos e pela estrutura física<br />

definida, podendo coexistir e ser compartilhado por diversos departamentos,<br />

formando tanto fornecedores quanto clientes da informação nos diversos<br />

níveis organizacionais. A gestão da informação, assim, permite melhor<br />

desempenho das atividades e das decisões organizacionais (VALENTIM,<br />

2002; DAVENPORT; PRUSAK, 1998; TAPARANOFF, 2006).<br />

Organizações ligadas à agroecologia<br />

Quando trabalham de forma independente, os agricultores familiares<br />

enfrentam sozinhos as adversidades mercadológicas e climáticas (BUAINAIN;<br />

SOUZA FILHO, 2006), além de possuir pouca informação e conhecimento<br />

sobre: certificação, técnicas de manejo orgânico da produção, tecnologias<br />

de gestão (em especial, o planejamento e o controle da produção), serviços<br />

financeiros disponíveis no mercado para a agricultura orgânica e possibilidades<br />

de mercados e funcionamento deles (IPARDES; IAPAR, 2007).<br />

Dessa forma, a formação associativista desses agricultores tende a<br />

aumentar o seu conhecimento sobre esses fatores, uma vez que organizados<br />

conseguem aumentar a sua capacidade política e adquirem com mais<br />

facilidade apoio de entidades governamentais e não governamentais. Também<br />

elevam sua capacidade econômica, segundo afirmam Buainain e Souza Filho<br />

(2006), por meio dos rendimentos de escala na compra de insumos, na<br />

venda de seu produto final e do acesso mais fácil ao crédito rural, e reduzem,<br />

argumentam Barcellos e Mantelli (2009), a atuação de intermediários ao<br />

aumentar o contato com o consumidor final e as margens de lucro.<br />

Às vantagens apresentadas aos agricultores familiares ao se organizarem,<br />

somam-se algumas dificuldades: (i) a herança cultural e histórica de submissão<br />

ao modelo produtivo urbano industrial ou aos grandes produtores rurais<br />

– 279 –


A gestão da informação do processo de comercialização da Cooperafloresta<br />

(SCORPINHO; MARTINS, 2003); (ii) o atendimento das necessidades dos<br />

associados é preterido em favor das dos seus dirigentes ou representantes<br />

(COSTA; RIBEIRO, 2001); (iii) os créditos governamentais se baseiam nas<br />

necessidades individuais dos agricultores, sem que se tenham incentivos ao<br />

desenvolvimento territorial (ibid, 2001); (iv) o limitado incentivo à inovação<br />

(ABRAMOVAY, MAGALHÃES; SCHRODER, 2010); (v) a preterição do<br />

desenvolvimento da comercialização em favor de movimentações políticas<br />

agroecológicas (SCHULTZ, 2001); e (vi) a baixa sintonia, falta de informação<br />

sincronizada, baixo compartilhamento de riscos e reduzida coordenação das<br />

atividades da cadeia produtiva agroecológica (ibid, 2001).<br />

Muitas vezes, essas debilidades são minimizadas pelo apoio que<br />

recebem de técnicos ou de entidades de assessoria, normalmente ONGs, que<br />

fazem a organização, formação e capacitação junto com os agricultores, tanto<br />

para a produção como para a comercialização e a certificação orgânica de<br />

seus produtos (IPARDES; IAPAR, 2007).<br />

Considerando o contexto apresentado dessas associações, o uso<br />

racional da informação se torna útil para suprir e sincronizar as atividades<br />

que pretendem empreender, além de poder organizar as informações<br />

relevantes das diferentes fontes de informação referentes à agroecologia.<br />

Comercialização de produtos agroecológicos na RMC<br />

A produção orgânica no Brasil vem crescendo a uma taxa de 30% ao<br />

ano, conforme informações do Instituto Biodinâmico (IBD, 2006, apud<br />

IPARDES; IAPAR, 2007), e o Estado do Paraná vem se destacando como um<br />

dos principais produtores do país quer na oferta de alimentos, quer na<br />

quantidade de produtores, quer na diversificação da produção (IPD, 2010).<br />

Segundo Smolinski et al. (2011), o Estado apresenta o crescimento de 36%<br />

ao ano na produção orgânica contra 5% ao ano da convencional. Conforme<br />

os dados do censo agropecuário (IBGE, 2006), são aproximadamente<br />

7.527 produtores orgânicos espalhados por todo o seu território, cujas áreas<br />

de produção são menores do que 50 ha e 82% deles são agricultores<br />

familiares (PARANÁ. SEAB, 2010). A produção orgânica na região é bastante<br />

diversificada, com destaque para: a soja nas regiões oeste e sudoeste; o leite,<br />

a carne suína e de aves na região oeste; as hortaliças na RMC; frutas e o arroz<br />

– 280 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

integral no litoral e nas regiões norte e nordeste; o açúcar mascavo no norte<br />

pioneiro; o café na região norte; o feijão, o milho e as plantas medicinais na<br />

região central; e a erva-mate na região centro-sul (IPARDES; IAPAR, 2007,<br />

PARANÁ.SEAB, 2010, [2011a?], [2011b?]).<br />

Os produtores orgânicos individuais ou organizados, segundo Darolt e<br />

Constanty ([2010]), tendem a operar em circuitos curtos de comercialização,<br />

considerados mais eficientes social e ecologicamente ao favorecer a ampliação<br />

das atividades na propriedade, como o turismo rural, pousada, restaurante,<br />

sistema colhe e pague, agroindústria etc.<br />

Quanto aos consumidores desse tipo de mercado, a motivação para<br />

comprar gira em torno da preocupação com a saúde, com o meio ambiente e<br />

com a qualidade de vida. No Paraná, conforme estudo do IPARDES e IAPAR<br />

(2007), Darolt (2004) e Kirchner (2006), esses consumidores em sua<br />

maioria são do sexo feminino, profissionais liberais ou públicos, têm entre 31<br />

e 50 anos, possuem famílias entre 3 a 4 membros, percebem renda familiar<br />

entre 9 a 12 salários mínimos, têm ensino superior completo, utilizam<br />

regularmente a internet, praticam esportes e geralmente são adeptos a<br />

terapias alternativas.<br />

Existem limitações que impedem que os consumidores aumentem o<br />

consumo de orgânicos, tais como: o preço alto, a oferta insuficiente em<br />

relação à quantidade e a diversidade (principalmente frutas, cereais e<br />

produtos de origem animal), dúvida em relação à procedência do produto e a<br />

falta de informação sobre alimentos orgânicos (IPARDES; IAPAR, 2007;<br />

CURITIBA. SMAB, 2006). Os agricultores contra-argumentam ao dizer que a<br />

falta de políticas direcionadas ao setor, a falta de crédito, a ausência de<br />

assistência técnica, a falta de divulgação, os poucos canais de venda, a<br />

diminuição do tempo no campo para comercializar, além dos custos com<br />

transporte e distribuição, acabam encarecendo os produtos, assim como<br />

diminuem a possibilidade de maior diversidade (IPARDES; IAPAR, 2007).<br />

O consumidor ainda é focado mais no produto orgânico do que no<br />

processo em que ele é gerado, sendo conveniente, conforme apontam Darolt<br />

e Constanty ([2010]), a sua aproximação aos produtores, por meio da<br />

conscientização sobre todos os fatores que envolvem a produção agroecológica<br />

e dos fatores que motivam positivamente a compra e consumo desses<br />

– 281 –


A gestão da informação do processo de comercialização da Cooperafloresta<br />

produtos. Nesse sentido, os autores (ibid.) também sugerem que as<br />

pessoas envolvidas com a comercialização devem receber treinamento<br />

para fornecer informação qualificada ao consumidor sobre o funcionamento<br />

do processo produtivo.<br />

Além dos produtores e consumidores, existem outros agentes envolvidos<br />

no mercado de orgânicos no Paraná apoiando diversas atividades da produção<br />

e da comercialização, como: a assistência técnica, a concessão de crédito,<br />

a certificação, o apoio à comercialização, a capacitação e assistência<br />

organizativa e de gestão, o desenvolvimento de políticas públicas, a realização<br />

de pesquisas, a educação e o apoio ao aumento do consumo.<br />

O apoio e as ações das diversas entidades presentes no mercado<br />

orgânico paranaense têm auxiliado a sua construção, sendo possível identificar<br />

seis tipos diferentes de mercado, sendo cinco deles – mercado da venda<br />

direta, mercado do varejo, mercado de transformação, mercado institucional<br />

e mercado externo – relacionados pelo IPARDES e IAPAR (2007, p. 103-161).<br />

O mercado da venda direta é aquele em que a relação entre o<br />

consumidor e o produtor é face a face, sendo realizada, principalmente,<br />

nas feiras orgânicas. O mercado do varejo relaciona varejistas com os<br />

produtores, tendo como principais compradores os supermercados e as lojas<br />

especializadas. O mercado de transformação tem os agricultores como<br />

fornecedores de matéria-prima e as empresas e associações de agricultores<br />

de transformação dos produtos como os seus principais agentes. O mercado<br />

institucional é operado por meio da compra de alimentos da agricultura<br />

familiar por instituições governamentais e é regulado pelo Programa Nacional<br />

para a Alimentação Escolar (PNAE) para compra de merenda escolar e pelo<br />

Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) para atender a uma das demandas<br />

do programa governamental Fome Zero. O mercado externo deriva da<br />

comercialização das empresas comerciais que atuam conforme a demanda<br />

de compradores externos e, em menor grau, há a participação dos agricultores<br />

ou associações de agricultores. Por fim, existe também o mercado do atacado,<br />

presente no Estado por meio da Central de Abastecimento do Paraná S/A<br />

(CEASA/PR), em que é oferecido um espaço para que os pequenos produtores<br />

de hortigranjeiros e suas organizações possam comercializar no atacado os<br />

seus produtos (CEASA/PR, 2010).<br />

– 282 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Todos esses mercados se inter-relacionam, ora como fornecedores, ora<br />

como compradores. As associações de agricultores familiares estão fortemente<br />

presentes nos mercados da venda direta, de transformação, institucional e do<br />

varejo. Na RMC, a comercialização é realizada predominantemente em<br />

Curitiba, sendo as feiras orgânicas os principais canais para a venda direta na<br />

cidade, onde são ofertados, principalmente, produtos in natura e beneficiados.<br />

A comercialização com os supermercados, por meio das empresas de<br />

processamento mínimo e de beneficiamento, também está presente de<br />

maneira significativa (IPARDES; IAPAR, 2007). Ainda, o PAA e o PNAE têm<br />

fortalecido o mercado institucional na região, ao aumentar as transações<br />

comerciais entre associações e cooperativas ligadas à agroecologia.<br />

Metodologia<br />

Para atingir o objetivo desta pesquisa foi realizado um estudo de caso<br />

único na Cooperafloresta, cujas experiências no mercado de orgânicos na<br />

RMC permitiram a identificação das atividades relacionadas ao processo de<br />

gestão da informação presentes na comercialização de organizações ligadas<br />

à agroecologia na região.<br />

Além da pesquisa bibliográfica realizada para aproximar o tema da<br />

gestão da informação em organizações a aspectos estruturais e culturais de<br />

organizações agroecológicas e às características do mercado agroecológico<br />

da RMC, também foram realizadas observações participantes, uma entrevista<br />

semiestruturada e a aplicação de questionários.<br />

As observações abrangeram a elaboração de roteiros para o<br />

acompanhamento de três reuniões em janeiro de 2011 que abordaram a<br />

estratégia da associação e o funcionamento do processo de comercialização,<br />

além de o processo de comercialização ter sido observado durante oito meses.<br />

A entrevista semiestruturada foi realizada com a gestora da comercialização<br />

da Cooperafloresta à época, em 26 de outubro de 2010, a fim de que<br />

fossem conhecidas a história, a estrutura organizacional e informacional da<br />

Associação. Por fim, foram aplicados três questionários diferentes entre os<br />

meses de outubro e novembro de 2011 com os seguintes agentes envolvidos<br />

no processo de comercialização da Cooperafloresta: 12 membros distribuídos<br />

pelos 10 cargos da equipe do processo de comercialização, 17 dos 22<br />

– 283 –


A gestão da informação do processo de comercialização da Cooperafloresta<br />

membros do Conselho dos Representantes e 21,45% dos consumidores da<br />

organização na feira orgânica do Passeio Público da cidade de Curitiba.<br />

A estrutura tanto dos roteiros das observações participantes quanto<br />

das perguntas da entrevista semiestruturada permitiram, a partir da análise de<br />

conteúdo, a separação das respostas em oito temas: (i) história da organização;<br />

(ii) estrutura organizacional; (iii) recursos financeiros; (iv) cultura organizacional;<br />

(v) estrutura informacional e tratamento das informações; (vi) comportamento<br />

informacional e uso das informações; (vii) processo de comercialização; e,<br />

(viii) forma de inserção no mercado agroecológico da RMC.<br />

Os questionários foram padronizados em quatro partes, com exceção o<br />

dos clientes que foi em três partes, e só foram aplicados depois de terem sido<br />

realizados pré-testes. Após essa fase, as quatro partes foram estabelecidas<br />

da seguinte forma: a primeira refere-se aos dados socioeconômicos dos<br />

entrevistados; a segunda procura conhecer a relação dos entrevistados com a<br />

organização; e a terceira e a quarta fazem um levantamento das necessidades,<br />

das fontes e da distribuição de informações do processo de comercialização.<br />

A construção da terceira e da quarta parte dos questionários foi orientada<br />

pelo estabelecimento de opções de respostas determinadas a partir das<br />

observações participantes realizadas.<br />

Cooperafloresta<br />

A organização tem por objetivo “contribuir para a construção de um<br />

paradigma de cooperação dos seres humanos entre si e com a natureza”<br />

(COOPERAFLORESTA, 2004). Ao longo de sua história, tem se destacado<br />

em atividades para facilitar processos de organização e formação das famílias<br />

agricultoras, a implementação e manutenção dos Sistemas Agroflorestais<br />

(SAFs), além de beneficiar, processar e comercializar a produção<br />

(COOPERAFLORESTA, 2007).<br />

As atividades em torno do planejamento dos SAFs são sustentadas por<br />

mutirões e capacitações. Os processos de organização e formação são<br />

apoiados pela prática do encontro periódico dos membros nos mutirões, nos<br />

Conselhos e na Assembleia Geral. O beneficiamento, o processamento e a<br />

comercialização possuem infraestrutura parcialmente subsidiada por projetos<br />

e possibilitam aos agricultores inclusão no mercado agroecológico local e da<br />

Região Sul.<br />

– 284 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Externamente, a parceria com a Rede Ecovida de Agroecologia,<br />

principal articuladora da agroecologia no Sul do país (PEREZ-CASSARINO,<br />

2012), além de viabilizar a certificação dos produtos da associação, por meio<br />

do sistema participativo de garantia, facilita o contato e as parcerias<br />

comerciais ou políticas com diversos agentes do mercado agroecológico do<br />

Sul do país como outros agricultores familiares, associações, cooperativas,<br />

técnicos e consumidores (REDE ECOVIDA, [20--b]).<br />

Quanto à produção dos associados, são cultivados por volta de 114<br />

alimentos diferentes entre frutas, leguminosas, hortaliças, tubérculos,<br />

processados e derivados de animais tanto destinados ao autoconsumo quanto<br />

à comercialização, conforme estudo realizado por Perez-Cassarino (2012)<br />

na organização.<br />

A comercialização, por sua vez, se concentra em alimentos in natura<br />

beneficiados e processados conforme já levantado no capítulo 9. Segundo<br />

estimativas da organização em 2010 (COOPERAFLORESTA, 2011b), a<br />

banana caturra e a prata representaram 57% da produção, seguida pela<br />

vagem e o limão rosa com 4%. A banana é o alimento mais vendido e é o<br />

produto de referência da organização no mercado agroecológico do Sul do<br />

país, uma vez que a oferta da Cooperafloresta é demandada por diferentes<br />

organizações agroecológicas presentes nos três Estados dessa região.<br />

São cinco os canais com os quais a Cooperafloresta comercializa a sua<br />

produção: as Feiras Orgânicas da Cidade de Curitiba, o PAA dos Estados de<br />

São Paulo e do Paraná, o Circuito Sul de Agroecologia, as feiras solidárias em<br />

parceria com grupos das padarias comunitárias da RMC e vendas em sua<br />

sede (os canais de comercialização também foram levantados no capítulo 9<br />

deste <strong>livro</strong>). Diferente de outras organizações ligadas à agroecologia, os<br />

feirantes da Associação, com exceção de um, não são os agricultores<br />

associados, mas pessoas residentes da RMC, cujo serviço é pago por período<br />

trabalhado. Em 2010, a maior parte do faturamento total, aproximadamente<br />

R$ 842.000,00, foi proveniente do mercado institucional, conforme ilustra o<br />

Gráfico 1 a seguir:<br />

– 285 –


A gestão da informação do processo de comercialização da Cooperafloresta<br />

Gráfico 1: Porcentagem do Faturamento Total de 2010 de<br />

cada Canal de Comercialização da Cooperafloresta<br />

Fonte: Adaptado de Cooperafloresta (2011b).<br />

Antes dos SAFs, os associados sobreviviam da produção de feijão em<br />

terras empobrecidas pelas queimadas e pela erosão. Cada agricultor procurava<br />

viabilizar a venda de sua produção de forma independente, obtendo rendas<br />

de no máximo dois salários mínimos ao ano, conforme estudo realizado pelo<br />

Departamento de Estudos SocioEconômicos Rurais (DESER, 2008b) na<br />

Associação. No ano de 2010 a Cooperafloresta proporcionou às famílias<br />

associadas a renda média mensal de R$ 315,00 (COOPERAFLORESTA,<br />

2011b). A Tabela 1 a seguir compara dados socioeconômicos da organização<br />

ao longo dos últimos cinco anos:<br />

TABELA 1 – DADOS SOCIOECONÔMICOS DA COOPERAFLORESTA ENTRE OS ANOS DE<br />

2005 E 2010<br />

Dados<br />

socioeconômicos<br />

Famílias praticando<br />

agrofloresta<br />

Produção<br />

comercializada (Kg/ano)<br />

Renda bruta total da<br />

associação (R$/ano)<br />

Renda bruta total dos<br />

agricultores (R$/ano)<br />

Crescimento da renda<br />

familiar (R$/ano)<br />

Ano<br />

2005 2006 2007 2008 2009 2010<br />

62 72 83 80 101 110<br />

81.527,30 143.760,96 260.303,52 272.739,33 464.569,72 515.061,70<br />

R$ 97.718,62 R$ 125.072,04 R$ 225.553,46 - - R$ 842.332,50<br />

R$ 63.223,95 R$ 80.921,61 R$ 166.800,00 R$ 188.047,83 R$ 341.137,56 R$ 416.855,71<br />

R$ 1.019,74 R$ 1.123,91 R$ 2.009,64 R$ 2.350,60 R$ 3.377,60 R$ 3.789,60<br />

FONTE: Adaptado de Cooperafloresta (2011b) e Deser (2008a; 2008b).<br />

– 286 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

A renda familiar anual quase quadruplicou nesse período. Em estudo<br />

realizado por Perez-Cassarino (2012) na Cooperafloresta, foi verificado que<br />

anteriormente à organização, 65% das 72 unidades familiares entrevistadas<br />

comercializavam sua produção com atravessadores e afirmavam receber<br />

pagamento entre uma e quatro vezes ao ano pelas vendas realizadas. Após a<br />

entrada na organização, 85% dos agricultores entrevistados declararam<br />

comercializar entre 90% e 100% de sua produção com a Associação e dizem<br />

receber, hoje, pagamento mensal pelos produtos vendidos à Cooperafloresta.<br />

A organização, dessa forma, proporciona melhoria na qualidade de<br />

vida da região ao gerar renda, conhecimento, organizar os associados e<br />

valorizar a cultura local, além de promover a conservação ambiental ao<br />

disseminar as práticas agroflorestais.<br />

O processo de comercialização da Cooperafloresta e o contexto<br />

organizacional da Associação<br />

As análises realizadas por esta pesquisa resultam da sistematização<br />

dos dados coletados e da sua interpretação a partir da teoria levantada sobre<br />

a gestão da informação. Essa teoria foi desenvolvida, principalmente, pela<br />

aproximação de duas áreas do conhecimento: a administração e a ciência da<br />

informação. O recorte teórico escolhido foi o processo da gestão da informação,<br />

cujo modelo técnico administrativo delineia as análises e conclusões<br />

apresentadas. Esse modelo prevê o entendimento dos contextos externo,<br />

organizacional e individual para sustentar a análise sobre como é e como<br />

poderia ser planejado o processo da gestão da informação de uma organização.<br />

As linhas a seguir apresentam a compreensão da autora sobre esses três<br />

contextos no âmbito da organização objeto deste estudo, a Cooperafloresta.<br />

O processo de comercialização da Cooperafloresta está inserido no<br />

mercado de orgânicos da RMC, sendo esse o ambiente externo do processo<br />

de comercialização da organização. As relações presentes nesse processo<br />

entre os associados, a organização e os clientes, possibilitam o enquadramento<br />

da Cooperafloresta em quatro dos cinco tipos de canais de comercialização<br />

de orgânicos existentes no Paraná, identificados pelo estudo do IPARDES e<br />

IAPAR (2007, p. 103-161): (i) no mercado da venda direta, por comercializar<br />

– 287 –


A gestão da informação do processo de comercialização da Cooperafloresta<br />

sua produção em feiras orgânicas na cidade de Curitiba; (ii) no mercado de<br />

transformação, por comprar alimentos dos agricultores associados, adicionar<br />

valor agregado, por meio do beneficiamento e processamento mínimo, e<br />

vendê-los; (iii) no mercado institucional, por comercializar a produção com<br />

instituições beneficiárias do PAA; e, (iv) em menor grau, no mercado do<br />

varejo por comercializar com lojas especializadas.<br />

A Figura 1 a seguir ilustra o processo de comercialização da organização,<br />

o qual processa entradas em saídas, sendo assim visto como um sistema,<br />

conforme observa Chiavenato (2000) ao descrever a atividade de uma<br />

organização tida como sistêmica:<br />

Figura 1: Processo de Comercialização da Cooperafloresta na Rmc<br />

Fonte: Adaptado de Cooperafloresta (2011a).<br />

Nota 1: As atividades de contorno em negrito são realizadas nos estabelecimentos da organização,<br />

as de contorno pontilhado chato na RMC ou no Estado de São Paulo e as de contorno pontilhado<br />

arredondado representam o trânsito das cargas. A atividade de contorno oval apoia todas as outras<br />

atividades do processo.<br />

– 288 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Conforme apresentado na Figura 1, o processo constitui-se de atividades<br />

que vão desde a coleta dos produtos em pontos predefinidos nas estradas<br />

locais até o pagamento dos agricultores. Internamente, o processo de<br />

comercialização engloba atividades das unidades funcionais da produção,<br />

da comercialização e do administrativo-financeiro. Além dessas três<br />

unidades funcionais, a organização possui a assessoria técnica e pedagógica<br />

e a de projetos e pesquisas, cujas ações impactam tanto no que pode ser<br />

produzido pelos associados quanto no apoio financeiro à estrutura e a<br />

algumas atividades comerciais.<br />

O processo de comercialização reúne doze cargos diferentes,<br />

executados por 22 pessoas, entre diretores, assessores externos, supervisor<br />

de comercialização, analista administrativo-financeiro, ajudantes de<br />

beneficiamento, responsáveis pelo beneficiamento e pela climatização da<br />

banana, motoristas, ajudantes de motorista e feirantes. Desse total, 15 são<br />

pertencentes às unidades familiares da Associação e recebem por hora<br />

trabalhada. O restante é, geralmente, pago por meio de recursos de projetos<br />

e recebem por produto ou serviço realizado, além de receber diárias quando<br />

precisam viajar.<br />

As entrevistas realizadas revelaram que a escolaridade dos membros<br />

da equipe da comercialização é maior do que a dos associados. Do total dos<br />

associados entrevistados, 64,7% possuem ensino fundamental incompleto,<br />

enquanto 66,6% do total dos membros da equipe possuem escolaridade<br />

entre fundamental completo e médio completo. Vale ressaltar que 66,6% dos<br />

membros da equipe de comercialização entrevistados são associados e a<br />

maioria da equipe não possui experiência prévia para as funções que<br />

executam. Por um lado, a escolaridade dos membros da equipe e o perfil<br />

auto-organizativo dos agricultores influenciam a construção de conhecimento<br />

que possibilita a execução das atividades comerciais da organização. Por<br />

outro, a insuficiência de procedimentos internos que orientem a forma como<br />

executar as tarefas, de conhecimentos em técnicas gerenciais e em outras<br />

funções técnicas necessárias à comercialização, e a falta de cargos gerenciais<br />

colaboram para que os membros da equipe conheçam suas funções,<br />

principalmente, por si mesmos, conforme desenvolvem suas atividades.<br />

– 289 –


A gestão da informação do processo de comercialização da Cooperafloresta<br />

Ainda, os recursos destinados às atividades comerciais não se fazem<br />

suficientes para abarcar, ao mesmo tempo, a expansão das atividades para<br />

agregação de valor dos produtos, como alguns custos da construção da<br />

agroindústria da Associação, e para subsidiar funções administrativas,<br />

técnicas e de assessoria em comercialização, ressaltando o já destacado pelo<br />

IPARDES e IAPAR (2007) e por Schultz (2001) ao indicarem a fragilidade<br />

desse tipo de organização em possuir pessoal capacitado e qualificado em<br />

funções administrativas. A falta de recursos suficientes e de pessoal qualificado<br />

é fator também percebido por 52,9% (9) dos agricultores entrevistados ao<br />

justificarem por que alguns dos problemas comerciais levantados em reuniões<br />

não são solucionados.<br />

A estrutura política formal da associação, conforme prevê o Estatuto<br />

(COOPERAFLORESTA, 2004), se dá por meio da deliberação, do monitoramento<br />

e do controle das atividades da organização pelas Assembleias, por três<br />

Conselhos e pela Diretoria. Entre os Conselhos está o dos Representantes,<br />

formado por um representante de cada um dos 22 grupos da organização que<br />

se reúnem uma vez ao mês para discutir e deliberar sobre as atividades da<br />

associação. A periodicidade das reuniões do Conselho dos Representantes,<br />

além da frequência da prática de mutirões, possibilitam a participação<br />

constante dos associados na gestão da associação, além de serem espaços<br />

que promovem a organização produtiva e política dos agricultores. Entretanto,<br />

apesar dessa estrutura formal, o que se observa na prática é a deliberação e<br />

gestão organizacional para assuntos estratégicos e alguns táticos pela<br />

assessoria técnica. Não se trata da anulação das atividades e dos efeitos dos<br />

mecanismos formais de gestão da organização, mas da dependência e (ou)<br />

influência da assessoria técnica nas decisões realizadas pela organização.<br />

Essa situação pode ser explicada pela história de formação da<br />

organização, cujo progresso esteve estreitamente atrelado às atividades e<br />

aos esforços dessa assessoria, a qual, ao longo dos anos, acumulou grande<br />

conhecimento sobre a comercialização de produtos ecológicos, aumentou<br />

sua capacidade na prospecção de projetos patrocinadores, intensificou<br />

contatos com pesquisadores e estimulou a evolução dos SAFs dos associados.<br />

O perfil dos agricultores familiares da região também pode se apresentar como<br />

uma explicação para essa situação, sendo esse marcado, muitas vezes, pela<br />

– 290 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

submissão dos agricultores familiares aos sistemas latifundiários, conforme<br />

já observado por Scorpinho e Martins (2003), pela baixa escolaridade e,<br />

algumas vezes, pela ausência de experiência e estímulos à participação em<br />

processos organizativos.<br />

Em 2011, a assessoria técnica da organização iníciou um processo<br />

de transferência da gestão interna da associação – com destaque para as<br />

atividades relacionadas à comercialização – para a diretoria, em um primeiro<br />

momento. Essa transferência estimulou a equipe do processo da comercialização<br />

a realizar algumas oficinas no intuito de capacitar os associados a tomarem<br />

decisões sobre os assuntos comerciais da organização.<br />

Ainda, em relação à estrutura informacional disponibilizada, é baixa a<br />

padronização de termos e reunião de arquivos internos. Essa estrutura<br />

somada ao contexto político e cultural da organização ao dependerem da<br />

assessoria técnica para boa parte das atividades comerciais e da dificuldade<br />

na coordenação de informações entre essas atividades, fator esse reforçado<br />

por Schultz (2001) em sua pesquisa em outras organizações similares na<br />

Região Sul do país, denunciam a desarticulação de um estratégia informacional<br />

comum da organização, como também do uso de técnicas para o uso racional<br />

da informação.<br />

O processo de gestão da informação da Cooperafloresta<br />

A fim de se chegar ao objetivo proposto por este trabalho, foram<br />

escolhidas as seguintes atividades do processo de gestão da informação<br />

para serem analisadas no processo de comercialização da Cooperafloresta:<br />

identificação das necessidades, busca, armazenamento e tratamento,<br />

disponibilização e uso das informações. Essas atividades devem ser<br />

analisadas considerando o contexto organizacional em que estão inseridas<br />

e pelo qual são influenciadas (DAVENPORT; PRUSAK, 1998). A seguir,<br />

essas atividades são apresentadas.<br />

Necessidades de informação<br />

A identificação das necessidades de informação baseia-se, conforme<br />

observado por Taylor (1982), na identificação de um problema a ser resolvido,<br />

de uma tarefa a ser realizada ou uma área ou assunto a ser analisado. Essa<br />

identificação ainda envolve aspectos individuais e organizacionais relacionados<br />

– 291 –


A gestão da informação do processo de comercialização da Cooperafloresta<br />

aos indivíduos que apresentam a necessidade (DAVENPORT; PRUSAK,<br />

1998). Ainda aspectos individuais como a relativa baixa escolaridade dos<br />

membros da equipe de comercialização e dos associados e a insuficiência<br />

qualificação de alguns membros da equipe influem em como as necessidades<br />

são criadas. Aspectos organizacionais como a dependência da execução de<br />

algumas atividades comerciais na assessoria técnica, a pouca sistematização<br />

das informações, a falta de um consenso sobre quais informações devem ser<br />

priorizadas e o aspecto auto-organizativo dos agricultores também interferem<br />

na maneira como surgem as necessidades.<br />

As entrevistas e observações participantes realizadas revelaram 36<br />

informações que são necessárias ao processo de comercialização da<br />

associação, as quais refletem os problemas a serem resolvidos, tarefas a<br />

serem realizadas ou área ou assunto a ser analisado. As informações<br />

necessárias identificadas envolvem informações comerciais, de gestão, de<br />

mercado, técnicas, financeiras, de produção, legais, estatísticas e gerais.<br />

Desse total, algumas informações necessárias foram má qualificadas pelos<br />

entrevistados, são elas: (i) Saldo da Conta Corrente e lista de respectivos<br />

produtos e serviços disponíveis; (ii) Critérios e avaliações da fiscalização do<br />

manejo agroflorestal nas propriedades dos associados; (iii) Padronização e<br />

critérios de qualidade para os produtos; (iv) Tarefas e responsabilidade dos<br />

membros da equipe de comercialização; (v) Ações dos projetos da Associação<br />

relacionadas com a comercialização; (vi) Formas e conteúdos para a<br />

divulgação sobre os produtos e da organização; (vii) Compra de insumos<br />

para a comercialização, beneficiamento e processamento mínimo; (viii)<br />

Propriedades dos alimentos; (ix) Formas para aproximar os consumidores dos<br />

agricultores; (x) Normas, regulamentos e impostos sobre o transporte de<br />

alimentos e a prestação de serviços à comercialização; e (xi) Estratégias e<br />

procedimentos para o acesso aos mercados institucionais. Ainda destacamse<br />

as informações consideradas necessárias, mas que não são utilizadas: (i)<br />

Planejamento e controle de produção e (ii) Proposta para novos preços de<br />

compra dos alimentos dos associados e de venda dos produtos da associação 2 .<br />

2<br />

A relação de necessidades de informação foi gerada a partir da análise dos dados coletados pelas<br />

técnicas de pesquisa empregadas por este trabalho. Para mais detalhes sobre essa análise, ver<br />

Costa e Silva (2012).<br />

– 292 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Uma vez identificadas as necessidades, decisões organizacionais<br />

definirão a pertinência delas aos objetivos organizacionais, ao tempo e aos<br />

custos envolvidos na sua procura, conforme afirma Ingwersen (1996). Os<br />

decisores influenciarão para a execução da próxima atividade do processo de<br />

gestão da informação, a busca pelas informações necessárias. Na<br />

Cooperafloresta, conforme já mencionado, esses passos não são bem<br />

definidos, além de não terem sido observadas discussões entre as diferentes<br />

unidades funcionais na busca de estabelecer as necessidades informacionais<br />

prioritárias, o que impacta, juntamente com o nível de qualificação dos<br />

membros da equipe, no desempenho das outras atividades do processo de<br />

gestão da informação.<br />

Busca por informações<br />

Apesar da atividade da busca por informações requerer um plano<br />

sistemático (McGEE; PRUSAK, 1994) na Cooperafloresta esse plano precisa<br />

ser melhor estruturado e articulado. A forma como a organização busca por<br />

informações, conforme levantado pelas entrevistas e observações participantes<br />

realizadas, é determinada tacitamente por quem a realiza. Conforme a busca<br />

se desenvolve, a escolha das fontes, geralmente, é influenciada pelos contatos<br />

pessoais dos membros da equipe, o que imprime um significativo traço de<br />

pessoalidade e informalidade às fontes de informação da organização. Ainda<br />

elas são, em sua maioria, externas à organização, sendo essa uma<br />

característica natural entre organizações de médio e pequeno porte, conforme<br />

observam Bastos (2006) e Céndon (2002).<br />

Essa forma de busca reflete a estrutura informacional disponibilizada e<br />

a cultura organizacional existente, marcada pela dependência à assessoria<br />

técnica e pela predominância da pessoalidade e informalidade nas relações,<br />

as quais são incorporadas ao comportamento dos indivíduos quando buscam<br />

por informações.<br />

Ainda essa busca por informações se faz em um horizonte informacional<br />

composto por diferentes fontes de informação, conforme definido por<br />

Sonnenwald (1999), o qual, na Cooperafloresta, é formado: pelas redes<br />

sociais (assessoria, contatos, eventos e reuniões), pelos documentos<br />

(relatórios, relações e controles internos, legislação, artigos e trabalhos<br />

técnicos e acadêmicos externos, documentos da internet e contratos de<br />

– 293 –


A gestão da informação do processo de comercialização da Cooperafloresta<br />

compra e venda), pelas ferramentas para recuperar informação (sites e<br />

emails) e pela experimentação e observação do mundo (dos membros da<br />

equipe da comercialização, dos conselheiros, dos técnicos e dos clientes).<br />

Igualmente ao ocorrido com pequenas e médias empresas brasileiras<br />

(JANNUZZI; MONTALLI, 1999; CÉNDON, 2002), na Cooperafloresta a<br />

busca por informações relacionadas ao seu processo de comercialização se<br />

dá mais externamente do que internamente, há a utilização de muitas fontes<br />

pessoais e informais, além de haver dificuldades em encontrar informações<br />

pela diversidade de fontes, terminologias, conteúdos disponibilizados,<br />

sistemas de busca, acesso e disponibilidade 3 .<br />

Armazenamento e tratamento das informações<br />

A armazenagem e o tratamento das informações relacionadas ao<br />

processo de comercialização são realizados dispersamente em programas do<br />

pacote Office®, não constando assim de um sistema de informação<br />

estruturado que atenda às especificidades da organização. Os cargos<br />

dificilmente possuem um planejamento prévio das atividades que deverão<br />

executar, estando seus membros sujeitos ao conhecimento de suas tarefas<br />

durante a execução delas e por meio de conversas com outros membros<br />

da equipe.<br />

Devido às relações pessoais e informais predominantes na organização,<br />

o tratamento da informação, realizado por meio da formatação, estruturação<br />

e apresentação da mesma (McGEE; PRUSAK, 1994), tem-se concentrado<br />

no levantamento e organização dos dados para a prestação de contas,<br />

para as atividades de formação da comercialização e em atas de reuniões.<br />

A apresentação dessas informações é realizada em documentos, geralmente,<br />

impressos e atraem o uso de poucos usuários.<br />

Disponibilização das informações<br />

A disponibilização das informações do processo de comercialização se<br />

dá em reuniões mensais da equipe de comercialização, do conselho dos<br />

3<br />

Para mais detalhes da análise realizada sobre as fontes de informação do processo de<br />

comercialização da Cooperafloresta, ver Costa e Silva (2012).<br />

– 294 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

representantes, dos mutirões e, mais recentemente, em oficinas de formação<br />

em comercialização. Nessas reuniões é apresentada a Prestação de Contas<br />

(balancete mensal das transações comerciais, dados da produção, do<br />

armazenamento e da distribuição) da comercialização, são discutidos<br />

problemas e ideias sobre o processo entre os membros da equipe e sobre as<br />

demandas dos grupos de agricultores da associação. A organização, por meio<br />

dessas reuniões, busca estender a participação na gestão não só aos<br />

associados, mas também dos membros do processo de comercialização.<br />

Contudo, a influência da assessoria técnica nas atividades comerciais<br />

canalizam a distribuição de informações estratégicas, institucionais e,<br />

algumas vezes, táticas, geralmente, no sentido da assessoria técnica para a<br />

Diretoria e os Conselhos, e para os setores de base de forma paralela. Algumas<br />

informações operacionais e táticas e poucas estratégicas e institucionais se<br />

orientam de forma inversa, da produção, da comercialização, da Diretoria e<br />

dos Conselhos para a assessoria técnica.<br />

Conforme apontam Davenport e Prusak (1998) e Choo (2003), as fontes<br />

informais são tão importantes quanto as fontes formais, pela contextualização<br />

e confiabilidade que imprimem à informação. Na Cooperafloresta, a<br />

predominância da distribuição das informações por meio de conversas para a<br />

execução das atividades ressalta a forte presença da informalidade nas<br />

relações e também na tomada de decisão. Apesar da importância das fontes<br />

informais da Cooperafloresta para o seu funcionamento, o seu excesso pode<br />

fragilizar os seus processos organizacionais e as suas decisões estratégicas,<br />

se considerado o momento atual de expansão das atividades em que a<br />

organização se encontra.<br />

Uso da informação<br />

Na Cooperafloresta, nem todas as informações disponibilizadas são<br />

utilizadas plenamente, uma vez que, além da fragilidade na qualificação de<br />

pessoal, muitas vezes, a sua apresentação e (ou) a escolha das informações<br />

a serem informadas não estão alinhadas ao entendimento atual que os<br />

usuários têm sobre a comercialização. Conforme já levantado, a influência da<br />

assessoria técnica é significativa, assim o uso das informações estratégicas/<br />

institucionais e táticas, não são totalmente utilizadas pela maioria dos<br />

– 295 –


A gestão da informação do processo de comercialização da Cooperafloresta<br />

membros da equipe da comercialização, pelos conselheiros e pelos associados.<br />

O uso das informações pelos membros da equipe da comercialização<br />

prevalece para aquelas relacionadas às atividades imediatas dos mesmos e<br />

para os conselheiros mais entendidos sobre o processo da comercialização.<br />

Dessa forma, o capacidade que o uso da informação oferece ao aumento<br />

não só do conhecimento individual como também do coletivo, segundo<br />

observam Taparanoff (2006) e Beal (2008), é ainda um potencial entre os<br />

membros da equipe de comercialização e entre os associados da Cooperafloresta.<br />

Considerações finais<br />

O conhecimento dos problemas, das características dos ambientes<br />

interno e externo da Cooperafloresta e do contexto cognitivo e social dos<br />

agentes entrevistados, aspectos esses destacados por Choo (2003), Davenport<br />

e Prusak (1998), Sonnenwald (1999) e Taylor (1982), formou a base para a<br />

identificação das atividades relacionadas ao processo de gestão da informação<br />

nas atividades comerciais da Cooperafloresta na RMC.<br />

Externamente, a Cooperafloresta é caracterizada por pertencer a um<br />

mercado alternativo, cujas movimentações são diferenciadas das do<br />

convencional, adequando-se às características de mercado apresentadas<br />

pelo IPARDES e IAPAR (2007), por Darolt e Constanty (2010) e por<br />

Sevilla-Guzmán (2001), pois é marcada por uma relação mais próxima<br />

com o consumidor, além de ter no governo um dos principais compradores<br />

e viabilizadores da venda de seus produtos. Também se relaciona<br />

constantemente, de forma pessoal e informal, com outras entidades ligadas<br />

à agroecologia, seja para comercializar, seja para cooperar politicamente na<br />

discussão sobre a agroecologia.<br />

Internamente, a organização alinha-se com algumas constatações já<br />

observadas pelo IPARDES e IAPAR (2007) e por Schultz (2001) sobre<br />

organizações de agricultores familiares, como a falta de recursos humanos<br />

capacitados para trabalhar nas atividades administrativas e técnicas<br />

relacionadas ao processo de comercialização, de recursos financeiros<br />

suficientes e do uso de informações alinhadas e coordenadas para apoiar<br />

essas atividades. Esses fatores reforçam a desarticulação de uma estratégia<br />

informacional e da utilização de técnicas para a gestão da informação do<br />

– 296 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

processo de comercialização da organização. Soma-se a essas dificuldades a<br />

concentração de considerável parte do conhecimento e de decisões<br />

estratégicas sobre a comercialização na assessoria técnica, reduzindo a<br />

autonomia dos associados e dos membros da equipe da comercialização.<br />

Às fragilidades adicionam-se aspectos positivos como a capacidade<br />

da assessoria técnica na prospecção de projetos patrocinadores, o seu<br />

conhecimento acumulado sobre a comercialização, a atração de<br />

pesquisadores e o perfil auto-organizativo e solidário dos membros da<br />

equipe de comercialização. Esses aspectos solidificam as operações e a<br />

permanência da Associação nos mercados orgânicos que acessam.<br />

As atividades do processo de gestão da informação, conforme descritas<br />

na literatura, relacionadas às atividades comerciais da organização são pouco<br />

estruturadas e sistematizadas. Não foi observado consenso em relação à<br />

quais informações necessárias devem ser priorizadas pelas diferentes<br />

unidades organizacionais da associação, o que dificulta a construção de uma<br />

estratégia informacional e a decisão por quais informações buscar. Contudo,<br />

o caráter auto-organizativo da equipe de comercialização e dos associados<br />

preenchem essa coluna possibilitando-os a levar adiante o restante das<br />

atividades do processo de gestão da informação.<br />

Não foi percebida uma estratégia de busca definida e há a influência da<br />

informalidade e da pessoalidade, além da predominância da dispersão e da<br />

diversificação das terminologias, nas fontes identificadas, aspectos também<br />

observados em organizações empresariais de médio e pequeno porte por<br />

Januzzi e Montalli (1999) e Cendón (2002). Apesar das dificuldades, o seu<br />

horizonte informacional tem nas redes sociais importantes fontes informais e<br />

pessoais que a auxiliam no desenvolvimento de suas atividades. A importância<br />

das fontes pessoais e informais, ressaltadas por Choo (2003) e Davenport e<br />

Prusak (1998), nas ações da organização, garante grande parte do seu<br />

funcionamento, contudo conforme a associação se expande é interessante que<br />

a formalização aumente para fazer frente à crescente quantidade e complexidade<br />

das novas relações e atividades que serão estabelecidas.<br />

As informações coletadas sofrem pouca sistematização devido à<br />

estrutura informacional precária e à falta de procedimentos, impactando o<br />

tratamento e armazenamento delas. Apesar da influência da assessoria<br />

– 297 –


A gestão da informação do processo de comercialização da Cooperafloresta<br />

técnica nas atividades comerciais, a disponibilização das informações da<br />

organização busca a participação dos associados e dos membros da equipe<br />

de comercialização na gestão, uma vez que é proporcionado diferentes<br />

espaços para a comunicação e disseminação das informações comerciais –<br />

reuniões periódicas, oficinas e mutirões. Por fim, mesmo havendo esses<br />

diferentes espaços, ainda é limitado o entendimento da informação por seus<br />

usuários, o que impacta na atuação dos membros da organização e da equipe<br />

de comercialização como tomadores de decisões.<br />

Nesse sentido, a partir da experiência da Cooperafloresta, conclui-se<br />

que a gestão da informação do processo de comercialização de produtos<br />

agroecológicos da RMC pode ser melhor apoiada se as organizações envolvidas<br />

nesse processo definam as ações que devem priorizar, usar estratégias de<br />

busca e técnicas para o tratamento de informações, melhorar a disseminação<br />

e o compartilhamento das informações entre os agentes envolvidos no<br />

processo e, por fim, formar esses agentes para que possam assimilar as<br />

informações disseminadas e compartilhadas.<br />

A informação, segundo Barreto (2002), quando adequadamente<br />

assimilada, tem a competência de gerar conhecimentos que modificam a<br />

consciência do indivíduo e do seu grupo, podendo trazer benefícios para a<br />

sociedade em que vivem. Os princípios da agroecologia, levantados por Altieri<br />

(2009) e por Sevilla-Guzmán (2001), reforçam a importância dos agricultores<br />

e dos consumidores como atores autônomos de um processo de transformação<br />

social e ambiental. Nessa perspectiva, o estabelecimento de estratégias que<br />

possibilitem a comunicação e a adequada assimilação da informação, tornase<br />

ferramenta essencial para a geração dessa autonomia e, dessa forma,<br />

contribui para o desenvolvimento da agroecologia como alternativa para a<br />

construção de uma sociedade mais justa, igualitária e sustentável.<br />

É importante destacar que após a aplicação desta pesquisa, a<br />

Cooperafloresta continuou o seu processo de transferência da gestão interna<br />

para os associados e hoje encontra-se em um contexto diferenciado daquele<br />

em que foi baseado a coleta de dados e análises apresentadas por este capítulo.<br />

A dependência e influência da assessoria técnica nos assuntos comerciais<br />

sofreram considerável redução e a equipe da comercialização vem discutindo<br />

com a diretoria e com o Conselho dos Representantes sobre as necessidades<br />

– 298 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

informacionais e decisões relacionadas ao processo, além de estar planejando<br />

a continuação das oficinas sobre comercialização com os associados. A equipe<br />

também reestabeleceu um novo fluxo de informações entre seus membros e<br />

vem sistematizando e apresentando algumas informações, em especial as<br />

financeiras, aos associados e membros da equipe.<br />

Diante do que foi diagnosticado neste trabalho, nota-se a eminência<br />

de desdobramentos do estudo para auxiliar no fortalecimento organizacional<br />

não só da Cooperafloresta, mas, principalmente, das organizações de<br />

agricultores familiares da região. Entre eles, destacam-se: estudos sobre<br />

como definir e operar uma estratégia informacional para essas organizações<br />

e como definir e desenvolver uma política informacional alinhada com a<br />

estratégia pretendida; análises dos espaços e dos formatos de disseminação<br />

(e disponibilização) das informações atuais, bem como a identificação de<br />

formas para potencializá-la; e estudos sobre o uso da informação e autonomia<br />

dos usuários.<br />

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– 303 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 11<br />

Geração e uso de indicadores de monitoramento<br />

de agroflorestas por agricultores associados<br />

à Cooperafloresta<br />

Walter Steenbock,<br />

Rodrigo Ozelame da Silva,<br />

Carlos Eduardo Seoane,<br />

Luís Cláudio Maranhão Froufe,<br />

Priscila Cazarin Braga,<br />

Rômulo Macari da Silva.<br />

Introdução<br />

O desenvolvimento local se constitui em um processo coevolucionário<br />

entre elementos associados ao ambiente, à tecnologia, aos valores, ao<br />

conhecimento e à organização social nas comunidades locais (NOORGARD E<br />

SIKOR, 2002). Esses fatores são interdependentes e influenciam-se mutuamente,<br />

determinando diferentes aspectos da vida cotidiana e das paisagens.<br />

Neste contexto, o saber, especialmente o saber ecológico, é fruto de<br />

um processo adaptativo e interativo com os ecossistemas e populações<br />

humanas, e de diferentes percepções sobre a natureza (VIVAN e FLORIANI,<br />

2006). São essas percepções que geram os conhecimentos transmitidos<br />

sobre espécies, comunidades, processos ecológicos, ciclos e fenômenos.<br />

Esse saber dá sustentação à criação e ao uso das tecnologias, as quais<br />

viabilizam a reprodução física e têm um papel fundamental na cultura como<br />

um todo. Os componentes e significados do saber são assim tanto tangíveis<br />

como intangíveis, e ambas as dimensões podem se fundir como partes de um<br />

todo lógico para a tomada de decisão (VIVAN e FLORIANI, 2006).<br />

Desde 1996, famílias de agricultores de Barra do Turvo e de Adrianópolis<br />

vêm experimentando a prática agroflorestal, transformando-a em base<br />

– 305 –


Geração e uso de indicadores de monitoramento de agroflorestas<br />

por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

produtiva – além dos vínculos sociais e culturais, já descritos nos capítulos<br />

anteriores – de sua reprodução social. Diagnosticar este saber pode ser útil<br />

em vários sentidos, entre os quais o uso deste saber na amplificação de si<br />

próprio. Para tanto, o saber agroflorestal deve ser considerado em meio à<br />

complexidade acima apresentada, sendo um grande desafio.<br />

Nesse desafio, é importante considerar que quem faz um diagnóstico<br />

é o primeiro a ter clareza dos pontos fortes e fracos, ou das vantagens e<br />

desvantagens do objeto ou da realidade diagnosticada e, portanto, é o primeiro<br />

a ser capaz de transformá-la. Em outras palavras, diagnosticar com clareza é<br />

parte do empoderamento para direcionar ações e atitudes. Neste sentido, o<br />

envolvimento comunitário dos agricultores associados à Cooperafloresta no<br />

diagnóstico de aspectos relacionados à sua realidade é fundamental.<br />

Eyben et al. (2008) definem empoderamento como um processo que<br />

ajuda indivíduos ou grupos de indivíduos a adquirir e ampliar o controle sobre<br />

suas próprias vidas, aumentando a capacidade de trabalhar com assuntos<br />

que eles mesmos definam como importantes. Se se busca o empoderamento<br />

em um processo de diagnóstico, em meio a uma realidade complexa, a<br />

preocupação da inclusão e da participação é inerente.<br />

Para que haja participação e envolvimento para o empoderamento, a<br />

questão da linguagem e da metodologia utilizados em um diagnóstico é de<br />

especial importância. Hersch-Martinez e Chevez (1996) propõem que<br />

quando, por uma questão metodológica, se desvincula o saber da população<br />

acerca de seu recurso (com todos os seus valores inclusos), esta se converte em<br />

objeto informante. Este saber será decifrado e recodificado em um processo de<br />

apropriação e interpretação de dados que forma parte da realidade construída<br />

pelo mundo acadêmico. Tal redução implica não somente em desrespeito ao<br />

mundo de crenças e instituições do informante, mas na retirada da condição<br />

de sujeito do conhecimento que o mesmo efetivamente é. Acreditando que<br />

não tem conhecimento, o ex-sujeito não confia na sua utilização, passando<br />

a ser influenciado por um suposto conhecimento mais elevado de quem o<br />

expropriou (HERSCH-MARTINEZ & CHEVEZ, 1996).<br />

Assim, é fundamental que o empoderamento gere autonomia, definida<br />

como a construção de si próprio a partir de seus sentidos para a ação e para<br />

a autogestão da base de recursos, tanto os materiais como os imateriais<br />

(PLOEG, 2008).<br />

– 306 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Tendo tais premissas apontadas como eixo, procurou-se desenvolver<br />

um método de diagnóstico e monitoramento de agroflorestas, a partir de<br />

indicadores construídos de forma participativa, junto a agricultores associados<br />

à Cooperafloresta.<br />

Indicadores agroflorestais<br />

A Cooperafloresta atua, tecnicamente, em sete núcleos de formação,<br />

que se constituem em conjuntos de bairros em que as capacitações, trocas<br />

de experiências, reuniões e mutirões ocorrem de forma integrada. Para<br />

identificar como os agricultores da Cooperafloresta definem as agroflorestas,<br />

foi realizado, durante oficinas de capacitação que ocorrem mensalmente<br />

em cada núcleo, um levantamento dos conceitos associados ao termo<br />

“Agrofloresta”. Este levantamento ocorreu entre os meses de março e abril<br />

de 2011.<br />

Para tanto, foi proposto que os agricultores indicassem respostas à<br />

seguinte pergunta: “que indicadores definem o que é uma boa agrofloresta?;<br />

ou, “o que é uma boa agrofloresta?”, “o que tem numa boa agrofloresta?”.<br />

Essa pergunta foi feita em cinco oficinas de capacitação, que agregaram<br />

os sete núcleos de formação. As respostas foram indicadas em tarjetas e,<br />

após dispostas em conjunto, foram priorizadas coletivamente (de acordo com<br />

a metodologia de priorização coletiva – Geilfus, 1997).<br />

Na Figura 1, estão representados os indicadores que definem boas<br />

agroflorestas, de acordo com os agricultores presentes nas cinco oficinas de<br />

capacitação. Junto a cada indicador, são apresentados valores da priorização,<br />

relativizados em forma de percentagem.<br />

– 307 –


Geração e uso de indicadores de monitoramento de agroflorestas<br />

por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

Figura 1: Indicadores de boas agroflorestas, destacando a priorização dada a cada<br />

indicador pelos agricultores familiares associados à Cooperafloresta.<br />

– 308 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Analisando a Figura 1, percebe-se a grande quantidade e diversidade<br />

de indicadores que descrevem “boas agroflorestas”. Excluindo-se os termos<br />

repetidos ou que aparentam o mesmo significado, foram citados 29<br />

indicadores, agrupados na Figura 2.<br />

Figura 2: Síntese dos indicadores de boas agroflorestas,<br />

citados pelos agricultores associados à Cooperafloresta.<br />

É interessante notar a diversidade de abordagens para definir “boas<br />

agroflorestas”. Existem critérios relacionados à diversidade biológica, ao<br />

envolvimento dos agricultores, ao trabalho em grupo, ao manejo e à<br />

produtividade, entre outros aspectos.<br />

No exercício de buscar identificar a relação entre estes indicadores, é<br />

possível identificar eixos temáticos. Na tabela 1, estes eixos são propostos e,<br />

na Figura 3, apresenta-se um esquema, considerando os descritores de cada<br />

eixo e a priorização dada pelos agricultores a cada um.<br />

Quando estes eixos são propostos, verifica-se que, embora os<br />

indicadores que os constituem tenham sido priorizados de forma diferenciada<br />

– 309 –


Geração e uso de indicadores de monitoramento de agroflorestas<br />

por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

em cada oficina, há uma tendência de maior priorização de parâmetros<br />

voltados ao manejo e à biodiversidade, e uma tendência de menor valorização<br />

dos parâmetros relacionados com a produção das agroflorestas. Ambos os<br />

eixos apresentam valores de priorização maiores do que o dobro dado aos<br />

parâmetros que constituem o eixo “produção”.<br />

TABELA 1 – Indicadores de boas agroflorestas, CITADOS por agricultores<br />

associados a Cooperafloresta, agrupados em eixos<br />

Eixos *<br />

Conjunto de parâmetros<br />

MANEJO (136)<br />

Área completa (11), área rejuvenescida (13), manejo/poda<br />

(22), deixar reservas na beira dos rios (14), tirar sementes<br />

(12), planejamento (10), poda (8), trocar sementes (7),<br />

plantio completo (3), poda para entrar sol (13), vários<br />

andares (6), reflorestamento do terreno (13), área firme<br />

aberta com mais sol para produzir miudezas (11)<br />

BIODIVERSIDADE (130) Bastante variedade (11), vários tipos de plantas (9),<br />

quantidade de coisa plantada-biodiversidade (24),<br />

diversidade (4), produção diversificada (31), variedade de<br />

frutas, adubadeiras, árvores (13), diversidade de bichos<br />

(10), muitas frutas, árvores (7), miudezas (11), árvores<br />

nativas (10)<br />

CUIDADO E CARINHO (81) Gostar do trabalho (11), Cuidar das plantas dos<br />

companheiros como se fosse a própria (11), vontade<br />

de plantar (8), grupo reunido (4), carinho, dedicação<br />

e amor (24), viver bem da agrofloresta (11), meio de<br />

sobrevivência (12)<br />

TERRA BOA (63) Terra boa (12), terra úmida (8), cobertura do solo (8),<br />

cobertura (8), melhoria da terra (7), terra fofa, solta, cheia<br />

de adubo (6), cheiro de tatu (2)<br />

PRODUÇÃO (55) Produção (32), produção (14), produção (9)<br />

* os valores entre parênteses representam o número de votos, relativizados em percentagem, dados<br />

a cada parâmetro e agrupados em cada eixo.<br />

Outra maneira de visualizar os parâmetros identificados é mediante o<br />

grau de importância de cada indicador, como segue:<br />

– 310 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Figura 3: Esquema representando os indicadores de boas agroflorestas,<br />

de acordo com os agricultores associados à Cooperafloresta. O tamanho dos círculos<br />

define a importância relativa de cada parâmetro citado.<br />

– 311 –


Geração e uso de indicadores de monitoramento de agroflorestas<br />

por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

Note-se que há uma maior priorização de indicadores relacionados ao<br />

carinho, ao cuidado e ao envolvimento social que a agrofloresta proporciona<br />

(valor de priorização = 81) do que à própria produção originada da mesma<br />

(valor de priorização = 55).<br />

É importante observar a existência de indicadores bastante subjetivos<br />

para caracterizar “boas agroflorestas”, se vistos a partir de uma lógica técnicocientífica.<br />

Dificilmente um técnico ou cientista definiria que uma “boa<br />

agrofloresta” é aquela em que as pessoas “cuidam das plantas dos<br />

companheiros como se fossem as próprias”, ou aquelas “em que se gosta<br />

de trabalhar”, ou ainda aquelas que têm “cheiro de tatu”.<br />

Além disso, observa-se que, mesmo em meio às alterações do Código<br />

Florestal de 1965 (discutido no capítulo 15), sobretudo quanto à Reserva<br />

Legal e às Áreas de Preservação Permanente, esses produtores consideram,<br />

como “boa agrofloresta”, aquela que “deixa reservas na beira dos rios”.<br />

Vale ressaltar também que, enquanto autoridades, ONGs e a sociedade<br />

civil discutem mecanismos para a sustentabilidade mundial na Conferência<br />

Rio+20, os produtores agroflorestais da Cooperafloresta já guardam o consenso<br />

de que uma boa agrofloresta é aquela que é realizada com planejamento,<br />

apresenta biodiversidade (produtos, plantas, animais), promove a melhoria<br />

do solo, conserva os recursos naturais (água, solo) e permite o desenvolvimento<br />

social (“viver bem da agrofloresta”, “meio de sobrevivência”). De fato, visando<br />

selecionar agroflorestas de agricultores vinculados à Cooperafloresta para a<br />

realização de levantamentos em um projeto de pesquisa, a mesma pergunta<br />

(que indicadores definem uma boa agrofloresta?) foi feita a um grupo de<br />

pesquisadores das áreas biológicas e sociais, do <strong>ICMBio</strong>, da Embrapa-<br />

Florestas e da UFPR. Os indicadores apontados, em forma de questões,<br />

foram: o Sistema é completo?; O Sistema é Produtivo?; É grande a variedade<br />

de produtos?; É grande a biodiversidade?; Tamanho da área (a área é<br />

grande)?; Há facilidade de acesso?<br />

Além da expressiva diferença entre o número de indicadores citados,<br />

nota-se que todos os indicadores citados pelos pesquisadores estão<br />

relacionados com a produtividade, biodiversidade e localização das<br />

agroflorestas, todos fatores de ordem material.<br />

– 312 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Analisando os indicadores propostos pelos agricultores, é possível<br />

perceber a inserção do saber ecológico nas dimensões culturais, sociais e<br />

econômicas, de uma forma sistêmica. Nessa inserção, reconhece-se que a<br />

racionalidade capitalista, ou a visão meramente produtiva das agroflorestas,<br />

não é hegemônica. Pelo contrário, esta racionalidade está inserida em um<br />

contexto social e ambiental muito mais amplo.<br />

É importante notar que, como resposta a uma pergunta objetiva (que<br />

indicadores definem uma boa agrofloresta?) as respostas dos agricultores<br />

tenham ido muito além de uma descrição de elementos materiais concretos<br />

e quantificáveis, reiterando a noção de que a “objetificação” da natureza,<br />

comum ao processo de análise cartesiana, não é o principal mecanismo de<br />

análise dos agricultores da Cooperafloresta. Conforme identificado por Vivan<br />

e Floriani (2006), os componentes e significados do saber ecológico são tanto<br />

tangíveis como intangíveis, e ambas as dimensões podem se fundir como<br />

partes de um todo lógico para a tomada de decisão. Elementos sensoriais<br />

(como “cheiro de tatu”, “terra fofa”), de ordenamento (como “planejamento”),<br />

de solidariedade e senso comunitário (como “cuidar das plantas dos<br />

companheiros como se fosse a própria”, “grupo reunido”, “carinho, dedicação<br />

e amor”) e de bem-estar (como “viver bem da agrofloresta” e “vontade de<br />

plantar”) caracterizam, para os agricultores, o que, na objetividade cartesiana,<br />

são apenas espaços geográficos em que um sistema de manejo da natureza<br />

foi implantado. Esses indicadores dilatam o arcabouço de visões de mundo<br />

acerca dos vínculos das relações de mulheres e homens entre si e a natureza.<br />

Assim, longe de serem analisados como critérios meramente<br />

subjetivos, os elementos apontados implicam uma relação que se opera<br />

numa lógica de reciprocidade com o meio, denotando uma forma diferente<br />

de abordagem da Natureza e do conhecimento, uma vez que este, para ser<br />

efetivado, não se desvincula de um sentimento ou de um sujeito. A cultura<br />

aparece assim como termo de mediação entre as práticas produtivas<br />

e o potencial natural de um dado ecossistema, elaborando respostas<br />

diferenciadas para tais relações. As concepções daí originadas são fecundas<br />

porque demonstram percepções que muitas vezes escapam às análises<br />

científicas habituais, uma vez que baseadas em outras redes de relações.<br />

– 313 –


Geração e uso de indicadores de monitoramento de agroflorestas<br />

por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

Desse modo, podem contribuir para enriquecer o panorama de nossa<br />

compreensão acerca da Natureza, mas também acerca da relação entre o<br />

ser humano e o seu ambiente (LEFF, 2007)<br />

A análise dos indicadores construídos permite a reflexão da orientação<br />

de um processo de diagnóstico e planejamento, não somente voltado para o<br />

aumento de produtividade e conservação ambiental a partir das práticas<br />

agroflorestais, mas também voltados à identificação, percepção e amplificação<br />

do bem-estar no trabalho e no grupo, a partir de fatores de necessidade e<br />

satisfação endogenamente valorados, considerando a multidimensionalidade<br />

das características das agroflorestas e contribuindo para tecer novos caminhos<br />

para a emancipação social.<br />

Avaliando e planejando agroflorestas<br />

Nos eventos de capacitação subsequentes às oficinas em que os<br />

indicadores de boas agroflorestas foram apontados, foi proposta a avaliação<br />

pessoal/familiar de cada uma de suas agroflorestas, a partir dos eixos<br />

apontados na Tabela 1.<br />

Nesse processo, inicialmente o agrupamento dos indicadores em eixos<br />

foi apresentado e discutido, utilizando-se de cartazes com fotos e desenhos<br />

específicos por eixo.<br />

Então, foi proposto que cada indivíduo ou família hierarquizasse, em<br />

pontuação variando de 0 a 5, como cada um enxergava cada uma de suas<br />

agroflorestas, a partir dos cinco eixos de indicadores.<br />

Para tanto, para cada agrofloresta a ser analisada, cada agricultor ou<br />

família recebeu um papel com os eixos de indicadores, representados<br />

graficamente por retas de igual comprimento, graduadas de 0 e 5 e dispostas<br />

a partir de um ponto comum, formando, em conjunto, uma estrela de cinco<br />

braços. O ponto 0 de cada eixo é o ponto comum entre os mesmos, e o ponto<br />

5 é o ponto mais distante do centro da “estrela”, em cada eixo (Figura 4).<br />

Após a pontuação em cada eixo, propôs-se que se ligasse, por retas, os<br />

pontos dados, formando uma nova “estrela”. Quanto maior e mais harmônica<br />

a estrela desenhada após esta ligação, mais próximo de “uma boa agrofloresta”<br />

a agrofloresta sob análise se encontra (Figura 5).<br />

– 314 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Figura 4: “Estrela” utilizada para avaliação de agroflorestas no âmbito da<br />

Cooperafloresta, ainda sem nenhuma marcação<br />

Figura 5: “Estrela” relacionada a um das agroflorestas de Pedro de Oliveira,<br />

agricultor associado à Cooperafloresta<br />

– 315 –


Geração e uso de indicadores de monitoramento de agroflorestas<br />

por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

Após o desenho das “estrelas”, cada agrofloresta foi discutida em grupo,<br />

identificando quais os conjuntos de indicadores que devem ser melhor<br />

trabalhados em cada agrofloresta, por cada agricultor e pelo grupo, em mutirões.<br />

Para um melhor entendimento deste processo, a próxima seção traz o<br />

estudo de caso de uma oficina.<br />

Estrelas no Ribeirão Grande e Cedro – Estudos de caso<br />

As oficinas de “Construção das estrelas”, nos bairros Ribeirão Grande<br />

e Cedro, foram realizadas no dia 15 de abril de 2011. A discussão inicial<br />

promoveu uma reflexão sobre o processo produtivo em sua totalidade,<br />

considerando os eixos manejo, produtividade, cuidado e carinho (dedicação),<br />

biodiversidade e terra boa.<br />

Os resultados da pontuação de cada eixo, nas “estrelas” construídas<br />

na oficina dos bairros do Cedro e Ribeirão Grande estão dispostos nas<br />

Tabelas 2 e 3.<br />

TABELA 2 – Pontuação de cada eixo, nas “estrelas” do bairro Ribeirão<br />

Grande<br />

Eixo<br />

Parâmetro<br />

Cuidado e<br />

Produção Manejo<br />

Carinho<br />

Terra Boa Biodiversidade<br />

Média 2,67 2,56 3,22 3,11 2,56<br />

Desvio padrão 0,87 0,88 0,44 0,78 1,01<br />

Valor Mínimo 2 1 3 2 1<br />

Valor Máximo 4 4 4 4 4<br />

(Moda) (2) (3) (3) (3) (2)<br />

TABELA 3 – Pontuação de cada eixo, nas “estrelas” do bairro Cedro<br />

Eixo<br />

Parâmetro<br />

Cuidado e<br />

Produção Manejo<br />

Carinho<br />

Terra Boa Biodiversidade<br />

Média 2,88 3,06 3,35 3,29 2,88<br />

Desvio padrão 1,17 0,83 0,79 1,05 1,32<br />

Valor Mínimo 1 2 2 1 1<br />

Valor Máximo 5 5 5 5 5<br />

(Moda) (2) (3) (3) (3) (2)<br />

– 316 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

No bairro Ribeirão Grande, os produtores não enxergam, em suas<br />

agroflorestas, pontuação máxima em nenhum dos eixos que caracterizam<br />

uma “Boa agrofloresta”. Por outro lado, nenhum desses produtores considera<br />

que suas agroflorestas esteja em nível basal (“zerado”) em seus atributos.<br />

Nota-se que os eixos mais problemáticos são “Manejo” e “Biodiversidade”<br />

(menor pontuação média, menor pontuação mínima e maior desvio padrão),<br />

ao passo que o eixo “Cuidado e Carinho” é entendido por eles como sendo o<br />

mais positivo (maior pontuação média, maior pontuação mínima e menor<br />

desvio padrão) (Tabela 2)<br />

No bairro Cedro, observa-se que a pior avaliação é para os eixos de<br />

“Produção” e “Biodiversidade”, enquanto “Cuidado e Carinho” segue a<br />

mesma tendência do bairro anterior (Tabela 3).<br />

Nas discussões realizadas após os desenhos, percebeu-se que, em<br />

geral, os agricultores identificam que, muitas vezes, apesar do envolvimento<br />

e cuidado com as agroflorestas, nem sempre as mesmas apresentam elevada<br />

produtividade ou diversidade. Nem por isso, estas agroflorestas deixam de ser<br />

avaliadas como “boas agroflorestas”, pois a dimensão social e cultural faz<br />

parte da definição delas.<br />

Durante as oficinas, foi possível perceber um processo de autocrítica<br />

na maioria das exposições. Ficou evidente nos discursos uma inclinação em<br />

acreditar que as áreas atuais, “agroflorestadas”, são sempre melhores que<br />

antes da implantação da agrofloresta. Nesse ponto podemos perceber que se,<br />

como dissemos, apesar do cuidado, consideram que as agroflorestas ainda<br />

não apresentam uma alta produtividade, veem ainda assim tal fato<br />

compensado pela melhoria do solo, da água, na volta dos pássaros e animais,<br />

demonstrando uma tendência a encarar o sistema desde uma perspectiva<br />

mais integral e menos produtivista.<br />

O exercício despertou uma reflexão geral sobre os trabalhos de cada<br />

um, especialmente em relação à dedicação empreendida, sobre a<br />

produtividade e também pela possibilidade de visualizar as necessidades de<br />

cada uma das agroflorestas estudadas.<br />

Considerando que as práticas agroflorestais têm como princípio básico<br />

a utilização de recursos próprios na produção oriundos da propriedade e<br />

procura favorecer todos os sistemas de vida em seu entorno (GÖTSCH,<br />

– 317 –


Geração e uso de indicadores de monitoramento de agroflorestas<br />

por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

1997), pode-se dizer que o exercício realizado possibilitou aos envolvidos<br />

medir quais os pontos positivos e negativos da relação com sua base de<br />

recursos e permite orientar a gestão em prol da sustentabilidade e autonomia.<br />

De acordo com Ploeg (2008), ao refletir sobre sua relação com a base de<br />

recursos, o agricultor pode compreender e transformar sua ação sobre o meio.<br />

Neste sentido, ao se analisar a prática de “construção de estrelas” sob a<br />

perspectiva da construção da autonomia do sujeito, identifica-se que ao<br />

refletir sobre todo o contexto de seu trabalho e encontrando resultados<br />

positivos, o agricultor sistematiza mentalmente alguns sentidos do mesmo e<br />

se constitui como o protagonista deste. O elemento de autoafirmação das<br />

práticas é fundamental para a geração de autonomia porque essa<br />

autoafirmação é fruto do conhecimento dos significados de suas práticas para<br />

si mesmo, para o grupo e para o ambiente.<br />

Na perspectiva coletiva da autoavaliação, é possível identificar os<br />

sentidos ocultos das práticas coletivas, como, por exemplo, o respeito pela<br />

avaliação do outro, fundamentais para a autonomia do sujeito (TOURAINE,<br />

2004, 2007, 2011).<br />

O exercício também suscitou um encontro com os próprios sentimentos<br />

e dificuldades aflorados ao grupo. Entretanto, tais adversidades se converteram<br />

em motivações para os agricultores orientarem suas ações, após a força que<br />

receberam do projeto coletivo de agrofloresta desenvolvido por meio da<br />

Cooperafloresta. Aparentemente, a situação de adversidade e conflito consigo<br />

mesmos os aproximam de um sujeito autônomo (TOURAINE, 2004) porque<br />

enfrentam essas situações de maneira positiva e ativa, no engajamento<br />

coletivo e na defesa de seus direitos.<br />

Considerações finais<br />

Muito além de um sistema produtivo, as agroflorestas são, para os<br />

agricultores associados à Cooperafloresta, um conjunto de elementos que<br />

integram dimensões sociais, culturais, ambientais e econômicas, inseridos na<br />

estratégia de reprodução social. A complexidade constitutiva dessas relações<br />

que se tornam singulares ao partirem de diferentes formas de hibridação e<br />

apropriação dos saberes, demanda, para uma compreensão mas aproximada,<br />

a apreensão dos valores e princípios que norteiam os sujeitos de sua produção.<br />

– 318 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

O estabelecimento de indicadores de forma participativa pode ser<br />

decisivo para a avaliação e monitoramento de agroflorestas, considerando a<br />

multidimensionalidade de suas características. No âmbito deste trabalho,<br />

caso os indicadores não tivessem sido propostos pelos próprios agricultores,<br />

qualquer sistema de monitoramento participativo provavelmente seria<br />

inadequado, pois seria estabelecido a partir de parâmetros e instrumentos<br />

exógenos e incompletos, além de não terem a mesma riqueza de possibilidades.<br />

A introdução de tal método pode desenvolver a capacidade de autorreflexão<br />

e autoavaliação continuada, favorecendo a autonomia do agricultor e sua<br />

permanência no campo. Pode-se dizer, ainda, que a autoavaliação, que é<br />

ao mesmo tempo uma avaliação do e pelo grupo, promove uma síntese de<br />

um processo de assimilação do conhecimento que começa com o saber<br />

socialmente herdado e construído, passa pelo diálogo com o saber técnico<br />

e então sua re-elaboração e aprimoramento na relação cotidianamente<br />

atualizada com o meio, permitindo assim a apreensão das próprias lacunas e<br />

dificuldades a serem superadas.<br />

O monitoramento periódico, a partir de novos desenhos de “estrelas”,<br />

caracteriza-se como uma ferramenta útil à gestão das propriedades. Por outro<br />

lado, permite uma discussão e avaliação coletiva dos elementos que devem ser<br />

melhor trabalhados nos processos de capacitação e nos mutirões de trabalho.<br />

Dentro deste contexto, cabe ressaltar que tal metodologia é uma<br />

possibilidade de solução encontrada na tentativa de equacionar a complexidade<br />

presente nas análises socioambientais, envolvendo sistemas agroflorestais<br />

encontradas no âmbito das ações da Cooperafloresta. Assim, a análise de<br />

todas as avaliações das “estrelas” também pode ser um instrumento de<br />

planejamento da Cooperafloresta, orientando os investimentos e ações, além<br />

de refletir os resultados dos projetos realizados, especialmente sob uma<br />

perspectiva socioambiental. Mediante a continuidade da avaliação, as<br />

“estrelas” também podem refletir novas respostas e propostas para a geração<br />

de políticas públicas.<br />

Muito embora não haja um modelo único para realização de pesquisas<br />

em relação à sociobiodiversidade, pode-se indicar que o método da “estrela”<br />

é uma estratégia que pode contribuir para o fortalecimento do conhecimento<br />

local, autonomia, autogestão, valorização e empoderamento dos sujeitos que<br />

dela participam, tanto técnicos como agricultores ou pesquisadores.<br />

– 319 –


Geração e uso de indicadores de monitoramento de agroflorestas<br />

por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

Referências<br />

Eyben, R.; Kabeer, N.; Cornwall, A. 2008. Conceptualising empowerment and<br />

the implications for pro poor growth: A paper for the DAC Poverty Network. Institute of<br />

Development Studies.<br />

GÖTSCH, Ernst. Homem e Natureza: Cultura na Agricultura. Recife: Recife Gráfica<br />

Editora, 1997.<br />

HERSCH-MARTINEZ, P.; CHÉVEZ, L.G. 1996. Investigación participativa en etnobotánica:<br />

algunos procedimentos coadyuvantes en ella. Dimensión Antropológica, 3(8).<br />

LEFF, Enrique. Epistemologia Ambiental. 4 ed. São Paulo: Cortez Editora, 2007.<br />

NORGAARD, R.B. & SIKOR, T.O. 2002. Metodologia e prática da agroecologia. In: Altieri,<br />

M. Bases científicas para uma agricultura sustentável. p.53-83. Guaíba: Agropecuária.<br />

PLOEG, Van Der. Camponeses e Impérios Alimentares: lutas por autonomia e<br />

sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.<br />

_____.Entre a dependência e a autonomia: o papel do financiamento para a agricultura<br />

familiar. In: Agriculturas. v.7, n.2 julho 2010.<br />

TOURAINE, A. Após a Crise. A decomposição da vida social e o surgimento de atores não<br />

sociais. Petrópolis: Vozes, 2011.<br />

_____. Crítica da Modernidade. 3.ed. Petrópolis: Vozes,1995.<br />

_____. Igualdade e diversidade: O Sujeito Democrático. Bauru, São Paulo: EDUSC, 1998.<br />

_____. Um novo paradigma. Para compreender o mundo de hoje. 3.ed. Petrópolis: Vozes,<br />

2007.<br />

VIVAN, J. L. e FLORIANI, G. Construção participativa de indicadores de sustentabilidade em<br />

sistemas agroflorestais em rede na mata atlântica. VI Simpósio Brasileiro de Etnobiologia<br />

e Etnoecologia. Anais. Porto Alegre, 2006.<br />

– 320 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 12<br />

Características estruturais das agroflorestas<br />

desenvolvidas no âmbito da Cooperafloresta<br />

Walter Steenbock,<br />

Rodrigo Ozelame da Silva,<br />

Fabiane Machado Vezzani,<br />

Carlos Eduardo Seoane e<br />

Luis Cláudio Maranhão Froufe.<br />

Introdução<br />

No Capítulo 3, foi brevemente apresentado o arcabouço teórico que<br />

tem orientado, tecnicamente, a implantação e o manejo agroflorestal dos<br />

agricultores associados à Cooperafloresta. A implementação deste modelo<br />

tem sido adequado a condicionantes de uso de diferentes espécies, cobertura<br />

anterior do solo, proximidade a fragmentos florestais, opções de mercado,<br />

características de solo, mão de obra disponível, disponibilidade de sementes,<br />

intensidade de podas, quantidade de mutirões e uma série de outros fatores,<br />

gerando agroflorestas de diferentes idades e tamanhos de área.<br />

Esse conjunto de fatores influencia, portanto, a diversidade, a estrutura<br />

florestal e a produtividade de cada agrofloresta, além de fazer de cada uma<br />

um espaço único. Entretanto, independentemente das condicionantes citadas,<br />

o manejo agroflorestal promove características estruturais e de diversidade<br />

com tendências parecidas, no conjunto das agroflorestas, capazes de<br />

definirem-nas como tal.<br />

Neste capítulo, aborda-se a caracterização de alguns aspectos<br />

estruturais das agroflorestas, a partir de levantamentos realizados em<br />

dezesseis agroflorestas, de diferentes idades e tamanhos de área.<br />

– 321 –


Características estruturais das agroflorestas<br />

desenvolvidas no âmbito da Cooperafloresta<br />

Que agroflorestas medir?<br />

Os sistemas agroflorestais, no âmbito da Cooperafloresta, envolvem<br />

áreas de florestas secundárias em diferentes estágios de sucessão (capoeiras),<br />

mantidas temporariamente sem manejo, e áreas de agroflorestas, com<br />

manejo intensivo, as quais são rotacionadas no espaço produtivo sob a<br />

influência de diferentes fatores (capítulo 3).<br />

Para identificar agroflorestas para a caracterização de aspectos<br />

estruturais, a primeira premissa foi considerar que agroflorestas (AFs) são<br />

espaços definidos que, em um determinado tempo, passaram a ser<br />

intensamente manejados. Essa conceituação coloca como possível conjunto<br />

amostral centenas de AFs, com grandes variações de características de solo,<br />

relevo, manejo e outros fatores.<br />

Visando reduzir esse conjunto amostral, a ponto de possibilitar<br />

levantamentos adequados, foram selecionadas dezesseis AFs, a partir da<br />

orientação feita pelos agricultores, utilizando-se a metodologia descrita no<br />

capítulo 11.<br />

Medindo a diversidade e a estrutura florestal das agroflorestas<br />

Seleção das agroflorestas<br />

Após a realização de exercício de avaliação e monitoramento de AFs,<br />

realizado em oficinas nos bairros do Cedro, Ribeirão Grande, Três Canais,<br />

Terra Seca e Córrego do Franco (descritos no capítulo 11), foi proposto aos<br />

agricultores presentes que selecionassem, coletivamente e a partir dos<br />

desenhos das “estrelas” de cada agrofloresta, “boas agroflorestas” para o<br />

desenvolvimento dos levantamentos fitossociológicos (neste capítulo) e de de<br />

estoque de carbono (capítulo 13), em diferentes classes de idade (1 a 3<br />

anos, 4 a 9 anos e 10 anos ou mais), considerando a idade como o tempo<br />

decorrido desde a implantação das agroflorestas.<br />

Assim, foram selecionadas AFs que, além do conceito amplo já<br />

apresentado, tinham, potencialmente, níveis adequados relacionados aos<br />

indicadores de “boas agroflorestas”, de acordo com os agricultores. Entre as<br />

dezesseis AFs (listadas de A a P), foram selecionadas duas com 3 anos de<br />

idade, oito com idade entre 4 e 9 anos e seis com idade de 10 a 15 anos. As<br />

AFs selecionadas apresentavam 0,3 a 2 hectares de área.<br />

– 322 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Caracterização das Agroflorestas<br />

Selecionadas as AFs, foram realizadas, junto a cada agricultor detentor<br />

da AF, entrevistas semiestruturadas (ALEXIADES, 1996; CUNNINGHAM,<br />

2001), visando detalhar o uso anterior do solo, as práticas produtivas, as<br />

dificuldades de manejo, os principais produtos produzidos, a renda média<br />

obtida ao longo do tempo e outros aspectos. Nessas entrevistas, buscou-se,<br />

sempre que possível, a participação dos vários membros da família.<br />

Agroflorestas com 1-3 anos de idade<br />

A Agrofloresta A foi caracterizada com três anos de idade. Foi implantada<br />

a partir de uma pastagem de braquiária, em 2008. Está localizada no bairro<br />

do Ribeirão Grande. Por meio de capinas, procurou-se controlar a braquiária,<br />

enquanto foram implantadas várias espécies de ciclo curto, em conjunto com<br />

espécies arbóreas. Atualmente, a bananeira é a espécie arbórea mais frequente,<br />

chamando atenção pelo seu bom desenvolvimento. Além das árvores e arbustos<br />

identificados no levantamento, ocorre ainda nesta área uma grande quantidade<br />

de abóbora, taioba, pupunha, palmito juçara, milho, feijão, inhame e cará,<br />

entre outras espécies de menor porte ou sob a condição de plântulas, que não<br />

foram consideradas em função da metodologia de amostragem.<br />

A Agrofloresta B foi caracterizada aos três anos de idade e está<br />

localizada no bairro Três Canais. O uso anterior da área era uma capoeira<br />

com cerca de 16 anos. As árvores desta capoeira foram derrubadas, cortadas<br />

e colocadas no solo seguindo a curva de nível. Plantou-se, a partir de 2008,<br />

inhame, milho, tomate, taioba, mandioca, abóbora, pepino, almeirão, alface,<br />

melancia e rabanete. Além disso, foi plantado vagem e usado como suporte<br />

estacas de cajá-mirim, ipê e pera. Cada vez que as espécies de ciclo curto<br />

são colhidas, há uma capina seletiva na área e plantadas espécies olerícolas<br />

novamente. Entretanto, além das espécies relacionadas, o sistema começa a<br />

apresentar espécies arbóreas de regeneração espontânea, como a camarinha,<br />

a erva-de-macuco, a guabiroba, a grandiúva, o jacarandá, a embaúba e a<br />

juçara, que são mantidas e manejadas.<br />

Agroflorestas com 4-9 anos de idade<br />

A Agrofloresta C está localizada no Bairro Cedro e foi caracterizada aos<br />

quatro anos de idade. Em 2003, a área era coberta por uma capoeira fina,<br />

– 323 –


Características estruturais das agroflorestas<br />

desenvolvidas no âmbito da Cooperafloresta<br />

com aproximadamente seis metros de altura, onde se destacavam o<br />

jaguarandi, algumas figueiras e o ingá-mirim. A vegetação foi derrubada e, na<br />

mesma área foi plantado milho, feijão, abóbora e banana. Após a colheita<br />

das culturas de ciclo curto, a banana passou a ser a espécie mais frequente<br />

na área. Porém, em 2006, houve uma geada, acabando com quase todo<br />

o bananal. Depois da geada, foram plantadas novas mudas de espécies<br />

arbóreas, especialmente de bananeira e mamão, em conjunto com feijão,<br />

mandioca e abóbora. Todavia, por volta de 2009, outra geada destruiu parte<br />

das plantas. Foi então realizado manejo intensivo de poda na área, dispondo<br />

o material podado no solo (constituído basicamente das plantas atingidas<br />

pela geada e mais alguns indivíduos de espécies de regeneração espontânea,<br />

como a grandiúva e jaguarandi) e plantado mandioca, milho, feijão, abóbora,<br />

mamão, laranja, limão, juçara, pupunha, inhame, vagem e taioba. A área<br />

está em área de relevo forte ondulado, com maior incidência de luz solar nas<br />

cotas mais altas.<br />

A Agrofloresta D está localizada no Bairro Terra Seca, tendo sido avaliada<br />

com cinco anos de idade. Em 2006, a área era coberta por uma capoeira com<br />

cerca de seis metros de altura. A capoeira foi derrubada e plantado milho,<br />

inhame, mandioca, abobora, banana, pupunha, juçara e abacate.<br />

A Agrofloresta E está localizada no bairro Terra Seca, tendo sido<br />

avaliada aos seis anos de idade. Esta área foi historicamente ocupada por<br />

agricultura de coivara, na qual as culturas de arroz, cana, milho, mandioca e<br />

feijão eram predominantes. Em 2001, plantaram-se banana e outras fruteiras,<br />

mas logo em seguida, por volta de 2003, a área foi abandonada. Em 2005,<br />

os atuais manejadores assumiram o local, trabalhando no modelo agroflorestal.<br />

Parte das plantas foi desbastada, introduzindo-se adubos verdes e promovendo<br />

plantas de bananeiras e algumas outras fruteiras. Completou-se o sistema<br />

com café, juçara, mixirica e pupunha, entre outras espécies de valor comercial/<br />

alimentar, além de se plantar, principalmente em forma de sementes, espécies<br />

arbóreas nativas.<br />

A Agrofloresta F está localizada também no bairro Terra Seca, tendo sido<br />

avaliada aos seis anos de idade. A família responsável pela AF iníciou o manejo<br />

há aproximadamente 14 anos. Entretanto, acabou saindo da Cooperafloresta,<br />

retornando há seis anos, quando foram plantadas várias espécies arbóreas na<br />

área, por semente, após o corte das árvores do manejo anterior.<br />

– 324 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

A Agrofloresta G está localizada no Bairro Três Canais, tendo sido<br />

avaliada com seis anos de idade. Foram identificadas 67 espécies arbustivas<br />

ou arbóreas nesta AF, em uma densidade média bastante elevada, de 85.600<br />

plantas/ha. Esta AF foi implantada sobre área de lavoura, onde ocorriam<br />

queimadas muito frequentes, geralmente anuais, não havendo regeneração<br />

significativa ou um manejo de capoeira no período entre o término da lavoura<br />

convencional e o início da AF.<br />

A Agrofloresta H está localizada no Bairro Três Canais, tendo sido<br />

avaliada aos seis anos de idade. Esta AF foi implantada a partir do corte de<br />

uma capoeira de aproximadamente oito anos, que passou a crescer sobre<br />

uma pastagem, a partir do momento do envolvimento do agricultor com a<br />

experiência agroflorestal.<br />

A Agrofloresta I foi avaliada aos oito anos de idade, e está localizada<br />

no bairro Cedro. Por volta do ano de 2003 o uso do solo da área pesquisada<br />

era o cultivo de arroz, milho, abobora e feijão sendo que se manejava o solo<br />

principalmente com o uso da enxada. A partir de então cessou-se a capina<br />

com a enxada e junto com os cultivos citados foram adicionadas outras<br />

espécies de ciclo curto como pepino, mandioca e inhame, entre outras. Junto<br />

foram plantadas banana, abacate, juçara, pupunha, limão, cedro e outras<br />

espécies de árvores, de acordo com a disponibilidade de mudas.<br />

A Agrofloresta J está localizada no Bairro e foi avaliada aos oito anos<br />

de idade. Por volta de 2003 havia na área uma capoeira com cerca de 10<br />

metros de altura, que foi derrubada para a implantação da AF. A biomassa<br />

cortada foi enfileirada no chão, plantando-se diversas espécies, entre as quais<br />

tomate, inhame, vagem, milho, feijão café, pupunha, jaca, juçara, bacupari,<br />

banana e mandioca, entre outras.<br />

Agroflorestas com 10-15 anos de idade<br />

A Agrofloresta K foi avaliada aos 10 anos de idade. Está localizada no<br />

Bairro Ribeirão Grande. A AF foi implantada em uma área onde anteriormente<br />

usou-se a agricultura de coivara com feijão, milho e mandioca. Com o passar<br />

dos anos, como a área não produzia o suficiente, passou-se a trabalhar com<br />

pastagem de braquiária. Há dez anos foi realizado um grande esforço de<br />

plantio, no modelo agroflorestal.<br />

– 325 –


Características estruturais das agroflorestas<br />

desenvolvidas no âmbito da Cooperafloresta<br />

A Agrofloresta L, localizada no bairro Córrego do Franco, foi avaliada<br />

aos dez anos de idade. Por volta de 2001, iníciou-se o manejo no modelo<br />

agroflorestal. Antes da implantação, a área ficou em pousio durante dois<br />

anos, pois o solo estava “fraco” em virtude de duas queimadas anuais para o<br />

plantio de arroz, milho e feijão. No momento de implantação, havia uma<br />

capoeira com cerca de dois metros de altura. A implantação da área constituiu<br />

em derrubar e enfileirar a capoeira, plantar espécies de ciclo curto como<br />

milho, tomate, inhame e árvores como banana, jaca, palmeira real e juçara,<br />

entre outras.<br />

A Agrofloresta M, também localizada no bairro Córrego do Franco, foi<br />

caracterizada aos onze anos de idade. O uso anterior da área era de agricultura<br />

de coivara com feijão e milho. Com o passar dos anos a produtividade passou<br />

a decair. Alternativamente, foram plantadas as seguintes pastagens: capim<br />

centenário, napiê e braquiária. A braquiária acabou dominando a área. A AF<br />

foi iniciada com o plantio de uma grande variedade de hortaliças/lavouras<br />

anuais, como vagem, berinjela, abóbora, cana, tomate, jiló, rabanete, milho,<br />

quiabo e abobrinha, entre outras. O tomate foi implantado em larga escala.<br />

Foram também plantados banana, juçara e outras árvores. As bananeiras<br />

foram adubadas fortemente com esterco e adubo foliar orgânico (Supermagro).<br />

A área foi constantemente enriquecida com mudas de espécies variadas.<br />

A Agrofloresta N, localizada no bairro Três Canais, foi caracterizada aos<br />

onze anos de idade. Por volta de 2001 iníciou-se o manejo na área pesquisada.<br />

Nesse período, o uso do solo era de pastagem, com capim braquiaria. Para<br />

implantação do sistema agroflorestal, o capim foi colocado em leiras e plantadas<br />

hortaliças como pepino, jiló, abobrinha e tomatinho. À medida que foram<br />

sendo disponibilizadas mudas e sementes, o sistema foi completado.<br />

A Agrofloresta O está localizada no bairro Terra Seca, tendo sido<br />

caracterizada aos doze anos de idade. Anteriormente, a área era uma capoeira<br />

que foi queimada para o plantio de arroz, feijão e cana. Posteriormente, a<br />

área se transformou em uma monocultura de banana, até 1999, quando a<br />

família iníciou seus trabalhos no modelo agroflorestal. No início do manejo,<br />

foram plantados junto às bananeiras mudas e sementes de juçara, cajámirim,<br />

eucalipto, pupunha, abacate, araucária e laranja, entre outras.<br />

– 326 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Finalmente, a Agrofloresta P, localizada no bairro Terra Seca, foi<br />

caracterizada com 15 anos de idade, sendo a AF mais antiga entre as<br />

estudadas. Parte da AF foi implantada sobre um bananal convencional, e<br />

outra parte sobre uma área de pastagem em que uma capoeira (“guarandizal”)<br />

começava a se implantar. Há alguns anos, o manejo da área foi sendo<br />

reduzido em sua intensidade.<br />

Atributos fitossociológicos e análise dos dados<br />

Em cada AF, foram implantadas cinco parcelas de 100m 2 para a<br />

realização dos levantamentos, que foram realizados sempre com a presença<br />

do responsável pela área e, quando possível, com a participação de outros<br />

agricultores conhecedores da área, a partir do envolvimento nos mutirões<br />

de trabalho.<br />

Nas parcelas demarcadas, foram identificados botanicamente todos os<br />

indivíduos com mais de 1,5 metros de altura, com exceção de lianas e<br />

espécies herbáceas que, porventura, atingiam maior porte. Considerou-se,<br />

portanto, a amostragem de indivíduos arbustivos e de indivíduos arbóreos. A<br />

identificação foi feita a campo quando inequívoca. Para as espécies cuja<br />

identificação não foi possível a campo, foram confeccionadas exsicatas para<br />

posterior identificação no herbário da Embrapa Florestas. Foram medidas a<br />

CAP (Circunferência à Altura do Peito, ou a 1,3 m do solo) e a altura de cada<br />

indivíduo identificado, utilizando-se fitas métricas e hipsômetro. Os dados de<br />

CAP foram posteriormente transformados em dados de DAP (Diâmetro à<br />

Altura do Peito), para tabulação, análise, e discussão dos resultados.<br />

Em relação a cada indivíduo identificado, foi perguntado ao responsável<br />

da área se o mesmo foi plantado ou se era originário de regeneração natural,<br />

bem como se já estava ou não na área antes da implantação da AF. Foi<br />

também caracterizado, para cada espécie, se a mesma era de ocorrência<br />

comum no domínio fitogeográfico do bioma Mata Atlântica, a partir de<br />

consulta ao banco de dados do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (Flora<br />

Brasil) (FORZZA et al., 2010).<br />

Após realizados todos os levantamentos, os dados foram tabulados,<br />

possibilitando o cálculo dos atributos fitossociológicos (MUELLER-DOMBOIS<br />

& ELLENBERGER, 1974). Considerou-se como riqueza o número total de<br />

espécies identificadas em cada AF. O número de indivíduos de cada espécie<br />

– 327 –


Características estruturais das agroflorestas<br />

desenvolvidas no âmbito da Cooperafloresta<br />

presente nas AFs e a percentagem de ocorrência de cada espécie em relação<br />

ao total foram considerados como densidade absoluta e densidade relativa,<br />

respectivamente. A frequência relativa, por sua vez, foi determinada<br />

considerando-se a percentagem de parcelas em que a espécie foi identificada,<br />

em relação ao conjunto total de parcelas em cada AF. Para a determinação da<br />

dominância relativa, foram somados os valores de área basal de todos os<br />

indivíduos de cada espécie, relativizando-a, em percentagem, em relação à<br />

área basal total de todas as espécies em cada AF.<br />

Somando-se a densidade relativa, a frequência relativa e a dominância<br />

relativa de cada espécie, obteve-se o valor de importância (VI), tanto em cada<br />

AF quanto no conjunto das 16 AFs avaliadas. Assim, o VI representa uma<br />

proporção relativa a 300, visto que se constitui no somatório de três<br />

proporções centesimais. Utilizou-se o Índice de Simpson (1-D) para estimar<br />

a distribuição da diversidade nas AFs.<br />

Os resultados foram analisados por estatísticas descritivas e<br />

estatísticas não paramétricas. A análise dos dados foi realizada aplicandose<br />

os testes de Kruskal-Wallis e de Mann-Whitney, devido à distribuição dos<br />

dados obtidos não se adequar à normalidade. O teste de Kruskal-Wallis foi<br />

utilizado para avaliar se havia diferenças de valores no conjunto total de<br />

classes de idades (1-3, 4-9 e 10-15 anos das agroflorestas) e, quando<br />

significativo, o teste de Mann-Whitney foi utilizado para refinar a análise.<br />

Resultados e discussão<br />

Os parâmetros avaliados (riqueza, densidade e porcentagem de<br />

indivíduos plantados) em cada agrofloresta variaram em função da classe de<br />

idade e do manejo adotado. De modo geral, na classe de 1-3 anos de idade,<br />

as agroflorestas apresentaram riqueza média de 16 espécies, com densidade<br />

média de 4.720 indivíduos/ha, dos quais 56,9% foram oriundos de plantios.<br />

Na classe de 4-9 anos de idade a densidade média aumenta para 45 espécies,<br />

assim como a densidade média sobe para 7.408 indivíduos/ha, dos quais<br />

55,4% foram plantados. Na última classe de idade (10-15 anos), a riqueza<br />

média observada foi de 49 espécies, com 7.055 indivíduos/ha, dos quais<br />

71,6% foram oriundos de plantios (Tabela 1).<br />

– 328 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

TABELA 1 – Riqueza de espécies VEGETAIS, densidade de indivíduos e<br />

proporção de indivíduos plantados nas <strong>AGROFLORESTA</strong>S (AFs) estudadas<br />

em Barra do Turvo/SP e Adrianópolis/PR, no âmbito da Cooperafloresta.<br />

Afs<br />

Idade<br />

anos<br />

Uso do solo<br />

anterior 1 Riqueza Densidade<br />

número de<br />

espécies<br />

% indivíduos<br />

plantados<br />

indivíduos ha -1 %<br />

A 3 0 10 2.960 63,5<br />

B 3 1 22 6.480 50,3<br />

média 16 4.720 56,9<br />

C 4 1 26 5.240 22,0<br />

D 5 1 45 8.500 54,7<br />

E 6 1 58 10.000 57,6<br />

F 6 1 41 7.420 74,1<br />

G 6 0 67 8.560 81,3<br />

H 6 1 52 5.900 46,1<br />

I 8 0 30 6.260 35,7<br />

J 8 1 39 7.380 72,0<br />

média 45 7.408 55,4<br />

K 10 0 63 8.580 80,2<br />

L 10 0 60 7.660 71,8<br />

M 11 1 48 7.800 71,3<br />

N 11 0 29 7.567 87,3<br />

O 12 0 61 8.000 71,1<br />

P 15 0 31 2.720 48,0<br />

média 49 7.055 71,6<br />

1 uso anterior: 0 = pastagem ou lavoura anual; 1 = floresta secundária ou agrofloresta.<br />

No conjunto das 16 AFs avaliadas (esforço amostral de 8.000m 2 ,<br />

no total de parcelas), foram identificadas 194 espécies botânicas arbóreas<br />

ou arbustivas, pertencentes a 59 famílias (Tabela 2), sendo 89,1% destas<br />

espécies de ocorrência natural no domínio fitogeográfico do bioma Mata<br />

Atlântica, de acordo com o banco de dados do Jardim Botânico do Rio de<br />

Janeiro (FORZZA et al., 2010).<br />

– 329 –


Características estruturais das agroflorestas<br />

desenvolvidas no âmbito da Cooperafloresta<br />

TABELA 2 – Espécies identificadas em 16 agroflorestas (AFs) de agricultores<br />

associados a Cooperafloresta, em Barra do Turvo/SP e Adrianópolis/PR<br />

continua<br />

Família Espécie Nomes populares citados<br />

Anacardiaceae Schinus terebinthifolius Raddi Aroeira, Arueira, Arrueira<br />

Spondias mombin L.<br />

Spondias dulcis Parkinson<br />

Anacardium occidentale L.<br />

Mangifera indica L.<br />

Spondias purpurea L.<br />

Cajá-mirim<br />

Cajá-manga<br />

Caju<br />

Manga<br />

Seriguela<br />

Annonaceae Annona cacans Warm. Araticum-cagão<br />

Annona tomentosa R.E.Fr.<br />

Annona mucosa Jacq.<br />

Ariticum, Ariticum-cavalo<br />

Beribá<br />

Annona squamosa L.<br />

Fruta-do-conde, Araticumconde,<br />

Condeiro, Ata<br />

Annona muricata L.<br />

Graviola<br />

Xylopia brasiliensis Spreng.<br />

Pimenta-de-sabiá, Pimentinha<br />

Aquifoliaceae Ilex paraguariensis A.St.-Hil. Erva-mate<br />

Araceae Xanthosoma taioba E.G.Gonç. Taioba<br />

Araucariaceae Araucaria angustifolia (Bertol.) Kuntze Araucária<br />

Arecaceae Euterpe oleracea Mart. Açaí<br />

Astrocaryum aculeatissimum (Schott) Brejaúva<br />

Burret<br />

Syagrus romanzoffiana (Cham.) Glassman Gerivá, Coqueiro<br />

Euterpe edulis Mart.<br />

Juçara, Palmiteiro, Palmito-<br />

Juçara<br />

Archontophoenix alexandrae (F. Muell.) H. Palmeira-real<br />

Wendl. & Drude<br />

Bactris gasipaes Kunth<br />

Pupunha<br />

Bactris setosa Mart.<br />

Tucum<br />

Asteraceae Vernonia polyanthes Less Assa-peixe<br />

Gochnatia polymorpha (Less.) Cabrera Cambará<br />

Tithonia diversifolia (Hemsl.) A.Gray Flor-da-Amazônia, Margaridão<br />

Baccharis vulneraria Baker<br />

Vassoura<br />

Baccharis dracunculifolia DC. ----<br />

Bignoniaceae Jacaranda micrantha Cham. Caroba<br />

Handroanthus impetiginosus Mattos Ipê<br />

Handroanthus chrysotrichus (Mart. ex DC.) Ipê-amarelo<br />

Mattos<br />

Tabebuia roseoalba (Ridl.) Sandwith Ipê-branco<br />

Tecoma stans (L.) Juss. ex Kunth<br />

Ipê-de-jardim, Ipezinho<br />

Bixaceae Bixa orellana L. Colorau, Urucum<br />

Bombacaceae Orchroma pyramidale (Cav. ex Lam.) Urb. Pau-balsa, Balsa<br />

Boraginaceae Cordia trichotoma (Vell.) Arráb. ex Steud. Louro<br />

Varronia curassavica Jacq.<br />

Maria-preta<br />

– 330 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

TABELA 2 – Espécies identificadas em 16 agroflorestas (AFs) de agricultores<br />

associados a Cooperafloresta, em Barra do Turvo/SP e Adrianópolis/PR<br />

continuação<br />

Família Espécie Nomes populares citados<br />

Calophyllaceae Calophyllum brasiliense Cambess. Guanandi<br />

Cannabaceae Trema micrantha (L.) Blume Grandiúva, candiúva, paupólvora<br />

Caricaceae Carica papaya L. Mamão<br />

Vasconcellea quercifolia A.St.-Hil. Mamão-viado, Jaracatiá<br />

Celastraceae Maytenus aquifolia Mart. Espinheira-santa<br />

Clusiaceae Garcinia gardneriana (Planch. & Triana) Bacupari<br />

Zappi<br />

Garcinia mangostana L.<br />

Mangustão<br />

Clusia criuva Cambess.<br />

Orelha-de-burro<br />

Dioscoreaceae Dioscorea alata L. Cará<br />

Ebenaceae Diospyrus kaki L. Caqui<br />

Elaeocarpaceae Sloanea petalata D.Sampaio e V.C.Souza Carrapicho<br />

Ericaceae Gaylussacia brasiliensis (Spreng.) Meisn. Camirinha, Camarinha<br />

Erythroxilaceae Croton floribundus Spreng. Capixingui<br />

Euphorbiaceae Sapium glandulosum (L.) Morong Leiteiro, Leiteiro-Pica-cu<br />

Ricinus communis L.<br />

Mamona<br />

Manihot esculenta Crantz<br />

Mandioca<br />

Erythroxylum deciduum A.St.-Hil.<br />

Marmelo-bravo, Marmelo-domato<br />

Alchornea glandulosa Poepp. & Endl. Minhoqueiro<br />

Alchornea triplinervia (Spreng.). Müll.Arg. Tapiá<br />

Croton splendidus Mart.<br />

Velame, Velambre<br />

– 331 –


Características estruturais das agroflorestas<br />

desenvolvidas no âmbito da Cooperafloresta<br />

TABELA 2 – Espécies identificadas em 16 agroflorestas (AFs) de agricultores<br />

associados a Cooperafloresta, em Barra do Turvo/SP e Adrianópolis/PR<br />

continuação<br />

Fabaceae<br />

Família Espécie Nomes populares citados<br />

Falcataria moluccana (Miq.) Barneby &<br />

J.W.Grimes<br />

Andira fraxinifolia Benth.<br />

Anadenanthera colubrina (Vell.) Brenan<br />

Anadenanthera macrocarpa (Benth.)<br />

Brenan<br />

Centrolobium tomentosum Guillem. ex<br />

Benth.<br />

Platymiscium floribundum Vogel<br />

Myrocarpus frondosus Allemão<br />

Peltophorum dubium (Spreng.) Taub.<br />

Senna multijuga (Rich.) H.S.Irwin &<br />

Barneby<br />

Zollernia ilicifolia (Brongn.) Vogel<br />

Machaerium paraguariense Hassl.<br />

Copaifera langsdorffii Desf.<br />

Machaerium acutifolium Vogel<br />

Crotalaria juncea<br />

Erythrina verna Vell.<br />

Albizia niopoides (Spruce ex Benth.)<br />

Burkart<br />

Cajanus cajan (L.) Huth<br />

Schizolobium parahyba (Vell.) Blake<br />

Machaerium villosum Vogel<br />

Inga edulis Mart.<br />

Inga sellowiana Benth.<br />

Inga thibaudiana DC.<br />

Inga capitata Desv.<br />

Dalbergia brasiliensis Vogel<br />

Hymenaea courbaril L.<br />

Leucaena leucocephala (Lam.) de Wit<br />

Erythrina crista-galli L.<br />

Bauhinia ovata (Bong.) Vogel<br />

Bauhinia forficata Link<br />

Libidibia ferrea (Mart. ex Tul.) L.P.Queiroz<br />

Piptadenia gonoacantha (Mart.) J.F.Macbr.<br />

Lonchocarpus campestris Mart. ex Benth<br />

Pterocarpus rohrii Vahl<br />

Clitoria fairchildiana R.A.Howard<br />

Ateleia glazioveana Baill.<br />

– 332 –<br />

Albizia<br />

Angelim<br />

Angico<br />

Angico-vermelho<br />

Arivá<br />

Bico-de-pato<br />

Cabreúva<br />

Canafístula<br />

Caquera, Pau-cigarra<br />

Carapicica<br />

Catirinete, Cateretê<br />

Copaíba<br />

Coração-de-bugre<br />

Crotalária<br />

Eritrina<br />

Farinha-seca<br />

Guandu<br />

Guapuruvu, Capiruvu,<br />

Guapiruvu<br />

Guê, Asa-de-grilo<br />

Ingá-de-metro<br />

Ingá-mirim<br />

Ingá preto<br />

Ingá, Ingazeiro<br />

Jacarandá-marmelo<br />

Jatobá<br />

Leucena<br />

Marrequinha<br />

Pata-de-vaca<br />

Pata-de-vaca com espinho<br />

Pau-ferro<br />

Pau-jacaré<br />

Rabo-de-bugio<br />

Sangueiro, Sangra-d`água<br />

Sombreiro-mexicano, Chapéumexicano<br />

Timbó


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

TABELA 2 – Espécies identificadas em 16 agroflorestas (AFs) de agricultores<br />

associados a Cooperafloresta, em Barra do Turvo/SP e Adrianópolis/PR<br />

continuação<br />

Família Espécie Nomes populares citados<br />

Fagaceae Castanea sativa Mill. Castanha-portuguesa<br />

Lamiaceae Aegiphila integrifolia (Jacq.) Moldenke Tamanqueira, sapateira<br />

Vitex megapotamica (Spreng.) Moldenke<br />

Tarumã<br />

Lauraceae Persea americana Mill. Abacate, Abacateiro<br />

Ocotea puberula (Rich.) Nees<br />

Nectandra membranacea (Sw.) Griseb.<br />

Nectandra lanceolata Nees<br />

Ocotea catharinensis Mez<br />

Persea pyrifolia Nees & Mart.<br />

Canela<br />

Canela-branca<br />

Canela-niúva, Canela-miúva<br />

Canela-preta<br />

Pau-andrade<br />

Lecythidaceae Bertholletia excelsa Bonpl. Castanheira<br />

Loganiaceae Strychnos pseudoquina A.St.-Hil. Quina-branca<br />

Magnoliaceae Magnolia ovata (A.St.-Hil.) Spreng. Carne-de-paca, Maria-mole,<br />

Baguaçu<br />

Malvaceae Luehea divaricata Mart. & Zucc. Açoita-cavalo<br />

Ceiba speciosa (A.St.-Hil.) Ravenna Barriguda<br />

Theobroma cacao L.<br />

Cacau<br />

Pachira aquatica Aubl.<br />

Cacau-tigre<br />

Guazuma ulmifolia Lam.<br />

Condeiro-bravo<br />

Theobroma grandiflorum (Willd. ex Cupuaçu<br />

Spreng.) K.Schum.<br />

Hibiscus rosa-sinensis L.<br />

Hibisco<br />

Eriotheca candolleana (K.Schum.) Imbira, Embira<br />

A.Robyns<br />

Chorisia speciosa A.St.-Hil.<br />

Paineira<br />

Dombeya wallichii (Lindl.) K.Schum Sabãoeira, Sabãoeiro,<br />

Saboneteiro<br />

Melastomataceae Tibouchina sellowiana Cogn. Alelueira<br />

Miconia cinnamomifolia (DC.) Naudin Jacatirão<br />

Leandra australis (Cham.) Cogn.<br />

Pixirica<br />

Meliaceae Trichilia catigua A.Juss. Amarelinha, Amarelinho<br />

Cabralea canjerana (Vell.) Mart.<br />

Canjarana<br />

Cedrela fissilis Vell.<br />

Cedro<br />

Swietenia macrophylla King<br />

Mogno<br />

Melia azedarach L.<br />

Santa-bárbara<br />

Monimiaceae Peumus boldus Molina Boldo-do-Chile<br />

Moraceae<br />

Sorocea bonplandii (Baill.) W.C.Burger et<br />

al.<br />

Ficus guaranitica Chodat<br />

Artocarpus integrifolia L.<br />

Maclura tinctoria (L.) D.Don ex Steud.<br />

Muntingiaceae Muntingia calabura L. Calabura<br />

Espinheira-santa, Falsa<br />

espinheira-santa<br />

Figueira<br />

Jaca<br />

Tauva, Tauveira, Taiuva<br />

– 333 –


Características estruturais das agroflorestas<br />

desenvolvidas no âmbito da Cooperafloresta<br />

TABELA 2 – Espécies identificadas em 16 agroflorestas (AFs) de agricultores<br />

associados a Cooperafloresta, em Barra do Turvo/SP e Adrianópolis/PR<br />

continuação<br />

Família Espécie Nomes populares citados<br />

Musaceae Musa paradisiaca L. Banana<br />

Myristicaceae Virola bicuhyba (Schott ex Spreng.) Warb. Bicuíba<br />

Virola oleifera (Schott) A.C.Sm<br />

Bocuva, Pucuveira<br />

Myrtaceae Myrcia hebepetala DC. Aperta-guela<br />

Psidium araca Raddi<br />

Araçá<br />

Eugenia leonanii Mattos<br />

Araçatinga, Araçatinga-<br />

Vermelha<br />

Myrciaria glazioviana (Kiaersk.)<br />

Cabeludinha<br />

G.M.Barroso ex Sobral<br />

Eugenia involucrata DC.<br />

Cereja<br />

Eucalyptus saligna Sm.<br />

Eucalipto<br />

Campomanesia xanthocarpa (Mart.) O.Berg Gabiroba, Gaviroveira<br />

Psidium guajava L.<br />

Goiaba<br />

Acca sellowiana (O.Berg) Burre<br />

Goiabeira-serrana<br />

Eugenia brasiliensis Lam.<br />

Grumixama-amarela<br />

Campomanesia neriiflora (O.Berg) Nied. Guabiroba-branca<br />

Plinia cauliflora (Mart.) Kausel<br />

Jabuticaba<br />

Syzygium jambos (L.) Alston<br />

Jambo<br />

Syzygium cumini (L.) Skeels<br />

Jambolão<br />

Eugenia uniflora L.<br />

Pitanga<br />

Eugenia pyriformis Cambess.<br />

Uvaia, Ovaia<br />

Oxalidaceae Averrhoa carambola L. Carambola<br />

Passifloraceae Passiflora edulis Sims Maracujá<br />

Peraceae Pera glabrata (Schott) Poepp. ex Baill. Alexeiro<br />

Phyllantaceae Hieronyma alchorneoides Allemão Licurana, Ouricurana,<br />

Urucurana<br />

Phytolaccaceae Gallesia integrifolia (Spreng.)Harms Pau-d’alho<br />

Piperaceae Piper gaudichaudianum Kunth Jaborandi-branco, Jaborandi<br />

Piper cernuum Vell.<br />

Pariparoba, Caapeba<br />

Plantaginaceae Scoparia dulcis L. Tupixaba<br />

Poaceae Zea mays L. Milho<br />

Podocarpaceae Podocarpus lambertii Klotzsch Pinheiro-bravo, Pinheirinho-domato<br />

Primulacaceae Myrsine coriacea (Sw.) R.Br. ex Roem. &<br />

Schult.<br />

Pororoca, Capororoca,<br />

Pororoqueira<br />

Rhamnaceae Rhamnidium elaeocarpum Reissek Cabriteira<br />

Hovenia dulcis Thunb.<br />

Uva-do-Japão<br />

– 334 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

TABELA 2 – Espécies identificadas em 16 agroflorestas (AFs) de agricultores<br />

associados a Cooperafloresta, em Barra do Turvo/SP e Adrianópolis/PR<br />

conclusão<br />

Família Espécie Nomes populares citados<br />

Rosaceae Eriobotrya japonica (Thunb.). Lindl. Ameixa, Ameixa-amarela,<br />

Nêspera<br />

Rubus urticifolius Poir.<br />

Rubus brasiliensis Mart.<br />

Pyrus communis L.<br />

Prunus persica (L.) Batsch<br />

Prunus myrtifolia (L.) Urb.<br />

Amora-preta<br />

Amora, Amora-branca<br />

Pera<br />

Pêssego<br />

Rubiaceae Coffea arabica L. Café<br />

Bathysa australis (A.St.-Hil.) K.Schum.<br />

Palicourea blanchetiana Schltdl.<br />

Genipa americana L.<br />

Pessegueiro-bravo<br />

Erva-de-macuco, Pau-demacuco<br />

Erva-de-rato<br />

Jenipapo<br />

Rutaceae Citrus medica L. Cidra<br />

Citrus X aurantium var lumia<br />

Citrus X aurantium L.<br />

Citrus bergamia L<br />

Citrus aurantifolia L.<br />

Zanthoxylum rhoifolium Lam.<br />

Citrus reticulata Blanco<br />

Citrus X sinensis (L.) Osbeck<br />

Laranja-lima<br />

Laranja, Laranja-baiana<br />

Lima-da-pérsia<br />

Limão-rosa, Limão<br />

Mamica-de-cadela<br />

Mixirica<br />

Poncã<br />

Salicaceae Pouteria caimito (Ruiz & Pav.) Radlk Abiu<br />

Casearia decandra Jacq.<br />

Guassatunga<br />

Sapindaceae Cupania vernalis Cambess. Cuvatã<br />

Casearia sylvestris Sw.<br />

Litchi chinensis Sonn.<br />

Erva-de-lagarto<br />

Lixia<br />

Sapotaceae Matayba elaeagnoides Radlk. Miguel-pintado<br />

Manilkara zapota (L.) P.Royen<br />

Sapoti<br />

Simaroubaceae Picrasma crenata (Vell.) Engl. Pau-de-tenente, pau-tenente<br />

Solanaceae Solanum mauritianum Scop. Fumo-bravo, Fumeiro-bravo<br />

Solanum pseudoquina A.St.-Hil.<br />

Solanum pseudocapsicum L.<br />

Inhutinga, Cuvitinga<br />

Peloteria<br />

Urticaceae Cecropia glaziovii Snethl. Embaúba<br />

Boehmeria caudata Sw.<br />

Jaguarandi, Jaguarandi-preto,<br />

Guarandi-preto<br />

Verbenaceae Citharexylum myrianthum Cham. Jacataúva<br />

Aspilia montevidensis (Spreng.) Kuntze Mal-me-quer, Flor-do-campo,<br />

Flor-de-maio<br />

Aloysia virgata (Ruiz & Pav.) Juss. Repeludo<br />

Vochysiaceae Vochysia bifalcata Warm. Guaricica<br />

– 335 –


Características estruturais das agroflorestas<br />

desenvolvidas no âmbito da Cooperafloresta<br />

Na Figura 1, são apresentados o número de espécies por AF e o número<br />

acumulado de espécies a cada novo levantamento realizado (curva espécieárea).<br />

É possível perceber que há uma tendência de estabilidade do número<br />

acumulado de espécies, considerando o esforço amostral efetivado (n=16).<br />

Assim, apesar de existir uma grande variação espacial em cada AF, em termos<br />

da ocorrência de diferentes espécies, o conjunto das AFs avaliado tende a<br />

apresentar espécies semelhantes. O conjunto dessas espécies é representado<br />

por comunidades bastante densas de indivíduos, nas AFs. Essa densidade,<br />

na média entre as 16 AFs avaliadas, foi 6.394 indivíduos/hectare.<br />

Figura 1: Número de espécies identificadas, cumulativamente, em cada<br />

agrofloresta (AF), nas 16 AFs avaliadas (curva espécie-área).<br />

As AFs se constituem em plantios adensados, nos quais a sucessão<br />

secundária é manejada ou promovida. Assim, apesar de ser possível a<br />

comparação entre elas e florestas secundárias, em termos de riqueza de<br />

espécies e estrutura florestal, deve-se levar em conta a diferença de origem<br />

entre essas duas formações.<br />

Tabarelli e Mantovani (1999) estudaram a vegetação arbórea de trechos<br />

de floresta secundária após a queimada para agricultura de coivara, e<br />

– 336 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

identificaram: quatro espécies e 1.280 indivíduos/ha aos 10 anos de idade; 56<br />

espécies e uma densidade de 3.325 indivíduos/ha em área com 18 anos; 90<br />

espécies, em densidade de 2.735 indivíduos/ha em área com 40 anos; e 84<br />

espécies, em densidade de 2.335 indivíduos/ha em área de floresta madura.<br />

No mesmo Parque, Padgurschi et al. (2011), avaliando duas áreas<br />

distintas de florestas secundárias, identificaram 189 espécies em 43 famílias<br />

botânicas, com densidade de 1.852 indivíduos/ha e, na outra, 149 espécies,<br />

pertencentes a 40 famílias, em uma densidade de 1.436 indivíduos/ha.<br />

Liebsch et al. (2007) estudaram a diversidade de espécies arbóreas<br />

na Reserva Natural Rio Cachoeira, em Antonina, litoral do Paraná, em três<br />

sítios, em que indícios históricos indicavam a ocorrência de corte da vegetação<br />

há 20, 80 e 120 anos. No sítio de 20 anos após o corte, foram identificadas<br />

nove espécies (densidade de 1.890 indivíduos/ha); no sítio de 80 anos,<br />

foram identificadas 63 espécies (densidade de 3.006 indivíduos/ha) e, no<br />

sítio de 120 anos, 56 espécies (densidade de 1.600 indivíduos/ha).<br />

Solórzano et al. (2012), avaliando uma floresta secundária estabelecida<br />

sobre área cujo último uso do solo havia sido um bananal, há mais de 50<br />

anos, no Parque Estadual da Pedra Branca, Rio de Janeiro/RJ, identificaram<br />

92 espécies arbóreas, pertencentes a 31 famílias botânicas, em densidade<br />

de 1.244 indivíduos/ha.<br />

Schorn e Galvão (2009), estudando a vegetação arbórea de florestas<br />

secundárias em estádios inicial, médio e avançado na área do Parque Natural<br />

Nascentes do Garcia, no município de Blumenau/SC, identificaram nessas<br />

florestas, respectivamente, 20, 71 e 66 espécies, e densidades que variaram<br />

entre 1.113 e 2.373 indivíduos/ha.<br />

Mantovani et al. (2005), avaliando florestas secundárias do município<br />

de São Pedro de Alcântara/SC, identificaram 150 espécies arbóreas. Froufe e<br />

Seoane (2011), avaliando áreas de florestas secundárias de 5 a 30 anos de<br />

idade, em Barra do Turvo/SP, mesmo município deste trabalho, identificaram<br />

14 espécies arbóreas.<br />

Além da premissa de que a origem das AFs e das florestas secundárias<br />

não é a mesma, é importante considerar que a comparação da riqueza de<br />

espécies e da densidade de indivíduos entre os trabalhos apresentados<br />

acima e entre eles e os resultados obtidos dos levantamentos nas AFs não<br />

– 337 –


Características estruturais das agroflorestas<br />

desenvolvidas no âmbito da Cooperafloresta<br />

pode ser linear, na medida em que não há uma padronização de esforço<br />

amostral nem de métodos de amostragem. Nos trabalhos referenciados,<br />

foram amostrados indivíduos acima de diferentes medidas de diâmetro a<br />

altura do peito (DAP), sendo esta linha de corte acima de 3,2cm (TABARELLI<br />

& MANTOVANI,1999), 4,8cm (LIEBSCH et al., 2007; PADGURSCHI et<br />

al., 2011), 5cm (MANTOVANI et al., 2005; FROUFE & SEOANE, 2011;<br />

SOLÓRZANO et al., 2012) e 15cm (SCHORN & GALVÃO, 2009). Nas AFs<br />

avaliadas neste trabalho, foram identificados todos os indivíduos com altura<br />

maior que 1,5m, muitos dos quais apresentaram DAP inferior aos indivíduos<br />

amostrados nos trabalhos apresentados.<br />

Na literatura são raros os trabalhos que tenham utilizado amostragens<br />

semelhantes à utilizada para os levantamentos das AFs. Entretanto, Siminski<br />

et al. (2011), em recente trabalho, utilizaram este mesmo padrão de<br />

amostragem (amostrando todos os indivíduos com altura superior a 1,5m)<br />

para estudar a vegetação de florestas secundárias em várias regiões de Santa<br />

Catarina, área de ocorrência do bioma Mata Atlântica, entre as quais os<br />

municípios de Garuva e São Pedro de Alcântara (SC), em ambiente de Floresta<br />

Ombrófila Densa (FOD). Neste estudo, florestas de 0 a 8 anos apresentaram<br />

80 espécies, pertencentes a 30 famílias botânicas; florestas de 8 a 15 anos<br />

apresentaram 116 espécies, pertencentes a 40 famílias e florestas de 15 a<br />

30 anos apresentaram 163 espécies, pertencentes a 50 famílias. Torezan<br />

(1995), avaliando florestas secundárias que se estabeleceram sobre áreas<br />

queimadas para a agricultura de coivara, no município de Iporanga/SP, que<br />

faz limite com Barra do Turvo, amostrou todos os indivíduos herbáceos,<br />

arbustivos ou arbóreos com mais de 2m de altura, em parcelas instaladas em<br />

florestas de 5, 15 e 50 anos. Foram identificadas 185 espécies, pertencentes<br />

a 60 famílias botânicas.<br />

Considerando o exposto, é possível presumir que a riqueza de 194<br />

espécies e a densidade média de 6.394 indivíduos/hectare, identificada<br />

neste trabalho, são relativamente elevadas, o que é consequência, entre<br />

possíveis outras causas, do plantio intencional de várias espécies em elevada<br />

densidade que, naturalmente, não ocorreriam nas AFs caso estas fossem<br />

florestas secundárias sem manejo, sejam elas espécies comuns ou não no<br />

domínio fitogeográfico do bioma Mata Atlântica.<br />

– 338 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

De fato, de todos os indivíduos avaliados, 61,3% foram plantados,<br />

sendo o restante (38,7%) provenientes de sucessão natural.<br />

Assim, o plantio adensado, associado ao manejo da sucessão natural<br />

secundária, acaba por propiciar elevada diversidade de espécies e alta<br />

densidade de indivíduos nas AFs. Em outras palavras, “cabem” nas AFs tanto<br />

os indivíduos plantados quanto aqueles originados da sucessão natural,<br />

muitos dos quais manejados e promovidos intencionalmente para o<br />

recrutamento. Existem diferenças importantes, entretanto, na natureza e na<br />

distribuição da diversidade entre agroflorestas e florestas secundárias.<br />

Na Tabela 3, são apresentados os Valores de Importância (VI) das 30<br />

espécies principais, no conjunto das AFs. Praticamente um terço do valor<br />

de importância (99,09 %, considerando uma base de VI total de 300)<br />

de todas as espécies identificadas nas AFs correspondem à bananeira, à<br />

pupunha e ao palmito juçara, que estão entre os principais produtos<br />

direcionados à comercialização.<br />

TABELA 3 – VALORES de Importância (VI) das 30 espécies PRINCIPAIS,<br />

no conjunto das agroflorestas estudadas em Barra do Turvo/SP e<br />

Adianópolis/PR, no âmbito da Cooperafloresta<br />

continua<br />

Espécie<br />

VI<br />

% com base em 300<br />

Banana (Musa paradisiaca) 60,3<br />

Pupunha (Bactris gasipaes) 23,2<br />

Juçara (Euterpe edulis) 15,5<br />

Jaca (Artocarpus integrifolia) 8,5<br />

Ingá (Inga capitata) 8,0<br />

Jaguarandi (Boehmeria caudata) 7,9<br />

Abacate (Persea americana) 7,8<br />

Jaborandi (Piper gaudichaudianum) 7,1<br />

Grandiúva (Trema micrantha) 6,5<br />

Embaúba (Cecropia glaziovii) 6,1<br />

Mandioca (Manihot esculenta) 5,4<br />

Colorau (Bixa orellana) 5,0<br />

Goiaba (Psidium guajava) 4,5<br />

– 339 –


Características estruturais das agroflorestas<br />

desenvolvidas no âmbito da Cooperafloresta<br />

TABELA 3 – VALORES de Importância (VI) das 30 espécies PRINCIPAIS,<br />

no conjunto das agroflorestas estudadas em Barra do Turvo/SP e<br />

Adianópolis/PR, no âmbito da Cooperafloresta<br />

conclusão<br />

Espécie<br />

VI<br />

% com base em 300<br />

Repeludo (Aloysia virgata) 4,5<br />

Capororoca (Myrsine coriacea) 4,2<br />

Laranja (Citrus X aurantium) 4,0<br />

Palmeira-real (Archontophoenix alexandrae) 3,9<br />

Guê (Machaerium villosum) 3,1<br />

Canela-niúva (Nectandra lanceolata) 3,0<br />

Uva-do-Japão (Hovenia dulcis) 2,9<br />

Café (Coffea arabica) 2,8<br />

Fumeiro-bravo (Solanum mauritianum) 2,6<br />

Tapiá (Alchornea triplinervea) 2,5<br />

Guapuruvu (Shizolobium parahyba) 2,5<br />

Amora-preta (Rubus urticifolius) 2,4<br />

Assa-peixe (Vernonia polyanthes) 2,3<br />

Mixirica (Citrus reticulata) 2,2<br />

Eritrina (Erythrina verna) 2,0<br />

Ipê-de-jardim (Tecoma stans) 1,9<br />

Cajá-mirim (Spondias mombin) 1,8<br />

Embora algumas espécies apresentadas na Tabela 3 não sejam comuns<br />

em florestas secundárias típicas, a tendência de algumas espécies serem<br />

dominantes também é verificada nestas florestas, no domínio da Mata<br />

Atlântica. No trabalho de Siminski et al. (2012), as cinco espécies principais<br />

entre os arbustos, as arvoretas e as árvores avaliadas nas florestas secundárias<br />

de áreas de Floresta Ombrófila Densa representaram, respectivamente, VIs<br />

de 115, 133 e 83. No trabalho de Torezan (1995), identificou-se que<br />

Tibouchina pulchra, Cecropia pachystachya e Aegiphila sellowiana foram<br />

fortemente dominantes nas florestas secundárias de 5 e 15 anos. Nessas<br />

florestas, entretanto, essa dominância se dá sem uma influência antrópica<br />

direta. Nas AFs aqui avaliadas, diferentemente, as três espécies com maior<br />

VI são aquelas intensamente plantadas.<br />

– 340 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Embora a preponderância do VI das espécies citadas, a densidade e<br />

frequência das outras espécies estão relativamente bem distribuídas.<br />

Aplicando-se o cálculo do Índice de Simpson (1 – D), considerando-se o<br />

conjunto total das espécies nas 16 AFs, obtém-se o valor de 0,9485,<br />

considerando-se que quanto mais este índice é próximo de 1, mais equianea<br />

é a distribuição da diversidade.<br />

Entretanto, quando se analisam separadamente diferentes classes de<br />

idade, percebe-se uma variação da riqueza das espécies e da densidade de<br />

indivíduos entre elas (Figura 2).<br />

Figura 2: Riqueza média de espécies vegetais por classe de idade das agroflorestas<br />

(AFs) avaliadas em Barra do Turvo/SP e Adrianópolis/PR, no âmbito da Cooperafloresta.<br />

AFs de 1 a 3 anos apresentaram riqueza média de 16 espécies; AFs<br />

de idade intermediária (de 4 a 9 anos de idade) apresentaram riqueza média<br />

de 45 espécies e AFs antigas (de 10 a 15 anos) apresentaram riqueza média<br />

de 49 espécies. Os testes não paramétricos adotados mostraram que há<br />

diferença significativa de riqueza entre a classe de menor idade e as duas<br />

demais classes. O menor número de espécies identificado nas AFs jovens<br />

está provavelmente relacionado ao critério de corte na amostragem – só<br />

foram avaliados indivíduos com altura maior ou igual a 1,5 m, de espécies<br />

arbustivas ou arbóreas. Nas AFs de 1 a 3 anos, foi possível perceber a<br />

– 341 –


Características estruturais das agroflorestas<br />

desenvolvidas no âmbito da Cooperafloresta<br />

ocorrência de um grande número de espécies herbáceas, tanto plantadas<br />

quanto em sucessão natural, que não foram avaliadas.<br />

De forma análoga à riqueza de espécies, existe uma variação da<br />

densidade de indivíduos entre as três classes de idade (Figura 3). Como no<br />

caso anterior, as análises estatísticas mostraram que a classe de idade mais<br />

nova apresenta densidade significativamente inferior às demais classes e,<br />

essa baixa densidade relativa de indivíduos nas AFs jovens pode ser em<br />

função do critério de corte na amostragem.<br />

Figura 3: Densidade média por classe de idade das agroflorestas (AFS), avaliadas em<br />

Barra do Turvo/SP e Adrianópolis/PR, no âmbito da Cooperafloresta.<br />

Apesar das grandes variações entre diferentes características das<br />

agroflorestas, é possível inferir que estas, manejadas na forma que são,<br />

apresentam riqueza de espécies e densidade de indivíduos semelhantes ou<br />

superiores a formações florestais secundárias sem manejo, embora as<br />

espécies variem em sua natureza. Nas agroflorestas a maioria das espécies<br />

são espécies de ocorrência comum ao domínio fitogeográfico do bioma<br />

Mata Atlântica.<br />

A combinação entre o plantio intencional (61,3% dos indivíduos<br />

amostrados, neste trabalho) e o manejo da sucessão, de forma intensiva,<br />

parece contribuir para a elevada riqueza de espécies nas agroflorestas. Por<br />

– 342 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

sua vez, essa combinação, associada ao manejo da poda e corte de indivíduos,<br />

potencializa a densidade de indivíduos, especialmente de indivíduos mais<br />

jovens, que incrementam a produtividade primária nas agroflorestas.<br />

Embora haja um índice de valor de importância (VI) destacado para as<br />

espécies palmiteiro, pupunha e bananeira, há uma distribuição relativamente<br />

equânime do conjunto das espécies.<br />

Estudos que busquem analisar a funcionalidade ecológica das<br />

agroflorestas, a partir de sua diversidade e estrutura, são de grande<br />

importância e complementares aos resultados mostrados aqui. Considerando<br />

que a maior parte das espécies plantadas nas AFs são frutíferas, possivelmente<br />

se constituindo em espécies “bagueiras”, especula-se que essas formações<br />

desempenhem um papel importante na manutenção de recursos tróficos para<br />

a fauna, potencializando o processo de polinização e dispersão de sementes<br />

e podendo favorecer o fluxo gênico (BARBOSA, 2006; JORDANO et al.,<br />

2006) entre agroflorestas e entre estas e formações naturais.<br />

De qualquer forma, como sistemas produtivos, as agroflorestas são<br />

formações que associam elevada densidade de indivíduos e elevada riqueza<br />

de espécies, aproximando-se, nestes parâmetros, das florestas secundárias<br />

nativas do bioma Mata Atlântica.<br />

Referências<br />

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York, The New York Botanical Garden. 1996.<br />

BARBOSA, K. C. A importância da interação animal-planta na recuperação de áreas<br />

degradadas. In. BARBOSA, L. M. Manual para recuperação de áreas degradadas<br />

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Acessado em: 05/12/2012.<br />

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B.M.T.; BICUDO, C.; ZAPPI, D.; COSTA, D.P.; LLERAS, E.; MARTINELLI, G.; LIMA, H.C.;<br />

PRADO, J.; STEHMAN, J.R.; BAUMGRATZ, J.F.A.; PIRANI, J.R.; SYLVESTRE, L.; MAIA,<br />

L.C.; LOHMANN, L.G.; QUEIROZ, L.P.; SILVEIRA, M.; COELHO, M.N.; MAMEDE, M.C.;<br />

BASTOS, M.N.C.; MORIM, M.P.; BARBOSA, M.R.; MENEZES, M.; HOPKINS, M.; SECCO,<br />

– 343 –


Características estruturais das agroflorestas<br />

desenvolvidas no âmbito da Cooperafloresta<br />

R.; CAVALCANTI, T.B.; SOUZA, V.C. 2010. Introdução. in Lista de Espécies da Flora do<br />

Brasil. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Disponível em: . Acessado em 04/10/2012<br />

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Brasil. Disponível em: . Acessado<br />

em: 05/12/2012.<br />

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New York: Wiley, 1974. 547 p.<br />

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abr./jun. 2009.<br />

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Forest Succession in The Mata Atlantica, Brazil: Floristic and Phytosociologic Trends.<br />

ISRN Ecology, v. 2011, p. 1-19, 2011.<br />

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SP. Curitiba, Dissertação de Mestrado, Departamento de Botânica/ UFPR. 89p. 1995.<br />

– 344 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 13<br />

Avaliação da dinâmica do carbono<br />

em agroflorestas desenvolvidas por agricultores<br />

associados à Cooperafloresta<br />

Walter Steenbock,<br />

Rodrigo Ozelame da Silva,<br />

Fabiane Machado Vezzani,<br />

Patrikk John Martins,<br />

Luis Cláudio Maranhão Froufe e<br />

Carlos Eduardo Seoane<br />

Introdução<br />

No capítulo anterior, foi descrita a metodologia de seleção de dezesseis<br />

agroflorestas (AFs) para a caracterização de aspectos da estrutura florestal.<br />

Nesta seleção, foram incluídas AFs de diferentes idades, em distintas<br />

condições de solo e relevo e conduzidas sob variações amplas de manejo.<br />

Apesar dessa variação de fatores associados às características das AFs,<br />

é possível observar tendências e características gerais desses agroecossistemas,<br />

no que tange aos atributos avaliados, utilizando-se estatísticas descritivas e<br />

não paramétricas.<br />

Neste capítulo, são apresentados a metodologia e os resultados da<br />

avaliação da dinâmica do carbono nas AFs, utilizando como base amostral as<br />

mesmas áreas nas quais foram realizados os levantamentos de vegetação.<br />

Além de aproveitar a metodologia de seleção e os valores associados à<br />

quantificação da fitomassa e do carbono que as avaliações apresentadas no<br />

capítulo anterior possibilitam, a opção por proceder avaliações dessa natureza<br />

em uma amostra relativamente grande e com controle estatístico não<br />

paramétrico está fundamentada justamente na busca de características gerais<br />

e de tendências relativas à dinâmica do carbono nas AFs.<br />

– 345 –


Avaliação da dinâmica do carbono em agroflorestas<br />

desenvolvidas por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

Por que avaliar carbono?<br />

Estima-se que a população humana global atinja mais de nove bilhões<br />

de pessoas em meados deste século. Considerando o crescimento do consumo<br />

dos recursos naturais dessa população, a preocupação em garantir a<br />

segurança alimentar de forma conjunta à conservação da biodiversidade e à<br />

estabilidade dos ecossistemas ante as mudanças climáticas tem sido motivo<br />

de debates em diferentes níveis.<br />

No centro desse debate, nos últimos anos, a discussão entre os modelos<br />

de “land sharing (compartilhar terra)” e “land sparing (poupar terra)” para a<br />

busca da conservação da biodiversidade associada à produtividade agrícola<br />

vem ocupando espaços cada vez maiores em ambientes acadêmicos e na<br />

discussão de políticas públicas.<br />

Em termos gerais, o conceito de “land sharing” está relacionado à<br />

busca de práticas de manejo que, em um mesmo espaço, visam otimizar a<br />

conservação da biodiversidade em meio a práticas produtivas de baixo<br />

impacto ambiental. Práticas agroecológicas, de uma forma geral, e sistemas<br />

agroflorestais, mais especificamente, estão englobados neste conceito. O<br />

conceito de “land sparing”, por sua vez, está relacionado à otimização da<br />

produtividade agrícola e da conservação da biodiversidade, em diferentes<br />

espaços. Neste conceito, a conservação deveria ser efetivada em espaços<br />

com pouca ou nenhuma intervenção antrópica, destinando-se áreas<br />

diferentes para a agricultura intensiva, maximizando a produtividade de<br />

alimentos nestes espaços.<br />

Phalan et al. (2011) apresentaram um estudo de grande escala,<br />

realizado no nordeste da Índia e no sudoeste de Gana, comparando o efeito<br />

de diferentes gradientes de intensidade da agricultura em populações de<br />

espécies de árvores e de aves. Nesse estudo, o modelo de “land sparing”<br />

foi mais efetivo para a conservação das espécies, propondo os autores<br />

que este modelo é mais promissor para minimizar o efeito dos impactos<br />

negativos da produção agrícola.<br />

Entretanto, Gutíerrez-Vélez et al. (2011), comparando diferentes<br />

sistemas de expansão da produção de dendê na amazônia peruana e seus<br />

impactos na conversão de florestas, identificaram resultados que orientam<br />

em sentido contrário. Nessa região, enquanto as áreas de plantio localizadas<br />

em pequenas propriedades – com menor intensidade tecnológica –<br />

– 346 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

respondem por 80% da expansão da produção de dendê, somente 30%<br />

dessa expansão resulta em novos desmatamentos. Por outro lado, a<br />

expansão em grandes propriedades, com maior intensidade tecnológica,<br />

resulta em um incremento de 75% da conversão de florestas, gerando<br />

novos desmatamentos, situação decorrente de aspectos relacionados,<br />

principalmente, ao valor da terra. Feistauer (2012), por sua vez, identificou,<br />

na amazônia brasileira, que sistemas orgânicos de produção que envolvem<br />

produção diversificada de alimentos, tanto em áreas desmatadas quanto no<br />

interior de florestas, a partir do extrativismo e de sistemas agroflorestais,<br />

mantêm maior área de reserva legal e de preservação permanente do que<br />

sistemas de produção convencionais, com forte componente de produção<br />

pecuária. Em ambos os casos, o modelo de “land sharing” é claramente<br />

mais efetivo para a conservação.<br />

Obviamente, a questão é complexa, está associada a fatores<br />

econômicos, sociais e ambientais variáveis e não pode ser respondida de<br />

forma homogênea em todas as regiões.<br />

Enquanto esse debate é incrementado, tomadores de decisão de<br />

políticas de conservação, em várias partes do mundo, têm apostado na<br />

compensação dos impactos ambientais negativos dos processos produtivos<br />

ou na valorização da conservação, a partir do pagamento de serviços<br />

ambientais, o qual tem se constituído na base da “economia verde”. Na<br />

lógica deste paradigma econômico, os produtos e serviços da natureza<br />

podem ser mensurados e valorizados financeiramente. De acordo com<br />

Costanza et al. (1997), que realizaram ampla revisão, tida como referência<br />

da economia verde, a biosfera produz a cada ano bens e serviços ambientais<br />

à humanidade de, em média, 33 trilhões de dólares. Este valor, na época do<br />

estudo, era quase duas vezes o Produto Interno Bruto (PIB) global, de 18<br />

trilhões de dólares. Na Mata Atlântica, excluindo-se os bens, esse valor<br />

correspondia, neste estudo, a 1.652 dólares por ano, por hectare.<br />

De acordo com o que é preconizado pela economia verde, impactos<br />

ambientais negativos de processos produtivos, como desmatamento ou<br />

emissão de gases de efeito estufa, poderiam ser compensados valorizandose,<br />

financeiramente, áreas naturais capazes de produzirem bens e serviços<br />

mensuráveis. Essa lógica de compensação, acoplada ao debate dos modelos<br />

de “land sparing” e “land sharing”, serve de argumento favorável ao modelo<br />

– 347 –


Avaliação da dinâmica do carbono em agroflorestas<br />

desenvolvidas por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

de “land sparing”, uma vez que os impactos ambientais negativos da<br />

agricultura intensiva poderiam ser compensados em áreas de interesse para<br />

a conservação ambiental.<br />

No campo da economia verde, a compensação ambiental por créditos<br />

de carbono pode caracterizar-se como um importante eixo do pagamento de<br />

serviços ambientais (GUEDES & SEEHUSEN, 2011). O balanço de carbono<br />

é, entretanto, apenas um indicador, devendo ser contextualizado de forma<br />

adequada em diferentes paisagens.<br />

Na lógica da economia verde, áreas florestadas – além de áreas em<br />

recuperação – têm sido objeto de valorização econômica, por representarem<br />

estoques de carbono na vegetação que não são emitidos em forma de gases<br />

de efeito estufa. É curioso notar, entretanto, que florestas maduras, ou em<br />

estágio avançado de sucessão, apesar de apresentarem grandes estoques<br />

de carbono, fixam muito pouco gás carbônico, em relação a florestas em<br />

crescimento. Há 10 anos, Deborah Clark, uma das pesquisadoras mais<br />

renomadas em florestas tropicais, publicou uma ampla revisão de trabalhos<br />

envolvendo estudos de fixação de carbono em 25 florestas tropicais, efetivando<br />

adequações de análise e verificando que a fixação de carbono destas florestas<br />

é, em média, de apenas 0,3 Mg C ha -1 ano -1 (CLARK, 2002).<br />

Assim, apesar de uma imensa variedade de serviços ambientais<br />

ser promovida por florestas nativas maduras, tais como manutenção da<br />

biodiversidade, manutenção do equilíbrio hidrológico e microclimático e<br />

redução da erosão, o incremento anual de carbono não é tão expressivo.<br />

Compensar expressivas emissões de gases de efeito estufa, valorizando<br />

apenas o estoque acumulado ou o baixo incremento destas florestas é,<br />

portanto, inadequado para contribuir na redução do efeito estufa.<br />

Plantios florestais homogêneos, como os de eucaliptos e de pinus,<br />

tendem a apresentar uma alta taxa de incremento anual de carbono.<br />

Entretanto, tais plantios têm sido uma das principais causas da redução de<br />

biodiversidade no mundo (RICHARDSON, 1998; ZILLER, 2001), além de<br />

outros impactos ambientais negativos. Dessa forma, em uma análise<br />

simplista, compensar emissões de gases de efeito estufa em plantios dessa<br />

natureza poderia ser mais adequado do que a compensação em florestas<br />

– 348 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

nativas maduras para contribuir na redução do efeito estufa – porém, tal<br />

compensação só tende a incrementar a redução da biodiversidade e, de forma<br />

indireta, o próprio efeito estufa.<br />

Além da complexidade relacionada à efetividade da economia verde<br />

para a conservação ambiental, os dados demográficos e econômicos em nível<br />

mundial vêm indicando que os padrões de consumo atuais no mundo<br />

já excedem, hoje, a capacidade de renovação dos recursos em termos<br />

planetários; ou seja, que a compensação ambiental não é uma conta tão<br />

linear como se quer, em nível planetário. De acordo com dados da Global<br />

Footprint Network (EWING et al., 2009), a população atual do planeta<br />

consome quase 1,5 planetas Terra por ano, com base nos dados de 2006.<br />

Ou seja, a população hoje usa em um ano recursos que o planeta só consegue<br />

repor em dezoito meses. No relatório de 2008, baseado em dados da ONU<br />

de 2003, a humanidade consumia 1,3 planetas por ano. Como, obviamente,<br />

só temos um planeta, fica claro que, caso não haja uma mudança significativa<br />

nas práticas produtivas e nos padrões de consumo da humanidade, as<br />

políticas de compensação ambiental não encontrarão, em médio prazo,<br />

espaços suficientes no planeta para serem efetivadas.<br />

Assim, caso não haja mudança nos padrões produtivos e de consumo<br />

e caso não seja possível produzir alimentos, fibras, madeira e outros produtos<br />

no mesmo espaço em que se produza biodiversidade e que o estoque de<br />

carbono seja positivo, a escassez de recursos naturais pode se tornar realidade<br />

ainda antes de 2050 (EWING et al., 2009). Para evitar essa situação, é<br />

fundamental que haja um grande contingente populacional no meio rural (e,<br />

por que não dizer também, no ambiente urbano), implementando práticas<br />

produtivas que gerem fertilidade do solo, biodiversidade, fixação de carbono<br />

e qualidade de vida.<br />

A Agrofloresta é um sistema que oferece grandes vantagens relacionadas<br />

ao meio ambiente, com destaque para a contribuição para a diversidade<br />

local de espécies (GRIFFITH, 2000; Schroth et al., 2011), a Recuperação<br />

de Áreas Degradadas (FAVERO et al., 2008), e por proporcionar viabilidade<br />

econômica e obtenção de renda a partir de diferentes espécies cultivadas e<br />

consequentemente de produtos diversificados durante todos os meses do ano<br />

(VIEIRA et al., 2007).<br />

– 349 –


Avaliação da dinâmica do carbono em agroflorestas<br />

desenvolvidas por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

Os solos sob mata tendem a apresentar maiores teores de matéria<br />

orgânica em função da grande deposição de resíduos orgânicos que<br />

recebem, à pequena erosão hídrica a que estão sujeitos e à ausência de<br />

revolvimento do solo (JAKELAITIS et al., 2008). De maneira similar, os<br />

solos sob sistemas agroflorestais tendem a receber os mesmos benefícios<br />

que recebem os solos sob matas nativas. O solo funciona como um sistema<br />

vivo com a função de sustentar a produtividade vegetal e animal, manter ou<br />

aumentar a qualidade da terra e do ar e dessa forma, promover a saúde<br />

animal e vegetal. A capacidade do solo em exercer essas funções na<br />

natureza, está ligada às ações antrópicas no sistema, e por esse motivo as<br />

ações reducionistas da qualidade do mesmo são uma preocupação ecológica<br />

(DORAN & ZEISS, 2000). O aporte contínuo de matéria orgânica recebido<br />

nesses sistemas possibilita a preservação do solo, bem como a melhora e<br />

manutenção de sua qualidade.<br />

A ciclagem de nutrientes é um dos fatores mais importantes para a<br />

manutenção de ecossistemas florestais, pois as quantidades de carbono e<br />

nutrientes encontradas no solo, na serapilheira e na fitomassa aérea são<br />

importantes na definição do balanço de nutrientes e podem servir de<br />

indicadores de diferenças entre sistemas florestais.<br />

Há que se destacar que as áreas florestais têm papel relevante no ciclo<br />

global de carbono (IPCC, 2000), da mesma forma que o carbono estocado<br />

em ecossistemas terrestres tropicais (solo e vegetação) representa cerca<br />

de 20 a 25% do carbono mundial (CERRI et al., 2001). Dessa forma, é<br />

imprescindível avaliar o estoque de carbono nos sistemas agrícolas,<br />

principalmente os que tenham presente o componente florestal em sua<br />

composição. O potencial de sequestro de carbono dos sistemas agroflorestais<br />

é um dos benefícios ambientais deste sistema (NAIR et al., 2009; FROUFE<br />

et al., 2011).<br />

No capítulo anterior, foram apresentados aspectos gerais da estrutura<br />

florestal e da diversidade em agroflorestas. No presente capítulo, busca-se<br />

apresentar como o manejo agroflorestal reflete na dinâmica do carbono,<br />

apontando para a possibilidade de agregar carbono, produção de alimentos e<br />

biodiversidade nos mesmos espaços.<br />

– 350 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Metodologia<br />

A avaliação do estoque do carbono nas AFs, na forma aqui apresentada,<br />

provém de estudos preliminares, realizados a partir da estimativa da<br />

quantidade de carbono na fitomassa viva (que compreende a fitomassa aérea<br />

e a fitomassa das raízes) e na fitomassa depositada sobre o solo, em dezesseis<br />

agroflorestas de diferentes idades, desenvolvidas no âmbito da Cooperafloresta.<br />

As AFs que se constituíram na base amostral deste estudo foram as<br />

mesmas que tiveram a diversidade de espécies e a densidade de indivíduos<br />

estudadas, objeto do capítulo anterior. A descrição de suas características<br />

gerais de manejo encontra-se naquele capítulo.<br />

Inicialmente, com base na determinação do valor de importância (VI)<br />

das espécies que ocorrem nas AFs (Capítulo 12, Tabela 2), selecionou-se um<br />

indivíduo de cada uma das 30 espécies com maior VI, dentro das agroflorestas,<br />

que foi abatido. Para esse abate, consideraram-se indivíduos adultos com<br />

circunferência a altura do peito (CAP) e altura medianos, sendo o diâmetro a<br />

altura do peito (DAP), obtido a partir da conversão da CAP, sempre acima de<br />

5 cm. No caso de palmiteiro (Euterpe edulis), pupunha (Bactris gasipaes) e<br />

bananeira (Musa paradisiaca) (espécies com maior VI) foram abatidos 15<br />

indivíduos de cada espécie, por serem as espécies que formam praticamente<br />

um terço do VI total (Capítulo 12, Tabela 2). Foi procedida, então, a cubagem<br />

dos indivíduos abatidos e amostragem dos compartimentos madeira do fuste,<br />

casca do fuste, galhos vivos, galhos mortos e folhagem, que foram secos em<br />

estufa a 75º C, até atingirem peso constante, que foi mensurado. Esse<br />

procedimento teve o objetivo de determinar o volume real dessas espécies.<br />

Foi procedido ao teste e à adequação de 20 equações alométricas,<br />

correlacionando a fitomassa seca com o diâmetro (DAP) e a altura das<br />

árvores, para determinar o volume estimado das espécies estudadas. Com<br />

base na análise conjunta do volume real e do volume estimado, foram<br />

selecionadas as equações que melhor descrevem a estimativa da fitomassa<br />

aérea nas AFs, considerando o maior coeficiente de determinação ajustado<br />

(R2aj) e o menor erro padrão da estimativa (Syx%) (Tabela 1).<br />

– 351 –


Avaliação da dinâmica do carbono em agroflorestas<br />

desenvolvidas por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

TABELA 1 – Equações selecionadas para a estimativa da fitomassa aérea<br />

em <strong>AGROFLORESTA</strong>S de Barra do Turvo/SP e Adrianópolis/PR, no âmbito da<br />

Cooperafloresta<br />

Espécies Equações 1 Parâmetros<br />

A B R2aj Sxy%<br />

Bananeira ln P = a + b.ln dap -3,98414 2,20132 0,91719 16,174<br />

Pupunha ln P = a + b.ln h -1,24082 2,30497 0,92322 39,900<br />

Juçara ln P = a + b.ln (dap².h) -2,34626 0,79482 0,91574 30,145<br />

Demais<br />

espécies<br />

P = a + b.dap² + c.h² +<br />

d.(dap².h)<br />

4,35195 -0,01487 0,77393 34,748<br />

1<br />

P = fitomassa da parte aérea seca em kg; dap = diâmetro a altura do peito (1,3m de altura);<br />

h = altura<br />

Conforme apresentado no capítulo anterior, há, nas AFs, uma grande<br />

densidade de indivíduos com DAP < 5cm. Visando incluir a fitomassa desses<br />

indivíduos na estimativa de estoques de carbono, foram delimitadas 10<br />

parcelas de 10m 2 cada uma, em diferentes AFs. Nessas parcelas, foi realizado<br />

corte raso de todas as plantas com DAP < 5cm. Esse material foi secado em<br />

estufa, a 75ºC, até peso constante, que foi mensurado. O valor médio da<br />

fitomassa seca obtido nesta amostragem foi utilizado para estimar a fitomassa<br />

aérea dos indivíduos com DAP < 5cm, nas AFs.<br />

Para a estimativa da fitomassa das raízes, tanto dos indivíduos com<br />

DAP > e < 5cm, foi considerada fitomassa equivalente a 20% da biomassa<br />

da parte aérea, conforme proposto por Brown (1997). A fitomassa viva total<br />

foi obtida, então, para cada AF amostrada, somando a fitomassa viva aérea<br />

(indivíduos com DAP > 5cm) estimada pelos cálculos alométricos, a<br />

fitomassa viva aérea determinada dos indivíduos com DAP < 5cm e a<br />

fitomassa estimada das raízes. Para estimar o estoque de carbono nessa<br />

fitomassa, foi utilizada a proporção de 0,5, ou 50% da biomassa seca,<br />

conforme Brown (1997).<br />

Uma vez que a idade de cada AF amostrada é conhecida, foi possível<br />

estimar o incremento anual médio de carbono (IAC) na fitomassa de cada AF,<br />

dividindo-se o estoque de carbono na fitomassa total pela idade da agrofloresta,<br />

em anos.<br />

– 352 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Conforme descrito no capítulo anterior, a poda e a deposição do<br />

material podado no solo, nas AFs, é prática constante, envolvendo uma<br />

grande quantidade de fitomassa. Procurou-se, então, estimar a fitomassa<br />

deste material, que foi chamada de fitomassa depositada sobre o solo, bem<br />

como o seu potencial de incremento de carbono ao solo. Para tanto,<br />

inicialmente coletou-se a fitomassa depositada sobre o solo em três parcelas<br />

de 1m 2 cada uma, localizadas no interior das parcelas utilizadas para a<br />

caracterização da diversidade e densidade vegetal das AFs (Capítulo 12).<br />

Para estimar o incremento anual de carbono que esse material promove<br />

ao solo, considerou-se a premissa de que a fitomassa coletada corresponde à<br />

quantidade de material podado em um ano. Essa consideração está<br />

fundamentada na informação dada pelos agricultores de que, ao longo de um<br />

ano, pelo menos uma poda drástica é realizada nas agroflorestas. Existem<br />

situações, entretanto, que esta poda é feita mais de uma vez ao ano. Além<br />

das podas drásticas, podas menos intensas são realizadas frequentemente,<br />

sempre depositando-se o material podado no solo.<br />

Assim, considerando a intensidade de poda nas agroflorestas, estimar<br />

o valor da biomassa do material podado como a quantidade de biomassa<br />

depositada sobre o solo em um ano tende a ser uma subestimativa, visto que<br />

as podas podem ocorrer mais de uma vez ao ano, mas o material coletado<br />

pode ser proveniente apenas, ou em sua maior parte, de uma única poda.<br />

Por outro lado, é importante considerar o tempo de decomposição<br />

desse material. Trabalhos que avaliaram a fitomassa e o tempo de<br />

decomposição da serapilheira (folhas e galhos finos que caem das plantas),<br />

em florestas nativas localizadas no domínio da Floresta Ombrófila Densa<br />

(FOD) do Bioma Mata Atlântica, identificaram que a metade da mesma é<br />

decomposta, em geral, em menos de um ano. Varjabedian e Pagano (1999)<br />

identificaram, em FOD submontana na região de Guarujá (SP) que metade<br />

da serapilheira se decompunha em 305 dias. Oliveira e Lacerda (1993),<br />

avaliando a decomposição da serapilheira na Floresta da Tijuca (RJ),<br />

identificaram que metade do material foi decomposto em 158 dias. Rebelo<br />

(1994), trabalhando em FOD submontana no município de Cananéia (SP),<br />

estimou em 285 dias o tempo de decomposição de metade da serapilheira.<br />

Portes (2001) identificou em 307 dias esse tempo, em FOD Montana, no<br />

– 353 –


Avaliação da dinâmica do carbono em agroflorestas<br />

desenvolvidas por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

Morro do Anhangava, município de Quatro Barras (PR). Sheer (2007), em<br />

restinga do município de Guaraqueçaba (PR), avaliou em 365 dias o tempo<br />

de decomposição de metade da serapilhera. Esse mesmo autor, realizando<br />

revisão de trabalhos na área, propôs que este tempo varia de 255 a 365 dias.<br />

Considerando essas referências, é provável que parte do material coletado,<br />

nas amostras do presente estudo, tenha sido podada no ano anterior à coleta.<br />

Há que se considerar ainda que grande parte do material podado, nas<br />

AFs, é constituído de galhos grossos e troncos que, juntamente com os galhos<br />

finos e as folhas, são picados e dispostos sobre o solo. Nos trabalhos em<br />

que o tempo de decomposição da serapilheira é estimado, consideram-se<br />

como serapilheira somente folhas e galhos finos, materiais que apresentam<br />

pouca ou nenhuma lignina e que, portanto, tendem a ser mais rapidamente<br />

decompostos. Como galhos grossos e troncos tendem a levar, em princípio,<br />

mais tempo para serem decompostos, a inclusão desse tipo de material na<br />

coleta corrobora a hipótese de que parte do material coletado seja proveniente<br />

de podas de anos anteriores.<br />

Contudo, em florestas onde não há manejo agroflorestal – nas quais<br />

foram desenvolvidos os trabalhos de estimativa do tempo de decomposição<br />

da serapilheira acima referenciados – a serapilheira não é picada e disposta<br />

cuidadosamente em contato com o solo, assim como se procede com o<br />

material podado, nas AFs. Em princípio, essa prática tende a acelerar o<br />

processo de decomposição desse material.<br />

O incremento anual de carbono no solo (IAC solo, Tabela 2) foi estimado<br />

a partir do coeficiente de conversão (k 1<br />

= 0,146) proposto por Bayer et al.<br />

(2006). O incremento anual total (IAC total, Tabela 2) de carbono nas AFs foi<br />

estimado somando-se o incremento anual de carbono na fitomassa e o<br />

incremento anual de carbono no solo.<br />

Os resultados foram analisados por estatísticas descritivas e estatísticas<br />

não paramétricas, descritas anteriormente. A análise dos dados foi realizada<br />

aplicando-se os testes de Kruskal-Wallis e de Mann-Whitney, devido à<br />

distribuição dos dados obtidos não se adequar à curva de normalidade.<br />

O teste de Kruskal-Wallis foi utilizado para avaliar se havia diferenças de<br />

valores no conjunto total de classes de idades (1-3, 4-9 e 10-15 anos das<br />

agroflorestas) e, quando significativo, o teste de Mann-Whitney foi utilizado<br />

para refinar a análise.<br />

– 354 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Resultados e discussão<br />

É possível inferir que a variação dos estoques de carbono nas AFs de<br />

diferentes idades indica que as diferenças de manejo, de sítio, de espécies e<br />

de densidades, provavelmente, sejam mais fortemente determinantes nos<br />

estoques de carbono do que a idade das mesmas (Tabela 2; Figura 1).<br />

Além disso, chama atenção a grande variação da fitomassa depositada<br />

ao solo. Enquanto em algumas AFs chega-se a podar quase 50 ton de<br />

fitomassa ano por hectare (agroflorestas G e H), em outras esta poda gera<br />

quantidades na ordem de algumas unidades de toneladas de fitomassa por<br />

ano por hectare (agroflorestas F e M).<br />

Figura 1: Estoque de carbono na fitomassa viva [fitomassa aérea com Diâmetro Altura<br />

do Peito (DAP) > e < 5cm e raízes], quantidade de carbono na fitomassa depositada<br />

sobre o solo em um ano e Incremento Anual de Carbono (IAC) da fitomassa viva nas<br />

agroflorestas e suas respectivas idades.<br />

– 355 –


Avaliação da dinâmica do carbono em agroflorestas<br />

desenvolvidas por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

TABELA 2 – Estoque de carbono na fitomassa viva [fitomassa aérea com Diâmetro Altura do Peito (DAP) > e <<br />

5cm e raízes] e fitomassa depositada sobre o solo e Incremento Anual de Carbono da fitomassa viva e ao solo.<br />

AFs Idade<br />

Carbono na fitomassa viva<br />

Uso<br />

IAC<br />

anterior DAP<br />

DAP 5 cm<br />

fitomassa Raízes Total<br />

aérea<br />

anos Mg C ha -1<br />

IAC<br />

fitomassa<br />

total<br />

Mg C ha -1<br />

Mg C ha<br />

-1<br />

ano -1 -1<br />

Mg C ha -1<br />

Fitomassa<br />

depositada<br />

sobre o solo<br />

IAC solo 3 IAC total 4<br />

ano -1 Mg C ha -1 ano -1<br />

A 3 0 3,3 4,5 2,6 1,5 9,3 3,1 10,8 1,6 4,7<br />

B 3 1 2,4 4,5 2,3 1,4 8,3 2,8 10,9 1,6 4,3<br />

média 2,8 2,4 1,5 8,8 2,9 10,8 1,6 4,5<br />

C 4 1 5,4 4,5 2,5 2,0 11,9 3,0 13,3 1,9 4,9<br />

D 5 1 13,5 4,5 3,6 3,6 21,6 4,3 N.D.2 N.D. N.D.<br />

E 6 1 11,7 4,5 2,7 3,2 19,5 3,2 21,2 3,1 6,3<br />

F 6 1 18,2 4,5 3,8 4,5 27,2 4,5 7,6 1,1 5,6<br />

G 6 0 9,3 4,5 2,3 2,7 16,5 2,7 43,1 6,3 9,0<br />

H 6 1 11,6 4,5 2,7 3,2 19,3 3,2 48,0 7,0 10,2<br />

I 8 0 11,3 4,5 2 2,0 3,2 19,0 2,4 11,2 1,6 4,0<br />

J 8 1 12,0 4,5 2,1 3,3 19,8 2,5 N.D. N.D. N.D.<br />

média 11,6 2,7 3,2 19,4 3,2 24,1 3,5 6,7<br />

K 10 0 20,5 4,5 2,5 5,0 30,0 3,0 N.D. N.D. N.D.<br />

L 10 0 19,9 4,5 2,4 4,9 29,3 2,9 35,7 5,2 8,1<br />

M 11 1 59,5 4,5 5,8 12,8 76,8 7,0 6,2 0,9 7,9<br />

N 11 0 8,3 4,5 1,2 2,6 15,4 1,4 17,0 2,5 3,9<br />

O 12 0 38,2 4,5 3,6 8,5 51,2 4,3 17,4 2,5 6,8<br />

P 15 0 41,7 4,5 3,1 9,2 55,4 3,7 14,3 2,1 5,8<br />

média 31,4 3,1 7,2 43,0 3,7 18,1 2,6 6,5<br />

Onde: 1 uso anterior (0 = pastagem ou lavoura anual; 1 = floresta secundaria ou agrofloresta); 2 N.D. (não determinado); 3 Valores estimados, segundo<br />

as taxas definidas por Bayer et al. (2006); 4 IAC fitomassa viva + IAC ao solo.<br />

– 356 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Apesar dessa grande variação, é possível identificar algumas tendências<br />

em relação aos estoques e incrementos anuais de carbono nas AFs. Os<br />

estoques de carbono na fitomassa viva, quando avaliados por classe de idade<br />

das AFs, tendem a ser crescentes (Figura 2). Esse aumento gradativo dos<br />

estoques de carbono é consequência do maior crescimento das árvores em<br />

AFs mais velhas, tanto em diâmetro quanto em altura, bem como da<br />

manutenção de elevadas densidades de indivíduos, mesmo em áreas mais<br />

antigas, em função, principalmente, do manejo da poda (ver capítulo anterior).<br />

Entretanto, quando os estoques de carbono da fitomassa viva são<br />

considerados a partir de seus incrementos anuais, é possível perceber que há<br />

uma tendência de relativa homogeneidade (Figura 3).<br />

A média do incremento anual de carbono (IAC), na fitomassa viva das<br />

AFs, é de 3,3 Mg C ha -1 ano -1 , porém não foi observada diferença significativa<br />

entre elas (p


Avaliação da dinâmica do carbono em agroflorestas<br />

desenvolvidas por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

partir de rebrotas de indivíduos que ocorriam na capoeira e de indivíduos<br />

implantados, provavelmente, em condição superior de fertilidade do solo.<br />

Em relação à fitomassa depositada sobre o solo, há uma grande<br />

diferença entre as médias das três classes de idade avaliadas (Figura 4),<br />

segundo teste de Kruskal-Wallis, p< 0,05, e diferença também significativa<br />

de fitomassa depositada entre AFs de idade intermediária e antigas (teste de<br />

Mann-Whitney, p < 0,05). Existe, portanto, um maior manejo de poda em<br />

AFs de idade intermediária.<br />

Figura 2: Estoque médio de carbono na fitomassa viva (aérea e raízes)<br />

por classe de idade das agroflorestas (AFs).<br />

– 358 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Figura 3: Incremento Anual de Carbono (IAC) na fitomassa viva<br />

(aérea e raízes) por classe de idade das agroflorestas (AFs).<br />

Figura 4: Estoque médio de carbono na fitomassa depositada sobre o solo<br />

por classe de idade das agroflorestas (AFs).<br />

– 359 –


Avaliação da dinâmica do carbono em agroflorestas<br />

desenvolvidas por agricultores associados à Cooperafloresta<br />

O maior manejo de poda, em AFs de idade intermediária, ao incrementar<br />

a fertilidade do solo e a entrada de luz nos estratos mais baixos, pode estar<br />

favorecendo os maiores estoques de carbono na fitomassa viva identificados<br />

nas AFs mais velhas (Figura 2). Isto porque, em princípio, o material podado,<br />

ao ser degradado, tende a incrementar a fertilidade biológica, física e química<br />

no solo, favorecendo a produtividade primária ao longo do tempo.<br />

Apesar das variações de manejo, AFs de 1 a 3 anos de idade apresentam<br />

IAC total médio de 4,5 Mg C ha -1 ano -1 ; AFs de 4 a 9 anos de idade apresentam<br />

IAC total médio de 6,7 Mg C ha -1 ano -1 , e AFs de 10 a 15 anos apresentam IAC<br />

total médio de 6,5 Mg C ha -1 ano -1 (Tabela 2). Há diferença significativa entre<br />

estas três médias, de acordo com o teste de Kruskal-Wallis (p


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

do solo e de biodiversidade e sobre o qual, como sistema produtivo, há<br />

crescente autonomia e segurança alimentar dos agricultores que os praticam.<br />

É importante considerar ainda que, conforme discutido no Capítulo 3,<br />

para cada hectare de agrofloresta, há quatro hectares de florestas em<br />

regeneração, conduzidos como parte do sistema agroflorestal. Muito embora<br />

não tenham sido realizados ainda estudos de incremento anual de carbono<br />

nestas florestas, de forma associada às agroflorestas, estas se constituem,<br />

potencialmente, em estoques complementares de carbono, na paisagem das<br />

unidades familiares, se comparado ao uso anterior desses espaços, em geral<br />

representado por lavouras ou pastagens desenvolvidos de forma convencional.<br />

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– 361 –


Avaliação da dinâmica do carbono em agroflorestas<br />

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– 362 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 14<br />

Por quE as agroflorestas da Cooperafloresta<br />

são como são e para onde evoluirão?<br />

Felipe Almeida Biguzzi,<br />

Carlos Armênio Khatounian,<br />

Elisabete A. de Nadai Fernandes e<br />

Guilherme Henrique Machado Faganello<br />

Introdução<br />

As agroflorestas sucessionais multiestratificadas e biodiversas foram<br />

pioneiramente desenvolvidas na região cacaueira da Bahia por Ernst Götsch,<br />

engenheiro florestal suíço radicado no Brasil (Götsch, 1995). Götsch tem<br />

sido muito ativo na divulgação desse padrão agrícola, e suas concepções<br />

constituíram os fundamentos de uma das iniciativas mais exitosas nessa área<br />

no Brasil, batizada Cooperafloresta.<br />

Localizada no Vale do Ribeira, região predominantemente montanhosa,<br />

que abriga a maior reserva da Mata Atlântica na costa Sul do Brasil (SOS<br />

Mata Atlântica/IMPE, 2010). O clima é chuvoso, sem deficit hídrico em<br />

qualquer mês do ano, mesotérmico até a altitude de 500m sobre o nível do<br />

mar, e com possibilidade de geadas no inverno acima dos 700m.<br />

Devido ao relevo e à pluviosidade, a região permaneceu economicamente<br />

deprimida, com agricultura itinerante baseada em derruba-e-queima, e<br />

pastos extensivos após o rápido esgotamento dos terrenos. É a região mais<br />

pobre do Estado de São Paulo e uma das mais pobres do Paraná (PNUD,<br />

2012). A agricultura nas áreas de montanha tem forte presença de antigos<br />

quilombos, aos quais o isolamento geográfico forneceu proteção no passado.<br />

Inserida nesse contexto, a Cooperafloresta se destaca hoje como<br />

uma das iniciativas mais bem-sucedidas na promoção do desenvolvimento<br />

– 363 –


Por quê as agroflorestas da Cooperafloresta são como são e para onde evoluirão?<br />

sustentável, fazendo convergir avanços na produção agrícola e na condição<br />

socioeconômica com melhorias na proteção ambiental.<br />

Os associados acumulam atualmente densa experiência, frutos dos<br />

erros e acertos no manejo agroflorestal. Contudo, tanto para os agricultores<br />

como na opinião dos técnicos da própria Cooperafloresta, as agroflorestas<br />

presentemente conduzidas comportam muitos aperfeiçoamentos, o que não<br />

impede que sejam hoje referência para técnicos e agricultores que as visitam.<br />

Um exame cuidadoso das agroflorestas conduzidas pelos agricultores<br />

associados revela antes uma nebulosa do que um quadro nítido. As<br />

agroflorestas assumiram fisionomia, composição botânica, manejo e<br />

rendimento agrícola muito diversos entre si, algumas vezes se aproximando<br />

do ideal preconizado por Ernest Götsch e, outras vezes, permanecendo<br />

consideravelmente mais simples. Com relativa frequência, um mesmo<br />

agricultor conduz agroflorestas muito diversas entre si.<br />

Na perspectiva de aprimorar as agroflorestas da Cooperafloresta e de<br />

prover subsídios para outras iniciativas agroflorestais no Brasil, é necessário<br />

entender por que razões os agricultores, educados num mesmo ideário, tendo<br />

como referência um único modelo, o traduziram de diferentes maneiras nas<br />

suas áreas de produção. No conjunto dessas razões, podem estar fatores<br />

culturais, econômicos, laborais, idiossincráticos e outros, cujo entendimento<br />

é chave para ampliação do cultivo de agroflorestas.<br />

Dessa forma, o presente trabalho visou identificar os fatores que<br />

influenciaram a conformação estrutural e o padrão de manejo das agroflorestas,<br />

gerando indicadores que permitam agrupar e (ou) distinguir as agroflorestas<br />

que os agricultores construíram ao longo do tempo, em face de suas motivações<br />

e de suas limitações diante das características das suas áreas de cultivo.<br />

Como corolário, objetiva-se prospectar soluções potenciais para facilitar<br />

a evolução agronômica e ecológica das agroflorestas na região.<br />

Em termos de extensão da proposta para outros grupos de agricultores<br />

e em outras regiões, visa-se com esse conhecimento contribuir para a<br />

elaboração de propostas com elevado potencial de adoção e de acerto<br />

agronômico, cultural e econômico.<br />

– 364 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Metodologia<br />

No sentido de compreender quanto à riqueza das agroflorestas na<br />

perspectiva dos agricultores, duas preocupações nortearam nossas definições:<br />

a confiabilidade das informações e o desafio de tratar essas informações de<br />

modo que nexos causais claros pudessem ser evidenciados. Como a estrutura<br />

e o manejo das agroflorestas resultam das percepções e decisões dos<br />

agricultores, era preciso entender a lógica que orienta suas ações.<br />

A Cooperafloresta tem incorporado novos associados continuamente,<br />

de modo que há considerável heterogeneidade em termos da compreensão e<br />

do domínio das práticas agroflorestais entre os agricultores. Trabalhamos<br />

com a hipótese de que os mais antigos devem ter assimilado melhor os<br />

conceitos agroflorestais e devem ter aperfeiçoado mais as práticas de manejo,<br />

de modo que suas agroflorestas devem refletir o futuro das agroflorestas dos<br />

mais recentes. Assim, de acordo com a metodologia exposta no capítulo 11,<br />

definiu-se um grupo de partida de 14 famílias, que juntas somaram 82 áreas<br />

de agroflorestas, nas quais se concentraram nossos estudos.<br />

Para garantir a confiabilidade das informações prestadas pelos<br />

agricultores, optou-se por um método de investigação participativa. De<br />

dezembro de 2011 a maio de 2012, dois pesquisadores passaram três<br />

períodos de imersão junto aos agricultores, 20 dias em média por período.<br />

Durante esses períodos, os pesquisadores trabalharam com os agricultores<br />

nas atividades práticas do dia a dia, dedicando as tardes para entrevistas<br />

semiestruturadas, em ambiente informal e amistoso.<br />

Para orientar as entrevistas, foram elaborados roteiros que continham<br />

pontos-chave a serem explorados. No entanto, não havia nenhum delineamento<br />

fixo para obtenção dessas informações. Conforme o andar da conversa os<br />

pontos de interesse iam emergindo naturalmente em meio a outros assuntos.<br />

Nesse contexto, a nossa função principal era de conduzir o rumo da conversa<br />

conforme os temas do roteiro. Como resultado dessa metodologia, apesar de<br />

envolver os mesmos aspectos, cada entrevista tinha sua própria dinâmica e o<br />

seu ritmo de acontecer.<br />

Entre as principais atividades desenvolvidas junto aos agricultores,<br />

incluíram-se capinas seletivas, colheita de bananas e de outros produtos,<br />

podas e mutirões de serviço. Os períodos de refeições e de descanso no final<br />

– 365 –


Por quê as agroflorestas da Cooperafloresta são como são e para onde evoluirão?<br />

do dia foram sempre muito ricos em termos do aprendizado sobre a perspectiva<br />

dos agricultores em relação a diversos aspectos do seu cotidiano e de sua<br />

cosmovisão coletiva.<br />

Durante esses períodos, houve também intenso envolvimento em<br />

atividades da associação, incluindo-se, ainda, reuniões com a equipe técnica<br />

da Cooperafloresta e com pesquisadores envolvidos em outros estudos em<br />

curso. Participamos também de eventos comemorativos e confraternizações<br />

informais como uma festa de aniversário, várias conversas de bar e o velório<br />

de um amigo de uma das agricultoras que nos recebeu.<br />

Após cada período de imersão, os dados e as informações coletados<br />

eram discutidos pelo conjunto dos autores, na tentativa de dar-lhes um<br />

sentido lógico, tendo como referência, por um lado, a situação observada<br />

junto aos agricultores e, por outro lado, a experiência pessoal e profissional<br />

dos autores.<br />

O foco do primeiro período de imersão foi conhecer todos os agricultores,<br />

apresentar a proposta de trabalho e iniciar a aproximação com as famílias<br />

agricultoras sem, nesse primeiro momento, iniciar a coleta de dados específicos.<br />

Esse trabalho aconteceu objetivamente durante o segundo e o terceiro período<br />

de imersão mediante entrevistas semiestruturadas e observações de campo.<br />

Durante o segundo período de imersão, visou-se, sobretudo, estabelecer<br />

laços de confiança, sendo a entrevista bastante aberta, de modo que o<br />

agricultor pudesse em larga medida orientar o rumo da conversa. Por essa<br />

razão, certas questões das famílias e aspectos do trabalho agroflorestal não<br />

foram tratados homogeneamente em todas as entrevistas. Em certa medida,<br />

o fato de uma família não mencionar determinado tema revela a pouca<br />

importância do assunto para aquela família.<br />

O foco da entrevista foi apreender a perspectiva geral do agricultor em<br />

relação às suas agroflorestas, tanto aquelas consideradas boas quanto as<br />

tidas como ruins. O eixo principal da entrevista eram as diferenças entre<br />

áreas. Pedia-se ao agricultor para segmentar a propriedade em agroflorestas<br />

individualizadas e indicar pontos positivos e negativos de cada área.<br />

Aprofundamos o estudo das agroflorestas em si, incluindo o histórico<br />

da área, a qualidade da terra, a distância da área em relação à casa, a<br />

qualidade do manejo, a produção agrícola e a diversidade vegetal. Os<br />

resultados dessa entrevista permitiram identificar três grupos de sistemas de<br />

– 366 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

produção, em função das características do agricultor, das suas áreas e da<br />

propriedade como um todo. Assim, no terceiro período de imersão, foram<br />

focalizadas duas propriedades representativas de cada um dos três grupos de<br />

sistemas de produção, totalizando agora seis famílias.<br />

No terceiro período de imersão, a entrevista concentrou-se na exploração<br />

das áreas de maior diversidade vegetal e das áreas de maior geração de renda<br />

naquele momento. A atenção para essas duas situações surgiu da suspeita de<br />

que áreas com maior diversidade vegetal estavam sendo abandonadas, e o<br />

trabalho do agricultor deslocado para áreas mais simplificadas e com maior<br />

capacidade de geração de renda.<br />

Nesse período, também foram abordados outros pontos críticos<br />

identificados na imersão anterior, referentes às fontes de renda familiar, meios<br />

de transporte de produtos internos na propriedade, perdas de produtos<br />

agrícolas por problemas fitossanitários ou por não terem sido colhidos e<br />

culturas agrícolas predominantes nas agroflorestas. Questionou-se sobre a<br />

razão das áreas abandonadas, atentando-se às questões relativas ao<br />

conhecimento técnico e à capacidade do agricultor em realizar o serviço,<br />

como, por exemplo, subir em árvores.<br />

A redução do número de famílias entrevistadas e a focalização dos<br />

olhares sobre situações agroflorestais específicas melhoraram a compreensão<br />

das razões e dos pontos de vista do agricultor.<br />

Os resultados dos três períodos de imersão foram objeto de discussão<br />

do conjunto de autores, na expectativa de identificar padrões de comportamento<br />

e de organização da vida e do trabalho das famílias, padrões esses que<br />

fossem capazes de tornar lógicos e esperáveis os sistemas efetivamente<br />

constatados sobre o terreno.<br />

Os resultados apresentados a seguir descrevem nosso melhor entendimento,<br />

no momento atual, e levantam questões sobre o futuro das agroflorestas da<br />

Cooperafloresta e indicações de estratégias para iniciativas futuras.<br />

Resultados e discussão<br />

Os dados e informações coletados e a reflexão crítica sobre esse<br />

universo factual revelaram algumas características que eram esperadas,<br />

mas também outras surpreendentes. Inicialmente, apresentamos as<br />

– 367 –


Por quê as agroflorestas da Cooperafloresta são como são e para onde evoluirão?<br />

características do sistema em sua totalidade, a saber: a renda familiar, os<br />

transportes internos, o perfil das culturas agrícolas predominantes e as<br />

percepções sobre perdas de produtos. Em sequência, focalizaremos as<br />

características distintivas de cada agrofloresta: o histórico da área, a<br />

qualidade da terra, a distância em relação à casa, a qualidade do manejo<br />

aplicado, a produção agrícola e a diversidade vegetal.<br />

A abordagem conjunta das características do sistema como um todo e<br />

das características das agroflorestas permitiu-nos entender os padrões<br />

fisionômicos das áreas e, a partir desses padrões fisionômicos efetivamente<br />

presentes, entender por que as agroflorestas são como são, para onde tendem<br />

a evoluir e quais implicações daí advêm para a extensão rural.<br />

Características dos sistemas agroflorestais emergidas das entrevistas<br />

Quanto ao agricultor e à sua propriedade<br />

As características ligadas ao agricultor abrangem tanto particularidades<br />

do próprio agricultor e de sua família, como características da propriedade,<br />

como um todo. Tais características irão contextualizar, de forma geral, como<br />

são os agricultores envolvidos neste trabalho.<br />

• Fontes de renda familiar<br />

As fontes de renda das famílias foram classificadas em comercialização<br />

de produtos da agrofloresta, prestação de serviços associados à agrofloresta,<br />

prestação de serviços não associados à agrofloresta e benefícios sociais<br />

governamentais. Ficou evidente a centralidade das agroflorestas na geração<br />

de renda das famílias e a importância dos programas governamentais de<br />

transferência de renda, como aposentadoria e bolsa família (Tabela 1).<br />

TABELA 1 – Fontes de renda FAMILIAR de 14 agricultores de referência da<br />

Cooperafloresta focalizados nesTe estudo.<br />

Tipo de renda<br />

N.° total de ocorrências<br />

Comercialização de produtos da agrofloresta 12<br />

Prestação de serviços associados à agrofloresta 6<br />

Prestação de serviços não associados à agrofloresta 3<br />

Benefícios sociais governamentais 7<br />

– 368 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

É interessante notar que, além da renda advinda diretamente da venda<br />

dos produtos, as agroflorestas criaram novas oportunidades em termos de<br />

serviços. Dentre esses serviços, listam-se a oferta de estadia e refeições<br />

para visitantes, o trabalho remunerado na própria associação e trabalhos<br />

técnicos, como a apresentação de seminários e a instalação de tirolesas 1<br />

para escoamento da produção. Os dois agricultores que não vendem mais<br />

produtos de suas agroflorestas especializaram-se em serviços: um realiza o<br />

processamento de produtos da agrofloresta em geleias e doces, e o outro<br />

oferece alojamento e refeições e atua fortemente na educação em agrofloresta.<br />

Os três agricultores que fazem renda fora do âmbito das agroflorestas<br />

trabalham como diaristas nas propriedades da região. Os benefícios sociais<br />

não foram detalhados, porque são generalizados em toda a população de<br />

menor renda no país, o que não configura uma particularidade dos agricultores<br />

associados à Cooperafloresta.<br />

• Meio de transporte de produtos dentro da propriedade<br />

Devido ao relevo bastante acidentado da região, o transporte interno<br />

nas propriedades é penoso. Por essa razão, de maneira geral, áreas de acesso<br />

mais fácil tendem a ser mais exploradas e seu potencial de produção<br />

diminuído. Com isso, o trabalho em áreas distantes, menos exploradas, pode<br />

gerar maior produção agrícola, mas, nesse caso, o equacionamento do<br />

transporte da colheita assume papel de suma importância. A distância das<br />

áreas em relação à casa será abordada a seguir num item específico.<br />

Os agricultores lançam mão de vários meios de transporte, incluindo<br />

animais, tirolesas, barcos etc. (Tabela 2), dependendo das possibilidades, da<br />

criatividade e das condições específicas da propriedade de cada agricultor.<br />

É frequente a integração de meios para se ajustar às condições locais. No<br />

entanto, duas das 14 famílias ainda utilizam apenas o transporte manual.<br />

1<br />

Sistema de transporte ou de entretenimento montado numa zona em declive, que consiste num<br />

cabo tenso a que se acopla uma roldana que desliza pelo cabo sob ação da gravidade.<br />

– 369 –


Por quê as agroflorestas da Cooperafloresta são como são e para onde evoluirão?<br />

TABELA 2 – Meios de transporte de produtos dentro das propriedades<br />

de 14 AGRICULTORES de referência da Cooperafloresta focalizados<br />

nesTe estudo<br />

Tipo de transporte<br />

N.° total de ocorrências<br />

Tirolesa 5<br />

Manual 7<br />

Animal 4<br />

Microtrator 2<br />

Barco 2<br />

Não informado 1<br />

Devido à dificuldade do transporte imposta pelo relevo, os agricultores<br />

tendem a privilegiar o cultivo de espécies cujos produtos têm alto valor por<br />

unidade de massa ou volume, no entanto, outros fatores também são incluídos<br />

no equacionamento da escolha das espécies-chave para cada agrofloresta.<br />

Essa questão será explorada no item a seguir.<br />

• Culturas agrícolas predominantes nas agroflorestas<br />

O cultivo mais frequente nas agroflorestas foi a bananeira, seguida<br />

de frutas diversas, pupunha e culturas anuais (Tabela 3). Quanto à<br />

comercialização, a banana também é o produto mais importante,<br />

correspondendo, segundo os dados da associação dos últimos três anos, a<br />

63% do volume total anual comercializado.<br />

TABELA 3 – Espécies vegetais predominantes em cada área de agrofloresta<br />

dos 14 agricultores de referência da Cooperafloresta focalizados<br />

nesTe estudo<br />

Espécie vegetal predominante nas agroflorestas N.° de agroflorestas<br />

Bananeira 19<br />

Bananeira e hortaliças 2<br />

Frutas diversas 13<br />

Frutas diversas e pasto 1<br />

Palmito Pupunha 9<br />

Vegetação espontânea (capoeira) 9<br />

Culturas anuais e hortaliças 8<br />

Mandioca 2<br />

Citros 1<br />

Cana-de-açúcar 1<br />

Não informaram 17<br />

Total 82<br />

– 370 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Visto que a Cooperafloresta tem a possibilidade de comercializar uma<br />

grande variedade de produtos das agroflorestas, é interessante perguntar-se<br />

por que a banana assumiu sua importância atual.<br />

A melhor resposta que pudemos elaborar é que a bananeira reúne um<br />

conjunto de características desejáveis, na perspectiva dos agricultores. Em<br />

primeiro lugar, encontra clima e solo favoráveis. Segundo, ela entra em<br />

produção em apenas um ano após o plantio e produz renda durante todo o<br />

ano. Terceiro, é planta perene e alta, de modo que exige relativamente pouco<br />

trabalho por unidade de produto colhido. Comparativamente a outras<br />

frutíferas, o manejo cultural e fitossanitário é relativamente simples e a<br />

colheita é rápida: com um golpe de facão colhe-se um cacho inteiro, enquanto<br />

a colheita de limão, por exemplo, exige muito mais tempo para se encher<br />

uma caixa. Por fim, a banana é produto de consumo corrente e<br />

quantitativamente importante pela população brasileira. Esse conjunto de<br />

características desejáveis num cultivo agrícola não é encontrado em nenhuma<br />

outra espécie cultivada.<br />

Como única característica desfavorável, verbalizada por vários<br />

agricultores, a banana é um produto relativamente pesado e de baixo preço<br />

unitário, fato particularmente importante considerando a dificuldade de<br />

transporte interno nas propriedades.<br />

A maioria das outras frutíferas cultivadas pelos agricultores, como o<br />

abacate, os citros, as anonáceas etc., leva muito mais tempo para entrar<br />

em produção, tem a produção muito concentrada num período curto de<br />

tempo, exige mais tempo na colheita e é demandada em menor quantidade.<br />

Esse contraste explica a supremacia da banana como principal produto da<br />

Cooperafloresta. Além disso, as frutíferas tendem a se desenvolver mais em<br />

altura quando cultivadas nas agroflorestas; altura essa que, por ocasião da<br />

colheita, resulta em menor rendimento do trabalho e mais injúrias nas<br />

frutas colhidas.<br />

Dentre as plantas frequentes nas agroflorestas, a pupunha para palmito<br />

é a que mais se aproxima da bananeira em suas características como<br />

cultura, como fonte de renda e no uso da força de trabalho. É perene, pode<br />

ser colhida por um longo período no decorrer do ano e a colheita é rápida.<br />

Comparativamente à banana, o palmito é mais valorizado no mercado e<br />

menos suscetível a injúrias após a colheita. A pupunha perfilha, de modo que<br />

– 371 –


Por quê as agroflorestas da Cooperafloresta são como são e para onde evoluirão?<br />

um plantio permite a colheita por vários anos. Por unidade de peso a<br />

transportar, vale mais do que a banana. Esse conjunto de atributos explica a<br />

razão de ser ela a segunda espécie de maior frequência nas agroflorestas.<br />

As culturas anuais são representadas, sobretudo, por hortaliças<br />

rústicas, como o milho verde, o feijão vagem, abóbora, quiabo, inhame, cará<br />

etc. No processo da sucessão ecológica, elas substituem as plantas herbáceas<br />

que dominam os estágios iniciais. Por isso, elas são muito importantes como<br />

espécies de renda nos primeiros anos da sucessão, e vão desaparecendo nas<br />

etapas seguintes.<br />

Esperávamos encontrar espécies madeireiras como dominantes nas<br />

agroflorestas mais antigas, mas de fato elas são hoje muito pouco frequentes.<br />

Apenas dois dentre os 14 agricultores declararam interesse nesse grupo de<br />

plantas, mas mesmo esses dois não mencionam as espécies madeireiras<br />

como as mais importantes em suas agroflorestas.<br />

Em seu conjunto, as espécies dominantes nas agroflorestas evidenciam<br />

que o rendimento econômico das áreas está concentrado nos cinco ou seis<br />

primeiros anos após a instalação. Após esse período, tem entrado numa fase<br />

de densidade econômica decrescente.<br />

• Perda de produtos agrícolas<br />

As perdas de produtos agrícolas podem acontecer principalmente<br />

de duas maneiras: por problemas fitossanitários e quando não se realiza a<br />

colheita dos frutos (Tabela 4). Os agricultores da Cooperafloresta não<br />

mencionaram problemas fitossanitários associados a micro-organismos,<br />

mas destacaram problemas associados à macrofauna, como pássaros e<br />

preá, e às formigas.<br />

TABELA 4 – Causas de perdas de produtos agrícolas sob a percepção<br />

de 14 AGRICULTORES de referência da Cooperafloresta focalizados<br />

nesTe estudo<br />

Causas de perdas de produtos agrícolas<br />

Problemas fitossanitários<br />

Falta de colheita<br />

Não informaram<br />

N.º de agricultores<br />

6<br />

6<br />

2<br />

– 372 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Em nossas visitas às agroflorestas, contudo, constatamos a presença<br />

das principais doenças associadas à bananeira, particularmente a Sigatoka<br />

amarela, causada pelo fungo Mycosphaerella musicola. Acreditamos que a<br />

diversidade vegetal dessas agroflorestas contribua para reduzir os efeitos de<br />

micro-organismos, seja pela manutenção de inimigos naturais, seja pela<br />

dificuldade de disseminação. No caso da Sigatoka amarela, seu efeito<br />

principal é reduzir a área foliar da bananeira e, por consequência, afetar o<br />

tamanho dos cachos e das bananas (BORGES; SOUZA, 2004), problemas<br />

efetivamente constatados nas agroflorestas. Entretanto, o sombreamento<br />

excessivo e as carências de nutrientes minerais também podem produzir os<br />

mesmos efeitos (BORGES; SOUZA, 2004), de modo que não tivemos como<br />

estabelecer uma relação causal no presente estudo.<br />

Quanto às perdas por não se colher, foi mencionada com a mesma<br />

frequência que isso é devido a problemas fitossanitários, o que por si só<br />

revela sua importância (Tabela 4). Os principais produtos não colhidos são<br />

frutas e, dentre as razões para não se colher, listam-se a dispersão das<br />

plantas, a dificuldade de transporte ditada pelo relevo e a altura das árvores.<br />

Devido à escassez de mão de obra, a reação dos agricultores a esse conjunto<br />

de fatores é orientar seu trabalho para as atividades que comparativamente<br />

remuneram melhor.<br />

Para reduzir as perdas por não se colher, seria necessário um<br />

planejamento espacial da produção, concentrando os produtos que demandam<br />

mais trabalho na colheita nas áreas de melhor acesso, geralmente mais<br />

próximas da habitação. E, por outro lado, reduzir a diversidade e a<br />

complexidade estrutural das agroflorestas mais distantes, concentrando aí a<br />

produção de banana. Ambos os processos podem ser observados entre os<br />

agricultores, embora em níveis diferentes de intensidade.<br />

Quanto às características distintivas das agroflorestas<br />

As 82 agroflorestas cultivadas pelos 14 agricultores envolvidos neste<br />

trabalho apresentaram amplitude de idade de três meses a até 16 anos<br />

(média de 6,7 anos) e tamanho variando de 0,1 a 2,5 hectares (média de<br />

0,8 hectares).<br />

– 373 –


Por quê as agroflorestas da Cooperafloresta são como são e para onde evoluirão?<br />

Os agricultores indicaram pontos positivos e negativos de suas<br />

agroflorestas, cujo estudo contribuiu para melhorar a compreensão dos<br />

fatores mais relevantes segundo a perspectiva deles (Tabela 5). O foco nesse<br />

momento é saber mais sobre as vantagens e desvantagens de cada área. Para<br />

isso, seguimos a metodologia proposta, deixando a conversa fluir e, ao<br />

término da discussão sobre cada uma das áreas, era pedido que fossem<br />

indicados seus pontos positivos e negativos.<br />

TABELA 5 – FATORES de maior relevância das agroflorestas segundo<br />

a percepção de 14 agricultores de referência da Cooperafloresta<br />

focalizados nesTe estudo<br />

Características das agroflorestas<br />

Pontos positivos<br />

(n.º de ocorrências)<br />

Pontos negativos<br />

(n.º de ocorrências)<br />

Qualidade da terra 20 7<br />

Localização 16 15<br />

Produção 9 -<br />

Manejo 3 15<br />

Declividade do solo 3 1<br />

Diversidade vegetal 3 4<br />

Pragas e doenças - 2<br />

Alagamento (várzea) - 1<br />

Gado invade - 2<br />

Não gosta de criação - 1<br />

Planejamento - 1<br />

Área em pousio 1 -<br />

Insolação - 2<br />

Área pequena - 2<br />

Tirolesa 1 -<br />

Não tem 2 3<br />

Não informaram 31 26<br />

Dentre os pontos positivos, a qualidade da terra e a localização foram<br />

os fatores de maior frequência, que em larga medida explicam a produção da<br />

agrofloresta, terceiro ponto positivo mais citado. É interessante notar que a<br />

localização é o ponto negativo mais citado, seguido pela qualidade da terra<br />

(Tabela 5), mas a qualidade da terra, percebida como “fraca”, é muito menos<br />

– 374 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

frequente do que a percebida como “boa”. Em nosso entendimento, o<br />

destaque conferido pelos agricultores à localização e à qualidade da terra se<br />

deve à interferência direta desses fatores no rendimento do trabalho e no tipo<br />

de serviço, refletidos diretamente na renda do agricultor e no esforço físico<br />

demandado no processo de produção. Agroflorestas próximas e em terras<br />

boas permitem uma maior densidade de espécies com aproveitamento<br />

agrícola, o que resulta em menos recursos para o mato. Assim, tais<br />

agroflorestas não apenas demandam menos transporte interno da produção<br />

na propriedade, como também exigem menos esforço na capina.<br />

Um item curioso é o manejo das agroflorestas, entendido como a<br />

operação de definir que plantas devem permanecer ou ser eliminadas, e se<br />

permanecem, de que forma ou em qual tamanho. Normalmente se realiza o<br />

manejo com facão, ou foice, podando-se as galhadas das plantas adubadeiras,<br />

retirando-se folhas ou galhos que estão sombreando em excesso espécies de<br />

interesse econômico. Os agricultores declaram gostar de fazer manejo, mas<br />

apenas em três agroflorestas o manejo é considerado ponto positivo (isto é,<br />

está sendo bem feito), enquanto em 15 agroflorestas o mesmo manejo é<br />

considerado ponto negativo.<br />

Entre os fatores analisados, o manejo é o que mais representa a<br />

possibilidade de ser melhorado, em curto prazo, pelo agricultor. Isso pode<br />

resultar em uma autocrítica maior em relação ao manejo do que em relação<br />

aos demais fatores. O fato de os agricultores gostarem de fazer manejo e o<br />

manejo não estar totalmente bom não significa, necessariamente, uma<br />

contradição, mas pode estar indicando o processo de aprendizagem com os<br />

“erros” de manejo. Essa é uma questão central para o entendimento da<br />

estrutura das agroflorrestas estudadas, e será tratada na discussão sobre a<br />

qualidade do manejo.<br />

Em sequência, discutimos com mais detalhes o histórico da área, a<br />

qualidade da terra, a distância das áreas em relação à casa, a qualidade do<br />

manejo, a produção agrícola e a diversidade vegetal.<br />

• Histórico das áreas ocupadas pelas agroflorestas<br />

As 82 agroflorestas foram implantadas sobre terrenos anteriormente<br />

ocupados, variando desde vegetação indicativa de forte degradação, como<br />

pasto e capinzal, até formações indicativas de recuperação em curso, como<br />

– 375 –


Por quê as agroflorestas da Cooperafloresta são como são e para onde evoluirão?<br />

as capoeiras (Tabela 6). Nenhuma agrofloresta foi implantada sobre área<br />

anteriormente coberta por formação que pudesse ser chamada de floresta<br />

primária, em condição de elevada fertilidade acumulada.<br />

TABELA 6 – Formação vegetal sobre as quais foram implantadas as<br />

<strong>AGROFLORESTA</strong>S de 14 agricultores de referência da Cooperafloresta<br />

focalizados nesTe estudo<br />

Histórico da área<br />

N.° de agroflorestas<br />

Capoeira 21<br />

Roça 13<br />

Capinzal 10<br />

Agrofloresta 7<br />

Pasto 7<br />

Bananal 3<br />

Mangueirão de porco 1<br />

Não informado 20<br />

Total de áreas 82<br />

Por um lado, o fato de não ter derrubado florestas para a instalação das<br />

agroflorestas é positivo, uma vez que a experiência da Cooperafloresta<br />

demonstrou a possibilidade de recuperação ambiental concomitante com<br />

recuperação da produção agrícola. Porém, há uma percepção generalizada<br />

entre os técnicos da Cooperafloresta de que a produtividade biológica e<br />

econômica das agroflorestas seria mais elevada se eles fossem implantados<br />

sobre terrenos com a fertilidade já reposta por formações florestais.<br />

Em nosso estudo, não coletamos dados específicos para responder a<br />

essas questões, mas seria muito interessante focalizar o estado de fertilidade<br />

do ponto de partida, de modo a otimizar o rendimento do trabalho humano.<br />

Como as agroflorestas da Cooperafloresta, e outras no Brasil, são sistemas<br />

agrícolas manejados quase exclusivamente com ferramentas manuais, a<br />

redução do esforço físico humano é um ponto-chave para sua adoção,<br />

particularmente quando se leva em conta que a população rural brasileira se<br />

reduz e envelhece rapidamente (CAMARANO; ABRAMOVAY, 1999).<br />

– 376 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

• Qualidade da terra<br />

Para os agricultores, “qualidade” da terra é sua capacidade de<br />

responder com produção ao esforço de cultivo aplicado, um indicador<br />

bastante objetivo do seu potencial de sucesso. A terra pode ser fraca, média<br />

ou boa. Para os agricultores, não importa se as causas responsáveis pelo<br />

potencial de resposta da terra vêm de suas qualidades pedológicas, se são<br />

relativas ao tipo de exploração e (ou) conservação, ou da maior capacidade<br />

de retenção de água ou reserva de nutrientes minerais. O que importa é se o<br />

terreno responde em produção ao esforço aplicado.<br />

É notório que na região há terras “boas”, “médias” e “fracas” (Tabela<br />

7), e as 82 agroflorestas foram instaladas sobre as três categorias de terreno.<br />

Não temos, no momento, elementos para apontar quais fatores agronômicos<br />

são os responsáveis pela “qualidade” da terra, o que vale um estudo com<br />

vistas a corrigir deficiências onde for possível.<br />

Contudo, em nossas observações na região, pareceu-nos que um fator<br />

crítico é a reserva de biomassa a se decompor durante o ciclo das culturas<br />

econômicas, biomassa essa dividida entre a vegetação em pé, a serapilheira<br />

e a matéria orgânica no solo. Durante a fase de decomposição intensa dessa<br />

biomassa, as condições físicas, biológicas e químicas do terreno se mantêm<br />

favoráveis ao desenvolvimento das culturas, e a terra está boa. Esgotada essa<br />

fase, a terra se torna fraca. Assim, a terra não seria boa, mas estaria boa, e<br />

uma terra hoje fraca pode se tornar boa no futuro.<br />

TABELA 7 – Qualidade da terra das <strong>AGROFLORESTA</strong>S, segundo a percepção<br />

de 14 AGRICULTORES de referência da Cooperafloresta focalizados<br />

nesTe estudo<br />

Tipo de terra<br />

Nº de agroflorestsas<br />

Fraca 23<br />

Média 10<br />

Boa 21<br />

Não informado 28<br />

Total de áreas 82<br />

Para explorar a hipótese de que áreas implantadas sobre vegetação<br />

arbórea são mais férteis, estudamos conjuntamente a classificação da terra e<br />

– 377 –


Por quê as agroflorestas da Cooperafloresta são como são e para onde evoluirão?<br />

seu histórico. É preciso lembrar que a classificação da terra refere-se ao<br />

momento atual da área, de modo que uma terra hoje boa pode dever essa<br />

condição a vários anos de pousio ou de manejo agroflorestal. Numa recente<br />

revisão sobre a fertilidade de solo sob agroflorestas, Pinho et al. (2012)<br />

concluem que esses sistemas podem representar formas alternativas de<br />

aumentar a fertilidade do solo e manter a produção agrícola.<br />

Do total de indicações de agroflorestas em terra “boa”, 48% foram<br />

implantadas sobre capoeira ou agrofloresta, 33% sobre bananal, capinzal<br />

ou roça e 19% não informaram. Das agroflorestas em terras “fracas”, 22%<br />

estavam sobre capoeira ou agrofloresta, 39% estavam sobre bananal,<br />

capinzal, pasto ou roça e 39% não informaram.<br />

Palm et al. (2004), utilizando o carbono total para mensurar a qualidade<br />

do solo na camada de 0 a 20cm, relataram que as agroflorestas apresentaram<br />

80–100% do carbono encontrado na floresta. Comparativamente, os sistemas<br />

de culturas anuais e de pousio curto apresentaram apenas 50% e 65%,<br />

respectivamente, do carbono no solo da floresta. Em outro estudo, Carvalho et<br />

al. (2004) observaram que o solo, após quatro anos sob manejo agroflorestal,<br />

apresentava menor densidade aparente, maior porosidade, menor resistência à<br />

penetração e maior estabilidade de agregados, em comparação com o mesmo<br />

solo sob sistema de plantio convencional. Menezes et al. (2008), analisando<br />

atributos físicos e químicos dos solos com cinco anos e meio de uso agroflorestal<br />

e comparando aos respectivos solos de florestas remanescentes adjacentes no<br />

norte do Estado de Rondônia, observaram que os teores de matéria orgânica,<br />

P e K do solo no perfil de 0 a 20cm sob agrofloresta mantinham valores<br />

semelhantes aos do solo de florestas adjacentes.<br />

Assim, à luz da literatura e de nossa observação, confirma-se a<br />

hipótese de haver correlação entre terras “boas” e agroflorestas implantadas<br />

em locais com vegetação arbórea, enquanto as terras “fracas” estão<br />

predominantemente associadas com agroflorestas implantadas sobre<br />

vegetação herbácea ou rasteira.<br />

• Distância da área em relação à casa<br />

A localização das áreas em relação à casa já foi abordada quando<br />

focalizamos o transporte interno na propriedade. Mas, a distância da área de<br />

cultivo também está diretamente relacionada com a atenção dispensada<br />

– 378 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

pelos agricultores: áreas mais próximas tendem a ser manejadas com maior<br />

frequência e cuidado que as áreas mais distantes (MOLLISON; SLAY, 1998).<br />

Atualmente, existe um número maior de agroflorestas próximas à casa,<br />

mas há também um número significativo de áreas distantes (Tabela 8). Os<br />

agricultores relatam que instalaram as primeiras agroflorestas próximas à<br />

casa, onde o manejo e o aproveitamento são melhores do que nas áreas<br />

distantes. Depois, passaram a priorizar terras descansadas, mais distantes da<br />

habitação (Figura 1). Hoje a tendência é inversa, pois as áreas próximas das<br />

casas ficaram em pousio, recuperando seu potencial de produção.<br />

TABELA 8 – Distância das agroflorestas em relação À casa, segundo<br />

a percepção de 14 agricultores de referência da Cooperafloresta<br />

focalizadas nesTe estudo<br />

Localização da área em relação à casa<br />

Nº de agroflorestas<br />

Próxima 34<br />

Distante 31<br />

Intermediária 10<br />

Não informado 7<br />

Total de áreas 82<br />

Figura 1: Distribuição das agroflorestas de 14 agricultores de referência<br />

da Cooperafloresta em função do tempo de implantação e da distância<br />

das áreas em relação à habitação.<br />

– 379 –


Por quê as agroflorestas da Cooperafloresta são como são e para onde evoluirão?<br />

A tendência atual de instalar as agroflorestas mais próximas das<br />

habitações também permitiria reduzir as perdas por não colher, possibilitando<br />

um aproveitamento mais intensivo em uma área menor. Contudo, para o<br />

êxito dessa nova conformação das agroflorestas, provavelmente será<br />

necessário mudar a concepção das agroflorestas atuais, que tem um caráter<br />

mais extensivo, tendo como diretrizes maximizar o rendimento do trabalho<br />

humano e o aproveitamento da produção, sem, contudo, perder sua dimensão<br />

ambiental e pedagógica.<br />

Essas diretrizes já estão sendo visadas pelos agricultores, embora de<br />

modo apenas parcialmente explicitado. Vários agricultores relatam a intenção<br />

de retornar com as agroflorestas para próximo das residências, e aí explorálas<br />

mais intensivamente.<br />

• Qualidade do manejo<br />

Quanto ao manejo, a entrevista revelou um fato muito interessante: a<br />

maioria das áreas está abandonada ou com pouco manejo (Tabela 9). No<br />

entanto, os agricultores declaram gostar de fazer manejo.<br />

TABELA 9 – Percepção de 14 agricultores de referência da Cooperafloresta<br />

QUANTO à qualidade do manejo realizado nas suas agroflorestas<br />

focalizadas nesTe estudo<br />

Qualidade do manejo<br />

Nº de agroflorestas<br />

Pouco manejada 22<br />

Abandonada 14<br />

Bem manejada 2<br />

Não informado 44<br />

Total de áreas 82<br />

Ora, se os agricultores gostam de fazer manejo, então por que não o<br />

fazem com mais frequência e qualidade? Para responder a essa pergunta,<br />

fizemos uma incursão na história tecnológica da Cooperafloresta,<br />

particularmente em como os agricultores a vivenciaram em seus relatos.<br />

Os estágios iniciais da sucessão nas agroflorestas são bem conhecidos<br />

e dominados pelos agricultores. Nos dois ou, no máximo, três primeiros<br />

anos, há uma importante presença de culturas anuais (hortaliças, cereais,<br />

– 380 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

mandioca e outros amiláceos). No segundo ano, inicia-se a colheita da<br />

banana, que normalmente vai até o sexto ou sétimo ano, mas pode ir até o<br />

oitavo ou décimo. A partir do quinto ou sexto ano, as árvores frutíferas e<br />

outras vão se tornando dominantes. Após a saída da banana, as agroflorestas<br />

perdem densidade econômica, e, por isso, tendem a ser relegadas a segundo<br />

plano, direcionando-se a mão de obra disponível para outras áreas, em fase<br />

de produção mais intensa.<br />

Contudo, há ainda outro fator para o abandono das áreas antigas: por<br />

razões de segurança, os agricultores relutam em subir em árvores, de modo<br />

que as agroflorestas vão se tornando cada vez mais altas. Como a necessidade<br />

de podas acontece ao mesmo tempo em que as bananeiras vão se tornando<br />

menos produtivas, ao risco de acidentes soma-se a perda de interesse<br />

econômico, de modo que as agroflorestas são praticamente abandonadas,<br />

reduzindo drasticamente sua produção econômica. Com isso, desenvolve-se<br />

um cenário contraditório, no qual as agroflorestas com estruturas mais<br />

próximas de florestas são as menos produtivas.<br />

No nosso entendimento, esse cenário contraditório não é inevitável,<br />

mas reflete um problema não antevisto e que o sucesso da Cooperafloresta<br />

revelou: para criar agroflorestas sucessionais biodiversas e multiestratificadas<br />

é necessário prever como se dará a poda das árvores altas. Alguns agricultores<br />

podem desenvolver essa habilidade, como foi o caso de dois associados<br />

dentre os 14 focalizados em nosso estudo. Uma alternativa seria prever e<br />

prover esse serviço para os agricultores mediante a contratação de terceiros,<br />

como também já foi ensaiado em algumas áreas da própria associação. A<br />

segunda alternativa seria trabalhar agroflorestas com dossel superior mais<br />

baixo, de modo que os próprios agricultores, mesmo sem subir em árvores e<br />

já estando em meia-idade, possam conduzir eles mesmos as operações com<br />

o auxílio de ferramentas adequadas.<br />

De qualquer maneira, a relutância em subir em árvores é real e não<br />

pode ser desconsiderada. Contudo, não é necessariamente um fator<br />

inviabilizador de agroflorestas planejadas para muitos anos, desde que<br />

incluída no planejamento de modo a alcançar o melhor balanço possível<br />

entre diversidade vegetal, sucessão vegetal, capacidade de manejo e geração<br />

de renda.<br />

– 381 –


Por quê as agroflorestas da Cooperafloresta são como são e para onde evoluirão?<br />

• Produção agrícola<br />

Neste estudo, a produção agrícola representou indiretamente a geração<br />

de renda, ainda que a relação nem sempre seja linear. Perguntar sobre a<br />

produção é menos invasivo da privacidade e, segundo alguns dos agricultores,<br />

uma área produtiva é uma área que retribui a dedicação empenhada, o que<br />

também inclui o retorno econômico.<br />

Nas 14 famílias entrevistadas, foram indicadas exatamente 14 áreas<br />

com boa produção agrícola (Tabela 10), ou seja, em média, cada família<br />

conta com apenas uma área com boa capacidade de geração de renda. Esse<br />

fato corrobora a interpretação dos itens anteriores sobre a razão do abandono<br />

das áreas dentro da lógica de uso da mão de obra pelas famílias.<br />

TABELA 10 – Percepção de 14 AGRICULTORES da Cooperafloresta QUANTO à<br />

produção agrícola e à geração de renda das suas agroflorestas<br />

Produtividade agrícola (renda)<br />

Nº de agroflorestas<br />

Baixa 15<br />

Boa 14<br />

Média 3<br />

Nenhuma 2<br />

Não informado 48<br />

Total de áreas 82<br />

Comparativamente à situação anterior à Cooperafloresta, a renda dos<br />

associados aumentou significativamente, segundo a declaração dos próprios<br />

agricultores. No caso das agroflorestas, a diversidade de plantas cultivadas<br />

tem sido apontada como fator positivo para a segurança alimentar, embora<br />

estudos relatem o baixo rendimento agrícola e questões relacionadas com a<br />

organização e o manejo das áreas de cultivo como limitantes para a evolução<br />

desses sistemas (RIBEIRO et al., 2004; HENKEL; AMARAL, 2008).<br />

No caso da Cooperafloresta, são necessários mais estudos focalizando<br />

especificamente a produção agrícola, mensurando-a a campo, para que se<br />

determine seu potencial de incremento da renda dos agricultores no futuro.<br />

– 382 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

• Diversidade vegetal cultivada<br />

As 82 agroflorestas dos 14 agricultores focalizados exibem diferenças<br />

notáveis quanto à diversidade vegetal cultivada (Tabela 11). Predominam<br />

áreas simplificadas, com em torno de cinco espécies cultivadas, mas com<br />

nítida prevalência de uma delas, na maioria dos casos a bananeira. Esse<br />

predomínio de uma espécie pode estar associado à cultura agrícola das<br />

famílias, mas acreditamos estar mais estreitamente vinculado ao rendimento<br />

do trabalho e à geração de renda.<br />

TABELA 11 – Diversidade VEGETAL CULTIVADA nas <strong>AGROFLORESTA</strong>S dos<br />

14 agricultores de referência da Cooperafloresta focalizados nesTe<br />

estudo<br />

Número de espécies cultivadas<br />

Nº de agroflorestas<br />

15 ou mais 12<br />

7 a 14 13<br />

2 a 6 21<br />

Uma 3<br />

Não informado 33<br />

Total de áreas 82<br />

As três áreas com uma única espécie são cultivos solteiros de banana,<br />

mandioca e abóbora, que supostamente evoluirão para agroflorestas no futuro.<br />

Seguem a tendência geral observada, de menor biodiversidade cultivada à<br />

medida que as áreas de cultivo se distanciam da habitação (Figura 2).<br />

Por outro lado, as áreas com maior diversidade são predominantemente<br />

agroflorestas antigas (Figura 3) com contribuição pequena ou nula para a<br />

geração de renda no presente.<br />

– 383 –


Por quê as agroflorestas da Cooperafloresta são como são e para onde evoluirão?<br />

Figura 2: Distribuição das agroflorestas de 14 agricultores de referência<br />

da Cooperafloresta em função da diversidade vegetal cultivada e<br />

da distância das áreas em relação à habitação.<br />

Figura 3: Distribuição das agroflorestas de 14 agricultores de referência<br />

da Cooperafloresta focalizadas nesse estudo em função da diversidade<br />

vegetal cultivada e do tempo de implantação das áreas.<br />

Queremos crer que essa oposição entre maior geração de renda, de um<br />

lado, e maior diversidade, de outro lado, não é fato necessário nem inevitável.<br />

Nosso entendimento baseado no presente estudo é que a oposição é antes<br />

– 384 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

fruto da história das agroflorestas da Cooperafloresta, que no início foram<br />

instaladas com os propágulos das espécies disponíveis. Não havia como<br />

prever, naquela altura, a ocupação econômica diversificada ao longo do<br />

período de evolução das agroflorestas. O desafio atual consiste justamente<br />

em identificar espécies com potencial de geração de renda em todas as<br />

etapas da sucessão vegetal, das plantas herbáceas dos primeiros anos até as<br />

plantas arbóreas do final do ciclo, 12 a 20 anos mais tarde.<br />

Na diversidade de espécies vegetais das agroflorestas estudadas, uma<br />

de nossas ideias de partida era que os últimos estágios da sucessão deveriam<br />

ser ocupados para a produção madeireira. Contudo, a imersão no cotidiano<br />

dos agricultores apontou limitações para esse grupo de espécies. A primeira<br />

limitação é a topografia muito acidentada da região, que foi de fato a razão<br />

da permanência das florestas no Vale do Ribeira, enquanto elas foram<br />

totalmente derrubadas nas áreas ao redor, de relevo mais suave, tanto no<br />

Estado do Paraná como no Estado de São Paulo.<br />

A retirada de toras de madeira é trabalho pesado e exige equipamentos<br />

incapazes de transitar na região. Para cortes menores, como lenha, o<br />

transporte interno nas propriedades é um obstáculo importante, principalmente<br />

considerando o baixo valor monetário por unidade de peso de lenha.<br />

Uma alternativa seria a retirada das toras com helicópteros, que<br />

embora hoje pareça muito distante, é praticada em pequena escala no<br />

mundo. Devido ao custo, seu uso estaria restrito a espécies de maior valor.<br />

Uma alternativa é o desdobro da tora no local, com motosserra, em uso<br />

corrente no país e no qual os próprios autores desse texto participaram junto<br />

a um agricultor na Cooperafloresta. O desdobro com motosserra permite a<br />

divisão de toras pesadas em pranchas individualmente mais leves e, por isso,<br />

mais fáceis de transportar. É um método relativamente barato, sendo que<br />

dois agricultores visitados construíram totalmente suas casas com madeira<br />

extraída e processada por essa via, e um terceiro construiu uma ponte, no<br />

que participamos durante nosso segundo período de imersão.<br />

Ainda outra possibilidade seria a venda de madeira roliça para cercas,<br />

cujo valor unitário é sensivelmente maior do que o da lenha, o ciclo de corte<br />

é mais curto e as peças mais leves do que as de toras para serraria. Por essas<br />

– 385 –


Por quê as agroflorestas da Cooperafloresta são como são e para onde evoluirão?<br />

razões, quer-nos parecer que essa opção tem maior potencial para adoção<br />

imediata do que a produção de lenha ou para serraria. No caso da venda de<br />

palanques, seria necessário definir já de partida um elenco de espécies<br />

valorizadas no mercado regional para esse tipo de uso.<br />

Apesar dessas possibilidades, permanece a dúvida sobre o interesse<br />

dos agricultores em se engajarem na produção de madeira em suas<br />

agroflorestas, uma vez que eles dispõem regionalmente de madeira para uso<br />

próprio, embora não para vender. Parte dos associados vive em quilombos e,<br />

formalizando o pedido ao órgão ambiental, obtêm autorização para corte da<br />

madeira para uso local. Parece mais provável que, se os agricultores se<br />

interessarem em produzir madeira, o façam em agroflorestas relativamente<br />

mais distantes da residência, reservando as áreas próximas para culturas<br />

com ciclo de produção mais curto.<br />

Vale lembrar que, além das limitações referentes ao aproveitamento<br />

da madeira como produto de renda que acabamos de mencionar, há<br />

impedimentos legais, associados à proteção ambiental, que praticamente<br />

inviabilizam sua exploração.<br />

Por que as agroflorestas são como são e para onde evoluirão?<br />

A fisionomia das atuais agroflorestas focalizadas neste estudo resulta<br />

do somatório de diversos fatores presentes no contexto dos associados<br />

da Cooperafloresta. Alguns estímulos são semelhantes para todos os<br />

agricultores, como é o caso das instruções fornecidas pela equipe técnica<br />

da associação e as oportunidades de comercialização. No entanto, cada<br />

família agricultora interpretou e utilizou esses recursos de maneira própria,<br />

para atingir seus objetivos particulares e levando em conta os potenciais e<br />

limitações de seus membros.<br />

A adaptação e adequação dos recursos disponíveis para os agricultores,<br />

suas aspirações pessoais e sua real capacidade de realização de distintos<br />

tipos de trabalho parecem ter sido os principais determinantes da configuração<br />

atual das agroflorestas. Esses mesmos fatores podem servir como indicadores<br />

da configuração futura das agroflorestas.<br />

Tanto na atual configuração como provavelmente nas futuras, o eixo<br />

norteador é dado pela combinação de fatores relativos ao conhecimento<br />

– 386 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

técnico e cultural, o rendimento do trabalho humano e a capacidade do<br />

sistema de gerar renda.<br />

O contraste técnico e cultural existente entre um sistema agroflorestal<br />

e os antigos sistemas agrícolas praticados pelas famílias agricultoras tem<br />

gerado dificuldades na concepção e no entendimento da dinâmica das<br />

agroflorestas. Essas dificuldades são naturais e esperadas, que estão sendo<br />

pouco a pouco superadas, mas que ainda se colocam como entraves para a<br />

evolução do sistema.<br />

Essa questão foi o foco de Henkel e Amaral (2008), num estudo sobre<br />

a percepção de agricultores familiares sobre sistemas agroflorestais no<br />

nordeste do Pará. Os autores observaram a resistência dos agricultores à<br />

implantação de agroflorestas, principalmente, devido à carência de produtos<br />

vendáveis com retorno em curto prazo e também devido à complexidade de<br />

administração e manejo.<br />

O rendimento do trabalho está diretamente relacionado com a<br />

dificuldade de sua realização, seja por ser árduo e penoso, seja pelos riscos<br />

em sua realização. Os agricultores não apreciam o trabalho árduo da capina,<br />

mas apreciam o manejo com facão ou foice, comparativamente mais leve, e<br />

cujo resultado é muito visível no final do dia. Quanto a subir em árvores, é<br />

sintomático que apenas dois dentre os 14 o realizam. Ambos são jovens,<br />

habilidosos no uso de motosserras e tendentes a enfrentar riscos. Um deles<br />

sofreu um grave acidente com motosserra, que causou 28 fraturas no rosto,<br />

fato esse que não passa despercebido aos demais. Não nos parece provável<br />

que a relutância dos agricultores a subir em árvores para manejá-las em<br />

altura venha a se modificar. Por isso, a criação de agroflorestas que exijam<br />

tais podas em altura apenas parece possível se elas forem realizadas por<br />

terceiros especializados nesse trabalho.<br />

Por fim, a configuração atual do conjunto das 82 agroflorestas evidencia<br />

a elevada prioridade dos agricultores na geração de renda, seja pela elevada<br />

participação de espécies de maior rendimento agrícola, seja pela sua negação,<br />

que é o abandono das áreas quando tais espécies não produzem mais.<br />

Em nosso entender, as agroflorestas encontradas em cada propriedade<br />

retratam a melhor combinação encontrada por cada família considerando<br />

todos esses fatores, geração de renda, rendimento do trabalho, administração<br />

do risco e transporte interno. No dizer de Henkel e Amaral (2008), ninguém<br />

– 387 –


Por quê as agroflorestas da Cooperafloresta são como são e para onde evoluirão?<br />

pode decidir melhor do que o agricultor a combinação de espécies apropriadas<br />

às condições locais e para o seu sistema. Não se trata, portanto, de julgar se<br />

o que os agricultores fazem está certo ou errado, mas de entender por que<br />

fazem o que fazem.<br />

O movimento mais recente nos sistemas estudados é o retorno das<br />

agroflorestas para as proximidades das residências, mas é interessante notar<br />

que há diferenças importantes na configuração das novas agroflorestas,<br />

comparativamente às antigas. Está em curso uma diferenciação das<br />

agroflorestas, segundo sua distância da habitação, sendo aquelas mais<br />

próximas mais ricas em espécies econômicas, mais biodiversas e de manejo<br />

mais intensivo, enquanto as mais distantes são relativamente mais<br />

simplificadas e de manejo menos intensivo. Essa diferenciação segue, embora<br />

de maneira não explicitada, as zonas de intensificação de atividades<br />

concebidas na permacultura (MOLLISON; SLAY, 1998). Muito provavelmente,<br />

as agroflorestas mais próximas serão quintais agroflorestais expandidos, nos<br />

quais se prioriza o rendimento agrícola por unidade de área. Por outro lado,<br />

as agroflorestas mais distantes estão se evoluindo para se tornarem pomares<br />

agroflorestais especializados em uma espécie, alguns deles talvez incluindo<br />

espécies madeiráveis. Nessas agroflorestas distantes, o fator a priorizar é o<br />

rendimento do trabalho.<br />

Nossa prospecção do futuro das agroflorestas não tem a pretensão de<br />

prever o futuro, nem de indicar um caminho obrigatório para a evolução dos<br />

sistemas atuais. Nossa prospecção é apenas e tão somente uma tentativa de<br />

explicitação dos fatores que têm levado os agricultores a tomar determinadas<br />

decisões, e não outras, porque são as decisões efetivamente tomadas que<br />

conformaram as atuais agroflorestas e conformarão as agroflorestas do futuro.<br />

Conclusões<br />

Embora inspiradas e construídas sob a orientação de um único modelo<br />

de estruturação e funcionamento, as agroflorestas formatadas pelos agricultores<br />

de Barra do Turvo/SP e Adrianópolis/PR apresentam considerável diversidade.<br />

Dentre os fatores diferenciadores, destacam-se a complexidade estrutural, a<br />

composição botânica, o padrão de manejo e o rendimento agrícola.<br />

– 388 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Essa diferenciação não foi fruto do acaso. Ela está associada a fatores<br />

objetivos que influenciam as decisões dos agricultores. Dentre esses fatores,<br />

os mais importantes são a capacidade e a habilidade de trabalho das famílias,<br />

e o potencial de geração de renda dos cultivos nas agroflorestas, potencial<br />

esse que se traduz na capacidade do sistema de remunerar a família. Um<br />

terceiro fator igualmente importante na diferenciação das agroflorestas é sua<br />

distância da moradia. A dificuldade de transporte interno nas propriedades,<br />

devida ao relevo acidentado, se traduz em maior diversificação agrícola e<br />

intensificação de cultivo nas agroflorestas próximas, e maior simplificação<br />

nas agroflorestas distantes.<br />

Em termos da capacidade de trabalho, a idade e as limitações físicas<br />

dos agricultores os induzem a cultivar produtos de maior valor monetário por<br />

unidade de peso, de modo a reduzir o esforço no transporte. Há uma relutância<br />

generalizada em subir em árvores para manejar copadas altas. Essa relutância<br />

resulta ou em agroflorestas sem árvores altas ou no abandono da área quando<br />

as árvores crescem além de certo limite. Dentre os 14 agricultores, apenas<br />

dois, ambos habilidosos em subir em árvores, conduzem agroflorestas altas,<br />

multiestratificadas e também produtivas.<br />

Nas agroflorestas de instalação mais recente, esse conjunto de fatores<br />

está conformando dois padrões nitidamente distintos. Nas proximidades<br />

das casas, criam-se agroflorestas de manejo intensivo, com mais<br />

agrobiodiversidade, e rendimento agrícola e produção de renda por área.<br />

Em áreas mais distantes, cultivam-se agroflorestas mais simplificadas, com<br />

menor agrobiodiversidade reduzida, concentradas na produção de banana,<br />

e orientadas para a otimização do rendimento do trabalho.<br />

Em termos de espécies dominantes, parece pouco provável que<br />

qualquer cultivo venha a rivalizar com a bananeira, devido a um conjunto de<br />

atributos agronômicos, mercadológicos e de rendimento do trabalho. Embora<br />

distante, a cultura cujos atributos mais se aproximam dos da bananeira é a<br />

pupunheira. Por outro lado, a produção de madeira parece menos promissora,<br />

sendo que a madeira roliça para cercas aparenta maior potencial do que a<br />

lenha ou toras para serraria.<br />

As reflexões sobre a evolução das agroflorestas de Barra do Turvo e<br />

Adrianapólis merece análise cuidadosa, de modo a alavancar os avanços<br />

– 389 –


Por quê as agroflorestas da Cooperafloresta são como são e para onde evoluirão?<br />

necessários na Cooperafloresta e aumentar as chances de sucesso em outras<br />

iniciativas agroflorestais.<br />

Referências<br />

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Brasil: panorama dos últimos 50 anos. Brasília: IPEA, 23 p., 1999.<br />

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solo sob sistema agroflorestal. Pesquisa Agropecuária Brasileira, v.39, n.11, p.1153-<br />

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Fertility: A View from Amazonia. Applied and Environmental Soil Science, v.2012, 2012.<br />

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em: julho de 2012.<br />

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– 390 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

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– 391 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Capítulo 15<br />

Vozes da permanência: a conservação ambiental<br />

alcançada com o sistema da agrofloresta<br />

Martin Ewert,<br />

Rafaelle Mendes,<br />

Soraya Rédua e<br />

Carlos Eduardo Seoane<br />

“Eu vi quando aqui chegaram<br />

homens vindos do além-mar<br />

Na busca de mais riqueza<br />

começaram a escravizar<br />

e destruir famílias<br />

dos nativos do lugar.<br />

Assisti quando Cabral<br />

em caravelas chegou<br />

aprisionando os índios.<br />

Também as índias estuprou,<br />

iniciando a opressão<br />

que nunca mais terminou.<br />

Em nome de um tal rei,<br />

Houve isso no passado.<br />

Mas hoje, em nome da lei,<br />

de um regime defasado,<br />

a maioria do povo<br />

é pobre e discriminado.”<br />

Francisco Gama CORREA, poeta popular<br />

Introdução<br />

As atuais e diversas visões da natureza, de sua relação com a<br />

humanidade e de como otimizar os esforços de sua conservação podem<br />

ser agrupadas em dois grandes grupos: a visão ambientalista e a visão<br />

socioambientalista. Os ambientalistas enfatizam a proteção da natureza<br />

– 393 –


Vozes da permanência: a conservação ambiental alcançada com o sistema da agrofloresta<br />

mediante o estabelecimento de áreas protegidas – livres da interferência<br />

humana – administradas pelo governo com apoio de organizações nacionais<br />

e (ou) internacionais (RICE et al., 1997; 2004 a, 2004 b, 2007; TERBORGH<br />

et al., 2002; CORRÊA, 2007; FOSS, 2009), enquanto os socioambientalistas,<br />

baseando-se no argumento que as populações humanas sempre têm<br />

influenciado a natureza, sustentam que os sistemas naturais devem ser<br />

manejados por meio da concessão do direito à terra e aos recursos para as<br />

populações locais (Diegues, 1996; Agrawal e Gibson, 1999; Arruda,<br />

1999; Romero e Andrade, 2004).<br />

O ambientalismo e suas políticas preservacionistas compõem o atual<br />

modelo de conservação mais mundialmente difundido, no qual a natureza e<br />

o ser humano, mais do que exteriores um ao outro, são vistos em grande<br />

medida como excludentes (GANEM, 2011). Nessa dicotomia a ação antrópica<br />

é definida quase sempre como destrutiva. Nessa visão, a natureza deve ser<br />

isolada da ação dos seres humanos para ter preservadas suas características<br />

intrínsecas e exclusivas de equilíbrio e autossustentação (ARRUDA, 1999,<br />

TERBORGH et al., 2002).<br />

A visão preservacionista se baseia essencialmente no positivismo e no<br />

neopositivismo. Nestas duas linhas filosóficas, bases de toda a ciência<br />

moderna, a natureza é exterior em relação ao homem, ou seja, a natureza<br />

existe a priori, independente da sociedade. Assim como a natureza, o<br />

ambiente não inclui o homem. O neopositivismo vê a natureza como um ente<br />

que possui um estatuto próprio, capaz de ser desvendado e decodificado por<br />

meio de suas técnicas fundamentadas no empirismo lógico. Mais que isso, a<br />

natureza é vista como uma máquina, em que cada engrenagem pode ser<br />

estudada separadamente e revela o funcionamento do todo. A adoção de<br />

parâmetros relacionados à criação de modelos, entretanto, fez com que o<br />

meio ambiente fosse e seja visto como o conjunto de fatores bióticos e<br />

abióticos de um habitat (CATTANEO, 2004 A,B). Refletindo a visão positivista,<br />

surgiram no Brasil durante o século XX algumas classificações de áreas<br />

protegidas; entre elas, a Área de Preservação Permanente (APP), na forma de<br />

acidentes geográficos relacionados à hidrografia e ao relevo, e a Área de<br />

Reserva Legal (ARL), fração de uma propriedade particular.<br />

O socioambientalismo se baseia em paradigmas totalmente distintos<br />

daqueles do ambientalismo. A partir de uma interpretação de desenvolvimento<br />

– 394 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

sustentável mais voltada para o social, ele busca a justiça social e apoia<br />

segmentos sociais historicamente relacionados com o meio ambiente,<br />

notavelmente as populações tradicionais, em sua luta pela terra e por<br />

melhores condições de vida, tendo como elementos constitutivos a proteção<br />

e o acesso aos recursos naturais, a afirmação de direitos sobre a biodiversidade<br />

e sobre os conhecimentos tradicionais (SANTILLI, 2009).<br />

No Brasil, o advento do socioambientalismo a partir da década de<br />

1990 propiciou a intensificação das discussões sobre os aspectos sociais e<br />

de direito em relação às áreas protegidas (MARQUES & RANIERI, 2012) e<br />

resultou em flexibilizações na legislação quanto à presença humana em áreas<br />

a serem conservadas, com a criação de Unidades de Conservação (UC) de<br />

uso sustentável, onde a permanência humana é possível e encarada de<br />

diferentes formas: nas Reservas Extrativistas e nas Reservas de<br />

Desenvolvimento Sustentável (RDS), a presença humana é fator essencial<br />

para criação; nas Florestas Nacionais, a permanência é “admitida” se as<br />

pessoas habitavam previamente na área, impondo restrições (Ioris, 2006);<br />

na APA, a presença humana e o uso da área dependerão do Plano Diretor da<br />

UC. Atualmente, também é notável nova legislação contendo flexibilização de<br />

uso para ARL e mesmo APP.<br />

Neste capítulo, salientamos um caminho possível para a busca da<br />

conservação ambiental: a hipótese da permanência. Ela emana de todos os<br />

capítulos deste <strong>livro</strong>, e sugere que a presença humana pode sim ser benéfica<br />

para o meio ambiente. Mais que isso, argumentamos que a permanência de<br />

populações humanas com práticas agroambientais adequadas é fundamental<br />

para a conservação ambiental; ainda mais, tais populações humanas são<br />

agraciadas por uma qualidade de vida não só, mas também alcançada<br />

pela abundância de produtos adquiridos com a permanência dessas<br />

pessoas nestes lugares. Argumentamos aqui que a fixação, a valorização, o<br />

fortalecimento e a melhoria da qualidade de vida das famílias de agricultores,<br />

juntamente com a adequação de suas práticas aos objetivos das áreas<br />

legalmente protegidas, são componentes imprescindíveis para o sucesso da<br />

conservação biológica.<br />

A hipótese da permanência aqui exposta, apesar de amiga e solidária<br />

à justiça social, baseia-se principalmente em evidências de sustentabilidade<br />

– 395 –


Vozes da permanência: a conservação ambiental alcançada com o sistema da agrofloresta<br />

ambiental. Sobretudo, porém, praticar este caminho é/será divergir<br />

radicalmente da prática e política do ambientalismo clássico, pois inclui, ao<br />

invés de excluir, o homem da natureza. Nesse sentido, comentaremos<br />

brevemente a legislação ambiental no país para o caso do uso de Sistemas<br />

Agroflorestais Agrofloresta em áreas protegidas pela lei e questionamos a<br />

eficácia da política de proibir, ou restringir muito severamente o manejo<br />

agrícola de áreas legalmente protegidas nas formas de APP e ARL para<br />

alcançar a conservação de diversidade biológica. A questão é pertinente e<br />

permanece em aberto, pois não há estudos comparativos, e muito menos<br />

informações sistematizadas, quanto aos resultados obtidos conforme as<br />

diferentes políticas adotadas em situações em que estão envolvidas<br />

populações agrícolas locais.<br />

Na intenção de propor uma discussão acerca da Hipótese da<br />

Permanência, citamos os Sistemas Agroflorestais Agrofloresta dos agricultores<br />

da região do Vale do Ribeira, associados à Cooperafloresta, que inclui povos<br />

tradicionais e remanescentes de quilombolas e indígenas. Esses sistemas<br />

podem ser considerados como uma expressão otimizada da Agroecologia,<br />

que rompe a lógica de um sistema agrícola convencional de produção<br />

dependente do pacote tecnológico oferecido pelo agronegócio, para um jeito<br />

simples de cultivar, diversificado e autorregulado. Com a premissa de que as<br />

agroflorestas copiam a dinâmica da natureza, neste processo o papel do<br />

agrofloresteiro é fundamental, pois, além de aumentar a biodiversidade do<br />

local, auxiliar na conservação do bioma Mata Atlântica, ajuda na recuperação<br />

de áreas degradadas e, ainda, com os frutos da agrofloresta, melhora sua<br />

qualidade de vida e recebe uma fonte de renda. Tendo em vista este teste,<br />

acompanhamos o do dia a dia dos agrofloresteiros da Cooperafloresta, por<br />

meio da observação participante, com o objetivo de captar as experiências<br />

dos agricultores que normalmente não são ouvidos e nos aprofundarmos na<br />

realidade singular desses agricultores, participando de eventos cotidianos<br />

para construção dos dados da investigação científica (CRUZ NETO, 1999;<br />

FREIRE, 2006; YIN, 2001) nesse sentido, sobretudo, foi observada a<br />

percepção de homens e mulheres com a natureza, suas relações com a<br />

floresta e as práticas de cultivo da agrofloresta. As informações foram<br />

registradas em um diário de campo, mas também se fez uso, em alguns<br />

– 396 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

casos, de uma câmera filmadora. O outro método complementar à<br />

observação participante foi o uso de entrevistas semiestruturadas que<br />

foram registradas em um gravador portátil. As respostas às entrevistas e<br />

as “falas” dos agricultores foram aqui chamadas de Vozes da Floresta,<br />

conforme propôs Silva et al. (2013) a partir dos trabalhos de Boaventura<br />

de Souza Santos (SOUSA SANTOS, 2002, 2009; 2010; SOUSA SANTOS<br />

e MENESES, 2010). No processo de observação participante, houve o<br />

acompanhamento de oficinas, capacitações, mutirões e outras atividades<br />

cotidianas na Cooperafloresta, que serviram para enriquecer as informações<br />

necessárias para esta pesquisa.<br />

Todas as entrevistas foram sistematizadas com base no diálogo de<br />

saberes apresentado por Enrique Leff (LEFF, 2009) que fomentam a irrupção<br />

de uma “Racionalidade Ambiental e um Saber Ambiental”. Os resultados<br />

apresentam uma reflexão sobre as atuais leis e normas da legislação ambiental<br />

a partir do olhar dos agrofloresteiros e suas considerações sobre os aspectos<br />

da legislação e a prática de Sistemas Agroflorestais Agrofloresta em locais a<br />

serem conservados.<br />

A presença humana em áreas legalmente protegidas<br />

A questão da permanência, ou não, de populações em áreas legalmente<br />

protegidas não é simples e envolve uma considerável fração do território<br />

mundial e de sua população. Atualmente há cerca de 108 mil áreas protegidas<br />

oficiais no mundo, cobrindo mais de 12% da superfície terrestre, uma área<br />

maior que a superfície total da África (Dowie, 2006). Uma das premissas<br />

para a implantação dessas áreas legalmente protegidas tem sido a retirada<br />

dos habitantes que vivem ali, os chamados “refugiados da conservação”, que<br />

existem em todos os continentes, com exceção da Antártica. As estimativas<br />

mundiais variam de 5 a 10 milhões de refugiados da conservação (Dowie,<br />

2005). No entanto, Geisler e Letsoalo (2000) e Geilser (2002) sustentam<br />

que a soma de refugiados (desalojados para fora de seus países) e IDPs<br />

(deslocados internamente em seus países), somente na África, supera os<br />

14 milhões.<br />

Uma das questões mais polêmicas em torno da conservação ambiental<br />

no Brasil, no que se refere a áreas protegidas – também a implantação de<br />

– 397 –


Vozes da permanência: a conservação ambiental alcançada com o sistema da agrofloresta<br />

APP e ARL, mas principalmente Unidades de Conservação – se dá em torno<br />

da relação das populações humanas que vivem e viviam antes da apropriação<br />

ou restrição do uso da área pelo Estado (Arruda, 1999). Grande parte<br />

das áreas ainda preservadas do território brasileiro é habitada com maior,<br />

ou menor, densidade por populações indígenas ou por comunidades rurais<br />

“tradicionais” – caiçaras, ribeirinhos, seringueiros, quilombolas, caipiras –<br />

para as quais a conservação da fauna e flora é a garantia de sua perenidade<br />

(Arruda, 1999). Populações indígenas e quilombolas já possuem legislações<br />

próprias que lhe garantem o direito de permanência em suas terras. Ainda,<br />

um grupo social é citado várias vezes na própria legislação ambiental como<br />

tendo regras particulares em sua relação com a natureza: a população<br />

tradicional. Por exemplo, entre os objetivos da “Lei do SNUC” está o de<br />

“proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações<br />

tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e<br />

promovendo-as social e economicamente” (artigo 4º, § XIII). Além disso, a lei<br />

afirma que “O SNUC será regido por diretrizes que garantam as populações<br />

tradicionais, cuja subsistência dependa da utilização de recursos naturais<br />

existentes no interior das UC, meios de subsistência alternativos ou a justa<br />

indenização pelos recursos perdidos” (artigo 5º, §X).<br />

Benatti (2006) afirma que existem instrumentos legais para que haja<br />

a conciliação da permanência de populações dentro de áreas legalmente<br />

protegidas: “Enquanto estiverem assegurados os interesses ambientais da<br />

sociedade, estarão também assegurados os direitos dos grupos sociais que<br />

utilizam essas áreas de forma não predatória. Portanto, enquanto existir o uso<br />

adequado da área, segundo o contrato, subsiste o direito real a essa utilização,<br />

podendo ser transferido esse direito para os herdeiros. Mas, no momento em<br />

que as populações não respeitarem o uso acordado ou mudarem a finalidade<br />

prevista legalmente, rescindir-se-á o contrato e a terra reverterá à Administração<br />

Pública” (Benatti, 2006, p. 5). Portanto, o principal problema legal que se<br />

constata não é a legislação em si, mas sim sua interpretação e execução.<br />

Populações tradicionais e a conservação<br />

A definição de o que é uma população tradicional é altamente difícil de<br />

pontuar. Mesmo legalmente há mais de uma definição. A Lei n.º 11428/2006,<br />

– 398 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

a “Nova Lei da Mata Atlântica”, define população tradicional como “população<br />

vivendo em estreita relação com o ambiente natural, dependendo de seus<br />

recursos naturais para a sua reprodução sociocultural, por meio de atividades<br />

de baixo impacto ambiental”. Já o Decreto n.º 6.040/2007, da “Política<br />

Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades<br />

Tradicionais”, afirma que povos e comunidades tradicionais são “grupos<br />

culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem<br />

formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e<br />

recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social,<br />

religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e<br />

práticas gerados e transmitidos pela tradição”. Na primeira definição, as<br />

populações tradicionais são assim definidas por outrem, sendo uma das<br />

premissas para serem definidas como tal, é oferecer um baixo impacto<br />

ambiental. Já na segunda definição legal, a necessidade de oferecer um baixo<br />

impacto ambiental desaparece e as populações tradicionais são aquelas que<br />

se reconhecem como tal. São diferenças não tão sutis, especialmente para a<br />

questão ambiental envolvida. Por exemplo, uma população de caiçaras que<br />

seja composta por um número de indivíduos maior que o ambiente possa<br />

suportar se encaixa na segunda definição, mas não na primeira.<br />

Dallari (1994, p.110) questiona: “Qual o tempo se deve decorrer para<br />

que se possa dizer que existe uma tradição?” Utilizar o termo tradicional leva<br />

muitas vezes a negligenciar o dinâmico processo das mudanças culturais e<br />

suas conexões com outras esferas das relações sociais. Muitas vezes, o termo<br />

“tradicional” é utilizado como contraponto de “moderno”, o que implica<br />

condições de atraso e de irracionalidade nos processos de tomada de decisões;<br />

tanto quanto outras organizações sociais, essas estão sujeitas às dinâmicas<br />

sociais e à mudança cultural. Geralmente, a flexibilidade econômica e a<br />

mutabilidade social são subestimadas. E a homogeneidade social, as práticas<br />

conservacionistas e o evitar de riscos e inovações são superestimados<br />

(Castro et al., 2006).<br />

Tendo como cenário o domínio da Mata Atlântica, onde a ocupação<br />

das terras se deu por “ondas”, referenciar as populações como tradicionais<br />

ou “não tradicionais” perde o sentido, ainda mais levando em consideração a<br />

presença de grandes centros urbanos a uma distância cada vez mais curta,<br />

– 399 –


Vozes da permanência: a conservação ambiental alcançada com o sistema da agrofloresta<br />

devido ao crescimento destes centros e da malha viária. Castro et al. (2006),<br />

tendo como exemplo o Vale do Ribeira-SP, sugerem que há um “continuum”<br />

constituído de três categorias: tradicional, neotradicional e não tradicional, e<br />

enfatizam que se a discussão da permanência das populações se centrar em<br />

“ser tradicional” ou não, e não se basear em um contexto social e histórico<br />

mais amplo, no qual qualquer população rural possa participar, o direito à<br />

permanência e utilização dos recursos estará condenado a uma visão estática<br />

acerca da “tradição” e essas populações beneficiadas estarão “presas” ao<br />

seu passado.<br />

Portanto, o termo “população tradicional” é altamente gerador de<br />

confusão para a prática da conservação. Não se deve ressuscitar o mito do<br />

“bom selvagem” ou do “ecologismo nato” das populações tradicionais, pois<br />

estas podem ter práticas claramente contrárias à conservação da diversidade<br />

biológica. Mais que isso, o termo “tradição” inclui dimensões históricas<br />

(ocupação temporal), culturais (conhecimento, costumes, percepção) e<br />

políticos (direito à terra), mas não necessariamente conservacionistas; no<br />

contexto no qual têm sido usado, o termo «tradicional» tem a ver com<br />

direitos de permanência, mas não com utilidade da permanência para a<br />

conservação biológica.<br />

Mais interessante para a conservação ambiental é utilizar, ao invés do<br />

termo «população tradicional», o termo «população com práticas agroambientais<br />

adequadas» pois, no tocante à conservação da diversidade biológica, o que<br />

interessa não são as dimensões históricas, culturais e políticas envolvidas na<br />

permanência, ou não, de populações em áreas , mas sim o impacto ambiental<br />

que a questão da permanência ou não dessas populações causará. Um aspecto<br />

que aumenta a complexidade desta questão é a própria dificuldade das<br />

ferramentas da ciência tradicional para avaliar este impacto. Muitas vezes, este<br />

é considerado a partir de dimensões ideológicas.<br />

Consequentes usos inadequados dos ambientes diante das<br />

políticas preservacionistas<br />

Durante centenas de anos a sustentabilidade ambiental da presença<br />

das populações humanas foi garantida por tecnologias como a agricultura de<br />

pousio. Essa tecnologia foi muito restringida, com sua proibição a partir do<br />

– 400 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

estabelecimento do Código Florestal de 1965 ( PERONI, 2007); os locais<br />

agriculturáveis passaram a ser fixos, o que, além de, em longo prazo, diminuir<br />

a produção de alimentos, aparentemente prejudicou significativamente a<br />

sustentabilidade ambiental (SANCHES, 2001; CASTRO et al., 2006). Nessa<br />

realidade imposta, tentando continuar existindo e não deliberadamente como<br />

um enfrentamento ou uma estratégia de resposta às proibições, as populações<br />

rurais adaptaram suas práticas de produção e reprodução. Por exemplo, na<br />

APA de Guaraqueçaba, no litoral do Estado do Paraná, muitos agricultores<br />

têm estratégias de roças ilegais, que aparecem não tanto como uma forma de<br />

driblar as restrições às atividades agrícolas, mas sim como um reflexo de<br />

manejo tradicional e cultural, praticado há milênios pelos antepassados<br />

destas pessoas (SANTOS, 2001; MARANGON E AGUDELO, 2005). Com a<br />

ilegalidade, é imposta a necessidade de roças escondidas e, portanto, a<br />

escolha dos locais a roçar não segue somente a percepção e experiência do<br />

agricultor, em termos de, entre outros, fertilidade e acesso; também o período<br />

de utilização de determinada roça tende a ser expandido. Assim a imposição<br />

da ilegalidade interfere na gestão da mão de obra, com a distância e os<br />

solos poucos desenvolvidos exigem esforço complementar, o que se traduz<br />

por uma queda da produtividade de trabalho, contribuindo também para<br />

a desorganização do calendário agrícola (SANTOS, 2001; MARANGON E<br />

AGUDELO, 2005).<br />

Nesse contexto, outras formas de ilegalidade são favorecidas; por<br />

exemplo, a retirada de palmito (principalmente o juçara, Euterpe edulis)<br />

deixa de ser alimento complementar às famílias e passa a ser uma fonte de<br />

lucro. Por consequência, inicia-se um processo de retirada descontrolada de<br />

produtos florestais, entenda-se também a caça, visando à comercialização,<br />

que por sinal não se faz diretamente, mas sim na pessoa do “atravessador”.<br />

Não mais se respeita a idade do animal, o tamanho, se fêmea ou macho e<br />

período de caça. A situação em que o produtor se encontra é consideravelmente<br />

complicada, e coloca em xeque, muitas vezes, longos anos de cuidado e<br />

preocupação com a sua propriedade e os recursos nela existentes. A questão<br />

da caça e retirada ilegal de produtos da floresta se intensifica depois que os<br />

proprietários saem de suas terras, pois antes as pessoas só poderiam entrar<br />

se o «dono» deixasse (BRUSTOLINI, 2003).<br />

– 401 –


Vozes da permanência: a conservação ambiental alcançada com o sistema da agrofloresta<br />

A forma abrupta de chegar até as populações muitas vezes adotadas<br />

pelos órgãos oficiais acaba gerando um ambiente de desconforto e<br />

engessamento. Não se propõem alternativas, nem sequer são consultadas as<br />

comunidades, apenas lhes são imposta uma nova realidade. Segundo<br />

Marangon e Agudelo (2005), além de desconsiderar o saber tradicional, a<br />

legislação foi implementada sem um adequado processo de Educação<br />

Ambiental e sem oferecer alternativas de produção que possibilitem uma<br />

agricultura de subsistência sustentável (i.e., demarcando áreas possíveis ao<br />

cultivo, rotatividade de culturas, enriquecimento natural do solo com adubos<br />

orgânicos, produção alternativa de escoamento e outras fontes de renda,<br />

como turismo ecológico). O distanciamento da economia e da cultura<br />

autóctone, seja devido à inutilidade, seja por interferência nos processos<br />

tradicionais de transmissão de conhecimentos, incidiu na perda dos<br />

conhecimentos ecológicos tradicionais ou populares, que aliados à falta<br />

de perspectiva de desenvolvimento local resultaram em um processo de<br />

descaracterização e desagregação socioeconômica e cultural (MARANGON E<br />

AGUDELO, 2005).<br />

O processo de vigilância dos moradores das terras, agora destinadas à<br />

conservação, é bastante desgastante e complexo. Brustolini (2003) afirma<br />

que, a violência e a pressão psicológica muitas vezes exercida por parte dos<br />

órgãos responsáveis acabam criando mais um problema. Deixam de ser<br />

um parceiro da sociedade, e tornam o processo como que uma «rendição»<br />

diante de um processo de luta desigual, por meios jurídicos (com multas)<br />

ou simbólicos (funcionários dos órgãos ambientais andarem armados)<br />

(CATTANEO, 2004). Com isso, temos a resposta do visível descrédito<br />

conferido às autoridades competentes. E a base desse descrédito está sobre<br />

a maneira de trabalho que o órgão fiscalizador desempenha quando está<br />

interagindo com moradores. Numa comparação, o morador articula as<br />

exigências próprias das demandas ambientais, os critérios éticos e culturais<br />

diferenciados, com procedimentos não identificados nos agentes com os<br />

quais se depara. Assim, a falta de estudo dos hábitos e práticas utilizadas<br />

pelos moradores, sobre o modo de exploração, acaba por fazer que as medidas<br />

coercitivas e restritivas tenham um efeito contrário, contribuindo para a<br />

degradação do ecossistema local (BRUSTOLINI, 2003).<br />

– 402 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

A hipótese da permanência<br />

A falta de estudos e avaliações das consequências de diferentes<br />

práticas utilizadas pelos agricultores proprietários de terras em áreas<br />

legalmente protegidas parece levar a que o “não manejo” seja a solução mais<br />

“viável” na percepção geral das instituições governamentais brasileiras. No<br />

entanto, estudos apontam que, ao menos quantitativamente, há diferença<br />

de qualidade e grau de impacto causado por diferentes agrupamentos<br />

humanos em áreas legalmente protegidas. Por exemplo, Karanth et al. (2006)<br />

estudaram a influência dos diferentes tamanhos de agrupamentos humanos<br />

dentro de áreas legalmente protegidas sobre o impacto no meio ambiente e<br />

encontraram diferenças significativas entre as distâncias alcançadas pelos<br />

impactos causados por agrupamentos de mais de cem pessoas e outros de<br />

menos de trinta.<br />

Necessitamos de experimentações com o mesmo rigor científico e<br />

métodos de análise do estado da arte utilizados para as hipóteses biológicas<br />

tradicionais para testar o que realmente protege a diversidade biológica<br />

(Ferraro e PATTANAYAK, 2006). Pode o manejo de áreas legalmente<br />

protegidas ser benéfico para a proteção da diversidade biológica? Neste<br />

sentido, sugerimos aqui a<br />

“Hipótese da Permanência”:<br />

Ações e políticas públicas para a fixação, valorização, fortalecimento e<br />

melhoria da qualidade de vida das famílias de agricultores, juntamente com<br />

a adequação de suas práticas aos objetivos das áreas legalmente protegidas,<br />

são componentes imprescindíveis para o sucesso da conservação biológica.<br />

Práticas humanas podem ser instrumentos para a conservação<br />

biológica de áreas legalmente protegidas? Alguns poucos autores apenas<br />

comentam esta possibilidade. Segundo Arruda (1999), há uma possibilidade<br />

raramente contemplada nas políticas pública brasileiras, que é a de construir<br />

junto com as populações locais uma relação ao mesmo tempo mais<br />

harmoniosa e economicamente mais eficaz. Trata-se de valorizar a identidade,<br />

os conhecimentos, as práticas e os direitos de cidadania dessas populações,<br />

valorizando seu padrão de uso dos recursos naturais, e tornar-se um apoiador<br />

de práticas sustentáveis e ecológicas na propriedade. Já Brustolini (2003)<br />

– 403 –


Vozes da permanência: a conservação ambiental alcançada com o sistema da agrofloresta<br />

sugere que “conservar o direito das populações (tradicionais) seria umas das<br />

formas de preservação ambiental mais eficaz”.<br />

Agrawal e Gibson (1999) já afirmavam que os “os fracos resultados<br />

em conservação alcançados após décadas de estratégias de manejo de<br />

recursos e de planejamento de desenvolvimento feitos de forma intrusiva,<br />

forçam os policy makers e os acadêmicos a reconsiderar o papel das<br />

comunidades no uso e conservação de recursos”. Mesmo John Terborgh,<br />

um dos mentores e maiores entusiastas da política ambiental de<br />

protecionismo, admite o fraco desempenho dos parques do terceiro mundo<br />

em relação a conservação biológica No entanto, a “receita” para sanar<br />

este problemas não poderia ser mais destoante da proposta por Agrawal<br />

e Gibson: aumentar o policiamento nas áreas legalmente protegidas<br />

(Terborgh, 2007). A grande divergência entre estas duas linhas de<br />

pensamento é, em parte, fruto do fato de que os praticantes e cientistas da<br />

conservação dependem da intuição e opiniões para direcionar e implantar<br />

os investimentos conservacionistas; nenhuma das duas foi, até o momento,<br />

capaz de demonstrar experimentalmente, ou mesmo empiricamente, a<br />

fatuidade de suas visões, e as evidências citadas por ambos os lados são<br />

muito fracas.<br />

Vozes permanentes da floresta<br />

Os saberes ecológicos dos agrofloresteiros da Cooperafloresta emergem<br />

das interações entre o homem e a natureza, do conhecimento adquirido pelos<br />

agricultores ao longo de gerações, e são apresentados a seguir com um olhar<br />

que se refere à construção social de saberes e a conversão agroecológica.<br />

Desse modo, as vozes da floresta são o reconhecimento que cada saber é<br />

único e merece ser ouvido.<br />

Ademais, essa conversão ocorre com um processo gradual de transição<br />

de sistemas convencionais de produção pouco diversificados e dependentes<br />

de insumos externos, para um sistema diversificado e autorregulado. A<br />

conservação da biodiversidade alcançada neste processo estabelece possíveis<br />

conexões entre os remanescentes da Mata Atlântica, e da fauna e flora dessa<br />

região, além de recuperar os passivos ambientais existentes.<br />

Antes do Sistema Agroflorestal Agrofloresta os agricultores praticavam<br />

a roça de coivara, derrubando a floresta, queimando, plantando e colhendo<br />

– 404 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

até a área perder a fertilidade do solo, e por vezes sendo abandonada para<br />

formar a capoeira grossa. As lavouras semeadas eram principalmente de<br />

feijão, milho e arroz, como explica o associado à Cooperafloresta e<br />

agrofloresteiro Reinaldo em seu depoimento:<br />

Aqui só se mexia com queimada, para plantar, milho arroz feijão, todo ano, a<br />

gente não fazia num lugar só, se a gente tivesse uma roça num canto, depois<br />

passava uns anos a gente já fazia roça noutro lugar deixava criar a capoeira,<br />

pra depois de um tempo voltar a “prantar” e era assim toda vida, porque<br />

antigamente os mais veio fazia um barraco no meio da capoira ficava 2 anos<br />

ali, depois fazia outro barraco notro canto. A gente prantava virava na inchada<br />

depois via que a terra já tava descansada. (Reinaldo, agrofloresteiro)<br />

A fertilidade dessa área derrubada e queimada era alta, graças à<br />

grande quantidade de biomassa acumulada no chão proveniente da derrubada<br />

da floresta. Com o tempo, e principalmente com a implementação das<br />

políticas de preservação inspiradas no Código Florestal de 1965 e no Decreto<br />

n.º 750/93, as terras disponíveis para cultivo diminuíam e os agricultores<br />

passavam a plantar sempre no mesmo lugar, esgotando-se os recursos do<br />

solo. Esse processo fez com que as capinas, as derrubadas e queimadas<br />

aumentassem, causando erosão e trazendo pragas que só podiam ser<br />

combatidas com agrotóxicos, como relata Reinaldo:<br />

O problema nosso antes era assim: eu fazia até cinco alqueires de roça aí<br />

metia fogo, queimava aquilo e plantava milho só, e arroz ai colhia aquela<br />

milharada o que o povo não comia fazia uma paiolzão enchia de milho depois<br />

virava tudo em caruncho de que adiantava tudo isso? Eu me matava. (...) A<br />

situação foi feia pra nóis, aqui era sofrido, hoje eu ando cansado, mas por<br />

causa da idade não por causa do serviço, antes nós se matava e trabalhar<br />

pros outros pra ganhar, hoje eu sou patrão meu mesmo, trabalho a hora que<br />

eu quero (Reinaldo, agrofloresteiro).<br />

Dona Maria, agrofloresteira, lembra como era no passado: “nos quando<br />

fazia roça, queimava, pra nois era só na queimada, e depois carpia tudo,<br />

quando virava na tiguera nois virava na inchada”.<br />

Com a conversão agroecológica da propriedade do Sr. Reinaldo e sua<br />

esposa, Dona Maria, e todos aqueles associados da Cooperafloresta, os<br />

valores mudaram a partir dos Sistemas Agroflorestais Agrofloresta, enraizando<br />

– 405 –


Vozes da permanência: a conservação ambiental alcançada com o sistema da agrofloresta<br />

o saber ambiental e ecológico. O que ocorre é a reconstituição de identidades<br />

por meio do saber, como afirma Leff (2006) “A complexidade ambiental<br />

implica uma reformulação do conhecimento de um novo saber, contém uma<br />

reapropriação do mundo a partir do ser através do poder no saber, da vontade<br />

de poder, que é um querer saber”.<br />

O diálogo de saberes percebido nas falas dos agrofloresteiros relatados<br />

aqui conduz a uma realidade que envolve as palavras, significações, razões,<br />

práticas, propósitos que, em sintonia e dissonâncias, entre acordos e<br />

dissensos, vão formando um novo tecido discursivo e social.<br />

E aqui tem bastante amor e bastante carinho. De primeiro sabe o que eu fazia?<br />

Eu tiro sarro di eu mesmo. Eu ia roçar perto de casa tava cheio de limão,<br />

laranjinha, mexerica, eu fazia “vua” tudo na foice e hoje eu to plantando, e<br />

tem muito comércio, e se tem. (Reinaldo, agrofloresteiro)<br />

E Pedro Oliveira de Souza, autor do capítulo 2, completa essa visão<br />

de fartura de alimento ao afirmar que na agrofloresta, uma das vantagens é<br />

que não há necessidade de grandes espaços para subsistência de uma família.<br />

A grande mudança é que os Sistemas Agroflorestais Agrofloresta são cultivados<br />

preenchendo todos os andares de alimento, produzindo tanto na horizontal<br />

quanto na vertical, como explicou o agrofloresteiro Aparecido, em uma<br />

capacitação da agrofloresta, demonstrando a concepção do cultivo diversificado.<br />

Então, o que a gente faz: a gente pega o inhame, batata doce, pega cará,<br />

mandioca e aqui dentro dessa linha a gente pode tá colocando e plantando,<br />

porque ela vai sair e junto com essas coisas a gente acaba colocando semente<br />

de fruteiras, mas aqui dentro é só pra colocar semente, não é bom pegar<br />

mudinha pra colocar aqui dentro. Pega as sementinhas e se você quiser plantar<br />

um inhame você planta, uma mandioca, ou um milho, se quisesse pra colocar<br />

dava pra colocar ou gengibre ou alguma outra coisa, e daí esse exemplo que<br />

eu dei da batata doce e das outras coisas é só pra dentro da terra é um negócio<br />

que é debaixo da terra, aí a laranja seria um segundo andar. O café seria o<br />

primeiro andar. Então no caso aqui, eu teria que ter a laranja, teria que plantar<br />

o café, e abacate e jaca pra fazer o terceiro andar. Então aqui dentro não<br />

poderia deixar de colocar essas sementes (Aparecido, agrofloresteiro).<br />

No entanto, para manter esse sistema são necessárias técnicas de<br />

manejo de corte, poda ou supressão da floresta. Por vezes, algumas dessas<br />

– 406 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

técnicas utilizadas na agrofloresta podem ser vistas por ambientalistas mais<br />

conservadores como “técnicas destrutivas da natureza”. Contudo, é importante<br />

ressaltar que “derrubar”, ou “passar o facão” na floresta é uma característica<br />

peculiar desse sistema que pode ser observada na fala do agrofloresteiro,<br />

como diz Reinaldo:<br />

Aqui eu já to tirando bastante fruta eu vou plantar mais taioba, pra fazer esse<br />

andar de baixo que o Nelson fala. Você passa o facão nele põe tudo ali, tá<br />

estercando a terra e já brota de novo.<br />

As agroflorestas são derrubadas conforme a dinâmica de clareiras<br />

ocorrentes nas florestas naturais, abrindo uma clareira e permitindo a entrada<br />

da luz do sol para que novas plantas se desenvolvam, para aumentar a<br />

fertilidade do solo, para preservar a água no local. O Sistema Agroflorestal<br />

Agrofloresta por vezes é iniciado do zero, ou seja, inicia-se toda a agrofloresta<br />

novamente porque são áreas pouco produtivas, ou quando os agricultores<br />

necessitam de uma área para plantio de cultivos anuais – batata-doce,<br />

vagem, milho, quiabo, abóbora, tomate, entre outros, que precisam de<br />

luminosidade para se desenvolver e completar o ciclo. São essas técnicas de<br />

manejo que preservam os recursos hídricos, aumentam a biodiversidade e<br />

melhoram a agrofloresta.<br />

Ocorre que no manejo da agrofloresta, ao cortarem-se algumas árvores<br />

fazendo uma pequena clareira para plantar novamente, permite-se que as<br />

raízes se transformem em alimento para outras plantas, porque nesse<br />

processo todos os organismos vivos contribuem para formar a estrutura do<br />

solo, promovendo a fertilidade máxima e ajudando a água da chuva a infiltrar<br />

na terra sem causar erosão. Isso nada mais é que uma das funções da mata<br />

ciliar de filtrar a água, ou seja, a mata ciliar mais eficiente é aquela floresta<br />

manejada que foi renovada e esta rebrotando.<br />

Portanto, são essas algumas das grandes questões que permeiam as<br />

técnicas de plantio e manejo das agroflorestas e o agricultor estará fazendo o<br />

manejo com o propósito de intensificar a dinâmica de sucessão, porque em<br />

seu entendimento ele está produzindo com a natureza e não contra ela como<br />

ocorre em um sistema convencional, como, por exemplo, a utilização de um<br />

pasto. Ao passo que Pedro indaga comparando a agricultura convencional e<br />

– 407 –


Vozes da permanência: a conservação ambiental alcançada com o sistema da agrofloresta<br />

uma agrofloresta: “Quanto de veneno joga na atmosfera com uma<br />

agrofloresta? Quanto de água precisa para uma agrofloresta?”<br />

Uma antiga sabedoria indígena fala que Solo doente, planta doente, homem<br />

doente, ao passo que Primavesi (2000) alerta que quem come estas colheitas<br />

da agricultura convencional, come plantas doentes e se torna doente. De<br />

acordo com ela, uma planta deficiente somente pode gerar um homem<br />

deficiente. Sem contar o aumento assustador de pragas que demandam cada<br />

vez mais o uso de agrotóxicos.<br />

Em 1970 existiam no Brasil 193 pragas. Atualmente ultrapassa 650. De<br />

onde vieram? Bactérias, fungos, vírus e insetos que antes eram pacíficos e até<br />

benéficos agora se tornam parasitas. Por que? Porque as plantas são doentes<br />

nos solos doentes. E o solo é doente quando perde sua vida, sua porosidade,<br />

seu equilíbrio em nutrientes (Primavesi, 2000).<br />

Nesse sentido, o oposto de um sistema que destrói tudo o que vier pela<br />

frente é um sistema autorregulado, que com a diversidade de cultivo ou quando<br />

do manejo da capoeira ou da floresta, gera estabilidade e equilíbrio promovendo<br />

a saúde do solo, a saúde das plantas e, por fim, a saúde das pessoas. Aqui<br />

cabe trazer outro aspecto a ser colocado sobre a dinâmica de regeneração da<br />

floresta, onde se permite o crescimento da capoeira para se desenvolver o<br />

Sistema Agroflorestal, porque, por exemplo, a dinâmica da regeneração da<br />

capoeira favorece a vinda natural que auxilia na fertilidade do solo, possivelmente<br />

permitindo, assim, um resultado econômico mais rápido para o agricultor que<br />

deixou de utilizar insumos químicos para adubar o solo, como ocorre com o<br />

NPK na agricultura convencional.<br />

Então, nessa visão de manejo da capoeira, tem-se como base permitir<br />

que a capoeira se desenvolva para em seguida cortar ou picar e assim<br />

alimentar o solo, facilitar a infiltração da água, aumentar a disponibilidade da<br />

água, favorecer a regeneração natural e ao mesmo tempo cultivar todas as<br />

culturas possíveis para se produzir alimento, lenha e lógico, biodiversidade.<br />

O que se sabe é que os SAF são usados por índios e outras populações<br />

tradicionais há muito tempo, e com isso forma-se um solo conhecido por<br />

“terra preta de índio”, que nada mais é que o solo formado por ação humana<br />

ao longo de muitos anos e denominado tecnicamente antropossolo. O<br />

antropossolo é formado em um sistema dinâmico que aumenta a biomassa e<br />

– 408 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

vai entrando no nível mais próximo do equilíbrio, renovando e acumulando<br />

mais matéria orgânica do que sistemas que não têm renovação da floresta.<br />

Afinal, um índio, observando a floresta, derrubou-a e plantou tudo de novo,<br />

com a intencionalidade de ajudar a natureza, porque percebeu que assim<br />

melhorava a fertilidade do solo e garantia melhor quantidade na produção do<br />

alimento. Assim, o agrofloresteiro Aparecido, observando o solo de agrofloresta<br />

em sua propriedade, explica “Então vocês vão ver aqui que a terra ela tá<br />

preta, onde tem terra preta significa que tem terra boa”.<br />

Na Cooperafloresta, onde há agrofloresta manejada é porque há<br />

remanescente florestal em processo de recuperação, e regeneração, porque<br />

tem o cuidado dos agrofloresteiros. E estes devem ter seus papéis como<br />

conservadores reconhecido, sobretudo, quando estão cultivando com carinho<br />

não apenas a agrofloresta, mas toda a biodiversidade da fauna que tem a<br />

oportunidade de coabitar no mesmo espaço da agrofloresta, ou seja, pequenos<br />

animais e pássaros que convivem nesse sistema para contribuir com o plantio,<br />

pela dispersão de sementes, e que são vistos aqui na voz do agrofloresteiro<br />

Benedito (Ditão).<br />

Nós estamos sendo o ambientalista que tamo plantando e cuidando de<br />

quem planta. Pela lei, nós não temos direito, mas nós temos direito porque<br />

nós tamo cuidando. Nós tamo dando a oportunidade de alguém plantar por<br />

nós. (Ditão, agrofloresteiro)<br />

Portanto, este não é apenas um sistema de produção de alimento, mas<br />

um conjunto de elementos que se relacionam entre si e formam as integrações<br />

propostas na agroecologia nas dimensões ambientais, econômicas, sociais e<br />

culturais, a fim de transcender as questões legais em uma dada complexidade<br />

em que está inserida.<br />

Nas agroflorestas busca-se sempre a maior diversidade de espécies<br />

possíveis porque proporcionam múltiplos benefícios ecossistêmicos; essa<br />

diversidade contribui também com a estabilidade de que a floresta necessita<br />

para se desenvolver. E no enriquecimento da biodiversidade, utiliza-se muito<br />

a juçara (Euterpe edulis), palmeira nativa da floresta de Mata Atlântica que<br />

é bastante importante para os animais da região, por causa do alimento ou<br />

do abrigo, por exemplo. O plantio da juçara ocorre por meio de mudas ou<br />

– 409 –


Vozes da permanência: a conservação ambiental alcançada com o sistema da agrofloresta<br />

sementes. Ou seja, neste aspecto é preciso compreender que a agrofloresta são<br />

plantios que incluem relações ecológicas, pois possuem uma intencionalidade<br />

no modo de como é plantado, porque conta, com o apoio de toda fauna,<br />

mas também com a dinâmica de sucessão natural. Embora, o conceito de<br />

plantio na agrofloresta, de maneira geral, causa muita confusão, pois essa<br />

é uma das dificuldades relatadas quando se discute o conceito de plantio<br />

com públicos diversos.<br />

Por exemplo, juçara é uma das espécies consideradas pela lei da<br />

Mata Atlântica em extinção. Mas nos Sistemas Agroflorestais Agrofloresta da<br />

Cooperafloresta, hoje em dia existem milhares de juçara, porque são plantadas<br />

observando a dinâmica da floresta. Então elas são plantadas pelo<br />

agrofloresteiro para melhorar o ambiente e nessa dinâmica, como já foi<br />

explicado, vão surgir na floresta mais indivíduos de juçara de forma natural<br />

com o auxílio da fauna.<br />

Hoje, a lei não permite a comercialização da juçara que não tenha seu<br />

plantio registrado. Por isso, além do prejuízo de não comercializar o palmito,<br />

os agricultores perdem a possibilidade de renovar o sistema e melhorar áreas<br />

com abundância de juçara. Sem o entrave legal, a situação seria melhor, pois<br />

não haveria a dificuldade para estimular mais o plantio de espécies nativas.<br />

Ademais, para utilizar a Euterpe edulis com a finalidade de se produzir<br />

a polpa, muito semelhante ao do açaí, o agrofloresteiro notou que a espécie<br />

frutifica melhor quando o seu plantio ocorre na borda da floresta, devido à<br />

quantidade de luz que o fruto da juçara recebe naquele local. Como a<br />

agrofloresta é um plantio adensado da maior quantidade possível de espécies<br />

arbóreas, para poder produzir a polpa do açaí, tanto a juçara quanto as outras<br />

espécies dependem do manejo da floresta.<br />

O manejo da floresta permite a dinamização da vida no solo que, de<br />

acordo com GÖTSCH (1995), deixa propício o desenvolvimento de plantas<br />

mais jovens, acelerado o processo de sucessão e contribuindo com luz,<br />

espaço e matéria orgânica. Nesse sentido, permitir o corte e manejo da juçara<br />

é uma estratégia que deve ser entendida como um melhoramento da floresta<br />

com base na conservação da natureza.<br />

De acordo com a lei da Mata Atlântica (n.º 11428/2006), uma saída<br />

para o corte e comercialização da juçara é plantar e registrar o número de<br />

– 410 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

mudas plantadas. Mas, mesmo que a Cooperafloresta tenha atualmente toda<br />

a estrutura necessária para tal, ainda surgem dificuldades de se fazer o<br />

registro do plantio, vinculados na maioria das vezes aos custos desse processo.<br />

Normalmente os valores de licenciamento na maioria dos sistemas produtivos<br />

que envolvem algum manejo ou uso florestal que necessita de inventários<br />

remetem a altos custos.<br />

Uma revisão sobre esses custos elaborada por Steenbock (2010)<br />

aponta que projetos de inventários fitossociológicos e georreferenciamento<br />

protocolados junto ao órgão ambiental e com a devida Anotação de<br />

Responsabilidade Técnica (ART) podem custar entre R$ 4.000,00 a R$<br />

12.000,00, por projeto. Em outras palavras, não é preciso muito para<br />

perceber que, com esses valores e a condição econômica da agricultura<br />

familiar no país, fica quase impossível regulamentar um SAF. Isto porque, em<br />

alguns casos, não há um retorno financeiro desse sistema e quando há, ele é<br />

inferior aos valores especificados acima. Com isso, torna-se inviável a<br />

contratação dos técnicos para tal projeto.<br />

Oxalá que essa discussão possa trazer luz e contribuir para<br />

regulamentação da palmeira Euterpe edulis evitando qualquer punição ou<br />

cobrança de valores exorbitantes que prejudicam o pequeno agricultor<br />

familiar da Cooperafloresta. Afinal, o manejo dentro de um conceito que<br />

copia a dinâmica da floresta e baseado em um sistema de plantio que<br />

considera não só a mão do homem, mas também todo auxílio que a fauna<br />

local oferece, e que contribui com serviços ambientais para nossa sociedade,<br />

precisa ter a devida atenção dos órgãos ambientais, bem como o respectivo<br />

respaldo na lei.<br />

As vozes da floresta e a legislação ambiental<br />

A visão da Cooperafloresta é holística, e vai muito mais além do que<br />

apenas recuperar áreas degradadas ou mitigar impactos ambientais. É uma<br />

visão que tem por princípio proteger o meio ambiente e cuidar de seus<br />

associados, dando-lhes a oportunidade de uma renda digna, emergindo uma<br />

nova perspectiva da relação com a floresta. O saber dos agrofloresteiros<br />

contribui para a construção de um novo paradigma produtivo ao mostrar a<br />

possibilidade de produzir com a natureza e não contra ela, pois os sistemas<br />

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Vozes da permanência: a conservação ambiental alcançada com o sistema da agrofloresta<br />

agroflorestais praticados não visam simplesmente contribuir para uma<br />

produção mais sustentável, dentro dos conceitos do desenvolvimento limpo,<br />

ou para ocupar um mercado de produtos “verdes” como o que é promovido<br />

na produção orgânica.<br />

Essas práticas estimulam a recuperação dos saberes tradicionais e<br />

remetem a um passado no qual o humano era dono do seu saber, um tempo<br />

em que seu saber marcava um lugar no mundo e um sentido da existência.<br />

Assim, surge uma nova consciência e um novo espírito de organização<br />

coletiva, pois convoca a um diálogo de saberes e intercâmbio de experiências;<br />

a uma hibridação de ciências e técnicas, para potencializar as capacidades<br />

dos agricultores; a uma interdisciplinaridade, para articular os conhecimentos<br />

ecológicos e antropológicos, econômicos e tecnológicos, que confluem na<br />

dinâmica dos agroecossistemas (LEFF, 2006).<br />

A legislação permite que o sistema agroflorestal (SAF) seja adotado<br />

inclusive para a recuperação de Áreas de Preservação Permanente, desde que<br />

não comprometam sua função ambiental. Mas, a definição de SAF de acordo<br />

com o conceito visto na lei não se encaixa bem com o Sistema Agroflorestal<br />

Agrofloresta, que é um sistema dinâmico de manejo de regeneração. Mesmo<br />

que se possa e deva usar o Sistema Agroflorestal Agrofloresta para recuperar<br />

uma APP, não existe liberdade na legislação para o manejo dentro da APP.<br />

Possivelmente porque a lei muitas vezes foi pensada com base num<br />

exemplo de agricultura que destrói e mata o que vier pela frente. Afinal, a<br />

referência para a lei ambiental é a agricultura convencional que interfere no<br />

meio destruindo, não criando. Portanto, é preciso que os órgãos ambientais,<br />

os fiscais etc. tenham contato com o Sistema Agroflorestal Agrofloresta para,<br />

quem sabe, compreender que essa é uma agricultura de dinâmica e não<br />

como o que estão habituados a ver na agricultura convencional.<br />

Todavia, na entrevista com Pedro Oliveira de Souza, ele relata essa<br />

questão e fala da importância de se conhecer, mais a fundo, como os Sistemas<br />

Agroflorestal de Agrofloresta realmente contribuem com a conservação da<br />

natureza. “Eu gostaria de uma interpretação diferente do nosso tipo de<br />

agricultura, que eles viessem ver e compreender. Porque eles nunca vão<br />

poder compreender uma coisa que eles não conhecem.”<br />

– 412 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

É importante divulgar os SAF para as pessoas, mas mais importante<br />

que isso é que essas informações devem chegar até o ouvido do poder público,<br />

como disse o Pedro: “Muito bem, que as pessoas saibam disso é bom. E as<br />

autoridades quem mandam nas leis? A gente vai contribuir com o quê para<br />

que eles reinterpretem”. Ele ainda afirma que as leis foram desenvolvidas<br />

em outro contexto e, principalmente, que é preciso pensar em novas leis que<br />

promovam os Sistemas Agroflorestais Agrofloresta como políticas públicas.<br />

(...) essas leis ambientais foram feitas antes de existir a agrofloresta. A gente<br />

só queria tocar fogo e aí quando veio essa idéia de agrofloresta que a gente<br />

tá praticando aqui, essas leis atrapalham. Então agora a gente precisa de<br />

lei especifica para quem respeita. (Pedro, presidente da Cooperafloresta no<br />

período em que a pesquisa foi realizada)<br />

Embora a legislação ambiental tenha sido criada para punir práticas de<br />

destruição da natureza, a Lei da Mata Atlântica surgiu como ferramenta de<br />

conservação que possibilita a implantação das agroflorestas, ou seja, de<br />

maneira geral, existem boas oportunidades para a agrofloresta nessa lei que<br />

deveriam ser aproveitadas, entretanto, alguns decretos que regulamentam a<br />

Lei da Mata Atlântica, como o n.º 6660/2008 torna a implantação complicada<br />

e muitas vezes, aliado a esses decretos existem formas incoerentes de<br />

trabalho dos órgãos ambientais que dificultam o surgimento desse sistema de<br />

agricultura ecológica.<br />

Nesse sentido, a lógica da legislação vigente causa distorções severas.<br />

Um exemplo claro disso se dá ao analisar o caso do pinheiro-do-paraná<br />

(Araucaria angustifolia). A legislação acaba por inibir seu crescimento, no<br />

sentido que se um pinheiro crescer no pasto não pode cortar, logo, todo<br />

agricultor arranca aquele que nasce, assim não terá problemas com a lei. Ele<br />

poderia deixar uma Araucária crescer, mas não deixa.<br />

Se, por um lado, é preciso de legislação específica para compreender<br />

a importância dos Sistemas Agroflorestais Agrofloresta, por outro, talvez,<br />

fosse necessário que a legislação ambiental reinterpretasse a agricultura<br />

convencional. Por exemplo, o pasto surgiu onde antes foi floresta de Mata<br />

Atlântica e só porque o agricultor arrancou a floresta, a lei permite que esse<br />

agricultor tenha o direito de continuar arrancando a floresta que brota para<br />

cultivar o pasto. É nesse sentido, consciente da conservação da natureza e do<br />

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Vozes da permanência: a conservação ambiental alcançada com o sistema da agrofloresta<br />

conhecimento, que Pedro avalia os aspectos entre o manejo da Agrofloresta<br />

e a agricultura convencional, quando afirma: “A lei não deixa você derrubar<br />

uma árvore que passou de 10 metros, mas quando você ara a terra, olha o<br />

tanto de semente e de arvorezinha que você abortou”.<br />

Se o agricultor deixar a terra se recuperar, permitindo o desenvolvimento<br />

de uma capoeira grossa para criar resistência a erosão, a lei em um<br />

determinado momento proíbe o corte dessa área, então o agricultor é obrigado<br />

a derrubar antes, porque não pode fazer o manejo quando a capoeira já<br />

está estabelecida. Essa dificuldade encontra-se na lei da Mata Atlântica<br />

(11428/2006), que determina quais os tipos de manejo são permitidos nos<br />

diferentes estágios de regeneração.<br />

Em qualquer solo que ficar abandonado, sem manejo, ocorrerá ali o<br />

processo de regeneração da vegetação nativa por meio da sucessão<br />

secundária, isto desde que se haja propágulos (sementes etc.) que o possam<br />

colonizar e na ausência de uma severa poluição química. A agricultura da<br />

revolução verde mantém por meio de intenso manejo, inclusive com uso de<br />

químicos, a regeneração natural “na estaca zero”, enquanto o sistema<br />

agroflorestal possibilita e mesmo incentiva tal regeneração (capítulo 3). No<br />

entanto, segundo a legislação atual, enquanto um agricultor convencional<br />

tem respaldo para realizar sua “guerra química” contra a regeneração<br />

natural, o agrofloresteiro que estiver no exercício das atividades necessárias<br />

no manejo da Agrofloresta, pode ser enquadrado em crime ambiental como,<br />

por exemplo, o corte, a supressão e exploração da vegetação secundária em<br />

estágio médio de regeneração pelo Decreto n.º 6.660/08, que regulamente<br />

a Lei n.º 11.428 de 2006.<br />

Nesse sentido, necessitamos de políticas públicas de novas legislações<br />

adequadas à realidade de que os Sistemas Agroflorestais Agrofloresta têm o<br />

potencial para contribuir efetivamente com a superação da problemática<br />

ambiental proveniente da agricultura convencional atual. Entre os fatores que<br />

burocratizam a prática dos Sistemas Agroflorestais Agrofloresta, é bom<br />

lembrar das dificuldades do Sistema de Manutenção, Recuperação e Proteção<br />

da ARL (SISLEG) e suas implicações para o pequeno produtor familiar quanto<br />

ao crédito bancário, ou subsídios do governo.<br />

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<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Como já mencionado, a legislação ambiental permite o uso de SAF em<br />

APP nas pequenas propriedades familiares, ou de povos e comunidades<br />

tradicionais, desde que não prejudique a função ambiental que consta no Art.<br />

9 da instrução normativa MMA n.º 5, de 2009 (CAMPANILI et al., 2010).<br />

Os associados da Cooperafloresta procuram fazer, em todos os lugares das<br />

propriedades, mais do que as funções da APP.<br />

No que diz respeito aos aspectos da adequação ambiental das pequenas<br />

propriedades agroflorestais, o Sr. Ditão afirma que praticar a agrofloresta é<br />

respeitar a natureza e dela tirar o sustento, e ele ainda esclarece nesta fala o<br />

que é conservação, enquanto indaga quem faz a lei:<br />

(...) voltando a história minha e do meu pai, que eu sou filho mais velho.<br />

Meu pai falou: não corta esse palmito aqui que vai dar muito palmito nessa<br />

floresta aí; se você cortar, aí não vai ter. Agora, eu faço uma pergunta pro<br />

próprio escritor das leis do nosso país. Se o pai do Ditão, o Ditão com<br />

os irmãos dele, sobrinho, se eles com tudo que existe, com os bichinhos<br />

papam, não só aqui, mas em outras áreas estão cheio de palmito. A gente<br />

tá sendo um conservador dos próprios plantador que o Nelson fala que Deus<br />

planta. Se nós mata os jacu, acaba com os sabiá, acaba com os tucanos, se<br />

você anda por essas capoeiras nossa aqui, tem palmito em todo lugar, não<br />

é só aqui. Com muita dificuldade, vai nascer palmito de lá, mas você chega<br />

perto de um pé de árvore, tá assim de palmito Jussara. Porque alguém tá<br />

pousado lá em cima, faz coco e ela nasce. Agora, vai a família do Ditão mata<br />

os bichinhos que faz isso. (Ditão, agrofloresteiro).<br />

A diversidade da produção e o respeito ao meio ambiente levando em<br />

conta a conservação dos ecossistemas são os pilares estruturais da<br />

sustentabilidade econômica dos agrofloresteiros. De acordo com Leff (2002),<br />

o tempo está comprovando que a crise ambiental e da biodiversidade no<br />

planeta é, efetivamente, uma crise civilizatória. Nesse contexto, podemos<br />

afirmar que o movimento das agroflorestas se insere em uma grande e urgente<br />

transformação. Essa grande transformação deve ser entendida pela legislação<br />

ambiental brasileira.<br />

Tendo em consideração ainda Leff (2002), que afirma que o SAF é<br />

terra, instrumento e alma da produção, no qual se plantam novas sementes<br />

do saber e do conhecimento, em que enraíza o saber no ser e na terra; os<br />

sistemas agroflorestais se assentam nas particulares condições locais e na<br />

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Vozes da permanência: a conservação ambiental alcançada com o sistema da agrofloresta<br />

singularidade de suas práticas culturais. O saber popular que está sendo<br />

resgatado, e ao mesmo tempo construído, pelos agrofloresteiros leva em<br />

conta princípios educacionais que estão relacionados ao caráter políticoideológico,<br />

cuja dimensão é essencial na construção do conhecimento da<br />

prática dos sistemas agroflorestais.<br />

Um caminho possível para a regulamentação das práticas do Sistema<br />

Agroflorestal de Agrofloresta será a criação e implementação de legislações<br />

em que a “fiscalização” da adequação ambiental seja realizada na forma de<br />

certificação participativa. Assim, o Sistema Participativo de Garantia (SPG),<br />

como o utilizado pela Rede Ecovida, pode ser o modelo para o surgimento de<br />

alternativas de legislação ambiental; um dos pontos-chave do SPG é a<br />

obrigatoriedade de certificação orgânica, que poderia ser estendida para uma<br />

certificação agroecológica promotora de florestas.<br />

Conclusões<br />

O Sistema Agroflorestal de Agrofloresta tem se mostrado benéfico para<br />

o meio ambiente, além de socialmente justo e economicamente viável. Isto<br />

aponta para a confirmação da hipótese de que a permanência de populações<br />

humanas com práticas agroecológicas adequadas é viável e talvez fundamental<br />

para a conservação ambiental.<br />

Deve-se buscar a criação de legislações e políticas públicas voltadas<br />

tanto para a fixação, valorização, fortalecimento e melhoria da qualidade de<br />

vida das famílias de agrofloresteiros quanto para a expansão dessas práticas.<br />

Um caminho possível de adequação da legislação para esta realidade é a<br />

criação e implantação de um Sistema Participativo de Garantia (SPG)<br />

adequado para o Sistema Agroflorestal de Agrofloresta.<br />

Diante do quadro da falta de avaliações sistemáticas sobre a escolha<br />

das estratégias conservacionistas mais eficientes, considera-se equivocada a<br />

visão estritamente preservacionista geralmente posta em prática pelos órgãos<br />

ambientais. A hipótese da permanência deve ser testada nas áreas legalmente<br />

protegidas e, caso haja a confirmação de que há situações em que o manejo<br />

na forma de Sistema Agroflorestal de Agrofloresta é superior ou igualmente<br />

capacitado em atender aos objetivos da conservação da diversidade biológica,<br />

em comparação ao “não manejo”, esta deve ser prioritária como estratégia de<br />

conservação ambiental, pois é socialmente mais justa.<br />

– 416 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

Referências<br />

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– 419 –


<strong>AGROFLORESTA</strong>, <strong>ECOLOGIA</strong> E <strong>SOCIEDADE</strong><br />

SOBRE OS Autores<br />

Almir Sandro Rodrigues. Filósofo e Engenheiro Florestal. Mestre em Sociologia pela<br />

UFPR. Doutorando em Sociologia – UFPR. Professor Adjunto da Faculdade Padre<br />

João Bagozzi – Curitiba/PR. Contato: filorodrigues@yahoo.com.br<br />

Angela Duarte Damasceno Ferreira. Socióloga. Doutora em Sociologia pela Université<br />

de Paris III (Sorbonne-Nouvelle), França, com estágio de pós-doutorado na Université<br />

du Québec, Canadá e no LADYSS/Université de Paris 10. Professora Sênior da<br />

Universidade Federal do Paraná (UFPR) nos Programas de Pós-Graduação em Meio<br />

Ambiente e Desenvolvimento (MADE) e de Sociologia. Contato: angeladuarteferreira@<br />

gmail.com<br />

Carlos Armênio Khatounian. Engenheiro Agrônomo. PhD em Sustainable Agriculture<br />

pela Iowa State University for Science and Technology. Professor Doutor do<br />

Departamento de Produção Vegetal da Escola Superior de Agricultura “Luiz de<br />

Queiroz”, Universidade de São Paulo. Contato: armenio.esalq@usp.br<br />

Carlos Eduardo Seoane. Biólogo. Doutor em Biologia Vegetal pela Unicamp.<br />

Pesquisador da Embrapa Florestas. Contato: eduardo.seoane@embrapa.br<br />

Elisabete A. de Nadai Fernandes. Engenheira Agrônoma. Doutora em Agronomia<br />

pela ESALQ/USP. Professora associada da Universidade de São Paulo. Contato: lis@<br />

cena.usp.br<br />

Fabiane Machado Vezzani. Engenheira Agronoma. Doutora em Ciencia do Solo.<br />

Professora Adjunta do Departamento de Solos e Engenharia Agrícola da Universidade<br />

Federal do Paraná. Contato: vezzani@ufpr.br<br />

Felipe Almeida Biguzzi. Agrônomo. Mestre em Energia Nuclear na Agricultura<br />

(ESALQ-USP). Doutorando em Ciências pelo CENA/USP. Contato: felipeabiguzzi@<br />

yahoo.com.br<br />

Guilherme Henrique Machado Faganello. Engenheiro Florestal (ESALQ-USP).<br />

Contato: guilherme.faganello@hotmail.com<br />

José Edmilson de Souza-Lima. Sociólogo. Pós-Doutor em Meio Ambiente e<br />

Desenvolvimento (UFPR). Pesquisador/Docente do Mestrado em Direito<br />

(UNICURITIBA). Contato: jose.edmilson@pq.cnpq.br<br />

Julian Perez-Cassarino. Engenheiro Florestal. Doutor em Meio Ambiente e<br />

Desenvolvimento pela UFPR. Professor Adjunto da Universidade Federal da Fronteira<br />

Sul (UFFS) – Campus Laranjeiras do Sul/PR. Contato: julian.cassarino@uffs.edu.br<br />

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Vozes da permanência: a conservação ambiental alcançada com o sistema da agrofloresta<br />

Letícia da Costa e Silva. Administradora. Mestre em Ciência, Gestão e Tecnologia da<br />

Informação pela UFPR. Pesquisadora e integrante do Núcleo de Ensino, Pesquisa e<br />

Extensão (NEPEA) da UFPR. Contato: leticia.csilva01@gmail.com<br />

Luís Cláudio Maranhão Froufe. Engenheiro Florestal. Doutor em Produção Vegetal<br />

pela UENF, Pesquisador em Sistemas Integrados de Produção na Embrapa Florestas.<br />

Contato: luis.froufe@embrapa.br<br />

Martin Ewert. Gestor Ambiental. Mestrando do Agroecossistemas pela UFSC.<br />

Contato: nitram.ewert@gmail.com<br />

Patrikk John Martins. Agrônomo. Mestre em Produção Vegetal pela UNICENTRO.<br />

Professor Faculdades Campo Real em Guarapuava – PR. Extensionista pela Fundação<br />

Rureco, Guarapuava – PR. Técinico em recuperação de áreas degradadas pela MATER<br />

NATURA, Curitiba – PR. Contato: patrikk_martins@yahoo.com.br<br />

Pedro Oliveira de Souza. Agricultor e vice-presidente da Cooperafloresta.<br />

Priscila Cazarin Braga. Bacharel em Turismo pela UFPR. Mestre em Meio Ambiente<br />

e Desenvolvimento pela UFPR. Autônoma. Contato: pri13luas@yahoo.com.br<br />

Rafaelle Mendes. Fotojornalista. Contato: rafaellem@gmail.com<br />

Regiane Fonini. Nutricionista. Mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela<br />

UFPR. Pesquisadora do CTECSAN Josué de Castro/UFPR. Contato: regianefonini@<br />

gmail.com<br />

Rodrigo Ozelame da Silva. Gestor Ambiental. Especialista em Educação Meio<br />

Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR. Pesquisador da Associação dos<br />

Agricultores Agroflorestais de Barra do Turvo e Adrianópolis - Cooperafloresta.<br />

Contato: rodrigoozelame@gmail.com<br />

Rômulo Macari da Silva. Licenciado em Filosofia pela UFPR. Mestre em Meio<br />

Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR. Professor da Rede Estadual de Ensino<br />

Fundamental – PR. Contato: penaverde@yahoo.com.br<br />

Sandra Mara Maciel-Lima. Economista. Doutora em Sociologia. Universidade Federal<br />

do Paraná. Contato: ari.san.dra@hotmail.com<br />

Soraya Rédua. Tecnóloga em Fotografia pela UTP e Bacharel em Ciências Sociais<br />

pela UFRJ. Autônoma. Contato: sorayaredua@gmail.com<br />

Walter Steenbock. Eng. Agrônomo. Doutor em Recursos Genéticos Vegetais, analista<br />

ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (<strong>ICMBio</strong>)/<br />

Floresta Nacional do Açungui. Contato: walter.steenbock@icmbio.gov.br<br />

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– /// –<br />

Este <strong>livro</strong> foi composto em NewsGoth BT e<br />

impresso em papel Reciclato 75g/m 2 .<br />

Capa em papel Reciclato 240g/m 2 .<br />

Tiragem: 1.000 exemplares.<br />

– /// –


R E A L I Z A Ç Ã O<br />

A P O I O T É C N I C O<br />

FLONA Açungui<br />

P AT R O C Í N I O

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