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XII CONGRESSO NACIONAL<br />

DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA<br />

Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Em Homenagem a Othon Moacyr Garcia<br />

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO<br />

(de 25 a 29 de agosto de 2008)<br />

Cadernos do CNLF<br />

Vol. XII, N° 15<br />

Rio de Janeiro<br />

<strong>CiFEFiL</strong><br />

2009


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO<br />

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES<br />

FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES<br />

DEPARTAMENTO DE LETRAS<br />

Reitor<br />

Ricardo Vieiralves de Castro<br />

Vice-Reitora<br />

Maria Christina Paixão Maioli<br />

Sub-Reitora de Graduação<br />

Lená Medeiros de Menezes<br />

Sub-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa<br />

Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron<br />

Sub-Reitora de Extensão e Cultura<br />

Regina Lúcia Monteiro Henriques<br />

Diretora do Centro de Educação e Humanidades<br />

Glauber Almeida de Lemos<br />

Diretor da Faculdade de Formação de Professores<br />

Maria Tereza Goudard Tavares<br />

Vice-Diretor da Faculdade de Formação de Professores<br />

Catia Antonia da Silva<br />

Chefe do Departamento de Letras<br />

Márcia Regina de Faria da Silva<br />

Sub-Chefe do Departamento de Letras<br />

Leonardo Pinto Mendes<br />

Coordenador de Publicações do Departamento de Letras<br />

José Pereira da Silva<br />

2<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Rua São Francisco Xavier, 512 / 97 – Mangueira – 20943-000 – Rio de Janeiro – RJ<br />

eventos@filologia.org.br – (21) 2569-0276 – www.filologia.org.br<br />

DIRETOR-PRESIDENTE<br />

VICE-DIRETORA<br />

PRIMEIRA SECRETÁRIA<br />

SEGUNDO SECRETÁRIO<br />

DIRETOR CULTURAL<br />

VICE-DIRETORA CULTURAL<br />

José Pereira da Silva<br />

Cristina Alves de Brito<br />

Délia Cambeiro Praça<br />

Sérgio Arruda de Moura<br />

José Mario Botelho<br />

Antônio Elias Lima Freitas<br />

DIRETORA DE RELAÇÕES PÚBLICAS<br />

Valdênia Teixeira de Oliveira Pinto<br />

VICE-DIRETORA DE RELAÇÕES PÚBLICAS<br />

Maria Lúcia Mexias-Simon<br />

DIRETORA FINANCEIRA<br />

VICE-DIRETORA FINANCEIRA<br />

DIRETOR DE PUBLICAÇÕES<br />

VICE-DIRETOR DE PUBLICAÇÕES<br />

Ilma Nogueira Motta<br />

Carmem Lúcia Pereira Praxedes<br />

Amós Coêlho da Silva<br />

Alfredo Maceira Rodríguez<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 3


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

XII CONGRESSO NACIONAL<br />

DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA<br />

de 25 a 29 de agosto de 2008<br />

COORDENAÇÃO GERAL<br />

COMISSÃO ORGANIZADORA E EXECUTIVA<br />

José Pereira da Silva<br />

Cristina Alves de Brito<br />

Amós Coêlho da Silva<br />

Ilma Nogueira Motta<br />

Maria Lúcia Mexias Simon<br />

Antônio Elias Lima Freitas<br />

COORDENAÇÃO DA COMISSÃO DE APOIO<br />

José Mario Botelho<br />

Valdênia Teixeira de Oliveira Pinto<br />

Silvia Avelar Silva<br />

COMISSÃO DE APOIO ESTRATÉGICO<br />

Laboratório de Idiomas do Instituto de Letras (LIDIL)<br />

SECRETARIA GERAL<br />

Silvia Avelar Silva<br />

4<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

SUMÁRIO<br />

0- Apresentação – José Pereira da Silva ......................................07<br />

1. A transmutação de linguagens no movimento criador do carnavalesco<br />

paulo barros – Juliana dos Santos Barbosa ....................09<br />

2. “Morte do Eu, Morte do Outro” notas sobre a representação da<br />

morte na poesia de João Cabral de Melo Neto” – Waltencir Alves<br />

de Oliveira ................................................................................19<br />

3. O fino da bossa-nova e seus diversos movimentos uma nova i-<br />

dentidade cultural no cenário brasileiro – Manuela Chagas Manhães<br />

........................................................................................26<br />

4. O mistério da árvore e algumas imagens recorrentes na obra de<br />

Brandão – Eloísa Porto Corrêa ...............................................37<br />

5. Os bares da vida: espaços de sociabilidade e de construção poética<br />

– Leila Medeiros de Menezes ..............................................50<br />

6. Os sertões: arte e história – Victoria Saramago ......................60<br />

7. Persuadir em nome de Deus: a sermonística de Antônio Vieira –<br />

Aline Pereira Gonçalves ...........................................................68<br />

8. (Re)escrevendo a memória: a poesia das madres de Plaza de Mayo<br />

– Maria Fernanda Garbero de Aragão Ponzio ...................80<br />

9. Semiologia do amor: notas para uma leitura de “Fragmentos do<br />

Discurso Amoroso”, de Roland Barthes – Rodrigo da Costa Araújo<br />

............................................................................................94<br />

10. Urdidura liquefeita: um olhar sobre o Vendedor de Passados –<br />

Kellen Dias de Barros ............................................................107<br />

11. Victor Cunha: testemunha de uma Três Corações imaginada -<br />

Simone Pereira de Souza Ferreira e Geysa Silva ..................121<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 5


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

6<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

APRESENTAÇÃO<br />

Temos o prazer de apresentar-lhe, neste caderno número 15,<br />

onze textos resultantes dos trabalhos apresentados no XII Congresso<br />

Nacional de Linguística e Filologia, nos dias 27 e 29 de agosto de<br />

2008, relacionados ao tema “Análise e Crítica Literária”, dos seguintes<br />

autores, que abaixo vão extremamente resumidos: Aline Pereira<br />

Gonçalves (p. 68-79), Eloísa Porto Corrêa (p. 37-49), Geysa Silva (p.<br />

121-128), Juliana dos Santos Barbosa (p. 09-18), Kellen Dias de<br />

Barros (p. 107-120), Leila Medeiros de Menezes (p. 50-59), Manuela<br />

Chagas Manhães (p. 26-36), Maria Fernanda Garbero de Aragão<br />

Ponzio (p. 80-93), Rodrigo da Costa Araújo (p. 94-106), Simone Pereira<br />

de Souza Ferreira (p. 121-128), Victoria Saramago (p. 60-67) e<br />

Waltencir Alves de Oliveira (p. 19-25).<br />

O primeiro trabalho, com base nos pressupostos teóricos da<br />

Crítica Genética, é analisada a transmutação de linguagens do movimento<br />

criador de Paulo Barros para o carnaval de 2007, fazendo<br />

desfilar pela passarela do samba a representação dos objetos do enredo<br />

por analogia, contiguidade e/ou convenção.<br />

O segundo propõe a revisão do conceito de identidade e de lirismo<br />

na obra João Cabral de Melo Neto a partir de pressupostos teóricos<br />

e textos críticos que consolidaram seu caráter impessoal e antilírico.<br />

O terceiro demonstra que a linguagem metafórica da bossa<br />

nova representou mais do que um meio de expressão, concluindo que<br />

"o fino da bossa nova" se tornou um marco para a formação de uma<br />

identidade cultural coletiva brasileira.<br />

O quarto trabalho apresenta o projeto prioritariamente estético<br />

da obra de Raul Brandão, que acaba dando relevo a figuras humildes,<br />

desprovidas de heroísmos, vivendo em espaços precários, problematizando-as,<br />

questionando suas relações interpessoais e investigando a<br />

condição humana.<br />

O quinto apresenta o percurso e a teia que se vai tecendo pelas<br />

esquinas, nos bares e botequins da cidade do Rio de Janeiro, caracterizados<br />

como espaços de sociabilidade, de musicalidade e de<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 7


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

construção poética, tornando-se pontos de encontro, centros de decisões,<br />

locais democráticos, onde muito da MPB foi e é gestada.<br />

O sexto trabalho discute as vantagens e desvantagens de cada<br />

uma das possibilidades de classificar Os Sertões, levando em conta<br />

tanto a opinião de relevantes comentadores quanto a própria conceituação<br />

de história na concepção de Euclides da Cunha.<br />

O sétimo analisa a produção sermonística de Vieira, mantendo<br />

em foco as questões concernentes à abordagem anacrônica da crítica<br />

literária oitocentista, que limita o bom aproveitamento de estudos<br />

acerca da produção seiscentista de literatura brasileira.<br />

O oitavo traça uma análise comparativa entre as fases que<br />

compõem a história literária escrita pelas Madres de Plaza de Mayo,<br />

para compreender o processo de reconfiguração da mãe marcada pela<br />

perda à Madre consciente, que escreve e expõe suas memórias.<br />

O nono reflete sobre o processo intertextual do discurso amoroso<br />

a partir do <strong>livro</strong> “Fragmentos de um discurso amoroso”, de Roland<br />

Barthes. A leitura semiológica irá percorrer os caminhos do<br />

“prazer”, sempre na fronteira do interdito.<br />

O penúltimo analisa O Vendedor de Passados, brilhante romance<br />

de José Eduardo Agualusa, como uma obra que se liquefaz,<br />

numa tendência pós-moderna de instabilidade e mudança, como metaforizou<br />

Zygmunt Bauman.<br />

Por fim, analisa-se a obra de Victor Cunha como a memória e<br />

o olhar de um narrador que guarda a história e testemunha no amanhã<br />

o passado que abre espaço para as recordações e saudades, mostrando<br />

como ele fez de sua vida uma ligação com o passado, recordando-nos<br />

românticos como Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias.<br />

Todos esses textos, estão disponibilizados na página virtual<br />

http://www.filologia.org.br/xiicnlf/15/index.htm para serem utilizados<br />

e divulgados livremente, pedindo-se apenas que não deixem de<br />

citar o autor e o lugar de onde for extraído qualquer fragmento ou informação.<br />

Rio de Janeiro, agosto de 2009.<br />

José Pereira da Silva<br />

8<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

A TRANSMUTAÇÃO DE LINGUAGENS NO MOVIMENTO<br />

CRIADOR DO CARNAVALESCO PAULO BARROS<br />

Juliana dos Santos Barbosa (UEL)<br />

juliana.barbosa@londrina.pr.gov.br<br />

A produção de um desfile carnavalesco é um contínuo movimento<br />

tradutório: um texto vira imagem, que vira música, que se<br />

transforma em coreografia. Palavras, sons, imagens e gestos misturam-se<br />

em um intrincado processo intersemiótico para representar o<br />

tema escolhido pela escola de samba.<br />

Com base nos pressupostos teóricos da Crítica Genética, analisamos<br />

neste trabalho a transmutação de linguagens no movimento<br />

criador de Paulo Barros para o carnaval de 2007, ano em que o carnavalesco<br />

coordenou a produção do desfile da Unidos do Viradouro -<br />

escola de samba do grupo especial do Rio de Janeiro.<br />

Selecionamos alguns elementos do referido desfile para identificar<br />

a maneira com que Barros transmuta os signos, fazendo-os<br />

desfilar pela passarela do samba, representando os objetos do enredo<br />

por analogia, contigüidade e/ou convenção.<br />

A Crítica Genética é uma área de estudos que tem como proposta<br />

observar uma obra de arte a partir de sua construção, visualizando<br />

o ato criador sob uma perspectiva de processo. As pesquisas<br />

buscam compreender a gênese das obras de arte, penetrando nos bastidores<br />

da criação e identificando toda arte guardada nos rascunhos<br />

as obras. Isso porque, em geral, toda arte é uma série de desdobramentos<br />

do primeiro traço e, “quando se está diante de um produto<br />

considerado acabado, não se tem a exata dimensão do que significou<br />

produzi-lo” (Panichi; Contani, 2003, p. 147).<br />

Os rascunhos e as primeiras versões de alguns figurinos utilizados<br />

por Paulo Barros na produção do carnaval 2007 revelam as<br />

metamorfoses ocorridas no trajeto de criação, num procedimento de<br />

levantamento de opções, seleções e alterações efetuadas em nome do<br />

projeto ideal do artista.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 9


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

Na elaboração do figurino da ala do Detetive identificamos,<br />

por exemplo, que a fantasia passou por, no mínimo, três fases, ilustradas<br />

a seguir e complementadas por uma imagem do desfile.<br />

Primeira versão do figurino da ala do Detetive da Viradouro – Carnaval 2007<br />

(material fornecido pela assessoria do carnavalesco)<br />

Em sua primeira versão, o figurino contava com um signo que<br />

remete à profissão de detetive - a lente de aumento, utilizada normalmente<br />

para as investigações:<br />

Caricatura de um detetive<br />

(Fonte: http://www2c.ac-lille.fr/jmoulin-standre/sherlock-holmes.htm)<br />

10<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

O acesso ao material utilizado pelo figurinista para a criação<br />

da fantasia demonstra que a mesma foi inspirada na imagem do personagem<br />

da literatura britânica, o investigador Sherlock Holmes:<br />

Material utilizado pelo figurinista no processo de pesquisa<br />

para a criação da fantasia da ala do Detetive (acervo particular)<br />

Na segunda versão do figurino, já observamos algumas modificações.<br />

Não há mais a lente de aumento, e as calças estão mais curtas.<br />

A versão carnavalesca de Sherlock Holmes ganha brilho, cores e<br />

plumas, num movimento de transmutação de formas, que adapta o<br />

figurino à linguagem das Escolas de Samba:<br />

Segunda versão do figurino da ala do Detetive da Viradouro<br />

– Carnaval 2007 (material fornecido pela assessoria do carnavalesco)<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 11


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

O evento de lançamento dos protótipos - modelos das fantasias<br />

que serão reproduzidas em série no ateliê - revelou outras modificações<br />

que indicam a tendência à simplificação de formas. Além da<br />

retirada da lente, no trajeto da primeira para a segunda versão, verificamos<br />

no protótipo que não há mais plumas nem detalhes nos ombros.<br />

Figurino da ala do Detetive na festa de lançamento de protótipos da Viradouro<br />

– Carnaval 2007 (www.unidosdoviradouro.com.br)<br />

A cor da fantasia também foi alterada e, conversando com os<br />

assistentes de Paulo Barros, eles contam que a mudança foi sugerida<br />

pelo carnavalesco por duas razões: primeiramente, pela análise da<br />

chamada “palheta de cores” que indica as cores majoritárias para a<br />

visão panorâmica do desfile, e depois, pelo fato de que, em desfile<br />

anterior, o carnavalesco já havia feito algo semelhante à fantasia do<br />

detetive, justamente na cor amarela.<br />

Na avenida, os “Sherlock Holmes” associavam a linguagem<br />

carnavalesca (brilho) a características do personagem, como o típico<br />

12<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

chapéu e o detalhe xadrez na roupa - comum às indumentárias de inverno<br />

utilizadas pelo investigador britânico:<br />

Componente da Ala do Detetive no desfile da Viradouro – Carnaval 2007<br />

(acervo particular)<br />

O figurino da ala dos Dominós é outro exemplo de modificações<br />

no percurso criativo, conforme imagens que seguem. A primeira<br />

versão da fantasia estampava várias peças do jogo:<br />

Primeira versão da fantasia da ala dos Dominós da Viradouro<br />

– Carnaval 2007 (material fornecido pela assessoria do carnavalesco)<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 13


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

No percurso de construção da obra, várias possibilidades são<br />

levantadas e testadas. São feitas avaliações e seleções que provocam<br />

modificações e que, por sua vez, geram novas formas. Assim, acontece<br />

o que Salles (2004, p. 142) chama de “metamorfose”. É a dinamicidade<br />

do movimento criador, que identificamos em nossa pesquisa<br />

quando encontramos a segunda versão do figurino da ala dos Dominós.<br />

Outra proposta, agora com menor quantidade de peças do jogo,<br />

alguns elementos novos como o chapéu, além da própria indumentária,<br />

deu ao figurino uma nova configuração:<br />

Segunda versão do figurino da ala dos Dominós da Viradouro<br />

– Carnaval 2007 (material fornecido pela assessoria do carnavalesco)<br />

Neste caso, identificamos novamente a tendência à simplificação<br />

de formas no percurso de criação de Paulo Barros. Mas a mudança<br />

acontece de forma mais significativa ainda quando verificamos<br />

o figurino apresentado no evento de lançamento dos protótipos:<br />

14<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Figurino da ala dos Dominós da Viradouro, apresentado<br />

no evento de lançamento dos protótipos (Fonte: www.unidosdoviradouro.com.br)<br />

A fantasia ficou totalmente diferente, sem qualquer indício<br />

explícito que remetesse à idéia de dominó. Somente nas fotos do desfile<br />

fica clara a proposta do carnavalesco: o dominó havia saído do<br />

figurino para virar um adereço nas mãos os monges - personagens<br />

historicamente ligados ao jogo de dominós 1 :<br />

Ala dos dominós no desfile da Viradouro– Carnaval 2007<br />

(www.unidosdoviradouro.com.br)<br />

Desta forma, o carnavalesco inseriu movimento na ala, uma<br />

vez que os componentes, por meio de coreografias, realizavam o<br />

1<br />

O nome "dominó" teria sua origem na expressão latina Domino gratias (graças a Deus). Afirma-se<br />

que os religiosos usariam a expressão latina cada vez que faziam uma boa jogada. Disponível<br />

em: http://www.jogos.antigos.nom.br/domino.asp. Acesso em 24.04.07.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 15


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

chamado “efeito dominó” com os adereços, garantindo um interessante<br />

resultado visual ao desfile:<br />

Componentes realizando o “efeito dominó” no desfile da Viradouro – Carnaval 2007<br />

(www.unidosdoviradouro.com.br)<br />

Outro figurino que nos interessou, pela diferença observada<br />

entre os rascunhos e o que foi apresentado na Avenida, foi o da ala<br />

dos dados. Na versão inicial do figurino, encontrada entre os rascunhos<br />

que nos foram oferecidos, o dado aparecia na fantasia em si, a-<br />

presentando uma forma estática:<br />

Rascunho do figurino da ala dos Dados da Viradouro – Carnaval 2007<br />

(material fornecido pela assessoria do carnavalesco)<br />

16<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

No desfile, semelhante ao que ocorreu com os dominós, o dado<br />

deixa de compor a fantasia para se tornar um adereço nas mãos do<br />

“Imperador Júlio César – a quem se atribui a expressão: “Alea jacta<br />

est” (A sorte está lançada). Numa perfeita sintonia entre imagem e<br />

som, os dados eram lançados especialmente com mais vigor quando<br />

o samba anunciava: “Vamos mergulhar nesta jogada / A sorte está<br />

lançada” [grifo nosso], num perfeito diálogo entre linguagens.<br />

Figurino da ala dos Dados no desfile da Viradouro – Carnaval 2007<br />

(acervo particular)<br />

Vista panorâmica da ala dos Dados no desfile da Viradouro – Carnaval 2007<br />

(www.unidosdoviradouro.com.br)<br />

Novamente, o carnavalesco investiu em um visual dinâmico e<br />

com alto grau de informação, que combina signos icônicos (dados) e<br />

simbólicos (Júlio César). A observação desses percursos permite-nos<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 17


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

conhecer um pouco mais sobre o projeto de Paulo Barros. Ele busca,<br />

em geral, uma comunicação rápida com o público, passando sua<br />

mensagem de forma concisa, sem, entretanto, perder neste percurso,<br />

a beleza e a criatividade.<br />

É a percepção do artista que o leva a associar elementos distintos<br />

e dar-lhes novas significações. A criação configura-se, neste<br />

sentido, como um processo de tradução ou transmutação entre o original<br />

e aquilo que se quer comunicar. Cavalcanti (1999, p. 50) afirma<br />

que:<br />

Os carnavalescos [...] retiram coisas de um mundo esquartejado,<br />

convertendo-as em algo diferente. Exaltam ironicamente objetos banais e<br />

corriqueiros, que ganham dimensões monumentais. [...] Brincam com a<br />

ambigüidade, intrigam, surpreendem.<br />

A recodificação é, portanto, inerente ao processo criador, em<br />

que signos são transmutados num movimento progressivo e contínuo,<br />

formando novas realidades e ampliando as possibilidades d significação<br />

e comunicação. Enfim, uma obra de arte não costuma revelar,<br />

em sua concepção final, o complexo caminho de seus bastidores.<br />

Sob esta perspectiva é que surgiu o interesse por estudarmos a produção<br />

de um desfile carnavalesco – um espetáculo com 80 minutos<br />

de duração e quase um ano de elaboração.<br />

REFERÊNCIAS<br />

CAVALCANTI, Maria Laura. O rito e o tempo: ensaios sobre o carnaval.<br />

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.<br />

PANICHI, Edina R. P.; CONTANI, Miguel L. Pedro Nava e a construção<br />

do texto. Londrina: Eduel; São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.<br />

SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística.<br />

São Paulo: FAPESP: Anablume, 2004.<br />

UNIDOS DO VIRADOURO. Carnaval 2007. Disponível em:<br />

http://www.unidosdoviradouro.com.br<br />

18<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

“MORTE DO EU, MORTE DO OUTRO”<br />

NOTAS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA MORTE<br />

NA POESIA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO”<br />

Waltencir Alves de Oliveira (USP, UBM e UNIFOA)<br />

A poesia de João Cabral de Melo Neto constitui uma das mais<br />

significativas produções literárias brasileiras do século XX. Uma poética<br />

perpassada por tensões insolúveis sustentadas pela reflexão a-<br />

purada sobre o modo de dizer aliada ao dizer contundente e preciso.<br />

Embora haja em sua obra uma grande diversificação temática acompanhada<br />

da exploração de múltiplos recursos, oriundos de tradições<br />

culturais diferenciadas, sua poesia tem sido vista, exclusivamente,<br />

sob o signo da impessoalidade e do antilirismo.<br />

Interessa apontar que grande parte da Fortuna Crítica do autor<br />

divide sua poética em duas vertentes: as “duas águas”. Essa segmentação,<br />

reconhecida e nomeada primeiro pelo próprio poeta, quando<br />

da publicação do volume homônimo à divisão, Duas Águas, de 1956,<br />

foi depois incorporada ao vocabulário crítico e jamais discutida em<br />

função das obras publicadas no decorrer dos anos 80 e início dos a-<br />

nos 90. Segundo o próprio poeta, esta divisão estabeleceria um corte<br />

em sua poesia entre os poemas feitos “para leitura atenta e reflexiva”,<br />

enfeixados na “primeira água”, e a “poesia para largos auditórios”,<br />

presente na “segunda água”. A divisão prontamente aceita pelos<br />

críticos foi entendida por Campos (1967, p. 88) como sendo ordenada<br />

por um critério temático-formal. Segundo ele a “primeira á-<br />

gua” seria a dos poemas metalingüísticos, em que se nota o “descascamento<br />

do objeto poemático, e a “segunda” seria a dos poemas que<br />

“põe a poesia, uma vez passada pelo crivo dessa crítica, a serviço da<br />

comunidade”. A distinção de Campos não deixou também de, ao reconhecer<br />

a divisão, sustentá-la sobre um juízo valorativo que hierarquiza<br />

todo o fazer poético cabralino modulado pela reconsideração<br />

da linguagem como sendo superior à “prestação de serviço à comunidade”,<br />

no que a terminologia resguarda de depreciativo. O que faz<br />

supor que a “segunda água” seja o espaço de uma poesia menor e rebaixada.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 19


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

O recorte de sua poesia em duas vertentes, a ausência de estudos<br />

que ressignifiquem os contornos de sua poesia a partir da leitura<br />

de seus <strong>livro</strong>s posteriores a Educação pela Pedra, de 1969, somados<br />

a aceitação de que sua poética elegeu dois eixos temáticos centrais: o<br />

social e a metalinguagem. Tudo isso tem servido para obscurecer alguns<br />

aspectos importantes de sua poesia que ficam ou considerados<br />

parcialmente ou desconsiderados por <strong>completo</strong>.<br />

Pretende-se aqui avaliar as mediações buscadas pelo poeta no<br />

tratamento de um tema específico que, mesmo que pontualmente a-<br />

bordado, necessita de uma leitura mais atenta e extensiva. Entre os<br />

temas privilegiados pelo poeta é possível incluir a reflexão sobre a<br />

morte como presença intermitente que atravessa toda sua poética.<br />

São vários os poemas, e muitas vezes <strong>livro</strong>s inteiros, que assinalam a<br />

presença da “indesejada das gentes” como tema e motivação nuclear<br />

da poesia. Para restringir aos exemplos mais explícitos, é possível citar<br />

o <strong>livro</strong> Morte e Vida Severina e Crime na Calle Relator, além da<br />

série de poemas dedicados a cemitérios pernambucanos e espanhóis,<br />

no <strong>livro</strong> Quaderna e a peça teatral Auto do Frade, poema dedicado a<br />

Frei Caneca que se limita a registrar paixão e morte do personagem<br />

histórico de Pernambuco.<br />

Importante afirmar, inicialmente, que a tematização da morte<br />

na obra parece diluir as fronteiras entre individual e coletivo, engrossando<br />

o coro dos versos de Morte e Vida Severina “iguais em tudo e<br />

na vida,/morremos de morte igual”. Isso é o que se pode observar, de<br />

forma paradigmática, na tessitura do poema “O Exorcismo”, de Crime<br />

na Calle Relator.<br />

O Exorcismo<br />

Madrid, novecentos e sessenta.<br />

Aconselham-me o Grão-Doutor.<br />

“Sei que escreve: poderei lê-lo?<br />

Senão tudo, o que acha melhor.”<br />

Na outra semana é a resposta.<br />

“Por que tanto da morte escreve?”<br />

Nunca da pessoal,<br />

mas da morte social, do Nordeste.”<br />

“Certo. Mas além do senhor,<br />

muitos nordestinos escrevem.<br />

Ouvi contar da sua região.<br />

Já li algum <strong>livro</strong> de Freyre.<br />

Seu descrever da morte é exorcismo,<br />

20<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

seu discurso assim me parece:<br />

é o pavor da morte, da sua,<br />

que o faz falar da do Nordeste.”<br />

O poema aponta que a intermitência do tema se deve a um desejo,<br />

explicitado por um “grão-doutor”, mas não absolutamente<br />

consciente do eu-poético, de exorcizar a própria morte, individual e<br />

intransferível, escamoteando-a através do registro do destino coletivo<br />

dos homens imersos em seu mesmo contexto social e histórico. O <strong>livro</strong><br />

Crime na Calle Relator traz, desde o título, uma referência a um<br />

crime localizado em uma rua sevilhana. Somos tentados, então, a supor<br />

que se fará o relato de um ou mais crimes ocorridos neste espaço<br />

demarcado. Apesar disso o que temos no <strong>livro</strong> é um conjunto de poemas<br />

narrativos, cujos temas aparentemente estão isolados e procuram<br />

recriar “casos e histórias” reais, contadas ao poeta ou vividas<br />

por ele, conforme atesta Oliveira (1994, p. 23).<br />

Escrito no Porto, embora não faça a menor referência a momentos<br />

de grande aflição, Crime na Calle Relator é publicado em 1987 aqui no<br />

Rio. É surpreendente que, em nenhum momento, transpareça qualquer<br />

coisa de um período tão difícil. O <strong>livro</strong> é uma experiência com o poema<br />

narrativo, sem usar a técnica do romanceiro. Todos os fatos narrados são<br />

reais, contados por outrem ou de que participou anos e anos atrás.<br />

A impessoalidade, tão reforçada pela crítica nas análises da<br />

poética cabralina produzidas até os anos 70, parece ceder espaço para<br />

uma poesia que continua pautada pela contenção e pelo rigor formal,<br />

mas não se furta a evidenciar a presença do sujeito poético nem<br />

de tematizar o universo prosaico dos fatos cotidianos. O próprio poema<br />

que abre o <strong>livro</strong> Crime na Calle Relator, e lhe é homônimo, a-<br />

presenta um relato aparentemente corriqueiro e banal, apesar de a-<br />

presentar um crime difícil de ser qualificado.<br />

Crime na Calle Relator<br />

Achas que matei minha avó?<br />

O doutor a noite me disse:<br />

ela não passa desta noite;<br />

melhor para ela, tranqüilize-se.<br />

À meia-noite ela acordou;<br />

não de todo, a sede somente;<br />

e pediu: Dáme pronto, hijita,<br />

una poquita de aguardiente.<br />

Eu tinha só dezesseis anos;<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 21


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

só, em casa com a irmã pequena:<br />

como poder não atender<br />

a ordem da avó de noventa?<br />

Já vi gente ressuscitar<br />

com simples gole de cahaça<br />

e arrancarse por bulerías<br />

gente da mais encorujada.<br />

E mais: se o doutor já dissera<br />

que da noite não passaria<br />

por que negar uma vontade<br />

que a um condenado se faria?<br />

Fui a esse bar do Pumarejo<br />

quase esquina de San Luís;<br />

comprei de fiado uma garrafa<br />

de aguardente (cazzala e anis)<br />

que lhe dei cuidadosamente<br />

como uma porção de farmácia,<br />

medida como uma poção,<br />

como não se mede a cachaça;<br />

que lhe dei com colher de chá<br />

como remédio de farmácia:<br />

Hijita, bebí lo bastante,<br />

Disse com ar de comungada.<br />

Logo então voltou a dormir<br />

sorrindo em si como beata,<br />

um semi-sorriso de gracias<br />

aos santos óleos da garrafa.<br />

De manhã acordou já morta,<br />

e embora fria e de madeira,<br />

tinha o riso ainda<br />

que a aguardente lhe acendera.<br />

O poema apresenta um tom narrativo evidenciado desde o<br />

primeiro verso: uma indagação que interpela o leitor. Acentuando este<br />

tom narrativo temos o prosaísmo do texto, repleto de diálogos e de<br />

marcadores conversacionais que vão reafirmando o seu caráter oral e<br />

pontuando a progressão temporal da narrativa (“À meia-noite”; “Eu<br />

tinha só dezesseis anos”; “Já vi”; “E mais”; “Logo então”; “De<br />

manhã”).<br />

22<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

O intervalo de tempo total da narrativa inscrita no poema é<br />

igual à passagem de uma noite completa até a manhã, período em<br />

que se perfaz o processo de caminhar da vida para a morte. O relato<br />

que deveria ser revestido de um caráter agônico – trata-se da última<br />

noite da avó de uma moça sozinha – assume, no entanto, um tom redentor,<br />

uma vez que é concedida à avó uma morte tranqüila e “sorridente”.<br />

A indagação inicial apresentaria o poema como a confissão de<br />

um crime. A seqüência dos fatos permite avaliar e julgar o crime especulado:<br />

uma possível eutanásia, ou, nada mais, do que a assistência<br />

aos instantes finais de agonia, em que se concede à moribunda o<br />

seu último desejo. A dubiedade do relato, garantida, até mesmo pela<br />

possível inocência da menina, é a todo tempo preservada. Até mesmo<br />

a aguardente é convertida em remédio e em extrema-unção, último<br />

ritual de um credo que garante boa-morte e salvação à agonizante.<br />

Confere-se à aguardente um duplo caráter: é remédio do corpo<br />

e lenitivo da alma, no instante de eles se desprenderem: “como<br />

remédio de farmácia”/ “disse com ar de comungada”. Ou seja, a cachaça<br />

– ao mesmo tempo água e ardente – é o foco de toda ambigüidade<br />

do poema: se ela for considerada um remédio – que acena com<br />

a possibilidade de restabelecimento, conforme apresenta a quarta estrofe<br />

– não há como negar à menina sua absolvição do crime; caso<br />

seja vista como última comunhão, temos um gesto premeditado de<br />

precipitar a morte da avó.<br />

Não se pode deixar de mencionar que neta e avó – literalmente<br />

– não falam a mesma língua, sinalizando um descompasso, acentuado<br />

pela condição delas oposta em todos os aspectos. Uma se encontra<br />

na puberdade, “tinha só dezesseis anos”, a outra estava no estágio<br />

final da vida, noventa anos. Afora isso, a relação de respeito e<br />

primazia que parece respeitada, uma vez que a menina não se sentiu<br />

apta a desacatar a ordem da avó, é subvertida, conferindo a mais nova<br />

o poder decisório de prolongar ou encurtar a vida. Isto é reforçado,<br />

ainda, pela própria ação da moça, ou médica-enfermeira que a-<br />

plica o remédio curador ou sacerdotisa que ministra a extremaunção.<br />

Em ambas as acepções fica assegurada a ela uma posição hierárquica<br />

superior à da avó, em um claro sinal de que a morte subjuga<br />

a ordem da vida e a transpõe. Importa ainda perceber que o poder da<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 23


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

moça advém de uma garrafa cujo conteúdo mágico e transformador<br />

assume as feições de poção. Villaça (1996, p. 169) aponta em relação<br />

ao poema que<br />

O ressalvante realismo de “embora fria e de madeira” (atento ao<br />

quadro materialista da morte física) é, por sua vez, ressalvado pelo “riso<br />

ainda/ que a aguardente lhe acendera” (expressão na qual a química da<br />

cachaça eleva-se ao símbolo do acender : calor e luz conservados): donde<br />

o réquiem iluminado por um intrigante sentido de triunfo.<br />

Conforme se pode observar, preserva-se em cada traço do poema<br />

um sentido fronteiriço entre morte e vida, do mesmo modo como<br />

morte e vida estão em tensão insolúvel e perene em um poema<br />

como Morte e Vida Severina, aqui também na face da morte fez-se<br />

antever a vida, conservada pela cachaça e nutrida por ela. E essa conjunção<br />

entre a frieza geométrica da utilização crítica da linguagem<br />

(“fria e de madeira”) e o oferecimento dessa mesma linguagem para<br />

a tematização do outro e da subjetividade, ainda que contida, está na<br />

base do que Alcides Villaça nomeou de limite e expansão da poesia<br />

cabralina. Para ele, há na obra do poeta um constante entrechoque<br />

entre dois pólos, corroborando, ao meu ver, com a idéia de que seria<br />

impossível a divisão de sua poesia em duas vertentes, mas sim a a-<br />

ceitação de que a tensão de sua poesia resulta, justamente, de um diálogo<br />

constante e entranhado em cada texto ou <strong>livro</strong>. Importa, ainda<br />

mencionar, que Alcides Villaça reforça essa idéia indicando que o<br />

choque constante entre morte e vida seria um dos pilares dessa<br />

“fronteira recortada” entre os movimentos antagônicos da poética<br />

cabralina.<br />

Constata-se, assim, uma problemática representação da realidade<br />

na obra de João Cabral, que, primeiro, impôs a “depuração” da<br />

linguagem, impeliu a poesia a assumir um comprometimento ético<br />

na incorporação do regional e convocou, por último, o autobiográfico,<br />

a tomada de posição do sujeito, que não cedeu a ela de forma<br />

passiva, mas a matizou através de um hábil exercício que conjugou o<br />

eu ao coletivo.<br />

Morin (1970) indica que a representação da morte no ocidente<br />

assinala uma complexa articulação entre as noções de indivíduo e de<br />

espécie, ao apontar que a aceitação, “domesticação”, da morte natural<br />

pelo indivíduo está fortemente relacionada com a sobrevivência,<br />

ou renascimento, dele na espécie preservada, garantindo uma conti-<br />

24<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

nuidade na descontinuidade. Essa conjunção me parece muito significativa<br />

para analisar uma poesia que já assinalou que “é o pavor da<br />

morte, da sua ,/ que o faz falar da do Nordeste”, indicando que há<br />

uma ponte entre a morte social, tão bem descrita em seus vários matizes<br />

em Morte e Vida Severina, e a morte do eu. Ou seja a carga negativa<br />

da própria morte não parece encontrar meios de ser atenuada<br />

pela idéia de continuação da espécie, a todo momento, perturbada<br />

pela iminência de uma “ave-bala” ou pela inclemência da fome que<br />

a tudo corrói e contamina. E se a morte intermitente do outro, do social/<br />

coletivo, é o ruído constante que impede a sobrevivência da espécie,<br />

ela é também o tema recorrente que obriga a ocultação do individual<br />

no coletivo e a impossibilidade de recortar as fronteiras que<br />

separam o eu do nós.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

CAMPOS, Haroldo: O geômetra engajado. Metalinguagem. Petrópolis:<br />

Vozes. 1967.<br />

MEYER, Marlyse. Mortes Severinas. Caminhos do imaginário no<br />

Brasil. São Paulo: EDUSP, 1992.<br />

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova<br />

Aguilar, 1994.<br />

OLIVEIRA, Marly de. Breve Introdução a uma leitura de sua obra.<br />

In: MELO NETO, João Cabral de: Obra completa. Rio de Janeiro:<br />

Nova Aguilar, 1994.<br />

VILLAÇA, Alcides. Expansão e limite na poesia de João Cabral. In:<br />

BOSI, Alfredo (org.): Leitura de poesia. São Paulo: Ática. 1996.<br />

MORIN, Edgar: L’homme et la mort. Paris: Seuil. 1970.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 25


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

O FINO DA BOSSA-NOVA<br />

E SEUS DIVERSOS MOVIMENTOS<br />

UMA NOVA IDENTIDADE CULTURAL<br />

NO CENÁRIO BRASILEIRO<br />

Manuela Chagas Manhães (FERLAGOS E UNESA)<br />

manuelachagas@zipmail.com.br<br />

INTRODUÇÃO<br />

Segundo Caldas (2005), com o fim do Estado Novo – período<br />

em que o país viveu uma experiência ruim com a política autoritária<br />

e a repressão implacável, a qual vigiava de perto a música popular –,<br />

a cultura brasileira, a partir de 1945, estaria livre da censura pelo<br />

menos até 1969, quando o AI- 5 retoma o mesmo clima de horror do<br />

DIP. É neste espaço de tempo que surge o movimento Bossa-nova,<br />

numa realidade sócio-política e econômica diferente com o advento<br />

do governo de JK (1956-1961), que tinha um projeto político para o<br />

Brasil muito claro: avançar “cinqüenta anos em cinco”. Os reflexos<br />

destas transformações tiveram forte ressonância na cultura lúdica de<br />

nosso país, particularmente, na música popular brasileira com a Bossa-nova,<br />

que mudaria de forma definitiva a trajetória da música popular<br />

brasileira.<br />

Nesse âmbito, em 1958, compositores, cantores, instrumentalistas<br />

e músicos, de modo geral, que co-participaram de uma mesma<br />

concepção no que se refere à renovação do nosso imaginário, passariam<br />

a se agrupar, dando origem a um verdadeiro movimento cultural<br />

urbano, que ficou conhecido como Bossa-nova. Como Caldas<br />

(2005) afirma, um novo ritmo de música, batidas sutis no violão, a-<br />

cordes, dissonâncias, arranjos musicais sofisticados e uma nova forma<br />

de interpretar o samba. A televisão, apesar de ser uma criança em<br />

nosso país neste período, daria um grande impulso aos meios de comunicação<br />

de massa, especialmente no meio urbano. Um movimento<br />

que inicialmente caracterizou como um movimento artístico-musical<br />

da zona sul carioca (Caldas, 2005, p. 78). É neste contexto, que certo<br />

número de artistas iriam se reunir entre outros, Vinícius de Moraes,<br />

Tom Jobim, Roberto Menescal, Nara Leão, João Gilberto, Elizete<br />

Cardoso, Ronaldo Bôscoli, Silvia Teles, Johnny Alf, Carlos Lira,<br />

26<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Baden Powell, Newton Mendonça, Edu Lobo, Dolores Duran, Chico<br />

Buarque, Marília Medalha, Gilberto Gil etc., compartilhando de uma<br />

mesma concepção cultural, social, ideológica e, principalmente, estética.<br />

Na Bossa-nova, procura-se integrar a melodia, harmonia e contraponto<br />

na realização da obra, de uma maneira a não se permitir a prevalência<br />

de qualquer deles somente pela existência do parâmetro posto em<br />

evidência (...) o cantor não mais se opõe como solista á orquestra. Ambos<br />

se integram se conciliam, sem apresentarem elementos de contraste<br />

(Campos, 2005, p. 22).<br />

De acordo com Campos (2005), a Bossa-nova expandiu-se<br />

em suas relações para públicos maiores, inicialmente através de gravações,<br />

rádios e TV, ou seja, através dos meios de comunicação de<br />

massa, e, m seguida, em contato direto com auditórios: a princípio,<br />

em pequenas apresentações organizadas pelos estudantes (na maioria,<br />

universitários). Neste primeiro momento, abriu-se um contato amplo<br />

e direto entre a Bossa-nova e o público. Ou seja, sucesso da Bossa<br />

não iria depender apenas das canções bem construídas por seus<br />

compositores, músicos, cantores, intérpretes, mas também da indústria<br />

cultural discográfica e dos veículos de comunicação de massa.<br />

Isso significa dizer que houve um maior acesso ao público, transformando-a<br />

num movimento de âmbito nacional, um marco daquele período<br />

de “crescimento” que o país estava vivendo que teria conseqüências,<br />

nas diversas formas de interação social, inclusive no meio<br />

artístico, e conseqüentemente, entre a arte, de forma geral, e os indivíduos<br />

que tivessem acesso a mesma.<br />

DESENVOLVIMENTO<br />

Bossa-nova: Uma Nova Identidade Cultural<br />

No Cenário Sócio-Cultural Brasileiro<br />

A construção do movimento que foi a Bossa-nova representa<br />

uma ruptura sociocultural com o tipo de música que se fazia assim<br />

como a necessidade de existir um showman, não demonstrando, desta<br />

maneira, a importância dos músicos e as demais relações dos bastidores.<br />

Houve uma tentativa de dar à canção brasileira não só a função<br />

lúdica, refletindo os valores da sociedade vigente neste período e<br />

os atores sociais (músicos, compositores, intérpretes), que estão im-<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 27


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

buídos de uma inquietação comum que resultou em um projeto estético.<br />

Portanto, estes atores sociais estavam intimamente envolvidos<br />

na estrutura de um movimento cultural renovador. Por conseguinte<br />

este movimento teria dois momentos, num primeiro à alusão ao Rio,<br />

algumas vezes com certo tom irônico, e, num segundo daria ramificações<br />

a outros movimentos, partindo de sua estética e produção poética<br />

musical (utilização de universos simbólicos e figuras de linguagem,<br />

em especial, metafóricos e analógicos).<br />

Neste segundo momento Bossa-novista é perceptível à presença<br />

da indústria cultural no Brasil, teria canções mais politizadas,<br />

ideológicas e hedonistas. Ou seja, inerente à existência humana, algo<br />

que fosse universal e que trouxesse representatividade para a vida<br />

das pessoas, em diversos aspectos. O primeiro momento da Bossa influenciaria,<br />

segundo Campos (2005) e Caldas (2005), o que foi denominado<br />

segundo momento da Bossa-nova (período contemporâneo<br />

a ela), representado pelo advento de grandes festivais, das canções de<br />

protesto e da Tropicália. Passaria a se trabalhar com a linguagem poética,<br />

realizando um artesanato das palavras. Isso representou um<br />

convite ao diálogo entre os artistas, a realidade sócio-cultural da sociedade<br />

e o público, os grupos sociais através da linguagem artística,<br />

edificando uma nova forma de fazer canções na realidade social brasileira.<br />

Logo, a partir desse movimento que foi a Bossa-nova, a elite<br />

cultural e os diversos círculos sociais (artistas, classe média, estudantes<br />

universitários etc.) que tiveram contato com a Bossa-nova passaram<br />

a perceber o hedonismo e a formação de uma consciência social<br />

e ideológica de uma maneira própria, e confirma a sua base a partir<br />

do cotidiano e dos paradigmas vigentes na sociedade, assim como<br />

suas rupturas. Neste sentido, a música é um veículo de formação de<br />

uma identidade cultural que se difunde posteriormente em âmbito<br />

nacional e confirma a força criadora do seu local de origem: Rio de<br />

Janeiro. Este primeiro momento da Bossa-nova foi essencial na sua<br />

dinâmica influenciadora de diversos outros movimentos que surgiram<br />

em seguida, partindo do princípio que a índole criadora da Bossa-nova<br />

se constitui como verdadeiro manifesto de intenções estéticas.<br />

As representações que envolvem a experiência vivenciada pelos<br />

atores sociais constituem a base de uma análise aprofundada dos<br />

28<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

meios em que os indivíduos utilizam a linguagem para manifestarem-se<br />

em sociedade (comunicação) construindo todo o edifício das<br />

diversas áreas d cultura (criação) e avaliando a eficácia e a validade<br />

desses sistemas de códigos e universos simbólicos (crítica), podendo,<br />

então, demonstrar o hibridismo cultural, a diversidade da linguagem<br />

estética, especialmente a poético-musical, na formação de representações<br />

sociais, identidade sócio-político-cultural e os complexos sistemas<br />

de comunicação humana deste período histórico.<br />

As Fases da Linguagem Poético-Musical da Bossa-nova<br />

Partindo da utilização da linguagem verbal, formam-se as<br />

significações, símbolos que mediam a relação do sujeito com o mundo.<br />

Os aspectos escolhidos são de acordo com a localização na estrutura<br />

social e ciclos sociais e também em virtude de suas idiossincrasias<br />

individuais, cujo fundamento se concentra na bibliografia de cada<br />

um. Isso é um processo que auxilia na formação da identidade dos<br />

membros, grupos no organismo social.<br />

A sociedade, a identidade e a realidade cristalizam-se subjetivamente<br />

no mesmo processo de interiorização. Esta cristalização ocorre juntamente<br />

com a interiorização da linguagem. De fato, por motivos evidentes<br />

à vista das precedentes observações sobre a linguagem, esta constitui o<br />

mais importante conteúdo e o mais importante instrumento da socialização<br />

(Beger & Luckmann, 1985, p. 179).<br />

A relatividade deve estar presente, afinal estamos tratando de<br />

contextos sócio-culturais diversos, que trazem no seu âmago um<br />

complexo sistema de representações, identidades e particularidades.<br />

Há uma transmissão de certa visão de mundo que exprime representações<br />

individuais e sociais que transcendem a situação imediata,<br />

inscrevendo-se no patrimônio cultural coletivo, e numa comunhão de<br />

sentimentos que será reduzida no cotidiano de cada indivíduo.<br />

Neste aspecto, para Berger & Luckmann (1985), a criação de<br />

um movimento cultural artístico tem correspondência com o processo<br />

de socialização e com certa necessidade de representação de mundo<br />

além de um sistema de símbolos. Esta correspondência está condicionada<br />

à subjetividade e a toda uma forma de perceber a vida.<br />

Com isso, podemos verificar que o discurso é coextensivo à própria<br />

vida social, pois, além de provocar comunicação entre os atores soci-<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 29


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

ais, há uma interlocução que passa a ter uma forma de expor símbolos,<br />

representações e valores da vida cotidiana, ou seja, o discurso do<br />

movimento cultural torna-se uma expressão das relações sociais e<br />

das diversas engrenagens que compõem os grupos sociais e seu íntimo<br />

entrelaçamento.<br />

Por conseguinte, a linguagem poético-musical da Bossa-nova<br />

segundo Campos (2005), tem uma divisão em dois momentos distintos.<br />

Num primeiro momento referia-se a uma alusão ao Rio de Janeiro.<br />

Ainda não tinha as questões políticas. Esta fase teria um tom coloquial<br />

da narrativa, uma linguagem simples, construída a partir de<br />

elementos cotidianos da vida urbana, que, às vezes, revela uma malícia,<br />

um humor, uma gozação e por outras um tom melancólico, afetivo,<br />

intimista, socialmente participante, com tom de protesto, mas<br />

sem demagogias, dramaticidades (Campos, 2005).<br />

A segunda fase da Bossa-nova surgiu num contexto em que é<br />

perceptível a presença da indústria cultural no Brasil com uma infraestrutura<br />

bem organizada para o consumo. É neste contexto que Caldas<br />

(2005, p. 94-95), por sua vez, afirma que é dentro de uma lógica<br />

de mercado que, ironicamente surgiria o segmento de esquerda da<br />

música popular brasileira, como ramificação do primeiro momento<br />

da Bossa-nova, mais politizada em seu discurso. Ou seja, este segundo<br />

momento Bossa-novista localiza-se numa fase em que a modernização<br />

do capitalismo no Brasil está se consolidando. As décadas de<br />

60 e 70 foram definidas pela consolidação de um mercado de bens<br />

culturais (Ortiz, 1989, p. 45).<br />

Neste segundo momento os jovens artistas não tinham apenas<br />

objetivos profissionais; existiam propósitos bem intencionados e nobres<br />

quanto a sua profissão. Houve uma tentativa de dar a canção<br />

popular não só uma função lúdica, mas também algo que fosse inerente<br />

à existência humana: os dramas, a alegria, a tristeza, o prazer, a<br />

ideologia, enfim, algo que fosse universal e não particular, de experiências<br />

individuais, mas sim universal estaria sendo trabalhado na<br />

sua linguagem poética.<br />

Neste aspecto, o desenvolvimento do mundo textual, ou melhor,<br />

do artesanato de palavras que se edificou, exigiu sistemas de<br />

novos meios de expressão e comunicação a partir da realidade sociopolítica<br />

que se estava vivenciando. Para Fischer (1976) a linguagem<br />

30<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

coloca tudo em termos de razão. Entretanto, o artista, com suas analogias,<br />

coloca tudo em termos de significação. Isso representou um<br />

convite entre os artistas e o público, o artista e os grupos sociais e o<br />

artista e a sociedade (de forma geral) através da linguagem artística.<br />

A linguagem metafórica nessa conjuntura foi mais um meio de expressão,<br />

como imagem da realidade e repleta de significados pra cada<br />

sujeito social que viesse a ter contato com ela, contribuindo para a<br />

formação de uma identidade cultural-coletiva dentro do cenário brasileiro.<br />

Um caminho sem volta para a forma de se fazer a arte musical<br />

seria tomado pelos diversos participantes da música popular brasileira<br />

a partir do fino da bossa.<br />

Assim, podemos verificar que a criação poético-musical da<br />

Bossa-nova foi coextensiva a própria vida social em ambas as fases,<br />

trazendo impulsos e necessidades de expressão, de comunicação e<br />

integração à vida cotidiana. Adquirem um sentido expressivo atuante,<br />

necessário, fundindo-se ao complexo de relações e instituições a<br />

que chamamos de sociedade. A produção dos artistas que estavam<br />

inseridos neste movimento sócio-cultural e político fomentou a construção<br />

social de uma identidade cultural, por meio da dialética entre<br />

o artista com a linguagem artística que passou a se processar na realidade<br />

social brasileira.<br />

Sujeito Social Pós-Moderno, Contexto Sócio-Cultural<br />

e Identidade Cultural<br />

O sujeito pós-moderno tem como marca a fluidez da identidade.<br />

Desse modo, ele é composto não de uma única, mas de diversas<br />

variantes, as quais, muitas vezes, são contraditórias e divergentes<br />

e com denominadores comuns entre seus ciclos sociais, o que possibilita<br />

ao sujeito da pós-modernidade um maior fluxo.<br />

Então, podemos observar a importância da formação da identidade.<br />

É a identidade que diferencia os indivíduos, o que os caracteriza<br />

como sujeito social, pessoa, ou como um membro pertencente a<br />

um grupo social. Ela é definida pelos conjuntos de atribuições de papéis<br />

sociais que todos nós desempenhamos em nosso dia-a-dia e é<br />

determinada pelas condições sócio-culturais que são decorrentes da<br />

produção social, econômica, histórica, pelos nossos ideais e compor-<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 31


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

tamentos, e, claro, pelos ciclos sociais que venhamos a freqüentar,<br />

participar. Neste aspecto, estamos identificando um sistema antropossociocultural<br />

que, fomenta uma formação de diversas identidades<br />

culturais, mais especificamente, na sociedade brasileira pós década<br />

de 50.<br />

Quando nos referimos, no caso, à identidade cultural referimo-nos<br />

ao sentimento de pertencer a uma cultura específica que está<br />

em nosso meio, com a qual convivemos e através da qual absorvemos<br />

valores, costumes, regras, ideologias, paradigmas na dinâmica<br />

dos interlocutores ao longo de nossas vidas. Por isso, é importante<br />

salientar que esta identidade não é uma identidade natural, herdada<br />

biologicamente, mas sim, uma identidade construída, que faz parte<br />

de nossa herança cultural. Hall (2002, p. 15) nesse âmbito diz que<br />

“uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos<br />

que influencia e organiza todas as nossas ações, quanto a concepção<br />

que temos de nós mesmos”.<br />

Para Hall (2002) a identidade muda segundo a forma como o<br />

sujeito é representado e segundo o contexto social em que está inserido.<br />

Isso nos leva a pensar que a formação da identidade está diretamente<br />

relacionada ao contexto sócio-cultural e, consequentemente,<br />

está imersa de valores, regras, sanções, diferenças e divergências, ou<br />

seja, de acordo com um sistema de símbolos e representações que recaem<br />

sobre o cotidiano.<br />

Lopes (2003), por sua vez, trata a identidade e o sujeito pósmoderno<br />

como um processo sócio-construtivista, percebe-se que<br />

ambos são construções sociais, não propriedades privadas de indivíduos,<br />

mas compartilhadas. É uma relação mantida com interlocutores<br />

e, consequentemente, por meio do discurso, sendo este considerado<br />

como a base de um espaço de construção destas identidades sociais,<br />

culturais, ideológicas, que, no nosso caso, os artistas ajudaram a<br />

promover. Assim, podemos concordar com Lopes (2003, p. 8), quando<br />

ele afirma:<br />

Os objetos sociais não são dados no mundo ma são construídos, negociados,<br />

reformulados, modelados e organizados pelos seres humanos<br />

(...) como agentes sociais ativos estamos implicados no conhecimento<br />

que produzimos na linguagem que usamos.<br />

32<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Temos, então, um contexto formado por muitas instituições e<br />

identidades culturais organizadas pela experiência humana que está<br />

repleta de valores e que segue, muitas vezes, um padrão de vida, o<br />

qual existe antes mesmo do nascimento do indivíduo. Nascemos dentro<br />

de uma cultura e a aprendemos como certa. Como escreve Geertz<br />

(1978, p. 58) ao falar desta dependência do homem a cultura: “a cultura,<br />

a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento<br />

da existência humana, mas uma condição essencial para ela, a<br />

principal base de sua especificidade”.<br />

A partir de tal fato, a linguagem será mediadora de todas as<br />

relações mantidas em nossa vida por ser o meio de expressão e comunicação<br />

estabelecido pelas conjunturas sociais (estruturas internas)<br />

políticas (poder ideológico), históricas (fatores cronotópicos) e<br />

culturais (identidades). Ela favorecerá para uma espécie de junção<br />

entre a experiência vivida e a formulação da própria linguagem, no<br />

nosso caso, artístico-musical-subjetiva com características históricas<br />

relacionadas à cotidianidade.<br />

O artista sendo capaz de traduzir essa realidade em que vive<br />

está imbuído de idéias, valores e emoções, de padrões culturais, deparando-se<br />

com características sociais e com práticas culturais, as<br />

quais são essenciais para a existência humana e que através de sua liturgia<br />

e das relações sociais que mantêm, podem transcender o tempo<br />

quando são utilizadas para a produção de uma expressão cultural<br />

e, consequentemente, tendo uma ação transformadora que tem como<br />

resultado uma nova identidade cultural.<br />

Assim, sendo a cultura um sistema que assegura as mudanças<br />

segundo a inserção de seus sujeitos na cotidianidade, ela deve estar<br />

articulada ao sistema social, para que haja a expressão de uma identidade<br />

coletiva cultural. Neste aspecto, Murin (2008, 79) nos diz que<br />

temos uma relação entre os artistas e os aspectos estruturais socioculturais,<br />

entre o artista e o ambiente histórico-geográfico, entre o artista<br />

e os ciclos sociais, ou seja, a relação entre a linguagem (comunicação)<br />

e o influxo exercido pelos valores sociais, ideologias, desejos<br />

de mudanças e sistemas de comunicação, que nele se transmutam em<br />

conteúdo e forma;criador de uma unidade sócio-cultural inseparável.<br />

Portanto, é dessa maneira que a Bossa-nova torna-se um marco, como<br />

expressão de valores cotidianos da sociedade, à princípio carioca,<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 33


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

transcendendo esse grupo social, para, então, transformar-se num referencial<br />

para os demais movimento culturais que surgiram pós Bossa-nova,<br />

buscando a formação e estruturação de novos paradigmas e<br />

expressões da realidade brasileira, num âmbito nacional.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

A partir do que foi visto, percebe-se que a Bossa-nova, na<br />

verdade, tornou-se um marco no final da década de 50 por promover<br />

no meio musical-cultural uma nova estética e um movimento cultural<br />

urbano.<br />

Sendo, então, a Bossa-nova mais do que um pensamento positivo,<br />

seria considerado como um estilo musical que originalmente foi<br />

voltado para o detalhe, trouxe revoluções como, por exemplo, à representação<br />

gráfica dos discos e as fichas técnica. Foi, dessa forma, o<br />

princípio de uma música nacional universal por diversos artistas. Há<br />

uma verdadeira solidariedade e cooperação entre os participantes, caracterizando<br />

a construção da consciência coletiva entre os integrantes<br />

do movimento como para a sociedade.<br />

A Bossa-nova integra a melodia, a harmonia e contraponto na<br />

realização da obra não existindo prevalência de nenhum participante,<br />

mas, ao contrário, permitindo uma conciliação entre todos os membros<br />

envolvidos.<br />

Há influências concretas exercidas pelos fatores sócioculturais.<br />

Pode se dizer que estes fatores se ligam à estrutura social,<br />

aos valores ideológicos e estéticos, às técnicas de comunicação. Neste<br />

sentido, a arte demonstra ter uma função não só lúdica e hedonista,<br />

mas também de cunho social, dependendo de fatores que permeiam o<br />

meio em que foram e serão expressas através da linguagem artística<br />

e tem como conseqüência a produção sobre os indivíduos um efeito<br />

prático, modificando sua conduta e concepção de mundo, ou reforçando<br />

os valores sócio-culturais. Dessa maneira, há um movimento<br />

dialético que engloba a linguagem artística e a sociedade num vasto<br />

sistema solidário de influência individuais (biografias) e coletivas<br />

que são recíprocas.<br />

34<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Desse modo, é perceptível que a identidade de um sujeito social<br />

seja consideravelmente delineada, no sentido de representar a realidade<br />

objetiva na qual está localizada. Em outras palavras: cada<br />

pessoa é mais ou menos aquilo que se supõe que seja, quando consideramos<br />

a condição de socialização que produz tal identidade ou i-<br />

dentidades.<br />

Portanto, é dessa maneira, que a Bossa-nova tornou-se um<br />

marco como expressão de valores cotidianos da sociedade, transformando<br />

se o ponto referencial pra os demais movimentos artísticomusicais<br />

que surgiram após este primeiro momento, em que se utiliza<br />

do artesanato de palavras, analogias e rupturas estéticas para promover<br />

na sociedade, de uma maneira geral, uma tomada de consciência<br />

através da arte. Não mais seria a arte pela arte, mas sim a arte<br />

com uma função social, histórica no cenário brasileiro.<br />

REFERÊNCIA BIBLOIGRÁFICA<br />

BEGER, Peter L. & LUCKMANN, Thomas. A construção social da<br />

realidade: Tratado de Sociologia do Conhecimento. 22ª ed. Trad.:<br />

Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985.<br />

CALDAS, Waldenyr. A cultura político-musical brasileira. São Paulo:<br />

Musa, 2005.<br />

––––––. Iniciação à música popular brasileira. 2ª ed. São Paulo: Á-<br />

tica, 2001.<br />

CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo:<br />

Perspectiva, 2005.<br />

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história<br />

literária. 8ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.<br />

CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa-nova.<br />

3ª ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.<br />

FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar,<br />

1976.<br />

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:<br />

Zahar, 1978.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 35


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7ª ed.<br />

Trad: Tomas Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro:<br />

DP&A, 2002.<br />

––––––. A questão da identidade cultural. 7ª ed. Rio de Janeiro:<br />

DP&A, 2002.<br />

MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária: enunciação,<br />

escritor e sociedade. 2ª ed. Coleção leitura e Crítica. Trad.:<br />

Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 2000.<br />

MURIN, Edgar. Cultura de massa no século XX. Vol. II: Necrose.<br />

Trad: Agenor Soares Santos. Rio de Janeiro: Forense Universitária,<br />

2001.<br />

ORTIZ, Renata. A moderna tradição brasileira. 2ª ed. São Paulo:<br />

Brasiliense, 1989.<br />

36<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

O MISTÉRIO DA ÁRVORE E ALGUMAS IMAGENS<br />

RECORRENTES NA OBRA DE BRANDÃO<br />

Eloísa Porto Corrêa (UERJ/UFRJ/USS)<br />

eloisaporto@globo.com<br />

Raul Brandão se ocupou de grandes contradições inerentes à<br />

existência, ao humano, à humanidade ou “da junção ou mesmo da<br />

coincidência dos contrários” (Viçoso, 1999, p. 12) no humano e no<br />

mundo. Sem dúvida, esta coincidência de contrários na obra brandoniana<br />

faz com que ela aborde ou antecipe traços e temáticas caras a<br />

correntes estéticas tão diversas e, por vezes, antagônicas ou concorrentes,<br />

como as contemporâneas simbolista e decadentista e as oitocentistas<br />

estéticas romântica e naturalista; e antecipe traços e temáticas<br />

posteriormente caras a neo-realistas, a existencialistas e a surrealistas.<br />

A ficção brandoniana, por isso, aborda ou abarca questões<br />

humanas e intimistas, sem se furtar às sociais, explorando e problematizando<br />

tanto a situação individual dos humildes, quanto a sóciocultural,<br />

em relacionamentos interpessoais e entre os grupos em que<br />

se inserem personagens e narradores, abordando a incontornável tragédia<br />

humana, sem a ela se conformar, problematizando-a. Por isso,<br />

carrega as “marcas da erosão da narrativa canônica”, como forma de<br />

resistência à “morte do sentido (a in-significância)” e busca dessa<br />

“possível (desejável) ressurreição do sentido (a significância)”,<br />

(re)criando o “romance possível”, numa “fusão do lirismo, do romanesco<br />

e do drama cósmico”, entre “a decadência e a contradecadência,<br />

o artificial e o natural, o simulacro e o sonho, a superfície<br />

e o interior (símbolo, arquétipo, reminiscência), o riso e a melancolia,<br />

o eu e o outro” (Viçoso, 1999, p. 16-39).<br />

Segundo Bronislaw Geremek:<br />

(...) Desprovido dos laços materiais e dos comprometimentos da<br />

propriedade, o miserável expressa um conhecimento universal da verdade<br />

sobre a existência humana, esquecida por todos. É também portador<br />

da imagem e da voz de baixo, dos níveis inferiores da sociedade e da cultura<br />

populares. (Geremek, 1995, p. 7)<br />

Talvez por isso haja tamanha afetividade para com o pobre na<br />

narrativa brandoniana, pois, através dessas figuras humildes, predominantes<br />

na sua obra, investiga-se primeiramente algo que está para<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 37


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

além das convenções sociais e da matéria, a misteriosa existência, e,<br />

paralelamente, é claro, passa-se por complicações materiais, sociais e<br />

culturais. Aproximando-se do pobre e através dele, pretende-se estar<br />

mais próximo desse “conhecimento universal”, dessa “verdade” essencial,<br />

um conhecimento que não é só histórico e cultural; e que,<br />

por isso, é buscado entre aqueles que se furtaram ao materialismo ou<br />

aos quais foi negado o material.<br />

Por outro lado, o pobre “também parece refletir, como num<br />

espelho côncavo, os problemas da sociedade dos homens de bem”,<br />

por isso “suscita enorme interesse, tanto por mostrar um meio esotérico<br />

e exótico”, como pelo fato de se encontrar no miserável a “negação<br />

do sistema vigente de normas e comportamentos” (Geremek,<br />

1995, p. 7). Está aí a dupla ou tripla articulação dos humildes na literatura<br />

brandoniana: indagação existencial, negação dos paradigmas<br />

vigentes e problematização social, compondo chocantes quadros em<br />

que o claro e o escuro contrastam, em que se confrontam os pobres e<br />

a chamada “sociedade dos homens de bem” (Geremek, 1995, p. 7).<br />

Está aí também a origem não somente da poética da afetividade aos<br />

humildes, como também da estética do horror nas paisagens de suas<br />

narrativas.<br />

No conto O Mistério da Árvore, dois mendigos representam a<br />

alegria, a pureza e a afetividade em oposição a um cenário grotesco,<br />

escuro, degradante e degradado pela ação de um Rei tirano e perverso.<br />

Está configurada e exemplificada, em linhas gerais, a segunda fase<br />

artística de Brandão, a do “claro-escuro pesadelo”: “ignorando o<br />

que se passava em volta – olhos nos olhos, mãos nas mãos... (...) A<br />

árvore onde os dois haviam sido enforcados, mal se distinguia no escuro;<br />

mas de lá vinha um frêmito, a sua agonia talvez, e uma claridade,<br />

os seus corpos decerto. Em vão reduzira tudo a cinzas.” (OMA, p.<br />

99-102). O amor entre os dois mendigos é luminoso, mas não o suficiente<br />

para os salvar dos desmandos do déspota. A afetividade entre<br />

os mendigos contrasta com a perversidade do Rei, o amor luminoso<br />

entre os dois contrasta com o cenário pintado em tons de cinza e negro.<br />

A vivacidade do casal até revigora um pouco o cenário morto<br />

por onde passa, mas não é suficiente para redimir nem o Rei e nem<br />

aquele reino.<br />

38<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

O horror inexpugnável e persistente, presente no conto de<br />

Brandão, corrobora a idéia, exposta por Walter Falk, de que<br />

Todo lo que es sigue siendo eternamente lo que es”, “todo se ha de<br />

repetir indefinidamente de idéntica forma, el mismo placer e el mismo<br />

tormento. Esto es terrible, puesto que la vida está impregnada de horror”<br />

(Falk, s/d, p. 43).<br />

O crítico, ao estudar Impresionismo y Expresionismo: dolor e<br />

transformación en Rilke, Kafka, Trakl, mostra a importância da dor e<br />

do horror na transição da estética impressionista para a expressionista.<br />

Por outro lado, não é apenas o horror e a dor que se perpetuam<br />

ciclicamente no mundo, apesar de todas as adversidades e hostilidades,<br />

os mendigos também existiram, porque “a pesar de lo horroroso,<br />

y quizá debido a ello, la vida es hermosa”. Um é a condição para<br />

a existência do outro, portanto, dor e prazer, horror e atração:<br />

(...) no hay a la postre nada tan importante para los hombres como<br />

aceptar la vida com todo lo que ella trae consigo. No hay que quejarse, ni<br />

eludir el dolor del mundo, sino desearlo. Entonces se probará que del dolor<br />

brota continuamente placer, pues el que desea el dolor se siente superior<br />

a él en su voluntad y por ello experimenta el placer del poder justamente<br />

em el dolor. (Falk, s/d, p. 43-44)<br />

Só do contraste e do confronto entre os dois se apreendem e<br />

distinguem dor e prazer, horror e atração, desejo e repulsa; por isso o<br />

expressionista aprecia a dor, o feio, o horror, o pesadelo e os confronta<br />

com seus opostos.<br />

Contraponto dos pobres nessa narrativa curta, o rei é um misto<br />

de dândi e vampiro decadentista, que se alimenta e eterniza da extinção<br />

de toda a vida que circunda seu Castelo, levando existência<br />

estéril e destrutiva, como a morte em vida: “No silêncio tumular do<br />

Palácio os passos do Rei ecoavam pelos corredores desertos (...) Não<br />

podia amar. Nem a voluptuosidade, nem o ideal, nem o amor, nem a<br />

carne láctea das mulheres” (OMA, p. 99-102). Como o vampiro mantém<br />

seu poder “há séculos”, tirando a vida alheia e, uma vez mortovivo<br />

ou morto em vida, melancólico, não espera nada além de sustento.<br />

A morte foi um tema largamente abordado também pelos expressionistas,<br />

como se pode observar nas telas Pirâmide de Crânios<br />

(1898-1900), de Cézanne, e Natureza Morta com Flores, de Van<br />

Gogh, em que se empilham objetos que simbolizam a morte de entes<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 39


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

humanos e naturais, como as flores cortadas e as cores vermelha e<br />

negra, contrastando com tons claros e luminosos.<br />

O rei, como o dândi, é elitista, “aspira à insensibilidade”,<br />

mostra-se dono de uma “modéstia mesclada de pudor aristocrático” e<br />

de uma “quintessência de caráter e uma compreensão sutil de todo<br />

mecanismo moral deste mundo”, mas “é entediado, ou finge sê-lo,<br />

por política e razão de casta” (Baudelaire, 1995, p. 854). Essa é também<br />

a postura do Rei, sabedor de que a morte é inevitável ao mortal,<br />

antecipa-a a todos, mas está acima da morte e, impiedoso, olha de<br />

cima de sua imortalidade a vida medíocre da turba mesquinha<br />

(“mendigos”), com um misto de inveja e desprezo por todos os mortais<br />

que aniquila, vegetais ou animais, todos abaixo dele na hierarquia<br />

social: “extrai fantasmagoria da natureza” (Baudelaire, 1995, p.<br />

859). Mas, diferentemente do dândi, que não é necessariamente um<br />

tirano, esse rei se mostra déspota e autoritário e encontra vigor para<br />

oprimir o amor e a luz, que lhe incomodam.<br />

A postura do dândi não é muito recorrente na obra de Raul<br />

Brandão, porque os narradores são sensíveis demais com relação aos<br />

dramas populares, muitas vezes identificando-se mesmo como uma<br />

figura do povo, como é o caso do narrador de Os Pobres. Mas, assim<br />

como o dândi, muitos narradores e alguns personagens brandonianos<br />

se apresentam entediados diante da mesmice social e das distorções<br />

morais e éticas, bem como demonstram uma mundividência e uma<br />

capacidade de desvendamento dos mecanismos sociais acima da média,<br />

mesmo que nem sempre tenham as respostas para as indagações<br />

que formulam, demonstram uma inclinação filosófica invulgar, que<br />

se destaca da multidão.<br />

O Castelo desse Rei é uma cripta, uma tumba de mármore,<br />

escura, que guarda a solidão estéril e morta ou mórbida daquele que<br />

se alimenta das vidas alheias: “o Palácio Real, construído num bloco<br />

de pedra escura, e só o Rei, de alma igual à sua alma, nua e trágica,<br />

se pusera a amar a árvore triste que havia séculos servia de forca”<br />

(OMA, p. 99-102).<br />

Outros personagens masculinos que, como o Rei desse conto,<br />

sugam “energia vital” de outros personagens surgirão na obra de Raul<br />

Brandão, como alguns ladrões de Os Pobres. Todos figuras menos<br />

vampirescas, como o burguês mercenário Belisário ou o Anacleto de<br />

40<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

A Farsa, que também se alimenta de morte, até arruinar-se com a<br />

morte da esposa e a descoberta da traição. Mas, esse Rei de O Mistério<br />

da Árvore é o mais evidente exemplo de vampirismo decadentista<br />

da obra de Raul Brandão.<br />

O narrador olha tudo entre contemplativo e comovido com a<br />

situação dos miseráveis “mendigos” e até com a do solitário Rei.<br />

Comovido com a felicidade pateticamente ingênua dos mendigos.<br />

Comovido com a infelicidade, solidão e danação perpétua do Rei,<br />

preso à morte em vida. Estarrecido está o narrador com a perversidade,<br />

a crueldade, a covardia e a incapacidade do Rei de buscar para si<br />

o amor que inveja, julgando mais fácil destruí-lo: “Noite negra, o Rei<br />

subiu sozinho ao terraço. Restos de núvens, restos de mantos esfarrapados<br />

arrastavam-se pelo céu. A árvore onde os dois haviam sido<br />

enforcados, mal se distinguia no escuro (OMA, p. 99-102)”.<br />

Os narradores pasmam-se diante da danação de personagens<br />

ávidos pelo desejo de ascensão, como nA Farsa; de desvalidos explorados<br />

e perversos, como em Os Pobres; ou de figuras calculistas<br />

que espreitam e são espreitadas, como as de Húmus. A figura do narrador<br />

apaixonado e comovido, em deambulações discursivas, é sem<br />

dúvida bastante recorrente entre os narradores da obra de Brandão.<br />

Difícil é encontrar um narrador brandoniano que não fique emocionado<br />

com o espetáculo das misérias humanas, com o martírio da turba<br />

mesquinha, sofredora e digna de piedade, desprovida de heroísmo<br />

e de possibilidades revolucionárias, de onde dificilmente sairá um<br />

“herói clássico” (Kothe, 1987), mas apenas pobres, ladrões, prostitutas,<br />

domésticas, mendigos, trabalhadores comuns, personagens da<br />

turba que podem suscitar ao mesmo tempo um prazer, um deleite pela<br />

promiscuidade e pela miséria. Por outro lado, há vezes em que<br />

causam repugnância e/ou piedade, paradoxalmente. Todos os narradores<br />

ficam divididos entre uma estética do horror e uma poética da<br />

afetividade pelos humildes.<br />

Diante do espetáculo da turba, o narrador exercita a sua inclinação<br />

ao devaneio, como se pode observar no fragmento em discurso<br />

indireto-livre a seguir, em que narrador e rei dândi se misturam na<br />

apreciação da paisagem devastada: “Em vão reduzira tudo a cinzas –<br />

por baixo das cinzas latejava a vida. (...) Por que não ia também ser<br />

macieira, mendigos, húmus? Transformar a dor em felicidade? Beber<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 41


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

o sol arrastado na aluvião da vida? Oh como odiava a mocidade, a<br />

ternura, os lábios moços que se beijam”.<br />

Muitos narradores na obra de Raul Brandão abrem espaço para<br />

o “natural-sobrenatural” (Benjamin, 1989, p. 57), apresentando e-<br />

lementos da natureza associados aos mistérios da existência, da vida<br />

e da morte, como nessa passagem do conto, em que alguma força sobrenatural<br />

parece revigorar o galho da árvore após a morte dos mendigos,<br />

contrastando com a destruição do cenário e contrariando as<br />

determinações do rei, como numa manifestação do sagrado através<br />

da natureza: “Súbito ficou imóvel de espanto. Aquecida, com o amor<br />

de dois mendigos, tinha o galho em que pendiam enforcados cheinho<br />

de flor (OMA, 99-102)”. A ação do homem (o rei do conto) é muitas<br />

vezes a causadora da desordem e do caos entre os entes naturais, mas<br />

a natureza vai se recuperando, na medida do possível, através de seus<br />

ciclos e mecanismos de regeneração, dos quais o homem nem sempre<br />

pode se furtar. Desta forma, “a natureza defende seus direitos”<br />

(Benjamin, 1989, p. 57), em detrimento da ação e da obra humana,<br />

como se vê em Húmus, em que a terra se alimenta de morte e origina<br />

a vida; ou como nOs Pobres, em que o “enxurro” arrasta e arruina<br />

obras e homens; e na natureza que se regenera após a ação do Rei<br />

devastador no conto O Mistério da Árvore: “O que havia ocorrido<br />

nessa rua não teria surpreendido uma floresta; os altos fustes e a vegetação<br />

rasteira, as ervas e os galhos inextricavelmente enredados<br />

uns nos outros e o capim alto” (OMA, p. 99-102).<br />

Diferentemente do que ocorre nesse conto, a árvore em algumas<br />

narrativas de Brandão simboliza vida, natureza, sensualidade e<br />

se relaciona com alquimia e espiritualidade, física e metafísica, da<br />

existência para além da vida carnal, e guarda o mistério que responderia<br />

à pergunta título do capítulo XVI de Os Pobres, “O que é a vida?”e<br />

a outras perguntas inseridas ao longo do capítulo: “O que é isto?<br />

o que é a vida? o que é este mistério onde o homem entra como a<br />

salamandra no fogo? Pode alguém de repente dar com uma árvore<br />

cobrindo-se de flor, sem ficar espavorido? (OP, p. 135)”. Esse mesmo<br />

mistério – que tentarão o Pita e o Gabiru desvendar no final de<br />

Os Pobres, diante da árvore, usando métodos de indagação e alquimia<br />

– parece se manifestar na passagem em que a “árvore que servia<br />

de forca” apresenta um galho florido após o enforcamento dos mendigos.<br />

42<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

A “árvore trágica” do conto, “maldita que desde séculos servia<br />

de forca” também é aquela que guarda os segredos da vida e da<br />

morte, da existência carnal e pós-morte, da primavera e do outono/inverno,<br />

das estações do ano e da vida, como já indica o título do<br />

conto: “Assistira a transformações do solo, a tempestades, a cataclismos<br />

e a guerras, sempre petrificada como a morte – e, naquela<br />

noite, trespassada pelo amor dos dois mendigos, desentranhara-se em<br />

ternura, como se nela se encontrasse toda a paixão, a primavera e o<br />

noivado da terra” (OMA, p. 99-102). Como A Amoreira, de Van Gogh,<br />

que persiste num ambiente hostil e frio, a vida brota dos galhos<br />

da “árvore que servia de forca” quando menos espera o rei, comprovando<br />

que na Natureza, a vida sempre brota da morte ou que, como<br />

disse Dalila Costa sobre o Húmus, “o amor como força cósmica, unificante,<br />

triunfa da morte e do desgaste do tempo” e que “o fim lógico<br />

não é morrer é viver sempre” (Costa, 1999, p. 347, 351).<br />

A natureza é “a expressão do corpo ambivalentemente humano<br />

e cósmico”, enquanto “o sonho é expressão do desejo” (Seixo,<br />

2000, p. 23), da alma, em Raul Brandão. A árvore metaforiza o corpo<br />

cósmico em muitas narrativas brandonianas, como ocorre com o<br />

húmus, a terra fértil que gera a vida e resulta da matéria morta que se<br />

deteriora e gera novas vidas.<br />

A mendiga de O Mistério da Árvore é um misto da decadente<br />

femme fatale, esta definida por Mucci como “atração e perigo, paixão<br />

e ruína, luxúria e morte, Eros e Tânatos” (1994, p. 70-71); e da<br />

vítima miserável romântica à moda de Victor Hugo (Os Miseráveis).<br />

É indiferente e tola, como a femme fatale, exerce atração e curiosidade<br />

no homem (rei), mas não é perversa nem destrutiva. Por um lado,<br />

apresenta uma beleza hedionda: “aquela moça sardenta, com resquícios<br />

de palha pegados aos cabelos”. Por outro lado, é dona de<br />

uma sensualidade que não passa despercebida por onde quer que esteja:<br />

“flores esvoaçavam pela sua nudez e as macieiras dos quintais<br />

deitavam galhos fora dos muros”. A natureza, por onde ela e o amante<br />

vão pisando, converte-se em primavera: “macieiras deitavam galhos<br />

de propósito para os ver passar”. O amor traz a felicidade e a<br />

desgraça, a vida e a morte. Ela mantém-se encerrada no amor, indiferente<br />

a tudo o mais, corresponde e é correspondida em seu amor e é<br />

feliz, diferentemente da femme fatale, mas a atração e o perigo que<br />

exerce sobre o outro também a ameaçam e destroem.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 43


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

O rei sente-se ameaçado, diante do fascínio pela mendiga e do<br />

perigo que esta representa, ao romper com o tédio e ameaçar a mesmice<br />

e o hábito que se instaurara em sua existência. Ela é para o Rei<br />

o que Mucci chamaria de “a figura do desejo, da volúpia, do amor”<br />

(1994, p. 71) que gera frustração, já que proporciona felicidade para<br />

o outro e nunca proporcionaria para o Rei, incapaz de ser feliz, incapaz<br />

sequer de se alegrar, ainda mais diante de cotidianas banalidades<br />

comesinhas: “Por que não ia ele também ser macieira, mendigo, húmus?<br />

Transformar a dor em felicidade? Beber o sol arrastado na aluvião<br />

da vida? Oh como odiava a mocidade, a ternura, os lábios moços<br />

que se beijam” (OMA, p. 99-102).<br />

Como a mendiga do conto, as prostitutas de Os Pobres são<br />

donas de “belezas hediondas”, mulheres arruinadas, horrendas, miseráveis,<br />

que se sustentam da luxúria e inspiram piedade no narrador,<br />

mas que não exercem uma atração fatal e também não representam<br />

grande perigo para aqueles que delas se aproximam. Diferentemente<br />

da mendiga do conto, são noturnas, integradas ao espaço degradado,<br />

como um componente da paisagem arruinada, só que psicologicamente<br />

complexas. Como a femme fatale, elas também são misto de<br />

“luxúria e morte, de paixão e ruína”, mas é contra elas mesmas que<br />

essa ruína se volta, quase sempre. Ainda que desejem destruir e se<br />

manter indiferentes ao entorno, elas nem sempre podem, por vezes<br />

são duramente afetadas pelos outros personagens ou pelo espaço que<br />

as cerca e também, espancadas e abandonadas, esfomeadas e/ou tísicas.<br />

O amor decadentista, “todo artifício, engano, engodo”, fingimento,<br />

mascaramento, em algumas obras de Raul Brandão se mostra<br />

“um sonho que se transforma em pesadelo” (Mucci, 1994, p. 71).<br />

Enquanto em Os Pobres cada prostituta tem uma história de amor<br />

frustrado que as destina à prostituição; em A Farsa todos os casos<br />

amorosos têm fim trágico; em Húmus o individualismo parece ter<br />

quase suplantado o amor; no conto O Mistério da Árvore, o amor dos<br />

mendigos é infantil, primaveril, sincero e desinteressado, diferente<br />

do artifício que resume o amor decadentista, mas também é sensual e<br />

também conduz o casal à morte perversa como no amor decadentista,<br />

ocasionada por terceiros perversos: o Rei e seus carrascos.<br />

A árvore é, a um tempo, vítima e testemunha da perversidade<br />

do rei, como também representante da ação revitalizadora do húmus.<br />

44<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

É, ao mesmo tempo, “esgalhada e seca” por causa da devastação ao<br />

espaço promovida pelo rei, usada como instrumento de destruição<br />

(forca), testemunha do martírio dos enforcados e dos demais entes<br />

naturais sacrificados, mas também é ela quem se mantém viva com o<br />

húmus gerado da matéria morta e ela quem exibe o galho florido,<br />

após o enforcamento dos mendigos.<br />

O casal, assim como o amor que vivem no conto, remete ao<br />

Romantismo, tanto pela idealização do par amoroso, quanto pela a-<br />

gonia trágica dos amantes separados pela sociedade perversa e desamorosa;<br />

não só pela sinceridade do amor correspondido, desinteressado<br />

e feliz, como também pela transcendência do amor, que se<br />

perpetua para além da morte e pela natureza como prolongamento do<br />

amor, heranças medievais e românticas: “ignorando o que se passava<br />

em volta – olhos nos olhos, mãos nas mãos... (...) A árvore onde os<br />

dois haviam sido enforcados, mal se distinguia no escuro; mas de lá<br />

vinha um frêmito, a sua agonia talvez, e uma claridade, os seus corpos<br />

decerto. Em vão reduzira tudo a cinzas.”<br />

Entre o Simbolismo, com seus paraísos artificiais e oníricos, e<br />

o decadentismo da “arte pela arte”, em busca de “um mundo novo,<br />

lugar de refúgio da angústia metafísica” (Mucci, 1994, p. 31), a<br />

máscara ou a persona, que não é muito explorada no conto O Mistério<br />

da Árvore, é largamente usada em muitas outras narrativas brandonianas,<br />

como em A Farsa, em Os Pobres e em Húmus. A máscara<br />

simboliza o fingimento, o atifício e o artificialismo nas relações, a<br />

simulação; artifícios utilizados por muitos personagens para ocultar<br />

seus verdadeiros anseios, desejos e sonhos, guardados no interior,<br />

escondidos: “Esconde o ódio; vive fechada com seu sonho enorme,<br />

por fora uma velha pelintra, por dentro um horror sem limites” (AF,<br />

p. 51). A máscara representa a exterioridade e as convenções, a fachada<br />

ostentada socialmente pelos personagens, em detrimento do<br />

interior complexo, reprimido, que é representado pelo sonho, como<br />

ocorre com a Candidinha, que se finge de coitada, ostentando uma<br />

máscara de momo para pedir esmolas e alimentando-se de seu sonho<br />

de vingança contra todos aqueles que lhe dão esmolas: “a máscara da<br />

estupidez encobrindo a infâmia”. (AF, p. 47).<br />

As máscaras consistem numa espécie de duplo das existências<br />

interiores dos personagens: “no drama se instala a polivalência dos<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 45


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

conflitos, na simulação se recolhem os modos de ser e de parecer das<br />

personagens e da própria mostra dessa ficção” (Seixo, 2000, p. 18).<br />

Elas passam a ocultar a identidade interiorizada do personagem, chegando<br />

até a anular essa identidade, essa interioridade, como acontece<br />

com a personagem Candidinha, ao fim de A Farsa, impossibilitada<br />

de “arrancar” a “máscara” de momo ostentada por ela durante toda a<br />

sua trajetória ficcional. “Hiper-realizada” sobre sua face, por todos<br />

os personagens a sua volta, habituados à máscara, Candidinha não<br />

consegue convencer ninguém de que sua momice de sempre não passava<br />

de fingimento e de que sua verdadeira identidade era cruel e<br />

vingativa, perdendo então a identidade e enlouquecendo.<br />

Assim, na turbulenta narrativa de Brandão, certas imagens<br />

contraditórias são recorrentes, como a árvore e o húmus, representantes<br />

de uma natureza cósmica; a máscara e o sonho, representantes<br />

do fingimento e da opressão da civilização; a ruína e a fantasmagoria<br />

representantes do horror; os pobres a um tempo parte da paisagem<br />

degradada e horrível e também capaz de despertar afetividade nos<br />

narradores comovidos; enfim, imagens que aparecem em diferentes<br />

nuances do claro-escuro pesadelo pelas obras da segunda fase de Raul<br />

Brandão. Na obra de Brandão, contemporâneo da eclosão das<br />

vanguardas num mundo em que a homogeneidade e a linearidade<br />

não mais se sustentam e onde as diferenças já começam a se insinuar,<br />

a convivência de contrários concorrentes é constante seja nos espaços,<br />

nas sociedades, na natureza, como no interior dos entes e do<br />

próprio ser humano, enfim tudo e todos feitos para a vida e para a<br />

morte, pela beleza e pelo horror, pelo bem e pelo mal.<br />

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RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 49


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

OS BARES DA VIDA:<br />

ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE<br />

E DE CONSTRUÇÃO POÉTICA<br />

Leila Medeiros de Menezes (UERJ)<br />

klmmenezes@yahoo.com.br<br />

A força do botequim – como a da praia, outra<br />

peculiaridade desta leal e heróica capital – está<br />

no seu espírito democrático. Ele acolhe sem distinção,<br />

e sempre com afeto, o boêmio inveterado<br />

e o empresário entediado, a dama respeitosa e a<br />

garota serelepe – a todos o botequim oferece<br />

sem questionar a descontração e a magia de sua<br />

cultura. Basta chegar e ir sentando, isso quando<br />

há onde sentar (Macieira, 2004).<br />

Falar de bar e botequim é falar de tradição, de descontração,<br />

de encontros (e também desencontros). Este trabalho objetiva apresentar<br />

o percurso e a teia que se vai tecendo pelas muitas esquinas,<br />

nos bares e botequins da cidade do Rio de Janeiro, em especial os localizados<br />

na área que chamaremos aqui de grande Tijuca. Esta área<br />

engloba os bairros da Tijuca, Vila Isabel, Estácio, Andaraí, Grajaú,<br />

Maracanã, Mangueira – berço do samba e de muitos compositores da<br />

Música Popular Brasileira. A região é responsável também pelo surgimento<br />

de muitos dos movimentos musicais e do lançamento de<br />

grandes nomes da nossa música brasileira.<br />

É Macieira quem declara que “o botequim (e eu acrescentaria<br />

o bar) está impregnado de carioquice, carrega a alma desta cidade<br />

cosmopolita e brasileiríssima, materna e mundana, multicultural e<br />

singular” (Idem). Pode ser considerado o símbolo do jeito carioca de<br />

ser e de viver.<br />

Os bares e botequins, caracterizados como verdadeiros espaços<br />

de sociabilidade e de musicalidade, tornaram-se, ao longo do<br />

tempo, ponto de encontro, centro de decisões, local democrático de<br />

diversão, descontração, criação, onde dialogam permanentemente diferentes<br />

e diferenças e onde muito da nossa música é (e foi) gestada,<br />

50<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

aliando-se quitutes harmônicos de sons e sabores, regados pela cervejinha<br />

“estupidamente gelada”, a um bom “papo amigo.”<br />

É bem verdade que nem todos os bares e botequins possuem a<br />

mesma alma carioca, os hoje chamados “pés-limpos” se distanciam<br />

dessa essência, pela sofisticação e pela clientela difusa que os freqüenta.<br />

É quase que um modismo conhecer esses bares modernos.<br />

Os mais autênticos são, sem dúvida, os “pés-sujos”, ou seja, os botequins<br />

em seu estado natural, onde não há sofisticação na decoração,<br />

na acomodação, muito menos nos serviços prestados aos fiéis clientes<br />

que, em sua grande maioria, são vizinhos desses bares ou moradores<br />

das redondezas.<br />

Esses estabelecimentos, conforme nos fala Mello, têm “o poder<br />

de ser muito mais do que um mero estabelecimento comercial,<br />

oferecendo em meio à grande densidade urbana do Rio, cantinhos<br />

onde nos sentimos tão à vontade, como se estivéssemos em casa”<br />

(Mello, 2004, p. 35). São eles verdadeiras extensões de muitos lares,<br />

oferecendo todo um clima de informalidade, de descontração, de carioquice.<br />

Martinho da Vila, um desses boêmios inveterados, define botequim<br />

como “um templo onde os solitários se sentem acompanhados<br />

com seus copos, pensando... pensando... ou padreando com um<br />

amigo, ou numa roda de camaradas de copo” (Vila, 2005, p. IV). O<br />

encontro, a descontração, a dor de cotovelo, a comemoração, a extensão<br />

do lar permeiam o cotidiano dos bares e botequins. As palavras<br />

de Goldenberg confirmam esse posicionamento: “e o botequim<br />

é um caos, é templo de muitos, é lar de multidões, refúgio dos que<br />

têm dor (...)” (Goldenberg, 2005, p. 13), o espaço da busca de algo<br />

mais no fundo do copo – confissões, soluções, brigas, paixões, descobertas,<br />

paqueras, criações, festas.<br />

O vocábulo botequim, segundo o Dicionário Aurélio, deriva<br />

da forma diminutiva de botica, uma espécie híbrida de armazém de<br />

secos e molhados e bar, estabelecimento tipicamente português, muito<br />

comum no Rio de Janeiro no início do século XX. Nessa época,<br />

quando a cidade ensaiava os primeiros passos como centro urbano<br />

cosmopolita, esses estabelecimentos proliferavam pelos espaços urbanos<br />

da cidade. Hoje eles são bem raros, mas alguns ainda teimam<br />

em resistir, desafiando o tempo.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 51


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

(...) vendiam produtos finos, como nacos de bacalhau e salames importados.<br />

Era comum também que servissem vinhos e outras bebidas<br />

alcoólicas à clientela, basicamente masculina, que vinha comprar as i-<br />

guarias no balcão. Tornou-se então um hábito beber com os amigos antes<br />

das compras da semana, e esta espécie de ritual foi incorporada à cultura<br />

boêmia da cidade (Mello, 2006, p. 27).<br />

A maioria dos estabelecimentos, que hoje resistem à modernidade,<br />

teve suas origens nessas mercearias, nos antigos cafés e confeitarias<br />

que surgiram após o período do Bota Abaixo, no governo<br />

Pereira Passos. Anteriormente as ruas eram consideradas lugares de<br />

negros, malandros e meretrizes, fazendo com que os referidos estabelecimentos<br />

tivessem, à época, projeção tímida e lenta. Não era a-<br />

conselhável que “as pessoas de bem” circulassem pelas ruas do Rio<br />

de Janeiro.<br />

A modernização da cidade no início do século XX, faz surgir<br />

a figura do flâneur, “incentivando” (Chacel, 2004, p. 21) a pequena<br />

burguesia a tomar as ruas; assim, como diz Chacel, “nasce o espírito<br />

do botequim” que, pouco a pouco, vai ganhando corpo até se tornar<br />

esse lugar privilegiado de encontros, de criação poética, de se fazer<br />

amigos, verdadeiro espaço de sociabilidade.<br />

Mello considera os botequins “achados arqueológicos”. Podem<br />

ser vistos, segundo Chavel, “museus vivos da cidade, onde passado<br />

e presente conversam” (Idem). Exemplares desses achados podem<br />

ser ainda encontrados no centro da cidade; a exemplo podemos<br />

citar o Paladino na rua Uruguaiana, o Villarino na avenida Calógeras.<br />

O encontro com “amigos de bar”, após um duro dia de trabalho,<br />

veio se tornando uma prática cotidiana nessa mui heróica cidade<br />

de São Sebastião do Rio de Janeiro. Atualmente, está presente na<br />

“alma” da cidade essa quase necessidade de encontro, somando samba<br />

(a alegria), suor (o trabalho) e cerveja (a descontração). É nessa<br />

mistura saudável e feliz que muito dos “papos de bar” acabam por<br />

servir de inspiração a artistas-compositores, transformando-se em belas<br />

criações poéticas.<br />

Foi o bar alemão Adolf, hoje o famoso e tradicional Bar Luis,<br />

situado à rua da Carioca, na pessoa de seu proprietário Adolf Rumjaneck,<br />

que introduziu, no início do século XX, por uma estratégia de<br />

52<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

marketing, a música nos bares da cidade para fazer frente aos seus<br />

concorrentes:<br />

Adolf se viu compelido a criar nova campanha de marketing, desta<br />

vez para se destacar da concorrência – o chope berrante – que nada mais<br />

era do que a contratação de músicos e cantores de modinha para atrair a<br />

freguesia. (Idem, grifo nosso)<br />

Possivelmente a expressão chope berrante usada por Adolf<br />

foi introduzida para justificar a altura de voz dos cantores para se fazerem<br />

ouvir em meio ao burburinho intenso que tomava o salão repleto<br />

dos fieis freqüentadores do bar.<br />

E a música passa a se fazer presente nas mesas dos bares.<br />

Uma caixa de fósforos, um violão, um grupo de amigos (ou não), um<br />

balcão ou uma mesa de bar são ingredientes fundamentais para que<br />

ela (a música) se faça presente, e as preocupações e as tristezas sejam<br />

aplacadas e se comemore / “bebemore” as alegrias. Assim como<br />

a música se faz presente nos bares, os bares são matéria-prima privilegiada<br />

no cancioneiro popular. Bar e música formam, portanto, um<br />

binômio perfeito para a criação poética. Nasceram um para o outro.<br />

Segundo Vieira,<br />

(...) desde que o primeiro português abriu as portas do primeiro botequim<br />

na cidade, bar e música, nesta terra de São Sebastião do Rio de<br />

Janeiro, são como queijo e goiabada, torresmo e moela, pão e manteiga.<br />

Nasceram um para o outro (Vieira, 2004, p. 51).<br />

E é tão forte essa combinação etílico-musical que os proprietários<br />

não simpáticos à música se vêem obrigados a colocar cartazes<br />

nas áreas de circulação do(s) estabelecimento(s): “É proibido batucar<br />

ou cantar nas mesas”. Hoje muitos cantos e recantos do Rio se<br />

inundam de música, de domingo a domingo, colorindo, ainda mais,<br />

os tons fortes da cidade.<br />

É Gonzaguinha quem nos oferece o espaço da descontração,<br />

da alegria do encontro, nos versos de seu poema-canção E vamos à<br />

luta<br />

Aquele que sai da batalha<br />

Entra num botequim<br />

Pede uma cerva gelada<br />

E agita na mesa uma batucada (Gonzaga Júnior, 1980)<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 53


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

O cartunista Jaguar, outro boêmio inveterado, em artigo publicado<br />

na Revista Argumento, afirma que “bar é melhor do que lar”<br />

(Jaguar, 2005, p. 8) e, com seu bom humor de sempre, ensina-nos<br />

como deve ser um botequim de verdade: “de preferência razoavelmente<br />

limpo. Mas não a ponto de a gente pensar que está bebendo<br />

numa enfermaria. Ninguém morre de infecção contraída em bar. E<br />

quantos já morreram de infecção hospitalar” (Costa e Silva, 2006,<br />

ano 1, nº 12)? O posicionamento de Jaguar justifica a sua presença<br />

marcante nos muitos bares da cidade. É ele um verdadeiro flâneur,<br />

andarilho, circulando de bar em bar.<br />

Bar (botequim) e música formam, como já declaramos, um<br />

binômio perfeito. Os bairros de Vila Isabel, Estácio e Tijuca, em especial,<br />

sempre foram celeiro da boa música e berço de grandes compositores.<br />

Só para citarmos alguns: Noel Rosa, Ismael Silva, Aldir<br />

Blanc, Gonzaguinha, Ivan Lins, Martinho da Vila, Tim Maia, Luiz<br />

Melodia, Moacyr Luz, Erasmo Carlos, dentre tantos outros.<br />

Os bares localizados na região que estamos denominando de<br />

grande Tijuca vêm, sem dúvida, ao longo de décadas (a história está<br />

aí para comprovar), espaços privilegiados onde muitos movimentos<br />

musicais têm surgido, a exemplo podemos citar o MAU (Movimento<br />

Artístico Universitário), surgido nos encontros musicais na casa do<br />

psiquiatra Aloísio Portocarreiro, rua Jaceguai 27; a Jovem Guarda,<br />

com sua origem no Bar do Divino, à rua Haddock Lobo; a revitalização<br />

das bandas e dos blocos carnavalescos, com “sede” em bares tijucanos<br />

etc.<br />

O “bar da dona Maria”, situado à rua Garibaldi, na Muda (Tijuca),<br />

não foge à regra. O violão é sempre presença marcante naquele<br />

espaço de convivência de tijucanos (ou não) de muitas paragens.<br />

Aldir Blanc, vizinho ilustre do bar, e Moacyir Luz (ex-vizinho), por<br />

exemplo, são freqüentadores assíduos. Fazem do bar a extensão do<br />

lar. O local é ponto de encontro de trabalhadores, políticos, músicos<br />

e intelectuais. 2 No período pré-carnavalesco o bar passa a ser sede do<br />

já tradicional bloco Não muda nem sai de cima.<br />

2<br />

Para saber mais sobre o assunto, indicamos a leitura dos artigos de Lená Medeiros de Menezes<br />

sobre a imigração portuguesa.<br />

54<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Segundo a História dos bairros, em volume que trata da Tijuca,<br />

o “bar da dona Maria”, assim chamado carinhosamente por seus<br />

freqüentadores para enfatizar a presença marcante de sua proprietária,<br />

a portuguesa dona Maria do Rosário, que continua à frente da<br />

administração do bar, apesar dos seus quase oitenta e cinco anos. O<br />

nome oficial do bar é Café e Bar Brotinho, mas este é apenas um título<br />

na parede.<br />

(...) O Café e Bar Brotinho é uma referência do samba carioca. E por<br />

isso mesmo acabou se tornando uma síntese do que é ser Tijucano. A<br />

alma do pequeno estabelecimento é tangível. A alegria sábia no rosto da<br />

senhora portuguesa, que comanda tudo de trás do balcão, convence o<br />

freqüentador de que ela está realmente numa embaixada segura de sua<br />

casa, requisito primaz de um boteco. Os velhos retratos de times e sambistas<br />

espalhados pelas paredes surradas pelos [mais de] sessenta anos de<br />

funcionamento, fazem também do bar um templo para a tranqüilidade e a<br />

meditação dos sempre bem-vindos, famosos ou não, fregueses” (Bairros,<br />

2000, p. 82).<br />

Na expressão “templo para a tranqüilidade e meditação” fica<br />

enfatizada, mais uma vez, a máxima de que bar e lar, para a turma<br />

boêmia, são indissociáveis. Também para dona Maria, o bar “é a<br />

embaixada segura de sua casa”, portanto lar e bar se confundem no<br />

seu cotidiano.<br />

Não foi por acaso que a Prefeitura do Rio de Janeiro escolheu<br />

a Tijuca, justamente nas proximidades do “bar da dona Maria”, para<br />

instalar o Centro de Referência da Música Carioca 3 , em um antigo<br />

casarão, em estilo eclético, construído em 1939, que ainda preserva<br />

muito de sua beleza original e que hoje abriga a memória da música<br />

carioca, além de ter se tornado local de encontro de músicos e de<br />

lançamento de novos nomes da música carioca.<br />

Os bares e botequins, para os “boêmios de plantão”, funcionam,<br />

como já declaramos, quase que como uma extensão do lar. O<br />

poeta-compositor 4 Adir Blanc, também grande freqüentador dos ba-<br />

3<br />

Centro de Referência da Música Carioca, rua Conde de Bonfim, esquina com rua Garibaldi,<br />

exatamente em frente ao “bar da dona Maria”, point de reuniões musicais, ponto de encontro<br />

de músicos de renome e de anônimos.<br />

4<br />

Estamos chamando de poeta-compositor aqueles poetas que têm seus poemas musicados;<br />

da mesma forma que utilizaremos a expressão poema-canção para as poesias musicadas.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 55


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

res cariocas, declarou em uma de suas crônicas publicada no Jornal<br />

do Brasil que<br />

É no buteco da esquina que arquitetamos nossos projetos mais sublimes,<br />

nossos sonhos mais elevados – os mesmos que desmoronam assim<br />

que enfiamos a chave na fechadura do que se convencionou chamar<br />

de residência. Tudo bem. O lar é meu segundo bar. (Blanc, 2005, p. B5,<br />

grifo nosso)<br />

A declaração de Blanc dialoga perfeitamente com os versos<br />

do poema-canção Último desejo, de Noel Rosa:<br />

Às pessoas que eu detesto<br />

Diga sempre que eu não presto<br />

Que meu lar é o botequim<br />

Que eu arruinei sua vida<br />

Que eu não mereço a comida<br />

Que você pagou pra mim (Rosa, 1999)<br />

Como podemos verificar, tanto Noel Rosa, quanto Aldir<br />

Blanc, quanto Jaguar misturam lar e bar como espaços de intenso<br />

convívio, não havendo limites que determinam o espaço das suas a-<br />

ções. Para eles, do lar para o bar o trânsito é livre e intenso, criando,<br />

assim, uma cenografia, onde lar e bar são “ao mesmo tempo a fonte<br />

do discurso e aquilo que ele engendra” (Maingueneau, 2001).<br />

Além de Aldir Blanc e Noel Rosa, outros poetas-compositores<br />

fizeram do bar tema quase que obrigatório na descrição do cotidiano<br />

carioca. São muitas as composições que privilegiam esse espaço<br />

tão carioca de ser e de viver.<br />

Os freqüentadores dos bares formam uma verdadeira comunidade<br />

boêmia, na medida em que suas crenças e convicções são partilhadas<br />

nas mesas dos bares.<br />

Luiz Gonzaga, na composição Mesa de bar, declara que<br />

(...) mesa de bar é onde se toma um porre de liberdade<br />

companheiros em pleno exercício de democracia (Gonzaga, 1998)<br />

Território livre para se pensar, para se viver, para se fazer a-<br />

migos, para se criar. É esse “porre de liberdade” tão bem colocado<br />

pelo compositor.<br />

56<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Esse território livre é confirmado por Aldir Blanc, na composição,<br />

em parceria com João Bosco, intitulada De frente pro crime,<br />

onde faz uma verdadeira crônica do cotidiano<br />

O bar mais perto depressa lotou<br />

Malandro junto com trabalhador<br />

Um homem subiu na mesa do bar<br />

E fez discurso pra vereador.<br />

Nos versos “malandro junto com trabalhador” e “fez discurso<br />

pra vereador” fica evidenciado esse espaço democrático anunciado<br />

por Luiz Gonzaga. Os versos seguintes apresentam esse espaço de<br />

todos e onde tudo pode acontecer:<br />

Veio o camelô vender<br />

Anel, cordão, perfume barato<br />

Baiana pra fazer pastel<br />

E um bom churrasco de gato<br />

Quatro horas da manhã<br />

Baixou o santo na porta-bandeira<br />

E a moçada resolveu parar<br />

E então...<br />

Tá lá o corpo estendido no chão (Blanc & Bosco, 2005)<br />

Chico Buarque em Com açúcar, com afeto ratifica a descontração,<br />

a mesa de bar como “divã” para sufocar tristezas e comemorar/bebemorar<br />

alegrias<br />

No caminho da oficina<br />

Há um bar em cada esquina<br />

Pra você comemorar<br />

Sei lá o quê...<br />

E continua falando da alegria do encontro, do fazer novos a-<br />

migos, do prazer do cantar e do encantar<br />

Sei que alguém vai sentar junto<br />

Você vai puxar assunto<br />

Discutindo futebol<br />

(...)<br />

Na caixinha um novo amigo<br />

Vai bater um samba antigo<br />

Pra você rememorar<br />

Sei lá o quê... (Holanda, 2004)<br />

A intimidade, a relação lar e bar ficam enfatizadas nos versos<br />

de Noel Rosa em Conversa de botequim, onde o bar é considerado o<br />

escritório<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 57


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

E ordene ao seu Osório<br />

Que me mande um guarda-chuva<br />

Aqui pro nosso escritório<br />

Seu garçom me empresta algum dinheiro<br />

Que eu deixei o meu com o bicheiro (Rosa, 2004)<br />

Finalizando, Carlinhos e Franco convidam-nos a “tomar um<br />

porre” de felicidade, bebendo a vida de bar em bar; aqui, até a linguagem<br />

é descontraída, bem coloquial, a exemplo destacamos os<br />

termos “to” e “cerva”.<br />

Hoje eu vou tomar um porre, não me socorre que eu tô feliz<br />

Nessa eu vou de bar em bar beber a vida que eu sempre quis<br />

Garçom, garçom, bota uma cerva bem gelada aqui na mesa<br />

Que bom, que bom, minha alegria deu um porre na tristeza<br />

(...)<br />

(Carlinhos e Franco, 1991)<br />

E é nesta mesma cidade que, em meio a tanta violência, a<br />

problemas de todas as ordens, essas “gentes humildes” acordam cedo<br />

diariamente para trabalhar e ainda encontram tempo e espaço para,<br />

nos bares e botequins, serem samba, suor e cerveja, de domingo a<br />

domingo, buscando, como diz Drummond, “a poesia inexplicável da<br />

vida”. É justamente dessa matéria-prima que se nutrem nossos poetas-compositores.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BAIRROS do Rio: Tijuca e Floresta. Rio de Janeiro: Trainha/Prefeitura<br />

do Rio, 2000.<br />

BLANC, Aldir & BOSCO, João. De frente pro crime. In. Novo Millennium,<br />

João Bosco, 2005.<br />

BLANC, Aldir. Rua dos Artistas: diaboldô. In. Jornal do Brasil –<br />

Caderno B, Rio de Janeiro, 5 de maio de 2005.<br />

CARLINHOS e FRANCO. De bar em bar: Didi um poeta. Sambaenredo<br />

do Carnaval de 1991 do GRES União da Ilha do Governador.<br />

CHACEL, Cristina. A cidade detrás do balcão. In. Rio Botequim: 50<br />

bares e botequins com a alma carioca. 6ª ed. Rio de Janeiro: Casa da<br />

Palavra, 2004.<br />

58<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

COSTA E SILVA, Álvaro. Jaguar, o memorioso. In. Avenida Central:<br />

o guia de cultura e lazer do Centro e da Lapa. Rio de Janeiro,<br />

2006, ano 1, nº 12.<br />

GOLDENBERG, Eduardo. Meu lar é o botequim: histórias, palpites<br />

e feitiço sem fim. Rio de Janeiro: Casa Jorge, 2005.<br />

GONZAGA, Luiz. Mesa de bar. São Paulo: Universal, 1998.<br />

HOLANDA, Chico Buarque de. Com açúcar, com afeto. Construção,<br />

2004.<br />

JAGUAR. Bar é melhor que lar. In. Revista Argumento. Rio de Janeiro,<br />

nº 11, outubro de 2005.<br />

GONZAGA JÚNIOR, Luiz. E vamos à luta! In: De volta ao começo.<br />

São Paulo: Emi-Odeon, 1980.<br />

MACIEIRA, Ricardo. Rio botequim: 50 bares e botequins com a alma<br />

carioca. 6ª ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2004.<br />

MAINGUENEAU, Dominique. A cena de enunciação. In. Análise<br />

de textos, 2001.<br />

MELLO, Paulo Thiago de. Bar é um achado arqueológico. In. O<br />

Globo. Rio de Janeiro, 23/4/2006.<br />

MELLO, Paulo Thiago de. Pé-sujo, o botequim no seu estado mais<br />

puro. In. Rio Botequim: 50 bares e botequins com a alma carioca. 6ª<br />

ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2004.<br />

ROSA, Noel. Conversa de botequim. In. Dori Cayme: Influências,<br />

2004.<br />

ROSA, Noel. Último desejo. In. Meus Momentos 1, Nana Cayme,<br />

1999.<br />

VIEIRA, Marceu. Batuque na mesa. In. Rio Botequim: 50 bares e<br />

botequins com a alma carioca. 6ª ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,<br />

2004.<br />

VILA, Martinho da. Bar, um lugar sagrado. (Prefácio). In. LUZ,<br />

Moacyr . Manual de sobrevivência nos botequins mais vagabundos.<br />

Rio de Janeiro: Senac-Rio, 2005.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 59


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

OS SERTÕES: ARTE E HISTÓRIA<br />

Victoria Saramago (UERJ)<br />

vicsaramago@hotmail.com<br />

Que Os sertões ocupam um lugar único na tradição literária<br />

brasileira, certamente não se pode negá-lo. Comparada por inúmeros<br />

críticos às grandes narrativas de guerra da literatura ocidental, como<br />

a Ilíada, a Canção de Roland e Guerra e paz, trata-se de uma obra<br />

que ultrapassa classificações como relato histórico ou depoimento,<br />

constituindo um dos documentos fundadores de nossa nacionalidade.<br />

Tal singularidade, no entanto, não advém apenas das qualidades<br />

da obra, tanto tomada como documento histórico quanto como<br />

ficção. É precisamente um de seus aspectos mais intrigantes e discutidos<br />

esta dificuldade de inseri-la no campo da história e da ciência<br />

ou no da literatura e das belas-letras. Afinal, é evidente a intenção de<br />

Euclides da Cunha de montar um painel do sertão brasileiro e de suas<br />

gentes que tenha a credibilidade de uma tese científica. O próprio autor<br />

afirma, na “Nota Preliminar” a Os sertões, que “intentamos esboçar,<br />

palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os<br />

traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil”<br />

(Cunha, 2002, p. 65). Ou seja, Euclides não apenas se propõe a um<br />

estudo do sertanejo – o que naturalmente denota antes um caráter científico<br />

do que propriamente literário –, como destina sua obra, sobretudo,<br />

aos “futuros historiadores”, o que a inseriria automaticamente<br />

num âmbito histórico e sociológico.<br />

Porém, o autor conclui a mesma “Nota Preliminar” com uma<br />

citação de Taine na qual se insurge contra “os autores que não alteram<br />

nem uma data, nem uma genealogia, mas desnaturam os sentimentos<br />

e os costumes, que conservam o desenho dos acontecimentos<br />

mudando-lhes a cor, que copiam os fatos desfigurando a alma” (Cunha,<br />

2002, p. 67). Aqui o tom parece passar por uma mudança: não<br />

basta fornecer dados objetivos, mas é preciso transmitir-lhes a alma e<br />

o colorido; e vai mais longe quando coloca esta última condição como<br />

mais importante ainda do que os próprios dados objetivos. Começa<br />

então a ganhar força a possibilidade de a concepção de história<br />

de Euclides comportar variações em relação à concepção positivista<br />

60<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

e oitocentista de que é herdeiro. Caberia ao historiador não apenas<br />

coletar e dispor rigorosamente as informações que integrarão seus<br />

escritos, mas também atribuir a elas uma interpretação e uma organização<br />

que muito as aproximariam de uma obra ficcional. Desse modo,<br />

o leitor não apenas ficaria a par dos acontecimentos, mas teria<br />

deles uma experiência significativamente mais vívida e marcante.<br />

Essa ambivalência de Os sertões, como já fora mencionado,<br />

foi objeto de inúmeras discussões. Como classificá-lo, enfim? Considerar<br />

ficção ou poesia uma obra cujo subtítulo de um dos capítulos<br />

é “Complexidade do Problema Etnológico no Brasil”? Ou tratar como<br />

tese histórica um documento cuja linguagem admite extravagâncias<br />

da ordem de “paraíso tenebroso” ou “tumulto sem ruídos” (Bosi,<br />

1994, p. 310)? A opinião dos críticos se divide. Alguns não negam a<br />

impossibilidade de classificá-lo de uma forma ou de outra, como é o<br />

caso de Alfredo Bosi: “é preciso ler esse <strong>livro</strong> singular sem a obsessão<br />

de enquadrá-lo em um determinado gênero literário” (Bosi,<br />

1994, p. 309). Outros tomam partido com mais clareza.<br />

Afrânio Coutinho, por exemplo, defende abertamente Os sertões<br />

como obra de ficção no artigo “Os Sertões, obra de ficção”<br />

(1995): “de qualquer modo, todavia, <strong>livro</strong> de ciência é que não é.<br />

Euclides era um artista, um ficcionista, um criador de tipos, tal qual<br />

um romancista” (Coutinho, 1995, p. 66). E para embasar seu argumento,<br />

atenta para a liberdade formal que sempre caracterizou o gênero<br />

romance. Não pretende, com isso, classificar o <strong>livro</strong> como um<br />

romance, mas sim como um “romance-poema-epopéia, no qual predomina<br />

o sentimento trágico”, sendo a típica tendência do romance à<br />

experimentação mais um dos ingredientes que possibilitaram a criação<br />

da obra.<br />

Já Leopoldo M. Bernucci, no Prefácio a Os sertões (2002),<br />

considera impróprio classificá-lo como uma obra de ficção, apesar de<br />

observar que “um dos seus discursos mais tonificantes [é] aquele que<br />

imita o da ficção” (Bernucci, 2002, p. 42). Uma vez que, entretanto,<br />

nem todos os seus discursos passaram por um processo de ficcionalização,<br />

não seria correto considerar a obra como tal. Bernucci ressalta,<br />

porém, a profusão de quadros épicos, o que a aproximaria da épica.<br />

Ainda assim, isso não significa se tratar de uma obra ficcional,<br />

pois, como sustenta o autor, a “linguagem épica [é uma] linguagem à<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 61


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

qual o conceito de ficcionalidade não se aplica da mesma forma como<br />

se aplicaria ao romance.” (Bernucci, 2002, p. 44)<br />

Uma breve comparação entre as propostas de Coutinho e<br />

Bernucci já podem delinear uma idéia da polêmica formada em torno<br />

da questão, que atravessou o século XX. Como efeito, já em 1938 o<br />

Itamarati realizava um ciclo de conferências para discuti-la, como informa<br />

Olímpio de Souza Andrade em História e interpretação de Os<br />

sertões (Andrade, 2002, p. 403). O autor, inclusive, traça nesse <strong>livro</strong><br />

um excelente panorama da recepção de Os sertões e das diferentes<br />

opiniões acerca dos problemas de defini-lo como uma obra literária<br />

ou como um documento histórico-sociológico. Andrade nota também<br />

que as duas primeiras partes – “A terra” e “O homem” – possuem<br />

um discurso mais comprometido com a ciência e a história, ao passo<br />

que a terceira parte – “A luta” – se permitiria uma maior liberdade<br />

tanto no tom da linguagem quanto nos quadros narrativos, o que a<br />

aproximaria bem mais do que as outras da ficção. O autor cita, inclusive,<br />

uma série de pequenas incongruências e informações deturpadas<br />

presentes na terceira parte, apesar de afirmar que, como um todo,<br />

ela não difere dos outros relatos sobre o episódio.<br />

Andrade traz à tona também um dado importantíssimo, já anteriormente<br />

mencionado no presente trabalho, relativo à própria concepção<br />

de história defendida por Euclides. Nesse ponto, é de extrema<br />

importância o trecho de Taine que serve de conclusão à “Nota Preliminar”<br />

de Os sertões, uma vez que nele ficaria explícita a idéia de<br />

que o historiador gozaria de uma liberdade sensivelmente maior de<br />

recompor e interpretar os fatos de acordo com seu próprio entendimento<br />

e até mesmo sua imaginação. Segundo Andrade,<br />

O fato é que, realizando o seu trabalho de fotomontagem e poesia,<br />

Euclides não ignorava, como hoje ensinam os mestres no gênero, que a<br />

História se faz através de fontes, pesquisas e documentos, mas que a sua<br />

elaboração participa da obra de arte, necessitando de imaginação para recriar<br />

o que aos poucos se extinguiu. (Andrade, 2002, p. 438-439)<br />

Da mesma forma, Bernucci já ressaltara essa noção euclidiana<br />

de história, ressaltando que com ela convivia uma outra, essencialmente<br />

aristotélica, que compreendia a verdade histórica por oposição<br />

aos fatos imaginados.<br />

62<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Com efeito, a instabilidade na conceituação de uma verdade<br />

histórica parece ocupar a raiz do problema. Afinal, se Euclides admite<br />

um discurso histórico um tanto romanceado, não há estranheza alguma<br />

no fato de circunscrever Os sertões nos limites da história e,<br />

conseqüentemente, endereçá-lo aos futuros historiadores, como faz<br />

na “Nota Preliminar”. O maior problema, nesse caso, seria aceitar<br />

essa sua concepção de história, tendo em vista suas fortes discrepâncias<br />

para com a concepção mais comumente aceita, i. e., a aristotélica.<br />

Aqui entraria então uma discussão mais ampla, sobre o que se<br />

deve entender por história, e até que ponto a imaginação e a ficcionalização<br />

devem ser admitidas ou rechaçadas no discurso histórico.<br />

Se aceitarmos, por exemplo, os argumentos de um teórico<br />

como Hayden White, segundo os quais o historiador promove uma<br />

recriação dos fatos de acordo com as expectativas da sociedade a que<br />

pertence, sendo esta recriação portanto bastante próxima da criação<br />

literária (White, 2001), não há empecilhos à classificação de Os sertões<br />

como um documento histórico. Para White, as narrativas históricas<br />

não estruturas simbólicas ou metáforas de longo alcance, e a<br />

parcialidade do historiador está presente na própria linguagem que<br />

emprega na descrição dos fatos. Nesse caso, Os sertões seria uma<br />

narrativa histórica que, por se valer de uma linguagem extremamente<br />

trabalhada, e por isso mesmo destoante da linguagem predominantemente<br />

utilizada nesse tipo de documento, ressaltaria aquilo que, no<br />

discurso histórico, aproxima-se do literário. E qual seria o resultado<br />

prático de tal procedimento? Ora, Euclides já o indica com clareza<br />

em sua “Nota Prelimiar”:<br />

Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.<br />

E foi, na significação integral da palavra, um crime.<br />

Denunciemo-lo. (Cunha, 2002, p.67)<br />

De fato, a obra é perpassada por um inegável caráter de denúncia,<br />

ainda que, como afirmou o autor, seu objetivo não fosse o de<br />

defender os sertanejos, mas antes o de fazer vir à luz a verdade.<br />

Antes da publicação de Os sertões, a Guerra de Canudos já<br />

ganhara espaço na imprensa mundial, além dos inúmeros <strong>livro</strong>s e depoimentos<br />

sobre ela produzidos na época. Os detalhes sórdidos do<br />

crime levado a cabo em Canudos, porém, tanto devido à censura oficial<br />

à imprensa quanto à influência de uma mentalidade colonialista,<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 63


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

a princípio passaram ao largo da opinião pública. A isso some-se a<br />

incomunicabilidade do movimento que, segundo Berthold Zilly, levou<br />

o exército a “agir num homizio, (...) pensando que “a História<br />

não iria até ali”, de modo que os seus crimes ficariam silenciados”<br />

(Zilly, 2002, p. 431). Assim, os sertanejos eram sumariamente acusados<br />

de monarquistas e anti-patrióticos, representando uma ameaça<br />

ao estado republicano recém-constituído, o que deveria bastar para<br />

convencer a opinião pública da necessidade da guerra e abafar as a-<br />

trocidades cometidas. Com efeito, foi só a partir da publicação de Os<br />

sertões que muitas delas vieram à tona, e mesmo assim os responsáveis<br />

permaneceram impunes.<br />

Dessa forma, o <strong>livro</strong> já possui de partida um caráter de denúncia,<br />

bem claro na “Nota Preliminar” e que vai ganhando corpo ao<br />

longo do texto. Seu objetivo é essencialmente transformador: Euclides<br />

pretende, com sua obra, realizar na sociedade a mesma transformação<br />

que se opera em si próprio, quando, como correspondente da<br />

Folha de São Paulo na guerra alguns anos antes, seus preconceitos<br />

social-darwinistas foram cedendo lugar a uma observação mais autêntica<br />

tanto da barbárie de que eram vítimas os sertanejos quanto de<br />

seus motivos para lutarem e resistirem até o fim. Para esse objetivo,<br />

conta com fatos, dados históricos, informações precisas, ou seja, todo<br />

o aparato necessário à produção de um relato de guerra historicamente<br />

fundamentado, como tantos outros surgidos no período.<br />

O que fez, no entanto, com que esses tantos outros desaparecessem,<br />

ao passo que Os sertões se tornou epopéia nacional, um dos<br />

documentos-símbolo da nacionalidade brasileira? Qual era a força<br />

dessa obra, que escapava às outras e que determinou sua permanência<br />

na tradição literária brasileira? A essas questões, a meu ver, não<br />

há resposta possível sem levar-se em conta o aspecto literário da o-<br />

bra. Parece-me ser em grande parte devido à atemporalidade da obra<br />

de arte, que a leva a ultrapassar o contexto histórico e se firmar como<br />

uma obra permanentemente atual, que Os sertões manteve sua força<br />

e seu interesse até os dias de hoje.<br />

Destaca-se, por exemplo, o trabalho minucioso de Euclides<br />

para com a linguagem, cujos resultados foram, entre outros, extravagâncias<br />

como o “paraíso tenebroso” ou o “tumulto sem ruídos” já citados.<br />

É o que Alfredo Bosi chamaria de “barroco científico”:<br />

64<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

A expressão “barroco científico”, com que já se procurou batizar a<br />

linguagem, indica-lhe a essência, se em “barroco” visualizamos, antes de<br />

mais nada, um conflito interior que se quer resolver pela aparência, pelo<br />

jogo de antíteses, pelo martelar dos sinônimos ou pelo paroxismo do<br />

clímax. (Bosi, 1994, p. 310)<br />

Tal recurso lingüístico é verificado em inúmeros momentos,<br />

mas há outros procedimentos que caracterizam um tratamento mais<br />

tipicamente literário. Um dos mais interessantes talvez seja o modo<br />

cadenciado pelo qual terminam inúmeros capítulos ou sub-capítulos.<br />

Assim, após uma descrição mais objetiva da cena em questão, na<br />

qual não haveria muito espaço para um desenvolvimento mais artístico,<br />

é comum o autor inserir uma frase de efeito e finalizá-la com reticências,<br />

o que daria um tom significativamente mais dramático e<br />

poético à cena narrada. Em “Triunfos pra Telégrafo”, por exemplo,<br />

que integra o “Capítulo V” da “Quarta Expedição”, a última frase<br />

começa com o tom mais contido do sub-capítulo todo, porém seu final<br />

joga o leitor novamente ao drama da questão, cujo efeito é intensificado<br />

pelas reticências: “Mais verídicos, porém começaram desde<br />

o dia 27 de julho a seguir para o litoral, demandando a capital da Bahia<br />

– os documentos vivos da catástrofe...” (Cunha, 2002, p. 627)<br />

Os retratos humanos, da mesma forma, constituem trechos<br />

comoventes do texto. São os momentos nos quais Euclides ou se detém<br />

sobre o exemplo de algum personagem em particular, ou continua<br />

tratando da coletividade, mas por um viés visivelmente mais<br />

sensível. Pode-se perceber, nesses casos, uma verdadeira tentativa de<br />

destrinchar o drama humano que perpassa e transcende a questão histórica,<br />

numa busca por um universalismo que poderia também ser<br />

apontado como um dos grandes fatores para a permanência da obra.<br />

Note-se, por exemplo, a pungência do trecho em que se descrevem<br />

as mulheres de Canudos:<br />

Algumas valiam homens. Velhas megeras de tez baça, faces murchas,<br />

olhares afuzilando faúlhas, cabelos corredios e soltos, arremetiam<br />

com os invasores num delírio de fúrias. E quando se dobravam, sob o<br />

pulso daqueles, juguladas e quase estranguladas pelas mãos potentes, arrastadas<br />

pelos cabelos, atiradas ao chão e calcadas pelo tacão dos coturnos<br />

– não fraqueavam, morriam num estertor de feras, cuspindo-lhes em<br />

cima um esconjuro doloroso e trágico... (Cunha, 2002, p. 614)<br />

Deve-se lembrar ainda o próprio movimento geral da narrativa,<br />

que vai num crescendo cada vez mais intenso, até chegar às<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 65


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

grandiosas cenas de guerra nas batalhas finais, semelhantes às de<br />

Guerra e paz, por exemplo. Esse aumento progressivo da tensão<br />

dramática é, certamente, um dos aspectos mais arrebatadores da o-<br />

bra, e um dos grandes responsáveis por sua permanência na nossa<br />

tradição literária. “Onde Euclides mostra sua vocação de ficcionista,<br />

de romancista, é na sua capacidade para movimentar massas, jogá-las<br />

sinfonicamente, larga e numerosamente” (Oliveira, 1986, p. 210), a-<br />

firma Franklin de Oliveira.<br />

A tudo isso, acrescente-se o fato de o próprio Euclides, desde<br />

o início, ter planejado uma obra que ultrapassaria em muito o mero<br />

relato histórico:<br />

Desde o início, Os sertões é concebido como um <strong>livro</strong> da literatura<br />

universal e, antes de escrever a primeira linha, o seu autor já combinou<br />

com um letrado franco-brasileiro na Bahia, Pethion de Villar, uma tradução<br />

para o francês, língua franca da época. (Zilly, 2002, p. 344-345)<br />

Portanto, ambos os aspectos – o histórico e o literário – apresentam-se<br />

na obra com força suficiente para que se mostre infrutífera<br />

qualquer tentativa de classificá-la num determinado gênero que ignore<br />

algum deles. Franklin de Oliveira, cuidadoso a respeito do problema,<br />

propõe o que, a meu ver, seria a classificação mais interessante:<br />

uma obra de arte da linguagem (Oliveira, 1986, p. 208). Com isso,<br />

estaria respeitado o aspecto literário, sem que este excluísse o<br />

histórico-científico.<br />

Não devemos nos esquecer ainda de que essa dificuldade de<br />

classificação deve-se antes de tudo a uma discrepância entre a concepção<br />

de história hoje mais difundida e a que defendia Euclides. A-<br />

final, como já fora dito, para o próprio Euclides não havia problemas<br />

em tomar Os sertões como narrativa histórica, uma vez que esta última<br />

admitiria um tratamento literário. Nesse caso, levanta-se uma<br />

discussão acerca da definição e da função da história, bem como da<br />

(im)possibilidade de um historiador imparcial.<br />

Ao final, sobressai o fato de que, com essa dupla orientação,<br />

Euclides atingiu os dois grandes objetivos firmados para Os sertões:<br />

os dados históricos representaram uma denúncia bombástica das a-<br />

trocidades cometidas em Canudos e até então encobertas; ao passo<br />

que o admirável tratamento da linguagem e da narrativa deram à o-<br />

bra um lugar na literatura universal.<br />

66<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

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São Paulo: Ateliê Editorial: Imprensa Oficial do Estado, Arquivo<br />

do Estado, 2002.<br />

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Paulo: Cultrix, 1994.<br />

COUTINHO, Afrânio. Os Sertões, obra de ficção. In: CUNHA, Euclides.<br />

Obra completa. Vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.<br />

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ZILLY, Berthold. Uma construção simbólica da nacionalidade num<br />

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da Cunha. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2002.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 67


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

PERSUADIR EM NOME DE DEUS:<br />

A SERMONÍSTICA DE ANTÔNIO VIEIRA<br />

Aline Pereira Gonçalves<br />

Ao contrário do que muito se imagina, o termo Barroco não<br />

era corrente no século XVII, tampouco os artistas do período assim<br />

denominavam a arte que produziam. Apenas no século XX, o termo<br />

foi trazido por Wölfflin em Princípios Fundamentais da História da<br />

Arte, em que o autor busca sistematizar uma Kunstwissenschaft. Para<br />

tanto, o autor estabeleceu pares simetricamente opostos entre características<br />

relativas ao que denomina “arte barroca” e à arte clássica,<br />

como, por exemplo, as linhas confusas e opulentas de pinturas barrocas<br />

em contraposição à clareza e à simplicidade da pintura clássica.<br />

É essencial perceber, contudo, que a tentativa positiva de<br />

Wölfflin de estabelecer movimentos de superação histórica em sua<br />

ciência da arte acaba por deixar de fora nuances que tornam o referido<br />

período mais complexo do que tal denominação comporta. Em<br />

outras palavras,<br />

(...) a morfologia de Wölfflin se inclui na concepção hegeliana da<br />

história evolutiva do século XIX, que tenta situar cada época debaixo da<br />

etiqueta de um único conceito. Por isso, sua morfologia não considera a<br />

coexistência – que é historicamente observável - de vários estilos num<br />

mesmo tempo (Hansen, 1997, p. 11).<br />

O autor busca abarcar toda a diversidade da produção artística<br />

ocorrida entre os períodos do Renascimento e do Neoclassicismo,<br />

reunindo-a sob tal terminologia. Não por acaso, ainda na atualidade<br />

encontramos certa dificuldade em estabelecer traços gerais para a arte<br />

denominada “barroca”, já que não se trata de um movimento artístico<br />

de manifestações que seguem um ideal inspirador ou orientador,<br />

mas sim de diversas produções que não necessariamente buscam<br />

uma consonância, sendo apenas coetâneas. Do mesmo modo, cai por<br />

terra a tentativa vã de estabelecer opostos exatos entre traços da arte<br />

clássica e de uma unidade artística que não há. Tal busca por normatizar<br />

as manifestações culturais seiscentistas acabam por configurar<br />

“[uma] tentativa, um tanto forçada, de adequar obras diferentes, de<br />

diferentes estilos e períodos artísticos, ao conceito, ou ainda, sob ou-<br />

68<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

tra perspectiva, deformá-lo para que se torne possível aplicá-lo aqui<br />

e ali, indistintamente.” (Garammont, 1995, p. 96).<br />

Na historiografia literária brasileira, reflete-se a questão da<br />

ineficiência de tal terminologia. Observemos que o termo está ausente<br />

em Veríssimo (1954), Romero (1960) e Amora (1963), apresentando-se<br />

somente em Coutinho (1986) e Bosi (1992). Fica ainda<br />

mais claro o caráter estrangeirado desse termo em relação à produção<br />

literária que supostamente designa: apenas na segunda metade do século<br />

XX é que o termo ganha reconhecimento suficiente para figurar<br />

nos estudos da área.<br />

Outro aspecto a ser observado na crítica literária brasileira é o<br />

parecer que Antonio Candido apresenta em Formação da Literatura<br />

Brasileira. No prefácio da segunda edição, o autor explica o porquê<br />

de ter deixado as letras brasileiras do século XVI fora de seus estudos.<br />

Explica que não nega a existência de produção literária na época,<br />

mas que por tratar-se de “ralas e esparsas manifestações sem ressonância”<br />

(Candido, 1981, p. 15), não teria exercido influência em<br />

seus sucessores, bem como não havia obtido as condições necessárias<br />

para formar o esquema “autor-obra-público”, que Candido considera<br />

necessário para que seja formado um sistema literário.<br />

Notemos que a perspectiva do autor é consoante com a crítica<br />

literária romântica – aliás, como o próprio afirma –, e que, por não<br />

perceber uma atuação das letras seiscentistas num suposto processo<br />

de evolução linear da literatura nacional, acredita que essas não fazem<br />

parte da formação da mesma.<br />

Em Haroldo de Campos (1989), encontraremos objeções pertinentes<br />

aos posicionamentos de Candido. Aquele explica que se pode<br />

sim verificar traços das letras seiscentistas em manifestações literárias<br />

brasileiras posteriores, como na poesia Modernista, por exemplo.<br />

Logo, seria necessário distanciar-se da noção de continuidade linear<br />

para conseguir observar as “ressonâncias” daquela produção literária.<br />

Além disso, Campos questiona a validade do esquema apresentado<br />

por Candido, haja vista as condições sócio-culturais profundamente<br />

diversas entre os períodos referidos. Como consolidar tal<br />

esquema num momento cujo cenário era o de uma colônia, sem imprensa<br />

e de população majoritariamente analfabeta? Novamente, a<br />

preferência pela generalidade de traços classificatórios e a perspecti-<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 69


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

va atada ao anacronismo da época da qual se observa o objeto remoto<br />

impedem que tal manifestação artística seja apreciada em suas especificidades,<br />

atuando coerentemente com seu cenário contemporâneo.<br />

Uma característica determinante no desenho do panorama das<br />

letras seiscentistas é a vinculação entre Estado e Igreja. A arte era o-<br />

rientada pelo princípio horaciano de ensinar e deleitar concomitantemente,<br />

e deveria estar, em primeiro lugar, a serviço da moral cristã.<br />

Nesse cenário dos seiscentos, a produção satírica de Gregório de Matos,<br />

por exemplo, em que atua um olhar panorâmico e perscrutador,<br />

vem antes para denunciar e corrigir que para divertir e entreter:<br />

Notemos que, antes de tudo, tratamos de um período na história do<br />

Brasil, em que não há uma nação, mas sim uma colônia, que naturalmente<br />

deve seguir as leis de sua Metrópole. Dessa forma, o pensamento vigente<br />

estava totalmente atrelado ao Estado cristão absolutista ibérico do<br />

século XVII, bem como às normas e preceitos inerentes à prática inquisitorial<br />

católica, então em plena vigência. O olho da sátira é imbuído de<br />

absoluta autoridade, já que, como um porta-voz da correção e do Bem,<br />

fala do lugar da virtude, e é por intermédio de suas avaliações que há a<br />

manutenção das leis do Estado, sendo de sua alçada as funções de moralizar<br />

e de hierarquizar (Gonçalves, 2006, p. 134).<br />

Do mesmo modo, os sermões vieirianos traziam discursos cuja<br />

função primordial era a de persuadir o público receptor em nome<br />

da moral cristã. É importante ressaltar que, nessa época, conforme os<br />

preceitos vigentes, a retórica era de suma importância na formação<br />

educacional, principalmente a de orientação jesuíta. É certo que esses<br />

estudos têm como base a tríade clássica greco-latina, composta<br />

por Aristóteles, Cícero e Quintiliano.<br />

Para o primeiro, a dimensão persuasiva do discurso seria alcançada<br />

através de três elementos essenciais: o ethos, ou o caráter<br />

formulado pela voz daquele que discursa; o pathos, ou seja, a disposição<br />

de ânimos dos ouvintes para receber o discurso; e o logos, o<br />

discurso em si, pelo que demonstra ou parece demonstrar, de acordo<br />

com seu grau de verossimilhança. Posteriormente, os outros dois virão<br />

reafirmar os preceitos aristotélicos, enfatizando o caráter determinante<br />

da voz para os efeitos de persuasão pretendidos pelo discurso.<br />

Sendo assim, os textos escritos são compreendidos através de<br />

referenciais de recepção formados com base na audição, no som da<br />

voz. Teriam, portanto, que trazer em sua composição elementos que<br />

70<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

viabilizassem ao leitor a construção mental das emoções da voz latente,<br />

bem como a construção da figura do orador – ou ethos -, a fim<br />

de que a persuasão exercida sobre os receptores fosse efetiva. Daí,<br />

serem as cartas encaradas como “diálogo per absentiam”, por exemplo.<br />

Da mesma forma, o sermão, que ao ser declamado contava<br />

com elementos imediatos como o tempo, a circunstância e o auditório<br />

para que fosse bem sucedido em suas proposições, na forma escrita<br />

deveria viabilizar ao leitor uma construção da impressão da voz<br />

do orador e do ethos em sua leitura subjetiva, em elementos decisivos<br />

como o tom de voz e o ritmo de fala, entre outros.<br />

Naturalmente, não podemos saber dos traços que marcavam<br />

as pronunciações dos sermões de Antônio Vieira, mas, por meio dos<br />

cuidados dessa natureza presentes em seu registro escrito posterior,<br />

podemos perceber que tais preocupações estavam presentes na organização<br />

e na redação desses textos por parte do autor.<br />

A ordem dos jesuítas – ou “soldados de Cristo” -, da qual Vieira<br />

fazia parte, tinha como princípio ir mundo a fora levando a palavra<br />

de Deus. Sendo assim, sua produção sermonística não visava de<br />

modo algum ao puro deleite, mas sim ao ensinamento, à didática.<br />

Dessa forma, os elementos persuasivos utilizados deveriam estar<br />

sempre remetendo a uma verdade superior, como meio de revelação,<br />

e nunca devendo se encerrar no puro prazer estético.<br />

Por outro lado, a “tradução” das alegorias eclesiásticas de<br />

modo algum ficava a sabor da imaginação do público receptor. Elas<br />

deveriam obedecer a uma justa medida que viabilizasse seus efeitos<br />

persuasivos e imagéticos, mas que garantisse que o imaginário da<br />

audiência não fosse se dissipar para longe dos objetivos evangelizantes<br />

do sermão, em uma proliferação descontrolada de sentidos:<br />

Dessa forma, fiel aos preceitos retóricos contra-reformistas, o fingimento<br />

decoroso – o único aceitável no âmbito da ortodoxia católica -,<br />

dissimulando a verdade que, contudo, o fundamenta, consiste em acentuar<br />

a sinuosidade do percurso, multiplicar os meandros dos caminhos,<br />

que, no final das contas, sempre levam à revelação final, ad majorem Dei<br />

gloriam (Oliveira, 2005, p. 26).<br />

Essa questão foi amplamente abordada pelo autor no “Sermão<br />

da Sexagésima”, em que critica a ordem dos Dominicanos, cujos<br />

membros ficariam estáticos na Coroa – ao invés de espalharem a pa-<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 71


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

lavra de Deus, como o faziam os jesuítas -, proferindo discursos muito<br />

adornados, mas pouco eficientes e educativos.<br />

Se o ato de pregar era visto como o ato de semear a palavra<br />

divina, deveria ser simples como o ato de semear corretamente a terra,<br />

para garantir a integridade de seus frutos: “Compara Cristo o pregar<br />

ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza<br />

que de arte” (Vieira, 1975, p. 104).<br />

Essa simplicidade de que nos fala Vieira vem confrontar a<br />

tendência cultista de adornar excessivamente os textos, de modo a<br />

exigir maior agudeza de seus receptores. Sendo assim, o efeito é<br />

quase a construção de um jogo mental, uma disputa entre a agudeza<br />

intelectual do autor e do receptor, que para Vieira, pouco proveito tinha<br />

nos propósitos pedagógicos, que deveriam ser prioritários: “Não<br />

fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o<br />

sermão em xadrez de palavras” (Vieira, 1975, p. 105).<br />

Logo, o texto sermonístico para Antônio Vieira deveria ser<br />

acessível para que dele a maior parte possível de ouvintes pudesse tirar<br />

proveito, o que não significa que o texto necessitasse ser medíocre<br />

ou tacanho. Justamente aí está a agudeza do orador: conseguir<br />

achar o equilíbrio entre um sermão eficiente em seu conteúdo ao<br />

mesmo tempo que acessível em sua forma. Na formulação do próprio<br />

jesuíta:<br />

Como hão de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito<br />

distintas, e muito claras. Assim há de ser o estilo do pregador, muito<br />

distinto, e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo;<br />

as estrelas são muito distintas, e muito claras, e altíssimas. O estilo pode<br />

ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem<br />

e tão alto que tenham muito o que entender nele os que sabem. (...) Esse<br />

desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe<br />

culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita<br />

honra. (...) É possível que somos portugueses, e havemos de ouvir um<br />

pregador em português, e não havemos de entender o que diz?! (Vieira,<br />

1975, p. 106).<br />

O exagero dentro do sermão seria então uma falta de decoro,<br />

ou seja, um desvio em relação aos preceitos retórico-poéticos da é-<br />

poca, já que inadequado ao gênero discursivo e ao público receptor.<br />

A busca do equilíbrio seria essencial dentro do texto, pois o excesso<br />

72<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

ou o exagero seriam “vícios”, enquanto que aquele seria a “virtude” 5 .<br />

Logo, não se trata de uma crítica por parte de Antônio Vieira à existência<br />

dos recursos discursivos; o que há é uma discussão acerca do<br />

grau de uso dos mesmos, de forma que não acabem por desviar a matéria<br />

sermonística de sua função primordial: educar.<br />

Essa educação religiosa buscava consolidar a fé cristã e seus<br />

preceitos. Como se sabe, Igreja e Estado eram, então, elementos absolutamente<br />

indissociáveis entre si. Por isso, inevitavelmente o sermão<br />

acabava por trazer consigo lições acerca do funcionamento sócio-político<br />

do Estado, fundamentando e justificando seus mecanismos<br />

com explicações divinas. Em outras palavras,<br />

Pode-se dizer que no modelo sacramental dos sermões, não somente<br />

se acentuam os sinais da divindade no mundo das criaturas, mas também<br />

a propriedade delas na condução e governo deste mundo. A primeira teologia<br />

é política. Os testemunhos que a divindade dá de si não dissolvem<br />

as práticas do mundo; antes, reafirmam a possibilidade de compor progressivamente<br />

o mundo e a cristandade. O mistério da manifestação divina<br />

encoberta nas espécies terrenas não apenas orienta para Deus, como<br />

obriga a considerar que, para alcançá-lo, há um percurso real no interior<br />

dessas espécies a ser cumprido. (Pécora, 2000-1, p. 14).<br />

A argumentação presente no sermão extinguiria dúvidas do<br />

público por meio de respostas presentes nas revelações divinas, configuradas<br />

na concretude do mundo em que vive. A ponte entre o e-<br />

lemento impalpável da divindade e seu correspondente verificável<br />

seria a alegoria.<br />

Dessa forma, ratificando o que já vimos anteriormente, é de<br />

suma importância para a adequação do sermão ao decoro que a construção<br />

alegórica presente nos textos eclesiásticos não funcionasse<br />

como um jogo semântico, aberto a infinitas possibilidades. Trata-se<br />

antes de um jogo do qual já se conhece de antemão o resultado, já<br />

que e resposta é anterior ao “desafio”:<br />

(...) a retórica e a poética, apesar de extremamente valorizadas nas<br />

obras desses autores [seiscentistas], jamais assumem uma posição independente<br />

como artes discursivas, estando sempre subordinadas a um critério<br />

de verdade preexistente no âmbito da moral cristã. (Oliveira, 2005, p. 24).<br />

5<br />

Pode-se dizer [...] que um ser que realiza perfeitamente sua natureza ou sua essência situase<br />

num ponto eqüidistante em relação aos pólos opostos que, de tanto estarem no limite de<br />

sua definição, confinam com a monstruosidade. (...) o ser monstruoso é aquele que, de tanto<br />

‘extremismo’, acaba por escapar à sua própria natureza (Ferry, 2006, p. 153).<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 73


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

Um bom exemplo desse tipo de procedimento lingüístico é o<br />

“Sermão de Santo Antônio aos peixes”, em que Antônio Vieira a-<br />

nuncia que vai, a exemplo de Santo Antônio, dirigir suas palavras<br />

não aos homens, que não querem fazer bom proveito de seus ensinamentos<br />

– no caso a população do Maranhão -, mas sim ao mar, para<br />

que o ouçam os peixes, “Ao menos têm os peixes duas boas qualidades<br />

de ouvintes: ouvem e não falam”.<br />

Em um momento desse texto, o autor fala muito sobre o excesso<br />

de ambição que faz com que o peixe voador não se contente<br />

com nadar e queira voar. Com isso, acaba sendo alvo fácil dos pescadores,<br />

mais do que seus irmãos que se contentam com o espaço do<br />

mar que lhes foi designado por Deus. Dá a lição: “Quem quer mais<br />

do que lhe convém, perde o que quer e o que tem.”; e ainda faz uma<br />

construção irônica, pensando em como essas palavras seriam úteis<br />

aos homens, se seu auditório não fosse então de peixes: “Oh, que boa<br />

doutrina era esta para a terra, se eu não pregara para o mar!”.<br />

Notemos então que há no discurso de Vieira uma dualidade<br />

entre o que os homens deveriam ouvir e o que ouvem os peixes, configurando-se<br />

uma crítica ao que aproxima ambos e um elogio ao que<br />

difere esses daqueles, por serem atitudes melhores e mais dignas, a-<br />

inda que por insciência. Contudo, em nenhum momento essa dualidade<br />

é ambígua (Oliveira, 2005, p. 23), já que é bem clara a mensagem<br />

de correção moral que se quer passar aos homens do Maranhão,<br />

reais alvos das lições presentes nesse sermão.<br />

Ao estudarmos a sermonística veiriana, pareceu-nos bastante<br />

claro o papel fundamental que as construções alegóricas e as aproximações<br />

discursivas que propiciam exercem na formação dos sentidos<br />

pretendidos pelo orador. Todo o tempo, ele trabalha com analogias<br />

e metáforas, com elementos presentes que remetem a correspondentes<br />

ausentes, com presenças sensíveis que comprovam as Escrituras<br />

e corroboram sua veracidade.<br />

Precisamos perceber que a estética barroca, a que muitas vezes<br />

é atribuído o uso do exagero como fim em si mesmo, trabalha, na<br />

verdade com as noções de extremosidade e de suspensão, que têm<br />

como fim arrebatar o receptor, segundo nos esclarece Maraval:<br />

Definitivamente uma cultura do exagero, enquanto tal violenta, não<br />

porque propugnasse a violência e se dedicasse a testemunhá-la – embora<br />

74<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

também houvesse muito disso -, mas porque, pelo modo como nos apresenta<br />

o mundo, o artista barroco pretende que possamos sentir-nos admirados,<br />

comovidos pelos casos de violência tensão que ocorrem e que ele<br />

coleta: paisagens entenebrecidas por violência tormentosa; figuras humanas<br />

em “atitudes ferozes”; ruínas que nos falam da incontrolável força<br />

destruidora do tempo sobre a sólida obra do homem; e, o que mais vibração<br />

confere a uma criação barroca, a captação da violência no sofrimento<br />

e na ternura (Maraval, 1997, p. 333).<br />

Um exemplo significativo do uso da plasticidade para arrebatar<br />

o público espectador é o “Sermão da quarta-feira de cinza” de<br />

1672. Nessa pregação, Vieira lembra aos cristãos que o homem foi, é<br />

e será pó, e que o que diferencia vivos de mortos é somente o vento,<br />

o sopro divino:<br />

Deu o vento, levantou-se o pó: parou o vento, caiu. Deu o ventos, eis<br />

o pó levantado; estes são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído; estes<br />

são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos<br />

pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem<br />

vento, e por isso sem vaidade. Esta é a única realidade, e não há outra<br />

(Vieira, 2000-1, p. 55).<br />

Sendo assim, o cristão deve manter essa noção sempre em<br />

mente e, por isso, atentar para conduzir sua vida do modo mais correto<br />

possível. É de sua responsabilidade usar seu livre-arbítrio para<br />

viver de acordo com os preceitos da religião, afinal, quando chegar o<br />

Juízo Final, todos terão que prestar contas de suas ações, já que o pó<br />

caído tornará a ser pó levantado, e seu encaminhamento para o Céu<br />

ou para o Inferno dependerá de suas atitudes no presente.<br />

A questão do livre-arbítrio é essencial para que compreendamos<br />

modificações na mentalidade trazidas pelo pensamento cristão,<br />

em ruptura com o pensamento greco-latino que prevalecia até o triunfo<br />

daquele. A sociedade grega era hierárquica, baseada na distribuição<br />

desigual das “virtudes” aos homens pela natureza, e acreditava<br />

que cada um deveria exercer um determinado papel social, conformando-se<br />

com o que lhe cabia. É com o pensamento cristão que<br />

chega a noção de igualdade, de homens “irmãos”, não que se pretendesse<br />

que a natureza distribuísse equivalentes dons a todos. A questão<br />

era, na verdade, o uso que cada um faria de suas vantagens e qualidades.<br />

É aí que reside a idéia do livre-arbítrio, já que os homens<br />

têm a liberdade de procederem como lhes convier, e é a moral – e<br />

não mais suas capacidades inatas – que vai balizar suas condutas:<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 75


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

Substancialmente, ela [a moral cristã] nos diz o seguinte: existe uma<br />

prova indiscutível de que os talentos herdados naturalmente não são intrinsecamente<br />

virtuosos, que não têm nada de moral em si mesmos, e que<br />

todos, sem exceção, podem ser utilizados tanto para o bem como para o<br />

mal. [...] todos os dons naturais, herdados do nascimento, são, com certeza,<br />

qualidades, mas não no plano moral, pois todos podem ser postos a<br />

serviço do pior ou do melhor. [...] Apenas uma ação livre pode ser chamada<br />

de virtuosa, não uma coisa da natureza. Assim é que a partir de então<br />

o “livre-arbítrio” é posto no princípio de todo julgamento sobre a moralidade<br />

de um ato. [...] talvez, pela primeira vez na história da humanidade,<br />

é a liberdade e não a natureza que se torna o fundamento da moral.<br />

(Ferry, 2007, p. 93).<br />

Retomemos o sermão. O autor lembra aos cristãos que não se<br />

pode viver esta vida, repleta vaidades e opulências, como se fosse a<br />

única, mas sim lembrando sempre de plantar agora o que se busca<br />

colher futuramente. Assim, aconselha aos espectadores a se arrependerem<br />

imediatamente e buscarem se reconciliar com as leis de Deus:<br />

“Memento Homi, quia pulvis es, et in pulverem reverteris”.<br />

Podemos, logo, perceber que não só as artes plásticas, como<br />

também as letras, faziam o uso dessa plasticidade arrebatadora. No<br />

caso desse sermão, Vieira adota uma postura de “espetacularização<br />

da morte” ou “moralização da morte”, recursos persuasivos amplamente<br />

utilizados pela Igreja contra-reformista.<br />

Assim, ao mesmo tempo em que se expõem a grandiosidade e a<br />

pompa das coisas terrenas, procura-se ressaltar sua transitoriedade, o que<br />

traz como corolário o medo da morte e o pavor do inferno, tão explorados<br />

nas pregações da época para tentar obter a conversão dos ouvintes<br />

(Oliveira, 2003, p. 143).<br />

Sendo assim, verificamos que os pareceres anacrônicos que<br />

ainda hoje muito influenciam os estudos sobre as letras seiscentistas<br />

impedem que possamos observar os mecanismos e as intenções que<br />

subjazem a essas escritas. A construção alegórica dos sermões vieirianos<br />

vem com propósitos bastante determinados e seguindo rigidamente<br />

o decoro vigente. Não vem para distrair ou divertir com jogos<br />

mentais, tampouco para confundir e enublar o evangelho diante dos<br />

espectadores, mas sim para arrebatar a audiência e, de forma persuasiva,<br />

passar-lhe as mensagens religiosas, orientando-a sempre em favor<br />

da moral cristã.<br />

76<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

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RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 79


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

(RE)ESCREVENDO A MEMÓRIA:<br />

A POESIA DAS MADRES DE PLAZA DE MAYO<br />

Maria Fernanda Garbero de Aragão Ponzio (UERJ)<br />

INTRODUÇÃO<br />

Quem passa pela Plaza de Mayo nas tardes de quinta-feira, às<br />

15h e 30 min., e se defronta com o saldo mais vivo e erguido de um<br />

país ferido pela ditadura militar, pode até desconhecer a cerimônia<br />

que ali se realiza. Pontualmente, há mais de trinta anos, as Madres de<br />

Plaza de Mayo ensaiam e encenam um espetáculo de encontro com a<br />

memória e com a justiça. Nesse mesmo espaço que lhes cede o nome,<br />

seus lenços brancos reconfiguram paisagens, histórias e sujeitos,<br />

ao conjugar dor e justiça em corpos que se substituem aos de seus filhos<br />

e com eles buscam reiterar uma luta que a violência do Estado<br />

militar não conseguiu fazer desaparecer.<br />

Seus corpos cansados pela idade, ao vestirem o véu da cerimônia<br />

semanal, desvelam a história de um país encoberto pela mentira<br />

e dominado pelo medo. Fortes, firmes e combatentes, as Madres<br />

representam, talvez, o mais vivo e presente movimento de resistência<br />

produzido pelas ditaduras que assolaram a América Latina no século<br />

XX. Marchando ou rondando, elas traduzem performaticamente o<br />

inefável em linhas que se inscrevem na transgressão. Seus discursos<br />

e escritos transcendem o espaço circunscrito da Plaza e convidam à<br />

leitura de um testemunho da margem, de corpos torturados pela ausência<br />

e sobreviventes pela insistência ao amor.<br />

Encontrar-se com a escritura produzida pelas Madres 6 é resgatar<br />

a história de um tempo que, através da possibilidade ficcional,<br />

se recria para poder existir em meio ao silêncio. Frente a essa perspectiva,<br />

os anos que traçam a cronologia do movimento são marcados<br />

por momentos em que a descoberta da escritura surge como um<br />

caminho de trânsito entre os estados prosaico e poético (Morin,<br />

1999), ao compor sujeitos que renascem nas letras. Entre esses momentos<br />

poéticos, as oficinas literárias se transformam em possibili-<br />

6<br />

Neste estudo, dedicamo-nos aos escritos das Madres que integram a Asociación Madres<br />

de Plaza de Mayo.<br />

80<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

dades interpretativas de uma memória que se narra, desvela-se, na<br />

ficção, com o requisito da originalidade deste termo.<br />

REDESCOBRINDO AS LETRAS<br />

O estudo da poesia produzida pelas Madres de Plaza de Mayo<br />

é um encontro com muitos aspectos, como a memória e a possibilidade<br />

de uma reescritura ficcional historiográfica. Em seus textos, a<br />

questão do testemunho emerge através de uma necessidade que<br />

transborda da dor para ser escrita numa perspectiva metonímica, na<br />

qual a poesia é resgatada de seu estado primevo para dar voz a trágicas<br />

experiências plasmadas nas linhas da alegoria.<br />

Com efeito, a compreensão de termos como poesia e ficção<br />

se configura como um importante percurso rumo à leitura dessa escritura<br />

que será produzida por elas. Elas, embora escrevam, não se<br />

apresentam como escritoras; seus poemas, ainda que publicados, não<br />

pretendem compor uma expressão literária cuja envergadura teórica<br />

lhes permita ascender como cânone. Tensos, eles nos exigem pensar<br />

numa idéia transgressora acerca da poesia aristotélica, ao imitarem<br />

não a natureza, mas ao mimetizarem, na escritura, a dor da ausência<br />

e o nascimento da mãe parida pelo filho desaparecido. Peculiares, os<br />

poemas das Madres fogem a parâmetros literários para existirem literariamente.<br />

Poeticamente, a ficção elaborada por elas não é escrita como<br />

um invento. Dela, é resgatada a noção latina do verbo fingere, cujo<br />

significado nos remete a “moldar”, “plasmar”, reiterando que é do<br />

mesmo verbo que surge a palavra “fictício”, definida por Wolfgang<br />

Iser, em Das Fiktive und das Imaginäre. Perspektiven literarischer<br />

Anthopologie (1991), como parte mediadora na tríade “realidade –<br />

fictício – imaginário”. Nessa perspectiva, o fictício é tomado como<br />

um percurso viável para a representação imaginária que conduz ao<br />

real, ao realizar-se através do fingimento e se desnudar em estratégias<br />

transformadoras de sua própria irrealização.<br />

Se o primeiro ato de fingere leva-nos à noção de “dar forma<br />

ao informe, converter o barro em figura” (Stierle, 2006, p. 13), sua<br />

relação com a poesia escrita pelas Madres emerge da possibilidade<br />

discursiva que dá forma, em versos, ao corpo dilacerado pela ausên-<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 81


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

cia. Urdida pelo imaginário, a escritura desse sujeito é constituída<br />

pela impossibilidade de narrar o real, entretanto, é ao subvertê-lo poeticamente<br />

que a ficção medeia o inefável e o imagético, plasmado<br />

em versos que, timidamente, reescrevem interpretações da realidade.<br />

Nessa passagem entre o que se realiza na interdição de sua<br />

possibilidade existencial e o real, essa escritura traduz impasses que<br />

dialogam (e se defrontam) com o sujeito que narra suas experiências.<br />

Distante dos discursos proferidos nas tardes de quinta-feira na Plaza<br />

de Mayo, o panfletário se metamorfoseia em um encontro com a descoberta<br />

das letras, vislumbrado pela ficção que o conduz ao “laboratório<br />

do possível”: a literatura.<br />

Em meados de 1990, a trajetória rumo aos versos poéticos é<br />

iniciada em um momento que, embora se distancie do marcado pela<br />

paisagem da Plaza, conserva em si a imagem que dele provém e decorre.<br />

Sentadas frente à folha branca que espera para ser preenchida<br />

com memórias, elas se reuniam semanalmente para uma oficina de<br />

escritura, uma proposta despretensiosa que (a)guardava apenas um<br />

antigo projeto de contar a história do movimento que já completava<br />

mais de uma década. É nesse contexto que as letras da literatura lhes<br />

aparecem com um desafio, ao qual elas enfrentam com o mesmo<br />

leitmotiv que, há tantos anos, lhes acompanha. Como construir esse<br />

projeto? Elas respondem: “como só nós sabemos fazer: desde o coração”<br />

7 .<br />

Com base na imagem a que corresponde “coração”, a escrita<br />

nasce da experiência, do vivido e do que foi suportado. É dessa vivência<br />

que emerge a figura literária que, sem seu lenço branco, encontra<br />

nas alegorias uma opção narrativa para parir uma vez mais o<br />

filho desaparecido. Ali, com os avais da ficção, elas são as personagens<br />

de suas próprias histórias, tecidas pela mãe consciente de sua<br />

condição trágica e seduzida pelas linhas que lhe permitem traduzir<br />

dor em poesia.<br />

Coordenada pelo escritor Leopoldo Brizuela, a oficina literária<br />

representava um momento distinto para história das Madres. Durante<br />

dez anos, assim como no compromisso marcado com a Plaza,<br />

elas se preparam para um encontro com a escritura, que a princípio<br />

7<br />

In: Corazón en la escritura, 1997. A tradução dos textos é de minha autoria.<br />

82<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

trazia o medo do desconhecido, para depois se configurar num “obscuro<br />

objeto do desejo”.<br />

Redescobertas, as letras dão forma às reminiscências, traçando<br />

uma memória que evoca, ficcionalmente, a infância e a juventude<br />

da figura madura que se transforma em personagem de si mesma.<br />

Autobiograficamente, é construído um relato do sujeito formado na<br />

coletividade e reconhecido como Madre, o qual, sozinho com sua folha<br />

de papel, reencontra-se com as imagens que o produziram. O<br />

pronome “nós”, definidor de alguém que com outro alguém conjuga<br />

seus atos, é empregado sob uma perspectiva semântica na qual o individual,<br />

o subjetivo, é resgatado após haver-se conformado como<br />

uma resposta conjuntiva de enfrentamento.<br />

Um retorno ao estado poético (Morin, 1999) esboça um período<br />

em que o amor é transcrito e transformado em poesia, após a i-<br />

nevitável prosaidade decorrente das obrigações desse novo sujeito<br />

transeunte entre códigos e leis estampadas em panfletos e discursos<br />

políticos. A figura da mãe que ocupa a Plaza por primeira vez, em<br />

abril de 1977, e de ali não sai, dando voltas capazes de desestabilizar<br />

o público, ressurge tonificada pelo amor ao ente desaparecido e à luta,<br />

concebida como legado invencível, que a personagem madura revive<br />

e ressignifica em seu pacto escritural.<br />

Sem o lenço branco (véu que desvela e sagra a união transcendente<br />

e inquebrantável com os desaparecidos), elas se reconhecem<br />

em memórias e testemunhos que, assim como o lenço, compõem<br />

a performance da resistência. Resistindo à prosa do mundo e se<br />

rendendo à poesia – ressemantizada num estado que permite expressões<br />

subjetivas, geradas pelo simbólico e pelo metafórico –, o encontro<br />

com a escritura se manifesta como uma alternativa na qual a comunhão<br />

literária reitera a noção de que “a verdadeira novidade nasce<br />

sempre de uma volta às origens” (Idem, p. 43).<br />

A imagem recuperada da criança e da adolescente, partícipes<br />

na constituição do ator político identificado coletivamente como<br />

Madre, é um tema que define grande parte do percurso poético traçado<br />

nas oficinas. Ao redescobrir as letras, é delas agora o papel sobre<br />

o qual serão modeladas as linhas testemunhais, traçados biográficos<br />

que dialogam entre o imaginário e o fictício, propondo-nos uma<br />

realidade que respira poesia.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 83


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

VERSOS DE MEMÓRIA<br />

Em Crítica cultural e sociedade (1949), segundo as palavras<br />

de Adorno: “escrever um poema após Auschwitz é um ato de barbárie,<br />

e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou<br />

impossível escrever poemas” (Adorno, 1949, p. 26). Entretanto,<br />

ao ter contato com a poesia do escritor romeno Paul Celan, cuja biografia<br />

é marcada pela Shoah, o filósofo considera, na terceira parte<br />

da Dialética negativa (1966), que “a dor perene tem tanto direito à<br />

expressão quanto o torturado ao grito, por isso pode ter sido errado<br />

afirmar que não se pode escrever mais nenhum poema após Auschwitz”<br />

(Adorno, 1975, p. 355, apud Selligmann-Silva, 2004, p. 74)<br />

Frente aos atos nazistas desempenhados durante os anos que<br />

compõem a trágica memória de um tempo inexoravelmente assinalado<br />

pelo terror, qualquer comparação parece inoportuna e infeliz. Por<br />

outro lado, desconsiderar as sofisticadas estratégias de desmantelamento<br />

humano, empregadas durante os períodos de ditadura militar<br />

nos países latino-americanos, é não reconhecer que, mesmo após<br />

Auschwitz, nos deparamos com contextos potencialmente inefáveis.<br />

A respeito dessa reinserção da catástrofe para a construção de narrativas<br />

de memória, o autor Andreas Huyssen considera, em Seduzidos<br />

pela Memória (2000), que: “O Holocausto, como lugar-comum universal,<br />

é o pré-requisito para seu descentramento e seu uso como um<br />

poderoso prisma através do qual podemos olhar outros exemplos de<br />

genocídio.” (Huyssen, 2000, p. 13). Com efeito, no trato dos discursos<br />

de memória, o Holocausto passa a ser lido como a metáfora<br />

transnacional, ao perder sua característica de evento singular para<br />

ressignificar-se em outras tessituras e contextos históricos.<br />

Durante o Processo de Reorganização Nacional (1976-1983),<br />

a sociedade argentina foi espectadora de atos que questionam nossa<br />

compreensão acerca do humano. Se a tortura representa um artifício<br />

capaz de dissociar o corpo do individuo, uma vez que qualquer possibilidade<br />

de reação do sujeito torturado deixa de significar sua expressão,<br />

o que resta do corpo brutalmente lastimado é o desprovimento<br />

de suas condições mínimas de cidadania. Acidadanizado, assujeitado<br />

e animalizado, a última saída do corpo, cuja carne é car-<br />

84<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

búnculo, é tornar-se afático. O silêncio, na tortura, emerge como uma<br />

impossibilidade narrativa que preserva e aniquila a mente que sofre.<br />

Torturados também são os corpos dos que vêem a imperativa<br />

ausência daqueles com quem os laços de amor passam a ser restritos<br />

à memória. Desaparecidos, esses corpos passam a existir – de maneira<br />

muito mais forte e presente – nas narrativas construídas por suas<br />

mães. Ao contrário do que pode enterrar e representar uma cerimônia<br />

de sepultamento, o corpo de um desaparecido ronda sem terra, sem<br />

túmulo e sem simbologias que possam entregá-lo ao rito de passagem<br />

que o retira e eleva dentre os vivos. A ausência torna-se muito<br />

mais presente, ao convocar ainda mais o simbólico, capaz de transmutar<br />

a perda em uma imagem inextinguível.<br />

A mãe que se encontra com outras com as quais partilha da<br />

mesma dor, inextricavelmente, caminha ao lado do filho desaparecido<br />

que lhe pari como Madre. Desse encontro-resgate, surgem inúmeras<br />

representações capazes de desestabilizar a língua-de-espuma 8 falada<br />

durante a época de silenciamento perpetrada pela ditadura militar.<br />

Novas significações aparecem, gestadas pela necessidade de recriar<br />

sentidos ressonantes inviáveis de serem calados; eles se desdobram<br />

(e incomodam). Paralelamente a tantas imagens criadas pelas<br />

Madres para representar os desaparecidos (como os lenços brancos;<br />

os cartazes com fotos; as silhuetas e as máscaras), os escritos produzidos<br />

durante as oficinas literárias se tornam mais uma importante<br />

oportunidade de encontro com aqueles que, ao desaparecer, se presentificam<br />

para sempre na envergadura do sujeito que nasce com sua<br />

ausência.<br />

Como um palimpsesto, a poesia que será engendrada por elas<br />

traz em sua escrita primeira a memória do filho. É sobre a folha<br />

branca que, embora sem escritos pregressos, podemos ter acesso ao<br />

sujeito desaparecido, cujos sonhos e utopias voltam a existir poeticamente,<br />

dando luz e voz uma vez mais àqueles quem a tortura tentou<br />

anular.<br />

8<br />

Referência à definição de Eni Puccinelli Orlandi, em As formas do silêncio (2007), a respeito<br />

de uma língua na qual os sentidos não ecoam, falada, segundo a autora, durante o golpe militar<br />

no Brasil.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 85


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

O texto que inicia o percurso proposto pelo <strong>livro</strong> El corazón<br />

en la escritura (1997) traça o pacto entre a figura que escreve e a<br />

personagem que, no poema, renasce para contar uma memória cuja<br />

existência se torna possível pelo resgate poético-ficcional presente na<br />

composição literária. “La cuna”, nome que ao traduzirmos para o<br />

português teria sua aproximação semântica com “O berço”, é uma<br />

caminho poético que, ao evocar imagens do filho ainda em seu estado<br />

fetal, resgata a figura da Madre. Metonimicamente, são empregados<br />

vocábulos que remetem às imagens capazes de recomporem a<br />

trajetória do detido-desaparecido, antes mesmo de seu nascimento. O<br />

berço, o ventre, a pança da gestante e a escolha do nome são elementos<br />

que dão o tom aos versos, linhas poéticas que recriam a personagem<br />

em diálogo com as angústias daquela que o espera para existir.<br />

Ao renascer na ficção, o filho revive, sob o ponto de vista da mãe<br />

que escreve, o caminho que ela agora irá traçar. Juntos, texto e Madre<br />

nascem a partir das lembranças de uma memória do ente desaparecido,<br />

figura entranhável em cada linha do pacto, o qual se firma<br />

configurado por uma nova possibilidade de criação autobiográfica.<br />

Composto por seis estrofes, o texto assinado por Hebe de Bonafini,<br />

presidente da Asociación Madres de Plaza de Mayo, lançanos<br />

a uma mirada desde o olhar da figura materna consciente de sua<br />

dor e de sua perda. Através desse olhar de quem, na escrita, enxerga<br />

pelas lentes do filho renascido na escritura, versos como<br />

que nome me colocaria<br />

se o do santo do dia<br />

ou do avô morto<br />

ou o que você escolhesse (idem, p. 19)<br />

dão eco ao corpo torturado, uma vez que, ao remir o desaparecido,<br />

trazem consigo o testemunho da figura que sobreviveu para narrar o<br />

horror. Esse resgate se reitera ainda mais nos últimos versos, no<br />

quais as palavras sonho, vida e esperança aparecem como ferramentas<br />

utilizadas pela personagem para falar de si:<br />

quando dorme tranqüila<br />

recostada na cadeira de balanço<br />

já está balançando o sonho<br />

a vida, a esperança (idem).<br />

O laço entranhável, configurado pela imagem da gestação,<br />

torna-se um momento eternizado na escritura. O ventre, nessa pers-<br />

86<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

pectiva, abriga para sempre o filho desaparecido, o qual ressurge em<br />

cada linha, refratando a imagem de um parto que sempre está para<br />

acontecer. Em “Ventre”, a autora de “O berço” retorna tecendo poeticamente<br />

um ensaio autobiográfico, ao compor seus textos com<br />

memórias que recuperam a experiência de dar a luz ao ser que, com<br />

o desaparecimento forçado, gesta um ator político capaz de seguir<br />

dando-lhe a vida. O mundo da personagem é seu bairro, uma imagem<br />

que preserva, através das reminiscências, a presença do universo<br />

privado com o qual ela irá romper ao transformar-se em Madre,<br />

quando em meu ventre<br />

senti o filho que ia crescendo<br />

fui a mulher<br />

mais feliz de todo o mundo<br />

pequeno<br />

esse mundo desse bairro<br />

que me teve entre sua gente<br />

que me ensinou tantas coisas<br />

que me deu todo seu afeto<br />

que me ensinou do amor<br />

tudo que no ventre levo (idem, p. 20).<br />

Em outro momento do <strong>livro</strong>, a autora ressemantiza o berço,<br />

que espera pelo rebento, na Plaza, esse local circular que abriga ambos:<br />

Madre e filho, parindo-se simultânea e simbolicamente, todas as<br />

semanas. Esse cenário circular se distancia do abrigo do recém nascido,<br />

pois convoca para si outros filhos nascidos dessa luta engendrada<br />

pela personagem. Sozinha entre seus pares, ela declara sua<br />

busca pela<br />

noite que ilumina a justiça<br />

esperando na Plaza que cheguem outros homens<br />

que a marcha cresça<br />

até se converter em um sol gigante e quente<br />

como o amor que lhes tenho<br />

em meu coração de mãe (idem, p. 22).<br />

Ratificada, a idéia de que “o Outro sou eu” – lema adotado<br />

pelas Madres em referência ao que seus filhos lhes deixaram como<br />

legado – reitera a imagem palimpsêstica dessa escritura, tonificando<br />

o laço e os ideais daqueles que, mesmo após desaparecidos, voltam<br />

fiéis e firmes em suas utopias, elementos que se agregam à composição<br />

textual que dá forma à poesia. O texto emerge como o cordão<br />

umbilical que religa a Madre ao<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 87


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

filhinho doce e terno<br />

recém nascido<br />

tão sonhado 9 ,<br />

o qual será cuidado e dignificado em seus lenço, linhas e, sobretudo,<br />

trajetória.<br />

Elaborados em muitos momentos e sob diversas perspectivas,<br />

esses percursos da personagem, rumo àqueles pelos quais seus filhos<br />

lutavam, incidem-se no encontro com mães portadoras da mesma<br />

dor. Enlaçadas, elas vencem a tortura e gritam pela liberdade, um urro<br />

silenciosamente estruturado pelo sujeito clamante por liberdade.<br />

Em “Minhas mãos”, a autora se identifica com suas companheiras,<br />

personagens enredadas pela mesma tragédia e cujas mãos que “se<br />

encheram de horríveis silêncios” (idem, p. 35) agora escrevem a seus<br />

filhos e abraçam os dias. De braços dados com aquelas que lhe permitem<br />

encontrar “generosidade em viver”, a autora de “O berço” e<br />

“Ventre” evoca a luta compartilhada para dar voz à representação<br />

imagética de si mesma, num momento em que já descreve sua consciência<br />

a respeito de sua formação coletiva.<br />

A importância dessa formação, viabilizada pelo enclave de<br />

narrativas dolorosas e trágicas, repete-se em outros textos que compõem<br />

o <strong>livro</strong>. Em “Mãe companheira”, Mimí (a autora) descreve a<br />

relevância desse caminho em direção ao encontro com aquelas com<br />

quem constrói e compartilha a trajetória. Como um hino de louvor, o<br />

texto invoca as companheiras e descreve a incerteza frente à luta solitária:<br />

a insegurança me acompanha<br />

desde aquele dia que abandonei minha casa<br />

para buscar justiça.<br />

Necessito sua fortaleza e compreensão<br />

para vencê-la.<br />

Me apóio em você<br />

e assim poder desafiar e lutar<br />

pela verdade (idem, p. 65).<br />

Novamente, um novo pacto se estabelece, ao agregar à cena da Plaza<br />

um giro que, mesmo traçado em voltas, delineia um rumo em que<br />

“cada passo será um passo mais adiante” (idem, p. 66).<br />

9<br />

Fragmento de um poema sem título, de autoria de Hebe Mascia.<br />

88<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

A voz coletiva clamante por justiça aparece em muitos textos<br />

que compõem o <strong>livro</strong> em análise. Ainda que pronunciada por um indivíduo<br />

entregue à escritura, a imagem de mãe já investida de seu<br />

papel social é o tom que permeia e pontua os poemas escritos durante<br />

as oficinas. No texto “Com esse lenço branco”, temos o ápice dessa<br />

comunhão, fruto da herança deixada pelos entes queridos, os quais<br />

passam a representar os 30.000 desaparecidos. De autoria coletiva, o<br />

poema que integra o sub-capítulo “Plaza Tomada” (título que confirma<br />

esse lugar-encontro onde elas nascem como Madres) representa<br />

o único texto escrito por mais de uma delas. Fortalecidas pela representatividade<br />

do grupo, elas se autoconvocam ao encontro marcado<br />

na Plaza,<br />

com esse lenço branco<br />

vamos juntas companheiras<br />

o caminho está traçado<br />

já a praça nos espera (...)<br />

a unidade nos dá a força<br />

contra o perdão e o esquecimento<br />

contra todos os traidores<br />

contra todos os militares (idem, p. 71).<br />

Ao chamar para a cena literária a vestidura que completa a<br />

criação das personagens de si mesmas, as Madres assumem o lenço<br />

branco como objeto de identificação pessoal e intransferível, paralelo<br />

somente à dor e ao percurso contra o esquecimento travado há mais<br />

de trinta anos. Assim como no teatro grego, em que a máscara (persona)<br />

caracterizava o papel desempenhado no contexto dramático, os<br />

lenços brancos são imagens que denotam e diferenciam a mãe marcada<br />

pelo desaparecimento do filho entre outras que a miram na multidão.<br />

Em perspectivas contrárias, eles não dissimulam ou preservam<br />

a face de quem se expõe publicamente. O rosto é mostrado, envolto<br />

por um tecido ressignificado em lenços presentes pela ausência.<br />

“Com esse lenço branco” define grande parte dos textos de El<br />

corazón en la escritura, em que o viés ficcional confirmado na oficina<br />

literária isenta o testemunho ali escrito de qualquer caráter jurídico.<br />

Com efeito, é pela modelação de narrativas memorialísticas que o<br />

leitor tem acesso a uma nova forma de contar o terror daquelas que<br />

não desapareceram, entretanto, foram torturadas pelo silêncio a respeito<br />

do destino de seus seres queridos e pelos discursos que as preconizaram<br />

como loucas.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 89


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

Na escritura das Madres, o presente se transforma no tempo<br />

remodelador das memórias dum passado revivido cotidianamente. Irrestrito<br />

às marchas na Plaza, às quintas-feiras – momentos característicos<br />

do que representa o movimento por elas empreendido – o<br />

passado se configura como uma ligação inevitável com a “subjetividade<br />

que rememora o presente” (Sarlo, 2007, p. 49). A personagem<br />

que escreve suas memórias, através da possibilidade poética oferecida<br />

pela literatura, representa um sujeito marcado pelas experiências<br />

de perda e resgate da imagem do filho, o qual ora aparece tingido por<br />

traços de suas infância e juventude, ora se presentifica na versão palimpsêstica<br />

atualizada verbalmente pela escritura materna. Entranhados,<br />

Madre e filho caminham juntos, tecendo discursos capazes de<br />

evocar a alusão e a metáfora, elementos fundamentais para o nascimento<br />

dos textos elaborados nas oficinas.<br />

Essencialmente repetitivo, o testemunho esboçado neste <strong>livro</strong><br />

reitera – com atores distintos – o páthos entoado na Plaza. Circulares,<br />

texto e marcha ratificam posicionamentos simbólicos e ideológicos<br />

que, justamente por sua repetição, se revelam emergenciais a esse<br />

percurso delineado por uma guinada subjetiva da figura da mãe<br />

emigrante da esfera privada. Sua dor pública – e publicada – encontra<br />

mais um caminho para abrir as feridas deixadas pelo Estado militar,<br />

período que não se detém ao passado; ao contrário, é um presente<br />

vivo e escandaloso, ao qual elas prometem (com seu projeto de dignificação<br />

dos que caíram) nunca perdoar, nunca esquecer.<br />

CONCLUSÃO<br />

O estudo da poesia produzida pelas Madres que integram a<br />

Asociación Madres de Plaza de Mayo requisita-nos uma mirada à<br />

compreensão de um movimento que surge da dor para se firmar num<br />

panorama de resistência. Os textos que compõem o <strong>livro</strong> em análise,<br />

El corazón en la escritura, traçam, através do encontro com a possibilidade<br />

literária, um caminho de memória, escrito a partir da imagem<br />

de uma figura consciente de sua nova investidura social. A Madre,<br />

que se reúne com suas companheiras de luta na oficina literária<br />

para dar voz e forma a poesia, evoca suas reminiscências, as quais<br />

aparecem modeladas em versos que expressam o percurso de sua<br />

formação intelectual.<br />

90<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

O mote dessa escritura, sem dúvidas, é o desaparecimento<br />

forçado de seus filhos, jovens que, ao renascerem na literatura, adquirem<br />

novas vozes capazes de restabelecer e reerguer o que a tortura<br />

logrou silenciar. Se seus destinos ainda permanecem historicamente<br />

incertos, suas Madres transformam essa presença num pacto<br />

pertinaz, não lhes importando os restos de seus corpos, mas exigindo<br />

a viva presença de seus ideais, um aspecto que as distancia de outras<br />

Madres com as quais compartilham o mesmo epíteto 10 .<br />

Muitas vezes panfletário, o ritmo dessa sinfonia contra o esquecimento,<br />

composta do por elas, ecoa uma poesia tecida por imagens<br />

ficcionais viáveis ao entendimento do inefável sentimento ocasionado<br />

pela perda de seus seres queridos. Nessa urdidura testemunhal,<br />

a escrita autobiográfica se presentifica em textos que, ao não<br />

pretenderem um caráter historiográfico complementar, tornam-se suplementos<br />

fundamentais para novas possibilidades narrativas de uma<br />

história que ainda permanece às margens. Decruando uma terra carente<br />

de verdades, há mais de trinta anos as Madres cavam incessantemente<br />

a esperança de um país mais digno. Nesse incansável ofício<br />

de lavrar em solo frio e cimentado, elas rompem com o concreto e<br />

chamam para cena simbologias que enterram o medo e semeiam a liberdade.<br />

10<br />

Desde 1986, as Madres se agruparam em duas linhas ideológicas bem distintas: Madres de<br />

Plaza de Mayo – Línea Fundadora e Asociación Madres de Plaza de Mayo. Embora ambas representem<br />

figuras de resistência às violências perpetradas pelo regime militar, nossa opção é<br />

decorrente do enfrentamento permanente desempenhado pela Asociación.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 91


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

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de Plaza de Mayo. Tomo I (1976-1983). Buenos Aires: Norma,<br />

2006.<br />

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de Plaza de Mayo, 1997.<br />

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Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Cia. das Letras; Belo Horizonte:<br />

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pensando algumas diferenças. In: FINNAZI-AGRÒ, Ettore e<br />

92<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

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1995, p. 7-22.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 93


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

SEMIOLOGIA DO AMOR:<br />

NOTAS PARA UMA LEITURA<br />

DE “FRAGMENTOS DO DISCURSO AMOROSO”,<br />

DE ROLAND BARTHES<br />

Rodrigo da Costa Araújo (UFF/FAFIMA)<br />

rodricoara@uol.com.br<br />

O sujeito apaixonado é atravessado pela i-<br />

déia de que está ou vai ficar louco.<br />

(Barthes, FDA, 1978, p. 186)<br />

A visão que tenho do discurso amoroso é<br />

uma visão essencialmente fragmentada, descontínua,<br />

borboleteante.<br />

(Barthes, O Grão da Voz, 2004, p. 401)<br />

Aos estilhaços, intertextualidades e vozes, como em Le Plaisir<br />

du Texte, o <strong>livro</strong> Fragments d’um Discours Amoureux (1977),<br />

de Roland Barthes oferece-se à leitura distraída do amor. O leitor, ao<br />

folheá-lo, escolhe múltiplas formas para caminhar entre os aforismos,<br />

entre os fragmentos, entre “as rajadas de linguagem, que lhe<br />

brotam graças a circunstâncias íntimas, aleatórias” (FDA, 1978, p.<br />

12) 11 . Este <strong>livro</strong>, é, segundo o próprio autor:<br />

[...] episódios de linguagem que giram na cabeça do sujeito enamorado,<br />

apaixonado, e esses episódios se interrompem bruscamente por<br />

causa de tal distância, tal ciúme, tal encontro frustrado, tal espera insuportável<br />

que ocorrem, e nesse momento essas espécies de pedaços de<br />

monólogo são quebrados e se passa a outra figura. Respeitei o descontínuo<br />

radical dessa tormenta de linguagem que se desencadeia na cabeça<br />

amorosa. É por isso que recortei o conjunto em fragmentos e coloquei<br />

estes em ordem alfabética. [...] É, pois, um <strong>livro</strong> descontínuo que protesta<br />

um pouco contra a história de amor (Barthes, 2004, p. 401).<br />

Nessa rede de “dis-cursos” ou citações romanescas, tudo no<br />

<strong>livro</strong>, surge como “algo que se leu, ouviu, experimentou”. (FDA,<br />

1978, p. 12). “Pouco importa, no fundo, que a dispersão no texto seja<br />

11<br />

Todas as citações farão alusão a abreviatura FDA - Fragmentos de um Discurso Amoroso.<br />

Edição portuguesa e tradução de Isabel Gonçalves, Lisboa, Edições 70, 1978.<br />

94<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

rica aqui e pobre ali: há tempos mortos, muitas figuras modificamse;<br />

algumas, sendo hipóstases 12 de todo o discurso de amor, possuem<br />

a própria raridade - a pobreza - das essências: que dizer da Languidez,<br />

da Imagem, da Carta de Amor, uma vez que é todo o discurso<br />

de amor que está tecido de desejo, de imaginário e de declarações?”<br />

(FDA, 1978, p. 12-13).<br />

Em entrevista sobre o <strong>livro</strong>, o entrevistador afirmou: “Não é<br />

um trabalho de romancista, é um <strong>livro</strong> de semiólogo. E um <strong>livro</strong> de<br />

amoroso. Não é um pouco bizarro, um “semiólogo amoroso”?”. E o<br />

próprio Barthes, em virtude desse comentário disse:<br />

Não mesmo! O amoroso é o semiólogo natural, em estado puro! Passa<br />

o tempo lendo signos. Não faz outra coisa: signos de felicidade, signos<br />

de infelicidade. No rosto do outro, em suas condutas. Ele está verdadeiramente<br />

atormentado pelos signos (Barthes, 2004, p. 424)<br />

A legibilidade do amor (e da obra como um todo textual) está,<br />

portanto, condicionada à sua vinculação a arquétipos literários. O<br />

sentido do texto amoroso deriva desse jogo intertextual e se constrói<br />

a partir de um duplo movimento: absorção e negação, ou melhor,<br />

como quer Julia Kristeva, “o texto poético é produzido no movimento<br />

complexo de uma afirmação e de uma negação simultâneas de outro<br />

texto” (1974, p. 176).<br />

Partindo desse pressuposto e seguindo as reflexões de Laurent<br />

Jenny (1979, p. 5), pode-se falar que:<br />

Fora da intertextualidade, a obra literária seria muito simplesmente<br />

incompreensível, tal como a palavra duma língua ainda desconhecida.<br />

De fato, só se apreende o sentido e a estrutura de uma obra literária se a<br />

relacionarmos com os seus arquétipos - por sua vez abstraídos de longas<br />

séries de textos, de que constituem, por assim dizer, uma constante [...]<br />

face aos modelos arquetípicos, a obra literária entra sempre numa relação<br />

de realização, de transformação ou de transgressão.<br />

12<br />

Hipóstase, do grego hypostasis, significa subsistência, realidade. Na filosofia de Plotino,<br />

Deus se deriva em três hipóstases: Uno, nous (Inteligência) e alma, que ele comparava também,<br />

respectivamente, com à luz, ao sol e à lua A transcrição latina para Hipóstase é "substância",<br />

que, todavia, foi utilizada pela tradição filosófica com significado totalmente diferente<br />

do que a utilizada por Plotino. No sentido contemporâneo, é utilizado raramente de maneira<br />

pejorativa. Dessa maneira, indica a transformação de um ser em um ente.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 95


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

Nesse sentido, Barthes utiliza os processos de invenção de<br />

outros autores, o saber do recorte para a criação de um novo texto,<br />

fazendo essa apropriação de forma consciente e, muitas vezes, através<br />

da ironia questionando ou explicitado esses limites muito diversos.<br />

Admite-se, nessa relação, que: “a palavra “literária” não é um<br />

ponto (um sentido fixo), mas um cruzamento de superfícies textuais,<br />

um diálogo de diversas escrituras” (Kristeva, 1974, p. 176). “A estética<br />

do fragmento é espalhar evitando o centro, ou a ordem, do discurso”<br />

(Calabrese, 1988, p. 101).<br />

O próprio título do <strong>livro</strong>, elemento paratextual 13 por excelência,<br />

é um sintagma que seria necessário depreender, inicialmente, as<br />

várias e possíveis significações atribuídas ao amor e o seu processo<br />

discursivo, enquanto elemento invariante simbólico do texto. O signo<br />

e significante “fragmento” assumiria aí, esse contexto, um efeito<br />

“para mostrar-se, sem demonstrar-se, escritor, pensador, sujeito amoroso<br />

(sempre sujeito à rodadas da via), intelectual desarmado, desamarrado,<br />

esparramado, à vontade” (Silva, 1994, p. 125). O fragmento<br />

é “[...] o não acabamento do texto [que] se torna um meio de dinamismo<br />

artístico da sua estrutura” (Lotman, 1978, p. 477). O fragmento,<br />

estudado enquanto teoria e olhar estilhaçado em Roland Barthes,<br />

é segundo Silva “momento que, procurando, ao mesmo tempo,<br />

uma escrita que não seja familiar, torna-se amigável e inquietante,<br />

provocador, oportunamente inoportuno, perverso; dá foro teórico ao<br />

prazer, de cuja fonte emerge a escritura-leitura cheia de si” (1994, p.<br />

125).<br />

Segundo o estudioso, a preferência pelo fragmento é uma espécie<br />

de hesitação que de alguma forma ou de outra, questiona ou se<br />

deixa questionar: um romance? um ensaio? um conceito? uma reflexão?<br />

Nenhum dos três ou os três, subtraídos à lei da narrativa ou do<br />

raciocínio. O fragmento barthesiano, é segundo o estudioso “como<br />

um bolo folhado onde cada camada, em seu oco, joga com a língua<br />

num logro consciente, saboroso (saber e sabor têm a mesma raiz).<br />

Movimentos e operações, de preferência a conceitos, misturam ob-<br />

13<br />

Segundo Genette (1982, p. 9), designa-se por paratexto o conjunto dos enunciados que contornam<br />

um texto: título, subtítulo, prefácio, posfácio, encartes, sumário etc. O paratexto é destinado<br />

a tornar presente o texto, para assegurar sua presença ao mundo, sua “recepção” e seu<br />

consumo.<br />

96<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

sessão e desvio” (1994, p. 126). No “inexprimível amor” é pois um<br />

apaixonado que fala e diz: “querer escrever o amor é enfrentar a desordem<br />

da linguagem: esta terra de loucura em que a linguagem é ao<br />

mesmo tempo muito e muito pouco excessiva (pela expansão ilimitada<br />

do eu, pela subversão emotiva) e pobre (devido aos códigos com<br />

os quais o amor a rebaixa e avilta)”. (FDA, 1978, p. 128-130).<br />

A escrita da paixão, - ela mesma saber do recorte, paixão de<br />

recortar-, composta de várias outras escrituras e fragmentos, no <strong>livro</strong><br />

comporta e se inscreve em estratégias de espetáculo do/sobre o amor,<br />

seus riscos, glórias, seus lugares-comuns e esquizofrenias, concebida<br />

para ser feita em uma situação análoga ao apaixonado. Nesse jogo<br />

discursivo do amor entre a forma e o conteúdo, entre desafios e alegrias<br />

dos atores, é que se garante o espetáculo amoroso. Em Fragmentos<br />

de um discurso amoroso, o texto e os fragmentos oferecem<br />

ao leitor sempre um quantum de ilegível, configurando uma “estratégia<br />

de subversão” (Coelho, 1973, p. 29); o “saber-ler pode ser delimitado,<br />

verificado no seu estágio inaugural, mas depressa se torna<br />

sem fundo, sem regras, sem graus e sem termo” (Barthes, 1987, p. 32).<br />

O fragmento, segundo o próprio crítico, em Roland Barthes<br />

por Roland Barthes:<br />

Implica um gozo imediato: é um fantasma de discurso, uma abertura<br />

de desejo. Sob a forma de pensamento-frase, o germe do fragmento nos<br />

vem em qualquer lugar: no café, no trem, falando com um amigo (surge<br />

naturalmente daquilo que lê diz ou daquilo que digo); a gente tira então o<br />

caderninho de apontamentos, não para anotar um “pensamento”, mas algo<br />

como o cunho, o que se chamaria outrora um “verso”. [...] o fragmento<br />

(o hai-kai, a máxima, o pensamento, o pedaço de diário) é finalmente<br />

um gênero retórico, e como a retórica é aquela camada da linguagem que<br />

melhor se oferece à interpretação, acreditando dispersar-me, não faço<br />

mais do que voltar comportadamente ao leito do imaginário. (1977, p.<br />

102-103)<br />

Apesar de não ser um texto dramático, Roland Barthes (1915-<br />

1980), propõe uma semiologia dramática do amor para apresentar a<br />

sua “enunciação” (é ele que o define, enunciação e não análise) do<br />

discurso amoroso aos fragmentos. “O sistema estético que dele deriva<br />

é um sistema eternamente em excitação” (Calabrese, 1988, p.<br />

102). O <strong>livro</strong>, como um diário da paixão, inicia com a seguinte frase:<br />

“é pois um apaixonado que fala e diz”, e, até ao final, percebemos de<br />

fato surgir em palavras, numa estrutura quase cênica, aquilo que to-<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 97


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

dos já viveram - “o elogio das lágrimas”, “o ciúme”, “Que fazer?”,<br />

“O coração”, “A ressonância” e outras rubricas.<br />

Para atingir a explicação do amor, segmenta-se - conforme<br />

Barthes ensinou - o significante gerador numa espécie de “lexia” 14<br />

que são unidade de leitura. Para o semiólogo do fragmento enquanto<br />

estética, “a lexia não é mais do que um invólucro de um volume semântico”<br />

(Barthes, 1970, p. 18). O levantamento sistemático dos<br />

significados em cada lexia não visa a descobertas da verdade do texto,<br />

mas ao seu saber plural. Esse procedimento não envolve, esclarece<br />

o teórico, uma exposição crítica a um texto ou a “este” texto, porém,<br />

a sua matéria semântica no campo das críticas psicológica, psicanalítica,<br />

temática, histórica, estrutural. O texto palimpsêstico e<br />

amoroso, signo norteador do <strong>livro</strong>, será continuamente “estilhaçado”<br />

sem obedecer às suas divisões naturais: sintáticas, retóricas, anedóticas.<br />

As lexias são arbitrárias, não seguem e não obedecem a nenhuma<br />

metodologia; algumas vezes atuam sobre o significante, enquanto<br />

a análise proposta se efetua sobre o significado. Elas recortam<br />

alguns sintagmas ou palavras, às vezes períodos, mas o importante<br />

é que o escolhido seja o melhor espaço para se desenvolver o<br />

sentido; a sua dimensão estabelecida pelas experiências dependerá da<br />

densidade das conotações que varia segundo os momentos do texto.<br />

Fiel ao seu objeto, Barthes escolhe acertadamente a via da<br />

fragmentação e do pensamento constelar, que não se dá por unidades<br />

fechadas ou por etapas evolutivas, mas por descontinuidades e deslocamentos<br />

constantes. Arrumados assim, feito verbetes lúdicos, em<br />

lexias, de um dicionário do amor, o <strong>livro</strong>, contraditoriamente, tenta<br />

extrapolar esse discurso instaurando o amor pelo viés semiológico da<br />

leitura literária, pela vida, pela imaginação, pela linguagem que assume<br />

vários caminhos.<br />

14<br />

Refere-se ao termo empregado por Barthes em S/Z, ao avaliar e ao interpretar a novela Sarrasine,<br />

de Balzac. A Lexia constitui cada pequeno fragmento do texto, destacado segundo sua<br />

ordem de apresentação. A lexia resulta de um corte na linearidade, fazendo com que, pelo<br />

desligamento de uma lexia de outra, as significações passam a se disseminar. Aplicada ao <strong>livro</strong><br />

em questão, a avaliação-interpretação barthesiana, recortando os fragmentos, provocaria<br />

uma explosão sobre a superfície do texto, deixando seus estilhaços significarem e se comunicarem.<br />

98<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Por outro lado, aos estilhaços de textos, feito um homem diante<br />

de um espelho, recupera-se em fragmentos constantes. Fragmentos<br />

de desejos, de realizações, de percepções. Um homem diante<br />

da iniciativa de se autobiografar no discurso ou nos discursos do a-<br />

mor do outro. Como em Roland Barthes por Roland Barthes<br />

(1977), <strong>livro</strong> também escrito em fragmentos, Fragmentos de um<br />

discurso amoroso assinala a tentativa perturbadora, mas persistente,<br />

de dar voz a um coração que se descobre vazio.<br />

Entre verbetes e significâncias do amor, o leitor, diante de vários<br />

enxertos, deve-se perceber como mais um personagem de romance<br />

e deve se permitir brincar, uma brincadeira séria de quem está<br />

submerso no texto, na linguagem, atento às armadilhas do sentimento<br />

e do discurso envolvente. Assim, Fragmentos de um Discurso<br />

Amoroso é, além de o “valor passado ao grau suntuoso do significante”<br />

(Barthes, 1977, p. 85), também uma experiência de leitura.<br />

Um prazer absoluto diante do texto e do homem que nele se mostra.<br />

“Escrever por fragmentos: os fragmentos são então perdas sobre o<br />

contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo<br />

em migalhas; no centro, o quê?” (Barthes, 1977, p. 108). O fragmento<br />

para Omar Calabrese “acaba por participar do mesmo “espírito<br />

do tempo”, a perda da totalidade. [...] A exageração das suas características<br />

leva a dar-lhes nuances de uma opção geral, que é precisamente<br />

a do final ou do declínio da inteireza” (1988, p. 103-4).<br />

O amor como desejo e representação presente nesses fragmentos<br />

barthesianos, não se esgota nas palavras, nem se refere à realidade<br />

como tal. O discurso amoroso e romanesco, ao colocar-se como<br />

literatura e crítica semiológica ao mesmo tempo, liberta-se das<br />

imposições da lógica tradicional e adquire a liberdade de estruturarse<br />

segundo seus códigos. O texto barthesiano é algo feito com a linguagem,<br />

portanto a partir da linguagem, algo ao mesmo tempo a<br />

transforma, acresce, aperfeiçoa, interrompe ou a reduz. É vivo e desejante,<br />

é um texto de prazer “aquele que contenta, enche, dá euforia”<br />

(Barthes, 1977, p. 21).<br />

O leitor, acompanhando vertiginosamente esse texto do amor,<br />

vai entrar em diálogo com a escritura, produzindo outra escritura<br />

(como esse ensaio). Ele, nesse caminho em redes, sinuoso e escorregadio,<br />

transgressor e ambíguo, “deverá encontrar o lugar de onde o<br />

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ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

texto lhe seja legível, aceitável” (Compagnon, 1996, p. 19), porque,<br />

segundo Compagnon, não se pode exigir do leitor que esse lugar lhe<br />

seja inteiramente desconhecido. Esse lugar é, segundo o semiólogo<br />

francês, o lugar em que o texto ou discurso do amor se reescreve ao<br />

ser recebido e interpretado, o diálogo é uma escritura onde, segundo<br />

Bakthin, se lê o Outro. O diálogo bakthiniano designa aos olhos dessa<br />

escritura simultânea, como subjetividade e comunicabilidade, ou<br />

melhor, como intertextualidade, um diálogo amoroso cujos actantes<br />

são outros textos.<br />

A noção de sujeito amoroso da escritura começa a dar lugar a<br />

uma outra, a da ambivalência da escritura. Nesse sentido, Fragmentos<br />

do Discurso Amoroso é um texto em constante destruição onde<br />

se esconde/desvela o jogo do signo. O deciframento estilhaçado, como<br />

fragmentos metalingüísticos, aparece ao leitor como uma escolha.<br />

O discurso do amor, sempre à deriva e instigador, só existe a<br />

partir de uma recriação numa leitura subjetiva e individualíssima. A<br />

cada fruidor o <strong>livro</strong> despedaçado apresenta-se diferente de si mesmo,<br />

ao mesmo tempo <strong>completo</strong> e in<strong>completo</strong>, pois “os signos não são<br />

provas, pois qualquer pessoa os pode produzir, falsos ou ambíguos.<br />

Daí resulta depreciar-se, paradoxalmente, a omnipotência da linguagem:<br />

uma vez que a linguagem nada garante, tomarei a linguagem<br />

por única e última garantia: não acreditarei mais na interpretação”.<br />

(FDA, 1978, p. 234).<br />

A escritura barthesiana segundo Roberto Correa dos Santos<br />

constitui em nosso tempo um dos exercícios mais constantes de realização<br />

dessa prática para a qual todo e qualquer limite definidor se<br />

vê perdido. O que se interpreta, quem interpreta, como interpreta são<br />

perguntas que explodem. Segundo o pesquisador, da teoria barthesiana:<br />

Barthes buscava exatamente isso, a ficção-plural: a históricapolítica-semiologia-narrativa-autobiografia.<br />

O eu presente nos Fragmentos<br />

e a teatralização dos sujeitos de Roland Barthes por Roland Barthes<br />

rasuram e sensualizam, sem dele jamais inteiramente se afastarem, o<br />

campo do querer-compreender, do querer-explicar. Aproxima-se e recua<br />

do pleno da dramatização, deixando deslizar, retraindo e expondo, a personagem<br />

que é. A ficção dos saberes faz-se nesses fragmentos, nesse<br />

deixar à beira. Uma multiplicidade que não conduz ao silêncio, nem ao<br />

delírio, nem à loucura, mas à paixão. (Santos, 1989, p. 33)<br />

100<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Nesse plano ou palco do amor, Fragmentos de um discurso<br />

amoroso (espécie de "mise-en-scène" amorosa) é um texto de objeto<br />

de prazer que está constantemente estruturando-se, mantendo-se num<br />

estatuto da enunciação amorosa de seus leitores. Essa estruturação<br />

infinita do discurso, Barthes chama de significância - espaço específico<br />

onde se redistribui a ordem da língua - faz-se sensorial: o sentido<br />

das coisas, essencialmente da palavra amorosa, nasce de nossos<br />

sentidos, é sentido produzido sensualmente, o corpo e sua vivência,<br />

fragmentação da cultura, disseminação amorosa de suas características<br />

segundo fórmulas desconhecidas e virulentas.<br />

Na "escritura-leitura do amor", "quem pretende a verdade só<br />

encontra respostas com imagens fortes e vivas, que se tornam ambíguas,<br />

flutuantes quando as tenta transformar em signos: como em toda<br />

mântica 15 , o consultante apaixonado deve criar a sua própria verdade"<br />

(FDA, 1978, p. 234). Nessa brincadeira de discursos, nos fragmentos<br />

justapostos, e em forma de palimpsesto, nasce um novo texto.<br />

Um texto múltiplo do amor, em constantes buscas de significações<br />

já que “a função da escritura é colocar a máscara e, ao mesmo<br />

tempo, apontá-la". (Barthes, 1974, p. 136)<br />

Feito o conto Amor, de Clarice Lispector, Barthes cria o discurso<br />

ou recorta fragmentos de amor em que o personagem depreende-se<br />

do mundo e experimenta a perda do eu. Em constantes buscas<br />

internas dos personagens no discurso imagético do amor, tanto Ana,<br />

como também outras vozes e o leitor, caracterizam-se pelo desdobramento<br />

do eu que se vê no ato de produção, ator e espectador de si<br />

mesmos, sujeitos do espetáculo e objeto de gozo, captando uma<br />

consciência em fracionamento pela dissolução do eu nos vários<br />

fragmentos.<br />

Eros-cupido capta, em Clarice, a protagonista do conto na a-<br />

legoria do cego, enquanto Barthes, no espaço do discurso amoroso,<br />

faz do leitor rodopios de perda e busca, reencontro na linguagem da<br />

obra. Enamorados, Ana, do conto Amor e os leitores de Fragmentos<br />

de um discurso amoroso ficam encantados com as máscaras do discurso<br />

que ora se escondem, ora se revelam. O mundo e os signos<br />

15<br />

Mântica, segundo Calvet (s/d, p. 153), é a arte da adivinhação. A mântica seria, portanto, interrogações<br />

diante dos fragmentos, diante do estranhamento, incitando sempre uma resposta.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 101


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

amorosos são descobertos pelos seus avessos, o irreal e o mágico o<br />

reelaboram.<br />

Nessa poética dos fragmentos, com extrema delicadeza dos<br />

signos, Roland Barthes propõe uma aventura semiológica em torno<br />

do amor que se dedica a desfazer o "tecido" amoroso para montar<br />

como nele se superpõem na escritura palimpsêstica, os diversos códigos<br />

e os seus sentidos. Um mundo semiológico do amor, fragmentado<br />

e intertextual, carente de entranhas. Ler o mundo dos signos e<br />

dessas entranhas amorosas, portanto, é conseqüentemente, ter as<br />

"chaves" desse código. Nessa perspectiva semiológica, ler e escrever<br />

o amor, como o ato de leitura em Barthes, são de tal sorte, momentos<br />

simultâneos de uma mesma ação semiótica.<br />

A leitura comparada ao ato amoroso merece ou requer, como<br />

o ser amado, atenção, carinho, cuidado. A metáfora criadora para se<br />

chegar até o outro, para compartilhar sentimentos, experiências amorosas,<br />

sonhos, enfim: para compartilhar a vida. Por esse motivo é<br />

linguagem comparada à experiência amorosa, quando se diz:<br />

A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem contra o outro. É<br />

como se eu tivesse ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras.<br />

Minha linguagem treme de desejo. A emoção de um duplo contacto: de<br />

um lado, toda uma atividade do discurso vem, discretamente, indiretamente,<br />

colocar em evidência um significado único que ‘é eu te desejo’, e<br />

liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir (a linguagem tem<br />

prazer de se tocar a si própria); por outro lado, envolvo o outro nas minhas<br />

palavras, acaricio-o, toco-lhe, mantenho este contato, esgoto-me ao<br />

fazer o comentário ao qual submeto a relação. (FDA, 1978, p. 98).<br />

O desejo, visto nesse fragmento é o ingrediente prescrito por<br />

Barthes para se atingir o texto do amor que se desdobra por si numa<br />

cadeia erótica que vai se entreabrindo ao leitor como uma peça do<br />

vestuário e que por uma abertura ínfima atrai o olhar, sugere imagens,<br />

deixa entrever o algo mais que o tecido oculta e o desejo suscita.<br />

“O lugar mais erótico de um corpo não é lá onde o vestuário se<br />

entreabre? [...] é essa cintilação mesma que seduz, ou ainda: a encenação<br />

de um aparecimento-desaparecimento” (Barthes, 1977, p. 16).<br />

Escrever, para Barthes, "é colocar-se num imenso intertexto,<br />

quer dizer: colocar a própria linguagem, a sua própria produção de<br />

linguagem, no próprio infinito da linguagem”. (Barthes, 1975, p. 15).<br />

A noção de escritura amorosa barthesiana e os seus efeitos de textua-<br />

102<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

lidade advêm, pois, dessa concepção sinuosa e à deriva, no entanto,<br />

extremamente insinuante e reveladora. Tudo sugere um texto que<br />

pulsa e, sob a pela da linguagem amorosa, o texto-mundo deseja vorazmente.<br />

A leitura dos fragmentos, ao acompanhar a trajetória intertextual<br />

e labiríntica do discurso romanesco, lança-se na aventura semiológica<br />

da escritura barthesiana, habitando com o corpo vários<br />

discursos ficcionais, atendendo aos apelos dos signos literários.<br />

Barthes, transgressoramente, nesse <strong>livro</strong>, parece estar no limiar<br />

de um romance, "ele toma, literalmente, notas para um romance<br />

que não escreveu, notas que são ao mesmo tempo a transcrição do<br />

seu <strong>livro</strong> que, afinal, não é um romance". (Calvet, 1993, p. 244). O<br />

que faz do <strong>livro</strong> uma espécie de metalinguagem do amor,<br />

[...] uma prática de imitação, de cópia infinita" (Barthes, 1975, p.<br />

14). [...] uma espécie de carrossel de linguagens imitadas. É a própria<br />

vertigem da cópia, devido ao fato de as linguagens se imitarem sempre<br />

uma às outras, de a linguagem não ter fundo, de não haver um fundo original<br />

da linguagem, de o homem estar perpetuamente embaraçado por<br />

códigos de que nunca atinge o fundo. A literatura é, de certo modo, essa<br />

experiência (Barthes, 1975, p. 16).<br />

De fato, tudo sugere o tempo todo muitas indagações: quais<br />

serão os códigos do amor? Haverá uma linguagem do amor? Barthes<br />

- escritor, - com seu estatuto de fragmentos - combinando citações e<br />

suprimindo aspas parece confirmar que "não se copiam obras, copiam-se<br />

linguagens" (Barthes, 1975, p. 22). Na linguagem dos enamorados<br />

como seres solitários e in<strong>completo</strong>s, o discurso do amor surge<br />

como sentimento incompreensível. O <strong>livro</strong>, através de inúmeras citações<br />

e exemplos do tema confirma que é como o próprio ser amado<br />

descrevendo-se: lê-lo é conhecer o desconhecido eternamente. "[...]<br />

tudo se representa, pois, como uma peça de teatro". (FDA, 1978, p.<br />

133). "O apaixonado é, portanto, artista e o seu mundo é bem um<br />

mundo às avessas, pois toda a imagem é o seu próprio fim (nada para<br />

lá da imagem)" (FDA, 1978, p. 170).<br />

Empenhado, porém, em exibir a inquietude e incertezas sígnicas<br />

que caracterizam toda a prática escritural e amorosa, este <strong>livro</strong><br />

não vai tratar de filosofia nem de conceitos: não se pode conceituar o<br />

que está em contínua deriva. Impossibilitado, pois, de tratar a escritura<br />

e o amor misturado a ela, este <strong>livro</strong> é antes, barthesianamente falando,<br />

um <strong>livro</strong> escriptível, ou seja, um <strong>livro</strong> cuja linguagem, em<br />

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ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

muitos de seus momentos, se sensorializa e corporifica, com o objetivo<br />

de permitir entrever, por entre suas malhas, o corpo feérico e<br />

bailarino do texto. Esses fragmentos de amor barthesianos, nascidos<br />

sob o signo da escritura e da trapaça linguajeira, é o protótipo não do<br />

peregrino ou do viajante, mas antes do dançarino. Os signos do a-<br />

mor, lido por Barthes, implícito no espaço girante da escritura, é antes<br />

o buscador do discurso descompromissado, empenhado não em<br />

encontrar respostas, mas em mergulhar no redemoinho do imaginário,<br />

em que avultam o pontilhado de fulgurantes rebrilhos epifânicos.<br />

Nada de respostas nem certezas; apenas a dança sedutora de verdades<br />

possíveis (verdades fantasmáticas, diríamos, parafraseando Barthes)<br />

que nunca se revelam em definitivo. É dessa indefinição, semente<br />

de utopias, que a arte, a literatura, a escritura e conseqüentemente<br />

o discurso amoroso, enfim, se alimentam. E o escritor e seu<br />

leitor também.<br />

Em cada verbete, o sujeito do discurso amoroso registra as<br />

angústias mais veementes de um coração apaixonado e nos faz refletir<br />

acerca de ações banais, como a espera de um telefonema (ou a<br />

dúvida quanto a ligar ou não), o ciúme inexplicável que sentimos a<br />

ver um terceiro falando do nosso ser amado ou simplesmente o delírio<br />

da paixão amorosa. Ciúmes, posses, discursos, signos, o desejo<br />

amoroso. Enfim, nesses verbetes, “a escrita fragmentar barthesiana<br />

tornou-se, após Barthes, num gesto criativo cada vez mais freqüente,<br />

que segue as mais variadas manifestações, todas elas preconizadas<br />

pelo crítico francês: o diário “à la Gide”, os aforismos, os pensamentos<br />

esparsos” (Calabrese, 1988, p. 101). "Os signos do amor alimentam<br />

uma imensa literatura: o amor é representado, reposto numa ética<br />

das aparências". (FDA, 1978, p. 145).<br />

Gozo da palavra romanesca, gozo por articular significantes -<br />

ao lado da leitura barthesiana que desvenda sentidos -, gozo de criar,<br />

de reinventar o objeto do prazer, “o prazer do texto”, o prazer de ler,<br />

o prazer de amar puro e simplesmente. Tudo o que é escrito é falho<br />

de sentido. Não há um sentido, mas o sonho intertextual e caleidoscópico<br />

de sentidos: não há significação, mas significância no discurso<br />

da paixão/fruição “O prazer, em todos esses casos, consiste na extração<br />

dos fragmentos dos seus contextos de pertence e na eventual<br />

recomposição dentro de uma moldura de “variedade” ou de multiplicidade”<br />

(Calabrese, 1988, p. 103).<br />

104<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

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RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 105


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1989.<br />

106<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

URDIDURA LIQUEFEITA:<br />

UM OLHAR SOBRE O VENDEDOR DE PASSADOS<br />

Kellen Dias de Barros (UERJ)<br />

kellen-violento@bol.com.br e kellendiasb@yahoo.com.br<br />

PRIMEIRO PONTO<br />

Como a fluidez de um rio. Água que vinha, passa, retém-se<br />

em pedra, segue o fluxo e vai adiante, mistura-se, torna-se a outra,<br />

reinventa-se a todo tempo. O Vendedor de Passados, brilhante romance<br />

de José Eduardo Agualusa, toma forma d’água, liquefaz-se,<br />

segue a tendência pós-moderna de instabilidade e mudança. O <strong>livro</strong> é<br />

líquido, tal qual a modernidade é líquida, como metaforizou Zygmunt<br />

Bauman. E não seriam outros passos a seguir na análise desse<br />

<strong>livro</strong> líquido senão a tese líquida do sociólogo polonês.<br />

De acordo com Bauman, “‘Líquido-moderna’ é uma sociedade<br />

em que as condições sob as quais agem seus membros mudam<br />

num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação,<br />

em hábitos e rotinas, das formas de agir.” (Bauman, 2007, p. 7) A<br />

sociedade “líquido-moderna” tem uma necessidade tal de mudança<br />

que poderia apresentar não somente a necessidade de renovação do<br />

futuro, mas do passado também. E é essa necessidade, talvez sonhada<br />

por alguns indivíduos líquidos nesse aquário em que vivemos, que<br />

explora Agualusa em O vendedor de passados.<br />

O romance se desenvolve no século XXI, em uma nação africana<br />

em ascensão – Angola – saída de um período de dominação estrangeira<br />

e posterior guerra civil, onde ainda se faz urgente a construção<br />

de uma identidade nacional, onde são necessários heróis, homens<br />

e mulheres que possam servir de ícone, que possam levar Angola<br />

como bons angolanos, dignos da missão que desejam, onde,<br />

também, é imprescindível que se mantenha a distância dos vilões do<br />

passado. Sendo assim, pessoas que começavam a ascender socialmente,<br />

que ocupavam cargos importantes ou que, estavam embrenhadas<br />

em pretéritos obscuros, diante da história desenhada pelo país,<br />

necessitavam de um novo passado.<br />

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ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

Sim, um novo passado. Expressão oxímora, dúbia como todo<br />

o desenvolvimento da obra, que reúne constantemente os opostos,<br />

combina elementos inassociáveis. Afinal estamos em África, terra de<br />

contrastes, espaço em que todo tipo de exploração levou o homem ao<br />

limite de sua humanidade, ou talvez além, mas em que permanece o<br />

sorriso. Terra de adaptações e lutas constantes. Terra em que, após<br />

séculos de um duro processo de destruição – de traços culturais, naturais,<br />

políticos etc. – espera construir uma estrutura de produção e-<br />

quivalente a de seus antigos grandes senhores, que luta contra sua<br />

juventude, tentando dar saltos no tempo para assemelhar-se aos seus<br />

pais postiços e renegados. Nessa terra, somente nessa terra africana,<br />

é possível compreender o quanto o fluxo da vida pós-moderna arrebata<br />

indivíduos capazes de tão facilmente refazer seus passados. A-<br />

queles tomados por diferentes e, por isso, explorados, ao tentarem<br />

mudar sua condição jogam-se no rio da pós-modernidade ocidental e<br />

vão sendo levados, completamente zonzos, pelo acelerado fluxo.<br />

Como diz o narrador do romance, a vida em Angola “é a vida em estado<br />

de embriaguez.”. (Agualusa, 2004, p. 11)<br />

O Vendedor de passados é um tanto da própria Angola. Falar<br />

da obra é também, de certa forma, falar na República de Angola, seu<br />

verdadeiro nome, nessa busca incessante de inserção. Em Modernidade<br />

e ambivalência (1999), Bauman discute a posição do estranho<br />

na modernidade e destaca: “a incongruente constituição existencial<br />

do estranho como não sendo ‘de dentro’ nem ‘de fora’, nem ‘amigo’<br />

nem ‘inimigo’, nem incluído nem excluído que torna o conhecimento<br />

nativo inassimilável” (87) e essa posição é de tal forma desconfortável<br />

que “apesar de toda incongruência interna – a oferta de ‘tornar-se<br />

nativo’ pela adoção da cultura nativa, da assimilação, parece ao estranho<br />

uma proposta tão sedutora” (90). Angola é um estranho tentando<br />

tornar-se semelhante porque a busca pela semelhança também<br />

é um impositivo do mundo líquido moderno. Todo esse processo é<br />

amplamente explorado no romance, pois como dizia Deleuze e Guattari<br />

em Mil Platôs (1995): “O <strong>livro</strong> imita o mundo” (13).<br />

Levando-se em conta essa tendência plural e líquida que percorre<br />

toda a obra, faz-se necessário que, em trabalho acadêmico como<br />

este, “coloquemos ordem na casa”. Para que nossa análise não<br />

desenhe um percurso de idas e vindas, num seguimento contínuo de<br />

108<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

fluxo fluvial, devemos criar atalhos imaginários, passar fios, amarrar<br />

alguns pontos que facilitem o nosso olhar.<br />

COSENDO O NARRADOR<br />

O narrador é uma osga. Expressão popular em Angola que<br />

também quer dizer asco, repulsa, e popularmente, no Brasil, o animal<br />

é chamado de lagartixa, réptil vindo de África em navios negreiros.<br />

Contudo, ele não é uma osga qualquer. É uma osga-tigre, “animal<br />

tímido, ainda pouco estudado” (Agualusa, 2004, p. 19) rara, oriunda<br />

da Namíbia e que produzia um único som, que se assemelhava a uma<br />

gargalhada. Esse narrador que se mantém tão distante, pela sua própria<br />

condição, e ao mesmo tempo, tão próximo, em cada brecha, em<br />

todos os recintos, na maior intimidade do lar, não poderia ter outra<br />

reação senão rir-se e expor seu riso irônico acerca das vidas reinventadas<br />

na casa.<br />

Essa osga-tigre também não pode ser uma osga qualquer. A<br />

individualidade é um constituinte indispensável ao sujeito da modernidade-líquida<br />

que “obriga todos e cada um de seus membros a ser<br />

únicos” (Bauman, 2007, p. 36). E, apesar da opacidade inevitável de<br />

sua forma de osga, ele é único.<br />

Não encerrando sua liquidez, a osga sofreu uma metamorfose.<br />

Na ânsia de mudança implicada na modernidade líquida, a lagartixa<br />

é o resultado de uma profunda transformação. Tendo sido homem,<br />

transformou-se em lagartixa, mas sua constituição é tão fluida que<br />

afirma: “Tenho vai para quinze anos a alma presa a este corpo e ainda<br />

não me conformei. Vivi quase um século vestindo a pele de um<br />

homem e também nunca me senti inteiramente humano” (Agualusa,<br />

2004, p. 43). Ele não é uma coisa nem outra, seu mal-estar é tão profundo<br />

que não o permite assimilar completamente seu corpo e sua<br />

existência no mundo. Bauman também explora, em sua obra O Malestar<br />

da Pós-modernidade (1998), esse aspecto de inadequação do<br />

homem para consigo mesmo e para com a sociedade:<br />

Os homens e mulheres pós-modernos trocaram seu quinhão de suas<br />

possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade (...) Os malestares<br />

da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura<br />

do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais.<br />

(Bauman, 1998, p. 10)<br />

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ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

Como as coisas vão perdendo seu valor, transferindo-o a outras<br />

coisas em uma velocidade intensa, não há como conseguir uma<br />

estabilidade, como construir sólidos entendimentos acerca de si e do<br />

mundo. A insegurança, não só do futuro, mas do próprio presente,<br />

faz com que o homem viva com medo e tente compensar essa insegurança<br />

com os mesmos objetos de desejo, que por sua volatilidade,<br />

geram a instabilidade. A busca da segurança e identidade em elementos<br />

externos, que sofrem tantas transformações em espaço curto<br />

de tempo, faz com que haja um constante desencontro interno no sujeito.<br />

Sua forma metamorfoseada, antes homem, com um passado,<br />

língua, experiências diversas, hoje lagartixa presa a uma casa, expressa,<br />

também, seu caráter dúbio em sua função de narrador. Apesar<br />

de ele ser o grande narrador, de ser aquele que direciona o olhar do<br />

leitor para os pontos que o interessam, também é um narrador frágil,<br />

pois sua observação dos fatos, como pequeno animal que é, sempre é<br />

limitada:<br />

O silêncio entre eles era cheio de murmúrios, de sombras, de coisas<br />

que corriam ao longe, numa época distante, escuras e furtivas. Ou talvez<br />

não. Provavelmente ficaram apenas calados, um em frente do outro, porque<br />

nada acharam para falar, e eu imaginei o resto. (idem, p. 82)<br />

Mas essa limitação é suprimida pela invenção. Grande forçamotor<br />

do romance.<br />

A duplicidade do <strong>livro</strong> vai adiante, é tão intensa que, ainda<br />

sua profunda liquidez, sua fragmentação são colocadas em suspenso.<br />

Se os reflexos de uma sociedade pós-moderna, materialista, insegura,<br />

que sofre de um permanente mal-estar são elementos presentes na<br />

obra, também são os traços de fé. Não a fé em uma religião específica,<br />

mas uma fé no futuro e em uma força maior que é mantenedora<br />

de todas as coisas.<br />

O narrador osga reencarnou como tal, sua vida pretérita como<br />

homem, finda através de um suicídio, não o levou a morte, mas sim a<br />

um sono, desperto em corpo de osga. Em sua vida-homem, seus sonhos,<br />

de certa forma, antecipavam seu futuro, ao revelar-lhe cenas<br />

em que as pessoas não o viam, não o escutavam, e isso o angustiava.<br />

Angústia inexistente em sua vida-lagartixa, já havia se habituado<br />

com a opacidade...<br />

110<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

Contudo, havia outros tormentos, de natureza cristã: a fé no<br />

amor e a culpa:<br />

Ocorre-me às vezes um infeliz verso cujo autor não me recordo.<br />

Provavelmente sonhei-o. Será talvez o refrão de um fado, de um tango,<br />

de algum velho samba que escutei em criança:<br />

“O pior pecado é não amar.”<br />

Houve muitas mulheres na minha vida, mas receio não ter amado<br />

nenhuma. Não com paixão. Não, talvez, como exige a natureza. Penso<br />

nisto com horror. A minha condição actual será – atormenta-se a suspeita<br />

– um castigo irônico. Ou é isso, ou foi simples distracção. (idem, p. 36)<br />

Mais adiante o sonho é retomado e o verso da canção foi ouvido<br />

num momento em que ele tentava ouvir a voz de Deus:<br />

Continuei sentado ali, muito tempo, com a certeza de que se me esforçasse,<br />

se ficasse inteiramente imóvel, desperto, se me tocasse na alma,<br />

eu sei lá!, de certa maneira o fulgor das estrelas, conseguiria ouvir a voz<br />

de Deus. E então comecei realmente a ouvi-la, e era rouca e chiava como<br />

uma chaleira ao lume. Esforçava-me por entender o que dizia quando vi<br />

emergir das sombras, mesmo à minha frente um perdigueiro magro, com<br />

um pequeno rádio, desses de bolso, preso ao pescoço. O aparelho estava<br />

mal sintonizado. Uma voz de homem, profunda, subterrânea, lutava com<br />

dificuldade contra o tumulto elétrico:<br />

– O pior pecado é não amar – disse Deus, a voz macia de um cantor<br />

de tango: – Esta emissão tem o patrocínio das Padarias União Marimba.<br />

(idem, p. 49-50)<br />

O narrador atribuía uma imortalidade a sua alma e, em vista<br />

disso, pensava estar sendo castigado através do processo de metempsicose<br />

no qual havia entrado. E muito cristãmente, levando-se em<br />

conta que a lei de Cristo é de amor, como prega a Bíblia, o que o leva<br />

à condenação é o afastamento do mandamento maior de Jesus: o<br />

amor. Obviamente, é preciso destacar, essa fé não é apresentada como<br />

uma certeza, nada o é, em O Vendedor de Passados. A fé é tornada<br />

instável por um questionamento ao final: “Ou é isso, ou foi<br />

simples distracção” ou através da atribuição de fala divina a um melodramático<br />

cantor de tango.<br />

Há, ainda, uma espécie de fé na revelação dos sonhos. Foi em<br />

sonho que o narrador falou com Deus, era em sonho que ele conversava<br />

com o dono da casa e apenas sonhando é que determinados fatos<br />

ou reflexões vinham à tona. Em todos os sonhos ele tomava sua<br />

forma do passado, era um homem:<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 111


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

Félix estremeceu:<br />

– Tenho sonhos –, disse: – Tenho às vezes sonhos um pouco estranhos.<br />

Esta noite sonhei com ele...<br />

E apontou para mim. Senti-me desfalecer. Corri rapidamente, assustado,<br />

a esconder-me numa fenda, junto ao tecto. Ângela Lúcia gritou<br />

num daqueles arrebatamentos infantis que a caracterizam:<br />

– Uma osga?! Que maravilha!...<br />

Não é uma osga qualquer. Vive aqui em casa há muitos anos. No<br />

sonho ela tinha a forma de um homem, um tipo pesado, cuja cara, aliás,<br />

não me é estranha. Estávamos num café e conversávamos. (idem, p. 76)<br />

O narrador relata seu sonho com o dono da casa e, depois,<br />

numa forma de afirmação de veracidade, Félix relata o mesmo sonho,<br />

identificando o homem com a osga. O espaço onírico, no <strong>livro</strong>,<br />

parece ser livre de encenações, afinal o sonho só acontece na cabeça<br />

de quem sonha, mas como contraponto – sempre há um contraponto<br />

em O Vendedor de Passados – os sonhos são compartilhados entre<br />

os personagens e, assim, revelam “verdades”. E, em um caso específico,<br />

denunciou uma espécie de “ligação espiritual” entre a osga e<br />

Félix:<br />

Naquele caso riu-se diante dos olhos aflitos de meu amigo, aumentando<br />

grandemente o seu desassossego, mas logo a seguir ficou séria e<br />

perguntou:<br />

– E o nome? Afinal o muadiê disse-te quem é?<br />

Ninguém é um nome! – Pensei com força.<br />

– Ninguém é um nome! – Respondeu Félix.<br />

A resposta apanhou Ângela Lúcia de surpresa. Félix também. (idem,<br />

p. 89)<br />

Félix, ao relatar um de seus sonhos com a osga, revela sua ligação<br />

com ela, o pensamento dos dois se interligou. Mas como ser<br />

interligado a um ser sem identidade? Na sociedade líquido-moderna,<br />

onde estão inseridos todos os personagens da obra, o maior ente é o<br />

sujeito, que se volta sempre para si mesmo, numa auto-reformulação.<br />

Não há como ligar-se a algo que não se auto-centraliza, a uma coisa<br />

descartável, só é possível interligar-se a um igual, a alguém com i-<br />

dentidade. E, dessa forma, a osga é nomeada: Eulálio. Félix batiza o<br />

narrador.<br />

112<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

COSENDO FÉLIX VENTURA<br />

Félix Ventura é um angolano albino. Goza da neutralidade em<br />

um país negro com uma vasta população branca também, vive o espaço<br />

indistinto entre duas tensões. Dono da casa onde habita a osga,<br />

chegou lá como um bebê abandonado à porta, portanto, apesar de dizer-se<br />

negro, ele desconhece sua origem.<br />

Foi abandonado na casa de um alfarrabista, um colecionador e<br />

revendedor de <strong>livro</strong>s, de histórias, e, especialmente, de <strong>livro</strong>s e histórias<br />

antigas. Chegou em uma caixa repleta de exemplares d’A Relíquia<br />

de Eça de Queiroz, chegava como um tesouro, como algo de<br />

imenso valor, mas que poderia revelar-se uma farsa ao final, como<br />

acontece no romance de Eça. Félix tinha orgulho de seu primeiro<br />

berço. E nascido entre letras, tendo vivido entre letras, só poderia ser<br />

um inventor de histórias.<br />

Félix é o vendedor de passados. Ele inventa nascimentos,<br />

dentro de uma lógica totalmente líquida, já que a “a vida líquida é<br />

uma sucessão de reinícios” (Bauman, 2007, p. 8). Ele acreditava fazer<br />

uma literatura libertadora, tendo em vista que suas fabulações<br />

não ficavam presas em <strong>livro</strong>s, mas saíam ao mundo, encarnadas nos<br />

novos personagens que criava.<br />

É em Ventura que se concentra o principal jogo da obra: o jogo<br />

entre verdades e mentiras. Nesse jogo, não existem vencedores,<br />

nem mesmo hierarquias, há um fluxo, informações que ora passam<br />

para um lado ora para o outro, demonstrando a total incapacidade de<br />

determinação de um plano indubitável, mais ainda, revelando a nula<br />

validade de se pretender distinguir o falso do verdadeiro.<br />

E assim, Ventura oferece aos seus clientes um misto daquilo<br />

que eles já eram com aquilo que eles gostariam de ter sido. Reúne<br />

documentos, fotos, dados históricos e os fabula, criando um passado<br />

digno de um bom angolano, cheio de honras e ligações com os grandes<br />

personagens da história da República de Angola.<br />

E não só seus clientes gozavam de suas fabulações de verdades<br />

e mentiras, Félix mesmo vivia o enredo que criava, um tanto de<br />

dados concretos, um tanto de imaginação e se perdia nesse jogo:<br />

– O teu avô, aquele ali, o do retrato, é muito parecido com o Frederick<br />

Douglass.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 113


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

Félix olhou-a derrotado:<br />

– Ah, reconheceste-o? O que queres? chama-se a isto deformação<br />

profissional. Crio enredos por ofício. Enfabulo tanto, ao longo do dia, e<br />

com tal entusiasmo, que por vezes chego à noite perdido no labirinto de<br />

minhas próprias fantasias. Sim, é Frederick Douglass, comprei o retrato<br />

numa feira de rua, em Nova Iorque. Mas quem trouxe para aqui o cadeirão<br />

onde agora estás sentada foi de facto um dos meus bisavôs, ou melhor,<br />

o avô do meu pai adoptivo. Excluindo o retrato, a história que te<br />

contei é autêntica. Enfim, pelo menos tanto quanto me recorde. Sei que<br />

tenho por vezes recordações falsas – todos temos, não é assim?, os psicólogos<br />

estudaram isso – mas penso que essa é verídica. (idem, p. 125-126)<br />

Nessa cena, em que Ventura conversa com sua amada Ângela<br />

Lúcia, ele tenta convencê-la de que seu discurso é verdadeiro, apesar<br />

de ela ter encontrado em sua história uma incongruência com um dado<br />

histórico. Mas “Félix costura a realidade com a ficção, habilmente,<br />

minuciosamente” (idem, p. 139) e tudo vira um grande tecido, um<br />

mesmo tecido. Habermas afirma que “A redenção discursiva de uma<br />

alegação de verdade conduz à aceitabilidade racional, não à verdade.”<br />

(Habermas, 2004, p. 60). O jogo discursivo de Félix tentava<br />

constantemente dar um valor de verdade às histórias que criava, ele<br />

pretendia amarrá-las de tal forma que elas fossem aceitas racionalmente.<br />

COSENDO JOSÉ BUCHMANN<br />

José Buchmann não é José Buchmann, mas se esforçou para<br />

sê-lo. Ele é um comprador de passado, mas de uma forma mais aguda,<br />

ele não quer modificar apenas sua origem, ele quer uma nova vida,<br />

uma nova identidade.<br />

Chegou à casa de Félix Ventura com um sotaque estrangeiro,<br />

branco, de modos antiquados e com a pretensão de tornar-se um verdadeiro<br />

angolano. Sem informar seu nome ou nenhum dado adicional,<br />

a não ser sua profissão – repórter fotográfico especializado em<br />

guerras e imagens drásticas – pediu a Félix que o rebatizasse, que lhe<br />

criasse uma vida toda nova e bem ao modo de Angola. Para essa<br />

missão, uma boa quantia em dinheiro. Irresistível.<br />

E assim foi feito. Aquele homem tornara-se José Buchmann,<br />

52 anos, natural da Chibia, no sul de Angola, terra de brancos madei-<br />

114<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

reiros e criadores de gado, em que Mateus Buchmann casou-se com<br />

a americana Eva Miller.<br />

Quando Félix Ventura mostrou-lhe os documentos e as fotografias<br />

que seriam o arcabouço de sua nova vida, Buchmann estremeceu,<br />

parecia estar realmente descobrindo sua história. A tal ponto<br />

se envolveu com sua nova vida que, apesar de todas as rogativas de<br />

Ventura para que ele se mantivesse o mais longe possível dos elementos<br />

concretos de sua nova história, ele procurou ver, analisar,<br />

conhecer de perto suas “origens”. Viajou para a Chíbia, fotografou o<br />

túmulo dos familiares. Ele brincava com os dados do real e as ficções<br />

de Félix:<br />

– Estive na Chíbia!<br />

Vinha febril. Sentou-se no majestoso trono de verga que o bisavô do<br />

albino trouxe do Brasil. Cruzou as pernas, descruzou-as. Pediu um uísque.<br />

O meu amigo serviu-o, aborrecido. Santo Deus, o que fora ele fazer<br />

à Chibia?<br />

– Fui visitar a campa de meu pai.<br />

Como?! O outro engasgou-se. Qual pai, o fictício Mateus Buchmann?<br />

– O meu pai! Mateus Buchmann pode ser uma ficção sua, aliás urdida<br />

com muita classe. Mas a campa, juro!, essa é bem real. (idem, p. 60)<br />

O próprio Félix Ventura, não se exasperou com a pesquisa de<br />

José Buchmann, afinal, até que ponto os dados podem ser ou não<br />

considerados reais?<br />

O jogo do real com o fictício é permanente, o contato com<br />

seus elementos constituintes excita os jogadores.<br />

Buchmann foi além, viajou para os Estados Unidos em busca<br />

de Eva Miller, sua nova mãe, mas descobriu, depois de longa pesquisa,<br />

que ela havia morrido. Ele investiu o máximo em sua transformação<br />

e, assim, tornava-se pouco a pouco José Buchmann, e seu processo<br />

de mudança passou por uma perda do sotaque estrangeiro, pela<br />

mudança de vestimenta, pela eliminação do bigode, pela expansão de<br />

sorrisos e da alegria angolana...<br />

A osga não cessava de analisá-lo:<br />

Venho estudando há semanas José Buchmann. Observo-o a mudar.<br />

Não é o mesmo homem que entrou nesta casa, seis, sete meses atrás. Al-<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 115


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

go, da mesma natureza poderosa das metamorfoses vem operando em<br />

seu íntimo. (Agualusa, 2004, p. 59 – grifo nosso).<br />

O narrador, portanto, não era o único ser metamorfoseado. A<br />

transformação do estrangeiro era tão profunda que parecia que ele<br />

era um ser de uma espécie diferente. O estranho, como tão bem analisou<br />

Bauman, em seu esforço para tornar-se um nativo, metamorfoseou-se.<br />

Olhando o passado, contemplando-o daqui, como contemplaria uma<br />

larga tela colocada à minha frente, vejo que José Buchmann não é José<br />

Buchmann. Porém, se fechar os olhos para o passado, se o vir agora, como<br />

se nunca o tivesse visto antes, não há como não acreditar nele – aquele<br />

homem foi José Buchmann a vida inteira. (idem, p. 65)<br />

Assim como não identificamos os traços de lagarta em uma<br />

borboleta, não era possível mais, sem o conhecimento do processo de<br />

metamorfose, identificar o estrangeiro em Buchmann.<br />

Contudo, seguindo a natureza dúbia do romance, Buchmann,<br />

esse homem-líquido, é pego pelo fio do destino.<br />

Um encontro com um “ex-gente” (Agualusa, 2004, p. 157),<br />

como ele mesmo se apresentava, um homem que vive nas ruas, totalmente<br />

à margem da sociedade, que leva estampado no peito o<br />

símbolo do socialismo, sistema vencido, deixado para trás com horror<br />

na reconstrução de Angola. Na nova República de Angola não há<br />

mais lugar para ele.<br />

É chamado de louco, ratificando o discurso de Foucault, que<br />

afirma:<br />

O que é então a loucura, em sua forma mais geral, porém mais concreta,<br />

para quem recusa, desde o início, todas as possibilidades de ação<br />

do saber sobre ela? Nada mais, sem dúvida, do que a ausência de obra.<br />

(Foucault, 2002, p. 156)<br />

É um homem sem obra, não há atividade, possibilidade de<br />

movimento, de adequação, de construção de nada para ele, se tornou<br />

realmente um “ex-gente”. Buchmann o fotografou por semanas e, finalmente,<br />

apareceu com ele em casa de Félix. Seu nome, ele tinha<br />

identidade, era Edmundo Barata dos Reis – nome que denunciava<br />

sua condição – tinha uma vida que “parecia inventada por si [Félix<br />

Ventura]” (Agualusa, 2004, p. 157).<br />

116<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

A vida de Edmundo foi aliada à força comunista, que esteve<br />

no poder em Angola por muitos anos. Na casa de Félix, ele fez revelações<br />

sobre a vida política do país, como a existência de um sósia<br />

do presidente. O discurso, posteriormente atestado em análise de fitas<br />

de vídeo de aparições do presidente, levou Félix à seguinte reflexão:<br />

“Temos então um presidente de fantasia –, disse, enxugando as<br />

lágrimas [de riso] com um lenço. – Isso eu já suspeitava. Temos um<br />

governo de fantasia. Temos, em resumo, um país de fantasia.” (Agualusa,<br />

2004, p. 160). Em meio a fantasias, Barata contava coisas<br />

que se afinavam com fatos concretos. Ele tinha o discurso que ganhava<br />

valor de verdade. Não escondeu o seu passado, não o renegou.<br />

Era um “ex-gente”, não metamorfoseado.<br />

É interessante pensarmos que, nesse <strong>livro</strong> líquido, cuja narrativa<br />

é um fluxo que retorna, segue adiante, dá saltos; um imenso salto<br />

foi dado para um período em que era atribuído ao discurso do louco<br />

um valor de verdade, como destaca o filósofo francês: “Ela [a<br />

loucura] perdeu essa função de manifestação, de revelação que ela<br />

tinha na época de Shakespeare e de Cervantes (por exemplo: Lady<br />

Macbeth começa a dizer a verdade quando fica louca)” (Foucault:<br />

2002, p. 163). O louco revela quem foi José Buchmann antes de se<br />

tornar José Buchmann e a origem de Ângela Lúcia, a amada de Félix,<br />

fotógrafa, colecionadora de luzes.<br />

Edmundo Barata dos Reis chega apavorado na casa de Félix,<br />

pois um sujeito queria lhe matar: Pedro Gouveia, nome de primeiro<br />

batismo de Buchmann. O metamorfoseado havia descoberto que<br />

Edmundo foi o homem que o e torturou no passado, assim como a<br />

sua mulher, que estava grávida e, por conta das agressões, tivera o<br />

bebê durante a tortura. A criança, uma menina recém nascida, também<br />

é torturada, sobrevive, mas a mulher Marta Martins, intelectual,<br />

poetiza, não.<br />

Pedro chega à casa de Félix armado e agredindo Barata, que,<br />

apesar de acossado por uma arma e pontapés, não se fragiliza e narra<br />

a todos o processo de tortura na grávida Marta e na menina.<br />

Gouveia recua. Félix, apavorado, ordena que Barata se retire.<br />

Pedro Gouveia, o homem que veio do passado pelo discurso de um<br />

louco, não concretiza sua vingança, não o mata. Isso faz com que o<br />

ex-gente diga: “Matar um homem é coisa de homem” (idem, p. 178).<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 117


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

É, então, que Ângela, o bebê torturado assim que saíra do ventre de<br />

sua mãe, pega a arma e o mata, disparando contra o peito de seu algoz.<br />

Essa cena dramática revela a ligação entre os personagens.<br />

Ligação de cunho metafísico. O destino cumprira sua missão de religar<br />

pai e filha e de punição do malfeitor.<br />

Na liquidez fluida da modernidade líquida, o fluxo, as pedras<br />

e curvas da crônica da vida constroem uma linha condutora, um destino<br />

a cumprir-se.<br />

ÚLTIMO PONTO<br />

“Por que, na vida cotidiana, os homens normalmente dizem a<br />

verdade? – Não porque deus tenha proibido a mentira, certamente.<br />

Mas em primeiro lugar, por que é mais cômodo; pois a mentira exige<br />

invenção, dissimulação e memória." (Nietzsche, 2000, p. 56) A mentira,<br />

a fabulação exige um jogo, não é possível abrir mão dos dados<br />

da realidade, nem mesmo das criações do imaginário. Nem sempre<br />

se está disposto a jogar. Agualusa em O Vendedor de Passados esteve<br />

plenamente disposto a esse jogo.<br />

Depois de tantos anos passando por um processo em que se<br />

desprezava o valor da ficção em nome de uma afirmação da realidade,<br />

a modernidade líquida se apresenta como um momento propício<br />

à plena exposição da ficção. Como as coisas se apresentam tão incertas,<br />

voláteis, inconstantes, diante da velocidade com que a vida líquida<br />

se transforma, a partir da transferência de valores dos objetos e<br />

da urgência de inserção e adequação dos indivíduos, habituamo-nos<br />

a ver o mundo com diversas polaridades. É como se estivéssemos<br />

sempre a olhar um caleidoscópio. E a literatura, campo plural em si<br />

mesmo, não poderia deixar de refletir essa multiplicidade caleidoscópica<br />

em seu corpo. E, assim, temos O Vendedor de Passados, tão<br />

plural, tão múltiplo, mergulhado na modernidade líquida. A tal ponto<br />

embrenhado nela que a nega, em determinados momentos.<br />

A duplicidade do discurso, sempre apresentando um quê de<br />

incerteza, de volatilidade, e, ao mesmo tempo, apresentando uma fé<br />

na ligação entre os fatos, em uma possibilidade de apreender o futuro<br />

e a “verdade” através dos sonhos, é uma forma de o romance se tor-<br />

118<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

nar ainda mais líquido, pois tendo em vista que na modernidade líquida<br />

nenhum valor é imutável, absoluto, que os sujeitos têm que,<br />

justamente, se adequar à inconstância das coisas, essa relativa fé é<br />

uma instabilidade no quadro de sutis certezas líquidas.<br />

Além do mais, todos os fatos apresentados no romance, desde<br />

os mais fluidos aos mais concretos são colocados em suspense no diário<br />

de Félix Ventura, o último capítulo do <strong>livro</strong>:<br />

A memória que me resta dele [Eulálio], aliás, parece-se cada vez<br />

mais, a cada hora que passa, com uma construção de areia. A memória<br />

de um sonho. Talvez eu o tenha sonhado inteiramente – a ele, a José Buchmann,<br />

a Edmundo Barata dos Reis. (Agualusa, 2004, p. 197)<br />

E como última frase do romance: “Eu fiz um sonho” (idem:<br />

199). Afirmativa também dupla, pois se por um lado ele torna todo o<br />

romance ainda mais instável, mais liquefeito, por ter-se realizado em<br />

espaço onírico, ele também o coloca no campo do irrealizável, do<br />

impensável num mundo de certezas mais sólidas, só podendo ser, então,<br />

um devaneio, um sonho.<br />

Arrematando esse tecido teórico inventado, destacamos que a<br />

tentativa de “pôr ordem na casa” delineou um fio imaginário de olhar<br />

analista. Certamente, outros fios hão de ser passados, formando cenário<br />

muito diverso. Em tempos de autocentralização esse foi apenas<br />

um olhar interpretativo, olhar que não ignora a multiplicidade de<br />

caminhos que o romance aponta. Fechamos esse ponto na certeza de<br />

que maior está o prazer da criação de fios incitados pelo enredo do<br />

que no arremate do tecido.<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 119


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. Rio de Janeiro:<br />

Gryphus, 2004.<br />

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro:<br />

Jorge Zahar, 1998.<br />

––––––. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,<br />

1999.<br />

––––––. Vida líquida Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.<br />

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e<br />

esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000.<br />

FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos vol. I: Problematização do<br />

sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Forense<br />

Universitária, 2002.<br />

HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade.<br />

São Paulo: Martins Fontes, 2004.<br />

ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In: LIMA, Luiz Costa. A Literatura<br />

e o leitor: textos de estética da recepção. São Paulo: Paz e Terra,<br />

2002.<br />

––––––. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In:<br />

LIMA, Luiz Costa. Teoria da Literatura e suas fontes, vol.2. Rio de<br />

Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.<br />

NIETZSCHE, Friedrich. Humano demasiado humano. São Paulo:<br />

Cia. das Letras, 2001.<br />

120<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

VICTOR CUNHA<br />

TESTEMUNHA DE UMA TRÊS CORAÇÕES IMAGINADA<br />

Simone Pereira de Souza Ferreira<br />

simone80.ferreira@yahoo.com.br<br />

Geysa Silva<br />

geysasilva@terra.com.br<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 121


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

Nosso trabalho apresenta a figura de Victor Cunha e uma análise<br />

simplificada de algumas de suas composições, tendo como base<br />

teórica a obra do russo Mikail Bakhtin, denominada Estética da criação<br />

verbal, no que se refere à lingüística e a obra do francês Edgar<br />

Morin, no que se refere à crítica literária. Começaremos, então, com<br />

uma breve notícia sobre a vida do autor, para que os leitores/ouvintes<br />

possam conhecer um poeta atual, do interior do sul de Minas.<br />

Victor Cunha, compositor e cronista, nasceu em 15 de setembro<br />

de 1929, na cidade de Três Corações. Cursou o antigo primário,<br />

no colégio Bueno Brandão e formou-se em técnico de contabilidade<br />

em 1948, na cidade de Alfenas. Lecionou no colégio Pio XII e no<br />

Colégio Sion. Mais tarde ingressou no serviço público, através de<br />

concurso realizado pelo antigo Dasp. Exerceu o cargo de tesoureiro,<br />

sendo transferido para o INSS, em São Lourenço , MG. Regressou a<br />

Três Corações em 1962. Aposentou-se como fiscal, em 1982. Desde<br />

cedo interessou-se por música e ganhou seu primeiro violão em<br />

1941. Essa paixão pela música fez com que se ligasse às atividades<br />

artístico-culturais da cidade. Assim, tornou-se presidente do Clube<br />

Três Corações, nos anos de 1979/1980 - 81/82 - 85/86 – 87/88; foi<br />

também presidente do Conselho de Turismo do mesmo clube, presidente<br />

do Atlético (1964 a 1966) e um dos proprietários da Rádio<br />

Tropical, de 1979 a 2002.<br />

Em 1951, fundou o conjunto Velha Guarda, em parceria com<br />

o sargento Cleber Cunha e com Luiz Scalioni Pereira. O conjunto a-<br />

122<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

presentava-se na cidade, animando festas e reuniões, mas também<br />

em Belo Horizonte, em outras cidades da região, em Brasília e em<br />

São Paulo. Seu aparecimento mais notável foi na TV - Globo, do Rio<br />

de Janeiro, em 1971, no programa Alô – Brasil, Aquele Abraço.<br />

Em 2001, Victor Cunha fundou outro conjunto, chamado<br />

Chorando Baixinho, composto por ele mesmo (violão), Ronildo Prudente<br />

(pandeiro), Leonardo Chalana (cavaquinho), Lívia Alves (flauta)<br />

e a cantora Annibelle. Especializaram-se em chorinho e canto e<br />

focalizaram compositores brasileiros de diversas épocas, indo dos<br />

mais antigos até Chico Buarque e Caetano Veloso.<br />

Entre suas composições estão: Saudade, um hino de amor à<br />

cidade natal, Três Corações.<br />

SAUDADE... - TEMA DE TC-<br />

Quantas saudades de tudo que o tempo levou<br />

Daqueles dias felizes que a vida marcou.<br />

Das serenatas saudosas nas noites de lua<br />

Do Rio Verde a passar, espelhando o luar...<br />

Do Bom Senhor na Matriz, do meu Grupo, da Praça<br />

Dos seriados famosos que não voltam jamais.<br />

Tudo ficou na lembrança, de uma cidade criança<br />

Que os anos levaram sem volta<br />

Sem nenhuma esperança.<br />

Autor: Victor Cunha – Composição<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 123


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

Dos Carnavais, que saudade!<br />

Dos Blocos no Clube<br />

Dos Ranchos e Blocos de Rua, na Avenida a bailar<br />

Da Velha Guarda querida em perfeita harmonia<br />

Nos Balalaikas da vida, como a vida sorria...<br />

Disse Cartola num samba que As Rosas não falam<br />

Mas para mim, simplesmente, as rosas não ouvem<br />

Elas falando e ouvindo, se me escutassem chorar<br />

Pediriam a Deus lá no Céu<br />

Para o tempo voltar.<br />

Este conhecido tricordiano fala, através de suas canções, do<br />

amor e da saudade que sente por sua terra. A estrutura dos versos revela<br />

que a base material do discurso poético é um conjunto de signos<br />

que remetem ao vocabulário freqüentemente usado pelos românticos.<br />

Victor Cunha vale-se de uma retórica comum ao final do século XIX<br />

para expressar o sentimento de um passado edênico, perdido no tempo<br />

da recordação. O enunciador tem a forma indeterminada, uma vez<br />

que o sujeito sintático não se identifica, o que leva à mistura de funções<br />

diferentes: ele é quem fala, quem sabe o que se passou e ainda<br />

realiza um sincretismo com possíveis leitores. De acordo com Paulo<br />

Eduardo Lopes (1994), podemos dizer que temos, nos versos acima,<br />

no nível do enunciado, um informador que define o passado como<br />

sinônimo de tempo feliz. Entretanto essa não é uma posição individual<br />

e, sim, aquela adotada por diversas pessoas antigas da comunidade.<br />

Nesse discurso ecoam outras vozes, pois todo discurso é dialógico<br />

e deixa entrever outros que lhe são subjacentes, conforme afirmações<br />

de Bakhtin.<br />

O enunciado está repleto de ecos e lembranças de outros enunciados,<br />

aos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação<br />

verbal. O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma<br />

resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera (a palavra<br />

“resposta” é empregada aqui no sentido lato): refuta-os, confirma-os,<br />

completa-os, baseia-se neles, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de<br />

outro, conta com eles (Bakhtin, 1992, p. 316).<br />

Saudade é também o título de seu <strong>livro</strong>, em que recorda a<br />

Três Corações pacata, porém com muitas histórias interessantes. A<br />

reiteração do lexema saudade mostra a obsessão do autor, demonstrada<br />

na escolha do estilo literário. Nada de versos brancos, nem de<br />

ausência de rimas. Temos um discurso que supõe a concordância de<br />

outros que já vivenciaram as mesmas experiências do poeta. Essa i-<br />

dentificação se estende aos elementos da natureza, pois até as rosas<br />

124<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

“pediriam a Deus lá no céu/ para o tempo voltar”. Ainda é Bakhin<br />

quem nos diz:<br />

Minha emoção só adquirirá ressonância lírica na medida em que eu<br />

não me sentir solitariamente responsável por ela, mas em que me sentir<br />

solidário com os valores do outro em mim, em que sentir minha passividade<br />

no possível coro dos outros, um coro que me terá rodeado de todos<br />

os lados e que parece proteger-me contra o pré-dado imediato e premente<br />

do acontecimento existencial (Bakhtin, 1992, p. 184).<br />

Esses outros são o coro que se harmoniza com o que digo. As<br />

inúmeras referências a fatos, construções, organizações (“Balalaikas”,<br />

“Velha Guarda”, “Monsenhor da Matriz” etc.), que são do conhecimento<br />

apenas de quem conhece ou conheceu Três Corações,<br />

mostram a inclusão do autor num coro formado por conterrâneos, coro<br />

em que ele se coloca como herói privilegiado por conseguir cantar<br />

uma melancolia que é de muitos outros.<br />

Em 2006, lançou seu segundo <strong>livro</strong>, chamado Três Corações...<br />

ontem, Três Corações... hoje, Um pouco de sua história, onde<br />

se encontram as biografias de todos os agentes executivos, interventores<br />

e prefeitos nomeados até o fim da ditadura de Getúlio Vargas<br />

(1945). É um <strong>livro</strong> de referência que se presta à consulta de estudiosos<br />

da história local, sem objetivos literários. Outra composição é<br />

dedicada à escola Bueno Brandão, intitulada Escola Estadual Bueno<br />

Brandão.<br />

E.E. BUENO BRANDÃO<br />

Muitos anos de ensino Primário<br />

Nosso Grupo foi sempre o primeiro<br />

Na vanguarda do mundo infantil<br />

Educando com amor verdadeiro<br />

Os seus mestres se orgulham de ti<br />

És o berço das grandes lições<br />

Hoje, Escola Bueno Brandão<br />

És o orgulho de Três Corações<br />

És majestosa, e imponente<br />

Cheia de vida e tradição<br />

Teus alunos te amam contentes<br />

Nossa Escola Bueno Brandão<br />

-Teus alunos te amam contentes<br />

Nossa Escola Bueno Brandão<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 125


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

Essa composição homenageia a Escola Bueno Brandão, que é<br />

uma das mais antigas da cidade. Lugar que representa, para ele e para<br />

os habitantes de Três Corações, o orgulho e a tradição do ensino<br />

tricordiano. Impossível compreendê-la sem nos determos na história,<br />

mesmo que sucinta, dessa instituição. Nas palavras de Edgar Morin<br />

É verdade que a história esqueceu, durante certo tempo, o acontecimento,<br />

o fato, considerando que ele não passava da superfície das coisas,<br />

mas hoje ela o reintroduz. Em suma a história é a ciência que situa no<br />

tempo tudo o que é humano.<br />

É na história que nós existimos. Não podemos nos compreender fora<br />

da história, pois o próprio historiador é historicizado (Morin, 2002, p.<br />

357).<br />

Bueno Brandão, é um nome em homenagem feita ao Presidente<br />

do Estado de Minas Gerais, Julio Bueno Brandão. A arquitetura<br />

desse prédio guarda as características originais, um estilo eclético,<br />

em que o neoclássico se mescla com o art nouveau, numa mistura<br />

repetida em alguns prédios mais antigos da cidade. Em seu interior<br />

destacam-se coloridos azulejos de banheiros que lembram a decoração<br />

dos hotéis situados no chamado circuito das águas. Juntamente<br />

com a Matriz da Sagrada Família, integra as construções que se destacam<br />

na arquitetura local e delimita a praça em que está situado,<br />

praça que é a principal de Três Corações.<br />

126<br />

CADERNOS DO CNLF, VOL. XII, Nº 15


Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos<br />

As estratégias de constituição do discurso dessa composição<br />

obedecem praticamente aos mesmos processos da poesia anterior :<br />

rimas pobres (lições/corações; primeiro/verdadeiro, etc.); aliterações<br />

(primário/primeiro) e os versos finais atuando como estribilho. Tudo<br />

nos leva às composições do passado, como se não tivesse havido<br />

modernismo, nem discussão sobre novas formas de fazer poesia.<br />

Contudo não se quer apenas explicitar as características da composição<br />

como obra literária. Estamos diante de enunciados que se conformam<br />

a um determinado gênero de discurso, no caso um discurso<br />

que se aproxima da forma romântica, em que podem ser detectados<br />

rastros de Casimiro de Abreu, no que diz respeito à infância, a um<br />

espaço-tempo irrecuperável. Evidente que nenhum autor escreve pela<br />

primeira vez sobre qualquer tema. Seu objeto de discurso já foi apresentado<br />

e discutido por outros. Então o discurso é o lugar onde vozes<br />

diferentes se encontram e se distanciam.<br />

O locutor não é um Adão, e por isso o objeto de seu discurso se torna,<br />

inevitavelmente, o ponto onde se encontram as opiniões de interlocutores<br />

imediatos (numa conversa ou numa discussão acerca de qualquer<br />

acontecimento da vida cotidiana) ou então as visões do mundo, as tendências,<br />

as teorias, etc. (na esfera da comunicação cultural). A visão do<br />

mundo, a tendência, o ponto de vista, a opinião têm sempre sua expressão<br />

verbal (Bakhtin, 19992, p. 319-320).<br />

Na dialogicidade, o poeta exibe, portanto, um texto cujo objeto<br />

é o reflexo subjetivo (o que o poeta pensa e sente) de um aspecto<br />

objetivo do real (aspectos de Três Corações). Três Corações é, para<br />

Victor Cunha, o ponto de partida de suas composições; a cidade é o<br />

signo desencadeador das formas concretas de seu discurso, cujas relações<br />

de sentido são de natureza factual (a Velha Guarda, a Balalaika,<br />

a escola estadual Brandão Bueno, etc.). Há uma vontade de registrar<br />

esses elementos, poupá-los da ação do tempo, para que os próximos<br />

tomem conhecimento do que existiu. No fundo dessas atitudes,<br />

está o medo do esquecimento, que é na verdade o medo da morte.<br />

A evolução de um sistema no tempo não é uma sucessão de transições<br />

entre elementos estáticos, mas sim ataques de níveis sucessivos de<br />

complexidade ou, ao contrário, de desorganização.<br />

Até agora, as ações empreendidas permaneciam causalistas: agia-se<br />

sobre um parâmetro e mediam-se os resultados. Na sistêmica moderna<br />

age-se sobre vários parâmetros ao mesmo tempo (Morin, 2002, p.496).<br />

RIO DE JANEIRO: CIFEFIL, 2009 127


ANÁLISE E CRÍTICA LITERÁRIA II<br />

Victor Cunha é uma figura-monumento da cidade. Seu dinamismo<br />

se faz notar nos eventos que organiza, quando apresenta espetáculos<br />

sobre compositores brasileiros. Sua generosidade se manifesta<br />

ao colocar à disposição dos alunos o vasto material de que dispõe para<br />

realização das pesquisas. Sem ele, não seria possível esse trabalho.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina<br />

G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992.<br />

CUNHA, Victor. CD-Saudade. Três Corações: Gravadora Tom Maior,<br />

1999.<br />

CUNHA, Victor. Saudade. Três Corações: Gráfica Veritas, 1999.<br />

MORIN, Edgar. A religação dos saberes. O desafio do século XXI.<br />

Trad. Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.<br />

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