Edição Nº 19 - Uneb
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ISSN 0104-7043<br />
Revista da FAEEBA<br />
Educação<br />
e Contemporaneidade<br />
Departamento de Educação - Campus I<br />
Volume 12 Número <strong>19</strong> janeiro/junho 2003<br />
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
Revista da FAEEBA – EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE<br />
Revista do Departamento de Educação – Campus I<br />
(Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA)<br />
Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, científico e cultural.<br />
Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.<br />
ADMINISTRAÇÃO E REDAÇÃO: A correspondência relativa a informações, pedidos de permuta,<br />
assinaturas, etc. deve ser dirigida à:<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade<br />
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA<br />
Departamento de Educação I - NUPE<br />
Estrada das Barreiras, s/n, Narandiba<br />
41150.350 - SALVADOR – BA<br />
Tel. (071)387.5916/387.5933<br />
Instruções para os colaboradores: vide última página.<br />
E-mail da Revista da FAEEBA: refaeeba@campus1.uneb.br<br />
E-mail para o envio dos artigos: jacqson@uol.com.br / jacques.sonneville@terra.com.br<br />
Homepage da Revista da FAEEBA: http://www.uneb.br/Educacao/centro.htm<br />
Indexada em / Indexed in:<br />
- REDUC/FCC – Fundação Carlos Chagas - www.fcc.gov.br - Biblioteca Ana Maria Poppovic<br />
- BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília/INEP)<br />
- Centro de Informação Documental em Educação - CIBEC/INEP - Biblioteca de Educação<br />
- EDUBASE e Sumários Correntes de Periódicos Online - Faculdade de Educação - Biblioteca UNICAMP<br />
- Sumários de Periódicos em Educação e Boletim Bibliográfico do Serviço de Biblioteca e Documentação -<br />
Universidade de São Paulo - Faculdade de Educação/Serviço de Biblioteca e Documentação.<br />
www.fe.usp.br/biblioteca/publicações/sumario/index.html<br />
- CLASSE - Base de Dados Bibliográficos en Ciencias Sociales y Humanidades da Hemeroteca Latinoamericana<br />
- Universidade Nacional Autônoma do México<br />
E-mails: hela@dgb.unam.mx / rluna@selene.cichcu.unam.mx / Site: http://www.dgbiblio.unam.mx<br />
Pede-se permuta / We ask for exchange.<br />
Revista da FAEEBA / Universidade do Estado da Bahia, Departamento<br />
de Educação I – v. 1, n. 1 (jan./jun., <strong>19</strong>92) - Salvador: UNEB, <strong>19</strong>92-<br />
Periodicidade semestral<br />
ISSN 0104-7043<br />
1. Educação. I. Universidade do Estado da Bahia. II. Título.<br />
CDD: 370.5<br />
CDU: 37(05)
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB<br />
Reitora: Ivete Alves do Sacramento<br />
Vice-Reitor: Monsenhor Antônio Raimundo dos Anjos<br />
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS I<br />
Diretora: Adelaide Rocha Badaró<br />
Núcleo de Pesquisa e Extensão – NUPE<br />
Programa de Pós-Graduação Educação e Contemporaneidade/UNEB – PEC/UNEB<br />
FUNDADORES: Yara Dulce Bandeira de Ataide – Jacques Jules Sonneville<br />
COMISSÃO DE EDITORAÇÃO<br />
Editora Geral: Yara Dulce Bandeira de Ataide<br />
Editor Executivo: Jacques Jules Sonneville<br />
Editora Administrativa: Maria Nadja Nunes Bittencourt<br />
CONSELHO CONSULTIVO: Adelaide Rocha Badaró (UNEB), Cleilza Ferreira Andrade, Edivaldo Machado<br />
Boaventura (A Tarde), Jaci Maria Ferraz de Menezes (UNEB), Lourisvaldo Valentim (UNEB), Manoelito Damasceno<br />
(UNEB), Marcel Lavallée (Université de Québec), Nadia Hage Fialho (UNEB), Robert Evan Verhine (UFBa).<br />
CONSELHO EDITORIAL<br />
Adélia Luiza Portela<br />
Universidade Federal da Bahia<br />
Antônio Gomes Ferreira<br />
Universidade de Coimbra, Portugal<br />
Cipriano Carlos Luckesi<br />
Universidade Federal da Bahia<br />
Edmundo Anibal Heredia<br />
Universidade Nacional de Córdoba, Argentina<br />
Edivaldo Machado Boaventura<br />
Universidade Federal da Bahia<br />
Ellen Bigler<br />
Rhode Island College, USA<br />
Jacques Jules Sonneville<br />
Universidade do Estado da Bahia<br />
João Wanderley Geraldi<br />
Universidade de Campinas<br />
Ivete Alves do Sacramento<br />
Universidade do Estado da Bahia<br />
Jonas de Araújo Romualdo<br />
Universidade de Campinas<br />
José Carlos Sebe Bom Meihy<br />
Universidade de São Paulo<br />
José Crisóstomo de Souza<br />
Universidade Federal da Bahia<br />
Kátia Siqueira de Freitas<br />
Universidade Federal da Bahia<br />
Luís Reis Torgal<br />
Universidade de Coimbra, Portugal<br />
Luiz Felipe Perret Serpa<br />
Universidade Federal da Bahia<br />
Marcel Lavallée<br />
Universidade de Québec, Canadá<br />
Marcos Formiga<br />
Universidade de Brasília<br />
Marcos Silva Palácios<br />
Universidade Federal da Bahia<br />
Maria José Palmeira<br />
Universidade do Estado da Bahia e Universidade<br />
Católica de Salvador<br />
Maria Luiza Marcílio<br />
Universidade de São Paulo<br />
Maria Nadja Nunes Bittencourt<br />
Universidade do Estado da Bahia<br />
Mercedes Vilanova<br />
Universidade de Barcelona, España<br />
Nadia Hage Fialho<br />
Universidade do Estado da Bahia<br />
Paulo Batista Machado<br />
Universidade do Estado da Bahia<br />
Raquel Salek Fiad<br />
Universidade de Campinas<br />
Robert Evan Verhine<br />
Universidade Federal da Bahia<br />
Rosalba Guerini<br />
Universidade de Pádova, Itália<br />
Walter Esteves Garcia<br />
Associação Brasileira de Tecnologia Educacional /<br />
Instituto Paulo Freire<br />
Yara Dulce Bandeira de Ataíde<br />
Universidade do Estado da Bahia<br />
Organização: Jacques Jules Sonneville e linha 1 do Mestrado em Educação e Contemporaneidade/UNEB<br />
Revisoras: Dilma Evangelista da Silva, Lígia Pellon de Lima Bulhões, Rosa Helena Blanco Machado, Solange<br />
Mendes da Fonseca, Therezinha Maria Bottas Dantas.<br />
Pareceristas ad hoc: Júlio César Lobo (UNEB) e Ana Célia da Silva (UNEB).<br />
Bibliotecária responsável: Débora Toniolo Rau<br />
Versão para o inglês: Roberto Dias: trÁdus - traduções e versões<br />
Estagiária: Elen Barbosa Simplício<br />
Capa: Symbol Publicidade – Uilson Moraes<br />
Editoração: Antonio José Caldas dos Santos
Impressão e encadernação: Empresa Gráfica da Bahia - EGBA<br />
Tiragem: 1.500 exemplares<br />
O número <strong>19</strong> da Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade foi financiado com:<br />
– recursos da UNEB, através da<br />
EDITORA E LABORATÓRIO DE IMPRESSÃO – UNEB<br />
– e com recursos da<br />
FAPESB – FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO
S U M Á R I O<br />
Editorial ................................................................................................................................. 9<br />
Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA – Educação e<br />
Contemporaneidade .............................................................................................................. 10<br />
Educação e Pluralidade Cultural: apresentação<br />
Jaci Maria Ferraz de Menezes; Jacques Jules Sonneville; Narcimária Correia do<br />
Patrocínio Luz; Yara Dulce Bandeira de Ataíde ............................................................. 11<br />
EDUCAÇÃO E PLURALIDADE CULTURAL<br />
A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />
Jaci Maria Ferraz de Menezes ......................................................................................... <strong>19</strong><br />
Estudos africanos na escola baiana: relato de uma experiência<br />
Edivaldo Machado Boaventura ........................................................................................ 41<br />
Biología del monstruo: la identidad del Otro en el positivismo del Cono Sur<br />
Pablo Heredia ..................................................................................................................... 53<br />
Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />
Narcimária Correia do Patrocínio Luz ............................................................................. 61<br />
A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta<br />
alternativa de educação pluricultural<br />
Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais....................................................... 81<br />
Odemodé Egbé Asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />
Léa Austrelina Ferreira Santos ......................................................................................... 99<br />
Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em<br />
Novos Alagados<br />
José Eduardo Ferreira Santos........................................................................................... 113<br />
Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />
Eduardo Alfredo Morais Guimarães ................................................................................ 135<br />
Por uma escola da roça<br />
Fábio Josué Souza Santos ................................................................................................. 147<br />
Eurocentrismo, política externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme<br />
inglês Com as Horas Contadas<br />
Júlio César Lobo ................................................................................................................ 159<br />
Pluralidade cultural, migração e o ensino da língua portuguesa no ensino fundamental<br />
Nilce da Silva ...................................................................................................................... 173<br />
Alimentação, cultura e educação: em busca de uma abordagem transdisciplinar<br />
Sandra Simone Q. Morais Pacheco.................................................................................. 181<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 1-238, jan./jun., 2003<br />
5
DOSSIÊ – A CONEXÃO ATLÂNTICA BRASIL-ÁFRICA<br />
O acesso de negros às universidades públicas<br />
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães ................................................................................... <strong>19</strong>1<br />
Relações econômicas no Atlântico Sul: evolução no início do século XXI<br />
José Manuel Gonçalves ..................................................................................................... 205<br />
Angola pós-guerra: novos e velhos desafios<br />
José Octávio Serra Van-Dúnem ........................................................................................ 213<br />
Conexão atlântica: história, memória e identidade<br />
Ubiratan Castro de Araújo ................................................................................................ 2<strong>19</strong><br />
Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e currículos escolares<br />
Wilson Roberto de Mattos .................................................................................................. 229<br />
RESUMO DE DISSERTAÇÃO – INSTRUÇÕES<br />
Resumo de dissertação de mestrado: “Corte e costura étnica”: representações da identidade<br />
afro-descendente nas relações sócio-educativas no CONGO-Centro Médico Social<br />
Edmilson de Sena Morais .................................................................................................. 237<br />
Instruções aos colaboradores ............................................................................................... 238<br />
6 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 1-238, jan./jun., 2003
S U M M A R Y<br />
Editorial ................................................................................................................................. 9<br />
Themes and deadlines for the next issues of “Revista da FAEEBA – Educação e<br />
Contemporaneidade” ............................................................................................................ 10<br />
Education and Cultural Plurality: an introduction<br />
Jaci Maria Ferraz de Menezes; Jacques Jules Sonneville; Narcimária Correia do<br />
Patrocínio Luz; Yara Dulce Bandeira de Ataíde ............................................................. 11<br />
EDUCATION AND CULTURAL PLURALITY<br />
Republic and education: illiteracy and exclusion<br />
Jaci Maria Ferraz de Menezes ......................................................................................... <strong>19</strong><br />
African studies at the Bahian school: account of an experience<br />
Edivaldo Machado Boaventura ........................................................................................ 41<br />
Biology of the monster: the identity of the Other in the positivism of the South Cone<br />
Pablo Heredia ..................................................................................................................... 53<br />
From the speech monopoly about education to the mythical Afro-Brazilian poetry<br />
Narcimária Correia do Patrocínio Luz ............................................................................. 61<br />
The (re)construction of the ethnic afro-descendent identity departing from an alternative<br />
proposal of pluri-cultural education<br />
Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais....................................................... 81<br />
Odemodé Egbé Asipá: towards beyond the “Afro-Brazilian history and culture teaching”<br />
Léa Austrelina Ferreira Santos ......................................................................................... 99<br />
Pedagogical practices, culture, history and tradition: an account of the educative experience<br />
in Novos Alagados<br />
José Eduardo Ferreira Santos........................................................................................... 113<br />
Lavagem do Bonfim: between the production and the invention of the festival<br />
Eduardo Alfredo Morais Guimarães ................................................................................ 135<br />
For a rural school<br />
Fábio Josué Souza Santos ................................................................................................. 147<br />
Eurocentrism, North-American politics and Islamic fundamentalism in the English film<br />
Deadline<br />
Júlio César Lobo ................................................................................................................ 159<br />
Cultural Plurality, migration and the teaching of the Portuguese language at elementary<br />
school<br />
Nilce da Silva ...................................................................................................................... 173<br />
Eating, culture and education: in pursue of a trans-disciplinary approach<br />
Sandra Simone Q. Morais Pacheco.................................................................................. 181<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 1-238, jan./jun., 2003<br />
7
BRIEF – THE ATLANTIC CONEXION BRAZIL-AFRICA<br />
The access of Afro-descendants to public universities<br />
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães ................................................................................... <strong>19</strong>1<br />
Economical relations in the South-Atlantic: evolution in the beginning of the 21 st century<br />
José Manuel Gonçalves ..................................................................................................... 205<br />
Angola after war: new and old challenges<br />
José Octávio Serra Van-Dúnem ........................................................................................ 213<br />
Atlantic connection: history, memory and identity<br />
Ubiratan Castro de Araújo ................................................................................................ 2<strong>19</strong><br />
Afro-Brazilian civilizing values, educational politics and school curriculums<br />
Wilson Roberto de Mattos .................................................................................................. 229<br />
THESIS ABSTRACT – INSTRUCTIONS<br />
Abstract of masters’ thesis: “Ethnic Tailoring”: representations of the Afro-descendant<br />
identity in the socio-educative relations at CONGO-Social Medical Center<br />
Edmilson de Sena Morais .................................................................................................. 237<br />
Instructions to contributors ................................................................................................... 238<br />
8 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 1-238, jan./jun., 2003
EDITORIAL<br />
A Revista da FAEEBA - EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE<br />
consolida sua integração no mestrado do mesmo nome ao dedicar o seu<br />
número <strong>19</strong> à linha de pesquisa Processos Civilizatórios: Educação, Memória<br />
Social e Pluralidade Cultural (linha 1).<br />
Esta colaboração, iniciada no número 18, permite a ambos, Revista e<br />
Mestrado, tornarem-se mais fortes e melhor estruturados por justificarem e<br />
reafirmarem – institucional, social e cientificamente – sua existência, na<br />
busca do crescimento, maturidade e permanente síntese.<br />
No decorrer dos seus 12 anos de existência e publicação ininterrupta, a<br />
Revista da FAEEBA reuniu em torno de si professores pós-graduados do<br />
Departamento de Educação I, então Faculdade de Educação do Estado da<br />
Bahia - FAEEBA. Estes se tornaram seus colaboradores, parte do seu Conselho<br />
Editorial e, posteriormente, integrantes do grupo de estudos para a<br />
implantação do Mestrado em Educação e Contemporaneidade, instalado<br />
oficialmente em 2001.<br />
Esta trajetória representa, portanto, um referencial de maturidade intelectual<br />
e de produção de conhecimentos do Departamento de Educação I e<br />
que se tornou significativa para o reconhecimento da nossa pós-graduação.<br />
A já tradicional Revista da FAEEBA incorporou, recentemente, o subtítulo<br />
EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE, não só em consonância<br />
com seu objetivo de analisar e discutir assuntos de interesse educacional,<br />
científico e cultural da atualidade, como para tornar-se um dos periódicos<br />
de maior alcance na socialização da produção de conhecimentos do<br />
mestrado, envolvendo seus professores e alunos, junto com os pesquisadores<br />
de outras instituições do estado, do país e de outros países e continentes.<br />
Este número é, pois, mais uma realização marcante desta rica e permanente<br />
interação entre a Revista e o Mestrado em Educação e Contemporaneidade.<br />
Os Editores:<br />
Jacques Jules Sonneville<br />
Maria Nadja Nunes Bittencourt<br />
Yara Dulce Bandeira de Ataide<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, jan./jun., 2003<br />
9
Temas e prazos<br />
dos próximos números da<br />
Revista da FAEEBA<br />
– Educação e Contemporaneidade<br />
10 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, jan./jun., 2003
EDUCAÇÃO E PLURALIDADE CULTURAL:<br />
APRESENTAÇÃO<br />
EDUCAÇÃO E PLURALIDADE CULTURAL é o tema do número<br />
<strong>19</strong> da Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade, organizado em<br />
colaboração com a linha de pesquisa Processos civilizatórios: Educação,<br />
Memória Social e Pluralidade Cultural – PROCEMP – do Mestrado<br />
em Educação e Contemporaneidade. A pluralidade cultural é um dos temas<br />
centrais do Mestrado, especificamente através do Projeto Memória da Educação<br />
na Bahia – PROMEBA – e do Programa Descolonização e Educação<br />
– PRODESE, iniciativas criadas no âmbito do Departamento de Educação I,<br />
cuja interação acadêmico-científica teve seu principal desdobramento no Programa<br />
de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade.<br />
De acordo com o documento elaborado para a criação do Programa de<br />
Pós-Graduação, em <strong>19</strong>98, esta linha de pesquisa tem como princípios<br />
norteadores o respeito à alteridade e à diversidade, reconhecendo as diversas<br />
vertentes civilizatórias da população brasileira, considerando seus conhecimentos<br />
e valores, ou seja, o universo simbólico das mesmas, capazes de gerar<br />
novas linguagens pedagógicas, trabalhando com as ferramentas da História e<br />
Memória Social.<br />
A construção da igualdade (elemento necessário à consolidação de uma<br />
cidadania brasileira nos marcos desejados de uma sociedade democrática)<br />
passa pela afirmação de identidade e pelo reconhecimento da diversidade<br />
humana (que, naturalmente, não se reduz a uma questão morfológica ou<br />
fenotípica). Aqui, identidade é tomada como resultante de formas de inclusão<br />
em diversos círculos de solidariedade – gênero, raça, etnia, religião, etc – dos<br />
quais as pessoas se sentem parte.<br />
Estes “círculos de inclusão” criam “espaços”, “territórios”, fazendo iguais<br />
seus membros, e preparam os elementos e práticas necessários para a luta pela<br />
inclusão nos círculos mais amplos: da cidadania, nacionalidade e humanidade.<br />
Com este pressuposto, a análise das instituições pedagógicas e do seu<br />
papel na sociedade se amplia para incluir (além da história da construção do<br />
sistema escolar no Brasil e na Bahia e da sua afirmação, enquanto elemento<br />
necessário à cidadania e, portanto, direito de todos) os modos de sociabilidade,<br />
constituídos pelos contínuos civilizatórios e povos plurais diversos, assim<br />
como os segmentos da população, cuja voz ou projeto de vida, geralmente,<br />
não é considerado ou é formalmente deixado de lado. Com isto, se quer<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 11-16, jan./jun., 2003<br />
11
(re)avaliar a idéia de processo educativo como canal de apenas um modelo<br />
civilizatório, registrando experiências e falas de diversos atores no processo<br />
pedagógico, assim como diversos modos de aprender e ensinar.<br />
Esta proposta foi a idéia norteadora para os diversos artigos nas duas<br />
seções deste número da Revista da FAEEBA. A seção Educação e Pluralidade<br />
Cultural abre com o artigo A republica e a educação: analfabetismo<br />
e exclusão, de Jaci Maria Ferraz de Menezes, que aborda a discriminação<br />
e a exclusão dos afro-descendentes numa perspectiva histórica, tratando<br />
do período imediatamente após a abolição da escravidão e a Proclamação da<br />
República no Brasil. Edivaldo Machado Boaventura, em Estudos africanos<br />
na escola baiana: relato de uma experiência, examina a criação da disciplina<br />
Introdução aos Estudos Africanos no ensino fundamental e médio, nos<br />
anos oitenta, por proposta do Centro de Estudos Afro-Orientais e do Conselho<br />
das Entidades Negras da Bahia. Encerra este bloco inicial um artigo escrito<br />
na língua espanhola, Biología del monstruo: La identidad del Otro en<br />
el positivismo del Cono Sur, de Pablo Heredia, que aborda o pensamento do<br />
positivismo latino-americano em relação às construções da identidade do Outro<br />
étnico americano (negro, índio e mestiço), configurado no imaginário das classes<br />
dirigentes como um “monstro” que tinha que ser definido, catalogado e<br />
dominado.<br />
O artigo Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira,<br />
de Narcimária Correia do Patrocínio Luz, analisa o monopólio<br />
da fala etnocêntrico-evolucionista que sobredetermina o pensamento e<br />
as políticas de educação, indicando outras perspectivas que envolvem o rico<br />
universo emocional-lúcido vital para a educação.<br />
Os três textos seguintes são uma aplicação prática desta perspectiva educacional.<br />
A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir<br />
de uma proposta alternativa de educação pluricultural, de Yara Dulce<br />
B. de Ataíde & Edmilson de Sena Morais, apresenta uma proposta pedagógico-curricular<br />
que priorizou a construção da identidade plural na perspectiva<br />
interétnica, através da análise da experiência de uma jovem afro-descendente,<br />
participante de um curso técnico-profissionalizante. Outro artigo, Odemodé<br />
Egbé Asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”,<br />
de Léa Austrelina Ferreira Santos, traz reflexões sobre a inserção da<br />
temática da História e Cultura dos afro-descendentes nos currículos da rede<br />
oficial de ensino no Brasil, apresentando como perspectiva inovadora a experiência<br />
pedagógica do Projeto Odemodé Egbé Asipá - Juventude da Sociedade<br />
Asipá. Finalmente, José Eduardo Ferreira Santos, no seu texto Práticas<br />
pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência<br />
12 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 11-16, jan./jun., 2003
educativa em Novos Alagados, descreve a experiência educativa desenvolvida<br />
em projetos sociais de Novos Alagados, subúrbio de Salvador, com crianças<br />
e adolescentes da área, baseando-se na valorização das tradições culturais<br />
da Bahia.<br />
A identidade e a relação dos baianos com o sagrado estão no cerne do<br />
trabalho Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa, de<br />
Eduardo Alfredo Morais Guimarães, procurando analisar os aspectos lúdicofestivos<br />
que compõem a religiosidade popular na Bahia, e as investidas do<br />
poder público e da indústria cultural, no sentido de circunscrever a “festa” a<br />
um evento turístico.<br />
O tema da Pluralidade Cultural e sua relação com a Educação estão presentes<br />
nos mais variados campos:<br />
– no meio rural, como mostra o artigo Por uma escola da roça, de Fábio<br />
Josué Souza Santos, que faz uma crítica ao modelo pedagógico vigente na<br />
maioria das escolas rurais do Estado da Bahia;<br />
– no cinema, onde o texto, de Júlio César Lobo, Eurocentrismo, política<br />
externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme inglês<br />
Com as Horas Contadas demonstra como as diferenças culturais, religiosas<br />
e raciais são tão importantes na construção de pontos de vista quanto<br />
as categorias econômicas, sociais e políticas;<br />
– no ensino da língua portuguesa, como destaca o artigo Pluralidade cultural,<br />
migração e o ensino da língua portuguesa no ensino fundamental,<br />
de Nilce da Silva, que relaciona “identidade, língua e cultura” e “atividades<br />
pedagógicas”, considerando a pluralidade cultural em sala de aula;<br />
– nos costumes alimentares, em Alimentação, cultura e educação: em<br />
busca de uma abordagem transdisciplinar, de Sandra Simone Q. Morais<br />
Pacheco, buscando analisar a complexidade da relação homem/alimento,<br />
situando-a para além de um ato estritamente fisiológico, a partir da<br />
discussão acerca da importância dos aspectos culturais na formação de<br />
hábitos alimentares dos diferentes grupos sociais.<br />
A seção Dossiê - A conexão atlântica Brasil-África é fruto do seminário<br />
Relações no Atlântico Sul: História e Contemporaneidade. O Mestrado<br />
em Educação e Contemporaneidade vem, na linha de pesquisas “Processos<br />
civilizatórios: educação, memória social e pluriculturalidade”, se debruçando<br />
sobre as relações entre Brasil e África, em especial no que diz respeito aos<br />
processos envolvidos na formação de uma identidade afro-brasileira.<br />
Na UNEB, como em outros espaços acadêmicos, a análise das relações<br />
do Brasil com a África tem sido conduzida a partir da experiência histórica da<br />
escravidão e dos traços culturais subseqüentes. O desafio de pensar o mo-<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 11-16, jan./jun., 2003<br />
13
mento presente faz avançar na construção de relações maduras entre as<br />
nações concretas, indo além da redescoberta de raízes e origens comuns e<br />
compreendendo a afirmação e a troca de experiências de identidades, estreitando<br />
laços entre povos e sociedades nos dois lados do Atlântico.<br />
Especificamente o Atlântico Sul – aí incluídos os territórios localizados<br />
abaixo do Trópico de Câncer – constitui um espaço onde ocorrem processos<br />
de desenvolvimento, evoluções culturais e preocupações de segurança, que<br />
podem conduzir a definições comuns ou aproximações de reduzir conflitos e<br />
harmonizar interesses. Os desafios atuais, tanto de correção das injustiças<br />
históricas como de afirmação dos países da região perante as formas atuais<br />
de globalização, impõem o estudo das sociedades contemporâneas em função<br />
desses desafios e dos seus potenciais. Nesse sentido é fundamental um<br />
maior conhecimento recíproco, que pode ser alcançado através de estudos de<br />
caso nas áreas de: educação, processos de desenvolvimento, configuração<br />
cultural, relações internacionais.<br />
Neste momento, no Mestrado em Educação, nos propomos a implantar uma<br />
nova área de pesquisa cujos estudos venham a ampliar a área focada e permitam<br />
a incorporação de novos debates, temáticas e perspectivas, atualizando e<br />
enriquecendo as atividades hoje desenvolvidas. Assim, foram programados:<br />
1. Seminário de introdução geral à temática, aberto ao publico, apresentando<br />
as novas questões e despertando o interesse por aprofundá-las, realizado no<br />
período de 28 a 30 de abril de 2003, cujo debate aqui se quer, em parte,<br />
registrar.<br />
2. Curso de Especialização sobre História da África e dos afro-brasileiros,<br />
voltado para a formação de um núcleo de professores multiplicadores, da<br />
UNEB, de outras universidades estaduais e do ensino médio, que possam<br />
disseminar as idéias e o conhecimento sobre o assunto. Pensa-se num curso<br />
em que professores pesquisadores da Cândido Mendes e da UNEB – ou de<br />
outras universidades, como convidados, comecem a se articular numa rede<br />
de estudiosos sobre os temas propostos.<br />
3. Tópicos Especiais sobre Relações Contemporâneas no Atlântico Sul –<br />
como disciplina optativa no Mestrado em Educação e Contemporaneidade –<br />
de modo a incluir nas discussões vários países da América Latina e África e<br />
seus impactos em outras regiões.<br />
As atividades tiveram inicio no ano letivo de 2003 e devem ser contempladas<br />
em dois cadernos para publicação: um caderno de suporte, composto de<br />
documentos de trabalho e textos de leitura e um caderno com textos produzidos<br />
pelos participantes do curso. Também os textos originados do seminário<br />
introdutório devem ser reunidos numa publicação sob forma de Anais. A<br />
14 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 11-16, jan./jun., 2003
iniciativa de publicar cinco deles neste número da Revista da FAEEBA tem<br />
como objetivo não apenas registrar a realização do evento, mas, principalmente,<br />
trazer o debate para o público da Revista e dar início, assim, às ações<br />
no espírito da Lei 10.639 de janeiro de 2003.<br />
Os cinco textos são: O acesso de negros às universidades públicas, de<br />
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães; Relações econômicas no Atlântico Sul:<br />
evolução no início do século XXI, de José Manuel Gonçalves; Angola pósguerra:<br />
novos e velhos desafios, de José Octávio Serra Van-Dúnem; Conexão<br />
atlântica: história, memória e identidade, de Ubiratan Castro de<br />
Araújo; Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e<br />
currículos escolares, de Wilson Roberto de Mattos.<br />
Finalmente, para encerrar esta apresentação, cabe uma palavra sobre o<br />
Programa Descolonização e Educação – PRODESE. Criado em <strong>19</strong>99, no âmbito<br />
do Departamento de Educação I, o programa desenvolve produções acadêmico-científicas<br />
no contexto da diversidade étnico-cultural das Américas. Essas<br />
produções vêm fomentando pesquisas, estudos e atividades de ensino e extensão,<br />
baseados numa ética que permita a garantia da coexistência e expressão<br />
territorial dos contínuos civilizatórios que caracterizam esse continente.<br />
O programa agrega estudiosos e pesquisadores que produzem participações<br />
criativas, com vistas a superar os paradigmas neocoloniais e etnocêntricos<br />
que estruturam a política de educação no Brasil, além de elaborar e difundir<br />
conhecimentos sobre educação no que se refere às alteridades civilizatórias<br />
que constituem a formação social brasileira.<br />
Quando adotamos o conceito de descolonização, nos inspiramos um pouco<br />
na perspectiva de Frantz Fanon (Os condenados da Terra. Rio de Janeiro,<br />
RJ: Civilização Brasileira, <strong>19</strong>68, p.21) de que: “... a descolonização jamais<br />
passa despercebida porque atinge o ser, modifica fundamentalmente o ser,<br />
transforma espectadores sobrecarregados de inessencialidade em atores privilegiados,<br />
colhidos de modo quase grandioso pela roda viva da história. Introduz<br />
no ser um ritmo próprio, transmitido por homens novos, uma linguagem,<br />
uma nova humanidade. A descolonização é, em verdade, criação de<br />
homens novos. Há portanto na descolonização a exigência de um reexame<br />
integral da situação colonial.”<br />
Descolonização e Educação é uma iniciativa que procura restituir aos descendentes<br />
das populações aborígines e africanas a compreensão e a dignidade<br />
de seu sistema de pensamento, de sua alteridade própria, civilização, elaborações<br />
intelectuais e estratégias políticas positivas de ação .<br />
O programa abriga atividades de ensino, pesquisa e extensão que se alimentam<br />
do complexo sistema simbólico africano e aborígine, o qual levou<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 11-16, jan./jun., 2003<br />
15
vários séculos para se estruturar e investir-se de um poder criativo, em que<br />
foram radicados costumes, hierarquias, literatura, arte, mitologia dinamicamente<br />
reelaborados nas Américas.<br />
O propósito descolonizador reflete também sobre as atitudes éticas pessoais<br />
e profissionais do educador em relação à sua comunicação e conduta<br />
com o outro. As ideologias paternalistas e conservadoras, produzidas por aqueles<br />
tidos como únicos representantes e detentores do código cultural e dos<br />
grandes sistemas explicativos necessários à educação no Brasil, estão<br />
saturadas. Mudando os donos dos códigos, a educação está se descolonizando.<br />
Surgem instituições e gerações de educadores que vêm elaborando novas<br />
perspectivas teórico-epistemológicas comprometidas com a nação. Desde<br />
modo, o exercício da descolonização e a afirmação das alteridades, numa<br />
coexistência dialética e democrática, são o melhor caminho para um Brasil<br />
substancialmente pluralista.<br />
O Programa Descolonização e Educação vem se dedicando à elaboração<br />
e produção de conhecimentos sobre educação, que contemplem as alteridades<br />
civilizatórias que constituem a formação social brasileira; promovam uma<br />
revisão nos conceitos, categorias e “discursos-verdades” de bases<br />
etnocêntricas que sobredeterminam a compreensão da educação brasileira;<br />
desestabilizem os obstáculos teórico-epistemológicos que denegam a diversidade<br />
étnico-cultural característica do cotidiano da escola brasileira; indiquem<br />
novas percepções e abordagens sobre as sociedades contemporâneas nas<br />
Américas, destacando a pluralidade cultural que se origina da reposição e<br />
expansão dos valores e visão de mundo africano e da continuidade das tradições<br />
aborígines.<br />
Equipe de professores<br />
do Mestrado em Educação e Contemporaneidade:<br />
Jaci Maria Ferraz de Menezes 1<br />
Jacques Jules Sonneville 2<br />
Narcimária Correia do Patrocínio Luz 3<br />
Yara Dulce Bandeira de Ataíde 4<br />
1<br />
Coordenadora do Mestrado em Educação e Contemporaneidade – PEC/UNEB.<br />
E-mail: jacimnz@superig.com.br<br />
2<br />
Coordenador da linha 2 do Mestrado. Editor executivo da Revista da FAEEBA.<br />
E-mail: jacques.sonneville@terra.com.br<br />
3<br />
Coordenadora do PRODESE, linha 1 do Mestrado. Editora da revista Sementes.<br />
E-mail: narci@terra.com.br<br />
4<br />
Editora geral da Revista da FAEEBA.<br />
E-mail: yataide@terra.com.br<br />
16 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 11-16, jan./jun., 2003
Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />
A REPÚBLICA E A EDUCAÇÃO:<br />
ANALFABETISMO E EXCLUSÃO<br />
Jaci Maria Ferraz de Menezes *<br />
RESUMO<br />
Texto sobre as políticas de inclusão dos negros livres e libertos, ex-escravos<br />
e seus descendentes, no período imediatamente após a abolição da<br />
escravidão e a Proclamação da República no Brasil, na cidadania brasileira.<br />
Procura compreender a estratégia de inclusão lenta, gradual e segura<br />
adotada, que tomou como filtro para a cidadania plena o saber ler e escrever<br />
como critério para qualificação do eleitor: o batismo da instrução<br />
como instrumento de civilização.<br />
Palavras-chave: Republica – Educação – Analfabetismo – Exclusão<br />
ABSTRACT<br />
REPUBLIC AND EDUCATION: ILLITERACY AND EXCLUSION<br />
Text about the politics of inclusion of the free and freed Afro-descendants,<br />
former slaves and their descendants, in the period immediately after the<br />
abolishment of slavery and the Proclamation of Republic in Brazil, in the<br />
Brazilian citizenship. It aims at understanding the slow, gradual and safe<br />
inclusion strategy adopted, that took as a filter for full citizenship the<br />
knowing how to read and write as a criteria for the qualification of the<br />
voter: the baptism of instruction as an instrument of civilization.<br />
Key words: Republic – Education – Illiteracy – Exclusion<br />
Hoje, Senhor Presidente, a situação é uma; no dia em que se fizer a Abolição a situação será outra:<br />
uma nova raça vai entrar para a comunhão brasileira.<br />
(Discurso de Joaquim Nabuco na Câmara Federal, 5 de maio de 1888 -<br />
Senado Federal, “Abolição, 65 anos de lutas”)<br />
“São Libertos”, diz o Barão de Cotegipe. Outro Senador o aparteia: “São cidadãos brasileiros”.<br />
“Podemos até dizer que são ingleses, mas são libertos”, responde ele.<br />
(Senado Federal, “Abolição, 65 anos de lutas”, discussão final do projeto da Lei Áurea)<br />
Eu chamo a mim a questão; quero tratar dela. Comprometo-me a isto.<br />
(Rui Barbosa em 1884, citando Souza Carvalho, em 1867.<br />
Parecer-Projeto 48-A -Extinção gradual da escravidão)<br />
*<br />
Professora Titular de História da Educação da Universidade do Estado da Bahia – UNEB; Coordenadora<br />
do Programa de Pós-Graduação Educação e Contemporaneidade/UNEB (stricto sensu); Doutora em Ciências<br />
da Educação pela Universidade Católica de Córdoba, Argentina. Endereço para correspondência: Rua<br />
Apoena, 47 Aldeia Jaguaripe, Piatã – 41661.060 Salvador, BA. E-mails: jacimnz@campus1.uneb.br /<br />
jacimnz@superig.com.br<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />
<strong>19</strong>
A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />
Neste artigo, vamos analisar as mudanças<br />
políticas e do aparato jurídico institucional que<br />
se deram no Brasil imediatamente após a Abolição,<br />
com a Proclamação da República. O que<br />
nos interessa, particularmente, é identificar e<br />
analisar os instrumentos utilizados para traçar<br />
uma estratégia de controle da inclusão dos<br />
negros, ex-escravos libertos, na cidadania brasileira<br />
– em especial, pela via do acesso à cultura<br />
letrada. Vamos utilizar, para tanto, não apenas<br />
textos de analistas sobre o momento imediatamente<br />
posterior à República, mas, principalmente,<br />
como testemunho da época, as “exposições<br />
de motivos” – denominadas pareceres –<br />
de projetos de lei sobre a extinção da escravidão<br />
(1884) e de reforma da instrução pública,<br />
de 1882, que, durante a fase de pesquisa, nos<br />
pareciam dever trazer explicitamente políticas<br />
traçadas para escolarização dos ex-escravos e<br />
seus descendentes.<br />
Descobrimos que isto não ocorreu bem assim.<br />
Por exemplo: como entender a decisão de<br />
não qualificar como eleitor o analfabeto – portanto,<br />
de excluí-lo da cidadania ativa –, numa<br />
sociedade em que 83% da população não sabia<br />
ler e escrever? Quem eram os destinatários<br />
dessa exclusão? Que justificativas se apresentavam<br />
para a sua adoção? Quem eram os protagonistas<br />
dessa ação de excluir? Na busca de<br />
respostas para essas questões, analisamos<br />
documentos do final do século XIX, buscando<br />
entender a estratégia liberal, excludente, do trato<br />
com as massas libertas no pós-abolição e pósrepública.<br />
1. AS MUDANÇAS INSTITUCIONAIS E<br />
AS POLÍTICAS DE CONTROLE DA IN-<br />
CLUSÃO DOS LIBERTOS<br />
A Abolição da escravatura e a Proclamação<br />
da República representaram, no final do século<br />
XIX no Brasil, não apenas a finalização do seu<br />
processo de transformação de colônia em país<br />
independente, como também a complementação<br />
da transformação de seu sistema produtivo -<br />
de um modelo em que capitalismo mercantilista<br />
se combinava com escravismo (por alguns denominado,<br />
como vimos antes, de escravismo<br />
colonial), para uma nova forma de capitalismo<br />
dependente, inserido na órbita da Inglaterra, mas<br />
sob a disputa dos dois modelos – o inglês e o<br />
norte-americano. Paulatinamente, abandona-se<br />
o modelo francês como modelo político. Sem<br />
que tenha havido uma transformação no sistema<br />
econômico e de sustentação do poder político,<br />
propunha-se adotar um modelo de república<br />
liberal, que se pretendia democrático 1 .<br />
Com a República, desde o Governo Provisório<br />
(governo de exceção, sob a forma colegiada,<br />
que se manteve entre novembro de 1889 e<br />
91) ou mesmo através da Constituinte (a qual<br />
confirmou Deodoro da Fonseca, chefe do Governo<br />
provisório, como Presidente eleito), tem<br />
lugar uma intensa atividade de reorganização<br />
do Estado e mesmo de todo o aparato institucional<br />
e jurídico brasileiro:<br />
a) proclama-se a república como forma de<br />
governo<br />
b) realiza-se a separação da Igreja e do Estado,<br />
implantando toda uma estrutura civil para a<br />
realização de atos como registro de nascimento,<br />
celebração de casamentos, registro de óbitos;<br />
como conseqüência, os espaços públicos passaram<br />
a ser leigos, tais como as escolas e os<br />
cemitérios. Com isto, fica declarada a liberdade<br />
de culto, e a religião católica deixa de ser a<br />
religião oficial.<br />
c) abertas as possibilidades para uma igualdade<br />
diante do estado para pessoas ligadas a diferentes<br />
religiões – o que explicitamente estava<br />
voltado para a entrada, na “comunhão brasileira”,<br />
de europeus protestantes – é decretada<br />
uma naturalização massiva de todos os estran-<br />
1<br />
São conhecidas as diferenças entre Democracia e Liberalismo.<br />
Naturalmente, os liberais que se pretendiam democratas<br />
enxergavam as postulações democráticas como tendentes<br />
ao socialismo. Entretanto, é possível, mesmo dentro<br />
do campo do liberalismo, enxergar diferenças entre as<br />
posições de Rui Barbosa, por exemplo, e de Joaquim<br />
Nabuco, embora ambos se declarem “liberais à inglesa”.<br />
Pareceria, segundo as leituras do pensamento de Stuart<br />
Mill (<strong>19</strong>54), que, sim, havia divergências entre este e, por<br />
exemplo, os postulados de outros liberais ingleses no<br />
parlamento.<br />
20 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003
Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />
geiros que haviam entrado no território nacional<br />
antes do dia 15 de novembro de 1889, data<br />
da proclamação da república, salvo expressa<br />
manifestação em contrário.<br />
d) convocadas eleições gerais para a Assembléia<br />
Nacional Constituinte, estabelece-se como<br />
critério único para a cidadania ativa o saber ler<br />
e escrever (embora se mantenha também a<br />
exclusão dos mendigos, dos religiosos e dos<br />
“praças de pré” – soldados rasos). Os estrangeiros<br />
objeto da naturalização acima referida<br />
podiam participar da eleição desde que cumprissem<br />
essas mesmas condições. É bom lembrar<br />
que a exclusão dos analfabetos da cidadania<br />
ativa não começa com a República e, sim,<br />
com a Lei Saraiva, em 1881.<br />
Estava, então, em discussão, ao lado da<br />
formatação do Novo Estado Brasileiro, a questão<br />
da formação da nova nação brasileira, e sua<br />
participação no “concerto das nações civilizadas”.<br />
Ao mesmo tempo, reafirmava-se a “natureza e<br />
vocação agrícola do Brasil” – e, portanto, a sua<br />
manutenção dentro do papel de país agro-exportador<br />
de produtos primários, com o café<br />
liderando a produção (embora outros produtos<br />
também entrassem na pauta, como o cacau). A<br />
criação de gado entrava como atividade secundária.<br />
As tentativas de implantação de uma<br />
indústria nacional só vão ganhar força na década<br />
de trinta do século 20, em outro momento de<br />
exceção. No nordeste brasileiro, usineiros de<br />
açúcar seguem sendo os comandantes da economia<br />
e política locais. Quem decide quais os<br />
participantes desta nação? Quem eram os novos<br />
“homens bons” que iriam decidir sobre o destino<br />
dela?<br />
Nesta discussão sobre a nova nação brasileira,<br />
o que de fato estava em jogo era a decisão<br />
sobre os partícipes da cidadania ativa: quem<br />
decidia os rumos do país, já que não havia uma<br />
cabeça coroada que decidisse, em última instância,<br />
pela nação, ela própria constituída, se<br />
não formalmente (porque a Constituição do Império<br />
não se referia à instituição da escravidão),<br />
mas na prática, por herança da legislação colonial,<br />
por indivíduos que eram senhores ou escravos<br />
intermediados por uma terceira categoria,<br />
os libertos, 2 que tinham um status legal<br />
e formal diverso dos homens livres.<br />
Além disso, já não havia a Família Imperial,<br />
nem uma aristocracia (digamos que a nobreza<br />
local sempre foi um tanto ou quanto insólita) e<br />
tampouco existiam escravos. Seriam, entretanto,<br />
todos “homens livres”? Implantada a Liberdade,<br />
passamos a viver o reino da Igualdade?<br />
Diante da imensa maioria formada por homensde-cor,<br />
ex-escravos ou seus descendentes,<br />
como se comportaram as elites dirigentes, formadas<br />
por donos de terras, ex-donos de escravos<br />
ou por letrados, muitas vezes a seu serviço?<br />
Como se realiza a sua inclusão em nação e<br />
cidadanias brasileiras?<br />
2<br />
Manuela Carneiro da Cunha, em seu livro “Negros, estrangeiros”<br />
(<strong>19</strong>85), faz um estudo sobre os libertos na<br />
sociedade brasileira, como elementos intrínsecos à ordem<br />
escravocrata, na qual estava embutido o espaço em que,<br />
via violência e opressão (os mecanismos de controle), se<br />
moviam os libertos. A ordem escravocrata, face ao grande<br />
número de escravos, tinha a sua segurança diretamente<br />
dependente da satisfação da população livre de cor, que<br />
inclusive podia ou não ter interesses diferentes dos escravos.<br />
Os libertos que, por sua vez, criavam múltiplas formas<br />
de solidariedade entre si tinham suas relações com o<br />
mundo dos brancos reguladas institucionalmente, e muito<br />
na dependência da forma pela qual alcançavam a libertação<br />
- os caminhos da alforria que, na maioria das vezes,<br />
era comprada por pecúlio próprio, formado por trabalho,<br />
empréstimo tomado à junta de alforria, ao canto ou à<br />
irmandade da qual fazia parte. No entanto, apesar de paga,<br />
a alforria era apresentada sempre como uma dádiva do<br />
senhor, sempre vista como uma questão privada, na qual<br />
o Estado não devia intervir (e só o fez, como vimos, a<br />
partir de 1871), por fazer parte do direito de propriedade.<br />
Tampouco a Igreja tinha o direito de intervir. Assim<br />
apresentada, a alforria tinha como contraface a criação de<br />
laços morais entre patrono e liberto, que passava a dever<br />
“gratidão” e uma espécie de vassalagem, ou de subordinação<br />
política extra-econômica. A ingratidão podia, inclusive,<br />
servir de motivo para a rescisão da alforria. Segundo a<br />
autora (p.48), “A esperança de manumissão é central ao<br />
sistema escravista e complementar aos castigos e à violência<br />
física usados. Era construída de tal modo que ela<br />
passava pela dependência pessoal do senhor ou eventualmente<br />
de outro senhor. Aqui estaria o fundamento do<br />
sistema de subordinação que se mantém pós-alforria”.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />
21
A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />
A sociedade brasileira reagiu de forma peculiar<br />
aos negros libertos, os “13 de maio”. 3<br />
Geralmente vistos como “agregados”, entendiase<br />
que estavam os libertos ligados por uma<br />
extensa rede de favores aos seus ex-senhores,<br />
aos quais deviam uma espécie de vassalagem,<br />
de cortesia e até de cuidados. Os que não se<br />
submetiam ao trabalho formal eram considerados<br />
vagabundos, vadios, potencialmente perigosos,<br />
que necessitavam estar sob vigilância<br />
policial. 4<br />
A República, em especial, tinha suas dificuldades<br />
com os negros libertos: os últimos dias<br />
da monarquia viram a criação de uma Guarda<br />
Negra 5 para proteção da família imperial, cercada<br />
pela gratidão ao Imperador e à Princesa<br />
pela libertação. O prestígio da família real estava<br />
em alta junto aos negros, como se pode ver<br />
em texto do professor Mário Augusto Silva Santos<br />
(<strong>19</strong>90), que, inclusive, reagiram contra a<br />
Proclamação da República na Bahia. Uma possível<br />
reação deles foi usada como pretexto para<br />
deflagrar o movimento militar que resultou na<br />
República, face à relutância de alguns militares.<br />
Ao tempo em que Patrocínio os apoiava,<br />
Rui Barbosa os combatia ferrenhamente em<br />
seus artigos no Diário de Notícias.<br />
Ilustrativo e elucidativo desta relação transversa<br />
dos republicanos do Governo provisório<br />
com os negros foram os episódios em torno da<br />
3<br />
O professor José Calazans, historiador baiano, recolheu<br />
as seguintes «quadrinhas» populares sobre eles: «Nasceu<br />
periquito/Virou papagaio/Não quero negócio/Com treze<br />
de maio». E «K é letra decadente/Meu pai assim me dizia/<br />
É como o treze de maio/Mesmo depois da alforria».<br />
(CALAZANS, <strong>19</strong>95, p.59)<br />
4<br />
Sobre os vadios na Bahia do séc. XIX, ver Fraga Filho<br />
(<strong>19</strong>96).<br />
5<br />
A Guarda Negra foi um espécie de regimento informal,<br />
constituído por libertos, negros e mestiços, logo após a<br />
Abolição. Convocado por José do Patrocínio em defesa<br />
da Princesa Regente, entra seguidamente em choque com<br />
os adeptos da República no período em que estes intensificam<br />
suas reuniões e meetings, quando faziam oposição,<br />
principalmente, ao marido da Princesa Isabel, o Conde<br />
d’Eu, francês, face à enfermidade de D. Pedro II<br />
(MORAES, [<strong>19</strong>-?]).<br />
repressão aos capoeiras 6 ; nos primeiros dias<br />
do início do Governo, os que são flagrados a<br />
praticar capoeira são presos e sumariamente<br />
desterrados para a ilha de Fernando de Noronha,<br />
o que causa um problema no Gabinete, vez que<br />
um irmão de figurão da república foi também<br />
preso (MORAES, [<strong>19</strong>-?]). Outra evidencia das<br />
dificuldades com os ex-escravos foi a inclusão<br />
das normas de repressão à vadiagem, antes inscritas<br />
nas leis ligadas a libertação dos escravos<br />
(Lei do Ventre Livre e Lei dos Sexagenários),<br />
no Código Penal elaborado logo após a República.<br />
7<br />
Ora, o combate à vadiagem como forma de<br />
controle dos ex-escravos não era algo novo no<br />
Brasil e mesmo na América Latina. Oriunda da<br />
questão do trabalho compulsório na escravidão,<br />
vimos como, à medida em que os negros se tornavam<br />
libertos, aumentava o controle sobre a<br />
sua liberdade de ir e vir e mesmo sobre a sua<br />
regulação do próprio trabalho. Acompanhamos,<br />
na parte específica sobre o processo abolicionista,<br />
o surgimento das leis que obrigavam o<br />
novo liberto a manter domicílio no local onde<br />
6<br />
A Capoeira é uma espécie da luta marcial praticada pelos<br />
negros no Brasil, em que os golpes, praticados na maioria<br />
das vezes com os pés, podem vir a ser mortais. Seus<br />
movimentos, que devem ser executados com agilidade e<br />
leveza tal que o seu praticante nunca venha a cair ou a<br />
receber os golpes do adversários, seguem certa coreografia<br />
em torno à “ginga” e são praticados ao som de uma<br />
pequena orquestra formada de “berimbau”, instrumento<br />
de percussão monocórdio com uma cabaça que ressoa<br />
encostada à barriga, pandeiro, reco-reco e chocalho. Existe<br />
um certo número de golpes predeterminado, aos quais<br />
corresponde um “toque” de berimbau, mais lento ou mais<br />
apressado e um determinado número de “quadrinhas”, ou<br />
“cantigas” de desafios. Era praticada como instrumento<br />
de luta pelos escravos e libertos, formando-se, no século<br />
passado, verdadeiras “tropas de choque” de capoeiras<br />
ligados a um ou a outro partido político e que eram conhecidos<br />
por se dedicarem a dissolver os “meetings” dos<br />
adversários. Proibida pela polícia, hoje é uma espécie de<br />
esporte nacional, praticado nas academias de ginástica e<br />
nas escolas.<br />
7<br />
Ver, a respeito, Jamil Cury (<strong>19</strong>90, p.102): “Os artigos<br />
que prescrevem penas a mendigos, vadios e capoeiras são<br />
igualmente duros. Quanto a estes últimos, a lei inclui deportação,<br />
no caso do indiciado ser estrangeiro”.<br />
22 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003
Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />
antes vivia durante certo período de tempo e a<br />
estar vinculado a um trabalho certo, sob pena<br />
de recolhimento à instituição penal pela própria<br />
polícia, ou, quando muito, pelo Juiz de paz, sob<br />
rito sumário. A presunção era de que, não tendo<br />
trabalho regular, era vadio e, como tal, perigoso.<br />
O período republicano inaugurado transpõe<br />
essa legislação, antes circunscrita aos libertos,<br />
para o código penal, estendendo-a para toda a<br />
população livre. Claramente, o uso da coerção<br />
como instrumento de dominação. Mesmo saindo<br />
do Código Penal, em <strong>19</strong>30, quando é transformada<br />
em contravenção penal, a vadiagem<br />
segue sendo motivo para a prisão arbitrária dos<br />
que saem à noite, ou que simplesmente retornam<br />
à noite a suas casas ou, ainda, não tendo casas,<br />
perambulam pelos centros das cidades, até os<br />
dias de hoje no Brasil. Na Bahia, existiu até a<br />
década de 80 a Colônia Agrícola de Pedra Preta<br />
(na verdade uma pedreira), para onde eram<br />
mandados, sem julgamento, os que eram presos<br />
para averiguações, inicialmente por um<br />
período de 90 dias (período após o qual deveriam<br />
ser liberados por não terem culpa formada). Aí<br />
dentro podiam ser esquecidos por período não<br />
determinado, uma vez que, sendo uma prisão<br />
ilegal mantida pela Polícia, não existiam registro<br />
dos detidos para aí mandados, nem processo<br />
formal de culpa e nem conhecimento mesmo<br />
da Justiça.<br />
O controle da vida dos negros, entretanto,<br />
não parava aí. Também o exercício da sua liberdade<br />
de religião era restringido, mesmo<br />
naquele momento em que se apregoava a liberdade<br />
religiosa e a separação da Igreja do Estado,<br />
estando sob o controle policial através da<br />
policia de costumes. Acompanhada de cantos,<br />
música, danças e, principalmente, toques de tambor,<br />
a religião dos orixás, considerada “divertimento<br />
estrondoso” como os demais “batuques”,<br />
serenatas (VERGER, <strong>19</strong>87, p.530 ss), só podia<br />
existir por expressa autorização da Delegacia<br />
de Jogos e Costumes, e sua realização era controlada:<br />
chega-se à década de 30 sem que se<br />
pudesse realizar o culto ao som dos atabaques<br />
sagrados, devendo acontecer somente sob o<br />
som de cabaças e de palmas.<br />
Somente em <strong>19</strong>38, sob pressão de uma então<br />
crescente organização dos negros 8 , se suspende<br />
a proibição do uso dos atabaques. Na<br />
década de 70 do século XX, recomeçam os<br />
controles da Delegacia de Jogos e Costumes<br />
sobre o exercício da liberdade religiosa dos negros,<br />
os quais só terminam em 76, através de<br />
intervenção direta do então governador do Estado.<br />
Documentando o período de perseguição<br />
religiosa, os instrumentos de culto que eram<br />
apreendidos estão guardados no Instituto de<br />
Criminalística do Estado, no Museu Nina Rodrigues,<br />
apesar de todos os protestos e pedidos<br />
das organizações negras hoje existentes para<br />
que lhes sejam entregues.<br />
Em suma, tanto a legislação e a prática do<br />
combate à vadiagem como o controle do funcionamento<br />
dos candomblés serviram como instrumento<br />
policial de controle da inserção dos<br />
negros no seio da nacionalidade. Idem, o combate<br />
à capoeira. Não só a policia os combatia e<br />
controlava, como os jornais, controlando a opinião<br />
pública, protestavam contra a livre manifestação<br />
da presença da cultura africana no pósrepública<br />
e pós-abolição. 9 e 10<br />
8<br />
Realizamos, em <strong>19</strong>93, entrevista com o então presidente<br />
da FEBACAB; em seu depoimento, “Seu Benzinho”<br />
(Esmeraldo Emetério dos Santos) falou sobre a criação da<br />
Federação de Cultos Afro-Brasileiros e sua estratégia de<br />
luta contra a repressão às religiões afro-brasileiras.<br />
9<br />
Sobre isto, encontramos registro de Nina Rodrigues, em<br />
<strong>19</strong>06, em “Os Africanos no Brasil”, quando, protestando<br />
contra, coleta e transcreve uma série de recortes de jornais<br />
da época (em torno de <strong>19</strong>00) que dão conta da existência<br />
da repressão aos candomblés, com o seguinte comentário:<br />
“Na África, estes cultos constituem verdadeira<br />
religião de Estado, em cujo nome governam os régulos.<br />
Acham-se, pois, alí garantidos pelos governos e pelos<br />
costumes. No Brasil, na Bahia, são ao contrário considerados<br />
práticas de feitiçaria, sem proteção nas leis, condenadas<br />
pela religião dominante e pelo desprezo, muitas<br />
vezes apenas aparente, é verdade, das classes influentes<br />
que, apesar de tudo, as temem. Durante a escravidão, não<br />
há ainda vinte anos portanto, sofriam elas todas as violências<br />
por parte dos senhores de escravos, de todo<br />
prepotentes, entregues os negros, nas fazendas e plantações,<br />
à jurisdição e ao arbítrio quase ilimitados de administradores,<br />
de feitores tão brutais e cruéis quanto ignorantes.<br />
Hoje, cessada da escravidão, passaram elas à<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />
23
A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />
Entretanto, quais as políticas específicas traçadas<br />
para o relacionamento com os negros e<br />
a sua inclusão na cidadania brasileira, no pósabolição<br />
e na nascente República brasileira? É<br />
bom lembrar que, no período que antecedeu e<br />
imediatamente seguiu-se à Abolição da escravidão,<br />
houve toda uma política demográfica de<br />
incentivo à imigração branca, européia. Esta<br />
política articulava não só a formação de um<br />
mercado de mão-de-obra, agora que esta se<br />
tornava livre, assalariada, e que o seu preço ia,<br />
portanto, ser maior ou menor na medida da sua<br />
maior ou menor disponibilidade; a chegada em<br />
massa de imigrantes tornava “excedentes” os<br />
ex-escravos, notadamente no Sul do país, para<br />
onde a onda migratória se dirigiu quase exclusivamente.<br />
prepotência e arbítrio da polícia, não mais esclarecida<br />
do que os antigos senhores, e aos reclamos da opinião<br />
pública que, pretendendo fazer de espírito forte e culto,<br />
revela a toda hora a mais supina ignorância do fenômeno<br />
sociológico. Não é menos para lamentar que a imprensa<br />
local revele, entre nós, a mesma desorientação no modo<br />
de tratar o assunto, pregando e propagando a crença de<br />
que o sabre do soldado de polícia boçal e a estúpida violência<br />
dos comissários policiais igualmente ignorantes hão<br />
de ter maior dose de virtude catequista, mais eficácia como<br />
instrumento de conversão religiosa do que teve o azorrague<br />
dos feitores”. (RODRIGUES, <strong>19</strong>82, p.238-239).<br />
10<br />
Outros autores, em momentos diversos, transcrevem<br />
também recortes de jornais sobre as dificuldades de relacionamento<br />
da sociedade brasileira com os negros no pósabolição,<br />
como Donald Pierson (<strong>19</strong>37), ou Carlos<br />
Hasenbalg, mais recentemente. Os estudos sobre a vida<br />
dos negros no pós-abolição são dificultados por sua<br />
“desaparição”, como categoria de estudo, a partir do início<br />
da República. O negro passa a ser o trabalhador nacional,<br />
em contraposição ao imigrante, trabalhador estrangeiro.<br />
Assim, pelo menos até <strong>19</strong>20, mais ou menos, rareiam<br />
ou quase desaparecem estudos ou relatos que dêem conta<br />
do que acontece a eles, enquanto grupo social, no pósabolição.<br />
O pesquisador passa a ter que trabalhar com as<br />
entrelinhas, para entender o que passa com “o ausente”.<br />
A partir de <strong>19</strong>30, foram realizados estudos específicos<br />
sobre o relacionamento inter-racial no Brasil, por autores<br />
como Roger Bastide e Florestan Fernandes (<strong>19</strong>55, em<br />
pesquisa UNESCO ANHEMBI), ou Melville Herkovits,<br />
na década de 40, sem que se possa deixar de dar o correspondente<br />
destaque aos estudos de Gilberto Freire, em<br />
Casa Grande e Senzala.<br />
Ao mesmo tempo, o incentivo à imigração<br />
contribuía para a própria constituição de uma<br />
nova nação e um novo povo brasileiro – pela<br />
importação de novos elementos, brancos, europeus,<br />
civilizados, em contraposição aos negros<br />
e aos mestiços. 11 A política demográfica, com<br />
relação ao negro, era, portanto, voltada para a<br />
sua substituição, o seu desaparecimento. Disto<br />
nos dá conta o decreto do Governo Provisório<br />
de junho de 1890, que proíbe o ingresso no país<br />
de imigrantes de “indígenas da Ásia e da África”<br />
salvo expressa permissão do Parlamento<br />
Nacional (LUZ, <strong>19</strong>93), ao mesmo em tempo<br />
em que se dava curso à política imigratória<br />
advinda do período anterior à Abolição e se promovia<br />
a naturalização massiva dos estrangeiros<br />
ingressados no território nacional até 1889.<br />
Se isto se dá no momento imediatamente posterior<br />
à Abolição, como se prepara o Estado<br />
Brasileiro para o trato do que Nina Rodrigues<br />
chama “o problema do negro”? 12<br />
11<br />
A respeito, ver: KOWARICK, Lúcio. Trabalho e Vadiagem:<br />
a origem do Trabalho Livre no Brasil. São Paulo,<br />
SP: Brasiliense, <strong>19</strong>87; BEIGUELMAN, Paula. A crise do<br />
escravismo e a grande imigração. São Paulo, SP:<br />
Brasiliense, <strong>19</strong>87; MORNER, Magnus. La inmigración<br />
desde mediados del siglo XIX: una nueva América Latina.<br />
Revista Culturas, Unesco, v. 5, n. 3, Paris, <strong>19</strong>78. Para<br />
uma discussão mais profunda sobre as relações raciais no<br />
Brasil, SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco: raça e<br />
nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro,<br />
RJ: Paz e Terra, <strong>19</strong>76.<br />
12<br />
“Ao brasileiro mais descuidado e imprevidente não<br />
pode deixar de impressionar a possibilidade da oposição<br />
futura, que já se deixa entrever, entre uma nação branca,<br />
forte e poderosa, provavelmente de origem teutônica, que<br />
se está constituindo nos estados do Sul, donde o clima e a<br />
civilização eliminarão a raça negra ou a submeterão, de um<br />
lado; e, de outro lado, os estados do Norte, mestiços,<br />
vegetando na turbulência estéril de uma inteligência viva e<br />
pronta, mas associada à mais decidida inércia e indolência,<br />
ao desânimo e por vezes à subserviência e, assim,<br />
ameaçados de se converterem em pasto submisso de todas<br />
as explorações de régulos e pequenos ditadores. É<br />
esta, para um brasileiro patriota, a evocação dolorosa do<br />
contraste maravilhoso entre a exuberante civilização canadense<br />
e norte-americana e o barbarismo guerrilheiro da<br />
América Central”. (RODRIGUES, <strong>19</strong>82, p.8).<br />
24 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003
Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />
2. ANÁLISE DE ESTRATÉGIA: TRÊS<br />
DOCUMENTOS DE UM “FAZEDOR DE<br />
POLÍTICAS”<br />
Para o entendimento dessa questão, vamos<br />
analisar os documentos do final do século XIX<br />
que nos permitirão ver como se iniciaram as<br />
principais mudanças no aparelho do Estado e<br />
no arcabouço institucional que, a nosso ver, implicaram<br />
na estruturação de uma estratégia para<br />
a inclusão dos negros a sociedade brasileira.<br />
São elas:<br />
1. a reforma eleitoral, através da adoção da eleição<br />
direta com a exclusão dos analfabetos;<br />
2 a extinção da escravatura através do projeto<br />
de emancipação gradual; e<br />
3. o projeto de reforma da instrução.<br />
Em todas as três, ressalta-se a pessoa de<br />
Rui Barbosa, jurista brasileiro, grande advogado<br />
responsável também pela revisão de grande<br />
parte da legislação brasileira após a República.<br />
De origem simples, Rui Barbosa foi, durante<br />
toda sua vida, e ainda por muito tempo, o<br />
protótipo do “letrado” brasileiro. Sem fortuna,<br />
seu pai, educador e político liberal, toma como<br />
sua principal tarefa a educação de seu filho,<br />
ligado aos Conselheiros Saraiva e Manoel<br />
Dantas, políticos e liberais da Bahia, que o têm<br />
como assessor e depois como afilhado político,<br />
até que ele assume seu próprio lugar, inicialmente<br />
como membro do parlamento federal, na<br />
constelação política. Líder liberal, tem papel<br />
destacado nas lutas pela reforma do Estado<br />
brasileiro, dentro de uma concepção muito própria,<br />
em que se destaca a luta pelo federalismo.<br />
Advogado dos militares em choque com o governo<br />
Imperial, torna-se republicano e, logo<br />
depois, líder civil dos republicanos. Com o Golpe,<br />
torna-se o 1º vice-presidente do Governo<br />
Provisório, função que acumulava com a de<br />
Ministro da Fazenda, fazendo-se reconhecidamente<br />
a figura central das reformas que então<br />
se levam à frente, no sentido da implantação de<br />
uma república leiga, liberal e... conservadora.<br />
No entanto, o que vamos analisar de Rui<br />
Barbosa (sua obra é vastíssima) são três textos<br />
produzidos quase simultaneamente (1879, 1882<br />
e 1884), nos quais se discutem, respectivamente,<br />
a adoção da eleição direta (mas não tanto),<br />
a reforma do sistema de ensino (na parcela que<br />
cabia ao governo central) e o final da escravidão.<br />
Na nossa concepção, os três textos tem<br />
uma conexão entre si, que apontam para uma<br />
estratégia liberal de “trânsito para a civilização”<br />
para a sociedade brasileira, com declaradas<br />
exclusões assumidas. Estratégia vitoriosa, na<br />
medida em que reafirmada e formalmente aprovada,<br />
já na República, com a sua presença no<br />
Governo Provisório, por sua participação na elaboração<br />
da Constituição Federal de 1891.<br />
O que pretendemos é estabelecer uma articulação<br />
entre:<br />
a) sua declaração de ser “liberal à inglesa” 13<br />
com a defesa da exclusão dos analfabetos da<br />
cidadania ativa: para ele, o voto deve ser direto,<br />
mas restrito, segundo critérios de renda e de<br />
condição de independência e discernimento, via<br />
o saber ler e escrever;<br />
b) a idéia de que o sufrágio universal deve ser<br />
precedido pelo ensino universal;<br />
c) seu conhecimento da extensão do analfabetismo<br />
no Brasil - quantos e quem eram os analfabetos,<br />
com uma dimensão, inclusive, do tempo<br />
necessário para a generalização do ensino<br />
básico (“esta celeridade de milésimos por ano”);<br />
e<br />
d) seu projeto de extinção gradual da escravidão,<br />
em que:<br />
- alinha as razões a favor dessa extinção, analisando<br />
as diversas experiências de extinção na<br />
América Latina e apresentando-as como favoráveis,<br />
como seguras – a não ser em casos em<br />
que, além da liberdade, se deu a cidadania;<br />
- analisa o caso dos Estados Unidos, em que<br />
houve uma guerra, onde apresenta os resultados<br />
favoráveis de inclusão dos negros, inclusive<br />
criação de escolas – o que, entretanto, não<br />
faz com que se apresente, no projeto, nenhuma<br />
proposição a respeito de uma escolarização<br />
massiva de ex-escravos;<br />
13<br />
“Eu era, como sou, um democrata liberal e um liberal da<br />
escola inglesa”. Citado por Homero Pires, em introdução<br />
ao discurso de Rui Barbosa na Sessão de 10 de julho de<br />
1879, sobre a Reforma Eleitoral.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />
25
A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />
- a apresentação “truncada”, com lacunas, do<br />
seu pensamento: no parecer, argumenta que a<br />
única causa, para ele, de problemas no pós-abolição<br />
é a assunção simultânea da condição de<br />
livre e de eleitor, como nas colônias francesas<br />
em 1848. No entanto, tampouco explicita qualquer<br />
referência ao tema no projeto apresentado.<br />
Disto, se encarregou previamente a lei eleitoral.<br />
Em vista disso, se pretende discutir a existência<br />
de uma intencionalidade de exclusão dos<br />
negros, ex-escravos (analfabetos na sua grande<br />
maioria tendo em vista a proibição explicita<br />
de sua freqüência à escola e, mesmo, pela inexistência,<br />
na lei e na prática, de uma política de<br />
escolarização dos “ingênuos”), da cidadania ativa.<br />
Esta intencionalidade, velada, existente desde<br />
o início da década de 80, é reafirmada em 1890,<br />
no Governo Provisório, e aparece, sob a forma<br />
de exclusão dos analfabetos, em todas as constituições<br />
federais brasileiras, até <strong>19</strong>86. Com isto,<br />
se estabelece um controle sobre a inclusão na<br />
cidadania do contingente de ex-escravos, a qual<br />
passa a ser paulatina, gradual.<br />
É interessante observar, entretanto, que, ao<br />
declarar que os analfabetos não votavam, se<br />
deixava fora da condição de eleitor, em 1881,<br />
83% da população brasileira. Mais: as declarações<br />
de obrigatoriedade da escola, propostas<br />
pelo projeto de 1882, só atingiriam a população<br />
em idade escolar: somente quando os meninos<br />
de 7 a 14 anos, se escolarizados – porque a<br />
própria declaração da obrigatoriedade escolar<br />
ficou, na constituição da Republica, a cargo dos<br />
Estados – chegassem aos 21 anos de idade, iria<br />
crescendo, pouco a pouco, o contingente eleitoral.<br />
As gerações adultas estavam, todas, condenadas<br />
ao limbo da nação ou a construir, por<br />
seus próprios esforços, os meios de educar-se<br />
– e de, portanto, tornarem-se cidadãos.<br />
A. A Reforma Eleitoral e o (não) voto<br />
do analfabeto<br />
Para analisar a posição de Rui Barbosa com<br />
relação à reforma eleitoral e, nela, a questão da<br />
eleição direta, tomamos como material de análise<br />
seu discurso proferido em 10 de julho de<br />
1879, na Câmara Federal. Deputado pela primeira<br />
vez, Rui Barbosa foi convidado a participar<br />
da redação do projeto de lei, tendo em vista<br />
sua atuação como “destacado e inflamado orador<br />
a favor da Reforma”. O texto que vamos<br />
utilizar é um discurso proferido depois da aprovação<br />
do projeto na Câmara e uma explicação<br />
e defesa desse projeto e da necessidade/possibilidade<br />
da aprovação da Eleição direta sem que<br />
houvesse a convocação de uma constituinte. Ou<br />
seja, entendia ele que, mesmo se tratando de<br />
matéria definida na Constituição, podia ser<br />
emendada por legislação ordinária porque, na<br />
sua argumentação, não feria direitos, mas os<br />
ampliava – apesar de que se suprimia a figura<br />
do eleitor primário. Rui Barbosa, alem de redator<br />
desse projeto de 1879, rejeitado no Senado,<br />
foi depois o autor do projeto afinal aprovado e<br />
transformado em Decreto em 9 de janeiro de<br />
1881. (BRASIL, <strong>19</strong>85, p.211-274)<br />
Esse discurso, na verdade, é uma auto-defesa<br />
diante da acusação de José Bonifácio (o<br />
segundo, deputado por São Paulo, liberal e fervoroso<br />
abolicionista, professor da Faculdade de<br />
Direito de São Paulo; o primeiro José Bonifácio<br />
foi o da Independência) de que a proposta de<br />
eleição direta, na medida em que aumentava o<br />
censo pecuniário e propunha a exclusão dos<br />
analfabetos, restringia os direitos individuais e<br />
era contra os princípios do Partido Liberal –<br />
partido do qual o próprio Rui participava. A resposta<br />
de Rui vem com a costumeira erudição<br />
de seus trabalhos, com a finalidade de justificar<br />
as suas posições. O discurso pretende demonstrar<br />
que, ao propor uma reforma no sistema eleitoral<br />
em que a implantação da eleição direta,<br />
ao mesmo tempo, aumenta os que participam<br />
diretamente da decisão e diminui substancialmente<br />
o número total dos que participam da<br />
eleição por eliminar o “eleitor primário” e implantar<br />
um eleitorado “qualificado”, estava de<br />
acordo com os princípios da democracia e do<br />
liberalismo. E o ponto central da sua argumentação,<br />
em nome de promover, ao mesmo tempo<br />
que a adoção da eleição direta, uma reforma<br />
no sistema eleitoral é a exclusão dos analfabetos<br />
– em nome da qualificação do eleitor,<br />
ou melhor da sua capacidade eleitoral.<br />
Sua argumentação esta estruturada em três<br />
eixos:<br />
26 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003
Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />
1. O ideal seria o sufrágio universal, mas não o<br />
vamos propor porque não estamos preparados<br />
para isto. Deixamos para o futuro.<br />
2. Apesar de acreditar que o voto é um direito e<br />
uma função social, entende que o seu exercício<br />
está condicionado à independência e ao<br />
discernimento. Para ele, os direitos naturais<br />
não teriam atualidade ativa para os incapazes<br />
de exercê-lo senão sob a tutela dos<br />
capazes. Somente estes seriam titulares do direito<br />
ao voto.<br />
3. A reforma, portanto, na medida em que não<br />
vê possível o sufrágio universal, necessita de<br />
um critério para a qualificação do eleitor. A partir<br />
daí, propõe dois censos: o pecuniário e o literário,<br />
com a argumentação de que seria necessário,<br />
“até certo ponto, desdemocratizar o<br />
sistema eleitoral para torná-lo mais representativo”.<br />
O discurso de José Bonifácio que, desde o<br />
mesmo Partido Liberal, faz oposição ao projeto<br />
de reforma da lei eleitoral, apresenta as seguintes<br />
críticas: o projeto é conservador, contraria os princípios<br />
do partido liberal, na medida em que, ao<br />
invés de ampliar o eleitorado, o restringe; na<br />
medida em que exclui mais de 80% da população<br />
brasileira da condição de eleitor, portanto,<br />
implicando numa limitação da soberania popular;<br />
assim, criaria “castas” na população, excluindo<br />
o povo da nação brasileira 14 ; por fim, ao “desnacionalizar<br />
as massas ativas”, estaria condenando<br />
ao “hilotismo político” as mesmas massas.<br />
Na sua resposta, Rui deixa claro o seu projeto<br />
para a sociedade brasileira – a “democracia”<br />
liberal, sem a soberania popular. Voto de<br />
qualidade, exclusão dos analfabetos e daqueles<br />
que, por terem baixa renda, seriam dependentes<br />
de alguém para sobreviver e, portanto, não<br />
teriam independência no seu voto. O voto seria<br />
um direito para aqueles habilitados a votar livre<br />
e conscientemente. No seu texto, discutida a<br />
dupla característica de direito e função social<br />
do voto e a necessidade, segundo ele, da capacidade<br />
para exercê-los, busca então argumentar<br />
como e porque seria necessário e possível<br />
qualificar os eleitores, visto que, no Brasil, não<br />
teríamos “uma aristocracia como a inglesa ou<br />
uma burguesia como a francesa” (p. 222), de<br />
onde viesse a se constituir a sociedade política.<br />
Toma, portanto, como ponto de partida, que o<br />
Brasil seria uma “democracia” e que a luta pela<br />
igualdade, antes que oposição a ela, demandava<br />
um caminho seguro, regular, que permitisse<br />
a sua construção, ou melhor, o seu desenvolvimento<br />
gradual.<br />
A Reforma Eleitoral, introduzindo o voto direto,<br />
era uma antiga reivindicação da sociedade<br />
política brasileira, em especial dos liberais.<br />
Até aquele momento, as eleições se davam em<br />
dois turnos: no primeiro, a massa dos cidadãos<br />
ativos – em 1879, em torno de 1.800.000 pessoas<br />
(que correspondiam aos homens, maiores<br />
de 25 anos, com renda mínima anual de<br />
100.000$000 réis) – escolhia os eleitores, numa<br />
proporção de 1/18 cidadãos votantes. Não existiam<br />
outras restrições, apenas os libertos não<br />
podiam votar e ser votados para a Câmara. Os<br />
eleitores votavam para a Assembléia dos Estados<br />
e para o Parlamento Nacional.<br />
Decidida a realização da Reforma, o Imperador<br />
dissolve o Gabinete Conservador e entrega<br />
o governo ao Partido Liberal, para que a<br />
promova. O projeto apresentado teve redação<br />
de Rui Barbosa, que também trabalhou na redação<br />
da Lei afinal aprovada, em 1881, já então<br />
sob a responsabilidade do Conselheiro Saraiva.<br />
Esse discurso é pronunciado após a aprovação<br />
do projeto pela Câmara e antes da sua<br />
recusa pelo Senado; tem como finalidade tentar<br />
convencer o Senado da possibilidade de efetuar<br />
uma reforma constitucional através de lei<br />
comum e, principalmente, reafirmar o conteú-<br />
14<br />
Caberia acrescentar que boa parte do partido liberal era<br />
contra o projeto. Também Joaquim Nabuco, líder<br />
abolicionista, se manifesta contra. Nabuco se manifesta a<br />
favor do sufrágio universal. Para ele, a luta dos liberais<br />
devia se dar no alargamento do direito ao voto, jamais por<br />
sua restrição; no sentido da liberdade e da independência<br />
do eleitor, jamais do seu controle ou manipulação. Era,<br />
portanto, para ele totalmente descabido que justamente o<br />
Partido Liberal propusesse a Reforma Eleitoral a base da<br />
elevação do Censo e da exclusão dos analfabetos: tiravase,<br />
nas suas palavras, o direito ao voto de milhares de<br />
“homens pobres” justamente aqueles que nenhuma culpa<br />
tinham das deformações do sistema. (NOGUEIRA, <strong>19</strong>84).<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />
27
A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />
do do projeto face às críticas a ele feitas por<br />
dissidentes (mais progressistas que ele) do próprio<br />
partido Liberal, em especial do deputado<br />
por São Paulo José Bonifácio, professor da<br />
Faculdade de Direito de São Paulo, abolicionista.<br />
Embora o discurso de José Bonifácio não<br />
esteja aí publicado, o combate feito por ele ao<br />
projeto transparece nas respostas de Rui. Sua<br />
oposição ao projeto está na questão central abordada<br />
por ele – o fato de que, ao propor a eleição<br />
direta, estabelece, simultaneamente, na caracterização<br />
do novo eleitor, restrições tais que eliminam<br />
não só a maioria da população brasileira,<br />
como também afastam pessoas que já participavam<br />
da eleição no primeiro turno. Isto se<br />
dava ao propor a adoção de um duplo critério<br />
de qualificação do eleitor: o critério do censo<br />
pecuniário – em que se elevava a renda de<br />
100.00$000 para 400.000$000 reis anuais; e o<br />
censo literário – através do qual se excluíam<br />
os analfabetos. Àquela altura, 1879, conhecidos<br />
já os resultados do Censo Demográfico de<br />
1872, sabia-se que mais de 83% da população<br />
brasileira era analfabeta; a adoção desse critério<br />
implicava reduzir drasticamente a participação<br />
popular nas eleições.<br />
Contra isto se insurge Bonifácio que, juntamente<br />
com uma parcela do Partido Liberal,<br />
denuncia que a mudança na lei eleitoral, tão<br />
desejada por ser mais democrática – por estabelecer<br />
o voto direto – na verdade atendia aos<br />
interesses dos conservadores, estando contra<br />
os princípios do próprio Partido: excluía o povo,<br />
limitava a soberania e criava castas, desnacionalizava<br />
(ou seja, colocava fora da nação) as<br />
chamadas “massas ativas” que antes votavam<br />
em primeiro turno e as condenava ao “hilotismo<br />
político” 15 .<br />
Especificamente quanto à exigência do saber<br />
ler e escrever, José Bonifácio argüi que os<br />
cidadãos brasileiros, membros da nação, deveriam<br />
ser aqueles considerados aptos para defendê-la<br />
– referindo-se aos ex-combatentes na<br />
Guerra do Paraguai, muitos deles recrutados<br />
entre os escravos e os libertos, e para o que<br />
não se havia apurado, naturalmente, qualquer<br />
condição de alfabetização. Se constituem o Exército<br />
brasileiro, agora heróis da Pátria, como<br />
excluí-los da cidadania? Argumenta, por fim, que<br />
não havia como vincular a capacidade de<br />
discernimento apenas à habilidade de ler e escrever;<br />
o discernimento seria a consciência de<br />
si e do outro: vinculá-lo ao ler e escrever seria<br />
propor “a soberania da gramática”. 16 Ademais,<br />
ao ser excluído da atividade política, do voto, o<br />
cidadão estaria sendo excluído exatamente do<br />
processo através do qual se aprende a exercer<br />
a cidadania.<br />
Na defesa do projeto, é a seguinte a argumentação<br />
de Rui:<br />
1. A dualidade do sufrágio, então existente, enfraquecia<br />
a ação popular, dividindo-a; a eleição<br />
primária estava entregue à prepotência das qualificações<br />
ou de quem as fazia. O eleitor não<br />
representava aqueles que tinham votado nele<br />
na eleição primária.<br />
2. Para estabelecer o voto direto, era necessário<br />
previamente estabelecer a qualificação do<br />
novo eleitor, discutindo o conceito de “capacidade<br />
eleitoral”.<br />
3. Embora seja a favor do sufrágio universal,<br />
não o considerando utopia, pensa que o país<br />
precisa ser preparado para ele.<br />
4. Entende que o voto é, simultaneamente, direito<br />
natural e função. Entretanto, entende também<br />
que “os ideológica e escolasticamente<br />
intitulados direitos naturais não têm, para os incapazes<br />
de exercê-los senão sob a tutela dos<br />
15<br />
Referência aos “hilotas”, que não participavam da democracia<br />
grega.<br />
16<br />
Também Nabuco se inscreve entre os que se opõem ao<br />
projeto na forma apresentada, tanto em 79 como em 81.<br />
Para ele, jamais o partido liberal poderia propor a restrição<br />
do eleitorado. Além disso, como abolicionista, não o<br />
poderia aceitar – diz. O abolicionismo seria, para ele,<br />
antes de tudo, uma reforma política, de luta pela inclusão<br />
na cidadania, de construção de uma nova nação. Esta visão,<br />
segundo ele, seria própria do Brasil, não se tendo<br />
passado em outros países, como Inglaterra e França, que<br />
tinham seus escravos nas colônias – portanto, fora do<br />
convívio quotidiano com os seus ex-donos. Nos EEUU,<br />
diz, o direito ao voto do negro, ex-escravo foi um resultado<br />
não esperado da guerra, que impôs a igualdade civil.<br />
No Brasil, portanto, o abolicionismo teria como corolário<br />
o direito ao voto.<br />
28 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003
Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />
capazes, atualidade ativa”. Para ele, no caso<br />
do voto, a atualidade seria “diretamente pessoal”,<br />
tornando-se o direito incompatível com a<br />
tutela. Portanto, “direito é o sufrágio para os<br />
habilitados a votar livre e conscientemente”;<br />
somente neste caso, o voto torna-se direito e<br />
função. Por isso, a independência e o discernimento<br />
seriam requisitos vitais para um regime<br />
de eleição moralizado e livre.<br />
Aguilhoado pela crítica dura de José Bonifácio<br />
e de outros “dissidentes”, passa Rui Barbosa<br />
a argumentar em favor da idéia de que o<br />
projeto era, sim, de acordo com as ideais liberais<br />
em manifestações diversas de líderes do<br />
Partido Liberal, em várias ocasiões. Citando<br />
Saraiva, em 1875:<br />
“O liberalismo sensato não diz - vote o homem<br />
que vive do seu jornal e não tem um jornal para<br />
ler” [trocadilho com a palavra jornal, no duplo<br />
sentido: viver de trabalho diário e não ter jornal<br />
- periódico - para ler]. “O Liberalismo verdadeiro<br />
diz: Vote quem puder; e habilite-se a população<br />
toda para votar”... A soberania de que falo é a do<br />
povo que está no caso de votar... Não quero<br />
nem o absolutismo dos príncipes, não obstante<br />
sua educação, nem o absolutismo da ignorância,<br />
das multidões brutas: a inteligência deve<br />
governar e só ela. (BRASIL, <strong>19</strong>85, p. 230)<br />
Segue ainda citando os nomes dos membros<br />
do partido Liberal que, em diversas ocasiões,<br />
se haviam manifestado contra o voto dos analfabetos.<br />
Em seguida, vai buscar dentro da própria<br />
teoria liberal – ou seja, no pensamento de<br />
grandes teóricos do liberalismo – a justificação<br />
da justeza de suas proposições. Recorre a<br />
“Prévost-Paradol (França) e a Stuart Mill (Inglaterra).<br />
Citando este:<br />
Somente os homens em quem uma teoria irrefletida<br />
emudeceu o senso comum sustentarão que<br />
se deva entregar o poder sobre os outros, o poder<br />
sobre a comunidade inteira, a indivíduos que<br />
não tenham adquirido as condições mais ordinárias<br />
e essenciais para curar de si mesmos, para<br />
gerir com inteligência os próprios interesses e<br />
os das pessoas que proximamente lhes digam<br />
respeito. (BRASIL, <strong>19</strong>85, p. 230)<br />
Segundo Rui Barbosa, Mill exclui não apenas<br />
os que não sabem ler e escrever, como também<br />
os que não têm noções mínimas de cálculo.<br />
Contrargumentando aos que dizem que esse<br />
raciocínio não se aplica no Brasil, dada a extensão<br />
do analfabetismo (como conseqüência,<br />
o Sufrágio deveria vir antes que a Instrução),<br />
diz que isso contraria o pensamento de<br />
Mill. O analfabeto, por sê-lo, teria uma incapacidade<br />
individual, intrínseca, radical; assim, onde<br />
não está generalizada a alfabetização, primeiro<br />
se alfabetize, depois se dê o direito ao voto.<br />
Quando a sociedade não tem cumprido o seu<br />
dever, fazendo acessível a todos esse grau de<br />
instrução, há realmente injustiça, mas injustiça<br />
que não nos deve enlear: se de duas solenes<br />
obrigações descuidou-se a sociedade, satisfaça-se<br />
primeiro a mais importante e a mais fundamental<br />
das duas; o ensino universal preceda o<br />
sufrágio universal. (BRASIL, <strong>19</strong>85, p. 230)<br />
O fato de que a maioria da população brasileira,<br />
naquele momento, era analfabeta, o que inclusive<br />
havia feito com que alguns parlamentares<br />
liberais (inclusive alguns dos citados por Rui)<br />
tivessem mudado de opinião quanto à oportunidade<br />
de excluir aos analfabetos tendo em vista o<br />
número diminuto que sobrava para ser eleitor,<br />
para Rui não mudava a essência da questão: a<br />
capacidade eleitoral. Maior motivo para estar<br />
contra o voto do analfabeto é o seu grande número,<br />
diz Rui. E arremata: “Em face ao dilema ou<br />
não sois liberais ou haveis de incluir os analfabetos,<br />
respondemos: Não; somos liberais e excluímos<br />
os analfabetos; excluímos os analfabetos<br />
porque somos liberais” (BRASIL, <strong>19</strong>85,<br />
p.230).<br />
A partir daí, em resposta à opinião de José<br />
Bonifácio, de que o que dá o direito de intervir<br />
no governo de um país como votante é a consciência<br />
da própria posição, acrescentada à consciência<br />
da vontade alheia, argumenta Rui: o que<br />
dá a consciência clara é a leitura:<br />
Como é que se elabora, nos povos de hoje, esse<br />
difícil sentimento, o sentimento da individualidade<br />
na coletividade, o sentimento complexo dos<br />
deveres e direitos mútuos entre o Estado e os<br />
cidadãos? Pelos meios que estabelecem comunicação<br />
efetiva, permanente, inteligente, entre<br />
todos os membros da comunidade. Quais são<br />
esses meios? Dois. O primeiro é o jornal, o grande<br />
agente da educação nacional no mundo contemporâneo,<br />
que todo mês, toda quinzena, toda<br />
semana, toda manhã, toda tarde, vai levar ao<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />
29
A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />
paço do milionário e à casa do pobre, em igual<br />
quinhão, a colheita da civilização universal.<br />
(BRASIL, <strong>19</strong>85, p.231)<br />
Ao jornal, à leitura, agrega as associações,<br />
os clubes, etc, que, para ele, no Brasil não teriam<br />
força suficiente para formar a opinião pública.<br />
Assim, a grande escola da educação cívica<br />
seria a imprensa, a que o analfabeto não tem<br />
acesso.<br />
E segue, então, completando sua visão liberal<br />
de que basta a liberdade para que cada povo<br />
se forme em nação, para que cada indivíduo se<br />
transforme em cidadão, não cabendo tutelas<br />
nem ajudas. Atenção para o exemplo, ainda hoje<br />
na ordem do dia:<br />
A liberdade, Sr. Presidente, é inseparável de seus<br />
encargos. Dela não é digno o povo, que não<br />
saiba sofrer os males naturais de sua situação, e<br />
espere de outros recursos, que não a liberdade<br />
mesma, os meios de vencê-los. Por exemplo: o<br />
artífice insciente exige os impostos proibitivos<br />
como proteção à indústria nacional; porque não<br />
lhe mostraram que a verdadeira proteção à indústria<br />
consiste em obrigá-la a aperfeiçoar-se,<br />
entregando-a à concorrência no mercado comum;<br />
porque não no convenceram de que o seu interesse<br />
em ter maior número de fregueses não lhe<br />
assegura o jus de não deixar a esses fregueses a<br />
escolha do mercado livremente preferível; porque<br />
não lhe fizeram palpar a injustiça de que a<br />
sua conveniência em vender o gênero mais caro<br />
prevalecesse ao direito, que aos consumidores<br />
assiste, de confluir ao mercado onde o encontrem<br />
mais barato (BRASIL, <strong>19</strong>85, p. 232).<br />
Ainda argumentando sobre a necessidade<br />
do saber ler e escrever como base para aferir o<br />
discernimento, afirma que o Estado não pode<br />
prescindir do discernimento como elemento da<br />
capacidade eleitoral, uma vez que ele é uma<br />
das condições essenciais à liberdade. Como<br />
acha que o discernimento não pode ser “indiscriminadamente<br />
atribuído a todos”, era necessário,<br />
à falta de um sinal exterior da sua presença,<br />
aferi-lo através do critério da leitura:<br />
Ora, é a leitura que forma o cidadão, o homem<br />
civilizado, o homem moderno. Esta verdade<br />
não admite controvérsia... Lendo, é que<br />
se habilita o cidadão ...nesses tempos, quem<br />
saiba ler, lerá. E, como ler é o meio de aprender,<br />
infere-se que, onde está o instrumento aquisitivo<br />
da capacidade, aí a capacidade está.<br />
(BRASIL, <strong>19</strong>85, p.233).<br />
Nesta linha de argumentação, chega à conclusão<br />
de que o analfabeto está incapacitado<br />
para os negócios do Estado:<br />
Ora, como o discernimento político é pelo conhecimento<br />
dos negócios de Estado que se obtém;<br />
como esse conhecimento alcança-se com a<br />
leitura; como a leitura é impossível aos analfabetos<br />
na regra geral, estaremos presumindo no<br />
analfabeto ausência dessa aptidão social. (BRA-<br />
SIL, <strong>19</strong>85, p.234).<br />
Em nome, portanto, desta avaliação da capacidade<br />
de discernimento, reafirma a necessidade<br />
e justeza do projeto que significa, ao estabelecer<br />
a eleição direta, retirar o voto de todo o<br />
eleitorado primário, reduzindo a representação<br />
da população brasileira, naquele momento, a<br />
menos de 4%. Assim, em nome de tornar a eleição<br />
mais democrática, propõe desdemocratizála,<br />
excluindo aqueles que não tiveram acesso à<br />
leitura e à escrita. Assim, ao tempo em que se<br />
reduzia o eleitorado então existente de 1.800.000<br />
pessoas (eleitorado direto) para 400.000 eleitores,<br />
argumenta que isso, na realidade, representava<br />
um ganho, já que o eleitorado primário<br />
não contava; de fato, se estava aumentando o<br />
eleitorado de 24.000 eleitores para 400.000 (Estes<br />
eram, segundo seus cálculos, os varões<br />
livres, alfabetizados e maiores de 25 anos). Os<br />
400.000, ao tempo em que representavam 4%<br />
da população total livre do Brasil (1879), eram,<br />
segundo ele, 22% do eleitorado total possível.<br />
Portanto, para ele, não haveria como falar em<br />
igualdade violada:<br />
Como é, pois, que se nos vem falar em «igualdade<br />
violada»? Mas a única igualdade possível, a<br />
única igualdade legítima, a única igualdade racional,<br />
a única igualdade liberal, a igualdade conforme<br />
a democracia não socialista é não a igualdade<br />
absoluta, o nivelamento, que será sempre a<br />
mais opressiva das desigualdades morais, mas a<br />
igualdade relativa, isto é, a desigualdade social<br />
das condições correspondendo, em uma proporcionalidade<br />
exata, à desigualdade natural das<br />
aptidões. (BRASIL, <strong>19</strong>85, p.245)<br />
Apresenta, então, o argumento que sempre<br />
lhe é atribuído como saída: de que é contra o<br />
30 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003
Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />
voto do analfabeto como forma de incentivar a<br />
expansão do ensino – que não é, segundo nos<br />
parece, o centro de sua argumentação:<br />
Replicais: - Se abundam os analfabetos é porque<br />
rareiam as escolas. Mas nem isso é razão que<br />
demonstre a capacidade eleitoral dos analfabetos;<br />
nem o temor da preponderância dos analfabetos<br />
é o móvel mais plausível para incitar o<br />
governo à multiplicação das escolas; nem o estímulo<br />
que há de avivar no analfabeto o apetite de<br />
aprender está em sentir-se nivelado no direito<br />
político aos cidadãos intelectualmente superiores.<br />
Dai preço ao voto; fazei dele um instrumento<br />
de influência decisiva na sorte das administrações;<br />
ligai-o à instrução; ligai à ausência dela<br />
a privação dele; e, tornando o eleitorado uma<br />
posição, dignamente cobiçável, fareis cobiçar a<br />
instrução elementar, ao menos, degrau legal para<br />
ele. (BRASIL, <strong>19</strong>85, p. 245)<br />
Argumenta, por fim, com relação ao aumento<br />
do censo pecuniário, entender ser ele,<br />
módico, mas, mais que tudo, inofensivo: sendo<br />
excluídos os analfabetos, os que sobrarem certamente<br />
estarão entre os de renda mínima; o<br />
que demonstra que tinha conhecimento, consciência,<br />
de que o acesso à escola estava ligado<br />
à questão econômica e de que, excluindose<br />
os analfabetos, se estava excluindo os mais<br />
pobres.<br />
Assim, a sua proposta de exclusão dos analfabetos,<br />
embora até mascarada de instrumento<br />
de pressão para que se ampliasse o acesso<br />
à escola, está, na verdade, articulada a um projeto<br />
de governo, liberal, sob múltiplas influências,<br />
que vão de Spencer a Stuart Mill, em que<br />
ao evolucionismo social do primeiro se agrega<br />
a visão de um governo de qualidade, do voto<br />
de qualidade, proposto pelo segundo, em que<br />
se pretende que a verdadeira liberdade consiste<br />
no estabelecimento de controles da maioria<br />
pela minoria, seja via Estado – colocado<br />
por uns como realizador da vontade comum –<br />
seja via Parlamento, em que este, embora representando<br />
a maioria dos votantes, ainda assim<br />
devia sofrer algum tipo de controle que<br />
permitisse a liberdade individual, contraposta<br />
à liberdade coletiva. 17<br />
Para Rui Barbosa, e para o projeto de Governo<br />
que naquele momento representava, o<br />
governo devia ser o governo da minoria ilustrada,<br />
“letrada” – a inteligência, de que ele<br />
próprio era representante – mas que, no fundo,<br />
como os resultados da República vieram<br />
depois a demonstrar, que vinha a servir às intenções<br />
da conservação da ordem. No texto,<br />
deixa claro estar vinculada a direção dada à<br />
Reforma Eleitoral a um projeto de governo e<br />
à “responsabilidade” dele decorrente: ao criticar<br />
o discurso de José Bonifácio, diz “sob as<br />
apóstrofes quase épicas da sua paixão... há<br />
uma figura soberana que não vimos passar: a<br />
ciência austera, prudente, observadora, do<br />
governo. Faltou-lhe um instrumento à corda,<br />
que a lira não admite: a da investigação prática.<br />
Fugiu-lhe ao talento uma intuição: a da realidade”.<br />
E completa: se o orador se visse com<br />
a responsabilidade do poder sobre os ombros,<br />
o espectro das lições do passado, a voragem<br />
dos perigos do presente e as severidades do<br />
futuro ante os olhos, seguramente sentiria “o<br />
vazio de seus raciocínios”, a impossibilidade<br />
de realizar seus compromissos (p.224).<br />
Este programa de governo, liberal, e ao mesmo<br />
tempo conservador, prudente, exeqüível, incluía,<br />
segundo enumeração apresentada às folhas<br />
271: a secularização da escola (veja-se,<br />
não era sua expansão, a sua obrigatoriedade,<br />
mas a secularização), do registro civil, do casamento,<br />
do cemitério, do ensino público, do<br />
código penal e a abolição das incapacidades<br />
religiosas”... E mais as reformas complementares<br />
da liberdade eleitoral, como as incompatibilidades<br />
parlamentares, a reforma da polícia<br />
e da magistratura, as reformas econômicas,<br />
as descentralizadoras, a municipal, a emancipação<br />
do ensino, as leis de naturalização. (O<br />
autor, neste trecho, enumera as reformas que<br />
acha necessárias para a sociedade brasileira<br />
naquele momento, ao tempo em que afirma a<br />
desnecessidade de convocação de uma constituinte<br />
para a realização destas reformas).<br />
Veja-se que, na sua pauta, não fala, embora<br />
esteja em 1879, na abolição da escravidão. Fala<br />
17<br />
Para entender o pensamento de Stuart Mill: Weffort<br />
(<strong>19</strong>89), Merquior (<strong>19</strong>91), Bobbio (<strong>19</strong>95), Bobbio/Bover<br />
(<strong>19</strong>86). Do mesmo Stuart Mill, Sobre la Libertad, <strong>19</strong>54.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />
31
A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />
em escravos e livres apenas como um dado,<br />
quando faz a contabilidade dos que votam ou<br />
deixam de votar segundo o projeto. Apenas no<br />
trecho da pagina 222, acima citado, diz, de forma<br />
subterfugiosa, da necessidade de encontrar<br />
um “álveo” para o reconhecimento dos direitos<br />
constitucionais dessa força, ao falar da inexistência<br />
de classes no Brasil, “a não ser as resultantes<br />
da fusão reabilitadora do sangue dos libertos”.<br />
Diz ele:<br />
O Brasil ... é uma democracia. Não o é só na organização<br />
do nosso governo, na letra do seu direito<br />
constitucional... O que é, porém, intimamente<br />
democrático, em nossa terra, o que o é até a medula<br />
dos ossos e a sociedade... Somos, como<br />
todas as americanas, uma sociedade em elaboração<br />
ainda, num século em que a democracia fez<br />
indispensavelmente seu, e sob cujo influxo modificam-se,<br />
rejuvenescem democraticamente, as<br />
próprias sociedades, feitas, adultas, mais ou<br />
menos vetustas, do mundo antigo. (p.222)<br />
E segue:<br />
Não podemos ser uma nação tradicionalista.<br />
Decididamente não somos, na índole do povo,<br />
uma nação autoritária. Classes, não as temos,<br />
senão esses matizes que forçosamente resultam<br />
da fusão gradual, da progressiva desaparição,<br />
da assimilação reabilitadora do sangue<br />
liberto na massa comum do País [grifos nossos];<br />
e, ainda aí, os vestígios da transição não<br />
oferecem entre nós a mesma intensidade, as mesmas<br />
barreiras e os mesmos abismos , que noutros<br />
povos, aliás em geral incomparavelmente<br />
mais civilizados, por onde, como por nós, passou<br />
a peste da servidão negra.<br />
O gênio da igualdade (...) está profundamente<br />
inoculado em nossa pátria, nos hábitos, nas tendências,<br />
nas necessidades populares. Extinguílo<br />
seria impossível; arriscada empresa, contrariálo.<br />
E (digamo-lo sem rodeios) em quadra nenhuma<br />
de nossa história fora maior impropriedade<br />
que nesta o opor diques arbitrários a essa corrente;<br />
quando, pelo contrário, um dos grandes e<br />
enraizados erros da política brasileira consiste<br />
em desconhecer a essa força os seus direitos<br />
constitucionais; quando o que as circunstâncias<br />
estão reclamando é abrir-se-lhe álveo regular<br />
e franco, por onde ela, sem violência, mas também<br />
sem estreiteza nem interrupções, desdobre<br />
naturalmente o seu curso, como um fato<br />
normal, atuando com a supremacia que lhe<br />
cabe, nos destinos do Estado. (p.222 - grifos da<br />
autora)<br />
O álveo encontrado, ou seja, a estratégia a<br />
ser traçada para garantir à corrente da busca<br />
da igualdade um caminho seguro, para que desdobre<br />
naturalmente seu curso sem violência e<br />
sem interrupções, deveria passar, pois, por um<br />
aprendizado da cidadania, e pelo batismo da civilização,<br />
via leitura.<br />
É, portanto, no tratamento da questão da<br />
igualdade (o gênio da igualdade presente,<br />
segundo ele, na sociedade brasileira) que deixa<br />
prenunciar a existência de uma estratégia<br />
excludente e gradualista como saída “segura”<br />
para a escravatura, estratégia que também se<br />
inscrevia no modelo liberal. Modelo gradual, que<br />
vê a sociedade brasileira (como todas as do<br />
continente americano) como uma sociedade em<br />
formação, em busca da democracia. Mais: essa<br />
estratégia é uma estratégia “civilizatória”, que<br />
vincula o ler e o escrever com a civilização. No<br />
discurso de Rui, a exclusão dos pobres e dos<br />
analfabetos é explicitamente assumida. O que<br />
não está explicitado é que estes são, em sua<br />
grande maioria, negros libertos e seus descendentes,<br />
e que essa estratégia gradual, ao lado<br />
dos controles policiais de que falamos acima,<br />
vai formar o álveo para a inclusão: será não<br />
apenas o leito, o caminho, como também as<br />
margens que vão conter, servir de limites, à inclusão<br />
deles na cidadania brasileira.<br />
Entretanto, se a Reforma eleitoral retira do<br />
cenário político 1.400.000 votantes então existentes<br />
à conta dos que não teriam capacidade<br />
de discernimento, por pobres, dependentes economicamente,<br />
ou por analfabetos, ela não faz,<br />
em contrapartida, a proposição de uma campanha<br />
massiva de alfabetização, de implantação<br />
da escolarização como direito. Esta discussão,<br />
bem como a da estratégia para a Abolição (lenta,<br />
gradual e segura), são apresentadas em dois<br />
outros documentos: O Parecer-Projeto sobre<br />
educação e o Parecer-projeto 48-A, sobre a<br />
extinção gradual do elemento servil.<br />
32 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003
Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />
B. O Parecer - projeto sobre ensino<br />
primário e outras instituições complementares<br />
O segundo documento, em ordem cronológica,<br />
elaborado por Rui Barbosa em sua passagem<br />
pelo parlamento do Império, foi o projeto<br />
sobre ensino primário (BARBOSA, <strong>19</strong>84). Com<br />
duas redações, uma em maio de 1882 e outra<br />
em setembro de 1882, o parecer teria sido elaborado<br />
a pedido do Imperador, em virtude do<br />
malogro da reforma Leôncio de Carvalho, de<br />
1879. A existência das duas versões é explicada<br />
por Lourenço Filho como sendo dependente da<br />
chegada de material sobre o estado da Educação<br />
em vários países da Europa e da América,<br />
solicitado e obtido por Rui Barbosa. Assim, o<br />
documento elaborado (examinamos a 2a versão,<br />
completa) conta com a costumeira erudição dos<br />
trabalhos de Rui Barbosa. Exaustivo, compara a<br />
situação educacional do Brasil nos fins do século<br />
passado com a dos diversos países da América<br />
e da Europa: de nenhuma forma a situação<br />
por ele encontrada nos é favorável.<br />
A comparação, feita com vistas a justificar<br />
a necessidade de um projeto civilizatório pela<br />
via da escola, trabalha a partir de um diagnóstico<br />
do ensino no Brasil. Trabalhando com os<br />
dados estatísticos então existentes, Rui Barbosa<br />
os discute comparando as estatísticas de instrução<br />
– matrícula e freqüência – com a situação<br />
educacional da população como um todo,<br />
segundo o Censo Demográfico de 1872: analfabetismo<br />
e população escolarizável. Sempre<br />
excluindo os escravos dos seus cômputos, já<br />
que pela legislação então existente era-lhes proibido<br />
o acesso ao ensino, raciocina sempre em<br />
termos do crescimento futuro do contingente<br />
dos livres. Sua proposta de educação primária,<br />
no entanto, é feita em termos genéricos – não<br />
se dirige a um dos dois contingentes, mas à população<br />
de 7 a 14 anos.<br />
No capítulo I do parecer, discute, portanto,<br />
a situação do ensino popular. Critica o otimismo<br />
oficial, comparando-o com “a verdade dos<br />
números”. Fala em uma indolência do progresso<br />
escolar, visto que o crescimento do número<br />
de escolas primárias é muito pequeno ao ano,<br />
afirmando que a velocidade de crescimento<br />
decresce no período de 70 a 78 (p. 28). Comparando<br />
a matrícula com a população, demonstra<br />
que apenas 1,08% da população livre tem<br />
acesso à escola; e que, entre 1857 e 1878, o<br />
crescimento desse acesso foi da ordem de<br />
0,027% anualmente. Critica:<br />
... com essa celeridade de milésimos por ano,<br />
careceríamos de 37 anos para que a inscrição<br />
crescesse 1% e, como a nossa população em<br />
idade escolar (6 a 15 anos) está para a população<br />
livre na razão de 22,6%, em menos de 799 anos<br />
não teríamos chegado à situação que se anela, ...<br />
onde toda a população em idade escolar recebe<br />
a instrução primária. (BARBOSA, <strong>19</strong>84, p. 17, v.<br />
10, tomo 1)<br />
Mostra, então, seu conhecimento de que o<br />
Brasil era, naquele momento, uma nação de<br />
analfabetos, a ponto de estar no limite do que<br />
chama de mundo civilizado. Para demonstrar<br />
isto, faz comparações com os diversos países<br />
da América e da Europa, chamando a atenção<br />
de que, naquele momento (1882), a situação<br />
educacional na Argentina já era melhor do que<br />
no Brasil, citando especificamente o Censo<br />
Escolar de Buenos Aires de 1881 (p.58-60).<br />
Em vista da situação diagnosticada, passa a<br />
discutir o papel do Estado na oferta da educação.<br />
Sustenta então a posição de que o Estado<br />
deve ter uma presença forte na oferta da educação<br />
(discordando, explicitamente neste caso,<br />
dos positivistas). Deve existir uma organização<br />
nacional do ensino, desde a escola até as faculdades,<br />
não se devendo “submeter os problemas<br />
educacionais às leis econômicas da oferta e da<br />
procura”. Argumenta que a existência do ensino<br />
livre não poderia suprir a falta do ensino oficial,<br />
que deveria ser completamente leigo. E<br />
afirma a gratuidade (já prevista na constituição<br />
de 24 para o ensino primário) e a obrigatoriedade<br />
do ensino como sendo elementos intercomplementares:<br />
... Numa constituição democrática não pode ser<br />
outro o fito dos sacrifícios impostos ao estado<br />
pela difusão gratuita dos rudimentos de educação<br />
intelectual senão a necessidade, passada em<br />
julgado, de que eles sejam comuns a todos os<br />
habitantes válidos do país. Mas a proclamação<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />
33
A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />
dessa necessidade importa, ao mesmo tempo, o<br />
reconhecimento implícito ou a criação legal de<br />
um direito. Qual? Esse direito dos pais, simples<br />
elemento integrante da soberania irresponsável<br />
que lhes atribuem os adversários do ensino obrigatório,<br />
a certas facilidades para a formação moral<br />
da prole? Não, decerto. (BARBOSA, <strong>19</strong>84, v. 10,<br />
tomo 2).<br />
Para ele, existiriam dois direitos: o direito do<br />
indivíduo, “de que a sociedade lhe subministre<br />
os princípios elementares de moralidade e<br />
intelecção, sem os quais não há homem responsável,<br />
não havendo imputabilidade dos seus<br />
atos – portanto, a repressão seria uma injustiça”,<br />
e o direito da sociedade de negar à ignorância<br />
do indivíduo a liberdade. “Sem educação,<br />
o ser humano se desnatura”.<br />
Na sua argumentação em favor do estabelecimento<br />
de um sistema de ensino público leigo,<br />
gratuito, obrigatório e universal (base da<br />
organização do sistema de ensino no Brasil, até<br />
hoje), sem prejuízo da mais ampla liberdade de<br />
ensino, vai mais uma vez buscar o apoio do liberalismo<br />
inglês, agora de outra fonte: citando<br />
Macauly (BARBOSA, <strong>19</strong>84, p.185):<br />
Dever é do governo proteger-nos as pessoas e a<br />
propriedade, contra o que as possa pôr em perigo.<br />
Ora, a principal causa dos perigos que arriscam<br />
a propriedade e as pessoas é a ignorância<br />
crassa do comum do povo. Logo, adscrito está o<br />
govêrno a curar de que o comum do povo não<br />
fique sendo grosseiramente ignorante. E qual vem<br />
a ser a alternativa? Todos reconhecem que a<br />
obrigação do governo é acautelar, pelos meios<br />
possíveis, a nossa existência e fazenda. Mas,<br />
excluída a educação, que meio lhe deixais? Deixai<br />
somente estes meios que só a necessidade pode<br />
justificar, meios que infligem sofrimento formidável<br />
não só ao infrator como aos inocentes que<br />
com ele têm vínculos: Deixai-lhes os fuzis, os<br />
pelourinhos, a solidão celular das prisões, as<br />
colônias penais e a fôrca.<br />
É a seguinte a redação do parágrafo referente<br />
a obrigatoriedade escolar no texto do projeto:<br />
4º É obrigatória a freqüência das escolas públicas<br />
do ensino primário, no município neutro, para<br />
as crianças de ambos os sexos, dos 7 aos 13<br />
anos de idade. Esta obrigação estende-se até os<br />
15 anos, em relação aos que aos 13 anos não<br />
estiverem habilitados nas matérias da instrução<br />
escolar correspondente a essa idade.<br />
5º Eximem desta obrigação:<br />
a) a falta de escola pública num circuito determinado<br />
pelo raio de dois km, em relação às crianças<br />
do sexo masculino e um e meio em relação às<br />
do outro.<br />
Veja-se, portanto, que a obrigatoriedade estava<br />
limitada pela oferta de escolas. O projeto<br />
prevê, também, quem são os responsáveis pela<br />
instrução das crianças, inscrevendo nesta responsabilidade<br />
não somente os pais como tutores,<br />
etc, como também os proprietários, administradores,<br />
ou gerentes de quaisquer estabelecimentos<br />
mercantis, industriais ou agrícolas, ou<br />
pessoa que mantivesse a seu serviço menor<br />
desvalido, todos deviam obrigatoriamente cuidar<br />
da matrícula e da freqüência das crianças<br />
às escolas (parágrafos 6º e 17º).<br />
O Projeto prevê uma reforma organizacional<br />
para o ensino em todos os graus, inclusive o<br />
primário. No entanto, o projeto mantém a divisão<br />
da ação descentralizada via províncias. No<br />
que se refere ao ensino primário, a sua abrangência<br />
é restrita ao município da Corte, único<br />
espaço de atuação do Governo Central naquele<br />
ramo de ensino durante o Império a partir do<br />
Ato Adicional (como vamos ver adiante). Prevê,<br />
também, a criação de Fundo escolar e a<br />
criação de um imposto de captação, a ser pago<br />
por todos os homens maiores, para a manutenção<br />
do ensino. Assim, prevê normas nacionais<br />
e formas locais de aplicação.<br />
Por fim, em todo o projeto não há uma referência<br />
explícita aos escravos, à abolição da escravidão,<br />
à situação dos libertos ou dos ingênuos.<br />
Trata-se de propor um sistema de educação<br />
em geral, aplicável a todas as crianças (livres)<br />
em idade escolar. A única referência que<br />
faz no seu texto à relação possível entre abolição<br />
e instrução se reporta ao pensamento de<br />
Tavares Bastos, liberal e abolicionista dos meados<br />
do Século XIX: “Emancipar e instruir é<br />
a forma dupla do mesmo pensamento político.<br />
Que haveis de oferecer a esses entes degradados<br />
que vão surgir da senzala para a<br />
liberdade? O batismo da instrução”. (BAR-<br />
BOSA, <strong>19</strong>84, p.179, v. 10)<br />
34 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003
Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />
Com esta citação conclui o seu parecer, agregando<br />
seu entendimento de que o ensino,<br />
civilizatório, viria a ser propulsor do trabalho (de<br />
melhor qualidade). Como tal pensa que “este<br />
aceno deveria ajudar a fazer frutificar, no parlamento,<br />
contra os desleixos, os abusos, os preconceitos<br />
e a ignorância que protelam (...) a grande<br />
reforma” – numa referência à Abolição.<br />
C. O Parecer – Projeto sobre a emancipação<br />
gradual do elemento servil<br />
Mas como fazer a Abolição de uma maneira<br />
segura? Como garantir, como diz Macauly,<br />
as pessoas e as suas fazendas? É na análise do<br />
terceiro documento, o Parecer sobre a emancipação<br />
gradual, que se completa a visão sobre a<br />
estratégia de inclusão gradual dos ex-escravos<br />
à cidadania brasileira expresso por Rui Barbosa<br />
(BARBOSA, <strong>19</strong>88). O parecer 48-A , elaborado<br />
em 1884, está na origem da Lei dos<br />
Sexagenários, aprovada em 1885 com modificações<br />
no projeto inicial. Extenso, argumentativo,<br />
erudito, o parecer atende ao que Rui<br />
Barbosa denomina “chamar a sí” o problema<br />
da escravidão.<br />
O centro da sua argumentação é de que a<br />
escravidão deve se extinguir, ou seja, acabar<br />
por si, e veremos como constrói sua argumentação<br />
neste sentido, por um lado discutindo e<br />
negando a realidade do direito “natural” de propriedade<br />
do senhor sobre o escravo como sendo<br />
um direito individual e, portanto, advogando<br />
que o Estado deve intervir para sua extinção: o<br />
que é estabelecido por lei, por ela pode ser<br />
modificado; nestes casos, não cabe o laissez<br />
faire, cabendo ao Estado fixar o que é justo ou<br />
injusto. De outro, trata de fazer o convencimento<br />
da necessidade da reforma, da impossibilidade<br />
de adiá-la e busca combater o medo do futuro.<br />
O Projeto propõe a extinção da escravidão<br />
através de dois mecanismos: a colocação de<br />
uma idade limite para a escravidão, no caso os<br />
60 anos de idade, quando se daria a libertação<br />
sem indenização ao proprietário; e a perda paulatina<br />
de valor do escravo de acordo com os<br />
anos de idade, de modo que, até 1898, se extinguiria<br />
a escravidão, mesmo com os últimos escravos<br />
estando com cerca de 30 anos. Para<br />
tanto, propõe reforçar o Fundo de Emancipação<br />
e acelerar os mecanismos para incentivar<br />
o dono de escravos a alforriá-los. Agrega, como<br />
veremos, uma série de mecanismos para obrigar<br />
o escravo liberto a continuar a trabalhar no<br />
local onde antes trabalhava ou nas suas cercanias.<br />
Não é aprovado o projeto, em especial por<br />
conta da não indenização do escravo sexagenário<br />
libertado.<br />
Mas o que nos interessa é entender o raciocínio<br />
e a estratégia de Rui Barbosa. São os seguintes<br />
os pontos que queremos destacar:<br />
1. A sua argumentação sobre a necessidade<br />
da Reforma:<br />
Não adianta opor um nome (socialismo) à reforma.<br />
A iniqüidade do cativeiro, uma vez tocada,<br />
não se sustenta mais - os alicerces vacilam. Para<br />
que não desabe o edifício, o meio de agüentá-lo<br />
temporariamente será aliviá-lo, com prudência e<br />
oportunidade, da carga que ameaça desabar.<br />
Melhores amigos... são os promotores da reforma<br />
que os pregadores da imobilidade. A imobilidade<br />
é a ruína, a reforma é a transição, não sem<br />
contratempos e dissabores, mas ao menos sem<br />
catástrofes, misérias e desmoronamentos. (p.717)<br />
No entanto, reafirma, a estratégia é prudente,<br />
cuidadosa:<br />
Queremos discutir a escravidão como um fato<br />
passageiro, a cuja supressão radical e instantânea<br />
não nos atrevemos, por considerações de<br />
prudência, de economia política, de ordem social.<br />
(...) No entanto, a reação chama de roubo o que<br />
é prudência. A resistência atiça o incêndio. (...)<br />
Cabe ao governo tomar a sí o problema e por<br />
termo à ansiedade de todos. Esperar é prudente,<br />
contanto que se espere alguma coisa. Esperar<br />
por esperar... Não adianta esperar a anuência<br />
geral de todos os proprietários. (p. 780; 781; 789)<br />
2. Outro bloco de argumentação, neste processo<br />
de convencimento da necessidade de<br />
encontrar o caminho para a “reforma com prudência,<br />
sem catástrofes”, é a demonstração<br />
de que não há riscos, não há perigo na extinção<br />
da escravidão. Nem do ponto de vista econômico<br />
– porque a implantação do trabalho livre<br />
daria conta da necessidade de mão-de-obra, do<br />
mesmo modo como se havia passado em todo<br />
o mundo, assim como pela tomada de medidas<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />
35
A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />
complementares, desde a imigração às medidas<br />
de coerção para o trabalho.<br />
Alinha, então, caso a caso a situação dos<br />
lugares onde já havia se dado a Abolição, demonstrando<br />
quais as medidas tomadas para que<br />
não houvesse desamparo à lavoura. Para combater<br />
o medo ao final da escravidão, Rui o discute<br />
tanto do ponto de vista econômico como<br />
do ponto de vista físico – o medo do grande<br />
desastre ao estilo do Haiti.<br />
Analisa, primeiro, a situação das colônias<br />
inglesas do Atlântico. Segundo diz, as mesmas<br />
já se encontravam em decadência acelerada<br />
desde o final do século XVIII. Entre 1780 e<br />
1787 teriam morrido 15.000 negros por deficiência<br />
de alimentação. Enumera as diversas revoltas<br />
havidas, e as dificuldades dos diversos<br />
modelos de abolição experimentados.<br />
Estabelecida a ‘aprendizagem’ (libertação com cláusula<br />
de prestação de serviços para que se faça a<br />
aprendizagem da vida livre) cujos defeitos são<br />
notórios, necessário acautelar a passagem dessa<br />
meia servidão para a liberdade comum: a repressão<br />
à vadiagem não se deu – portanto, como era<br />
de esperar, ela aconteceu em grande escala. (...) A<br />
Abolição de 1833 foi lacunosa (desgraçadíssima);<br />
não obrigava os negros ao trabalho, no momento<br />
em que se acabaram as medidas de coerção aconteceram<br />
a depauperação colonial e o divórcio entre<br />
libertos e trabalho. No entanto, em 1844, os<br />
negros voltam ao trabalho. (p.757)<br />
Alinha como causas para a decadência da<br />
Jamaica: a) administração incapaz das autoridades<br />
coloniais; b) desídia e indolência dos grandes<br />
proprietários ausentes; c) transição pelo sistema<br />
de aprendizagem; d) reação ininteligente<br />
(sic) e cega da grande propriedade: os lavradores<br />
repeliam, por todos os meios de resistência<br />
– salvo só a insurreição declarada – todas as<br />
tentativas de melhorar as condições do Liberto.<br />
Analisa em seguida a situação de Cuba, dos<br />
EEUU e das Colônias Francesas. De Cuba,<br />
afirma que as dificuldades financeiras vieram<br />
da guerra de tarifas com os EEUU, além da<br />
influência das reações revolucionárias suscitadas.<br />
Nos EEUU, busca mostrar como, 20 anos<br />
após o fim da Guerra, melhora a vida do negro.<br />
Entre 1865 e 1870, o Freedman’s Bureau criou<br />
4.239 escolas no Sul, com 247.333 alunos. Em<br />
1881, já seriam 17.816 escolas, com 839.938<br />
alunos, destes 823.945 no ensino primário. Além<br />
disso, aumentou a população de cor, retomando<br />
os índices de crescimento da população do Censo<br />
de 1800 e 1810. Por fim, a colheita de algodão,<br />
nos próprios estados do Sul, a partir de 1870<br />
retoma os índices de 1861 e logo o supera: em<br />
1883, quase o dobro.<br />
Segundo Rui Barbosa, seria melhor a situação<br />
não fosse a barbárie da perseguição dos<br />
negros após a guerra civil, que provocou a emigração<br />
para o Norte. Apresenta os números da<br />
mortandade de negros no Sul, entre 1866 e 1874:<br />
Nova Orleans, 3.500 negros mortos por motivos<br />
políticos. Mutilações e homicídios, mais de<br />
1.000 em três meses. “Assombra a vitalidade e<br />
a energia dessa população trucidada, em quem<br />
a violência não conseguiu arrancar a confiança<br />
na liberdade, a moralidade e o amor ao trabalho.”<br />
(p.764).<br />
Discute, por fim, a situação das colônias<br />
francesas onde, para ele, a deserção dos libertos<br />
foi obra dos antigos senhores. Turbado na<br />
posse, o branco pode tornar-se obstáculo à nova<br />
situação. E aí chega ao ponto que nos parece<br />
central de todo o documento. Para ele:<br />
As colônias francesas atravessaram alguns anos<br />
difíceis. Dessa provação, porém, a responsabilidade<br />
cabe, na sua maior parte, ao modo irrefletido<br />
e precipitado como se operou a Reforma. (...)<br />
Entre vários atos de generosa temeridade, que<br />
contribuíram preponderantemente para as desordens<br />
econômicas do quinquênio imediato à<br />
emancipação, bastaria apresentar o decreto que<br />
fez do escravo, ao mesmo tempo, homem livre e<br />
eleitor, estendendo-lhe o benefício do sufrágio<br />
universal. Sem nenhuma consciência dos deveres<br />
da vida cívica, as massas libertas foram envolvidas<br />
na agitação política, incendiada então<br />
pelas influências revolucionárias de 1848. Os frutos<br />
dessa imprudência resumiu-os uma autoridade<br />
de primeira nota nessas palavras: «Não foi<br />
a liberdade que perturbou a ordem: foi o escrutínio<br />
que ermou as oficinas, armou os partidos,<br />
ensangüentou as povoações». Como a Reforma<br />
foi instantânea, sem indenização, os proprietários<br />
se viram sem condição de organizar o trabalho<br />
livre. Entretanto, ainda assim, a crise das<br />
colônias francesas é reflexo da crise da metrópole.<br />
(BARBOSA, <strong>19</strong>88, p. 759 - grifos nossos).<br />
Ou seja: na sua opinião, o liberto não poderia<br />
nem deveria ser guindado, de imediato, a<br />
36 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003
Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />
condição de eleitor. Era necessário um tempo<br />
de preparação para o voto, como disse no discurso<br />
que excluía os analfabetos da qualificação<br />
de eleitor. Conhecendo, como conhecia, a<br />
condição de analfabetismo no Brasil e sabendo,<br />
com clareza quem eram os analfabetos, a<br />
sua exclusão era, ao mesmo tempo, a exclusão<br />
do pobre e do liberto – já que aos escravos era<br />
vedada a escolarização. O Pós-abolição demandava<br />
garantias da ordem. Em seu projeto, apresenta<br />
as razões pelas quais o Brasil estaria em<br />
melhores condições que todos os demais para<br />
fazer a sua abolição gradual, sem traumas. Para<br />
tanto, propõe a obrigação do trabalho e um<br />
qüinqüênio de domicílio forçado. “Só duas<br />
faculdades se recusam ao liberto: por cinco anos,<br />
residir em outro município; em qualquer tempo,<br />
a vagabundagem” (BARBOSA, <strong>19</strong>88, p.767).<br />
A finalidade destas cláusulas, para ele, seria<br />
educativa, formativa para a liberdade, “proscrevendo<br />
a liberdade da preguiça”. Aí se estabelece,<br />
ou melhor, se reforça – porque já existia<br />
essa legislação de repressão à vadiagem na Lei<br />
do Ventre Livre – o controle sobre o direito de<br />
ir e vir dos negros e o seu direito ao não trabalho.<br />
Em nenhum outro ponto do parecer ou do<br />
projeto fala da questão da educação ou da cidadania<br />
ativa; os libertos são libertos. Nenhuma<br />
proposta de educação em massa, apesar<br />
dos elogios à situação dos EEUU. Silêncio absoluto<br />
sobre o direito ao voto, tão claramente<br />
explicitado por Nabuco. Nada de Reforma da<br />
Agricultura, como propõe este último. A educação<br />
era para as crianças. Os adultos, se davam<br />
valor ao voto, buscariam por si próprios os<br />
meios de aprender a ler e a escrever para se<br />
tornarem eleitores. Os analfabetos já estavam<br />
excluídos da cidadania.<br />
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Em suma, para tornar-se cidadão, faltava<br />
ao ex-escravo o “batismo” da instrução – garantia<br />
da sua entrada na civilização letrada,<br />
escrita, ocidental, como também passaporte<br />
para a brasilidade. A intenção de excluir os<br />
analfabetos – bem como a consciência de<br />
quem eram eles – eram claras em Rui Barbosa.<br />
Tem também clareza da tarefa gigantesca<br />
que representava “batizar” a tantos pagãos da<br />
civilização – falara até em velocidade – celeridade<br />
de milésimos por anos. O que talvez não<br />
esperasse é que o modelo federalista e municipalista<br />
por ele mesmo apregoado como forma<br />
de organização do Estado brasileiro acabasse<br />
por protelar tanto a implantação do ensino<br />
obrigatório, durante toda a República Velha.<br />
A consciência da educação como direito<br />
de todos e dever do Estado só vai se tornar<br />
mais forte na década de 20 e, em especial, na<br />
década de 30. Só a partir daí o acesso à escola<br />
se vai dando mais maciçamente, mesmo<br />
assim com diferenças marcadas pelas diferenças<br />
regionais decorrentes da completa inexistência<br />
de uma ação equalizadora por parte do<br />
governo central.<br />
Os resultados da exclusão dos analfabetos<br />
do direito ao voto fizeram da Republica Velha<br />
uma Republica em que votavam uma pequena<br />
minoria. Em 1881, no ano da aprovação da Lei<br />
Saraiva, contrariamente aos cálculos de Rui<br />
Barbosa, votavam 145.296 pessoas, numa população<br />
de 11.973.000 – ou seja, 1,2% . Com<br />
a Proclamação da República, retirada a exigência<br />
do censo pecuniário, o número de eleitores<br />
continuou muito pequeno. Calcula-se que,<br />
em <strong>19</strong>08, o porcentagem de eleitores na população<br />
total era da ordem de 4%. Na Bahia,<br />
este percentual era de apenas 3,54%, segundo<br />
Mapa Estatístico elaborado no Governo de<br />
Araújo Pinho. Como o voto não era obrigatório,<br />
o número de votantes era ainda menor:<br />
calcula-se que, até <strong>19</strong>30, os votantes foram,<br />
em média, 2,6% da população total. Apenas<br />
em <strong>19</strong>34 as mulheres adquirem direito ao voto,<br />
caindo a idade mínima para 18 anos e tornando-se<br />
o voto secreto e obrigatório. Continuouse,<br />
no entanto, a excluir os analfabetos. Assim,<br />
o crescimento, daí em diante, do número<br />
de eleitores este condicionado ao crescimento<br />
da alfabetização na população adulta. Apenas<br />
em <strong>19</strong>85 se facultou o voto ao analfabeto.<br />
É o seguinte o crescimento do eleitorado no<br />
Brasil, entre 1881 e <strong>19</strong>82 (Tabela 1).<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />
37
A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />
TABELA 1 – Crescimento do eleitorado no<br />
Brasil – percentual sobre o total da população.<br />
Brasil, 1891-<strong>19</strong>82.<br />
TABELA 2 - Percentual de eleitores sobre a<br />
população brasileira nas eleições para presidente<br />
da República. Brasil, 1894-<strong>19</strong>60<br />
Ano<br />
Percentagem<br />
Ano Presidente eleito %<br />
1881 1,21<br />
<strong>19</strong>08 4,77<br />
<strong>19</strong>12 5,57<br />
<strong>19</strong>33 4,11<br />
<strong>19</strong>34 1 7,30<br />
<strong>19</strong>45 16,0<br />
<strong>19</strong>50 22,0<br />
<strong>19</strong>55 25,2<br />
<strong>19</strong>60 2 21,9<br />
<strong>19</strong>64 24,7<br />
<strong>19</strong>66 26,9<br />
<strong>19</strong>69 28,4<br />
<strong>19</strong>74 34,3<br />
<strong>19</strong>78 39,5<br />
<strong>19</strong>82 49,0<br />
1<br />
Entrada das mulheres e dos jovens entre 18 e 21 anos<br />
2<br />
Nova lista retira títulos caducos e falsos<br />
Fonte: FAUSTO, Boris. Historia Geral da Civilização<br />
Brasileira, São Paulo: Difel, <strong>19</strong>77; IBGE - Anuários Estatísticos<br />
<strong>19</strong>36, <strong>19</strong>37, <strong>19</strong>50; IBGE - Brasil em números,<br />
<strong>19</strong>60-<strong>19</strong>66; PEREIRA, Raimundo. As Eleições no Brasil<br />
pós-64, Editorial Global, <strong>19</strong>84. Os dados de <strong>19</strong>82 são do<br />
TSE. Todos os dados são retirados de CARTA & PEREI-<br />
RA. Retratos do Brasil, <strong>19</strong>84/<strong>19</strong>85.<br />
Considerado o número de votantes para Presidente<br />
da República, foram os seguintes os percentuais<br />
de participação alcançados (Tabela 2).<br />
Entre <strong>19</strong>60 e <strong>19</strong>90 não houve eleição direta<br />
para Presidente da República. Para a eleição<br />
de governador de estado, em <strong>19</strong>86, estiveram<br />
inscritos 69.166.810 eleitores em todo Brasil, já<br />
então com uma população total aproximada de<br />
120.000.000 – portanto, pouco mais de 57% da<br />
população tinha direito ao voto. 18<br />
Estes dados nos permitem acompanhar o<br />
processo lento de inclusão na cidadania ativa,<br />
no Brasil após a República, pela utilização do<br />
critério de alfabetização como instrumento de<br />
qualificação do cidadão. Teria havido um sucesso<br />
da estratégia de inclusão lenta, controlada,<br />
ou um insucesso da política de ampliação<br />
das oportunidades educacionais? Que contin-<br />
1894 Prudente de Morais 2,2<br />
1898 Campos Sales 2,7<br />
<strong>19</strong>02 Rodrigues Alves 3,4<br />
<strong>19</strong>06 Afonso Pena 1,4<br />
<strong>19</strong>10 Hermes da Fonseca 3,2<br />
<strong>19</strong>14 Venceslau Bras 2,4<br />
<strong>19</strong><strong>19</strong> Epitácio Pessoa 1,5<br />
<strong>19</strong>22 Artur Bernardes 2,9<br />
<strong>19</strong>26 Washington Luís 2,3<br />
<strong>19</strong>30 Júlio Prestes 5,7<br />
<strong>19</strong>45 E.G. Dutra 13,4<br />
<strong>19</strong>50 Getúlio Vargas 15,9<br />
<strong>19</strong>60 Jânio Quadros 17,8<br />
Fonte: FAUSTO, Boris. Historia Geral da Civilização<br />
Brasileira, São Paulo: Difel, <strong>19</strong>77; IBGE - Anuários Estatísticos<br />
<strong>19</strong>36, <strong>19</strong>37, <strong>19</strong>50; IBGE - Brasil em números,<br />
<strong>19</strong>60-<strong>19</strong>66; PEREIRA, Raimundo. As Eleições no Brasil<br />
pós-64, Editorial Global, <strong>19</strong>84. Os dados de <strong>19</strong>82 são do<br />
TSE. Todos os dados são retirados de CARTA & PEREI-<br />
RA. Retratos do Brasil, <strong>19</strong>84/<strong>19</strong>85.<br />
gentes da população tiveram mais dificuldade<br />
para alcançar a cultura letrada e, por isso, ficaram<br />
à margem do processo político eleitoral?<br />
A análise de dados estatísticos referentes<br />
às matrículas no ensino primário, na Bahia,<br />
mostra que, embora nosso Estado declarasse<br />
um direito de todos à educação e, até, a<br />
obrigatoriedade do ensino primário na Constituição<br />
de 1891, a forma de colocar em prática<br />
este direito e obrigatoriedade se viu limitada:<br />
a) pela municipalização dos serviços educacionais<br />
(levada a efeito desde 1895 até <strong>19</strong>25), fi-<br />
18<br />
Sendo 3.131.415 na região Norte, 17.742.498 no Nordeste,<br />
32.156.237 no Sudeste, 11.601.743 no Sul e<br />
4.543.917 no Centro Oeste. IBGE, Estatísticas Históricas,<br />
Resultados Eleitorais, p. 629-642.<br />
38 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003
Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />
TABELA 3 - Percentagem de alfabetizados segundo a cor de pele. Brasil, São Paulo e Bahia nos<br />
censos em que é estudada. Cálculos a partir da população de 5 anos e mais. Brasil, 1890-<strong>19</strong>80.<br />
* A partir de cálculos nossos<br />
Fonte: IBGE – Censos demográficos.<br />
cando a ação estadual limitada a uma função<br />
supletiva – ao Estado cabia a implantação e<br />
manutenção de duas escolas por município, sendo<br />
uma para cada sexo (Artigo 109 da Constituição<br />
Estadual de 1891 e Regulamento da Instrução<br />
pública Lei complementar de 1895);<br />
b) pelos efeitos da política federalista colocada<br />
em prática a partir da Proclamação da República<br />
– que tanto provocou uma concentração de<br />
recursos nos Estados cuja economia se apresentava<br />
mais dinâmica, como, em conseqüência,<br />
minimizava um papel redistributivo ou equalizador<br />
do Governo Central, mesmo no que diz respeito<br />
à oferta de educação primária.<br />
Se é possível afirmar, por um lado, que a<br />
inclusão na cidadania dependeu das políticas<br />
educacionais e da maior ou menor capacidade<br />
de gastos de cada Estado brasileiro, quais, no<br />
final das contas, foram os que sofreram os efeitos<br />
das políticas educacionais e de concentração<br />
da riqueza? A análise, a partir dos dados<br />
dos censos demográficos, do crescimento dos<br />
índices de alfabetização segundo a cor da pele<br />
nos permite afirmar que foram os negros, em<br />
São Paulo como na Bahia, assim como no conjunto<br />
do Brasil (Tabela 3).<br />
Como se vê, são os pretos e os mestiços<br />
aqueles que, sofrendo mais fortemente o efeito<br />
das desigualdades regionais e da inexistência<br />
de políticas nacionais equalizadoras na área de<br />
educação, têm menor acesso à alfabetização.<br />
Deste modo, a adoção da condição de alfabetizado<br />
como critério para ingresso à cidadania<br />
ativa, para o acesso ao voto, implicou também<br />
no estabelecimento de um sistema de controle<br />
dos negros e de seu ingresso à comunhão brasileira,<br />
nas palavras de Joaquim Nabuco quando<br />
da discussão da Lei Áurea no Parlamento<br />
Brasileiro. Mais que tudo, este parece ter sido<br />
o álveo, o caminho procurado por Rui Barbosa,<br />
para que a garantia da liberdade não se confundisse<br />
com a aquisição da igualdade civil,<br />
permitindo que a transição da escravidão para<br />
a vida livre se fizesse sem conflitos, sem sustos,<br />
de forma segura. Para os senhores.<br />
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39
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Recebido em 07.08.02<br />
Aprovado em 02.08.03<br />
40 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003
Edivaldo Machado Boaventura<br />
ESTUDOS AFRICANOS NA ESCOLA BAIANA:<br />
RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA<br />
Edivaldo Machado Boaventura *<br />
RESUMO<br />
O artigo examina a criação da disciplina Introdução aos Estudos Africanos<br />
no ensino fundamental e médio, nos anos oitenta, por proposta do<br />
Centro de Estudos Afro-Orientais e do Conselho das Entidades Negras<br />
da Bahia. O relato inclui a programação dos cursos de especialização e<br />
extensão para formar professores para a disciplina, antecedente da Lei<br />
Nº 10.639/2003 que tornou obrigatório o ensino da História e da Cultura<br />
Afro-Brasileira.<br />
Palavras-chave: Educação Baiana – Estudos Africanos – Entidades<br />
Negras<br />
ABSTRACT<br />
AFRICAN STUDIES AT THE BAHIAN SCHOOL: ACCOUNT<br />
OF AN EXPERIENCE<br />
The article examines the creation of the subject Introduction to African<br />
Studies at elementary and high school, in the eighties, proposed by the<br />
Center of Afro-oriental studies and the Board of the Afro-descendant<br />
Entities of Bahia. The account includes the program of the specialization<br />
and extension courses for training teachers for the subject, prior to Law<br />
N. 10.639/2003, which made mandatory the teaching of History and<br />
Afro-Brazilian Culture.<br />
Key words: Bahian Education – African Studies – Afro-descendant<br />
Entities<br />
No seminário promovido pelo Mestrado em<br />
Educação e Contemporaneidade da Universidade<br />
do Estado da Bahia (UNEB), de 28 a 30<br />
de maio de 2003, sobre experiências educativas<br />
com a cultura afro-brasileira, relatamos a implantação<br />
dos Estudos Africanos na escola fundamental<br />
média baiana, ocorrida nos anos oi-<br />
tenta. Esse nosso relato foi embasado na assertiva<br />
de que a educação estaria comprometida<br />
se não estivesse assentada na realidade histórico-cultural<br />
da sociedade a que se destina. Firmada<br />
nesta convicção, a Secretaria de Educação<br />
e Cultura do Estado da Bahia, gestão <strong>19</strong>83-<br />
<strong>19</strong>87, instituiu a disciplina Introdução aos Estu-<br />
*<br />
Docente livre e Doutor em Direito; Mestre e Ph.D. em Administração Educacional; Professor da Faculdade<br />
de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Salvador (UNIFACS). Entre suas<br />
publicações podem ser citados os livros: O Parque de Canudos (<strong>19</strong>97); UFBA: trajetória de uma universidade<br />
<strong>19</strong>46-<strong>19</strong>96 (<strong>19</strong>99); O território da palavra (2001). Endereço para correspondência: Rua Dr. José<br />
Carlos, 89 – Edf. Parque das Mangueiras, apt. 801, Acupe de Brotas – 40290.040 Salvador-BA. E-mail:<br />
boaventura@edivaldo.pro.br<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003<br />
41
Estudos africanos na escola baiana: relato de uma experiência<br />
dos Africanos, precedida do Curso de Especialização<br />
em Estudos da História e das Culturas<br />
Africanas para habilitar docentes no ensino<br />
dessa matéria. Desenvolvemos uma iniciativa<br />
pioneira e condizente com as tradições afrobaianas.<br />
A Secretaria foi desafiada por segmentos<br />
expressivos de instituições vinculadas à cultura<br />
negra. A criação da disciplina não deixou de<br />
ser uma resposta política às diligências do Centro<br />
de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade<br />
Federal da Bahia (UFBA), que solicitou<br />
ao Conselho Estadual de Educação da<br />
Bahia (CEE/BA), em 8 de agosto de <strong>19</strong>83, a<br />
sua inclusão nos currículos do ensino fundamental<br />
e médio. Nesse mesmo sentido, agiram<br />
as entidades negras de Salvador e do Estado<br />
da Bahia solicitando a inclusão da matéria na<br />
proposta curricular. Ambos os requerimentos<br />
fundamentaram-se nas raízes históricas, nas<br />
relações entre Brasil e África, no intercâmbio<br />
com vistas ao crescimento dos estudos afrobrasileiros,<br />
na necessidade de resguardar a memória<br />
do País e, em especial, da Bahia, na caracterização<br />
da identidade e da diferença do<br />
povo e da cultura baiana.<br />
Ao relatar essa experiência, vinte anos decorridos,<br />
como ex-secretário de Educação e<br />
Cultura do Estado da Bahia que homologou os<br />
atos e liderou a iniciativa, não é despercebido<br />
ressaltar as ricas e plúrimas manifestações dos<br />
afro-descendentes. A institucionalização da disciplina<br />
visou aproximar a escola pública, oficial,<br />
formal e regular, do seu envolvente contexto<br />
cultural. O objetivo da Secretaria de Educação<br />
era eminentemente pedagógico, precisamente,<br />
conscientizar-se do passado e das perspectivas<br />
do futuro recepcionando o portentoso background<br />
africano para formar pessoas mais ajustadas à<br />
sua cultura. Particularmente, para a Bahia o que<br />
interessa sobremodo é poder contar, pedagogicamente,<br />
com expressivo contingente negro que<br />
tanto marca as nossas manifestações religiosas<br />
e sociais.<br />
Encerramos a nossa participação no Seminário<br />
expondo o plano cronológico do processo<br />
de implantação. Primeiramente o CEE/BA recebeu,<br />
analisou e aprovou a inclusão da disciplina,<br />
conforme parecer do conselheiro monsenhor<br />
José Hamilton Almeida Barros. Ato contínuo,<br />
o secretário dirigiu-se ao Conselho das<br />
Entidades Negras da Bahia, comunicando a decisão<br />
do colegiado da Educação. Em segundo<br />
lugar, por sugestão do grupo de professores<br />
participantes, criaram-se a Assessoria de Estudos<br />
Africanos, junto a gabinete do secretário, e<br />
o Centro de Estudos Afro-Baianos, na UNEB.<br />
Uma etapa decisiva constituiu-se na realização<br />
do Curso Pós-Graduação em Especialização<br />
de Introdução aos Estudos de História e<br />
Culturas. Os documentos reunidos para o presente<br />
relato demonstram momentos significativos<br />
da inovação. Destacamos duas partes: em<br />
um primeiro momento, resumiremos a proposta<br />
de inclusão da disciplina e, em seguida, o Curso<br />
de Especialização voltado à formação de professores<br />
a fim de ministra-la.<br />
1 - PROPOSTA DE INCLUSÃO DA DIS-<br />
CIPLINA<br />
1.1 - As proposições do Centro de<br />
Estudos Afro-Orientais e das entidades<br />
negras<br />
O Conselho Estadual de Educação da Bahia<br />
(CEE/BA) recebeu a solicitação de inclusão da<br />
disciplina em 1º de agosto de <strong>19</strong>83, encaminhada<br />
pela diretora do Centro de Estudos Afro-<br />
Orientais da Universidade Federal da Bahia<br />
(CEAO), professora Yeda A. Pessoa de Castro.<br />
A direção do CEAO/UFBA tomou essa iniciativa<br />
como órgão executor do Programa de<br />
Cooperação Cultural Brasil-África argüindo as<br />
seguintes considerações:<br />
a) as raízes históricas do Brasil e especificamente<br />
da Bahia;<br />
b) a evolução histórica e as características étnico-demográficas<br />
da sociedade baiana;<br />
c) a densidade de componentes culturais africanos<br />
na composição da cultura baiana;<br />
d) a permeabilidade étnica e cultural da estrutura<br />
social da Bahia;<br />
e) o atual estágio das relações político-econômicas<br />
e culturais entre o Brasil e a África;<br />
f) as dimensões contemporâneas das relações<br />
interétnicas da cultura baiana;<br />
42 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003
Edivaldo Machado Boaventura<br />
g) a política da União desenvolvida através de<br />
programas de intercâmbio cultural, visando<br />
ao crescimento dos estudos afro-brasileiros;<br />
h) a necessidade de efetivamente resguardar a<br />
memória do País e do Estado da Bahia e firmar<br />
a caracterização da identidade do povo e da<br />
cultura baiana;<br />
i) a receptividade do professorado de 1º e 2º<br />
graus (ensino fundamental e médio) e do público<br />
em geral ao curso ministrado pelo Centro<br />
de Estudos Afro-Orientais, em convênio<br />
com a Fundação Ford, de “Introdução aos<br />
Estudos da História e das Culturas Africanas”,<br />
cabendo salientar que foi o primeiro curso<br />
desse teor oferecido no Brasil;<br />
j) a existência de pessoal habilitado no magistério<br />
público de 1º e 2º graus para desenvolver<br />
atividades de ensino e pesquisa no campo<br />
dos estudos africanos; e<br />
k) a existência de um convênio celebrado, em<br />
<strong>19</strong>74, entre a União, o Estado da Bahia, a Universidade<br />
Federal da Bahia e o Município de<br />
Salvador, para a execução de um Programa de<br />
Cooperação Cultural entre o Brasil e os Países<br />
Africanos para o Desenvolvimento de Estudos<br />
Afro-Brasileiros (CEAO, ofício N. 183,<br />
de 1º de agosto de <strong>19</strong>83).<br />
Por sua vez, referendando o pedido da direção<br />
do CEAO/UFBA, as entidades negras de<br />
Salvador e do Estado da Bahia reforçaram a<br />
inclusão da disciplina no currículo do sistema<br />
de ensino nos seguintes termos:<br />
1. a população de Salvador é constituída por<br />
um contingente majoritariamente de descendência<br />
africana;<br />
2. o Brasil é uma sociedade pluricultural, por isso<br />
é necessário que seja estudada nas escolas a<br />
História das três constituintes da nação brasileira;<br />
3. a ausência do estudo da História e da Cultura<br />
negra, nos currículos escolares, concorre para<br />
a falta de identidade cultural e conseqüentemente,<br />
para a inferiorização do povo negro e<br />
de seus descendentes no Brasil;<br />
4. existe grande receptividade e expectativa da<br />
comunidade a todos os cursos sobre Estudos<br />
Africanos que são oferecidos por iniciativa<br />
dos Movimentos Negros e da Universidade<br />
através do CEAO – Centro de Estudos<br />
Afro-Orientais da Universidade Federal da<br />
Bahia; e<br />
5. as relações político-econômica-culturais entre<br />
o Brasil e a África pressupõem um conhecimento<br />
mútuo da História e Cultura entre as<br />
nações brasileira e africana (OFÍCIO das entidades<br />
negras, 10 de março de <strong>19</strong>84).<br />
As entidades negras fazem referência ao ofício<br />
enviado pelo CEAO ao Conselho de Educação.<br />
Assinaram o documento as seguintes entidades<br />
associações: Sociedade Protetora dos<br />
Desvalidos; Movimento Negro Unificado-BA;<br />
Adé Dudo; Versos Negros; Grupo de Estudos<br />
Afro-Brasileiros (GEAB); Grupo Cultural “Os<br />
Negões”; Ilê-Aiyê; Olodum;Urunmilá;Grupo<br />
Negro do Garcia; Sociedade São Jorge do Engenho<br />
Velho; Núcleo Cultural “Niger-Okan”;<br />
Legião Rasta; Associação Centro Operário da<br />
Bahia. Ambas as reivindicações expressas nesses<br />
dois documentos foram encaminhadas à<br />
apreciação do Conselho Estadual de Educação,<br />
instância deliberativa e normativa competente<br />
para decidir sobre a recepção da nova matéria<br />
pedagógica.<br />
1.2 - Apreciação e aprovação dos<br />
requerimentos pelo Conselho Estadual<br />
de Educação da Bahia<br />
O Conselho apreciou a proposta, tendo o<br />
plenário aprovado a solicitação em 20 de maio<br />
de <strong>19</strong>85, conforme parecer do conselheiro monsenhor<br />
José Hamilton Almeida Barros. Participou<br />
da transmissão a Comissão de Currículos e<br />
Experiências Pedagógicas tendo o CEAO apresentado<br />
documentação suplementar (Processo<br />
CEE/BA Nº 253/<strong>19</strong>89).<br />
Analisando o parecer CEE/BA Nº 089/<strong>19</strong>85,<br />
constata-se que houve dupla fundamentação legal<br />
e cultural. A Lei 5692/71 que, modificada no<br />
que competente pela Lei 7044/82, regula os vários<br />
sistemas de ensino, define no caput do Art. 4º:<br />
Os currículos do ensino de 1º e 2º graus terão um<br />
núcleo comum, obrigatório em âmbito nacional e<br />
uma parte diversificada para atender conforme<br />
as necessidades e possibilidades concretas, às<br />
peculiaridades locais, aos planos dos estabelecimentos<br />
e às diferenças individuais dos alunos.<br />
Em seguida, no art. 5º se declara:<br />
a) as matérias relativas ao núcleo comum de cada<br />
grau de ensino serão fixadas pelo Conselho<br />
Federal de Educação;<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003<br />
43
Estudos africanos na escola baiana: relato de uma experiência<br />
b) as matérias que comporão a parte diversificada<br />
do currículo de cada estabelecimento de ensino<br />
serão escolhidas com base em relação<br />
elaborada pelos Conselhos de Educação, para<br />
os respectivos sistemas de ensino; e<br />
c) o estabelecimento de ensino poderá incluir<br />
estudos não decorrentes de matérias relacionadas<br />
de acordo com a alínea anterior.<br />
Assim se constata que a disciplina proposta<br />
pelo CEAO – “Introdução aos Estudos Africanos”<br />
–, como disciplina para a parte diversificada<br />
do currículo, tem absoluto respaldo na lei<br />
em vigor: pode ela compor o elenco de disciplinas<br />
que venham a ser indicadas pelo Conselho<br />
Estadual de Educação, como acréscimo ao que<br />
é prescrito na Resolução CEE-127/<strong>19</strong>72 como<br />
também pode compor os currículos de 1º e 2º<br />
graus das escolas em decorrência de solicitação<br />
feita pelos próprios estabelecimentos de<br />
ensino.<br />
Após o devido enquadramento da disciplina<br />
na parte diversificada do currículo, conforme a<br />
legislação em vigor, o relator aduziu as considerações<br />
de ordem cultural, sintetizando as razões<br />
apresentadas tanto pelo CEAO como pelas<br />
entidades negras:<br />
a) no Brasil, notadamente na Bahia, existe na<br />
história de sua formação étnica como na realidade<br />
atual de sua cultura, a presença<br />
inconteste e plurivalente do negro: o negro é<br />
parte integrante da própria realidade do “ser<br />
homem”;<br />
b) existe, nos diversos setores culturais do País,<br />
considerados aqui os níveis sociais, culturais<br />
e etários, um interesse, cada vez maior pela<br />
compreensão do homem brasileiro e do seu<br />
modo de ser e de agir, desde as suas origens;<br />
c) já existem, dentro dos próprios quadros do<br />
magistério das escolas oficiais de e 1º e 2º<br />
graus, pessoas, não apenas dispostas, mas<br />
também habilitadas pelo próprio CEAO para<br />
ministrarem as aulas da disciplina Introdução<br />
aos Estudos Africanos;<br />
d) a proposta da disciplina a ser oferecida a alunos<br />
das 8ª séries do 1º grau, objetiva oferecer<br />
a tantos alunos, muitos dos quais encontram<br />
na 8ª série do 1º grau, em razão da lastimável<br />
condição educacional do sistema brasileiro,<br />
o ponto final dos seus estudos escolares, uma<br />
oportunidade de melhor entenderem a formação<br />
psicológica, humana, social numa palavra<br />
cultural do povo brasileiro.<br />
A operacionalização deverá ser discutida pelo<br />
órgão competente da SEC, com o órgão supervisor<br />
da disciplina, no caso, o CEAO e as escolas<br />
interessadas na implantação, a fim de que se<br />
faça de maneira gradual, em vista ao objetivo a<br />
ser alcançado (CONSELHO, Parecer, CEE/BA Nº<br />
089/85).<br />
Em face dessa fundamentação, a conclusão<br />
do plenário foi pela inclusão da disciplina,<br />
devendo ser oferecida tanto na escola de primeiro<br />
como na de segundo graus, particular e<br />
pública. A matéria passou a integrar a parte<br />
diversificada dos currículos dos respectivos<br />
graus de ensino, sem necessidade de aprovação<br />
prévia do Conselho de Educação. Eis os<br />
termos da conclusão:<br />
De tudo que se examinou, pode-se concluir que<br />
a introdução nos currículos das escolas do Sistema<br />
Educacional Baiano, da disciplina Introdução<br />
aos Estudos Africanos atende a uma expectativa<br />
de grande parte da população interessada<br />
na compreensão do ser brasileiro e baiano; para<br />
tanto, acresce o fato de que a contribuição do<br />
CEAO, seja na preparação como na assistência<br />
à execução da programação que se pretende, e<br />
que se acha constante do processo, atende perfeitamente<br />
ao que se espera da introdução da<br />
disciplina nas escolas.<br />
Pelo exposto, somos de parecer que não existe<br />
impedimento de ordem legal para que a disciplina<br />
Introdução aos Estudos Africanos possa ser<br />
oferecida, a nível de 1º e 2º graus, por escolas<br />
particulares ou da rede oficial, que assim desejem<br />
fazê-lo. A referida disciplina pode constar<br />
da parte diversificada dos currículos dos supra<br />
citados graus de ensino, sem que dependa de<br />
prévia aprovação por parte deste Conselho<br />
(CONSELHO, parecer CEE/BA, N. 089/85).<br />
1.3 - Implantação da disciplina<br />
Aprovada a inclusão da disciplina, o secretário<br />
de Educação responde ao CEAO e ao<br />
Conselho de Entidades Negras da Bahia e os<br />
convida para a homologação da resolução do<br />
Conselho de Educação. Pela Portaria Nº 6068,<br />
de 25 de abril de <strong>19</strong>85, determina que o então<br />
Departamento de Ensino de 1º e 2º graus<br />
44 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003
Edivaldo Machado Boaventura<br />
(DEPS/SEC) tome providência para incluir a<br />
disciplina na parte diversificada do currículo na<br />
rede estadual de ensino.<br />
Reuniões foram realizadas com as entidades<br />
e os órgãos envolvidos para discutir a implantação<br />
da disciplina, bem assim o curso de<br />
formação de professores. De pronto, o Colégio<br />
Estadual Governador Lomanto Júnior a inseriu<br />
no seu currículo. O clima favorável de aceitação<br />
da inovação fez-se sentir.<br />
Em 20 de março de <strong>19</strong>86 (Portaria Nº 4064,<br />
de <strong>19</strong> de março de <strong>19</strong>86) é criada a Assessoria<br />
de Estudos Africanos, no âmbito do gabinete<br />
do secretário de Educação, composta dos professores<br />
Aracy Santana Santos, Edson Trenzilbo<br />
França, Eugênia Lúcia Vianna Nery do Espírito<br />
Santo, Newton Oliveira Nascimento, Yolanda<br />
Paredella Ferreira da Silva (Portaria Nº 4367,<br />
de 25 de março de <strong>19</strong>86). A professora Eugênia<br />
Lúcia é designada para coordená-la (Portaria<br />
Nº 5402, de 15 de abril de <strong>19</strong>86).<br />
A participação da Universidade do Estado<br />
da Bahia (UNEB) evidencia-se durante todo<br />
esse processo de implantação. Assim, em 15<br />
de maio de <strong>19</strong>86, cria-se o Centro de Estudos<br />
Afro-Baianos (CEAB), na UNEB (Portaria Nº<br />
6894, de 15 de maio de <strong>19</strong>86).<br />
2 - CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO PARA<br />
O ENSINO DE ESTUDOS AFRICANOS<br />
2.1 - Justificativa<br />
Objetivando capacitar professores para o<br />
ensino de nova disciplina, programou-se o Curso<br />
de Especialização de Introdução aos Estudos<br />
de História e de Culturas Africanas.<br />
Dessa maneira, o Centro de Estudos Afro-<br />
Orientais ofereceu, em convênio com a SEC/<br />
UNEB, o curso de Introdução aos Estudos da<br />
História e das Culturas Africanas, visando à<br />
habilitação de docentes da rede estadual de<br />
ensino na disciplina Introdução aos Estudos<br />
Africanos, como fora instituído pelo Conselho<br />
de Educação. O referido curso, a nível de especialização,<br />
foi integrado em 420 horas, com<br />
carga-horária semanal de 18 (dezoito) horasaulas,<br />
no período de maio a dezembro do ano<br />
de <strong>19</strong>86, tendo como pré-requisito a licenciatura<br />
plena na área de Ciências Humanas – História,<br />
Geografia ou Ciências Sociais. É do interesse<br />
da Secretaria que as unidades indicassem<br />
dois docentes com a qualificação exigida,<br />
para efetuarem inscrição no Centro de Estudos<br />
Afro-Orientais.<br />
A receptividade ao curso Introdução aos<br />
Estudos da História e das Culturas Africanas,<br />
ministrado pelo Centro de Estudos Afro-Orientais<br />
em convênio com a Fundação Ford, foi<br />
indicativa da validade de novos oferecimentos<br />
do curso. A experiência foi demonstrativa de<br />
como, por vários caminhos, tem sido buscada a<br />
identidade cultural brasileira.<br />
Por outro lado, a decisão do Conselho Estadual<br />
de Educação, homologada pela Portaria Nº<br />
6068 de 11 de junho de <strong>19</strong>85 pelo Secretário de<br />
Educação e Cultura do Estado incluindo a disciplina<br />
Introdução aos Estudos Africanos na<br />
parte diversificada dos currículos de 1º e 2º<br />
graus da Rede Estadual de Ensino, levou o<br />
CEAO a envidar novos esforços no sentido de<br />
habilitar recursos humanos necessários à efetiva<br />
implementação da disciplina no sistema de<br />
ensino.<br />
Objetivando cumprir seu papel de órgão executor<br />
do Programa de Cooperação Cultural<br />
entre o Brasil e os Países Africanos e para o<br />
Desenvolvimento dos Estudos Afro-Brasileiros<br />
e, ao mesmo tempo, atender as necessidades<br />
da rede escolar estadual na formação de magistério<br />
habilitado para a regência da disciplina<br />
Introdução aos Estudos Africanos, o CEAO<br />
como parte do seu programa de trabalho para o<br />
ano de <strong>19</strong>86 tem como uma de suas prioridades<br />
o oferecimento desse curso de especialização.<br />
2.2 - Objetivos<br />
O curso de Especialização teve como objetivos:<br />
1. fornecer uma visão geral e atualizada dos<br />
povos e países africanos para professores<br />
de 1º e 2º graus carentes desse tipo de informação<br />
por deficiência dos próprios currículos<br />
oficiais;<br />
2. contribuir para uma compreensão global da<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003<br />
45
Estudos africanos na escola baiana: relato de uma experiência<br />
QUADRO 1 - Curso de Especialização<br />
Curso - Introdução aos Estudos da História e das Culturas Africanas<br />
Especificação – Especialização<br />
Objetivo - Habilitar professores da rede estadual de ensino para o exercício da disciplina<br />
Introdução aos Estudos Africanos nas escolas de 1º e 2º graus.<br />
Integralização - 420 horas<br />
– Conteúdos específicos - Antropologia, História, Geografia, 360 horas<br />
– Metodologia e Prática de Ensino, 60 horas.<br />
Módulo - 35 vagas<br />
Clientela - professores da rede estadual de ensino<br />
Requisito - Licenciatura plena na área de Ciências Humanas (25 vagas) - portadores<br />
de diploma de nível superior (10 vagas)<br />
Avaliação - No processo com observância de freqüência e aproveitamento<br />
Periodização - <strong>19</strong>86.1 abril e junho / <strong>19</strong>86.2 – julho a dezembro<br />
Descrição - O curso dispôs de três disciplinas de conteúdo específico – Antropologia,<br />
História e Geografia – que obedeceram ao planejamento comum, de modo que o caráter<br />
interdisciplinar permitiu uma compreensão global da temática em estudo.<br />
Complementou a parte específica, a carga-horária de Metodologia e Prática de Ensino<br />
que objetiva, basicamente, a elaboração de programas, material instrucional e propostas<br />
didáticas adequadas à disciplina dos níveis de 1º e 2º graus. Teve como organismos<br />
envolvidos UFBA/CEAO/SEC/UNEB.<br />
Fonte: BOAVENTURA, Edivaldo M. Tempos construtivos. Salvador: Arpuador, <strong>19</strong>87, p.61-72.<br />
dinâmica das culturas negro-aficanas, tendo<br />
em vista o maior entendimento do papel<br />
por elas desempenhado na formação da cultura<br />
brasileira;<br />
3. despertar o interesse da comunidade baiana,<br />
através desses professores do conhecimento<br />
da realidade africana aqui proposta;<br />
4. habilitar esses professores para atender as<br />
necessidades de regência da disciplina Introdução<br />
aos Estudos Africanos incluída nos<br />
currículos das escolas de 1º e 2º graus da<br />
rede estadual de ensino; e<br />
5. contribuir para um efetivo resguardo da<br />
memória do Brasil e da Bahia e, para firmar<br />
a característica da identidade do povo e da<br />
cultura baiana.<br />
2.3 - Caracterização e clientela<br />
Visando ao atendimento aos objetivos propostos,<br />
o CEAO ofereceu dois cursos em níveis<br />
diferenciados de especificação.<br />
Especialização, integralizado em 420 (quatrocentos<br />
e vinte) horas, para a habilitação de<br />
docentes da rede estadual na disciplina Introdução<br />
aos Estudos Africanos. (Vide Quadro 1<br />
– Curso de Especialização).<br />
Extensão, integralizado em 120 (cento e vinte)<br />
horas, destinado à comunidade e enquadrado<br />
nas proposições da Educação Continuada,<br />
com possibilidade de oferecimento de mais de<br />
uma turma no decorrer do ano letivo. (Vide<br />
Quadro 2 – Curso de Extensão).<br />
2.4 - Organismos envolvidos<br />
O termo de convênio celebrado, em <strong>19</strong>74,<br />
para a execução de um programa de Cooperação<br />
Cultural entre o Brasil e os Países Africanos<br />
e para o Desenvolvimento de Estudos Afro-<br />
Brasileiros tem levado o CEAO, como seu órgão<br />
executor, a procurar envolver em suas atividades<br />
todos os organismos signatários. Com<br />
46 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003
Edivaldo Machado Boaventura<br />
QUADRO 2 - Curso de Extensão<br />
Curso - Introdução aos Estudos da História e das Culturas Africanas.<br />
Especificação - Extensão<br />
Objetivos - Atender às solicitações das entidades negras da Bahia, visando à qualificação<br />
de monitores para atuarem em grupos comunitários, associações e “escolas<br />
livres”.<br />
– Contribuir para uma compreensão global da dinâmica das culturas negro-africanos,<br />
tendo em vista o maior entendimento do papel por elas desempenhado na formação da<br />
cultura brasileira.<br />
Integralização - 120 horas<br />
Módulo - 20 vagas<br />
Clientela - entidades negras/comunidade<br />
Critério de avaliação – freqüência<br />
Periodização - Turma 1 – abril/maio / Tuma 2 – junho/agosto / Turma 3 – agosto/<br />
outubro / Turma 4 – outubro/setembro<br />
Descrição – O curso será disposto em três disciplinas de conteúdo específico - Antropologia,<br />
História e Geografia – que obedecem a um planejamento comum de modo que<br />
o caráter interdisciplinar permita uma compreensão global da temática em estudo. Paralelas<br />
aos conteúdos específicos do curso, serão desenvolvidas atividades complementares<br />
sob a forma de seminários, palestras, debates, versando sobre temática relacionada<br />
ao curso ou sugerida, a partir da realidade e dos interesses da clientela.<br />
Recursos<br />
Humanos – O projeto será desenvolvido com a atuação de uma equipe supervisionada<br />
pela direção do CEAO, contando com a participação de elementos dos vários<br />
organismos envolvidos.<br />
Materiais - Além do material de expediente imprescindível às atividades propostas<br />
nesse projeto, cumpre observar, que as dificuldades bibliográficas em relação ao<br />
tema, necessariamente levarão a um esforço de aquisição de material instrucional e<br />
recursos áudio visuais para o êxito do processo ensino-aprendizagem.<br />
Previsão orçamentária - As atividades previstas nesse projeto, (Especialização e<br />
Extensão) implicam em previsão orçamentária no montante de Cr$ 500.000.000 (quinhentos<br />
milhões de cruzeiros), assim distribuídos:<br />
Pagamento de docentes - Cr$ 300.000,000<br />
Material de expediente - Cr$ 100.000,000<br />
Eventuais 25% – Cr$ 100.000,00<br />
Total – Cr$ 500.000,00<br />
Fonte: BOAVENTURA, Edivaldo M. Tempos construtivos. Salvador: Arpuador, <strong>19</strong>87, p.61-72.<br />
relação a esse projeto, a UFBA, através do<br />
CEAO, celebrou termos aditivos com a SEC<br />
através da Universidade do Estado da Bahia e<br />
o Departamento de Educação Continuada. O<br />
CEAO dirigiu-se ao ministro da Cultura solicitando<br />
a complementação financeira (OFÍCIO,<br />
Nº 25, de 28 de janeiro de <strong>19</strong>86).<br />
2.5 - Abertura do curso<br />
Em 12 de maio de <strong>19</strong>86, na aula inaugural<br />
na Universidade do Estado da Bahia, tivemos a<br />
oportunidade de destacar alguns aspectos na<br />
capacitação de professores para o ensino dos<br />
Estudos Africanos (BOAVENTURA, <strong>19</strong>87,<br />
p.61-66). Seguem alguns excertos do pronun-<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003<br />
47
Estudos africanos na escola baiana: relato de uma experiência<br />
ciamento na aula de abertura do Curso de Especialização.<br />
Inicialmente, reconhece-se a exigência do<br />
resgate de valores sócio-culturais negados ou<br />
esquecidos nos caminhos da história de nosso<br />
país, ao tempo em que no trabalho da educação<br />
concretiza-se um passo na configuração de um<br />
Brasil como efetivamente ele é, multirracial e<br />
pluricultural. Multiplicidade que encontramos em<br />
todos os segmentos, mormente na Bahia.<br />
A abertura oficial de um curso de introdução<br />
aos estudos da História e das Culturas Africanas<br />
assinala não uma inovação em termos<br />
pedagógicos, mas, em essência, um indicador<br />
de uma modificação de comportamento e de<br />
mentalidade, que, como sabemos, é uma categoria<br />
cuja mudança demanda um tempo estruturalmente<br />
de longa duração (BRANDÃO,<br />
2002, p. <strong>19</strong>).<br />
Resultam o curso e a disciplina da redução<br />
local e temporal de um processo que para evitar<br />
alongamentos maiores, situaremos a partir<br />
dos anos 20, tendo como alguns pontos de referência<br />
o Renascimento Negro, nos Estados<br />
Unidos, de <strong>19</strong>20 a <strong>19</strong>40, com Dubóis e Hugles<br />
à frente, enfatizando a crença na igualdade entre<br />
as raças e na história do negro. O negro<br />
aceita-se, assume a sua cor negada, busca a<br />
afirmação cultural, moral, física e psíquica. O<br />
médico Price Mars, haitiano, reconhece oficialmente,<br />
nas origens negras e africanas da<br />
cultura do Haiti, uma maneira de devolver a memória<br />
ao povo negro. Os movimentos da<br />
negritude na América e na Europa despertaram<br />
a memória e a dimensão histórica tiradas<br />
aos negros.<br />
A revista Étudien Noir, criada na França,<br />
congregava estudantes negros em Paris sem<br />
distinção de origem, apontando como meio de<br />
libertação do negro a volta às raízes africanas.<br />
Destacam-se Aimé Césaire, martiniquense,<br />
Leon Daamas, guianense, e o próprio Leopold<br />
Sedar Senghor, senegalês.<br />
Esses e outros movimentos referidos puderam<br />
determinar os objetivos da negritude: a) o<br />
desafio cultural do mundo negro, em uma palavra,<br />
a identidade; b) o protesto contra a ordem<br />
colonial; c) a emancipação política dos povos<br />
africanos; d) a construção de uma civilização<br />
do universal, como queria René Maheu, diretor-geral<br />
da Unesco, encontro de todas as outras,<br />
concretas e particulares.<br />
Cheik Anta Diop fala na valorização do histórico,<br />
do lingüístico e do psicológico. Assim,<br />
quer esteja o negro na África ou em diáspora,<br />
precisa sempre do estudo da sua história para<br />
encontrar o passado ancestral e reconquistar o<br />
seu lugar no mundo moderno.<br />
Ainda Aimé Césaire concebe a negritude<br />
como identidade, fidelidade e solidariedade:<br />
identidade, ao assumir-se como negro; fidelidade,<br />
a ligação com a origem ancestral, o conhecimento<br />
da herança africana; e solidariedade<br />
que é a civilização do universal. Insiste o autor<br />
na construção de uma nova sociedade, onde<br />
todos os mortais poderão encontrar o seu lugar.<br />
Para a Bahia, é sumamente significativa a<br />
criação da disciplina na parte diversificada do<br />
currículo das suas escolas. É um ato que consideramos<br />
da maior importância cultural. Ajustase<br />
a educação à cultura. O currículo das escolas<br />
baianas passa a refletir ou a expressar um<br />
dos componentes mais ricos e poderosos do<br />
background da nossa terra.<br />
A Secretaria de Estado da Educação e Cultura<br />
vem, desde o início da nossa gestão, em<br />
<strong>19</strong>83, atuando no sentido de que o pedido de<br />
criação da disciplina sobre os estudos africanos<br />
por várias entidades negras e do Centro de<br />
Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade<br />
Federal da Bahia (UFBA) fosse aceito.<br />
Enfatiza-se, por um lado, o acerto da decisão<br />
do Conselhos de Educação, e por outro, as<br />
medidas que a Secretaria já vem tomando para<br />
operacionalizar esta determinação. Dentre elas,<br />
caberá a Colégios como o Lomanto Júnior, em<br />
Itapuã, Newton Sucupira, em Mussurunga, e<br />
o Duque de Caxias, na Liberdade, tomarem a<br />
iniciativa de fazer constar a disciplina nos seus<br />
currículos.<br />
Os problemas que se colocam são os dos<br />
objetivos, dos conteúdos e das estratégias. Definir<br />
as suas metas talvez seja o problema mais<br />
difícil, pois elas implicam na renovação dentro<br />
do atual currículo, com impacto marcante nos<br />
Estudos Sociais. Talvez seja esse o objetivo<br />
48 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003
Edivaldo Machado Boaventura<br />
maior. A consciência da negritude será o objetivo<br />
mais desejado pelos grupos militantes. A propósito,<br />
Kabengele Munanga (<strong>19</strong>86, p.231) observa<br />
no seu Negritude, usos e sentidos:<br />
É através de educação que a herança social de<br />
um povo é legada ás gerações futuras e inscrita<br />
na história (...) Ora, a maior parte das crianças<br />
está nas ruas. E aquela que tem a oportunidade<br />
de ser acolhida não se salva: a história que lhe<br />
ensinam é outra; os ancestrais africanos são<br />
substituídos por gauleses e francos de cabelos<br />
loiros e olhos azuis; os livros estudados lhe falam<br />
de um mundo totalmente estranho, de neve<br />
e do inverno que viu da história e da geografia<br />
das metrópoles, o mestre e a escola representam<br />
um universo muito diferente daquele que sempre<br />
a circundou.<br />
Criticamente concebida, a disciplina Estudos<br />
Africanos implicará numa revisão da História,<br />
da Geografia, da Organização Social e<br />
Política Brasileira, com base nas revisões e nas<br />
novas dimensões antropológicas.<br />
Quanto ao conteúdo, trabalha-se a História<br />
e Cultura Africanas em torno de três áreas específicas<br />
– Antropologia, História e Geografia.<br />
Trata-se, portanto, de matéria interdisciplinar,<br />
de caráter revisionista e criativo. A História da<br />
África, das relações afro-brasileiras, da diáspora<br />
negra, do emprego da força negra de trabalho<br />
no processo produtivo brasileiro, quer na Colônia,<br />
quer no Império, ou na atualidade, tudo isso<br />
mostrará novas perspectivas que trarão impacto<br />
novo à educação.<br />
Além dos objetivos e conteúdos, há de se<br />
pensar concretamente nas estratégias. Primeiramente,<br />
na sua posição no currículo. Duas alternativas<br />
bem claras se esboçam: uma disciplina<br />
nova, como foi a opção da Bahia, ou conteúdos<br />
afro-brasileiros distribuídos nas atuais<br />
disciplinas da área de Estudos Sociais. Consideramos<br />
que a unidade de conteúdos concentrada<br />
em uma disciplina será como uma cunha<br />
a renovar, a revisar, a reestruturar as demais<br />
disciplinas da área.<br />
Ao concluir a aula inaugural do Curso de<br />
Especialização, resumimos os seguintes pontos:<br />
– São diversos os pontos de vista que encaram<br />
o problema do negro e a educação. O<br />
que se pretende com os Estudos Africanos<br />
é o seu papel pedagógico mais profundo, a<br />
longo prazo, mais formativo do que informativo.<br />
– Criar a disciplina foi um passo. Estabelecer<br />
o curso para preparar os professores foi<br />
outro, tão importante quanto o primeiro.<br />
– A densidade cultural baiana e os pressupostos<br />
em que o processo de conscientização<br />
da negritude foram aqui lançados servem de<br />
base para o curso que ora se inicia.<br />
– Características étnico-demográficas da nossa<br />
sociedade e a força dos elementos culturais<br />
africanos na composição da cultura<br />
baiana fundamentam a nossa decisão.<br />
– É preciso firmar a caracterização da identidade<br />
do povo e da cultura de nosso Estado.<br />
E o presente curso vai ajudar esse longo<br />
processo de afirmação. Não há dúvidas, pois<br />
começamos com a ajuda valiosa do CEAO, da<br />
UNEB, da UFBA e da Secretaria da Educação<br />
e Cultura.<br />
3 - APRECIAÇÃO E CONCLUSÃO<br />
Recorridos vinte anos da tentativa de inclusão<br />
da disciplina Introdução aos Estudos Africanos,<br />
no currículo da escola fundamental e<br />
média baiana, o presidente da República sancionou,<br />
em 9 de janeiro de 2003, a Lei nº 10.639,<br />
que torna obrigatório o ensino da história e da<br />
cultura afro-brasileira nas escolas fundamentais<br />
e médias. Conforme o novo dispositivo legal,<br />
deverão ser contemplados o estudo da história<br />
não somente da África, como também dos<br />
africanos, da luta dos negros no Brasil, bem<br />
assim a cultura afro-brasileira gerada desses<br />
embates, na formação da sociedade nacional,<br />
caracterizadamente, mestiça e tropical. Objetiva,<br />
assim, resgatar a “contribuição do povo negro<br />
nas áreas social, econômica e política pertinentes<br />
à história do Brasil”. Os conteúdos referentes<br />
à história da cultura afro-brasileira serão<br />
ministrados no âmbito de todo o currículo<br />
escolar, em especial, nas áreas de educação<br />
artística e de literatura e história brasileiras<br />
(QUEIROZ, 2002, p.17). Alterando a atual Lei<br />
de Diretrizes e Bases (LDB), passa a vigorar<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003<br />
49
Estudos africanos na escola baiana: relato de uma experiência<br />
acrescida dos artigos 26-A e 79-B. Este determina<br />
que o calendário escolar incluirá o dia 20<br />
de novembro como o Dia Nacional da Consciência<br />
Negra. É um passo, uma conquista e uma<br />
mudança nas relações educacionais que precisam<br />
ser efetivadas em programas, em cursos e<br />
na preparação de professores.<br />
O que poderá ser feito pelo ensino da cultura<br />
negra para a conscientização das pessoas<br />
quanto ao passado e às perspectivas do futuro?<br />
No caso da Bahia, que conta com um contingente<br />
expressivo de negritude, estamos ao lado<br />
de suas manifestações religiosas, educativas e<br />
sociais, considerando que a problemática negra<br />
tem um fundo religioso marcante.<br />
Em plano nacional, inova-se com a inclusão<br />
da história e da cultura afro-brasileira como<br />
matérias por força de lei. Cabem-nos, no âmbito<br />
estadual e municipal, o debate, a discussão, o<br />
planejamento e o preparo de professores para<br />
o ensino da cultura e da história afro-brasileira.<br />
(Anexo: cronologia da disciplina, Eugênia Lúcia<br />
Viana Nery).<br />
Cronologia da disciplina – Eugênia Lúcia<br />
Viana Nery<br />
Cronologia da disciplina Introdução aos<br />
Estudos Africanos no currículo das escolas de<br />
1º e 2º graus do Estado da Bahia.<br />
<strong>19</strong>78 – Movimento Negro Unificado – faz<br />
solicitações ao MEC no sentido da inclusão de<br />
História da África nos currículos de ensino da<br />
escola brasileira.<br />
<strong>19</strong>82 – Centro de Estudos Afro-Orientais em<br />
convênio com a Fundação Ford oferece para<br />
professores de 1º e 2º graus o curso de Introdução<br />
aos Estudos da História e das Culturas Africanas<br />
(primeiro oferecido no Brasil).<br />
<strong>19</strong>83 – Exposições de motivos do Centro de<br />
Estudos Afro-Orientais ao Conselho Estadual<br />
de Educação justificando a solicitação quanto a<br />
incluir a disciplina Introdução aos Estudos Africanos<br />
no currículo de 1º e 2º graus da rede estadual<br />
de ensino.<br />
<strong>19</strong>84 – Entidades negras da Bahia, atendendo<br />
à solicitação do MNU (Movimento Negro Unido)<br />
assinaram um documento solicitando ao<br />
Secretário de Educação do Estado da Bahia a<br />
inclusão nos currículos de 1º e 2º graus da disciplina<br />
Introdução aos Estudos Africanos, ao<br />
tempo em que referendavam igual solicitação<br />
do Centro de Estudos Afro-Orientais feita em<br />
<strong>19</strong>83 (NEGO Nº 9).<br />
<strong>19</strong>85 – Aprovação pelo plenário do Conselho<br />
Estadual de Educação do parecer do padre<br />
José Hamilton Almeida Barros favorável à inclusão<br />
da disciplina na parte diversificada do<br />
currículo da escola de 1º e 2º graus, (indicação<br />
do CEAO como órgão de habilitação dos docentes<br />
para a disciplina).<br />
– Portaria nº 6.068/85 do Secretário da Educação<br />
e Cultura determinando a inclusão da<br />
disciplina.<br />
– Reunião com representação da SEC, entidades<br />
negras e CEAO para discutir a implantação<br />
da disciplina e o curso de habilitação<br />
para professores.<br />
– Colégio Estadual Governador Lomanto Júnior<br />
inclui oficialmente no currículo a disciplina<br />
Introdução aos Estudos Africanos.<br />
<strong>19</strong>86 – Portaria nº 4.064/86 do Secretário<br />
da Educação e Cultura cria a Assessoria de Estudos<br />
Africanos no âmbito do GASEC – Gabinete<br />
do Secretário.<br />
– Portaria nº 4.367/86 do Secretário da Educação<br />
e Cultura designando os professores<br />
Arany Santana Santos, Edson Transillo França,<br />
Eugênia Lúcia Viana Nery do Espírito<br />
Santo, Newton de Oliveira Nascimento e<br />
Yolanda Paradella Ferreira da Silva para comporem<br />
a Assessoria de Estudos Africanos.<br />
– Portaria do Secretário da Educação e Cultura<br />
designando a profa. Eugênia Lúcia<br />
Viana Nery do Espírito Santo para exercer<br />
a função de coordenadora da Assessoria de<br />
Estudos Africanos.<br />
– Gestões finais entre SEC, CEAO, UNEB<br />
e entidades negras para operacionalizar o<br />
curso de Introdução aos Estudos da História<br />
e das Culturas Africanas.<br />
– Aula inaugural do curso de Introdução aos<br />
Estudos da História e das Culturas Africanas<br />
proferida pelo Secretário de Educação<br />
e Cultura, professor Edivaldo Machado<br />
Boaventura.<br />
50 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003
Edivaldo Machado Boaventura<br />
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Salvador: Novos Toques, <strong>19</strong>97. (A Cor da Bahia – Programa de Pesquisa e Formação sobre Relações<br />
Raciais, Cultura e Identidade Negra na Bahia).<br />
Recebido em 30.05.03<br />
Aprovado em <strong>19</strong>.08.03<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003<br />
51
Pablo Heredia<br />
BIOLOGÍA DEL MONSTRUO<br />
La identidad del Otro en el positivismo del Cono Sur<br />
RESUMEN<br />
Pablo Heredia *<br />
Este estudio aborda el pensamiento del positivismo latinoamericano, con<br />
respecto a las variadas pero homogéneas construcciones identitarias del<br />
Otro étnico americano. Para los intelectuales positivistas, entender lo<br />
Otro consistía en “penetrar en la ipsidad y en la alteridad” para<br />
incorporarlo al horizonte de comprensión de la cultura europea en constante<br />
expansión. El Otro étnico fue configurado en el imaginario de las<br />
clases dirigentes como un “monstruo” que había que definir, catalogar y<br />
dominar. El mestizo era para ellos el monstruo inmediato, el que acosaba<br />
y subvertía los valores éticos y estéticos (y ocultamente económicos:<br />
hecho que dichos intelectuales obviaron interesadamente) del poder.<br />
Cuando el Otro es la Otredad sin más (completamente diferente y<br />
además habitante de otro espacio territorial), el problema para el Poder<br />
de la oligarquía no es crítico; pero cuando ese Otro está emigrando<br />
hacia la ipsidad, ésta corre el riesgo de esfumarse y “pervertirse” en la<br />
Otredad. Se trató, en suma, de interpretar (construir) y denominar al<br />
Otro para colonizarlo, y por ende, también, para caracterizarlo, tipificarlo,<br />
con el único fin de “diferenciarlo”.<br />
Palabras claves: “Monstruo” – Identidad étnica – Otredad – Mismidad<br />
– Ipsidad – Colonizar – Ética - Estética<br />
RESUMO<br />
BIOLOGIA DO MONSTRO - A identidade do Outro no positivismo<br />
do Cone Sul<br />
Este estudo aborda o pensamento do positivismo latino-americano em<br />
relação às construções da identidade do Outro étnico americano. Para<br />
os intelectuais positivistas, entender o Outro consistia em “penetrar na<br />
Ipsidade e na alteridade” para incorporá-los ao horizonte de compreensão<br />
da cultura européia em constante expansão. O Outro étnico foi<br />
configurado no imaginário das classes dirigentes como um “monstro”<br />
que tinha que ser definido, catalogado e dominado. Para elas o mestiço<br />
era o monstro imediato, o que acossava e subvertia os valores éticos e<br />
estéticos (e ocultamente econômicos: fato que ditos intelectuais aceitaram<br />
interessadamente) do poder. Quando o Outro é a Outridade sem<br />
*<br />
Profesor de Literatura Argentina II, en la Facultad de Filosofía y Humanidades, Universidad Nacional de<br />
Córdoba. Enderezo: Manuel Corvalán 482, Bº San Salvador, Córdoba-Capital. Rep. Argentina. E-mail:<br />
pheredia@ffyh.unc.edu.ar<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003<br />
53
Biología del monstruo: la identidad del otro en el positivismo del Cono Sur<br />
mais (bem diferente e, mais ainda, habitante do outro espaço territorial), o<br />
problema para o Poder da oligarquia não é crítico; mas quando esse Outro<br />
está emigrando à ipsidade, este corre o risco de se esfumar e “perverter”<br />
na Outridade. Trata-se, em suma, de interpretar (construir) e denominar<br />
ao Outro para colonizar-lhe e, por conseqüência, também, para caracterizar-lhe<br />
e tipificar-lhe, com o único fim de “diferenciar-lhe”.<br />
Palavras-chave: “Monstro” – Identidade étnica – Outridade – Mesmidade<br />
– Ipsidad – Colonizar – Ética - Estética<br />
ABSTRACT<br />
BIOLOGY OF THE MONSTER: THE IDENTITY OF THE<br />
OTHER IN THE POSITIVISM OF THE SOUTH CONE<br />
This study approaches the thought of the Latin-American positivism<br />
concerning the constructions of the identity of the American ethnic Other.<br />
For the positivist intellectuals, understanding the Other consisted in<br />
“penetrating the Ipsiness and the alterness” to incorporate them to the<br />
horizon of the understanding of the European culture in constant<br />
expansion. The ethnic Other was configured in the imaginary of the<br />
directing classes as a “monster” that had to be defined, catalogued and<br />
dominated. For them the mixed race was the immediate monster, the<br />
one who cornered and subverted the ethic and aesthetic values (and<br />
occultly economical: fact that so-called intellectuals accepted interestedly)<br />
of the power. When the Other is the Otherness with no further (very<br />
different and, moreover, inhabitant of the other territorial space), the<br />
problem for the Power of the oligarchy is not critical; but when this<br />
Other is emigrating to the ipsiness, he takes the risk of coaling himself<br />
and “perverting” in the Otherness. Inshort, it is about interpreting<br />
(constructing) and denominating the Other to colonize him and, as a<br />
consequence, also, to characterize him and typify him, with the only<br />
objective of “differentiating” him.<br />
Key words: “Monster” – Ethnic Identity – Otherness – Sameness –<br />
Ipsiness – Colonize – Ethics – Aesthetic<br />
¡Y todo barajado, revuelto, yuxtapuesto sin soldarse,<br />
formando un guisado de cosas de Asia, de África,<br />
de Europa, de América! ¡Qué manjar más indigesto<br />
para los historiadores, los literatos, los críticos,<br />
los antropólogos! (...) ...sobre el porvenir de ese caos<br />
de luces y tinieblas, duda el mismo Dios.<br />
(Carlos O. Bunge)<br />
Yo le aseguro a su ilustrísima que en lo que se refiere<br />
a animales de Indias nada puede ser creído ni despachado<br />
tampoco sin mejor argumento. Se diría que el día de su<br />
creación, al Señor le temblaba un poco el pulso.<br />
(Antonio de la Huerte)<br />
Todo lo que nace del hombre [del indio] es pura ficción.<br />
La condición natural de éste es ser malo, y también de la<br />
54 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003
Pablo Heredia<br />
naturaleza. Dios es inclemente y vengativo; se complace<br />
en enviar toda suerte de calamidades y desgracias...<br />
(Alcides Arguedas)<br />
O negro não tem mau carácter, mas sómente carácter<br />
instável como a criança, e como na criança – mas com<br />
esta diferença que êle já atingiu a maturidade do seu<br />
desenvolvimento fisiológico –, a sua instabilidade é a<br />
conseqüência de uma cerebração incompleta.<br />
(Nina Rodrigues)<br />
Dios duda, o le tiembla el pulso; y es inclemente<br />
y vengativo. ¿Cómo “Nosotros” podremos<br />
definir quiénes son los “Otros”, si Dios<br />
mismo duda? Nosotros somos parte de Dios, y<br />
a la vez de la Razón. Con Dios o con la ciencia,<br />
“Nosotros” somos el Orden, lo “Otro” es el<br />
Caos. Por ello, “Nosotros” somos quienes<br />
estamos capacitados para construir el Orden, o<br />
sea la continuidad de la Historia (llámese “Evolución”).<br />
Somos “Superiores”, estamos llamados<br />
– otra vez – o por Dios o por la Razón, para<br />
construir el Orden, es decir la Bondad, y disciplinar<br />
ese mundo del Caos, aquella naturaleza<br />
maligna de lo Otro que puede manifestarse en<br />
el descerebramiento (la falta de conciencia<br />
para sí), o en el primitivismo que nos circunda.<br />
Desde los primeros embates de la conquista<br />
de América, y mediante fundamentaciones y<br />
justificaciones de su posterior colonización,<br />
Occidente redundó alrededor del problema de<br />
la Otredad, es decir, sobre formas ideológicas<br />
de construcción de la identidad. La mayoría de<br />
los agentes de la colonización no se preguntaron<br />
acerca de quiénes eran ellos mismos, sino<br />
quiénes eran los Otros: aquéllos que mientras<br />
los sorprendían con y desde una Diferencia que<br />
les desestabilizaba su etnocentrismo, y que a la<br />
vez les provocaban la necesidad de definirlos<br />
como “inferiores” para justificar y proyectar su<br />
empresa de colonización.<br />
Los epígrafes del comienzo ilustran el pensamiento<br />
del positivismo latinoamericano, con<br />
respecto a las variadas pero homogéneas<br />
construcciones identitarias del Otro étnico americano.<br />
Se corresponde al periodo que Peter<br />
Wade denomina “la era del racismo científico”,<br />
y que comienza alrededor del siglo XVIII, con<br />
la puesta en escena de los naturalistas y viajeros<br />
europeos que “descubrían” al Otro desde el<br />
modelo del Iluminismo y la Ilustración. Intentaban,<br />
siguiendo a Wade, poner en “clave científica”<br />
una “naturalización de las razas”, que desde<br />
la llegada de Colón a América se había configurado<br />
en una “naturalización de las diferencias”<br />
(WADE, <strong>19</strong>97, p.7). Entender lo Otro<br />
consistía en “penetrar en la ipsidad y en la<br />
alteridad” para incorporarlo al horizonte de<br />
comprensión de la cultura europea en constante<br />
expansión (ROJAS MIX, <strong>19</strong>92, p. 66). Obviamente,<br />
dicha incorporación se desarrollaba en<br />
lo económico principalmente, a través de una<br />
ecuación lógica muy sencilla: primero “descubrir”<br />
(“Nosotros” dotamos a los “Otros” del<br />
conocimiento de que existen), para luego conocer<br />
para dominar, dominar para colonizar, colonizar<br />
para explotar.<br />
Una vez “descubierto” el “Otro”, entonces,<br />
se trata de denominarlo para colonizarlo, pero<br />
también para caracterizarlo, tipificarlo, “identificarlo”.<br />
Esta diferencia delimitada desde una<br />
referenciación de los paradigmas de la ipsidad 1 ,<br />
conlleva sin dudas valores morales y estéticos<br />
que están vinculados a un proyecto de esa<br />
mismidad: apropiarse del Otro, poseerlo y<br />
colonizarlo.<br />
Los monstruos positivistas<br />
Miguel Rojas Mix, en un excelente trabajo<br />
de exégesis sobre las imágenes icónicas que<br />
los europeos crearon sobre América durante el<br />
1<br />
Utilizamos ipsidad en el sentido lato del término, es<br />
decir, mismidad, o aquéllo que pertenece o está vinculado<br />
a lo mismo. Lo definimos por oposición dialéctica a<br />
otredad, tal como lo desarrolla Miguel Rojas Mix en su<br />
estudio sobre las imágenes teratológicas que desplegaron<br />
los conquistadores españoles durante los siglos XVI y<br />
XVII en América (ROJAS MIX, <strong>19</strong>92).<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003<br />
55
Biología del monstruo: la identidad del otro en el positivismo del Cono Sur<br />
periodo de la primera colonización, aborda el<br />
fenómeno de la creación de Monstruos, seres<br />
“anormales” que habitan en regiones desconocidas<br />
por los europeos. Si bien aquellas imágenes<br />
no hacen referencia a que dichos Monstruos<br />
estén ligados a los indígenas, sí forman parte<br />
del mundo cultural que ellos habitan. El imaginario<br />
europeo, dice Rojas Mix, realizó una naturalización<br />
de lo Otro diferente como algo nefasto,<br />
o anormal. Los Monstruos habitaban en<br />
las “fronteras del mundo”, lo que implicaba<br />
también, en las fronteras de su conocimiento.<br />
(<strong>19</strong>92, p.66-67)<br />
Estas imágenes monstruosas de la Otredad,<br />
entonces, referían a un Otro Mundo habitado<br />
por la anormalidad. Mi Mundo se constituye en<br />
un Orden, que implica la normalidad, la<br />
Beatitud (según la concepción medieval) y un<br />
espectro bien delimitado de las posibilidades del<br />
“Yo”. Lo Otro es un espacio en donde reinan<br />
las tinieblas, el Caos, la anormalidad, el Pecado<br />
y un espectro amplio y diverso de las proyecciones<br />
de la Maldad, sustentado por la Fatalidad<br />
de Ser lo Otro. El paradigma que definirá la<br />
acción de la colonización de América se basará<br />
en este fundamentalismo: hay una diferencia<br />
natural entre el Nosotros-Orden-Normalidad,<br />
que gnoseológicamente se expresará en la<br />
ipsidad (¿Qué es lo que forma parte de nosotros<br />
mismos?), y lo Otro-extraño-caótico, manifiesto<br />
como la Otredad signada por una fatalidad<br />
inmodificable.<br />
Este paradigma cultural no sufrirá modificaciones<br />
significativas a lo largo de los siglos de<br />
colonización. Los positivistas latinoamericanos<br />
de fines del siglo XIX retomarán el imaginario<br />
de los colonizadores en sus análisis e interpretaciones<br />
de la formación de la cultura americana.<br />
Dentro del marco del proceso de modernización<br />
que se imponía durante ese momento, los<br />
positivistas se propusieron “objetivar”, mediante<br />
sus principios metodológicos (“la experiencia<br />
histórica”) aquella naturalización de las diferencias.<br />
Si en un primer periodo la relación<br />
establecida por los colonizadores con América<br />
se sustentaba en lo “fantástico” (porque el Otro<br />
era desconocido), y en un segundo periodo se<br />
transformó en “Teológica” (ya que conociendo<br />
al Otro, éste se manifestaba como una amenaza<br />
a la cultura cristiana), para los positivistas, dicha<br />
relación deberá establecerse mediante la razón<br />
determinada por la práctica histórica. A la diferencia<br />
naturalizada en un principio, se propusieron<br />
revestirla y fundamentarla empíricamente<br />
en una objetivación que podía expresarse en una<br />
tipología étnica.<br />
Para los intelectuales positivistas, el Otro no<br />
se construiría como la alteridad de Europa, sino<br />
como la Otredad americana de la clase dirigente,<br />
blanca, criolla. En momentos en que la construcción<br />
de la Nación moderna se especifica<br />
inexorablemente como un proyecto social y cultural<br />
homogéneo, el Otro se configuraría entonces<br />
como un problema de índole étnico. Negros,<br />
indios y mestizos se inventaron como un<br />
impedimento de la modernización “nacional”,<br />
porque carecían, a grandes rasgos, de algunos<br />
elementos indispensables (tales como la voluntad,<br />
el carácter y la educación) para incorporarse<br />
o adaptarse a los “nuevos tiempos”. El<br />
revestimiento “científico” del racismo milenarista<br />
europeo, se pondrá en práctica desde el Estado<br />
moderno para justificar la exclusión de la<br />
Otredad étnica. El Otro posee una naturaleza<br />
biológica contradictoria con el Progreso.<br />
Sobre la violencia innata del “negro”:<br />
Nina Rodrigues<br />
Desde un trabajo sobre el Derecho penal vinculado<br />
a la Responsabilidad Civil en el Brasil<br />
inmediatamente posterior a la abolición de la<br />
esclavitud, Nina Rodrigues, en As raças humanas<br />
e a responsabilidade penal no Brasil (1894),<br />
trazó una caracterización biológica de negros e<br />
indios. Con un criterio evolucionista, determinó<br />
que había razas “superiores” y razas “inferiores”;<br />
estas últimas eran las que estaban en un<br />
estado de atraso en la evolución humana en<br />
referencia a un esquema dominado por el<br />
“perfeccionamiento psíquico” (RODRIGUES,<br />
<strong>19</strong>57, p.35). Como el indio tendía a desaparecer<br />
“naturalmente”, antes de una supuesta acción<br />
civilizatoria, el negro se constituiría en la Otredad<br />
biológica a estudiar, ya que se estaba mestizando<br />
rápidamente en la sociedad brasileña.<br />
56 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003
Pablo Heredia<br />
Para Rodrigues, el “negro” carecía de voluntad.<br />
Aún maduro fisicamente era como un niño:<br />
“...num meio de civilização adiantada (...) êle<br />
destoa...”, porque “...conservou vivaz os instintos<br />
brutais do africano...” y en consecuencia<br />
“é rixoso, violento nas impulsões sexuais, muito<br />
dado à embriaguez...” (<strong>19</strong>57, p.117). Como un<br />
evolucionista coherente, el médico brasileño<br />
aceptaba que la institución de la esclavitud había<br />
desaparecido (su periodo estaba concluido), pero<br />
como el “negro” no desaparecería, como el caso<br />
del indio, la clave consistía en pensar el mestizaje<br />
como una posibilidad de homogeneización social.<br />
El mestizaje podría sobrevivir en un Orden si se<br />
determinaban primero y se respetaban después,<br />
las leyes de la “Civilización”, condicionadas por<br />
la “responsabilidad penal”, diferente según las<br />
razas, ya que cada una de éstas estaba en una<br />
fase diferente de la evolución humana. Pero no<br />
es terminante, la Otredad, en cualquiera de sus<br />
formas, era un Monstruo que podía sosprender<br />
a través de su atavismo (las “patadas de<br />
ultratumba”, decía el argentino Bunge). Y de<br />
hecho, la mestización en Brasil se estaba dando,<br />
decía Rodrigues, en malas condiciones: la<br />
criminalidad del “negro” es hereditaria, y por lo<br />
tanto, un mestizaje implicaría tener al monstruo<br />
en la “mismidad”.<br />
Al indio le faltaba “a consciência plena do<br />
direito de propriedade” y “...a impulsividade<br />
[...domina] a livre determinação voluntária e destrói<br />
pela base tôda e qualquer responsabilidade<br />
que se funde na liberdade do querer.” (RODRI-<br />
GUES, <strong>19</strong>57, p.140-141). Para Rodrigues, el<br />
mestizo, una fatalidad exasperante para el “científico”,<br />
era un “degenerado” por causa de<br />
males hereditarios, tales com el alcoholismo, su<br />
carácter licencioso y “as emanações miasmáticas”<br />
(<strong>19</strong>57, p.144). Asimismo, aclaraba sobre la<br />
clásica mulata, para alertar a los líricos románticos<br />
y literatos en general, que la atracción por<br />
ella no era más que una excitación genésica, ya<br />
que es un tipo anormal que, obviamente, despertaba<br />
perversiones sexuales mórbidas (<strong>19</strong>57,<br />
p.145). Con esta observación, Rodrigues estaba<br />
agregando un elemento ya mencionado en el<br />
cientificismo positivista: el sexo y las mujeres.<br />
Construcciones científicas, por definición metodológica,<br />
ateas (o al menos agnósticas), estos<br />
Monstruos se configuraron en el imaginario<br />
biologicista desde un pecado original que, aparentemente,<br />
no podía redimirse. Pero como el<br />
Monstruo – “negro”, y por ende – más adelanteel<br />
Monstruo-Mestizo, por sus capacidades físicas,<br />
podía adaptarse al medio físico mejor que el<br />
Blanco-europeo, era posible una alianza: materia-<br />
“negro” más inteligencia-“blanco”.<br />
Sobre el “indio” parco, triste y<br />
vengativo: Alcides Arguedas<br />
La cita del comienzo, extraída de Pueblo<br />
enfermo (<strong>19</strong>09), tiene su exégesis. El “indio” fue<br />
la Otredad revulsiva para Arguedas, no tanto por<br />
su “maldad violenta” (no le había hecho males al<br />
blanco, sino más bien todo lo contrario, estaba<br />
en las peores condiciones debido al maltrato del<br />
español colonizador) sino por su identidad<br />
impasible, su vacío ontológico. El “indio” “vegeta”<br />
en el Altiplano: la pampa bárbara se proyecta<br />
en el “indio” bárbaro en una sola entidad. Su<br />
“espíritu” era bárbaro porque estaba modelado<br />
por la barbarie de la tierra. “Dureza de carácter”,<br />
“aridez de sentimientos” y “ausencia de afecciones<br />
estéticas”, provocaban a su vez, “ánimo sin<br />
fuerza”, “dolor” y “pesimismo”. Lo que podía<br />
llegar a nacer de esos caracteres era todo “pura<br />
ficción”, como una condición natural del “indio”,<br />
quien moldeaba una ética y una religión manifiestas<br />
en una “ausencia de aspiraciones”, y en<br />
una “limitación hórrida de su campo espiritual”.<br />
No había en el “indio” exaltación pasional como<br />
en los Monstruos de Rodrigues, ni deseos, todo<br />
en él era parco, pobre, frío, desamor; duro por<br />
un lado, y rencoroso, egoísta, cruel, vengativo,<br />
desconfiado cuando odia y sumiso cuando ama,<br />
por el otro. Sin embargo, gustaba de las fiestas<br />
(y de sus ropas y del alcohol): allí estaba su única<br />
dicha. Pero el “indio” asustaba también porque<br />
su apariencia física contrastaba estéticamente<br />
con el gusto del intelectual boliviano: color<br />
cobrizo pronunciado, greña áspera y larga, ojos<br />
de mirar esquivo y huraño, labios gruesos, conformaban<br />
el “conjunto de su rostro poco atrayente<br />
(...) que no acusa ni inteligencia, ni bondad”, todo<br />
en relación, también, “al conjunto de líneas áspe-<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003<br />
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Biología del monstruo: la identidad del otro en el positivismo del Cono Sur<br />
ras y angulosidades acentuadas”. Pero valga una<br />
aclaración: a medida que se apartaban de la región<br />
del Altiplano, esos rasgos, físicos y de carácter, se<br />
iban amenguando, algunos hasta parecían “simpáticos”<br />
(<strong>19</strong>93, p.37-72).<br />
Arguedas (<strong>19</strong>93) dedicó muchas páginas de<br />
su ensayo a esta caracterización, en la que no<br />
nos extenderemos; sin embargo, es notorio destacar<br />
que “la decadencia actual del indio”, para<br />
el escritor boliviano, se debía en gran parte al<br />
sometimiento violento que el “blanco” había<br />
ejercido sobre él. Se había aprovechado de su<br />
“superioridad” y por eso lo había maltratado.<br />
Lo contrario, sugiere el autor, podría haber derivado<br />
en un Monstruo domable y provechoso<br />
para el “blanco”. Pero como en Rodrigues, el<br />
factor criminal de su naturaleza obedecía biológicamente<br />
a su raza. Su debilidad moral y física<br />
era el resultado de la “brutalidad del blanco”,<br />
ante la cual buscó, “como toda raza débil, su<br />
defensa en los vicios femeninos de la mentira,<br />
de la hipocresía, la disimulación y el engaño”.<br />
(<strong>19</strong>93, p.62). Nuevamente aparece la mujer<br />
como referente de los vicios étnicos.<br />
Pero el problema central, para Arguedas, se<br />
constituyó en el “mestizo”: el Cholo, quien había<br />
heredado lo arriba mencionado del “indio”, más<br />
los defectos de la “hidalguía del conquistador”,<br />
tales como su tendencia a no cumplir con el<br />
deber y la falta de disciplina mental y moral.<br />
Arguedas llega aquí a su máxima aspiración<br />
intelectual, la comparación del español con el<br />
gentleman inglés: “No hay ningún tipo de nuestra<br />
América española que pueda igualarse a la<br />
superioridad del inglés.” (<strong>19</strong>93, p.75)<br />
En consecuencia, Bolivia se sumergía en la<br />
hegemonía del Cholo, el Monstruo de hoy y del<br />
futuro, que a través de la simulación (pretendiendo<br />
ser “blanco”), se estaba infiltrando en la<br />
mismidad.<br />
Sobre el “mestizo” como un degenerado:<br />
Carlos O. Bunge<br />
El problema de la homogeneización social y<br />
cultural de los positivistas, indispensable para<br />
construir la Nación que permitiría entrar en la<br />
modernidad internacional, se planteó “científicamente”<br />
para Bunge (<strong>19</strong>94) desde un macroanálisis<br />
rector: el estudio de las razas como el<br />
modo principal de entender las formas de<br />
participación y adaptación de los hombres al<br />
Progreso indefinido de la Historia. El concepto<br />
evolucionista de la biología se fusionaba con el<br />
referente cultural de la Historia: estudiar las<br />
razas a lo largo de su evolución-Historia (pasado-presente-futuro)<br />
le permitiría primero discriminar<br />
entre “superiores” e “inferiores”; y luego<br />
por un lado entre “atraso” y “Progreso”, y por<br />
el otro, entre “fatalismo” y “voluntad”. Al igual<br />
que otros positivistas, Bunge relacionó los<br />
caracteres físicos y psíquicos para delimitar<br />
rasgos típicos de cada raza.<br />
El Hispanoamericano era mestizo, enfatizaba<br />
Bunge. Era una “mélange”, “una ensalada de<br />
hombres y de cosas” que se había producido<br />
debido a factores manifiestos como ingredientes<br />
que resultaban en una composición psíquica<br />
de españoles (arrogancia, indolencia, indiferencia,<br />
uniformidad teológica y decoro), indios (fatalismo<br />
y ferocidad) y negros (servilismo y maleabilidad)<br />
(<strong>19</strong>94, p.97). Otra vez, los caracteres<br />
morales más bajos se proyectaban en el<br />
mestizo. “Como caracteres genéricos de todos<br />
los mestizos de Hispano América (...) citaré tres:<br />
cierta inarmonía psicológica, relativa esterilidad<br />
y falta de sentido moral” (p.121). Este<br />
mestizo se convierte en Monstruo cuando<br />
Bunge introduce su concepto de “degeneración”.<br />
Los híbridos hispanoamericanos eran<br />
“degenerados”, “ineptos para la propagación de<br />
la especie”.<br />
Luego de una larga, variada y dispersa<br />
caracterización de los vicios del mestizo, el<br />
abogado argentino, con un discurso lírico que<br />
rechazaría cualquier cientificista colega suyo,<br />
se interna en una radiografía psicológica que<br />
no puede evitar sin recurrir a las comparaciones.<br />
La mujer, esa Otredad conforme irónicamente<br />
en la ipsidad “blanca”, se constituye<br />
en el referente comparativo de los vicios<br />
étnicos: “es irritable y veleidoso como una<br />
mujer, y, como mujer, como degenerado, como<br />
el demonio mismo, fuerte de grado y débil por<br />
fuerza” (p.127). En síntesis, para Bunge, la<br />
58 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003
Pablo Heredia<br />
relación Mestizo-mujer-demonio se entrelaza<br />
así, como un corpus de respuestas de<br />
sobrevivencia (artimañas, manipulación,<br />
simulación) del Otro para infiltrarse en la<br />
ipsidad.<br />
Conclusión<br />
Hay una imagen previa del Otro, de aquél<br />
que no formaría parte, ética y estéticamente,<br />
de la ipsidad. La imagen del Otro se configura<br />
con la proyección de todo aquéllo que la<br />
mismidad no acepta. La imagen “científica”<br />
del Monstruo, como reproducción y reflejo de<br />
Otro que representa la “anormalidad”, se traspasará<br />
a la imaginación, como una puesta en<br />
escena de esa imagen, para que por fin, de forma<br />
“objetiva” (la experiencia “positiva”) e<br />
indiscutible (por “inobjetable”), pase a formar<br />
parte del imaginario étnico moderno de la<br />
Nación homogénea. 2<br />
Los intelectuales positivistas construyeron una<br />
dialéctica de la identidad social y cultural, desde<br />
una imagen ética y estética del Otro como un<br />
Monstruo étnico. El proceso de modernización<br />
de la Nación, programado por las oligarquías<br />
latinoamericanas en el marco de la construcción<br />
de nuevas formas de sostener, relacionar y<br />
proyectar el poder, precisaba crear otros fundamentos<br />
– bajo el ala de la “experiencia positiva”<br />
– de la existencia de los Monstruos. Pero a dicha<br />
fundamentación se le agregaron las explicaciones<br />
de las nuevas formas (las metamorfosis, las<br />
mutaciones) que estaban adoptando esos<br />
Monstruos y las que podrían adoptar en el futuro:<br />
el mestizo se estaba configurando – infiltrando<br />
– en la ipsidad a través de una astuta metamorfosis.<br />
De allí la categoría de “simulación” que,<br />
según los positivistas, se manifestaba en dos<br />
órdenes: los mestizos simulaban éticamente<br />
poseer los mismos valores morales del “blanco”-<br />
europeo (cuando en realidad era sencillo descubrir<br />
esa apariencia a través de las “patadas de<br />
ultratumba”, es decir en el atavismo), y también<br />
simulaban estéticamente, imitaban el refinamiento,<br />
las costumbres y los acicates de belleza<br />
corporal de los “blancos”.<br />
El mestizo era para ellos el monstruo inmediato,<br />
el que acosaba y subvertía los valores<br />
éticos y estéticos (y ocultamente económicos:<br />
hecho que dichos intelectuales obviaron interesadamente)<br />
del poder. Cuando el Otro es la Otredad<br />
sin más (completamente diferente y además<br />
habitante de otro espacio territorial), el problema<br />
para el Poder de la oligarquía no es crítico;<br />
pero cuando ese Otro está emigrando hacia<br />
la ipsidad, ésta corre el riesgo de esfumarse y<br />
“pervertirse” en la Otredad. Entonces, repetimos,<br />
se recurre a la categoría de la “simulación”<br />
como un muro de advertencia: el Otro “simula”<br />
(en un deber hacer) para ser Uno; o en otras<br />
palabras, el Otro simula ser lo mismo que yo,<br />
y eso me destruirá. Y al destruirme, hay Caos,<br />
ya que Nosotros somos los únicos garantes<br />
del Orden que instaura el Progreso y la<br />
Modernidad.<br />
Se trató, en suma, de interpretar (construir)<br />
y denominar al Otro para colonizarlo, y por ende,<br />
también, para caracterizarlo, tipificarlo, con el<br />
único fin de “diferenciarlo”. Esta “diferencia”<br />
delimitada desde una aprehensión de los<br />
paradigmas de la mismidad, conllevó sin dudas<br />
valores morales y estéticos que estaban vinculados<br />
a un proyecto de esa ipsidad: apropiarse<br />
del Otro, poseerlo y colonizarlo.<br />
2<br />
Reproducimos a continuación las definiciones sobre<br />
Monstruo e imagen<br />
que expone el Diccionario Hispánico Universal (edición<br />
de <strong>19</strong>61).<br />
Monstruo: Producción en contra del orden regular de la<br />
naturaleza. Cosa excesivamente grande y extraordinaria.<br />
Persona o cosa muy fea. [el Diccionario de la Lengua<br />
Española de la Real Academia Española, en su edición<br />
revisada de <strong>19</strong>92, agrega además: “Ser fantástico que causa<br />
espanto”.].<br />
Monstruosidad: Desorden grave en la proporción que<br />
deben tener las cosas. Suma fealdad o desproporción física<br />
o moral.<br />
Monstruoso: Que es contra del orden natural. Enormemente<br />
vituperable (decir a alguien vicioso o indigno) o<br />
execrable.<br />
Imagen: Del latín imâgo: figura, representación.<br />
Imaginación: del latín imaginatio. Facultad del alma, que<br />
representa las imágenes de las cosas. Aprensión falsa o<br />
juicio o discurso de una cosa no real.<br />
Imaginario: del latín imaginarius. Que sólo tiene existencia<br />
en la imaginación. Que no tiene existencia real.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003<br />
59
Biología del monstruo: la identidad del otro en el positivismo del Cono Sur<br />
Apéndice<br />
1. Esta es una anécdota surgida de un diálogo<br />
muy usual que se repite cotidianamente en<br />
mi región; 3 si no es posible escucharla espontáneamente,<br />
sólo hace falta una pizca de<br />
picardía para que se produzca. Alguien está<br />
en pugna con otra persona, y una de las formas<br />
de menospreciarlo en su más íntimo<br />
amor propio consiste en denominarlo “negro”.<br />
Pero ante la observación “ingenua” ¡si<br />
Fulano no es “negro”! la consiguiente respuesta<br />
será: ¡Es un “negro” de alma, un “negro”<br />
por dentro!<br />
2. Cierto día me dirigí al almacén de mi barrio<br />
a comprar pan. El almacén es un negocio<br />
familiar de clase media y funciona en la casa<br />
misma donde habitan sus miembros. En<br />
aquella oportunidad atendía al público el hijo<br />
adolescente, quien conversaba animadamente<br />
con sus amigos y vecinos a través del<br />
mostrador. Entonces, fui testigo del siguiente<br />
diálogo:<br />
–¿¡Viste que María Rosa se puso de novia<br />
con Ricardo?!<br />
–¡No te puedo creer! ¿¡Con ese “negro”!?<br />
–Así es. Es lo mismo que yo le dije. Pero<br />
ella, muy contenta, y justificándose, me<br />
respondió: “¡Es `negro´ sólo de piel!”<br />
La anécdota 1 expresa un ejemplo actual de<br />
la “simulación” positivista. Se construye al Otro<br />
como un “simulador” de una condición “natural”<br />
y “fatal” que lo condiciona a actuar de<br />
determinadas maneras fuera de la ética. Se simula<br />
una estética (no aparenta ser un “negro”),<br />
pero lo que no puede aparentar es una ética (es<br />
algo fatal).<br />
Al respecto, cabe mencionar dos cuestiones:<br />
a) se denomina “negro” a aquéllos que presentan<br />
rasgos físicos mestizos (indio y europeo, y en<br />
menor medida “negro”, indio y europeo)<br />
b) muchas veces ni siquiera posee rasgos<br />
mestizos, simplemente se denomina a alguien<br />
“blanco” como “negro” para indicar su<br />
“degradación” moral, a tal punto que parece<br />
“negro”.<br />
La anécdota 2 resalta de igual manera el<br />
racismo, pero con un argumento a la inversa.<br />
El objeto de denigración cambia. Se habla de<br />
alguien que no es Otro, sino de la ipsidad: aparenta<br />
ser Otro pero pertenece a la mismidad,<br />
forma parte del nosotros, aunque estéticamente<br />
parezca Otro.<br />
REFERENCIAS<br />
ARGUEDAS, Alcides. Pueblo enfermo. La Paz: Librería Ed. “Juventud”, <strong>19</strong>93.<br />
BUNGE, Carlos O. Nuestra América. Buenos Aires: Fraterna, <strong>19</strong>94.<br />
LENGUAJE DICCIONARIO Hispánico Universal. Buenos Aires: W. M. Jacson, <strong>19</strong>92.<br />
DICCIONARIO de la Lengua Española de la Real Academia Española. 2. ed. corregida y aumentada. Madrid:<br />
Joachin Ibarra, <strong>19</strong>61.<br />
RODRIGUES, Nina. As raças humanas. Salvador: Livraria Progresso Ed., <strong>19</strong>57<br />
ROJAS MIX, Miguel. América imaginaria. Barcelona: Ed. Lumen, <strong>19</strong>92.<br />
WADE, Peter. Race and ethnicity in Latin America. Chicago: Pluto Press, <strong>19</strong>97.<br />
Recebido em 30.05.03<br />
Aprovado em 15.06.03<br />
3<br />
Nos referimos a la zona central y mediterránea de la Argentina, correspondiente a la provincia de Córdoba.<br />
60 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003
Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />
DO MONOPÓLIO DA FALA SOBRE EDUCAÇÃO<br />
À POESIA MÍTICA AFRICANO-BRASILEIRA<br />
Narcimária Correia do Patrocínio Luz *<br />
RESUMO<br />
Analisa o monopólio da fala etnocêntrico-evolucionista que sobredetermina<br />
o pensamento e as políticas de educação nas sociedades contemporâneas,<br />
instituindo o recalque aos valores existenciais de povos<br />
milenares. Destaca com veemência a erudição da episteme africana e<br />
suas linguagens transcendentais, indicando outras perspectivas que envolvem<br />
o rico universo emocional-lúcido vital para a educação.<br />
Palavras chaves: Arkhé – Ethos – Eidos – Comunalidade<br />
ABSTRACT<br />
FROM THE SPEECH MONOPOLY ABOUT EDUCATION TO<br />
THE MYTHICAL AFRO-BRAZILIAN POETRY<br />
It analyses the monopoly of the ethnocentric-evolutionist speech that<br />
determines the thought and the education politics in the contemporary<br />
societies, instituting the repression of the existential values of millenary<br />
peoples. It highlights vehemently the erudition of the African episteme<br />
and its transcendental languages, indicating other perspectives that involve<br />
the rich emotional-lucid universe, vital to education.<br />
Key words: Arkhé – Ethos – Eidos – Communality<br />
... A vida não é só isso que se vê, é um pouco mais... Que os olhos não conseguem perceber, e as mãos<br />
não ousam tocar, que os pés recusam pisar. Sei lá não sei, sei lá não sei não. Não sei se toda beleza de<br />
que lhes falo sai tão-somente do meu coração. Em Mangueira a poesia, num sobe e desce constante,anda<br />
descalço ensinando um modo novo da gente viver, de cantar,de sonhar, de vencer.<br />
Sei lá não sei, sei lá não sei não, a Mangueira é tão grande que nem tem explicação.<br />
(Hermínio Belo de Carvalho e Paulinho da Viola)<br />
INTRODUÇÃO<br />
A educação concebida para os povos que<br />
tiveram seus destinos sobredeterminados pelo<br />
impacto dos valores do mundo neocolonial-imperialista,<br />
sempre esteve ancorada na ordem<br />
produtiva urbano-industrial, ou seja, a dinâmica<br />
do crescimento econômico, dos índices estatísticos<br />
e contábeis que informem sobre as expectativas<br />
das demandas do mercado, de onde<br />
*<br />
Professora Titular do Departamento de Educação I da Universidade do Estado da Bahia-UNEB; Doutora<br />
em Educação; pesquisadora no campo da Diversidade Cultural e Educação; coordenadora do Programa<br />
Descolonização e Educação – PRODESE; autora dos livros: Abebe – a criação de novos valores na educação,<br />
Salvador: Edições SECNEB/2000; (Org.) Pluralidade cultural e educação, Salvador: Edições SECNEB/<br />
Secretaria da Educação, <strong>19</strong>96; membro da Aliance pour le Monde Responsable et Solidaire, Paris. Endereço<br />
para correspondência: Universidade do Estado da Bahia-<strong>Uneb</strong>, Departamento de Educação I, Estrada das<br />
Barreiras, S/N. Narandiba, Cabula - 41.<strong>19</strong>5001 Salvador-BA. E-mail: narci@terra.com.br<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />
61
Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />
se desdobra a prescrição una, linear e totalizante<br />
das políticas educacionais voltadas para a formação<br />
do sujeito produtor e consumidor.<br />
É surpreendente observar, nos constantes<br />
intercâmbios com educadores da África, Ásia,<br />
América Latina e Caribe 1 , todo um esforço em<br />
estabelecer estratégias de descolonização no<br />
âmbito das políticas educacionais.<br />
De fato, a efervescência das estratégias de<br />
descolonização tem sido a implosão do monopólio<br />
da fala 2 produtivista sobre educação, cujo<br />
entulho teórico-ideológico tende a recalcar as<br />
dinâmicas territoriais e comunalidades milenares<br />
que mapeiam o planeta.<br />
Estamos tendo o prazer de ver expandiremse<br />
contemporaneamente, iniciativas coletivas de<br />
educadores em todo o mundo, em torno da afirmação<br />
de uma nova e urgente abordagem sobre<br />
educação, cujo princípio inaugural é a dimensão<br />
ontológica da diversidade humana,<br />
marcada pela angustiante procura da compreensão<br />
sobre o estar no mundo, no universo, enfim,<br />
o processo dinâmico da existência.<br />
Estamos fundando uma concepção sobre<br />
educação capaz de acolher linguagens cuja<br />
matriz seja “... a criação emocional e poética<br />
dos povos que mobiliza e abre caminhos, pontes<br />
de aproximação entre comunidades diversas”<br />
(SANTOS, 2002, p.26).<br />
Esse é um dos desafios apresentado por este<br />
ensaio, contribuindo, de um lado, para a implosão<br />
do monopólio da fala etnocêntrica-evolucionista<br />
sobre a existência; e, do outro, promover e dar<br />
legitimidade à expansão sócio-existencial das<br />
diversidades culturais capaz de consagrar uma<br />
ética do futuro.<br />
No tocante à Educação, pretendemos explorar<br />
o universo complexo que constitui as diversidades<br />
culturais e delas realçar: as identidades<br />
profundas que marcam milenarmente<br />
formas de sociabilidade; cosmogonias, linguagens<br />
e valores transcendentais de distintos povos,<br />
suas dinâmicas territoriais, instituições, visão<br />
de mundo, patrimônios civilizatórios; elaborações<br />
emocionais – gênese de criatividade, importante<br />
legado para a humanidade, que inunda<br />
de poesia o existir.<br />
Nossas expectativas sobre as reflexões que<br />
fomentaremos é que elas constituam um espaço<br />
político-institucional que consagre um debate<br />
transdisciplinar, realçando a importância das<br />
tradições culturais características das sociedades<br />
contemporâneas; enfatize as formas de comunicação<br />
milenares utilizadas nas distintas<br />
territorialidades do planeta, os princípios cosmogônicos,<br />
as concepções filosóficas e expressões<br />
ético-estéticas ancoradas no patrimônio mítico<br />
que dá visibilidade e afirma toda à complexidade<br />
cultural necessária a expansão e à afirmação<br />
existencial da diversidade humana; (re)examine<br />
as novas tendências e perspectivas voltadas para<br />
a promoção dos direitos coletivos e identidades<br />
coletivas; ressalte a implosão das utopias dos<br />
Estados Modernos que, durante séculos, impôs<br />
o monopólio da fala sobre educação, recalcando<br />
distintos patrimônios civilizatórios; e, finalmente,<br />
recomende perspectivas educacionais que<br />
promovam o direito à alteridade.<br />
Uma observação fundamental: nossas vivências<br />
e inserção comunitária nos levam a assumir<br />
uma opção político-ideológica que se esforça<br />
para sair da superfície de analogias sobre a<br />
diversidade cultural, que tendem ao outro fragmentado,<br />
por meio de recortes teóricos em que<br />
a dinâmica de estruturação da alteridade é reduzida<br />
a “hibridismo”, “identidade móvel”, “incluído-excluído”,<br />
traços culturais desprovidos de<br />
arkhé e eidos.<br />
Há que se ter cuidado! De onde provêm<br />
essas análises? De que lugar se está falando?<br />
Qual a origem da bacia semântica que imprime<br />
esse repertório equivocado? Será que todos os<br />
povos do planeta têm as suas existências submetidas<br />
a essas “metamorfoses” típicas do jei-<br />
1<br />
Somos integrantes da Aliança por um Mundo Responsável,<br />
Plural e Solidário com sede em Paris, que vem mobilizando<br />
intelectuais, lideranças e artistas de todo o mundo.<br />
Atualmente, estamos envolvida na organização do<br />
Fórum Mundial Diversidades Culturais no século XXI,<br />
Patrimônio e Criatividade, iniciativa da Sociedade de Estudos<br />
das Culturas e da Cultura Negra no Brasil –<br />
SECNEB, UNESCO, Secretaria da Cultura do Estado da<br />
Bahia e Prefeitura Municipal de Salvador. O Fórum será<br />
realizado na Bahia em 2004, reunindo personalidades de<br />
vários países.<br />
2<br />
Categoria elaborada por Muniz Sodré tendo como referência<br />
o sistema midiático de comunicação.<br />
62 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003
Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />
to de ser anglo-saxônico ou ibérico do qual se<br />
originam o pensamento educacional e a analítica<br />
da finitude que os constituem (no dizer de<br />
Foucault)?<br />
Não custa nada insistir em enfatizar ou<br />
relembrar aqui algumas sabedorias africanobrasileira<br />
e aborígine para notarmos a fragilidade<br />
dessas análises etnocêntricas.<br />
Mãe Aninha, a saudosa Iyá Oba Biyi, fundadora<br />
do Ilê Axé Opô Afonjá, em relação à<br />
projeção sobre a continuidade do patrimônio<br />
africano no Brasil como legado para as gerações<br />
sucessoras dizia: “Quero ver minhas<br />
crianças amanhã de anel no dedo e aos pés<br />
de Xangô”<br />
Mestre Didi nutre o mesmo sentimento:<br />
“Evoluir sem perder a essência”.<br />
Marcos Terena, em relação à prepotência<br />
dos valores do mundo branco e a imposição dos<br />
mesmos a sua comunalidade, afirma com determinação:<br />
“Eu posso ser o que você é sem<br />
deixar de ser quem sou”.<br />
Uma amiga, Jófej Kaingang, conta que teve<br />
que ir estudar Direito no “mundo dos brancos”<br />
e, quando ia deixar a comunidade para embrenhar-se<br />
no repertório jurídico do universo urbano,<br />
os anciãos da sua comunalidade chamaramna<br />
para indagar sobre a necessidade desse esforço.<br />
Para os mais velhos, a ética do povo<br />
Kaingang é radicalmente diferente do mundo<br />
dos valores brancos, e eles não acreditavam que<br />
ela pudesse aprender nada de bom dentro desse<br />
universo estrangeiro. No entender dos<br />
anciãos, as sociedades dos brancos criam leis<br />
que eles mesmos não cumprem..<br />
Ela respondeu que precisava conhecer essas<br />
leis do mundo branco para poder defender<br />
e expandir os direitos da sua comunalidade.<br />
Permitiram, então, sua partida. Hoje, Jófej é<br />
advogada e defende, como guerreira, os interesses<br />
do seu povo.<br />
Essas iniciativas que destacamos nos inspiram<br />
a perseguir iniciativas em prol das Diversidades<br />
Culturais, produzindo possibilidades<br />
didático-pedagógicas que afirmem que EDU-<br />
CAR é repor os valores e princípios herdados e<br />
reelaborados legado ancestral. É expansão<br />
sócio-existencial da diversidade humana, fruto<br />
de civilizações milenares que inauguraram diversos<br />
territórios em todos os cantos do planeta,<br />
e que lutam há séculos, tenazmente, para<br />
mantê-lo viável à vida.<br />
Todo o impacto das proposições sobre educação,<br />
a partir do universo africano, tem o intuito<br />
de ilustrar como é possível o intercâmbio<br />
entre culturas, sem a perda de suas singularidades.<br />
O MONOPÓLIO DA FALA<br />
EM EDUCAÇÃO<br />
A educação, que sobredetermina o viver cotidiano<br />
de distintos povos do planeta, é regulada<br />
pelo monopólio da fala etnocêntrico-evolucionista.<br />
Aqui, o mito de Édipo torna-se fundamental<br />
para abrirmos essa reflexão, porque demonstra<br />
o quanto a onipotência que alimenta as políticas<br />
de educação lineariza, estabelece taxionomias,<br />
simulacros, providencia discursos e retóricas que<br />
saturam todos os espaços que cria, inviabilizando<br />
sistematicamente o florescer de outras epistemes<br />
civilizatórias. A história de Édipo é interessante<br />
pois marca:<br />
... o poder do Ocidente exatamente porque expõe<br />
a pretensão de um olhar universal. Édipo-<br />
Rei é uma tragédia da visão – ele pode ver tudo,<br />
mas não se vê. Ao cegar-se, no final, interiorizando<br />
a sua visão, ele ainda está na pretensão de<br />
tudo ver, mesmo na escuridão. É essa onipotência<br />
edipiana que estrutura o mundo ocidental<br />
que arma o olho funcionalizando-o em termos<br />
eficazes, de todos os recursos possíveis, para<br />
se investir da veleidade de um poder de visão<br />
universal. (SODRÉ, <strong>19</strong>84, p.17).<br />
A lógica dessa onipotência edipiana, característica<br />
da episteme ocidental, reveste-se de princípios<br />
ético-estéticos que visam apenas transformar<br />
o outro no mesmo, ou melhor, o outro<br />
fragmentado, submetido à veleidade de um<br />
poder de visão universal.<br />
É assim que o pensamento cerne das políticas<br />
educacionais, não consegue se abrir para<br />
acolher a riqueza de linguagens e valores que<br />
caracterizam a diversidade cultural de povos<br />
milenares. 3<br />
3<br />
Sobre esses aspectos, conferir obras de Fanon, Césaire e<br />
Diop nas referências bibliográficas.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />
63
Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />
Foto 1 - extraída dos PCNs, vol.<br />
10, p. 34.<br />
No coração dessas análises,<br />
o apelo circunscrevese<br />
à proposição urgente e<br />
ingente de uma outra concepção<br />
de educação, o que<br />
significa romper com as<br />
amarras do circuito que<br />
impõe valores existenciais<br />
ancorados na dinâmica de<br />
financeirização do mundo e<br />
conquista de mercados.<br />
Os espaços institucionais<br />
do sistema escolar são<br />
canais profícuos na formação<br />
de gerações voltadas<br />
para a racionalidade do universo urbano-industrial,<br />
cuja extensão é o acúmulo de riqueza e<br />
capital, além de dominação, dissecamento e<br />
esgotamento da natureza e a matematização da<br />
vida para atender à ordem e ao progresso técnico-científico...<br />
Aqui vale a expressão formulada por Max<br />
Weber 4 , o “desencantamento do mundo”, idêntico<br />
à tragédia da visão de Édipo-Rei. Infelizmente,<br />
nossas crianças e jovens têm vivido espaços<br />
institucionais eivados dessa perspectiva<br />
do “desencantamento de mundo”, pois não conseguem<br />
estruturar suas identidades, nem afirmar<br />
seu direito à alteridade própria a partir das<br />
dinâmicas de comunalidade do seu entorno.<br />
É muito significativa, para nós, a ilustração<br />
fruto da pesquisa 5 que realizamos para o Instituto<br />
Nacional de Pesquisa Educacionais – INEP<br />
em <strong>19</strong>88 em Salvador, no Curuzu, bairro da Liberdade,<br />
numa escola pública. Entrevistando uma<br />
menina da 6ª série do Ensino Fundamental sobre<br />
o sentimento que tinha sobre o espaço e tempo<br />
escolar na sua vida, entre muitas coisas que nos<br />
revelou, a que mais chamou atenção: “... Eu gosto<br />
muito de ficar olhando para a rua quando estou<br />
na sala, por isso fico perto da janela...”<br />
A rua é a referência simbólica de um outro<br />
espaço que pode ser associado à cosmovisão<br />
negra, principalmente em Salvador onde tradicionalmente<br />
foram e são desenvolvidas pelas comunidades<br />
africano-brasileiras, atividades econômicas<br />
e sociais sobredeterminadas por esse<br />
espaço caracterizado como rua. A rua se constitui,<br />
simbolicamente, num território que contribui<br />
fortemente para atualizar, nas comunalidades, a<br />
visão de mundo, as condutas, ações e relações<br />
sociais herdadas dos antepassados africanos.<br />
Assim, a fala dessa menina que destacamos<br />
torna explícita uma cosmovisão africana em que<br />
a rua dos bairros de população predominantemente<br />
negra – como o Curuzu, tão temida pelo<br />
universo da produção – é o espaço de proximidade<br />
entre vida cotidiana e produção simbólica,<br />
lugar de uma atmosfera emocional ou afetiva –<br />
ethos, costumam dizer os antropólogos – que<br />
institui canais especialíssimos, não-lingüísticos,<br />
de comunicação. O território torna-se continente<br />
de uma densidade simbólica, assimilável não<br />
4<br />
Vide as análises e proposições de Michel Maffesoli. No<br />
fundo das aparências.Petrópolis:Vozes, <strong>19</strong>99, p.187-350.<br />
5<br />
Em <strong>19</strong>96, tivemos a iniciativa até então inédita no Brasil,<br />
de organizar um livro reunindo personalidades<br />
exponenciais no campo da Pluralidade Cultural e Educação,<br />
nomes como: Marco Aurélio Luz, Muniz Sodré,<br />
Marcos Terena, Elisa Larkin Nascimento, Kabengele<br />
Munanga, entre outros. O projeto foi considerado muito<br />
ousado, já que na época esta questão não era tratada<br />
devidamente pelos espaços institucionais oficiais.<br />
64 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003
Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />
pela racionalidade conceitual, mas sinestesicamente,<br />
com corpo e espírito integrados numa<br />
atenção participante. (SODRÉ, <strong>19</strong>88)<br />
Enfim, nas comunalidades de base africana,<br />
a utilização do espaço e do tempo ganha outra<br />
dimensão. As relações que se estabelecem são<br />
intergrupais ou a nível bipessoal.<br />
A imagem que apresentamos a seguir é<br />
muito significativa, pois nos leva a uma leitura<br />
sintomal sobre o projeto político-ideológico que<br />
rege o monopólio da fala. (Vide Foto 1)<br />
Essa foto foi selecionada pelo MEC para<br />
compor o volume 10 dos Parâmetros Curriculares<br />
Nacionais – PCNs, abordando o “tema transverspal”<br />
Pluralidade Cultural.<br />
O que nos chama atenção é que não há nenhuma<br />
referência substancial sobre a foto: tempo,<br />
lugar, história da população...<br />
Mas o que está latente na imagem é a pretensão<br />
do olhar universal sobre o outro, homogeneizando-o,<br />
tornando-o o mesmo; convertendo-o<br />
e irreversibilizando-o à geometria e aos signos<br />
das aparências características da modernidade<br />
industrial que tem como extensão a escola.<br />
Observem mais uma vez!<br />
Reparem que a única referência possível na<br />
foto e que, mesmo assim, não tem potência para<br />
abrir uma densa e profícua reflexão sobre pluralidade<br />
cultural, são os traços morfológicos das<br />
pessoas. Em comum, o fardamento escolar,<br />
extensão do monopólio da fala da onipotência<br />
edipiana.<br />
Não conseguimos identificar o sorriso, a alegria<br />
no semblante das crianças...<br />
Outro aspecto importante: a foto abre um<br />
dos sub-capítulos do livro, respondendo às modulações<br />
clássicas do currículo assentado nas<br />
dicotomias do ensino-aprendizagem que lastreiam<br />
os objetivos, metas, conteúdos e avaliação<br />
do tempo e espaço escolar.<br />
Um detalhe: na versão equivocada e incisiva<br />
do MEC sobre Pluralidade Cultural 6 , ainda persistem<br />
os grandes sistemas explicativos, que lidam<br />
com e/ou percebem os múltiplos universos<br />
civilizatórios que constituem a arkhé, eidos e<br />
ethos de distintos povos do planeta através da<br />
superfície de análises totalitárias do “dever ser”,<br />
expressão vital ao esquematismo conceitual.<br />
O que importa ressaltar, aqui, é a necessidade<br />
de compreendermos a dinâmica do eidos<br />
e do ethos neo-africanos e sua permeabilidade<br />
na sociedade brasileira. Trata-se de noções interdependentes,<br />
complementares, interpenetráveis,<br />
pois ambas possibilitam a constituição de<br />
identidades coletivas, dando-lhes suporte para<br />
a continuidade dos valores culturais. Ratificando:<br />
ethos constitui a linguagem grupal enunciada;<br />
as formas de comunicação, os comportamentos,<br />
a visão de mundo, os discursos significantes<br />
manifestos, o modo de vida e a configuração<br />
estética. O eidos se refere às formas de<br />
elaboração e realização da linguagem, aos modos<br />
de sentir e introjetar valores e linguagens,<br />
ao conhecimento vivido e concebido, à emoção<br />
e à afetividade.<br />
No enquadramento desses sistemas explicativos<br />
etnocêntricos-evolucionistas pluralidade<br />
cultural “... quer dizer a afirmação da diversidade<br />
como traço fundamental na construção<br />
de uma identidade nacional que se põe<br />
permanentemente, e o fato de que a humanidade<br />
de todos se manifesta em formas<br />
concretas e diversas de ser humano” (PCN,<br />
<strong>19</strong>97, p.<strong>19</strong> – grifos nossos).<br />
E mais:<br />
... a própria dificuldade de categorização dos<br />
grupos que vieram para o Brasil, formando sua<br />
população, é indicativo da diversidade. Mesmo<br />
para a elaboração de um simples rol, é difícil<br />
escolher ou priorizar certo recorte, seja continental<br />
ou regional, nacional, religioso, cultural,<br />
lingüístico, racial/étnico. Portugueses, espanhóis,<br />
ingleses, franceses, italianos, alemães,<br />
poloneses, húngaros, lituanos, egípcios, sírios,<br />
libaneses, armênios, indianos, japoneses, chineses,<br />
coreanos, ciganos, latino-americanos,<br />
católicos, evangélicos, budistas, judeus, muçulmanos,<br />
tradições africanas, situam-se entre<br />
outras inumeráveis categorias de identificação.<br />
(PCN, <strong>19</strong>97, p.<strong>19</strong> – grifos nossos)<br />
6<br />
Ver artigos e ensaios da autora indicados em algumas<br />
publicações do SEMENTES Caderno de Pesquisa e na<br />
Revista da FAEEBA, por exemplo; já investimos exaustivamente<br />
em outros trabalhos sobre essa questão da<br />
transversalidade do MEC.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />
65
Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />
O efeito dessas pulverizações sobre as diversidades<br />
culturais visa dar continuidade ao<br />
recalque sobre a importância, para o povo brasileiro,<br />
dos contínuos civilizatórios aborígines e<br />
africanos na constituição da própria idéia de<br />
nacionalidade.<br />
Demos esse destaque para enfatizar a superfície<br />
do empirismo empregado nessas afirmações<br />
que denegam, enfaticamente, as identidades<br />
profundas que elaboram as dinâmicas<br />
históricas e existenciais de muitos povos.<br />
Queremos ratificar apenas que o status de<br />
“tema transversal” e abordagem teórica do<br />
MEC não corresponde à exuberância de valores<br />
e linguagens dos distintos patrimônios civilizatórios<br />
que influenciam o nosso viver cotidiano,<br />
determinando a dinâmica pluricultural.<br />
Não podemos conceber pluralidade cultural<br />
na superfície do olhar edipiano que produz o<br />
monopólio da fala sobre a existência e tende a<br />
consagrar a bacia semântica neocolonial.<br />
O que os tecnoburocratas e analistas simbólicos<br />
da educação têm fomentado nessa perspectiva,<br />
é o esquadrinhamento cartorial que dá<br />
supremacia às matérias e/ou disciplinas clássicas<br />
(Língua Portuguesa, Matemática, Ciências<br />
Naturais, História, Geografia, Língua Estrangeira<br />
e Educação Física), consideradas fundamentais<br />
à vida da nossa população infanto-juvenil,<br />
submetendo-a ao engradamento burocrático dos<br />
ciclos do currículo escolar destituído de comunalidade.<br />
Assim negligenciada, a Pluralidade Cultural<br />
perde as suas potências: arkhé, eidos, ethos,<br />
princípios estruturadores de comunalidade, princípios<br />
seminais indispensáveis aos educadores<br />
que pretendem iniciar-se na episteme propulsora<br />
da riqueza ético-estética da educação e<br />
sua relação medular com as diversidades culturais<br />
que caracterizam os distintos povos do<br />
planeta.<br />
Há que se ter cuidado com os discursos e<br />
retóricas extremamente charmosos sobre “pluralidade<br />
cultural”, restritos a modismo e relações<br />
utilitaristas.<br />
A cautela que exigimos sobre isso chama<br />
atenção para as metanarrativas desprovidas de<br />
princípios seminais (núcleo deste ensaio) que<br />
fragmentam, banalizam, superficializam as experiências<br />
milenares de complexos civilizatórios,<br />
primordiais para a compreensão do que somos<br />
como povo.<br />
Pensar e propor políticas que privilegiem as<br />
diversidades culturais, é impulsionar “... as<br />
subjacências absolutas do religare: humanidade<br />
e cosmos, natureza, estrutura comunitária,<br />
linhagem, dinastia, ancestralidade e continuidade<br />
existencial – a sacralidade da vida.” (SAN-<br />
TOS, 2002, p.28).<br />
É nesse sentido que investimos na ruptura<br />
com o monopólio da fala neocolonial, ou, como<br />
propôs Frantz Fanon:<br />
... talvez conviesse recomeçar tudo (...) reinterrogar<br />
o solo, o subsolo, os rios – e por que não? O<br />
sol (...) A discussão do mundo colonial pelo colonizado<br />
não é um confronto racional de pontos de<br />
vista. Não é o discurso sobre o universal, mas a<br />
afirmação desenfreada de uma singularidade admitida<br />
como absoluta (FANON, <strong>19</strong>68, p.31).<br />
O horizonte, que abriremos a partir de agora,<br />
pretende aproximar os educadores de uma outra<br />
episteme que, compreendida na sua complexidade,<br />
pode ajudar-nos a desencadear novas elaborações<br />
que estabelecem formas de solidariedade<br />
e respeito para as distintas experiências que<br />
caracterizam as diversidades culturais.<br />
ARKHÉ, EIDOS E ETHOS:<br />
PRINCÍPIOS SEMINAIS ESTRUTURA-<br />
DORES DA COMUNALIDADE AFRICA-<br />
NO-BRASILEIRA<br />
A potência das noções de arkhé, eidos e<br />
ethos, que abordaremos, repousa nas dinâmicas<br />
existenciais de populações milenares, cuja<br />
pulsão de sociabilidade expressa o discurso sobre<br />
a experiência do sagrado e promove o acesso<br />
a um complexo sistema simbólico que influencia,<br />
profundamente, a estruturação de comunalidades.<br />
A tônica colocada sobre essas noções as<br />
focaliza como princípios seminais, isto porque<br />
estamos lidando com relações simbólicas riquíssimas<br />
carregadas de elaborações emocionais,<br />
transcendentais e imanentes, primordiais à experiência<br />
humana com o seu meio ético, social<br />
e cósmico.<br />
66 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003
Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />
Quando nos referimos a arkhé, estamos lidando<br />
com princípios inaugurais, origem, começo,<br />
continuum, dinâmicas de criação-recriação,<br />
transcendências que orientam o devir-futuro,<br />
estabelecendo a relação visceral entre tradição<br />
e contemporaneidade.<br />
Sobre o eidos, desdobra-se a compreensão<br />
da dimensão ontológica da diversidade humana,<br />
marcada pela angustiante procura de respostas<br />
sobre o estar no mundo, no universo, a<br />
pulsão da existência enriquecida pela linguagem<br />
mítica presentificada e absorvida no viver cotidiano<br />
das comunalidades.<br />
O ethos projeta o emocional-lúcido que envolve<br />
o discurso das comunalidades, expressando<br />
suas dinâmicas territoriais; instituições; visão<br />
de mundo; modos e formas de comunicação,<br />
portando e elaborando conhecimentos, emoções<br />
e gênese de criatividade, característica de universos<br />
simbólicos e formas comunitárias.<br />
É sobre esse corolário da episteme africana<br />
que desenharemos contornos reflexivos importantes,<br />
procurando estabelecer a dialética necessária<br />
às recriações de linguagens pedagógicas<br />
que possam influenciar, com veemência,<br />
políticas educacionais que acolham as diversidades<br />
culturais que mapeiam as sociedades<br />
contemporâneas.<br />
Atenção! Essas noções não podem ser confundidas<br />
pela leitura, dicotômica, linear, irreversível<br />
e simétrica que sobredetermina a produção<br />
acadêmico-científica positiva.<br />
Para aproximarmo-nos dessas noções, é<br />
necessária a elaboração de luto da onipotência<br />
edipiana, que alimenta o monopólio da fala que<br />
exploramos na primeira parte do ensaio.<br />
A fim de evitar esses equívocos, alguns autores/estudiosos,<br />
no campo da diversidade humana<br />
e/ou diversidades culturais, vêm-se dedicando<br />
a interpretar o discurso da comunalidade<br />
africano-brasileira, inserindo-o no âmbito do discurso<br />
teórico da sociedade oficial. Trata-se de<br />
um esforço de traduzir a episteme africana,<br />
procurando emitir idéias que contextualizem, no<br />
discurso acadêmico, o continente teórico-epistemológico<br />
africano.<br />
É preciso referir-se com prudência ao fundamento<br />
da bacia semântica positivista, com o<br />
propósito de convidar o leitor ao despojamento<br />
teórico do esquematismo, mensuração e engradamento,<br />
referência absoluta da sua formação<br />
acadêmica, positivista.<br />
Tudo que o positivismo pretenderá apagar, aplainar,<br />
unidimensionalizar, retorna revigorado, como<br />
que para significar, de uma maneira mais ou menos<br />
trivial, que não há saber absoluto. Do mesmo<br />
modo que somos obrigados a compor com a<br />
alteridade ou com a morte, é preciso que saibamos<br />
admitir a contradição na estática e na dinâmica<br />
das sociedades. (...) O conceito é uno, ou,<br />
pelo menos, compõe-se com conceitos vizinhos<br />
para construir uma unidade. Determina a verdade,<br />
o que deve ser a verdade. Tudo o que escapa<br />
ao seu domínio incide em erro e perde direito à<br />
existência. Eis um tanto esquematizada, a lógica<br />
do “dever-ser” que caracteriza a atitude<br />
conceitual. (MAFFESOLI, <strong>19</strong>85, p.58).<br />
O que propomos como ruptura:<br />
No que tange ao conhecimento, a atividade<br />
nocional se dá conta da heterogeneidade; ela<br />
fornece acerca de um mesmo objeto esclarecimentos<br />
diversos; enfim, indica que um tal objeto<br />
é a um só tempo isto e aquilo. Ela evita ainda que<br />
se transforme uma verdade local numa verdade<br />
universal. Do momento que se reconhece a falência<br />
ou ao menos a relativização do descomedimento<br />
prometéico, do qual é o conceito uma<br />
modulação, é necessário saber aceitar a modéstia<br />
da noção. Nosso estatuto, enquanto intelectuais,<br />
em nada será afetado; ao contrário, encontrará<br />
seu lugar devido na participação orgânica<br />
da sociedade. (MAFFESOLI, <strong>19</strong>85, p.60)<br />
Feitas essas considerações, podemos nos<br />
aproximar de um outro continente teóricoepistemológico<br />
de onde eclode vida e pulsão<br />
existencial.<br />
PULSÃO DE COMUNALIDADE<br />
O outro gradiente de escuta que propomos<br />
ao leitor a partir de agora, na intenção de promover<br />
a compreensão sobre os princípios seminais<br />
– arkhé, eidos e ethos, estruturadores de comunalidade<br />
–, está plenamente entrelaçado com o<br />
legado estético sagrado de Deóscoredes<br />
Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi Axipá,<br />
uma das mais expressivas lideranças do<br />
continuum africano nas Américas, e personalidade<br />
exponencial da educação contemporânea.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />
67
Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />
O legado do Mestre Didi constitui um universo<br />
de criações estéticas singulares que carregam<br />
ancestralidade e visão de mundo próprias<br />
da civilização africana, abrindo perspectiva de<br />
coexistência com outros patrimônios civilizatórios.<br />
Pertencente a importante linhagem de Ketu,<br />
Mestre Didi teve sua iniciação no culto do orixá<br />
Obaluaiyê que junto aos orixá Nanã e Oxumarê<br />
compõem o panteão da Terra, expressões míticas<br />
que nucleiam suas obras.<br />
Seu compromisso como Assogbá, Sacerdote<br />
Supremo, título que recebeu de Mãe Aninha<br />
Iyalorixá Oba Biyi, é executar e sacralizar os<br />
emblemas rituais de seu culto, e isso o torna<br />
herdeiro e continuador dessa experiência ancestral<br />
africana.<br />
Desde a sua infância, Mestre Didi produz<br />
objetos rituais, cuja extensão são belíssimas recriações<br />
no campo das artes escultóricas, obtendo<br />
consagração nacional e internacional.<br />
Além disso, muito pequenino teve o privilégio<br />
de viver imerso no universo mítico literário africano,<br />
que o levou a adaptar diversos contos que<br />
vêm influenciando, sobremaneira, a proposição<br />
curricular de iniciativas de vanguarda na área<br />
de educação.<br />
Mestre Didi possui o título de Alapini, Supremo<br />
Sacerdote do Culto Egungun, e exerce a<br />
liderança da comunidade-terreiro Ilê Axipá, uma<br />
das mais expressivas nas Américas.<br />
Mestre Didi foi iniciado na tradição do culto<br />
Egungun por Marcos Alapini, aos 8 anos de idade,<br />
recebendo o título de Korikouê Olukotun.<br />
Quando fez quinze anos, foi que Iyá Oba Biyi,<br />
yalorixá fundadora do terreiro Ilê Axé Opô<br />
Afonjá, deu-lhe o título de Assogbá-Sumo Sacerdote<br />
do culto de Obaluaiyê, no Ilê Axé Opô<br />
Afonjá. Esse título significa o consertador de<br />
cabaças, renovador da vida, Sacerdote Supremo<br />
do templo de Obaluaiyê.<br />
Em <strong>19</strong>80, Mestre Didi funda o Ilê Axipá, comunidade-terreiro<br />
de culto Egungun, que caracteriza<br />
a continuidade dos valores do Império Nagô<br />
na Bahia. No Ilê Axipá, está reunida a tradição<br />
fundada pelo Alapini Marcos, do antigo terreiro<br />
de Tuntun, englobando o culto aos espíritos ancestrais,<br />
as Iya Agbá, as Mães Ancestrais zeladoras<br />
e transmissoras de Axé, que, quando falecidas,<br />
integram a poderosa corrente mítica da<br />
comunidade (SANTOS, <strong>19</strong>85, p.16).<br />
Ressalte-se, porém, que o Mestre Didi pertence<br />
à família Axipá, originária de Oyó e uma<br />
das fundadoras da cidade de Ketu. Essa família<br />
repõe no Brasil, especificamente na Bahia,<br />
uma dinâmica sócio-política, mítico-religiosa da<br />
cultura Nagô expressa em casas tradicionais<br />
como o Ilê Axé Opô Afonjá. Mestre Didi é neto<br />
de Iyá Oba Biyi e filho de sangue de Mãe Senhora<br />
7 . É o membro mais velho da família Axipá<br />
no Brasil. Podemos afirmar que é um Omo Bibi,<br />
um bem-nascido.<br />
Em uma de suas viagens à África, em <strong>19</strong>67,<br />
quando realizava uma pesquisa para a Unesco,<br />
comparando a tradição dos Orixá da Bahia com<br />
os da África, Mestre Didi viveu um dos momentos<br />
mais emocionantes de sua vida ao encontrar<br />
os descendentes de sua família Axipá.<br />
A narrativa que se segue desse encontro,<br />
além da emoção contida, nos remete, ratificando<br />
com profundidade, a princípios de arkhé,<br />
eidos e ethos de uma elite africana, que preserva<br />
com dignidade a tradição Nagô expandindo<br />
nas Américas comunalidades<br />
Vejamos:<br />
Foi combinado com Pierre Verger que iríamos<br />
visitar o Rei da nação Ketu, no Daomé, África,<br />
para descobrir a família Axipá. Chegando lá, ele,<br />
conhecido por todos como Babalaô Fatumbi e<br />
amigo do Rei, fez nossa apresentação. Entreguei<br />
minha oferenda: uma garrafa de vinho. Imediatamente<br />
após agradecer, o Rei mandou abrir a garrafa<br />
e servir a todos os presentes, ficando, como<br />
é de costume, para se servir por último. Conversa<br />
vai, conversa vem, eu disse que era descendente<br />
da terra de Ketu, e ele, espantado com o<br />
meu Nagô-yorubá, mandou que eu desse prova<br />
do que havia dito. E assim foi que cantei algumas<br />
cantigas enaltecendo a terra, o Rei e a riqueza<br />
de seu povo.<br />
Então ele, todos os ministros e as demais pessoas<br />
que lá se encontravam na ocasião, ficaram<br />
surpresos e me escutaram emocionados, sem ter<br />
nunca imaginado que, do outro lado do oceano,<br />
existisse alguém capaz de cantar os cânticos tradicionais<br />
da nossa terra, dos nossos antepassa-<br />
7<br />
Ambas foram lideranças expressivas, Iyalorixás na comunidade-terreiro<br />
Ilê Axé Opô Afonjá.<br />
68 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003
Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />
dos. Quando terminei de cantar, o Rei, bastante<br />
sensibilizado, mostrou a coroa que estava usando,<br />
e, referindo-se a uma das cantigas, nos disse<br />
que não era daquela coroa que a cantiga falava,<br />
e sim de outra, com a qual os reis são consagrados.<br />
O ambiente era ternura estampados nas faces.<br />
Nisso, Juana lembrou-se de me perguntar por<br />
que não aproveitava para recitar o Oriki ou Orilé<br />
de minha família, que eu chamo de brasão oral.<br />
Dei muito pouca atenção à pergunta, mas, por<br />
insistência dela própria e de Verger, fui forçado a<br />
recitar o Oriki, mesmo porque o Rei observou<br />
quando Juanita se dirigiu a Verger em francês e<br />
ficou muito interessado.<br />
Eu disse, então, as seguintes palavras em Nagô:<br />
AXIPÁ BOROGUN ELESÉ KAN GONGÔÔ.<br />
Quando terminei, vimos o Rei aclamar: “Ah!<br />
Axipá!” e, levantando-se da cadeira onde estava<br />
sentado, apontou para um lado do palácio<br />
dizendo: “A sua família mora ali”.<br />
Ficamos todos surpresos, era inacreditável. Então<br />
o Rei chamou uma das pessoas mais velhas,<br />
a Iyá Nanã, e nos mandou levar à casa dos Axipá.<br />
Quando chegamos, descobrimos que a casa de<br />
Axipá era todo um bairro. Fomos levados à casa<br />
principal. Por ser um dia de semana, a maior parte<br />
dos homens estava trabalhando na roça da<br />
família, denominada Kosiku – onde não há morte.<br />
Fui apresentado a todos os presentes e quando<br />
recitei o orilé foi uma alegria geral, todos bateram<br />
palmas, vieram apertar minha mão querendo<br />
entabular conversações comigo, e eu fiquei<br />
tão emocionado que cheguei a ficar fora de mim,<br />
não entendia nem sabia de nada. Só via alegria, a<br />
alegria do semblante de todos que se acercavam<br />
para me cumprimentar.<br />
Logo nos levaram ao ojubó odé, lugar de adoração<br />
a Oxossi, mostrando onde estava assentado-enterrado-<br />
Axé da casa, e foram chamar uma<br />
das pessoas mais velhas da região da família<br />
Axipá, a fim de nos fornecer informações precisas.<br />
E foi assim que ouvimos e reconhecemos<br />
tudo aquilo que minha mãe, e as pessoas mais<br />
velhas diziam na Bahia. Além da linhagem real,<br />
Asipá foi uma das sete principais famílias fundadoras<br />
do reino Ketu. (SANTOS, <strong>19</strong>85, p.40).<br />
Com admirável delicadeza, abordamos as<br />
noções de arkhé, eidos e ethos, através de<br />
alguns aspectos da história emocionante de vida<br />
do Mestre Didi.<br />
Procuramos destacar e aprofundar que é<br />
através desse continuum civilizatório reposto<br />
no Brasil, que elaboramos a nossa concepção e<br />
proposta de educação pluricultural. Queremos<br />
demonstrar que o continuum civilizatório africano<br />
no Brasil e, especificamente, na Bahia<br />
constitui alteridades e caracteriza, em relação<br />
a outros processos civilizatórios, a nossa diversidade<br />
cultural. É a partir da referência desse<br />
continuum que fixamos nossas elaborações em<br />
torno da educação.<br />
Outro aspecto que acentuamos é que a<br />
Bahia abriga uma rica tradição cultural africana,<br />
uma das mais expressivas do mundo, e,<br />
portanto, tem potencialidade para contribuir na<br />
estruturação de políticas, concepções e linguagens<br />
educacionais, a partir dos valores existenciais<br />
da sua população. Salvador, principalmente,<br />
é uma cidade que está a exigir, há muito<br />
tempo, uma educação democrática que se<br />
abra para a diversidade, reforçando a alteridade<br />
própria e os valores culturais que pulsam<br />
no seu cotidiano.<br />
Assim concebidos, verificamos que o eidos<br />
e o ethos africanos são predominantes na Bahia,<br />
o que implica dizer que a população elaborou,<br />
secularmente, formas e modos de pensar, sentir<br />
estético-religioso, simbologias, filosofias, estratégias<br />
políticas, enfim, uma complexa linguagem,<br />
que irá sobredeterminar as relações sociais.<br />
A ESTÉTICA DO SAGRADO<br />
Ainda nessa viagem de escuta, vamos apresentar<br />
ilustrações da arte escultória de Mestre<br />
Didi, permitindo ao leitor uma compreensão<br />
mais apurada sobre os princípios seminais que<br />
tanto enfatizamos, e que consideramos impostergáveis<br />
para a produção de políticas educacionais<br />
imersas nas diversidades culturais. (Vide<br />
Foto 2).<br />
Esta é uma escultura de Mestre Didi, e representa<br />
Exú Amuniuá. A ilustração nos leva a<br />
outra noção fundamental para os objetivos do<br />
nosso trabalho: a de Exu, que se constitui com<br />
princípio de movimento e circulação.<br />
Exu-Bara é o Orixá responsável pelo interior<br />
do corpo, oba + ara, rei do corpo. Exu-Bara<br />
se constitui num dos aspectos e funções do Orixá<br />
que iremos sublinhar.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />
69
Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />
Foto 2 - Exú<br />
Amuniwá – Argila e<br />
cimento / Altura: 67<br />
cm - (Acervo de<br />
Mestre Didi –<br />
Imagem gentilmente<br />
cedida pelo artista<br />
plástico).<br />
O útero, a relação sexual, a interação do sêmen<br />
com o óvulo, a placenta fecundada, a circulação<br />
sanguínea e de outras substâncias, a fala,<br />
são alguns exemplos relacionados ao Orixá Exu.<br />
É importante destacar que o sêmen e o óvulo<br />
caracterizam-se como representações das<br />
matérias massas e dos princípios genitores masculino<br />
e feminino. Através de Exu, a interação<br />
é possibilitada. É ele quem desloca a matéria<br />
de origem Orun para o aiyê, dinamizando o<br />
desenvolvimento que a envolve. 8<br />
Exu também está associado às ações de<br />
introjeção e restituição e essas representações<br />
são encontradas em muitas esculturas que o<br />
apresentam chupando dedo, fumando cachimbo,<br />
soprando uma flauta, etc.<br />
As funções da boca, entre elas a fala e a<br />
comunicação, também se relacionam a Exu. Exu<br />
possibilita o ciclo vital, um corpo humano capaz<br />
de falar, ouvir, sentir e fazer expandir o princípio<br />
de movimento.<br />
Pois bem, é no seio desse universo míticosagrado,<br />
abordado até aqui, que transbordam as<br />
percepções lúdicas, de encantamento, fascinantes,<br />
que deslumbram o conteúdo de educação<br />
que estamos propondo, causando o estilhaçamento<br />
das redomas fronteiriças que constituem<br />
a percepção linear positivista, predominante na<br />
educação erigida pelo monopólio da fala.<br />
O sagrado tem a capacidade de amenizar a angústia<br />
existencial, ou melhor, os mistérios da existência,<br />
através de elaborações e ritualizações<br />
diversas sobre a origem e o devir. Além disso ele<br />
promove sobretudo a satisfação do desejo de<br />
estar junto, origem da vida societária. (...) Porém,<br />
as exigências produtivistas mercantilistas das<br />
sociedades industriais atropelam a temporalidade<br />
e espacialidade do sagrado, tentando esvaziar<br />
sua significação, recalcando as linguagens<br />
míticas e místicas através do enaltecer da técnica<br />
e da ciência, sobretudo reprimindo as<br />
alteridades, através da denegação da morte, o<br />
outro que há em nós mesmos, e pelo qual deixaremos<br />
de ser o que somos agora, transformando-nos<br />
um pouco a cada dia que passa, nesta<br />
ininterrupta e inexorável sucessão do ciclo de<br />
morte-renascimento, do qual todos fazemos parte.<br />
(LUZ, <strong>19</strong>92, p.118).<br />
Pelo exposto, pode-se verificar que continuamos<br />
ousando propor uma neolinguagem pedagógica<br />
ou um neocurrículo, que nos faça avançar<br />
na direção da impostergável necessidade<br />
de elaborar linguagens educacionais que invadam<br />
a ambiência escolar brasileira, inundandoa<br />
com perspectivas que a aproximem do arkhé,<br />
eidos e do ethos da tradição milenar africana,<br />
considerando o seu direito à alteridade própria<br />
das nossas crianças e jovens.<br />
De fato, aquela população infanto-juvenil que<br />
integra a comunalidade africano-brasileira teria<br />
oportunidade de freqüentar escolas que, na sua<br />
estrutura e funcionamento curricular, considerassem<br />
os valores próprios característicos da sua<br />
comunalidade, eminentemente de participação.<br />
Desejamos, portanto, provocar a ruptura com<br />
o sistema oficial de ensino vigente, que se alimenta,<br />
como vimos, do monopólio da fala que<br />
8<br />
Nas comunidades-terreiro nagô, a existência é elaborada<br />
em dois planos: o àiyéo mundo, e o òrun, que representa<br />
o além.O àiyé é o universo físico concreto, e a vida de<br />
todos os seres naturais que o habitam, portanto, mais<br />
precisamente, os ará-àiyé ou aráyé, habitantes do mundo,<br />
a humanidade. Já o òrun corresponde ao espaço sobrenatural,<br />
o outro mundo, o além, algo imenso e infinito. Nele<br />
habitam os ara-òrun, que são os seres ou entidades sobrenaturais<br />
(SANTOS, <strong>19</strong>85, p.17).<br />
70 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003
Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />
utiliza uma política de denegação aos valores<br />
originários da tradição africana. Os orixá do Panteão<br />
da Terra são os que nos alimentam e nos<br />
ajudam a manter a vida. Os meus trabalhos<br />
estão inspirados na natureza, na Mãe Terra-<br />
Lama, representada pelo orixá Nanã, patrona<br />
da agricultura. (Mestre Didi). (Vide Foto 3).<br />
Toda a expressão estética de Mestre Didi<br />
faz transbordar a linguagem mítica, emocionando<br />
e encantando aqueles que se põem a observar<br />
suas obras, aproximando-os dos códigos e<br />
repertórios do universo milenar africano.<br />
Numa poderosa linguagem suas obras contribuem<br />
para atualizar a visão de mundo, herdada e<br />
reelaborada, expandindo-se para fora de sua comunidade<br />
inicial, universalizando-se. Resultado<br />
de antigas memórias introjetadas milenarmente,<br />
vivenciadas - experiência existencial – Mestre<br />
Didi conduz com originalidade a continuidade<br />
emocional do complexo africano<br />
brasileiro, permeandoo<br />
e renovando-o com singularidade.<br />
As obras de Mestre<br />
Didi estão imbuídas de<br />
uma consciência, incorporada<br />
quase que geneticamente,<br />
da relação do homem com<br />
a Terra. Ao assumir a experiência<br />
ancestral de sua comunidade,<br />
recriando-a, sua<br />
alma transmite um sentimento<br />
de atemporalidade quando<br />
presentifica a anterioridade<br />
de origem unida do vital<br />
impulso de constante regeneração”<br />
(SANTOS, <strong>19</strong>85,<br />
Prefácio).<br />
Diante da plasticidade<br />
das esculturas do Mestre<br />
Didi, o observador é transportado<br />
para um outro universo<br />
de percepção que rompe com o olhar matemático<br />
que tende a enxergar apenas cores,<br />
formas e matérias objetivas.<br />
O impacto da linguagem plástica das esculturas<br />
permite acesso “... às subjacências absolutas<br />
do religare: homem, cosmos, homem e<br />
natureza, homem e estrutura comunitária, homem<br />
e linhagem, dinastia, ancestralidade, homem<br />
e continuidade existencial”. (SANTOS,<br />
<strong>19</strong>85, p.14).<br />
A estética do sagrado do Mestre Didi emana<br />
poesia mítica, plena de arkhé, eidos, e ethos<br />
fundamentais à constituição da episteme africana.<br />
Tudo isso é poesia! É essa linguagem que<br />
falta à nossa educação escolar.<br />
É com essa linguagem poética, emocionallúcida,<br />
rica em afetividade portadora do conhe-<br />
Foto 3 – XARARÁ – Cetro reunindo<br />
os símbolos do panteão da<br />
Terra / Nervura de palmeira, couro,<br />
búzios, contas e miçangas. Altura:<br />
72 cm. (Esta foto foi autorizada<br />
pelo autor da escultura,<br />
Deóscoredes Maximiliano dos<br />
Santos - Mestre Didi).<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />
71
Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />
cimento vivido e concebido no seio das distintas<br />
comunalidades, atravessadas intermitentemente<br />
por princípios seminais de tradição e<br />
contemporaneidade, que precisamos regar o<br />
cotidiano curricular das instituições que se propõem<br />
a acolher a população infanto-juvenil de<br />
descendência africana.<br />
ODARA, A PLENITUDE DA POESIA<br />
MÍTICA AFRICANO-BRASILEIRA<br />
Interessa-nos destacar algumas características<br />
que procuram ilustrar a dimensão estética<br />
que se manifesta, mediando formas e códigos<br />
de comunicação próprios de arkhé, eidos e<br />
ethos da civilização africana.<br />
Assim, a noção Nagô Odara será aqui utilizada<br />
com a intenção de aflorar os elementos e/<br />
ou aspectos da linguagem que sobredeterminam<br />
a estética mítico-sagrada, exprimindo dessa forma<br />
a identidade comunal. “... Odara exprime<br />
simultaneamente o bom e o belo. O útil e eficaz<br />
não está dissociado da beleza e do sentimento,<br />
o técnico e o estético são expressões únicas.<br />
(LUZ, <strong>19</strong>92, p.122).<br />
Odara permite um sistema de pensamento<br />
em que não há o afastamento do sentir e do<br />
pensar, da razão e da emoção; ao contrário do<br />
Ocidente, cujo exercício de comportamento<br />
exige a dicotomia, a síncrese, o afastamento da<br />
razão e emoção, o esquematismo “racionalista”,<br />
o ascetismo, a linearidade da teoria-prática e a<br />
inércia.<br />
... O elemento estético é bom essencialmente<br />
porque é portador de determinada qualidade e<br />
quantidade de axé, é belo porque sua composição,<br />
forma, textura, matéria e cor simbolizam<br />
aspectos de representação da visão de mundo<br />
característica da tradição, realizando a comunicação.<br />
(LUZ, <strong>19</strong>95, p.566).<br />
A dinâmica da linguagem espaço-temporal<br />
mítico-sagrada é o ancoradouro de Odara, porque<br />
se trata de um valor contido na linguagem do<br />
sagrado, e apenas por ser aprendido mediante<br />
as relações interpessoais, incorporado em situação<br />
iniciática, possibilitando a introjeção de emoções<br />
e sentimentos que se atualizam e se elaboram<br />
por meio de diferentes formas estéticas.<br />
São essas linguagens estéticas que dão teor<br />
às múltiplas relações (individuais e/ou coletivas)<br />
éticas, sociais e cósmicas, transportando, para<br />
o conhecimento vivido, emoção, afetividade e<br />
as elaborações mais profundas das necessidades<br />
existenciais.<br />
Portanto, toda cultura africana de origem<br />
Nagô é Odara. Ritualmente, todos os elementos<br />
estéticos visam magnificar o sagrado e estão<br />
relacionados aos conteúdos e às estruturas<br />
de uma determinada visão de mundo, manifestada<br />
esteticamente por intermédio do apelo a<br />
todos os sentidos (tato, audição, visão, paladar<br />
e olfato) que, numa síntese harmônica e conjunta,<br />
são capazes de transmitir conceitos.<br />
Nessa perspectiva de experiência mítica,<br />
interpessoal e ritual, Odara permite a expressão<br />
de uma linguagem contextual e estética, de<br />
onde transbordam expressões de dança, música,<br />
dramatização, vestuário, instrumentos,<br />
emblemáticas, culinária, polirritmia percussiva,<br />
textos, recriações de elementos dramáticos milenares,<br />
esculturas, etc.<br />
Alguns exemplos nos ocorrem, agora, para<br />
ilustrar e/ou contextualizar, um pouco, a influência<br />
de Odara.<br />
Por exemplo: nos toques de atabaques, há<br />
um tensão muito grande para que se executem<br />
bem as músicas. Os tocadores não estão ali para<br />
tocar apenas, mas para tocar muito bem, pois<br />
se exige que se toque e se execute bem uma<br />
polirritmia harmônica e afinada. Se não for possível,<br />
pára-se, corrige-se, evitando o toque desagradável<br />
que compromete a beleza do ritual.<br />
Há todo um esforço para que se executem bem<br />
os toques.<br />
O ritmo africano contém a medida de um tempo<br />
homogêneo (a temporalidade cósmica ou mítica),<br />
capaz de voltar continuamente sobre si mesmo,<br />
onde todo fim é o recomeço cíclico de uma situação.<br />
O ritmo restitui a dinâmica do acontecimento<br />
mítico reconfirmando os aspecto de criação<br />
e harmonia do tempo. (SODRÉ, <strong>19</strong>79, p.21).<br />
E mais:<br />
O ritmo é uma maneira de transmitir uma descrição<br />
de experiência que é recriada na pessoa que<br />
recebe não simplesmente como uma “abstração”<br />
ou emoção, mas como um efeito físico sobre o<br />
72 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003
Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />
organismo- no sangue, na respiração, nos padrões<br />
físicos de cérebro (...) um meio de transmitir<br />
nossa experiência de modo tão poderoso que<br />
a experiência pode ser literalmente vivida por<br />
outros. (SODRÉ, <strong>19</strong>79, p.24).<br />
Pode-se citar outro exemplo interessante:<br />
avalia-se se a roupa está boa, funcional, expressando<br />
os símbolos, permitindo o desenvolver dos<br />
gestos, a dimensão de beleza na composição<br />
dos diversos elementos (já que há uma técnica),<br />
cores, símbolos que têm a sua conceituação,<br />
as características das simbologias que estão<br />
sendo expressas. Exige-se boa performance<br />
técnica, em meio à criação, uma criatividade<br />
sobre uma linguagem estética.<br />
Aqui, saber e fazer constituem uma coisa só.<br />
Os códigos em Odara são sedutores, significativos<br />
para a formação da identidade cultural.<br />
Assim, por que não pensarmos uma linguagem<br />
pedagógica que se nutra da noção de<br />
Odara?<br />
A Mini Comunidade Oba Biyi 9 , primeira experiência<br />
de educação pluricultural no Brasil,<br />
inseriu na sua linguagem pedagógica a categoria<br />
Odara. Com isso, as crianças ficaram mais<br />
seduzidas a participar das atividades curriculares,<br />
pois se envolviam com a riqueza da dimensão<br />
estética Nagô própria da sua territorialidade.<br />
Fazia-se um apelo aos sentidos durante o<br />
tempo todo, incitando os participantes a aderir<br />
às situações apresentadas nesta comunidade.<br />
Não havia, como elemento centralizador, a<br />
criança trancada na sala de aula, inerte numa<br />
carteira, lidando com os elementos técnicos<br />
e/ou aparatos da escrita que, em nosso entendimento,<br />
são pobres no que tange às sensações<br />
que envolvem o corpo humano, pois nesse contexto<br />
da escrita apela-se, incessantemente, para<br />
a visão e o cérebro, em detrimento do tato, paladar<br />
e olfato, como é a onipotência edipiana da<br />
educação.<br />
A culinária também é um outro exemplo<br />
muito significativo para contextualizarmos a<br />
noção de Odara, principalmente porque há o<br />
pronunciamento de uma complexa combinação<br />
de repertórios de símbolos, sentidos e sensações.<br />
Aqui, encontramos elementos técnicos que<br />
se revelam no fazer, no atender às regras litúrgicas,<br />
à iniciação específica para poder manusear<br />
as oferendas, até que sejam constituídos os alimentos,<br />
cuja feição, correspondente às características<br />
simbólicas de uma estética própria,<br />
mobiliza os sentidos do olfato, paladar, tato, visão<br />
e audição.<br />
Essa totalidade de sentidos expressa odor,<br />
sabor, textura, forma, cor das substâncias que<br />
caracterizam axé 10 , promovendo conhecimento<br />
das qualidades constituintes das forças que<br />
representam cada entidade ou Orixá. Essas<br />
entidades ou Orixá têm seu alimento preferido,<br />
ou seja, as qualidades dos poderes correspondentes<br />
de seu axé.<br />
Assim, há uma profunda classificação de<br />
substância – signos culinários que detêm combinações<br />
pertinentes, formas e modo de preparo<br />
que constituem a ciência da culinária litúrgica.<br />
A culinária litúrgica é muito importante na<br />
circulação, introjeção de axé e na aprendizagem<br />
de conhecimentos no contexto da tradição<br />
africana. Mãe Aninha, a Iyá Oba Biyi, no II<br />
Congresso Afro-Brasileiro em <strong>19</strong>37, realizado<br />
em Salvador, escolheu como tema de sua comunicação<br />
a ciência da culinária litúrgica, afirmando<br />
desta forma a linguagem da tradição no<br />
âmbito acadêmico oficial.<br />
Por meio da culinária litúrgica também se<br />
realiza o re-ligare, que permite o compartilhar<br />
coletivamente conhecimentos e modos de sociabilidade,<br />
que potencializam a existência comunitária.<br />
Como os contos míticos fazem parte da dimensão<br />
estética Nagô e são plenos de Odara,<br />
vamos explorar um pouco a importância dos<br />
mitos na composição de perspectivas educacionais<br />
no âmbito das comunalidades africanas.<br />
Mestre Didi, apresenta narrativas míticas<br />
pelas quais aprendemos a sentir, perceber, valorizar<br />
e incorporar, em função de uma proposição<br />
de linguagem pedagógica.<br />
9<br />
Projeto piloto de Educação Pluricultural, idealizado e<br />
realizado pela Sociedade de Estudos das Culturas e da<br />
Cultura Negra no Brasil-SECNEB, no período de <strong>19</strong>76 a<br />
<strong>19</strong>86, na comunidade-terreiro Ilê Axé Opô Afonjá.<br />
10<br />
Axé, força invisível, mágico-sagrada de toda divindade,<br />
expressa a força vital que assegura a existência, permite o<br />
acontecer e o devir. Como toda a força, o axé é transmitido<br />
e conduzido por meios materiais simbólicos e<br />
acumuláveis.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />
73
Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />
... a plasticidade das imagens, as analogias, as<br />
alegorias, os diálogos dramatizáveis, a maneira<br />
negra de falar, o português dos velhos africanos<br />
que procuram adaptar e ilustrar, no plano do texto,<br />
o complexo contexto simbólico nagô. (...) Em<br />
sua genuinidade, os contos são formas específicas<br />
de transmissão dos valores sociais, místicos<br />
e éticos da tradição nagô, dos mais velhos aos<br />
mais jovens. (LUZ, <strong>19</strong>77, p.20.)<br />
O acervo literário do patrimônio civilizatório<br />
africano está caracterizado pelos contos que,<br />
geralmente, estão relacionados ao sistema oracular.<br />
A originalidade dos contos expressa formas<br />
específicas de transmissão dos valores da<br />
tradição, constituindo um aspecto pedagógico<br />
cujo desenvolvimento ocorre numa situação do<br />
aqui e agora, referida a uma experiência vivida,<br />
capaz de gerar uma sabedoria acumulada. Aqui,<br />
a comunicação se processa de maneira direta,<br />
pessoal ou intergrupal, dinâmica, acompanhada<br />
por cânticos, danças e dramatizações.<br />
Mestre Didi Axipá é um dos principais responsáveis<br />
pela preservação e divulgação de um<br />
riquíssimo acervo de contos milenares, em que<br />
as narrativas que ele imprime caracterizam-se<br />
por afirmações pedagógicas socializadoras. São<br />
narrativas orais, apreendidas sobretudo através<br />
da iniciação ritualística, e que dão formas singulares<br />
à pedagogia africana, possuindo importante<br />
finalidade e função, porque, além de expressarem<br />
a arte, constituem o significado das<br />
diversas relações do homem com seu contexto<br />
técnico e estético. O que diferencia os textos<br />
narrados por Mestre Didi da literatura ocidental<br />
do monopólio da fala é que, nos contos, estão<br />
contidos os vários modos utilizados pelo povo<br />
Nagô para promover a adaptação e socialização<br />
dos seus integrantes, a coesão social (LUZ,<br />
<strong>19</strong>93, p.157). Assim:<br />
... os contos ilustram o acervo de textos míticos<br />
acontecimentos históricos (inclusive os ocorridos<br />
na órbita da sociedade global com seus integrantes),<br />
que marcados por sua intemporalidade<br />
narrativa e sua característica fantástica de<br />
representações, reforçam e ensinam os padrões<br />
e valores indicativos dos comportamentos necessários<br />
à coesão do grupo. Os contos narrados<br />
ilustram o significado de conhecimentos e<br />
de moral das diversas representações simbólicas<br />
que ensinam i dirigem a socialização. O significado<br />
das narrativas de Mestre Didi é<br />
patrimônio genuíno da cultura negro-brasileira.<br />
O escritor apresenta-se como narrador, como<br />
porta-voz da comunidade na comunicação com<br />
a sociedade global. (LUZ, <strong>19</strong>77, p.66).<br />
Como estamos imersos na linguagem plena<br />
em Odara, indicando outros valores para uma<br />
educação que acolha as diversidades culturais,<br />
vamos explorar uma das abordagens mais significativas<br />
da episteme africana – os contos<br />
míticos.<br />
Mais uma vez apelaremos para o acervo literário<br />
de Mestre Didi que nos conta o mito A Chuva<br />
de Poderes, numa rica adaptação feita com exclusividade<br />
para a Mini Comunidade de Oba Biyi,<br />
experiência de vanguarda no campo diversidade<br />
cultural e educação, assim reconhecida por ter<br />
inaugurado um denso repertório pedagógico<br />
alicerçado na episteme africano-brasileira.<br />
CHUVA DE PODERES<br />
Desenho feito por Maurício<br />
do Patrocínio Luz – 12 anos.<br />
por Mestre Didi<br />
Há muitos anos passados quando a Terra foi criada,<br />
as primeiras pessoas que vieram se estabeleceram em forma<br />
de uma pequena aldeia que depois cresceu e se tornou<br />
uma cidade chamada Ifé.<br />
Muitos dos Orixá que vieram do Orun, o infinito, foram<br />
morar junto com pessoas em Ifé. Quando os Orixá estavam<br />
saindo do Orun, Olorum, Senhor do Orun, que é o<br />
chefe de todos os Orixá, o mais antigo, o que comanda<br />
74 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003
Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />
a todos, disse para eles que quando fossem morar com as pessoas da<br />
Terra,iam ter uma responsabilidade muito grande com o povo de Ifé.<br />
Ele disse:<br />
– Lembrem que vocês são Orixá e que, sempre, têm que ajudar a<br />
qualquer pessoa que venha ter algum problema.<br />
Bem, nós sabemos que cada Orixá é muito especial, de uma maneira<br />
ou de outra ele tem uma forma de poder ajudar. Orumilá por exemplo,<br />
ele sabe predizer o futuro, ele sabe o que vai acontecer com cada pessoa,<br />
com cada cidade e até mesmo com cada Orixá. Sabemos também,<br />
que Exu é um Orixá que entende todas as línguas do mundo e que ele é<br />
um grande mensageiro entre Olorum e os habitantes da Terra.<br />
Mas nem todos os Orixá naquela época tinham um poder especial.<br />
Depois que os Orixá se instalaram com o povo de Ifé, eles acharam<br />
que não tinham os poderes necessários para que pudessem realmente<br />
ajudar aos seus novos vizinhos. Assim, por exemplo, quando não havia<br />
chuva para fazer crescer a mandioca e os grãos que eram plantados<br />
para fazerem comida, os agricultores, aqueles que trabalhavam na terra<br />
iam aos Orixá para pedir que fizessem chover.<br />
Mas, nada eles podiam fazer sem que primeiro fossem falar com<br />
Olorumilá, porque só ele era quem se comunicava diretamente com<br />
Olorum e sabia predizer o futuro, dizendo o que deveria ser feito para<br />
solucionar os problemas. Assim sendo, os Orixá pouco a pouco começaram<br />
a ficar muito tristes porque não podiam fazer o que deveria ser<br />
feito para ajudar o povo, conforme tinham se comprometido com Olorum,<br />
desde quando estavam dependendo de Orumilá para poderem solucionar<br />
os problemas.<br />
Os problemas eram muitos: eram os quiabos, os inhames, todos os<br />
grãos que não conseguiam crescer, eram as doenças, as brigas entre<br />
vizinhos, sem falar das fofocas.<br />
Assim sendo, todos os Orixá se reuniram e procuraram saber de<br />
Orumilá o que era que eles tinham, e o que fazia eles serem diferentes<br />
das pessoas, uma vez que nada eles podiam fazer para ajudar a elas.<br />
Daí foi que cada um dos Orixá desejou ter um poder especial para<br />
conseguir ajudar ao povo de Ifé e de todo mundo.<br />
Eles queriam ter de presente um poder.<br />
Orixá Xangô se queixando perguntou:<br />
- Por que só você, Orumilá, deve carregar sozinho essa responsabilidade<br />
tão pesada e só você tem o poder de resolver todos os problemas<br />
de Ifé? Dê-me alguma parte do seu conhecimento para que eu possa<br />
compartilhar a responsabilidade com você e poder ajudar também.<br />
Exu disse:<br />
- Eu conheço as línguas de todo o mundo. E o que posso fazer conhecendo<br />
todas essas línguas desde quando não tenho nenhum poder para<br />
realizar algo de bom com esse talento que possuo?<br />
Ogum Oxossi, Oyá, todos os demais Orixá também se queixaram.<br />
Orumilá escutava todas as queixas dos Orixá e finalmente falou:<br />
- Minhas irmãs e meus irmãos eu quero muito bem a todos vocês,<br />
aprecio muito a preocupação que têm comigo e com o povo de Ifé.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />
75
Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />
Mas, eu quero ser considerado justo por vocês na distribuição desses<br />
poderes, porque na verdade nem todos os poderes têm a mesma<br />
importância, apesar de que todos eles pequenas ou grandes são necessários<br />
para harmonizar o mundo.<br />
Portanto peço, por favor, que tenham paciência porque eu vou ter<br />
que encontrar uma solução.<br />
Todos os Orixá depositaram confiança em Orumilá e partiram aguardando<br />
a solução do problema.<br />
Assim foi que Orumilá pensou, pensou e pensou. Quanto mais ele pensava<br />
encontrar alguma resposta, mais difícil ficava para ele encontrar<br />
a maneira de como poder solucionar o problema dos poderes para os<br />
Orixá.<br />
Um dia ele resolveu sair para dar um passeio na floresta para ver se<br />
clareavam mais as idéias. Enquanto ele estava caminhando distraidamente,<br />
submergido nos seus profundos conhecimentos, Agemó, o<br />
camaleão começou a observar Orumilá.<br />
Conforme vocês devem saber o Agemó não é um bichinho ordinário<br />
qualquer, ele é o camaleão, o servidor especial de Olorum, o que significa<br />
que ele pode mudar todas as cores, para se harmonizar com tudo que<br />
o rodeia. Assim ele ficou sentado e continuou a observar Orumilá. Ele<br />
estava da cor verde escuro, da mesma cor que estava a floresta. Dessa<br />
forma, Orumilá não podia distinguir Agemó entre as folhas. Finalmente<br />
Agemó falou:<br />
- Orumilá meu irmão, você parece muito preocupado. Você o filho<br />
mais velho de Olorum não pode ter nenhuma coisa tão terrivelmente<br />
séria para lhe deixar tão preocupado?<br />
- Oh! Agemó. – Exclamou Orumilá.<br />
- Eu nem notei você aí. Para responder a sua pergunta, saiba que eu<br />
tenho um verdadeiro desafio, que é ter de distribuir os poderes do<br />
mundo para todos os Orixá. Esse é o grande problema que está me preocupando<br />
no momento.<br />
Daí ele explicou para Agemó, dizendo-lhe:<br />
- Alguns Orixá deverão receber um poder menor do que os outros e<br />
eu quero que todos fiquem satisfeitos com aquilo que receber. Como<br />
você sabe, todos os poderes grandes e pequenos, todos eles são importantes<br />
para harmonia do mundo.<br />
Quando Orumilá terminou de falar, Agemó disse:<br />
- Porque você não volta para Orun, o além, e desde lá não avisa e não<br />
manda para o mundo, para Ifé, em determinado dia e hora uma chuva de<br />
poderes, porque assim todos os Orixá vão ficar esperando no lugar determinado<br />
e cada um terá que pegar aquele poder que coube para ele.<br />
Assim sendo nenhum deles vai pensar que houve proteção de sua parte<br />
para um ou para outro.<br />
- Oh Agemó! Meu querido e velho amigo, foi por isso que meu pai<br />
escolheu você como o seu melhor servidor. A sua idéia é brilhante! Isso<br />
é uma verdadeira resposta. Exclamou Orumilá.<br />
No dia marcado, Orumilá fez a seleção e determinou que ia cair chuva<br />
de poderes, todos os Orixá ficaram esperando em um lugar num<br />
76 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003
Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />
grande espaço aberto, com os olhos dirigidos para onde deveria cair a<br />
chuva dos poderes.<br />
Orumilá deixou cair todos os poderes do mundo, e, assim, foi que<br />
houve uma grande corrida e cada um dos Orixá tratava de pegar alguma<br />
coisa.<br />
Exu era um corredor extremamente rápido e assim ele foi capaz de<br />
conseguir como presente um dos poderes mais importantes do mundo,<br />
que fez dele o dono das encruzilhadas.<br />
Desse dia em diante todo mundo deveria pedir licença a Exu antes<br />
de iniciar alguma viagem ou qualquer projeto. Por isso sabemos que a<br />
personalidade de Exu varia assim como as encruzilhadas, de três a quatro<br />
direções e ele pode escolher a que mais lhe convier.<br />
Assim foi que Xangô também pegou o poder das pedras e do trovão.<br />
Ele se converteu no mais poderoso guerreiro de todos os líderes.<br />
Cada Orixá recebeu o seu presente de acordo com sua habilidade<br />
para poder usar e fazer alguma coisa com sucesso.<br />
E assim todos os Orixá ficaram satisfeitos com seu poder porque<br />
foi o que cada um conseguiu ganhar de acordo com seu merecimento.<br />
Dessa data por diante, cada Orixá ficou com a capacidade para resolver<br />
determinados problemas do mundo, de acordo com o poder que recebeu<br />
do Orun para fazer com que o povo da tradição dos Orixá possa<br />
encontrar em cada um deles uma maneira de resolver seus problemas e<br />
viver com muita paz e harmonia entre os seus semelhantes.<br />
Mais uma vez arkhé, eidos e ethos se intercambiam<br />
influenciando o viver cotidiano e estruturando<br />
a identidade africana. O conto, pleno<br />
de sabedoria, aponta para o infinito de onde<br />
emana a dimensão ontológica da diversidade<br />
humana. A ética estabelecida no contexto do<br />
conto:<br />
... expressa a variedade dos destino, as diferentes<br />
qualidades do axé, força vital, a multiplicidade<br />
da vida e de seu conhecimento. (...) a harmonia<br />
do cosmos se estabelece nesta visão do mundo<br />
através da afirmação da existência da diferença.<br />
A diferença expressa o contraditório, o conflito,<br />
o desconhecido, a complementação, o equilíbrio,<br />
a harmonia e a expansão: Se se pensa nas diferentes<br />
formas de percepção da realidade social e<br />
humana no âmbito do conhecimento ela é um<br />
sistema de nossa característica ontogenética e<br />
cosmogônica. (LUZ, <strong>19</strong>93, p.74)<br />
A fim de compreender melhor o conto, gostaríamos<br />
de realçar algumas características das<br />
personagens que realizam a dinâmica ético-estética<br />
da narrativa de Mestre Didi:<br />
Olorum é a entidade suprema, o detentor de todos<br />
os poderes que tornam possível e regulam a<br />
existência tanto no aiyê – este mundo, como no<br />
Orun – o além. Ele contém os poderes da existência,<br />
da direção e do objetivo. Ele é Alaba, é<br />
axé, aquele que é e possui propósito e poder de<br />
realização. A entidade suprema, origem das origens,<br />
protomatéria espiritual e material de todos<br />
os níveis do existir. (SANTOS, 2000 p.22).<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />
77
Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />
Orumilá, princípio de sabedoria de todo o<br />
universo, é responsável pela consulta ao oráculo<br />
mediador entre aiyê e orun, obtendo orientações<br />
para abrir os caminhos.<br />
É assim que, através da Chuva dos Poderes,<br />
cada Orixá adquiriu características originais:<br />
Exu ficou com toda mobilização do sistema<br />
existencial, conduzindo oferenda, mensagens,<br />
mediante a comunicação entre os Orixá e os<br />
seres humanos e até com Olorum.<br />
Ogum, princípio que reúne a força das pedras<br />
e do ferro, é referência das ferramentas,<br />
armas, guerreiros.<br />
Ossayin princípio das folhas, ervas, farmacologia.<br />
Xangô adquiriu o poder do fogo e do trovão<br />
e representa a realeza, a dinastia, as linhagens.<br />
Oxum, princípio das águas doces, é responsável<br />
pelo fluxo menstrual, da maternidade, dos<br />
nascituros.<br />
Nanã, princípio da lama, fecundidade, dialética<br />
da vida e da morte, é patrona da agricultura.<br />
São alguns exemplos de poderes alcançados<br />
pelos orixá, estabelecendo a harmonia no<br />
universo e demonstrando a capacidade interdinâmica<br />
desses poderes.<br />
O conto realça a importância dos Orixá no<br />
panteão ético-estético do universo sagrado africano.<br />
Todo o poder dos Orixá vem da força de<br />
Olorum, expressa através da natureza, água,<br />
floresta, fogo, ar, terra... É desse universo simbólico<br />
que as comunalidades se organizam, estabelecem<br />
instituições e toda conduta emocional-cognitiva<br />
que regula o estar no mundo.<br />
A INFINITUDE DA DIVERSIDADE<br />
Certa vez, na Mini Comunidade Oba Biyi,<br />
primeira experiência de educação pluricultural no<br />
Brasil, uma professora apresentou o globo terrestre<br />
para as crianças dizendo-lhes: “Isso aqui<br />
é o mundo”. Imediatamente, as crianças responderam<br />
admiradas, surpresas e perplexas com a<br />
“verdade” da professora: “Isso é o mundo?”<br />
É essa perplexidade que, todo o tempo, procuramos<br />
imprimir nas contribuições reunidas<br />
neste ensaio – a ruptura com o olhar universal<br />
de Édipo: a dúvida diante de verdades apresentadas<br />
como inquestionáveis, irreversíveis, absolutas.<br />
Relativizar deve ser a meta dos analistas<br />
simbólicos diante dos desafios que nos levam à<br />
leitura do mundo.<br />
A compreensão sobre Pluralidade Cultural,<br />
ou, como preferimos, Diversidade Cultural, não<br />
pode ser finita, mensurável, submetida à taxionomia<br />
cartorial burocrática que a reduz ao confinamento<br />
da bacia semântica erigida pela onipotência<br />
edipiana da episteme ocidental. Precisamos<br />
conceber uma abordagem de Educação que<br />
acolha os múltiplos universos.<br />
Os Universos!<br />
Múltiplos, alternativos, complementares, todos em mim.<br />
E quantos outros, ainda por incorporar viver<br />
viver neles, entre eles, nos interstícios do preformado:<br />
etnia, grupo, família<br />
Interstícios-poentes em meio dos específicos<br />
Pressionada e pressionando aberturas, espaços ricos,<br />
de inconscientes outros que não apenas os da<br />
história limitada de meus próprios ancestrais (...)<br />
Por que não?<br />
sonhar com outros símbolos, ter premonições,<br />
e abalar os próprios limites de um inconsciente<br />
ou um superego herdados contextuais,<br />
quem nem sequer foram por mim escolhidos,<br />
nem mesmo consentidos<br />
78 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003
Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />
a esta altura de minha maturidade.<br />
quero também o outro, ou os outros, múltiplos, diversos,<br />
não quero espelho de mim mesma,<br />
mas seres, eles mesmos, inteiros, belos, sofridos,<br />
Limitados em suas próprias explorações.<br />
(Múltiplos Universos - Juana Elbein dos Santos - outubro <strong>19</strong>80)<br />
Não é possível conceber um pensamento e<br />
projeções políticas para a educação no campo<br />
da pluralidade cultural sem considerar a potência<br />
dos princípios seminais – arkhé, eidos,<br />
ethos, pulsão de comunalidade.<br />
Fica, então, o desafio para as gerações su-<br />
cessoras de reconhecerem as alteridades civilizatórias<br />
que caracterizam distintos povos e<br />
aprenderem a coexistir com essas riquezas étnico-culturais,<br />
banhando o cotidiano escolar com<br />
essas possibilidades de valores e linguagens<br />
viscerais à expansão da vida.<br />
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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />
79
Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />
SANTOS, Deóscoredes Maximiliano dos; SANTOS, Juana Elbein. Èsú Bara, principe individuel de la vie. In:<br />
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_____. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes, <strong>19</strong>88.<br />
Recebido em 28.05.03<br />
Aprovado em 24.07.03<br />
80 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003
Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />
A (RE)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA<br />
AFRO-DESCENDENTE A PARTIR DE UMA PROPOSTA<br />
ALTERNATIVA DE EDUCAÇÃO PLURICULTURAL<br />
Yara Dulce B. de Ataíde *<br />
Edmilson de Sena Morais **<br />
RESUMO<br />
Apesar de já existirem epistemes que nos balizam teoricamente, as experiências<br />
existentes sobre educação pluricultural são isoladas e as práticas nesse<br />
campo ainda são esparsas e se encontram em fase embrionária. A falta de<br />
políticas sérias e de investimento material, pedagógico e didático por parte<br />
dos dirigentes da educação ainda permitem que as matrizes étnicas afroaborígines<br />
sejam caricaturadas por parte de muitos profissionais que não possuem<br />
referenciais teóricos para a consecução de um projeto de tão significativa<br />
importância. Falta aos educadores a incorporação, de forma corajosa, de<br />
práxis pedagógica e dialógica, de propostas multiculturais que atendam plenamente<br />
às demandas cotidianas da escola. Enquanto isso não acontece, de<br />
forma sistematizada e reconhecida nas escolas, ocorrem apenas experiências<br />
isoladas, que trabalham em busca da construção de uma identidade<br />
étnica, social, cultural e cidadã para afro-descendentes. Estas experiências,<br />
associadas aos referenciais aborígines, trabalham aspectos etno-culturais, que<br />
visam a construção deste grupo enquanto indivíduos-sujeitos. Neste artigo,<br />
apresentamos uma proposta pedagógico-curricular que priorizou a construção<br />
da identidade plural na perspectiva interétnica. A elaboração do texto foi<br />
realizada a partir da análise de uma experiência individual, através da narrativa<br />
de uma jovem afro-descendente, participante de um curso técnicoprofissionalizante<br />
que privilegiou os aspectos das suas matrizes étnicas.<br />
Palavras-chave: Educação – Identidade étnica – Afro-descendentes –<br />
Educação pluricultural<br />
ABSTRACT<br />
THE (RE)CONSTRUCTION OF THE ETHNIC AFRO-DESCEN-<br />
DENT IDENTITY DEPARTING FROM AN ALTERNATIVE<br />
PROPOSAL OF PLURI-CULTURAL EDUCATION<br />
Even though there are already epistemes that theoretically guide us, the<br />
existing experiences about pluri-cultural education are isolated and the<br />
*<br />
Doutora em Educação; professora titular e pesquisadora da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, no<br />
Departamento de Educação, Campus I – Salvador; editora geral da Revista da FAEEBA. Endereço para<br />
correspondência: Rua Ceará, 1072 apto 1301, Ed. Villa Del Rey – 41.8390-451, Salvador-Ba. E-mail:<br />
yaraataide@terra.com.br<br />
**<br />
Licenciado em História (UCSal); especialista em Teoria e Metodologia da História (UEFS); mestre em<br />
Educação e Contemporaneidade (UNEB); professor da Rede Púbica de Ensino Estadual e Municipal do<br />
Estado da Bahia. Endereço para correspondência: Rua Rio Parnaíba, bloco 43, apto 102, Boca do Rio.<br />
Salvador-Ba. CEP 41706-170. E-mail: edmorsaba@yahoo.com.br.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />
81
A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />
practices in this field are still sparse and located in an embryonary phase.<br />
The lack of serious politics and of material, pedagogical and didactic<br />
investment on the part of the directors of education still allow that the Afroaborigine<br />
ethnical matrixes be sketched by many professionals who lack<br />
theoretical references for the consecution of a project of such meaningful<br />
importance. Educators lack the incorporation, in a courageous way, of the<br />
pedagogical and dialogical praxis, of multicultural proposals that fully attend<br />
to the everyday demands of school. While this does not happen in a<br />
systematized and recognized way in schools, only isolated experiences occur,<br />
which work in pursue of the construction of an ethnic, social, cultural and<br />
citizen-like identity for Afro-descendants. These experiences, associated to<br />
the aborigine references, work on ethnic-cultural aspects, which aim at the<br />
construction of this group as individuals-subjects. In this article, we present<br />
a pedagogical-curricular proposal that has prioritized the construction of the<br />
plural identity in the interethnic perspective. The elaboration of the text was<br />
realized departing from the analysis of an individual experience, through the<br />
narrative of a young Afro-descendant, participant of a technicalprofessionalizing<br />
course that has privileged the aspects of her ethnic matrixes.<br />
Key words: Education – Ethnic Identity – Afro-descendants – Pluri-cultural<br />
Education<br />
1. Pluriculturalidade: problematizando<br />
a questão da diversidade cultural<br />
As propostas de educação pluricultural pressupõem<br />
a aceitação dos valores essenciais dos<br />
diversos povos ou grupos culturais que compõem<br />
um país, buscando referências e estimulando<br />
pensamentos e práticas sociais que permitam<br />
a todos seus cidadãos construir uma sociedade<br />
e uma visão de mundo que proporcione<br />
inclusão e justiça social. Estas propostas visam<br />
promover, em todos os sujeitos sociais, a<br />
auto-estima, a inserção social e a identidade<br />
étnico-cultural e política. No nosso contexto histórico,<br />
a premissa básica é fazer com que os<br />
historicamente oprimidos 1 pelos valores coloniais<br />
hegemônicos – que se perpetuam até os dias<br />
de hoje – avaliem criticamente a realidade, sobretudo<br />
o referencial eurocentrista, enquanto<br />
modelo civilizatório preponderante e possam<br />
concretamente superá-lo, fazendo emergir seus<br />
próprios valores.<br />
Considerando-se especificamente a questão<br />
da educação pluricultural e do nosso modelo<br />
hegemônico eurocentrista, a partir da realidade<br />
da Cidade do Salvador, podemos afirmar que,<br />
apesar de alguns avanços, as representações<br />
da África e dos africanos ainda são construídas<br />
através da perspectiva eurocêntrica darwinistailuminista.<br />
O “carnaváfrica” 2 foi um grande<br />
exemplo disto. A África que foi apresentada nos<br />
painéis, nas imagens e figuras durante o carnaval<br />
de Salvador, no ano de 2001, nada mais foi<br />
do que a clonagem de uma África e de um africano<br />
primitivo, neolítico, habitante de savanas.<br />
A África não é isto. Sabemos que grandes civilizações<br />
prosperavam naquele continente por<br />
ocasião do impacto colonial, promovido pela<br />
expansão capitalista do século XV. Hoje, existem<br />
grandes conglomerados urbanos e uma<br />
cultura material e espiritual diferenciada e privilegiada.<br />
1<br />
Negros, índios, mulheres, crianças, ciganos e outras tantas<br />
minorias silenciadas e massacradas ao longo da História.<br />
2<br />
Tema do carnaval de Salvador no ano de 2001, a partir da<br />
qual a África foi representada através das savanas e da<br />
vida selvagem; e o africano, por sua vez, estilizado e estigmatizado<br />
em trajes e modos de vida exclusivamente<br />
tribais.<br />
82 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003
Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />
Uma proposta de educação apropriada para<br />
esse momento histórico em que vivemos deve<br />
considerar nossa di versidade cultural e enfocar<br />
a maioria índio e afro-descendente. As bases<br />
curriculares não devem transformar tão importante<br />
assunto simplesmente em “temas transversais”.<br />
Eles devem ser oficialmente incluídos<br />
no currículo, com destaque para os repertórios<br />
civilizatórios afro-aborígines, a partir das suas<br />
visões de mundo. Isso fará com que o aluno,<br />
enquanto sujeito, sinta orgulho da sua ancestralidade<br />
e das suas matrizes etno-culturais, percebendo,<br />
no cotidiano escolar e nos conteúdos<br />
pedagógicos, aspectos relevantes de povos que<br />
tomaram parte na nossa formação étnico-cultural.<br />
Esta abordagem transversal referida é<br />
realizada de forma folclorizada e é flagrante –<br />
e às vezes aberrante – em muitas situações de<br />
sala de aula e eventos culturais nas escolas. Os<br />
currículos passam ao largo e ancoram longe da<br />
cultura africana, produtora de saberes próprios,<br />
de tecnologia, de relações sociais e políticas,<br />
conhecimento científico, uso da botânica,<br />
repertórios da história oral, mitos e religiosidade.<br />
Assim, longe de contribuir para a desmistificação<br />
dessa imagem primitiva-reducionista imposta<br />
pelo colonizador, a omissão desses conteúdos<br />
históricos nos currículos atuais contribui<br />
para a sua obsolescência e marginalização dos<br />
afro-descendentes.<br />
A (re)tomada de valores ético-estéticos dos<br />
vários povos que foram mantidos fora do currículo,<br />
ao longo desse perverso processo<br />
colonialista homogeinizante e globalizante, é<br />
fundamental. Ela constitui o centro basilar da<br />
nova consciência e postura política na qual toda<br />
uma herança sócio-cultural seja revivida, reverenciada<br />
e concebida enquanto matriz formadora<br />
dos mais variados grupos étnicos espalhados<br />
no mundo. Mas, é mister que sejam considerados<br />
os referenciais culturais ancestrais em<br />
seu devir, seu modus vivendi e suas interações<br />
interétnicas.<br />
As “comunalidades” 3 de todo o mundo tendem<br />
cada vez mais a emergir do anonimato<br />
imposto pelos “conquistadores”, anunciando<br />
suas auto-afirmações enquanto povos históricos<br />
e culturalmente localizados. Possuidores de<br />
referenciais civilizatórios próprios, eles são capazes<br />
de contribuir para o legado sócio-cultural<br />
humano com valores ético-estéticos que podem<br />
ser tomados como referenciais de uma sociedade<br />
tão plural quanto a atual.<br />
Dessa forma:<br />
... a contemporaneidade caracteriza-se num aquiagora<br />
que, de um lado, por ser diverso é tenso,<br />
de luta, atrito, conflito, patrimonialista, autoritário<br />
e patriarcal; de outro, é rico em fraternidade,<br />
comoção, indignação, coexistência complementar<br />
das diversidades, paixão, comunicação, sedução,<br />
direito à alteridade própria, constituição<br />
de uma “ética do futuro”.<br />
Esse aqui e agora é enriquecido por essa<br />
dialética que acolhe as contemporaneidades<br />
forjadas pelos distintos continuums civilizatórios<br />
(LUZ, <strong>19</strong>99, p.71).<br />
Faz-se então necessário que tais questões<br />
sejam tomadas como referência, fazendo parte<br />
das discussões em salas de aula, enquanto parte<br />
intrínseca de projetos educacionais que contribuiriam,<br />
em todas as partes do mundo, para a<br />
construção e reconstrução de um conhecimento<br />
plural das arkhés 4 civilizatórias desses povos,<br />
iluminando as reflexões sobre a situação da<br />
conjuntura mundial atual com suas intolerâncias<br />
generalizadas (LUZ, <strong>19</strong>99, p.49-52).<br />
A unidade na diversidade. Este pressuposto<br />
deve ser tomado como parâmetro curricular<br />
nacional para que o conceito de civilização etnocêntrica<br />
européia não continue a ser tomado<br />
como padrão, mas que sejam incorporados nas<br />
propostas educacionais aspectos culturais, filosóficos<br />
e pedagógicos das civilizações ameríndias<br />
e africanas que formam a nação brasileira,<br />
pois não se consideram os valores ético-estéti-<br />
3<br />
Comunalidade e/ou grupo social são organizações sociais<br />
em que “se consolida e estabelece [sic] formas e/ou modos<br />
próprios de comunicação, dos quais derivam-se linguagens<br />
em que está contido um rico repertório de signos<br />
que desenvolvem relações simbólicas que configuram uma<br />
identidade” (LUZ, 2000, p. 100).<br />
4<br />
Palavra de origem grega que se refere tanto à origem<br />
como ao devir, futuro, princípios inaugurais que estabelecem<br />
sentidos, força e dão pulsão às formas de linguagem<br />
estruturadoras da identidade; princípio-começo-origem:<br />
princípio recriador de toda experiência; gênese (LUZ,<br />
<strong>19</strong>99).<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />
83
A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />
cos desses povos dentro de uma visão mais<br />
ampla, valorizando suas arkhés civilizatórias, que<br />
podem contribuir com suas visões de mundo nos<br />
processos de valorização da vida e da preservação<br />
dos ecossistemas (LUZ, <strong>19</strong>99).<br />
Para tanto, uma educação sustentada nesse<br />
viés tem como objetivo valorizar as culturas ancestrais<br />
dos aborígines e afro-descendentes que,<br />
ao longo desses quatro séculos, sofreram e sofrem<br />
discriminação e esvaziamento cultural das<br />
suas matrizes étnicas, principalmente os que estiveram<br />
e estão afastados de comunidades que<br />
lhes dão referências culturais e visões de mundo<br />
próprias como forma de se auto-afirmarem.<br />
Essa educação deve incorporar valores ético-estéticos<br />
– entre outros – dos aborígines e<br />
africanos na dialética da convivência dos diferentes,<br />
respeitando e valorizando suas alteridades,<br />
códigos éticos morais, símbolos, mitos, filosofias,<br />
literatura, arte e hierarquias, que foram<br />
reelaboradas nas Américas pelos africanos e<br />
foram preservadas por muitos grupos aborígenes.<br />
Atualmente, muitos deles estão buscando,<br />
na memória coletiva e na dos mais velhos, a<br />
tradição ancestral que lhes dão dignidade, identidade<br />
e referenciais enquanto sujeitos histórico-culturais.<br />
5<br />
O projeto de educação nacional é exógeno,<br />
baseado no projeto hegemônico capitalista internacional<br />
no sentido de formar sujeitos produtores/consumidores<br />
de seus valores mercadológicos,<br />
para atender à demanda de sua produção<br />
sofisticada e alienadora, internalizando valores<br />
éticos individualistas narcísicos que deformam e<br />
definham expectativas de vida enquanto indivíduos<br />
que necessitam de valores próprios para se<br />
auto-afirmarem (LUZ, <strong>19</strong>99, p.61-66).<br />
Os alunos recebem uma proposta curricular<br />
baseada nos valores euro-americanos que deformam,<br />
depreciam e desconsideram as alteridades<br />
nos seus valores mais intrínsecos numa sala<br />
de aula. Isso compele cada vez mais crianças e<br />
jovens em formação a renegarem suas pessoas<br />
enquanto seres culturais na sua essência, com<br />
ancestralidade, cultura e modo de ser e viver<br />
próprios da sua origem étnica e da sua comunalidade,<br />
que está repleta de representações e<br />
relações, tornando-os sujeitos plurais.<br />
A educação é um instrumento poderosíssimo<br />
nas mãos dos interesses hegemônicos internacionais<br />
reproduzidos nas escolas, onde são aplicadas<br />
apenas teorias pedagógicas dissociadas<br />
dos valores referenciais sócio-ético-estéticos<br />
dos alunos que, por sua vez, são obrigados a<br />
reprimi-los ou sublimá-los, submetendo-se a um<br />
tipo de “cartilha pedagógica” ideologicamente<br />
individualista, consumista e etnocentrista.<br />
O pedagogo formado dentro dos princípios<br />
universalistas tende a ser um reprodutor de teorias<br />
epistemes alienígenas. Quando isso ocorre,<br />
ele perde sua identidade, deixa de ser o condutor<br />
do processo e passa a ser conduzido pelas<br />
tendências externas, como se fora ele uma<br />
mera marionete.<br />
O projeto colonizador europeu, inicialmente,<br />
pretendia relegar os afro-descendentes a uma<br />
condição de completa ausência de referências<br />
étnico-identitárias. Quase conseguiu atingir este<br />
propósito. A instituição das ações “terapêuticas”<br />
promovidas pelo Estado Terapêutico 6 e a sua<br />
taxionomia, preconizavam a homogeneização<br />
das diferenças culturais “alijando as alteridades,<br />
já que representam ‘desvios’, ‘selvageria’, merecendo,<br />
portanto, um tratamento que possa<br />
curar” (LUZ, 2000, p.32). Por fim, a ideologia<br />
do branqueamento passou a ser um referencial<br />
de “ser” numa sociedade onde as oportunidades<br />
eram maiores para aqueles com a cor de<br />
pele cada vez mais clara (MUNANGA,<strong>19</strong>88).<br />
Não raro ouvimos, num passado não muito<br />
remoto, muitas mulheres negras dizerem para<br />
suas filhas: “vamos limpar esta raça”. Essa<br />
concepção deveu-se ao processo da exclusão<br />
social e do mercado de trabalho, dominado pelo<br />
falso discurso da democracia racial. Isto se<br />
desenvolveu de tal forma que os indivíduos de<br />
5<br />
É o caso do grupo indígena Fulni-ô (Águas Belas/PE)<br />
que está resgatando, através da memória e da história, sua<br />
língua materna o Yaathê através de uma cartilha (ANAÍ,<br />
<strong>19</strong>94, p. 6-9).<br />
6<br />
“... um Estado que erige em relação ao seu funcionamento,<br />
organização e estabilidade, valores que constituirão<br />
padrões de comportamentos concentrados numa perspectiva<br />
una, unidimensional, totalizante, absoluta, tentando<br />
assegurar, dessa forma, o índice de ‘normalidade’<br />
necessário à sua afirmação” (LUZ, 2000, p. 30).<br />
84 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003
Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />
pele mais escura se viam relegados a uma marginalização<br />
cada vez maior, com reflexos sobre<br />
sua auto-estima e auto-imagem.<br />
Várias teorias etnocêntricas permearam os<br />
ideais de branqueamento e afirmaram a inferioridade<br />
racial dos africanos, aborígines americanos,<br />
australianos, polinésios, orientais etc. Lombroso,<br />
na Itália, foi um dos preconizadores de<br />
tal visão do “outro” no século passado. Entretanto,<br />
essa não é uma atitude exclusiva da ideologia<br />
euro-etnocêntrica. Existem registros de<br />
preconceitos semelhantes entre os egípcios e<br />
os gregos, que já faziam restrições à presença<br />
de indivíduos culturalmente diferentes no seu<br />
meio (FREIRE-MAIA, <strong>19</strong>81).<br />
O princípio da inferioridade racial, elaborado<br />
em bases supostamente cientificas pelos<br />
europeus, baseava-se no chamado determinismo<br />
biológico-geográfico e na mistura racial.<br />
Segundo esta teoria, esses fenômenos provocavam<br />
a degenerescência humana, na qual os<br />
indivíduos teriam tendências comportamentais<br />
criminosas e perversões libidinosas, advindas<br />
dessas contingências (MUNANGA, <strong>19</strong>99).<br />
Ao longo do tempo, essas ideologias amalgamaram<br />
o comportamento reprimido e inferiorizado<br />
dos afro-descendentes. Somente a partir<br />
dos anos setenta, com o Movimento Negro<br />
Internacional repercutindo em todo o mundo,<br />
no rastro do movimento descolonizador na África<br />
e na Ásia, é que na América do Norte e no<br />
Brasil, os afro-descendentes de São Paulo e da<br />
Bahia passaram a reforçar, através do Movimento<br />
Negro Unificado, o sentimento de africanidade,<br />
enquanto identidade étnica (SILVA,<br />
<strong>19</strong>88).<br />
O projeto pedagógico brasileiro é exógeno e<br />
xenófobo. As concepções de educação são alienígenas<br />
e não se priorizam as especificidades<br />
étnico-culturais dos diversos grupos sociais que<br />
interagem no espaço escolar. Na Bahia, o PRO-<br />
JETO EDUCAR PARA VENCER, elaborado<br />
no sul do país, foi implantado em todo o Estado<br />
para solucionar o grave problema da distorção<br />
série/idade, implantado para a regularização<br />
de fluxo. Este projeto, dentre as múltiplas falhas,<br />
possui conteúdo desvinculado da realidade<br />
do aluno e não favorece discussões e reflexões<br />
sobre as diferenças, a diversidade cultural<br />
e a identidade étnico-cultural. Um outro projeto<br />
em vigor é o PEI, importado de Israel com o<br />
propósito de desenvolver o raciocínio lógico dos<br />
estudantes do Ensino Médio. Este projeto também<br />
peca por não considerar seriamente as<br />
questões étnico-culturais presentes no cotidiano<br />
escolar.<br />
Nesses projetos, o livro e o material didático<br />
transformam-se em cartilhas bitoladas que<br />
limitam o processo pedagógico e a criatividade<br />
do professor, aprisionando-o nos trilhos estreitos<br />
determinados pelos manuais. O livro didático<br />
não deveria assumir o papel de norteador do<br />
processo, pois esta tarefa deveria caber ao professor<br />
enquanto problematizador do seu conteúdo,<br />
que deveria apenas servir como referencial.<br />
Esses materiais, por sua vez, não trazem<br />
abordagens de aspectos civilizatórios aborígines<br />
e africanos, e o profissional que o utiliza não<br />
possui referenciais dessas arkhés civilizatórias,<br />
não as privilegiando na sua prática docente.<br />
Quando o fazem, isso é feito de maneira inadequada<br />
ou caricatural.<br />
Isso nos remete à melancólica reflexão de<br />
que os dirigentes políticos consideram que os<br />
professores da rede pública não teriam capacidade<br />
para desenvolver esse tipo de educação,<br />
razão pela qual, em decorrência desta incapacidade<br />
criativa e incompetência profissional, eles<br />
teriam de ser monitorados na sua atividade; esta<br />
postura governamental implica, porém, na desmoralização<br />
da figura do professor. Em projetos<br />
como esse, não se valoriza o ser plural que<br />
compõe a população baiana e brasileira, de uma<br />
forma geral.<br />
As propostas pedagógicas alternativas baseadas<br />
nos processos civilizatórios afro-aborígenes,<br />
atuantes em Salvador, não são mais que<br />
experiências isoladas. Como práticas pedagógicas<br />
afro-brasileiras bem sucedidas vale citar<br />
o Ilê Axé Opô Afonjá, localizado não bairro de<br />
São Gonçalo, no Cabula e o Ilê Axé Jitolú, no<br />
Curuzu, onde está situada a sede do Ilê Aiyê.<br />
Além dessas, existem, também, outras instituições,<br />
como o Olodum, Steve Bico, o Ceafro<br />
e outras. Uma experiência de educação<br />
pluricultural bem sucedida em Salvador é o Pro-<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />
85
A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />
jeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê, no<br />
qual Mãe Hilda, a Iyalaxé 7 do terreiro Jitolú 8 –<br />
local onde funciona a sede do bloco –, é considerada<br />
uma destacada líder afro que assume<br />
também a posição de pedagoga, transmitindo<br />
valores da arkhé africana aos alunos afro-descendentes<br />
de maneira lúdica, mitológica e pedagógica.<br />
Assim procedendo, ela reafirma os<br />
valores ético-estéticos que reforçam a identidade<br />
afro-descendente das crianças e adolescentes<br />
da instituição. Somente dentro de uma<br />
proposta curricular plural enquanto ação política<br />
pedagógica na educação pública é que, efetivamente,<br />
podemos promover a auto-estima, a<br />
auto-referência afro-identitária e a dignidade<br />
dos grupos afro-descendentes.<br />
Não há instituições com práticas pedagógicas<br />
privilegiando aspectos culturais das civilizações<br />
aborígines na cidade do Salvador. Atualmente,<br />
em muitas partes do Brasil, esses grupos<br />
estão se organizando e tendo autorização<br />
para ministrar aulas nas suas línguas nativas.<br />
Isso está promovendo o renascer da lingüística,<br />
da memória e da história desses povos. Como<br />
exemplo, temos o grupo indígena Fulni-ô (Águas<br />
Belas/PE) que, através de uma índio-descendente,<br />
Marilene Araújo de Sá, funcionária da<br />
FUNAI, professora de Yaathê, língua nativa do<br />
grupo, elaborou uma cartilha para não se perder<br />
esse referencial étnco-cultural do grupo e<br />
promover a (re)construção da identidade ética<br />
dos seus descendentes. Por sua própria iniciativa<br />
e de forma autodidata, ela elaborou uma<br />
pesquisa na qual está resgatando, através da<br />
memória e da história, a língua materna do seu<br />
povo que já havia perdido muitos elementos<br />
lingüísticos (ANAÍ, <strong>19</strong>94, p. 6-9).<br />
A partir de <strong>19</strong>98, o MEC publicou o Referencial<br />
Curricular Nacional para as Escolas Indígenas<br />
(RCNEI). Este documento é dirigido aos<br />
professores indígenas e aos técnicos das secretarias<br />
estaduais de educação. É um subsídio<br />
para a discussão e a implementação de novas<br />
políticas, práticas pedagógicas e curriculares em<br />
terras indígenas, sistematizando um conjunto de<br />
pontos comuns frente à diversidade e multiplicidade<br />
das culturas aborígines. Seu objetivo principal<br />
é apresentar uma proposta pedagógica de<br />
ensino-aprendizagem que visa promover uma<br />
educação intercultural e bilíngüe entre esses<br />
povos (Disponível em: www.mec.gov.br).<br />
Mais recentemente, no ano de 2001, o Projeto<br />
Capacitação Solidária do governo federal<br />
subsidiou projetos comunitários voltados para<br />
cursos profissionalizantes dirigidos à formação<br />
de jovens das classes populares. Dentre estes,<br />
foram privilegiados os cursos de corte e costura,<br />
estética, culinária, ritmos afro, patissaria,<br />
doces e salgados, manutenção de carros, de<br />
equipamentos eletrônicos, artesanatos locais,<br />
viveiros de peixes e crustáceos etc.<br />
A partir dessas experiências bem sucedidas,<br />
outras instituições afro e comunidades de terreiro<br />
passaram a incorporar projetos de educação<br />
técnica ligados a projetos pedagógicos, privilegiando<br />
seus arcabouços culturais. O Terreiro<br />
Oxumarê, na Avenida Vasco da Gama, Salvador-BA,<br />
desenvolveu um projeto de confecção<br />
de instrumentos musicais afro. Na mesma<br />
cidade, um terreiro no Alto de Coutos, Mutá,<br />
desenvolveu um curso no interior do seu ethos<br />
religioso voltado para a produção artesanal de<br />
chaveiros. Outros terreiros trabalharam a culinária<br />
afro-baiana.<br />
Logo, algumas ONG’s, engajadas na luta<br />
política pela promoção da dignidade, inserção<br />
social e melhoria da perspectiva de vida dos<br />
adolescentes das classes populares, conjugaram<br />
suas propostas de ministrar cursos técnicos a<br />
projetos político-pedagógicos, direcionados para<br />
uma perspectiva étnico-cultural, devido à<br />
especificidade de esses contingentes serem de<br />
maioria negra.<br />
Vale ressaltar as realizações do CONGO -<br />
CENTRO MÉDICO SOCIAL, localizado no<br />
Alto de Coutos, no subúrbio ferroviário de Sal-<br />
7<br />
Iyalaxé é a mãe do axé, a responsável pela manutenção<br />
do axé, ou seja, a força dinamizadora cósmica que circula<br />
e promove o continuum da vida entre aqueles que são<br />
vivificados pela força ancestral, que cada vez mais se<br />
expande e se reforça no cotidiano e nas atividades religiosas<br />
de auto-afirmação dentro da comunidade terreiro além<br />
de seu perímetro territorial.<br />
8<br />
Denominação do seu orixá, Omolú, pois cada entidade<br />
possui um nome de acordo com suas características intrínsecas.<br />
86 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003
Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />
vador. Esta instituição, dentre outras propostas,<br />
além da assistência médica social, promove<br />
ações educativas com o objetivo de estimular o<br />
desenvolvimento da consciência ecológica, o<br />
exercício da cidadania e a elevação da autoestima,<br />
convergindo essas atividades no sentido<br />
de resgatar a identidade local, social, étnica,<br />
histórica e cultural da comunidade de entorno.<br />
Esse Centro instituiu o Curso de Corte e<br />
Costura Étnica, numa perspectiva sócio-político-cultural<br />
que faz parte de um desdobramento<br />
mais amplo do seu projeto político-social. Sua<br />
perspectiva é viabilizar a inclusão social de sujeitos<br />
de uma área que sofre problemas estruturais<br />
de habitação, moradia, assistência médico-sanitária<br />
e outros, presentes nos bairros periféricos<br />
das grandes metrópoles. Nesse contexto,<br />
foi percebida a necessidade de possibilitar<br />
a esses sujeitos, de maioria afro-descendente,<br />
uma reflexão a respeito da sua identidade<br />
étnico-cultural, no sentido de contribuir para a<br />
construção do referencial próprio desses sujeitos<br />
étnico-sociais enquanto cidadãos da periferia<br />
de Salvador.<br />
Antonio Risério (<strong>19</strong>88) considera Salvador<br />
uma cidade luso-banto-jeje-nagô pela sua configuração<br />
matricial étnica africana presente no<br />
cotidiano, nas falas, nos gestos, nos rituais, no<br />
colorido dos trajes e nas gentes que formam<br />
seu povo. Por isso, Salvador é considerada a<br />
segunda maior cidade de contingente negro,<br />
depois da Nigéria. Entretanto, percebemos que<br />
Risério eliminou o aborígine dessa configuração,<br />
apesar do elemento índio ter sido completamente<br />
dizimado em áreas das grandes metrópoles<br />
coloniais. Mesmo assim, Darcy Ribeiro,<br />
em seu livro O Povo Brasileiro considera<br />
que o útero brasileiro foi indígena.<br />
Segundo Ribeiro (<strong>19</strong>95), os primeiros contingentes<br />
africanos trazidos como escravos para a<br />
Bahia e outras áreas, posteriormente inseridas<br />
na primeira economia colonial – que foi a cultura<br />
da cana-de-açúcar – foram masculinos, e existem<br />
evidências de que muitos colonizadores usaram<br />
as índias escravizadas, resgatadas dos massacres,<br />
para a reprodução do braço escravo.<br />
Darcy Ribeiro (<strong>19</strong>95), referindo-se à etnia<br />
brasileira, considera o mameluco como o verdadeiro<br />
brasileiro. Na sua concepção, o africano<br />
entra em segunda instância, não negando,<br />
contudo, sua grande contribuição étnico-cultural<br />
na formação do povo brasileiro. Outrossim,<br />
vale reforçar que o processo de miscigenação<br />
foi compulsório em alguns momentos, mas foi<br />
espontâneo em outros, como a presença de indígenas<br />
nos quilombos de Palmares e, conseqüentemente,<br />
em muitos dos milhares de quilombos<br />
que se formaram ao longo da luta contra<br />
a escravidão. Em contrapartida, havia africanos<br />
convivendo em aldeias indígenas. Podemos<br />
chamar esse fenômeno de a “solidariedade<br />
coexistência dos oprimidos”.<br />
Não podemos perder de vista que a presença<br />
indígena não permanece apenas nos elementos<br />
da nossa cultura material, mas a expectativa<br />
de vida desses povos propiciaram a sobrevivência<br />
de outros tantos que aqui chegaram, africanos<br />
e europeus. Como “donos da terra”, passaram<br />
seus conhecimentos tecnológicos e medicinais,<br />
táticas de sobrevivência nas matas tropicais<br />
e um modo de viver próprio que foi assimilado<br />
pelos estrangeiros. Além disso, trazemos<br />
em nossos traços fisionômicos a herança genética<br />
do nativo ancestral.<br />
Por conta disso, a expressão de Risério lusobantu-jêje-nago<br />
deveria conter, também, uma<br />
referencia ao aborígine, também nosso ancestral,<br />
que as comunidades de terreiro reverenciam<br />
chamando-o “caboclo”. Dessa maneira,<br />
propomos incluir na sua denominação um outro<br />
elemento, o tupi. Na realidade, somos um povo<br />
luso-tupi-bantu-jêje-nagô, pluralizado continuamente<br />
pelas mais diversas culturas que migraram<br />
para o nosso país, ao longo da nossa<br />
história, e continuam cada vez mais migrando e<br />
reformulando valores ético-estéticos e sociais.<br />
2. Identidade: processo histórico<br />
das interações sociais<br />
A contemporaneidade se caracteriza como<br />
uma fase de acirramento das contradições sociais<br />
e de confrontos étnico-culturais. Esses<br />
fenômenos desnudaram a face oculta e espúria<br />
da hegemonia eurocentrista e obrigaram todos<br />
a reverem privilégios, conceitos e preconceitos<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />
87
A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />
arraigados. A questão da relação e da convivência<br />
com o “outro”, o diferente, está no cerne<br />
desta problemática. Compelidos pela necessidade<br />
de superação de impasse tão grave, cientistas<br />
sociais e educadores colocaram no centro<br />
de suas indagações as questões relativas à<br />
alteridade, ao diverso, ao plural e aos numerosos<br />
“outros” que convivem, dialogam, educam,<br />
oprimem ou são oprimidos na nossa sociedade.<br />
Todas estas discussões nos remetem à questão<br />
da complexidade humana e social, bem como<br />
aos múltiplos e contínuos processos de construção<br />
das identidades em permanentes interações.<br />
Este processo ocorre através de relações<br />
simétricas e assimétricas que compõem os intrincados<br />
processos globalizantes das relações sociais<br />
e de produção.<br />
Os escritos sobre identidade nos revelam<br />
que, por conta das suas mais variadas manifestações,<br />
hoje, mais do que nunca, esta torna-se<br />
objeto de perscrutação dos cientistas sociais,<br />
no intuito de entender como ela é construída<br />
pelos atores sociais e como se apresenta em<br />
seus contextos histórico-culturais.<br />
O indivíduo, enquanto construção social, resultado<br />
dos valores e das relações intrínsecas da<br />
sociedade à qual pertence, é construído como<br />
sujeito que interage na dinâmica das relações de<br />
produção. Nas infinitas formas de agir, ser, viver,<br />
pensar o mundo (construir, morar, brincar,<br />
produzir símbolos, lutar, resistir), torna-se, enfim,<br />
um sujeito histórico. Neste caso, segundo Ciampa<br />
(2001, p.157), a “identidade é história”; portanto,<br />
para ele, “não há personagem fora da história,<br />
assim como não há história (ao menos história<br />
humana) sem personagens”.<br />
Sendo assim, todo indivíduo, além de possuir<br />
uma identidade pessoal, social, étnica, de<br />
gênero, de sexo, local, regional e nacional, possui<br />
outras tantas difíceis de enumerar. Estes<br />
sujeitos sociais possuem variadas identidades<br />
culturais como efeito das constantes trocas simbólicas<br />
com valores de outras culturas sob os<br />
efeitos da globalização. Nessa nova configuração<br />
mundial preconizada pelo neo-liberalismo,<br />
são evidenciados nódulos de tensão em determinadas<br />
relações hegemônicas gestadas pelo<br />
imperialismo e que ainda se perpetuam em<br />
áreas do leste europeu, África e Ásia, atingindo,<br />
em especial, os sujeitos da diáspora africana<br />
e os sujeitos pós-coloniais. 9<br />
Nesse contexto, insere-se a identidade étnica<br />
afro-descendente – num estudo de caso objeto<br />
deste artigo – antes oprimida e silenciada<br />
que (re)surge, enquanto projeto político-social<br />
da comunidade afro-brasileira na conquista de<br />
sua cidadania plena e de uma identidade construída<br />
e socializada através dos valores da sua<br />
história e das suas matrizes étnico-culturais. Já<br />
estamos há mais de um século da chamada<br />
“abolição da escravatura”, mas a conquista<br />
completa da inserção social, política e cultural<br />
dos afro-descendentes ainda está por ser<br />
alcançada. Isso não se diferencia muito em<br />
outras partes do globo, onde muitos povos continuam<br />
lutando pela descolonização.<br />
O processo complexo da construção da(s)<br />
identidade(s) se estabelece de forma diferenciada<br />
de indivíduo para indivíduo e de grupo para<br />
grupo, a partir das contingências históricas favoráveis<br />
ou desfavoráveis, sem falar nos processos<br />
conflituosos que geram estratégias de<br />
auto-preservação étnica, provocados pelas lutas<br />
locais, nacionais e internacionais. Também<br />
as guerras interétnicas e os conflitos entre nações<br />
provocam diásporas, principalmente, no<br />
nosso caso, a diáspora de africanos maciçamente<br />
promovida pelo tráfico negreiro até meados<br />
do século XIX.<br />
Os filhos da diáspora africana lutaram por<br />
sua preservação física e cultural durante séculos,<br />
começando a conquistar a cidadania apenas<br />
a partir da segunda metade do século XX<br />
através de muitas lutas e movimentos sociais,<br />
os quais continuam em busca da universalização<br />
dos seus direitos. Dessa forma, a auto-identificação<br />
“negro”, utilizada pelo Movimento Negro<br />
Unificado (MNU), nada mais é do que uma<br />
atitude política de luta e resistência aos estigmas<br />
do colonialismo, perpetuadas nas sociedades<br />
pós-coloniais, quando a questão do racismo<br />
9<br />
Ver, entre outros, Silva (<strong>19</strong>95) e Hall (2000), que em<br />
seus textos citam reflexões de pensadores pós-colonialistas<br />
como Paul Gilroy, Edward Said, Frantz Fanon, Homim<br />
Bahba e outros.<br />
88 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003
Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />
era ainda muito mais evidente e explicita do que<br />
é hoje. Entretanto, a questão da tonalidade da<br />
pele estabelece diferenciações, e o termo “negro”<br />
não é mais aceito por muitos. Estes, influenciados<br />
pela teoria do branqueamento que os<br />
“moreniza”, não se acham negros de fato. 10<br />
Os processos de auto-adscrição étnica ocorridos<br />
no Brasil, por conta do tráfico negreiro,<br />
promoveram uma reorganização étnica por parte<br />
dos escravos e dos negros livres. Assim, configuraram-se<br />
aqui na Bahia dois grandes grupos:<br />
os jêje e os nagô, que, por sua vez, no processo<br />
contínuo de relações interétnicas, foram compondo<br />
uma população cada vez mais caldeada,<br />
principalmente por eles, e hoje estão identificados<br />
em todo o Brasil através do culto ao orixá e<br />
aos ancestrais nas comunidades de terreiros.<br />
As religiões africanas tiveram papel fundamental<br />
na construção de uma identidade étnica africano-brasileira,<br />
no que Silva (2001, p.21) considera<br />
“formadoras que são de uma identidade<br />
sedimentada a partir dos ancestrais e seus arquétipos”.<br />
Em nosso caso, devido às nossas especificidades<br />
históricas, a estratificação social foi definida<br />
etnicamente sob a égide das classes dominantes<br />
senhoriais que determinaram a diferenciação<br />
social de forma estigmatizada pela<br />
origem etno-racial e as relações de trabalho.<br />
Portanto, esse processo de diferenciação se<br />
estabelece, até hoje, por conta do racismo, e,<br />
por isso, os movimentos sociais negros têm como<br />
bandeira de luta a igualdade, a conquista de direitos<br />
e a inserção social do negro na sociedade<br />
de classes. Esses movimentos sociais, desde<br />
o início, lutaram e continuam lutando pela<br />
auto-afirmação étnica e social dos afro-descendentes,<br />
buscando nos referenciais dos movimentos<br />
africanos e brasileiros nossas matrizes culturais<br />
africanas e, principalmente, no culto religioso<br />
afro, valores para a constituição de uma<br />
identidade étnica. Esta luta ocorre fora da escola,<br />
já que esta nega ou se omite, nada fazendo<br />
para enfrentar, discutir e buscar a superação<br />
de impasses históricos como este.<br />
A identidade étnica afro-descendente, assim<br />
como todas as demais identidades e formas de<br />
auto-identificação de grupos humanos e de indivíduos,<br />
é ainda uma questão que demanda reflexões<br />
profundas pela fugacidade da sua apreensão<br />
enquanto objeto de estudo. Este fato mantém<br />
a comunidade científica da sociologia dividida,<br />
ao tempo em que muitas instituições sociais<br />
ainda permanecem ausentes da discussão.<br />
Segundo Hall, (2000, p.8):<br />
... o próprio conceito com o qual estamos lidando,”<br />
identidade”, é demasiadamente complexo,<br />
muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido<br />
na ciência social contemporânea para<br />
ser definitivamente posto à prova. Como ocorre<br />
com muitos outros fenômenos sociais, é impossível<br />
oferecer afirmações conclusivas ou fazer julgamentos<br />
seguros sobre as alegações e proposições<br />
teóricas que estão sendo apresentadas.<br />
Assim, por ser algo que diz respeito a processos<br />
mais complexos do fazer humano, ela<br />
insere-se no campo da subjetividade humana,<br />
área subjacente da racionalidade, com a qual<br />
estabelece intrínseca relação enquanto resultado<br />
do processo do viver social, através de símbolos,<br />
imagens, codificações e significações,<br />
resultantes das práticas sócio-histórico-culturais<br />
e das representações sociais abstraídas desse<br />
convívio.<br />
Devido a essa complexidade própria do ser<br />
humano e das contradições das relações sociais<br />
e de produção, mais do que nunca as identidades<br />
afloram em contextos diversos nessa<br />
“modernidade tardia” ou pós-modernidade, como<br />
é denominada por muitos estudiosos atuais. Elas<br />
estão imersas nesse caleidoscópio das mais<br />
variadas realidades culturais, ilhas ou arquipélagos<br />
de culturas, imbricadas nas mais diferentes<br />
teias de universos simbólicos constituidores<br />
de seus modos próprios de ser e ver o mundo.<br />
Telles (<strong>19</strong>96), comparando os afro-americanos<br />
e afro-brasileiros, percebe que, apesar de,<br />
no Brasil, as marcas de identidade étnica africana<br />
serem mais acentuadas culturalmente, ainda<br />
assim não existe uma consciência étnica – diferentemente<br />
do que ocorre nos Estados Unidos –<br />
não só devido à segregação racial, como, também,<br />
à residencial (guetos e favelas). Para ele,<br />
10<br />
Cf. Silva (<strong>19</strong>96), no seu trabalho com os dados do<br />
censo de <strong>19</strong>76 e <strong>19</strong>95.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />
89
A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />
há uma ambigüidade no comportamento dos afrobrasileiros<br />
em se auto-reconhecerem enquanto<br />
negros e tomarem atitudes políticas no sentido<br />
de conseguirem sua cidadania plena. Assim se<br />
reporta o autor, em relação a esta realidade, citando<br />
Thomas Skidmore (<strong>19</strong>96, p.126):<br />
A cor da pele ou ancestralidade parece ser a principal<br />
marca étnica em países com grandes populações,<br />
tanto de origem européia como africana.<br />
Um sistema de classificação racial no qual a identidade<br />
racial do mulato (também mestiço, pardo)<br />
é uma categoria totalmente legitimada, juntamente<br />
com uma ideologia do branqueamento, que dá<br />
maior valor a uma pele mais clara, tem sido apontado<br />
como um obstáculo à formação de uma identidade<br />
afro-brasileira.<br />
Alguns estudos revelam o comportamento<br />
ambíguo de jovens alunos que não conseguem<br />
se inserir numa classificação de cor, mesmo<br />
porque ainda existem muitas divergências teóricas<br />
sobre esta temática. Portela (<strong>19</strong>97, p.93-<br />
5), ao relacionar afro-descendência, exclusão<br />
social e multirrepetência escolar, utiliza dois tipos<br />
de classificação de cor: a autoclassificação<br />
e a classificação dada pelo entrevistador. No<br />
final, percebe a existência, entre os alunos, de<br />
autoclassificações outras como “amarelo”,<br />
“marrom”, “cor de formiga” etc, no que ela<br />
conclui: “isso mostra que, na Bahia, a despeito<br />
de sua população ser majoritariamente constituída<br />
de pretos e morenos escuros, há ainda uma<br />
grande luta a ser empreendida para a construção<br />
de uma identidade racial”.<br />
Por se tratar de “uma grande luta”, como diz<br />
Portela (<strong>19</strong>97), no sentido de construir uma identidade<br />
racial, é que este estudo também se ocupa<br />
de um empreendimento político-social e pedagógico<br />
como o do CONGO-CENTRO MÉ-<br />
DICO SOCIAL. Esta instituição insere na sua<br />
comunidade de entorno uma proposta de<br />
(re)construção de uma identidade que, na realidade,<br />
deveria ser uma estratégia política dos afrodescendentes<br />
no contexto da sociedade brasileira,<br />
cuja história foi forjada num escamoteamento<br />
etno-racial através da ideologia do “branqueamento”<br />
e da “democracia racial”. Apesar disso,<br />
os jovens sujeitos de Coutos interagiram com a<br />
proposta de forma positiva e, também, manifestaram<br />
um engajamento político-cultural, no sentido<br />
de tomar como referência suas marcas de<br />
identidade afro-descendente.<br />
A identidade étnica afro-descendente está<br />
relacionada à própria história dos contingentes<br />
africanos transladados para a América e outras<br />
partes do mundo. Nesse sentido, Henrique<br />
Cunha Jr. (2002, p.21) parte do ponto de vista<br />
de que “a etnia afrodescendente tem sua história<br />
passada delimitada pela história do continente<br />
africano e das relações deste com o resto do<br />
mundo”. Para ele, devemos lembrar que “a presença<br />
africana na América, Ásia e Europa é<br />
anterior ao ciclo das navegações espanholas e<br />
portuguesas”. Ele toma como referência o<br />
achado do fóssil mais antigo do Brasil, a Luíza<br />
de Lagoa Santa.<br />
Para Cunha Jr. (2002, p.21-22):<br />
As identidades afrodescendentes ou negras são<br />
múltiplas e variadas. Podem ser consideradas<br />
como positivas ou negativas, relacionadas com<br />
a auto-imagem que os indivíduos fazem de si e<br />
dos outros. O importante é que encontremos na<br />
cultura nacional e na população um certo número<br />
de referentes sociais que marcam os conjuntos<br />
identitários diferenciadores dos nossos grupos<br />
sociais afrodescendentes com relação ao<br />
indígena e ao eurodescendente.<br />
... As identidades têm um caráter duplo, por vezes<br />
dependem de como os indivíduos se autoidentificam,<br />
outras de como os outros externos<br />
ao grupo os identificam. Uma das marcas da identidade<br />
afrodescendente é como o grupo externo<br />
nos identifica. As restrições sociais e de representações<br />
de que somos alvo dão um contorno<br />
de identidade ao grupo social.<br />
Dessa forma, ao estabelecer um construto<br />
teórico do conceito de etnia, o autor toma como<br />
referência a definição dada por Amselle (<strong>19</strong>85),<br />
para quem tal conceito “tem um caráter político,<br />
pois está relacionado à história construída<br />
do grupo social e não necessita de uma mesma<br />
língua ou território para a sua existência”.<br />
Sintetizando, Cunha Jr. (<strong>19</strong>95, p.160) afirma:<br />
No caso da etnia, é como uma marca onde os<br />
membros reconhecem seus [sic] próprios, dentro<br />
de uma ordem simbólica própria. As nações<br />
de Candomblé, neste caso, podem ser consideradas<br />
uma etnia. As populações negras ou<br />
afrodescendentes podem ser definidas como<br />
90 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003
Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />
uma etnia pelas ligações biológicas, culturais,<br />
mitológicas ou políticas. Concluímos pelas possibilidades<br />
conceituais de identidades e etnias<br />
negras ou afrodescendentes, no caso brasileiro.<br />
Nesse sentido, “devido aos processos históricos<br />
e sociais vividos por afro-descendentes,<br />
as categorias vindas dos conceitos de identidade<br />
e etnia permitem prever a existência de ‘identidades<br />
negras’” (p.161). Sendo assim, sua assertiva<br />
possui estreita relação com o conceito<br />
de etnia elaborado por d’Adesky (2001, p.<strong>19</strong>2),<br />
relacionando etnia à história, às organizações e<br />
às agremiações sociais politicamente organizadas<br />
no sentido de serem reconhecidas pelo Estado-nação<br />
e, através desse reconhecimento,<br />
poderem dirigir políticas públicas para inserir<br />
democraticamente, no contexto social, econômico<br />
e político, os historicamente excluídos, bem<br />
como dar apoio às organizações não governamentais<br />
quanto a captação de recursos e ações<br />
sociais direcionadas para remediar as ações<br />
depredadoras da colonização.<br />
Cunha Jr.(<strong>19</strong>95, p.161), por razões empíricas<br />
e teóricas, se coloca entre aqueles que acreditam<br />
existir identidade negra. “Não se tratando,<br />
entretanto, de um todo único e uniforme, mas<br />
de identidades negras múltiplas, diferenciadas<br />
entre si, multifacetadas. Tais como são também<br />
as possíveis identidades brancas”. Ele acredita<br />
que certas identidades negras possam ser<br />
construídas em espaços de liberdade, e os exemplos<br />
mais marcantes são os afro-descendentes<br />
criados em torno dos movimentos negros, políticos<br />
e dos movimentos populares, como no seu<br />
caso, e no pertencimento a entidades religiosas<br />
ou rurais, da quase totalidade negra (p.161-162).<br />
A identidade, enquanto algo inerente à História,<br />
está também dentro do seu próprio movimento.<br />
A História, em sua dinâmica, promove<br />
transformações constantes em todos os sentidos<br />
da vida humana, construindo novos sujeitos,<br />
inseridos numa realidade específica, determinada<br />
pelos tempos históricos numa perspectiva<br />
diacrônica.<br />
3. De fora para dentro e de dentro<br />
para fora: uma (re)construção de<br />
identidades e valores sócio-culturais<br />
– o depoimento integral<br />
Com o objetivo de analisar uma experiência<br />
pessoal e toda sua riqueza de vivências, faremos<br />
uma incursão no processo de auto-identificação<br />
étnica de uma das afro-descendentes<br />
participantes do Curso de Corte e Costura Étnica,<br />
promovido pelo CONGO-CENTRO MÉ-<br />
DICO SOCIAL de Alto de Coutos. Dentre as<br />
25 jovens alunas que fizeram parte deste grupo,<br />
elegemos a narrativa de Nidiane por considerá-la<br />
uma das mais significativas que obtivemos<br />
através do relato oral gravado. As narrativas,<br />
segundo Silva (<strong>19</strong>95, p.206):<br />
... podem (e devem) ser vistas como textos abertos,<br />
como histórias que podem ser inventadas,<br />
subvertidas, parodiadas, para contar histórias<br />
diferentes, plurais, múltiplas, histórias que se<br />
abrem para a produção de identidades e subjetividades<br />
contra hegemônicas de oposição.<br />
A partir de agora, conviveremos com Nidiane,<br />
através do seu relato, e, nele, perceberemos<br />
como ela construiu valores e estabeleceu relações<br />
e inferências na construção da(s) sua(s)<br />
identidade(s). Seu relato nos remete a uma reflexão<br />
a partir das diversas referências feitas<br />
por ela quanto aos aspectos etno-culturais presentes<br />
em nossa cultura e formadores da nossa<br />
identidade.<br />
A identidade individual é elaborada em uma aparente<br />
diversidade de universos. Tal concepção<br />
de pluripertencimento implica que a identidade<br />
pessoal se edifica e se conserva por meio das<br />
sínteses de identidades múltiplas que formam<br />
os diversos territórios e possessões do eu<br />
(D’ADESKY, 2001, p. 133).<br />
Nossa interlocutora é uma jovem negramestiça,<br />
estudante do ensino fundamental. Seus<br />
planos para o futuro incluem o desejo de ser<br />
uma “grande costureira”. Ela “ama costurar”,<br />
e afirma que vai encarar qualquer obstáculo para<br />
conseguir seu intento.<br />
Ao tomar conhecimento da abertura das inscrições<br />
para o Curso de Corte e Costura Étnica,<br />
decide matricular-se nele, visto que esta era<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />
91
A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />
a profissão escolhida por ela. Além disso, seu<br />
interesse aumentou significativamente por se<br />
tratar de um curso que seria realizado dentro<br />
uma nova modalidade, numa perspectiva étnico-africana.<br />
Embora já tivesse participado de<br />
um curso anterior de corte e costura, desejou<br />
reforçar seu aprendizado através deste curso<br />
patrocinado pelo CONGO-CENTRO MÉDI-<br />
CO SOCIAL.<br />
Nidiane tem consciência da importância de<br />
ampliar e melhorar seus conhecimentos e experiência<br />
na área que escolheu como profissão.<br />
Reconhece a excelência da oportunidade<br />
que tinha diante de si naquele momento, pois<br />
aquele curso iria prepará-la para o ingresso no<br />
mercado de trabalho. Assim ela se expressou a<br />
respeito:<br />
– O espaço de trabalho lá fora está muito difícil...<br />
está difícil encontrar algum espaçozinho, alguma<br />
vaguinha, alguma empresa...estou me preparando<br />
para entrar neste mercado... preciso estar<br />
pronta para enfrentar as condições lá fora... tudo<br />
que aprendi foi muito bom... muito importante...<br />
tudo ajudou muito na minha formação...<br />
Dentre as coisas importantes que Nidiane<br />
aprendeu ela destaca:<br />
– Ter postura, postura no trabalho, lá fora... saber<br />
como conversar... saber como conversar com<br />
as pessoas... como se comunicar com elas lá fora,<br />
tudo isso...<br />
Nidiane teve, também, aulas de etnia, microempreendimento,<br />
Língua Portuguesa, recursos<br />
humanos e cidadania, conhecimentos que muito<br />
contribuíram para reforçar o seu aprendizado.<br />
Etnia, para ela:<br />
– É raça... o que é raça?... o que é ter cultura?... é<br />
tudo isso que a gente está fazendo, o que está<br />
produzindo... tudo isso tem a ver com etnia... e,<br />
dentro da etnia, tem isso tudo que a gente está<br />
produzindo... o que é a raça africana, a cultura da<br />
África... como eles produziam... como a produção<br />
deles veio para cá, para o Brasil...<br />
Nidiane percebe aspectos da cultura africana<br />
através da atividade estética na qual ela está<br />
inserida. Para ela, a valorização da cultura negro-africana<br />
“veio através da beleza negra”:<br />
– Veio de lá para cá, mas aqui ninguém usa este<br />
tipo de roupa que a gente está produzindo... não<br />
usa, mas a gente está produzindo para que ela<br />
venha se espalhar - essa beleza negra - para que<br />
o povo venha ver que não só existe uma raça,<br />
existem várias, principalmente a negra...<br />
O curso ajudou Nidiane a construir uma identidade<br />
cidadã, ao trabalhar questões que envolvem<br />
uma sociedade que, apesar de dita democrática,<br />
ainda é promotora de muitas exclusões,<br />
desigualdades, estratificações e discriminações.<br />
No contexto do curso foram discutidas as principais<br />
questões sociais e raciais que envolvem<br />
as situações de racismo e discriminação racial,<br />
provocadoras da intolerância racial estrutural<br />
que envolve marcadamente nossa história.<br />
Assim nossa depoente define cidadania:<br />
– É ter direitos e deveres de cidadão... ter direitos<br />
e deveres, isso, sim!... o direito de ir e o direito<br />
de vir, também... o direito de ter uma empresa<br />
para si, uma empresa só sua... eu tenho esse direito...<br />
mas, basta o que?... Meu esforço!.... Meu<br />
dever é praticar e lutar para que eu venha a ter<br />
esse direito...<br />
Além de encarar o curso como um meio para<br />
adquirir conhecimentos práticos para ser uma<br />
“grande costureira”, o curso também ofereceu<br />
a Nidiane outros conhecimentos, que lhe permitiram<br />
conhecer um novo contexto, o étnicocultural,<br />
até então pouco conhecido por ela.<br />
Com muito entusiasmo e envolvimento Nidiane<br />
afirma:<br />
– Tudo que aprendi no curso tem a ver com<br />
minha raça....minha raça é negra, então, costura<br />
étnica faz parte de mim... tem um pedaço de mim...<br />
então, para me completar, gostei de ter juntado<br />
eu e o curso...<br />
Percebemos, através da fala da nossa entrevistada,<br />
que a raça, dentre outros elementos<br />
da cultura, como a religião e a língua, “tem mais<br />
força que outros possíveis fatores da identidade<br />
étnica” (D’ADESKY, 2001, p.44).<br />
Ao falar sobre etnia, Nidiane assim se pronuncia:<br />
– Essa parte – etnia – foi o que me chamou mais<br />
atenção... eu já tinha tomado outro curso de corte<br />
e costura... mas no outro curso só ensinaram a<br />
cortar e costurar... foi uma pena... a etnia não<br />
estava incluída e daí acho que foi muito bonito<br />
este curso de corte e costura étnica...<br />
92 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003
Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />
A priorização da questão étnica africana no<br />
currículo do curso levou Nidiane a perceber e<br />
refletir que ela já havia tomado um curso de<br />
corte e costura anteriormente, mas não com<br />
este enfoque, o que lhe pareceu “muito importante”.<br />
A inclusão da temática e das discussões<br />
a respeito das questões étnicas e raciais fez com<br />
que ela aceitasse facilmente a proposta apresentada<br />
no curso.<br />
Ao se identificar com os valores éticos e<br />
estéticos da proposta do curso, Nidiane percebeu<br />
imediatamente e, de maneira eloqüente e<br />
significativa, os elementos culturais da sua etnia,<br />
até então não trabalhados. Esse processo de<br />
sua identificação, enquanto negra, foi facilitado<br />
pela linhagem paterna negra. A construção de<br />
sua identidade foi privilegiada, dessa forma, pela<br />
referência à sua patridescendência negra.<br />
Ao terminar o curso, Nidiane cultivava o desejo<br />
de ser uma “grande costureira”.<br />
– Quero ser conhecida no Brasil inteiro... quero<br />
produzir roupas muito admiradas... Desejo que a<br />
beleza negra venha estar aqui no Brasil, em todo<br />
o Brasil, principalmente aqui na Bahia... a Bahia<br />
tem, mas, não como a gente está produzindo... e<br />
quero que aconteça logo, assim...<br />
Além dos aspectos culturais, políticos e profissionais,<br />
o curso também propiciou reflexões<br />
profundas que influenciaram nas formas de ser<br />
e pensar dos alunos. Segundo Nidiane:<br />
– O curso... mudou muito a minha postura... antes<br />
eu não me comunicava muito... se fosse para<br />
dar essa entrevista, eu não dava... eu era assim...<br />
era muito calada, mas agora me desenvolvi... uma<br />
coisa boa se desenvolveu dentro de mim... meu<br />
eu agora está diferente... não me comunicava com<br />
ninguém. Ficava dentro de casa... Mas, depois<br />
que eu entrei nesse curso, mudou... agora eu<br />
converso com todo o mundo, eu falo com todo<br />
mundo, me comunico com todo o mundo... todo<br />
mundo que chega aqui, eu me comunico... a primeira<br />
a se comunicar sou eu...<br />
A proposta curricular do curso, além de promover<br />
uma formação técnica-profissional, privilegiou,<br />
também, a formação integral, rompeu<br />
estigmas e elevou a auto-estima dos sujeitos<br />
sociais em questão. Eles tiveram aulas de Língua<br />
Portuguesa, Matemática, Etnia, Cidadania,<br />
Comunicação e Expressão, postura, psicodrama,<br />
atividades lúdicas, técnicas de relaxamento, dinâmicas<br />
grupais de socialização e realizaram<br />
passeios e visitas a outras instituições. Enfim, a<br />
proposta do curso pretendia desconstruir sujeitos<br />
historicamente submetidos à “pedagogia terapêutica<br />
e do recalque”, elaborada pelos poderes<br />
dominantes e baseada no discurso eurocêntrico<br />
de educação, para formar sujeitos cultural<br />
e politicamente posicionados, com uma<br />
nova identidade étnica e uma nova consciência<br />
de cidadania. (LUZ, 2000, p.68).<br />
Nidiane representa o resultado de uma proposta<br />
político-educacional promotora de transformações<br />
de indivíduos numa perspectiva pluricultural.<br />
Ao se auto-identificar, enquanto comunicativa<br />
– o que não era anteriormente – ela<br />
demonstra que, quando os atores sociais são<br />
reconhecidos e respeitados como cidadãos,<br />
ocorre uma metamorfose e esses sujeitos exteriorizam<br />
identidades até então silenciadas e represadas<br />
pelo processo de falta e exclusão dos<br />
bens sociais e culturais produzidos pela sociedade.<br />
A capacidade de se expressar, de se reconhecer<br />
como indivíduo-sujeito, histórico,<br />
social e cultural, promove transformações radicais<br />
na forma de ser e de pensar o mundo.<br />
Como não poderia deixar de ser, também<br />
nesse agrupamento, as relações humanas geraram<br />
tensões e desentendimentos. Nesse processo,<br />
as identidades sociais, culturais e grupais<br />
ao se chocarem, promovem, nesta interação,<br />
novas reflexões e novas posturas.<br />
Nidiane afirma:<br />
- Aí é que está o problema!...<br />
As relações grupais, durante o convívio no<br />
curso, foram conflituosas em alguns momentos<br />
e, às vezes, geraram grandes tensões. Houve<br />
estranhamentos, rupturas e condutas agressivas.<br />
No período inicial da convivência do grupo,<br />
houve uma cisão por parte de um grupo de<br />
meninas oriundas da invasão Nova Constituinte,<br />
localizada naquelas imediações. As identidades,<br />
dessa forma, cristalizam-se estabelecendo<br />
fronteiras e dissensões.<br />
Assim relata Nidiane:<br />
A metade das meninas mora aqui, mas não moram<br />
bem aqui em cima, sabe?... Moram lá para<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />
93
A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />
baixo, onde fica a tal da invasão. As meninas<br />
falam que é invasão, mas é a rua direta da Constituinte...<br />
só que elas costumam chamar de invasão...<br />
aí, sempre tem um grupinho que é mais<br />
separado dessas... essa daí, já tem filho, já tem<br />
família, mas não se comporta como uma mãe de<br />
família... não se comporta como uma menina direita...<br />
sempre tem aquele grupo que é separado<br />
delas... então elas chamam de quê?... de<br />
patricinha?... Eu sou uma dessas patricinhas,<br />
entendeu?... eu não tenho nada, sou igual a elas...<br />
eu me acho igual a elas, me comunico com elas<br />
normal, falo com todas elas, mas elas nunca reconhecem,<br />
entendeu?... Então, elas sempre dizem<br />
que a gente é diferente delas... da minha<br />
parte, eu me comunico com todo mundo, falo<br />
com todo mundo... pode me botar defeito, o que<br />
for, mas eu me comunico com todo mundo, eu<br />
não tenho isso... daqui para o final desse curso<br />
isso vai consertar...<br />
De acordo com o relato acima, percebemos<br />
que as diferenças tendem, na grande maioria<br />
das vezes, a provocar conflitos devido à incapacidade<br />
humana de perceber o outro na sua<br />
alteridade.<br />
O grupo, apesar de reunir habitantes de uma<br />
mesma zona – o subúrbio ferroviário – é composto<br />
por moradores de locais diferentes e específicos,<br />
com identidades próprias e diferenciadas.<br />
Uma pequena parte deles mora no conjunto<br />
residencial popular Vista Alegre; outros<br />
moram em Periperi, área adjacente a Coutos, e<br />
uma outra parte mora no Alto de Coutos, área<br />
invadida ao longo do tempo e onde também foram<br />
construídos blocos residenciais.<br />
Essas identidades têm características específicas,<br />
conforme a origem do morador, do local<br />
onde reside, do grau de escolaridade, da<br />
organização familiar, dos modos de comportamento<br />
e comunicação, elementos estes que contribuem<br />
decisivamente para a construção dos<br />
seus perfis individuais e grupais.<br />
Quanto à questão econômica, a renda familiar<br />
varia e está de acordo com a conjuntura<br />
atual. A maioria dos chefes de família está desempregada<br />
e é constituída de biscateiros, ajudantes<br />
de serviços, artesãos, ajudantes de obras<br />
e vendedores ambulantes. As mulheres, por sua<br />
vez, na grande maioria, exercem atividades domésticas.<br />
Poucas possuem profissões nas áreas<br />
técnicas, como enfermagem e magistério. Como<br />
exceções, existem aposentados e funcionários<br />
públicos.<br />
A estrutura sócio-econômica e familiar, na<br />
qual vivem, também define os sujeitos sociais e<br />
as características que os diferenciam. A religiosidade,<br />
a educação e os princípios morais e éticos<br />
são elementos facilmente percebidos, bem<br />
como os diferentes comportamentos e maneiras<br />
de comunicação dos participantes da comunidade.<br />
Entre estes havia alguns evangélicos.<br />
Foi fácil reconhecer a identidade religiosa<br />
dos integrantes deste grupo através do conteúdo<br />
da sua fala, da maneira como se vestiam,<br />
como se arrumavam, como se agrupavam etc.<br />
Esses aspectos os diferenciavam a partir das<br />
suas culturas próprias e das suas visões de<br />
mundo. Essas pessoas representavam, na realidade,<br />
um grupo da comunidade, agregadas aos<br />
mesmos objetivos; entretanto, elas eram diferentes,<br />
de fato, pois eram sujeitos culturais<br />
construídos historicamente através de trajetórias<br />
próprias que as moldaram enquanto indivíduos<br />
de uma sociedade multiétnica, diferencialista e<br />
excludente.<br />
Percebemos, dessa maneira, que o conjunto<br />
dessas características estabeleceu, a princípio,<br />
espaços determinados que passaram a ser vistos<br />
como áreas de atrito entre identidades diferentes.<br />
Assim, por exemplo, uma parte das jovens<br />
da invasão Nova Constituinte, em virtude<br />
de suas maneiras desinibidas, irrequietas, liberais<br />
e rebeldes, não aceitava as colegas que<br />
eram caladas, reservadas e com outras posturas,<br />
fruto de uma cultura específica, diferenciada<br />
das demais. Essa diversidade de comportamentos<br />
provocou situações constrangedoras<br />
e, não raro, desafiadoras para os dirigentes do<br />
Programa..<br />
Apesar de Nidiane afirmar, na sua narrativa,<br />
que não tinha nada contra elas, inconscientemente<br />
o processo de rejeição e discriminação<br />
estava, de alguma forma, presente nas suas<br />
interações.<br />
Esta interação com o outro tende a provocar<br />
reações diversificadas no sujeito, ativando<br />
seus mecanismos de defesa. Um deles é o afastamento<br />
e a rejeição daqueles com os quais não<br />
94 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003
Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />
há identificação ou que não fazem parte do contexto<br />
social no qual o sujeito está inserido. O<br />
outro, o alienígena, o diferente, transforma-se<br />
numa figura ameaçadora e persecutória, que<br />
provoca a criação de barreiras e defesas que<br />
visam a necessidade de proteção e isolamento<br />
contra o perigo iminente que este outro representa.<br />
Do ponto de vista de Nidiane:<br />
– A metade das meninas mora aqui, mas elas não<br />
moram bem aqui em cima... moram lá em baixo...<br />
na tal da invasão, a Rua Direta da Constituinte...<br />
são elas mesmas que costumam chamar lá de<br />
invasão... são as próprias moradoras da invasão<br />
que falam assim... elas não são pessoas de boa<br />
reputação, com quem se deva andar junto...<br />
Fica bem clara, na fala de Nidiane, a diferença<br />
estabelecida a partir do referencial residencial:<br />
as meninas do Alto de Coutos são representantes<br />
de um grupo - as daqui de cima -<br />
e as demais, aquelas outras, são de outro grupo,<br />
as de lá de baixo.<br />
O conflito entre esses dois grupos é reforçado<br />
pelo fato de que as jovens da invasão da<br />
Nova Constituinte já são mães-de-família, mas<br />
não agem como tais, e “não se comportam como<br />
meninas direitas”. A maternidade precoce e<br />
sem companheiro, isto é, sem o marido ratificador<br />
da relação matrimonial, ainda é um grande<br />
diferenciador em nossa sociedade. Como<br />
ficou evidente na entrevista com Nidiane, uma<br />
parte dessas jovens possui os referenciais típicos<br />
da família tradicional. Mesmo as pessoas<br />
de classes populares, pauperizadas pela conjuntura<br />
presente, ainda preservam os valores<br />
da boa conduta que determinam a identidade<br />
de uma pessoa de família, de uma mulher digna<br />
e de respeito.<br />
Como resultado desses olhares diferenciadores,<br />
do ponto de vista de quem vê o outro, as<br />
jovens lá de baixo foram rejeitadas e excluídas<br />
do grupo lá de cima porque não possuíam<br />
referenciais que se coadunassem com os princípios<br />
éticos adotados pelas referidas jovens.<br />
Não se sentindo acolhidas pelas de lá de cima,<br />
em contrapartida, as rejeitadas, as de lá de<br />
baixo, denominaram as de lá de cima de<br />
patricinhas, ou seja, as sofisticadas.<br />
Nidiane se considera uma pessoa comunicativa,<br />
pois “se comunica com todo mundo”.<br />
De fato, seu relato foi animado, seguro, direto e<br />
cheio de detalhes. O que mais nos impressiona<br />
é a forma entusiasmada com que ela abraçou a<br />
proposta do curso. Ela vibrou com aquela nova<br />
perspectiva. A identidade negra aflorou nos seus<br />
gestos e nas suas falas. Para ela, tudo aquilo<br />
era algo inusitado. A beleza negra tornou-se um<br />
grande diferenciador em sua vida, não só no<br />
processo de construção da sua identidade étnica<br />
e de gênero, enquanto mulher negra, mas<br />
também enquanto profissional.<br />
Nidiane, apesar de considerar constrangedoras<br />
algumas situações geradas no seu processo<br />
de socialização, terminou por acreditar<br />
que até o final do curso aquelas situações iriam<br />
se modificar. Face à maneira como o curso estava<br />
sendo conduzido, ela acreditava que as situações<br />
problemáticas seriam satisfatoriamente<br />
resolvidas. O clima no qual o curso foi realizado<br />
– sob a égide da sociabilidade e da liberdade<br />
– sinalizava para Nidiane a perspectiva<br />
de uma coexistência pacífica para o grupo, o<br />
que de fato veio a acontecer. As arestas foram<br />
sendo esmerilhadas pelos valores éticos propostos<br />
e trabalhados durante todo o processo de<br />
interações múltiplas e de constantes trocas de<br />
conhecimentos e reconhecimentos.<br />
Em Coutos, há várias ruas com nomes de<br />
países africanos e asiáticos, a começar pelo<br />
próprio nome da instituição que fica na Rua do<br />
Congo. Outras ruas como Sudão, Guiné etc,<br />
também estão presentes naquele espaço.<br />
Nidiane, apesar de não saber informar a respeito<br />
dos nomes das ruas daquele lugar,<br />
ressignifica a presença desses nomes naquele<br />
local. Para ela:<br />
– Ruas com nomes de países africanos?... acho<br />
que tem tudo a ver com a África, com a raça<br />
negra... tem tudo a ver... aí é que a gente vai ver<br />
que a cultura deles está chegando para nós...<br />
chegando para a gente aqui... já chegou, mas a<br />
gente não sabia... nossos olhos, nossa visão<br />
estavam tapados... agora é que estão se abrindo,<br />
principalmente com este curso... abriu muito<br />
nossa visão para que a gente viesse enxergar a<br />
beleza deles e viéssemos colocar em prática esse<br />
trabalho da costura étnica...<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />
95
A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />
Nessa fala, podemos inferir que, para Nidiane,<br />
a presença de referenciais africanos já existiam<br />
na sua comunidade, mas não eram até<br />
então percebidos, ou seja, os sujeitos não se<br />
apropriavam desses elementos enquanto parte<br />
de suas existências. Esse universo material e<br />
cultural repleto de símbolos e de representações<br />
era carente de significado para as pessoas<br />
enquanto elementos de uma cultura material<br />
e espiritual que deveria ser concebida e reconhecida<br />
como elementos de uma arkhé estruturante<br />
desses sujeitos históricos.<br />
A inserção dessa jovem naquele universo<br />
propiciador de muitas experiências e reflexões,<br />
promoveu uma revolução no seu modo de pensar<br />
e ver o mundo que contribuiu decisivamente<br />
para a ampliação de seus horizontes e de<br />
suas perspectivas em relação a si própria e à<br />
sua comunidade.<br />
O contexto do curso promoveu inferências<br />
a respeito da sua realidade e das relações sociais<br />
e culturais que mantém com os vários sujeitos<br />
nela inseridos. Novas leituras de mundo foram<br />
feitas a partir de um referencial teóricoconceitual<br />
que lhe mostrou como vivem os afrodescendentes<br />
em nossa sociedade.<br />
As metáforas utilizadas pela entrevistada,<br />
quanto à cegueira cultural e estrutural daquelas<br />
pessoas, mostram o quanto nosso patrimônio<br />
cultural africano está sendo desprivilegiado em<br />
relação aos novos artefatos e valores globalizantes.<br />
Em contrapartida, ela percebe o curso como<br />
vetor realimentador dos valores culturais das<br />
nossas matrizes étnicas, principalmente a africana.<br />
Repensar a questão étnica nessa perspectiva<br />
trouxe a possibilidade de novas leituras<br />
e redimencionamentos dos valores culturais e<br />
históricos dos povos da diáspora que fazem<br />
parte da nossa matriz civilizatória.<br />
É necessário que entidades sociais e culturais<br />
realizem o trabalho de reconstituição das<br />
edificações culturais representativas do patrimônio<br />
histórico-cultural e baluarte civilizatório<br />
africano. Isso deve ser feito de maneira didática,<br />
educativa e socializante. Deve ser fruto de<br />
interações sociais, educacionais e culturais, nas<br />
quais predomine a reflexão a respeito das identidades<br />
culturais, possibilitando novos enfoques e<br />
um novo pensar a respeito dessas questões.<br />
A conquista da participação num espaço<br />
privilegiado é outra característica dos sujeitos<br />
envolvidos no curso objeto deste estudo de caso.<br />
Todos os candidatos, de uma maneira geral,<br />
passaram por uma seleção constituída por entrevistas,<br />
conversas e debates. Assim, estar ali<br />
foi um processo que marcou muito a vida de<br />
todos eles. Ao tratar disso, assim Nidiane se<br />
reporta:<br />
– Muitos queriam estar aqui no nosso lugar, mas<br />
não puderam... queriam reivindicar nosso lugar...<br />
queriam falar em nosso lugar... mas não puderam,<br />
porque foram inscritas várias pessoas, acho<br />
que quase cem, mas só foram selecionadas trinta...<br />
então, essas setenta que ficaram lá fora queriam<br />
ficar em nosso lugar... não tinha espaço para<br />
todas elas, entendeu?... Então, eu acho muito<br />
importante que a gente viesse aqui reivindicar<br />
nosso trabalho... desenvolver o nosso trabalho<br />
através de uma entrevista que viesse sair, né?...<br />
não ficasse só aqui no Congo, no Alto de Coutos,<br />
só aqui em Periperi, mas que viesse sair para<br />
outro lugar o nosso trabalho...<br />
No trecho acima, Nidiane nos relata sua<br />
satisfação pela vitória em ter sido selecionada<br />
numa disputa acirrada de quase cem concorrentes,<br />
segundo ela. Isso aumentou sua autoestima,<br />
ao tempo em que a conscientizou da<br />
sua responsabilidade quanto ao sucesso do projeto.<br />
Sentiu que seu desempenho no curso influiria<br />
na imagem do mesmo e na possibilidade<br />
dos seus resultados serem divulgados para o<br />
público.<br />
A presente entrevista, para Nidiane, tinha<br />
esse cunho divulgador, apesar de ter-lhe sido<br />
explicado que ela estava sendo realizada para<br />
fins de um trabalho acadêmico e não para fins<br />
de divulgação jornalística. Na sua perspectiva, o<br />
trabalho desenvolvido no CONGO – CENTRO<br />
MÉDICO SOCIAL deveria ser ampliado para<br />
outras áreas, não só em Periperi e Alto de Coutos,<br />
mas também em outras áreas da cidade.<br />
CONCLUSÃO<br />
Projetos voltados para a educação pluricultural<br />
ainda estão longe de serem concretizados<br />
96 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003
Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />
na sua amplitude e totalidade. Apesar de já possuirmos<br />
epistemes que nos balizem teoricamente,<br />
além de experiências isoladas como as expostas<br />
neste trabalho, as práticas nesse campo<br />
ainda se encontram em fase embrionária. O<br />
desinteresse e a falta de investimento material,<br />
pedagógico e didático por parte dos dirigentes<br />
da educação contribuem para que as matrizes<br />
étnicas afro-aborígines sejam caricaturizadas<br />
por parte dos muitos profissionais que não possuem<br />
referenciais teóricos e práticos na consecução<br />
de um projeto dessa natureza. Os profissionais<br />
da educação não são preparados nem<br />
estimulados a incorporar de forma competente<br />
um projeto de educação multicultural nas práticas<br />
cotidianas. Enquanto isso não acontece de<br />
forma sistematizada e reconhecida nas escolas,<br />
realizam-se apenas experiências isoladas de<br />
pequena monta, que trabalham na construção<br />
de uma identidade étnica, social, cultural e cidadã<br />
para afro-descendentes e aborígines, trabalhando<br />
aspectos etno-culturais que os constroem<br />
enquanto indivíduos-sujeitos.<br />
A experiência individual, apresentada neste<br />
estudo – no contexto de uma discussão sobre a<br />
teoria e a prática da educação pluricultural –<br />
nos mostra quanto os sujeitos são beneficiados<br />
e adquirem, rapidamente, consciência crítica em<br />
situações pedagógicas favoráveis que estimulam<br />
suas autonomias e promovem a (re)construção<br />
de suas identidades.<br />
Esta experiência pedagógica interétnica, calcada<br />
numa perspectiva multirreferencial, possibilitou<br />
à nossa depoente e aos seus colegas de<br />
curso, a oportunidade para discutir e entender<br />
as questões próprias da sua etnia face à conjuntura<br />
atual e ao seu cotidiano. Esse curso<br />
profissionalizante – apesar de ter a duração de<br />
apenas um ano – promoveu mudanças profundas<br />
em seus alunos, proporcionando-lhes oportunidade<br />
para o desenvolvimento da sua consciência<br />
étnico-cultural.<br />
Dessa forma, diante da realidade histórica de<br />
discriminações, a construção da(s) identidade(s)<br />
torna-se um ato político, porque ela não só conscientiza<br />
e ressignifica os atores sociais, como<br />
também faz com que eles percebam o seu papel<br />
social e cultural enquanto sujeitos históricos.<br />
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97
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Recebido em 30.05.03<br />
Aprovado em 20.07.03<br />
98 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003
Léa Austrelina Ferreira Santos<br />
ODEMODÉ EGBÉ ASIPÁ: PARA ALÉM DO “ENSINO<br />
DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA”<br />
Léa Austrelina Ferreira Santos *<br />
RESUMO<br />
Este artigo traz uma reflexão sobre a Lei 10.639/03, que insere a temática<br />
da História e Cultura dos afro-descendentes nos currículos da rede oficial<br />
de ensino no Brasil. Em virtude das demandas da Lei, apresenta a<br />
perspectiva pedagógica do Projeto Odemodé Egbé Asipá - Juventude<br />
da Sociedade Asipá, afirmando e analisando a sua linguagem pedagógica<br />
como capaz de compreender o que considera um dos maiores problemas<br />
da sociedade brasileira: o recalque à afirmação existencial, à<br />
identidade dos afro-descendentes e à diversidade étnico-cultural presente<br />
em nosso contexto.<br />
Palavras-chave: Ancestralidade – Pluralidade Cultural – Identidade –<br />
Educação<br />
ABSTRACT<br />
ODEMODÉ EGBÉ ASIPÁ: TOWARDS BEYOND THE “AFRO-<br />
BRAZILIAN HISTORY AND CULTURE TEACHING”<br />
This article brings a reflection over Law 10.639/03, which inserts the<br />
thematic of History and Culture of the Afro-descendants in the curriculums<br />
of the official teaching network in Brazil. Due to the requirements of the<br />
law, it presents the pedagogical perspective of the Project Odemodé<br />
Egbé Asipá - Youth of the Asipá Society, affirming and analyzing its<br />
pedagogical language as capable of understanding what it considers as<br />
one of the greatest problems in the Brazilian society: the repression of<br />
the existential affirmation, of the identity of the Afro-descendants and of<br />
the ethnic-cultural diversity present in our context.<br />
Key words: Roots – Cultural Plurality – Identity – Education.<br />
*<br />
Mestranda do Curso de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da<br />
Bahia; Pedagoga; Pesquisadora do Programa Descolonização e Educação-PRODESE; Assessora pedagógica<br />
do Projeto Odemodé Egbé Asipá; trabalho orientado pela professora Dra. Narcimária P. Luz. Agradeço<br />
profundamente à comunidade-terreiro Ilê Asipá a oportunidade que me foi concedida de conhecer e viver<br />
uma experiência pedagógica vinculada com a afirmação de nossa diversidade cultural, especialmente aos<br />
jovens da comunidade, pela afetividade e laços criados. Endereço para correspondência: Setor C, Rua F,<br />
caminho 36, n.1, Mussurunga I, – 41510-<strong>19</strong>0 Salvador/BA. E-mail: leaferreira@hotmail.com.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003<br />
99
Odemodé egbé asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />
1. Introdução<br />
Onilewa alabê Konko<br />
Onilewa alabê Konko<br />
Alabê koriko koriko koriko<br />
Alabê koriko 1<br />
(Alabê o que possui a honorabilidade de membro<br />
da casa Alabê canta como o pássaro koriko)<br />
Alabê é um componente da orquestra ritual<br />
dentro da tradição litúrgica africano-brasileira.<br />
Os alabês são aqueles que devem conhecer o<br />
toque do atabaque, o ritmo, os ritmos percussivos<br />
rituais, as saudações e as cantigas do repertório<br />
litúrgico da tradição. (LUZ, <strong>19</strong>95)<br />
A música alabê traz uma ordem de elaboração<br />
de mundo inerente ao processo civilizatório<br />
africano-brasileiro. O alabê é, antes de tudo,<br />
um membro da casa e possui honorabilidade por<br />
isso, ou seja, há uma implicação de ordem<br />
interpessoal, o sentimento de pertencer a uma<br />
comunalidade 2 , há uma elaboração existencial<br />
da sua presença no mundo. É também uma função,<br />
um título. Há uma relação dialética entre o<br />
técnico e o estético que se unem para a realização<br />
da dimensão nagô Odara 3 das formas de<br />
comunicação africano-brasileiras em meio ao<br />
ato litúrgico.<br />
Ser alabê significa dignificar a tradição em<br />
cada ato litúrgico, ser responsável pela manutenção<br />
dos instrumentos rituais, pelo toque do<br />
atabaque. O alabê deve conhecer as saudações,<br />
as canções, é responsável pela comunicação<br />
entre o aiyê, este mundo, e o orum, o além 4 . É a<br />
concretização da dimensão técnica, do saber tocar<br />
e da responsabilidade da atividade ritual e da<br />
dimensão estética, do conhecimento sobre a<br />
música e todo universo simbólico que a envolve,<br />
um processo que proporciona a afirmação da<br />
identidade própria dos membros da comunidade.<br />
As reflexões sobre a música Alabê remetem<br />
à dinâmica pedagógica do Projeto Odemodé<br />
Egbé Asipá – Juventude da Sociedade Asipá,<br />
que contou com a participação de parte dos jovens<br />
alabês da comunidade-terreiro Ilê Asipá<br />
localizada em Salvador/Bahia. Ser alabê na<br />
comunidade-terreiro significa ter uma referência<br />
de pertencimento, ter uma função, e acima<br />
de tudo, uma identificação com os valores culturais<br />
da comunidade.<br />
O Projeto Odemodé Egbé Asipá, realizado<br />
pela comunidade-terreiro Ilê Asipá, foi elaborado<br />
a partir dos valores culturais e existenciais<br />
desses jovens, que são ilustrados com a música<br />
alabê.<br />
Apresento a perspectiva pedagógica do Odemodé<br />
como uma iniciativa capaz de contemplar<br />
as propostas da Lei 10.639/03, mas que a<br />
transcende, possibilitando a criação de uma<br />
pedagogia contrária à política de recalque à afirmação<br />
da identidade dos afro-descendentes,<br />
pois essa perspectiva pedagógica foi elaborada<br />
a partir da referência existencial dos jovens, dos<br />
valores da comunidade.<br />
Pretendo analisar os pressupostos da Lei e<br />
apresentar a perspectiva pedagógica do projeto<br />
Odemodé, que tem como uma das suas principais<br />
características a de recriação de uma linguagem<br />
ético-estética africano-brasileira aplicada<br />
à Educação, visando gerir os aspectos<br />
mencionados – a afirmação as identidades dos<br />
jovens da comunidade Ilê Asipá e a nossa diversidade<br />
cultural.<br />
A música alabê, neste caso, implica a afirmação<br />
da identidade cultural das populações de<br />
1<br />
Música da tradição litúrgica africano-brasleira (apud<br />
LUZ, <strong>19</strong>95, p. 534).<br />
2<br />
Essa categoria foi elaborada por alguns autores, especialmente<br />
Marco Aurélio Luz, para designar a rede de relações<br />
interpessoais que caracterizam a forma social presente<br />
em comunidades de origem africana no Brasil.<br />
3<br />
Categoria utilizada por alguns autores, entre eles<br />
Narcimária C. P. Luz e Juana Elbein dos Santos, para<br />
caracterizar a dimensão estética presente nas formas e<br />
códigos de comunicação africano-brasileiras.<br />
4<br />
Segundo Santos (<strong>19</strong>86, p.53) a existência, dentro do sistema<br />
nagô, se desdobra em dois níveis: o aiyê e orun; aiyê<br />
corresponde a este mundo, o mundo físico concreto, e a<br />
vida de todos os seres naturais que o habitam, e orun, o<br />
outro mundo, o além, o espaço sobrenatural, uma concepção<br />
abstrata de algo imenso, infinito e distante. Muitos<br />
autores traduzem orun por céu (sky) ou paraíso (heaven)<br />
caracterizando um obstáculo teórico-epistemológico, pois<br />
a idéia de orun é abstrata, orun não é concebido como<br />
localizado em nenhuma das partes do mundo real, é um<br />
mundo paralelo ao mundo real que coexiste com todos os<br />
conteúdos deste. Cada indivíduo, cada árvore, cada animal,<br />
cada cidade possui um duplo espiritual e abstrato no orun.<br />
100 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003
Léa Austrelina Ferreira Santos<br />
origem africana em dois planos: mais especificamente,<br />
na afirmação existencial dos jovens<br />
que estão envolvidos na elaboração da perspectiva<br />
pedagógica do Odemodé e num plano<br />
mais abrangente, em analogia, o da afirmação<br />
das identidades culturais de grande parte da<br />
população infanto-juvenil afro-descendente.<br />
Essa música, além de simbolizar a elaboração<br />
de mundo ligada à identidades dos jovens, fornece<br />
uma referência para todo um segmento<br />
populacional de afirmação da diversidade cultural<br />
em nosso país.<br />
A sanção da referida Lei constitui-se em um<br />
fato importante na história da legislação educacional<br />
brasileira, visto que a historiografia oficial<br />
exerce o silêncio sobre o processo civilizatório<br />
africano no Brasil; entretanto, é necessário refletir<br />
sobre quais são os referenciais contidos para<br />
a sua proposição. A partir de que referências é<br />
que se propõe o ensino de história sobre afrobrasileiros?<br />
Como evitar as visões etnocêntricas<br />
e as imposições de valores neocoloniais e imperialistas<br />
dominantes no ensino da História em<br />
nosso contexto?<br />
2. A Lei 10.639/03: tensões e obstáculos<br />
teórico-epistemológicos na<br />
concepção de perspectivas pluriculturais<br />
de Educação<br />
A Lei 10.639 foi sancionada pelo Presidente<br />
da República, Luís Inácio Lula da Silva, em 9<br />
de janeiro de 2003, e acrescenta dois artigos à<br />
LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação<br />
Nacional, número 9.394, de <strong>19</strong>96. É importante<br />
ressaltar o caráter de “novidade” contido nela,<br />
o que significa que as análises e reflexões são<br />
muito recentes, e o seu conteúdo tem causado<br />
grandes expectativas na comunidade docente<br />
brasileira. As reflexões contidas aqui têm como<br />
característica o fomento de discussões, em vez<br />
da apresentação de propostas fechadas e conclusivas.<br />
A principal mudança estabelecida pela Lei<br />
é que ela torna obrigatório o ensino sobre História<br />
e Cultura Afro-brasileira no currículo oficial<br />
da rede de ensino e inclui como conteúdo<br />
programático:<br />
... o estudo sobre História da África e dos Africanos,<br />
a luta dos negros no Brasil, a cultura negra<br />
brasileira e o negro na formação da sociedade<br />
nacional resgatando a contribuição do povo<br />
negro nas áreas social, econômica e política<br />
pertinentes à História do Brasil. (Texto da Lei<br />
10.639/03 - Grifos meus)<br />
A Lei determina também que esses conteúdos<br />
serão ministrados em todo o currículo escolar,<br />
especialmente na área de Educação Artística,<br />
História e Literatura Brasileiras, e inclui<br />
o dia 20 de novembro como Dia Nacional da<br />
Consciência Negra no calendário escolar.<br />
Esta Lei contaria ainda com mais um inciso<br />
e um artigo que foram vetados 5 pela Presidência<br />
da República: o primeiro, o inciso 3, determinava<br />
que fossem dedicados, no ensino médio,<br />
10% do conteúdo programático anual ou<br />
semestral das disciplinas de História do Brasil<br />
e Educação Artística. Esse inciso foi vetado,<br />
pois iria de encontro à proposta da Constituição<br />
brasileira de <strong>19</strong>88, que impôs à legislação<br />
infraconstitucional o respeito às peculiaridades<br />
regionais e locais, o que teria sido contemplado<br />
no caput do artigo 26 da LDB que preceitua:<br />
Os currículos do ensino fundamental e médio<br />
devem ter uma base nacional comum, a ser<br />
complementada, em cada sistema de ensino e<br />
estabelecimento escolar, por uma parte diversificada,<br />
exigida pelas características regionais e<br />
locais da sociedade, da cultura, da economia e<br />
da clientela.<br />
Além disso, em outro artigo da Constituição,<br />
o 211, afirma-se como de interesse público a<br />
participação dos Estados e Municípios na elaboração<br />
dos currículos mínimos nacionais, preceito<br />
contemplado na LDB no artigo 9, inciso 4. Este<br />
seria também outro interesse público contrariado<br />
pelo inciso 3.<br />
Quanto ao artigo vetado, estabelecia que os<br />
cursos de capacitação para professores deveriam<br />
contar com a participação de entidades do<br />
movimento afro-brasileiro, das universidades e<br />
de outras instituições de pesquisa. Porém a LDB<br />
não disciplina e nem faz menção em nenhum dos<br />
5<br />
Vide Mensagem do Veto número 7, de 09/01/2003. Presidência<br />
da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos<br />
Jurídicos.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003<br />
101
Odemodé egbé asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />
seus artigos a cursos de capacitação para professores,<br />
o que romperia com a unidade de conteúdo<br />
da LDB e contrariaria uma norma de interesse<br />
público da Lei complementar nº 95 de 26<br />
de fevereiro de <strong>19</strong>98, segundo a qual a Lei não<br />
conterá matéria estranha a seu objeto.<br />
Deve-se considerar também que esse assunto<br />
nunca foi devidamente tratado pela legislação<br />
educacional brasileira anterior à LDB. Os próprios<br />
Parâmetros Curriculares Nacionais tratam<br />
a temática da pluralidade cultural como algo<br />
“transversal” dentro dos currículos brasileiros.<br />
Diversos desafios são colocados diante de<br />
nós, tais como: organizar um currículo que atenda<br />
a essas necessidades no que diz respeito à<br />
escolha dos conteúdos a serem abordados,<br />
materiais didáticos a serem utilizados; analisar<br />
capacidade reflexiva do sistema educacional<br />
brasileiro sobre esse tema; e, principalmente,<br />
considerar as interpretações restritivas da retórica<br />
técnica jurídico-política da Lei.<br />
O desafio mais instigante, entretanto, não é<br />
esse. Ele está relacionado às referências existenciais<br />
e às motivações que fizeram a Lei<br />
emergir e, sobretudo, a suas implicações no<br />
contexto das escolas brasileiras.<br />
Nesse sentido é importante ressaltar que o<br />
Projeto Odemodé, cerne deste artigo, nasceu<br />
da necessidade de afirmação existencial dos<br />
jovens de uma comunidade africano-brasileira<br />
na Bahia. A sua linguagem pedagógica foi<br />
construída a partir das referências ancestrais<br />
da comunidade, o que favorecia a afirmação<br />
das identidades culturais.<br />
Os nossos educadores estariam preparados<br />
para a abordagem de tais temas? A resposta é<br />
não! Os professores no Brasil, de uma forma<br />
geral, não têm formação para o ensino de História<br />
da África e não são estimulados a pensar<br />
e perceber a riqueza pluricultural da nação.<br />
Outra questão: De qual noção de África se<br />
está falando? Quais idéias estão implicadas<br />
nessa noção de África?<br />
Existem diversas instituições que se preocupam<br />
com a Lei. Há uma movimentação<br />
incipiente, entre algumas instituições, para criação<br />
de cursos com a finalidade de “capacitar”<br />
professores nessa área. Muitas iniciativas já<br />
existentes devem ser revistas e analisadas. A<br />
Bahia tem muito a contribuir com isso.<br />
Um fato que tem sido colocado em questão<br />
é se a autonomia trazida pela LDB às instituições<br />
educacionais no Brasil estaria sendo comprometida<br />
com a sanção desta Lei. Acredito<br />
que esse argumento não é suficientemente forte<br />
para considerá-la um empecilho para a autonomia<br />
gerada pela LDB, pois a Lei 10.639 não<br />
revoga nenhum de seus artigos anteriores, mas<br />
reforça um aspecto importante que nunca foi<br />
devidamente tratado pela educação nacional;<br />
ou seja, a criação dessa nova lei não exclui a<br />
possibilidade de que sejam ensinados, no currículo<br />
da educação básica, conteúdos inerentes<br />
à história e cultura de outra etnia; ao contrario,<br />
a sanção dessa lei pode estar despertando essa<br />
necessidade em outras partes da população de<br />
origens distintas no Brasil.<br />
Há um problema muito maior que pode estar<br />
sendo tocado com a Lei 10.639/03. É o fato<br />
de a histografia oficial brasileira sempre retratar<br />
o afro-descendente sob o ponto de vista<br />
pejorativo, incutindo a identidade de escravo,<br />
numa leitura linear evolucionista, deixando de<br />
informar sobre o patrimônio civilizatório africano<br />
e de ressaltar a importância desse segmento<br />
social na constituição da população e da identidade<br />
brasileira, recalcando, desta forma, a população<br />
de origem africana.<br />
Há, no discurso da “inteligentzia” brasileira,<br />
um pensamento ainda marcadamente<br />
eurocêntrico. Ilustro este aspecto com uma<br />
análise um tanto equivocada de um editorialista<br />
do jornal Folha de São Paulo, que afirma em<br />
sua coluna:<br />
O fenômeno da discriminação atinge todas as<br />
minorias e até algumas maiorias, como é o caso<br />
das mulheres. Ao fazer uma historiografia dos<br />
negros, estamos deixando de fazer a dos índios,<br />
dos asiáticos, dos árabes, dos judeus e de todos<br />
os grupos étnicos com presença no país e que<br />
poderiam legitimamente reclamar o mesmo tratamento.<br />
E eu não acho que faça o menor sentido enterrarmos<br />
o ensino da história que muitos chamam<br />
pejorativamente de branca e masculina em<br />
favor de dezenas histórias alternativas (...) é<br />
preciso reconhecer que somos uma sociedade<br />
102 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003
Léa Austrelina Ferreira Santos<br />
de origem européia. São valores europeus que,<br />
justa ou injustamente, se impuseram no Brasil ...<br />
(SCHWARTSMAN, 2003, p. 01 - grifos meus)<br />
O pensamento do jornalista, além de equivocado<br />
sobre o que dispõe a Lei, é um pensamento<br />
unívoco. A luta de diversas entidades,<br />
estudiosos e comunidades afro-descendentes é<br />
a de afirmar a diversidade cultural presente em<br />
nossa sociedade. Ao contrário do que ele diz, a<br />
população de origem africana no Brasil não se<br />
constitui em uma minoria: este é um dos maiores<br />
segmentos populacionais do Brasil. Além<br />
disso, não se propõe fazer uma historiografia<br />
dos afro-descendentes em detrimento da história<br />
dos outros povos presentes no País. O que<br />
se propõe é o reconhecimento da diversidade<br />
cultural no Brasil e o ensino da história dos afrodescendentes<br />
pode reforçar esse propósito.<br />
A Lei 10.639/03 pode contribuir para o amadurecimento<br />
da luta da população afro-descendente<br />
no Brasil, com as políticas de ação afirmativa,<br />
para redução das desigualdades. Mas<br />
o aspecto que consideramos mais importante<br />
fica, muitas vezes, esvaziado no contexto dessa<br />
luta, que é a dimensão da afirmação da diversidade<br />
cultural – algo que transcende as<br />
delimitações de “raça” e “cor” –, dizendo respeito<br />
à afirmação existencial da população afrodescendente.<br />
As políticas de ação afirmativa são um tema<br />
muito polêmico e têm gerado diversas discussões<br />
necessárias e urgentes, mas não é minha<br />
intenção discuti-las aqui. A intenção é buscar<br />
uma compreensão sobre a Lei referida, analisar<br />
a sua importância no contexto do Estado da<br />
Bahia, cuja população é, em sua maioria, de<br />
origem africana, e perceber, através de uma<br />
perspectiva já delineada, a do Projeto Odemodé<br />
Egbé Asipá – Juventude da Sociedade Asipá,<br />
a concretização de ações educativas pluriculturais<br />
a partir da referência ancestral africanobrasileira<br />
e que diz respeito à afirmação existencial<br />
da população de origem africana .<br />
Há um aspecto fundamental trazido por essa<br />
Lei. Trata-se da possibilidade de se oferecer<br />
aos jovens brasileiros uma visão distinta da história<br />
dos povos de origem africana, de enfrentar<br />
o silêncio da historiografia oficial e da escola<br />
em relação ao processo civilizatório africano-brasileiro.<br />
Não é novidade que a historiografia<br />
oficial reduz a presença africana e omite as<br />
personalidades que lutaram e lutam para afirmação<br />
desta cultura no Brasil.<br />
São, entretanto, possibilidades, pois a mera<br />
sanção da Lei não assegura que esses conteúdos<br />
serão tratados de forma realmente positiva<br />
para a população afro-descendente, ou seja, que<br />
os jovens possam admirar e reconhecer as suas<br />
origens e possam ter uma auto-imagem positiva<br />
ou que as manifestações culturais de origem<br />
africana deixarão de ser tratadas como folclore<br />
pela escola ou, ainda, e a pedagogia do recalque<br />
às identidades deixará de existir. A Lei em<br />
questão é uma possibilidade de enfrentamento<br />
desses problemas.<br />
Esse aspecto é ressaltado porque foi a partir<br />
da necessidade de afirmação da identidade sócio-cultural<br />
dos afro-descendentes que o Projeto<br />
Odemodé Egbé Asipá foi estruturado. O ensino<br />
da cultura e da história dos afro-descendentes<br />
precisa estar ancorado numa perspectiva fundada<br />
na afirmação da nossa diversidade cultural.<br />
No sentido de enfrentamento da realidade<br />
imposta à população de origem africana e<br />
aborígine no Brasil e especialmente na Bahia,<br />
destacamos algumas iniciativas vinculadas ao<br />
PRODESE - Programa Descolonização e Educação,<br />
do Departamento de Educação, Campus<br />
I da UNEB - Universidade do Estado da Bahia.<br />
O PRODESE fomenta atividades em pesquisa,<br />
ensino e extensão que visam a afirmação<br />
da nossa pluralidade cultural, e apóia e estimula<br />
o desenvolvimento de ações educativas e elaborações<br />
teóricas voltadas para esse sentido.<br />
O Programa Descolonização e Educação –<br />
PRODESE desenvolve produções acadêmicocientíficas<br />
no contexto da diversidade étnicocultural<br />
das Américas. Essas produções vêm fomentando<br />
pesquisas, estudos e atividades de<br />
ensino e extensão, baseados numa ética que<br />
permita a garantia da coexistência e expressão<br />
territorial dos continuuns civilizatórios que caracterizam<br />
este continente.<br />
Agrega estudiosos e pesquisadores que produzem<br />
participações criativas, com vistas a superar<br />
os paradigmas neocoloniais e etnocêntricos<br />
que estruturam a política de educação no Brasil,<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003<br />
103
Odemodé egbé asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />
além de elaborar e difundir conhecimentos sobre<br />
educação referidos às alteridades civilizatórias<br />
que constituem a formação social brasileira.<br />
(...)<br />
Descolonização e Educação é uma iniciativa que<br />
procura restituir aos descendentes das populações<br />
aborígines e africanas a compreensão e dignidade<br />
de sua alteridade civilizatória. (LUZ, 2000,<br />
p. 8).<br />
O PRODESE tem realizado pesquisas importantes<br />
no que diz respeito à afirmação da<br />
diversidade cultural na Bahia, entre elas a abordagem<br />
do universo da Ancestralidade africana<br />
em que sublinho como necessária a elaboração<br />
de políticas educacionais voltadas para o acolhimento<br />
do direito à alteridade e a afirmação<br />
da identidade da população infanto-juvenil afrodescendente,<br />
especialmente na análise sobre o<br />
projeto Odemodé Egbé Asipá.<br />
Em seu volume mais recente, lançado em<br />
maio deste ano, a revista Sementes trouxe uma<br />
gama de artigos compondo um repertório riquíssimo<br />
dentro das abordagens em Educação Pluricultural.<br />
O pólo irradiador das suas temáticas<br />
está fundamentado na ética da coexistência, caracterizando-se<br />
como uma possibilidade de trabalho<br />
com as questões ligadas à Educação.<br />
Para a geração de educadores deste século ainda<br />
persiste a mesma demarcação da norma<br />
geopolítica neocolonial-imperialista, mas com um<br />
novo diferencial: a instituição recente do “eixo<br />
do bem” e “eixo do mal” – fruto de acordos jurídico-políticos<br />
entre nações classificadas como<br />
grandes potências (parafraseando Sartre: ‘o inferno<br />
são os outros’). Tudo isso vem submetendo<br />
a existência do planeta a esses pólos equivocados<br />
que tendem a estimular a intolerância, o<br />
ódio, a negação do direito à alteridade própria e<br />
as identidades culturais de distintos povos. (LUZ,<br />
2002, p.8).<br />
Os artigos publicados por Sementes reforçam<br />
a necessidade de afirmação e concretização<br />
da ética da coexistência. No volume em<br />
questão, a revista traz diversas contribuições<br />
relacionadas ao direito à existência, novas percepções<br />
sobre a continuidade do processo civilizatório<br />
africano-brasileiro, compreensões sobre<br />
dinâmicas sócio-culturais baianas referendadas<br />
no contexto da civilização africano-brasileira,<br />
além de poesias e desdobramentos da pesquisas<br />
do PRODESE e novas perspectivas de leitura<br />
envolvendo essa temática. “A dinâmica<br />
socioexistencial emanada pela da coexistência,<br />
para a equipe do PRODESE, se constitui como<br />
a única possibilidade de assegurar a expansão<br />
da multiplicidade de vida no planeta.” (LUZ,<br />
2002, p. 8).<br />
3. O Odemodé Egbé Asipá – Juventude<br />
da Sociedade Asipá: ancestralidade,<br />
comunalidade e afirmação<br />
existencial num contexto pluricultural<br />
de educação<br />
O Projeto Odemodé Egbé Asipá – Juventude<br />
da Sociedade Asipá foi realizado pela<br />
comunidade-terreiro Ilê Asipá em <strong>19</strong>99 e 2000<br />
e concretizou uma perspectiva pedagógica pluricultural<br />
pautada na referência ancestral africano-brasileira.<br />
A comunidade-terreiro Ilê Asipá foi fundada<br />
por Deoscóredes Maximiliano dos Santos,<br />
Mestre Didi – Alapini, sacerdote supremo do<br />
culto aos ancestrais – e por um grupo de Ojés,<br />
que representam a hierarquia da comunidade e<br />
procuram zelar e manter a continuidade da religião<br />
africano-brasileira com absoluto respeito<br />
à liturgia deixada como legado pelos antepassados<br />
da família Asipá. A família Asipá é, acima<br />
de tudo, um ponto de ancoragem, de princípio-começo-origem,<br />
a arkhé da comunidade.<br />
A noção de arkhé é utilizada para projetar a<br />
compreensão da episteme africana e da linguagem<br />
que a sustenta. Trata-se de uma contextualização<br />
do universo simbólico africano-brasileiro.<br />
Esta é uma categoria utilizada por alguns<br />
autores 6 para a interpretação da episteme africana<br />
no Brasil e para a caracterização de idéias<br />
que a contextualizem no discurso acadêmico.<br />
A arkhé caracteriza-se por princípios inaugurais<br />
que dão propulsão ao existir. É uma elaboração<br />
de passado que dá significado à exis-<br />
6<br />
Para aprofundamento indicamos conhecer os trabalhos<br />
de Narcimária C. P. Luz, Marco Aurélio Luz, Deoscóredes<br />
Maximiliano dos Santos, Juana Elbein dos Santos e<br />
Muniz Sodré.<br />
104 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003
Léa Austrelina Ferreira Santos<br />
tência, imprime sentido e direção ao futuro. No<br />
seio da arkhé estão contidos os princípios de<br />
começo-origem e poder-comando, e não deve<br />
ser associada com antigüidade e/ou anterioridade<br />
e exemplo de um passado rural, não-tecnológico<br />
e mesmo selvagem. Também se refere<br />
ao futuro, a uma força que dá continuidade à<br />
linguagem do sistema histórico-cultural da comunidade.<br />
(LUZ, 2000, p.106).<br />
Em entrevista realizada em 07/02/2000, Marco<br />
Aurélio Luz define: “A família Asipá marca<br />
o reconhecimento da continuidade transatlântica<br />
dos valores da religião africana no Brasil,<br />
tendo conseqüentemente importância especial<br />
no que se refere à ancestralidade africana em<br />
nosso país.”<br />
O Odemodé nasce, então, desse contexto,<br />
de referência da ancestralidade africano-brasileira<br />
que influencia decisivamente na constituição<br />
de suas identidades próprias.<br />
Ancestralidade deve ser entendida, nesse<br />
contexto, como forma de manutenção da memória<br />
individual e coletiva das populações de<br />
origem africana e também como forma de respeito<br />
aos antepassados e ao legado do patrimônio<br />
civilizatório implantado nas Américas.<br />
O que torna o processo civilizatório africanobrasileiro<br />
singular é o tratamento dado pelos seus<br />
integrantes à ancestralidade e às formas de preservação<br />
recriadas pelos afro-descendentes que<br />
renovam seus vínculos ancestrais e os tornam<br />
contemporâneos através de estratégias comunitárias,<br />
expressadas, muitas vezes, nas formas de<br />
sociabilidade e comunicação estabelecidas nas<br />
comunidades. Na mesma entrevista:<br />
A ancestralidade, no nível da tradição religiosa,<br />
tem as suas características específicas tanto<br />
em relação a sua iniciação no culto quanto em<br />
relação a sua ida, a partida das pessoas do aiyê<br />
para o orum, que é permeada por atos litúrgicos<br />
e com a passar do tempo, o destino dessas pessoas,<br />
inclusive depois que falecem, está envolvido<br />
em uma série de regras, um série de atos<br />
litúrgicos para seguir essa transferência.<br />
A ancestralidade influencia de forma significativa<br />
a constituição do repertório filosóficopolítico<br />
que determina as formas de estruturação<br />
de vida e relações sociais originárias desse<br />
processo civilizatório.<br />
As identidades culturais dos afro-descendentes<br />
não podem ser generalizadas, pois apresentam<br />
matizes muito distintas e devem ser consideradas<br />
de acordo com os conflitos que se apresentam<br />
no tempo e espaço, característicos da<br />
sociedade global. No contexto baiano, por<br />
exemplo, essas identidades se apresentam de<br />
forma pujante em virtude do processo civilizatório<br />
que se instalou aqui e que resistiu às imposições<br />
da sociedade escravista.<br />
A identidade cultural dos jovens ligados à<br />
comunidade Ilê Asipá tem uma nuance bastante<br />
expressiva e está alicerçada na sua afirmação<br />
existencial. A religião, a ancestralidade e a<br />
vida comunitária, na comunidade-terreiro Ilê<br />
Asipá, influenciam significativamente o quadro<br />
referencial de princípios e valores presentes nas<br />
identidades dos jovens a ela ligados.<br />
A comunidade-terreiro tem grande importância<br />
na vida dos jovens que a integram. Durante<br />
uma entrevista, um jovem do grupo do<br />
Projeto Odemodé, quando perguntado sobre o<br />
que a comunidade representava em sua vida,<br />
respondeu: “Quando eu passo do portão para<br />
dentro eu acho que meu mundo já se modifica<br />
e cá fora eu acho que é sempre o mesmo.”<br />
A vida dos jovens ligados à comunidade-terreiro<br />
Ilê Asipá é baseada num sentimento de<br />
irmandade, de família extensa, segundo seus<br />
relatos. Essa vivência vem propiciar o fortalecimento<br />
das identidades culturais, pois na comunidade<br />
concentram-se o saber e as elaborações<br />
baseadas no conhecimento ancestral que<br />
lhes fornece um forte referencial para as suas<br />
vidas.<br />
A ordem de percepção de mundo e de valores<br />
recriados no Ilê Asipá estimula os jovens a<br />
exercerem um comportamento espontâneo em<br />
que a sociabilidade preserva a cultura, estrutura<br />
as identidades e fortalece a noção do direito<br />
à alteridade. Os valores que forjam as alianças<br />
sociais e que caracterizam o patrimônio ancestral<br />
fecundam e nutrem o conjunto de ações,<br />
pensamentos e comportamentos da juventude<br />
Asipá.<br />
É permeado por essas relações que surge o<br />
Projeto Odemodé Egbé Asipá, uma iniciativa<br />
na área de educação pluricultural na Bahia, pois<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003<br />
105
Odemodé egbé asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />
Foto 1 – Jovens do Projeto Odemodé<br />
Egbé Asipa na aula de inglês na<br />
UNEB com a professora Christiane<br />
Viens (foto: Léa Austrelina F. Santos).<br />
nasce no contexto de uma comunidade africano-brasileira<br />
que recria, dignifica e irradia, por<br />
meio das relações sócio-comunitárias, o<br />
patrimônio civilizatório africano-brasileiro: a<br />
comunidade-terreiro Ilê Asipá.<br />
A proposta pedagógica do Odemodé foi concebida<br />
por integrantes da comunidade, pessoas<br />
que têm uma grande experiência em Educação<br />
Pluricultural e que fazem parte da hierarquia<br />
da própria comunidade-terreiro, como, por<br />
exemplo, Mestre Didi, fundador da comunidade,<br />
e Juana Elbein dos Santos, etnóloga e membro<br />
da comunidade, pessoas responsáveis pela<br />
primeira experiência desse caráter no Brasil, a<br />
Mini Comunidade Oba Biyi.<br />
A Mini Comunidade Oba Biyi foi uma experiência<br />
pioneira em educação pluricultural no<br />
Brasil, tratando-se de uma iniciativa da comunidade-terreiro<br />
Ilê Axé Opô Afonjá, que se desenvolveu<br />
de <strong>19</strong>76 a <strong>19</strong>86.<br />
Iyá Oba Biyi era o nome sacerdotal de Mãe<br />
Aninha. Eugênia Anna dos Santos era o seu<br />
nome católico. Mãe Aninha teve uma vida social,<br />
política e religiosa importantíssima para a<br />
afirmação dos valores e da religião africana no<br />
Brasil. A Mini Comunidade recebeu esse nome<br />
em sua homenagem e visava atender a um de<br />
seus desejos que ficou expressado numa de suas<br />
frases: “Quero ver nossas crianças de hoje, no<br />
dia de amanhã de anel nos dedos e aos pés de<br />
Xangô”. 7<br />
De anel nos dedos e aos pés de Xangô é a<br />
possibilidade de uma educação em que nossas<br />
crianças aprendam a lidar<br />
com o repertório de códigos<br />
da sociedade europocêntrica,<br />
mas utilizando-os como estratégia<br />
de legitimação da<br />
alteridade civilizatória africana;<br />
no caso, conquistando espaços<br />
institucionais, para neles<br />
fincar, recriar, e expandir,<br />
também o repertório de valores da tradição – a<br />
arkhé africana. (LUZ, 2000, p.161).<br />
Os objetivos principais do Projeto Odemodé<br />
envolviam o fortalecimento da rede de relações<br />
comunitárias onde pulsa a sociabilidade que<br />
caracteriza as identidades dos jovens, aliando a<br />
isso a aquisição de conhecimentos do universo<br />
escolar, especificamente em informática e manutenção<br />
de computadores, áreas indicadas<br />
pelos jovens para obter capacitação profissional.<br />
(Vide Foto 1).<br />
Através da capacitação profissional, procurou-se<br />
fortalecê-los, estimulando o desenvolvimento<br />
de determinadas habilidades para inserção<br />
no mercado de trabalho, mas principalmente<br />
de habilidades que concorressem para a<br />
afirmação dos valores comunitários. O Projeto<br />
Odemodé Egbé Asipá integralizou formas de<br />
comunicação, linguagem e códigos, a partir da<br />
referência ancestral emanada da arkhé civilizatória<br />
da comunidade Ilê Asipá.<br />
O Projeto envolveu jovens de 16 a 21 anos<br />
de idade, num total de 20 adolescentes. Além<br />
de ter a participação dos jovens da comunidade<br />
Ilê Asipá, o Odemodé também conseguiu reunir<br />
jovens de outras comunidades-terreiros como<br />
o Ilê Oxumaré e o Ilê Axé Opô Afonjá, favorecendo<br />
o intercâmbio entre os jovens de comunidades<br />
distintas.<br />
7<br />
A dinâmica curricular da Mini Comunidade Oba Biyi e<br />
seus desdobramentos estão apresentados de uma forma<br />
significativa no livro Abebé: a criação de novos valores<br />
em Educação, de Narcimária C. P. Luz (2000).<br />
106 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003
Léa Austrelina Ferreira Santos<br />
Foto 2 – Jovens do Projeto Odemodé<br />
Egbé Asipa durante o módulo de<br />
Informática no NETI – Núcleo de<br />
Tecnologias Inteligentes/ UNEB<br />
(foto: Léa Austrelina F. Santos).<br />
Os jovens possuíam os mais diversos graus<br />
de escolaridade, que iam do ensino fundamental<br />
ao ensino médio, o que dificultou, inicialmente,<br />
a integração do grupo quanto aos aspectos que<br />
envolviam os conteúdos trabalhados no Projeto.<br />
Os jovens foram selecionados por constituírem<br />
um grupo muito positivo e identificado com<br />
a cultura de suas comunidades-terrreiro. (Vide<br />
Foto 2)<br />
Em seu primeiro momento, o projeto foi realizado<br />
em parceria com a SECNEB – Sociedade<br />
de Estudo das Culturas e da Cultura Negra<br />
no Brasil, o PRODESE – Programa<br />
Descolonização e Educação, mobilizando na<br />
UNEB o Departamento de Educação do<br />
Campus I, o Núcleo de Tecnologias Inteligentes<br />
e o CEFET – Centro Federal de Educação<br />
Tecnológica. No segundo<br />
momento, uniram-se em parceria<br />
com o Ilê Asipá, o NEC<br />
– Núcleo de Estudos Canadenses<br />
e as demais instituições<br />
citadas, com exceção do<br />
CEFET.<br />
O Programa Comunidade<br />
Solidária, iniciativa ligada ao<br />
Governo Federal, que, através<br />
da captação de recursos junto à sociedade<br />
civil, busca financiar projetos de capacitação,<br />
foi responsável pelo financiamento do Projeto,<br />
oferecendo bolsas de estudo aos jovens durante<br />
o primeiro período do curso.<br />
A metodologia da proposta pedagógica implicou<br />
dois módulos distintos e interdependentes:<br />
o fortalecimento da identidade cultural e a<br />
capacitação profissional. A integração dos dois<br />
módulos didático-pedagógicos tinha como objetivo<br />
fazer com que os jovens tivessem melhor<br />
compreensão de sua contribuição na sociedade<br />
e da sua responsabilidade quanto à preservação<br />
de seus valores culturalmente adquiridos.<br />
O projeto, em seu primeiro momento, abrangeu<br />
ações educativas nas áreas de Língua Portuguesa<br />
(expressão oral e escrita); Matemática<br />
(noções básicas); História<br />
da África Ocidental e das<br />
comunidades africano-brasileiras<br />
referendadas no contexto<br />
africano de onde se originaram;<br />
Informática, Manutenção<br />
de Computadores e,<br />
no segundo momento, Língua<br />
Inglesa. (Vide Foto 3)<br />
Foto 3 – Momento em que os jovens<br />
do Projeto Odemodé Egbé<br />
Asipa, na aula de Inglês, apresentam<br />
o reggae como possibilidade<br />
de enriquecimento da dinâmica<br />
pedagáogica (foto: Léa Austrelina<br />
F. Santos).<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003<br />
107
Odemodé egbé asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />
O corpo docente do curso constituiu-se de<br />
profissionais que fazem parte da própria comunidade<br />
e de outros profissionais da UNEB e do<br />
CEFET, sensíveis à área de Educação Pluricultural.<br />
A repercussão que o projeto teve nas vidas<br />
dos jovens foi muito significativa, segundo suas<br />
próprias afirmações, principalmente quanto à<br />
profissionalização. Em nosso contexto, onde o<br />
desemprego predomina e o trabalho escraviza<br />
o ser humano, é preciso que nossos jovens ganhem<br />
força e direção no sentido de se apropriarem<br />
dos recursos tecnológicos urbano-industriais<br />
e, assim, possam afirmar a preservar suas<br />
identidades.<br />
O propósito do Projeto Odemodé era de criar<br />
uma linguagem pedagógica que pudesse corresponder<br />
com essa expectativa de capacitação<br />
profissional, procurando fortalecer os jovens,<br />
desenvolvendo determinadas habilidades para<br />
a sua inserção no mundo do trabalho, mas, principalmente,<br />
enfatizando habilidades e conhecimentos<br />
que concorressem para a afirmação dos<br />
valores comunitários.<br />
A comunidade-terreiro Ilê Asipá criou e desenvolveu<br />
o Odemodé em função das políticas<br />
de recalque às identidades dos afro-descendentes,<br />
exercidas pela escola oficial no Brasil (LUZ,<br />
2000). A escola oficial brasileira atua como um<br />
instrumento pelo qual o Estado pratica uma política<br />
de embranquecimento, enfocando uma<br />
cidadania judaico-cristã. O Odemodé representa<br />
uma reação à política educacional brasileira<br />
de recalque e denegação da diversidade e<br />
pluralidade cultural de nossa população.<br />
3.1. História da África através da<br />
referência mítico-ancestral<br />
Para esta abordagem, destaca-se o módulo<br />
de História da África, dentro da perspectiva de<br />
fortalecimento da identidade cultural. As aulas<br />
desse módulo foram ministradas pelo professor<br />
Marco Aurélio Luz, membro da comunidade Ilê<br />
Asipá e cientista social.<br />
Como conteúdo curricular, estiveram presentes<br />
a História do reino Oyó e Ketu, no século<br />
XIX, as etnias que deram continuidade ao processo<br />
de instalação e expansão das comunidades<br />
institucionalizadas, conhecidas como terreiros,<br />
os valores, a linguagem e a tradição africana.<br />
É nesse momento que emerge a riqueza das<br />
formas de comunicação resultantes de uma relação<br />
marcante na cultura africano-brasileira,<br />
a relação entre ancestralidade e educação, resultando<br />
na forma escolhida pelo professor para<br />
o curso: os contos míticos transmitidos na comunidade<br />
por Mestre Didi.<br />
O ethos africano-brasileiro, marcado pelo<br />
elemento estético, da música, da dramatização<br />
e dos contos não poderia deixar de estar presente<br />
no contexto dessas aulas. Destaco que<br />
ethos africano-brasileiro – a sua forma social,<br />
comunal, presente na linguagem e comunicação,<br />
desde as relações estabelecidas com a natureza<br />
até a música e ritmo – constitui a identidade<br />
própria dessas populações e transborda<br />
para um plano transcendente, o eidos.<br />
Não é portanto apenas o ethos, característico<br />
do modo de vida das comunidades-terreiro, que<br />
irradia princípios existenciais constituintes da<br />
cultura negra que estruturam a identidade histórica<br />
e social do mais significativo segmento<br />
populacional. É, sobretudo o seu eidos, sua dimensão<br />
transcendente atualizado no aqui e agora<br />
das relações sócio-litúrgicas do egbé (LUZ,<br />
<strong>19</strong>95, p 68).<br />
Por eidos entendemos a forma como a linguagem,<br />
cosmogonia, a forma social africanobrasileira<br />
se concretiza, se estabelece e se realiza<br />
no mundo caracterizando-se por uma dimensão<br />
transcendente que alimenta a sua sociabilidade<br />
e as redes de relações comunitárias.<br />
Os contos presentes na liturgia africano-brasileira<br />
representam a nossa ancestralidade, a continuidade<br />
e os vínculos comunitários e também<br />
são uma forma de diálogo entre a comunalidade<br />
e a sociedade oficial. Sua originalidade está no<br />
modo pelo qual expressam formas específicas<br />
de transmissão de valores da tradição, sendo de<br />
cunho pedagógico em que o desenvolvimento<br />
ocorre numa situação do aqui e agora, referido a<br />
uma experiência de vida, capaz de gerar uma sabedoria<br />
acumulada. Nesse contexto a comunicação<br />
ocorre de maneira direta, pessoal ou<br />
intergrupal, dinâmica, acompanhada por cânticos,<br />
culinária, liturgia, danças e dramatizações.<br />
(LUZ, <strong>19</strong>98, p.37).<br />
108 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003
Léa Austrelina Ferreira Santos<br />
A dramatização surge em contraposição às<br />
relações estabelecidas na sala de aula da escola<br />
oficial, que priorizam o silêncio, o corpo estático,<br />
sem movimento, sem ação efetiva. A mais<br />
solicitada das ações está presente na relação<br />
olho x cérebro, o que exige uma rígida disciplina<br />
do corpo e da mente e um excesso de concentração<br />
não inerente ao comportamento dos<br />
jovens.<br />
O professor Marco Aurélio Luz já trazia<br />
consigo a experiência da Mini Comunidade Oba<br />
Biyi, e levou à dinâmica curricular do projeto<br />
elementos pertencentes ao ethos africano-brasileiro<br />
do contexto das formas de comunicação<br />
desta tradição.<br />
No mesmo período em que ocorria o Projeto<br />
Odemodé, muitas escolas faziam uma intensa<br />
referência à figura de Pedro Álvares Cabral, na<br />
comemoração pelos 500 anos de Brasil. Se faz<br />
necessário, entretanto, analisar quais as contribuições<br />
reais dos heróis aclamados pela historiografia<br />
oficial e se eles realmente tiveram tantas<br />
qualidades para serem tão exaltados.<br />
Os ancestrais europeus são sempre lembrados<br />
de forma heróica pela historiografia e os africano-brasileiros<br />
são lembrados, muitas vezes, pela<br />
identidade de escravos, contribuindo para incutir<br />
o recalque nos jovens. As personalidades exponenciais<br />
cultuadas e reverenciadas pelas comunidades-terreiro<br />
são aquelas que dignificam as<br />
atividades de tradição em cada ato litúrgico, são<br />
os ancestrais que trazem orgulho e dignidade.<br />
O silêncio da escola oficial em relação ao<br />
processo civilizatório africano-brasileiro seria<br />
outro problema a ser enfrentado. Há, de fato,<br />
uma deturpação ou/e omissão realizada pela<br />
historiografia oficial em relação à presença africana<br />
e às personalidades que lutam para afirmar<br />
a cultura.<br />
Foi trabalhado um conto de Mestre Didi chamado<br />
“A fuga de Tio Ajayi”. Esse conto havia<br />
sido transformado em ópera e hoje constitui-se<br />
como um fato marcante na dramaturgia africano-brasileira.<br />
Ele possui uma linguagem teatral<br />
riquíssima. Marco Aurélio Luz, em entrevista,<br />
descreve:<br />
A fuga de Tio Ajayi possui três características. A primeira refere-se à<br />
vida no engenho no tempo da escravidão. A segunda se inicia quando um tio<br />
da Costa, de nome Ajayi, convoca seus irmãos para fazerem as obrigações a<br />
um orixá adorado por eles. A terceira começa quando um escravo da casa<br />
grande, mandado pelo senhor, espiona o que está se passando e dá o serviço<br />
do local onde estão os negros, reunidos. Segue-se a saga da perseguição do<br />
grupo pelos soldados enviados por um comissário, a mando do senhor de<br />
engenho (...).<br />
Logo que avistaram as tropas, os vigias transmitem, uns para os outros, o<br />
aviso da aproximação até chegar onde está o Tio Ajayi. As cantigas se sucedem<br />
num ritmo de ijexá acompanhando a dramatização de toda a fuga até a<br />
libertação.<br />
Vigia: Tio Ajayi soldadevem<br />
Tio Ajayi: Jakuriman, jakuriman<br />
Tio Ajayi fazendo um sinal para toda sua gente acompanhá-lo.<br />
Entra in beco sai in beco<br />
Todos respondem: Tio Ajayi toca que vai cumpanhando<br />
Em certo momento a sede atormenta a todos naquela caminhada. Sob<br />
proteção dos orixás, os negro recebem uma chuva que lhes renova as forças.<br />
Os soldados, porém já distantes acabam por se arrasar sob o sol causticante.<br />
O grupo atinge o sopé de uma grande montanha e Tio Ajayi resolve liderar<br />
toda a sua gente para subir cantando.<br />
‘Quando eu sobi no ladera<br />
Coro: Eu caí, eu dirruba’<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003<br />
109
Odemodé egbé asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />
E assim chegaram ao topo da ladeira onde Tio Ajayi fez sinal para que<br />
todos sentassem, a fim de descansar um pouco cantou:<br />
‘Ekú, Jokó (solo) Tabará, tabará!<br />
Tin Tin Jaká! (solo)<br />
Tabará, tabará (solo)<br />
Tabará, tabará’<br />
Já iam começar a jornada quando um carneiro berrou e uma criança<br />
chorou. Tio Ajayi atento, cantou :<br />
‘O carnero berrô...(solo)<br />
bereré (coro)<br />
o menino chorô (solo)<br />
bereré (coro)<br />
Tio Ajayi declarou:<br />
Meus irmãos, de agora em diante, estamos livres, não só dos soldados<br />
que nos perseguiam, como também dos senhores e do cativeiro que nos era<br />
dado.<br />
Olorum ati awon orixá da fé awon gbogbo (Deus e que todos os orixás<br />
abençoem a todos). (grifos meus)<br />
A partir da dramatização, o professor Marco<br />
Aurélio Luz explorou uma diversidade de aspectos<br />
que abordavam a História, a Geografia,<br />
a estética e a ética, proporcionando vários desdobramentos.<br />
Essa história, além de fortalecer as identidades<br />
culturais, proporciona dignidade e afirmação<br />
para os jovens, pois a abordagem do<br />
conto transcende a identidade de escravo, tão<br />
exaltada pela historiografia oficial.<br />
O Projeto Odemodé pode ser considerado<br />
como um marco entre as realizações na área<br />
de Educação Pluricultural, pois nasce a partir<br />
da referência de ancestralidade do grupo de<br />
jovens pertencentes à comunidade Ilê Asipá.<br />
Ele recria uma linguagem capaz de fortalecer<br />
as identidades culturais, na transmissão de valores<br />
de um patrimônio civilizatório milenar para<br />
novas gerações, contemplando as afirmação<br />
existencial e das identidades dos jovens envolvidos.<br />
As formas de comunicação tão originais e<br />
sublimes podem inspirar políticas curriculares<br />
que realmente contemplem o direito à alteridade<br />
da população de origem africana à mercê das<br />
políticas recalcadoras da educação brasileira.<br />
4. Conclusão<br />
Iniciei essa abordagem com a música Alabê.<br />
Para concluir, quero reafirmar a importância<br />
dessa música, como ilustração da necessidade<br />
de os projetos, currículos e políticas educacionais<br />
no Brasil estarem voltados para a afirmação<br />
da nossa diversidade cultural e do direito à<br />
alteridade própria da população afro-descendente.<br />
Muitos currículos no Brasil, a partir de agora,<br />
começarão a inserir a temática “História e<br />
Cultura dos Afro-descendentes” em seu escopo<br />
apenas por uma questão de obrigatoriedade<br />
trazida pela Lei.<br />
A proposta pedagógica do Projeto Odemodé<br />
foi capaz da criação de uma linguagem referendada<br />
no contexto da tradição africano-brasileira,<br />
da ancestralidade e de aspectos do<br />
patrimônio civilizatório. Esse projeto concorreu<br />
para a concepção de uma pedagogia capaz de<br />
estruturar as identidades culturais da população<br />
infanto-juvenil, através do ensino da história,<br />
utilizando a referência ancestral.<br />
A afirmação existencial dos jovens da comunidade-terreiro<br />
Ilê Asipá foi a motivação do<br />
Projeto Odemodé Egbé Asipá. Em um país<br />
como o Brasil, cuja pluralidade é imensa, as<br />
possibilidades de criação de currículos signifi-<br />
110 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003
Léa Austrelina Ferreira Santos<br />
cativos para as populações de origens étnicoculturais<br />
distintas se multiplicam.<br />
Apelo, dessa forma, para a sensibilidade dos<br />
educadores que, a partir de então, estarão imbuídos<br />
da tarefa de elaborar esses currículos.<br />
Espero que a compreensão da dinâmica existencial<br />
da música Alabê na vida dos jovens e a<br />
linguagem pedagógica do Odemodé possa inspirar<br />
as ações desses educadores.<br />
A perspectiva desenvolvida pelo PRODESE,<br />
de ênfase na urgência de propostas de<br />
descolonização e de afirmação da nossa diversidade<br />
cultural, configura-se como essencial no<br />
nosso contexto baiano e nordestino para a concepção<br />
de currículos pluriculturais.<br />
A afirmação de Frantz Fanon, inspiradora<br />
do PRODESE, é bastante significativa nesse<br />
sentido:<br />
... a descolonização jamais passa despercebida<br />
porque atinge o ser, modifica fundamentalmente<br />
o ser; transforma espectadores sobrecarregados<br />
de inessencialidade em atores privilegiados, colhidos<br />
de modo quase grandioso pela roda vida<br />
da história. Introduz no ser um ritmo próprio,<br />
transmitido por homens novos, uma nova linguagem,<br />
uma nova humanidade. A descolonização<br />
é em verdade, criação de homens novos.<br />
Há portanto na descolonização a exigência<br />
de um reexame integral da situação colonial<br />
(FANON, apud LUZ, 2000, p. 8).<br />
A Lei está aí, mas se ela vai favorecer para<br />
revertermos a situação “colonial” na qual está<br />
imersa a nossa sociedade e suas instituições<br />
ainda é uma dúvida. Afirmarmos uma outra história<br />
é a grande questão que deixo em aberto,<br />
mas independentemente da Lei, é possível criar<br />
uma perspectiva de “Descolonização e Educação”<br />
e a “Juventude do Odemodé”, em sua<br />
dinâmica curricular e comunitária, pulsa e vive<br />
isso o tempo todo.<br />
Onilewa alabê Konko!<br />
REFERÊNCIAS<br />
LUZ, Marco Aurélio. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. Salvador: Centro Editorial e Didática<br />
da UFBa: Sociedade de Estudos das Culturas e da Cultura Negra no Brasil, <strong>19</strong>95 .<br />
LUZ, Narcimária C.do P. Abebe: a criação de novos valores na Educação. Salvador: SECNEB, 2000. (Coleção<br />
Communitates Mundi)<br />
_____. Odara: os contos de Mestre Didi. Revista da FAEEBA, Salvador, n. 9, p.37-46, jan./jun., <strong>19</strong>98.<br />
_____. Editorial. Sementes: caderno de pesquisa. Salvador, v. 1, n.1/2, p. 8-9, jan./dez., 2000.<br />
_____. Editorial. Sementes: caderno de pesquisa. Salvador, v. 2, n.3/4, p. 8-9, jan./dez., 2001.<br />
_____. Editorial. Sementes: caderno de pesquisa. Salvador, v. 3, n.5/6, p. 8-9, jan./dez., 2002.<br />
SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte: Pàdê, Asésé e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes,<br />
<strong>19</strong>86.<br />
_____ ; SANTOS, Deoscóredes dos. O culto aos ancestrais na Bahia: o culto Egun. In: _____. Olóorisá:<br />
escritos sobre a religião dos orixás. São Paulo, SP: Ágora, <strong>19</strong>81. p. 155-188.<br />
SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a Cidade: a forma social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes, <strong>19</strong>88.<br />
SCHWARTSMAN, Hélio. A escola, o racismo e a Ilíada. Pensata: Folha de São Paulo. Disponível em http:/<br />
/folhaonline.com.br/, acessado em 23.01.03.<br />
Recebido em 28.05.03<br />
Aprovado em 24.07.03<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003<br />
111
José Eduardo Ferreira Santos<br />
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, CULTURA,<br />
HISTÓRIA E TRADIÇÃO:<br />
um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />
José Eduardo Ferreira Santos *<br />
RESUMO<br />
Este artigo descreve a experiência educativa desenvolvida de <strong>19</strong>94 a<br />
2002 em projetos sociais de Novos Alagados, subúrbio de Salvador, com<br />
crianças e adolescentes da área. A intervenção pedagógica baseia-se<br />
na valorização das tradições culturais da Bahia (samba de roda, Folia de<br />
Reis, compositores e cantores populares), na história (do Subúrbio Ferroviário)<br />
e na perspectiva de uma educação voltada para a descoberta<br />
da cultura popular como forma de resgate da cidadania.<br />
Palavras-chave: Educação Contemporânea – Pluralidade Cultural –<br />
Novos Alagados – Memória – Tradições Populares – Diversidade Cultural.<br />
ABSTRACT<br />
PEDAGOGICAL PRACTICES, CULTURE, HISTORY AND<br />
TRADITION: an account of the educative experience in Novos<br />
Alagados<br />
This article describes the educative experience developed from <strong>19</strong>94 to<br />
2002 in social projects in Novos Alagados, a suburb of Salvador, with<br />
children and adolescents from the area. The pedagogical intervention is<br />
based at the valorizing of the cultural traditions of Bahia (dances, parties,<br />
composers and popular singers), the history (of the railroad suburb) and<br />
the perspective of an education aimed at the discovery of the popular<br />
culture as a way of rescue of citizenship.<br />
Key words: Contemporary Education – Cultural Plurality – Novos Alagados<br />
– Memory – Popular Traditions – Cultural Diversity.<br />
Ninguém educa ninguém; ninguém se educa sozinho; os homens se educam em comunhão.<br />
(Paulo Freire)<br />
Educar é um risco.<br />
(Luigi Giussani)<br />
*<br />
Pedagogo formado pela UCSal; mestrando em Psicologia pela UFBA; educador de projetos sociais de<br />
Novos Alagados: Projeto Cluberê dos Meninos Trabalhadores dos Novos Alagados (<strong>19</strong>94-<strong>19</strong>96), Reforço<br />
Escolar (<strong>19</strong>96-<strong>19</strong>99), SESI – Educação de Adultos (<strong>19</strong>96-<strong>19</strong>97) e Centro Educativo João Paulo II (2000-2002).<br />
Endereço para correspondência: Rua Nova Esperança, 34 -E, 1 a Travessa, Plataforma – 40490.036 Salvador/<br />
BA. E-mail: dinhojose@bol.com.br<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />
113
Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />
Introdução<br />
A memória das experiências educativas realizadas<br />
na comunidade de Novos Alagados,<br />
subúrbio de Salvador, em diversas instituições<br />
de ensino e projetos sociais é o objeto deste<br />
trabalho.<br />
Busco descrever uma proposta pedagógica<br />
realizada ao longo de nove anos, desde <strong>19</strong>94,<br />
da qual fiz parte como educador e coordenador<br />
pedagógico, a exemplo do Cluberê de Meninos<br />
Trabalhadores de Novos Alagados, da Sociedade<br />
1 o de Maio; do Reforço Escolar, da Associação<br />
Humano Progresso e do Centro Educativo<br />
João Paulo II, mantido pela AVSI/CDM 1 ,<br />
localizados em um contexto social caracterizado<br />
pela violência, pobreza e situações de risco,<br />
cada vez mais presentes nas favelas brasileiras,<br />
particularmente nas décadas de <strong>19</strong>90 e<br />
2000.<br />
Como no Brasil costumam afirmar que não<br />
temos memória, essa é uma pequena contribuição<br />
para que haja o entendimento de que, enquanto<br />
os teóricos enchem as livrarias, os educadores<br />
que estão na prática cotidiana conseguem<br />
registrar e difundir suas experiências.<br />
Para a sistematização dessas experiências<br />
parto da premissa de que a escrita e outras formas<br />
de registro (fotografias, textos, relatos de<br />
experiências) fazem permanecer aquilo que<br />
realizamos nas salas de aula. Há um conhecimento<br />
que é nosso, brasileiro, culturalmente situado,<br />
e ao qual podemos dar a nossa contribuição,<br />
enquanto participantes da cultura deste país.<br />
Surge, então, a necessidade de escrever e efetivar<br />
estes registros.<br />
Neste sentido, o objetivo destas páginas é<br />
vislumbrar diversas experiências que valorizaram,<br />
no seu conteúdo e na prática, um saber<br />
sonegado pela educação tradicional e oficial, que<br />
reduz os conhecimentos às páginas dos livros<br />
didáticos, esquecendo-se de que há uma cultura<br />
e uma educação que nascem do contexto<br />
social e da cultura popular, como a que indicaremos<br />
ao apresentar as experiências que realizamos<br />
no Samba de roda do Recôncavo baiano,<br />
com Zilda Paim e Roberto Mendes; nos<br />
encontros com compositores populares da Bahia<br />
(Riachão, Jussara Silveira e Roberto Mendes);<br />
no estudo da História do Subúrbio Ferroviário<br />
e na Folia de Reis.<br />
Premissas teóricas norteadoras do<br />
trabalho pedagógico em Novos Alagados:<br />
a educação e o ensino como<br />
prática cultural da liberdade<br />
Ensinar, antes de tudo, é amar, conhecer e<br />
acreditar que os alunos – crianças e adolescentes<br />
– ou educandos, como são comumente<br />
denominados, são portadores de conhecimentos<br />
e saberes que muitas vezes são negados e<br />
abafados pela sociedade da cultura de massas,<br />
com suas informações pautadas pela cultura<br />
oficial. O ato de ensinar pode ser compreendido<br />
como a possibilidade de fazer emergir a experiência<br />
de liberdade diante do conhecimento.<br />
Essas proposições podem ser concebidas e debatidas<br />
num espaço onde a educação tenha uma<br />
função libertadora.<br />
A educação popular, de base libertadora,<br />
como indica Freire (<strong>19</strong>82, p.9), “exige uma postura<br />
crítica, sistemática, que não se ganha a não<br />
ser praticando-a”. Essa educação afirma que<br />
cada pessoa tem uma história singular, que não<br />
se repete, a qual precisamos, enquanto sujeitos,<br />
valorizar e afirmar.<br />
Um dos sentidos da educação de base<br />
libertadora é sair da relação muitas vezes enfadonha<br />
e hierarquizada entre professor e aluno,<br />
passando a uma interação de saberes, diálogos<br />
e conhecimentos mútuos entre os participantes<br />
do processo comunicativo de descobertas, em<br />
comunhão, do mundo.<br />
A educação é um caminho fascinante. Implica<br />
crescimento, fazer mudar, tornar os sujeitos<br />
novos e mais conscientes de si, em um mundo<br />
1<br />
AVSI – Associação de Voluntários para o Serviço Internacional<br />
e CDM – Cooperação para o Desenvolvimento<br />
e Morada Humana. A primeira é uma ONG italiana que<br />
realiza intervenções em contextos de pobreza urbana, violência<br />
e guerra. A segunda, por sua vez, desenvolve importante<br />
trabalho de urbanização de favelas em Belo Horizonte<br />
e Salvador.<br />
114 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003
José Eduardo Ferreira Santos<br />
onde a nossa meta educativa é o respeito à diversidade<br />
e o respeito às diferenças, numa luta<br />
contínua contra as intolerâncias.<br />
A educação, onde quer que esteja sendo<br />
aplicada, precisa assegurar às pessoas o crescimento,<br />
a visão da totalidade de tudo o que<br />
vivemos. Não uma facção da vida, como muitos<br />
querem, mas a vida inteira e em todas as<br />
suas atividades e momentos. Ela deve propor<br />
momentos de descobertas de si próprios – dos<br />
educandos e educadores – e de sua história<br />
social e cultural.<br />
Toda pessoa tem em si as exigências elementares,<br />
segundo Giussani (2000a, p.24), e elas<br />
formam um conjunto que faz do homem um ser<br />
de cultura. Essas exigências que toda pessoa<br />
tem são de beleza, justiça, verdade e felicidade.<br />
O homem reconhece-se como tal porque<br />
nele todas essas exigências gritam no seu peito<br />
e em cada ação, cada movimento que faz<br />
durante os dias, os anos, a vida inteira.<br />
Por esse aspecto, um possível sentido da<br />
educação deve ser o de formar, aguçar nas<br />
crianças e adolescentes o senso para o belo e<br />
para os valores que tornam nova a humanidade.<br />
O trabalho do educador emerge, assim, simples<br />
na convivência e dinâmico no levantamento<br />
de questões que ele possa introduzir na vida<br />
do educando como pequenas gotas de transformação,<br />
percebendo-o como um ser capaz<br />
e criativo, que tem na sua história pessoal experiências<br />
concretas, ou seja, a bagagem existencial<br />
de seus momentos na rua, na casa e na<br />
escola.<br />
Desse modo, ensinar não é só transmitir<br />
conteúdos pré-estabelecidos, mas contar com<br />
uma diversidade de experiências e alternativas<br />
que tornem o contexto escolar um lugar de descobertas.<br />
Assim, indico alguns pontos importantes que<br />
nortearam a prática pedagógica que descrevo<br />
nestas páginas. Eles representam uma ponte<br />
entre a educação, a arte e a cultura, possibilitando<br />
aos educandos o encontro com uma diversidade<br />
de experiências e metodologias, como<br />
o jogo, o teatro, a música e atitudes relacionais,<br />
pautadas sobre o diálogo.<br />
ARTE-EDUCAÇÃO E CULTURA RELA-<br />
CIONAL NA PRÁTICA PEDAGÓGICA<br />
A arte e a educação estão juntas na construção<br />
de uma pedagogia relacional. Ambas nascem<br />
do desejo humano de criar e aperfeiçoar a<br />
realidade, ou mesmo transformá-la. Sendo assim,<br />
na educação pautada sobre a experiência<br />
lúdica e criativa que tenho proposto aos alunos,<br />
alguns pontos emergem como indicadores de uma<br />
metodologia que tenta conciliar diversas linguagens<br />
no espaço da sala de aula, mesmo tendo<br />
um caráter de construção coletiva.<br />
O jogo e a educação fazem parte do processo<br />
de interação casa-escola-rua e entre o<br />
educador, a sala de aula e o educando. A educação<br />
pelo jogo se dá com a percepção de que<br />
a ludicidade tem um papel importante no cotidiano<br />
das crianças e adolescentes que freqüentam<br />
projetos sociais em Novos Alagados, pois<br />
pela própria mobilidade e dinâmica de suas vidas<br />
nas ruas e no bairro há uma acentuada postura<br />
de movimento no espaço educativo.<br />
A utilização da poesia e da literatura é primordial,<br />
principalmente porque existem crianças<br />
e adolescentes que nunca leram uma poesia<br />
ou um livro sequer, e isso é imperdoável num<br />
país de grandes poetas e escritores, como é o<br />
caso do Brasil. Neste sentido, a utilização da<br />
poesia e da literatura tem se mostrado como<br />
um meio eficaz de democratização da cultura<br />
no contexto educativo. A partir dessa experiência<br />
pude perceber que deste encontro pode<br />
emergir nos educandos a necessidade de comunicar-se<br />
e escrever, buscando uma existência<br />
e um diálogo com a escrita.<br />
Sabe-se que a leitura é uma viagem pelos<br />
caminhos do saber, da emoção e da curiosidade<br />
natural de cada ser humano; através deles<br />
ocorrem as descobertas que tornarão os<br />
educandos mais sensíveis à aprendizagem e à<br />
transmissão dos pensamentos poéticos como<br />
forma de liberação, conhecimento e retenção<br />
das diferentes visões de mundo.<br />
O teatro é uma outra forma de ensinar que<br />
ajuda a descobrir as diversas faces da realidade<br />
e os diferentes aspectos do aprender-ensinar,<br />
tendo a possibilidade de fazer a experiên-<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />
115
Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />
cia da alteridade como forma de conhecimento<br />
de seu próprio contexto histórico e de outros.<br />
A música aparece como essencial ao processo<br />
educativo com crianças e adolescentes<br />
em situação de risco social, tanto por causa das<br />
suas letras, como por suas harmonias, que<br />
transmitem diversos sentimentos, e aludem a<br />
questões e referências à auto-estima e à história<br />
dos alunos. A música popular brasileira, por<br />
exemplo, é um dos nossos maiores patrimônios<br />
culturais e precisa ser mais utilizada nas salas<br />
de aula. Nos projetos sociais de Novos Alagados<br />
o uso dessas canções possibilita o encontro<br />
dos educandos com um universo comunal e ao<br />
mesmo tempo trans-histórico, levando a uma<br />
postura crítica, como propôs Hermínio Bello de<br />
Carvalho num texto 2 em que afirma que toda<br />
música é perigosa, e que há uma perenidade<br />
nas canções populares, como os belos sambas<br />
das décadas de <strong>19</strong>30 a <strong>19</strong>60, cada vez mais<br />
atuais.<br />
O diálogo entre educador e educandos aparece<br />
como uma constante, como forma de estabelecimento<br />
de uma sólida relação, onde não haja<br />
opressores e oprimidos, mas seres capazes de<br />
ajudar-se mutuamente a aprender, numa concepção<br />
educativa onde a liberdade está em sintonia<br />
com a cultura e com valores tradicionais.<br />
No Brasil, cada educador está ligado a personalidades<br />
como Anísio Teixeira, Florestan<br />
Fernandes, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, que têm<br />
lutado na linha de frente pela proposição de uma<br />
educação fundada sobre os valores brasileiros,<br />
respeitando tudo o que temos de mais caro em<br />
termos culturais e humanos, respeitando e difundindo<br />
a nossa diversidade. Nessa corrente<br />
ligam-se figuras da cultura brasileira como Mário<br />
de Andrade, Villa-Lobos e o próprio Hermínio<br />
que, através da música e da cultura, têm proporcionado<br />
o encontro de milhares de estudantes<br />
com um Brasil autêntico, negro, indígena,<br />
europeu, fundado sobre os nossos valores ancestrais<br />
e culturais, os mais diversos. (FÁVE-<br />
RO; BRITO, <strong>19</strong>99; CARVALHO, <strong>19</strong>88).<br />
Na Bahia, essa luta pela afirmação de nossa<br />
diversidade cultural e descolonização da educação<br />
vem sendo realizada por nomes como<br />
Narcimária Correia do Patrocínio Luz (2002) e<br />
Marco Aurélio Luz (2000), dentre tantos outros,<br />
a partir de um importante trabalho de afirmação<br />
das identidades africana e indígena, chegando<br />
a palmilhar uma educação fundamentada<br />
nos valores ancestrais dessas culturas, e em<br />
núcleos de estudos sobre a educação contemporânea,<br />
implementados na UNEB. Uma importante<br />
referência para o trabalho que tenho<br />
realizado em Novos Alagados é o livro Educar<br />
é um risco, de Giussani (2000a), que propõe<br />
uma educação voltada às tradições e à realidade<br />
do educando.<br />
PROJETOS SOCIAIS EM UM CONTEX-<br />
TO DE VIOLÊNCIA URBANA 3<br />
No contexto social de Novos Alagados, a<br />
educação ocorre em diversas situações, a exemplo<br />
dos projetos sociais e das escolas. Novos<br />
Alagados é uma favela localizada na área do<br />
Subúrbio Ferroviário de Salvador e conta com<br />
aproximadamente 13.000 habitantes. Esta área<br />
é bastante conhecida pela violência policial, marginalidade<br />
e pela pobreza urbana expressa nas<br />
antigas palafitas. A área também é bastante<br />
conhecida pelas lutas dos movimentos sociais<br />
comunitários, muito fortes e representativos em<br />
toda a década de <strong>19</strong>70 e <strong>19</strong>80. Nos diversos<br />
projetos sociais ali existentes há uma preocupação<br />
com a escolarização, profissionalização<br />
de crianças e adolescentes e a aprendizagem<br />
de aspectos fundantes das tradições culturais<br />
dos sujeitos do processo educativo.<br />
Os projetos sociais são uma nova realidade<br />
de ação educativa que atenta para característi-<br />
2<br />
O texto, intitulado Políticas, foi distribuído pelo autor,<br />
via e-mail, no ano de 2002, a alguns jovens envolvidos<br />
com música popular e educação e trata de políticas culturais<br />
envolvendo a divulgação do legado de grandes compositores<br />
e intérpretes da MPB.<br />
3<br />
Os Projetos Sociais são espaços sócio-educativos que,<br />
mantidos por ONGs (Organizações Não Governamentais)<br />
ou associações de bairro, realizam atividades culturais,<br />
lúdicas, esportivas, educativas e profissionalizantes,<br />
tendo como público alvo as crianças e adolescentes em<br />
situação de risco psicossocial. Em Novos Alagados, atualmente,<br />
há cerca de 30 destas instituições.<br />
116 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003
José Eduardo Ferreira Santos<br />
cas importantes da formação humana, particularmente<br />
aquelas ligadas à cultura e à arte, que<br />
efetivam aquilo que o Estatuto da Criança e do<br />
Adolescente chama de Proteção Integral. Um<br />
exemplo dessa sensibilidade dos projetos sociais<br />
é a proposição da cultura africana e da cultura<br />
popular brasileira como instrumentos de inserção<br />
educativa, através de valores culturais ancestrais<br />
africanos, como a capoeira, o maculelê<br />
e outras manifestações. A escola tem tentado<br />
fazer o mesmo, só que sem o devido sucesso<br />
por reduzir a cultura a conteúdos programáticos,<br />
sem vida.<br />
Os projetos sociais, por sua vez, se caracterizam<br />
pela diversidade de propostas educativas,<br />
geralmente com o escopo de promover a cidadania<br />
através da arte, da cultura e da profissionalização.<br />
Deste modo, conseguem promover<br />
uma proposta pedagógica que tem muito a ensinar<br />
à escola, pois através dessa didática voltada<br />
ao lúdico e às necessidades das crianças e<br />
adolescentes, conseguem o estabelecimento de<br />
vínculos e aprendizagens para a vida. Por fim,<br />
os projetos sociais conseguem favorecer a aprendizagem<br />
e o encontro das crianças e adolescentes<br />
com uma diversidade cultural que muitas<br />
vezes a escola não abarca. A existência<br />
destes espaços educativos favorece, também,<br />
a criação e manutenção de espaços de segurança,<br />
apoio e estabilidade, promovendo o encontro<br />
com referenciais diferentes daqueles da<br />
marginalidade e da violência.<br />
AS CRIANÇAS E OS ADOLESCENTES<br />
As crianças e os adolescentes com os quais<br />
trabalhei em Novos Alagados são iguais a quaisquer<br />
outras do mundo inteiro. Têm as mesmas<br />
exigências, necessidades, o mesmo coração, a<br />
mesma humanidade. Porém, há peculiaridades<br />
pessoais e do contexto, marcadas pela história<br />
individual e do local onde habitam. Eles são o<br />
resultado de um continuum civilizatório que<br />
muitas vezes é marcado pela exclusão e pelo<br />
enfraquecimento das redes sociais.<br />
A falta de melhores condições de alimentação,<br />
moradia, saúde e educação são algumas<br />
características dessa exclusão. As crianças e<br />
os adolescentes de Novos Alagados poderiam<br />
ser caracterizados como aqueles em situação<br />
de risco psicossocial e vulnerabilidade, frente<br />
às situações adversas do contexto social no qual<br />
se encontram, desde a violência até o contexto<br />
próprio da pobreza urbana, na sua face mais<br />
grave, a miséria, o uso de drogas, o trabalho<br />
informal e a exploração e a vitimização sexual.<br />
A miséria pode ser entendida como a impossibilidade<br />
de mudança, enquanto o fracasso<br />
é o aparelho que reforça a idéia de que o homem<br />
é formado de acordo com o lugar onde<br />
está inserido. Daí surgem pensamentos determinantes<br />
e fatalistas do tipo “se favelado, logo<br />
incapaz, marginal, fracassado, que não<br />
aprende”, e outros adjetivos mais desoladores.<br />
Para uma mudança dessa ideologia o educador<br />
deve partir do pressuposto de que todas as crianças<br />
são capazes, ultrapassando essa visão que<br />
é introduzida pela realidade social cada vez mais<br />
excludente. Todas podem aprender, ou seja,<br />
nenhuma criança é destituída das capacidades<br />
de aprender e de se desenvolver, sendo esta a<br />
característica principal das crianças e adolescentes<br />
enquanto pessoas em desenvolvimento.<br />
Aqui a interação, tão sobejamente discutida,<br />
transforma-se em realidade. É fato inconteste<br />
que as crianças aprendem construindo;<br />
porém, é bom lembrar, a construção das interações<br />
com o mundo não podem dar-se<br />
aleatoreamente àqueles que estão por perto. As<br />
crianças necessitam saber-se indivíduos, sujeitos<br />
de direito. Cada nome, cada recomendação<br />
dos pais, todo cuidado com o trato é pouco;<br />
enfim, deve-se entender que ensinar não é transmitir<br />
conteúdos, mas, antes de tudo, ser responsável<br />
por essas pessoas cuja educação nos<br />
foi confiada, para que essa educação não seja<br />
um ideal figurativo e abstrato, mas uma realidade<br />
presente que transforma educadores em<br />
responsáveis pelos alunos e por suas vidas.<br />
Suas características psicossociais revelam<br />
uma experiência inicial com situações de violência,<br />
na família e no bairro, assim como a exposição<br />
a fatores de risco, dentre eles o extermínio<br />
(morte) e outras vitimizações. Ao educador<br />
cabe estabelecer vínculos positivos com os<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />
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Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />
educandos, visando abrir uma perspectiva de<br />
intercâmbio e diálogo com eles, e proporcionando<br />
uma experiência diversa daquela que é pautada<br />
pela violência e pela rigidez ou abandono<br />
aos quais alguns deles estão expostos. Há neles<br />
uma certa vulnerabilidade nascida da exposição<br />
constante a riscos psicossociais. Assim,<br />
não são crianças e adolescentes acostumados<br />
a estarem nas sala de aulas como alunos ideais,<br />
mas sim como pessoas reais, cujos comportamentos<br />
e inquietações refletem suas trajetórias<br />
de vida, muitas vezes marcadas pela violência.<br />
A EXPERIÊNCIA COM AS MONITORAS<br />
DE CRECHE<br />
Dentre as experiências que mais contribuíram<br />
para a minha formação enquanto educador,<br />
destaco um curso oferecido para adolescentes,<br />
no intuito de formar monitoras de creche.<br />
Nos meses de agosto a dezembro realizei,<br />
como coordenador pedagógico e professor do<br />
módulo básico, o curso de capacitação de auxiliar<br />
e monitoras de creche, financiado pelo programa<br />
Capacitação Solidária. O curso recebeu<br />
31 jovens de todo o Subúrbio Ferroviário,<br />
com idades entre 17 e 21 anos, com níveis variados<br />
de escolaridade, do 1 o ao 2 o grau. Esse<br />
curso foi dividido em três momentos diferenciados:<br />
o módulo básico, o módulo específico e a<br />
vivência prática, nos moldes do Capacitação<br />
Solidária, programa do governo federal.<br />
Para mim foi uma experiência muito significativa,<br />
pois tive a tarefa de introduzir essas jovens<br />
em temas da atualidade e da cultura brasileira<br />
e geral, de maneira que nelas fizesse surgir<br />
o gosto e o interesse pelos estudos, visto que a<br />
experiência de escola não foi das melhores.<br />
Tivemos 4 aulas sobre os mais diversos temas,<br />
a saber: sexualidade, globalização e neoliberalismo,<br />
correspondência oficial, história da<br />
arte, redação e interpretação de textos, história<br />
da Bahia, história do Subúrbio Ferroviário, história<br />
do Brasil, literatura infantil, Leis e Diretrizes<br />
de Base da Educação Nacional, poesia brasileira,<br />
postura ética e profissional, história do<br />
Parque de São Bartolomeu, características e<br />
aspirações do homem moderno, elementos para<br />
a construção da cidadania, método de estudo, o<br />
barroco brasileiro. Também tivemos diversas<br />
palestras e visitas de personalidades da cultura,<br />
como Myriam Fraga, escritora e poetisa; professores<br />
e alunos universitários como o biólogo<br />
Gilberto Cafezeiro Bonfim, o advogado Caio<br />
César Tourinho, o estudante de economia Ricardo,<br />
e Jaqueline, estudante do curso de enfermagem,<br />
e partilhamos momentos inesquecíveis<br />
quando, juntos, visitamos diversos lugares da<br />
cidade do Salvador e região metropolitana, a<br />
exemplo do Pelourinho e suas igrejas, o Engenho<br />
Freguesia, em Caboto, e diversos museus<br />
da cidade.<br />
O período mais intenso de aulas foi de agosto<br />
a setembro, quando diariamente ficamos juntos;<br />
com todas as imperfeições e dificuldades, foi um<br />
período de verdadeira aprendizagem, que me<br />
impressionou bastante e que, certamente, me ajudou<br />
a aprender com as experiências de cada uma<br />
dessas jovens, pois as aulas nunca se desenvolviam<br />
da maneira que se tinha planejado.<br />
Os assuntos fomentavam diálogos, conversas<br />
e aprendizagens significativas que nos ajudaram<br />
a entender que aprender é uma capacidade<br />
de fazer nexos entre uma realidade estudada,<br />
vivida e outras diversas que nos rodeiam<br />
e aparecem à nossa frente. Foi muito expressivo<br />
descobrir algumas coisas nesses momentos<br />
que realizam, de fato, o que vem a ser uma prática<br />
educativa, um educador. Primeiro, o educador<br />
deve preparar as aulas. Ele pode não<br />
saber tudo, mas certamente deve ter um universo<br />
cultural que abarque a sua curiosidade e<br />
seja capaz de aguçar ou espicaçar a curiosidade<br />
alheia, ou seja, deve haver uma paixão pelo<br />
ato de transmitir qualquer conhecimento; o educador<br />
é um profissional que deve ter a noção<br />
de previsibilidade, ou seja, segurança daquilo que<br />
vai propor e mediar. Segundo, a aula desenvolve-se<br />
por caminhos a que devemos estar abertos,<br />
utilizando os assuntos, quando estes sur-<br />
4<br />
A experiência educativa relatada nestas páginas envolve<br />
a presença de outros educadores, daí a voz no plural, o<br />
nós, que pode aparecer no corpo do texto.<br />
118 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003
José Eduardo Ferreira Santos<br />
gem, ou os conhecimentos novos trazidos pelas<br />
alunas. Nós aprendemos no diálogo aquilo que<br />
para nós é uma sabedoria viva, que se expressa<br />
no conhecimento que os outros têm e que<br />
certamente nos enriquece a cada momento. A<br />
experiência com o curso de monitoras de creches<br />
mostrou-me que muitas vezes ouvir, dialogar,<br />
ajuda a desenvolver aquilo que a pessoa é<br />
e tem em si e que, muitas vezes, nós os professores<br />
não prestamos a devida atenção ao que<br />
os nossos alunos dizem, porque estamos entulhados<br />
em nossas lamentações e queixas diárias<br />
contra tudo e todos.<br />
Aprendi com elas que o educador deve ser<br />
realista. Não adianta mentir, fingir. Ser verdadeiro,<br />
dizer a vida, é uma tarefa a que muitos se<br />
furtam, e os educandos percebem quando os<br />
estamos enganando sobre a realidade interpessoal,<br />
cultural, política, enfim, qualquer que seja<br />
ela. O educador, a pessoa de referência na sala<br />
de aula, não se deve impedir de propor novos<br />
mundos, novas descobertas culturais. Para mim,<br />
foi importante a experiência de que temas fascinantes<br />
foram estudados, descobertos, aprendidos,<br />
a partir de um interesse que nascia em<br />
mim, mas ao mesmo tempo era evidente a reverberação<br />
na turma e seu conseqüente aprofundamento.<br />
Ou seja, o educador deve permitir-se<br />
querer descobrir, aprender mais. A leitura,<br />
neste sentido, ajuda de uma maneira fundamental.<br />
Nesses meses li e reli alguns livros 5<br />
fundamentais para entender a pessoa e desenvolver<br />
o trabalho na sala.<br />
O educador deve ter uma concepção de<br />
educação e de pessoa, e isso é fundamental pois<br />
só assim a prática pedagógica alcança certas<br />
dimensões. O que pautou o trabalho foi a definição<br />
da educação tomada de Giussani (2000a,<br />
p.49) que a entende como uma introdução da<br />
pessoa na totalidade da realidade; ele parte<br />
do pressuposto de que todas as pessoas têm<br />
dentro de si as mesmas exigências e evidências<br />
constitutivas, e que qualquer um pode se<br />
interessar pela beleza porque todos temos o mesmo<br />
coração, a mesma busca humana.<br />
Lembro também dos momentos em que pedi<br />
silêncio à turma, a qual, não sei se por costume,<br />
mostrava-se difícil em entender que determinados<br />
conteúdos e ensinamentos devem ser<br />
apreendidos com um clima de respeito, pois<br />
quando o conteúdo é novo, ele por si próprio<br />
exige, num primeiro momento, essa atitude, certamente<br />
propícia e preparatória aos diálogos,<br />
às perguntas, comentários, explicitação de dúvidas<br />
e problemas que venham a surgir após<br />
uma explicação.<br />
A aula, então, tem um caráter de relacionamento<br />
com instâncias da realidade pessoal e<br />
intelectual que transparecem no olhar das alunas,<br />
pois vi muitas vezes que o olhar evidenciava<br />
e demonstrava quando cada uma delas aprendia<br />
ou não determinados ensinamentos. Se uma<br />
pessoa aprende, ela comunica aquilo que aprendeu.<br />
Isto para mim foi impressionante; descobri<br />
isso nos relatos de diálogos delas com seus<br />
professores de escola, de cursinho, pais, amigos,<br />
a partir daquilo que foi trabalhado nas aulas.<br />
Ficou evidente que, quando uma pessoa<br />
descobre o significado das coisas, ela tem mais<br />
gosto e prazer de divulgar o conhecimento adquirido;<br />
pois quando uma pessoa explica, divulga<br />
e fala daquilo que aprendeu ela está tornando<br />
esse conhecimento muito mais seu do que<br />
aquela pessoa que o guarda para si.<br />
Aprendi que cada pessoa tem seu ritmo, sua<br />
época de aprender, e, por isso, o professor deve<br />
ser aquele que propõe, provoca, sendo livre para<br />
que, junto com a liberdade do aluno, os dois<br />
cheguem a descobertas. Mas o aluno é livre, e<br />
liberdade significa respeitar os silêncios, as<br />
emoções que eles trazem, suas histórias.<br />
Quando uma pessoa estuda seriamente e é<br />
livre diante de uma aula, ela sente-se provocada<br />
e, então, conceitos internos são afirmados, quebrados,<br />
refeitos. Há conflitos, certamente. Muitas<br />
vezes me dei conta de que um conteúdo<br />
abre brechas para descobertas pessoais, inte-<br />
5<br />
Antropologia Teológica, de Battista Mondin; O Homem<br />
Moderno, Enrique Rojas; Raízes do Brasil, de Sérgio<br />
Buarque de Holanda; O Povo Brasileiro - O Sentido e a<br />
Formação do Brasil, de Darcy Ribeiro; A Lição do Amigo,<br />
com cartas de Mário de Andrade a Drummond; Poesia, de<br />
Manuel Bandeira; Relicário Popular, de Dona Zilda Paim,<br />
de Santo Amaro; Diários Índios, também de Darcy Ribeiro,<br />
entre outros.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />
1<strong>19</strong>
Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />
resses e até problemas mal resolvidos de família,<br />
afeto, criação; enfim, a pessoa que está na<br />
sala é um mistério. Há uma complexidade na<br />
pessoa. Há um conjunto de conhecimentos prévios<br />
trazidos pelos alunos, de que muitas vezes<br />
nem sequer me dei conta, só me lembrando<br />
quando pediam para falar deles. Esses conhecimentos<br />
emergiam como produto de uma descoberta<br />
naquele exato momento da aula, fazendo<br />
o nexo entre o seu saber cotidiano e as aprendizagens<br />
em sala.<br />
Algumas vezes tive que calar a voz em meio<br />
à aula para ouvir um desabafo, um choro, que<br />
trazia em si o resquício de um passado, de uma<br />
dor que ainda insistentemente queimava nelas.<br />
Aqui, calar a voz é fundamental, assim como é<br />
importante não interpretar essas falas, pois as<br />
pessoas precisam ser ouvidas em suas questões,<br />
naquilo que é a sua vida. Aqui há uma<br />
confiança em expressar o que se sente, assim<br />
também como uma maneira de partilhar com o<br />
outro aquilo que se tem dentro de si.<br />
Foram muitas aprendizagens... A base da<br />
metodologia utilizada foi a aula como centro de<br />
um primeiro momento de tomada de relacionamento<br />
com o objeto estudado, através de materiais<br />
cuidadosamente preparados, de diversas<br />
fontes de pesquisa e texto-guia.<br />
Depois vieram a investigação, as perguntas,<br />
os comentários e as pesquisas subseqüentes,<br />
de onde emergiram novas descobertas para os<br />
envolvidos no processo ensino-aprendizagem,<br />
professor e alunos. São muito importantes a<br />
descoberta, o contato, a visita, a ida a lugares<br />
onde se tornam visíveis, de maneira concreta,<br />
os conteúdos explicitados no primeiro momento.<br />
Essa última etapa faz com que a pessoa se<br />
dê conta da pertinência da aprendizagem, envolvida<br />
com a própria vida, ou seja, com o ser<br />
de cada um, com a realidade existencial de<br />
cada coisa. A pessoa descobre que há uma conexão,<br />
um nexo profundo entre a aprendizagem<br />
e a realidade, que é o mesmo que entender que<br />
o que eu estudo existe, não é uma invenção ou<br />
uma simples teoria.<br />
Um exemplo foram as aulas para entender<br />
a história do Subúrbio Ferroviário, conforme se<br />
pode ver no texto escrito a partir dessas aulas.<br />
Nós estudamos, lemos alguns textos, etc. Na<br />
hora de verificar a pertinência da realidade com<br />
o tema estudado foi impressionante perceber<br />
como a aprendizagem se torna significativa, isto<br />
é, como passa a ser um patrimônio da pessoa.<br />
Quando fomos visitar o Engenho Freguesia,<br />
em Caboto, ficou evidente que elas aprenderam<br />
a valorizar o subúrbio e, mais do que isso, a<br />
ser uma humanidade que carrega em si o significado<br />
do lugar onde mora. E o significado inclui<br />
o conhecimento do passado, do presente e<br />
das transformações pelas quais esse lugar está<br />
passando.<br />
Essa insistência no aprender é uma característica<br />
quando o professor é visto como o detentor<br />
de um conhecimento maior, cuja tarefa é<br />
abrir horizontes, ajudar os alunos a descobrir o<br />
que há no mundo.<br />
Ou seja, a aula, se é interessante e tocante,<br />
faz com que o outro, que é um sujeito partícipe<br />
da aprendizagem, se mova, busque a si e sua<br />
história em cada coisa que faz. Nesse sentido,<br />
é importante que o elemento aula seja dominado<br />
pelo professor, pelo educador, pois pode acontecer<br />
que, por causa de algumas aulas, a pessoa<br />
esteja ali se refazendo, fazendo-se novamente<br />
em si mesmo.<br />
Por esse motivo a aula deve ser preparada,<br />
estudada, entendida, revisada, etc. É o mínimo<br />
que um professor deve fazer para que haja um<br />
interesse na sala, pois se não há esse antecedente<br />
o momento da aprendizagem torna-se<br />
certamente enfadonho.<br />
É a capacidade de maravilhar-se que toca<br />
o aluno. Se eu não sou provocado a apaixonarme<br />
pelo que faço as coisas saem mecânicas e<br />
sem gosto de uma vida nova, de um novo interesse<br />
pelas coisas. O maravilhamento deve estar<br />
para o professor e para o educador, assim<br />
como o sol está para o dia.<br />
ENCONTROS CULTURAIS COM A<br />
TRADIÇÃO CULTURAL E MUSICAL DA<br />
BAHIA: Riachão, Roberto Mendes,<br />
Jussara Silveira e Zilda Paim<br />
Experiências significativas dentro da educação<br />
em Novos Alagados foram a possibilidade<br />
120 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003
José Eduardo Ferreira Santos<br />
de promover o encontro dos alunos com a cultura<br />
musical baiana através de seus representantes<br />
muitas vezes marginalizados pelas emissoras<br />
de rádio, mas que são fundamentais para<br />
o entendimento do contexto cultural da Bahia.<br />
Realizando encontros com cantores e compositores<br />
como Roberto Mendes, Riachão e<br />
Jussara Silveira, pude compreender que a sala<br />
de aula é o espaço de promover descobertas de<br />
que há personalidades que carregam traços da<br />
nossa identidade em seu fazer artístico, existindo<br />
mesmo contra todas as limitações que lhes<br />
são proporcionadas pelos meios de comunicação.<br />
Roberto Mendes, Jussara Silveira e Riachão<br />
foram significativos na minha trajetória educativa,<br />
porque mostraram que a música de qualidade<br />
existe e é possível manter um intercâmbio<br />
com os alunos e possibilitar que eles aprendam<br />
que há a possibilidade de escolhas diante da<br />
massificação musical da qual sofremos diariamente.<br />
A proposição dessas modalidades musicais<br />
nascidas e desenvolvidas nas tradições do<br />
Recôncavo baiano requer a consciência de uma<br />
democratização da cultura, conforme a proposta<br />
de Hermínio Bello de Carvalho que retoma o<br />
dito de Mário de Andrade, segundo o qual é<br />
preciso “abrasileirar o brasileiro’’.<br />
Roberto Mendes fez o lançamento do seu<br />
CD Tradição para os alunos do Centro Educativo<br />
João Paulo II, promovendo o encontro com<br />
uma cultura tão próxima a nós, baianos, mas ao<br />
mesmo tempo tão sonegada pela mídia.<br />
Uma base metodológica é promover os encontros<br />
culturais como formas de integração e<br />
conhecimento da cultura na qual os alunos estão<br />
inseridos. Essas três apresentações e os<br />
encontros, ao longo dos anos, mostraram-se<br />
como fomentadores de uma possibilidade de<br />
gosto musical diverso daquele que enche as<br />
rádios baianas, onde o gosto duvidoso torna-se<br />
a tônica dos ouvintes, por não terem acessos a<br />
outros ritmos e expressões musicais como a<br />
música de qualidade que é feita na Bahia e é<br />
esquecida.<br />
Junto a isso, o encontro com o samba de<br />
roda através do livro de Dona Zilda Paim foi<br />
outro momento importante dessas descobertas<br />
educativas.<br />
Os encontros com estes compositores e cantores<br />
foram marcados pelo trabalho preparatório<br />
de conhecimento da obra e da discografia,<br />
muitas vezes por alguns meses, antecipando o<br />
diálogo que se estabeleceria. A partir deste<br />
trabalho anterior aconteceram as apresentações<br />
no espaço aberto do Centro Educativo João<br />
Paulo II, onde os educandos e educadores puderam<br />
conhecer pessoalmente essas personalidades,<br />
estabelecendo com eles um contato<br />
importante, mostrando que há possibilidades de<br />
interlocução com as pessoas que desenvolvem<br />
atividades artísticas. Conhecê-los pessoalmente<br />
foi uma oportunidade única na vida de centenas<br />
de crianças e adolescentes, pois, a partir<br />
daí, ficaram estabelecidos em suas memórias<br />
os momentos de encontro e relacionamento.<br />
Os educandos cantaram, ouviram e fizeram<br />
perguntas a cada um dos artistas presentes, promovendo<br />
um encontro cultural e intergeracional,<br />
pautado pela curiosidade e pela liberdade.<br />
OS SAMBAS DE RODA DO RECÔN-<br />
CAVO BAIANO NA SALA DE AULA<br />
Entramos em contato, por intermédio do amigo<br />
Hermínio Bello de Carvalho, com a obra da professora<br />
e folclorista Zilda Paim, uma senhora de<br />
oitenta anos que recolheu e guardou, através de<br />
registro escrito, grande parte da cultura popular<br />
do Recôncavo da Bahia, em especial da região<br />
de Santo Amaro da Purificação, num livro<br />
intitulado Relicário Popular, editado pela Secretaria<br />
de Educação e Cultura, no ano de <strong>19</strong>99.<br />
Ao aproximar-nos das festividades do folclore<br />
resolvemos utilizar o seu livro nas nossas<br />
atividades deste ano. Este livro tem a peculiaridade<br />
de ser uma obra viva, que guarda muitos<br />
elementos culturais ainda presentes em toda a<br />
Bahia, como a capoeira, os sambas, os refrões,<br />
as comidas e outros elementos.<br />
As educandas do curso de monitoras de creche,<br />
por sua vez, resolveram escolher uma das<br />
partes do livro para trabalhar em sala e desenvolver<br />
uma apresentação. A idéia aprovada<br />
pelos educandos foi a de selecionar os sambas<br />
de roda e fazer um pot pourri, com uma verdadeira<br />
roda e apresentação.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />
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Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />
QUADRO 1<br />
Sambas de roda do Recôncavo baiano<br />
“O guarda civil não quer<br />
a roupa no quarador (bis)<br />
meu Deus, onde vou quarar<br />
quarar minha roupa?<br />
“É de Deus<br />
É de Deus<br />
É Deus<br />
Essa casa é de Deus”<br />
“Pega na galha do boi,<br />
pega na galha do boi,<br />
ô mulher (bis)”<br />
“A baiana me deu o sinal,<br />
Olerê baiana! (bis)<br />
Baiana me pega, me joga lama,<br />
Eu não sou camarão,<br />
mas o mar me chama,<br />
Olerê, baiana.<br />
A baiana me deu o sinalOlerê baiana.”<br />
“Tava na beira do rio<br />
quando a polícia chegou<br />
vamos acabar com esse samba<br />
que o delegado mandou”<br />
Escolhemos os sambas curtos e começamos<br />
os ensaios, junto com as crianças do Centro.<br />
Foi uma experiência por demais gratificante. Aos<br />
poucos a nossa cultura festeira ressurgia através<br />
da cadência repleta de palmas ritmadas que<br />
dava um brilho especial ao canto.<br />
O samba de roda caracteriza-se, como o próprio<br />
nome diz, por uma roda onde cada um tem a<br />
sua vez de participar, sambando à sua maneira,<br />
sem homologações, enquanto os refrões são cantados<br />
e repetidos. O significado da roda é que o<br />
samba pode ser repetido várias vezes e as pessoas<br />
podem se manifestar sambando dentro de<br />
um círculo contínuo, que não acaba. Os educandos,<br />
no ensaio, batiam palmas com o ímpeto de<br />
não deixar o ritmo cair enquanto as meninas cantavam<br />
os sambas aprendidos.<br />
No dia da apresentação conseguimos um<br />
atabaque, tocado pelo educador de capoeira do<br />
Centro Educativo João Paulo II, e um pandeiro,<br />
que foi tocado pelos educandos, enquanto cada<br />
um ia ao centro da roda e sambava à sua maneira,<br />
numa interessante demonstração de criatividade.<br />
Os sambas falam de fatos corriqueiros e do<br />
dia-a-dia do povo do Recôncavo da Bahia, a<br />
começar por alguns que são os mais bonitos, na<br />
predileção dos alunos, como o samba no Quadro<br />
1.<br />
O interessante é que quando o samba foi<br />
ficando mais intenso, o clima já não era mais o<br />
de uma atividade escolar, mas sim o de um terreiro,<br />
pois essas festas são a celebração da vida,<br />
e sempre acontecem após uma colheita farta<br />
ou uma festa religiosa, como casamento, batizado<br />
ou festa de padroeiros.<br />
Os educandos, que nem sequer têm acesso<br />
a essa cultura tão nossa, a partir dessa atividade<br />
de redescoberta do folclore se interessaram<br />
bastante e muitos pediram cópias das músicas<br />
para guardá-las. Durante os jogos e outros<br />
momentos eles estavam cantando os sambas já<br />
com muita familiaridade, portadores, agora sim,<br />
de sua própria cultura.<br />
Essa atividade foi importante porque é uma<br />
forma criativa de quebrar a homogeneidade das<br />
letras, ritmos e ‘coreografias’ – não sambas –<br />
dos tantos grupos de pagode que povoam as<br />
nossas rádios, que hoje fazem parte da mídia, e<br />
dos quais ninguém pode fugir, pois as crianças<br />
e adultos, vítimas dessa homogeneidade, não<br />
conseguem se expressar, mas somente repetir<br />
o que ouvem e vêem, sem qualquer contribuição<br />
pessoal.<br />
HISTÓRIA DO SUBÚRBIO<br />
FERROVIÁRIO<br />
Estudando, nos anos de 2000 a 2002, a história<br />
do Subúrbio Ferroviário de Salvador, local<br />
onde os educandos habitam, pudemos fazer<br />
várias descobertas interessantes e que possibilitaram<br />
uma nova significação do espaço e do<br />
território suburbano para eles. Essas descobertas<br />
deram-se através de aulas e visitas ao locais,<br />
estudando, fazendo uma ponte entre a teoria<br />
e a prática pedagógica, através do encontro<br />
122 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003
José Eduardo Ferreira Santos<br />
com as realidades históricas que aconteceram<br />
nos locais hoje abandonados pelos poderes públicos,<br />
como as áreas verdes, as praias e as<br />
favelas do referido Subúrbio, que guarda em si<br />
muitos séculos de história e monumentos importantes<br />
do Brasil.<br />
A primeira descoberta foi o próprio conceito<br />
de subúrbio como um referencial territorial<br />
positivo, o contrário daquilo que os alunos percebiam.<br />
Depois, a tônica passou a ser de que<br />
os alunos estavam diante de um conhecimento<br />
sobre a sua própria área de existência tendo<br />
consciência da importância do local na história<br />
do Brasil, fato este que pela primeira vez foi<br />
levado adiante num conjunto de aulas e visitas.<br />
Os conceitos de subúrbio e cidade<br />
A noção de subúrbio tem a ver, certamente, com<br />
a própria noção de afastado da cidade: isto é, o<br />
que podemos ver na própria etimologia da palavra<br />
subúrbio, sub urbis, indicando o que está à<br />
margem, fora da urbis, da cidade, que é o lugar do<br />
trabalho, das relações sociais e dos compromissos<br />
da semana.<br />
Isso fica bem claro na concepção sob a qual<br />
foi fundada a cidade do Salvador, com seu entorno<br />
murado na cidade alta, com o centro comercial<br />
abaixo, a alfândega e o porto, e as áreas afastadas<br />
geralmente ficando em lugares aprazíveis,<br />
longe do centro, como era o caso do Rio Vermelho,<br />
Vila Velha e o próprio Subúrbio Ferroviário,<br />
que é um lugar abaixo da cidade, afastado, uma<br />
sub urbis; uma cidade abaixo da cidade.<br />
O subúrbio, em oposição à cidade, era o lugar<br />
do descanso, um ambiente bucólico, de praias, e<br />
o seu “conceito era o do afastado, mas acessível,<br />
mas ao mesmo tempo o do não acessível às categorias<br />
populares …”. (ESPINHEIRA, <strong>19</strong>98, p.23)<br />
Segundo o professor Espinheira (<strong>19</strong>98, p.23),<br />
o Subúrbio Ferroviário “foi um espaço nobre de Salvador,<br />
no tempo em que a cidade ainda não tinha<br />
sofrido as grandes transformações que vieram fazer<br />
dela, nos anos 70”, principalmente com a abertura<br />
das avenidas de vales, que ampliaram o espaço<br />
urbano de Salvador, de forma desordenada.<br />
Para efeito de demarcação de espaço, entendemos<br />
o Subúrbio Ferroviário como uma área<br />
compreendida entre a Calçada, Baixa do Fiscal e<br />
Lobato, até Paripe, São Thomé, que tem esse<br />
nome devido à grande extensão de linha férrea<br />
que corta e contorna os diversos bairros da Avenida<br />
Afrânio Peixoto, nome oficial da via mais conhecida<br />
como Avenida Suburbana, cercados de<br />
belas praias e acidentes geográficos, outrora lugar<br />
de vegetação aprazível, oferecendo boas condições<br />
de vida, contando ainda com a proximidade<br />
do mar, os rios e cachoeiras, a terra boa para<br />
plantar e a fartura de alimentos do mar e das florestas.<br />
Para se chegar ao Subúrbio Ferroviário, mais<br />
ou menos até a década de 60, existiam somente<br />
dois meios: o marítimo (lanchas, barcos e saveiros)<br />
e o ferroviário.<br />
Embarcações de todo o tipo já aportaram nas<br />
praias do Subúrbio Ferroviário, desde as naus e<br />
grandes embarcações até saveiros, lanchas e<br />
pequenos barcos de pescadores.<br />
O trem foi o mais importante meio de transporte<br />
oficial dessa área, muito antes mesmo da construção<br />
da Avenida Suburbana, que só ocorreria na<br />
década de 70. O transporte ferroviário, dentre outras<br />
coisas, representou e contribuiu para o início<br />
de habitações de diversos empregados nas áreas<br />
do Subúrbio, pois os funcionários da antiga LES-<br />
TE moravam nas imediações dos lugares por onde<br />
passavam as linhas férreas.<br />
Antes, o trem ia pela Estrada Velha do Cabrito,<br />
fazendo um contorno pelo São João do Cabrito e<br />
Plataforma. Em <strong>19</strong>52, com a mudança do percurso,<br />
foi construída a Ponte São João. Esse mesmo<br />
trem ia até as cidades do Recôncavo, fazendo,<br />
com isso, um importante intercâmbio cultural,<br />
social e comercial, sendo um momento de crescimento<br />
e desenvolvimento da economia das áreas<br />
interligadas; hoje, após a sua crescente decadência<br />
devido a diversos fatores econômicos, a linha<br />
vai até Paripe, com uns poucos trens mal conservados.<br />
Andar de trem no Subúrbio Ferroviário é fazer<br />
um passeio diante de belezas naturais, pois apesar<br />
de todos os problemas, o Subúrbio ainda preserva<br />
o ambiente agradável de se ver, desde o<br />
mar, as praias, a maré com suas marisqueiras,<br />
as casas, a ponte de ferro, o túnel, enfim, todos os<br />
componentes para uma viagem inesquecível.<br />
Dentre as estações ferroviárias há uma que é<br />
um dos lugares mais bonitos da cidade, que é a<br />
Almeida Brandão com a sua beleza, sua perfeita<br />
implementação paisagística, com algumas belas<br />
palmeiras imperiais, tendo à frente o mar, e mais<br />
ainda uma bela visão da Baía de Itapagipe, Ribeira,<br />
Penha e Bonfim.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />
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Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />
Um dos outros meios de transportes utilizados<br />
no Subúrbio era a lancha, que conduzia os<br />
moradores na travessia de Plataforma até a Ribeira,<br />
levando principalmente estudantes e trabalhadores.<br />
Com o crescente abandono da área as<br />
lanchas pararam de funcionar, a estação de Plataforma<br />
foi totalmente depredada e hoje está entregue<br />
aos marginais. Ainda da Ribeira, porém,<br />
pode-se ver a belíssima paisagem de Plataforma,<br />
com suas palmeiras imperiais, símbolos de<br />
ostentação e afinidades com o império, os morros<br />
e outeiros verdejantes, assim como as fábricas<br />
abandonadas da Fagip e Fatbrás. A beleza<br />
deste bairro exemplifica muito bem o verdadeiro<br />
conceito do subúrbio, o que era essa área: um<br />
lugar propício ao descanso, ao viver.<br />
Foi assim que essa territorialidade suburbana<br />
passou a fazer parte de um referencial positivo<br />
para as crianças e os adolescentes de Novos<br />
Alagados que participaram destas atividades.<br />
Houve o desejo de conhecer os primeiros<br />
habitantes da área, a história, os locais e os seus<br />
desdobramentos. Esse conhecimento passou a<br />
oferecer uma perspectiva diversa daquela que<br />
vê o Subúrbio como um lugar sem passado e<br />
abandonado, como podemos verificar nas páginas<br />
de jornais e noticiário televisivos.<br />
O caráter didático dessas descrições quis<br />
apresentar inicialmente uma história do Subúrbio<br />
Ferroviário de Salvador que é negada pelos<br />
livros, e que não leva em conta as transformações<br />
sociais e históricas pelas quais o lugar<br />
passou.<br />
Primeiros habitantes<br />
Conforme vimos, no Subúrbio existiam todas<br />
as condições possíveis e imagináveis para a realização<br />
de uma vida em meio à fartura e à grande<br />
quantidade de comida, água doce, frutos do mar,<br />
caças, enfim, era uma espécie de lugar propício à<br />
moradia por parte dos índios que viviam em busca<br />
de condições necessárias à sobrevivência.<br />
Nos primeiros tempos, antes e durante a descoberta<br />
do Brasil, na colonização, a área do Subúrbio<br />
era habitada pelos índios Tupinambás, do tronco<br />
Tupi, que eram caracterizados por andarem nus,<br />
serem semi-nômades e antropófagos, isto é,<br />
comedores de carne humana, geralmente nas lutas<br />
entre tribos, e que conquistaram todo o litoral.<br />
Graças à sua grande população estavam habitando<br />
também “na Baía de Guanabara, no Rio; no<br />
Capibaribe em Pernambuco e na Baía de Todos<br />
os Santos, na Baía de Aratu, estuário do Rio<br />
Paraguaçu, estuário do Jaguaribe e na enseada<br />
dos Tainheiros e do Cabrito e o rio de Pirajá”<br />
(SAMPAIO, <strong>19</strong>98, p.262 ss).<br />
Eduardo Tourinho, no seu Alma e Corpo da<br />
Bahia, diz que “no Subúrbio havia muitas tabas<br />
tupinambás (...) principalmente no rio da aldeia –<br />
e as de Pirajá, Itacaranha, Pirípirí [sic]” (TOURI-<br />
NHO, <strong>19</strong>53, p.87).<br />
Como se pode ver, os Tupinambás tinham<br />
uma preferência pelo litoral brasileiro, de maneira<br />
que migravam com suas grandes tribos para<br />
lugares de localização e natureza privilegiada<br />
como a área do Subúrbio Ferroviário, onde existia<br />
um ambiente essencial para o desenvolvimento<br />
dos seus costumes, sendo, também, um local<br />
onde superabundavam os fartos alimentos marítimos,<br />
como os frutos do mar, o marisco e os<br />
caranguejos.<br />
Um dos chefes indígenas cujo nome chegou à<br />
nossa época é o chefe Mirangaoba, que era “um<br />
dos principais dos Tupinambá, senhor da aldeia<br />
de São João, no esteiro de Pirajá, na Bahia”, e seu<br />
nome moboy-rangá-oba significa “o manto de figura<br />
de cobra”, vestimenta com a qual o chefe indígena<br />
comparecia às festas e solenidades da tribo.<br />
(TOURINHO, <strong>19</strong>53, p.129)<br />
Os Jesuítas<br />
Juntos com Thomé de Souza, em 29 de março<br />
de 1549, vieram à Bahia os padres da Companhia<br />
de Jesus, dentre eles o padre Manoel da<br />
Nóbrega, chamados de Jesuítas, ordem religiosa<br />
recém fundada por Ignácio de Loyola, com a responsabilidade<br />
de catequizar os povos das terras<br />
recém descobertas no expansionismo lusitano.<br />
(CARVALHO, <strong>19</strong>98, p.37 ss.)<br />
É muito forte a presença desses homens na<br />
fundação do Brasil e não se pode pensar os primeiros<br />
anos e décadas da história brasileira, sem<br />
citar figuras importantes dessa ordem que passaram<br />
e fizeram um verdadeiro trabalho de conhecimento<br />
da cultura indígena, assim como a<br />
fundação de colégios para os filhos dos colonos.<br />
Através de toda essa atividade e da ligação com o<br />
centro da ordem em Roma, os Jesuítas prestaram<br />
um enorme serviço à história do Brasil; são<br />
dezenas de cartas que nos permitem recompor o<br />
painel dos primeiros anos da colonização.<br />
124 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003
José Eduardo Ferreira Santos<br />
Na área do Subúrbio aconteceram diversos<br />
aldeamentos jesuítas, que foram as primeiras<br />
tentativas de catequese, e também de fabricação<br />
do açúcar em pequenos engenhos, como os<br />
de São Paulo, a 6 km da cidade, em Brotas; São<br />
João, mais para o interior, “dos lados de Plataforma”,<br />
a cerca de 30 km; e “Espírito Santo [Sancti<br />
Spiritus], no rio Joanes, a 18 km” (CARVALHO,<br />
<strong>19</strong>98, p.44).<br />
Foi um jesuíta, o padre Manuel da Nóbrega, o<br />
conselheiro do Governador-Geral “Mem de Sá ao<br />
iniciar o governo em 3 de janeiro de 1558”<br />
(TOURINHO, <strong>19</strong>64, p.27). Graças a esses conselhos,<br />
Mem de Sá “pôs em prática medidas que<br />
revelaram notável inteligência das cousas (sic) da<br />
terra”. Coibiu a usura. Definiu a “guerra justa” contra<br />
o gentio. Proibiu a antropofagia. Determinou o<br />
aldeamento dos silvícolas em povoações grandes<br />
em forma de repúblicas, com igrejas e casas<br />
para os da Companhia. Daí as “Reduções” em<br />
torno da Cidade do Salvador daqueles tempos: a<br />
do Monte Calvário, no Carmo; a de São Sebastião<br />
do Tubarão, em São Bento; a de Santiago, entre a<br />
Piedade e São Raimundo; a do Simão, no Forte<br />
de São Pedro; a do Rio Vermelho e a de São João,<br />
em Plataforma, “nos domínios do morubixaba que<br />
se chamou Boirangaóba.”<br />
Um grande jesuíta, o padre José de Anchieta,<br />
repousou “para recuperar a saúde em 1566” na<br />
igreja de Nossa Senhora de Escada, no bairro<br />
homônimo, e foi mandado a este local devido às<br />
boas condições de clima do lugar e a boa qualidade<br />
do ar (AZEVEDO, <strong>19</strong>97, p.96).<br />
Consta da tradição e de relatos que foi num<br />
aldeamento jesuíta, o São João, que ficava entre<br />
o São João do Cabrito e Pirajá, que o padre Antônio<br />
Vieira pregou seu primeiro sermão público,<br />
proferido em 1633.<br />
A Estrada das Boiadas<br />
Junto às colinas de Pirajá há uma estrada,<br />
denominada Estrada das Boiadas, hoje asfaltada,<br />
que se tornou a primeira via de acesso dos<br />
portugueses colonizadores para o interior e sertão<br />
da Bahia, e por onde se embrenharam para<br />
conquistar os locais mais afastados, num movimento<br />
comumente denominado de entradas e<br />
bandeiras. A estrada das Boiadas ligava o litoral<br />
do subúrbio ao sertão, pela hoje BR 324, e era<br />
uma importante via de acesso estratégica para<br />
se chegar à cidade do Salvador.<br />
Essa estrada foi um ponto estratégico de lutas<br />
e tentativas de invasões da cidade de Salvador,<br />
conforme veremos mais adiante.<br />
Os portugueses<br />
Segundo Bueno (<strong>19</strong>98, p.262), data de 28 de<br />
julho de 1541 a doação da sesmaria de Pirajá ao<br />
fidalgo João de Velosa e a de Paripe ao castelhano<br />
Afonso de Torres, onde iniciaram o plantio da canade-açúcar<br />
e criação de engenhos de açúcar que<br />
se estendiam até o Recôncavo, como os de<br />
Caboto e Matoim, visitados por nós 6 . Esses colonos<br />
atraíram a ira dos tupinambás com a captura<br />
dos índios para o trabalho escravo, o que levou os<br />
mesmos índios a insurgirem-se contra os donatários,<br />
que, ao contrário dos franceses que traficavam<br />
pau brasil e iam embora, se instalaram<br />
nas terras e recrutaram escravos indígenas.<br />
Padre Manoel da Nóbrega, contemporâneo do<br />
fato, diz que os primeiros portugueses provocaram<br />
escândalos que geraram brigas com os<br />
tupinambás, que se uniram e “com cerca de seis<br />
mil guerreiros queimaram os engenhos, mataram<br />
vários portugueses e sitiaram os sobreviventes<br />
...” e, segundo Gabriel Soares de Souza, em seu<br />
Tratado Descritivo do Brasil, redigido em 1580, tudo<br />
isso aconteceu “numa guerra que durou cinco ou<br />
seis anos, passados em grande aperto”. (BUENO,<br />
<strong>19</strong>98, p. 263).<br />
Esses engenhos foram os núcleos iniciais, fundadores<br />
da cultura comercial dentro do Brasil e<br />
principalmente na Bahia, pois significaram o início<br />
dos trabalhos empregados pelos colonizadores na<br />
utilização e desenvolvimento das potencialidades<br />
econômicas da colônia portuguesa.<br />
Os holandeses<br />
Por duas vezes (1624 e 1638) os holandeses<br />
invadiram a Bahia, na cidade de Salvador e nos<br />
seus arredores, no Recôncavo, causando muita<br />
destruição e grandes prejuízos aos donos de engenhos<br />
de açúcar, que tinham suas casas<br />
saqueadas e as igrejas profanadas.<br />
Em 1638, portanto, na segunda invasão, os<br />
holandeses, chefiados pelo príncipe Maurício de<br />
Nassau, invadiram a cidade de Salvador, aportando<br />
6<br />
Pelas 30 alunas do curso de monitoras de creche, junto<br />
com o autor do texto, no ano de 2000, em virtude das<br />
aulas sobre a história do Subúrbio Ferroviário.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />
125
Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />
na Baía de Itapagipe e subindo pelas entradas das<br />
igrejas de São Brás de Plataforma e de Nossa Senhora<br />
de Escada; dali marcharam para a cidade.<br />
(VILHENA, <strong>19</strong>69, p.264).<br />
O príncipe Maurício de Nassau veio com um<br />
exército e uma armada, mas encontrou, segundo<br />
Brás do Amaral, em seu comentário às cartas de<br />
Vilhena (<strong>19</strong>69, p.264), os fortes existentes na cidade<br />
que foram providentes diante de perigo. Na trincheira<br />
de Santo Antonio Além do Carmo, os holandeses<br />
“Ali assaltaram com furor e dali foram repelidos”.<br />
Em Pirajá aconteceu o cerco aos holandeses,<br />
em 17 de abril de 1638, conforme se pode ver<br />
numa placa comemorativa colocada na igreja de<br />
São Bartolomeu.<br />
Graças a essas tentativas de tomada da Bahia<br />
pelos holandeses é que as fortificações militares<br />
começaram a ser construídas.<br />
Dentro do rio Pirajá existiu o forte de São<br />
Bartolomeu da Passagem, demolido em <strong>19</strong>03,<br />
que também serviu como ponto estratégico de<br />
proteção à cidade.<br />
Vilhena, em suas cartas sobre as fortificações<br />
da Bahia, dá indicações da antiga posição deste<br />
forte, que junto com o de Itapagipe e o de<br />
Montserrat, segundo ele, não conseguiam realizar<br />
a tarefa de proteger a cidade de um ataque<br />
vindo da Praia Grande, por exemplo.<br />
Pirajá e São Bartolomeu<br />
Falar do Parque de São Bartolomeu é falar de<br />
um dos lugares mais belos existentes na Bahia,<br />
e que hoje encontra-se abandonado, sem segurança<br />
e esquecido pelos poderes públicos.<br />
Está localizado “no entorno da Baía de Todos<br />
os Santos, no Subúrbio Ferroviário de Salvador”,<br />
faz parte do Parque Metropolitano de Pirajá, é um<br />
dos últimos remanescentes de Mata Atlântica que<br />
há no Brasil e é o único lugar dentro da Cidade do<br />
Salvador a guardar cachoeiras no seu âmbito. (SAN-<br />
TOS, 2002, p.131-146).<br />
O parque de São Bartolomeu tem uma grande<br />
riqueza histórico-cultural, uma grande reserva de<br />
Mata Atlântica, com 1.550 hectares de florestas,<br />
com manguezal, cachoeiras, pedras, ruínas, marcas<br />
de tiros de canhões das lutas pela Independência<br />
da Bahia e da Sabinada.<br />
É espantosa em São Bartolomeu a grande<br />
biodiversidade existente, assim como os sítios<br />
históricos nunca estudados, as lendas, as inscrições<br />
lapidares incrustadas nas pedras referentes<br />
aos milagres do santo protetor. Há a presença<br />
forte também do candomblé com suas oferendas<br />
e ritos, que valoriza toda a geografia e a natureza<br />
do parque, com suas cachoeiras, bacias, mangue<br />
e a floresta.<br />
Existem, logo no início do Parque, duas cachoeiras:<br />
a de Oxum e a de Nanã, que são as quedas<br />
do riacho Mané Dendê que nasce no Rio Sena.<br />
Infelizmente as duas belas cachoeiras estão poluídas<br />
e caem com um mau cheiro insuportável.<br />
Adentrando a trilha feita de cimento, temos a<br />
belíssima Cachoeira de Oxumaré, que nasce dentro<br />
do parque e deságua numa queda de 10<br />
metros de altura, de água limpa. Ocorrem nessa<br />
cachoeira muitos ritos ligados ao candomblé, e<br />
existem também lendas referentes ao arco-íris<br />
que aparece aos banhistas.<br />
Mais à frente e acima há uma outra cachoeira,<br />
a do Cobre, hoje inacessível devido à falta de segurança,<br />
com a água que vem da barragem do<br />
Cobre, antigamente utilizada para tomar banhos.<br />
Um lugar deslumbrante que descobrimos em<br />
meio às últimas visitas com os alunos do Centro<br />
Educativo João Paulo II, por ocasião das comemorações<br />
referentes à primavera.<br />
A história<br />
Nas matas de São Bartolomeu e Pirajá viveram<br />
os Tupinambá, conforme vimos. Também<br />
existiu ali um quilombo, o Quilombo dos Urubus,<br />
no qual 50 negros foram mortos depois da luta<br />
pela independência da Bahia, em 1826. Ele era<br />
chefiado por uma mulher, Zeferina. Conforme afirma<br />
Abdias do Nascimento (<strong>19</strong>80, p.52, apud<br />
SERPA, <strong>19</strong>98, p.68):<br />
... no ano de 1826 os escravos rebelados estabeleceram<br />
quilombo nas matas do Urubu, perto da capital<br />
da Bahia, cujas atividades agressivas contra a estrutura<br />
dominante provocaram sua destruição seguida<br />
de grande número de prisioneiros quilombolas,<br />
dentre estes a escrava Zeferina que valentemente<br />
manejou o arco e a flecha, lutou com denodo antes<br />
de ser capturada.<br />
Ao lado das cachoeiras de Nanã e Oxum existem<br />
as ruínas possivelmente de um engenho de<br />
açúcar dos Jesuítas que existiu naquela área no<br />
inicio da colonização da Bahia, nas primeiras reduções<br />
desta ordem religiosa em terras brasileiras.<br />
Essas ruínas jamais foram pesquisadas, o<br />
que mostra o mais completo abandono que há<br />
com a história do local.<br />
126 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003
José Eduardo Ferreira Santos<br />
Foi nas matas de Pirajá, São Bartolomeu, onde<br />
se travaram as tão importantes batalhas pela Independência<br />
da Bahia (1823), e também a<br />
Sabinada, movimento separatista chefiado por<br />
Sabino Álvares Vieira que queria que a Bahia fosse<br />
independente do governo Central do Rio de<br />
Janeiro, em 1837 7 , sendo esta uma das tantas<br />
revoluções liberais que aconteceram no Brasil<br />
durante o período Regencial. Os combates entre<br />
as forças revolucionárias e as forças regenciais<br />
também foram travadas no Cabrito, Pirajá, Plataforma<br />
e outras áreas da Cidade Baixa.<br />
A consolidação da Independência do Brasil<br />
deu-se na Bahia, no dia 2 de julho do ano de<br />
1823 após a derrota das forças portuguesas que<br />
ainda estavam na Bahia.<br />
Nas áreas do Cabrito e Pirajá, o Exército Libertador<br />
entrou pela Estrada das Boiadas, e nestes<br />
mesmos locais foram travadas as batalhas<br />
decisivas sob as ordens do General Pedro Labatut<br />
(cujos restos mortais se encontram no<br />
Pantheon, ao lado da Igreja de São Bartolomeu,<br />
em Pirajá), que culminaram na derrota dos portugueses<br />
remanescentes.<br />
Existe, mais acima do Parque, a Barragem do<br />
Cobre, antigo Rio Pirajá, que em tupi significa “viveiro<br />
de peixes”, e que foi represada – hoje abandonada<br />
– para abastecer de água a população do<br />
Subúrbio. É impressionante ver suas dimensões,<br />
pois dificilmente acreditamos que exista tamanha<br />
quantidade d’água dentro de uma área como o<br />
Subúrbio.<br />
Note-se que, enquanto realizamos essas descobertas,<br />
foi surgindo uma história de lutas desde<br />
as ancestralidades africana e indígena que habitaram<br />
as matas de São Bartolomeu. Estudar<br />
a História com as crianças e os adolescentes<br />
foi a possibilidade, também, de fazer uma ponte<br />
com a atualidade e verificar a organização popular<br />
que se dá nos dias atuais em comunidades<br />
pobres como Novos Alagados, que tem,<br />
dentre as suas características, as lutas por melhores<br />
moradias e condições de vida aos habitantes<br />
da área.<br />
Com as aulas pudemos descobrir a origem<br />
de alguns bairros do Subúrbio Ferroviário, detentores<br />
de uma história que sempre foi<br />
sonegada pela historiografia oficial.<br />
Plataforma<br />
Plataforma é um dos bairros mais antigos que<br />
surgiu no Subúrbio. Data da época das primeiras<br />
fazendas da colonização localizadas na área hoje<br />
conhecida como Subúrbio Ferroviário. O nome<br />
plataforma vem de uma construção que facilitava<br />
o embarque dos passageiros, quando da construção<br />
da linha férrea, em 1860. Suas primeiras<br />
habitações surgiram no entorno de uma fábrica<br />
de propriedade da UNIÃO Fabril de Tecidos.<br />
A Fagip, de propriedade da União Fabril de Tecidos<br />
(comprada em 1891), surgiu em 1875, sendo<br />
de propriedade da família Martins Catharino.<br />
Essa fábrica é importante porque em função dela<br />
nasceu o bairro de Plataforma, com suas casas de<br />
operários que foram surgindo em seus entornos.<br />
Até os dias de hoje os seus moradores pagam<br />
pelo arrendamento dos lotes onde habitam (A Tarde,<br />
<strong>19</strong>95). É um bairro dos mais bem localizados<br />
e, nos tempos de bom desenvolvimento, existia a<br />
lancha, o trem e uma grande fábrica que gerava<br />
centenas de empregos.<br />
Segundo dona Antonia, antiga moradora do São<br />
João de Plataforma, nos tempos de funcionamento<br />
da Fagip, o bairro viveu um grande crescimento<br />
econômico, com uma grande quantidade de pessoas<br />
que trabalhavam na fabrica e tinham acesso<br />
a armazém, médicos, e isso estimulava a vinda<br />
de comerciantes de todo o Recôncavo baiano que<br />
ali chegavam para vender seus materiais. 8<br />
Lobato<br />
Mais recentemente, em Lobato, no ano de<br />
<strong>19</strong>39, aconteceu a descoberta do primeiro poço<br />
petrolífero brasileiro, que atraiu um enorme contingente<br />
de pessoas do interior baiano, na esperança<br />
de conseguir emprego e melhores condições<br />
de vida.<br />
A descoberta do petróleo no Lobato deu-se, de<br />
maneira não oficial, em <strong>19</strong>30, pela “curiosidade<br />
do Agrônomo Manuel Inácio Bastos e a sua firme<br />
7<br />
Para maiores detalhes recomendo a obra do autor baiano<br />
Eduardo Tourinho, Alma e Corpo da Bahia, que faz um<br />
estudo detalhado desses acontecimentos, com datas, nomes<br />
e lugares, chegando, inclusive, a entreter o leitor com<br />
sua precisa narrativa.<br />
8<br />
Conversa de dona Antonia com o autor do texto registrada<br />
no dia 10 de setembro de 2000, no São João do Cabrito,<br />
onde a referida senhora comentou aspectos antigos do<br />
bairro.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />
127
Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />
determinação de lutar pelo aproveitamento de um<br />
estranho óleo negro, que brotava de uma cacimba<br />
no Cabrito, hoje Lobato, e que era usado pelos<br />
moradores para acender seu fogão e fifó, sem<br />
precisar comprar querosene”, mas só nove anos<br />
depois, em 21 de janeiro de <strong>19</strong>39, com a chegada<br />
de uma sonda de Santa Catarina, o petróleo<br />
jorrou em Lobato, a 210 metros.” (A Tarde, 2001,<br />
p.12-13).<br />
Este fato tão importante acontecido na Bahia é<br />
pouquíssimo divulgado e há entre os poucos conhecedores<br />
da história suburbana, a falta de certeza<br />
e clareza com relação às datas e aos fatos<br />
dessa notável descoberta que modificou a economia<br />
brasileira.<br />
Alagados e Novos Alagados<br />
A invasão dos Alagados surgiu alguns anos<br />
depois da descoberta do petróleo, em junho/julho<br />
de <strong>19</strong>49, nos terrenos do loteamento Jardim Cruzeiro<br />
e nas proximidades 9 , sendo uma expressão<br />
das mudanças urbanas da época e dos diversos<br />
aspectos sócio-econômicos acontecidos na área.<br />
Esta explosão demográfica acarretou o surgimento<br />
da favela dos Alagados, uma favela com<br />
barracos construídos sobre a maré, em palafitas,<br />
de grande precariedade, na área que abrigava<br />
antigamente extensos manguezais.<br />
Uma das características dessas e de outras<br />
famílias é que a precariedade provisória vai se<br />
tornando permanente. A área dos Alagados sofreu<br />
intervenções governamentais em <strong>19</strong>67, <strong>19</strong>72 e<br />
<strong>19</strong>85, com sucessivos aterros, o que, porém, não<br />
solucionou os problemas da comunidade.<br />
Na década de 60, com a criação do Pólo<br />
Petroquímico de Camaçari, repete-se um fenômeno<br />
de êxodo rural em busca de empregos. Em<br />
conseqüência da não realização deste objetivo,<br />
as pessoas que saíram de suas cidades começam<br />
a amontoar-se e a sobreviver em locais provisórios,<br />
que, com o passar do tempo, vão se tornando<br />
permanentes. Assim surgiram as grandes<br />
favelas na Avenida Suburbana, de Lobato até<br />
Paripe. Segundo Pedrotti (2000, p.41), “a favela<br />
nasce da ocupação abusiva de um terreno livre,<br />
na maioria dos casos em áreas urbanas, nas<br />
quais um certo número de núcleos familiares decidem<br />
ali se estabelecer”.<br />
Em <strong>19</strong>80 a favela dos Alagados recebeu a visita<br />
do Papa João Paulo II, na igreja de Nossa Senhora<br />
dos Alagados, construída para a ocasião.<br />
Antes disso, porém, na década de 70, dá-se<br />
início à construção da Avenida Afrânio Peixoto, conhecida<br />
como Avenida Suburbana. O dinheiro da<br />
indenização que os moradores recebiam era pouco<br />
e eles não conseguiram adquirir novos terrenos<br />
e foram, então, ocupar o manguezal e construir<br />
as palafitas na área da enseada do Cabrito:<br />
dá-se início à favela de Novos Alagados, com mais<br />
de 12.000 habitantes, com as mesmas características<br />
dos Alagados “velhos”.<br />
Por fim entendemos que o Subúrbio Ferroviário<br />
de Salvador guarda em si elementos de<br />
toda a história brasileira e, por este motivo,<br />
merece ser preservado e entendido como um<br />
lugar onde a memória viva deve permanecer à<br />
disposição de todos os que nele habitam. Não é<br />
possível que as transformações econômicas e<br />
sócio-culturais façam com que um lugar dessa<br />
envergadura histórica seja esquecido e abandonado.<br />
O abandono é uma categoria do esquecimento<br />
que atinge e deteriora a história dos lugares.<br />
Essas visitas e aulas tiveram o objetivo<br />
de mostrar que o lugar onde habitamos é mais<br />
significativo do que pensamos, e que precisamos<br />
recuperar a história e o passado para melhor<br />
compreender o presente.<br />
A gênese das favelas que cobrem toda a<br />
extensão do Subúrbio vai se dar, deste modo,<br />
pela necessidade de moradia e outras questões<br />
sociais como a busca de emprego, emigração e<br />
conseqüente abandono da área.<br />
FOLIA DE REIS EM NOVOS ALAGADOS<br />
A Folia de Reis é um folguedo popular presente<br />
em todo o Brasil, tradicionalmente realizado<br />
no ciclo do Natal. Sua característica principal<br />
é a junção de tradições culturais as mais<br />
diversas, a música, os versos, as roupas coloridas,<br />
a visitação às famílias da localidade e a<br />
celebração da vida como agradecimento.<br />
Essa experiência educativa foi realizada no<br />
ano de 2002, em Novos Alagados, com cerca<br />
9<br />
Plano de metas AMESA/HAMESA – Governo João<br />
Durval, Salvador, jan./dez. de <strong>19</strong>85.<br />
128 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003
José Eduardo Ferreira Santos<br />
de 320 crianças e adolescentes, percorrendo as<br />
ruas do bairro do Boiadeiro e da rua 1 o de Novembro,<br />
justamente num momento em que a<br />
violência havia tomado conta da vida dos moradores.<br />
O texto que segue remonta aos preparativos<br />
e a toda a dinâmica educativa e cultural<br />
que foi tomando conta de uma área de Novos<br />
Alagados, onde a violência chegou a níveis insuportáveis<br />
no período. O aspecto interessante<br />
é que a festividade dominou as ruas e contagiou<br />
as famílias que contribuíram para a realização<br />
do folguedo.<br />
“Os devotos do Divino /<br />
vão abrir sua morada”<br />
Pela primeira vez estamos realizando a experiência<br />
de propor uma Folia de Reis na festa natalina<br />
do Centro Educativo João Paulo II. Os ensaios<br />
estão transcorrendo com uma consciência de<br />
novidade que se estende aos meninos e meninas,<br />
rapazes e moças que têm se esmerado na<br />
aprendizagem dos cantos e do uso dos instrumentos<br />
percussivos. Uma ordem no ar supera a<br />
violência do ambiente.<br />
A morada das tradições ressurge no meio de<br />
um povo que já nem se lembra delas – os mais<br />
jovens, certamente, nem sequer foram apresentados<br />
a esta forma de viver e festejar.<br />
Cantar de porta em porta, anunciar a chegada<br />
do Menino Deus – eis a tarefa da vida; de quem<br />
tem a dizer muito com a vida e não pode esperar.<br />
Para que gastar a vida com tanta dispersão,<br />
se é tão melhor viver por Ele?<br />
“Pra bandeira do menino /<br />
ser bem vinda, ser louvada”<br />
Vejo os meninos e meninas ensaiando e me<br />
recordo de um tempo que nem mesmo eu alcancei,<br />
quando os mais velhos ensinavam os cantos<br />
e a vida aos mais jovens: mistérios, rezas, cantos<br />
imemoriais, lembranças, episódios de vida e<br />
morte; alegrias e tristezas.<br />
Mas o tempo retorna. Precisamos, então,<br />
aprender a esperar. Não uma espera natimorta,<br />
mas uma espera com força, na qual a esperança<br />
existe – e resiste contra todo desânimo e desesperança.<br />
Uma mãe costura a bandeira do menino com<br />
a sagrada família... Uma avó costura as roupas<br />
dos palhaços; outra, as roupas dos músicos; as<br />
professoras retocam, dão brilho e dão os detalhes<br />
dos chapéus e das coroas.<br />
Tudo escrito, desenhado, discutido e rabiscado<br />
nas horas de almoço.<br />
Nada à toa. Tudo como se deve esperar um<br />
filho: que muda tudo e nos muda para melhor;<br />
que reorganiza nossos dias, nossas correrias.<br />
Como um menino que salta, bole, e se manifesta<br />
como vida nova quando ouve nossas vozes ou<br />
nossas músicas no trabalho educativo de cuidar<br />
dos filhos alheios.<br />
Trabalho de amor, trabalho de artesã que nem<br />
se lembrava mais do nome do Menino Deus encarnado<br />
entronizado num estandarte rubro, como<br />
a cor do maior sinal da vida: o sangue.<br />
“Deus vos salve esse devoto /<br />
Pela esmola em vosso nome.”<br />
Desta vez, a esmola veio das mãos que costuram<br />
a vida. Vidas de filhos e maridos, mais de<br />
filhos, mas também de maridos e uma infinidade<br />
de problemas e situações difíceis de resolver. As<br />
mãos costureiras fizeram o estandarte, as roupas<br />
dos músicos que cantarão a espera eterna<br />
que temos: espera de justiça, espera de bons dias;<br />
espera de felicidade; espera da Totalidade; da<br />
Presença de Deus percebida, mas não vista.<br />
Essas mãos foram as das mães e avós dos<br />
nossos alunos... Nem sabíamos da existência<br />
destes talentos. Agora sabemos – e agradecemos<br />
o Dom recebido e compartilhado.<br />
O dom compartilhado, por Deus é aumentado.<br />
Esta verdade aprendi nestes dias e jamais esquecerei.<br />
A esmola das mães costura um ano no qual<br />
fomos roubados, violentados, entristecidos e amedrontados<br />
pela violência do bairro, mas que recompõe<br />
os laços dos filhos com um lugar que<br />
precisa de Cristo, do Menino Nascido.<br />
Sim, estas mãos nos oferecem seu sim diante<br />
da vida. Querendo dizer: “Recomecem!” “Façam<br />
um novo início, uma nova tentativa”, “O Menino vos<br />
acompanhará, sempre!”<br />
Estas mãos ensinam que sabem agradecer.<br />
O trabalho de costurar as roupas é uma gratidão<br />
ao Menino que renova tudo: a vida, o lugar, as esperanças,<br />
a nossa presença neste lugar e neste<br />
mundo.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />
129
Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />
“Que o perdão seja sagrado /<br />
que a fé seja infinita”<br />
A bandeira ensina; as educadoras, também.<br />
As mãos da diretora que compra os materiais e<br />
prevê a beleza do gesto ensina a ter uma esperança<br />
nova, que não se abate nem com a doença,<br />
porque a fé, esta certeza presente, é maior que a<br />
dor. As mãos e o olhar ensinam a perdoar.<br />
Cortar a cartolina, grampeá-la e tecer os detalhes<br />
coloridos supõe uma forma de olhar o mundo.<br />
“Que certeza é essa que nos faz colorir o triste;<br />
amar o cotidiano e propor o Menino Deus que saia<br />
pelas ruas?”<br />
As mãos que rabiscam o giz o ano inteiro; agora<br />
picotam e tecem figuras, detalhes de roupas<br />
coloridas. Na biblioteca do Centro Educativo os<br />
tecidos, as colas e tesouras, mostrando que o<br />
verdadeiro trabalho é sagrado. Tem sempre a ver<br />
com Cristo... Tudo é para Ele. A festa, o trabalho, o<br />
amor, o tempo, tudo.<br />
“A bandeira segue em frente /<br />
atrás de melhores dias”<br />
Por melhores dias acordamos todas as manhãs.<br />
Acordamos, trabalhamos, estudamos, amamos,<br />
recomeçamos, sempre.<br />
Os jovens ensaiando, aprendendo as canções<br />
da Folia mostram que a vida é maior do que aquilo<br />
que pensamos que ela seja, às vezes tão medíocre,<br />
tão pequena, tão em nós, mas a vida é<br />
grande. E Deus, maior que tudo. Tão maior que<br />
nos abraça todo dia, mesmo sem sabermos. Um<br />
grande que nos abraça, ensinando, pedagogo eterno,<br />
nos mostrando o que somos.<br />
E o talento deles, meninos e meninas, aparece.<br />
O que estava escondido surge. As vozes e os<br />
instrumentos nem sempre afinados vão numa<br />
cadência baiana, popular, misto de tradição e de<br />
inovações em que reconhecemos ali um povo,<br />
uma história, uma continuidade tamanha, que sabemos<br />
a quem pertencemos, nesta mesma manifestação<br />
cultural, religiosa e festiva. Porque o<br />
ser humano deve ser tudo isso e muito mais.<br />
Aprender é tarefa difícil. Das mais fatigantes<br />
que existem porque nos colocam na posição de<br />
não sabedores, mas os jovens aprendem – e com<br />
facilidade.<br />
Aprendem, esforçam-se por melhores dias.<br />
Mesmo aqueles teimosos não chegam a ser renitentes.<br />
Olham e aprendem uma ordem, uma indicação<br />
como quem vai crescer sempre mais. E<br />
crescem. Vejo a menina que faz o papel do palhaço:<br />
tímida, não proferia palavras; agora já canta e<br />
antecipa os versos do Divino. Aprendo que a festa<br />
é agora. Hoje, neste dia de tantos ensaios, nas<br />
tantas leituras da origem da Folia de Reis.<br />
Pode ser que a rua, o bairro, nos veja. Pode<br />
ser que não. Mas o que interessa é que os melhores<br />
dias deste Natal de 2002 eu já estou vivendo,<br />
simplesmente por ver o empenho dos meninos,<br />
das mães, das avós e das professoras em costurar<br />
e fazer as roupas e cada detalhe desta festa<br />
que acontece, certamente, em nossos corações<br />
preenchidos pela Presença deste Menino que<br />
pára tudo e que faz tudo acontecer. Que move o<br />
mundo na época do seu nascimento, e que também<br />
unifica até os descrentes, os sem fé, os amargos,<br />
os desiludidos. Menino forte Este que vem<br />
por aí no Natal.<br />
“No estandarte vai escrito /<br />
Que ele voltará de novo”<br />
Mas o novo existe. O Menino vai mostrar-nos a<br />
novidade que é existirem pessoas que se reúnam<br />
por causa dele. A novidade se espalha nos<br />
lugares onde vivemos: uma rua é aberta; uma<br />
palafita que não existirá mais; novas casas que<br />
estão sendo construídas, enfim, novidades que<br />
transparecem na vida da comunidade.<br />
“- ô de casa, / - ô de fora /<br />
– Maria, vai ver quem é!”<br />
Sim. Se tens coragem, vai ver quem é que está<br />
à tua porta? Um grupo de cantadores e tocadores<br />
que vai anunciar que o Natal tem uma presença<br />
que nos ilumina e nos dá novo gosto de vida.<br />
Um grupo colorido e cantante. Um grupo simples,<br />
de jovens e crianças que vão atrás de uma<br />
presença que , em suas vidas, tem um nome: Cristo,<br />
Menino Jesus, o motivo de tantos festejos.<br />
Tomara que aprendamos a segui-lo como seguiremos<br />
esta Folia. Tomara que tenhamos acesso<br />
a este momento com o coração simples dos<br />
nossos antepassados, nossos avós do Recôncavo<br />
e do interior do estado da Bahia, que plantaram<br />
estas sementes de fé em nossa história.<br />
Se o Rei chegar em sua porta, na rua: não<br />
abra só a porta de madeira que protege seu lar<br />
contra os bandidos e o frio da noite. Abra também<br />
– e mais que tudo – o coração e a vida para nos<br />
130 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003
José Eduardo Ferreira Santos<br />
receber; não a nós, mas a Ele que se utiliza destas<br />
vozes e de tantas mãos que talvez nem soubessem<br />
que são capazes de amar com tanto amor<br />
uma Presença tão sem igual.<br />
“Adeus, Santos Reis / adeus de amor /<br />
até para o ano / se nós vivos for”<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
A prática educativa em Novos Alagados,<br />
descrita nestas páginas, revela-se portadora de<br />
significados que convergem com uma abordagem<br />
metodológica que busca valorizar as descobertas<br />
e as tradições culturais brasileiras, em<br />
oposição a uma educação cada vez mais descaracterizada<br />
de valores e percepções de um<br />
saber constituído a partir de nós, brasileiros e<br />
afro-descendentes. Conhecer a história, as<br />
músicas, as tradições e o modo de ser de um<br />
povo pode fazer emergir das práticas pedagógicas<br />
em sala de aula um espaço de convivência<br />
com a pluralidade e a diversidade. Podem<br />
também ganhar o mundo e adquirir os espaços<br />
do cotidiano, na favela e em outros contextos.<br />
Essas experiências que realizei como educador<br />
ajudaram-me a compreender que a educação<br />
é uma abertura à consciência de quem<br />
somos, a quem pertencemos. Identidade essa<br />
que necessita ser fortalecida cada vez mais ante<br />
a enxurrada de mudanças e modismos que vêm<br />
acontecendo na pós-modernidade.<br />
A educação revela que há espaços possíveis<br />
para uma emancipação cultural na educação<br />
brasileira, uma emancipação que nos faça<br />
descobrir quem somos.<br />
Proporcionar o encontro dos educandos com<br />
a cultura da Bahia é estabelecer vínculos e laços<br />
com um continuum civilizatório que acontece<br />
agora, sob os nossos olhos.<br />
A educação popular, conforme aqui descrita,<br />
procura valorizar os saberes ancestrais da<br />
cultura brasileira como forma de socialização<br />
dos educandos e dos educadores envolvidos<br />
nessa proposta. A conseqüência vai em direção<br />
a uma noção de cidadania que passa pela<br />
recuperação da auto-estima dos educandos e<br />
educadores num contexto social marcado pela<br />
estigmatização devido às condições de pobreza<br />
da área suburbana da cidade de Salvador.<br />
Os projetos sociais aparecem como espaços<br />
de educação inclusiva, que buscam valorizar<br />
e desenvolver a diversidade cultural como<br />
forma de reconhecimentos dos laços e vínculos<br />
dos indivíduos com a história civilizatória à qual<br />
pertencem, pois não devemos esquecer que a<br />
diversidade cultural é um dos nossos maiores<br />
patrimônios. Nestes espaços é possível a criação<br />
de alternativas à violência e exclusão, a partir<br />
de iniciativas que proporcionam a descoberta<br />
dessa mesma história comunal, muitas vezes<br />
sonegada.<br />
A proposição do estudo da história do Subúrbio<br />
Ferroviário e do reavivamento das tradições<br />
afro-brasileiras buscou valorizar o espaço<br />
e o território como contextos onde os habitantes,<br />
os antepassados e os atuais, marcaram uma<br />
trajetória de lutas pela sua cidadania, mostrando<br />
que o inconformismo com determinadas situações<br />
de opressão é um traço que não podemos<br />
esquecer.<br />
Essas experiências buscaram mostrar, sinteticamente,<br />
que a educação popular efetivada<br />
em espaços abertos a novas propostas<br />
educativas pode gerar conhecimentos e transformações<br />
na vida de crianças e adolescentes<br />
em situação de risco psicossocial. O encontro<br />
com a diversidade provoca o crescimento da<br />
liberdade, no sentido que vamos criando espaços<br />
de convivência, pautados pelo respeito e<br />
pelo acolhimento dessa mesma diversidade.<br />
Uma educação plural e aberta à história dos<br />
sujeitos envolvidos nela é a emergência que<br />
aparece à frente de todo educador comprometido<br />
com a transformação da realidade.<br />
A sistematicidade e a seriedade com o registro<br />
são fundamentais para fazer permanecerem<br />
as experiências que realizamos. Assim,<br />
estas páginas são um relato de experiências que,<br />
de certo modo, trouxeram às crianças e adolescentes<br />
de Novos Alagados um novo modo<br />
de perceber-se no mundo, no sentido de saberem-se<br />
pertencentes a um contexto mais amplo,<br />
tanto do ponto de vista cultural, quanto histórico,<br />
social e educativo.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />
131
Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />
Talvez a maior questão de todas seja a democratização<br />
daquilo que nós, educadores,<br />
aprendemos na vida e nos bancos das universidades<br />
e cursos que freqüentamos. O nosso<br />
saber tem uma função social. Ele precisa ser difundido<br />
para que outros o encontrem e façam<br />
uso dele da melhor forma possível em suas vidas.<br />
Espero que essas páginas sejam uma provocação<br />
a outros educadores que podem contribuir<br />
para fazer da nossa sociedade um lugar<br />
de convivência e de respeito à pluralidade cultural<br />
da qual fazemos parte, inclusive questionando<br />
a velha ordem que segrega os pobres<br />
cada vez mais a espaços de abandono.<br />
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Recebido em 30.05.03<br />
Aprovado em 20.07.03<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />
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Eduardo Alfredo Morais Guimarães<br />
LAVAGEM DO BONFIM:<br />
ENTRE A PRODUÇÃO E A INVENÇÃO DA FESTA<br />
Eduardo Alfredo Morais Guimarães *<br />
RESUMO<br />
A partir de um análise da lavagem simbólica do Santuário do Senhor do<br />
Bonfim, procura-se analisar aspectos lúdico-festivos que compõem a<br />
chamada “baianidade”. A “lavagem” ocorre antes do Carnaval oficial<br />
e é um “carnaval” que questiona a “ordem”. A identidade e a relação<br />
dos baianos com o sagrado estão no cerne do trabalho que destaca as<br />
investidas do poder público e da indústria cultural, no sentido de circunscrever<br />
a “festa” a um evento turístico. As manifestações culturais<br />
do povo negro, reconhecidas como a “alma” da cidade, pelos dirigentes<br />
de órgãos de turismo, tratadas como manifestações folclóricas, uma<br />
verdadeira prisão reservada ao povo negro alegre e festeiro, qualidades<br />
atribuídas geneticamente ao grupo a partir da raça, apimentadas com<br />
concepções racistas.<br />
Palavras-chave: “Lavagem” – Santuário do Senhor do Bonfim – Festa<br />
– Religiosidade Popular – Rito<br />
ABSTRACT<br />
LAVAGEM DO BONFIM: BETWEEN THE PRODUCTION AND<br />
THE INVENTION OF THE FESTIVAL<br />
Departing from an analysis of the symbolic washing of the Sanctuary of<br />
Senhor do Bonfim, one aims at analyzing ludic-festive aspects that<br />
compose the so-called “baianidade”. The “washing” happens before<br />
the official Carnival and it is a “carnival” that questions the “order”.<br />
The identity and the relationship of Bahians with the sacred are in the<br />
center of the work, which highlights the investing of the public power<br />
and of the cultural industry, in the sense of circumscribing the “festival”<br />
to a tourist event. The cultural manifestations of the Afrodescendants,<br />
recognized as the “soul” of the city by the directors of<br />
tourism organs, are treated as folkloric manifestations, a true prison<br />
reserved for the happy and festive Afro-descendant, qualities attributed<br />
genetically to the group of the race, spiced up with racist conceptions.<br />
Key words: “Washing” – Senhor do Bonfim Sanctuary – Festival –<br />
Popular Religiosity – Rite.<br />
*<br />
Mestre em Sociologia pela UFBA e professor de Antropologia da UNEB. Coordena um projeto da UNEB<br />
com o MST em Ipiaú/Bahia. Endereço para correspondência: Rua Prediliano Pita, 51, Fazenda Garcia -<br />
Salvador/BA. E-mail: ealfredoguimaraes@.bol.com.br.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003<br />
135
Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />
Se o sol brilha só para a burguesia – então, camaradas, apagaremos o sol<br />
(Leon Trotsky)<br />
O brado de Trotsky, de uma tribuna, durante<br />
a revolução de <strong>19</strong>17, na Rússia, citado por Jean<br />
Duvignaud (<strong>19</strong>83, p.31), é uma incitação à subversão<br />
e é exatamente esta subversão exuberante<br />
que melhor descreve o espírito da festa<br />
da Lavagem do Bonfim, realizada anualmente<br />
pelos baianos. A lavagem, apesar de integrada<br />
à dinâmica da sociedade, é um período peculiar<br />
da vida da cidade, marcado, sobretudo, pela<br />
transgressão. Como afirma Durkheim, a efervescência<br />
e o desregramento possibilitam a revificação<br />
e a renovação da ordem cultural e é<br />
durante estas manifestações sagradas que a<br />
criatividade humana atinge o apogeu. A identidade<br />
e a relação dos baianos com o sagrado<br />
estão, assim, no cerne do nosso trabalho sobre<br />
a Lavagem do Bonfim. A festa pode ser considerada<br />
uma verdadeira “liturgia de baianidade”,<br />
construída a partir da presença marcante das<br />
religiões afro-brasileiras, do próprio catolicismo<br />
popular e do “festar” característico destas manifestações<br />
religiosas.<br />
O ritual, na sua dimensão material e temporal,<br />
possui fronteiras e limites. O cortejo parte,<br />
na quinta-feira anterior ao dia da festa do Senhor<br />
do Bonfim, do bairro do Comércio, mais<br />
exatamente das escadarias da Igreja de Nossa<br />
Senhora da Conceição da Praia 1 , segundo Reis<br />
(<strong>19</strong>91, p.120), arquétipo cristão da mãe, na sua<br />
qualidade de conceber e de gerar a vida. O itinerário<br />
de oito quilômetros é calculado em horas<br />
de marcha e corta o centro financeiro da<br />
cidade sacralizando e modelando o espaço por<br />
um breve intervalo de tempo. São as baianas<br />
com seus corpos modelados pelos trajes típicos<br />
que reúnem os elementos ancestrais necessários<br />
à consagração do espaços. Estamos no<br />
centro da atividade ritual e o centro é um lugar<br />
ativo e móvel na festa da Lavagem do Bonfim<br />
que segue ressignificando os espaços pertencentes<br />
ao antigo bairro comercial da cidade.<br />
Após duas ou três horas de marcha o cortejo<br />
chega à Igreja do Senhor Bom Jesus do Bonfim<br />
que é lavada simbolicamente pelas baianas. Sem<br />
dúvida, pode-se perceber que é no adro da Igreja<br />
e nos arredores que a atividade ritual se concentra,<br />
mas este fato não implica que a festa,<br />
ou o próprio ritual, cesse com a passagem do<br />
cortejo. No itinerário distingue-se zonas que são<br />
objeto de maior ou menor atividade ritual e a<br />
festa prossegue em vários lugares até a madrugada.<br />
Vê-se, assim, que as ações do poder público<br />
(ou mesmo privado) no sentido de disciplinar<br />
a festa interferem diretamente na Lavagem<br />
do Bonfim. O poder das autoridades determina,<br />
em certo sentido, o avanço ou o recuo da<br />
atividade ritual e os próprios limites da festa.<br />
Como observa Marc Augé (<strong>19</strong>94, p.60), a linguagem<br />
política é naturalmente espacial; daí,<br />
certamente, o simbolismo político que se expressa<br />
no poder das autoridades de determinar limites<br />
e fronteiras. Concretamente, os caminhos<br />
trilhados pelo cortejo foram traçados pelos próprios<br />
devotos, possuem cruzamentos e praças<br />
onde os homens satisfazem cotidianamente as<br />
mais diversas necessidades, inclusive de intercâmbio<br />
econômico, cujo funcionamento implica<br />
ações econômicas, políticas e rituais.<br />
QUEM TEM FÉ VAI A PÉ!<br />
O caráter de singularidade do ritual da lavagem<br />
simbólica do Santuário do Bonfim é patente.<br />
Ao contrário das procissões religiosas tradicionais,<br />
no cortejo os devotos não acompanham<br />
as imagens dos santos. O Senhor do Bonfim<br />
não deixa a sua casa para “passear” com seus<br />
devotos pelas ruas da cidade, mas aguarda onipotente<br />
os seus filhos em sua morada: uma<br />
multidão de mais de um milhão de pessoas que<br />
acompanha desordenadamente um grupo de<br />
baianas formado, majoritariamente, por gente<br />
de santo dos Candomblés da Bahia. A lavagem<br />
da igreja é simbólica, isto é, as portas da igreja<br />
1<br />
A partir dos primeiros anos da década de <strong>19</strong>40, as escadarias<br />
da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia<br />
passaram a ser o ponto de partida do Cortejo.<br />
136 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003
Eduardo Alfredo Morais Guimarães<br />
permanecem fechadas durante a cerimônia e<br />
as baianas lavam apenas as escadarias e o adro<br />
do santuário.<br />
A palavra de ordem dos participantes do<br />
cortejo, repetida todos os anos pelos mais ardentes<br />
defensores da tradição é quem tem fé<br />
vai a pé. Majoritariamente, os participantes<br />
vestem-se de branco – afinal o branco é a cor<br />
do Orixá Oxalá e do próprio Cristo Crucificado,<br />
o Senhor do Bonfim – e seguem a pé da<br />
Conceição da Praia ao Santuário do Bonfim,<br />
ao som dos blocos afros e afoxés, num percurso<br />
de oito quilômetros. Ao chegar ao Bonfim as<br />
baianas realizam a lavagem simbólica do santuário<br />
e derramam água de cheiro sobre a cabeça<br />
dos fiéis que se encontram nas proximidades.<br />
Não resta dúvida que nem todos conseguem<br />
chegar à Colina Sagrada, pois os apelos<br />
do carnaval instaurado no percurso contém a<br />
marcha de muitos participantes.<br />
Nossas interpretações sobre a Lavagem<br />
Simbólica do Santuário do Senhor Bom Jesus<br />
do Bom Fim, momento mágico da festa<br />
quando os devotos se purificam ao tempo em<br />
que purificam o próprio templo, voltam-se para<br />
algumas discussões já clássicas no âmbito da<br />
antropologia sobre a festa carnavalesca. De um<br />
lado, autores que advogam a existência de uma<br />
inversão na ordem social durante o período carnavalesco.<br />
De outro, aqueles que afirmam que<br />
durante o carnaval a ordem não é subvertida.<br />
Acreditamos que as analises de Mikhail Bakhtin<br />
expressas no seu famoso livro sobre Rabelais e<br />
o Carnaval Medieval, publicado em português<br />
sob o título A Cultura Popular na Idade Média<br />
e no Renascimento, podem ser um ponto<br />
de partida seguro para o desenvolvimento de<br />
nossa abordagem. No livro o autor afirma que<br />
no período carnavalesco, na Europa Medieval,<br />
se instauraria uma outra ordem social marcada<br />
pela abolição das relações hierárquicas:<br />
Em conseqüência, essa eliminação provisória, ao<br />
mesmo tempo ideal e efetiva, das relações hierárquicas<br />
entre os indivíduos, criava na praça<br />
pública um tipo particular de comunicação, inconcebível<br />
em situações normais. Elaboravamse<br />
formas especiais do vocabulário e do gesto<br />
da praça pública, francas e sem restrições, que<br />
aboliam toda a distância entre os indivíduos em<br />
comunicação, liberados das normas correntes da<br />
etiqueta e da decência. Isso produziu o aparecimento<br />
de uma linguagem carnavalesca típica, da<br />
qual encontraremos numerosas amostras em<br />
Rabelais. (BAKHTIN, <strong>19</strong>87, p.9)<br />
Os festejos carnavalescos ocupavam lugar<br />
de destaque na Europa Medieval; a alegria, o<br />
gosto pela festa e o sentimento de liberdade<br />
germinavam e enraizavam-se nos burgos, sendo<br />
parte integrante, inclusive das solenidades<br />
religiosas. Além do Carnaval propriamente dito,<br />
uma série de celebrações cômicas e ritos festivos<br />
faziam parte do cotidiano europeu durante<br />
a Idade Média, marcando a sucessão das estações,<br />
a semeadura, o nascimento e a morte<br />
como expressões de ritos de passagem. Segundo<br />
Bakhtin, não se pode esquecer da festa<br />
dos tolos, da festa do asno, do riso pascal e<br />
de quase todas as festas religiosas realizadas<br />
com forte participação popular e em um ambiente<br />
carnavalesco. Todos esses ritos e espetáculos<br />
criavam, segundo Bakhtin, uma dualidade<br />
do mundo, de um lado as cerimônias oficiais,<br />
de outro, os cultos carnavalescos, cômicos, dominados<br />
pelo riso, “um segundo mundo e uma<br />
segunda vida aos quais os homens da idade<br />
Média pertenciam em maior ou menor proporção,<br />
e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas”<br />
(<strong>19</strong>87, p.4).<br />
É importante observar que o ponto de vista<br />
de Bakhtin não é unânime. Analisando a mesma<br />
problemática estudada por Bakhtin, Jacques<br />
Heers (<strong>19</strong>87), em seu trabalho Festas de Loucos<br />
e Carnavais, segue caminho inverso. Para<br />
Heers, a hierarquia do poder local, as querelas<br />
políticas e os valores dominantes estão presentes<br />
nas festas carnavalescas.<br />
Muitos autores tentaram aproximar as interpretações<br />
de Bakhtin da realidade brasileira,<br />
como o antropólogo Roberto DaMatta ao estudar<br />
o carnaval carioca (<strong>19</strong>73). Para DaMatta,<br />
o Carnaval parece ser uma instituição que permite<br />
a visão do Brasil como uma grande<br />
communitas, “onde raças, credos, classes e ideologias<br />
comungam pacificamente ao som do<br />
samba e da miscigenação racial” (<strong>19</strong>73, p.123).<br />
O ritual carnavalesco possibilitaria o rompimento<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003<br />
137
Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />
com a formalidade cotidiana, através da criação<br />
de um espaço especial onde todos poderiam<br />
permanecer sem preocupações de relacionamento<br />
ou filiação. Por outro lado, outros autores,<br />
a exemplo de Maria Isaura Pereira de<br />
Queiroz, afirmam que no carnaval brasileiro a<br />
ordem não é subvertida (QUEIROZ, <strong>19</strong>95). Da<br />
mesma forma, existiria uma nítida separação<br />
entre atores e expectadores e os foliões saberiam<br />
o seu lugar na festa de acordo com os papeis<br />
que desempenham.<br />
Acreditamos que, concretamente, a Lavagem<br />
do Bonfim guarda muito do segundo mundo<br />
próprio da Idade Média. A festa é “subversiva”<br />
desde a temporalidade: é um carnaval<br />
fora de época. A “lavagem” ocorre antes do<br />
Carnaval oficial e é um carnaval que questiona<br />
a ordem, desconhecendo a distinção entre<br />
atores e espectadores, todos participam efetivamente<br />
do ritual, criando um lapso espacial e<br />
temporal marcado por universalidade, liberdade,<br />
igualdade e, porque não dizer, abundância<br />
(BAKHTIN, <strong>19</strong>87, p.8). Os participantes vivem<br />
efetivamente os festejos da Lavagem do<br />
Bonfim, não são assistentes passivos. A festa é<br />
um momento de transgressão, de liberação, de<br />
abolição de hierarquias, de regras e de tabus<br />
que se mantêm renitentes no cotidiano dos<br />
baianos.<br />
Ao nosso ver, as características lúdico-festivas<br />
da Lavagem do Bonfim autorizam uma<br />
interpretação do ritual nos moldes propostos por<br />
Bakhtin (<strong>19</strong>87). Observamos que, não obstante<br />
as tentativas de enquadramento da lavagem na<br />
“ordem”, em especial as investidas da indústria<br />
cultural (ORTIZ, <strong>19</strong>89) no sentido de circunscrever<br />
os festejos numa lógica que leva em<br />
consideração as forças do mercado, a Lavagem<br />
do Bonfim resiste aos assédios da ordem.<br />
Os foliões continuam decidindo como irão participar.<br />
Os próprios organizadores, mesmo preocupados<br />
com a quebra de barreiras tidas como<br />
intransponíveis, evitam ações que firam o caráter<br />
universal da festa: a Lavagem do Bonfim<br />
é um ritual de todos os baianos. A lei que preside<br />
a festa é a lei da liberdade. A lavagem,<br />
com o seu cortejo, é um momento especial da<br />
vida dos baianos, uma festa que celebra a<br />
baianidade, concepção de vida que possui um<br />
forte conteúdo étnico/religioso, marcado por<br />
elementos da chamada identidade cultural afrobrasileira,<br />
envolvida por uma alternância entre<br />
o sagrado e o profano, uma concepção de mundo<br />
que não separa a alegria e o sagrado e a<br />
principal barreira que os participantes quebram<br />
esta ligada às relações hierárquicas vinculadas<br />
à própria Religião Católica. A marca maior da<br />
festa é a busca de uma relação mais próxima<br />
com o sagrado por parte dos participantes que<br />
saem às ruas da cidade em busca do Axé 2 , liberado<br />
pelas baianas 3 que realizam a lavagem<br />
simbólica do santuário. O clima é de alternância<br />
entre o sagrado e o profano, o clima religioso e<br />
a festa carnavalizada fazem parte do mesmo<br />
ritual. A lavagem poderia, então, ser uma espécie<br />
de “carnaval medieval” onde o sagrado<br />
confunde-se com o profano, as hierarquias são<br />
abolidas e as classes sociais e idades dos participantes<br />
se indiferenciam (BAKHTIN, <strong>19</strong>87,<br />
p.2<strong>19</strong>).<br />
O RITO<br />
Em primeiro lugar, o que é um rito? Segundo<br />
Cazeneuve ([<strong>19</strong>-?]), o rito está carregado<br />
de inércia, tributo pago em função de sua resistência<br />
à mudança. O rito é um ato que sempre<br />
permanece fiel a certas regras que constituem<br />
precisamente o que há nele de ritual, mesmo<br />
sendo bastante flexível para comportar uma<br />
margem de improvisação. Quando tomamos<br />
parte de um ritual expressamos a nossa participação<br />
em uma determinada ordem social. O<br />
ritual, segundo Durkheim (<strong>19</strong>89), está no núcleo<br />
da religião e é o que torna possível a própria<br />
ordem social e moral. A Lavagem do Bonfim<br />
é, entre outras coisas, um rito comemorativo<br />
que se insere em um determinado tempo histórico,<br />
celebrando a identidade cultural baiana,<br />
2<br />
Axé: “Energia que tudo transpassa, movimenta e possibilita.”<br />
(BERKENBROCK, <strong>19</strong>97, p.259-267).<br />
3<br />
As participantes do ritual são em sua maioria baianas do<br />
acarajé. Constatamos na pesquisa de campo que a maioria<br />
das baianas está vinculada aos terreiros das religiões afrobrasileiras.<br />
138 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003
Eduardo Alfredo Morais Guimarães<br />
a “baianidade”. O ritual reproduz o mundo vivido<br />
pelos baianos, mas também se insere em<br />
outro mundo, possuidor de uma lógica própria<br />
apontando modos alternativos de comportamento,<br />
um mundo sagrado capaz de captar e manejar<br />
forças numinosas 4 . O ritual da lavagem expressa<br />
a forma como uma sociedade dividida<br />
em diversos domínios e éticas encontra sua totalidade,<br />
ou, utilizando as palavras de Roberto<br />
DaMatta numa afirmação de base genuinamente<br />
durkheimiana, “... os rituais servem, sobretudo<br />
na sociedade complexa, para promover a<br />
identidade social e construir o seu caráter”<br />
(<strong>19</strong>79, p.24). Sem dúvida, é impossível pensar<br />
a cidade do Salvador sem suas Lavagens e, mais<br />
impossível ainda, pensar a cidade sem a Lavagem<br />
do Bonfim.<br />
As reflexões de Van Gennep (<strong>19</strong>78) sobre<br />
os ritos de passagem são esclarecedoras. No<br />
ritual os participantes são convidados a tomar<br />
um banho purificador, se purificam, se lavam<br />
e se limpam. Inegavelmente, o ritual está relacionado<br />
com as manifestações religiosas afrobrasileiras.<br />
O contato com as águas de cheiro<br />
das baianas garante uma imersão purificadora,<br />
são as águas de Oxalá 5 , orixá da criação. As<br />
águas simbolizam regeneração, operando um<br />
renascimento através do axé de Oxalá, energia<br />
que garante a dinâmica da vida. O simbolismo<br />
da água como fonte de pureza, fertilidade e<br />
vida surge com toda força (BRUNI, <strong>19</strong>94, p.64).<br />
O ritual assinala o início de um novo ciclo temporal<br />
que deve ser marcado pela harmonia.<br />
Como toda atividade religiosa das religiões Afro-<br />
Brasileiras, a lavagem significa uma troca. A<br />
maior oferenda dos participantes é o sacrifício<br />
de seguir o trajeto do cortejo a pé – que tem fé<br />
vai a pé!, afirmam os participantes.<br />
Como nas danças rituais realizadas nos terreiros,<br />
o ritual da lavagem tem o seu ponto focal<br />
na mulher. São baianas dos candomblés,<br />
casas de Umbanda, ou mesmo baianas de outros<br />
credos, que com graça e impetuosidade<br />
seguem dançando pelas ruas acompanhadas de<br />
perto pelo Afoxé Filhos de Gandhy, seguindo o<br />
toque do gexá. Os dirigentes do Afoxé seguem<br />
de perto o grupo de baianas e, com a participação<br />
ativa dos integrantes da agremiação, procuram<br />
suprir as necessidades do cortejo. O ritmo<br />
seguido é o mesmo ritmo litúrgico dos terreiros<br />
e possibilita a distribuição do axé de Oxalá.<br />
O rito aparece, então, como um processo conjuntivo<br />
que objetiva, não obstante as distensões<br />
existentes na sociedade, manter a harmonia do<br />
participante individual, da comunidade e do próprio<br />
universo. O sacrifício ou a oferenda é<br />
dedicada ao Senhor do Bonfim, identificado com<br />
o Orixá do Candomblé, Oxalá, em virtude de<br />
homologias entre os respectivos arquétipos. De<br />
um lado, Senhor do Bonfim, Jesus Cristo, o filho<br />
de Deus; de outro, Oxalá, o mais poderoso<br />
dos orixás, responsável por toda a criação.<br />
Observamos, então, o caráter singular da prática<br />
religiosa dos participantes, que procuram interpretar<br />
o ritual à sua maneira. Eles são na<br />
sua maioria católicos, mas podem ser também<br />
de Candomblé, de Umbanda, Espíritas, ou mesmo<br />
sem religião. Para os praticantes das religiões<br />
afro-brasileiras, a religião abarca todas<br />
as esferas da vida e a lavagem surge como um<br />
ritual que transmite axé indispensável à dinamicidade<br />
da própria vida.<br />
O Senhor do Bonfim pode ser um símbolo<br />
pertencente ao universo simbólico católico; no<br />
entanto, não há incongruência no seu culto por<br />
parte dos adeptos das religiões afro-brasileiras.<br />
O campo simbólico/religioso em questão é marcado<br />
pela “interculturalidade” e modelos míticos<br />
e litúrgicos correlacionam-se de maneira analógica.<br />
O Senhor do Bonfim é identificado com o<br />
orixá do Candomblé, Oxalá, mas esta identificação<br />
parece resumir-se numa analogia entre<br />
os arquétipos e esta analogia tem limites. Os<br />
festeiros não transferem para o Senhor do<br />
Bonfim os mitos ligados ao orixá do Candomblé;<br />
da mesma forma, não acreditamos que algum<br />
festeiro acredite que Oxalá foi crucifica-<br />
4<br />
Termo utilizado por K. Otto, experiências provocadas<br />
pela revelação de um aspecto do poder divino... (citado<br />
por Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano: a essência das<br />
religiões. Lisboa: Livros do Brasil, [<strong>19</strong>-?], p. 24.)<br />
5<br />
Oxalá é o primeiro dos Orixás, recebeu de Olorum, deus<br />
supremo, criador de todos os orixás (Cf. VERGER, <strong>19</strong>81,<br />
p.21-22), a tarefa de criar a terra com tudo em que nela<br />
existe.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003<br />
139
Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />
do! Um observação atenta revela o fervor dos<br />
devotos que rendem homenagens ao Senhor do<br />
Bonfim e pedem bênçãos à Oxalá. Para os católicos<br />
mais dogmáticos esta atitude é incorreta<br />
e até mesmo uma profanação, mas é justamente<br />
uma postura “ecumênica” e “tolerante” que<br />
impera entre a maioria dos leigos, afiliados incorporados<br />
legitimamente à Igreja Católica. O<br />
Catolicismo Popular admitiu, assim, no seu seio,<br />
o povo de santo e sua maneira festiva de viver<br />
a religião. Os Deuses africanos não foram vencidos<br />
e estão presentes no próprio universo simbólico<br />
da Igreja Católica, mas os conjuntos simbólicos<br />
mantêm-se distintos e, certamente, o<br />
mais importante, se os adeptos das religiões<br />
afro-brasileiras se retirassem da lavagem, seria<br />
provavelmente o fim do rito.<br />
Observamos que situações de conflito, envolvendo<br />
grupos rivais, são comuns e o conflito<br />
pode, em muitos casos, localizar-se no coração<br />
do próprio rito, chegando mesmo a reforçar as<br />
assimetrias existentes no universo social sem,<br />
no entanto, deixar de realçar o coletivo, a baianidade.<br />
Não podemos, portanto, menosprezar<br />
as “intenções políticas” presentes na lavagem.<br />
Na hora da luta política a lavagem assume as<br />
características de um jogo de competições que<br />
exalta as rivalidades. A direção do movimento<br />
ritual volta-se para as distensões existentes no<br />
universo social. A festa exalta os poderes dos<br />
grupos que impõem pela sua participação o seu<br />
lugar na “cidade e na sociedade política”<br />
(HEERS, <strong>19</strong>87, p.17). Em determinados momentos,<br />
a lavagem também é uma “cerimônia<br />
do triunfo”, um cortejo triunfal que conduz os<br />
vencedores das contendas políticas, bastante<br />
significativo quando ocorrem mudanças políticas<br />
expressivas.<br />
Vejamos mais de perto como as mudanças<br />
políticas podem influenciar na realização da<br />
Lavagem do Bonfim,<br />
No ano de <strong>19</strong>87, o Jornal Tribuna da Bahia,<br />
de 16 de janeiro, circulou com a seguinte manchete:<br />
“Maior cortejo de toda a história da festa<br />
durou 5 horas em direção à Colina”. O ponto<br />
focal da festa era do Governador eleito pelas<br />
oposições, Waldir Pires, que, através da “sagração”<br />
pelas bênçãos das baianas, fortalecia-se<br />
para a jornada de quatro anos à frente do Governo<br />
do Estado. Cerca de 500 baianas participaram<br />
da lavagem, segundo a matéria publicada<br />
pelo jornal, em meio a mais de 600 mil pessoas<br />
que acompanhavam o ritual.<br />
A lavagem ocorreu em um momento importante<br />
da vida política do Estado da Bahia e o<br />
rito adquiriu, então, um sentido claro de “liturgia<br />
política”, como um momento de “sagração” de<br />
uma “nova ordem” construída a partir da vitória<br />
das oposição nas eleições para o Governo<br />
do Estado. O simbolismo da Lavagem do Bonfim,<br />
rito que celebra a instauração de um novo<br />
ciclo temporal, acompanhado nos momentos<br />
cruciais – lavagem das escadarias da igreja pelas<br />
baianas – por uma simbólica da limpeza e da<br />
purificação, fundia-se, então, com o entusiasmo<br />
popular pela vitória. A cerimônia celebrava,<br />
de fato, uma ordem a ser instaurada e o governador<br />
eleito – Waldir Pires – e seus seguidores<br />
monopolizaram as atenções em praticamente<br />
todos os momentos da “longa caminhada”.<br />
Na Lavagem de janeiro de <strong>19</strong>91, os pedidos<br />
dos baianos para a paz no Golfo Pérsico dominaram<br />
as atenções, ressaltando o caráter universal<br />
do ritual. Associações de classe, partidos<br />
políticos, associações carnavalescas, hotéis,<br />
agências de turismo e os mais diversos “grupos”<br />
faziam-se presentes ao cortejo, através de<br />
camisetas brancas, faixas e adesivos alusivos à<br />
paz no Golfo Pérsico. Constataram-se, ainda,<br />
mensagens pela recuperação de Irmã Dulce,<br />
“a mãe dos baianos”, religiosa que se destacou<br />
por seu trabalho pelos pobres. Faixas colocadas<br />
pela comissão, ao longo do trajeto, pediam<br />
“silêncio para Irmã Dulce” nas proximidades<br />
do Hospital Santo Antonio. A atividade ritual,<br />
sob suas diversas formas, conjugava naquele<br />
momento o participante individual, a comunidade<br />
e o próprio universo. Contrariando as expectativas<br />
da Comissão, nem o governador do<br />
Estado, nem o prefeito da capital participaram<br />
do evento e dentre os políticos que participavam<br />
do cortejo (e eram muitos) apenas o Deputado<br />
Federal Manoel Castro, virtual candidato<br />
a prefeito da capital, nas eleições de <strong>19</strong>92,<br />
acompanhou as baianas até o adro da igreja.<br />
Constatava-se, assim, um “esvaziamento” da<br />
140 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003
Eduardo Alfredo Morais Guimarães<br />
lavagem e este esvaziamento deveu-se, sobretudo<br />
ao caráter intermediário do governo. O<br />
governador Nilo Coelho – eleito Vice-Governador<br />
em <strong>19</strong>86 – estava deixando o cargo e o<br />
governador eleito (em <strong>19</strong>90), Antonio Carlos<br />
Magalhães, preparava-se para assumir o governo.<br />
Por outro lado, o Prefeito de Salvador,<br />
Fernando José, era apontado por todas as pesquisas<br />
de opinião como o “pior prefeito do Brasil”.<br />
Sua popularidade estava em baixa. Outros<br />
políticos, talvez atentos às acusações de manipulação,<br />
preferiram acompanhar o cortejo sem<br />
um envolvimento maior com a parte das baianas<br />
e a lavagem do adro da Igreja.<br />
Na Lavagem de <strong>19</strong>92 ocorreu a “sagração<br />
de um novo governo”, eleito com expressiva<br />
votação. Observávamos, então, a efetivação de<br />
um ritual de “sagração” de uma nova ordem.<br />
Era a primeira lavagem após a posse do Governador<br />
do Estado, Antonio Carlos Magalhães,<br />
eleito em <strong>19</strong>90. Um novo ciclo temporal – os<br />
quatro anos de mandato do governador – iniciava-se<br />
e Antonio Carlos Magalhães, celebrando<br />
o seu governo, num ato coletivo de comunhão,<br />
participava dos momentos mais significativos do<br />
ritual: a partida do cortejo na Conceição da Praia<br />
e a lavagem do Adro da Igreja. Assistimos, então,<br />
à realização de uma das maiores lavagens<br />
da história da devoção e a cerimônia reforçava<br />
as mudanças políticas ocorridas no Estado em<br />
função do resultado das eleições. O governador,<br />
juntamente com seus principais correligionários,<br />
caminhava ao lado das baianas buscando<br />
uma identificação com o lado negro da festa.<br />
O governo definia naquele momento uma<br />
linha de ação que privilegiaria durante todo o<br />
governo uma aproximação com as manifestações<br />
culturais afro-brasileiras existentes no<br />
Estado, encaradas com rico manancial para as<br />
políticas públicas na área do turismo.<br />
O ritual situa-se, assim, entre a arte e a vida<br />
cotidiana. Os participantes não se restringem a<br />
assistir passivamente ao cortejo e à lavagem simbólica<br />
do santuário; eles vivem efetivamente o<br />
ritual, pois a Lavagem do Bonfim é uma festa de<br />
todos em Salvador. É uma “segunda vida do povo”<br />
da cidade (BAKHTIN, <strong>19</strong>87), um momento especial<br />
da existência onde não há lugar para atores<br />
e expectadores; todos celebram, de alguma<br />
forma, as mudanças concretas ou, simplesmente,<br />
imaginárias. No ritual os baianos partilham<br />
uma identidade toda particular; vivem um momento<br />
fora do cotidiano, seguindo as reflexões<br />
de Victor Turner (<strong>19</strong>79, p.118), “... ´momento situado<br />
dentro e fora do tempo’, dentro e fora da<br />
estrutura social profana”, que revela assimetrias<br />
existentes na sociedade.<br />
Talvez a Lavagem do Bonfim seja o único<br />
“carnaval” que tem um sujeito, um símbolo focal<br />
que orienta os participantes, ou seja, que<br />
tem “um dono”, e o Senhor Bom Jesus do Bom<br />
Fim ou o orixá do Candomblé, Oxalá, é o “dono”<br />
desta festa. É precisamente isso que faz da lavagem<br />
um dos momentos mais ricos da vida<br />
ritual da cidade do Salvador. Embora a festa<br />
tenha um “dono”, mantém-se “festa de todos”.<br />
Como Carnaval, o ponto chave é a sua organização<br />
praticamente independente do poder público<br />
e das autoridades religiosas. Observa-se<br />
ainda que o cortejo é um desfile polissêmico, no<br />
sentido de congregar participantes das mais diversas<br />
matizes, pois são católicos, guardiões da<br />
ortodoxia ou não, espíritas, candomblecistas,<br />
umbandistas e muita gente de “outras” religiões,<br />
sem religião, ou que fazem a sua religião. Os<br />
participantes, como no carnaval, organizam-se<br />
em grupos, embora estes grupos não tenham<br />
um caráter permanente, não sejam “blocos” no<br />
sentido de algo compacto, sólido (DAMATTA,<br />
<strong>19</strong>79, p.98). São, na verdade, grupos ordenados<br />
de maneira muito mais livre e alicerçados,<br />
principalmente, nas camisetas que aparecem,<br />
então, como um modo de dizer algo à sociedade.<br />
Essa característica surge, então, como um ponto<br />
muito importante, quando nos damos conta de<br />
que os participantes destes grupos identificamse<br />
com as mensagens expressas nas camisetas<br />
e, mais ainda, quando percebemos que estas pessoas,<br />
ligadas por laços profissionais, de militância<br />
política, ou simplesmente organizadas para a lavagem,<br />
não estão ali só para “brincar”, mas também<br />
para “participar” do ritual, dialogando de<br />
alguma forma com a sociedade.<br />
Por outro lado, a lavagem possui também<br />
características de “procissão religiosa” e o alvo<br />
do cortejo são os pedidos de proteção ao Se-<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003<br />
141
Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />
nhor Bom Jesus do Bom Fim e as “obrigações”<br />
com Oxalá. Como toda procissão, antes da saída<br />
do cortejo, os “participantes” são convidados<br />
a assistirem uma Missa, celebrada na Igreja<br />
de Nossa Senhora da Conceição da Praia,<br />
ou melhor, eram convidados, pois a missa foi<br />
suspensa por determinação do Arcebispo da<br />
Bahia, Dom Lucas Moreira Neves, no início dos<br />
anos <strong>19</strong>90. No centro do cortejo está a “parte<br />
das baianas”, comprimidas pela multidão que<br />
insiste em acompanhá-las, até as escadarias do<br />
santuário. Este núcleo, apesar dos esforços dos<br />
organizadores, permanece formado por um conjunto<br />
desordenado do qual participam as autoridades,<br />
as baianas e gente do povo que consegue<br />
furar o cordão de isolamento. Observamos,<br />
ainda, que, ao contrário das procissões religiosas,<br />
não existem andores carregados pelos<br />
membros de confrarias religiosas, autoridades<br />
civis ou militares, não existindo, portanto, imagens<br />
de santo que são intermediadas pelas autoridades.<br />
A multidão de devotos segue em<br />
direção à Colina Sagrada, cortando o centro<br />
financeiro da cidade do Salvador, uma região<br />
do espaço urbano dominado pelo capital financeiro,<br />
“participando” efetivamente do ritual, reconhecendo<br />
o poder das autoridades, talvez,<br />
mas, acima de tudo, expressando todo o seu<br />
poder. O território do trabalho e da fadiga dá<br />
lugar para o território da dança e do prazer.<br />
O cortejo é seguido de perto pelas autoridades<br />
policiais. As instituições financeiras e demais<br />
empresas que operam na área do comércio<br />
reforçam a segurança, isolando as fachadas<br />
dos prédios com tapumes. O cortejo é também<br />
um perigo para a cidade; o território do<br />
trabalho, da fadiga, espaço mais “produtivo”<br />
da sociedade capitalista é invadido pelo carnaval,<br />
pela dança e pelo prazer. O Estado, através<br />
do seu poder de polícia, opera como árbitro<br />
orientando a ocupação do espaço, determinando<br />
o que pode e o que não pode acontecer.<br />
A Lavagem do Bonfim celebra a mudança.<br />
O rito marca a entrada em um novo período<br />
temporal. O conteúdo simbólico da lavagem leva<br />
as marcas da cerimônia das Águas de Oxalá,<br />
águas para lavar Oxalá – lavagem dos axés de<br />
Oxalá –, realizada nos terreiros de Candomblé,<br />
particularmente os de origem Kêto. Segundo<br />
Pierre Verger (<strong>19</strong>81, p.261):<br />
... os descendentes de africanos, movidos por<br />
um sentimento de devoção, tanto ao Cristo como<br />
ao Deus africano, fizeram uma aproximação entre<br />
as duas lavagens: a dos axés de Oxalá e aquela<br />
do solo da igreja que leva o nome católico do<br />
mesmo orixá.<br />
Não podemos esquecer que as “Baianas do<br />
Candomblé”, com seus trajes típicos, são o centro<br />
focal do cortejo e, principalmente, da lavagem<br />
simbólica do Adro da Igreja. Da mesma<br />
forma, as águas utilizadas na lavagem do Adro<br />
da Igreja – Águas de Cheiro – são preparadas<br />
seguindo rituais próprios das religiões afro-brasileiras.<br />
Por outro lado, a Lavagem, como o<br />
Carnaval, se situa numa escala cronológica<br />
cíclica, independente de datas fixas 6 , uma cronologia<br />
cósmica, diretamente relacionada com<br />
as divindades (DAMATTA, <strong>19</strong>79, p.43).<br />
Acreditamos que é possível compreender<br />
agora as ações das autoridades públicas no sentido<br />
de enquadrar a Lavagem na “ordem”. O<br />
Estado, em nome dos empresários do setor cultural<br />
e, em particular, do turismo, surge hoje<br />
como principal incentivador da lavagem, mas<br />
também como o maior repressor do desregramento.<br />
Nesta nova fase assistimos ao predomínio<br />
de uma lógica comercial que busca a padronização<br />
do cortejo com o “congelamento”<br />
da carnavalização, estreitamente vinculada às<br />
festas religiosas de origem ibérica e um forte<br />
incentivo às manifestações de raízes africanas.<br />
No entanto, há uma diferença importante<br />
entre um sanduíche que se compra na rede Mac<br />
Donalds e uma festa religiosa. As manifestações<br />
culturais são um espaço de luta e distinção<br />
e as diferenças funcionam como signos<br />
distintivos. As ações dos poderes públicos e da<br />
própria indústria cultural não conseguem circunscrever<br />
o ritual ao espaço exclusivo das religiões<br />
afro-brasileiras, em particular a reverência de<br />
um culto à Oxalá. Não conseguem disciplinar e<br />
enrijecer completamente a Lavagem do Bonfim,<br />
mas as manifestações mais carnavalizadas se<br />
6<br />
A Festa do Bonfim ocorre no segundo domingo depois<br />
da Epifania (Festa de Reis).<br />
142 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003
Eduardo Alfredo Morais Guimarães<br />
tornam cada vez mais difíceis e os espaços são<br />
abarcados com rapidez pela lógica comercial<br />
(ORTIZ, <strong>19</strong>89). As últimas modificações introduzidas<br />
no cortejo da lavagem, em nome do<br />
respeito às tradições, amenizaram o “carnaval”<br />
retirando o som eletrizante dos trios elétricos<br />
da festa. Concretamente, as investidas da<br />
industria cultural significaram uma certa perda<br />
de sentido.<br />
A lavagem com seu cortejo se apodera de<br />
todos os espaços onde possa instalar-se: as ruas,<br />
as praças, as casas com suas varandas e quintais,<br />
tudo que serve para o encontro dos participantes.<br />
A carnavalização possui o seu aspecto<br />
de potlach endereçado às forças mágico-religiosas<br />
que dão significado ao ritual. O consumo<br />
de energias no verdadeiro delírio barroco<br />
provocado pelo som eletrizante dos trios-elétricos<br />
injeta no ritual momentos ímpares de efervescência.<br />
É a festa no sentido pleno que pode<br />
assolar e destruir, desprezando as barreiras<br />
sociais. Como nas sociedades tradicionais, não<br />
são indivíduos, e sim coletividades que se encontram<br />
e a essência do encontro é o estabelecimento<br />
de um contrato construído a partir do<br />
conceito de troca-dádiva. 7<br />
ENTRE A PRODUÇÃO E A INVENÇÃO<br />
DA CIDADE<br />
Hoje, é impossível pensar a capital do Estado<br />
da Bahia sem as suas festas populares e,<br />
acima de tudo, sem a cadência dos ritmos do<br />
povo negro. É impossível também pensar a grande<br />
maioria das festas sem suas “lavagens” e,<br />
conseqüentemente, sem as baianas que efetivamente<br />
realizam o ritual de limpeza e purificação.<br />
Por surpreendente, mesmo paradoxal, que<br />
pareça, é impossível separar estas festas das<br />
comemorações em louvor aos santos da Igreja<br />
Católica. Não é fácil, portanto, para o antropólogo,<br />
com seus olhares e ouvidos “disciplinados”,<br />
realizar uma percepção científica dos rituais<br />
que marcam a identidade da cidade do<br />
Salvador (OLIVEIRA, <strong>19</strong>98, p.18).<br />
Os espaços rituais da cidade são marcados<br />
por relações de identidade e alteridade, são lugares<br />
onde os habitantes constroem e reconstroem<br />
identidades particulares balizadas pela<br />
relações sociais cotidianas e pela história. Nestes<br />
lugares dá-se um reconhecimento da<br />
alteridade que articula a organização social. Não<br />
é possível, portanto, compreender as ações do<br />
poder público na arena da política cultural sem<br />
analisar de perto a sua participação na organização<br />
destes espaços rituais.<br />
O reconhecimento do caráter negro da cidade<br />
do Salvador já faz parte do discurso oficial.<br />
As manifestações culturais do povo negro<br />
são a “alma” da cidade, afirmam dirigentes de<br />
órgãos de turismo veiculados ao poder municipal.<br />
No entanto, toda esta cultura é também<br />
folclore, verdadeira prisão reservada ao povo<br />
negro alegre e festeiro, qualidades atribuídas<br />
geneticamente ao grupo a partir da raça, apimentadas,<br />
portanto, com concepções racistas<br />
(MONTES, <strong>19</strong>96, p.53). Assim, as elites brancas<br />
que governam a cidade convivem com esta<br />
gente que, além de ser maioria, consegue redefinir<br />
a cidade como um lugar de identidade partilhada,<br />
habitado majoritariamente pelo povo<br />
negro, a Roma Negra, segundo intelectuais e<br />
ativistas do próprio movimento negro. Mas, os<br />
poderes públicos agem também no sentido de<br />
conter os excessos, pois em algum momento<br />
eles poderão efetivamente acrescentar às suas<br />
“qualidades” características indesejáveis ao tentar<br />
escapar à prisão reservada aos marginalizados.<br />
A partir dos últimos anos do século XX os<br />
poderes públicos começaram a atuar com muito<br />
mais vigor na organização dos espaços rituais,<br />
buscando circunscrever as manifestações<br />
a partir de uma identidade negra particular da<br />
cidade. Os órgãos de turismo passaram, então,<br />
a intervir diretamente na estrutura organizativa<br />
7<br />
O termo potlach é utilizado aqui em conformidade com<br />
o trabalho de Marcel Mauss “Ensaios sobre o dom”<br />
(<strong>19</strong>74). Mauss retirou o termo da língua chinook. O seu<br />
significado é essencialmente alimentar, consumir e está<br />
ligado a uma forma de troca, uma troca-dádiva que possui<br />
como função primordial unir grupos e afastar hostilidades.<br />
Com a utilização do termo procuramos realçar o caráter<br />
agonístico do ritual, observado na exuberância e na<br />
fartura que marcam a atuação dos grupos nos principais<br />
momentos da festa.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003<br />
143
Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />
das festas populares, influenciando, inclusive,<br />
na própria produção de sentido destas festas.<br />
Uma das mais importantes festas populares/<br />
religiosas de Salvador, a Lavagem do Bonfim,<br />
foi o alvo privilegiado. No ano de <strong>19</strong>98, a Prefeitura,<br />
com o apóio da Comissão dos Festejos<br />
Populares da Lavagem do Bonfim, com a<br />
anuência da Associação dos Blocos de Trios e<br />
com o aval dos empresários vinculados à Indústria<br />
do Turismo, decidiu transferir para a<br />
bairro da Barra o som eletrizante dos trios elétricos,<br />
segregando espacial e temporalmente o<br />
carnaval. A nova festa passou a ser realizada<br />
no sábado posterior à quinta-feira da lavagem<br />
e foi nomeada de Farolfolia. Observamos, que<br />
contrariamente à concepção que imperava no<br />
Carnaval da Lavagem, o Farolfolia, além de<br />
servir de vitrine para as associações carnavalescas,<br />
passou a conferir altos lucros aos blocos<br />
que passaram a participar do evento. Uma<br />
organização exemplar garantia a ordem na festa<br />
e toda segurança aos turistas que visitavam<br />
a cidade. O caráter singular do Carnaval da<br />
Lavagem, com seu aspecto de potlach endereçado<br />
às forças mágico-religiosas, foi negligenciado<br />
pelos promotores da festa. No cortejo,<br />
um rito em louvor ao Orixá do Candomblé,<br />
Oxalá, deveria imperar contrição e respeito.<br />
No ano seguinte, em <strong>19</strong>99, a EMTURSA,<br />
Empresa de Turismo de Salvador, outorgou à<br />
Associação das Baianas de Acarajé – ABA,<br />
entidade criada no ano de <strong>19</strong>92, a partir de gestões<br />
da própria empresa de turismo, com o objetivo<br />
de disciplinar o comércio de acarajé na<br />
cidade, a responsabilidade pela organização do<br />
cortejo. Seguindo orientações da EMTURSA,<br />
os diretores da Associação passaram a realizar<br />
o contato com as baianas, filiadas e não filiadas<br />
à associação, e a encaminhar a relação dos<br />
participantes ao órgão de turismo que providenciava<br />
o pagamento de uma espécie de jeton pela<br />
participação na lavagem. A ABA passou, assim,<br />
a disputar com a Federação Baiana do Culto<br />
Afro-Brasileiro a organização do cortejo das<br />
baianas, o que acirrou a rivalidade já existente<br />
entre as duas entidades. Convém ressaltar, ainda,<br />
que a Federação não aceita a ingerência da<br />
ABA na organização do comércio de Acarajé<br />
na cidade, realizado, em muitos casos, por<br />
baianas vinculadas às Casas de Candomblé.<br />
Observamos, ainda, que a alteração introduzida<br />
vem ameaçando o aspecto religioso do ritual da<br />
lavagem, na medida em que a associação está<br />
voltada exclusivamente para a comercialização<br />
dos quitutes produzidos pelas baianas. 8<br />
Na última lavagem do milênio, em janeiro<br />
de 2000, os empresários vinculados ao setor<br />
cultural trouxeram o carnaval de volta à quintafeira<br />
do Bonfim, despindo-o, no entanto, do seu<br />
caráter de potlach. A Bahia Marina, localizada<br />
na Avenida do Contorno, nas proximidades da<br />
Igreja da Conceição da Praia, organizou um<br />
grande grito de carnaval, na quinta-feira da lavagem,<br />
o “Bonfim Light”. A festa começou<br />
logo após a saída do cortejo e contou com a<br />
participação de cerca de 10 mil foliões que brincaram<br />
nos 9 mil metros quadrados do estacionamento<br />
da marina até à noite. O local foi cercado<br />
por tapumes e um grande contingente de<br />
seguranças garantiu a tranqüilidade dos foliões<br />
que pagaram R$40,00 para ter acesso à festa.<br />
O carnaval voltou à Lavagem do Bonfim, mas<br />
ficou segregado espacialmente – não interfere<br />
mais na rotina do centro financeiro da cidade –<br />
e, socialmente, apenas os foliões que podem<br />
pagar o ingresso tem acesso à festa.<br />
Sem dúvida, a Lavagem do Bonfim, como<br />
outras festas populares da cidade do Salvador,<br />
estão sofrendo profundas mudanças e estas<br />
mudanças estão interferindo na própria identidade<br />
da cidade. Não cabe aqui um apelo a nostalgia,<br />
muitas manifestações culturais desaparecem,<br />
ou transformam-se e as transformações<br />
são, muitas vezes, inevitáveis. A festa que nós<br />
estamos vendo não é mais aquela que estávamos<br />
acostumados a ver. No entanto, acreditamos<br />
que as ações dos poderes públicos, incentivando<br />
a comercialização dos principais espaços,<br />
garantindo altos lucros aos produtores culturais<br />
que investem na realização do evento e<br />
aos empresários do setor de turismo representam<br />
uma ameaça contra a linguagem da identidade.<br />
Conforme afirma Marc Augé (<strong>19</strong>94), a<br />
8<br />
A Associação está voltada para a capacitação profissional<br />
das vendedoras de Acarajé.<br />
144 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003
Eduardo Alfredo Morais Guimarães<br />
atividade ritual tem por objetivo essencial estabelecer,<br />
reproduzir ou renovar as identidades<br />
individuais e coletivas. É preciso acrescentar<br />
que o processo de formação de identidades está<br />
no cerne das relações que os habitantes estabelecem<br />
com a sua cidade. A substituição do<br />
caráter utópico do ritual pelo permitido tem<br />
correspondido a um enfraquecimento da lógica<br />
simbólica da festa, a uma falha no par identidade/alteridade<br />
utilizando as palavras de Marc<br />
Augé. É ainda sobre a problemática da identidade<br />
que consideramos importante dizer ainda<br />
uma palavra: a identidade é o núcleo em torno<br />
do qual se articula toda organização social.<br />
CONCLUINDO...<br />
Como já afirmamos anteriormente, a atividade<br />
ritual possui o objetivo essencial reproduzir<br />
ou renovar identidades individuais e coletivas.<br />
Uma leitura parcial do ritual elaborada em<br />
função dos interesses dos empresários da cultura<br />
e, em especial, do turismo, empreendida<br />
pelo órgãos públicos, tem como efeito principal<br />
obscurecer o significado da festa. Não obstante<br />
o zelo missionário dos nossos dirigentes, os<br />
fatos revelam a impossibilidade de um único significado<br />
para o ritual da Lavagem do Bonfim.<br />
Atraídos por uma disposição etnocêntrica foi<br />
fácil compreender a lavagem do Santuário do<br />
Bonfim apenas como uma versão sincretizada<br />
das “Águas de Oxalá”; portanto, a contrição<br />
e o respeito próprios da cerimônia dedicada ao<br />
orixá do Candomblé (VERGER, <strong>19</strong>81, p.261)<br />
deveriam imperar em todos os momentos do<br />
ritual: apenas os blocos afros, afoxés e pequenos<br />
grupos de percussão deveriam ser tolerados.<br />
O ritual da lavagem simbólica da Igreja do<br />
Bonfim se transveste, usando as palavras de<br />
Favareto, em efeméride oficial, transformada<br />
em ‘macumba para turista ’ .<br />
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Recebido em 26.07.01<br />
Aprovado em 25.08.01<br />
146 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003
Fábio Josué Souza Santos<br />
POR UMA ESCOLA DA ROÇA<br />
Fábio Josué Souza Santos *<br />
RESUMO<br />
No presente artigo, debruçando-se sobre a realidade do município de<br />
Amargosa, pretende-se fazer uma crítica ao modelo pedagógico vigente<br />
na maioria das escolas rurais do Estado da Bahia, que, alheio às<br />
especificidades da vida da roça, tem procurado imitar as escolas urbanas,<br />
revelando-se estranho e inapropriado para seus usuários. Apontase<br />
a necessidade urgente de se construir uma escola da roça e, nesse<br />
sentido, são indicadas três experiências alternativas que podem servir<br />
de inspiração para políticas educacionais que valorizem as singularidades<br />
que caracterizam as dinâmicas territoriais das distintas regiões do<br />
Estado.<br />
Palavras-chave: Educação rural – Roça - Escola da roça – Diversidade<br />
Cultural.<br />
ABSTRACT<br />
FOR A RURAL SCHOOL<br />
Based on the reality of Amargosa (located in the countryside of Bahia),<br />
this article intends to criticize the pedagogical model used by the majority<br />
of rural schools in the state of Bahia, which is not according to the<br />
specifications of the countryside life and has been trying to imitate the<br />
urban schools, revealing itself as a strange and inappropriate model to its<br />
users. This article also calls the attention for an urgent necessity of<br />
constructing a rural school and, with this purpose, it indicates three<br />
alternative experiences that can serve as an inspiration to education<br />
politics that value the singularities which characterize the territorial<br />
dynamics of the distinct regions of the state of Bahia.<br />
Key words: Rural Education – Countryside – Rural School – Cultural<br />
Diversity.<br />
*<br />
Pedagogo (UNEB); mestrando em Educação e Contemporaneidade (PEC/UNEB); ex-professor substituto<br />
da UNEB/DCHT, Campus XVII/Bom Jesus da Lapa (<strong>19</strong>98-2000) e da UESC-Universidade Estadual Santa<br />
Cruz (2001-2002); bolsista da CAPES vinculado ao PEC/UNEB; membro do PRODESE-Programa<br />
Descolonização e Educação, vinculado à linha de pesquisa PROCEMP-Processo Civilizatórios: Educação,<br />
Memória e Pluralidade Cultural/Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PEC-<br />
UNEB). Endereço para correspondência: Avenida São Cristóvão, 21 - 45.300-000 AMARGOSA-BA. E-mail:<br />
cetepas.fabio@bol.com.br<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003<br />
147
Por uma escola da roça<br />
1. INTRODUÇÃO 1<br />
Embora relegada pela Universidade ao esquecimento<br />
teórico na última década, a temática<br />
da educação rural nos parece ainda uma problemática<br />
de estudo muito significativa em um<br />
país de dimensão continental como o Brasil.<br />
Sobretudo, no Estado da Bahia, quando consideramos<br />
que, segundo o IBGE (2000), 32,8%<br />
de sua população, o equivalente a 4,3 milhões<br />
de pessoas, reside em áreas rurais, essa problemática<br />
assume uma maior relevância.<br />
A falta de estudos sobre o tema assume<br />
maior gravidade quando consideramos a histórica<br />
ausência de políticas educacionais específicas<br />
para o “meio rural” brasileiro e baiano<br />
(LEITE, <strong>19</strong>99; ARROYO; FERNANDES, <strong>19</strong>99;<br />
RIBEIRO, 2000; SANTOS, 2002); e ainda, o<br />
fato de que a população residente nas “zonas<br />
rurais” não possui hoje escolas suficientes para<br />
atender às demandas de matrículas (principalmente<br />
nas séries finais do ensino fundamental),<br />
forçando, assim, os alunos “rurais” (aqui denominados<br />
de alunos da roça) a buscarem a continuidade<br />
de seus estudos nas escolas da cidade,<br />
se quiserem aspirar níveis mais elevados de<br />
escolarização. Tais aspectos demonstram bem<br />
a forma como a diversidade cultural é ignorada<br />
pelas políticas educacionais totalitárias que negam<br />
o direito à alteridade. Nas escolas da roça 2<br />
e da cidade, os alunos da roça (a grosso modo<br />
entendidos como aqueles que residem em áreas<br />
rurais e estudam em uma “escola rural”; ou ainda<br />
aqueles que, residentes na “zona rural”, se<br />
deslocam diariamente para a sede do município<br />
a fim de freqüentar uma escola, retornando às<br />
suas casas após o turno de estudo) têm os<br />
marcadores de sua identidade negados sobretudo<br />
pelo modelo curricular padronizado, elaborado<br />
a partir de categorias urbanocêntricas e<br />
que os obriga a negar a sua identidade cultural,<br />
sob pena de serem “expulsos” da escola (evasão<br />
ou repetência).<br />
A essa questão, de certa forma, vimo-nos<br />
dedicando no Mestrado em Educação e<br />
Contemporaneidade/UNEB (desde março de<br />
2002), onde desenvolvemos a pesquisa “O aluno<br />
da roça na escola da cidade: um estudo<br />
sobre representação e identidade”. Embora<br />
na referida pesquisa, nossa preocupação esteja<br />
centrada nas tensões identitárias (identificações)<br />
vivenciadas por alunos da roça em distintos<br />
contextos culturais (a roça e a escola da cidade)<br />
no seu desenvolvimento, nós nos temos deparado<br />
com a questão mais ampla da escolarização<br />
no meio rural (roça), através de reflexões<br />
sobre a realidade específica dessas escolas<br />
nos municípios de Amargosa 3 (onde realizo<br />
a investigação) e São Miguel das Matas (onde<br />
desenvolvi experiência profissional no período<br />
<strong>19</strong>98-2001); e da leitura de bibliografia sobre a<br />
questão (BRANDÃO, <strong>19</strong>83; SPEYER, <strong>19</strong>83;<br />
THERRIEN; DAMASCENO, <strong>19</strong>93; AR-<br />
ROYO, <strong>19</strong>97; LEITE, <strong>19</strong>99; CALDART, <strong>19</strong>99).<br />
Nesse sentido, os estudos, as leituras e as<br />
discussões ocorridas no âmbito do Curso de<br />
Mestrado em Educação e Contemporaneidade<br />
têm-nos possibilitado reflexões profundas sobre<br />
as práticas escolares que, erigidas a partir<br />
de um referencial cultural ocidental, branco,<br />
masculino, urbano, tem pretendido enquadrar,<br />
numa racionalidade produtivista, todos que a ela<br />
têm acesso. Possibilitam-nos, ainda, uma crítica<br />
mais sistemática a este tipo de escola; e propiciam<br />
reflexões que nos movem em direção a<br />
uma “descolonização da educação”.<br />
Neste artigo pretendemos, então, sistematizar<br />
essas reflexões sobre a escola rural, apre-<br />
1<br />
Este artigo faz parte de um conjunto de reflexões desenvolvidas<br />
pelo autor no processo de elaboração da dissertação<br />
“O aluno da roça na escola da cidade: um estudo<br />
sobre representações e identidade”, no Curso de Mestrado<br />
em Educação e Contemporaneidade da UNEB, Campus<br />
I, Salvador. O autor agradece aqui à Profª Drª Narcimária<br />
Luz, orientadora daquela dissertação, à Profª Drª Stela<br />
Rodrigues, e ao Prof. Dr. Júlio Lobo, ambos do PEC/<br />
UNEB, pelas valiosas contribuições que vem fornecendo<br />
à referida pesquisa.<br />
2<br />
Em parágrafos adiante, ainda nesta introdução, apresentamos<br />
nossa compreensão do termo roça. Ver também o<br />
tópico 4 deste artigo.<br />
3<br />
Os municípios de Amargosa e São Miguel das Matas<br />
localizam-se numa zona fronteiriça entre as regiões do<br />
Recôncavo Sul (SEI, <strong>19</strong>98) e Vale do Jiquiriçá (SEI, <strong>19</strong>98).<br />
O primeiro possui uma população estimada em 33 mil<br />
habitantes, 11 dos quais residem em áreas rurais; o segundo<br />
tem pouco mais de 10 mil habitantes, sendo que 75%<br />
residem na zona rural.<br />
148 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003
Fábio Josué Souza Santos<br />
sentando uma crítica ao modelo pedagógico em<br />
vigor na maioria das escolas rurais baianas e<br />
apontando alternativas que vêm sendo desenvolvidas<br />
numa corrente contra-oficial em diferentes<br />
regiões do Estado da Bahia e que se<br />
configuram como uma nova forma de fazer a<br />
escola da roça, que revigora a cultura dos espaços<br />
onde ela se insere, contribuindo para uma<br />
vida mais digna para as comunidades onde estão<br />
localizadas.<br />
Utiliza-se neste artigo, o termo roça como<br />
categoria teórica importante construída na compreensão<br />
do ethos cultural que caracteriza “o<br />
rural” do Recôncavo Sul e do Vale do Jiquiriçá.<br />
Emprega-se essa expressão em substituição a<br />
outros possíveis termos (meio rural, campo, fazenda,<br />
sítio), que são utilizados como sinônimos<br />
em outras regiões do Brasil, mas que, no contexto<br />
de onde falamos, não são empregados e, assim,<br />
apresentar-se-iam destituídos de significado.<br />
A categoria teórica roça possui múltiplos sentidos<br />
que se imbricam na caracterização desse<br />
lugar e pode significar: 1) a localidade distante<br />
da cidade (assim, parece ser sinônimo de “zona<br />
rural”: “Moro na roça”); 2) pode ser referido<br />
também como sinônimo de “terreno”, propriedade<br />
(“Eu tenho uma rocinha”; “Vamos na roça<br />
de Fulano?); e 3) ainda pode se referir à plantação<br />
(“roça de milho”; “roça de mandioca;<br />
roça de feijão”). Esses múltiplos sentidos se<br />
imbricam, entrelaçam-se na vivência cotidiana<br />
do povo que nela/dela vive e, portanto, na caracterização<br />
da arkhé 4 que marca o ethos cultural<br />
da “zona rural” daquela região. Com menor freqüência,<br />
naquela região emprega-se o termo<br />
“zona rural” como sinônimo de roça (localidade),<br />
mas a expressão “zona rural”, além de menos<br />
freqüente, nos parece insuficiente para traduzir<br />
o sentido que a expressão roça carrega.<br />
2. EDUCAÇÃO RURAL 5 : A UNIVERSA-<br />
LIZAÇÃO DO MODELO URBANO<br />
O projeto de educação da Modernidade,<br />
erigido sob o princípio do universalismo, pretendeu<br />
estender, pelos quatro cantos do mundo,<br />
os ideais/preceitos da cidadania e da civilização.<br />
No seu afã civilizatório, esse projeto educacional,<br />
obcecado por uma uniformização totalitária,<br />
sufocou subjetividades e recalcou identidades,<br />
transformando o outro num mesmo. A<br />
implantação dos sistemas públicos de ensino foi<br />
um eixo importante desse projeto educacional<br />
que pretendeu uma escola única, laica e científica,<br />
capaz de levar a todos as luzes da razão<br />
iluminista. No caso brasileiro, é preciso considerar<br />
as tensões entre o cientificismo laico e os<br />
interesses da fé católica – estes de forte influência<br />
em nossa educação, mesmo após a instauração<br />
da República. Em ambas as tendências,<br />
entretanto, é uma constante a negação da<br />
subjetividade do outro, o que se faz através de<br />
um processo de homogeneização cultural. 6<br />
Vítima desse processo de uniformização, foi<br />
a escola rural condenada a imitar a escola urbana<br />
(a escola única, pública, laica, científica,<br />
universal), como decorrência de um processo<br />
histórico de isolamento. Assim, os currículos<br />
escolares das escolas rurais impõem ao(à)<br />
aluno(a) da roça um mundo imaginário, uma<br />
realidade social contrastante com as observações<br />
e vivências das quais este(a) aluno(a) é<br />
sujeito histórico. Não há preocupação em aproveitar<br />
e explorar a bagagem cultural, os recursos<br />
locais, as experiências de vida que a criança<br />
traz de casa e do meio. Ademais, o acentuado<br />
valor que o currículo escolar dá aos fatos<br />
sociais distantes e longínquos contribui, decisivamente,<br />
para aumentar o desinteresse do(a)<br />
aluno(a) pela escola e, em conseqüência disso,<br />
é grande o índice de evasão e repetência.<br />
Analisando a história da educação escolarizada<br />
no meio rural brasileiro, poderíamos afirmar<br />
que, verdadeiramente, nunca houve uma<br />
4<br />
Para uma definição de arkhé, remete-se ao tópico 4.<br />
5<br />
Para além de diferenças semânticas que os termos possam<br />
guardar, estamos utilizando, exclusivamente neste<br />
tópico, os termos rural, meio rural, zona rural, da roça,<br />
roça, como sinônimos; deixando a discussão conceitual<br />
sobre os mesmos para o tópico 4.<br />
6<br />
Santos (<strong>19</strong>95) traz uma interessante análise sobre a pilhagem<br />
política e religiosa perpetrada pelos europeus no<br />
continente americano nos séculos XVI e XVII, no capítulo<br />
6 (Modernidade, identidade e cultura de fronteira),<br />
notadamente nas páginas. 136-139.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003<br />
149
Por uma escola da roça<br />
educação rural 7 . A escola que existe na roça<br />
não tem servido para ajudar os(as) rurais a entenderem/compreenderem<br />
as contradições que<br />
marcam a sua realidade e melhorar a sua qualidade<br />
de vida; tampouco tem servido para preparar<br />
um futuro operário capacitado para inserir-se<br />
no mercado de trabalho urbano (agora<br />
mais exigente diante dos desafios postos por<br />
uma economia globalizada, marcada pela automação<br />
dos processos produtivos e pela informatização<br />
dos processos de comercialização e<br />
prestação de serviços). Na verdade, a escola<br />
existente na roça, tem-se constituído como um<br />
forte mecanismo de destruição da cultura local,<br />
através da imposição de uma cultura “urbanocêntrica”<br />
e é, por conseqüência, um fator que<br />
tem estimulado o êxodo rural. É comum, em<br />
conversas com estudantes das escolas na roça,<br />
vê-los(las) manifestar sua pretensão em deixar<br />
o meio rural e deslocar-se para a cidade. Como<br />
afirma uma professora, depoente em nossa pesquisa:<br />
“Se ele já se formou, a roça não serve<br />
mais pra ele” 8 . Outro depoente, Seu Messias,<br />
um trabalhador rural da localidade da Palmeira,<br />
analisando a realidade de seu entorno regional<br />
constata que: “Hoje ninguém mais quer trabalhar<br />
mais nin roça; (...) hoje o povo quer mais<br />
ir pra rua” 9 . Para além das repercussões de<br />
fatores culturais, políticos e econômicos que<br />
impactam sobre a agricultura brasileira/baiana,<br />
essas constatações evidenciam claramente que<br />
a escola contribui para a desestruturação da<br />
identidade do povo da roça; fortalecendo assim<br />
um imaginário depreciativo a seu respeito, e<br />
contribuindo para o êxodo rural que, apesar de<br />
reduzido nas última década, ainda se mantém<br />
de forma pontual.<br />
Para os(as) professores(as) que atuam nas<br />
escolas da roça, o livro didático (durante muito<br />
tempo o único material impresso disponível na<br />
escola rural) 10 , converte-se ainda hoje no principal<br />
instrumento que subsidia o seu fazer pedagógico.<br />
Os livros didáticos, através de seus<br />
textos e gravuras, desconsideram o homem, a<br />
mulher e a criança da roça, pois quase nunca<br />
eles são considerados nos livros didáticos! Há<br />
anos, quando apareciam, eram representados<br />
como seres sem cultura, marcados pelo estereótipo<br />
de sujeitos “atrasados”, um verdadeiro<br />
“bicho do mato que precisava ser civilizado”.<br />
Essas representações ainda persistem,<br />
mas nos últimos anos tem-se visto o espaço rural<br />
ser apresentado como um local destinado às<br />
monoculturas de exportação, ao agronegócio,<br />
ou seja, privilegia-se a perspectiva dos detentores<br />
da propriedade da terra, dos empresários<br />
do setor agropecuário, que estão preocupados<br />
com o estímulo à tecnologia e com o espírito<br />
empreendedor. Essa “afirmação” do “novo<br />
mundo rural” vem de Couto Filho (<strong>19</strong>99) e contrasta<br />
com a realidade concreta que marca o<br />
meio rural das regiões do Recôncavo Sul baiano<br />
e do Vale do Jiquiriçá, onde se situa o município<br />
de Amargosa. Tais regiões se caracterizam pela<br />
existência de pequenas propriedades, destinadas<br />
à agricultura de subsistência<br />
A ausência de políticas educacionais que<br />
atendessem às especificidades do meio rural<br />
brasileiro, levou a escola da roça a uma tentativa<br />
de imitação da escola urbana (LEITE, <strong>19</strong>99).<br />
Os calendários letivos, o regime de organização<br />
das turmas e do ensino (seriação), as disciplinas<br />
e os conteúdos escolares, os métodos e<br />
as técnicas de ensino que pautam o ensino rural,<br />
inspiram-se no modelo escolar urbano e toda<br />
luta do(a)a professor(a) é para buscar aplicá-lo<br />
com a maior eficiência possível. Daí a frustração<br />
quando os(as) alunos(as) em tempo de safras<br />
agrícolas se evadem das escolas ou por lá<br />
não aparecem às sextas-feiras, vésperas das<br />
feiras que acontecem aos sábados nas cidades;<br />
7<br />
Vários autores apresentam essa tese: Leite (<strong>19</strong>99);<br />
Kolling, Nery e Molina (<strong>19</strong>99); Arroyo e Fernandes<br />
(<strong>19</strong>99); Ribeiro (2000). Arroyo (<strong>19</strong>99) observa que o que<br />
houve foi uma escola urbana no ‘campo’ e não uma escola<br />
do ‘campo’ (Cf. ARROYO; FERNANDES, <strong>19</strong>99).<br />
8<br />
Afirmação feita por Gilmara Santos Reis, 25 anos, exaluna<br />
de escola rural, hoje residente na cidade e professora<br />
numa escola municipal, multisseriada, localizada na<br />
zona rural. Depoimento dado em 20 jun. 2003.<br />
9<br />
A referência ao termo “rua” como sinônimo de cidade é<br />
uma constante entre os moradores das várias localidades<br />
rurais de Amargosa.<br />
10<br />
Alerto para o cuidado que se deve ter para não tomar<br />
essa afirmação como carência; na roça, prevalecem as formas<br />
de comunicação que se fundamentam fortemente na<br />
oralidade.<br />
150 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003
Fábio Josué Souza Santos<br />
daí a angústia de ensinar em classes multisseriadas<br />
onde os(as) alunos(as) não estão na<br />
mesma série e a turma não é homogênea (para<br />
os que defendem a seriação como solução para<br />
a escola rural, cabe aqui o questionamento se<br />
algum dia existiu uma turma de alunos iguais?);<br />
daí a dificuldade de fazer pesquisas em materiais<br />
escritos (revistas, jornais, panfletos), quando<br />
estes não existem na roça. A escola na roça,<br />
não sendo a mesma da escola urbana em seu<br />
contexto e condições infra-estruturais, é pensada<br />
como uma anomalia. Assim, o contexto<br />
rural, olhado pelos olhos urbanos, é de uma carência<br />
total, é o lugar onde tudo falta. É preciso<br />
assumir a escola da roça como ela é, o que não<br />
significa deixar de lutar, incansavelmente, para<br />
que ela um dia possa oferecer a seus(suas)<br />
professores(as) e alunos(as) o mínimo de dignidade<br />
possível.<br />
3. DIVERSIDADE CULTURAL E EDU-<br />
CAÇÃO (DA ROÇA)<br />
Entendemos ser importante colocar que a<br />
defesa que aqui se faz da cultura rural, através<br />
da defesa de uma escola da roça, não se situa<br />
nem nas esferas dos ditames econômicos neoliberais,<br />
que advogam uma reestruturação da<br />
escola rural com vistas a preparar um trabalhador<br />
mais afinado às exigências dos processos<br />
produtivos reclamados pela modernização da<br />
agricultura nestas últimas décadas, conforme<br />
parece advogar Couto Filho (<strong>19</strong>99), nem se<br />
enquadra no âmbito de uma visão liberal do<br />
multiculturalismo que advoga, tão-somente, a<br />
tolerância e o respeito pela cultura dos grupos<br />
excluídos; nem tampouco situa-se dentro do que<br />
Sousa Santos (apud MOREIRA, 2002, p.21)<br />
chama de “cultura de testemunho”, que contribui<br />
para isolar grupos, criar guetos, sustentando<br />
um novo apartheid cultural. A perspectiva<br />
aqui defendida assemelha-se ao que propõe<br />
Moraes (<strong>19</strong>99, p.15), quando coloca que, ao se<br />
levantar uma crítica ao modelo de escola vigente<br />
no meio rural:<br />
... não se pretende consagrar, venerar ou cultuar<br />
os conhecimentos dos agricultores, com saudosismo<br />
e romantismo. Busca-se apenas fomentar<br />
a interação crítica entre o conhecimento elaborado<br />
pelos agricultores e o elaborado pelos acadêmicos<br />
ou pelos cientistas.<br />
Na perspectiva que estamos colocando, entendemos<br />
ser, então, necessário problematizar<br />
as condições culturais e as relações de poder<br />
imbricadas num processo em que, historicamente,<br />
excluíram e continuam a excluir, e a silenciar,<br />
as manifestações culturais de certos grupos,<br />
em benefício de outros. É preciso, portanto,<br />
ter cuidado com as pretensões supostamente<br />
inclusivas e democráticas do multiculturalismo<br />
liberal (ou neoliberal?).<br />
Vários autores, como Hall (<strong>19</strong>97), Fleuri<br />
(2002) e Moreira (2002), têm apontado que o<br />
reconhecimento da existência da pluralidade cultural<br />
é consensual nos tempos atuais e, nesse<br />
sentido, o “... discurso em defesa do pluralismo<br />
cultural, do multiculturalismo ou ainda da diversidade<br />
cultural, vem sendo reiteradamente incluído<br />
em documentos oficiais referentes a políticas<br />
de currículo nacional de diferentes países”<br />
(LOPES, 2000, p.1). Entretanto, esses termos<br />
são ambíguos e enganadores e, sob cada um<br />
desses rótulos, cabem perspectivas as mais diversas.<br />
Moreira (2002), analisando o multiculturalismo,<br />
termo que tem sido mais presente nas<br />
produções que discutem a questão da diversidade<br />
cultural, reporta-se a Stoer e Cortesão (<strong>19</strong>99)<br />
para distinguir duas grandes perspectivas teóricas.<br />
A primeira perspectiva, segundo Moreira<br />
(2002, p.18), o multiculturalismo benigno, “... restringe-se<br />
a identificar as diferenças e a estimular<br />
o respeito, a tolerância e a convivência entre<br />
elas”; na outra perspectiva, encontra-se o<br />
multiculturalismo crítico, cujo propósito é “...<br />
desestabilizar as relações de poder envolvidas<br />
nas situações em que as diferenças coexistem”.<br />
Lopes (2000), por sua vez, afirma que a aceitação<br />
da pluralidade cultural pode ser concebida<br />
num contexto de conflitos ou num contexto de<br />
consenso. Esses autores chamam atenção para<br />
um aspecto nem sempre considerado nas discussões<br />
sobre o multiculturalismo: a associação<br />
entre diferenças culturais e relações de poder.<br />
Nesse sentido, o princípio da diversidade<br />
cultural aqui advogado, quando concerne à esco-<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003<br />
151
Por uma escola da roça<br />
la rural, implica uma necessária problematização<br />
das diferenças, identificando, no contexto<br />
social, seu conteúdo, interrogando-se seu<br />
porquê; e, igualmente, as formas como elas foram/são<br />
(re)construídas e mantidas e/ou transformadas.<br />
Implica também aperceber-se das<br />
conseqüências desse processo, bem como das<br />
possibilidades e oportunidades de diálogo com<br />
outras culturas.<br />
O homem, a mulher e a criança da roça estão<br />
permanentemente expostos a um processo<br />
de colonização cultural que nega seus valores,<br />
sua cultura, sua memória, sua identidade. Afirma<br />
Arroyo (<strong>19</strong>99, p.29): “A cultura hegemônica<br />
trata os valores, as crenças, os saberes do campo<br />
ou de maneira romântica, ou de maneira depreciativa,<br />
como valores ultrapassados, como<br />
saberes tradicionais, pré-científicos, pré-modernos”.<br />
Entender a produção histórica desse processo,<br />
promover o resgate da memória cultural<br />
do povo da roça e a valorização de seus marcadores<br />
culturais parece ser uma tática importante<br />
na afirmação da identidade cultural da<br />
criança, do jovem, do adulto, do velho, do homem<br />
e da mulher da roça, objetivando-se contribuir<br />
para que eles se assumam como sujeitos<br />
históricos, produtores de cultura. Assim, entendemos<br />
ser necessário abrir espaço para o resgate<br />
do saber popular (músicas, brincadeiras, festas<br />
populares, comidas, ervas medicinais, conhecimento<br />
sobre o meio, técnicas de trabalho, etc.)<br />
e de práticas culturais que têm sido aniquiladas<br />
através de um perverso processo de homogeneização<br />
cultural que vem sendo levado a cabo<br />
há algumas décadas na zona rural e que, na última<br />
década, se expande e se intensifica de forma<br />
totalitária sob a influência da televisão.<br />
Mas os processos de homogeneização cultural<br />
não correm em águas tão tranqüilas. Como<br />
apontam autores como Hall (<strong>19</strong>97) e Moreira<br />
(2002), os processos de homogeneização cultural<br />
não são assim tão lineares. Stuart Hall<br />
(<strong>19</strong>97, p.<strong>19</strong>) afirma que “... todos sabemos que<br />
as conseqüências dessa revolução cultural global<br />
não são nem tão uniformes, nem tão fáceis<br />
de ser previstas da forma como sugerem os<br />
‘homogeneizadores’ mais extremos”.<br />
4. POR UMA ARKHÉ DA ROÇA<br />
4.1. Rompendo com as categorias<br />
de análise<br />
Os aportes teóricos oferecidos pelas leituras<br />
que temos feito no âmbito de nosso curso,<br />
tais com Luz (<strong>19</strong>99; 2000), Foucault (<strong>19</strong>99;<br />
2002), Martins, (2000), Favero e Santos (2002),<br />
entre outros, têm-nos nos permitido inverter as<br />
lógicas de análises pautadas em conceitos tributários<br />
das metanarrativas que pretendem esquadrinhar<br />
os objetos de análise em conceitos<br />
pré-estabelecidos e congelar a diversidade e a<br />
fluidez que pulsam na vida cotidiana.<br />
Narcimária Luz, buscando romper com análises<br />
ancoradas em valores neocoloniais e imperialistas,<br />
tem recorrido à noção de arkhé para<br />
compreender outros continentes teórico-epistemológicos<br />
que se afastam da racionalidade ocidental.<br />
Nessa perspectiva, compreende arkhé<br />
como “... princípios inaugurais que estabelecem<br />
sentido, forças e dão pulsão às formas de linguagem<br />
estruturadoras da identidade; princípiocomeço-origem”<br />
(<strong>19</strong>99, p. 49).<br />
Assim, para falarmos de nosso lugar, da<br />
arkhé da regiões do Recôncavo Sul e do Vale<br />
do Jiquiriçá, as contribuições de Foucault (<strong>19</strong>99;<br />
2002) e de Martins (2000) revelam-se de suma<br />
importância. O primeiro, por demolir a idéia de<br />
linearidade e, em seu lugar, chamar a descontinuidade,<br />
a imprevisibilidade e o acontecimento<br />
para explicar a realidade; o segundo, por permitir-nos<br />
compreender a roça como o marginal,<br />
o residual, forjado na forma “anômala” como<br />
a Modernidade se materializou no Brasil. Assim,<br />
Foucault e Martins nos oferecem subsídios<br />
para entender que, embora o Brasil tenha<br />
suas origens no meio rural, em determinado<br />
momento de sua história, o rural passa a ser<br />
negado, passa a ser considerado um ‘não lugar’<br />
11 . Mas não é todo o rural que se nega; o<br />
11<br />
Speyer (<strong>19</strong>83) aponta a chegada da Família Real ao<br />
Brasil, em 1808, como o marco inicial desse processo de<br />
desvalorização do rural. Queirós (<strong>19</strong>78) indica as décadas<br />
de 20 e 30 do século XIX como o período em que a<br />
separação entre o rural e o urbano já adquire uma certa<br />
consistência, consolidando-se nas décadas seguintes.<br />
152 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003
Fábio Josué Souza Santos<br />
que se nega é uma determinada face do rural: a<br />
roça, o rural dos pequenos, dos fracos, dos pobres,<br />
da agricultura de subsistência; aquilo que<br />
foi posto à margem pelo afã do ‘progresso’ capitalista<br />
que a Modernidade pretendeu instituir<br />
entre nós. A roça, por ser o residual, passa então<br />
a ser considerado um ‘não lugar’; ou, pelo<br />
menos, um lugar que deveria, pela mão assistencialista<br />
e interventora do Estado, ser transformado,<br />
ser convertido, ser eliminado, retirando-se,<br />
assim, da Nação os entraves ao nosso<br />
desenvolvimento: o povo rude, apegado às tradições<br />
e a valores comunitários; avessos, portanto,<br />
à lógica economicista-produtivista-prometeica-individualista<br />
que a Modernidade, vestida<br />
aqui com o manto de um capitalismo subdesenvolvido,<br />
pretendia imprimir entre nós.<br />
Nesse sentido, como apontamos acima, autores<br />
como Foucault (<strong>19</strong>99; 2002) e Martins<br />
(2000) vazam a “bacia semântica” elaborada<br />
ora sob as luzes da racionalidade européia, ora<br />
nos centros de ilustração acadêmica do eixo<br />
industrializado do País (o Sul-Sudeste) e que,<br />
até então, era ‘importada’ enquanto conceitos<br />
para explicar as realidades residuais... Assim,<br />
categorias como “campo”, “meio rural”, “fazenda”,<br />
“camponês”, “campesino”, “campesinato”,<br />
“caipira” eram forçosamente utilizadas<br />
para dar conta de uma realidade que se<br />
nutria de outras formas de arkhé. Essas categorias<br />
são aqui, no contexto baiano, especificamente<br />
nas regiões do Recôncavo Sul e do Vale<br />
do Jiquiriçá, destituídas de significado; soamnos<br />
estranhas, deslocadas, como estaremos<br />
especificando no tópico a seguir.<br />
4.2. As especificidades do rural no<br />
contexto de Amargosa: “Nem campo,<br />
nem fazenda, isso aqui é roça<br />
mesmo, seu professor!”<br />
O desajuste entre as categorias teóricas<br />
importadas pela Universidade de outros contextos<br />
e a realidade local evidencia-se na ausência<br />
dos referidos termos no linguajar popular<br />
utilizado na região. Em nossa pesquisa, quando<br />
percebemos a dissonância entre o dizer da<br />
universidade e o dizer do povo, detivemo-nos<br />
em indagar os moradores da zona rural sobre<br />
essa questão, a escutar as vozes daqueles em<br />
nome de quem a universidade arrogantemente<br />
se arvora a se pronunciar. D. Maria, 68 anos,<br />
moradora da localidade da Palmeira, município<br />
de Amargosa, indagada sobre “como o povo<br />
chama as terras daqui?”, categoricamente<br />
responde: “Nem campo, nem fazenda, isso<br />
aqui é roça mesmo, seu professor!”.<br />
Nesse sentido, pontuamos que uma pesquisa<br />
que se proponha a discutir a realidade da<br />
zona rural baiana, especificamente nas regiões<br />
do Recôncavo Sul e Vale do Jiquiriçá, não deve<br />
desconsiderar a riqueza de significado que o<br />
termo roça abarca. Assim, em nossos trabalhos,<br />
o termo roça emerge de uma expressão<br />
muitas vezes usada pejorativamente, para assumir<br />
o significado de uma categoria teórica<br />
fundamental na contextualização e na compreensão<br />
da realidade sobre a qual nos temos debruçado.<br />
Em substituição a fazenda (utilizado<br />
em todo o País e que, para nós, tem sido reservado<br />
para nomear grandes propriedades), a sítio<br />
(reservado para se referir a pequenas propriedades,<br />
mas raramente usado entre nós) e,<br />
ainda, a campo (muito utilizado no Sul, Sudeste<br />
e Centro-Oeste do País), a opção pelo emprego<br />
do termo roça se faz não apenas por uma<br />
diferença etimológica ou uma regionalidade lingüística.<br />
Mais que isso, há uma diferença, diríamos,<br />
epistemológica! Tentamos, adiante, estabelecer<br />
a distinção entre os termos fazenda,<br />
sítio, campo e roça, buscando conceitualizálos,<br />
justificando, por fim, a opção pelo emprego<br />
deste último.<br />
No contexto regional onde se situa o município<br />
de Amargosa, a expressão “fazenda” parece<br />
reportar-se a médias ou grandes propriedades,<br />
geralmente destinadas à monocultura,<br />
com fins de comercialização. Para as propriedades<br />
destinadas à produção menor, em pequena<br />
escala e que ocorre de forma variada e simultânea<br />
em um mesmo “pedaço de terra”,<br />
costuma-se chamar “roça”. Assim, a roça é a<br />
pequena propriedade, geralmente destinada ao<br />
cultivo de variadas lavouras de pequena importância<br />
econômica, destinada à subsistência. Do<br />
que se colhe na roça, tira-se uma parte para a<br />
alimentação e a outra é vendida na cidade, nas<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003<br />
153
Por uma escola da roça<br />
feiras nos dias de sábado. Com o dinheiro adquirido,<br />
compra-se o que, sendo necessário à<br />
subsistência, não é disponível na roça/não é oferecido<br />
pela roça: são panelas, copos, açúcar,<br />
óleo, arroz, carne, pão, bolacha, manteiga, roupas,<br />
sapatos e até eletro-domésticos (principalmente<br />
TV e geladeira), que hoje, com a chegada<br />
da energia elétrica, começam a ter presença<br />
nas casas da roça.<br />
A distinção entre fazenda e roça parece tornar-se<br />
mais clara quando substantivada. Fala-se<br />
em “fazenda de gado”, “de cacau”, “de café”<br />
(esta em menor importância hoje, mas muito forte<br />
no passado regional); mas não se fala “fazenda<br />
de mandioca”, “de laranja”, “de cana”, “de<br />
banana”, “de melancia”; estas são roças!<br />
Como fazenda são grandes propriedades, em<br />
oposição a estas, há também quem se refira à<br />
roça como sítio. Seu Josué Prezídio, 59 anos,<br />
dono de uma pequena propriedade rural registrada<br />
no INCRA sob denominação de “Sítio Palmeira”,<br />
assim explica: “Fazenda é de 100<br />
hectária, de 50 prá cima. Terreno pequeno é<br />
sítio! O povo é que tem essa besteira de ter 2<br />
tarefa de terra e dizer que é fazenda.” Questionado<br />
por que “sítio”, se este é um termo raramente<br />
utilizado na região, ao contrário de roça,<br />
ele responde: “Tanto faz dizer ´roça` como dizer<br />
´sítio`. O povo usa mais ´roça` porque já acostumou<br />
dizer que vai pra roça”. 12<br />
O termo “campo”, por sua vez, parece remeter-nos<br />
a grandes extensões de terras que,<br />
às vezes, congregam várias e grandes propriedades,<br />
cortadas por pastos, lavouras, rios, colinas<br />
e um verde abundante. Não serve, pois, para<br />
demonstrar os tabuleiros secos da caatinga (ao<br />
norte e ao oeste de Amargosa), onde, nos meses<br />
de agosto a maio, só se visualiza o licuri, as<br />
palmas e o mandacaru (Que campo poderá por<br />
aí existir?!). Igualmente, não serve para nomear<br />
as pequenas propriedades da região geográfica<br />
mais chuvosa e de clima mais ameno, localizada<br />
ao leste e ao sul do município.<br />
Os fazendeiros, grandes proprietários, geralmente<br />
moram na cidade. Muitos deles são<br />
comerciantes ou funcionários públicos. Suas<br />
propriedades foram adquiridas no contexto da<br />
crise do café (principalmente a partir da década<br />
de 50 do século XX), quando se notabilizou<br />
uma concentração de terra no município. Naquele<br />
contexto, pequenas propriedades (roças)<br />
eram compradas e anexadas formando uma<br />
fazenda (geralmente para pecuária e, mais tarde,<br />
cacau), destinada à especulação financeira.<br />
O acima exposto serve para irmos definindo<br />
o que vem a ser o “aluno da roça”, sujeito<br />
sobre o qual o trabalho da escola pretende<br />
incidir. O “aluno da roça” é, assim, um aluno<br />
pobre, filho de pequenos proprietários ou de pais<br />
que não possuem nenhuma terra. Mais que isso,<br />
é filho da roça porque cresce na lida, nas lavouras,<br />
debaixo dos pés de mandioca, nas casas-de-farinha<br />
e pelo meio das roças plantadas<br />
ou cuidadas por seus pais. Tem, portanto, toda<br />
uma vivência com a terra, uma relação simbiótica<br />
com esta... onde a enxada e o facão são<br />
instrumentos presentes. Nessa relação, produzse<br />
toda uma riqueza de conhecimentos sobre<br />
as técnicas de plantio, de limpa, de colheita; saberes<br />
sobre o tempo de plantar e de colher, o<br />
meio ambiente, a utilidade de cada planta, etc.<br />
O aluno da roça, filho do homem que lavra a<br />
terra, é também um lavrador-infante, porque da<br />
sua lavra na roça é que tira o seu sustento (daí<br />
ter que “ajudar os pais”, como fazem muitos<br />
dos sujeitos com os(as) quais tivemos contatos<br />
nessa pesquisa). O aluno da roça não é o filho<br />
do fazendeiro. O filho do fazendeiro, mesmo<br />
que nascido na zona rural, não pode ser um filho<br />
da roça, pois que não trabalha, vive na mordomia<br />
da “Casa Grande” e não tem uma vivência<br />
concreta com a terra, o facão e a enxada.<br />
Os filhos de fazendeiros são poucos e estes,<br />
geralmente, residem na cidade e estudam em<br />
escolas particulares. Para esses sujeitos, uma<br />
outra formação é pensada: quando crescem,<br />
“vira dotô!”<br />
12<br />
Entrevista realizada em 04 abril 2003. Por ser realizada<br />
de forma imprevista, na oportunidade, a entrevista não<br />
pôde ser gravada. Entretanto, com a anuência do entrevistado,<br />
suas falas foram anotadas.<br />
154 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003
Fábio Josué Souza Santos<br />
5. EXPERIÊNCIAS ALTERNATIVAS DE<br />
EDUCAÇÃO RURAL: CONTRIBUIÇÕES<br />
PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA “ES-<br />
COLA DA ROÇA”.<br />
A caracterização feita no tópico anterior sobre<br />
o contexto agrário do município de Amargosa<br />
e que, de certa forma, retrata a especificidade<br />
das regiões do Recôncavo Sul e do Vale<br />
do Jiquiriçá 13 , coloca para as escolas da roça<br />
desafios que precisam urgentemente ser encarados<br />
com muita coragem, sob pena de se continuar<br />
a repetir o erro histórico de se negar, a uma<br />
parcela significativa dos pobres e dos excluídos<br />
(neste caso, aqueles que residem na roça), a<br />
possibilidade de construir uma vida digna. Para<br />
estes, que estiveram e estão à margem do urbano<br />
(e talvez esta seja mesmo a melhor opção!),<br />
a escola não pode continuar a ser o que sempre<br />
foi: o lócus privilegiado de efetivação de uma<br />
pedagogia reguladora, visando, conforme<br />
Narcimária Luz (2002, p.31), “... tomar a criança<br />
pela mão e controlá-la e conduzi-la no sentido<br />
do que é bom para o serviço público”, ou seja,<br />
“um doutor”, o que equivale, nas palavras da<br />
mesma autora (<strong>19</strong>99, p.63), a formar “... o sujeito<br />
produtor e consumidor, submetido ao paradigma<br />
iluminista e positivista sustentado pelas chefarias<br />
que acreditam ser a ordem e o progresso ‘a única<br />
razão e objetivo da ordem social’ ”. É preciso,<br />
então, substituir a escola na roça por uma<br />
escola da roça! Esta, evidentemente, só pode<br />
ser feita com a participação efetiva daqueles que<br />
seriam os seus maiores beneficiários: os homens,<br />
mulheres, crianças, jovens, velhos e velhas que,<br />
entendendo o clima, os ventos, as chuvas, o solo,<br />
limpando o mato, cavando a terra, plantando a<br />
semente e molhando o broto, vivem “conforme<br />
a terra dá”, e, assim, resistem e não se rendem<br />
a um modelo de sociedade que, considerando-os<br />
inferiores, atrasados, querem vê-los extintos,<br />
para, no lugar das roças que lavram com suas<br />
enxadas e de onde tiram o seu sustento, ver crescer<br />
os campos arados por tratores operados por<br />
computadores e destinados à monocultura ou à<br />
pecuária, o que, certamente, traria muita satisfação<br />
aqueles que são obcecados pelos recordes<br />
de produção agrícola.<br />
Mas, se esta escola da roça só pode ser<br />
construída com a participação do povo da roça,<br />
isso não significa que nada possa ser mobilizado<br />
nos espaços urbanos. A Universidade, lócus<br />
privilegiado da crítica e da produção do conhecimento,<br />
deve ter essa responsabilidade e deve<br />
mesmo estar preocupada em produzir um conhecimento<br />
que, conforme defende Gatti (2003),<br />
tenha impacto, tenha “aderência social” 14 .<br />
O fértil contexto contemporâneo onde explodem<br />
as identidades recalcadas, reclamando<br />
agora seu espaço, é lugar propício para serem<br />
(re)pensadas as práticas educativas vigentes na<br />
Modernidade, com vistas a desestabilizar o<br />
modelo secular de educação escolar que ainda<br />
impera no cenário político-social deste início de<br />
milênio.<br />
Assim, no que diz respeito à educação rural,<br />
não obstante ainda prevalecer oficialmente o<br />
modelo homogeneizador urbanocêntrico acima<br />
descrito, profícuas experiências, construídas conjuntamente<br />
com o povo da roça, já vêm sendo<br />
realizadas em diferentes regiões brasileiras. Na<br />
Bahia, as experiências desenvolvidas pelo<br />
IRPAA (Instituto Regional da Pequena Agropecuária<br />
Apropriada) 15 , localizado em Juazeiro;<br />
pelo MOC (Movimento de Organização Comunitária),<br />
sediado em Feira de Santana; pelas Escolas<br />
das Famílias Agrícolas espalhadas em 23<br />
municípios do Estado; e ainda pelo MST em vários<br />
acampamentos e assentamentos rurais<br />
baianos; são exemplos de esforços que buscam<br />
construir uma escola vinculada à cultura, aos interesses<br />
e às necessidades do povo da roça.<br />
O IRPAA, que tem um trabalho voltado para<br />
o semi-árido e cujo objetivo maior “... não é<br />
enfrentar as secas, mas saber conviver com<br />
13<br />
Sobre o Recôncavo Sul, conferir Santana (<strong>19</strong>98), Souza<br />
(<strong>19</strong>99) e Oliveira (2000). Sobre o Vale do Jiquiriçá, ver<br />
SEI, 2000; confira-se, também, o texto de Milton Santos<br />
A região de Amargosa (<strong>19</strong>63).<br />
14<br />
Fala na Mesa-redonda “A pesquisa em educação nas<br />
regiões Norte e Nordeste”, proferida em 11/06/2003, durante<br />
o XVI EPENN-Encontro de Pesquisa Educacional<br />
do Norte e Nordeste, realizado em São Cristóvão-SE.<br />
15<br />
Maiores informações sobre o IRPAA podem ser consultadas<br />
no site: www.irpaa.org.br<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003<br />
155
Por uma escola da roça<br />
elas”, tem como uma de suas linhas de ação o<br />
trabalho com a formação de professores e professoras<br />
que se faz através de uma “inversão<br />
curricular”, que tenciona rever o conteúdo que<br />
se ensina na escola, a forma e principalmente<br />
sua intencionalidade buscando: a) tornar a escola<br />
um espaço de novas aprendizagens mais<br />
significativas e prazerosas; b) desfazer a cultura<br />
historicamente produzida que criou inúmeros<br />
conceitos e pré-conceitos e produziu diversos<br />
estereótipos (FREITAS, 2002, p. 4). Os<br />
resultados desse trabalho revelam que a escola<br />
passa a ter um outro nível de relacionamento<br />
com a comunidade, passando a ser um espaço<br />
que não só disponibiliza novos conhecimentos,<br />
mas converte-se num espaço de reflexão e criação<br />
de formas de intervenção e transformação<br />
da realidade onde se insere. Conforme testemunha<br />
Freitas (2002, p.6), com o desenvolvimento<br />
da experiência do IRPAA:<br />
Em algumas comunidades (...) a escola tem sido<br />
um dos principais instrumentos que têm modificado<br />
a dinâmica de vida destas comunidades,<br />
algumas que inclusive se encontravam em processo<br />
de despovoamento, após a escola, ganharam<br />
um outro tipo de vida e passaram a ser mais<br />
movimentadas e divertidas.<br />
Merece destaque também a proposta pedagógica<br />
“CAT” (Conhecer, Analisar e Transformar)<br />
desenvolvida pelo MOC em parceria com<br />
a Universidade Estadual de Feira de Santana,<br />
nos municípios de Santa Luz, Santo Estêvão,<br />
Retirolândia e Valente (MOC, <strong>19</strong>99). Trata-se<br />
de um trabalho de capacitação de professores<br />
rurais que tem como princípio metodológico o<br />
respeito à cultura local, partindo-se “... da realidade<br />
concreta em que vivem as crianças”,<br />
para, em seguida, ampliar criticamente “... seu<br />
universo de conhecimento e (...) contribuir para<br />
a inserção da criança, do professor e sua comunidade<br />
no mundo” (MOC, <strong>19</strong>99, p. 9). Elaborada<br />
a partir da PER (Proposta de Educação<br />
Rural) desenvolvida no Estado de Pernambuco<br />
desde os anos 70 do século XX, e (re)elaborada<br />
à medida que se desenvolvia, a proposta do<br />
MOC (CAT - Conhecer, Analisar e Transformar),<br />
metodologicamente, desenvolve-se em<br />
três fases:<br />
1) “O Conhecer: observar, ver, levantar dados<br />
da realidade”;<br />
2) “O Analisar: desdobrar, confrontar, sistematizar,<br />
desenvolver o conhecimento produzido<br />
pelos alunos e alunas e elevá-lo a um<br />
novo patamar”;<br />
3) “O Transformar: agir, vivenciar, intervir na<br />
realidade a partir dos novos conhecimentos<br />
produzidos” (MOC, <strong>19</strong>99, p.22-25).<br />
No desdobramento dessas fases, há uma<br />
preocupação com um calendário letivo que esteja<br />
adequado ao calendário agrícola, de forma<br />
que a escola tire o melhor proveito do trabalho<br />
agrícola desenvolvido nas comunidades da roça,<br />
e que estas, por sua vez, possam fazer proveito<br />
dos conhecimentos mais gerais (re)construídos/<br />
(re)elaborados na escola. Além disso, há uma<br />
constante problematização da questão ambiental/ecológica,<br />
a valorização do material disponível<br />
no meio rural e a inserção da pesquisa como<br />
elemento fundamental do trabalho escolar. Nesse<br />
sentido, todos são aprendizes e não há apenas<br />
um que ensina e outros que aprendem<br />
(MOC, <strong>19</strong>99).<br />
Rodrigues (2002), analisando o Projeto Pedagógico<br />
do MST em dois assentamentos rurais<br />
no município de Vitória da Conquista, sudoeste<br />
baiano, constata que a configuração que<br />
as práticas educativas assumem nas escolas<br />
daqueles assentamento, difere das práticas desenvolvidas<br />
nas demais escolas rurais da rede<br />
oficial de ensino daquele município.<br />
A questão que julgamos interessante trazer<br />
aqui sobre o que diferencia a escola dos assentamento<br />
ligados ao MST das demais escolas da<br />
zona rural é no que tange aos conteúdos e métodos<br />
de trabalho. Este grupo trabalha com redes<br />
temáticas, levantando em reunião com toda<br />
a comunidade os temas que consideram importantes<br />
estar tratando na escola. A partir daí, o<br />
grupo de professores elege os temas geradores<br />
e constrói o programa do curso, associando os<br />
temas aos conteúdos oficiais considerados importantes<br />
para a formação do grupo e seu intercâmbio<br />
com a sociedade urbana. Consideram<br />
a realidade do assentado como sendo importante,<br />
além de dar voz e liberdade ao educando<br />
e ao educador, despertando-os para o<br />
156 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003
Fábio Josué Souza Santos<br />
sentimento de participação na vida social, resgatando<br />
a sua auto-estima. (...) Além de valorização<br />
da realidade socioeconômica e política, o<br />
lúdico é trabalhado, mediante o resgate da memória<br />
cultural dessas comunidades rurais, com<br />
as cantigas populares e de roda, transmitidas<br />
de geração em geração, e ainda com os festivais<br />
de música e poesia, torneios de futebol ...<br />
(RODRIGUES, 2002, p 177-178).<br />
Essas experiências são testemunhas de uma<br />
luta para se construir uma escola alternativa,<br />
uma escola que vá além do papel que lhe foi<br />
conferido na Modernidade: transmitir conhecimentos<br />
(eurocêntricos) ditos universais e docili-<br />
zar os corpos visando integrá-los à lógica<br />
‘prometeico-produtivista’ (LUZ, <strong>19</strong>99). São<br />
exemplos de luta... e de esperança porque nutrem<br />
os desejos de transformações e nos encorajam<br />
para desestabilizar os pilares da escola<br />
moderna: ocidental, branca, católica, machista,<br />
urbana; e construir outras escolas... agora, plurais.<br />
Em específico, essas experiências servem<br />
de inspiração para a construção de uma escola<br />
alternativa (da roça), que não afaste os alunos<br />
da sua realidade, respeite as atividades desenvolvidas<br />
em sua comunidade e contribua para a<br />
construção de uma vida mais digna para os lavradores<br />
e lavradoras.<br />
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Recebido em 28.05.03<br />
Aprovado em 29.07.03<br />
158 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003
Júlio César Lobo<br />
EUROCENTRISMO, POLÍTICA EXTERNA<br />
NORTE-AMERICANA E FUNDAMENTALISMO ISLÂMICO<br />
NO FILME INGLÊS COM AS HORAS CONTADAS<br />
Júlio César Lobo *<br />
RESUMO<br />
O objetivo principal desse texto é discutir as representações do<br />
fundamentalismo islâmico frente ao eurocentrismo, aos petrodólares e à<br />
política externa norte-americana, sob a ótica de um repórter inglês, no<br />
filme Com as Horas Contadas (Deadline, ING.,<strong>19</strong>88, dirigido por<br />
Richard Stroud) partindo-se da hipótese de que as diferenças culturais,<br />
religiosas e raciais são tão importantes na construção de pontos de vista<br />
quanto as categorias econômicas, sociais e políticas. Tomamos como<br />
referenciais para a nossa abordagem ensaios de Barraclough (<strong>19</strong>64),<br />
sobre História Contemporânea; Genette (<strong>19</strong>76), sobre Narratologia;<br />
Michalek (<strong>19</strong>89), sobre os árabes no cinema internacional; e Said (<strong>19</strong>96),<br />
sobre Multiculturalismo Crítico. Esse filme revela, entre outras coisas,<br />
um diferencial na representação dos povos árabes: a antiga representação<br />
da Arábia como um palco exclusivo de uma “sexualidade exuberante”<br />
– quase sempre associada a seqüestro, ciúme, revanche e escravidão<br />
– cede lugar nesse filme à representação de perfídia, traição e revoltas,<br />
traços muito freqüentes na maioria dos filmes ocidentais que têm<br />
árabes como protagonistas, coadjuvantes ou personagens secundárias.<br />
Esse ensaio é parte de uma pesquisa intitulada “O correspondente<br />
estrangeiro em situações de comunicação intercultural no cinema<br />
internacional, <strong>19</strong>68-<strong>19</strong>88”, desenvolvida entre os anos de <strong>19</strong>98 e 2001<br />
na Universidade de São Paulo e na Universidade do Texas em Austin<br />
(EUA), em que analisamos também os seguintes filmes: Os Boinas Verdes<br />
(The Green Berets, EUA, <strong>19</strong>68), O Ano em que Vivemos em Perigo<br />
(The Year of Living Dangerously, AUST.,<strong>19</strong>84), Gritos do Silêncio<br />
(The Killing Fields, ING, <strong>19</strong>82) e Passageiro, Profissão: Repórter (The<br />
Passenger, FR/ITA, <strong>19</strong>75).<br />
Palavras-chave: Cinema inglês – Eurocentrismo – Fundamentalismo<br />
islâmico<br />
*<br />
Licenciado em Letras Vernáculas (UFBA,<strong>19</strong>78), bacharel em Jornalismo (UFBA, <strong>19</strong>82), mestre em Comunicação<br />
e Cultura Contemporâneas (UFBA, <strong>19</strong>93) e doutor em Ciências da Comunicação (USP, 2002). Atualmente<br />
é membro do quadro permanente do Mestrado em Educação e Contemporaneidade da UNEB e dos<br />
cursos de graduação de Comunicação da UFBA e da UNEB. Endereço para correspondência: Universidade<br />
do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas, Campus I, Estrada das Barreiras, s/n, Narandiba –<br />
41150.350 Salvador, BA. E-mail: jceslobo@hotmail.com.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003<br />
159
Eurocentrismo, política externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme inglês Com as horas contadas<br />
ABSTRACT<br />
EUROCENTRISM, NORTH-AMERICAN POLITICS AND ISLA-<br />
MIC FUNDAMENTALISM IN THE ENGLISH FILM DEADLINE<br />
The main objective of this text is to discuss the representations of the Islamic<br />
fundamentalism against the Eurocentrism, the petrodollars and the North-<br />
American external politics, under the optics of an English reporter, in the<br />
film Deadline (ING.,<strong>19</strong>88, directed by Richard Stroud) departing from the<br />
hypothesis that the cultural, religious and racial differences are as important<br />
in the construction of points of view as the economic, social and political<br />
categories. We took as reference for our approach rehearsals by Barraclough<br />
(<strong>19</strong>64), about Contemporary History; Genette (<strong>19</strong>76), about Narratology;<br />
Michalek (<strong>19</strong>89), about the Arabians in the international cinema; and Said<br />
(<strong>19</strong>96), about Critical Multiculturalism. This film reveals, among other things,<br />
a differential in the representation of the Arabians: the old representation of<br />
Arabia as an exclusive stage on an “exuberant sexuality” – almost always<br />
associated to kidnapping, jealousy, revenge and slavery – gives place, in this<br />
film, to the representation of perfidy, betrayal and revolts, very frequent<br />
traces in most occidental movies that have Arabs as protagonists, coadjuvants<br />
or secondary characters. This rehearsal is part of a research entitled “The<br />
foreign correspondent in situations of intercultural communication in<br />
the international cinema, <strong>19</strong>68-<strong>19</strong>88”, developed between the years of<br />
<strong>19</strong>98 and 2001 in the University of São Paulo and in the University of Texas<br />
in Austin (USA), when we also analyze the following films: The Green<br />
Berets (USA, <strong>19</strong>68), The Year of Living Dangerously (AUST.,<strong>19</strong>84), The<br />
Killing Fields (ING, <strong>19</strong>82) and The Passenger (FR/ITA, <strong>19</strong>75).<br />
Key words: English Cinema – Eurocentrism – Islamic Fundamentalism<br />
A título de epígrafe<br />
35. ... Da mesma forma que o Egito tem um clima peculiar, e seu rio é diferente<br />
por sua natureza de todos os outros rios, todos os seus costumes e instituições<br />
são geralmente diferentes dos costumes e instituições dos outros<br />
homens. Entre os egípcios, as mulheres compram e vendem, enquanto os homens<br />
ficam em casa e tecem. Em toda parte, se tece levando a trama de<br />
baixo para cima, mas os egípcios levam-na de cima para baixo. Os homens<br />
carregam fardos em suas cabeças, mas as mulheres os carregam em seus<br />
ombros. As mulheres urinam em pé, e os homens, acocorados. Eles satisfazem<br />
as suas necessidades naturais dentro de casa, mas comem do lado de<br />
fora, nas ruas, alegando que as necessidades vergonhosas do corpo devem<br />
ser satisfeitas secretamente, enquanto as não-vergonhosas devem ser satisfeitas<br />
abertamente. Nenhuma mulher é consagrada ao serviço de qualquer<br />
divindade, seja esta masculina ou feminina; os homens são sacerdotes de<br />
todas as divindades. Os filhos não são compelidos contra a sua vontade a<br />
sustentar seus pais, mas as filhas devem fazê-lo, mesmo sem querer.<br />
160 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003
Júlio César Lobo<br />
36. Os sacerdotes dos deuses em todos os outros lugares usam os cabelos<br />
longos: no Egito, eles raspam a cabeça. Em todos os outros lugares, quando<br />
se trata de chorar pelos mortos, os parentes mais próximos raspam as cabeças;<br />
os egípcios têm-nas raspadas em outras ocasiões, mas, depois de uma<br />
morte, deixam crescer seus cabelos e sua barba. Entre todos os outros povos,<br />
os homens vivem separados dos animais; no Egito, eles mantêm seus<br />
animais consigo dentro de suas casas. Os outros povos se alimentam de trigo<br />
e cevada; para os egípcios, a maior humilhação é usar esses grãos; eles<br />
preparam seus alimentos com um grão rústico, chamado espelta, que outras<br />
pessoas chamam de zeia. Eles preparam as massas de que se alimentam com<br />
os pés, mas amassam a argila com as mãos. Os egípcios e os outros povos que<br />
aprenderam o costume com eles são os únicos a praticar a circuncisão. Todos<br />
os homens usam duas peças de roupa, mas as mulheres usam apenas uma.<br />
As argolas e as cordas das velas são presas em todos os outros lugares na<br />
parte externa das embarcações, mas no Egito são presas na parte interna.<br />
Os helenos escrevem e calculam movendo a mão da esquerda para a direita;<br />
os egípcios movem-na da direita para a esquerda...<br />
Heródoto. História, Livro II (Euterpe)<br />
Introdução 1<br />
A par de uma atenção à contextualização,<br />
busca-se aqui, na análise do filme Com as Horas<br />
Contadas, evidenciar determinadas estratégias<br />
narrativas com a finalidade de se discutirem<br />
determinadas questões, a saber:<br />
a) como são construídas caracterizações dos<br />
correspondentes como tradutores culturais;<br />
b) de que modo e em que intensidade determinados<br />
referenciais culturais influenciam no<br />
desempenho dos repórteres; e<br />
c) como alguns aspectos importantes da sua<br />
subjetividade são trabalhados.<br />
Inclui-se também na última indagação acima<br />
a busca de como se manifesta nos correspondentes<br />
a antiga dicotomia presente nos argumentos<br />
cinematográficos: observar ou participar?<br />
Trata-se de uma oposição que, por sinal,<br />
omite em seu primeiro termo as duas outras<br />
fases do processo de conhecimento – o registro<br />
e a análise – e que costuma perseguir repórteres<br />
investigativos em filmes em que o universo<br />
da política é um dos mais relevantes em<br />
sua fatura.<br />
Em geral, com maior ou menor intensidade,<br />
o filme Com as Horas Contadas parece-nos<br />
constituir uma amostra significativa para uma<br />
discussão mais contemporânea em torno desses<br />
tópicos:<br />
a) “o Ocidente não possui mais respostas” (O<br />
Ano em que Vivemos em Perigo - The Year<br />
of Living Dangerously, AUST, <strong>19</strong>83, dirigido<br />
por Peter Weir);<br />
b) o jornalista em estado de crise, solucionada<br />
através de um percurso que culmina ora<br />
numa espécie de redenção, ora em salvação<br />
pessoal, ou na radicalização fatal;<br />
c) a língua do Outro étnico como uma longa<br />
onomatopéia;<br />
d) o vínculo social que se constrói através da<br />
interação; e<br />
e) por último, mas não menos importante, a<br />
configuração de um novo exotismo: à alteridade<br />
étnica dos antagonistas ou coadjuvantes<br />
dos protagonistas se soma, agora, um<br />
nov estereótipo – o que esses filmes entendem<br />
por “fundamentalistas” islâmicos. O filme<br />
em foco é um bom exemplo do que se<br />
1<br />
Diferentes versões desse ensaio foram apresentadas no<br />
IV Lusocom, São Vicente (SP), <strong>19</strong>-22 de abril de 2000, e<br />
no IV Encontro Anual da Sociedade Brasileira de Estudos<br />
de Cinema (Socine), em Florianópolis, Universidade Federal.<br />
de Santa Catarina, 8-11 de novembro de 2000. Agradecemos<br />
os comentários e as sugestões dos presentes a<br />
ambos os eventos.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003<br />
161
Eurocentrismo, política externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme inglês Com as horas contadas<br />
diz neste tópico que, por sinal, tem sido bastante<br />
atual nas representações ficcionais ou<br />
não de conflitos envolvendo “Aliados” ocidentais<br />
versus Estados orientais<br />
Partimos para a análise do filme com as seguintes<br />
hipóteses:<br />
a) seus artifícios narrativos em graus variados<br />
de virtuosidade encobrem construções de<br />
discursos que buscam passar por “natural”<br />
aquilo que é fruto de uma peculiar visão de<br />
mundo. Por isso, torna-se pertinente a utilização<br />
de elementos da narratologia com<br />
enfoques provenientes dos Estudos Culturais.<br />
Esses últimos entendidos como “um<br />
conjunto de abordagens que busca compreender<br />
e intervir nas relações de cultura e<br />
poder” e em que “o relacionamento particular<br />
entre teoria e contexto é igualmente importante”<br />
(GROSSBERG, <strong>19</strong>93, p.2);<br />
b) esse filme constrói um novo “exótico”: aquele<br />
que, vivendo no Golfo Pérsico, é considerado,<br />
sem maiores detalhes, como “fundamentalista”;<br />
c) o antigo “perigo amarelo”, cujo componente<br />
racial é gritante, encontra-se com o “perigo<br />
fundamentalista”;<br />
d) as diferenças culturais, religiosas e raciais<br />
são tão importantes na construção dos pontos<br />
de vista daqueles que dominam quanto as<br />
categorias sócio-econômicas ou políticas; e<br />
e) as discussões em torno de uma possível “objetividade<br />
jornalística” têm migrado dos textos<br />
teóricos e da academia para a ficção cinematográfica.<br />
O nosso diálogo com o filme Com as Horas<br />
Contadas é marcado principalmente por essas<br />
indagações:<br />
a) como são construídas as representações dos<br />
correspondentes como tradutores culturais?<br />
b) de que forma e com que intensidade determinados<br />
referenciais culturais influenciam o<br />
trabalho dos correspondentes e a sua interação<br />
com nativos e residentes, principalmente<br />
com seus guias ou intérpretes?<br />
c) de que forma e com que objetivos são<br />
construídas as representações dos nativos<br />
ou residentes nos países do terceiro mundo?<br />
e<br />
d) quais os artifícios narrativos utilizados pela<br />
instância narrativa para a construção das<br />
“verdades” desse filme inglês?<br />
Para instrumentalizar o nosso olhar em direção<br />
aos temas e tópicos, recorremos a determinados<br />
textos de autores que seguem diferentes<br />
orientações e pertencem a áreas de conhecimento<br />
diversas que, a partir de um recorte<br />
específico, contribuem pontualmente para a discussão<br />
de problemas localizados tanto no nível<br />
da expressão quanto no do “conteúdo”. Essa<br />
observação quanto à origem das referências<br />
teórico-metodológicas mais recorrentes reconhece<br />
uma postura interdisciplinar, própria, por<br />
sinal, dos Estudos Culturais em que essa análise<br />
se insere.<br />
As idéias-força, partes dos nutrientes de<br />
nosso olhar crítico nesse ensaio, são:<br />
a) a abordagem que Simmel (<strong>19</strong>83) faz dos aspectos<br />
formais do estrangeiro. A carga semântica<br />
que é investida nele torna-se certamente<br />
mais rica se lhe é incumbida a função<br />
de reportar. Associe-se a essa tarefa o<br />
esperado “estranhamento”, que é considerado<br />
consensualmente como um dos itens<br />
fundamentais para o exercício de uma pretensa<br />
“objetividade”. Afinal, é de se esperar<br />
um conjunto de qualidades daquele que é de<br />
outro país, a saber: não se encontra submetido<br />
a componentes nem a tendências específicas<br />
de grupo, a fim de favorecer a sua aproximação<br />
da “objetividade”; não está preso a<br />
nenhum compromisso que poderia prejudicar<br />
a sua percepção, compreensão e avaliação<br />
dos fenômenos; examina os dados com menos<br />
pré-julgamento, justamente pelo seu esperado<br />
não-envolvimento; os seus critérios<br />
são mais amplos; e, finalmente, ele, o estrangeiro,<br />
não está ligado à ação pelo hábito,<br />
piedade ou por precedente (<strong>19</strong>83, p.184-<br />
5). Simmel nos chama ainda a atenção para<br />
a complexa operação cognitiva, que tem de<br />
ser elaborada pelo estrangeiro, pois sua “objetividade”,<br />
que se toma geralmente como<br />
um “dom” natural ou o resultado de uma<br />
“formação”, não deve encobrir “passividade<br />
e afastamento”, mas deve ser produzida<br />
como fruto de uma delicada movimentação,<br />
162 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003
Júlio César Lobo<br />
compreendendo distanciamento-proximidade,<br />
indiferença-envolvimento;<br />
b) a argumentação a propósito do bordão “o<br />
Ocidente não possui mais respostas” fornecida<br />
nos seguintes ensaios de Barraclough<br />
(<strong>19</strong>64): “Do equilíbrio europeu de poder à<br />
era da política mundial” (p.95-112) e “A revolta<br />
do Ocidente (a reação da Ásia e da<br />
África à hegemonia européia)” (p.139-79);<br />
e<br />
c) a crítica a um certo “orientalismo”, segundo<br />
a argumentação de Said (<strong>19</strong>96). Para ele, o<br />
orientalismo não se configura como uma<br />
“fantasia avoada” dos europeus frente aos<br />
orientais, mas trata-se de um “corpo criado<br />
de teoria e prática”, em que se constata um<br />
“considerável investimento material” ao longo<br />
da história. Ele fixa como corpus principal<br />
de sua tese um conjunto de questões relativas<br />
à experiência anglo-franco-americana<br />
dos árabes e do Islã, experiência que,<br />
durante quase mil anos, tem representado o<br />
Oriente.<br />
De nossa parte, há uma certa preocupação<br />
de nos afastarmos na medida do possível da<br />
tendência das pesquisas no campo dos Estudos<br />
Culturais em colocar peso excessivo na análise<br />
do “conteúdo”. Pensando constantemente nesse<br />
desequilíbrio, efetuamos vários movimentos<br />
no sentido de relevar a análise das estratégias<br />
narrativas para a qual contribuem os aportes<br />
de Genette (<strong>19</strong>72), por exemplo. Graças a trabalhos<br />
como os de Gaudreault e Jost (<strong>19</strong>90),<br />
entre outros, a migração desses conceitos da<br />
teoria literária para a cinematográfica já se dá<br />
hoje sem maiores empecilhos de natureza<br />
metodológica.<br />
Ao buscarmos trabalhar no sentido de uma<br />
instrumentalização dos conceitos provenientes<br />
das fontes citadas, tanto os da órbita de um “plano<br />
do conteúdo” quanto aqueles referentes a<br />
um “plano da expressão”, tivemos como inspiração,<br />
além de uma inestimável orientação<br />
metodológica, o ensaísmo cinematográfico de<br />
I. Xavier (<strong>19</strong>95), mais precisamente o texto<br />
“Parábolas cristãs no século da imagem: a<br />
dialética entre continuidade e alegoria no cinema<br />
narrativo norte-americano”. Nesse texto,<br />
flagramos, entre outros aspectos relevantes,<br />
uma preocupação com a localização e discussão<br />
de aspectos da função social do cinema.<br />
I<br />
Com as Horas Contadas trata resumidamente<br />
da participação de um correspondente<br />
inglês, Granville Jones (John Hurt), na cobertura<br />
de um golpe de Estado em país fictício do<br />
Golfo Pérsico e de sua atuação decisiva para a<br />
recondução do emir ao poder. Paralelamente a<br />
essas ações, o filme destaca o protagonista em<br />
freqüentes momentos de rememorações, criando<br />
assim, como conseqüência das sessões nostálgicas,<br />
atmosferas de melancolia. Dessa forma,<br />
não é só o fator tempo que conta (deadline:<br />
data-limite), mas, principalmente o modo como<br />
as várias temporalidades são dispostas pela instância<br />
narradora. Tem-se aqui um manejo peculiar<br />
na ordem da narração com a presença<br />
de um passado-dentro-de-um-outro passado,<br />
algo assim como um passado ao quadrado, um<br />
passado exponenciado.<br />
A nossa abordagem tem como uma de suas<br />
angulações principais a hipótese de que todas<br />
as rememorações relativas à arqueóloga inglesa<br />
(Imogen Stubbs), além de comporem a causa<br />
possível da melancolia do protagonista, articulam-se<br />
na montagem de uma estrutura parabólica,<br />
amparada no referencial bíblico. Essa<br />
estrutura, pela forte analogia, cria as bases simbólicas<br />
para que se leiam as intervenções políticas<br />
pró-Ocidente do correspondente como um<br />
ato de redenção final.<br />
Nossa atenção analítica foi despertada para<br />
o potencial parabólico embutido nas rememorações<br />
por um dado quantitativo: o filme dura aproximadamente<br />
oitenta e cinco minutos, e o total<br />
de seqüências envolvendo recordações do protagonista<br />
compreende vinte e dois minutos. Ou<br />
seja, há um minuto de rememoração para cada<br />
quatro de “presente”, de ação propriamente dita.<br />
Ao adotarmos esse partido, talvez possamos<br />
encontrar algumas evidências para estabelecermos<br />
relações entre tantas referências e falas a<br />
respeito do Livro do Gênesis, Caim, Terra de<br />
Nod, Ocidente, Oriente, islamismo, imprensa<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003<br />
163
Eurocentrismo, política externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme inglês Com as horas contadas<br />
inglesa, Arqueologia, erro e redenção, entre outras<br />
coisas. Essas relações vão cimentando um<br />
longo processo de argumentação pró-Ocidente.<br />
– Fontes de Washington revelam as crescentes<br />
preocupações do governo com o Golfo [Pérsico].<br />
O líder do movimento é o extremista religioso<br />
Fuad Al’Bakr, que se encontra na ilha de Hawar.<br />
Estudantes fundamentalistas estão contra o consórcio<br />
americano de petróleo e querem o fim dessa<br />
aliança. Wall Street reagiu com uma queda de<br />
30 pontos.<br />
Assim começa Com as Horas Contadas.<br />
Uma emissão de rádio em inglês e planos de<br />
ruas de uma cidade muçulmana. No áudio e<br />
nas imagens, logo nos cinco primeiros minutos,<br />
esse filme reitera alguns clichês “orientalistas”,<br />
atualiza outros e sinaliza para alguns dados novos<br />
em um certo cenário geopolítico no Terceiro<br />
Mundo. Ou seja, logo de saída, o filme sinaliza<br />
para uma nova configuração de uma antiga<br />
exoticidade. O árabe não é mais aqui uma<br />
encarnação do mito do homem em “estado de<br />
natureza” ou o bruto em filmes “orientalistas”,<br />
como denuncia Michalek (<strong>19</strong>89, p.3-9).<br />
O exótico aqui – sem deixar de matizar o<br />
que se disse – é deslocado, é politizado para a<br />
esfera da gestão da coisa pública: o emirado,<br />
sua política energética, suas alianças estratégicas.<br />
Essa forte mudança pertence à conjuntura<br />
“real” que vai se construindo ao longo das últimas<br />
décadas e que interfere nessa representação.<br />
Ela tem a ver, entre outras coisas, com o<br />
ocaso do nomadismo (hoje, restrito a apenas<br />
cinco por cento da população) e com a intensificação<br />
do sedentarismo. Isso se deveu à regressão<br />
do nomadismo árabe a partir dos anos<br />
50 com as conseqüências sócio-econômicas<br />
provenientes da exploração petrolífera no Golfo<br />
Pérsico e no Norte da África.<br />
– Chegam mais notícias sobre os distúrbios em<br />
Hawar. O emir abdicou em favor de seu filho,<br />
Ahmed Hatim. O seu primeiro ato foi nomear Al-<br />
Bakr como primeiro ministro. Numa rádio, Hatim<br />
declarou que o novo governo vai se encarregar<br />
de uma revisão nas relações da ilha com os Estados<br />
Unidos quanto ao petróleo.<br />
O noticiário, em um só enunciado “objetivo”,<br />
segundo normas jornalísticas, associa fundamentalismo,<br />
anti-americanismo e negócios com petróleo.<br />
A primeira reação de Granville Jones é<br />
não aceitar a passagem pacífica de poder naquele<br />
país. Vários motivos podem explicar sua<br />
desconfiança, seja isto devido a uma prática cotidiana<br />
de um experimentado repórter, ou até a<br />
manifestação de uma adesão afetiva à sua velha<br />
fonte, o emir. Não é uma coincidência, pelo que<br />
já se expôs, que essa fonte seja pró-ocidental.<br />
O primeiro diálogo entre ambos já estimulara<br />
algumas digressões em torno de cultura e<br />
imperialismo: a decisão do emir em mandar seu<br />
filho ser educado na Inglaterra, tida como um<br />
centro de saber, e a alternância de domínio na<br />
geopolítica pós-Segunda Guerra Mundial com<br />
os britânicos perdendo espaço e poder para<br />
norte-americanos. Com relação ao primeiro<br />
item, a decisão do emir revela-se um verdadeiro<br />
tiro que saiu pela culatra, pois o Príncipe volta<br />
de lá “radical”, associando-se a “fundamentalistas”.<br />
A educação ocidental, pelo que se vê, foi o<br />
estopim para que velhos estereótipos “orientalistas”<br />
voltassem `a tona: sedição, traição e violência.<br />
A propósito das origens desse dado novo,<br />
na realidade mais imediata do Terceiro Mundo,<br />
Barraclough (<strong>19</strong>64, p.139-79) argumenta que<br />
africanos e asiáticos se apropriaram das armas<br />
“forjadas” na Europa e voltaram-se contra os<br />
“conquistadores” europeus. E sobre a associação<br />
entre essa jovem liderança e um certo<br />
fundamentalismo, Barraclough acrescenta: “Em<br />
certos períodos, particularmente nos países onde<br />
a tradição hindu ou muçulmana era poderosa,<br />
essa dominação – a busca por uma ´personalidade<br />
própria` – tomou a forma de uma fuga<br />
para o passado” (p.178).<br />
O fato é que o encontro de Granville com o<br />
emir é a ocasião surgida para esse drama se<br />
agudizar, aproximando-o mais superficialmente<br />
de um thriller: ao se despedir, o ex-governante<br />
passa-lhe uma mensagem. Nesse ponto, colocam-se<br />
duas alternativas para o jornalista. Uma<br />
opção seria desconsiderar essa mensagem e<br />
retornar a Londres, uma vez que houve um golpe<br />
de Estado, e seu velho amigo está fora do<br />
poder. Outra opção seria levar avante a pro-<br />
164 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003
Júlio César Lobo<br />
posta de desmascaramento do novo governo,<br />
ato que teria tripla função: a obtenção de um<br />
furo jornalístico, a manifestação de uma solidariedade<br />
ao emir e a retomada da “aliança” daquele<br />
país com os Estados Unidos.<br />
Granville, ao assumir o desmascaramento do<br />
governo “fundamentalista”, resolve um impasse<br />
freqüentemente colocado para repórteres: observar<br />
ou participar. A decisão pela participação<br />
vai fazer do repórter inglês um agente histórico.<br />
Esse é um dado novo no corpus dos filmes<br />
com correspondentes estrangeiros no<br />
cinema internacional, nos anos 70 e 80, ambientados<br />
no Sudeste Asiático, em que repórteres,<br />
principalmente de imagem, são acusados<br />
de apenas observarem.<br />
Uma outra peculiaridade na composição do<br />
protagonista como agente histórico é que ele<br />
não é mais certamente uma variação ficcional<br />
do tipo “intelectual orgânico”, de matriz gramsciana,<br />
autoinvestido de um mandato do “povo”,<br />
como nos acostumáramos a ver na vertente<br />
urbana do Cinema Novo brasileiro, por exemplo.<br />
À medida que “Gran” se torna esse agente,<br />
ele assume a aura de herói. Para que esse novo<br />
papel cresça de intensidade é preciso que se<br />
construa um grande vilão, e esse é o “extremista<br />
religioso”, “fundamentalista”, “nacionalista”<br />
e “anti-americano” Al-Bakr, personagem pronta<br />
pela farta adjetivação a ser estereotipada.<br />
Tem-se aqui uma ligeira diversificação nessa<br />
dramatização da alteridade, mas ela ainda continua<br />
dualista: há o árabe bom (os amigos de<br />
Granville, inclusive o emir deposto) e há árabes<br />
maus (o filho do emir e Al-Bakr).<br />
Mesmo sendo considerado em determinado<br />
momento uma “pessoa muito importante”, Al-<br />
Bakr não tem direito à focalização interna (o<br />
compartilhamento com a instância narradora de<br />
seu saber) e não tem direito sequer a uma tomada<br />
em câmera subjetiva (o compartilhamento<br />
conosco do que ele vê).<br />
Mas quem é esse vilão? Como ele é representado?<br />
O que diz? Como é construída a sua<br />
influência junto ao Príncipe Hatim? Qual a sua<br />
visão de mundo? O fato é que, nos dez primeiros<br />
minutos de filme, já ouvimos o nome de Al<br />
Bakr três vezes, mas não tivemos, por outro<br />
lado, até então, elementos que façam com que<br />
concordemos ou não com as declarações feitas<br />
– o que contraria em geral a praxe expositiva<br />
de heróis e vilões.<br />
Dessa forma, com tais lacunas, cria-se uma<br />
certa expectativa em nossa recepção quando,<br />
em uma rememoração explicativa de Granville,<br />
vemos Romy levando-o até um local em que o<br />
citado vilão está secretamente alojado. A seqüência<br />
da diligência secreta é construída a<br />
partir do ponto de vista – aqui entendido também<br />
como local onde é colocada a câmera –<br />
do jornalista e da arqueóloga. Há dois planos<br />
em close-up de Al-Bakr mostrados com a interferência<br />
de uma cerca. Gran e Romy conversam.<br />
Durante toda a seqüência, Al Bakr é<br />
visto parado, sem voz, sem trilha sonora, sem<br />
gestos.<br />
Assim, a primeira aparição do outro étnico<br />
enquanto vilão é surda, muda e inerte. Após o<br />
quase parricida golpe de Estado, temos pela<br />
sexta vez o nome de Al-Bakr sendo mencionado.<br />
Pela sexta vez consecutiva, ele não fala,<br />
ele não se move e nem sequer é visto articulando<br />
a tomada do poder. Granville vê Al-Bakr em<br />
mais uma oportunidade, na entrada do Palácio,<br />
mas o silêncio permanece em relação a ele. Em<br />
nenhum momento dessa curta seqüência é<br />
disponibilizado o ponto de vista da “pessoa muito<br />
importante”, agora primeiro-ministro. Novamente<br />
Al-Bakr não fala, não ouve e nem se<br />
mexe.<br />
O outro étnico “vilão” do correspondente<br />
está no poder, várias personagens não se cansam<br />
de se referir a ele, mas, mesmo assim, não<br />
é digno de fala, de gestos significativos. Esse<br />
outro étnico não tem voz nem vez no processo<br />
de enunciação. Se Al-Bakr é importante, por<br />
que ele é silenciado? Qual a relação dos seus<br />
qualificativos com petróleo, política, cultura e<br />
imperialismo?<br />
O fato é que a instância narradora trabalha<br />
superficialmente com expressões e conceitos<br />
complexos, como fundamentalismo, “extremista<br />
religioso” e nacionalismo árabe, associandoos<br />
entre si de uma só vez pela estereotipagem<br />
de uma personagem, que, não por acaso, se opõe<br />
a interesses econômicos de um consórcio nor-<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003<br />
165
Eurocentrismo, política externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme inglês Com as horas contadas<br />
te-americano. Cada um desses conceitos, acreditamos,<br />
merece uma breve explanação.<br />
Por incrível que pareça, o uso contemporâneo<br />
do conceito fundamentalismo foi cristalizado<br />
no país cuja mídia mais o utiliza como um<br />
palavrão: os Estados Unidos. Lá, nos anos 20,<br />
fundamentalismo designava uma variedade do<br />
protestantismo conservador que se opunha inclusive<br />
à divulgação das teorias evolucionistas<br />
de Darwin.<br />
A partir dos anos 60, esse conceito que, originalmente,<br />
possuía uma conotação positiva para<br />
os batistas, por exemplo, teve essa conotação<br />
negativizada, passando a ser mais um pejorativo<br />
a rotular de primeira determinadas facções<br />
do islamismo mais ortodoxo. Essas facções<br />
enfatizam a “perfeição da palavra de Deus”,<br />
assim como está no Alcorão ou O Corão (de<br />
Qurám, Qaraá, ler, expor) em árabe, já que<br />
não se admite a sua tradução, pois isso seria<br />
uma traição ao profeta Maomé.<br />
Os cinco pilares do islamismo são:<br />
a) a narração do Kalima: “Há um só Deus, e<br />
Maomé é o seu profeta”;<br />
b) os cinco períodos diários de oração;<br />
c) a prática da caridade;<br />
d) o jejum durante o mês do Ramada; e<br />
e) a peregrinação a Meca.<br />
Nenhum dos fundamentos acima é mencionado<br />
no filme em discussão.<br />
“Extremista religioso” é uma expressão freqüentemente<br />
referida a protagonista árabe de<br />
conspirações. Ao tratar dessa questão, diz<br />
Pierucci (<strong>19</strong>99, p.<strong>19</strong>6):<br />
Para denominar os radicalismos islâmicos, os<br />
ocidentais só dispõem de termos pejorativos e<br />
ofensivos. Ao invés de tradicionalistas ou de<br />
integristas, dizer que são fundamentalistas implica<br />
de certo modo aludir a seu fanatismo e obscurantismo,<br />
apontar sua rejeição à ciência, à História,<br />
ao esclarecimento, à modernidade, enfim.<br />
Ao se falar em nacionalismo árabe, deve-se<br />
levar em conta dois aspectos: o pan-arabismo<br />
somente ganhou consistência a partir do<br />
entreguerras, associado à formação do Estado<br />
árabe moderno; e a idéia de uma unidade árabe<br />
tem exercido atração no mundo árabe, mesmo<br />
a nível popular, pois a grande maioria da população<br />
é muçulmana e compartilha uma vasta<br />
gama de pressupostos culturais e atitudes sociais<br />
comuns.<br />
Ainda a propósito da estereotipagem a partir<br />
das expressões “fundamentalista” e “extremista<br />
religioso”, talvez seja oportuna essa justificativa<br />
de Said (<strong>19</strong>96, p.291) a despeito de ter<br />
sido elaborada em outro contexto analítico:<br />
Além de ser anti-sionista, o árabe é também<br />
fornecedor de petróleo. Essa é outra característica<br />
negativa, pois que, na maior parte das<br />
vezes em que se fala do petróleo árabe, o boicote<br />
de <strong>19</strong>73-<strong>19</strong>74 – que beneficiou principalmente<br />
as companhias petrolíferas ocidentais e<br />
uma pequena elite dirigente árabe – é visto como<br />
uma amostra da ausência de quaisquer qualificações<br />
morais por parte dos árabes para possuírem<br />
reservas tão vastas de petróleo.<br />
Assim, em Com as Horas Contadas, no<br />
lugar de xeques luxuriosos, como aqueles interpretados<br />
por Rodolfo Valentino, há emires<br />
contemporizadores, pró-Ocidente. Governantes<br />
tidos como despóticos são associados a “extremistas<br />
religiosos”, a “fundamentalistas” e a “nacionalistas”.<br />
No lugar de desertos inóspitos,<br />
espaços de esterilidade e clichê cenográfico<br />
para as crises existenciais de europeus, há poços<br />
de petróleo e áreas urbanas. No lugar de<br />
monarcas carismáticos, há golpistas. Isto posto,<br />
constatamos que a configuração para a<br />
estereotipagem dominante sinaliza nesse filme<br />
para um novo suporte.<br />
II<br />
Os temas levantados no tópico anterior contribuem<br />
para a exposição de um conflito. Temse,<br />
por um lado, a configuração positiva de determinadas<br />
tradições (as ocidentais) que, segundo<br />
a instância narradora, devem valer mais. Temse,<br />
por outro lado, a configuração negativa de<br />
tradições que, segundo a mesma instância, devem<br />
valer menos e, como tais, são desqualificadas.<br />
Inicialmente, abordemos os exemplos da primeira<br />
tradição citada: a escola inglesa de jornalismo.<br />
O emir havia sugerido uma censura prévia<br />
nas matérias do correspondente, fato que<br />
provoca o seu discurso de profissão de fé:<br />
166 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003
Júlio César Lobo<br />
– Eu sou da velha escola de Fleet Street [Londres],<br />
onde nossos jornais são impressos, em<br />
que se diz: ´Os fatos são sagrados‘. Eu fui declarado<br />
persona non-grata em muitos países (...)<br />
Isso porque eu escrevia a verdade, e ela feriu as<br />
pessoas.<br />
Essa é a segunda vez em poucos minutos<br />
em que Granville faz a defesa da imprensa britânica.<br />
A primeira havia sido na seqüência do<br />
jantar. Cardápio do evento: fatos, versões, verdade,<br />
mentira, liberdade de imprensa, responsabilidade<br />
dos políticos, notícia, sensacionalismo,<br />
Lênin, Stálin, Pravda, entre outros itens.<br />
Essa seqüência, além de estabelecer o par romântico,<br />
caracteriza Gran como um veterano<br />
correspondente.<br />
O outro exemplo da tradição que vale mais<br />
é o da escola inglesa de Arqueologia. Talvez<br />
não tenha sido por mero acaso ficcional que<br />
Romy Burton seja também inglesa. Como já<br />
destacou Said (<strong>19</strong>96), arqueólogos são alguns<br />
dos mais freqüentes porta-vozes de discursos<br />
de representação do orientalismo. A citada atividade<br />
começou a tomar corpo justamente com<br />
as grandes expedições colonialistas, como as<br />
de Napoleão no Egito. Numa etapa posterior,<br />
seguem-se as fundações pelos ingleses de estabelecimentos<br />
locais de ensino de Arqueologia.<br />
São eles também que lhe atribuem o estatuto<br />
de ciência.<br />
Para Said (<strong>19</strong>96, p.53), é peça fundamental<br />
nesse movimento exploratório a obra francesa<br />
Description de L´Egypte (1808-1828), “grande<br />
monumento coletivo de erudição, pois forneceu<br />
um cenário para o orientalismo, posto que<br />
o Egito e subseqüentemente as outras terras<br />
islâmicas foram consideradas como a província<br />
viva, o laboratório, o teatro do efetivo conhecimento<br />
ocidental sobre o Oriente”.<br />
A propósito, um ponto em comum a mais<br />
entre as profissões de Granville e de Romy é<br />
que ambas levam em consideração a História.<br />
É fundamental na atividade arqueológica a capacidade<br />
de relacionar dados de um passado<br />
(gostos da época e funções dos utensílios) a<br />
uma função no presente. Troquem-se os objetos<br />
escavados por escritos e imagens plásticas,<br />
e têm-se talvez algumas aproximações entre as<br />
duas profissões aqui mencionadas.<br />
Em nossa análise, o filme configura como a<br />
tradição que vale menos o fundamentalismo<br />
islâmico, o nacionalismo e os “extremistas religiosos”,<br />
itens interrelacionados por Gran numa<br />
exposição a dois colegas ingleses:<br />
– Hatim voltou de uma pequena educação<br />
na Inglaterra e achou que poderia se tornar um<br />
herói local, falando sobre valores islâmicos, a<br />
vontade do povo e a decadência do Ocidente.<br />
Os outros exemplos estão na própria representação<br />
de Al-Bakr. Esses foram alguns recortes<br />
que elaboramos na representação das tradições<br />
nesse filme. Ao seu final, teremos assentada<br />
a que deverá vingar e o que isso quer dizer.<br />
III<br />
Com as Horas Contadas, independente de<br />
seu título original e do brasileiro, enfatiza certas<br />
configurações de temporalidade. Como estratégia<br />
de análise, vamos trabalhar esse fator em<br />
quatro de suas interrelações, a saber: tempo e<br />
religião, tempo religioso e tempo arqueológico,<br />
tempo do jornalismo e fuso horário e a interrelação<br />
entre tempos e narrativas.<br />
Há dois momentos em que o imbrincamento<br />
entre tempo e religião parece-nos mais transparente.<br />
A primeira interrelação é feita pelo emir<br />
sobre a utilidade dos serviços da arqueóloga<br />
para a sua cultura (“Romy faz a História do<br />
que aconteceu anteontem”), e a segunda está<br />
mais próxima do final, quando se fala de Caim,<br />
Livro do Gênesis, etc. Os temas das seqüências<br />
são tempos e origens. Tem-se, então, a associação<br />
entre duas personagens e duas localidades<br />
na configuração de um redentor.<br />
A propósito da relação entre tempo religioso<br />
e tempo arqueológico, tem-se que a descoberta<br />
da Terra de Nod pela arqueóloga traznos<br />
à tona a questão da datação do tempo na<br />
Arqueologia. Há nessa relação um impasse entre<br />
ciência e Bíblia, o que acreditamos ser relevante<br />
apontar numa discussão de um filme em<br />
que as religiões têm um papel político. A corrente<br />
diluvialista, que busca ajustar o conhecimento<br />
geológico à tradição bíblica, afirma que<br />
as grandes transformações por que passou a<br />
terra se devem a violentes cataclismos, de que<br />
seria exemplo o dilúvio bíblico. Já a corrente<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003<br />
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Eurocentrismo, política externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme inglês Com as horas contadas<br />
fluvialista defende que as transformações geológicas<br />
são o resultado de lentas e demoradas<br />
modificações.<br />
A urgência de Granville em enviar a mensagem<br />
do emir para Londres acrescenta mais duas<br />
instâncias temporais ao filme: o tempo do jornalismo,<br />
compreendendo o desencontro entre o<br />
horário de fechamento da edição matutina e o<br />
fuso horário. Essa defasagem é um dos acionadores<br />
do tom thriller da narrativa.<br />
Por último, temos a interrelação entre tempos<br />
e narrativas. As várias temporalidades (localização<br />
dos eventos) são: presente – é o tempo<br />
do processo enunciativo, pois tomamos a<br />
narração como contemporânea – daí o nosso<br />
envolvimento emocional, sendo ao mesmo tempo<br />
fruto de um certo passado, pois já se dá como<br />
narrado; e passado, que subdividimos operacionalmente<br />
em passado próximo – rememorações,<br />
sonhos e pesadelos de Granville, e passado distante.<br />
Este comportaria mais duas divisões: tempo<br />
arqueológico e tempo místico.<br />
O tempo arqueológico estaria sendo evocado<br />
através das marcas materiais de desgaste:<br />
as ruínas das escavações orientadas por Romy<br />
Burton. O tempo místico refere-se às ancestralidades<br />
narradas no Velho Testamento. Essa remissão,<br />
que associa em determinado momento<br />
Granville a Caim, introduz as relações entre tempo<br />
e Teologia, entre tempo e Juízo Final. Um<br />
outro dado desse filme diz respeito a um certo<br />
passado-no-presente, que estaria configurado<br />
nas tentativas de restauração de uma tradição<br />
por parte de Hatim e Al-Bakr.<br />
Nesse ponto tivemos, então, mesmo que de<br />
modo bastante esquemático, um certo desdobramento<br />
do que entendemos serem as várias<br />
configurações do tempo como componentes da<br />
diegese nesse filme singular.<br />
IV<br />
Nesse filme, como em muitos outros<br />
“orientalistas”, a instância restauradora do “equilíbrio”<br />
é um agente externo, ocidental. O dado<br />
“heróico” manifesta-se principalmente no aspecto<br />
individualista dessa empreitada, que leva<br />
Granville à morte. Por outro lado, algumas<br />
analepses, distribuídas ao longo da narração, foram<br />
trabalhando uma outra dimensão para esse<br />
sacrifício: fazer com que a notícia do golpe de<br />
Estado seja divulgada na imprensa mundial mesmo<br />
que tenha que morrer para isso. Vamos a<br />
essas rememorações.<br />
Um pouco antes de Granville fugir de Hawar,<br />
ele permanece numa angra. Na rememoração<br />
do jornalista, temos duas seqüências, justapostas<br />
por elipse, envolvendo noções de tempo (bíblico,<br />
ou seja mítico) e origens. Em sua divagação,<br />
Granville associa a sua situação errante a<br />
uma vocação marcada genético-culturalmente<br />
pela descendência de Caim, um fugitivo, sendo<br />
que, nessa visada, o paralelismo é estabelecido<br />
pelos que seriam os traços de uma negação.<br />
Desse modo, Granville e Caim se igualariam<br />
naquilo que têm de menor, naquilo que têm de<br />
negativo.<br />
Cabe então à arqueóloga transformar a negatividade<br />
auto-imposta pelo amante em uma<br />
positividade. Como isso se daria? Não mais,<br />
agora, através do acionamento de uma instância<br />
temporal exclusivamente, mas com a introdução<br />
de um componente espacial. O lugar em<br />
que Granville descansa – enquanto, em sua<br />
mente, se desenrolam essas rememorações –<br />
fica nas ilhas Hawar. As ruínas de suas escavações<br />
seriam as evidências materiais da passagem<br />
de Caim por aquele território. Essa contigüidade<br />
espacial cria então as condições para<br />
que se produza então uma inferência espiritual,<br />
o que desenvolveremos adiante.<br />
O fato é que as falas de Romy crescem de<br />
intensidade para a recepção, alicerçando sua<br />
“autoridade” por dois motivos: prática científica<br />
e afetividade.<br />
A propósito do primeiro motivo, deve-se levar<br />
em conta que, enquanto o jornalista aciona<br />
as rememorações, a jovem cientista (parte dessas<br />
lembranças) produz com as escavações uma<br />
outra viagem no tempo: as ruínas de um lugar<br />
mencionado na Bíblia. Com o seu trabalho, a<br />
arqueóloga, mesmo que, a rigor, não produza<br />
acontecimentos significativos para a trama principal,<br />
associa-se a Granville e à instância narradora<br />
no poder de fabular “mundos novos”<br />
(conteúdos diegéticos). Quantos discursos se<br />
168 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003
Júlio César Lobo<br />
referem ou se refeririam àqueles portos? Quantas<br />
narrativas a sua revelação deve ter desencadeado?<br />
Em nosso entendimento, a instância narradora<br />
investe a arqueóloga de mais uma autoridade.<br />
Como isto se dá? Vamos relacionar dois<br />
momentos separados na narração. O primeiro<br />
deles ocorre aos quatro minutos de filme.<br />
Hawar, Golfo Pérsico, interior, dia, penumbra.<br />
A câmera em lento travelling para a direita<br />
“passeia” pelo corpo deitado de Granville até<br />
que ela se detém em seu rosto sulcado. Rapidamente,<br />
o rosto dele é “inundado” por uma<br />
iluminação artificial. Simultaneamente, ouve-se<br />
uma melodia (extradiegética), assemelhando-se à<br />
música de câmera. Essa luz, antes de lhe conferir<br />
uma aura (injustificada até aquele momento), é o<br />
elo para uma superposição e para uma fusão.<br />
Então, lentamente, vai-se impondo a imagem inicialmente<br />
desfocada de uma jovem andando em<br />
direção à câmera em slow-motion. Há uma fusão<br />
com o rosto de Granville, ainda deitado, que,<br />
como conseqüência da breve rememoração, consegue<br />
expressar alguma alegria.<br />
Uma ferramenta fundamental para se analisar<br />
rememorações são as anacronias narrativas,<br />
de que fazem parte as analepses (GE-<br />
NETTE, <strong>19</strong>76, p.31-85). Este teórico francês<br />
cunhou o conceito de analepse – o que antes se<br />
tinha como o flashback –, subdividido em<br />
analepse externa (o seu ponto de alcance é<br />
anterior ao campo temporal da narrativa-base)<br />
e analepse interna, que tem seu campo de alcance<br />
no interior do campo temporal da narrativa-base.<br />
O filme em foco é rico em analepse externa<br />
e do tipo parcial: ela se finda bruscamente numa<br />
elipse, e o processo narrativo recomeça a partir<br />
de onde havia sido interrompido sem colocar<br />
nenhum problema de juntura ou continuidade,<br />
“como se nada a tivesse suspendido” (p.61).<br />
Nesse ponto apresenta-se uma questão<br />
conceitual e não somente terminológica: preferimos<br />
trabalhar com o conceito de analepse ao<br />
de flashback. A despeito da sua universalização,<br />
este termo não nos informa o suficiente<br />
com relação ao alcance de sua rememoração,<br />
nem a quem se deve o seu acionamento, se isso<br />
se deve à instância narradora ou a alguma personagem,<br />
que aí, então, assumiria o papel de<br />
um subnarrador ou narrador-delegado (GAU-<br />
DREAULT; JOST, <strong>19</strong>90).<br />
Não há aparentemente explicação ou associação<br />
no modo como, na maioria das vezes, as<br />
seqüências com a arqueóloga irrompem bruscamente<br />
por todo o filme, principalmente quando<br />
não há explicitamente dados de que elas estejam<br />
sendo “evocadas” pelo protagonista. Essa<br />
observação levou-nos a suspeitar da maioria<br />
dessas ocorrências como parte do processo de<br />
construção paralela de uma longa parábola;<br />
logo, de uma estrutura argumentativa. Voltaremos<br />
a esse aspecto mais adiante.<br />
O segundo momento da construção de uma<br />
“autoridade” para a arqueóloga também é parte<br />
de uma rememoração de Granville. Ele está<br />
entrevistando o emir, antes do golpe, quando,<br />
em meio a uma troca de opiniões sobre imprensa,<br />
fatos, censura, o governante (a propósito do<br />
aforisma “Fatos são sagrados”) diz não acreditar<br />
que o jornalista tenha fé em Deus. E o que<br />
responde Granville? Responde-lhe que, quando<br />
ouve música, acredita Nele.<br />
Recapitulando, tem-se sutilmente a associação<br />
de Deus com música e a música como<br />
motivo recorrente (leitmotiv) da instância narradora<br />
para o acionamento das analepses com<br />
Romy. Talvez tenhamos aqui um artifício engenhoso<br />
para se construir, fora da órbita do discurso<br />
verbal, a “autoridade” da arqueóloga.<br />
Assim, a partir dessa construção de análise,<br />
acreditamos estar criando uma proposta de discussão<br />
para o que se tem no final do filme. Ou<br />
seja, raciocinando-se em termos de contigüidade,<br />
poderíamos aventar a hipótese de que o leitmotiv<br />
associado a Romy (música de câmera) diviniza<br />
o enunciado a ela agregado, ou, mais propriamente,<br />
diviniza a arqueóloga e suas palavras.<br />
Nessa abordagem, ela estaria sendo transportada<br />
de um passado próximo para um tempo<br />
mítico, um tempo de deuses. Uma outra conseqüência<br />
dessa divinização, que estamos propondo,<br />
poderia estar na associação que ela faz<br />
de Granville com Caim, o que ele assume.<br />
É bom que se diga que esse investimento<br />
teológico é nosso, uma vez que Granville não é<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003<br />
169
Eurocentrismo, política externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme inglês Com as horas contadas<br />
um homem religioso. Por outro lado, é curioso<br />
que a idéia de redenção, acompanhada de recompensa<br />
material (sacos de ouro) ou mitológica<br />
(harpa de ouro), apareça nas últimas falas<br />
do filme quando, em Hawar, dois correspondentes<br />
contemplam a manchete de um diário<br />
inglês com frustração.<br />
Uma outra leitura comportaria um processo<br />
de atualização, de recuperação do Velho Testamento,<br />
fonte comum para cristãos e muçulmanos.<br />
Nesse processo, o repórter se associa<br />
e é associado a Caim pela errância. No entanto,<br />
Granville, mesmo que o seja à sua revelia,<br />
acaba reescrevendo, em nosso entendimento,<br />
o percurso da personagem bíblica, dotando-a e<br />
dotando-se por tabela de uma missão redentora.<br />
Esse jornalista morre (sacrifício) para fazer<br />
chegar a Londres a mensagem que irá repor<br />
seu amigo no poder (a salvação). Assim,<br />
Granville chega ao final do filme e de sua vida<br />
como um Caim revisto, um Caim redentor.<br />
V<br />
Com as Horas Contadas, entre outras coisas,<br />
revela um diferencial no tratamento dos<br />
povos árabes. A antiga representação da Arábia<br />
como palco exclusivo de uma “sexualidade exuberante”<br />
(quase sempre associada a seqüestro,<br />
ciúme, revanche e escravidão) cede lugar<br />
nesse filme à representação de perfídia, traição<br />
e revoltas, traços recorrentes a uma boa<br />
parcela da representação dos árabes no cinema,<br />
conforme Michalek (<strong>19</strong>89, p.3-9).<br />
A velha dicotomia Oriente (Antigüidade)<br />
versus Ocidente (modernidade) é trabalhada no<br />
filme em foco com mais matizes, com mais densidade.<br />
Tende-se mecanicamente a associar o<br />
Oriente do filme a um regime de governo, à<br />
idade do emir deposto e a algumas representações<br />
de visões radicais da interrelação religiãogoverno.<br />
Ao Ocidente ali ficcionalizado, tendemos<br />
a associar automaticamente juventude (a<br />
da arqueóloga), ciência e a presença da imprensa<br />
sem censura prévia, entre outros aspectos.<br />
No entanto, a dicotomia aqui resumida comporta<br />
contradições, pois o inverso também se<br />
configura. Ou seja, a presença do petróleo é<br />
um dado novo na economia dos países árabes<br />
(a rigor, a partir dos anos 30), enquanto que o<br />
dado do Ocidente colonializante não o é. O repórter<br />
Granville Jones é o Ocidente, mas ele é<br />
tão moderno em costumes e modo de ser quanto<br />
o seu amigo deposto.<br />
O jovem oriental, tanto aquele que sobe ao<br />
poder após o golpe, quanto o “fundamentalista”<br />
Al-Bakr, é vinculado a uma tradição. Assim,<br />
ambos são a corporificação de um passado distante.<br />
Desse modo, a amostra de juventude do<br />
Oriente é desqualificada pela interligação radical<br />
que esses jovens propõem entre religião e<br />
governo.<br />
Já a juventude do Ocidente, Romy, representa<br />
vida (ela faz parte das melhores rememorações<br />
de Granville), vigor (pratica acrobacias na<br />
praia) e, principalmente, representa a ciência.<br />
Sinteticamente, o velho e o novo possuem valências<br />
diversas, dependendo se eles estão associados<br />
ao Ocidente ou ao Oriente. Neste último,<br />
encontram-se algumas das alteridades étnicas ao<br />
repórter e à arqueóloga.<br />
O fato é que, ao final do filme, após tantas<br />
rememorações, deslocamo-nos do embate inicial<br />
entre monoteísmos e fomos por instantes<br />
em direção ao universo do politeísmo da mitologia<br />
greco-latina, cultura-base da ocidentalidade.<br />
A nossa leitura teve como um de seus objetivos<br />
apontar para certas reapropiações de imaginários<br />
com a finalidade de estabelecer uma<br />
determinada visão de mundo. Observamos, entre<br />
outras coisas, um jornalista melancólico reescrever,<br />
meio á revelia, o percurso do banido<br />
Caim bíblico, sendo o jornalista considerado, por<br />
si mesmo, como mais um “errante” e, pela arqueóloga,<br />
como o incumbido de uma missão<br />
redentora. Não foi à-toa que ele morreu por<br />
aquela missão.<br />
170 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003
Júlio César Lobo<br />
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GENETTE, G. Discurso da Narrativa. Lisboa: Vega, <strong>19</strong>76.<br />
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GROSSBERG, L. Cultural Studies and/in New Worlds. Critical Studies in Mass Communication, New York,<br />
n.10, p.1-22, <strong>19</strong>93.<br />
HERÓDOTO. História, Livro II (Euterpe). Brasília, DF, UnB, <strong>19</strong>82.<br />
MICHALEK, L. The Arab in American cinema. Cineaste, New York, v. 17, n.1, <strong>19</strong>89 (encarte).<br />
PIERUCCI, A. Fundamentalismo e integrismo. In: _____. Ciladas da Diferença. São Paulo, SP: Ed. 34, <strong>19</strong>99.<br />
p. p.177-200.<br />
SAID, E. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, SP: Cia. das Letras, <strong>19</strong>96.<br />
SIMMEL, G. Sociologia. São Paulo, SP: Ática, <strong>19</strong>83.<br />
XAVIER, I. Parábolas cristãs no século da imagem. Imagens, Campinas, n. 5, p. 8-17, <strong>19</strong>95.<br />
Recebido em 30.05.03<br />
Aprovado em 10.07.03<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003<br />
171
Nilce da Silva<br />
PLURALIDADE CULTURAL, MIGRAÇÃO E O ENSINO<br />
DA LÍNGUA PORTUGUESA NO ENSINO FUNDAMENTAL<br />
Nilce da Silva*<br />
RESUMO<br />
Este artigo discute questões prático-teóricas sobre o ensino de língua portuguesa<br />
no início da escolarização de adultos em escolas públicas paulistanas.<br />
Relacionamos “identidade, língua e cultura” e “atividades pedagógicas” que<br />
considerem a pluralidade cultural em sala de aula.<br />
Palavras-chave: Língua Portuguesa – Identidade – Cultura – Atividades<br />
Pedagógicas – Migração<br />
ABSTRACT<br />
CULTURAL PLURALITY, MIGRATION AND THE TEACHING OF<br />
THE PORTUGUESE LANGUAGE AT ELEMENTARY SCHOOL<br />
This article discusses theoretical-practical questions about the teaching of<br />
the Portuguese language in the beginning of the education of adults in public<br />
schools in São Paulo. We relate “identity, language and culture” and<br />
“pedagogical activities” that consider the cultural plurality in the classroom.<br />
Key words: Portuguese Language – Identity – Culture – Pedagogical<br />
Activities – Migration<br />
INTRODUÇÃO<br />
As atividades de ensino da língua portuguesa<br />
em sala de aula nos anos iniciais da<br />
escolarização devem levar em consideração a<br />
relação entre identidade, língua e cultura. Neste<br />
sentido, a escola deve levar em consideração<br />
a diversidade dos alunos que a compõem.<br />
Esta diversidade é composta por um conjunto<br />
de sub-culturas provenientes da diferença<br />
de gênero, da atividade exercida no local de<br />
trabalho, da pertinência a esta ou aquela classe<br />
social, das diferentes possibilidades de filiação<br />
religiosa, de ser oriundo desta ou daquela região<br />
do território nacional, entre outras possibilidades.<br />
Neste sentido, faz-se mister a compreensão,<br />
por parte do professor, de que o processo de<br />
aprendizado pode ser e é, na maioria das vezes,<br />
um processo de refazer a própria identidade.<br />
Tal deferência é extremamente importante<br />
sobretudo quando nos preocupamos com atividades<br />
em sala de aula nos anos iniciais da<br />
escolarização de migrantes, pois aprender a<br />
* Doutora em Didática e Metodologia do Ensino na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo,<br />
com doutorado sanduíche na Université Paris-Nord e pós-doutorado na Université Paris Nord sobre “Falar,<br />
ler, escrever: um estudo sobre a formação de adultos lusófonos em situação de pouca escolarização em São<br />
Paulo, Paris e Gotemburgo”; professora do Departamento de Didática e Metodologia do Ensino da Universidade<br />
de São Paulo. Endereço para correspondência: Rua Antonieta Leitão, 209, apt. 12, Freguesia do Ó –<br />
02925.160 São Paulo, SP. E-mail: nilce@usp.br<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 173-180, jan./jun., 2003<br />
173
Pluralidade cultural, migração e o ensino da língua portuguesa no ensino fundamental<br />
ler e a escrever implica necessariamente em<br />
mudança de identidade. Ou seja, o nosso objeto<br />
de interesse é a identidade que se constitui na<br />
relação língua, cultura e identidade. A pessoa<br />
(criança, jovem ou adulto) deixa de pertencer<br />
ao mundo daqueles que não dominam a leitura<br />
e a escrita e ingressam no mundo das letras, no<br />
mundo do “Outro”. Ou seja, aprender a ler escrever<br />
implica em: aprendizado de “nova” língua<br />
ou nova modalidade de língua e, junto com<br />
esta transformação, a aquisição de uma série<br />
de hábitos que configurarão mudança de cultura,<br />
mudança de identidade, ou seja, mudança<br />
no jeito de ser.<br />
RELACIONAMENTO “IDENTIDADE,<br />
LÍNGUA E CULTURA”<br />
Pierre Bourdieu (<strong>19</strong>82) faz interessantes afirmações<br />
a respeito da relação entre identidade,<br />
língua e cultura. Ele apresenta-nos toda a riqueza<br />
das interlocuções no cotidiano das pessoas,<br />
captando a relação entre os agentes sociais,<br />
e afirma que a estrutura social é representada<br />
dentro de cada um destes momentos,<br />
percebendo-se a hierarquia social no ato da<br />
interlocução. Nesta hierarquia, há pessoas autorizadas<br />
a falar, ou seja, os detentores da competência<br />
lingüística, que, longe de ser uma capacidade<br />
técnica, é uma posição nas relações<br />
de poder da sociedade. Os locutores são socialmente<br />
caracterizados, ou melhor, o estilo do<br />
falante é a característica que aponta a sua identidade<br />
no grupo. Esta distribuição das pessoas<br />
é o que vai caracterizar, segundo Bourdieu<br />
(<strong>19</strong>82), o campo da linguagem.<br />
Instaura-se desta maneira, uma situação de,<br />
pelo menos, bilingüismo, onde há uma fala menos<br />
legítima, ordinária, trivial, vulgar, corrente,<br />
livre e popular e, ainda, uma fala distinta, correta<br />
e, portanto, publicável.<br />
Assim, todo discurso pode ou não ser aceito<br />
por estes ou aqueles interlocutores e, ainda, ele<br />
tem um preço, sendo que há leis de formação<br />
de preços. Há, por isso, capital lingüístico que é<br />
dito e utilizado. Dito de outro modo, as mesmas<br />
palavras não são as mesmas e não são iguais,<br />
havendo relações de forças lingüísticas. Desta<br />
forma, o que se passa entre dois colegas, patrão<br />
e empregado, dois namorados, professor e<br />
aluno... passa-se entre dois grupos aos quais<br />
pertencem estas pessoas. No caso da nossa<br />
pesquisa, um nordestino em situação de baixa<br />
escolarização que jamais tenha ido a São Paulo,<br />
quando ele fala, sua produção oral vale menos<br />
do que a de um paulistano. Ou seja, sabemos<br />
do preço da fala popular quando ele é confrontada<br />
pelo mercado oficial. O mercado oficial,<br />
por sua vez, tem um grande poder de censura,<br />
e, assim, o falar abertamente só se produz<br />
em condições muito particulares.<br />
Dentro deste contexto, num discurso, o que<br />
mais chama a atenção, ou seja, o que aponta a<br />
pertinência do indivíduo a este ou aquele grupo<br />
social, é a pronunciação, e, ainda, o uso de aparelho<br />
fonador, mais do que a sintaxe e a extensão<br />
do vocabulário.<br />
Dito de outro modo, segundo Bourdieu<br />
(<strong>19</strong>82), aquele que fala, fala em nome do reconhecimento,<br />
ou não, institucionalizado de um<br />
grupo. Ainda que de passagem, ressaltamos que<br />
este modo de utilizar a língua faz parte do habitus<br />
de cada sujeito, pois o mesmo é orientado pelas<br />
maneiras incorporadas pelas pessoas a partir<br />
das interações, sobretudo, familiares.<br />
Sabemos ainda que quando o falante não pertence<br />
ao grupo social de prestígio dentro da sociedade<br />
em questão, há intimidação, violência<br />
simbólica em pequenos gestos no cotidiano. Há,<br />
portanto, uma censura antecipada daquele que<br />
fala, que se manifesta timidamente, com ansiedade,<br />
embaraço e, muitas vezes, calando-se.<br />
Na nossa sociedade, o conhecimento da língua<br />
oficial é feito de maneira desigual, sobretudo<br />
pela escola, e, por isso, modificações estratégicas<br />
são postas em prática pelo falante menos<br />
favorecido, no sentido de corrigir o seu discurso<br />
e torná-lo mais aceitável. Segundo o sociólogo<br />
francês, recorrer a uma sintaxe mais<br />
curta, ou fazer uso de hiper-correções, constituem-se<br />
maneiras através das quais o locutor<br />
busca maior poder simbólico, ou seja, são maneiras<br />
pelas quais o agente social estuda e procura<br />
aplicar as possibilidades que tem, buscando<br />
o sentido do jogo social, ao encontro da autonomia.<br />
174 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 173-180, jan./jun., 2003
Nilce da Silva<br />
Em suma, o uso da língua indica a identidade<br />
social do falante e expressa claramente a<br />
relação de dominação da sociedade, e, como o<br />
falante joga neste espaço potencial, durante toda<br />
a sua vida, a subjetividade da pessoa é formada.<br />
Ressaltamos que o uso do corpo na produção<br />
da língua, especialmente a boca, a garganta...<br />
compõem o estilo articulatório do falante,<br />
como a sonoridade e o ritmo. Da mesma forma,<br />
as maneiras polidas de tratamento, as variações<br />
de estilo, o modo de sustentar e de ter o<br />
próprio corpo, impõem a hierarquia entre classes,<br />
sexo e idade.<br />
A língua autorizada de uma pessoa o é por<br />
uma determinada estrutura social e, neste sentido,<br />
o falante autorizado é porta-voz de um grupo.<br />
Assim, o discurso mais eficaz é aquele que<br />
se dá sob condições institucionais com caráter<br />
de ritual, ou seja, é aquele que propicia a formação<br />
de representações, valores e julgamento.<br />
Para que as palavras tenham efeito, elas não<br />
devem apenas ser certas, eles devem ser socialmente<br />
aceitáveis.<br />
Neste ponto do trabalho de Bourdieu (<strong>19</strong>82),<br />
fica clara a crítica que ele faz aos lingüistas de<br />
um modo geral, e mais especificamente a<br />
Saussure e Chomsky. Isto porque, estes não<br />
verificaram os princípios lingüísticos dentro de<br />
diferentes situações nas quais as produções orais<br />
e escritas são produzidas.<br />
De um modo geral, o não domínio da língua<br />
autorizada constituiu-se como algo que falta no<br />
momento de defender o seu próprio espaço<br />
quando em interação<br />
Nos rituais do saber viver, inclusive nas relações<br />
estabelecidas em sala de aula, é notório<br />
o embaraço que se formava segundo relato dos<br />
nossos entrevistados. Pequenas ações do novo<br />
cotidiano letrado: como abordar um estranho,<br />
como encerrar uma conversação, como se apresentar<br />
ou apresentar alguém e outras, acabam<br />
por definir o lugar de uma pessoa no mundo.<br />
Por outro lado, a sala de aula pode ser caracterizada<br />
como multilingüe e multi-cultural, já que<br />
a comunicação em língua padrão se dá de maneira<br />
pobre, truncada e artificial, e outros recursos,<br />
assim como outras línguas e linguagens são<br />
utilizadas no exterior mais explicitamente.<br />
Dito de outro modo, há um reconhecimento<br />
de que, sob certas condições, uma pessoa legítima<br />
pode enunciar, dentro de uma situação legítima,<br />
para receptores tais, através de formas<br />
igualmente legítimas, litúrgicas ou rituais.<br />
Desta forma, observamos que na escola ocorrem<br />
diversos rituais e obter um diploma ou, ainda,<br />
a colação de grau passa a ser tão mágico<br />
como possuir um amuleto. Ou seja, os ritos e<br />
cerimônias têm o poder de criar diferenças que<br />
anteriormente não existiam, ou reforçar as que<br />
já existiam. Além disso, ter um diploma age sobre<br />
o real no momento de se obter um emprego<br />
como age também sobre a representação deste<br />
real. Assim, o indivíduo tem que agir como portador<br />
deste ou daquele diploma. Cria-se uma fronteira<br />
entre os excluídos e os incluídos desta ou<br />
daquela parte, ou de todo o sistema escolar, e,<br />
quase conseqüentemente, do mundo letrado no<br />
caso da alfabetização. Destacamos ainda que a<br />
crença daqueles que participam do ritual é condição<br />
de eficácia para o mesmo.<br />
No caso específico das séries iniciais da alfabetização,<br />
a supressão da formatura da quarta<br />
série promovida pela lei de diretrizes e bases<br />
5692/71, causou um impacto simbólico muito<br />
forte sobre a população de adultos em situação<br />
de alfabetização, isto porque prolongou-se a não<br />
pertinência dos mesmos ao mundo letrado e a<br />
conseqüente legitimação social do fato. Ou seja,<br />
a entrada no mundo mágico deixa de ocorrer.<br />
Um outro aspecto que gostaríamos de apresentar<br />
diz respeito à conclusão de que muitos<br />
dos alunos dos anos iniciais da escolarização,<br />
migrantes na cidade de São Paulo, utilizam a<br />
escrita sem penetrar no seu mundo sagrado.<br />
Ou seja, ela é apenas ato comunicativo e não<br />
de abstração do pensamento. O que não quer<br />
dizer que o contato com o sagrado não se faça<br />
através da oralidade, ou a partir de textos escritos<br />
na língua materna do sujeito.<br />
Depois destas considerações, acreditamos<br />
que estamos perto de definir aspectos importantes<br />
pertinentes à identidade dos nossos sujeitos<br />
da seguinte maneira: acontecem coisas<br />
em suas vidas, porém as pessoas continuam<br />
sendo as mesmas pessoas.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 173-180, jan./jun., 2003<br />
175
Pluralidade cultural, migração e o ensino da língua portuguesa no ensino fundamental<br />
Neste sentido ainda, concordamos com Bourdieu<br />
(<strong>19</strong>82), quando o mesmo afirma que o falar<br />
denuncia o grupo social ao qual um indivíduo<br />
pertence e conseqüentemente sua identidade. E<br />
ainda, segundo este autor, os conceitos de identidade<br />
regional e étnica, língua e dialeto são manipulados<br />
com a finalidade de determinar a representação<br />
das pessoas.<br />
Tal reflexão é importante por pelo menos<br />
dois motivos:<br />
1. O aumento do número de adultos matriculados<br />
no ensino supletivo não aumenta, de fato,<br />
a possibilidade de inserção social desse mesmo<br />
número de adultos;<br />
2. As diferentes discriminações, quando relacionadas<br />
com os falares, acompanham o indivíduo<br />
por todos os lugares do planeta. Assim<br />
vemos nordestinos em Paris sendo discriminados<br />
por sulistas brasileiros, embora<br />
estejam ambos na mesma situação de vida.<br />
Ressaltamos também que o texto religioso<br />
leva à constituição de uma identidade, permite<br />
o encontro com o texto polissêmico que é a Bíblia,<br />
já que a mesma possibilita associações<br />
livres com seus diversos significados. Concordando<br />
com Dominique Ravinet-Javin (<strong>19</strong>92), o<br />
sujeito encontra o seu significado no texto, a<br />
sua palavra, e pode assim se apropriar de sua<br />
própria vida, do real. A Psicanálise nasceu a<br />
partir desta interpretação: o sujeito vem encontrar<br />
o real, o nome do Pai, e toma distância da<br />
mãe, ocorrendo a ruptura. Em suma, para muitos<br />
dos nossos sujeitos, é pelo acesso à palavra<br />
de Deus que o sagrado pode ser vivido em toda<br />
a sua polissemia.<br />
Seguindo as pistas de Bourdieu (<strong>19</strong>82), encontramos<br />
indicação preciosa na direção dos<br />
diferentes falares a respeito das contribuições<br />
de Labov (<strong>19</strong>93), elaboradas a partir do estudo<br />
das produções lingüísticas no Harlem.<br />
Este químico de formação, no livro Le parler<br />
ordinaire: la langue dans les guettos noirs<br />
des Etats-Unis, estuda o “vernaculaire noiramericaine<br />
“ (VNA), dialeto falado hoje pela<br />
maioria dos jovens negros em bairros segregados<br />
de Nova Iorque, Boston, Chicago, Los Angeles,<br />
entre outras cidades, sendo também discurso<br />
familiar íntimo de vários adultos.<br />
Estudioso da questão desde <strong>19</strong>65, o referido<br />
autor (<strong>19</strong>93) faz um estudo detalhado da gramática<br />
e da fonética do VNA, concluindo que<br />
este é um falar autônomo regional, com léxico,<br />
pronúncia e gramática próprios, pertencente a<br />
um grupo étnico específico e que o mesmo define<br />
a pertinência social de seus falantes e a<br />
identidade dos mesmos.<br />
Para Labov (<strong>19</strong>93), as diferenças dialetais<br />
são um símbolo de conflito de classes e culturas<br />
existentes em diversos países. Decorrente<br />
deste fato, crianças falantes do VNA têm sérias<br />
dificuldades para aprender a leitura e a escrita<br />
do inglês padrão. O autor destaca pelo menos<br />
sete dificuldades:<br />
1. Os alunos têm dificuldade para entender o<br />
inglês falado das professoras e professores.<br />
2. As crianças têm dificuldade para ler e entender<br />
o sentido das frases.<br />
3. Há dificuldade de se comunicar com a professora<br />
através do inglês falado.<br />
4. Há dificuldade de se comunicar por escrito<br />
utilizando a gramática.<br />
5. Há dificuldade do uso ortográfico.<br />
6. Há dificuldade em falar com a gramática<br />
padrão.<br />
7. Há dificuldade de pronunciar como o modelo<br />
de prestígio.<br />
Labov (<strong>19</strong>93) apresenta ainda uma série de<br />
traços lingüísticos no VNA distintos do inglês<br />
padrão, os quais destacaremos a seguir:<br />
1. Ausência do “r” no final das palavras.<br />
2. Ausência de “r” no meio de algumas palavras.<br />
3. Ausência de “l”.<br />
4. Simplificação de grupos de consoantes.<br />
5. Diferenciação na pronúncia.<br />
6. Confusão entre os sons do “t” e do “d”, do<br />
“g” e o “K”, do “i” e do “e”.<br />
7. Formação distinta dos tempos verbais.<br />
8. Estatuto gramatical do sufixo s diferenciado.<br />
9. A questão da contração.<br />
10.Construção da negação diferenciada.<br />
11. Uso de comparativos diversos.<br />
12.Estrutura interrogativa diferenciada.<br />
13.Contração das palavras distinta.<br />
14.O que é esquecido na pronúncia.<br />
15.Acentuação da frase e das suas partes oralizadas<br />
de diferentes maneiras.<br />
16.A desaparição de algumas letras na fala.<br />
176 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 173-180, jan./jun., 2003
Nilce da Silva<br />
Ainda para este autor, as dificuldades da<br />
aprendizagem destas crianças americanas provêm<br />
de conflitos políticos e culturais dentro da<br />
sala de aula. Tal conclusão contraria uma série<br />
de pesquisas realizadas em escolas de guetos<br />
americanos nos Estados Unidos, financiadas<br />
pelo governo deste país, pois estas afirmam que<br />
a deficiência destes alunos é a principal causa<br />
do fracasso escolar. Ou seja, a privação cultural<br />
em casa, a falta de estimulação verbal no<br />
ambiente familiar, e ainda, a inferioridade genética<br />
destas crianças, não facilitariam o aprendizado<br />
da leitura e da escrita das mesmas. Tal<br />
teoria, também conhecida como a da “privação<br />
cultural”, tem produzido um mito que na verdade<br />
é o grande obstáculo da aprendizagem.<br />
Na tentativa de destruir o mito da privação<br />
cultural, o estudioso nos mostra claramente que<br />
a fala destas crianças é rejeitada pela escola já<br />
que o sistema social americano é o de castas,<br />
fundamentado na cor das pessoas.<br />
A pesquisa de Labov (<strong>19</strong>93) ainda nos apresenta<br />
dados referentes à produção lingüística<br />
das crianças negras americanas quando as<br />
mesmas não se sentem ameaçadas. Nestas situações,<br />
elas não falam por gestos, as suas frases<br />
são ligadas entre em si, ou seja, a fluência<br />
verbal se manifesta.<br />
Crítico, como Bourdieu, das análises puramente<br />
lingüísticas, ele questiona: Por que não<br />
se escreve em VNA? Apenas, porque o inglês<br />
padrão tem convenções sociais mais estáveis,<br />
tornando-se a melhor forma de comunicação<br />
escrita. Nem por isso, acrescenta Labov, podese<br />
depreciar o VNA e seus falantes, considerando-os<br />
como portadores de deficiências no<br />
raciocínio lógico, pois este dialeto possui sua<br />
lógica, podendo o lingüista demonstrar este fato.<br />
Ou seja, há de se entender que existem meios<br />
diferentes para se expressar as mesmas coisas.<br />
Retornemos à nossa pesquisa. Os sujeitos do<br />
nosso trabalho, migrantes, na sua maioria, da região<br />
do nordeste em situação de pouca escolarização,<br />
possuem um falar particularmente diferente<br />
do falar paulistano. Neste sentido, nós estivemos<br />
atentos ao como se dá a interação verbal<br />
destas pessoas dentro da sociedade paulistana<br />
tipicamente letrada.<br />
Mais especificamente, quando pensamos nos<br />
falares lusófonos, recorremos à obra da professora<br />
brasileira Ana Maria Cortez Gomes,<br />
docente de Língua Portuguesa, na Universidade<br />
de Paris 13, tese de doutorado intitulada:<br />
Structure Propositionelle et ordre des mots en<br />
Portugais Brésilien et en Portugais Européen”.<br />
Neste trabalho, Cortez Gomes (<strong>19</strong>96) apresenta<br />
uma série de traços lingüísticos diferentes<br />
entre o português de Portugal e do Brasil.<br />
Preferimos, ao invés de relatarmos aqui estas<br />
diversificações, construir uma série de categorias,<br />
que somadas às categorias de Labov, são<br />
úteis para a análise de discurso dos nossos sujeitos<br />
em termos, apenas, da fonologia e do vocabulário<br />
1 . A saber:<br />
Em termos de fonologia:<br />
1. A produção do /di/.<br />
2. A produção do /ti/.<br />
3. A produção do /uma/.<br />
4. A produção do /us/.<br />
5. A produção do /r/: no meio das palavras e<br />
no final delas.<br />
6. A produção dos grupos /lh/ e /nh/.<br />
7. A entonação das frases 2 .<br />
8. A entonação das palavras.<br />
9. A velocidade nas seqüências lingüísticas.<br />
10.Acréscimo ou diminuição de vogais na pronúncia.<br />
11. Acréscimo ou diminuição de consoantes.<br />
12.Diferenciação na pronúncia de consoantes.<br />
Marcos Bagno (<strong>19</strong>99) alerta-nos para a existência<br />
do preconceito lingüístico em nosso país,<br />
e nós acrescentamos: nas salas de aula de ensino<br />
supletivo também. Há diversos “fenômenos<br />
“ lingüísticos que ajudam a entender o preconceito.<br />
A saber:<br />
1) O fenômeno lingüístico conhecido na literatura<br />
especializada como ROTACISMO, presente<br />
na fala de muitos de nossos sujeitos ao<br />
1<br />
A tese de Ana Maria Cortez, citada na bibliografia final<br />
deste trabalho, traz também elementos importantes sobre<br />
as diferenças dialetais da língua portuguesa em termos<br />
da sua gramática.<br />
2<br />
Não conseguimos registrar a entonação das falas dos<br />
nossos entrevistados que possivelmente variariam, já que<br />
têm diversas naturalidades.<br />
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177
Pluralidade cultural, migração e o ensino da língua portuguesa no ensino fundamental<br />
QUADRO 1<br />
Etimologia do Português padrão<br />
Português padrão etimologia origem<br />
Branco blank Germânico<br />
Brando blandu latim<br />
Cravo clavu latim<br />
Fraco flaccu latim<br />
Obrigar obligare latim<br />
Prega plica latim<br />
QUADRO 2 – Os termos lexicais 3<br />
No Nordeste Na cidade de São Paulo<br />
Abodego<br />
Abufelado<br />
Afetado<br />
Ao realengo<br />
Aviar<br />
Azeitar<br />
Babaquara<br />
Baludo<br />
Bexiga-lixa<br />
Binga<br />
Bispar<br />
Bozó<br />
Espritado<br />
Cagafum<br />
Caipora<br />
Cangerê<br />
Capa-verde<br />
Fabiana<br />
França (CE)<br />
Fubeca<br />
Gê-gê<br />
Miquimba<br />
Mofumbar<br />
Oxente!<br />
Parteira<br />
Picica<br />
torrar a paciência<br />
irritado<br />
tuberculoso<br />
ao relento<br />
cobrar pressa<br />
apressar<br />
babaca<br />
rico<br />
espantoso<br />
cocô (PB), pênis (BA), fim do<br />
cigarro (AL)<br />
roubar<br />
bruxaria<br />
cão hidrófobo<br />
festa de quinta categoria<br />
fumante inveterado<br />
prostíbulo<br />
demônio<br />
ferida<br />
chicote<br />
vagabundo<br />
coisa boa, positiva<br />
besteira<br />
esconder<br />
aglutinação de “o” e “gente”<br />
guarda-chuva arrebentado<br />
ainda em uso<br />
meninote (CE)<br />
pronunciarem probrema, bicicreta... acontece<br />
também na história da língua. (Vide o Quadro<br />
1).<br />
O exemplo clássico da nossa língua foi Luís<br />
de Camões que escrevia em seus belos textos:<br />
ingrês, pubricar, pranta, frauta, frecha, já<br />
que ele era representante da província romana<br />
da Lusitânia.<br />
Para muitos alunos que têm variedades nãopadrão<br />
em cujo sistema fonético não existe encontro<br />
consonantal com L... o professor precisa<br />
ter consciência de que está trabalhando um aspecto<br />
estrangeiro da língua para estes alunos.<br />
2) Quando o paulistano fala titia, a letra t é<br />
pronunciada como ts (como em tcheco). Neste<br />
caso, observamos a ocorrência do fenômeno<br />
conhecido como PALATALIZAÇÃO. Neste<br />
caso, depois do fonema I, tudo é visto como<br />
normal. Porém, se o nordestino fala oytsu,<br />
oitcho, é motivo de riso e escárnio.<br />
3) Gostaríamos de chamar atenção também<br />
para o fenômeno da MONOTONGAÇÃO:<br />
caixa sendo pronunciada sem o i central (caxa),<br />
ou peixe, como (pêxe), presente na fala dos<br />
nossos sujeitos.<br />
4) Vale a pena ressaltar que a produção fonética<br />
do R e RR é uma das marcas de preconceito<br />
lingüístico e que este fonema aponta, entre<br />
outras pertinências, a origem geográfica e<br />
social do falante.<br />
5) Usar taio no lugar de talho, transformando<br />
o lh em i, por influência do elemento africano.<br />
6) Diz-se correno, andano, caíno... ao invés<br />
de correndo, andando, caindo, por conta<br />
do elemento negro também.<br />
7) Falar os infinitivos dos verbos sem o r<br />
final: casá, vendê, menti.<br />
8) Falar apenas o é ao invés do el tônico das<br />
palavras: papé, ané, coroné, e muié ao invés<br />
de mulher.<br />
9) Outro aspecto do rotacismo, troca do l<br />
pelo r: arto, iguar, tarco...<br />
3<br />
A maior parte destas palavras foram retiradas do livro<br />
“Assim falava Lampião: 2.500 palavras e expressões<br />
nordestinas” de Fred Navarro.<br />
178 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 173-180, jan./jun., 2003
Nilce da Silva<br />
QUADRO 3 - As palavras com diferentes sentidos.<br />
Palavra Em São Paulo No nordeste<br />
Academia local onde se pratica esporte jogo da amarelinha<br />
Bambo aquilo que não tem firmeza ter sorte<br />
Bidê aparelho sanitário mesa de cabeceira ou criado-mudo<br />
Articular unir bater-boca, discussão<br />
Cachimbo aparelho para fumar 1) Festa para comemorar o nascimento do filho;<br />
2) Bebida; 3) Apelido para soldado de polícia;<br />
4) Vagina<br />
Marinheiro funcionário da marinha Em Alagoas, coco verde. Em Pernambuco,<br />
negociante. No Ceará, estrangeiro<br />
Nata a melhor parte de qualquer coisa, secreção do catarro<br />
a elite, parte gordurosa do leite<br />
Nordeste nome da região do Brasil além do nome da região, doença que dizima o<br />
povo<br />
Pereba pequena ferida de crosta dura e fraco, sem qualidade<br />
espessa<br />
QUADRO 4<br />
– Expressões típicas do nordeste.<br />
Expressão<br />
Amarrar a cabra<br />
Amarrar o bode<br />
Arrotar farofa<br />
Com a gota-serena<br />
De boi<br />
História para menino<br />
dormir sem ceia<br />
Sentido<br />
beber demais da conta<br />
ficar de mau humor<br />
contar valentia, proeza<br />
enfurecido<br />
menstruada<br />
conversa mole<br />
10) Outra modalidade do lambdacismo: troca<br />
do r por l: calvão, celveja, galfo... Como<br />
se deu na história da língua: o provençal paper<br />
virou nosso papel; frol, do português provençal,<br />
virou flor.<br />
Finalmente, recordamos que o gerúndio torna-se<br />
ano para muitos brasileiros: andando,<br />
torna-se andano. Vide o Quadro 2, com os<br />
termos lexicais. Seguem o Quadro 3, relacionando<br />
as palavras com diferentes sentidos, e o<br />
Quadro 4, com algumas expressões típicas do<br />
nordeste.<br />
Em suma, afirmamos que, a partir da análise<br />
do discurso dos nossos sujeitos, através das<br />
categorias acima apresentadas, do vocabulário<br />
diferenciado que existe no território nacional –<br />
em termos da pronúncia, do vocabulário e até<br />
da gramática – existem variedades lingüísticas<br />
nas salas de aula de ensino supletivo na cidade<br />
de São Paulo, e a conseqüente produção de um<br />
espaço potencial tenso e conflituoso entre<br />
migrantes nordestinos e sociedade letrada paulistana,<br />
já que os primeiros se encontram em lugar<br />
novo, frente a uma nova língua, inclusive<br />
diante de uma nova modalidade da mesma, no<br />
caso, a escrita. E ainda, no nosso ponto de vista,<br />
aprender a ler e a escrever bem a língua<br />
portuguesa não garante o fim do preconceito<br />
existente entre os brasileiros no Brasil, e no<br />
mundo, como procuramos demonstrar.<br />
“ATIVIDADES PEDAGÓGICAS” E<br />
PLURALIDADE CULTURAL EM SALA<br />
DE AULA<br />
Na parte final deste artigo, gostaríamos de<br />
sugerir alguns caminhos que facilitem o trabalho<br />
do professor alfabetizador diante da diversidade<br />
cultural existente nas salas aula.<br />
Sendo assim, propomos alguns eixos que<br />
podem articular grupo necessários de atividades<br />
relativas à demanda em pauta:<br />
1. Diferentes pronúncias da Língua Portuguesa:<br />
apresentar aos alunos diferentes falares<br />
da nossa língua por meio de filmes, músicas<br />
etc<br />
2. Hierarquização social dos diferentes falas:<br />
com a auxílio da área da História mos-<br />
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179
Pluralidade cultural, migração e o ensino da língua portuguesa no ensino fundamental<br />
trar aos alunos que o desenvolvimento econômico<br />
de determinado local em determinado<br />
tempo faz com que aquele diferente falar<br />
comece a se impor sobre os demais falares<br />
e que tal fenômeno é processual.<br />
3. Relação cultura e língua: apresentar as diferentes<br />
culturas que acompanham os diferentes<br />
falares da língua portuguesa: tipos físicos,<br />
comidas, danças, literatura, fábulas...<br />
4. Preconceito: discutir com os alunos os diferente<br />
preconceitos da nossa sociedade, inclusive<br />
o lingüístico.<br />
5. Língua Padrão: apresentar a importância<br />
do domínio da escrita e da fala padrão para<br />
que possamos ser lidos e ouvidos em sociedade.<br />
6. Identidade: fazer com que o aluno procure<br />
compreender o seu próprio “eu”, chamando<br />
a atenção de que o fato de aprender a ler e<br />
a escrever provocam mudanças na identidade<br />
de cada pessoa.<br />
7. Análise lingüística: ensinar aos alunos os<br />
conceitos necessários à análise lingüística<br />
para que o mesmo possa refletir sobre sua<br />
própria fala, sobre as fala dos outros e a fala<br />
que se orienta pela norma culta.<br />
8. Mercado lingüístico: discutir com os alunos<br />
os “valores” que são atribuídos a determinados<br />
modos de falar e a importância de<br />
dominar os falares melhor avaliados, ou mais<br />
adequados, nas diferentes relações sociais.<br />
Esperamos, desta maneira, ter contribuído<br />
para a reflexão: “Pluralidade cultural, migração<br />
e o ensino da língua portuguesa no ensino fundamental”,<br />
no âmbito teórico e com indicações para<br />
a prática docente do professor alfabetizador.<br />
REFERÊNCIAS<br />
BAGNO, Marcos. Preconceito Lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo, SP: Edições Loyola, <strong>19</strong>99.<br />
BIARNÈS, Jean. Jeunes et adults en échec, mais encore! Education, Paris, v. 24, p. 24-31, mars/mai, <strong>19</strong>96.<br />
_____. O ser e as letras: da voz à letra, um caminho que construímos todos. Revista da Faculdade de<br />
Educação. São Paulo, SP, v. 24, n. 2. p. 137-161.jul./dez., <strong>19</strong>98.<br />
_____. Universalité, diversité, sujet dans l’espace pédagogique. Paris: L’Harmattan, <strong>19</strong>99.<br />
BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veut dire: l’économie des échanges linguistiques. Paris: Librairie Arthème<br />
Fayard, <strong>19</strong>82.<br />
CORTEZ-GOMES, Ana Maria. Structure Propositionelle et ordre des mots en Portugais Brésilien et en<br />
Portugais Européen. Tese (doutorado) - Faculté de Lettres/Université Paris VIII, Paris, <strong>19</strong>96.<br />
KLEIMAN, Ângela (org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da<br />
escrita. Campinas: Mercado das Letras, <strong>19</strong>95.<br />
LABOV, Willian. Le parler ordinaire: la langue dans les ghettos noirs des Etats-Unis. Paris: Les Editions<br />
des minuits, <strong>19</strong>93. (Le sens commum - collection dirigée par Pierre Bourdieu).<br />
PRETI, Dino. Sociolingüística: os níveis da fala. Um estudo sociolingüístico do diálogo na literatura brasileira.<br />
São Paulo, SP: Editora da Universidade de São Paulo, <strong>19</strong>97.<br />
WINNICOTT, D. W. Jeu et réalité : l’espace potentiel. Paris: Editions Gallimard, <strong>19</strong>75.<br />
Recebido em 28.04.03<br />
Aprovado em 15.07.03<br />
180 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 173-180, jan./jun., 2003
Sandra Simone Q. Morais Pacheco<br />
ALIMENTAÇÃO, CULTURA E EDUCAÇÃO:<br />
EM BUSCA DE UMA ABORDAGEM TRANSDISCIPLINAR<br />
Sandra Simone Q. Morais Pacheco *<br />
RESUMO<br />
Este artigo busca analisar a complexidade da relação homem/alimento, situando-a<br />
para além de um ato estritamente fisiológico, a partir da discussão<br />
acerca da importância dos aspectos culturais na formação de hábitos alimentares<br />
dos diferentes grupos sociais. Os padrões de comestibilidade, o<br />
como, o quando, o onde e o com quem comer, além do ato alimentar em si,<br />
são elementos formados coletivamente a partir de processos complexos<br />
que envolvem valores e significados inerentes aos diferentes contextos culturais.<br />
Em todas as sociedades humanas a alimentação extrapola a busca<br />
de nutrientes essenciais à vida e ganha usos e significados diversos, que<br />
refletem a própria estrutura social e os seus padrões culturais. Por outro<br />
lado, os instrumentos educacionais voltados para as mudanças no perfil<br />
alimentar de indivíduos e coletividades devem atentar para a interdisciplinaridade<br />
necessária a uma visão integral do ser humano, o que envolve<br />
conhecer as particularidades de grupos sociais específicos. A partir de<br />
uma compreensão mais ampliada da formação dos hábitos alimentares cotidianos,<br />
pode-se pensar em intervenções em que sejam respeitados os<br />
elementos culturais presentes em determinada sociedade, a fim de integrar<br />
os conhecimentos gerados no âmbito da ciência da nutrição aos oriundos<br />
dos saberes populares, que podem ser encontrados na própria prática dos<br />
profissionais envolvidos com essa temática. Esta questão também é importante<br />
quando se pensa na dimensão que tem a questão alimentar no Brasil<br />
e as recorrentes políticas públicas que minimizam os aspectos culturais<br />
fundantes de crenças arraigadas nos hábitos alimentares da população.<br />
Palavras-chave: Alimentação – Cultura – Hábito Alimentar – Educação<br />
ABSTRACT<br />
EATING, CULTURE AND EDUCATION: IN PURSUE OF A<br />
TRANS-DISCIPLINARY APPROACH<br />
This article aims at analyzing the complexity of the relation man/food,<br />
situating it beyond a strictly physiological act, departing from the discussion<br />
about the importance of the cultural aspects in the formation of eating habits<br />
of the different social groups. The standards of edibility, the how, the when,<br />
*<br />
Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Endereço para correspondência: Rua<br />
Anthenor Tupinambá, 136/404 - Pituba - 41810.680 Salvador-BA. E-mail: sandra.pacheco@terra.com.br.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 181-188, jan./jun., 2003<br />
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Alimentação, cultura e educação: em busca de uma abordagem transdisciplinar<br />
the where and the who to eat with, besides the act of eating itself, are<br />
elements formed collectively from the complex processes that involve values<br />
and meanings inherent to the different cultural contexts. In all human societies<br />
eating extrapolates the search for nutrients essential to life and gains diverse<br />
uses and meanings, which reflect the social structure itself and its cultural<br />
standards. On the other hand, the educational instruments focusing the<br />
changes in the eating profile of individuals and collectivities must cater for<br />
the inter-disciplinarity necessary to an integer view of the human being,<br />
what involves knowing the particularities of each specific social groups.<br />
Departing from a more magnified understanding of the formation of the<br />
everyday eating habits, one can think of interventions in which the cultural<br />
elements present in a given society are respected, aiming at integrating the<br />
knowledge generated in the sphere of the science of nutrition to the originated<br />
of the popular knowledge, which can be found in the practice itself of the<br />
professionals involved with this thematic. This question is also important<br />
when one thinks of the dimension that the eating question in Brazil and the<br />
recurring public politics that minimize the cultural aspects founding of beliefs<br />
inveterate in the eating habits of the population.<br />
Key words: Eating – Culture – Eating Habit – Education<br />
O ato alimentar obedece a várias necessidades<br />
e apresenta diferentes representações em<br />
distintos grupos sociais. Pode-se dizer que ele<br />
é um comportamento biológico-cultural, já que<br />
o ser humano necessita de uma alimentação que<br />
contenha os nutrientes necessários à manutenção<br />
dos nossos processos vitais, mas também é<br />
um processo adaptativo, empregado pelos seres<br />
humanos em função de suas condições particulares<br />
de existência, que variam no tempo e<br />
no espaço. Conhecendo o modo de obtenção<br />
dos alimentos, quando e por quem eles são preparados,<br />
pode-se obter uma quantidade considerável<br />
de informações sobre o funcionamento<br />
de uma dada sociedade (CONTRERAS, <strong>19</strong>93).<br />
Segundo Lévi-Strauss (<strong>19</strong>91), os alimentos, mais<br />
que bons para comer, também são bons para<br />
pensar, ou seja, são ideais para se apreciar; da<br />
mesma forma que todas as sociedades humanas,<br />
quando cozinham, transformando o cru em<br />
cozido, elaboram a passagem da natureza à<br />
cultura e traduzem inconscientemente sua estrutura<br />
(LAMÓNACA,<strong>19</strong>96).<br />
A visão biomédica vigente, praticada hegemonicamente<br />
nos serviços de assistência à saúde,<br />
traz como referencial teórico uma visão<br />
dualista de mundo postulada inicialmente na<br />
Grécia antiga, notadamente nas tradições filosóficas<br />
de Platão e Aristóteles, e encampadas<br />
depois pela ciência, através da qual firmou-se<br />
uma concepção positiva, legitimada pela matemática<br />
universal de Descartes e consolidada<br />
pelo modelo mecânico explicativo de mundo de<br />
Isaac Newton.<br />
Este legado, chamado usualmente cartesiano,<br />
traz consigo uma visão de homem dividido<br />
em reinos dicotômicos. De um lado está o homem<br />
racional, apto a dominar e controlar, e, do<br />
outro, a natureza. Este conflito homem/natureza<br />
se reproduz também no corpo humano. O<br />
homem é portador de uma mente racional que<br />
é superior e que subjuga o corpo, a materialidade.<br />
Esta dualidade filosófica e metodológica<br />
estimula e contribui para a construção de um<br />
modelo científico em que o método se direcionará<br />
no sentido de superar o conflito desta diferença<br />
ontológica entre homem e natureza,<br />
mente e corpo. Através desta superação, acredita-se<br />
ser possível estabelecer o poder do vencedor,<br />
o homem dominando e vencendo a natureza<br />
e a mente subjugando e vencendo o corpo.<br />
Esta forma de encarar e lidar com o complexo<br />
corpo/mente é, até os dias atuais, predominante<br />
no que costuma-se chamar biomedicina,<br />
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Sandra Simone Q. Morais Pacheco<br />
entendida aqui como um conjunto de práticas<br />
médicas preventivas e curativas em que o ponto<br />
de partida para o diagnóstico, tratamento, recuperação,<br />
reabilitação é o corpo biológico, destituído<br />
de subjetividade e descontextualizado sócio-culturalmente.<br />
Esse corpo é considerado como<br />
sendo uma máquina que está funcionando mal,<br />
precisando de reparos para que volte à normalidade.<br />
Esta normalidade é retomada a partir da<br />
interferência de um saber cientificamente comprovado,<br />
baseado na classificação, na experimentação<br />
empírica e na explicação descritiva, saber<br />
esse exercido por profissionais formados nas<br />
hostes daquela visão reinante.<br />
Em função da concepção acima reproduzse,<br />
na relação profissional de saúde/paciente, a<br />
dicotomia já anteriormente observada, isto é, de<br />
um lado alguém que sabe, que tem legitimidade<br />
para intervir no corpo de outro; do outro lado<br />
um ser destituído da possibilidade de opinar sobre<br />
seu próprio corpo, à mercê das interpretações<br />
científicas estabelecidas. Isto evidencia um<br />
outro aspecto importante da abordagem biomédica:<br />
a relação de poder que se estabelece a<br />
partir do saber legitimado pela ciência, em que<br />
os conteúdos, os métodos, os conceitos são saberes<br />
centralizadores, ligados a instituições que<br />
funcionam vinculadas a um discurso científico<br />
organizado no interior de uma sociedade<br />
hierarquizada (FOUCAULT, <strong>19</strong>98).<br />
Postula-se neste trabalho que esta visão ocidental,<br />
segmentada e hierarquizada, é um entrave<br />
na forma como os profissionais que lidam<br />
com alimentação compreendem e atuam nos<br />
processos educativos e de intervenção nutricional<br />
dos indivíduos atendidos em diferentes esferas<br />
do sistema médico. Os processos terapêuticos<br />
parecem ineficazes quando enfatizam o<br />
corpo biológico e destituem o sujeito de sua<br />
vivência psico-social e cultural. Sabe-se que o<br />
homem busca também nos símbolos, nas crenças<br />
e nos deuses a resolução dos males que o<br />
afligem. São comuns práticas consideradas<br />
“místicas” serem ridicularizadas por profissionais<br />
de saúde, sem que seja percebido por eles<br />
o contexto cultural onde se origina esta prática,<br />
o valor que ela tem no imaginário do grupo social<br />
de que o indivíduo faz parte.<br />
A reflexão sobre uma delimitação do campo<br />
que usualmente se define como cultura talvez<br />
seja o primeiro e mais importante passo na<br />
discussão de uma abordagem conceitual mais<br />
ampla na área de saúde e nutrição. Pode-se<br />
pensar a cultura como o próprio campo onde os<br />
comportamentos/hábitos são gerados; “... um<br />
conjunto de mecanismos de controle – planos,<br />
receitas, regras, instruções – para governar o<br />
comportamento” (GEERTZ, <strong>19</strong>89, p.56.). Para<br />
o mesmo autor, o homem é o animal mais desesperadamente<br />
dependente destes mecanismos<br />
de controle para ordenar seu comportamento,<br />
pois:<br />
... o que lhe é dado de forma inata são capacidades<br />
de resposta extremamente gerais, as quais,<br />
embora torne possível uma maior plasticidade,<br />
complexidade e, nas poucas ocasiões em que<br />
tudo trabalha como deve, uma efetividade de<br />
comportamento, deixam-no muito menos regulado<br />
com precisão (...). A cultura, a totalidade acumulada<br />
de tais padrões, não é apenas um ornamento<br />
da existência humana, mas uma condição<br />
essencial para ela – a principal base da sua<br />
especificidade (p.58).<br />
No âmbito da cultura alimentar, quando se<br />
observam as diferenças na alimentação de grupos<br />
sociais diversos, pode-se pensar que elas<br />
não ocorrem como parte de uma escolha individual<br />
ou pessoal, e sim como resultado de um<br />
complexo processo social em que são definidos,<br />
entre outras coisas, os alimentos comestíveis<br />
e como, quando, onde e com quem se<br />
come. Isso pode ser facilmente constatado<br />
quando se observa que não existe qualquer alimento<br />
cujo significado derive exclusivamente<br />
de suas características intrínsecas: todos dependem<br />
das associações culturais que a sociedade<br />
lhes atribui (CONTRERAS, <strong>19</strong>93).<br />
Os hábitos alimentares são, dessa forma,<br />
parte integrante da totalidade da cultura, apesar<br />
de sua concepção estar comumente associada<br />
a um modo padronizado de pensar, sentir<br />
ou agir que foi adquirido pelo indivíduo e tornou-se,<br />
em grande parte, inconsciente e automático.<br />
Quando se alarga esse referencial englobando<br />
a cultura percebe-se que, apesar da<br />
tendência em se achar que este comportamento<br />
habitual é movido por automatismos incons-<br />
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Alimentação, cultura e educação: em busca de uma abordagem transdisciplinar<br />
cientes, existem significados presentes nas escolhas<br />
alimentares que são sobremaneira<br />
contextualizados. Os hábitos estão embebidos em<br />
símbolos culturais (MORIN, <strong>19</strong>73). As atividades<br />
biológicas mais elementares como o comer,<br />
o beber e o defecar estão estreitamente ligadas<br />
a normas, proibições, valores, símbolos, mitos,<br />
ritos, isto é, a tudo o que há de mais especificamente<br />
cultural (MOTA; PENNA, <strong>19</strong>91).<br />
Significados sociais diversos dados aos alimentos<br />
em diferentes sociedades são amplamente<br />
relatados na literatura antropológica. A<br />
variabilidade nos modelos de alimentação humana<br />
é grande, e às vezes as diferenças são<br />
bastantes profundas. Esses significados sociais<br />
são relatados por Paul Rozin (<strong>19</strong>98), quando<br />
descreve o papel do alimento em três sociedades<br />
muito diferentes, demonstrando a grande<br />
variabilidade que ocorre na sua função social: a<br />
sociedade norte-americana, a sociedade hindu<br />
e os Hua de Papua Nova Guiné.<br />
Observa-se, primeiro, o papel do alimento<br />
em uma sociedade ocidental moderna, os Estados<br />
Unidos. Para os americanos, o alimento tem<br />
duas principais funções: a de nutrir o indivíduo<br />
e a de servir como importante fonte de prazer.<br />
Apesar de a alimentação servir de base para<br />
interações diárias ou reuniões festivas familiares,<br />
o alimento é basicamente o que está no<br />
prato. Há uma descontextualização do alimento<br />
de várias maneiras. Os alimentos são comprados<br />
em embalagens plásticas, preparados por<br />
pessoas anônimas e cultivados em fazendas<br />
automatizadas. Para a sociedade americana, é<br />
indiferente a história particular do alimento, de<br />
onde ele vem, quem preparou, seu significado<br />
simbólico.<br />
Na Índia hindu, o alimento é um, senão o<br />
principal veículo da manutenção das distinções<br />
sociais; as crenças sobre os alimentos codificam<br />
o complexo jogo das proposições morais e<br />
sociais. A qualidade do alimento servido e as<br />
condições de servir (ordem de servir, quem<br />
come as sobras de quem) são aspectos significativos<br />
de cada refeição, o que serve para definir<br />
o status dos participantes da refeição, sendo<br />
a regra básica a ser seguida aquela que dita<br />
que a pessoa não pode aceitar alimentos preparados<br />
por membros de uma casta inferior (inversamente,<br />
membros de classes mais altas<br />
podem dar alimentos para membros de castas<br />
mais baixas). “Por exemplo, na situação doméstica<br />
e nos casamentos, os melhores alimentos<br />
qualitativos são servidos mais cedo e anteriormente<br />
aos homens e para aqueles que são mais<br />
velhos” (ROZIN, <strong>19</strong>98, p.221).<br />
Entre os Hua de Papua Nova Guiné, conforme<br />
o mesmo autor, “trocas de alimentos são<br />
ligados à solidariedade e aliança social ou compromisso,<br />
e alimentar-se e alimento ajudam a<br />
definir o indivíduo” (p.221). A sua visão de<br />
mundo centra-se sobre o conceito de “nu”, uma<br />
essência vital veiculada principalmente pelo alimento<br />
e responsável pelo crescimento e saúde.<br />
Essa essência está contida no corpo do indivíduo<br />
e em todas as coisas contatadas por ele.<br />
Assim, qualquer alimento caçado, colhido, ou<br />
cozido por uma pessoa, contém seu “nu” ou sua<br />
essência vital. Esta crença tem sérias conseqüências<br />
na vida comunitária, porque um indivíduo<br />
pode adquirir propriedades particulares de<br />
uma pessoa pela ingestão de alimentos colhidos<br />
ou preparados por ela. Se a intenção da<br />
pessoa é hostil, causará mal, enquanto que um<br />
“nu” amigável beneficiará a saúde e o bem estar<br />
do indivíduo. Outro dado interessante é que<br />
“... os Hua praticam canibalismo. Eles consomem<br />
seus parentes, após a morte natural deles,<br />
para incorporar tanto suas virtudes específicas<br />
como suas boas intenções” (p.220).<br />
Quando se observa a eleição de alimentos<br />
comestíveis e não comestíveis dentro de uma<br />
sociedade, também chamam a atenção os mecanismos<br />
culturais subjacentes a esta escolha.<br />
Ainda que, em alguns grupos sociais, a seleção<br />
dos alimentos ocorra por razões técnicas e econômicas<br />
ou pelo gosto ou sabor, a sua importância<br />
maior parece ser a função que os alimentos<br />
desempenham na identidade individual<br />
e grupal, em detrimento inclusive do valor nutricional<br />
dos recursos alimentares disponíveis.<br />
Marshall Sahlins (<strong>19</strong>79), ao trabalhar a questão<br />
da comida na sociedade americana, sinaliza<br />
para o fato de que não se deve ater-se apenas<br />
à questão do consumo, pois a forma como é<br />
estabelecida a comestibilidade e a não-comesti-<br />
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Sandra Simone Q. Morais Pacheco<br />
bilidade dos alimentos disponíveis nesta sociedade<br />
não são justificáveis por razões biológicas,<br />
ecológicas ou econômicas e exemplifica<br />
isso analisando o modelo de refeição em que<br />
prevalece a carne como alimento central, ficando<br />
os carboidratos e verduras como coadjuvantes.<br />
Neste modelo de refeição, o significado da<br />
centralidade da carne relaciona-se ao fato de<br />
esta evocar o pólo masculino de um código sexual<br />
da comida, que deve ter se originado na<br />
identificação indo-européia do boi com riqueza<br />
e virilidade. No imaginário da sociedade, de<br />
modo geral, uma refeição “forte”, com “sustança”,<br />
tem que ter carne.<br />
Este autor analisa também o porquê se consome<br />
carne de boi e de porco em detrimento da<br />
carne de cavalo e de cachorro na sociedade<br />
americana. Para ele os cachorros e os cavalos<br />
não são comestíveis porque participam daquela<br />
sociedade na condição de sujeitos, que têm inclusive<br />
nomes próprios. Os cachorros são como<br />
se fossem aparentados do homem e sua ingestão<br />
é assim inconcebível, enquanto os cavalos<br />
são como se fossem empregados, sendo sua<br />
ingestão não generalizada, porém concebível.<br />
Os porcos e os bois são comestíveis, pois geralmente<br />
são considerados objetos para os humanos,<br />
levam suas vidas à parte, não são complementos<br />
diretos nem são instrumentos de trabalho<br />
das atividades humanas. Para Sahlins, a<br />
comestibilidade está, portanto, inversamente<br />
relacionada com a humanidade.<br />
Uma outra questão que fornece dados interessantes<br />
para se refletir sobre o caráter sóciocultural<br />
da alimentação é a observação das<br />
mudanças ocorridas na forma de se alimentar,<br />
ao longo da história. Essa análise foi empreendida,<br />
no bojo de uma reflexão mais ampla, por<br />
Norbert Elias (<strong>19</strong>94), ao produzir uma abordagem<br />
sociológica que denominou “sociologia<br />
figuracional ou configuracional”, na qual busca<br />
entender e abordar o surgimento das configurações<br />
sociais, a partir da análise do curso das<br />
transformações ocorridas na sociedade ao longo<br />
do tempo e que desembocaram, seguindo<br />
uma direção específica, no que se denomina<br />
desenvolvimento ou civilização. Para Elias, o<br />
processo civilizador constitui uma mudança na<br />
conduta e nos sentimentos humanos rumo a uma<br />
direção muito específica, embora que não tenha<br />
sido planejada consciente ou racionalmente,<br />
isto é, através de qualquer ação intencional<br />
de pessoas isoladas ou grupos.<br />
Uma das questões mais interessantes no trabalho<br />
de Elias é a constatação de que os hábitos,<br />
incluindo-se aí os hábitos à mesa, são<br />
construídos dentro de um processo histórico de<br />
formação. Em cada momento histórico a sociedade<br />
produz comportamentos que são aceitos<br />
e introjetados por representarem as relações<br />
sociais possíveis/presentes naquele dado contexto<br />
sócio-econômico e cultural. O homem não<br />
introduziu determinados utensílios à mesa, mediação<br />
entre o alimento e o organismo, sem que<br />
mudanças ocorressem na sociedade e dentro<br />
de si mesmo.<br />
O autor, ao analisar as mudanças operadas<br />
no âmbito do uso do garfo, observa que esse<br />
utensílio surgiu no fim da Idade Média com o<br />
objetivo de retirar alimentos da travessa comum,<br />
sendo paulatinamente introduzido como utensílio<br />
de uso individual. De início, o uso do garfo<br />
para se levar o alimento à boca era considerado<br />
um sinal exagerado de refinamento e costumava<br />
ser seriamente reprimido. Mais de cinco<br />
séculos se passariam para que o uso deste utensílio<br />
atendesse a uma necessidade mais geral:<br />
só a partir do século XVI ele passou a ser usado,<br />
e as pessoas que o fizeram inicialmente foram<br />
ridicularizadas por essa maneira “afetada”<br />
de comer, sendo que a inabilidade era tanta que<br />
metade da comida caía no caminho do prato à<br />
boca. Poder-se-ia perguntar por que se come<br />
com o garfo e não com as mãos e a resposta<br />
levaria à idéia de que comer com garfo é “civilizado”,<br />
além de mais higiênico. Para Elias:<br />
A eliminação do ato de comer com a mão do próprio<br />
prato pouco tem a ver com o perigo de contrair<br />
doença, a chamada explicação “racional” (...).<br />
O garfo nada mais é que a corporificação de um<br />
padrão específico de emoções e um nível específico<br />
de nojo. Por trás da mudança nas técnicas à<br />
mesa entre a Idade Média e os tempos modernos<br />
reaparece o mesmo processo que emergiu<br />
na análise de outras explicações desse mesmo<br />
processo: uma mudança na estrutura de impulsos<br />
e emoções (<strong>19</strong>94, p.133).<br />
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Outra análise feita por Elias (<strong>19</strong>94) diz respeito<br />
à mudança na maneira como a carne é<br />
servida. Na classe alta medieval o animal morto<br />
– ou grande parte dele – era trazido inteiro à<br />
mesa, onde era trinchado, sendo esta uma tarefa<br />
muito especial designada ao dono da casa<br />
ou a hóspedes ilustres. A partir do século XII<br />
desaparece gradualmente o costume de se colocar<br />
na mesa grandes pedaços de carne. Mudam<br />
o patamar de repugnância e o padrão de<br />
sentimentos, que se direcionam no sentido de<br />
tornar desagradável a lembrança de que o prato<br />
de carne tem algo a ver com o sacrifício do<br />
animal. O ato de trinchar que outrora se constituiu<br />
numa parte importante da vida social, depois<br />
passa a ser julgado repugnante. O animal<br />
continua a ser cortado antes de ser servido,<br />
porém o repugnante é removido para o fundo<br />
da vida social, “para longe da vista” (p.128).<br />
Os hábitos, incluindo-se aí os relacionados à<br />
alimentação, são portanto comportamentos que<br />
refletem um determinado padrão de psiquismo,<br />
que se relaciona diretamente à forma de organização<br />
social. Há uma relação importante entre<br />
mudanças no tecido das emoções, que envolve a<br />
forma como o indivíduo se relaciona consigo<br />
mesmo e com os outros, e a organização e distribuição<br />
do poder na sociedade. A construção social<br />
de um poder central, que institui normas de<br />
convivência, foi fundamental na modelagem de<br />
um padrão de comportamento que reflete, em<br />
cada época e em cada momento, os valores de<br />
uma determinada formação social.<br />
Entre os profissionais e estudantes de Nutrição,<br />
as dimensões sócio-culturais não são totalmente<br />
ignoradas na discussão sobre hábito<br />
alimentar. Alguns trabalhos nesta área enfocam<br />
temas que abrangem o processo de formação<br />
e modificação dos hábitos via veículos socializadores,<br />
como a família, as determinações sócioeconômicas,<br />
geradas pela desigualdade no acesso<br />
e possibilidade de consumo dos alimentos, e<br />
as barreiras impostas pela tradição na modificação<br />
de hábitos arraigados.<br />
Estes estudos comungam da idéia de que os<br />
hábitos alimentares se adquirem na infância<br />
(BOOG, <strong>19</strong>85; CASTRO; PELLIANO, <strong>19</strong>85;<br />
BOEHMER, <strong>19</strong>94). Pode-se falar que há uma<br />
autêntica pedagogia do gosto no contexto familiar,<br />
fazendo com que a criança, desde o seu<br />
nascimento, passe a receber os alimentos considerados<br />
adequados à sua idade, ainda que<br />
estes alimentos variem segundo as diferentes<br />
culturas e classes sociais.<br />
A família e a escola são preponderantes na<br />
formulação de um padrão alimentar. A criança<br />
cresce em um ambiente familiar que tem um<br />
comportamento alimentar definido, que se repete<br />
dia após dia e ao qual ela se adapta, sendo<br />
que este processo não se reduz à simples repetição<br />
de determinadas experiências gustativas,<br />
pois o papel que os outros membros da família<br />
exercem, ao elogiarem ou censurarem determinados<br />
alimentos e preparações, contribui também<br />
para a aquisição de determinados hábitos,<br />
e não outros (BOEHMER, <strong>19</strong>94).<br />
Ao sair do convívio basicamente familiar e<br />
penetrar no contexto escolar, o indivíduo experimentará<br />
outros alimentos e preparações e terá<br />
oportunidade de promover alterações nos seus<br />
hábitos alimentares, a partir das influências do<br />
grupo social e dos estímulos presentes no sistema<br />
educacional.<br />
A partir do final da década de 70, as abordagens<br />
enfocam as diferenças nos padrões alimentares<br />
das classes sociais como historicamente<br />
determinadas, dentro das condições postas<br />
pela estrutura social para as diferentes classes<br />
que a compõem. Nesta abordagem, os fatores<br />
essenciais na determinação dos hábitos<br />
alimentares são: a disponibilidade objetiva de<br />
certos produtos alimentares em condições específicas<br />
de clima e solo; as influências culturais<br />
do processo de colonização; a classe social<br />
como modo de vida, delimitando as práticas e<br />
hábitos; e a contínua produção de novos hábitos<br />
e práticas pela introdução de alimentos industrializados<br />
ou de alimentos não tradicionalmente<br />
usados para o consumo humano (VA-<br />
LENTE, <strong>19</strong>86).<br />
Ao lado dessas duas preocupações – a formação<br />
do hábito via socialização e como resultado<br />
de processos sociais, políticos e históricos<br />
que engendram desigualdades sociais – encontra-se<br />
a abordagem própria dos projetos de intervenção<br />
na área, que, tendo como pano de<br />
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Sandra Simone Q. Morais Pacheco<br />
fundo a promoção de ações educativas, toma o<br />
hábito como impedimento à adoção de comportamentos<br />
mais racionais frente à alimentação.<br />
Em muitos casos, é clara a força destes hábitos<br />
e a dificuldade que encontra o indivíduo em<br />
adaptar-se a novos estilos de alimentar-se, pois<br />
os hábitos ritualizam-se, incorporam-se ao cotidiano,<br />
preenchem funções simbólicas, reproduzem-se<br />
num espaço/tempo indeterminado, independentemente<br />
da função fisiológica (CAS-<br />
TRO; PELLIANO, <strong>19</strong>85).<br />
O trabalho na área de educação alimentar,<br />
cujo objetivo é geralmente a modificação e/ou<br />
introdução de hábitos, é considerado por profissionais<br />
da área de nutrição como o maior<br />
desafio da prática cotidiana. Hábitos arraigados,<br />
geralmente carregados de significados psicológicos<br />
e sociais, são profundamente difíceis<br />
de serem mudados. O paladar é um elemento<br />
importante na escolha dos alimentos e sua preparação,<br />
e, de modo geral, convencer o indivíduo<br />
a consumir ou deixar de consumir determinados<br />
alimentos é uma tarefa árdua e que nem<br />
sempre produz os resultados esperados.<br />
O Relatório Nacional Brasileiro da Cúpula<br />
Mundial da Alimentação, realizada em Roma<br />
em <strong>19</strong>96, considera que a informação correta<br />
sobre hábitos alimentares recomendáveis é um<br />
componente essencial nas políticas de combate<br />
a distúrbios nutricionais e deve ser priorizada<br />
nas ações educativas em nutrição. Esta recomendação<br />
institucional ainda cita os hábitos alimentares<br />
errôneos arraigados na população,<br />
como possível elemento contribuinte na determinação<br />
de distúrbios nutricionais de variadas<br />
ordens. Nestas recomendações, se chama atenção<br />
para uma concepção que se encontra freqüentemente<br />
na literatura da área: a idéia do<br />
hábito “errado”, gerando doenças e do “certo”,<br />
que deve ser perseguido pelo indivíduo para que<br />
ele tenha saúde.<br />
Luís da Câmara Cascudo (<strong>19</strong>67), no livro<br />
História da Alimentação no Brasil, pontua<br />
algumas predileções alimentares que os séculos<br />
tornaram hábitos, que só podem ser explicados<br />
como uma norma de uso, um respeito à<br />
herança mantida pela tradição. Para ele, os<br />
padrões alimentares são “... inarredáveis como<br />
acidentes geográficos na espécie geológica”<br />
(<strong>19</strong>67, p.4), que só se modificarão na dependência<br />
do mesmo processo de formação: o tempo.<br />
Impõe-se a compreensão da cultura popular como<br />
realidade psicológica, entidade subjetiva atuante,<br />
difícil de render-se a uma imposição legislativa<br />
ou a uma pregação teórica (...). A batalha das<br />
vitaminas, a esperança do equilíbrio das proteínas,<br />
terão de atender às reações sensíveis e naturais<br />
da simpatia popular pelo seu cardápio,<br />
desajustado e querido (...). Falar das expressões<br />
negativas da alimentação para criaturas afeitas<br />
aos seus pratos favoritos (...) é ameaçar um ateu<br />
com as penas do inferno” (p.5).<br />
O que geralmente se observa, na prática dos<br />
profissionais de nutrição que lidam cotidianamente<br />
com hábitos arraigados e considerados<br />
muitas vezes absurdos, do ponto de vista científico,<br />
é que a orientação ou educação alimentar<br />
parte de um pressuposto normativo, presente<br />
nos livros, distante da realidade social das famílias.<br />
A visão de que há uma forma única de<br />
se alimentar pode incorrer em descrença por<br />
parte da população que tem dificuldade em largar<br />
suas crenças, por vezes relacionadas à religião<br />
ou, então, por um conhecimento adquirido<br />
oralmente por influência de pessoas de prestígio<br />
dentro da comunidade.<br />
Em um país com a diversidade cultural que<br />
tem o Brasil, a implementação de políticas públicas<br />
locais é imperativa para a resolução dos<br />
problemas nutricionais, além do que a atuação<br />
dessas políticas, na esfera educativa, para que<br />
seja eficaz, necessita incorporar linguagens diversas<br />
em que as práticas alimentares incorporadas<br />
possam ser reconhecidas.<br />
As políticas públicas na área de alimentação<br />
e nutrição têm usualmente se pautado em<br />
práticas clientelistas, em que a doação de alimentos<br />
cumpre o papel central na minimização<br />
das desigualdades sociais. Os parcos resultados<br />
conseguidos por esse tipo de ação isolada<br />
têm sido apontados como resultantes de práticas<br />
limitantes e limitadoras na resolução dos<br />
problemas nutricionais. Ao se ater à distribuição<br />
de cestas básicas padronizadas à população<br />
de baixa renda, os programas não mobilizam<br />
o capital cultural que se encontra latente<br />
nos diversos grupos sociais e que poderiam ser<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 181-188, jan./jun., 2003<br />
187
Alimentação, cultura e educação: em busca de uma abordagem transdisciplinar<br />
bons impulsionadores de práticas locais, contextualizadas<br />
e organizadoras do potencial presente<br />
em cada intervenção. Nesse caso, o Programa<br />
“Fome Zero”, lançado recentemente pelo<br />
governo federal, ainda que não se paute em idéias<br />
exatamente novas, parece caminhar no sentido<br />
da parceria Estado-Sociedade, o que pode<br />
significar políticas mais participativas e efetivas<br />
na minimização da penúria nutricional em<br />
que vive grande parcela da sociedade.<br />
Pode-se dizer, portanto, que nenhuma ação<br />
governamental será efetiva sem levar em consideração<br />
a complexidade dos processos sócioculturais<br />
vividos pelos diversos atores sociais.<br />
Este trabalho buscou colaborar com essa reflexão<br />
por compreender a multiplicidade de fatores<br />
que envolve o viver em coletividade, e por acreditar<br />
que a alimentação deve ser tratada como<br />
direito humano fundamental, não só pelas necessidades<br />
orgânicas inerentes à vida, mas também,<br />
entre outras coisas, pelo seu papel nos processos<br />
de sociabilidade, de formação de identidades<br />
culturais e de sentimentos de pertencimento a<br />
grupos específicos, fatores essenciais à condição<br />
de cidadania, neste mundo da globalização e<br />
da naturalização da exclusão social.<br />
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Recebido em 02.06.03<br />
Aprovado em 07.07.03<br />
188 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 181-188, jan./jun., 2003
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães<br />
O ACESSO DE NEGROS ÀS UNIVERSIDADES PÚBLICAS<br />
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães *<br />
RESUMO<br />
Neste artigo, analiso o movimento por ações afirmativas, restringindo-me<br />
ao sistema de educação superior do país, justamente o setor mais visado<br />
pelas demandas dos militantes negros. Tais demandas encontraram respostas<br />
quase que imediatas do sistema político brasileiro, tanto por parte<br />
do governo, quanto por parte dos políticos, ainda que continue encontrando<br />
fortes resistências da sociedade civil. O meu objetivo principal é<br />
compreender as razões dessas reações tão díspares. A análise, entretanto,<br />
é antecedida por uma rápida apresentação tanto dos problemas educacionais<br />
do país, quanto das medidas que vêm sendo adotadas pelo governo<br />
e pelo sistema político em geral para contorná-los ou solucioná-los.<br />
Palavras-chave: Ação afirmativa - Negros - Educação Superior - Brasil<br />
ABSTRACT<br />
THE ADMISSION OF BLACKS TO PUBLIC HIGHER<br />
EDUCATION IN BRAZIL<br />
In this article I analyse the campaign for affirmative action policies,<br />
specifically in the national system of higher education, which is precisely<br />
the sector that is the target of demands by Black activists. These demands<br />
drew an immediate and positive response from the Brazilian political<br />
system, in the sense of the government apparatus and individual<br />
politicians. However, civil society is still very resistant. My main aim is<br />
to understand the reasons underlying these quite disparate reactions.<br />
The analysis is preceded by a brief overview of the problems in the<br />
education sector in general, as well as of the governmental measures<br />
being adopted to tackle these problems.<br />
Key words: Affirmative action – Blacks – Higher Education – Brazil<br />
Em <strong>19</strong>78, quando diversas organizações políticas<br />
e culturais negras se reuniram, em São<br />
Paulo, para fundar o Movimento Negro Unificado<br />
Contra a Discriminação Racial, as suas<br />
bandeiras de luta já não eram as mesmas herdadas<br />
da tradição das organizações negras<br />
paulistas, que remontam aos anos <strong>19</strong>20. Naqueles<br />
anos, as organizações negras nutriam o<br />
diagnóstico de que, mesmo que o “preconceito<br />
de cor” fosse um empecilho para o desenvolvimento<br />
e a integração social do povo negro brasileiro,<br />
o principal problema estava nos próprios<br />
negros, principalmente na carência de condições<br />
para competir no mercado de trabalho,<br />
*<br />
PHD em Sociologia pela Universidade de Wisconsin, Madison – EUA, e Livre docente pela USP. Professor<br />
da USP. Endereço para correspondência: Departamento de Sociologia – USP, Av. Luciano Gualberto, 315,<br />
Cidade Universitária – 06342.010 São Paulo, SP, Brasil. E-mail: asguima@uol.br<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003<br />
<strong>19</strong>1
O acesso de negros às universidades públicas<br />
dada a precariedade de educação formal, a ausência<br />
de boas maneiras e a falta de união entre<br />
os negros, ou seja, dada a fraqueza das organizações<br />
negras, vistas como incapazes de promover<br />
o avanço social dos membros da “raça” 1 .<br />
Com a democracia de <strong>19</strong>45, esse diagnóstico<br />
foi parcialmente abandonado pelas novas organizações<br />
negras, que passaram a dar mais ênfase<br />
à existência do preconceito de cor no Brasil,<br />
ainda que mantivessem o foco de seus esforços<br />
em atividades culturais, educativas e psicanalíticas<br />
(como as desenvolvidas pelo Teatro Experimental<br />
do Negro, no Rio de Janeiro). De qualquer<br />
modo, embora passasse a combater com<br />
mais afinco o “preconceito”, acreditava-se ainda<br />
que o ideal de democracia racial, característica<br />
do país, era uma ideologia suficientemente<br />
forte e progressista para abrigar e proteger a<br />
mobilização política e cultural dos negros. Apenas<br />
depois de rompida a ordem democrática, em<br />
<strong>19</strong>64, tal crença foi considerada uma “ilusão” e<br />
a democracia racial um “mito” 2 .<br />
Pois bem, nos anos <strong>19</strong>70, já não era o “preconceito<br />
racial”, mas a “discriminação racial”,<br />
o principal alvo da mobilização negra. Essa foi<br />
uma diferença crucial em relação às décadas<br />
passadas: a pobreza negra passou a ser tributada<br />
às desigualdades de tratamento e de oportunidades<br />
de cunho “racial” (e não apenas de cor).<br />
E os responsáveis por tal estado já não eram os<br />
próprios negros e sua falta de união, mas o<br />
establishment branco, governo e sociedade civil;<br />
numa palavra, o racismo difuso na sociedade<br />
brasileira. Ou seja, a posição da massa negra<br />
e a sua pobreza, tanto quanto a condição de<br />
inferioridade salarial e de poder dos negros mais<br />
educados, seriam fruto desse racismo que se<br />
escondia atrás do “mito da democracia racial”.<br />
A partir de <strong>19</strong>88, ano do centenário da abolição<br />
da escravatura e de promulgação da nova<br />
Constituição, as lideranças negras começaram<br />
a desenvolver um intenso trabalho na área de<br />
defesa dos direitos civis dos negros, principalmente<br />
aqueles garantidos pela nova carta, que<br />
tornou os “preconceitos de raça ou de cor” em<br />
crime inafiançável e imprescritível 3 . No entanto,<br />
passados poucos anos, já se tornava claro<br />
para esses militantes que a luta por direitos necessitava<br />
transpor os limites do combate aos<br />
“crimes de racismo”. Paulatinamente, portanto,<br />
voltaram-se essas organizações para o governo<br />
federal a demandar “ações afirmativas”,<br />
tais como o governo norte-americano adotara<br />
nos anos <strong>19</strong>60 e o governo sul-africano de Nelson<br />
Mandela passara a discutir. Essa demanda<br />
representou uma importante guinada na pauta<br />
de reivindicação dos negros brasileiros, dando<br />
início a uma era de luta contra as desigualdades<br />
sociais do país, vistas agora como “raciais”,<br />
independentemente do combate à discriminação<br />
e ao preconceito.<br />
Junto com o Movimento dos Sem Terra,<br />
ainda que de modo menos dramático, menos<br />
conflituoso, e de escopo social menor, quase que<br />
restrito às “novas classes médias negras” 4 , o<br />
movimento dos negros brasileiros contra as desigualdades<br />
raciais é sem dúvida uma importante<br />
forma de mobilização social no Brasil de<br />
hoje. Mobilização essa que se torna mais importante<br />
à medida que os conflitos urbanos de<br />
classe (como os protagonizados pelos sindicatos<br />
operários) tenderam a se eclipsar na esteira<br />
das reformas “neoliberais” e do realinhamento<br />
internacional da economia brasileira.<br />
Neste artigo, vou restringir a análise desse<br />
movimento por ações afirmativas ao sistema de<br />
educação superior do país, justamente o setor<br />
mais visado pelas demandas dos militantes e,<br />
por isto mesmo, responsável pelo caráter de<br />
1<br />
Ver, a respeito, as análises clássicas de Bastide e Fernandes<br />
(<strong>19</strong>55) e Fernandes (<strong>19</strong>65).<br />
2<br />
Ver Guimarães (2003).<br />
3<br />
A Constituição Federal de <strong>19</strong>88, em seu artigo n° 5,<br />
parágrafo XLII, reza: “a prática do racismo constitui crime<br />
inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão,<br />
nos termos da lei.” Esse parágrafo é regulamentado<br />
pela lei nº 7.716, de 5 de janeiro de <strong>19</strong>89, modificada<br />
depois pela lei n° 9.459 de 13 de maio de <strong>19</strong>97. Ver Silva<br />
Jr (<strong>19</strong>98).<br />
4<br />
Num país como o Brasil, onde, segundo Barros, Henriques<br />
e Mendonça (2000), em <strong>19</strong>97, 14% da população<br />
vivia abaixo da linha de indigência (R$ 76,36 mensais) e<br />
34% abaixo da linha de pobreza (R$ 152,73 mensais), a<br />
categoria “classe média” pode ser enganosa. Seria melhor<br />
dizer que estamos falando de camadas afluentes dos trabalhadores,<br />
de alguns autônomos e profissionais de pouca<br />
renda e pequenos proprietários urbanos, entre outros.<br />
<strong>19</strong>2 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães<br />
“classe média”, de que falei acima. Como veremos,<br />
essas demandas encontraram respostas<br />
quase que imediatas do sistema político brasileiro,<br />
tanto por parte do governo, quanto por<br />
parte dos políticos, ainda que continue encontrando<br />
fortes resistências da sociedade civil.<br />
Meu objetivo é compreender as razões de reações<br />
tão díspares.<br />
Antes, porém, faz-se necessário uma rápida<br />
apresentação tanto dos problemas educacionais<br />
do país, quanto das medidas que vêm sendo<br />
adotadas pelo governo e pelo sistema político<br />
em geral para contorná-los ou solucioná-los.<br />
A crise educacional brasileira<br />
O fato mais marcante na política educacional<br />
brasileira depois de <strong>19</strong>64, ou seja, depois da<br />
derrota das forças nacionalistas que entretinham<br />
um projeto socialista para o país 5 , foi a estagnação<br />
da rede de ensino público universitário,<br />
conjuntamente com a expansão do ensino privado<br />
em todos os níveis de educação – o elementar,<br />
o médio e o superior 6 . Esse relativo<br />
abandono da educação por parte do estado brasileiro<br />
é parcialmente responsável pelo fato de<br />
que apenas 7,8% da população brasileira de 18<br />
a 24 anos estivesse nas universidades em <strong>19</strong>98<br />
(IBGE/PNAD, apud SAMPAIO; LIMONGI;<br />
TORRES, 2000) 7 .<br />
Deve-se salientar, entretanto, que a solução<br />
dada pelos governos militares ao “problema<br />
educacional” do país não foi alterada pelos quatro<br />
governos democráticos depois de <strong>19</strong>85 (as<br />
administrações Sarney, Collor, Itamar e Fernando<br />
Henrique). A linha mestra continuou sendo<br />
a expansão do sistema superior de educação<br />
privada e a estagnação da rede pública. A rede<br />
privada de ensino superior, que já congregava<br />
59% dos alunos, em <strong>19</strong>85, passou a concentrar<br />
62%, em <strong>19</strong>98 (INEP-MEC, <strong>19</strong>99). Na verdade,<br />
o ensino público superior se expandiu apenas<br />
através da criação de universidades estaduais<br />
ou municipais, mas em número insuficiente<br />
para contrabalançar a retirada de investimentos<br />
na expansão da rede pública federal.<br />
De fato, a presença do governo federal na educação<br />
superior, medida em termos de alunado,<br />
caiu de 40%, em <strong>19</strong>85, para <strong>19</strong>%, em <strong>19</strong>98<br />
(INEP-MEC <strong>19</strong>99).<br />
Ora, se o problema da escassez de vagas<br />
universitárias foi parcialmente compensada pela<br />
rede privada, formou-se, com o tempo, um novo<br />
problema, pois a expansão do ensino privado<br />
elementar e médio deu-se pari passu ao crescimento<br />
da “qualidade” do serviço ofertado, o<br />
mesmo não acontecendo com o nível superior,<br />
no qual a iniciativa privada demonstrou-se incapaz<br />
de ofertar um ensino equivalente, em termos<br />
de “qualidade”, à rede pública já estabelecida<br />
8 . Isso por vários motivos, o principal deles o<br />
alto custo da formação acadêmica e da pesquisa<br />
científica, que exigem altos investimentos em<br />
recursos humanos e treinamento. No ensino<br />
elementar e médio, ao contrário, a iniciativa privada<br />
foi capaz não apenas de atrair os melhores<br />
professores, como alguns dos melhores professores<br />
tornaram-se eles mesmos, com o tempo,<br />
grandes empresários.<br />
5<br />
As forças socialistas a que me refiro eram aquelas ancoradas<br />
principalmente por três movimentos sociais: as Ligas<br />
Camponesas, no campo, que demandavam por reforma<br />
agrária; o movimento estudantil, que lutava pela ampliação<br />
das vagas das universidades públicas; e o movimento<br />
operário, nas cidades, cujas demandas eram basicamente<br />
salariais. Essas eram as principais forças sociais<br />
a trazerem para o sistema político demandas potencialmente<br />
desestabilizadoras, posto que este se organizava<br />
de modo conservador, preservando e casando os interessas<br />
das antigas oligarquias agrárias aos interesses da indústria<br />
emergente.<br />
6<br />
A tendência de crescimento do ensino privado em detrimento<br />
do ensino público é analisada em Cunha (<strong>19</strong>86). Por<br />
outro lado, Barros, Henriques e Mendonça (2001, p.<strong>19</strong>),<br />
analisando dados internacionais, chegam à conclusão de<br />
que “o sistema educacional brasileiro entre meados dos<br />
anos 60 e 80 se expandiu a uma taxa bem mais lenta que a<br />
média internacional correspondente.”<br />
7<br />
Maria Helena Guimarães de Castro (2000), usando dados<br />
do INEP/MEC, estima em 14,8% o percentual de<br />
jovens entre 20 e 24 matriculados em escolas superiores,<br />
em <strong>19</strong>98.<br />
8<br />
Uso o termo “qualidade” para designar algo que não é<br />
objetivo e unívoco, mas uma construção histórica sobre o<br />
que é o bom ensino. Em grande parte, a percepção da<br />
“qualidade” está associada ao sucesso dos alunos no vestibular,<br />
no caso do ensino de nível médio, e no mercado de<br />
trabalho, no caso do ensino superior.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003<br />
<strong>19</strong>3
O acesso de negros às universidades públicas<br />
O resultado desses dois movimentos em direção<br />
oposta foi que a rede pública e gratuita<br />
de ensino médio e elementar expandiu-se com<br />
baixa “qualidade” ou mesmo, no mais das vezes,<br />
com certa precariedade. Ora, o motivo para<br />
a melhoria do ensino fundamental e médio oferecido<br />
pela rede privada foi justamente a relativa<br />
estagnação do ensino superior, na rede pública.<br />
Isso porque, motivados pelo afunilamento<br />
da oferta de ensino superior de “qualidade”,<br />
assegurado pelo mecanismo do vestibular, as<br />
famílias de classe média e alta demandaram em<br />
números crescentes a rede privada de ensino<br />
elementar e médio, permitindo não apenas a sua<br />
expansão física, mas a melhoria da oferta dos<br />
seus serviços, reforçada ainda mais pela concorrência<br />
entre as escolas particulares. Quanto<br />
mais se acentuava a concorrência, entretanto,<br />
mais difícil ficava para os filhos das classes<br />
médias, situados na sua franja mais pobre, cursarem<br />
os melhores colégios e atingirem a universidade<br />
pública.<br />
Em meados dos anos <strong>19</strong>70, algumas parcelas<br />
da sociedade brasileira, principalmente a<br />
classe média negra, já sentiam os efeitos dessa<br />
política. Como disse Joel Rufino (<strong>19</strong>85), os jovens<br />
negros, para titularem-se, tinham de recorrer à<br />
rede particular de ensino superior, obtendo diplomas<br />
desvalorizados no mercado de trabalho,<br />
que acentuavam ainda mais a discriminação<br />
racial de que eram vítimas. Foram justamente<br />
os negros os primeiros a denunciarem, como<br />
discriminação, o relativo fechamento das universidades<br />
públicas brasileiras aos filhos das<br />
famílias mais pobres, que na concorrência pela<br />
melhor formação em escolas de primeiro e segundo<br />
graus, eram vencidas pelas classes média<br />
e alta. As provas de exame vestibular para<br />
o ingresso nas universidades públicas passaram<br />
a ser realizadas, portanto, num contexto de grande<br />
desigualdade de formação, motivada principalmente<br />
pela renda familiar. Jovens de classe<br />
média e alta, que podiam cursar as melhores e<br />
mais caras escolas elementares e de segundo<br />
grau, praticamente abocanhavam todas as vagas<br />
disponíveis nos cursos das universidades<br />
públicas e gratuitas. A perversão do sistema<br />
tornava-se clara.<br />
O que há de novo, portanto, é que, ao contrário<br />
dos anos <strong>19</strong>60, não foram as classes médias<br />
“brancas”, mobilizadas em torno de ideais<br />
socialistas e empenhadas numa política de alianças<br />
de classes, pretendendo-se, no mais das<br />
vezes, os porta-vozes de camponeses e operários,<br />
que tomaram a cena política. Quem empunhou<br />
a nova bandeira de luta por acesso às<br />
universidades públicas foram os jovens que se<br />
definiam como “negros” e se pretendiam porta-vozes<br />
da massa pobre, preta e mestiça, de<br />
descendentes dos escravos africanos, trazidos<br />
para o país durante mais de trezentos anos de<br />
escravidão. Essa juventude estudantil negra<br />
começa a realizar assim o ideal de luta socialista<br />
verbalizado por Florestan Fernandes (<strong>19</strong>72):<br />
o negro seria o mais oprimido e explorado de<br />
todos, e a sua luta a mais radical das lutas de<br />
emancipação.<br />
A demanda e as resistências às<br />
ações afirmativas<br />
A partir de <strong>19</strong>96, o presidente Fernando<br />
Henrique Cardoso passou a dar mais espaço<br />
para que a demanda por ações afirmativas, formulada<br />
pelos setores mais organizados do movimento<br />
negro brasileiro, se expressasse no<br />
governo 9 . A razão para tal abertura deveu-se<br />
não apenas à sensibilidade sociológica do presidente,<br />
ou à relativa força social do movimento,<br />
mas também à difícil posição em que a doutrina<br />
da “democracia racial” encurralava a chancelaria<br />
brasileira em fóruns internacionais, cada<br />
vez mais freqüentados por ONGs negras. O país,<br />
que se vangloriava de não ter uma questão racial,<br />
era reiteradamente lembrado das suas “desigualdades<br />
raciais”, facilmente demonstráveis<br />
pelas estatísticas oficiais, sem poder apresen-<br />
9<br />
Em julho de <strong>19</strong>96, o Ministério da Justiça organizou em<br />
Brasília um seminário internacional sobre “Multiculturalismo<br />
e racismo: o papel da ação afirmativa nos estados<br />
democráticos contemporâneos”, para o qual foram convidados<br />
vários pesquisadores, brasileiros e americanos, assim<br />
como um grande número de lideranças negras do país.<br />
O presidente em pessoa fez questão de abrir os trabalhos<br />
do seminário, acompanhado pelo vice-presidente e pelo<br />
ministro da Justiça.<br />
<strong>19</strong>4 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães<br />
tar, em sua defesa, nenhum histórico de políticas<br />
de combate a essas desigualdades. Era em<br />
busca de uma saída política que o presidente<br />
queria trazer o debate sobre ações afirmativas<br />
para perto do governo.<br />
De fato, o diagnóstico técnico sobre o caráter<br />
racial das desigualdades sociais brasileiras<br />
já era internacionalmente conhecido desde os<br />
anos <strong>19</strong>80 (SILVA, <strong>19</strong>78; HASENBALG,<br />
<strong>19</strong>79). A crise educacional brasileira, inclusive<br />
o acesso restrito de negros ao ensino superior,<br />
a má qualidade da escola fundamental pública<br />
e a grande desigualdade racial em todos os níveis<br />
de ensino, já era amplamente discutida nos<br />
meios intelectuais e políticos quando o governo<br />
social-democrata de Fernando Henrique tomara<br />
posse em <strong>19</strong>95. Em um importante artigo,<br />
publicado em <strong>19</strong>90, em que analisam dados da<br />
PNAD de <strong>19</strong>82, Hasenbalg e Silva (<strong>19</strong>90, p.99),<br />
por exemplo, chamavam a atenção para o fato<br />
de que:<br />
As informações da PNAD de <strong>19</strong>82 indicaram que,<br />
no que diz respeito ao acesso ao sistema escolar,<br />
uma proporção mais elevada de crianças não<br />
brancas ingressa tardiamente na escola. Além<br />
disso, a proporção de pretos e pardos que não<br />
têm acesso de todo à escola é três vezes maior<br />
que a dos brancos. Estas desigualdades não<br />
podem ser explicadas nem por fatores regionais,<br />
nem pelas circunstâncias sócio econômicas das<br />
famílias. Embora uma melhor situação sócio econômica<br />
reduza a proporção de crianças que não<br />
têm acesso à escola independentemente de sua<br />
cor, ainda persiste uma diferença clara nos níveis<br />
gerais de acesso entre crianças brancas e<br />
não brancas mesmo nos níveis mais elevados de<br />
renda familiar per capita.<br />
Na verdade, durante todos os anos <strong>19</strong>80 e<br />
nos cinco anos dos <strong>19</strong>90 que antecederam a<br />
posse de Cardoso, as mobilizações em torno do<br />
centenário da abolição da escravatura (<strong>19</strong>88) e<br />
dos 300 anos de Zumbi (<strong>19</strong>93) 10 possibilitaram<br />
que o diagnóstico sobre as desigualdades raciais<br />
brasileiras, assim como o racismo à brasileira,<br />
fosse amplamente discutido na imprensa<br />
(GUIMARÃES, <strong>19</strong>98). Especialmente porque,<br />
a partir da regulamentação das disposições transitórias<br />
da Constituição de <strong>19</strong>88, que tornou crime<br />
a prática de preconceitos de raça, passou a<br />
haver uma grande movimentação das ONGs<br />
negras em torno da denúncia e da perseguição<br />
legal de atos de discriminação. Foi justamente<br />
o esgotamento da estratégia de combater as<br />
desigualdades através da punição da discriminação<br />
racial que levou as entidades negras a<br />
demandar por políticas de ação afirmativa 11 .<br />
Nos primeiros tempos, de <strong>19</strong>95 até bem recentemente,<br />
a reação da sociedade civil, através<br />
de seus principais intelectuais e meios de<br />
comunicação de massa, foi largamente contrária<br />
à adoção de políticas de cunho racialista. O<br />
movimento negro, assim como os poucos intelectuais<br />
brancos que defendiam tais políticas,<br />
viram-se politicamente isolados, por mais de<br />
uma vez, sob a acusação de vocalizar e deixarse<br />
colonizar culturalmente pelos valores norteamericanos.<br />
De fato, nada mais contrário à identidade<br />
nacional brasileira, tal como foi formada<br />
historicamente – como identidade anti-colonial,<br />
culturalmente híbrida e racialmente mestiça –,<br />
que o reconhecimento étnico-racial dos negros.<br />
Assim, os que porventura tinham sólidos interesses<br />
na manutenção das desigualdades encontraram<br />
aliados cujos motivos eram puramente<br />
ideológicos, pessoas que viam nas políticas<br />
dirigidas preferencialmente aos negros a penetração<br />
no Brasil do “multiculturalismo” e do<br />
“multiracialismo” de extração anglo-saxônica.<br />
Não foi surpresa, portanto, que alguns setores<br />
do governo, mesmo diante do diagnóstico<br />
de que as barreiras educacionais que atingem<br />
os negros são o principal entrave à igualdade<br />
racial no país, tivessem resistido duramente,<br />
durante toda a administração Cardoso, à adoção<br />
de medidas racialistas (SILVA, 2000). O<br />
10<br />
Zumbi, chefe do Quilombo dos Palmares, que resistiu<br />
bravamente aos portugueses e aos holandeses, transformou-se<br />
em símbolo da resistência negra, sendo reconhecido<br />
como herói nacional brasileiro, em <strong>19</strong>95.<br />
11<br />
A campanha pela punição do racismo culminou com o<br />
endurecimento, em <strong>19</strong>93, da lei que pune as ofensas raciais<br />
com cinco anos de reclusão. A estratégia de<br />
“criminalização” do racismo passou a receber mais restrições<br />
que incentivos por parte da opinião pública, quando<br />
o crime se mostrou muito mais comum que o esperado<br />
pelo legislador.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003<br />
<strong>19</strong>5
O acesso de negros às universidades públicas<br />
Ministério da Educação, sobretudo, se recusou<br />
a aceitar o caráter “racial” das desigualdades<br />
educacionais, preferindo atribuí-las ao mau funcionamento<br />
do ensino fundamental público e a<br />
questões de renda e classe social. Para o ministro<br />
Souza (2001), o problema de acesso do<br />
negro às universidades só poderia ser resolvido<br />
através da universalização do ensino de nível<br />
fundamental e médio e da melhoria da suas<br />
condições de funcionamento, ou seja, através<br />
da política implementada durante sua gestão<br />
(<strong>19</strong>95-2002) e cujos frutos seriam colhidos pelas<br />
próximas gerações.<br />
Portanto, até 2001, quando se realiza a Conferência<br />
de Durban, o grosso da ação governamental<br />
restringiu-se ao combate à pobreza, através<br />
de programas color-blind, como os programas<br />
Alvorada, Avança Brasil e Comunidade<br />
Solidária. Até então, apenas alguns programas<br />
específicos do governo federal levavam<br />
explicitamente em consideração a identidade<br />
racial dos participantes. Estes programas eram<br />
conduzidos por ministérios em que quadros negros<br />
do partido do governo tinham alguma ascendência:<br />
Justiça (programa Nacional de Direitos<br />
Humanos), Trabalho (o projeto “Brasil:<br />
Raça e Gênero” e o PLANFOR – Programa<br />
de Formação Profissional) e Cultura (Titulação<br />
de Terras de Remanescentes de Quilombos).<br />
Em relação à pobreza, a ação governamental<br />
foi relativamente bem sucedida, mesmo porque<br />
tal redução pode ser atribuída, em grande<br />
parte, à estabilização econômica, lograda com<br />
o Plano Real. Segundo os números divulgados<br />
pelo governo brasileiro, registrados no Projeto<br />
Alvorada (BRASIL, 2000), de <strong>19</strong>90 a <strong>19</strong>97<br />
reduziu-se em 10 pontos percentuais o número<br />
de brasileiros abaixo da linha da pobreza (de<br />
44% para 34% da população).<br />
Mas, se a estabilidade diminuiu a pobreza<br />
absoluta, as desigualdades sociais, principalmente<br />
as raciais não parecem ter diminuído. É o<br />
que dizem Barros, Henriques e Mendonça<br />
(2000, p.38):<br />
O maior declínio no grau de desigualdade, apesar<br />
de pouco relevante, encontra-se na entrada<br />
da década, entre os anos de <strong>19</strong>89 e <strong>19</strong>92. Em<br />
particular, no que se refere ao Plano Real, não<br />
dispomos de evidência alguma de que tenha produzido<br />
qualquer impacto significativo sobre a<br />
redução no grau de desigualdade, apesar de a<br />
pobreza ter sofrido uma redução importante ...<br />
Ademais, se é inegável que a administração<br />
Cardoso conseguiu vitórias expressivas no terreno<br />
social 12 , a diminuição da pobreza não pode<br />
ser considerada como um ganho irreversível,<br />
mas, ao contrário, uma oscilação cuja manutenção<br />
dependerá do crescimento econômico<br />
futuro. Pelo menos é isso que sugerem os dados:<br />
Ao longo das últimas duas décadas, a intensidade<br />
da pobreza manteve um comportamento de<br />
relativa estabilidade, com apenas duas pequenas<br />
contrações, concentradas nos momentos de<br />
implementação dos Planos Cruzado e Real. Esse<br />
comportamento estável, com a percentagem de<br />
pobres oscilando entre 40% e 45% da população,<br />
apresenta flutuações associadas, sobretudo,<br />
à instável dinâmica macroeconômica do período.<br />
O grau de pobreza atingiu seus valores<br />
máximos durante a recessão do início dos anos<br />
80, quando a percentagem de pobres em <strong>19</strong>83 e<br />
<strong>19</strong>84 ultrapassou a barreira dos 50%. As maiores<br />
quedas resultaram, como dissemos, dos impactos<br />
dos Planos Cruzado e Real, fazendo a percentagem<br />
de pobres cair abaixo dos 30% e 35%,<br />
respectivamente. (BARROS; HENRIQUES;<br />
MENDONÇA, 2000, p.23)<br />
Para um país que gastava, em 2000, cerca<br />
de 20% do PIB em programas sociais, e que<br />
tinha uma renda per capita anual em torno de<br />
US$ 2.900,00, a persistência de altos níveis de<br />
pobreza só pode estar “vinculada a uma distribuição<br />
de renda extremamente desigual e à<br />
baixa eficácia do gasto público” (BRASIL,<br />
2000, p.23).<br />
A resistência da sociedade civil brasileira a<br />
políticas públicas racialistas, entretanto, foi parcialmente<br />
quebrada pela repercussão favorável,<br />
na opinião pública internacional, às posições<br />
do Brasil na Conferência Mundial Contra a<br />
Discriminação Racial, em 2001. De fato, em<br />
12<br />
Utilizando-se os dados da PNAD de <strong>19</strong>99, vê-se que, a<br />
taxa de analfabetismo caiu de 14%, em <strong>19</strong>95, para 5,5%,<br />
em <strong>19</strong>99; e que o número de crianças fora da escola oscilou<br />
de 17,8% para 4,3%, entre <strong>19</strong>89 e <strong>19</strong>99; que o número<br />
de domicílios atendidos por rede de água aumentou de<br />
76,3% para 79,8%, entre <strong>19</strong>95 e <strong>19</strong>99.<br />
<strong>19</strong>6 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães<br />
TABELA 1 - Distribuição dos estudantes segundo a cor: UFRJ, UFPR, UFMA, UnB, UFBA e<br />
USP - 2001<br />
COR UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB USP<br />
Branca 76,8 86,5 47 50,8 63,7 78,2<br />
Negra 20,3 8,6 42,8 42,6 32,3 8,3<br />
Amarela 1,6 4,1 5,9 3,0 2,9 13,0<br />
Indígena 1,3 0,8 4,3 3,6 1,1 0,5<br />
Total 100 100 100 100 100 100<br />
% de negros no Estado 44,63 20,27 73,36 74,95 47,98 27,40<br />
Déficit 24,33 11,67 30,56 33,55 15,68 18,94<br />
Fonte: Pesquisa Direta: Programa A Cor da Bahia /UFBA; I Censo Étnico-Racial da USP; e IBGE - Tabulações<br />
Avançadas, Censo de 2000.<br />
Durban, o empenho pessoal do presidente levou<br />
a chancelaria brasileira a aposentar definitivamente<br />
a doutrina da “democracia racial”, reconhecendo,<br />
em fórum internacional, as desigualdades<br />
raciais do país e se comprometendo a<br />
revertê-las através da adoção de políticas afirmativas.<br />
Como conseqüência, depois de Durban, vários<br />
segmentos da administração pública brasileira<br />
passaram a adotar cotas de emprego<br />
para negros, tais como os ministérios da Justiça<br />
e da Reforma Agrária. No entanto, no setor<br />
crucial, a Educação, tudo que se logrou foi<br />
a criação de uma comissão de trabalho, como<br />
veremos adiante.<br />
A pequena absorção de jovens “negros”<br />
nas universidades brasileiras<br />
O problema de acesso do negro brasileiro<br />
às universidades é também um problema de sua<br />
ausência nas estatísticas universitárias. Até dois<br />
anos atrás (2000), não havia em nenhuma universidade<br />
pública brasileira registro sobre a identidade<br />
racial ou de cor de seus alunos. Só quando<br />
a demanda por ações afirmativas para a<br />
educação superior fez-se sentir é que surgiram<br />
as primeiras iniciativas, na forma de censos e<br />
de pesquisas por amostra, para sanar tal deficiência<br />
13 . Nesse item vou valer-me dos dados<br />
produzidos pelas primeiras iniciativas nesse sentido,<br />
tomadas pela Universidade de São Paulo<br />
e pelo Programa “A Cor da Bahia” da Universidade<br />
Federal da Bahia.<br />
Esses dados mostram que a proporção de<br />
jovens que se definem como “pardos” e “pretos”<br />
nas universidades brasileiras, principalmente<br />
naquelas que são públicas e gratuitas, está<br />
muito abaixo da proporção desses grupos de<br />
cor na população.<br />
Vejamos alguns dados. Na Universidade de<br />
São Paulo (USP), em 2001, havia 8,3% de “negros”<br />
(ou seja, 7% de “pardos” e 1,3% de “pretos”)<br />
para uma população de 20,9% de pardos<br />
e 4,4% de “pretos” no Estado de São Paulo. A<br />
USP, com 34 mil estudantes graduação, é a<br />
única universidade pública na região da Grande<br />
São Paulo, que congrega 17 milhões de pessoas,<br />
excetuando a Escola Paulista de Medicina<br />
(Unifesp), que tinha 1.281 alunos em 2001.<br />
A tabela 1 mostra que a mesma desigualdade<br />
de acesso é registrada em outras universidades<br />
públicas do país, como a do Rio de Janeiro<br />
(UFRJ), do Paraná (UFPR), da Bahia<br />
(UFBA), do Maranhão (UFMA), e de Brasília<br />
(UnB).<br />
A análise dos dados da FUVEST, órgão que<br />
administra o vestibular para a USP, referentes<br />
aos resultados do vestibular 2000, nos permite<br />
13<br />
A pergunta sobre identidade de cor (“qual é a sua cor?”)<br />
no formulário de inscrição ao vestibular foi formulada<br />
pela primeira vez na Universidade Federal da Bahia, em<br />
<strong>19</strong>99, e hoje já consta dos formulários de muitas universidades.<br />
A única estatística oficial sobre a identidade de cor<br />
dos estudantes universitários é aquela que consta das estatísticas<br />
do Exame Nacional de Cursos, chamado<br />
“provão”, que, entretanto, não compreende todos os cursos<br />
universitários.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003<br />
<strong>19</strong>7
O acesso de negros às universidades públicas<br />
TABELA 2 - Taxa de sucesso (relação aprovados/candidatos) no vestibular 2000 por cor do<br />
candidato, segundo o nível sócio-econômico<br />
Classe/cor branca preta parda amarela indígenas total<br />
A 8,1% 5,6% 8,5% 13,1% 7,6% 8,5%<br />
B 7,4% 4,9% 6,4% 10,9% 5,6% 7,6%<br />
C 5,5% 3,0% 3,9% 8,5% 6,1% 5,5%<br />
D-E 4,2% 3,7% 2,2% 7,2% 2,0% 3,9%<br />
Fonte dos dados brutos: FUVEST (Guimarães et al. 2002).<br />
verificar alguns dos fatores que explicam a pequena<br />
absorção de “negros” nas universidades<br />
brasileiras. Em primeiro lugar, como era de se<br />
esperar, nota-se uma grande seletividade segundo<br />
as classes sócio-econômicas das famílias dos<br />
candidatos (vide Tabela 2).<br />
A tabela 2 mostra, por exemplo, que a classe<br />
sócio-econômica interfere no desempenho<br />
dos membros de todos os grupos de cor: quanto<br />
maior a classe sócio-econômica do candidato,<br />
melhor o seu desempenho, maiores as chances<br />
de acesso. A influência da classe também se<br />
manifesta através de três outras variáveis. Primeiro,<br />
a possibilidade de dedicação exclusiva<br />
aos estudos: aqueles que não precisam trabalhar<br />
têm um desempenho melhor no vestibular.<br />
Segundo, e relacionado a esse, o turno em que<br />
cursou a escola secundária: aqueles que estudaram<br />
no período diurno têm mais sucesso.<br />
Terceiro, a natureza do estabelecimento de 1º e<br />
2º graus em que se estudou: aqueles que cursaram<br />
escolas públicas estaduais e municipais têm<br />
menos possibilidade de sucesso (GUIMARÃES<br />
et al., 2001).<br />
Evidentemente, esses dados apontam para<br />
problemas estruturais da sociedade brasileira,<br />
que precisam ser enfrentados, entre os quais<br />
destacam-se a pobreza dos “negros” e a baixa<br />
qualidade da escola pública.<br />
No entanto, os dados apontam também para<br />
dois outros fatores que precisamos destacar. Em<br />
primeiro lugar, o candidato “negro” (“pardo” ou<br />
“preto”), quando comparado ao candidato que<br />
se identifica como “amarelo”, demonstra que<br />
lhe falta apoio familiar e comunitário. Assim, o<br />
maior sucesso dos “amarelos”, também uma<br />
minoria de cor, se explica, em parte, no caso da<br />
USP, pelo maior número de vezes que eles tentam<br />
o vestibular, pelo maior tempo de preparação<br />
para o vestibular, medido por anos de cursinho,<br />
e pelo fato de se inscreverem em maior<br />
número como “treineiros”. Ao contrário, são os<br />
“negros” os que estão em pior situação nesses<br />
três indicadores. Uma conclusão preliminar que<br />
se impõe, portanto, é a de que, além de problemas<br />
de ordem sócio-econômica, os “negros”<br />
enfrentam também problemas relacionados com<br />
preparação insuficiente e pouca persistência ou<br />
motivação. Problemas desse tipo acompanham<br />
todas as minorias que vivenciaram posição social<br />
subalterna por um longo período de tempo,<br />
seja porque os laços comunitários são ainda fracos,<br />
seja porque o grupo não desenvolveu uma<br />
estratégia eficiente de reversão de sua posição<br />
de subordinação.<br />
Com essa observação, chegamos ao segundo<br />
fator que gostaria de destacar: a evidência<br />
inconteste de elementos de racismo introjetado.<br />
Ou seja, o desempenho inferior dos grupos “pardo”<br />
e “preto” em todas as classes sócio-econômicas<br />
(exceto os “pardos” de classe A) sugere<br />
que há também um elemento subjetivo,<br />
talvez um sentimento de baixa auto-confiança,<br />
que interfere no desempenho dos “negros” em<br />
situação de grande competição, tal como ocorre<br />
também com outros grupos oprimidos. O fato<br />
de que situações de grande competição, como<br />
o vestibular, não medem adequadamente as<br />
qualidades e os saberes dos estudantes “negros”<br />
fica comprovado, quando comparamos o rendimento<br />
escolar e a pontuação no vestibular por<br />
grupos de cor. Mascarenhas (2001), em estudo<br />
sobre os estudantes da Universidade Federal<br />
da Bahia, achou, por exemplo, que os alunos<br />
“pretos” do curso de Medicina ingressaram com<br />
escore inferior aos “brancos”(5,32 contra 5,48),<br />
<strong>19</strong>8 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães<br />
mas durante o curso apresentavam rendimento<br />
superior aos mesmos (7,49 contra 7,31). Ou<br />
seja, tudo leva a crer que o exame vestibular,<br />
dado o seu caráter de competição extremada e<br />
tensa, prejudica mais o desempenho de membros<br />
de minorias.<br />
Com essa última observação, quero sugerir<br />
também que há problemas com a forma de seleção<br />
para as universidades: o exame vestibular<br />
não deixa espaço para que outras qualidades e<br />
potencialidades dos alunos sejam avaliadas.<br />
Sintetizando, as causas da pequena absorção<br />
dos “negros” têm a ver com (a) pobreza;<br />
(b) a qualidade da escola pública; (c) preparação<br />
insuficiente; (d) pouca persistência (pouco<br />
apoio familiar e comunitário); (e) e com a forma<br />
de seleção (o exame de vestibular não deixa<br />
espaço para que outras qualidades e potencialidades<br />
dos alunos sejam avaliadas).<br />
A luta por ações afirmativas<br />
A primeira tentativa das organizações negras<br />
de fazer face à obstrução do acesso dos<br />
negros à universidade brasileira deu-se na forma<br />
de criação de cursos de preparação para o<br />
vestibular. Organizados geralmente a partir do<br />
trabalho voluntário de militantes e simpatizantes,<br />
que se dispunham a ensinar gratuitamente,<br />
ou a um preço puramente simbólico, a jovens<br />
negros da periferia do Rio de Janeiro, São Paulo<br />
e de outras grandes cidades brasileiras, esses<br />
cursos funcionavam, e ainda funcionam, em<br />
espaços físicos cedidos por entidades religiosas<br />
ou associações comunitárias. Estima-se hoje<br />
em mais de 800 o número desses núcleos espalhados<br />
por todo o país. O mais famoso e mais<br />
amplo desses cursos é o Pré-Vestibular para<br />
Negros e Carentes, no Rio de Janeiro, e o<br />
Educafro, em São Paulo, ambos ligados à Pastoral<br />
Negra da Igreja Católica e liderados pelo<br />
Frei David (ARAÚJO, 2001; MAGGIE, 2001) 14 .<br />
Trata-se de um verdadeiro movimento social,<br />
organizado nos últimos anos por diversas lideranças<br />
“negras” e religiosas. O sucesso dessa<br />
estratégia, no entanto, é apenas relativo. Se é<br />
verdade que tais cursinhos têm conseguido ajudar<br />
milhares de jovens a ingressar no ensino<br />
superior, é também verdade que o seu sucesso<br />
é bem maior nas escolas particulares que nas<br />
públicas, o que coloca de cara o problema de<br />
custeio do curso universitário. O Ministério da<br />
Educação não tem colocado bolsas de estudos<br />
à disposição desses alunos. Mais importante<br />
ainda: as melhores escolas superiores do país,<br />
as universidades federais e estaduais paulistas,<br />
têm-se mantido praticamente inexpugnáveis a<br />
essa estratégia.<br />
De um modo geral, a defasagem entre alunos<br />
“negros” e “brancos” é tão grande, acumulada<br />
ao longo das escolas primária e secundária,<br />
fortalecida pela ausência de políticas públicas<br />
que compensem a desigualdade de distribuição<br />
de renda e de outros recursos, que a<br />
estratégia de fazer cursos pré-vestibulares para<br />
negros e carentes, apesar de valorosa e importante<br />
para soerguer a auto-estima desses alunos,<br />
cujo grande capital é a esperança (SAN-<br />
TOS, 2001), só pode ter resultados concretos<br />
(em termos de acesso a universidade) muito<br />
parciais. Em sua página na Internet, por exemplo,<br />
o Educafro, de São Paulo, torna pública a<br />
sua crítica às universidades públicas:<br />
Em São Paulo, chegamos ao mês de abril /2001<br />
com 87 bolsistas na Universidade São Francisco<br />
de Assis; 26 bolsistas na PUC-SP; 65 bolsistas<br />
na UNISA e 25 bolsistas na ESAN; 2 bolsistas<br />
na FEI; 16 bolsistas na Faculdade São Luiz; 29<br />
bolsistas na UMC; 22 bolsistas na São Camilo;<br />
144 bolsistas na Faculdades Claretianas; 105<br />
bolsistas na Unisal; 6 bolsistas na Unisantos e 7<br />
bolsistas na Unisanta. No total, até abril de<br />
2001, tínhamos 534 universitários bolsistas!!!<br />
Na pública USP, temos 46 alunos entre os matriculados<br />
e os que estão cursando como alunos<br />
especiais. O fato do vestibular da USP ser o mais<br />
elitista do Brasil, inclusive não permitindo que<br />
os pobres tenham isenção da taxa do vestibular,<br />
tem dificultado o ingresso dos nossos alunos<br />
nesta Universidade (a Educafro teve que abrir<br />
49 processos contra a USP, para conquistar a<br />
isenção). A USP, como Universidade Pública,<br />
deveria estar voltada para os alunos da rede<br />
pública. É fundamental ampliarmos o combate a<br />
esta injusta postura. É falta de visão social ou<br />
de coragem do comando da USP não criar políticas<br />
públicas voltadas para o combate das<br />
14<br />
Ver também site disponível em <br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003<br />
<strong>19</strong>9
O acesso de negros às universidades públicas<br />
estruturas que, nestes 501 anos, geraram a ausência<br />
dos pobres e dos afrodescendentes nos<br />
bancos universitários. 15<br />
Uma outra via, no entanto, tem sido tentada<br />
ultimamente, e já está implementada em alguns<br />
estados brasileiros, como o Rio de Janeiro e a<br />
Bahia, de maioria populacional negra: a definição<br />
de cotas nas universidades estaduais. Assim,<br />
em 9 de novembro de 2001, o governador<br />
Garotinho, do Rio de Janeiro, sancionou a Lei<br />
3.708, que reserva um mínimo de 40% de vagas<br />
nas universidades estaduais cariocas (a<br />
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a<br />
Universidade Estadual do Norte Fluminense) a<br />
estudantes “negros e pardos”. Essa Lei modificou<br />
a Lei 3.524/2000, assinada pelo mesmo Garotinho<br />
que reservou 50% das vagas da UERJ e<br />
UENF aos estudantes oriundos de escolas públicas.<br />
Em 20 de julho de 2002, a Universidade do<br />
Estado da Bahia (UNEB), através da resolução<br />
<strong>19</strong>6/2002, segue o mesmo caminho, reservando<br />
40% das suas vagas de vestibular aos afro-descendentes<br />
(pretos e pardos).<br />
Ainda que a importância simbólica das medidas<br />
adotadas pelos governos do Rio e da Bahia<br />
seja inegável, tem-se que esperar um pouco<br />
mais para avaliar o resultado concreto, em termos<br />
de ampliação do acesso dos negros, das<br />
políticas adotadas. Mesmo porque não sabemos<br />
qual o número atual de “negros” já matriculados<br />
nessas universidades, sendo bem possível<br />
que este já esteja dentro das cotas anunciadas.<br />
É preciso também saber se as cotas serão<br />
adotadas para cada curso ou se serão aplicadas<br />
ao seu conjunto. Só no primeiro caso há chance<br />
de abrirem-se aos negros os cursos “de elite” da<br />
universidade brasileira, tais como os de Medicina,<br />
Engenharia, Direito, etc.<br />
Alguma mobilização para que as universidades<br />
federais adotem programas de ação afirmativa<br />
começa a se fazer notar também na<br />
Universidade de Brasília, na Universidade Federal<br />
da Bahia, na Universidade Federal do Paraná<br />
e na Universidade Federal de São Carlos.<br />
No entanto, nada de concreto, até o ano de 2002,<br />
resultou dessas mobilizações, exceto, talvez, o<br />
fato de que o Ministério da Educação, que se<br />
opusera tenazmente à adoção de cotas ou políticas<br />
de ação afirmativa, restringindo a sua atuação<br />
à melhoria do ensino básico e de 2º. grau,<br />
acabou, recentemente, se rendendo às pressões<br />
da comunidade negra 16 e, através de medida<br />
provisória n° 63, de 26 de agosto de 2002, assinada<br />
pelo Presidente da República, criou o Programa<br />
Diversidade na Universidade “com a finalidade<br />
de implementar e avaliar estratégias<br />
para a promoção do acesso ao ensino superior<br />
de pessoas pertencentes a grupos socialmente<br />
desfavorecidos, especialmente dos afro-descendentes<br />
e dos indígenas brasileiros”.<br />
Essa mobilização já tinha encontrado eco<br />
anteriormente no Senado, onde a Comissão de<br />
Constituição, Justiça e Cidadania aprovara a Projeto<br />
de Lei do Senado n° 650, em <strong>19</strong>99, ainda<br />
não votado em plenário, que institui a cota de<br />
20% das vagas das universidades federais para<br />
estudantes negros. No entanto, o estabelecimento<br />
de cotas uniformes para “negros” nas universidades<br />
públicas, tal como proposto por este e outros<br />
projetos de lei em tramitação no Congresso<br />
Nacional, não parece ser uma boa alternativa.<br />
Isso porque elas ignoram as disparidades regionais<br />
em termos demográficos, assim como as<br />
especificidades de cada universidade 17 .<br />
No que toca aos universitários brasileiros, é<br />
preciso se reconhecer que há, de fato, interes-<br />
15<br />
Como resposta a essa reivindicação, a FUVEST, em<br />
São Paulo, isenta anualmente 16.000 estudantes de pagamento<br />
de taxa de inscrição para vestibular. Tal isenção se<br />
dá também em várias outras universidades brasileiras como<br />
resposta às reivindicações do movimento negro.<br />
16<br />
Usamos o termo “comunidade negra” para designar o<br />
grupo de ativistas, simpatizantes políticos e religiosos<br />
que se definem politicamente como “negros”. Tal definição<br />
é registrada por Sansone (2000).<br />
17<br />
Felizmente, nos últimos anos, temos assistido à mobilização,<br />
nas principais universidades públicas brasileiras,<br />
no sentido de produzirem estatísticas, através de censos,<br />
pesquisas por amostragem e de modificações nos registros<br />
administrativos, que possam servir para diagnosticar<br />
e planejar políticas públicas de justiça racial. A Universidade<br />
Federal de Minas Gerais, por exemplo, introduziu<br />
em seus registros administrativos, a partir da matrícula<br />
de 2002, uma pergunta sobre a cor de seus alunos. Com<br />
isso, esta universidade poderá, no futuro, estabelecer<br />
metas temporais bem delimitadas de absorção de “negros”<br />
e, eventualmente, desdobrá-las em políticas e mecanismos<br />
concretos de flexibilização dos instrumentos de<br />
seleção, como, por exemplo, a ponderação dos resultados<br />
dos exames de conhecimento, levando em conta a extração<br />
social e racial dos candidatos.<br />
200 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães<br />
ses contraditórios em jogo entre o movimento<br />
negro, por um lado, e professores e alunos já<br />
matriculados, por outro. Uns, os estudantes que<br />
tiveram uma boa educação escolar e que podem<br />
entrar nas universidades públicas através<br />
do vestibular, temem que políticas de acesso<br />
especial para negros diminuam as suas chances,<br />
posto que o número de vagas não se expande<br />
na mesma razão da expansão da demanda; outros,<br />
os professores, temem que a política educacional<br />
do governo tome a via mais fácil, cedendo<br />
às reivindicações negras, mas mantendo<br />
razoavelmente estável o investimento na educação<br />
superior pública, o que, na prática, significaria<br />
o comprometimento do nível de “qualidade”<br />
dos cursos universitários da rede pública.<br />
Ora, como vimos, parte da garantia dessa<br />
qualidade é justamente a relativa estagnação<br />
no tempo da oferta de vagas.<br />
Porque ações afirmativas<br />
Para finalizar, gostaria de mudar o tom do<br />
discurso que adotei até aqui e assumir uma posição<br />
nitidamente mais engajada, favorável às<br />
ações afirmativas que estão sendo demandadas<br />
pelo movimento negro. Para tanto, vou discutir,<br />
no restante deste texto, três argumentos,<br />
usados normalmente para desqualificar a adoção<br />
de políticas de ação afirmativa na educação<br />
superior brasileira: a sua alegada ineficácia,<br />
que seria devida à inexistência, no Brasil,<br />
de identidades de cor bem definidas; as suas<br />
possíveis implicações negativas sobre a qualidade<br />
do ensino público; e o da injustiça que elas<br />
representariam para alguns grupos sociais. Comecemos<br />
pela cor.<br />
Um dos argumentos mais fortes usados, no<br />
Brasil, contra a adoção de políticas que levem<br />
em conta a identidade racial dos indivíduos é de<br />
ordem prática: não haveria fronteiras raciais<br />
bem definidas no país. O argumento, me parece,<br />
é melhor como efeito discursivo, desarmando<br />
os adversários pelo apelo ao senso comum e<br />
às representações consensuais de si mesmo,<br />
que como apelo substantivo ou racional.<br />
Vejamos os dados disponíveis para a USP,<br />
por exemplo. Quando fizemos a pergunta<br />
“Usando as categorias do censo do IBGE, qual<br />
a sua cor?”, oferecendo como respostas possíveis<br />
as cinco alternativas censitárias (branco,<br />
preto, pardo, amarelo e indígena), dos 14.794 alunos<br />
de graduação que responderam ao censo<br />
apenas 0,1% recusou-se a responder ou escolheu<br />
mais de uma opção. Quando selecionamos<br />
uma amostra aleatória, independente do censo,<br />
composta por 1509 alunos, o percentual de nãoresposta<br />
se elevou para 1,7%. Ou seja: está claro<br />
que a população brasileira, em particular a<br />
universitária, cultiva identidade de cor. Serão<br />
essas identidades tão fluidas a ponto de impedir<br />
“políticas de cor”? Creio que não. Mesmo os<br />
autores que ressaltam a “ambigüidade” do sistema<br />
de classificação racial brasileiro, como Peter<br />
Fry (<strong>19</strong>55), reconhecem que este se assenta sobre<br />
uma polaridade básica entre branco e preto.<br />
Historicamente, é para esses pólos que convergem<br />
as reivindicações políticas.<br />
Chegados a esse ponto, talvez convenha<br />
fazer um parêntese para lembrar o que é o sistema<br />
de classificação racial brasileiro em suas<br />
linhas mestras.<br />
“Raça”, no século XIX, no Brasil e no resto<br />
do mundo, ganhou uma conotação científica,<br />
biológica, da qual mesmo hoje temos dificuldade<br />
em nos desembaraçar. Na percepção da<br />
maior parte dos estrangeiros que visitam hoje o<br />
país, assim como na percepção dos viajantes<br />
do século XIX, a população do Brasil é composta<br />
em sua maior parte por mestiços, que não<br />
encontram grandes dificuldades e barreiras<br />
para sua ascensão social 18 . Esta percepção só<br />
é verossímil, entretanto, se trabalharmos com a<br />
categoria biológica de raça, própria ao século<br />
XIX, ainda que seja um fato inquestionável que<br />
a idéia de que somos uma nação mestiça é uma<br />
ideologia ainda hoje presente no Brasil. Paradoxalmente,<br />
entretanto, isso não impede que os<br />
nacionais percebam a existência do racismo <strong>19</strong> .<br />
18<br />
Sobre a percepção dos viajantes sobre a mistura de<br />
raças no Brasil, ver Schwarcz (<strong>19</strong>93).<br />
<strong>19</strong><br />
Em pesquisa realizada em <strong>19</strong>95 por um instituto de<br />
pesquisa, 89% dos brasileiros afirmaram existir preconceito<br />
de cor no Brasil. Ver: Folha de São Paulo e DataFolha<br />
(<strong>19</strong>95).<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003<br />
201
O acesso de negros às universidades públicas<br />
No século XX, a partir da segunda metade<br />
dos anos <strong>19</strong>20, para ser mais preciso, a idéia de<br />
“raça”, no Brasil, passou a ser utilizada com um<br />
significado mais propriamente histórico e cultural,<br />
à maneira como W.E. Du Bois (<strong>19</strong>86) a utilizava,<br />
e como passou a ser também utilizada no<br />
mundo francófono pelos poetas e políticos da<br />
negritude. A partir dessa idéia mais histórica e<br />
cultural de raça, os “homens de cor” no Brasil<br />
passaram a se definir como “negros” e a aceitar<br />
que os mestiços claros que se definiam como<br />
“brancos” fossem realmente brancos. Ou seja,<br />
o Brasil moderno, cujo marco é geralmente a<br />
Revolução de <strong>19</strong>30, é um país onde o grupo racial<br />
“branco”, assim como o grupo “negro” já se encontra<br />
razoavelmente coalescido, sendo designados<br />
oficialmente pelos censos demográficos<br />
do país, desde 1872, pelas cores “branca”, “preta”<br />
e “parda”. A designação “negra” passou a<br />
ser utilizada politicamente para agrupar os pretos<br />
e pardos, quando não é usada de forma insultuosa<br />
e derrogatória. Nesse sistema classificatório,<br />
no entanto, é verdade que a designação “morena”,<br />
preferida por 1/3 da população, é usada<br />
geralmente para designar a cor nacional, ou seja,<br />
da “raça brasileira” 20 . No entanto, como comentei<br />
acima, a propósito da resposta às questões de<br />
cor, a população brasileira convive bem com as<br />
duas linguagens: a cromo-racial e a nacionalracial,<br />
o que não constitui um obstáculo incontornável<br />
para a implantação de políticas de ação<br />
afirmativa.<br />
Mas alguém pode argüir que o núcleo racional<br />
do argumento é o que aponta para o fato de<br />
que nossa identidade de cor é fluida, não sendo<br />
suficiente para controlar o “problema da carona”,<br />
ou seja, impedir que pessoas que se identificam<br />
normalmente como brancas ou amarelas<br />
se identifiquem como “pardas”, “pretas” ou “indígenas”<br />
com o propósito exclusivo de se<br />
beneficiar dessas políticas. Esse é um risco verdadeiro,<br />
cuja extensão, infelizmente, não temos<br />
meios hoje de dimensionar. Sabemos que é possível<br />
que políticas de ação afirmativa realmente<br />
induzam a um aumento razoável do número<br />
de “negros” e de “indígenas”, ou seja, que criem<br />
incentivos para que se assumam identidades<br />
até aqui marcadas por estigmas, sem nenhum<br />
reconhecimento social. Assim, a simples<br />
mobilização negra nas décadas dos <strong>19</strong>80 e <strong>19</strong>90<br />
pode ter incentivado um maior número de pessoas<br />
a se definirem como “pretas”, no censo<br />
de 2000, contrariando a tendência histórica de<br />
declínio 21 . Do mesmo modo, têm-se assistido a<br />
um aumento do número de pessoas que se definem<br />
como “indígenas”, sem qualquer referência<br />
a grupos indígenas de pertença 22 . Este, entretanto,<br />
é um risco que pode ser controlado de<br />
diversas maneiras. Mesmo porque a condição<br />
de “negro” tem sido acoplada constantemente<br />
à de “carente”. Se o risco é verdadeiro, cabe<br />
às universidades adaptar sua administração para<br />
fazer face à eventuais fraudes. Não há porque<br />
supor que estas sejam incontroláveis, o que só<br />
seria correto se não tivéssemos identidades raciais<br />
e de cor bem estabelecidas, o que é um<br />
pressuposto gratuito, como vimos. Em suma, não<br />
me parece que este seja um risco incontornável.<br />
Um outro argumento muito usado, principalmente<br />
por professores das universidades públicas,<br />
contra as políticas de ação afirmativa para<br />
negros é de que a flexibilização do sistema de<br />
ingresso poderia acarretar uma perda de qualidade<br />
do ensino e de excelência das universidades.<br />
Para não dizer que acho esta opinião preconceituosa,<br />
direi que não conheço os dados em<br />
que ela pode estar baseada. Com que notas se<br />
ingressa, normalmente, nas universidades brasileiras?<br />
Essas notas variam de curso para curso?<br />
Há uma nota mínima de aprovação? Ou<br />
seja, o que quero dizer é que a competência<br />
para cursar o nível superior deve ser uma pre-<br />
20<br />
Alguns antropólogos, como Harris et al. (<strong>19</strong>93), criticam<br />
o IBGE por não incluir a designação “morena” no<br />
censo, argumentando que tal procedimento induz a<br />
racialização das formas de identidade social.<br />
21<br />
Entre <strong>19</strong>80 e 2000, a população que se define como<br />
“preta” e “parda”, no Brasil, segundo o IBGE, teve um<br />
pequeno aumento (respectivamente de 0,23% e 0,08%)<br />
enquanto a população branca caiu de 0,81%. Foi a primeira<br />
vez que isso aconteceu no século XX.<br />
22<br />
Os dados apresentados na Tabela 1 deste texto mostram<br />
um número de indígenas muito maior do que o que<br />
seria esperado nas universidade brasileiras, não se tratando,<br />
certamente, de pessoas pertencentes a comunidades<br />
indígenas, mas de pessoas que escolheram livremente se<br />
definir como tal.<br />
202 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães<br />
ocupação das universidades, mas não acredito<br />
que todos os ‘negros” que prestem exame vestibular<br />
e obtenham nota superior à mínima, digamos<br />
5 numa escala de 0 a 10, sejam aprovados.<br />
Talvez devessem ser.<br />
Na verdade, o argumento dos professores<br />
reflete muito mais, como vimos, a falta de confiança<br />
no governo por parte da comunidade<br />
universitária. A política do Ministério da Educação<br />
em relação às universidades gerou a desconfiança<br />
de que o governo tinha a intenção de<br />
desmanchar ou, pelo menos, diminuir a importância<br />
do sistema público de ensino superior do<br />
país, construído nos anos <strong>19</strong>30, <strong>19</strong>40 e <strong>19</strong>50.<br />
Finalmente, uma terceira maneira de desqualificar<br />
as políticas públicas que beneficiam membros<br />
de grupos privilegiados negativamente tem<br />
sido alegar o prejuízo que tais medidas podem<br />
causar a membros de outros grupos. Afinal, nossos<br />
direitos são definidos e garantidos a indivíduos<br />
e não a grupos. É perfeitamente possível que o<br />
estabelecimento de uma cota que beneficie os<br />
“negros”, por exemplo, acabe por limitar o acesso<br />
de “amarelos” à universidade.<br />
Como evitar esses efeitos perversos? Em<br />
primeiro lugar, é preciso que fique bem claro o<br />
objetivo das universidades públicas: elas se destinam<br />
apenas aos mais competitivos e mais capazes?<br />
Elas se destinam apenas aos estudantes<br />
mais carentes? Qual é o perfil que se deseja<br />
para o alunado dessas escolas? Como evitar<br />
uma associação perversa entre competitividade<br />
e nível de renda? Entre competitividade e identidade<br />
racial? São essas, eu creio, as questões<br />
éticas que estão em jogo. As respostas a essas<br />
questões devem ser buscadas nas próprias comunidades<br />
universitárias e na sociedade como<br />
um todo.<br />
Há muita coisa em jogo, inclusive a sobrevivência<br />
das universidades orientadas para a pesquisa<br />
e não apenas para o ensino. Enquanto não<br />
ficar claro o compromisso do governo com a expansão<br />
da pesquisa científica nessas universidades,<br />
qualquer movimento no sentido da flexibilização<br />
do acesso pode ser mal interpretado.<br />
No entanto, a questão básica continua: a<br />
excelência acadêmica pode ficar reservada aos<br />
“brancos”? A comunidade científica pode continuar<br />
a dar de ombros e dizer que esse não é o<br />
seu problema?<br />
Em termos práticos, indico apenas algumas<br />
saídas: é preciso, em primeiro lugar, criar mais<br />
vagas, para evitar assim o “jogo de soma zero”.<br />
Em segundo lugar, talvez seja também necessário<br />
ir mais além: por uma questão de justiça<br />
social, aliar ao critério da cor o critério da carência<br />
sócio-econômica; unir políticas de flexibilização<br />
ao acesso às universidades públicas<br />
com políticas de concessão de bolsas de estudo<br />
para alunos de universidades particulares, etc.<br />
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Recebido em 30.05.03<br />
Aprovado em <strong>19</strong>.08.03<br />
204 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003
José Manuel Gonçalves<br />
RELAÇÕES ECONÔMICAS NO ATLÂNTICO SUL:<br />
EVOLUÇÃO NO INÍCIO DO SÉCULO XXI<br />
José Manuel Gonçalves *<br />
RESUMO<br />
Este artigo aborda a evolução nos dois primeiros anos do século XXI,<br />
dando seqüência a texto anterior sobre os últimos anos do século XX.<br />
Quatro países servem como base de análise: Angola, África do Sul,<br />
Argentina e Brasil, sendo que entre Brasil e África do Sul as trocas são<br />
mais importantes. O artigo trata também de outros aspectos do relacionamento<br />
econômico nesta área oceânica: o projeto de zona de livre<br />
comercio entre o Mercosul e a SACU, os interesses comuns nas negociações<br />
mundiais e os grandes traços do desempenho interno das quatro<br />
economias.<br />
Palavras-chave: Comercio Exterior – Negociações Econômicas – Transcontinentalidade<br />
ABSTRACT<br />
ECONOMICAL RELATIONS IN THE SOUTH-ATLANTIC:<br />
EVOLUTION IN THE BEGINNING OF THE 21 ST CENTURY<br />
This article approaches the evolution in the first two years of the 21 st<br />
century, giving sequence to a previous text about the last years of the<br />
20 th century. Four countries serve as base of analysis: Angola, South<br />
Africa, Argentina and Brazil, being the most important trades between<br />
Brazil and South Africa. The article also encompasses other aspects of<br />
the economical relation in this oceanic area: The project of free commerce<br />
zone between the Mercosul and the SACU, the common interests in the<br />
world negotiations and the great traces of the internal performance of<br />
the four economies.<br />
Key words: Exterior Commerce – Economical Negotiations – Transcontinentality<br />
*<br />
Doutor em Economia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFFRJ. Professor de Economia no<br />
Mestrado História da África da UCAM - Universidade Cândido Mendes. Colabora com o Mestrado em<br />
Educação e Contemporaneidade, UNEB, na organização da área de pesquisas sobre as relações entre Brasil<br />
e África no Atlântico Sul. Ex-membro do Comitê Executivo do CODESRIA - Conselho para o Desenvolvimento<br />
da Pesquisa em Ciências Sociais em África. Membro do Centro de Estudos e Desenvolvimento da<br />
Diocese do Cunene, Angola. Endereço para correspondência: Universidade Candido Mendes - Instituto de<br />
Humanidades, Praça Pio X, n.7, 9º andar, Centro – 20040.020 Rio de Janeiro, RJ. E-mail: jogo34@hotmail.com.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003<br />
205
Relações econômicas no Atlântico Sul: evolução no início do século XXI<br />
Este texto faz parte do monitoramento bienal<br />
das relações econômicas no Atlântico Sul, iniciado<br />
com um trabalho relativo aos dois últimos<br />
anos do século XX, compreendendo aqui os dois<br />
primeiros do século XXI.<br />
Trata-se de uma região oceânica, cujos<br />
limites variam consoante os trabalhos. A noção<br />
mais alargada situa todos os territórios africanos<br />
e sul-americanos ao sul do estreito de<br />
Gibraltar. Outros, reduzem para o sul do Trópico<br />
de Câncer ou até para o sul do Equador.<br />
Neste texto, como ponto de partida, abordamos<br />
apenas quatro países dos extremos meridionais<br />
de ambas as margens, mas não temos<br />
nenhuma objeção ao alargamento da base geográfica<br />
de trabalho.<br />
O relacionamento entre as regiões, nesta<br />
área do globo, compreende vários séculos, iniciando-se<br />
com as empresas ibéricas de expansão<br />
marítima e tendo incidido, essencialmente,<br />
no tráfico escravista ao longo de quase três<br />
séculos.<br />
O fim deste período deu lugar a uma fase<br />
de escassos contatos comerciais e até políticos,<br />
mantendo-se, sobretudo entre Brasil e Angola,<br />
o que poderíamos chamar de “momentos<br />
de olhar cultural”.<br />
Na década de sessenta do século XX, as<br />
ditaduras militares do cone sul latino-americano<br />
e o regime de apartheid sul-africano imaginaram<br />
a possibilidade de aliança conservadora,<br />
iniciativa frustrada. Após a guerra das Malvinas,<br />
a ONU lançou o projeto “Zona de Paz e Cooperação<br />
do Atlântico Sul” que reuniu algumas<br />
conferências com vários países de ambas as<br />
margens.<br />
As sucessivas democratizações na América<br />
do Sul e África, as articulações de países do<br />
hemisfério Sul perante a configuração econômica<br />
mundial e iniciativas acadêmicas de conhecimento<br />
recíproco fizeram emergir de novo o<br />
interesse pelo estudo da área e até pela criação<br />
de uma zona de livre comércio na mesma.<br />
De fato, é da problemática geral das integrações<br />
transcontinentais que se trata, em toda<br />
esta pesquisa, abordando uma questão que tem<br />
estado presente, sob diversas formas, ao longo<br />
da História Econômica da Humanidade.<br />
As condições do desenrolar da economia<br />
mundial, no começo do século XXI, tornam a<br />
questão ainda mais presente: as proximidades<br />
geográficas que facilitam as trocas econômicas<br />
– e outras – são hoje muito mais vastas que<br />
no passado, com o progresso dos transportes,<br />
das telecomunicações, da comunicação cultural<br />
e do movimento de capitais.<br />
A situação econômica mundial conhece uma<br />
fase recessiva, desde o começo do século, sobre<br />
a qual a situação política consecutiva aos<br />
atentados de 11 de setembro exerce uma pressão<br />
suplementar.<br />
A conjuntura que se criou dá lugar a três<br />
fenômenos :<br />
– acentua o protecionismo em setores dos<br />
países do Norte – como a industria do aço e<br />
a agricultura;<br />
– aumenta o interesse das grandes potências<br />
pelos países do Sul, no quadro da política<br />
anti-terrorista, mas faz aparecer também<br />
uma postura mais autoritária, se comparada<br />
com final do século passado, em nível do<br />
relacionamento inter-Estados e com o FMI;<br />
– movimentos internacionais de protesto, por<br />
vezes violentos, contra instituições do tipo<br />
FMI, Banco Mundial, OMC, ou mesmo o<br />
Banco Africano de Desenvolvimento e o<br />
Banco Interamericano de Desenvolvimento.<br />
Nestas condições, a arena internacional não<br />
está propícia a acordos capazes de melhorar os<br />
níveis de crescimento dos países do Sul, nem<br />
os termos de equilíbrio na relação Norte-Sul ou<br />
mesmo na relação entre economias emergentes<br />
e economias mais atrasadas.<br />
Este fato, aliás, pode provocar acréscimo e<br />
radicalização das pressões para obter tais alterações<br />
por ruptura.<br />
As barreiras impostas pelos Estados Unidos<br />
às importações de aço foram seguidas por<br />
atitude semelhante da União Européia, provocando<br />
uma prova de força entre ambos, mas<br />
também mais dificuldades para produtores de<br />
aço do Sul, como Brasil, Índia e África do Sul.<br />
No capítulo dos subsídios agrícolas – que<br />
distorcem os preços no mercado mundial em<br />
favor dos países com mais poder financeiro –<br />
eles estão em ligeira redução, segundo o rela-<br />
206 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003
José Manuel Gonçalves<br />
tório da OCDE, nesta matéria, divulgado em<br />
junho de 2002. Ainda assim, os níveis foram<br />
superiores a 350 bilhões de USD para 2001, no<br />
conjunto da OCDE, a maior parte dos quais de<br />
apoio aos produtores no que toca a preços.<br />
Dois aspectos favoráveis, porém, são importantes<br />
pelo menos para os países beneficiados.<br />
Trata-se do importante crescimento do México<br />
– hoje a maior economia latino-americana – em<br />
grande medida graças à NAFTA e o aumento,<br />
em cerca de 50%, nas exportações da África<br />
do Sul para a União Européia, em 2000 e 2001,<br />
como resultado do Acordo de Livre Comércio<br />
entre ambos.<br />
No Atlântico Sul, o fato mais marcante, desde<br />
final de 2001 a final de 2002, foi a crise argentina.<br />
A imagem deste país como tendo uma<br />
economia problemática, mas articulada e com<br />
bom nível de responsabilidade governativa, desapareceu<br />
e passou a fazer parte dos países do<br />
Terceiro Mundo, altamente problemáticos, mesmo<br />
quando no primeiro trimestre de 2003 deu<br />
sinais de recuperação.<br />
A situação da moeda argentina foi fortemente<br />
abalada e, durante meses, ficou pior que a da<br />
moeda do Brasil, tão criticada nos anos noventa<br />
por Domingo Cavallo. Com o “corralito”<br />
(blocagem de levantamento de depósitos a prazo)<br />
seu sistema bancário perdeu credibilidade<br />
interna e internacional. Como efeito de seu enfraquecimento,<br />
o país foi muito pressionado pelo<br />
FMI, que procura restabelecer seus paradigmas<br />
e autoridade à escala dos países sub-desenvolvidos.<br />
A crise provocou uma brusca mudança de<br />
Presidência da Republica e sucessivas mudanças<br />
nos ministérios mais ligados à economia,<br />
enquanto se manifesta um importante movimento<br />
social, com potencial para impor mudanças.<br />
Perspectivas de crescimento, ainda que modesto,<br />
inverteram-se: o PIB acusou em 2002, segundo<br />
dados do INDEC (2003), uma perda de<br />
10%, situando o mesmo em cerca de 93 bilhões<br />
de USD ao câmbio do começo de 2003.<br />
As incertezas do comportamento do sistema<br />
bancário e a redução do poder de compra,<br />
tanto dos consumidores como das empresas,<br />
reduzem em cerca de 59% as importações procedentes<br />
do Brasil (segundo dados oficiais citados<br />
na mídia brasileira), diminuindo o impacto<br />
do Mercosul no plano das trocas.<br />
No plano dos posicionamentos, no entanto,<br />
a crise argentina reforçou a solidariedade entre<br />
os membros do Mercosul, quase não se assistindo<br />
mais a troca de críticas entre entidades<br />
oficiais do Brasil e Argentina, como tem sido<br />
comum e como foi constante no final da década<br />
de noventa.<br />
A questão principal neste momento é avaliar<br />
até que ponto a crise argentina vulnerabiliza<br />
mais os países do Mercosul nas negociações<br />
para configurar a ALCA, nas quais o Brasil<br />
continua insistindo em bloco de garantias para<br />
não acentuar desequilíbrios com a economia dos<br />
Estados Unidos.<br />
O Brasil absorveu relativamente bem a crise<br />
do Real de <strong>19</strong>99, manteve baixas taxas de<br />
inflação e permaneceu como um dos maiores<br />
destinos no Sul para Investimento Direto Estrangeiro<br />
(IDE), mas não reduziu significativamente<br />
as taxas de desemprego nem as elevadas<br />
faixas de pobreza, o que retira a sustentabilidade<br />
do modelo.<br />
Para acentuar este elemento, no começo de<br />
2002 tornou-se evidente que a elevada dívida<br />
interna do governo federal reduzia o interesse<br />
do mercado pelos títulos da dívida publica, o que<br />
provocou surtos de subida do dólar e oscilações<br />
em baixa da bolsa. As particularidades da campanha<br />
pré-eleitoral para a Presidência foram,<br />
por seu lado, aproveitadas pelo capital especulativo<br />
para ataques no mercado de câmbios e<br />
no financeiro em geral.<br />
Mesmo assim, o Brasil conseguiu um dos<br />
maiores saldos de sua balança comercial nesse<br />
mesmo ano e uma subida do PIB da ordem de<br />
1,5%, colocando-o em cerca de 388 bilhões de<br />
USD, ao câmbio de final de março de 2003<br />
(IBGE, 2003)<br />
A conjuntura sul-africana se assemelha à do<br />
Brasil, com respeito à inflação relativamente<br />
baixa (pelo menos em termos africanos), no<br />
caráter atraente de alguns setores da economia<br />
do país ao capital internacional e, também,<br />
na persistente blocagem do mercado de trabalho,<br />
portanto, no alto índice de desemprego.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003<br />
207
Relações econômicas no Atlântico Sul: evolução no início do século XXI<br />
Tal como no Brasil, o grande desemprego está<br />
relacionado com as camadas de mais baixo nível<br />
profissional, mas com as atuais taxas de crescimento,<br />
a interrogação de base é se programas<br />
de formação em larga escala não produzirão um<br />
número elevado de desempregados saídos desses<br />
programas, em ambos os países.<br />
Tal como o Real, o Rand também tem foi alvo<br />
de ataques especulativos ou de depressões por<br />
desconfiança do mercado. O ano de 2001 conheceu<br />
a mais vertiginosa queda da moeda sul-africana<br />
e, um inquérito posterior detectou, entre as<br />
causas, uma seqüência de três grandes operações<br />
do Banco da Alemanha (Deutsche Bank)<br />
relativas a três grandes empresas sul-africanas.<br />
No começo do segundo trimestre de 2002, o<br />
Rand recuperou grande parte das perdas do ano<br />
anterior e um acordo (quase todo secreto) de<br />
compensação foi assinado entre o Deutsche e<br />
o Banco de Reserva da África do Sul. De setembro<br />
a dezembro de 2002, a recuperação foi<br />
de 18%, a ponto que, em começo de 2003, os<br />
exportadores queixavam-se que o Rand estava<br />
forte demais (Business Day, vários números de<br />
março 2003).<br />
Assim, apesar de uma inflação que, pela<br />
primeira vez em vários anos, chegou a 10%, o<br />
PIB sul-africano cresceu 2,6%, segundo dados<br />
do Reserve Bank, situando o país acima da<br />
média dos 30 membros da OCDE. Partindo dos<br />
dados do Banco Mundial (WORLD BANK,<br />
2002) para 2001, esta taxa de crescimento situa<br />
o PIB sul-africano na faixa dos 115 bilhões<br />
de USD em 2002.<br />
Nestes primeiros anos do século XXI, a<br />
África do Sul lidera, junto com o Senegal, Egito<br />
e Nigéria, uma campanha internacional para<br />
captação constante de investimentos, capazes<br />
de assegurar o sucesso do programa Nova Parceria<br />
para o Desenvolvimento da África<br />
(NEPAD).<br />
Iniciativas do mesmo tipo já foram tomadas<br />
no passado, sendo os principais exemplos, o<br />
Plano de Lagos na década de setenta – de forte<br />
cunho nacionalista – e um Programa de Recuperação<br />
elaborado na Comissão Econômica<br />
para África da ONU, nos anos oitenta, já mais<br />
“market orientated”.<br />
A NEPAD acentua esta viragem e procura<br />
criar condições de infra-estrutura para a recuperação<br />
das economias africanas sob condições<br />
institucionais estimulantes. Visando uma taxa<br />
de crescimento da ordem dos 7%, durante todo<br />
um período (dificilmente determinável mas que<br />
pode situar-se num mínimo de uma década), as<br />
exigências de investimento seriam de cerca de<br />
64 bilhões de USD anuais, o que é considerado<br />
como incomportável na presente conjuntura<br />
mundial, segundo declarações atribuídas a responsáveis<br />
do G-8.<br />
A viabilidade deste programa e a sua diferença<br />
dos anteriores fracassos, residirá na capacidade<br />
africana de aumentar e mobilizar sua<br />
própria poupança interna, valorizando sua produção<br />
e aumentando os níveis dos recursos<br />
humanos.<br />
De qualquer forma, as expectativas em<br />
relação à NEPAD se estendem a todas as economias<br />
do continente africano e marca o conjunto<br />
de seu relacionamento externo.<br />
Outro projeto que pode marcar as economias<br />
do extremo sul da África, a zona de livre<br />
troca da Comunidade de Desenvolvimento de<br />
África Austral (SADC), vai ganhando contornos<br />
jurídicos, mas na prática pouco avançou em<br />
relação a <strong>19</strong>99. Quer dizer, as trocas entre os<br />
membros não se alterou muito, continuando a<br />
África do Sul a constituir um eixo muito desequilibrado<br />
de troca em função de sua incomparável<br />
capacidade produtiva.<br />
A quarta economia que acompanhamos nesta<br />
pesquisa, Angola, voltou a revelar mais recursos<br />
na área petrolífera e uma maior controle<br />
na extração e comercialização de diamantes,<br />
ficando a produção agrícola e industrial em níveis<br />
exíguos – 7% e 3,5% do PIB respectivamente<br />
– enquanto a inflação permanece em 3<br />
dígitos.<br />
O petróleo permanece acima dos 60% do<br />
PIB e atinge cerca de 80% das exportações.<br />
As importações continuam a centrar-se em<br />
bens de consumo imediato e alguns bens de<br />
equipamento, automóveis sobretudo. Em 2000,<br />
Portugal, com 15,9%, e Estados Unidos, com<br />
10,3%, são os maiores fornecedores, mas a<br />
África do Sul subiu ao terceiro lugar, quase em<br />
208 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003
José Manuel Gonçalves<br />
igualdade com os norte-americanos. A África do<br />
Sul representa 10,2% das importações angolanas<br />
(EIU, 2001), o que constitui um dos raros<br />
casos de elevado reforço de relações comerciais<br />
na zona SADC e, de certa maneira, reduz os<br />
efeitos da queda nas relações sul-africanas com<br />
o Zimbabwe, em virtude da crise neste país.<br />
A este volume, aliás, deve somar-se o<br />
comércio através da fronteira de Angola com a<br />
Namíbia, sobretudo na área do Cunene, com<br />
grande impacto no Sudoeste angolano. Grande<br />
parte do movimento é informal o que dificulta a<br />
recolha estatística. A maioria dos produtos é de<br />
origem sul-africana, comercializados por empresas<br />
namibianas, muitas vezes filiais de matrizes<br />
da África do Sul<br />
A subida dos preços do petróleo em 2003<br />
deve permitir que o PIB angolano atinja os 10<br />
bilhões de USD até final do ano, com base nos<br />
dados sobre o PIB em 2002 publicados pelo<br />
Banco Mundial (WORLD BANK, 2002)<br />
Mas o fato mais relevante é o fim da longa<br />
guerra civil e as fracas possibilidades de que<br />
possa recomeçar, como ocorreu em <strong>19</strong>92. Apesar<br />
disso, os efeitos do conflito exigem tempo<br />
para serem superados e, por exemplo, quase<br />
três milhões de pessoas continuam na situação<br />
de deslocadas.<br />
A corrupção, problema grave nos quatro países,<br />
assume em Angola aspectos mais repugnantes,<br />
dada a escala da pobreza. O fim da guerra<br />
já produziu algumas aberturas que autorizam uma<br />
abordagem publica mais livre e implicando prestação<br />
de contas.<br />
Consultas internacionais decorrem desde<br />
março de 2002 para convocar uma conferência<br />
internacional financeira, de onde possa sair<br />
apoio às intenções angolanas de reconstrução<br />
e, neste quadro, há indicações de empenho por<br />
parte do Brasil que reabriu sua linha de crédito<br />
com Angola e que vai recebendo carregamentos<br />
de petróleo para amortizar a dívida angolana<br />
anterior.<br />
Esta linha de crédito é, aliás, responsável pela<br />
reativação do comércio entre os dois países,<br />
colocando o Brasil em quinto lugar na lista das<br />
importações angolanas, com 4,4% do total em<br />
2000 (EIU, 2001).<br />
No começo do segundo semestre de 2002,<br />
Angola e Uruguai assinaram um acordo de cooperação<br />
agrícola.<br />
As relações econômicas entre os dois países<br />
africanos e os dois sul-americanos, considerados<br />
neste trabalho, aumentaram nos três<br />
últimos anos tendo o Brasil como ponto fulcral.<br />
São as trocas entre Brasil e África do Sul e<br />
Brasil e Angola que determinam a evolução, que<br />
se processa agora num marco institucional um<br />
pouco diferente do século XX e com tendência<br />
para se modificar mais ainda.<br />
Na reunião de Cúpula do Mercosul de 2000<br />
em Florianópolis, o Presidente sul-africano<br />
Thabo Mbeki esteve presente e foi assinado um<br />
acordo para negociações sobre a criação de<br />
uma zona de livre comércio entre ambos. Embora<br />
tal acordo se destine apenas a promover<br />
negociações, sua existência e a realização (durante<br />
a visita de Mbeki) de uma compra importante<br />
de aviões brasileiros, por uma empresa<br />
da África do Sul, funcionaram como ponto de<br />
partida para aumento das trocas.<br />
Em 2001, o Presidente moçambicano, Joaquim<br />
Chissano, na qualidade de Presidente da<br />
SADC esteve na reunião do Mercosul em<br />
Assunção, Paraguai. Meses mais tarde, o Chefe<br />
de Estado angolano, José Eduardo dos Santos,<br />
visitou uma vez mais o Brasil, em termos<br />
bilaterais, num momento em que também aumentavam,<br />
percentualmente, as trocas entre os<br />
dois países.<br />
O primeiro passo concreto das negociações<br />
Mercosul-África do Sul foi a elaboração de uma<br />
lista de produtos a isentar de direitos aduaneiros,<br />
submetida pelos sul-americanos e que deve<br />
ter resposta sul-africana em data próxima à<br />
redação deste artigo.<br />
Progressos deste tipo provocaram reações<br />
várias, entre as quais o aumento do interesse<br />
entre diversas empresas de ambos os lados do<br />
Atlântico e algumas reclamações de proteção<br />
no caso de assinatura do acordo formal.<br />
Neste caso, foi bastante noticiada, em finais<br />
de maio de 2002, a declaração da entidade sulafricana<br />
de produção e comercialização de<br />
frangos, sublinhando a fatia de mercado da<br />
África do Sul já ocupada pelo frango brasileiro<br />
e receando seu aumento esmagador.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003<br />
209
Relações econômicas no Atlântico Sul: evolução no início do século XXI<br />
O diretor-geral do ministério do Comércio e<br />
Industria da África do Sul, na sua resposta, forneceu<br />
duas indicações importantes: ainda não<br />
há decisões concretas em nível de produtos, mas,<br />
até final deste ano, o acordo na generalidade já<br />
deverá revelar seu perfil; nesse sentido, o governo<br />
da África do Sul sabe da existência de<br />
reservas na área agrícola, mas chama a atenção<br />
para as vantagens que considera existirem<br />
para o conjunto da economia.<br />
Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento,<br />
Indústria e Comércio Exterior do Brasil<br />
(MDCI, 2002), as exportações brasileiras<br />
para a África do Sul, no ano 2000, progrediram<br />
27,37% em relação a <strong>19</strong>99, tendo as importações<br />
acusado um movimento de subida em<br />
32,15%. O ano de <strong>19</strong>99 não representa um bom<br />
termo de comparação por ter sido um dos mais<br />
baixos em toda a década de 90, sobretudo no<br />
que se refere às exportações sul-africanas.<br />
No ano 2000, estas exportações situam-se,<br />
apesar da recuperação relativa ao ano anterior,<br />
em cerca de 50% inferiores a <strong>19</strong>96.<br />
Em 2001 o Brasil aumentou em 40,28% suas<br />
vendas para a África do Sul, graças em larga<br />
medida aos aviões Embraer, que naquele ano<br />
constituíram o primeiro item. Esse ano foi o<br />
ponto mais alto nas exportações do Brasil para<br />
a África do Sul em vinte anos.<br />
As exportações sul-africanas em 2001 tiveram<br />
crescimento anualizado de 25,55%, o que<br />
já revela uma tendência para se aproximar dos<br />
melhores desempenhos da década anterior.<br />
As trocas entre os dois países continuaram<br />
assentes em material de transporte do Brasil e<br />
produtos de origem mineral sul-africana.<br />
A mesma fonte (MDIC, 2002) revela que<br />
as exportações do Brasil para Angola, em 2000,<br />
aumentaram 65,78% em relação ao ano anterior,<br />
continuando sua progressão em 2001 de<br />
33,58%, aproximando-se dos níveis de <strong>19</strong>94 –<br />
os mais altos da década de 90.<br />
As exportações angolanas para o mercado<br />
brasileiro subiram 17,15% em 2000 e 457,27%<br />
em 2001, ano em que a balança comercial bilateral<br />
foi favorável a Angola e atingiu o ponto<br />
mais alto das exportações com este destino<br />
desde <strong>19</strong>88.<br />
Os produtos vendidos pelo Brasil foram sobretudo<br />
do setor alimentar e de material de transporte,<br />
enquanto que a exportação angolana é<br />
constituída por petróleo, não se incluindo, nas<br />
porcentagens referidas, os carregamentos destinados<br />
à cobertura da dívida anterior.<br />
As trocas da África do Sul com a Argentina<br />
estão em baixa desde <strong>19</strong>98, sendo a balança<br />
favorável à Argentina em 2000 (INDEC, 2001).<br />
Os montantes, em ambos os sentidos, nesse ano,<br />
foram significativamente inferior às trocas com<br />
o Brasil, como se vê nos quadros anexos.<br />
No caso Argentina-Angola, houve subida no<br />
comércio em 2000, mas com totais pouco relevantes.<br />
Fazendo uma adição do movimento registrado<br />
em 2000, os dois países africanos exportaram<br />
para a Argentina e Brasil cerca de 360<br />
milhões de USD e importaram 664 milhões de<br />
USD, situando, portanto, o volume total um pouco<br />
acima do um bilhão de USD, percentualmente<br />
diminuto em relação ao comércio exterior<br />
global dos quatro países, com uma relativa<br />
exceção das importações angolanas.<br />
Em 2001, considerando apenas o comércio<br />
entre o Brasil e os dois africanos, verifica-se<br />
que ultrapassa os totais do ano precedente em<br />
relação aos quatro.<br />
No curto prazo, em virtude das incertezas da<br />
conjuntura na Argentina, serão as relações entre<br />
esses três países que vão demonstrar o potencial<br />
de troca no Atlântico Sul. A conclusão, mesmo<br />
parcial, do Acordo iniciado em Florianópolis<br />
e a evolução da linha de crédito Brasil-Angola<br />
constituem os grandes instrumentos.<br />
Mas, além das trocas comerciais, um outro<br />
aspecto do relacionamento ganha mais dimensão<br />
e revela potencial prático, dada a semelhança<br />
de interesses: a articulação de posições<br />
sobre as negociações econômicas no quadro da<br />
Organização Mundial do Comércio (OMC).<br />
210 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003
José Manuel Gonçalves<br />
ANEXO ESTATÍSTICO<br />
TABELA 1 - PIB das quatro economias - em bilhões<br />
de USD a preços do mercado<br />
Países/ano <strong>19</strong>97 2002*<br />
África do Sul 129,200 135,000<br />
Angola 7, 396 8,800<br />
Argentina 321, 384 200,000<br />
Brasil 739, 009 530,000<br />
* Estimativas.<br />
Fontes: Africa: WORLD BANK, “World Development<br />
Report”, <strong>19</strong>98/9; América Latina: Indicadores de Ciencia<br />
y Tecnologia, RICYT, OEA, <strong>19</strong>97.<br />
TABELA 2 - Relações comerciais África do Sul -<br />
Angola (<strong>19</strong>98)<br />
Milhões % sobre<br />
Movimento<br />
de Rands* <strong>19</strong>97<br />
Exportações 1.064,6 +22%<br />
Importações 9,3 - 96%<br />
* 1 USD = 6 rands<br />
Fonte: IDC in “Business Day”, Johannesburg 10.05.99.<br />
TABELA 3 - Relações comerciais África do Sul -<br />
Países SADC fora da zona Rand (<strong>19</strong>98)<br />
Movimento<br />
Milhões % sobre<br />
de Rands* <strong>19</strong>97<br />
Exportações 15 387,5 +1,9%<br />
Importações 2 065,3 -10,3%<br />
* 1 USD = 6 rands<br />
Fonte: IDC in “Business Day”, Johannesburg 10.05.99.<br />
TABELA 5 - Argentina em <strong>19</strong>97<br />
(milhões de USD)<br />
Países Exportações Importações<br />
Angola 3981,2 5 656,6<br />
África do Sul 302 978,6 109 335,6<br />
Fonte: I.N.D.E.C. - Buenos Aires<br />
TABELA 6 - Relações comerciais<br />
África do Sul - Brasil<br />
Anos Exportações Importações<br />
2000 227.754.664 302.141.830<br />
2001 285.943.909 423.838.849<br />
Fonte: MDIC.<br />
TABELA 7 - Relações comerciais<br />
Argentina - África do Sul<br />
Ano Exportações Importações<br />
2000 243.887.000 85.791.000<br />
Fonte: INDEC.<br />
TABELA 8 - Relações comerciais<br />
Brasil - Angola<br />
Anos Exportações Importações<br />
2000 106.269.<strong>19</strong>4 31.415.792<br />
2001 141.955.984 175.069.234<br />
Fonte MDIC.<br />
TABELA 4 - Brasil em <strong>19</strong>97 (milhões de USD)<br />
Países Exportações Importações<br />
Angola 81 795 36 801<br />
África do Sul 331675 366914<br />
Fonte: MITC/SECEX / Dep. Promoção Comercial do Min.<br />
Relações Exteriores - Brasília.<br />
TABELA 9 - Relações comerciais<br />
Angola - Argentina<br />
Ano Exportações Importações<br />
2000 11.759.000 15.323.000<br />
Fonte: INDEC.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003<br />
211
Relações econômicas no Atlântico Sul: evolução no início do século XXI<br />
REFERÊNCIAS<br />
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Industria e Comercio Exterior: <strong>19</strong>82 a primeiro trimestre de 2002.<br />
Brasília, DF: MDIC. Secex 2002.<br />
CEA-USP/SDG Marinha/CAPES. A Dimensão Atlântica da África. São Paulo, SP: CEA-USP/SDG Marinha/<br />
CAPES, <strong>19</strong>97.<br />
ECONOMIST INTELIGENCE UNIT – EIU. Angola at a Galance. London, 2001.<br />
ECONOMIST INTELIGENCE UNIT – EIU. Country Profiles (dos quatro países em <strong>19</strong>97 e em 2001).<br />
GEMDEV. L’integration regionale dans le Monde. Paris: Khartala, <strong>19</strong>97.<br />
MILLS, Greg; MUTSCHLER, Claudia. Exploring South-South Dialogue: Mercosul in Latin America & SADC.<br />
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_____. Buenos Aires: Ministério de Economia, 2000/2001.<br />
_____. Buenos Aires: Ministério de Economia, 2003.<br />
PINHEIRO, Armando Castelar; MOREIRA, Mauricio Mesquita. Investimentos e Comercio Brasil-Africa do<br />
Sul: presente e futuro. Rio de Janeiro, RJ: BNDES, <strong>19</strong>96.<br />
SADC (Comunidade de Desenvolvimento de África Austral). Annual Report <strong>19</strong>97 and 2001. Gaborone.<br />
WORLD BANK. World Development Indicators – 2002.<br />
Jornais<br />
“Business Day” - Johannesburg<br />
“América economia” - Rio de Janeiro<br />
“Jornal de Angola” - Luanda<br />
“La Nación” - Buenos Aires<br />
Outros sites de Internet<br />
UOL – Brasil<br />
IOL – África do Sul<br />
Ebonet – Angola<br />
Recebido em 30.05.03<br />
Aprovado em <strong>19</strong>.08.03<br />
212 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003
José Otávio Serra Van-Dúnem<br />
ANGOLA PÓS-GUERRA: NOVOS E VELHOS DESAFIOS<br />
José Octávio Serra Van-Dúnem *<br />
RESUMO<br />
O presente texto tem como tema um novo momento na história de Angola,<br />
marcado pelo acordo de paz assinado no dia 4 de abril de 2002<br />
entre o Governo de Angola e o alto comando militar da Unita. Este<br />
momento deixa em aberto vários desafios aos angolanos, dentre os quais<br />
escolhemos dois: primeiro, a pacificação; segundo, as possibilidades de<br />
cidadania enquanto instrumento de promoção de coesão social. Balizados<br />
por esses dois desafios, procuramos ao longo do texto questionar as<br />
principais dificuldades que Angola enfrenta hoje e apontar pistas que<br />
possibilitem rápidos avanços. O texto refere-se, ainda, a como entendemos<br />
que a experiência do Brasil pode ser benéfica para o (re)encontro<br />
das duas margens.<br />
Palavras-chave: Coesão social – Cidadania – Construção da paz –<br />
Democracia – Espaço público<br />
ABSTRACT<br />
ANGOLA AFTER WAR: NEW AND OLD CHALLENGES<br />
The present text has as its topic a new moment in the history of Angola,<br />
marked by the piece agreement signed as of April 04 th , 2002 between<br />
the government of Angola and the high military command of UNITA.<br />
This moment leaves open various challenges to the Angolans, among<br />
which we chose two: first, the pacification; second, the possibilities of<br />
citizenship as an instrument of promotion of social cohesion. Guided by<br />
these two challenges, we try to, along the text, question the principal<br />
difficulties that Angola faces today and point at clues that make quick<br />
advances possible. The text also refers to how we understand that the<br />
experience of Brazil can be benefic for the (re)union of the two margins.<br />
Key words: Social Cohesion – Citizenship – Piece Construction –<br />
Democracy – Public Space<br />
Agradeço à Universidade do Estado da Bahia<br />
e aos organizadores deste seminário, nomeadamente<br />
ao Departamento de Educação, através<br />
de seu Mestrado, o convite para convosco<br />
trocar idéias sobre o momento atual que Angola<br />
vive e tentar vislumbrar caminhos mais viáveis<br />
para o seu futuro. Depois de termos assistido<br />
as apresentações, ao longo deste seminá-<br />
*<br />
Doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ - Universidade<br />
Cândido Mendes. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, em Angola. Pesquisador<br />
sênior do AIP - Instituto de Pesquisa Econômica e Social, Angola. Endereço para correspondência:<br />
Rua Duvivier 43, 403, Copacabana – 22020.020 Rio de Janeiro. E-mail: otdunem@hotmail.com<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 213-218, jan./jun., 2003<br />
213
Angola pós-guerra: novos e velhos desafios<br />
rio, ressaltando laços e conexões existentes entre<br />
África e Brasil, sobre vários pontos de vista,<br />
optamos por trazer o nosso contributo, mostrando<br />
a situação concreta de um País africano<br />
irmão, Angola, que vive um dos momentos mais<br />
delicados da sua história recente. Ponto prévio,<br />
para dizer que não se trata de um texto político,<br />
no sentido estrito do termo, mas sim uma abordagem<br />
sobre novos e velhos desafios, à luz de<br />
um momento novo.<br />
O texto que vos apresento é resultado de<br />
algumas preocupações intelectuais, sobre o<br />
novo quadro que Angola vive, resultado do final<br />
da guerra, uma das mais sangrentas da humanidade.<br />
A este quadro não é indiferente a situação<br />
vivida pela maioria dos Países africanos que<br />
em situação de conflito armado, ou não, vivem<br />
situações sociais muito idênticas a de Angola.<br />
Num segundo momento, preocupado com a<br />
constatação levantada no segundo parágrafo do<br />
texto de apresentação deste seminário, irei referir<br />
o que penso sobre a possibilidade de aproveitarmos<br />
a nossa história, e as experiências<br />
daí decorrentes para que num contexto mais<br />
contemporâneo possamos tirar mais valias para<br />
todos. O efeito surpresa do acordo de paz assinado<br />
pelo governo de Angola e o alto comando<br />
militar da Unita no dia 4 de Abril de 2002, deixaram<br />
claro que a imprevisibilidade e a vontade<br />
dos homens, por vezes, pode estar além das<br />
análises acadêmicas. Contudo, pensamos que<br />
as reflexões acadêmicas podem apontar caminhos<br />
possíveis, sendo neste sentido que nos propomos<br />
trazer aqui o nosso contributo. Não é<br />
possível refletir sobre o futuro de Angola, sem<br />
se referir ao quadro dramático em que vive.<br />
A guerra de Angola, que se arrastou por mais<br />
de 30 anos, criou um quadro político, econômico<br />
e social quase sem igual na história de África<br />
e do Mundo, levou a que hoje se encontrem,<br />
segundo estatísticas oficiais, cerca de quatro<br />
milhões de angolanos despojados dos mais elementares<br />
direitos 1 . Sendo que esse número cresce,<br />
se somado ao conjunto de angolanos que,<br />
mesmo dentro das áreas urbanas, de certa maneira<br />
mais protegidas, vive situações de pobreza<br />
acentuada 2 . As conseqüências da guerra<br />
foram muito além dos atingidos diretamente por<br />
ela; refletiram-se, indiretamente, no conjunto da<br />
nação angolana, deixando claro que só será<br />
possível estancar tal situação com programas<br />
políticos e sociais corajosos, priorizando, entre<br />
outras ações, o reassentamento 3 das populações.<br />
A inexistência de um sector que seja, da vida<br />
social, política, cultural e econômica que não<br />
tenha a guerra como justificação para o seu não<br />
desenvolvimento, é a prova do que atrás referimos.<br />
Depois da euforia justificada pelo fim da<br />
guerra, momento de júbilo para todos os angolanos,<br />
cabe uma reflexão mais atenta sobre o<br />
que esperam os angolanos num quadro de paz.<br />
Afinal é uma nova era que se abre, e neste sentido<br />
são tantas as áreas que carecem de análise<br />
e reflexão que correria o risco de cair num<br />
generalismo inconseqüente, se sobre todas elas<br />
me fosse debruçar. A nossa contribuição incidirá<br />
na discussão de duas questões, a primeira referente<br />
ao que se entende por pacificação, após<br />
o “calar” das armas; e a segunda referente às<br />
possibilidades da cidadania, enquanto instrumento<br />
de promoção da coesão social.<br />
Os desafios da pacificação<br />
Os finais dos anos 80 e início dos 90 ficaram<br />
marcados por turbulências internas e pressões<br />
externas e internas em vários países africanos,<br />
que vieram a culminar em abertura política,<br />
multipartidarismo, elaboração de novas constituições<br />
e organizações de eleições livres, elementos<br />
que se mostraram, rapidamente, em<br />
nosso entender, necessários, mas não suficien-<br />
1<br />
Ver Relatório Sobre o Desenvolvimento Mundial 2000/<br />
2001 “Luta contra a Pobreza”, Banco Mundial, Oxford<br />
University Press. Ver também Relatórios de Desenvolvimento<br />
Humano, Angola <strong>19</strong>97/<strong>19</strong>99.<br />
2<br />
Ter presente os grandes fluxos migratórios para os centros<br />
urbanos, e seus arredores, transformando estes em<br />
áreas de grande concentração de pobreza, devido à situação<br />
de guerra e à procura de melhores condições de sobrevivência.<br />
3<br />
Sobre esta problemática ver o trabalho de Adauta de<br />
Sousa (2001). O autor remete para outros estudos que<br />
ilustram bem essa questão.<br />
214 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 213-218, jan./jun., 2003
José Otávio Serra Van-Dúnem<br />
tes 4 , mesmo porque o denominador comum a<br />
todos eles (países africanos), a pobreza, continuava<br />
(e continua) presente. Se observarmos<br />
que os processos políticos, em alguns casos,<br />
geraram outras situações de intolerância política,<br />
de maior ou menor densidade, aliados a uma<br />
situação de caos econômico e social que colocou<br />
as populações no limite da sobrevivência,<br />
então poderemos questionar se a aplicação das<br />
ementas políticas habituais, recomendadas pela<br />
comunidade internacional, e acatadas pelas elites<br />
políticas nacionais, proporcionam respostas<br />
adequadas aos principais problemas, que a grande<br />
maioria dos povos africanos vive (VAN-DÚ-<br />
NEM, 2001).<br />
No caso de Angola, o fim da guerra deixou<br />
em aberto a necessidade de criação de programas<br />
sociais que, aplicados de maneira objetiva<br />
e tendo em conta os contextos onde os mesmos<br />
podem, ou não, ser aplicados, podem contribuir<br />
para a elevação dos níveis de vida das<br />
populações. Essa perspectiva não pode ser retórica,<br />
tem mesmo que estar acima dos interesses<br />
políticos 5 , senão vejamos: um quadro de<br />
pobreza extrema em que o País se encontra; a<br />
fraca capacidade de investimento em recursos<br />
humanos; a situação econômica degradada, seja<br />
por fatores internos, como a paralisação quase<br />
completa do parque industrial, e um ineficiente<br />
funcionamento da rede comercial nacional<br />
(FERREIRA, <strong>19</strong>99), seja por fatores externos,<br />
como a situação periférica que a África em geral,<br />
e Angola em particular, ocupam na economia<br />
mundial.<br />
O dever de casa de quem governa (e de<br />
quem deseja governar) é muito exigente, sendo<br />
mesmo necessário que, em algum momento, se<br />
socorra dos governados, podendo ser essa uma<br />
chave para concluir com êxito a sua tarefa. Mas<br />
deverá questionar-se de que maneira isso pode<br />
acontecer. Diríamos que essa seria a chave para<br />
evitar mais desagregação social e quiçá criar<br />
um modelo novo de abordagem das questões<br />
complexas que nos envolvem. Essa chave seria<br />
a possibilidade de dar voz a novos espaços e<br />
a novos atores, num contexto em que os mecanismos<br />
tradicionais do mundo da política têm<br />
dificuldade para dar respostas a todos os desafios.<br />
É necessário que o social seja o eixo de<br />
um novo modelo, valorizando de forma efetiva<br />
políticas públicas orientadas para a garantia de<br />
direitos sociais e do “direito a ter direitos”, principalmente<br />
numa óptica harmonizada entre necessidades<br />
e sua satisfação. Ora, sobre isso,<br />
não tenhamos ilusões, não é somente com uma<br />
Constituição, que confere direitos, nem sempre<br />
respeitados, que se irão resolver as incongruências<br />
em que as sociedades africanas, das<br />
quais faz parte a angolana, estão mergulhadas;<br />
também não será com programas de solução<br />
econômica e “empresarial” vindos de fora, encontrando<br />
respaldo interno, muitos deles envoltos<br />
em vestes emergenciais mas sem um foco<br />
social (mesmo porque esse não é o seu objeto),<br />
que se irá reverter a situação de exclusão em<br />
que se encontra uma parcela grande da população<br />
angolana. Não queremos com isso dizer<br />
que se deve virar as costas à necessidade de<br />
um esforço gigantesco financeiro – comprometido<br />
com a necessidade de apoio financeiro internacional<br />
– para reverter a situação atual, mas<br />
tão-somente deixar espaço para que os angolanos<br />
possam, também, ser sujeitos da sua história,<br />
e deste esforço, com dignidade e cidadania.<br />
Cidadania e construção da paz<br />
Com essa abordagem, entro na segunda<br />
questão que trago à discussão: será a cidadania,<br />
termo hoje tão em uso, mas algo desgastado<br />
pela maneira nem sempre adequada da sua utilização,<br />
instrumento que pode ajudar a edificar<br />
a paz para além da ausência de guerra? Pare-<br />
4<br />
Foram exemplo disso as rebeliões militares, o caso da<br />
Guiné-bissau, acompanhado de instabilidade política, o<br />
Zimbábue, com os conflitos de terras e com processos<br />
eleitorais não muito transparentes, bem como conflitos<br />
armados de média e longa duração (como foi o caso de<br />
Angola), ou ainda uma terceira situação, não menos<br />
preocupante, em que não havendo uma situação de conflito<br />
armado, a indisponibilidade de convivência democrática<br />
inviabiliza aplicação e o funcionamento de agendas<br />
sociais que tenham como principal objetivo reverter a<br />
situação de pobreza.<br />
5<br />
Referimos o excesso de “burocratização” da vida política,<br />
deixando de lado questões prioritárias.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 213-218, jan./jun., 2003<br />
215
Angola pós-guerra: novos e velhos desafios<br />
ce-nos que a resposta se encontra na medida<br />
em que o cidadão se possa rever num projeto<br />
de cidadania. Antes, é importante referir que<br />
o tema da cidadania, tão em voga, não tem<br />
respaldo em nenhuma teoria, tem sim recebido<br />
contribuições teóricas sobre a sua conceptualização<br />
que permitem encontrar melhores<br />
razões para a sua atualidade (VIEIRA,<br />
<strong>19</strong>99; KYMLICKA, <strong>19</strong>95; HABERMAS,<br />
<strong>19</strong>95 6 , apud VIEIRA, <strong>19</strong>99, p.397). Destas<br />
contribuições, retemos as formulações de<br />
Bryan Turner (<strong>19</strong>90 7 ) referidas por Liszt Vieira<br />
(<strong>19</strong>99, p.396) que apontam para dois tipos de<br />
cidadania: uma cidadania passiva, a partir “de<br />
cima”, via Estado, e uma cidadania ativa, a<br />
partir “de baixo”. Parecendo-nos ser este um<br />
dos dilemas dos nossos novos processos de<br />
democracia, ainda em embrião. O debate sobre<br />
cidadania está diretamente associado à<br />
discussão sobre “a questão democrática” e<br />
sobre as possibilidades de transformação do<br />
Estado e da Sociedade. Isso mesmo é mais<br />
verdadeiro em Países como Angola, onde as<br />
distorções sociais, já aqui referidas, levam à<br />
necessidade de se percorrer um longo caminho<br />
rumo à cidadania e à democracia, em sentido<br />
mais amplo, aqui entendido como práxis.<br />
Concorre para tal a necessidade urgente da<br />
Reforma do Estado, ampla e gradual, criando<br />
um quadro de arrumação das Instituições e<br />
proporcionando mais direitos e garantias ao cidadão<br />
(FEIJÓ, 2000), porquanto o nosso Estado<br />
atual decorre de uma configuração do Estado<br />
colonial. Como refere Eric Hobsbawm:<br />
(... a cidadania e a democracia são palavras<br />
pelas quais todos correm a manifestar<br />
o seu entusiasmo...), nós acrescentaríamos,<br />
que nesse entusiasmo se esbatem as reais dimensões<br />
da sua funcionalidade. É neste sentido<br />
que pensamos que, numa situação de pósconflito,<br />
como o que Angola vive, é preciso ter<br />
como farol o seguinte: ao situar a possibilidade<br />
de se aperfeiçoarem os direitos políticos do<br />
cidadão, através da implementação de mecanismos<br />
de democracia direta e das possibilidades<br />
de participação ativa do cidadão na vida<br />
pública, estaremos montando o esteio para o<br />
exercício de cidadania plena, despojada do<br />
complexo de que os problemas africanos e, no<br />
caso angolano, por se situarem no continente<br />
esquecido, têm obrigatoriamente que ter tratamento<br />
diferenciado.<br />
Isto implica buscar espaços de intervenção<br />
que visem antes de mais nada estabelecer uma<br />
relação viva cidadania/cidadão, espaço público<br />
para as decisões coletivas, que ultrapassem o<br />
simples regime de liberdades individuais e da<br />
representação. O que só acontecerá na medida<br />
em que for viável, com a prática de uma<br />
cidadania ativa, que institui o cidadão como portador<br />
de direitos e deveres, e com capacidade<br />
de estabelecer novos espaços de participação<br />
política. Neste sentido a cidadania exige instituições,<br />
mediações, consubstanciando-se na<br />
criação de espaços sociais (movimentos sociais,<br />
sindicais e populares, ONGs), estabelecendo<br />
uma ponte com instituições permanentes<br />
para a expressão política, como partidos e órgãos<br />
do poder público. Distinguindo-se a cidadania<br />
ativa de uma outra, outorgada pelo Estado,<br />
com a idéia moral do favor e da tutela. Este processo<br />
é complexo e lento, mas nem por isso deve<br />
ser subestimado, pois dele dependerá o processo<br />
de criação democrática contínua. Pensamos<br />
ser este o cenário para o funcionamento de uma<br />
democracia participativa, que, em nosso entender,<br />
melhor se adaptará aos novos tempos.<br />
Alertamos para o fato de que na base desse<br />
edifício deverá estar a educação, como um todo<br />
que, embora seja sempre tratada como parente<br />
pobre nas agendas sociais, é fundamental para<br />
a consolidação de uma cidadania plena. Referindo<br />
aqui, a educação política – entendida como<br />
educação para cidadania ativa – deve ser olhada<br />
como o ponto nevrálgico da participação do<br />
cidadão que só se processa na prática. Neste<br />
sentido, entender a participação popular como<br />
uma “escola de cidadania” implica rejeitar a<br />
6<br />
HABERMAS, Jurgen. Citizenship and national identity:<br />
some reflections on the future of Europe. In: BEINER, R.<br />
(org.). Theorizing Citizenship. New York: State<br />
University of New York Press, <strong>19</strong>95.<br />
7<br />
TURNER, Bryan. Outline of a theory of citizenship<br />
sociology. The Journal of the British Sociological<br />
Association, v. 24, n. 2, <strong>19</strong>90.<br />
216 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 213-218, jan./jun., 2003
José Otávio Serra Van-Dúnem<br />
argumentação habitual que, por vezes, exagera<br />
as condições de apatia e despreparo absoluto<br />
do cidadão, considerando-o incapaz, submisso<br />
e insusceptível de ser educado. A educação<br />
política não pode ser entendida como uma via<br />
de mão única – só do Estado para o cidadão,<br />
mas ao invés, pela exigência da pluralidade de<br />
agentes políticos e não só de partidos políticos,<br />
apesar da sua clara e necessária função pedagógica,<br />
em que a tarefa primordial é a de, em<br />
conjunto, criar condições de inclusão de todos<br />
os angolanos no processo de reconstrução.<br />
Neste sentido, a nossa proposta é a seguinte:<br />
1) Estabelecer novos modelos de políticas sociais,<br />
voltados para a promoção da cidadania,<br />
com base na colaboração, formação de<br />
redes sociais e espaços de construção de<br />
consenso. Tais modelos deverão estar de<br />
acordo com os seguintes princípios: papel<br />
mobilizador do poder local; organização dos<br />
atores sociais; melhor gestão de recursos;<br />
estratégias a médio e longo prazo.<br />
2) Os objetivos devem ser: identificação de formatos<br />
de políticas urbanas que combinem<br />
concepções universais/redistributivas e focalizadas/compensatórias;<br />
sistematização e<br />
divulgação de experiências de políticas urbanas,<br />
tanto em relação às relações intragovernamentais,<br />
quanto às relações sociedade<br />
local e poder político local; capacitação,<br />
através de projetos em parceria, dos atores<br />
locais, governamentais e não governamentais,<br />
para formulação e gestão de políticas<br />
urbanas comprometidas com o ideário de<br />
justiça social, voltada para os novos desafios,<br />
e exigências de eficiência; monitoramento<br />
dos atores locais, governamentais e não governamentais,<br />
na elaboração de projetos<br />
estratégicos que permitam a mobilização de<br />
recursos e forças sociais para a busca do<br />
desenvolvimento local a médio e longo prazo;<br />
criação de bancos de dados sobre as<br />
áreas de intervenção, reunindo informações<br />
quantitativas e qualitativas que subsidiem a<br />
avaliação das políticas urbanas.<br />
No fundo, a nossa aposta vai no sentido de<br />
um maior fortalecimento do espaço público onde,<br />
como acima referimos, o cidadão se possa rever.<br />
Aqui chegado é o momento de referir que<br />
nos parece que tal empreitada necessitará de<br />
grande esforço nacional e de boas parcerias<br />
internacionais. E sublinhamos a expressão “boa<br />
parceria”, porquanto nem todas as parcerias têm<br />
sido benéficas. Pensamos ser aqui que o Brasil,<br />
com as suas características próprias de país<br />
periférico já aqui apontadas, pode servir de laboratório<br />
para vários programas que podem vir<br />
a ser implementados em Angola. Isso mesmo<br />
poderá ser uma ação de mão dupla, no sentido<br />
em que haveria uma maior aproximação entre<br />
os nossos Países pela via dos nossos problemas<br />
mais contemporâneos, indo mais além do<br />
normal folclore com que são apresentados.<br />
Possibilitando um novo encontro entre as margens,<br />
não somente para avaliar os processos<br />
de desconstrução da nossa identidade, de que<br />
fomos alvos no passado, mas para pensar como<br />
podemos daqui para frente construir um processo<br />
dialogante sobre os muitos problemas que<br />
nos afligem neste mundo globalizado para uns<br />
e excludente para outros.<br />
Concluímos, reafirmando ser este tipo de<br />
concepção que nos deve nortear em relação às<br />
questões de cidadania e criação de pactos sociais,<br />
acreditando serem estes instrumentos fundamentais<br />
para a coesão social. Os assuntos<br />
aqui colocados fazem parte de um conjunto<br />
maior de questões que devem ser incorporadas<br />
em programas de estabilização social e, necessariamente,<br />
devem mobilizar os angolanos em<br />
torno dos seus objetivos. Esperamos que possam<br />
ser sinal de “Alerta à Navegação”. Por<br />
outro lado, deixo aqui claro que as dificuldades<br />
de uma Angola envolta em guerra desde a data<br />
da independência deixaram o seu povo mais<br />
maduro, sendo o momento de paz vivido hoje<br />
um exemplo real disso mesmo. Concluo referindo<br />
que deverá ser olhando para dentro da<br />
sua realidade, mas, colhendo para o bem e para<br />
o mal, o exemplo de Países como o Brasil que<br />
nós, de Angola, podemos crescer. Entendemos<br />
esse seminário e os esforço de muitos Professores<br />
brasileiros que se dedicam a estudar África<br />
e Brasil, como aqui tivemos alguns, dentro<br />
desse espírito.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 213-218, jan./jun., 2003<br />
217
Angola pós-guerra: novos e velhos desafios<br />
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Recebido em 30.05.03<br />
Aprovado em <strong>19</strong>.08.03<br />
218 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 213-218, jan./jun., 2003
Ubiratan Castro de Araújo<br />
CONEXÃO ATLÂNTICA:<br />
HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE<br />
Ubiratan Castro de Araújo *<br />
RESUMO<br />
Para compreender o processo permanente de elaboração da identidade<br />
negra neste país africano da Bahia, é necessário, sobretudo, não esquecer<br />
o cordão umbilical pelo qual os baianos acreditam estar ligados à<br />
África. Ao longo da história, depois do tempo da escravidão, este mito<br />
fundador dos negros da Bahia se adapta, se transforma, muda suas<br />
máscaras e seus hábitos para desempenhar o papel mágico de um espantalho<br />
que afasta a tentação, aliás sempre proposta pelas elites brancas,<br />
de aceitar a idéia segundo a qual os negros brasileiros seriam um<br />
simples produto da sociedade escravista luso-tropical. Para esses negros<br />
da Bahia, é necessário estabelecer suas raízes antes e fora da<br />
escravidão. Assim, o tempo e o lugar da liberdade original não podem<br />
estar dentro do Brasil. Utopia, anacronismo, pouco importa, esse refugio<br />
da herança cultural da escravidão é o núcleo duro da identidade<br />
negra baiana. Esta utopia identitária fundamenta-se em uma constante<br />
evocação e reelaboração das matrizes culturais africanas, o que só é<br />
possível graças às comunidades religiosas do Candomblé, verdadeiros<br />
arquivos da memória africana na Bahia.<br />
Palavras-chave: Identidade negra – Cidadania negra – Memória e História<br />
afro-brasileira<br />
ABSTRACT<br />
ATLANTIC CONNECTION: HISTORY, MEMORY AND<br />
IDENTITY<br />
To understand the permanent process of elaboration of the Afrodescendant<br />
identity in this African country of Bahia, it is necessary, above<br />
all, not to forget the umbilical cord through which Bahians believe to be<br />
connected to Africa. Along history, after the slavery times, this founder<br />
myth of the Afro-descendants of Bahia adapts, transforms, changes its<br />
masks and its habits to perform the magic role of a scarecrow that<br />
keeps away the temptation, always proposed by the white elite, of<br />
accepting the idea according to which the Brazilian Afro-descendants would<br />
*<br />
Doutor em Historia pela Université de Paris IV - Sorbonne. Professor do Departamento de Historia e exdiretor<br />
do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia. Atual presidente da Fundação<br />
Cultural Palmares do Ministério da Cultura. Endereço para correspondência: SBN Qd. 02, Ed. Central<br />
Brasília, bloco F, 1º subsolo – 70040.904 BRASÍLIA-DF. E-mail: ubiratancastro@palmares.gov.br – Website:<br />
http://www.palmares.gov.br.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003<br />
2<strong>19</strong>
Conexão Atlântica: história, memória e identidade<br />
Por volta do fim do século XVIII, no início<br />
do século XIX, o Ocidente foi sacudido pela<br />
primeira vaga de revoluções liberais, desencadeadas<br />
pela independência dos Estados Unidos<br />
da América, pela Revolução Francesa, pela<br />
Revolução dos Negros do Haiti, e pelas Revoluções<br />
produzidas pela expansão napoleônica<br />
na Europa, e pelo desmoronamento do Império<br />
de Portugal. Dentro desse novo momento da<br />
mundialização, fundado sobre o “livre comércio”<br />
e sobre a universalização dos direitos do<br />
homem, dois desafios se apresentaram para a<br />
sociedade escravista brasileira: o fim do pacto<br />
colonial com a metrópole portuguesa e o fim do<br />
tráfico de escravos africanos.<br />
No que diz respeito ao primeiro desafio, foi<br />
necessário às elites coloniais formarem um estado<br />
independente, com novas instituições, com<br />
uma ideologia nacional e com novos critérios<br />
de enquadramento dos povos habitantes do território<br />
do novo estado americano. Dentro dessa<br />
nova nação, quem seriam os brasileiros? As<br />
minorias de “brancos portugueses e de brancos<br />
da terra” ao lado da maioria de escravos africanos,<br />
de escravos crioulos, de pretos e pardos<br />
libertos e livres? Um novo regime político, ainda<br />
que exaltando um liberalismo semeado por<br />
todos os lugares, seria capaz de aceitar a univerbe<br />
a simple product of the slaving Portuguese/Brazilian-tropical society.<br />
For these afro-descendants of Bahia, it is necessary to establish their<br />
roots before and outside slavery. This way, the time and place of original<br />
freedom can not be inside Brazil. Utopia, anachronism, it does not matter<br />
much, this refugee of the cultural heritage of slavery is the hard nucleus of<br />
the Bahian Afro-descendant identity. This identifying utopia bases itself<br />
on a constant evocation and re-elaboration of the African cultural matrixes,<br />
what is only possible thanks to the religious communities of Candomblé,<br />
true archives of the African memory in Bahia.<br />
Key words: Afro-descendant Identity – Afro-descendant Citizenship –<br />
Afro-Brazilian Memory and History<br />
A utopia africana<br />
Para compreender o processo permanente<br />
de elaboração da identidade negra neste país<br />
africano da Bahia, é necessário, sobretudo, não<br />
esquecer o cordão umbilical pelo qual os baianos<br />
acreditam estar ligados a África. Ao longo da<br />
história, depois do tempo da escravidão, este<br />
mito fundador dos negros da Bahia se adapta,<br />
se transforma, muda suas máscaras e seus hábitos<br />
para desempenhar o papel mágico de um<br />
espantalho que afasta a tentação, aliás sempre<br />
proposta pelas elites brancas, de aceitar a idéia<br />
segundo a qual os negros brasileiros seriam um<br />
simples produto da sociedade escravista lusotropical.<br />
Para esses negros da Bahia, é necessário<br />
estabelecer suas raízes antes e fora da<br />
escravidão. Assim, o tempo e o lugar da liberdade<br />
original não podem estar dentro do Brasil.<br />
Utopia, anacronismo, pouco importa, esse refugio<br />
da herança cultural da escravidão é o núcleo<br />
duro da identidade negra baiana. 1<br />
Essas tentações são especialmente apresentadas<br />
durante as conjunturas de mudança acelerada<br />
dos termos de integração do Brasil em<br />
uma economia mundial, durante as quais foram<br />
registradas algumas medidas importantes para<br />
a modernização da sociedade brasileira e, por<br />
conseqüência, das relações raciais no país. Entretanto,<br />
o fracasso de todas as sinceras tentativas<br />
de desenvolvimento das novas identidades<br />
negras nessas conjunturas de modernização<br />
explica o retorno dos movimentos de afirmação<br />
negro à tradição africana, tal como ela<br />
é preservada dentro das comunidades religiosas.<br />
Os Nagôs e os Sabinos: a formação<br />
do Estado Nacional Brasileiro<br />
1<br />
Texto resultante da participação no Seminário Relações<br />
no Atlântico Sul: Historia e Contemporaneidade, 28-30<br />
de abril de 2003. Salvador, Bahia.<br />
220 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003
Ubiratan Castro de Araújo<br />
salização dos direitos de cidadania em beneficio<br />
das pessoas de cor? A Revolução Francesa,<br />
ela mesma, não foi capaz de aceitar as reivindicações<br />
de Vincent Ogé para o alargamento<br />
dos direitos de cidadania para os negros de<br />
São Domingos – esta é a origem da Revolução<br />
Negra Haitiana. Da mesma maneira no Brasil,<br />
os independentes tiveram necessidade de pessoas<br />
de cor para carregar os fuzis, mas não os<br />
incorporaram como negros cidadãos.<br />
Neste quadro muito estreito de escolha, as<br />
populações negras da Bahia se dividiram em<br />
dois movimentos. Os negros nascidos no Brasil,<br />
chamados na época de crioulos – libertos,<br />
escravos e negros livres – escolheram o caminho<br />
da participação no processo de formação<br />
do estado nacional, reclamando para eles uma<br />
nova identidade nacional, assim como na América<br />
Espanhola, sob o impulso do movimento<br />
bolivariano. Segundo o barão de Aramaré, um<br />
general baiano, estes negros eram pessoas sem<br />
pátria, que desejavam fazer uma a seu modo,<br />
contra aquela dos descendentes dos portugueses,<br />
verdadeiros brasileiros. Esta massa crioula<br />
constituiu a base armada das revoltas e dos<br />
levantes populares, desde a Revolução dos<br />
Búzios, em 1798, até 1838, por ocasião do aniquilamento<br />
da revolução federalista chamada<br />
Sabinada. O saldo dessa participação politica foi<br />
muito negativo: a manutenção da escravidão<br />
negra, a exclusão politica pela adoção do voto<br />
censitário e o reforço da discriminação contra<br />
os negros segundo o critério da cor de pele. Em<br />
lugar de uma república liberal, eles viram se<br />
afirmar um Império Brasileiro escravista. Abatidos,<br />
humilhados, esses negros brasileiros fracassaram<br />
nos seus propósitos de afirmação de<br />
uma identidade brasileira plena, a seu modo.<br />
Os negros nascidos na África, escravos e<br />
libertos, rechaçados por todos, brancos e negros<br />
brasileiros, foram estimulados a empreender<br />
várias revoluções escravas. De 1811 até<br />
1835, por ocasião do levante dos africanos<br />
islamizados chamados de Malês, suas esperanças<br />
foram renovadas. Para esses revolucionários,<br />
não estava em questão a criação de um<br />
novo Estado Americano mas, simplesmente, a<br />
superação do estatuto da escravidão e a colocação,<br />
em seu lugar, de um estado negro fundado<br />
sobre as tradições africanas. Derrotados<br />
como os outros, eles guardaram ao menos a<br />
honra do bom combatente. A propósito desses<br />
combatentes, foi formado o mito da resistência<br />
africana, com um forte apelo identitário.<br />
A Abolição e a República<br />
No final do século XIX, tempo do cientificismo<br />
e do imperialismo, as elites brasileiras<br />
propuseram, mais uma vez, a modernização da<br />
sociedade brasileira. O Brasil era o último país<br />
escravista do Ocidente e a única monarquia na<br />
América. Era necessário então abolir a escravidão<br />
e proclamar a república. E os negros brasileiros,<br />
que pensavam eles? Abolição, sim, mas<br />
com o direito a terra e ao trabalho. República<br />
sim, mas com a ampliação dos direitos de cidadania<br />
para todos os brasileiros. Para miséria<br />
deles, foram considerados pelos republicanos<br />
positivistas como pouco civilizados para o trabalho<br />
qualificado e para a liberdade. Assim, o<br />
novo regime republicano brasileiro decidiu pela<br />
substituição da mão-de-obra escrava pela mão<br />
de obra livre pela via da imigração européia.<br />
No que diz respeito aos direitos de cidadania, a<br />
Constituição de 1891 decidiu pela incapacidade<br />
política da maioria negra, recentemente saída<br />
da escravidão, excluindo-os do direito ao voto<br />
sobre o pretexto do analfabetismo. Era ainda<br />
uma questão de cultura! Existiam no Brasil pessoas<br />
civilizadas e outras bárbaras. Esta república<br />
constituiu então uma espécie de colonialismo<br />
interno pelo qual os verdadeiros brasileiros<br />
seriam aqueles que guardariam, dentro da<br />
sua cultura, os traços constitutivos da civilização<br />
européia.<br />
Era o tempo de civilizar os bárbaros a tiros<br />
de fuzis. Essa nova ordem foi finalmente imposta<br />
em 1897, quando o Exercito brasileiro, sob<br />
o comando da esquerda republicana, exterminou<br />
o arraial baiano de Canudos, e decapitou<br />
milhares de camponeses negros e mestiços,<br />
considerados culpados de barbarismo, resistência<br />
à modernidade, monarquismo, etc... Ainda<br />
no território do massacre, o coronel Dantas<br />
Barreto escreveu à família dizendo que ele esta-<br />
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221
Conexão Atlântica: história, memória e identidade<br />
va impaciente para retornar à civilização – Rio<br />
de Janeiro – porque ele estava, por muito tempo,<br />
entre os Tuaregs, no deserto, de fato naquele fim<br />
de mundo que era o interior da Bahia. Depois<br />
dessa derrota, todos os movimentos negros de<br />
integração política fracassaram: os negros republicanos,<br />
a guarda negra monárquica e mesmo o<br />
Partido Operário Democrático da Bahia, dirigido<br />
por antigos negros abolicionistas.<br />
Na experimentação de um papel colonizador,<br />
as elites brasileiras e sua república adotaram<br />
as idéias racistas, desenvolvidas na Europa,<br />
sob o rótulo da modernidade científica. Produziram<br />
um sistema de representações que se<br />
dizia cientifico, no qual os negros da Bahia e<br />
suas tradições africanas foram enquadrados em<br />
uma classificação inferior enquanto raça negra<br />
africana, portadora de uma cultura selvagem,<br />
um perigo potencial à civilização. Era necessário<br />
então, segundo esses cientistas do racismo,<br />
compreender as diferenças culturais das etnias<br />
africanas representadas na Bahia, entender todos<br />
os perigos ocultos que eles poderiam aportar<br />
contra a civilização e contra a ordem republicana.<br />
Esse barbarismo era muito mais perigoso<br />
porque estava disfarçado em práticas religiosas,<br />
ou em manifestações folclóricas. A Faculdade<br />
de Medicina da Bahia foi um dos centros<br />
mais prestigiados no Brasil, nos domínios da<br />
Medicina Legal, da Criminologia, da Antropologia<br />
Criminal. Nessa instituição foram produzidos<br />
os critérios da racialização do povo baiano.<br />
Era o tempo da Antropologia de Nina Rodrigues.<br />
Da teoria à prática, o novo regime passara<br />
então a considerar toda manifestação pública da<br />
cultura negra de origem africana como uma vergonha<br />
para o Brasil civilizado. A capoeira foi<br />
então declarada contravenção criminal, assim<br />
como a religião africana – o Candomblé. Os grupos<br />
de carnaval formados por negros, que desfilavam<br />
na rua com motivos africanos – a coroação<br />
do rei Ménelik da Ethiopia, por exemplo –<br />
foram proibidos pela policia. Não estava em questão<br />
fazer a Bahia parecer com a África.<br />
É assim que os negros da Bahia, para salvar<br />
suas identidades, se refugiaram na sua africanidade<br />
originaria. Apesar das expedições punitivas<br />
da policia, os candomblés resistiram. Apesar<br />
das dificuldades, os intelectuais negros, tal como<br />
o Prof. Martiniano Bonfim, estabeleceram contato<br />
direto com os Agoudas da Costa Ocidental<br />
Africana. A pureza africana constituiu então o<br />
núcleo duro da resistência negra contra o<br />
colonialismo interno. Manoel Querino, um antigo<br />
abolicionista, desenvolve as proposições sobre o<br />
papel do “colono negro” na formação do Brasil.<br />
Segundo ele, a honra dos negros brasileiros seria<br />
a sua africanidade, porque o colono negro tinha<br />
trazido para o Brasil todas as virtudes do trabalho,<br />
da disciplina, da sociabilidade, da espiritualidade,<br />
da força civilizatória. Os portugueses, ao<br />
contrário, aportaram para o país os restos de suas<br />
civilizações, os condenados pela justiça, a violência<br />
da conquista, a preguiça dos senhores de<br />
escravos.<br />
A democracia racial<br />
Depois dos anos 30 do século XX, em seguida<br />
à revolução que propôs a modernização<br />
do velho Brasil republicano, mais uma vez a<br />
questão racial estava no centro da questão nacional<br />
brasileira. Os imperativos da industrialização<br />
e o surgimento de uma nova classe operária<br />
exigiam um novo enquadramento das classes<br />
populares no Brasil. Quem são os brasileiros?<br />
É sempre a mesma questão! Um novo<br />
paradigma, aquele da democracia racial brasileira,<br />
substituiu o racismo cientifico de outrora.<br />
Este novo choque de modernidade impôs às<br />
elites brasileiras um grande desafio: como integrar<br />
as massas dentro de um processo de desenvolvimento,<br />
sem os riscos da revolução social<br />
e sem o fracionamento do tecido social, levando<br />
em conta a diversidade racial da população?<br />
Os dois grandes modelos propostos ao<br />
mundo, justamente após a 2ª Guerra Mundial,<br />
eram, de um lado a revolução e o comunismo<br />
soviético e, do outro lado, a democracia americana,<br />
marcada pela segregação e conflitos raciais<br />
permanentes. Como então enquadrar as<br />
massas sem perder o controle? Contra o perigo<br />
revolucionário, é colocada em ação uma dinâmica<br />
social centrada sobre a mensagem de<br />
união nacional à procura do desenvolvimento<br />
econômico, sob controle do estado populista,<br />
222 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003
Ubiratan Castro de Araújo<br />
interposto entre os burgueses e os operários para<br />
amortecer a luta de classes.<br />
No que respeita a população negra, viu-se<br />
o estabelecimento sólido de uma ideologia nacional,<br />
em que um dos elementos constitutivos<br />
era a negação da questão racial. Este novo<br />
consenso se apoiara sob a convergência de<br />
duas fortes correntes teóricas, da direita e da<br />
esquerda. Inicialmente, o desenvolvimento do<br />
marxismo como um instrumento de analise e<br />
ação política, a partir da obra de Caio Prado<br />
Jr., recolocara a questão racial no domínio da<br />
história da escravidão colonial, nos termos da<br />
expansão do capitalismo centrado na Europa<br />
e depois nos Estados Unidos. De fato, a questão<br />
racial seria amplamente secundária, pois<br />
os descendentes dos antigos escravos são hoje<br />
os explorados sob o capitalismo contemporâneo.<br />
Do antigo sistema de exploração, restam<br />
alguns traços secundários, no domínio da cultura,<br />
de fato um epifenômeno da superestrutura<br />
social. O verdadeiro problema do povo<br />
seria sua consciência de classe, o instrumento<br />
necessário para o inicio da revolução social e<br />
não as identidades fundadas sobre algumas<br />
permanências culturais. Esta tradição está enraizada<br />
no pensamento de esquerda no Brasil.<br />
É a convicção de que a questão racial e as<br />
identidades que daí decorrem são questões<br />
externas ao Brasil, uma espécie de exportação<br />
malvada ou desastrosa de um problema<br />
que não interessa senão aos Estados Unidos,<br />
e cuja evocação no Brasil somente pode acarretar<br />
o fracionamento do proletariado brasileiro.<br />
Do lado da direita, a obra de Gilberto Freyre<br />
lança as bases da negação da questão racial<br />
no Brasil pela afirmação da democracia racial<br />
contemporânea, resultado histórico da adaptação<br />
da sociedade patriarcal portuguesa aos<br />
trópicos. A apologia da mestiçagem das três<br />
raças, do branco, do índio e do negro foi tomada<br />
como ideologia de estado para demonstrar<br />
o desenvolvimento harmônico do povo brasileiro,<br />
um “povo novo” dentro da versão contemporânea<br />
apresentada por Darci Ribeiro.<br />
Segundo Gilberto Freyre, estava se desenvolvendo<br />
no Brasil um tipo “meta-racial” denominado<br />
“moreno”. Uma vez que não havia uma<br />
prática de segregação de raças como nos Estados<br />
Unidos, a questão racial não aparecia<br />
na classificação dos problemas brasileiros. O<br />
racismo seria então uma questão americana,<br />
e os brasileiros, em seu subdesenvolvimento,<br />
deveriam ser muito orgulhosos de terem superado<br />
um problema que sempre constrange os<br />
ricos americanos.<br />
Para os movimentos negros brasileiros, o<br />
grande obstáculo à formação das identidades<br />
negras, autônomas e anti-racistas, foi a deportação<br />
da questão racial do imaginário brasileiro.<br />
Racismo era coisa de estrangeiro, de americano.<br />
Diz-se hoje que o pior do racismo brasileiro<br />
é crer e fazer crer que não existe racismo<br />
no Brasil. Em um cenário contemporâneo<br />
de mundialização da cultura e da informação,<br />
em que se tornam possíveis as trocas entre<br />
vários movimentos negros no mundo, este obstáculo<br />
não chega a ser superado. Apesar do<br />
surgimento e da estabilização de novas identidades<br />
e de práticas sociais formadas dentro<br />
destes contatos, do panafricanismo, do black<br />
power, do reggae, do hip hop, tudo termina<br />
sendo reduzido a uma escala de efêmeros<br />
acontecimentos da moda internacional, igualmente<br />
estrangeiros em relação ao Brasil.<br />
O único refúgio dos movimentos negros na<br />
Bahia para a afirmação de sua identidade, para<br />
além da sua herança da sociedade escravista<br />
da Bahia, é a tradição africana, guardada com<br />
cuidado pelas comunidades religiosas do Candomblé.<br />
Ninguém ousa dizer que o Candomblé,<br />
cada um cultivando suas raízes africanas<br />
específicas- suas nações, seja estrangeiro na<br />
Bahia, Isto explica o fato de que, desde a experiência<br />
política e cultural de Edison Carneiro<br />
sob a ditadura do Estado Novo em <strong>19</strong>37,<br />
até os movimentos de esquerda negra contemporânea,<br />
inspirados por “aggiornamientos” à<br />
la Gramsci e Thompson, todos esses marxistas<br />
negros procuram dentro do Candomblé o<br />
relicário de suas identidades ancestrais. Esta<br />
co-habitação necessária entre o materialismo<br />
e o Candomblé produziu a deliciosa excentricidade<br />
cultural que Jorge Amado chamava<br />
“materialismo” mágico.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003<br />
223
Conexão Atlântica: história, memória e identidade<br />
Os suportes materiais da Utopia<br />
Assim, ao longo da história do Brasil independente,<br />
as comunidades formadas por homens<br />
e mulheres muito pobres, colocados em<br />
regiões negras do subúrbio da cidade, todos<br />
submetidos ao peso do racismo, foram capazes<br />
de constituir um lugar da memória africana.<br />
Como isto foi possível? Os que crêem respondem<br />
logo em seguida: é o poder dos Orixás!.<br />
Os menos crentes estão sempre em condição<br />
de afirmar que as características das religiões<br />
africanas, fundadas sobre os cultos dos ancestrais,<br />
têm necessidade de guardar na memória<br />
coletiva toda a ambiência cultural originária, sem<br />
a qual os Orixás não teriam sentido. Isto explica<br />
o empenho dessas comunidades na preservação<br />
das tradições africanas, da língua yoruba<br />
e da recusa à nacionalização do Candomblé, tal<br />
como ocorreu com a Umbanda.<br />
As razões religiosas, somente, não explicam<br />
totalmente o fenômeno da preservação da memória<br />
africana. O Candomblé, como aliás as<br />
outras tradições, foi atacado por todos os choques<br />
de modernidade, e também obrigado a toda<br />
sorte de adaptação para assegurar a solidariedade<br />
interna nas comunidades. Teve igualmente<br />
que estabelecer as negociações e as trocas<br />
com “os outros”, os clientes, os que procuram<br />
no Candomblé socorros e cuidados materiais e<br />
espirituais. Como fazer para impedir que as<br />
adaptações sucessivas não resultem em um tipo<br />
de deformação da tradição originária e, por conseqüência,<br />
o enfraquecimento desses lugares<br />
de memória, sés e bastiões de nossa identidade<br />
negra baiana?<br />
Ao longo dos anos, as pessoas do Candomblé<br />
desenvolveram estratégias para assegurar<br />
a sobrevivência das comunidades e, ao mesmo<br />
tempo, para a consolidação desse corpus de<br />
memória. Antes de mais nada, era necessário<br />
manter o contato permanente com a “fonte”,<br />
com o fundamento, com a África. Durante a<br />
escravidão, assim como a aranha, o trafico transatlântico<br />
de escravos teceu sua teia de conexões<br />
entre as duas bordas do Atlântico, um verdadeiro<br />
e complexo território de terras e de<br />
águas pelo qual circularam homens e mulheres,<br />
com seus bens, seus poderes e seus saberes.<br />
Este foi o fluxo e refluxo da Bahia para o Golfo<br />
de Benin, de que nos falou Pierre Verger, que<br />
ocorreu por meio do transporte de pessoas. Isso<br />
tornou possível um sistema de circulação de<br />
mercadorias, compreendendo os produtos utilizados<br />
nos rituais, como também a circulação<br />
de religiosos – Yialorixás, babalorixás, babalôs.<br />
Este vai-e-vem sobre o Atlântico nutriu a<br />
tradição religiosa e, por conseqüência, assegurou<br />
o fluxo de informações políticas e culturais<br />
entre a África e a Bahia. As revoltas africanas<br />
do início do século XIX determinaram a chegada,<br />
na Bahia, das informações sobre os movimentos<br />
sociais na África. Depois do fim do tráfico<br />
de escravos, de 1850 até 1889 a navegação<br />
na direção da Costa da África quase cessou.<br />
Apesar desta interdição, a antiga teia ancorou<br />
seus laços na memória afetiva dos povos<br />
sobreviventes, os afro-descendentes baianos na<br />
borda oeste e os Agudas espalhados ao longo<br />
da borda leste do Atlântico. Persistiu ainda a<br />
correspondência entre familiares e conhecidos.<br />
No final do século XIX, a chegada da República<br />
ao Brasil e a ocupação colonial na África<br />
impuseram o distanciamento das duas bordas<br />
do Atlântico. Alguns religiosos, como o<br />
Babalaô Martiniano Bonfim e a Yalorixá Aninha,<br />
ainda conseguiram várias vezes realizar a<br />
travessia para a Costa da África, durante a primeira<br />
metade do século XX. Apesar desses<br />
esforços heróicos, aquele foi o tempo mais difícil<br />
para a preservação da memória africana no<br />
Brasil.<br />
Em <strong>19</strong>59, ano da criação do Centro de Estudos<br />
Afro-Orientais na Universidade Federal<br />
da Bahia, assistiu-se ao restabelecimento das<br />
relações bilaterais entre Bahia e África, por<br />
força da ação desse centro universitário, em<br />
um quadro de abertura da diplomacia brasileira<br />
para a África. Durante uma dezena de anos,<br />
pesquisadores e professores partiram em missão<br />
nas duas bordas do Atlântico. Foi assim que<br />
os religiosos do Candomblé fizeram a descoberta<br />
de que o seu modo de falar dos Yorubá,<br />
mesmo arcaico em relação àquele falado<br />
contemporaneamente na Nigéria, ainda era entendido<br />
e louvado nos cursos dados por profes-<br />
224 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003
Ubiratan Castro de Araújo<br />
sores da língua Yorubá no CEAO, vindos da<br />
Universidade de Ilê Ifé. Depois de <strong>19</strong>70, mais<br />
algumas personalidades negras da Bahia tiveram<br />
sucesso na travessia do Atlântico, graças<br />
ao apoio da UNESCO e de outros organismos<br />
internacionais.<br />
Hoje, constatamos que as possibilidades de<br />
contatos entre as comunidades africanas e as<br />
afro-baianas, por seus próprios meios, são praticamente<br />
impossíveis diante dos custos da viagem.<br />
De outra parte, as instituições públicas,<br />
tal como a Universidade, não têm êxito na constituição<br />
dos suportes materiais para assegurar<br />
a circulação de pessoas e de idéias entre os<br />
dois lados do Atlântico, de forma a realimentar<br />
a memória africana das comunidades religiosas<br />
da Bahia. Diante do perigo da desafricanização,<br />
da dissolução da memória afro referente,<br />
em uma conjuntura cultural marcada pela<br />
pressão interna para a negação das identidades<br />
negras e da pressão externa da geléia geral<br />
globalizante, é imperioso redobrar os esforços<br />
para o restabelecimento desta conexão atlântica,<br />
condição indispensável para o fortalecimento<br />
da identidade negra baiana. É importante reconhecer<br />
também que esta conjuntura é marcada<br />
por um novo choque de modernidade, com a<br />
realização da III Conferência Mundial contra o<br />
Racismo, na África do Sul, em 2001, e pela<br />
posse de um novo governo de esquerda no Brasil.<br />
Esta será, com fé nos Orixás, uma outra<br />
História.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ARAÚJO, Ubiratan Castro de. 1846: um ano na rota Bahia-Lagos: negócios, negociantes outros parceiros.<br />
Afro-Ásia, Salvador, n. 21-22, p.83-110, <strong>19</strong>98-<strong>19</strong>99.<br />
_____. A política dos homens de cor no tempo da Independência. Recife: CLIO/UFPE, 2001.<br />
_____. Sans gloire: le soldat noir sous le drapeau brésilien, 1798-1838. In: CROUZET, François (Org.). Pour<br />
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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003<br />
225
Conexão Atlântica: história, memória e identidade<br />
ANEXOS<br />
1<br />
Atrás do cordão umbelical<br />
Enterrado lá no Senegal<br />
E em toda a África negra gritando<br />
O Atlântico ouça um conselho<br />
Que se abra como o Mar Vermelho<br />
E a Bahia, o Olodum n’lar adentro voltando.<br />
REIS, Artúlio. Tambores e cores. In:<br />
RODRIGUES, João Jorge (org.). A Música do<br />
Olodum: a revolução da emoção. Salvador:<br />
Olodum, 2002. p.153.<br />
2<br />
A Música do Olodum - 23 anos<br />
..... “A poderosa música do Olodum é acima<br />
de tudo a música dos Yorubás, dos Ibos, dos<br />
Gêges, dos Ijexás, dos Kimbundos, dos<br />
Umbundos, dos Macuas, negros africanos que<br />
vieram do Golfo da Guiné, da costa dos escravos,<br />
e da baía de Luanda (Angola) em tamanha<br />
quantidade que fizeram de Salvador da Bahia a<br />
Roma Negra, a terra dos Gladiadores da Negritude.<br />
É também a música do fenômeno religioso<br />
chamado por todo o povo de “Olodumaré”,<br />
o nome de Deus em Yorubá, o nome da rosa, a<br />
explosão que criou o mundo, e fez os homens e<br />
as mulheres, criou a terra e o mar, o sol, e a lua,<br />
separou a noite do dia, e deu-nos a capacidade<br />
de pensar, sonhar e fazer músicas.” (RODRI-<br />
GUES, João Jorge (org.). A música do Olodum:<br />
a revolução da emoção. Salvador: Olodum,<br />
2002).<br />
3<br />
ABAIXO ASSINADO<br />
Os abaixo assinados, reunidos no Axé Opô<br />
Afonjá, por ocasião das comemorações dos vinte<br />
e cinco anos da gestão de Mãe Stella de<br />
Oxossi desta comunidade religiosa, consideramos<br />
que:<br />
• Em todos os tempos, os países, os povos e<br />
as comunidades vítimas dos atos de guerras<br />
têm reclamado reparações pelos prejuízos<br />
que sofreram. Freqüentemente, suas<br />
postulações foram aceitas e obtiveram compensações<br />
materiais ou morais a título de<br />
reparação”.<br />
• No caso da África, muitas vozes tem se levantado<br />
para deplorar os numerosos anos<br />
de exploração que sofreram os povos deste<br />
continente por força da escravidão, do tráfico<br />
negreiro e do colonialismo, responsáveis<br />
pela pobreza, subdesenvolvimento e desorganização<br />
social que aflige todo o continente<br />
africano.<br />
• No caso das populações afro-descendentes<br />
em todo o mundo, e especialmente no caso<br />
da população afro-descendente brasileira, a<br />
pobreza, a discriminação racial e a exclusão<br />
social são os resultados contemporâneos do<br />
crime do tráfico e da escravidão contra ela<br />
praticado.<br />
Por isso proclamamos o nosso direito à reparação<br />
pelos efeitos do tráfico de escravos e<br />
da escravidão, entendendo-o como um direito<br />
coletivo difuso, do qual é portador o conjunto<br />
da cidadania negra brasileira, e exigimos do<br />
Estado brasileiro:<br />
• O reconhecimento, por ato legislativo, do tráfico<br />
de escravos e da escravidão como crimes<br />
contra a humanidade.<br />
• A reparação moral dos que já sofreram, no<br />
passado, a escravidão e a discriminação racial,<br />
de modo que se institua o reconhecimento<br />
pleno da cidadania negra por todos<br />
os brasileiros.<br />
• A execução de políticas sociais de impacto<br />
imediato, com o objetivo de alterar, a curto<br />
prazo, os indicadores das desigualdades raciais<br />
no Brasil.<br />
• A implantação de programas de longa duração<br />
para erradicar os mecanismos sociais<br />
e culturais de reprodução da desigualdade<br />
racial, de modo que possam estabelecer-se,<br />
de fato, as condições iguais de competição<br />
entre brasileiros de todas as cores e de to-<br />
226 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003
Ubiratan Castro de Araújo<br />
das as tradições culturais, conforme letra e<br />
espírito da Constituição Cidadã de <strong>19</strong>88.<br />
Para a consecução destes objetivos, reivindicamos:<br />
• A constituição de uma comissão nacional<br />
para a reparação das populações negras<br />
brasileiras, com a participação ampla das representações<br />
do Movimento Negro, da sociedade<br />
civil e da sociedade política, com<br />
estatuto de Secretaria de Estado.<br />
• A instituição de um Fundo Nacional de Reparação,<br />
cujos recursos sejam fixados por<br />
lei e representem um percentual vinculado<br />
da receita da União, dos Estados e dos Municípios,<br />
durante um período inicial de 10<br />
anos, para o financiamento de projetos especiais<br />
de caráter reparatório.<br />
• A incorporação em todos os programas e<br />
projetos de ação governamental (União, Estados<br />
e Municípios) de prioridades e metas<br />
relativas à promoção da população negra brasileira.<br />
• A negociação de uma convenção reparatória<br />
dos danos sofridos pelas populações negras<br />
por força do tráfico de escravos e da escravidão,<br />
de âmbito internacional, que inclua<br />
como beneficiárias as populações africanas<br />
e as populações negras da diáspora africana<br />
nas Américas. Também neste caso, deve ser<br />
proposta a criação de um Fundo Internacional<br />
de Reparação, gerido pela ONU, com o<br />
objetivo de financiar ações e projetos de promoção<br />
das populações negras. Este fundo<br />
deve atender diretamente comunidades e não<br />
governos e agências governamentais.<br />
Somente assim, a reparação pode constituirse<br />
em um novo pacto de convívio social, expresso<br />
por um programa completo, nacional, de<br />
longa duração, onde estejam definidos os compromissos<br />
da República Federativa do Brasil<br />
para a erradicação da desigualdade racial e do<br />
racismo no Brasil.<br />
Salvador, 08 de junho de 2001.<br />
Recebido em 30.05.01<br />
Aprovado em <strong>19</strong>.08.01<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003<br />
227
Wilson Roberto de Mattos<br />
VALORES CIVILIZATÓRIOS AFRO-BRASILEIROS, POLÍTICAS<br />
EDUCACIONAIS E CURRÍCULOS ESCOLARES<br />
Wilson Roberto de Mattos *<br />
RESUMO<br />
O presente texto é um breve ensaio acerca da importância e necessidade<br />
de se considerar, na elaboração dos projetos pedagógicos e currículos<br />
escolares, um conjunto de concepções, orientadoras de práticas sociais<br />
comuns às populações negras brasileiras que, por suas notórias<br />
vinculações a um passado africano reconstruído no Brasil, convencionouse<br />
nomear valores civilizatórios afro-brasileiros. Procura-se chamar atenção<br />
para a historicidade dessas concepções, bem como das práticas<br />
nelas fundamentadas, como forma deliberada de fazê-las figurarem na<br />
esfera das políticas educacionais com efetivas possibilidades de colaborarem<br />
com uma formação escolar, não só respeitadora das diferenças,<br />
mas, verdadeiramente, pluricultural.<br />
Palavras-chave: Educação – História – Identidade – Pluriculturalidade<br />
– Valores Civilizatórios<br />
ABSTRACT<br />
AFRO-BRAZILIAN CIVILIZING VALUES, EDUCATIONAL<br />
POLITICS AND SCHOOL CURRICULUMS<br />
The present text is a brief account of the importance and necessity of<br />
considering, in the elaboration of the pedagogical projects and school<br />
curriculums, a set of conceptions that guide common social practices to<br />
the Afro-Brazilian populations that, because of its notorious links to an<br />
African past reconstructed in Brazil, was conventionally nominated Afro-<br />
Brazilian civilizing values. One aims at calling the attention to the<br />
historicity of these conceptions, as well as to the practices based on<br />
them, as a deliberate way of making them figure in the sphere of the<br />
educational politics with effective possibilities of collaborating with a<br />
school formation, not only respectful of the differences, but, truly, pluricultural.<br />
Key words: Education – History – Identity – Cultural Plurality – Civilizing<br />
Values<br />
*<br />
Doutor em História Social pela PUC-SP. Professor Adjunto de História na Universidade do Estado da<br />
Bahia. Diretor do Departamento de Ciências Humanas/UNEB – Campus V. Professor do Mestrado em Educação<br />
e Contemporaneidade/UNEB – Campus I. Endereço para correspondência: Rua B, n. 305, Edf. Ibiporã,<br />
apt. 403, Imbuí – 41720.120 Salvador-BA. E-mail: mattosfamily@uol.com.br<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003<br />
229
Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e currículos escolares<br />
Abordar o tema dos valores civilizatórios, seja<br />
na sociedade brasileira ou em qualquer outra<br />
sociedade com características pluriculturais semelhantes,<br />
não é tarefa de pouca dificuldade, sobretudo<br />
quando nos ocupamos em identificar<br />
seus conteúdos e significados amplos a partir de<br />
um referencial circunscrito a um universo cultural,<br />
por definição de pouca precisão, no caso que<br />
nos interessa, o universo cultural afro-brasileiro.<br />
Sendo assim, antes mesmo de propormos formas<br />
de introduzir os valores civilizatórios afrobrasileiros<br />
na elaboração dos currículos escolares,<br />
convém especificarmos, ainda que brevemente,<br />
qual a nossa compreensão do tema e,<br />
sobretudo, deixar clara a posição teórica que<br />
referencia essa nossa compreensão.<br />
Se tão somente considerarmos os traços notórios<br />
da presença africana no Brasil – da língua<br />
à densidade numérica, da arte à religiosidade –,<br />
dada a extensão e significado desta presença,<br />
pensar em valores civilizatórios afro-brasileiros<br />
é quase o mesmo que pensar em valores<br />
civilizatórios nacionais. Perguntaríamos, então:<br />
qual a forma mais adequada de caracterizar os<br />
fundamentos e significados de determinadas práticas<br />
que envolvem os descendentes de africanos<br />
no Brasil que, no conjunto, nos possibilite<br />
atribuir-lhes o estatuto de valores civilizatórios,<br />
ou seja, uma reunião articulada de proposições<br />
éticas, relacionais e existenciais que responde por<br />
uma especificidade no interior da chamada civilização<br />
brasileira?<br />
O caminho mais seguro e, certamente, o mais<br />
usual é o esforço em identificar, no interior do<br />
complexo cultural brasileiro, sobretudo através<br />
da interpretação dos significados mais amplos<br />
das manifestações hegemonizadas numérica ou<br />
culturalmente pelas populações negras, recriações<br />
cosmológicas herdadas de sociedades africanas<br />
pré-coloniais ou mesmo similares às dimensões<br />
culturais mais profundas das sociedades<br />
africanas contemporâneas.<br />
Evidentemente, por ser a sociedade brasileira<br />
composta na sua grande maioria por afrodescendentes,<br />
há um número considerável dessas<br />
recriações que nos une ao continente africano<br />
de forma inexorável. Alguns exemplos conhecidos<br />
e presentes na bibliografia especializada<br />
podem ser aqui enumerados: as concepções<br />
diferenciais de morte e ancestralidade; o significado<br />
cosmológico da vida humana e da relação<br />
com a natureza; a oralidade como forma<br />
privilegiada da comunicação e transmissão dos<br />
saberes, bem como o valor da palavra e o caráter<br />
sagrado de todas as dimensões da existência<br />
humana.<br />
Não obstante a necessária identificação desses<br />
valores, cremos ser de igual ou de maior<br />
importância considerarmos a forma como os<br />
concebemos. A elevação desses valores a verdadeiros<br />
redentores da nossa dignidade e identidade,<br />
aviltadas pela supremacia dos valores<br />
brancos hegemônicos, mesmo que cumpra a<br />
função de um recurso político contra-hegemônico,<br />
imediato e igualmente reconfortante para<br />
a nossa subjetividade individual e coletiva, não<br />
pode obscurecer nossa visão em relação ao risco<br />
muito provável de incorrermos nas armadilhas<br />
dos essencialismos, na reprodução não refletida<br />
desses valores como conteúdos inalterados<br />
de uma tradição supostamente imune às<br />
injunções do tempo. A desatenção ao imperativo<br />
da história, com suas mudanças e permanências<br />
no continuum temporal, no mínimo, pode levar<br />
a cristalização de valores absolutamente<br />
extemporâneos em relação às características e<br />
demandas da contemporaneidade.<br />
Pensar a historicidade dos valores civilizatórios<br />
afro-brasileiros como forma de aumentarmos<br />
a sua eficácia no sentido daquilo que<br />
definirmos como nossas principais demandas de<br />
ordem política, cultural, racial ou, como prefiro,<br />
da ordem da necessidade de edificação de uma<br />
cultura política afro-descendente, implica em um<br />
esforço intelectual de retomada da nossa história<br />
através, principalmente, do trabalho de construção<br />
da nossa memória social própria, em<br />
conjunto com a crítica da memória social que<br />
a supremacia branca ocidental nos legou como<br />
herança, e que, na maioria das vezes, reproduzimos<br />
com pouca consciência acerca das suas<br />
formas, conteúdos e efeitos reiteradores de uma<br />
economia de relações raciais, calcada na pressuposição<br />
da nossa inferioridade.<br />
230 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003
Wilson Roberto de Mattos<br />
Não se trata simplesmente de contrapor de<br />
forma maniqueísta e ingênua, à memória social<br />
herdada, uma outra memória social e racial positiva<br />
e supostamente superior. Qualquer tentativa<br />
de substituir uma supremacia racial por<br />
outra, além de ser historicamente improvável, é<br />
igualmente condenável. Trata-se, sim, de ativar<br />
a possibilidade de dar expressão e significado a<br />
conteúdos históricos concretos silenciados pelas<br />
memórias dominantes, trazer à cena e<br />
positivar os conteúdos não codificados pelas linguagens<br />
convencionais, ressignificar as sociabilidades<br />
não-hegemônicas e as múltiplas<br />
temporalidades do viver cotidiano. Em palavras<br />
mais ousadas, trata-se de construir e divulgar<br />
concepções e pressupostos capazes de reorientar<br />
a nossa compreensão do nosso próprio passado<br />
– e, se preciso, mudá-lo na forma como<br />
ele se nos mostra –, à luz consciente de um<br />
projeto político e civilizacional contemporâneo,<br />
ao mesmo tempo emancipador e anti-racista.<br />
São de um eminente judeu levado à morte por<br />
uma insidiosa perseguição racista, os seguintes<br />
excertos sobre a história:<br />
Articular historicamente o passado não significa<br />
conhecê-lo como ele foi de fato. Significa apropriar-se<br />
de uma reminiscência, tal como ela relampeja<br />
no momento de um perigo (...). O dom de<br />
despertar no passado as centelhas da esperança<br />
é privilégio exclusivo do historiador convencido<br />
de que também os mortos não estarão em<br />
segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo<br />
não tem cessado de vencer. (...) existe um encontro<br />
secreto, marcado entre as gerações precedentes<br />
e a nossa. Alguém na terra está à nossa<br />
espera. Nesse caso, como a cada geração, foinos<br />
concedida uma frágil força messiânica para<br />
qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não<br />
pode ser rejeitado impunemente. (BENJAMIN,<br />
<strong>19</strong>87, p. 222-232)<br />
O passado do povo negro brasileiro tem-nos<br />
feito apelos incessantes, cabe a nós configurarmos<br />
os quadros que podem dar-lhe visibilidade<br />
significativa para além do que as narrativas<br />
dominantes estabeleceram como sua “verdade”.<br />
Os nossos mortos não descansarão em<br />
paz, enquanto não nos apropriarmos da memória<br />
de suas vidas conectando-as às nossas lutas<br />
presentes.<br />
Embora o passado africano, tanto pré como<br />
colonial e pós-colonial, componha um amplo<br />
repertório de temas e processos que devemos<br />
enfrentar a partir de novas configurações interpretativas<br />
afinadas com as nossas reais demandas,<br />
e isso é uma necessidade inadiável eu, particularmente,<br />
considero de igual urgência uma<br />
revisitação crítica e politicamente orientada sobre<br />
as experiências negras em terras brasileiras<br />
e, dentre estas, a principal delas, a experiência<br />
traumática da escravidão. Justifico: dos<br />
cinco séculos de história, a partir do nosso ingresso<br />
involuntário no mundo moderno, quase<br />
quatro séculos nós vivemos sob o jugo do regime<br />
escravista.<br />
Um regime de relações humano-sociais, infelizmente,<br />
tão longevo – para o bem ou para<br />
o mal, dependendo de onde nos localizamos<br />
socialmente, num país onde a desigualdade é<br />
uma perversa insistência histórica –, deixa<br />
marcas profundas e indeléveis na forma como<br />
nos concebemos como seres humanos, organizamos<br />
a nossa existência, elaboramos nossas<br />
memórias, construímos nossas identidades<br />
e nos relacionamos uns com os outros e com o<br />
real. Negligenciar a sua importância como<br />
substrato cultural na definição de papéis, relações<br />
sociais e raciais contemporâneas é abdicar<br />
da chance de formularmos nossas demandas<br />
políticas e culturais anti-racistas com maior<br />
precisão e possibilidade de êxito. Acreditar em<br />
uma ponte que nos ligue ao passado, ou mesmo<br />
ao presente africano, sem a intermediação<br />
do que a própria escravidão nos legou como<br />
herança em termos de resistência e recriações<br />
culturais relativamente originais, em nome de<br />
uma tentativa, ainda que compreensível, de<br />
apagar as marcas negativas que ela, a escravidão,<br />
cravou em nossas consciências individuais<br />
e na dinâmica das relações sociais, de<br />
um modo geral, é, para dizer o mínimo, desprezar<br />
o vigor criativo e culturalmente fecundo<br />
de um imenso contingente populacional que<br />
jamais se conformou com os limites das imposições<br />
normativas e legais.<br />
Como exemplo, para nos concentrarmos no<br />
campo da historiografia, cabe mencionar a<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003<br />
231
Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e currículos escolares<br />
existência de um número considerável de estudos<br />
que, rompendo com as concepções tradicionais<br />
que levavam ao pé da letra a definição<br />
jurídica do escravo como coisa, inauguram<br />
a concepção, já hoje consensual, do papel<br />
que os escravos – e populações negras de um<br />
modo geral –, desempenharam tanto no processo<br />
que culminou na abolição, quanto no forjar,<br />
cultural e politicamente, formas possíveis<br />
de resistência e sobrevivência no interior da<br />
própria escravidão. Reconhece-se também que<br />
as possibilidades interpretativas dessa forma<br />
diferenciada de angular o processo, com suas<br />
variáveis e desdobramentos, obrigaram esforços<br />
no sentido de uma ampla revisão crítica<br />
das bases teórico-metodológicas anteriores,<br />
assim como a edificação ou adoção de postulados<br />
que, ancorados em pesquisas cuidadosas<br />
quanto à definição dos temas, periodizações<br />
e objetos, garantiram o seu rigor.<br />
No conjunto desses estudos, o binômio escravidão-liberdade,<br />
alicerçado em um conceito<br />
ampliado de resistência, possibilitou o rompimento<br />
justificado com a idéia de escravidão<br />
concebida estruturalmente e, à luz de novos<br />
significados atribuídos a termos conceituais<br />
mediadores, como por exemplo: paternalismo,<br />
hegemonia, cultura e experiência, inclusive, valores<br />
civilizatórios, facilitou o desvendamento<br />
das múltiplas variáveis da relação fundamental<br />
entre senhores e escravos.<br />
É forte a idéia de que a dinâmica das relações<br />
entre senhores e escravos – e outras formas<br />
de relações verticais correlatas, no interior<br />
de uma, digamos, economia moral paternalista<br />
que aproximava, não sem conflitos, uns e outros,<br />
em meio a resistências e arranjos de acomodação<br />
cotidianos –, forjou um espaço social<br />
no interior do qual os escravos construíram um<br />
mundo próprio, relativamente autônomo, e que<br />
também configura-se na contemporaneidade<br />
como nossa herança.<br />
Tanto esta idéia de paternalismo, quanto a<br />
de experiência como lastro histórico concreto<br />
no fazer-se das coletividades (grupais ou<br />
de classes), com implicações formativas ao<br />
nível da sua consciência e cultura, libertaram<br />
a historiografia sobre a escravidão dos esquemas<br />
interpretativos tradicionais, pouco ou nada<br />
flexíveis e, na maioria das vezes, absolutamente<br />
infrutíferos do ponto de vista da necessidade<br />
de construção de uma nova memória capaz<br />
de orientar as lutas anti-racistas contemporâneas.<br />
Alguns procedimentos historiográficos, inclusive,<br />
já avançam hipóteses mais ousadas<br />
sobre a interpretação das experiências negras<br />
no Brasil, adentrando no núcleo do que tem<br />
sido considerado como valores civilizatórios<br />
afro-brasileiros. Um exemplo é a tentativa de<br />
tematizar conteúdos pouco usuais no campo<br />
da historiografia. O historiador e professor da<br />
Universidade Estadual de Campinas, Sidney<br />
Chalhoub (<strong>19</strong>96), no capítulo intitulado Raízes<br />
culturais negras da tradição vacinophobica,<br />
do seu livro Cidade Febril, através de um<br />
método originalmente batizado por ele de “saltos<br />
e saltinhos”, emprestado à personagem<br />
machadiana Capitú, busca nas tradições africanas<br />
dos mitos das divindades da terra como<br />
Omolu/Obaluaiê (nagô) / Xapanã (jêje), valores<br />
culturais-religiosos, cuja recriação/atualização<br />
no Brasil, através das populações afro-descendentes,<br />
acredita-se, funcionou como orientadora<br />
cultural na reação popular à vacinação<br />
obrigatória contra a febre amarela no conflito<br />
conhecido como a Revolta da Vacina, ocorrido<br />
no começo do século XX, na cidade do Rio<br />
de Janeiro. Citando um outro historiador original<br />
na adoção de um método semelhante, escreve<br />
Chalhoub (<strong>19</strong>96, p.144):<br />
Robert Slenes vem demonstrando que as culturas<br />
religiosas da África Central informavam muito<br />
do que os escravos do sudeste pensavam de<br />
sua condição, sendo mesmo decisivas na articulação<br />
de formas de resistência ao cativeiro. Sendo<br />
assim o que é necessário fazer para reforçar a<br />
hipótese da importância de Omolu na resistência<br />
à vacinação, é mostrar a possibilidade real de<br />
reinterpretação desse orixá em termos dos pressupostos<br />
cosmológicos básicos dos povos da<br />
África Central.<br />
Está claro que estas concepções e inovações<br />
temáticas e teórico-metodológicas cum-<br />
232 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003
Wilson Roberto de Mattos<br />
priram um papel decisivo, no sentido de nos orientar<br />
a pensar a escravidão e os próprios escravos<br />
para além da sua mera posição na estrutura<br />
produtiva. As interpretações pautadas<br />
nesses princípios relativizam o peso estrutural<br />
do escravismo como sistema para que os escravos<br />
possam emergir como sujeitos na história,<br />
assim como, sujeitos da sua própria história.<br />
Mas, mesmo reconhecida a importância intelectual<br />
desta virada teórico-metodológica e<br />
temática, particularmente continuo acreditando<br />
que, às nossas demandas políticas, culturais e<br />
de luta anti-racista contemporâneas, a história<br />
da África, a história da escravidão brasileira ou<br />
mesmo a história da presença da África no Brasil,<br />
através de valores recriados ou de qualquer<br />
outro expediente histórico-cultural, só farão sentido<br />
– citando uma frase significativa de Stuart<br />
Hall (<strong>19</strong>96) –, se forem recontadas através da<br />
política da memória e do desejo.<br />
Para finalizar exponho, de modo sintético,<br />
alguns aspectos iniciais, portanto provisórios, de<br />
um trabalho que tenta dar operacionalidade à<br />
conjunção entre memória e história de populações<br />
afro-descendentes, na perspectiva de uma<br />
interpretação alternativa aos postulados<br />
hegemônicos.<br />
Em execução há um ano, o projeto de pesquisa<br />
intitulado: Negras Lembranças: memórias<br />
da dor e da alegria, desenvolvido no recôncavo<br />
sul do Estado da Bahia, através dos<br />
procedimentos da história oral, tem como objeto<br />
as memórias de velhos afro-descendentes<br />
moradores da região e, como objetivos, identificar<br />
e interpretar os significados que por eles<br />
são atribuídos às suas experiências no mundo<br />
do trabalho, nas relações de parentesco e vizinhança,<br />
no universo da religiosidade, das festas<br />
e de outras formas de expressão criativas.<br />
As histórias de vida – opção inicial acerca<br />
do formato dos depoimentos –, registram em<br />
proporção significativa, fatos, práticas, processos,<br />
hábitos e concepções que configuram<br />
aquilo que Paul Gilroy (2001) codificou conceitualmente<br />
como o “sublime”, ou seja, a dimensão<br />
redentora da dor ou a capacidade criativa<br />
que as populações negras tinham, na escravidão,<br />
e têm, ainda hoje, de transformar<br />
a experiência da exclusão social, da opressão,<br />
do preconceito e da discriminação racial, em<br />
substrato cultural-existencial vívido, voltado<br />
para a afirmação positiva e celebração da vida,<br />
principalmente através da inventividade nas<br />
formas de expressão criativas como a música,<br />
a literatura, a dança e outras artes performáticas,<br />
mas também na edificação de valores<br />
humanos, ético-relacionais, cuja dimensão prática,<br />
nas lutas empreendidas cotidianamente<br />
pelas populações negras da região, são evidentes:<br />
a astúcia em arranjar cotidianamente<br />
a sobrevivência; a solidariedade como imperativo<br />
ético nas relações intra e inter-grupos;<br />
a fé na vida como possibilidade e devir, a certeza<br />
de que tudo pode melhorar.<br />
Os pressupostos básicos da pesquisa, sustentados<br />
na articulação entre memória e história,<br />
informam que as sociabilidades e modos de<br />
vida não-hegemônicos dos grupos negros<br />
pesquisados, expressos das mais variadas formas<br />
no universo amplo da cultura, produzem<br />
valores e significados que configuram identidades<br />
e conferem sentidos à sua existência social.<br />
Mais do que isso, as próprias narrativas, expressando<br />
o vivido tal qual concebido, via memória<br />
dos depoentes, indicam que essas identidades<br />
e sentidos não devem ser vistos como<br />
características definitivas ou essenciais cristalizadas<br />
de uma vez por todas, mas como resultados<br />
provisórios, porque contextuais, históricos,<br />
de um processo agonístico de resistências e<br />
acomodações em relação aos vetores impositivos<br />
dos estratos hegemônicos da cultura.<br />
Contemporaneamente, é no interior desta<br />
arena conflituosa, permeada pelas injunções da<br />
história, que se constroem e se reconstroem<br />
valores, que se avaliam as possibilidades de que<br />
esses valores contribuam para o aperfeiçoamento<br />
da nossa civilização, não só através dos processos<br />
de elaboração de políticas educacionais<br />
e currículos escolares mas, sobretudo, através<br />
de uma nova cultura política que interiorize nossa<br />
memória própria e a nossa história afro-descendente<br />
como instituidoras de novas formas<br />
de se organizar as relações humano-socias, nas<br />
diferenças e nas semelhanças.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003<br />
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Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e currículos escolares<br />
REFERÊNCIAS<br />
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: _____. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e<br />
política. 3. ed. São Paulo, SP: Brasiliense, <strong>19</strong>87. p. 222-232.<br />
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo, SP: Cia. das Letras,<br />
<strong>19</strong>96.<br />
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34, 2001.<br />
HALL, Stuart. Identidade Cultural e Diáspora: “cidadania”. Organizado por Antonio Augusto Arantes.<br />
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, DF, n. 24, p 68-75, <strong>19</strong>96.<br />
SLENES, Robert. Malungo n´goma vem!: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, São Paulo, SP,<br />
n.12, p. 48-67, <strong>19</strong>91/<strong>19</strong>92.<br />
_____. Na senzala, uma flor. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, <strong>19</strong>99.<br />
Recebido em 30.05.03<br />
Aprovado em <strong>19</strong>.08.03<br />
234 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003
RESUMO DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO<br />
MORAIS, Edmilson de Sena.* “Corte e costura étnica”: representações da identidade<br />
afro-descendente nas relações sócio-educativas no CONGO-CENTRO<br />
MÉDICO SOCIAL. Salvador, 2002. 235 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de<br />
Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade. Universidade do Estado<br />
da Bahia (UNEB).**<br />
Num país pluriétnico como o Brasil, a construção<br />
da identidade étnica afro-descendente<br />
em todas as suas regiões, principalmente em<br />
Salvador, é uma problemática recorrente no<br />
processo de reconhecimento da sua diversidade<br />
etno-cultural e de uma efetiva democracia<br />
racial. A relevância desta questão está diretamente<br />
relacionada à auto-afirmação do indivíduo<br />
negro-mestiço, sua inserção sócio-econômica<br />
e o seu reconhecimento enquanto cidadão<br />
numa sociedade racista e de classes, onde<br />
prevalecem mecanismos de exclusão que se<br />
iniciam desde seu nascimento até o modelo de<br />
educação instituído no qual ele é “formado”.<br />
Para este estudo, tomamos como referência<br />
o Projeto Educacional de Corte e Costura<br />
Étnica promovido pelo CONGO – CENTRO<br />
MÉDICO SOCIAL, localizado no Alto de<br />
Coutos, subúrbio ferroviário de Salvador/Bahia,<br />
porque sua proposta sócio-educativa contempla<br />
a questão da identidade étnica afro-descendente.<br />
Assim, buscamos perceber a forma como<br />
os jovens afro-descendentes daquela área geográfica<br />
construíram suas identidades. As identidades<br />
sociais daquela área foram tomadas<br />
como objeto de estudo por se tratar de uma<br />
questão crucial que tanto interesse suscita entre<br />
muitos segmentos: sociais, políticos, acadêmicos,<br />
e por entendermos ser esta uma construção<br />
política necessária no contexto das relações<br />
inter-raciais existentes em nosso país.<br />
O CONGO – CENTRO MÉDICO SOCI-<br />
AL, além de implementar um curso de formação<br />
técnica em corte e costura, incluiu em sua<br />
proposta político-pedagógica uma educação<br />
multicultural-cidadã enquanto recurso de inclusão<br />
social desses sujeitos que, historicamente,<br />
foram submetidos à ideologia do recalque e do<br />
branqueamento.<br />
Palavras-chave : Identidade – Identidade étnica<br />
afro-descendente – Representações Sociais<br />
ABSTRACT OF MASTERS’ THESIS: “Ethnic<br />
Tailoring”: representations of the Afro-descendant<br />
identity in the socio-educative relations at CONGO-<br />
Social Medical Center<br />
This study is about the construction of the<br />
young Afro-descendant ethnic-cultural identity<br />
through the Ethnic Tailoring Course implemented<br />
by CONGO – SOCIAL MEDICAL CENTER of Alto<br />
de Coutos – Salvador/Bahia/Brazil. The results<br />
reveal how these subjects began re-evaluating<br />
attitudes, co-inhabiting norms and the exercise of<br />
citizenship, that, as a whole, have contributed to the<br />
(re)construction of their identities and performances<br />
as historic subjects, participants of a multicultural<br />
society characterized by chronic social and economical<br />
problems and, promoters of many exclusions.<br />
Key words: Identity – Afro-descendant Ethnic<br />
Identity – Social Representations<br />
* Professor de História do ensino médio e fundamental da rede pública do Estado da Bahia. Endereço para<br />
correspondência: Rua Rio Parnaíba, bloco 43, apt. 102, Boca do Rio – 41706.170 Salvador/BA. E-mail:<br />
edmorsaba@yahoo.com.br.<br />
** Orientadora: Professora Yara Dulce Bandeira de Ataíde (UNEB); data: 16 de abril de 2003; Banca: Professor<br />
Henrique Cunha Júnior (UFC), Professora Ana Célia da Silva (UNEB).<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n o <strong>19</strong>, jan./jun., 2003<br />
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INSTRUÇÕES AOS COLABORADORES<br />
A Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade é uma publicação semestral e<br />
aceita trabalhos originais que sejam classificados em uma das seguintes modalidades:<br />
– resultados de pesquisas sob a forma de artigos, ensaios e resumos de teses ou monografias;<br />
– entrevistas, depoimentos e resenhas sobre publicações recentes.<br />
Os trabalhos devem ser apresentados em disquete (Winword), ou enviados via Internet para<br />
Jacques Jules Sonneville: jacqson@uol.com.br / jacques.sonneville@terra.com.br, segundo as<br />
normas definidas a seguir:<br />
1. Na primeira página devem constar: a) título do artigo; b) nome(s) do(s) autor(es), endereço,<br />
telefone, e-mail para contato; c) instituição a que pertence(m) e cargo que ocupa(m).<br />
2. Resumo (português) e Abstract (língua estrangeira): com no mínimo 200 palavras e no máximo<br />
250, cada um, de acordo com a NBR 6028. Logo em seguida, as Palavras-chave (português) e<br />
Key words (língua estrangeira), cujo número desejado é de no mínimo três e no máximo cinco.<br />
3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias, quando apresentados em folhas separadas, devem<br />
ter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser titulados e apresentar referências de sua<br />
autoria/fonte. Para tanto devem seguir a Norma de apresentação tabular, estabelecida pelo<br />
Conselho Nacional de Estatística e publicada pelo IBGE em <strong>19</strong>79.<br />
4. As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem, assim como os<br />
agradecimentos, apêndices e informes complementares.<br />
5. O sistema de citação adotado por este periódico é o de autor-data. As citações bibliográficas<br />
ou de site, inseridas no próprio texto, devem vir entre aspas ou em parágrafo com recuo e sem<br />
aspas, remetendo ao autor. Quando o autor faz parte do texto, este deve aparecer em letra<br />
cursiva, observando e respeitando a língua portuguesa; exemplo: De acordo com Freire (<strong>19</strong>82,<br />
p.35), etc. Já quando o autor não faz parte do texto, este deve aparecer no final do parágrafo,<br />
entre parênteses e em letra maiúscula, como no exemplo a seguir: A pedagogia das minorias<br />
está a disposição de todos (FREIRE, <strong>19</strong>82, p.35). As citações extraídas de sites devem, além<br />
disso, conter o endereço (URL) entre parênteses angulares e a data de acesso. Para qualquer<br />
referência a um autor deve ser adotado igual procedimento. Deste modo, no rodapé das páginas<br />
do texto devem constar apenas as notas explicativas estritamente necessárias, que<br />
devem obedecer à NBR 10520.<br />
6. Sob o título Referências deve vir, após parte final do artigo, em ordem alfabética, a lista dos<br />
autores e das publicações conforme a NBR 602, da ABNT (Associação Brasileira de Normas<br />
Técnicas).<br />
7. Os artigos devem ter, no máximo, 30 páginas, e as resenhas até 4 páginas. Os resumos de<br />
teses/dissertações devem ter no mínimo 250 palavras e no máximo 500, e conter título, autor,<br />
orientador, instituição, e data da defesa pública.<br />
Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no Winword 97 ou 2000:<br />
• fonte: Times New Roman 12;<br />
• tamanho da folha: A4;<br />
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