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Edição Nº 19 - Uneb

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ISSN 0104-7043<br />

Revista da FAEEBA<br />

Educação<br />

e Contemporaneidade<br />

Departamento de Educação - Campus I<br />

Volume 12 Número <strong>19</strong> janeiro/junho 2003<br />

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB


Revista da FAEEBA – EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE<br />

Revista do Departamento de Educação – Campus I<br />

(Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA)<br />

Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, científico e cultural.<br />

Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.<br />

ADMINISTRAÇÃO E REDAÇÃO: A correspondência relativa a informações, pedidos de permuta,<br />

assinaturas, etc. deve ser dirigida à:<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade<br />

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA<br />

Departamento de Educação I - NUPE<br />

Estrada das Barreiras, s/n, Narandiba<br />

41150.350 - SALVADOR – BA<br />

Tel. (071)387.5916/387.5933<br />

Instruções para os colaboradores: vide última página.<br />

E-mail da Revista da FAEEBA: refaeeba@campus1.uneb.br<br />

E-mail para o envio dos artigos: jacqson@uol.com.br / jacques.sonneville@terra.com.br<br />

Homepage da Revista da FAEEBA: http://www.uneb.br/Educacao/centro.htm<br />

Indexada em / Indexed in:<br />

- REDUC/FCC – Fundação Carlos Chagas - www.fcc.gov.br - Biblioteca Ana Maria Poppovic<br />

- BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília/INEP)<br />

- Centro de Informação Documental em Educação - CIBEC/INEP - Biblioteca de Educação<br />

- EDUBASE e Sumários Correntes de Periódicos Online - Faculdade de Educação - Biblioteca UNICAMP<br />

- Sumários de Periódicos em Educação e Boletim Bibliográfico do Serviço de Biblioteca e Documentação -<br />

Universidade de São Paulo - Faculdade de Educação/Serviço de Biblioteca e Documentação.<br />

www.fe.usp.br/biblioteca/publicações/sumario/index.html<br />

- CLASSE - Base de Dados Bibliográficos en Ciencias Sociales y Humanidades da Hemeroteca Latinoamericana<br />

- Universidade Nacional Autônoma do México<br />

E-mails: hela@dgb.unam.mx / rluna@selene.cichcu.unam.mx / Site: http://www.dgbiblio.unam.mx<br />

Pede-se permuta / We ask for exchange.<br />

Revista da FAEEBA / Universidade do Estado da Bahia, Departamento<br />

de Educação I – v. 1, n. 1 (jan./jun., <strong>19</strong>92) - Salvador: UNEB, <strong>19</strong>92-<br />

Periodicidade semestral<br />

ISSN 0104-7043<br />

1. Educação. I. Universidade do Estado da Bahia. II. Título.<br />

CDD: 370.5<br />

CDU: 37(05)


UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB<br />

Reitora: Ivete Alves do Sacramento<br />

Vice-Reitor: Monsenhor Antônio Raimundo dos Anjos<br />

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS I<br />

Diretora: Adelaide Rocha Badaró<br />

Núcleo de Pesquisa e Extensão – NUPE<br />

Programa de Pós-Graduação Educação e Contemporaneidade/UNEB – PEC/UNEB<br />

FUNDADORES: Yara Dulce Bandeira de Ataide – Jacques Jules Sonneville<br />

COMISSÃO DE EDITORAÇÃO<br />

Editora Geral: Yara Dulce Bandeira de Ataide<br />

Editor Executivo: Jacques Jules Sonneville<br />

Editora Administrativa: Maria Nadja Nunes Bittencourt<br />

CONSELHO CONSULTIVO: Adelaide Rocha Badaró (UNEB), Cleilza Ferreira Andrade, Edivaldo Machado<br />

Boaventura (A Tarde), Jaci Maria Ferraz de Menezes (UNEB), Lourisvaldo Valentim (UNEB), Manoelito Damasceno<br />

(UNEB), Marcel Lavallée (Université de Québec), Nadia Hage Fialho (UNEB), Robert Evan Verhine (UFBa).<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

Adélia Luiza Portela<br />

Universidade Federal da Bahia<br />

Antônio Gomes Ferreira<br />

Universidade de Coimbra, Portugal<br />

Cipriano Carlos Luckesi<br />

Universidade Federal da Bahia<br />

Edmundo Anibal Heredia<br />

Universidade Nacional de Córdoba, Argentina<br />

Edivaldo Machado Boaventura<br />

Universidade Federal da Bahia<br />

Ellen Bigler<br />

Rhode Island College, USA<br />

Jacques Jules Sonneville<br />

Universidade do Estado da Bahia<br />

João Wanderley Geraldi<br />

Universidade de Campinas<br />

Ivete Alves do Sacramento<br />

Universidade do Estado da Bahia<br />

Jonas de Araújo Romualdo<br />

Universidade de Campinas<br />

José Carlos Sebe Bom Meihy<br />

Universidade de São Paulo<br />

José Crisóstomo de Souza<br />

Universidade Federal da Bahia<br />

Kátia Siqueira de Freitas<br />

Universidade Federal da Bahia<br />

Luís Reis Torgal<br />

Universidade de Coimbra, Portugal<br />

Luiz Felipe Perret Serpa<br />

Universidade Federal da Bahia<br />

Marcel Lavallée<br />

Universidade de Québec, Canadá<br />

Marcos Formiga<br />

Universidade de Brasília<br />

Marcos Silva Palácios<br />

Universidade Federal da Bahia<br />

Maria José Palmeira<br />

Universidade do Estado da Bahia e Universidade<br />

Católica de Salvador<br />

Maria Luiza Marcílio<br />

Universidade de São Paulo<br />

Maria Nadja Nunes Bittencourt<br />

Universidade do Estado da Bahia<br />

Mercedes Vilanova<br />

Universidade de Barcelona, España<br />

Nadia Hage Fialho<br />

Universidade do Estado da Bahia<br />

Paulo Batista Machado<br />

Universidade do Estado da Bahia<br />

Raquel Salek Fiad<br />

Universidade de Campinas<br />

Robert Evan Verhine<br />

Universidade Federal da Bahia<br />

Rosalba Guerini<br />

Universidade de Pádova, Itália<br />

Walter Esteves Garcia<br />

Associação Brasileira de Tecnologia Educacional /<br />

Instituto Paulo Freire<br />

Yara Dulce Bandeira de Ataíde<br />

Universidade do Estado da Bahia<br />

Organização: Jacques Jules Sonneville e linha 1 do Mestrado em Educação e Contemporaneidade/UNEB<br />

Revisoras: Dilma Evangelista da Silva, Lígia Pellon de Lima Bulhões, Rosa Helena Blanco Machado, Solange<br />

Mendes da Fonseca, Therezinha Maria Bottas Dantas.<br />

Pareceristas ad hoc: Júlio César Lobo (UNEB) e Ana Célia da Silva (UNEB).<br />

Bibliotecária responsável: Débora Toniolo Rau<br />

Versão para o inglês: Roberto Dias: trÁdus - traduções e versões<br />

Estagiária: Elen Barbosa Simplício<br />

Capa: Symbol Publicidade – Uilson Moraes<br />

Editoração: Antonio José Caldas dos Santos


Impressão e encadernação: Empresa Gráfica da Bahia - EGBA<br />

Tiragem: 1.500 exemplares<br />

O número <strong>19</strong> da Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade foi financiado com:<br />

– recursos da UNEB, através da<br />

EDITORA E LABORATÓRIO DE IMPRESSÃO – UNEB<br />

– e com recursos da<br />

FAPESB – FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO


S U M Á R I O<br />

Editorial ................................................................................................................................. 9<br />

Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA – Educação e<br />

Contemporaneidade .............................................................................................................. 10<br />

Educação e Pluralidade Cultural: apresentação<br />

Jaci Maria Ferraz de Menezes; Jacques Jules Sonneville; Narcimária Correia do<br />

Patrocínio Luz; Yara Dulce Bandeira de Ataíde ............................................................. 11<br />

EDUCAÇÃO E PLURALIDADE CULTURAL<br />

A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />

Jaci Maria Ferraz de Menezes ......................................................................................... <strong>19</strong><br />

Estudos africanos na escola baiana: relato de uma experiência<br />

Edivaldo Machado Boaventura ........................................................................................ 41<br />

Biología del monstruo: la identidad del Otro en el positivismo del Cono Sur<br />

Pablo Heredia ..................................................................................................................... 53<br />

Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />

Narcimária Correia do Patrocínio Luz ............................................................................. 61<br />

A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta<br />

alternativa de educação pluricultural<br />

Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais....................................................... 81<br />

Odemodé Egbé Asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />

Léa Austrelina Ferreira Santos ......................................................................................... 99<br />

Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em<br />

Novos Alagados<br />

José Eduardo Ferreira Santos........................................................................................... 113<br />

Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />

Eduardo Alfredo Morais Guimarães ................................................................................ 135<br />

Por uma escola da roça<br />

Fábio Josué Souza Santos ................................................................................................. 147<br />

Eurocentrismo, política externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme<br />

inglês Com as Horas Contadas<br />

Júlio César Lobo ................................................................................................................ 159<br />

Pluralidade cultural, migração e o ensino da língua portuguesa no ensino fundamental<br />

Nilce da Silva ...................................................................................................................... 173<br />

Alimentação, cultura e educação: em busca de uma abordagem transdisciplinar<br />

Sandra Simone Q. Morais Pacheco.................................................................................. 181<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 1-238, jan./jun., 2003<br />

5


DOSSIÊ – A CONEXÃO ATLÂNTICA BRASIL-ÁFRICA<br />

O acesso de negros às universidades públicas<br />

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães ................................................................................... <strong>19</strong>1<br />

Relações econômicas no Atlântico Sul: evolução no início do século XXI<br />

José Manuel Gonçalves ..................................................................................................... 205<br />

Angola pós-guerra: novos e velhos desafios<br />

José Octávio Serra Van-Dúnem ........................................................................................ 213<br />

Conexão atlântica: história, memória e identidade<br />

Ubiratan Castro de Araújo ................................................................................................ 2<strong>19</strong><br />

Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e currículos escolares<br />

Wilson Roberto de Mattos .................................................................................................. 229<br />

RESUMO DE DISSERTAÇÃO – INSTRUÇÕES<br />

Resumo de dissertação de mestrado: “Corte e costura étnica”: representações da identidade<br />

afro-descendente nas relações sócio-educativas no CONGO-Centro Médico Social<br />

Edmilson de Sena Morais .................................................................................................. 237<br />

Instruções aos colaboradores ............................................................................................... 238<br />

6 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 1-238, jan./jun., 2003


S U M M A R Y<br />

Editorial ................................................................................................................................. 9<br />

Themes and deadlines for the next issues of “Revista da FAEEBA – Educação e<br />

Contemporaneidade” ............................................................................................................ 10<br />

Education and Cultural Plurality: an introduction<br />

Jaci Maria Ferraz de Menezes; Jacques Jules Sonneville; Narcimária Correia do<br />

Patrocínio Luz; Yara Dulce Bandeira de Ataíde ............................................................. 11<br />

EDUCATION AND CULTURAL PLURALITY<br />

Republic and education: illiteracy and exclusion<br />

Jaci Maria Ferraz de Menezes ......................................................................................... <strong>19</strong><br />

African studies at the Bahian school: account of an experience<br />

Edivaldo Machado Boaventura ........................................................................................ 41<br />

Biology of the monster: the identity of the Other in the positivism of the South Cone<br />

Pablo Heredia ..................................................................................................................... 53<br />

From the speech monopoly about education to the mythical Afro-Brazilian poetry<br />

Narcimária Correia do Patrocínio Luz ............................................................................. 61<br />

The (re)construction of the ethnic afro-descendent identity departing from an alternative<br />

proposal of pluri-cultural education<br />

Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais....................................................... 81<br />

Odemodé Egbé Asipá: towards beyond the “Afro-Brazilian history and culture teaching”<br />

Léa Austrelina Ferreira Santos ......................................................................................... 99<br />

Pedagogical practices, culture, history and tradition: an account of the educative experience<br />

in Novos Alagados<br />

José Eduardo Ferreira Santos........................................................................................... 113<br />

Lavagem do Bonfim: between the production and the invention of the festival<br />

Eduardo Alfredo Morais Guimarães ................................................................................ 135<br />

For a rural school<br />

Fábio Josué Souza Santos ................................................................................................. 147<br />

Eurocentrism, North-American politics and Islamic fundamentalism in the English film<br />

Deadline<br />

Júlio César Lobo ................................................................................................................ 159<br />

Cultural Plurality, migration and the teaching of the Portuguese language at elementary<br />

school<br />

Nilce da Silva ...................................................................................................................... 173<br />

Eating, culture and education: in pursue of a trans-disciplinary approach<br />

Sandra Simone Q. Morais Pacheco.................................................................................. 181<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 1-238, jan./jun., 2003<br />

7


BRIEF – THE ATLANTIC CONEXION BRAZIL-AFRICA<br />

The access of Afro-descendants to public universities<br />

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães ................................................................................... <strong>19</strong>1<br />

Economical relations in the South-Atlantic: evolution in the beginning of the 21 st century<br />

José Manuel Gonçalves ..................................................................................................... 205<br />

Angola after war: new and old challenges<br />

José Octávio Serra Van-Dúnem ........................................................................................ 213<br />

Atlantic connection: history, memory and identity<br />

Ubiratan Castro de Araújo ................................................................................................ 2<strong>19</strong><br />

Afro-Brazilian civilizing values, educational politics and school curriculums<br />

Wilson Roberto de Mattos .................................................................................................. 229<br />

THESIS ABSTRACT – INSTRUCTIONS<br />

Abstract of masters’ thesis: “Ethnic Tailoring”: representations of the Afro-descendant<br />

identity in the socio-educative relations at CONGO-Social Medical Center<br />

Edmilson de Sena Morais .................................................................................................. 237<br />

Instructions to contributors ................................................................................................... 238<br />

8 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 1-238, jan./jun., 2003


EDITORIAL<br />

A Revista da FAEEBA - EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE<br />

consolida sua integração no mestrado do mesmo nome ao dedicar o seu<br />

número <strong>19</strong> à linha de pesquisa Processos Civilizatórios: Educação, Memória<br />

Social e Pluralidade Cultural (linha 1).<br />

Esta colaboração, iniciada no número 18, permite a ambos, Revista e<br />

Mestrado, tornarem-se mais fortes e melhor estruturados por justificarem e<br />

reafirmarem – institucional, social e cientificamente – sua existência, na<br />

busca do crescimento, maturidade e permanente síntese.<br />

No decorrer dos seus 12 anos de existência e publicação ininterrupta, a<br />

Revista da FAEEBA reuniu em torno de si professores pós-graduados do<br />

Departamento de Educação I, então Faculdade de Educação do Estado da<br />

Bahia - FAEEBA. Estes se tornaram seus colaboradores, parte do seu Conselho<br />

Editorial e, posteriormente, integrantes do grupo de estudos para a<br />

implantação do Mestrado em Educação e Contemporaneidade, instalado<br />

oficialmente em 2001.<br />

Esta trajetória representa, portanto, um referencial de maturidade intelectual<br />

e de produção de conhecimentos do Departamento de Educação I e<br />

que se tornou significativa para o reconhecimento da nossa pós-graduação.<br />

A já tradicional Revista da FAEEBA incorporou, recentemente, o subtítulo<br />

EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE, não só em consonância<br />

com seu objetivo de analisar e discutir assuntos de interesse educacional,<br />

científico e cultural da atualidade, como para tornar-se um dos periódicos<br />

de maior alcance na socialização da produção de conhecimentos do<br />

mestrado, envolvendo seus professores e alunos, junto com os pesquisadores<br />

de outras instituições do estado, do país e de outros países e continentes.<br />

Este número é, pois, mais uma realização marcante desta rica e permanente<br />

interação entre a Revista e o Mestrado em Educação e Contemporaneidade.<br />

Os Editores:<br />

Jacques Jules Sonneville<br />

Maria Nadja Nunes Bittencourt<br />

Yara Dulce Bandeira de Ataide<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, jan./jun., 2003<br />

9


Temas e prazos<br />

dos próximos números da<br />

Revista da FAEEBA<br />

– Educação e Contemporaneidade<br />

10 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, jan./jun., 2003


EDUCAÇÃO E PLURALIDADE CULTURAL:<br />

APRESENTAÇÃO<br />

EDUCAÇÃO E PLURALIDADE CULTURAL é o tema do número<br />

<strong>19</strong> da Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade, organizado em<br />

colaboração com a linha de pesquisa Processos civilizatórios: Educação,<br />

Memória Social e Pluralidade Cultural – PROCEMP – do Mestrado<br />

em Educação e Contemporaneidade. A pluralidade cultural é um dos temas<br />

centrais do Mestrado, especificamente através do Projeto Memória da Educação<br />

na Bahia – PROMEBA – e do Programa Descolonização e Educação<br />

– PRODESE, iniciativas criadas no âmbito do Departamento de Educação I,<br />

cuja interação acadêmico-científica teve seu principal desdobramento no Programa<br />

de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade.<br />

De acordo com o documento elaborado para a criação do Programa de<br />

Pós-Graduação, em <strong>19</strong>98, esta linha de pesquisa tem como princípios<br />

norteadores o respeito à alteridade e à diversidade, reconhecendo as diversas<br />

vertentes civilizatórias da população brasileira, considerando seus conhecimentos<br />

e valores, ou seja, o universo simbólico das mesmas, capazes de gerar<br />

novas linguagens pedagógicas, trabalhando com as ferramentas da História e<br />

Memória Social.<br />

A construção da igualdade (elemento necessário à consolidação de uma<br />

cidadania brasileira nos marcos desejados de uma sociedade democrática)<br />

passa pela afirmação de identidade e pelo reconhecimento da diversidade<br />

humana (que, naturalmente, não se reduz a uma questão morfológica ou<br />

fenotípica). Aqui, identidade é tomada como resultante de formas de inclusão<br />

em diversos círculos de solidariedade – gênero, raça, etnia, religião, etc – dos<br />

quais as pessoas se sentem parte.<br />

Estes “círculos de inclusão” criam “espaços”, “territórios”, fazendo iguais<br />

seus membros, e preparam os elementos e práticas necessários para a luta pela<br />

inclusão nos círculos mais amplos: da cidadania, nacionalidade e humanidade.<br />

Com este pressuposto, a análise das instituições pedagógicas e do seu<br />

papel na sociedade se amplia para incluir (além da história da construção do<br />

sistema escolar no Brasil e na Bahia e da sua afirmação, enquanto elemento<br />

necessário à cidadania e, portanto, direito de todos) os modos de sociabilidade,<br />

constituídos pelos contínuos civilizatórios e povos plurais diversos, assim<br />

como os segmentos da população, cuja voz ou projeto de vida, geralmente,<br />

não é considerado ou é formalmente deixado de lado. Com isto, se quer<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 11-16, jan./jun., 2003<br />

11


(re)avaliar a idéia de processo educativo como canal de apenas um modelo<br />

civilizatório, registrando experiências e falas de diversos atores no processo<br />

pedagógico, assim como diversos modos de aprender e ensinar.<br />

Esta proposta foi a idéia norteadora para os diversos artigos nas duas<br />

seções deste número da Revista da FAEEBA. A seção Educação e Pluralidade<br />

Cultural abre com o artigo A republica e a educação: analfabetismo<br />

e exclusão, de Jaci Maria Ferraz de Menezes, que aborda a discriminação<br />

e a exclusão dos afro-descendentes numa perspectiva histórica, tratando<br />

do período imediatamente após a abolição da escravidão e a Proclamação da<br />

República no Brasil. Edivaldo Machado Boaventura, em Estudos africanos<br />

na escola baiana: relato de uma experiência, examina a criação da disciplina<br />

Introdução aos Estudos Africanos no ensino fundamental e médio, nos<br />

anos oitenta, por proposta do Centro de Estudos Afro-Orientais e do Conselho<br />

das Entidades Negras da Bahia. Encerra este bloco inicial um artigo escrito<br />

na língua espanhola, Biología del monstruo: La identidad del Otro en<br />

el positivismo del Cono Sur, de Pablo Heredia, que aborda o pensamento do<br />

positivismo latino-americano em relação às construções da identidade do Outro<br />

étnico americano (negro, índio e mestiço), configurado no imaginário das classes<br />

dirigentes como um “monstro” que tinha que ser definido, catalogado e<br />

dominado.<br />

O artigo Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira,<br />

de Narcimária Correia do Patrocínio Luz, analisa o monopólio<br />

da fala etnocêntrico-evolucionista que sobredetermina o pensamento e<br />

as políticas de educação, indicando outras perspectivas que envolvem o rico<br />

universo emocional-lúcido vital para a educação.<br />

Os três textos seguintes são uma aplicação prática desta perspectiva educacional.<br />

A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir<br />

de uma proposta alternativa de educação pluricultural, de Yara Dulce<br />

B. de Ataíde & Edmilson de Sena Morais, apresenta uma proposta pedagógico-curricular<br />

que priorizou a construção da identidade plural na perspectiva<br />

interétnica, através da análise da experiência de uma jovem afro-descendente,<br />

participante de um curso técnico-profissionalizante. Outro artigo, Odemodé<br />

Egbé Asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”,<br />

de Léa Austrelina Ferreira Santos, traz reflexões sobre a inserção da<br />

temática da História e Cultura dos afro-descendentes nos currículos da rede<br />

oficial de ensino no Brasil, apresentando como perspectiva inovadora a experiência<br />

pedagógica do Projeto Odemodé Egbé Asipá - Juventude da Sociedade<br />

Asipá. Finalmente, José Eduardo Ferreira Santos, no seu texto Práticas<br />

pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência<br />

12 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 11-16, jan./jun., 2003


educativa em Novos Alagados, descreve a experiência educativa desenvolvida<br />

em projetos sociais de Novos Alagados, subúrbio de Salvador, com crianças<br />

e adolescentes da área, baseando-se na valorização das tradições culturais<br />

da Bahia.<br />

A identidade e a relação dos baianos com o sagrado estão no cerne do<br />

trabalho Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa, de<br />

Eduardo Alfredo Morais Guimarães, procurando analisar os aspectos lúdicofestivos<br />

que compõem a religiosidade popular na Bahia, e as investidas do<br />

poder público e da indústria cultural, no sentido de circunscrever a “festa” a<br />

um evento turístico.<br />

O tema da Pluralidade Cultural e sua relação com a Educação estão presentes<br />

nos mais variados campos:<br />

– no meio rural, como mostra o artigo Por uma escola da roça, de Fábio<br />

Josué Souza Santos, que faz uma crítica ao modelo pedagógico vigente na<br />

maioria das escolas rurais do Estado da Bahia;<br />

– no cinema, onde o texto, de Júlio César Lobo, Eurocentrismo, política<br />

externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme inglês<br />

Com as Horas Contadas demonstra como as diferenças culturais, religiosas<br />

e raciais são tão importantes na construção de pontos de vista quanto<br />

as categorias econômicas, sociais e políticas;<br />

– no ensino da língua portuguesa, como destaca o artigo Pluralidade cultural,<br />

migração e o ensino da língua portuguesa no ensino fundamental,<br />

de Nilce da Silva, que relaciona “identidade, língua e cultura” e “atividades<br />

pedagógicas”, considerando a pluralidade cultural em sala de aula;<br />

– nos costumes alimentares, em Alimentação, cultura e educação: em<br />

busca de uma abordagem transdisciplinar, de Sandra Simone Q. Morais<br />

Pacheco, buscando analisar a complexidade da relação homem/alimento,<br />

situando-a para além de um ato estritamente fisiológico, a partir da<br />

discussão acerca da importância dos aspectos culturais na formação de<br />

hábitos alimentares dos diferentes grupos sociais.<br />

A seção Dossiê - A conexão atlântica Brasil-África é fruto do seminário<br />

Relações no Atlântico Sul: História e Contemporaneidade. O Mestrado<br />

em Educação e Contemporaneidade vem, na linha de pesquisas “Processos<br />

civilizatórios: educação, memória social e pluriculturalidade”, se debruçando<br />

sobre as relações entre Brasil e África, em especial no que diz respeito aos<br />

processos envolvidos na formação de uma identidade afro-brasileira.<br />

Na UNEB, como em outros espaços acadêmicos, a análise das relações<br />

do Brasil com a África tem sido conduzida a partir da experiência histórica da<br />

escravidão e dos traços culturais subseqüentes. O desafio de pensar o mo-<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 11-16, jan./jun., 2003<br />

13


mento presente faz avançar na construção de relações maduras entre as<br />

nações concretas, indo além da redescoberta de raízes e origens comuns e<br />

compreendendo a afirmação e a troca de experiências de identidades, estreitando<br />

laços entre povos e sociedades nos dois lados do Atlântico.<br />

Especificamente o Atlântico Sul – aí incluídos os territórios localizados<br />

abaixo do Trópico de Câncer – constitui um espaço onde ocorrem processos<br />

de desenvolvimento, evoluções culturais e preocupações de segurança, que<br />

podem conduzir a definições comuns ou aproximações de reduzir conflitos e<br />

harmonizar interesses. Os desafios atuais, tanto de correção das injustiças<br />

históricas como de afirmação dos países da região perante as formas atuais<br />

de globalização, impõem o estudo das sociedades contemporâneas em função<br />

desses desafios e dos seus potenciais. Nesse sentido é fundamental um<br />

maior conhecimento recíproco, que pode ser alcançado através de estudos de<br />

caso nas áreas de: educação, processos de desenvolvimento, configuração<br />

cultural, relações internacionais.<br />

Neste momento, no Mestrado em Educação, nos propomos a implantar uma<br />

nova área de pesquisa cujos estudos venham a ampliar a área focada e permitam<br />

a incorporação de novos debates, temáticas e perspectivas, atualizando e<br />

enriquecendo as atividades hoje desenvolvidas. Assim, foram programados:<br />

1. Seminário de introdução geral à temática, aberto ao publico, apresentando<br />

as novas questões e despertando o interesse por aprofundá-las, realizado no<br />

período de 28 a 30 de abril de 2003, cujo debate aqui se quer, em parte,<br />

registrar.<br />

2. Curso de Especialização sobre História da África e dos afro-brasileiros,<br />

voltado para a formação de um núcleo de professores multiplicadores, da<br />

UNEB, de outras universidades estaduais e do ensino médio, que possam<br />

disseminar as idéias e o conhecimento sobre o assunto. Pensa-se num curso<br />

em que professores pesquisadores da Cândido Mendes e da UNEB – ou de<br />

outras universidades, como convidados, comecem a se articular numa rede<br />

de estudiosos sobre os temas propostos.<br />

3. Tópicos Especiais sobre Relações Contemporâneas no Atlântico Sul –<br />

como disciplina optativa no Mestrado em Educação e Contemporaneidade –<br />

de modo a incluir nas discussões vários países da América Latina e África e<br />

seus impactos em outras regiões.<br />

As atividades tiveram inicio no ano letivo de 2003 e devem ser contempladas<br />

em dois cadernos para publicação: um caderno de suporte, composto de<br />

documentos de trabalho e textos de leitura e um caderno com textos produzidos<br />

pelos participantes do curso. Também os textos originados do seminário<br />

introdutório devem ser reunidos numa publicação sob forma de Anais. A<br />

14 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 11-16, jan./jun., 2003


iniciativa de publicar cinco deles neste número da Revista da FAEEBA tem<br />

como objetivo não apenas registrar a realização do evento, mas, principalmente,<br />

trazer o debate para o público da Revista e dar início, assim, às ações<br />

no espírito da Lei 10.639 de janeiro de 2003.<br />

Os cinco textos são: O acesso de negros às universidades públicas, de<br />

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães; Relações econômicas no Atlântico Sul:<br />

evolução no início do século XXI, de José Manuel Gonçalves; Angola pósguerra:<br />

novos e velhos desafios, de José Octávio Serra Van-Dúnem; Conexão<br />

atlântica: história, memória e identidade, de Ubiratan Castro de<br />

Araújo; Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e<br />

currículos escolares, de Wilson Roberto de Mattos.<br />

Finalmente, para encerrar esta apresentação, cabe uma palavra sobre o<br />

Programa Descolonização e Educação – PRODESE. Criado em <strong>19</strong>99, no âmbito<br />

do Departamento de Educação I, o programa desenvolve produções acadêmico-científicas<br />

no contexto da diversidade étnico-cultural das Américas. Essas<br />

produções vêm fomentando pesquisas, estudos e atividades de ensino e extensão,<br />

baseados numa ética que permita a garantia da coexistência e expressão<br />

territorial dos contínuos civilizatórios que caracterizam esse continente.<br />

O programa agrega estudiosos e pesquisadores que produzem participações<br />

criativas, com vistas a superar os paradigmas neocoloniais e etnocêntricos<br />

que estruturam a política de educação no Brasil, além de elaborar e difundir<br />

conhecimentos sobre educação no que se refere às alteridades civilizatórias<br />

que constituem a formação social brasileira.<br />

Quando adotamos o conceito de descolonização, nos inspiramos um pouco<br />

na perspectiva de Frantz Fanon (Os condenados da Terra. Rio de Janeiro,<br />

RJ: Civilização Brasileira, <strong>19</strong>68, p.21) de que: “... a descolonização jamais<br />

passa despercebida porque atinge o ser, modifica fundamentalmente o ser,<br />

transforma espectadores sobrecarregados de inessencialidade em atores privilegiados,<br />

colhidos de modo quase grandioso pela roda viva da história. Introduz<br />

no ser um ritmo próprio, transmitido por homens novos, uma linguagem,<br />

uma nova humanidade. A descolonização é, em verdade, criação de<br />

homens novos. Há portanto na descolonização a exigência de um reexame<br />

integral da situação colonial.”<br />

Descolonização e Educação é uma iniciativa que procura restituir aos descendentes<br />

das populações aborígines e africanas a compreensão e a dignidade<br />

de seu sistema de pensamento, de sua alteridade própria, civilização, elaborações<br />

intelectuais e estratégias políticas positivas de ação .<br />

O programa abriga atividades de ensino, pesquisa e extensão que se alimentam<br />

do complexo sistema simbólico africano e aborígine, o qual levou<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 11-16, jan./jun., 2003<br />

15


vários séculos para se estruturar e investir-se de um poder criativo, em que<br />

foram radicados costumes, hierarquias, literatura, arte, mitologia dinamicamente<br />

reelaborados nas Américas.<br />

O propósito descolonizador reflete também sobre as atitudes éticas pessoais<br />

e profissionais do educador em relação à sua comunicação e conduta<br />

com o outro. As ideologias paternalistas e conservadoras, produzidas por aqueles<br />

tidos como únicos representantes e detentores do código cultural e dos<br />

grandes sistemas explicativos necessários à educação no Brasil, estão<br />

saturadas. Mudando os donos dos códigos, a educação está se descolonizando.<br />

Surgem instituições e gerações de educadores que vêm elaborando novas<br />

perspectivas teórico-epistemológicas comprometidas com a nação. Desde<br />

modo, o exercício da descolonização e a afirmação das alteridades, numa<br />

coexistência dialética e democrática, são o melhor caminho para um Brasil<br />

substancialmente pluralista.<br />

O Programa Descolonização e Educação vem se dedicando à elaboração<br />

e produção de conhecimentos sobre educação, que contemplem as alteridades<br />

civilizatórias que constituem a formação social brasileira; promovam uma<br />

revisão nos conceitos, categorias e “discursos-verdades” de bases<br />

etnocêntricas que sobredeterminam a compreensão da educação brasileira;<br />

desestabilizem os obstáculos teórico-epistemológicos que denegam a diversidade<br />

étnico-cultural característica do cotidiano da escola brasileira; indiquem<br />

novas percepções e abordagens sobre as sociedades contemporâneas nas<br />

Américas, destacando a pluralidade cultural que se origina da reposição e<br />

expansão dos valores e visão de mundo africano e da continuidade das tradições<br />

aborígines.<br />

Equipe de professores<br />

do Mestrado em Educação e Contemporaneidade:<br />

Jaci Maria Ferraz de Menezes 1<br />

Jacques Jules Sonneville 2<br />

Narcimária Correia do Patrocínio Luz 3<br />

Yara Dulce Bandeira de Ataíde 4<br />

1<br />

Coordenadora do Mestrado em Educação e Contemporaneidade – PEC/UNEB.<br />

E-mail: jacimnz@superig.com.br<br />

2<br />

Coordenador da linha 2 do Mestrado. Editor executivo da Revista da FAEEBA.<br />

E-mail: jacques.sonneville@terra.com.br<br />

3<br />

Coordenadora do PRODESE, linha 1 do Mestrado. Editora da revista Sementes.<br />

E-mail: narci@terra.com.br<br />

4<br />

Editora geral da Revista da FAEEBA.<br />

E-mail: yataide@terra.com.br<br />

16 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 11-16, jan./jun., 2003


Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />

A REPÚBLICA E A EDUCAÇÃO:<br />

ANALFABETISMO E EXCLUSÃO<br />

Jaci Maria Ferraz de Menezes *<br />

RESUMO<br />

Texto sobre as políticas de inclusão dos negros livres e libertos, ex-escravos<br />

e seus descendentes, no período imediatamente após a abolição da<br />

escravidão e a Proclamação da República no Brasil, na cidadania brasileira.<br />

Procura compreender a estratégia de inclusão lenta, gradual e segura<br />

adotada, que tomou como filtro para a cidadania plena o saber ler e escrever<br />

como critério para qualificação do eleitor: o batismo da instrução<br />

como instrumento de civilização.<br />

Palavras-chave: Republica – Educação – Analfabetismo – Exclusão<br />

ABSTRACT<br />

REPUBLIC AND EDUCATION: ILLITERACY AND EXCLUSION<br />

Text about the politics of inclusion of the free and freed Afro-descendants,<br />

former slaves and their descendants, in the period immediately after the<br />

abolishment of slavery and the Proclamation of Republic in Brazil, in the<br />

Brazilian citizenship. It aims at understanding the slow, gradual and safe<br />

inclusion strategy adopted, that took as a filter for full citizenship the<br />

knowing how to read and write as a criteria for the qualification of the<br />

voter: the baptism of instruction as an instrument of civilization.<br />

Key words: Republic – Education – Illiteracy – Exclusion<br />

Hoje, Senhor Presidente, a situação é uma; no dia em que se fizer a Abolição a situação será outra:<br />

uma nova raça vai entrar para a comunhão brasileira.<br />

(Discurso de Joaquim Nabuco na Câmara Federal, 5 de maio de 1888 -<br />

Senado Federal, “Abolição, 65 anos de lutas”)<br />

“São Libertos”, diz o Barão de Cotegipe. Outro Senador o aparteia: “São cidadãos brasileiros”.<br />

“Podemos até dizer que são ingleses, mas são libertos”, responde ele.<br />

(Senado Federal, “Abolição, 65 anos de lutas”, discussão final do projeto da Lei Áurea)<br />

Eu chamo a mim a questão; quero tratar dela. Comprometo-me a isto.<br />

(Rui Barbosa em 1884, citando Souza Carvalho, em 1867.<br />

Parecer-Projeto 48-A -Extinção gradual da escravidão)<br />

*<br />

Professora Titular de História da Educação da Universidade do Estado da Bahia – UNEB; Coordenadora<br />

do Programa de Pós-Graduação Educação e Contemporaneidade/UNEB (stricto sensu); Doutora em Ciências<br />

da Educação pela Universidade Católica de Córdoba, Argentina. Endereço para correspondência: Rua<br />

Apoena, 47 Aldeia Jaguaripe, Piatã – 41661.060 Salvador, BA. E-mails: jacimnz@campus1.uneb.br /<br />

jacimnz@superig.com.br<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />

<strong>19</strong>


A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />

Neste artigo, vamos analisar as mudanças<br />

políticas e do aparato jurídico institucional que<br />

se deram no Brasil imediatamente após a Abolição,<br />

com a Proclamação da República. O que<br />

nos interessa, particularmente, é identificar e<br />

analisar os instrumentos utilizados para traçar<br />

uma estratégia de controle da inclusão dos<br />

negros, ex-escravos libertos, na cidadania brasileira<br />

– em especial, pela via do acesso à cultura<br />

letrada. Vamos utilizar, para tanto, não apenas<br />

textos de analistas sobre o momento imediatamente<br />

posterior à República, mas, principalmente,<br />

como testemunho da época, as “exposições<br />

de motivos” – denominadas pareceres –<br />

de projetos de lei sobre a extinção da escravidão<br />

(1884) e de reforma da instrução pública,<br />

de 1882, que, durante a fase de pesquisa, nos<br />

pareciam dever trazer explicitamente políticas<br />

traçadas para escolarização dos ex-escravos e<br />

seus descendentes.<br />

Descobrimos que isto não ocorreu bem assim.<br />

Por exemplo: como entender a decisão de<br />

não qualificar como eleitor o analfabeto – portanto,<br />

de excluí-lo da cidadania ativa –, numa<br />

sociedade em que 83% da população não sabia<br />

ler e escrever? Quem eram os destinatários<br />

dessa exclusão? Que justificativas se apresentavam<br />

para a sua adoção? Quem eram os protagonistas<br />

dessa ação de excluir? Na busca de<br />

respostas para essas questões, analisamos<br />

documentos do final do século XIX, buscando<br />

entender a estratégia liberal, excludente, do trato<br />

com as massas libertas no pós-abolição e pósrepública.<br />

1. AS MUDANÇAS INSTITUCIONAIS E<br />

AS POLÍTICAS DE CONTROLE DA IN-<br />

CLUSÃO DOS LIBERTOS<br />

A Abolição da escravatura e a Proclamação<br />

da República representaram, no final do século<br />

XIX no Brasil, não apenas a finalização do seu<br />

processo de transformação de colônia em país<br />

independente, como também a complementação<br />

da transformação de seu sistema produtivo -<br />

de um modelo em que capitalismo mercantilista<br />

se combinava com escravismo (por alguns denominado,<br />

como vimos antes, de escravismo<br />

colonial), para uma nova forma de capitalismo<br />

dependente, inserido na órbita da Inglaterra, mas<br />

sob a disputa dos dois modelos – o inglês e o<br />

norte-americano. Paulatinamente, abandona-se<br />

o modelo francês como modelo político. Sem<br />

que tenha havido uma transformação no sistema<br />

econômico e de sustentação do poder político,<br />

propunha-se adotar um modelo de república<br />

liberal, que se pretendia democrático 1 .<br />

Com a República, desde o Governo Provisório<br />

(governo de exceção, sob a forma colegiada,<br />

que se manteve entre novembro de 1889 e<br />

91) ou mesmo através da Constituinte (a qual<br />

confirmou Deodoro da Fonseca, chefe do Governo<br />

provisório, como Presidente eleito), tem<br />

lugar uma intensa atividade de reorganização<br />

do Estado e mesmo de todo o aparato institucional<br />

e jurídico brasileiro:<br />

a) proclama-se a república como forma de<br />

governo<br />

b) realiza-se a separação da Igreja e do Estado,<br />

implantando toda uma estrutura civil para a<br />

realização de atos como registro de nascimento,<br />

celebração de casamentos, registro de óbitos;<br />

como conseqüência, os espaços públicos passaram<br />

a ser leigos, tais como as escolas e os<br />

cemitérios. Com isto, fica declarada a liberdade<br />

de culto, e a religião católica deixa de ser a<br />

religião oficial.<br />

c) abertas as possibilidades para uma igualdade<br />

diante do estado para pessoas ligadas a diferentes<br />

religiões – o que explicitamente estava<br />

voltado para a entrada, na “comunhão brasileira”,<br />

de europeus protestantes – é decretada<br />

uma naturalização massiva de todos os estran-<br />

1<br />

São conhecidas as diferenças entre Democracia e Liberalismo.<br />

Naturalmente, os liberais que se pretendiam democratas<br />

enxergavam as postulações democráticas como tendentes<br />

ao socialismo. Entretanto, é possível, mesmo dentro<br />

do campo do liberalismo, enxergar diferenças entre as<br />

posições de Rui Barbosa, por exemplo, e de Joaquim<br />

Nabuco, embora ambos se declarem “liberais à inglesa”.<br />

Pareceria, segundo as leituras do pensamento de Stuart<br />

Mill (<strong>19</strong>54), que, sim, havia divergências entre este e, por<br />

exemplo, os postulados de outros liberais ingleses no<br />

parlamento.<br />

20 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003


Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />

geiros que haviam entrado no território nacional<br />

antes do dia 15 de novembro de 1889, data<br />

da proclamação da república, salvo expressa<br />

manifestação em contrário.<br />

d) convocadas eleições gerais para a Assembléia<br />

Nacional Constituinte, estabelece-se como<br />

critério único para a cidadania ativa o saber ler<br />

e escrever (embora se mantenha também a<br />

exclusão dos mendigos, dos religiosos e dos<br />

“praças de pré” – soldados rasos). Os estrangeiros<br />

objeto da naturalização acima referida<br />

podiam participar da eleição desde que cumprissem<br />

essas mesmas condições. É bom lembrar<br />

que a exclusão dos analfabetos da cidadania<br />

ativa não começa com a República e, sim,<br />

com a Lei Saraiva, em 1881.<br />

Estava, então, em discussão, ao lado da<br />

formatação do Novo Estado Brasileiro, a questão<br />

da formação da nova nação brasileira, e sua<br />

participação no “concerto das nações civilizadas”.<br />

Ao mesmo tempo, reafirmava-se a “natureza e<br />

vocação agrícola do Brasil” – e, portanto, a sua<br />

manutenção dentro do papel de país agro-exportador<br />

de produtos primários, com o café<br />

liderando a produção (embora outros produtos<br />

também entrassem na pauta, como o cacau). A<br />

criação de gado entrava como atividade secundária.<br />

As tentativas de implantação de uma<br />

indústria nacional só vão ganhar força na década<br />

de trinta do século 20, em outro momento de<br />

exceção. No nordeste brasileiro, usineiros de<br />

açúcar seguem sendo os comandantes da economia<br />

e política locais. Quem decide quais os<br />

participantes desta nação? Quem eram os novos<br />

“homens bons” que iriam decidir sobre o destino<br />

dela?<br />

Nesta discussão sobre a nova nação brasileira,<br />

o que de fato estava em jogo era a decisão<br />

sobre os partícipes da cidadania ativa: quem<br />

decidia os rumos do país, já que não havia uma<br />

cabeça coroada que decidisse, em última instância,<br />

pela nação, ela própria constituída, se<br />

não formalmente (porque a Constituição do Império<br />

não se referia à instituição da escravidão),<br />

mas na prática, por herança da legislação colonial,<br />

por indivíduos que eram senhores ou escravos<br />

intermediados por uma terceira categoria,<br />

os libertos, 2 que tinham um status legal<br />

e formal diverso dos homens livres.<br />

Além disso, já não havia a Família Imperial,<br />

nem uma aristocracia (digamos que a nobreza<br />

local sempre foi um tanto ou quanto insólita) e<br />

tampouco existiam escravos. Seriam, entretanto,<br />

todos “homens livres”? Implantada a Liberdade,<br />

passamos a viver o reino da Igualdade?<br />

Diante da imensa maioria formada por homensde-cor,<br />

ex-escravos ou seus descendentes,<br />

como se comportaram as elites dirigentes, formadas<br />

por donos de terras, ex-donos de escravos<br />

ou por letrados, muitas vezes a seu serviço?<br />

Como se realiza a sua inclusão em nação e<br />

cidadanias brasileiras?<br />

2<br />

Manuela Carneiro da Cunha, em seu livro “Negros, estrangeiros”<br />

(<strong>19</strong>85), faz um estudo sobre os libertos na<br />

sociedade brasileira, como elementos intrínsecos à ordem<br />

escravocrata, na qual estava embutido o espaço em que,<br />

via violência e opressão (os mecanismos de controle), se<br />

moviam os libertos. A ordem escravocrata, face ao grande<br />

número de escravos, tinha a sua segurança diretamente<br />

dependente da satisfação da população livre de cor, que<br />

inclusive podia ou não ter interesses diferentes dos escravos.<br />

Os libertos que, por sua vez, criavam múltiplas formas<br />

de solidariedade entre si tinham suas relações com o<br />

mundo dos brancos reguladas institucionalmente, e muito<br />

na dependência da forma pela qual alcançavam a libertação<br />

- os caminhos da alforria que, na maioria das vezes,<br />

era comprada por pecúlio próprio, formado por trabalho,<br />

empréstimo tomado à junta de alforria, ao canto ou à<br />

irmandade da qual fazia parte. No entanto, apesar de paga,<br />

a alforria era apresentada sempre como uma dádiva do<br />

senhor, sempre vista como uma questão privada, na qual<br />

o Estado não devia intervir (e só o fez, como vimos, a<br />

partir de 1871), por fazer parte do direito de propriedade.<br />

Tampouco a Igreja tinha o direito de intervir. Assim<br />

apresentada, a alforria tinha como contraface a criação de<br />

laços morais entre patrono e liberto, que passava a dever<br />

“gratidão” e uma espécie de vassalagem, ou de subordinação<br />

política extra-econômica. A ingratidão podia, inclusive,<br />

servir de motivo para a rescisão da alforria. Segundo a<br />

autora (p.48), “A esperança de manumissão é central ao<br />

sistema escravista e complementar aos castigos e à violência<br />

física usados. Era construída de tal modo que ela<br />

passava pela dependência pessoal do senhor ou eventualmente<br />

de outro senhor. Aqui estaria o fundamento do<br />

sistema de subordinação que se mantém pós-alforria”.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />

21


A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />

A sociedade brasileira reagiu de forma peculiar<br />

aos negros libertos, os “13 de maio”. 3<br />

Geralmente vistos como “agregados”, entendiase<br />

que estavam os libertos ligados por uma<br />

extensa rede de favores aos seus ex-senhores,<br />

aos quais deviam uma espécie de vassalagem,<br />

de cortesia e até de cuidados. Os que não se<br />

submetiam ao trabalho formal eram considerados<br />

vagabundos, vadios, potencialmente perigosos,<br />

que necessitavam estar sob vigilância<br />

policial. 4<br />

A República, em especial, tinha suas dificuldades<br />

com os negros libertos: os últimos dias<br />

da monarquia viram a criação de uma Guarda<br />

Negra 5 para proteção da família imperial, cercada<br />

pela gratidão ao Imperador e à Princesa<br />

pela libertação. O prestígio da família real estava<br />

em alta junto aos negros, como se pode ver<br />

em texto do professor Mário Augusto Silva Santos<br />

(<strong>19</strong>90), que, inclusive, reagiram contra a<br />

Proclamação da República na Bahia. Uma possível<br />

reação deles foi usada como pretexto para<br />

deflagrar o movimento militar que resultou na<br />

República, face à relutância de alguns militares.<br />

Ao tempo em que Patrocínio os apoiava,<br />

Rui Barbosa os combatia ferrenhamente em<br />

seus artigos no Diário de Notícias.<br />

Ilustrativo e elucidativo desta relação transversa<br />

dos republicanos do Governo provisório<br />

com os negros foram os episódios em torno da<br />

3<br />

O professor José Calazans, historiador baiano, recolheu<br />

as seguintes «quadrinhas» populares sobre eles: «Nasceu<br />

periquito/Virou papagaio/Não quero negócio/Com treze<br />

de maio». E «K é letra decadente/Meu pai assim me dizia/<br />

É como o treze de maio/Mesmo depois da alforria».<br />

(CALAZANS, <strong>19</strong>95, p.59)<br />

4<br />

Sobre os vadios na Bahia do séc. XIX, ver Fraga Filho<br />

(<strong>19</strong>96).<br />

5<br />

A Guarda Negra foi um espécie de regimento informal,<br />

constituído por libertos, negros e mestiços, logo após a<br />

Abolição. Convocado por José do Patrocínio em defesa<br />

da Princesa Regente, entra seguidamente em choque com<br />

os adeptos da República no período em que estes intensificam<br />

suas reuniões e meetings, quando faziam oposição,<br />

principalmente, ao marido da Princesa Isabel, o Conde<br />

d’Eu, francês, face à enfermidade de D. Pedro II<br />

(MORAES, [<strong>19</strong>-?]).<br />

repressão aos capoeiras 6 ; nos primeiros dias<br />

do início do Governo, os que são flagrados a<br />

praticar capoeira são presos e sumariamente<br />

desterrados para a ilha de Fernando de Noronha,<br />

o que causa um problema no Gabinete, vez que<br />

um irmão de figurão da república foi também<br />

preso (MORAES, [<strong>19</strong>-?]). Outra evidencia das<br />

dificuldades com os ex-escravos foi a inclusão<br />

das normas de repressão à vadiagem, antes inscritas<br />

nas leis ligadas a libertação dos escravos<br />

(Lei do Ventre Livre e Lei dos Sexagenários),<br />

no Código Penal elaborado logo após a República.<br />

7<br />

Ora, o combate à vadiagem como forma de<br />

controle dos ex-escravos não era algo novo no<br />

Brasil e mesmo na América Latina. Oriunda da<br />

questão do trabalho compulsório na escravidão,<br />

vimos como, à medida em que os negros se tornavam<br />

libertos, aumentava o controle sobre a<br />

sua liberdade de ir e vir e mesmo sobre a sua<br />

regulação do próprio trabalho. Acompanhamos,<br />

na parte específica sobre o processo abolicionista,<br />

o surgimento das leis que obrigavam o<br />

novo liberto a manter domicílio no local onde<br />

6<br />

A Capoeira é uma espécie da luta marcial praticada pelos<br />

negros no Brasil, em que os golpes, praticados na maioria<br />

das vezes com os pés, podem vir a ser mortais. Seus<br />

movimentos, que devem ser executados com agilidade e<br />

leveza tal que o seu praticante nunca venha a cair ou a<br />

receber os golpes do adversários, seguem certa coreografia<br />

em torno à “ginga” e são praticados ao som de uma<br />

pequena orquestra formada de “berimbau”, instrumento<br />

de percussão monocórdio com uma cabaça que ressoa<br />

encostada à barriga, pandeiro, reco-reco e chocalho. Existe<br />

um certo número de golpes predeterminado, aos quais<br />

corresponde um “toque” de berimbau, mais lento ou mais<br />

apressado e um determinado número de “quadrinhas”, ou<br />

“cantigas” de desafios. Era praticada como instrumento<br />

de luta pelos escravos e libertos, formando-se, no século<br />

passado, verdadeiras “tropas de choque” de capoeiras<br />

ligados a um ou a outro partido político e que eram conhecidos<br />

por se dedicarem a dissolver os “meetings” dos<br />

adversários. Proibida pela polícia, hoje é uma espécie de<br />

esporte nacional, praticado nas academias de ginástica e<br />

nas escolas.<br />

7<br />

Ver, a respeito, Jamil Cury (<strong>19</strong>90, p.102): “Os artigos<br />

que prescrevem penas a mendigos, vadios e capoeiras são<br />

igualmente duros. Quanto a estes últimos, a lei inclui deportação,<br />

no caso do indiciado ser estrangeiro”.<br />

22 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003


Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />

antes vivia durante certo período de tempo e a<br />

estar vinculado a um trabalho certo, sob pena<br />

de recolhimento à instituição penal pela própria<br />

polícia, ou, quando muito, pelo Juiz de paz, sob<br />

rito sumário. A presunção era de que, não tendo<br />

trabalho regular, era vadio e, como tal, perigoso.<br />

O período republicano inaugurado transpõe<br />

essa legislação, antes circunscrita aos libertos,<br />

para o código penal, estendendo-a para toda a<br />

população livre. Claramente, o uso da coerção<br />

como instrumento de dominação. Mesmo saindo<br />

do Código Penal, em <strong>19</strong>30, quando é transformada<br />

em contravenção penal, a vadiagem<br />

segue sendo motivo para a prisão arbitrária dos<br />

que saem à noite, ou que simplesmente retornam<br />

à noite a suas casas ou, ainda, não tendo casas,<br />

perambulam pelos centros das cidades, até os<br />

dias de hoje no Brasil. Na Bahia, existiu até a<br />

década de 80 a Colônia Agrícola de Pedra Preta<br />

(na verdade uma pedreira), para onde eram<br />

mandados, sem julgamento, os que eram presos<br />

para averiguações, inicialmente por um<br />

período de 90 dias (período após o qual deveriam<br />

ser liberados por não terem culpa formada). Aí<br />

dentro podiam ser esquecidos por período não<br />

determinado, uma vez que, sendo uma prisão<br />

ilegal mantida pela Polícia, não existiam registro<br />

dos detidos para aí mandados, nem processo<br />

formal de culpa e nem conhecimento mesmo<br />

da Justiça.<br />

O controle da vida dos negros, entretanto,<br />

não parava aí. Também o exercício da sua liberdade<br />

de religião era restringido, mesmo<br />

naquele momento em que se apregoava a liberdade<br />

religiosa e a separação da Igreja do Estado,<br />

estando sob o controle policial através da<br />

policia de costumes. Acompanhada de cantos,<br />

música, danças e, principalmente, toques de tambor,<br />

a religião dos orixás, considerada “divertimento<br />

estrondoso” como os demais “batuques”,<br />

serenatas (VERGER, <strong>19</strong>87, p.530 ss), só podia<br />

existir por expressa autorização da Delegacia<br />

de Jogos e Costumes, e sua realização era controlada:<br />

chega-se à década de 30 sem que se<br />

pudesse realizar o culto ao som dos atabaques<br />

sagrados, devendo acontecer somente sob o<br />

som de cabaças e de palmas.<br />

Somente em <strong>19</strong>38, sob pressão de uma então<br />

crescente organização dos negros 8 , se suspende<br />

a proibição do uso dos atabaques. Na<br />

década de 70 do século XX, recomeçam os<br />

controles da Delegacia de Jogos e Costumes<br />

sobre o exercício da liberdade religiosa dos negros,<br />

os quais só terminam em 76, através de<br />

intervenção direta do então governador do Estado.<br />

Documentando o período de perseguição<br />

religiosa, os instrumentos de culto que eram<br />

apreendidos estão guardados no Instituto de<br />

Criminalística do Estado, no Museu Nina Rodrigues,<br />

apesar de todos os protestos e pedidos<br />

das organizações negras hoje existentes para<br />

que lhes sejam entregues.<br />

Em suma, tanto a legislação e a prática do<br />

combate à vadiagem como o controle do funcionamento<br />

dos candomblés serviram como instrumento<br />

policial de controle da inserção dos<br />

negros no seio da nacionalidade. Idem, o combate<br />

à capoeira. Não só a policia os combatia e<br />

controlava, como os jornais, controlando a opinião<br />

pública, protestavam contra a livre manifestação<br />

da presença da cultura africana no pósrepública<br />

e pós-abolição. 9 e 10<br />

8<br />

Realizamos, em <strong>19</strong>93, entrevista com o então presidente<br />

da FEBACAB; em seu depoimento, “Seu Benzinho”<br />

(Esmeraldo Emetério dos Santos) falou sobre a criação da<br />

Federação de Cultos Afro-Brasileiros e sua estratégia de<br />

luta contra a repressão às religiões afro-brasileiras.<br />

9<br />

Sobre isto, encontramos registro de Nina Rodrigues, em<br />

<strong>19</strong>06, em “Os Africanos no Brasil”, quando, protestando<br />

contra, coleta e transcreve uma série de recortes de jornais<br />

da época (em torno de <strong>19</strong>00) que dão conta da existência<br />

da repressão aos candomblés, com o seguinte comentário:<br />

“Na África, estes cultos constituem verdadeira<br />

religião de Estado, em cujo nome governam os régulos.<br />

Acham-se, pois, alí garantidos pelos governos e pelos<br />

costumes. No Brasil, na Bahia, são ao contrário considerados<br />

práticas de feitiçaria, sem proteção nas leis, condenadas<br />

pela religião dominante e pelo desprezo, muitas<br />

vezes apenas aparente, é verdade, das classes influentes<br />

que, apesar de tudo, as temem. Durante a escravidão, não<br />

há ainda vinte anos portanto, sofriam elas todas as violências<br />

por parte dos senhores de escravos, de todo<br />

prepotentes, entregues os negros, nas fazendas e plantações,<br />

à jurisdição e ao arbítrio quase ilimitados de administradores,<br />

de feitores tão brutais e cruéis quanto ignorantes.<br />

Hoje, cessada da escravidão, passaram elas à<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />

23


A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />

Entretanto, quais as políticas específicas traçadas<br />

para o relacionamento com os negros e<br />

a sua inclusão na cidadania brasileira, no pósabolição<br />

e na nascente República brasileira? É<br />

bom lembrar que, no período que antecedeu e<br />

imediatamente seguiu-se à Abolição da escravidão,<br />

houve toda uma política demográfica de<br />

incentivo à imigração branca, européia. Esta<br />

política articulava não só a formação de um<br />

mercado de mão-de-obra, agora que esta se<br />

tornava livre, assalariada, e que o seu preço ia,<br />

portanto, ser maior ou menor na medida da sua<br />

maior ou menor disponibilidade; a chegada em<br />

massa de imigrantes tornava “excedentes” os<br />

ex-escravos, notadamente no Sul do país, para<br />

onde a onda migratória se dirigiu quase exclusivamente.<br />

prepotência e arbítrio da polícia, não mais esclarecida<br />

do que os antigos senhores, e aos reclamos da opinião<br />

pública que, pretendendo fazer de espírito forte e culto,<br />

revela a toda hora a mais supina ignorância do fenômeno<br />

sociológico. Não é menos para lamentar que a imprensa<br />

local revele, entre nós, a mesma desorientação no modo<br />

de tratar o assunto, pregando e propagando a crença de<br />

que o sabre do soldado de polícia boçal e a estúpida violência<br />

dos comissários policiais igualmente ignorantes hão<br />

de ter maior dose de virtude catequista, mais eficácia como<br />

instrumento de conversão religiosa do que teve o azorrague<br />

dos feitores”. (RODRIGUES, <strong>19</strong>82, p.238-239).<br />

10<br />

Outros autores, em momentos diversos, transcrevem<br />

também recortes de jornais sobre as dificuldades de relacionamento<br />

da sociedade brasileira com os negros no pósabolição,<br />

como Donald Pierson (<strong>19</strong>37), ou Carlos<br />

Hasenbalg, mais recentemente. Os estudos sobre a vida<br />

dos negros no pós-abolição são dificultados por sua<br />

“desaparição”, como categoria de estudo, a partir do início<br />

da República. O negro passa a ser o trabalhador nacional,<br />

em contraposição ao imigrante, trabalhador estrangeiro.<br />

Assim, pelo menos até <strong>19</strong>20, mais ou menos, rareiam<br />

ou quase desaparecem estudos ou relatos que dêem conta<br />

do que acontece a eles, enquanto grupo social, no pósabolição.<br />

O pesquisador passa a ter que trabalhar com as<br />

entrelinhas, para entender o que passa com “o ausente”.<br />

A partir de <strong>19</strong>30, foram realizados estudos específicos<br />

sobre o relacionamento inter-racial no Brasil, por autores<br />

como Roger Bastide e Florestan Fernandes (<strong>19</strong>55, em<br />

pesquisa UNESCO ANHEMBI), ou Melville Herkovits,<br />

na década de 40, sem que se possa deixar de dar o correspondente<br />

destaque aos estudos de Gilberto Freire, em<br />

Casa Grande e Senzala.<br />

Ao mesmo tempo, o incentivo à imigração<br />

contribuía para a própria constituição de uma<br />

nova nação e um novo povo brasileiro – pela<br />

importação de novos elementos, brancos, europeus,<br />

civilizados, em contraposição aos negros<br />

e aos mestiços. 11 A política demográfica, com<br />

relação ao negro, era, portanto, voltada para a<br />

sua substituição, o seu desaparecimento. Disto<br />

nos dá conta o decreto do Governo Provisório<br />

de junho de 1890, que proíbe o ingresso no país<br />

de imigrantes de “indígenas da Ásia e da África”<br />

salvo expressa permissão do Parlamento<br />

Nacional (LUZ, <strong>19</strong>93), ao mesmo em tempo<br />

em que se dava curso à política imigratória<br />

advinda do período anterior à Abolição e se promovia<br />

a naturalização massiva dos estrangeiros<br />

ingressados no território nacional até 1889.<br />

Se isto se dá no momento imediatamente posterior<br />

à Abolição, como se prepara o Estado<br />

Brasileiro para o trato do que Nina Rodrigues<br />

chama “o problema do negro”? 12<br />

11<br />

A respeito, ver: KOWARICK, Lúcio. Trabalho e Vadiagem:<br />

a origem do Trabalho Livre no Brasil. São Paulo,<br />

SP: Brasiliense, <strong>19</strong>87; BEIGUELMAN, Paula. A crise do<br />

escravismo e a grande imigração. São Paulo, SP:<br />

Brasiliense, <strong>19</strong>87; MORNER, Magnus. La inmigración<br />

desde mediados del siglo XIX: una nueva América Latina.<br />

Revista Culturas, Unesco, v. 5, n. 3, Paris, <strong>19</strong>78. Para<br />

uma discussão mais profunda sobre as relações raciais no<br />

Brasil, SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco: raça e<br />

nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro,<br />

RJ: Paz e Terra, <strong>19</strong>76.<br />

12<br />

“Ao brasileiro mais descuidado e imprevidente não<br />

pode deixar de impressionar a possibilidade da oposição<br />

futura, que já se deixa entrever, entre uma nação branca,<br />

forte e poderosa, provavelmente de origem teutônica, que<br />

se está constituindo nos estados do Sul, donde o clima e a<br />

civilização eliminarão a raça negra ou a submeterão, de um<br />

lado; e, de outro lado, os estados do Norte, mestiços,<br />

vegetando na turbulência estéril de uma inteligência viva e<br />

pronta, mas associada à mais decidida inércia e indolência,<br />

ao desânimo e por vezes à subserviência e, assim,<br />

ameaçados de se converterem em pasto submisso de todas<br />

as explorações de régulos e pequenos ditadores. É<br />

esta, para um brasileiro patriota, a evocação dolorosa do<br />

contraste maravilhoso entre a exuberante civilização canadense<br />

e norte-americana e o barbarismo guerrilheiro da<br />

América Central”. (RODRIGUES, <strong>19</strong>82, p.8).<br />

24 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003


Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />

2. ANÁLISE DE ESTRATÉGIA: TRÊS<br />

DOCUMENTOS DE UM “FAZEDOR DE<br />

POLÍTICAS”<br />

Para o entendimento dessa questão, vamos<br />

analisar os documentos do final do século XIX<br />

que nos permitirão ver como se iniciaram as<br />

principais mudanças no aparelho do Estado e<br />

no arcabouço institucional que, a nosso ver, implicaram<br />

na estruturação de uma estratégia para<br />

a inclusão dos negros a sociedade brasileira.<br />

São elas:<br />

1. a reforma eleitoral, através da adoção da eleição<br />

direta com a exclusão dos analfabetos;<br />

2 a extinção da escravatura através do projeto<br />

de emancipação gradual; e<br />

3. o projeto de reforma da instrução.<br />

Em todas as três, ressalta-se a pessoa de<br />

Rui Barbosa, jurista brasileiro, grande advogado<br />

responsável também pela revisão de grande<br />

parte da legislação brasileira após a República.<br />

De origem simples, Rui Barbosa foi, durante<br />

toda sua vida, e ainda por muito tempo, o<br />

protótipo do “letrado” brasileiro. Sem fortuna,<br />

seu pai, educador e político liberal, toma como<br />

sua principal tarefa a educação de seu filho,<br />

ligado aos Conselheiros Saraiva e Manoel<br />

Dantas, políticos e liberais da Bahia, que o têm<br />

como assessor e depois como afilhado político,<br />

até que ele assume seu próprio lugar, inicialmente<br />

como membro do parlamento federal, na<br />

constelação política. Líder liberal, tem papel<br />

destacado nas lutas pela reforma do Estado<br />

brasileiro, dentro de uma concepção muito própria,<br />

em que se destaca a luta pelo federalismo.<br />

Advogado dos militares em choque com o governo<br />

Imperial, torna-se republicano e, logo<br />

depois, líder civil dos republicanos. Com o Golpe,<br />

torna-se o 1º vice-presidente do Governo<br />

Provisório, função que acumulava com a de<br />

Ministro da Fazenda, fazendo-se reconhecidamente<br />

a figura central das reformas que então<br />

se levam à frente, no sentido da implantação de<br />

uma república leiga, liberal e... conservadora.<br />

No entanto, o que vamos analisar de Rui<br />

Barbosa (sua obra é vastíssima) são três textos<br />

produzidos quase simultaneamente (1879, 1882<br />

e 1884), nos quais se discutem, respectivamente,<br />

a adoção da eleição direta (mas não tanto),<br />

a reforma do sistema de ensino (na parcela que<br />

cabia ao governo central) e o final da escravidão.<br />

Na nossa concepção, os três textos tem<br />

uma conexão entre si, que apontam para uma<br />

estratégia liberal de “trânsito para a civilização”<br />

para a sociedade brasileira, com declaradas<br />

exclusões assumidas. Estratégia vitoriosa, na<br />

medida em que reafirmada e formalmente aprovada,<br />

já na República, com a sua presença no<br />

Governo Provisório, por sua participação na elaboração<br />

da Constituição Federal de 1891.<br />

O que pretendemos é estabelecer uma articulação<br />

entre:<br />

a) sua declaração de ser “liberal à inglesa” 13<br />

com a defesa da exclusão dos analfabetos da<br />

cidadania ativa: para ele, o voto deve ser direto,<br />

mas restrito, segundo critérios de renda e de<br />

condição de independência e discernimento, via<br />

o saber ler e escrever;<br />

b) a idéia de que o sufrágio universal deve ser<br />

precedido pelo ensino universal;<br />

c) seu conhecimento da extensão do analfabetismo<br />

no Brasil - quantos e quem eram os analfabetos,<br />

com uma dimensão, inclusive, do tempo<br />

necessário para a generalização do ensino<br />

básico (“esta celeridade de milésimos por ano”);<br />

e<br />

d) seu projeto de extinção gradual da escravidão,<br />

em que:<br />

- alinha as razões a favor dessa extinção, analisando<br />

as diversas experiências de extinção na<br />

América Latina e apresentando-as como favoráveis,<br />

como seguras – a não ser em casos em<br />

que, além da liberdade, se deu a cidadania;<br />

- analisa o caso dos Estados Unidos, em que<br />

houve uma guerra, onde apresenta os resultados<br />

favoráveis de inclusão dos negros, inclusive<br />

criação de escolas – o que, entretanto, não<br />

faz com que se apresente, no projeto, nenhuma<br />

proposição a respeito de uma escolarização<br />

massiva de ex-escravos;<br />

13<br />

“Eu era, como sou, um democrata liberal e um liberal da<br />

escola inglesa”. Citado por Homero Pires, em introdução<br />

ao discurso de Rui Barbosa na Sessão de 10 de julho de<br />

1879, sobre a Reforma Eleitoral.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />

25


A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />

- a apresentação “truncada”, com lacunas, do<br />

seu pensamento: no parecer, argumenta que a<br />

única causa, para ele, de problemas no pós-abolição<br />

é a assunção simultânea da condição de<br />

livre e de eleitor, como nas colônias francesas<br />

em 1848. No entanto, tampouco explicita qualquer<br />

referência ao tema no projeto apresentado.<br />

Disto, se encarregou previamente a lei eleitoral.<br />

Em vista disso, se pretende discutir a existência<br />

de uma intencionalidade de exclusão dos<br />

negros, ex-escravos (analfabetos na sua grande<br />

maioria tendo em vista a proibição explicita<br />

de sua freqüência à escola e, mesmo, pela inexistência,<br />

na lei e na prática, de uma política de<br />

escolarização dos “ingênuos”), da cidadania ativa.<br />

Esta intencionalidade, velada, existente desde<br />

o início da década de 80, é reafirmada em 1890,<br />

no Governo Provisório, e aparece, sob a forma<br />

de exclusão dos analfabetos, em todas as constituições<br />

federais brasileiras, até <strong>19</strong>86. Com isto,<br />

se estabelece um controle sobre a inclusão na<br />

cidadania do contingente de ex-escravos, a qual<br />

passa a ser paulatina, gradual.<br />

É interessante observar, entretanto, que, ao<br />

declarar que os analfabetos não votavam, se<br />

deixava fora da condição de eleitor, em 1881,<br />

83% da população brasileira. Mais: as declarações<br />

de obrigatoriedade da escola, propostas<br />

pelo projeto de 1882, só atingiriam a população<br />

em idade escolar: somente quando os meninos<br />

de 7 a 14 anos, se escolarizados – porque a<br />

própria declaração da obrigatoriedade escolar<br />

ficou, na constituição da Republica, a cargo dos<br />

Estados – chegassem aos 21 anos de idade, iria<br />

crescendo, pouco a pouco, o contingente eleitoral.<br />

As gerações adultas estavam, todas, condenadas<br />

ao limbo da nação ou a construir, por<br />

seus próprios esforços, os meios de educar-se<br />

– e de, portanto, tornarem-se cidadãos.<br />

A. A Reforma Eleitoral e o (não) voto<br />

do analfabeto<br />

Para analisar a posição de Rui Barbosa com<br />

relação à reforma eleitoral e, nela, a questão da<br />

eleição direta, tomamos como material de análise<br />

seu discurso proferido em 10 de julho de<br />

1879, na Câmara Federal. Deputado pela primeira<br />

vez, Rui Barbosa foi convidado a participar<br />

da redação do projeto de lei, tendo em vista<br />

sua atuação como “destacado e inflamado orador<br />

a favor da Reforma”. O texto que vamos<br />

utilizar é um discurso proferido depois da aprovação<br />

do projeto na Câmara e uma explicação<br />

e defesa desse projeto e da necessidade/possibilidade<br />

da aprovação da Eleição direta sem que<br />

houvesse a convocação de uma constituinte. Ou<br />

seja, entendia ele que, mesmo se tratando de<br />

matéria definida na Constituição, podia ser<br />

emendada por legislação ordinária porque, na<br />

sua argumentação, não feria direitos, mas os<br />

ampliava – apesar de que se suprimia a figura<br />

do eleitor primário. Rui Barbosa, alem de redator<br />

desse projeto de 1879, rejeitado no Senado,<br />

foi depois o autor do projeto afinal aprovado e<br />

transformado em Decreto em 9 de janeiro de<br />

1881. (BRASIL, <strong>19</strong>85, p.211-274)<br />

Esse discurso, na verdade, é uma auto-defesa<br />

diante da acusação de José Bonifácio (o<br />

segundo, deputado por São Paulo, liberal e fervoroso<br />

abolicionista, professor da Faculdade de<br />

Direito de São Paulo; o primeiro José Bonifácio<br />

foi o da Independência) de que a proposta de<br />

eleição direta, na medida em que aumentava o<br />

censo pecuniário e propunha a exclusão dos<br />

analfabetos, restringia os direitos individuais e<br />

era contra os princípios do Partido Liberal –<br />

partido do qual o próprio Rui participava. A resposta<br />

de Rui vem com a costumeira erudição<br />

de seus trabalhos, com a finalidade de justificar<br />

as suas posições. O discurso pretende demonstrar<br />

que, ao propor uma reforma no sistema eleitoral<br />

em que a implantação da eleição direta,<br />

ao mesmo tempo, aumenta os que participam<br />

diretamente da decisão e diminui substancialmente<br />

o número total dos que participam da<br />

eleição por eliminar o “eleitor primário” e implantar<br />

um eleitorado “qualificado”, estava de<br />

acordo com os princípios da democracia e do<br />

liberalismo. E o ponto central da sua argumentação,<br />

em nome de promover, ao mesmo tempo<br />

que a adoção da eleição direta, uma reforma<br />

no sistema eleitoral é a exclusão dos analfabetos<br />

– em nome da qualificação do eleitor,<br />

ou melhor da sua capacidade eleitoral.<br />

Sua argumentação esta estruturada em três<br />

eixos:<br />

26 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003


Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />

1. O ideal seria o sufrágio universal, mas não o<br />

vamos propor porque não estamos preparados<br />

para isto. Deixamos para o futuro.<br />

2. Apesar de acreditar que o voto é um direito e<br />

uma função social, entende que o seu exercício<br />

está condicionado à independência e ao<br />

discernimento. Para ele, os direitos naturais<br />

não teriam atualidade ativa para os incapazes<br />

de exercê-lo senão sob a tutela dos<br />

capazes. Somente estes seriam titulares do direito<br />

ao voto.<br />

3. A reforma, portanto, na medida em que não<br />

vê possível o sufrágio universal, necessita de<br />

um critério para a qualificação do eleitor. A partir<br />

daí, propõe dois censos: o pecuniário e o literário,<br />

com a argumentação de que seria necessário,<br />

“até certo ponto, desdemocratizar o<br />

sistema eleitoral para torná-lo mais representativo”.<br />

O discurso de José Bonifácio que, desde o<br />

mesmo Partido Liberal, faz oposição ao projeto<br />

de reforma da lei eleitoral, apresenta as seguintes<br />

críticas: o projeto é conservador, contraria os princípios<br />

do partido liberal, na medida em que, ao<br />

invés de ampliar o eleitorado, o restringe; na<br />

medida em que exclui mais de 80% da população<br />

brasileira da condição de eleitor, portanto,<br />

implicando numa limitação da soberania popular;<br />

assim, criaria “castas” na população, excluindo<br />

o povo da nação brasileira 14 ; por fim, ao “desnacionalizar<br />

as massas ativas”, estaria condenando<br />

ao “hilotismo político” as mesmas massas.<br />

Na sua resposta, Rui deixa claro o seu projeto<br />

para a sociedade brasileira – a “democracia”<br />

liberal, sem a soberania popular. Voto de<br />

qualidade, exclusão dos analfabetos e daqueles<br />

que, por terem baixa renda, seriam dependentes<br />

de alguém para sobreviver e, portanto, não<br />

teriam independência no seu voto. O voto seria<br />

um direito para aqueles habilitados a votar livre<br />

e conscientemente. No seu texto, discutida a<br />

dupla característica de direito e função social<br />

do voto e a necessidade, segundo ele, da capacidade<br />

para exercê-los, busca então argumentar<br />

como e porque seria necessário e possível<br />

qualificar os eleitores, visto que, no Brasil, não<br />

teríamos “uma aristocracia como a inglesa ou<br />

uma burguesia como a francesa” (p. 222), de<br />

onde viesse a se constituir a sociedade política.<br />

Toma, portanto, como ponto de partida, que o<br />

Brasil seria uma “democracia” e que a luta pela<br />

igualdade, antes que oposição a ela, demandava<br />

um caminho seguro, regular, que permitisse<br />

a sua construção, ou melhor, o seu desenvolvimento<br />

gradual.<br />

A Reforma Eleitoral, introduzindo o voto direto,<br />

era uma antiga reivindicação da sociedade<br />

política brasileira, em especial dos liberais.<br />

Até aquele momento, as eleições se davam em<br />

dois turnos: no primeiro, a massa dos cidadãos<br />

ativos – em 1879, em torno de 1.800.000 pessoas<br />

(que correspondiam aos homens, maiores<br />

de 25 anos, com renda mínima anual de<br />

100.000$000 réis) – escolhia os eleitores, numa<br />

proporção de 1/18 cidadãos votantes. Não existiam<br />

outras restrições, apenas os libertos não<br />

podiam votar e ser votados para a Câmara. Os<br />

eleitores votavam para a Assembléia dos Estados<br />

e para o Parlamento Nacional.<br />

Decidida a realização da Reforma, o Imperador<br />

dissolve o Gabinete Conservador e entrega<br />

o governo ao Partido Liberal, para que a<br />

promova. O projeto apresentado teve redação<br />

de Rui Barbosa, que também trabalhou na redação<br />

da Lei afinal aprovada, em 1881, já então<br />

sob a responsabilidade do Conselheiro Saraiva.<br />

Esse discurso é pronunciado após a aprovação<br />

do projeto pela Câmara e antes da sua<br />

recusa pelo Senado; tem como finalidade tentar<br />

convencer o Senado da possibilidade de efetuar<br />

uma reforma constitucional através de lei<br />

comum e, principalmente, reafirmar o conteú-<br />

14<br />

Caberia acrescentar que boa parte do partido liberal era<br />

contra o projeto. Também Joaquim Nabuco, líder<br />

abolicionista, se manifesta contra. Nabuco se manifesta a<br />

favor do sufrágio universal. Para ele, a luta dos liberais<br />

devia se dar no alargamento do direito ao voto, jamais por<br />

sua restrição; no sentido da liberdade e da independência<br />

do eleitor, jamais do seu controle ou manipulação. Era,<br />

portanto, para ele totalmente descabido que justamente o<br />

Partido Liberal propusesse a Reforma Eleitoral a base da<br />

elevação do Censo e da exclusão dos analfabetos: tiravase,<br />

nas suas palavras, o direito ao voto de milhares de<br />

“homens pobres” justamente aqueles que nenhuma culpa<br />

tinham das deformações do sistema. (NOGUEIRA, <strong>19</strong>84).<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />

27


A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />

do do projeto face às críticas a ele feitas por<br />

dissidentes (mais progressistas que ele) do próprio<br />

partido Liberal, em especial do deputado<br />

por São Paulo José Bonifácio, professor da<br />

Faculdade de Direito de São Paulo, abolicionista.<br />

Embora o discurso de José Bonifácio não<br />

esteja aí publicado, o combate feito por ele ao<br />

projeto transparece nas respostas de Rui. Sua<br />

oposição ao projeto está na questão central abordada<br />

por ele – o fato de que, ao propor a eleição<br />

direta, estabelece, simultaneamente, na caracterização<br />

do novo eleitor, restrições tais que eliminam<br />

não só a maioria da população brasileira,<br />

como também afastam pessoas que já participavam<br />

da eleição no primeiro turno. Isto se<br />

dava ao propor a adoção de um duplo critério<br />

de qualificação do eleitor: o critério do censo<br />

pecuniário – em que se elevava a renda de<br />

100.00$000 para 400.000$000 reis anuais; e o<br />

censo literário – através do qual se excluíam<br />

os analfabetos. Àquela altura, 1879, conhecidos<br />

já os resultados do Censo Demográfico de<br />

1872, sabia-se que mais de 83% da população<br />

brasileira era analfabeta; a adoção desse critério<br />

implicava reduzir drasticamente a participação<br />

popular nas eleições.<br />

Contra isto se insurge Bonifácio que, juntamente<br />

com uma parcela do Partido Liberal,<br />

denuncia que a mudança na lei eleitoral, tão<br />

desejada por ser mais democrática – por estabelecer<br />

o voto direto – na verdade atendia aos<br />

interesses dos conservadores, estando contra<br />

os princípios do próprio Partido: excluía o povo,<br />

limitava a soberania e criava castas, desnacionalizava<br />

(ou seja, colocava fora da nação) as<br />

chamadas “massas ativas” que antes votavam<br />

em primeiro turno e as condenava ao “hilotismo<br />

político” 15 .<br />

Especificamente quanto à exigência do saber<br />

ler e escrever, José Bonifácio argüi que os<br />

cidadãos brasileiros, membros da nação, deveriam<br />

ser aqueles considerados aptos para defendê-la<br />

– referindo-se aos ex-combatentes na<br />

Guerra do Paraguai, muitos deles recrutados<br />

entre os escravos e os libertos, e para o que<br />

não se havia apurado, naturalmente, qualquer<br />

condição de alfabetização. Se constituem o Exército<br />

brasileiro, agora heróis da Pátria, como<br />

excluí-los da cidadania? Argumenta, por fim, que<br />

não havia como vincular a capacidade de<br />

discernimento apenas à habilidade de ler e escrever;<br />

o discernimento seria a consciência de<br />

si e do outro: vinculá-lo ao ler e escrever seria<br />

propor “a soberania da gramática”. 16 Ademais,<br />

ao ser excluído da atividade política, do voto, o<br />

cidadão estaria sendo excluído exatamente do<br />

processo através do qual se aprende a exercer<br />

a cidadania.<br />

Na defesa do projeto, é a seguinte a argumentação<br />

de Rui:<br />

1. A dualidade do sufrágio, então existente, enfraquecia<br />

a ação popular, dividindo-a; a eleição<br />

primária estava entregue à prepotência das qualificações<br />

ou de quem as fazia. O eleitor não<br />

representava aqueles que tinham votado nele<br />

na eleição primária.<br />

2. Para estabelecer o voto direto, era necessário<br />

previamente estabelecer a qualificação do<br />

novo eleitor, discutindo o conceito de “capacidade<br />

eleitoral”.<br />

3. Embora seja a favor do sufrágio universal,<br />

não o considerando utopia, pensa que o país<br />

precisa ser preparado para ele.<br />

4. Entende que o voto é, simultaneamente, direito<br />

natural e função. Entretanto, entende também<br />

que “os ideológica e escolasticamente<br />

intitulados direitos naturais não têm, para os incapazes<br />

de exercê-los senão sob a tutela dos<br />

15<br />

Referência aos “hilotas”, que não participavam da democracia<br />

grega.<br />

16<br />

Também Nabuco se inscreve entre os que se opõem ao<br />

projeto na forma apresentada, tanto em 79 como em 81.<br />

Para ele, jamais o partido liberal poderia propor a restrição<br />

do eleitorado. Além disso, como abolicionista, não o<br />

poderia aceitar – diz. O abolicionismo seria, para ele,<br />

antes de tudo, uma reforma política, de luta pela inclusão<br />

na cidadania, de construção de uma nova nação. Esta visão,<br />

segundo ele, seria própria do Brasil, não se tendo<br />

passado em outros países, como Inglaterra e França, que<br />

tinham seus escravos nas colônias – portanto, fora do<br />

convívio quotidiano com os seus ex-donos. Nos EEUU,<br />

diz, o direito ao voto do negro, ex-escravo foi um resultado<br />

não esperado da guerra, que impôs a igualdade civil.<br />

No Brasil, portanto, o abolicionismo teria como corolário<br />

o direito ao voto.<br />

28 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003


Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />

capazes, atualidade ativa”. Para ele, no caso<br />

do voto, a atualidade seria “diretamente pessoal”,<br />

tornando-se o direito incompatível com a<br />

tutela. Portanto, “direito é o sufrágio para os<br />

habilitados a votar livre e conscientemente”;<br />

somente neste caso, o voto torna-se direito e<br />

função. Por isso, a independência e o discernimento<br />

seriam requisitos vitais para um regime<br />

de eleição moralizado e livre.<br />

Aguilhoado pela crítica dura de José Bonifácio<br />

e de outros “dissidentes”, passa Rui Barbosa<br />

a argumentar em favor da idéia de que o<br />

projeto era, sim, de acordo com as ideais liberais<br />

em manifestações diversas de líderes do<br />

Partido Liberal, em várias ocasiões. Citando<br />

Saraiva, em 1875:<br />

“O liberalismo sensato não diz - vote o homem<br />

que vive do seu jornal e não tem um jornal para<br />

ler” [trocadilho com a palavra jornal, no duplo<br />

sentido: viver de trabalho diário e não ter jornal<br />

- periódico - para ler]. “O Liberalismo verdadeiro<br />

diz: Vote quem puder; e habilite-se a população<br />

toda para votar”... A soberania de que falo é a do<br />

povo que está no caso de votar... Não quero<br />

nem o absolutismo dos príncipes, não obstante<br />

sua educação, nem o absolutismo da ignorância,<br />

das multidões brutas: a inteligência deve<br />

governar e só ela. (BRASIL, <strong>19</strong>85, p. 230)<br />

Segue ainda citando os nomes dos membros<br />

do partido Liberal que, em diversas ocasiões,<br />

se haviam manifestado contra o voto dos analfabetos.<br />

Em seguida, vai buscar dentro da própria<br />

teoria liberal – ou seja, no pensamento de<br />

grandes teóricos do liberalismo – a justificação<br />

da justeza de suas proposições. Recorre a<br />

“Prévost-Paradol (França) e a Stuart Mill (Inglaterra).<br />

Citando este:<br />

Somente os homens em quem uma teoria irrefletida<br />

emudeceu o senso comum sustentarão que<br />

se deva entregar o poder sobre os outros, o poder<br />

sobre a comunidade inteira, a indivíduos que<br />

não tenham adquirido as condições mais ordinárias<br />

e essenciais para curar de si mesmos, para<br />

gerir com inteligência os próprios interesses e<br />

os das pessoas que proximamente lhes digam<br />

respeito. (BRASIL, <strong>19</strong>85, p. 230)<br />

Segundo Rui Barbosa, Mill exclui não apenas<br />

os que não sabem ler e escrever, como também<br />

os que não têm noções mínimas de cálculo.<br />

Contrargumentando aos que dizem que esse<br />

raciocínio não se aplica no Brasil, dada a extensão<br />

do analfabetismo (como conseqüência,<br />

o Sufrágio deveria vir antes que a Instrução),<br />

diz que isso contraria o pensamento de<br />

Mill. O analfabeto, por sê-lo, teria uma incapacidade<br />

individual, intrínseca, radical; assim, onde<br />

não está generalizada a alfabetização, primeiro<br />

se alfabetize, depois se dê o direito ao voto.<br />

Quando a sociedade não tem cumprido o seu<br />

dever, fazendo acessível a todos esse grau de<br />

instrução, há realmente injustiça, mas injustiça<br />

que não nos deve enlear: se de duas solenes<br />

obrigações descuidou-se a sociedade, satisfaça-se<br />

primeiro a mais importante e a mais fundamental<br />

das duas; o ensino universal preceda o<br />

sufrágio universal. (BRASIL, <strong>19</strong>85, p. 230)<br />

O fato de que a maioria da população brasileira,<br />

naquele momento, era analfabeta, o que inclusive<br />

havia feito com que alguns parlamentares<br />

liberais (inclusive alguns dos citados por Rui)<br />

tivessem mudado de opinião quanto à oportunidade<br />

de excluir aos analfabetos tendo em vista o<br />

número diminuto que sobrava para ser eleitor,<br />

para Rui não mudava a essência da questão: a<br />

capacidade eleitoral. Maior motivo para estar<br />

contra o voto do analfabeto é o seu grande número,<br />

diz Rui. E arremata: “Em face ao dilema ou<br />

não sois liberais ou haveis de incluir os analfabetos,<br />

respondemos: Não; somos liberais e excluímos<br />

os analfabetos; excluímos os analfabetos<br />

porque somos liberais” (BRASIL, <strong>19</strong>85,<br />

p.230).<br />

A partir daí, em resposta à opinião de José<br />

Bonifácio, de que o que dá o direito de intervir<br />

no governo de um país como votante é a consciência<br />

da própria posição, acrescentada à consciência<br />

da vontade alheia, argumenta Rui: o que<br />

dá a consciência clara é a leitura:<br />

Como é que se elabora, nos povos de hoje, esse<br />

difícil sentimento, o sentimento da individualidade<br />

na coletividade, o sentimento complexo dos<br />

deveres e direitos mútuos entre o Estado e os<br />

cidadãos? Pelos meios que estabelecem comunicação<br />

efetiva, permanente, inteligente, entre<br />

todos os membros da comunidade. Quais são<br />

esses meios? Dois. O primeiro é o jornal, o grande<br />

agente da educação nacional no mundo contemporâneo,<br />

que todo mês, toda quinzena, toda<br />

semana, toda manhã, toda tarde, vai levar ao<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />

29


A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />

paço do milionário e à casa do pobre, em igual<br />

quinhão, a colheita da civilização universal.<br />

(BRASIL, <strong>19</strong>85, p.231)<br />

Ao jornal, à leitura, agrega as associações,<br />

os clubes, etc, que, para ele, no Brasil não teriam<br />

força suficiente para formar a opinião pública.<br />

Assim, a grande escola da educação cívica<br />

seria a imprensa, a que o analfabeto não tem<br />

acesso.<br />

E segue, então, completando sua visão liberal<br />

de que basta a liberdade para que cada povo<br />

se forme em nação, para que cada indivíduo se<br />

transforme em cidadão, não cabendo tutelas<br />

nem ajudas. Atenção para o exemplo, ainda hoje<br />

na ordem do dia:<br />

A liberdade, Sr. Presidente, é inseparável de seus<br />

encargos. Dela não é digno o povo, que não<br />

saiba sofrer os males naturais de sua situação, e<br />

espere de outros recursos, que não a liberdade<br />

mesma, os meios de vencê-los. Por exemplo: o<br />

artífice insciente exige os impostos proibitivos<br />

como proteção à indústria nacional; porque não<br />

lhe mostraram que a verdadeira proteção à indústria<br />

consiste em obrigá-la a aperfeiçoar-se,<br />

entregando-a à concorrência no mercado comum;<br />

porque não no convenceram de que o seu interesse<br />

em ter maior número de fregueses não lhe<br />

assegura o jus de não deixar a esses fregueses a<br />

escolha do mercado livremente preferível; porque<br />

não lhe fizeram palpar a injustiça de que a<br />

sua conveniência em vender o gênero mais caro<br />

prevalecesse ao direito, que aos consumidores<br />

assiste, de confluir ao mercado onde o encontrem<br />

mais barato (BRASIL, <strong>19</strong>85, p. 232).<br />

Ainda argumentando sobre a necessidade<br />

do saber ler e escrever como base para aferir o<br />

discernimento, afirma que o Estado não pode<br />

prescindir do discernimento como elemento da<br />

capacidade eleitoral, uma vez que ele é uma<br />

das condições essenciais à liberdade. Como<br />

acha que o discernimento não pode ser “indiscriminadamente<br />

atribuído a todos”, era necessário,<br />

à falta de um sinal exterior da sua presença,<br />

aferi-lo através do critério da leitura:<br />

Ora, é a leitura que forma o cidadão, o homem<br />

civilizado, o homem moderno. Esta verdade<br />

não admite controvérsia... Lendo, é que<br />

se habilita o cidadão ...nesses tempos, quem<br />

saiba ler, lerá. E, como ler é o meio de aprender,<br />

infere-se que, onde está o instrumento aquisitivo<br />

da capacidade, aí a capacidade está.<br />

(BRASIL, <strong>19</strong>85, p.233).<br />

Nesta linha de argumentação, chega à conclusão<br />

de que o analfabeto está incapacitado<br />

para os negócios do Estado:<br />

Ora, como o discernimento político é pelo conhecimento<br />

dos negócios de Estado que se obtém;<br />

como esse conhecimento alcança-se com a<br />

leitura; como a leitura é impossível aos analfabetos<br />

na regra geral, estaremos presumindo no<br />

analfabeto ausência dessa aptidão social. (BRA-<br />

SIL, <strong>19</strong>85, p.234).<br />

Em nome, portanto, desta avaliação da capacidade<br />

de discernimento, reafirma a necessidade<br />

e justeza do projeto que significa, ao estabelecer<br />

a eleição direta, retirar o voto de todo o<br />

eleitorado primário, reduzindo a representação<br />

da população brasileira, naquele momento, a<br />

menos de 4%. Assim, em nome de tornar a eleição<br />

mais democrática, propõe desdemocratizála,<br />

excluindo aqueles que não tiveram acesso à<br />

leitura e à escrita. Assim, ao tempo em que se<br />

reduzia o eleitorado então existente de 1.800.000<br />

pessoas (eleitorado direto) para 400.000 eleitores,<br />

argumenta que isso, na realidade, representava<br />

um ganho, já que o eleitorado primário<br />

não contava; de fato, se estava aumentando o<br />

eleitorado de 24.000 eleitores para 400.000 (Estes<br />

eram, segundo seus cálculos, os varões<br />

livres, alfabetizados e maiores de 25 anos). Os<br />

400.000, ao tempo em que representavam 4%<br />

da população total livre do Brasil (1879), eram,<br />

segundo ele, 22% do eleitorado total possível.<br />

Portanto, para ele, não haveria como falar em<br />

igualdade violada:<br />

Como é, pois, que se nos vem falar em «igualdade<br />

violada»? Mas a única igualdade possível, a<br />

única igualdade legítima, a única igualdade racional,<br />

a única igualdade liberal, a igualdade conforme<br />

a democracia não socialista é não a igualdade<br />

absoluta, o nivelamento, que será sempre a<br />

mais opressiva das desigualdades morais, mas a<br />

igualdade relativa, isto é, a desigualdade social<br />

das condições correspondendo, em uma proporcionalidade<br />

exata, à desigualdade natural das<br />

aptidões. (BRASIL, <strong>19</strong>85, p.245)<br />

Apresenta, então, o argumento que sempre<br />

lhe é atribuído como saída: de que é contra o<br />

30 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003


Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />

voto do analfabeto como forma de incentivar a<br />

expansão do ensino – que não é, segundo nos<br />

parece, o centro de sua argumentação:<br />

Replicais: - Se abundam os analfabetos é porque<br />

rareiam as escolas. Mas nem isso é razão que<br />

demonstre a capacidade eleitoral dos analfabetos;<br />

nem o temor da preponderância dos analfabetos<br />

é o móvel mais plausível para incitar o<br />

governo à multiplicação das escolas; nem o estímulo<br />

que há de avivar no analfabeto o apetite de<br />

aprender está em sentir-se nivelado no direito<br />

político aos cidadãos intelectualmente superiores.<br />

Dai preço ao voto; fazei dele um instrumento<br />

de influência decisiva na sorte das administrações;<br />

ligai-o à instrução; ligai à ausência dela<br />

a privação dele; e, tornando o eleitorado uma<br />

posição, dignamente cobiçável, fareis cobiçar a<br />

instrução elementar, ao menos, degrau legal para<br />

ele. (BRASIL, <strong>19</strong>85, p. 245)<br />

Argumenta, por fim, com relação ao aumento<br />

do censo pecuniário, entender ser ele,<br />

módico, mas, mais que tudo, inofensivo: sendo<br />

excluídos os analfabetos, os que sobrarem certamente<br />

estarão entre os de renda mínima; o<br />

que demonstra que tinha conhecimento, consciência,<br />

de que o acesso à escola estava ligado<br />

à questão econômica e de que, excluindose<br />

os analfabetos, se estava excluindo os mais<br />

pobres.<br />

Assim, a sua proposta de exclusão dos analfabetos,<br />

embora até mascarada de instrumento<br />

de pressão para que se ampliasse o acesso<br />

à escola, está, na verdade, articulada a um projeto<br />

de governo, liberal, sob múltiplas influências,<br />

que vão de Spencer a Stuart Mill, em que<br />

ao evolucionismo social do primeiro se agrega<br />

a visão de um governo de qualidade, do voto<br />

de qualidade, proposto pelo segundo, em que<br />

se pretende que a verdadeira liberdade consiste<br />

no estabelecimento de controles da maioria<br />

pela minoria, seja via Estado – colocado<br />

por uns como realizador da vontade comum –<br />

seja via Parlamento, em que este, embora representando<br />

a maioria dos votantes, ainda assim<br />

devia sofrer algum tipo de controle que<br />

permitisse a liberdade individual, contraposta<br />

à liberdade coletiva. 17<br />

Para Rui Barbosa, e para o projeto de Governo<br />

que naquele momento representava, o<br />

governo devia ser o governo da minoria ilustrada,<br />

“letrada” – a inteligência, de que ele<br />

próprio era representante – mas que, no fundo,<br />

como os resultados da República vieram<br />

depois a demonstrar, que vinha a servir às intenções<br />

da conservação da ordem. No texto,<br />

deixa claro estar vinculada a direção dada à<br />

Reforma Eleitoral a um projeto de governo e<br />

à “responsabilidade” dele decorrente: ao criticar<br />

o discurso de José Bonifácio, diz “sob as<br />

apóstrofes quase épicas da sua paixão... há<br />

uma figura soberana que não vimos passar: a<br />

ciência austera, prudente, observadora, do<br />

governo. Faltou-lhe um instrumento à corda,<br />

que a lira não admite: a da investigação prática.<br />

Fugiu-lhe ao talento uma intuição: a da realidade”.<br />

E completa: se o orador se visse com<br />

a responsabilidade do poder sobre os ombros,<br />

o espectro das lições do passado, a voragem<br />

dos perigos do presente e as severidades do<br />

futuro ante os olhos, seguramente sentiria “o<br />

vazio de seus raciocínios”, a impossibilidade<br />

de realizar seus compromissos (p.224).<br />

Este programa de governo, liberal, e ao mesmo<br />

tempo conservador, prudente, exeqüível, incluía,<br />

segundo enumeração apresentada às folhas<br />

271: a secularização da escola (veja-se,<br />

não era sua expansão, a sua obrigatoriedade,<br />

mas a secularização), do registro civil, do casamento,<br />

do cemitério, do ensino público, do<br />

código penal e a abolição das incapacidades<br />

religiosas”... E mais as reformas complementares<br />

da liberdade eleitoral, como as incompatibilidades<br />

parlamentares, a reforma da polícia<br />

e da magistratura, as reformas econômicas,<br />

as descentralizadoras, a municipal, a emancipação<br />

do ensino, as leis de naturalização. (O<br />

autor, neste trecho, enumera as reformas que<br />

acha necessárias para a sociedade brasileira<br />

naquele momento, ao tempo em que afirma a<br />

desnecessidade de convocação de uma constituinte<br />

para a realização destas reformas).<br />

Veja-se que, na sua pauta, não fala, embora<br />

esteja em 1879, na abolição da escravidão. Fala<br />

17<br />

Para entender o pensamento de Stuart Mill: Weffort<br />

(<strong>19</strong>89), Merquior (<strong>19</strong>91), Bobbio (<strong>19</strong>95), Bobbio/Bover<br />

(<strong>19</strong>86). Do mesmo Stuart Mill, Sobre la Libertad, <strong>19</strong>54.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />

31


A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />

em escravos e livres apenas como um dado,<br />

quando faz a contabilidade dos que votam ou<br />

deixam de votar segundo o projeto. Apenas no<br />

trecho da pagina 222, acima citado, diz, de forma<br />

subterfugiosa, da necessidade de encontrar<br />

um “álveo” para o reconhecimento dos direitos<br />

constitucionais dessa força, ao falar da inexistência<br />

de classes no Brasil, “a não ser as resultantes<br />

da fusão reabilitadora do sangue dos libertos”.<br />

Diz ele:<br />

O Brasil ... é uma democracia. Não o é só na organização<br />

do nosso governo, na letra do seu direito<br />

constitucional... O que é, porém, intimamente<br />

democrático, em nossa terra, o que o é até a medula<br />

dos ossos e a sociedade... Somos, como<br />

todas as americanas, uma sociedade em elaboração<br />

ainda, num século em que a democracia fez<br />

indispensavelmente seu, e sob cujo influxo modificam-se,<br />

rejuvenescem democraticamente, as<br />

próprias sociedades, feitas, adultas, mais ou<br />

menos vetustas, do mundo antigo. (p.222)<br />

E segue:<br />

Não podemos ser uma nação tradicionalista.<br />

Decididamente não somos, na índole do povo,<br />

uma nação autoritária. Classes, não as temos,<br />

senão esses matizes que forçosamente resultam<br />

da fusão gradual, da progressiva desaparição,<br />

da assimilação reabilitadora do sangue<br />

liberto na massa comum do País [grifos nossos];<br />

e, ainda aí, os vestígios da transição não<br />

oferecem entre nós a mesma intensidade, as mesmas<br />

barreiras e os mesmos abismos , que noutros<br />

povos, aliás em geral incomparavelmente<br />

mais civilizados, por onde, como por nós, passou<br />

a peste da servidão negra.<br />

O gênio da igualdade (...) está profundamente<br />

inoculado em nossa pátria, nos hábitos, nas tendências,<br />

nas necessidades populares. Extinguílo<br />

seria impossível; arriscada empresa, contrariálo.<br />

E (digamo-lo sem rodeios) em quadra nenhuma<br />

de nossa história fora maior impropriedade<br />

que nesta o opor diques arbitrários a essa corrente;<br />

quando, pelo contrário, um dos grandes e<br />

enraizados erros da política brasileira consiste<br />

em desconhecer a essa força os seus direitos<br />

constitucionais; quando o que as circunstâncias<br />

estão reclamando é abrir-se-lhe álveo regular<br />

e franco, por onde ela, sem violência, mas também<br />

sem estreiteza nem interrupções, desdobre<br />

naturalmente o seu curso, como um fato<br />

normal, atuando com a supremacia que lhe<br />

cabe, nos destinos do Estado. (p.222 - grifos da<br />

autora)<br />

O álveo encontrado, ou seja, a estratégia a<br />

ser traçada para garantir à corrente da busca<br />

da igualdade um caminho seguro, para que desdobre<br />

naturalmente seu curso sem violência e<br />

sem interrupções, deveria passar, pois, por um<br />

aprendizado da cidadania, e pelo batismo da civilização,<br />

via leitura.<br />

É, portanto, no tratamento da questão da<br />

igualdade (o gênio da igualdade presente,<br />

segundo ele, na sociedade brasileira) que deixa<br />

prenunciar a existência de uma estratégia<br />

excludente e gradualista como saída “segura”<br />

para a escravatura, estratégia que também se<br />

inscrevia no modelo liberal. Modelo gradual, que<br />

vê a sociedade brasileira (como todas as do<br />

continente americano) como uma sociedade em<br />

formação, em busca da democracia. Mais: essa<br />

estratégia é uma estratégia “civilizatória”, que<br />

vincula o ler e o escrever com a civilização. No<br />

discurso de Rui, a exclusão dos pobres e dos<br />

analfabetos é explicitamente assumida. O que<br />

não está explicitado é que estes são, em sua<br />

grande maioria, negros libertos e seus descendentes,<br />

e que essa estratégia gradual, ao lado<br />

dos controles policiais de que falamos acima,<br />

vai formar o álveo para a inclusão: será não<br />

apenas o leito, o caminho, como também as<br />

margens que vão conter, servir de limites, à inclusão<br />

deles na cidadania brasileira.<br />

Entretanto, se a Reforma eleitoral retira do<br />

cenário político 1.400.000 votantes então existentes<br />

à conta dos que não teriam capacidade<br />

de discernimento, por pobres, dependentes economicamente,<br />

ou por analfabetos, ela não faz,<br />

em contrapartida, a proposição de uma campanha<br />

massiva de alfabetização, de implantação<br />

da escolarização como direito. Esta discussão,<br />

bem como a da estratégia para a Abolição (lenta,<br />

gradual e segura), são apresentadas em dois<br />

outros documentos: O Parecer-Projeto sobre<br />

educação e o Parecer-projeto 48-A, sobre a<br />

extinção gradual do elemento servil.<br />

32 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003


Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />

B. O Parecer - projeto sobre ensino<br />

primário e outras instituições complementares<br />

O segundo documento, em ordem cronológica,<br />

elaborado por Rui Barbosa em sua passagem<br />

pelo parlamento do Império, foi o projeto<br />

sobre ensino primário (BARBOSA, <strong>19</strong>84). Com<br />

duas redações, uma em maio de 1882 e outra<br />

em setembro de 1882, o parecer teria sido elaborado<br />

a pedido do Imperador, em virtude do<br />

malogro da reforma Leôncio de Carvalho, de<br />

1879. A existência das duas versões é explicada<br />

por Lourenço Filho como sendo dependente da<br />

chegada de material sobre o estado da Educação<br />

em vários países da Europa e da América,<br />

solicitado e obtido por Rui Barbosa. Assim, o<br />

documento elaborado (examinamos a 2a versão,<br />

completa) conta com a costumeira erudição dos<br />

trabalhos de Rui Barbosa. Exaustivo, compara a<br />

situação educacional do Brasil nos fins do século<br />

passado com a dos diversos países da América<br />

e da Europa: de nenhuma forma a situação<br />

por ele encontrada nos é favorável.<br />

A comparação, feita com vistas a justificar<br />

a necessidade de um projeto civilizatório pela<br />

via da escola, trabalha a partir de um diagnóstico<br />

do ensino no Brasil. Trabalhando com os<br />

dados estatísticos então existentes, Rui Barbosa<br />

os discute comparando as estatísticas de instrução<br />

– matrícula e freqüência – com a situação<br />

educacional da população como um todo,<br />

segundo o Censo Demográfico de 1872: analfabetismo<br />

e população escolarizável. Sempre<br />

excluindo os escravos dos seus cômputos, já<br />

que pela legislação então existente era-lhes proibido<br />

o acesso ao ensino, raciocina sempre em<br />

termos do crescimento futuro do contingente<br />

dos livres. Sua proposta de educação primária,<br />

no entanto, é feita em termos genéricos – não<br />

se dirige a um dos dois contingentes, mas à população<br />

de 7 a 14 anos.<br />

No capítulo I do parecer, discute, portanto,<br />

a situação do ensino popular. Critica o otimismo<br />

oficial, comparando-o com “a verdade dos<br />

números”. Fala em uma indolência do progresso<br />

escolar, visto que o crescimento do número<br />

de escolas primárias é muito pequeno ao ano,<br />

afirmando que a velocidade de crescimento<br />

decresce no período de 70 a 78 (p. 28). Comparando<br />

a matrícula com a população, demonstra<br />

que apenas 1,08% da população livre tem<br />

acesso à escola; e que, entre 1857 e 1878, o<br />

crescimento desse acesso foi da ordem de<br />

0,027% anualmente. Critica:<br />

... com essa celeridade de milésimos por ano,<br />

careceríamos de 37 anos para que a inscrição<br />

crescesse 1% e, como a nossa população em<br />

idade escolar (6 a 15 anos) está para a população<br />

livre na razão de 22,6%, em menos de 799 anos<br />

não teríamos chegado à situação que se anela, ...<br />

onde toda a população em idade escolar recebe<br />

a instrução primária. (BARBOSA, <strong>19</strong>84, p. 17, v.<br />

10, tomo 1)<br />

Mostra, então, seu conhecimento de que o<br />

Brasil era, naquele momento, uma nação de<br />

analfabetos, a ponto de estar no limite do que<br />

chama de mundo civilizado. Para demonstrar<br />

isto, faz comparações com os diversos países<br />

da América e da Europa, chamando a atenção<br />

de que, naquele momento (1882), a situação<br />

educacional na Argentina já era melhor do que<br />

no Brasil, citando especificamente o Censo<br />

Escolar de Buenos Aires de 1881 (p.58-60).<br />

Em vista da situação diagnosticada, passa a<br />

discutir o papel do Estado na oferta da educação.<br />

Sustenta então a posição de que o Estado<br />

deve ter uma presença forte na oferta da educação<br />

(discordando, explicitamente neste caso,<br />

dos positivistas). Deve existir uma organização<br />

nacional do ensino, desde a escola até as faculdades,<br />

não se devendo “submeter os problemas<br />

educacionais às leis econômicas da oferta e da<br />

procura”. Argumenta que a existência do ensino<br />

livre não poderia suprir a falta do ensino oficial,<br />

que deveria ser completamente leigo. E<br />

afirma a gratuidade (já prevista na constituição<br />

de 24 para o ensino primário) e a obrigatoriedade<br />

do ensino como sendo elementos intercomplementares:<br />

... Numa constituição democrática não pode ser<br />

outro o fito dos sacrifícios impostos ao estado<br />

pela difusão gratuita dos rudimentos de educação<br />

intelectual senão a necessidade, passada em<br />

julgado, de que eles sejam comuns a todos os<br />

habitantes válidos do país. Mas a proclamação<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />

33


A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />

dessa necessidade importa, ao mesmo tempo, o<br />

reconhecimento implícito ou a criação legal de<br />

um direito. Qual? Esse direito dos pais, simples<br />

elemento integrante da soberania irresponsável<br />

que lhes atribuem os adversários do ensino obrigatório,<br />

a certas facilidades para a formação moral<br />

da prole? Não, decerto. (BARBOSA, <strong>19</strong>84, v. 10,<br />

tomo 2).<br />

Para ele, existiriam dois direitos: o direito do<br />

indivíduo, “de que a sociedade lhe subministre<br />

os princípios elementares de moralidade e<br />

intelecção, sem os quais não há homem responsável,<br />

não havendo imputabilidade dos seus<br />

atos – portanto, a repressão seria uma injustiça”,<br />

e o direito da sociedade de negar à ignorância<br />

do indivíduo a liberdade. “Sem educação,<br />

o ser humano se desnatura”.<br />

Na sua argumentação em favor do estabelecimento<br />

de um sistema de ensino público leigo,<br />

gratuito, obrigatório e universal (base da<br />

organização do sistema de ensino no Brasil, até<br />

hoje), sem prejuízo da mais ampla liberdade de<br />

ensino, vai mais uma vez buscar o apoio do liberalismo<br />

inglês, agora de outra fonte: citando<br />

Macauly (BARBOSA, <strong>19</strong>84, p.185):<br />

Dever é do governo proteger-nos as pessoas e a<br />

propriedade, contra o que as possa pôr em perigo.<br />

Ora, a principal causa dos perigos que arriscam<br />

a propriedade e as pessoas é a ignorância<br />

crassa do comum do povo. Logo, adscrito está o<br />

govêrno a curar de que o comum do povo não<br />

fique sendo grosseiramente ignorante. E qual vem<br />

a ser a alternativa? Todos reconhecem que a<br />

obrigação do governo é acautelar, pelos meios<br />

possíveis, a nossa existência e fazenda. Mas,<br />

excluída a educação, que meio lhe deixais? Deixai<br />

somente estes meios que só a necessidade pode<br />

justificar, meios que infligem sofrimento formidável<br />

não só ao infrator como aos inocentes que<br />

com ele têm vínculos: Deixai-lhes os fuzis, os<br />

pelourinhos, a solidão celular das prisões, as<br />

colônias penais e a fôrca.<br />

É a seguinte a redação do parágrafo referente<br />

a obrigatoriedade escolar no texto do projeto:<br />

4º É obrigatória a freqüência das escolas públicas<br />

do ensino primário, no município neutro, para<br />

as crianças de ambos os sexos, dos 7 aos 13<br />

anos de idade. Esta obrigação estende-se até os<br />

15 anos, em relação aos que aos 13 anos não<br />

estiverem habilitados nas matérias da instrução<br />

escolar correspondente a essa idade.<br />

5º Eximem desta obrigação:<br />

a) a falta de escola pública num circuito determinado<br />

pelo raio de dois km, em relação às crianças<br />

do sexo masculino e um e meio em relação às<br />

do outro.<br />

Veja-se, portanto, que a obrigatoriedade estava<br />

limitada pela oferta de escolas. O projeto<br />

prevê, também, quem são os responsáveis pela<br />

instrução das crianças, inscrevendo nesta responsabilidade<br />

não somente os pais como tutores,<br />

etc, como também os proprietários, administradores,<br />

ou gerentes de quaisquer estabelecimentos<br />

mercantis, industriais ou agrícolas, ou<br />

pessoa que mantivesse a seu serviço menor<br />

desvalido, todos deviam obrigatoriamente cuidar<br />

da matrícula e da freqüência das crianças<br />

às escolas (parágrafos 6º e 17º).<br />

O Projeto prevê uma reforma organizacional<br />

para o ensino em todos os graus, inclusive o<br />

primário. No entanto, o projeto mantém a divisão<br />

da ação descentralizada via províncias. No<br />

que se refere ao ensino primário, a sua abrangência<br />

é restrita ao município da Corte, único<br />

espaço de atuação do Governo Central naquele<br />

ramo de ensino durante o Império a partir do<br />

Ato Adicional (como vamos ver adiante). Prevê,<br />

também, a criação de Fundo escolar e a<br />

criação de um imposto de captação, a ser pago<br />

por todos os homens maiores, para a manutenção<br />

do ensino. Assim, prevê normas nacionais<br />

e formas locais de aplicação.<br />

Por fim, em todo o projeto não há uma referência<br />

explícita aos escravos, à abolição da escravidão,<br />

à situação dos libertos ou dos ingênuos.<br />

Trata-se de propor um sistema de educação<br />

em geral, aplicável a todas as crianças (livres)<br />

em idade escolar. A única referência que<br />

faz no seu texto à relação possível entre abolição<br />

e instrução se reporta ao pensamento de<br />

Tavares Bastos, liberal e abolicionista dos meados<br />

do Século XIX: “Emancipar e instruir é<br />

a forma dupla do mesmo pensamento político.<br />

Que haveis de oferecer a esses entes degradados<br />

que vão surgir da senzala para a<br />

liberdade? O batismo da instrução”. (BAR-<br />

BOSA, <strong>19</strong>84, p.179, v. 10)<br />

34 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003


Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />

Com esta citação conclui o seu parecer, agregando<br />

seu entendimento de que o ensino,<br />

civilizatório, viria a ser propulsor do trabalho (de<br />

melhor qualidade). Como tal pensa que “este<br />

aceno deveria ajudar a fazer frutificar, no parlamento,<br />

contra os desleixos, os abusos, os preconceitos<br />

e a ignorância que protelam (...) a grande<br />

reforma” – numa referência à Abolição.<br />

C. O Parecer – Projeto sobre a emancipação<br />

gradual do elemento servil<br />

Mas como fazer a Abolição de uma maneira<br />

segura? Como garantir, como diz Macauly,<br />

as pessoas e as suas fazendas? É na análise do<br />

terceiro documento, o Parecer sobre a emancipação<br />

gradual, que se completa a visão sobre a<br />

estratégia de inclusão gradual dos ex-escravos<br />

à cidadania brasileira expresso por Rui Barbosa<br />

(BARBOSA, <strong>19</strong>88). O parecer 48-A , elaborado<br />

em 1884, está na origem da Lei dos<br />

Sexagenários, aprovada em 1885 com modificações<br />

no projeto inicial. Extenso, argumentativo,<br />

erudito, o parecer atende ao que Rui<br />

Barbosa denomina “chamar a sí” o problema<br />

da escravidão.<br />

O centro da sua argumentação é de que a<br />

escravidão deve se extinguir, ou seja, acabar<br />

por si, e veremos como constrói sua argumentação<br />

neste sentido, por um lado discutindo e<br />

negando a realidade do direito “natural” de propriedade<br />

do senhor sobre o escravo como sendo<br />

um direito individual e, portanto, advogando<br />

que o Estado deve intervir para sua extinção: o<br />

que é estabelecido por lei, por ela pode ser<br />

modificado; nestes casos, não cabe o laissez<br />

faire, cabendo ao Estado fixar o que é justo ou<br />

injusto. De outro, trata de fazer o convencimento<br />

da necessidade da reforma, da impossibilidade<br />

de adiá-la e busca combater o medo do futuro.<br />

O Projeto propõe a extinção da escravidão<br />

através de dois mecanismos: a colocação de<br />

uma idade limite para a escravidão, no caso os<br />

60 anos de idade, quando se daria a libertação<br />

sem indenização ao proprietário; e a perda paulatina<br />

de valor do escravo de acordo com os<br />

anos de idade, de modo que, até 1898, se extinguiria<br />

a escravidão, mesmo com os últimos escravos<br />

estando com cerca de 30 anos. Para<br />

tanto, propõe reforçar o Fundo de Emancipação<br />

e acelerar os mecanismos para incentivar<br />

o dono de escravos a alforriá-los. Agrega, como<br />

veremos, uma série de mecanismos para obrigar<br />

o escravo liberto a continuar a trabalhar no<br />

local onde antes trabalhava ou nas suas cercanias.<br />

Não é aprovado o projeto, em especial por<br />

conta da não indenização do escravo sexagenário<br />

libertado.<br />

Mas o que nos interessa é entender o raciocínio<br />

e a estratégia de Rui Barbosa. São os seguintes<br />

os pontos que queremos destacar:<br />

1. A sua argumentação sobre a necessidade<br />

da Reforma:<br />

Não adianta opor um nome (socialismo) à reforma.<br />

A iniqüidade do cativeiro, uma vez tocada,<br />

não se sustenta mais - os alicerces vacilam. Para<br />

que não desabe o edifício, o meio de agüentá-lo<br />

temporariamente será aliviá-lo, com prudência e<br />

oportunidade, da carga que ameaça desabar.<br />

Melhores amigos... são os promotores da reforma<br />

que os pregadores da imobilidade. A imobilidade<br />

é a ruína, a reforma é a transição, não sem<br />

contratempos e dissabores, mas ao menos sem<br />

catástrofes, misérias e desmoronamentos. (p.717)<br />

No entanto, reafirma, a estratégia é prudente,<br />

cuidadosa:<br />

Queremos discutir a escravidão como um fato<br />

passageiro, a cuja supressão radical e instantânea<br />

não nos atrevemos, por considerações de<br />

prudência, de economia política, de ordem social.<br />

(...) No entanto, a reação chama de roubo o que<br />

é prudência. A resistência atiça o incêndio. (...)<br />

Cabe ao governo tomar a sí o problema e por<br />

termo à ansiedade de todos. Esperar é prudente,<br />

contanto que se espere alguma coisa. Esperar<br />

por esperar... Não adianta esperar a anuência<br />

geral de todos os proprietários. (p. 780; 781; 789)<br />

2. Outro bloco de argumentação, neste processo<br />

de convencimento da necessidade de<br />

encontrar o caminho para a “reforma com prudência,<br />

sem catástrofes”, é a demonstração<br />

de que não há riscos, não há perigo na extinção<br />

da escravidão. Nem do ponto de vista econômico<br />

– porque a implantação do trabalho livre<br />

daria conta da necessidade de mão-de-obra, do<br />

mesmo modo como se havia passado em todo<br />

o mundo, assim como pela tomada de medidas<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />

35


A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />

complementares, desde a imigração às medidas<br />

de coerção para o trabalho.<br />

Alinha, então, caso a caso a situação dos<br />

lugares onde já havia se dado a Abolição, demonstrando<br />

quais as medidas tomadas para que<br />

não houvesse desamparo à lavoura. Para combater<br />

o medo ao final da escravidão, Rui o discute<br />

tanto do ponto de vista econômico como<br />

do ponto de vista físico – o medo do grande<br />

desastre ao estilo do Haiti.<br />

Analisa, primeiro, a situação das colônias<br />

inglesas do Atlântico. Segundo diz, as mesmas<br />

já se encontravam em decadência acelerada<br />

desde o final do século XVIII. Entre 1780 e<br />

1787 teriam morrido 15.000 negros por deficiência<br />

de alimentação. Enumera as diversas revoltas<br />

havidas, e as dificuldades dos diversos<br />

modelos de abolição experimentados.<br />

Estabelecida a ‘aprendizagem’ (libertação com cláusula<br />

de prestação de serviços para que se faça a<br />

aprendizagem da vida livre) cujos defeitos são<br />

notórios, necessário acautelar a passagem dessa<br />

meia servidão para a liberdade comum: a repressão<br />

à vadiagem não se deu – portanto, como era<br />

de esperar, ela aconteceu em grande escala. (...) A<br />

Abolição de 1833 foi lacunosa (desgraçadíssima);<br />

não obrigava os negros ao trabalho, no momento<br />

em que se acabaram as medidas de coerção aconteceram<br />

a depauperação colonial e o divórcio entre<br />

libertos e trabalho. No entanto, em 1844, os<br />

negros voltam ao trabalho. (p.757)<br />

Alinha como causas para a decadência da<br />

Jamaica: a) administração incapaz das autoridades<br />

coloniais; b) desídia e indolência dos grandes<br />

proprietários ausentes; c) transição pelo sistema<br />

de aprendizagem; d) reação ininteligente<br />

(sic) e cega da grande propriedade: os lavradores<br />

repeliam, por todos os meios de resistência<br />

– salvo só a insurreição declarada – todas as<br />

tentativas de melhorar as condições do Liberto.<br />

Analisa em seguida a situação de Cuba, dos<br />

EEUU e das Colônias Francesas. De Cuba,<br />

afirma que as dificuldades financeiras vieram<br />

da guerra de tarifas com os EEUU, além da<br />

influência das reações revolucionárias suscitadas.<br />

Nos EEUU, busca mostrar como, 20 anos<br />

após o fim da Guerra, melhora a vida do negro.<br />

Entre 1865 e 1870, o Freedman’s Bureau criou<br />

4.239 escolas no Sul, com 247.333 alunos. Em<br />

1881, já seriam 17.816 escolas, com 839.938<br />

alunos, destes 823.945 no ensino primário. Além<br />

disso, aumentou a população de cor, retomando<br />

os índices de crescimento da população do Censo<br />

de 1800 e 1810. Por fim, a colheita de algodão,<br />

nos próprios estados do Sul, a partir de 1870<br />

retoma os índices de 1861 e logo o supera: em<br />

1883, quase o dobro.<br />

Segundo Rui Barbosa, seria melhor a situação<br />

não fosse a barbárie da perseguição dos<br />

negros após a guerra civil, que provocou a emigração<br />

para o Norte. Apresenta os números da<br />

mortandade de negros no Sul, entre 1866 e 1874:<br />

Nova Orleans, 3.500 negros mortos por motivos<br />

políticos. Mutilações e homicídios, mais de<br />

1.000 em três meses. “Assombra a vitalidade e<br />

a energia dessa população trucidada, em quem<br />

a violência não conseguiu arrancar a confiança<br />

na liberdade, a moralidade e o amor ao trabalho.”<br />

(p.764).<br />

Discute, por fim, a situação das colônias<br />

francesas onde, para ele, a deserção dos libertos<br />

foi obra dos antigos senhores. Turbado na<br />

posse, o branco pode tornar-se obstáculo à nova<br />

situação. E aí chega ao ponto que nos parece<br />

central de todo o documento. Para ele:<br />

As colônias francesas atravessaram alguns anos<br />

difíceis. Dessa provação, porém, a responsabilidade<br />

cabe, na sua maior parte, ao modo irrefletido<br />

e precipitado como se operou a Reforma. (...)<br />

Entre vários atos de generosa temeridade, que<br />

contribuíram preponderantemente para as desordens<br />

econômicas do quinquênio imediato à<br />

emancipação, bastaria apresentar o decreto que<br />

fez do escravo, ao mesmo tempo, homem livre e<br />

eleitor, estendendo-lhe o benefício do sufrágio<br />

universal. Sem nenhuma consciência dos deveres<br />

da vida cívica, as massas libertas foram envolvidas<br />

na agitação política, incendiada então<br />

pelas influências revolucionárias de 1848. Os frutos<br />

dessa imprudência resumiu-os uma autoridade<br />

de primeira nota nessas palavras: «Não foi<br />

a liberdade que perturbou a ordem: foi o escrutínio<br />

que ermou as oficinas, armou os partidos,<br />

ensangüentou as povoações». Como a Reforma<br />

foi instantânea, sem indenização, os proprietários<br />

se viram sem condição de organizar o trabalho<br />

livre. Entretanto, ainda assim, a crise das<br />

colônias francesas é reflexo da crise da metrópole.<br />

(BARBOSA, <strong>19</strong>88, p. 759 - grifos nossos).<br />

Ou seja: na sua opinião, o liberto não poderia<br />

nem deveria ser guindado, de imediato, a<br />

36 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003


Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />

condição de eleitor. Era necessário um tempo<br />

de preparação para o voto, como disse no discurso<br />

que excluía os analfabetos da qualificação<br />

de eleitor. Conhecendo, como conhecia, a<br />

condição de analfabetismo no Brasil e sabendo,<br />

com clareza quem eram os analfabetos, a<br />

sua exclusão era, ao mesmo tempo, a exclusão<br />

do pobre e do liberto – já que aos escravos era<br />

vedada a escolarização. O Pós-abolição demandava<br />

garantias da ordem. Em seu projeto, apresenta<br />

as razões pelas quais o Brasil estaria em<br />

melhores condições que todos os demais para<br />

fazer a sua abolição gradual, sem traumas. Para<br />

tanto, propõe a obrigação do trabalho e um<br />

qüinqüênio de domicílio forçado. “Só duas<br />

faculdades se recusam ao liberto: por cinco anos,<br />

residir em outro município; em qualquer tempo,<br />

a vagabundagem” (BARBOSA, <strong>19</strong>88, p.767).<br />

A finalidade destas cláusulas, para ele, seria<br />

educativa, formativa para a liberdade, “proscrevendo<br />

a liberdade da preguiça”. Aí se estabelece,<br />

ou melhor, se reforça – porque já existia<br />

essa legislação de repressão à vadiagem na Lei<br />

do Ventre Livre – o controle sobre o direito de<br />

ir e vir dos negros e o seu direito ao não trabalho.<br />

Em nenhum outro ponto do parecer ou do<br />

projeto fala da questão da educação ou da cidadania<br />

ativa; os libertos são libertos. Nenhuma<br />

proposta de educação em massa, apesar<br />

dos elogios à situação dos EEUU. Silêncio absoluto<br />

sobre o direito ao voto, tão claramente<br />

explicitado por Nabuco. Nada de Reforma da<br />

Agricultura, como propõe este último. A educação<br />

era para as crianças. Os adultos, se davam<br />

valor ao voto, buscariam por si próprios os<br />

meios de aprender a ler e a escrever para se<br />

tornarem eleitores. Os analfabetos já estavam<br />

excluídos da cidadania.<br />

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Em suma, para tornar-se cidadão, faltava<br />

ao ex-escravo o “batismo” da instrução – garantia<br />

da sua entrada na civilização letrada,<br />

escrita, ocidental, como também passaporte<br />

para a brasilidade. A intenção de excluir os<br />

analfabetos – bem como a consciência de<br />

quem eram eles – eram claras em Rui Barbosa.<br />

Tem também clareza da tarefa gigantesca<br />

que representava “batizar” a tantos pagãos da<br />

civilização – falara até em velocidade – celeridade<br />

de milésimos por anos. O que talvez não<br />

esperasse é que o modelo federalista e municipalista<br />

por ele mesmo apregoado como forma<br />

de organização do Estado brasileiro acabasse<br />

por protelar tanto a implantação do ensino<br />

obrigatório, durante toda a República Velha.<br />

A consciência da educação como direito<br />

de todos e dever do Estado só vai se tornar<br />

mais forte na década de 20 e, em especial, na<br />

década de 30. Só a partir daí o acesso à escola<br />

se vai dando mais maciçamente, mesmo<br />

assim com diferenças marcadas pelas diferenças<br />

regionais decorrentes da completa inexistência<br />

de uma ação equalizadora por parte do<br />

governo central.<br />

Os resultados da exclusão dos analfabetos<br />

do direito ao voto fizeram da Republica Velha<br />

uma Republica em que votavam uma pequena<br />

minoria. Em 1881, no ano da aprovação da Lei<br />

Saraiva, contrariamente aos cálculos de Rui<br />

Barbosa, votavam 145.296 pessoas, numa população<br />

de 11.973.000 – ou seja, 1,2% . Com<br />

a Proclamação da República, retirada a exigência<br />

do censo pecuniário, o número de eleitores<br />

continuou muito pequeno. Calcula-se que,<br />

em <strong>19</strong>08, o porcentagem de eleitores na população<br />

total era da ordem de 4%. Na Bahia,<br />

este percentual era de apenas 3,54%, segundo<br />

Mapa Estatístico elaborado no Governo de<br />

Araújo Pinho. Como o voto não era obrigatório,<br />

o número de votantes era ainda menor:<br />

calcula-se que, até <strong>19</strong>30, os votantes foram,<br />

em média, 2,6% da população total. Apenas<br />

em <strong>19</strong>34 as mulheres adquirem direito ao voto,<br />

caindo a idade mínima para 18 anos e tornando-se<br />

o voto secreto e obrigatório. Continuouse,<br />

no entanto, a excluir os analfabetos. Assim,<br />

o crescimento, daí em diante, do número<br />

de eleitores este condicionado ao crescimento<br />

da alfabetização na população adulta. Apenas<br />

em <strong>19</strong>85 se facultou o voto ao analfabeto.<br />

É o seguinte o crescimento do eleitorado no<br />

Brasil, entre 1881 e <strong>19</strong>82 (Tabela 1).<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003<br />

37


A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />

TABELA 1 – Crescimento do eleitorado no<br />

Brasil – percentual sobre o total da população.<br />

Brasil, 1891-<strong>19</strong>82.<br />

TABELA 2 - Percentual de eleitores sobre a<br />

população brasileira nas eleições para presidente<br />

da República. Brasil, 1894-<strong>19</strong>60<br />

Ano<br />

Percentagem<br />

Ano Presidente eleito %<br />

1881 1,21<br />

<strong>19</strong>08 4,77<br />

<strong>19</strong>12 5,57<br />

<strong>19</strong>33 4,11<br />

<strong>19</strong>34 1 7,30<br />

<strong>19</strong>45 16,0<br />

<strong>19</strong>50 22,0<br />

<strong>19</strong>55 25,2<br />

<strong>19</strong>60 2 21,9<br />

<strong>19</strong>64 24,7<br />

<strong>19</strong>66 26,9<br />

<strong>19</strong>69 28,4<br />

<strong>19</strong>74 34,3<br />

<strong>19</strong>78 39,5<br />

<strong>19</strong>82 49,0<br />

1<br />

Entrada das mulheres e dos jovens entre 18 e 21 anos<br />

2<br />

Nova lista retira títulos caducos e falsos<br />

Fonte: FAUSTO, Boris. Historia Geral da Civilização<br />

Brasileira, São Paulo: Difel, <strong>19</strong>77; IBGE - Anuários Estatísticos<br />

<strong>19</strong>36, <strong>19</strong>37, <strong>19</strong>50; IBGE - Brasil em números,<br />

<strong>19</strong>60-<strong>19</strong>66; PEREIRA, Raimundo. As Eleições no Brasil<br />

pós-64, Editorial Global, <strong>19</strong>84. Os dados de <strong>19</strong>82 são do<br />

TSE. Todos os dados são retirados de CARTA & PEREI-<br />

RA. Retratos do Brasil, <strong>19</strong>84/<strong>19</strong>85.<br />

Considerado o número de votantes para Presidente<br />

da República, foram os seguintes os percentuais<br />

de participação alcançados (Tabela 2).<br />

Entre <strong>19</strong>60 e <strong>19</strong>90 não houve eleição direta<br />

para Presidente da República. Para a eleição<br />

de governador de estado, em <strong>19</strong>86, estiveram<br />

inscritos 69.166.810 eleitores em todo Brasil, já<br />

então com uma população total aproximada de<br />

120.000.000 – portanto, pouco mais de 57% da<br />

população tinha direito ao voto. 18<br />

Estes dados nos permitem acompanhar o<br />

processo lento de inclusão na cidadania ativa,<br />

no Brasil após a República, pela utilização do<br />

critério de alfabetização como instrumento de<br />

qualificação do cidadão. Teria havido um sucesso<br />

da estratégia de inclusão lenta, controlada,<br />

ou um insucesso da política de ampliação<br />

das oportunidades educacionais? Que contin-<br />

1894 Prudente de Morais 2,2<br />

1898 Campos Sales 2,7<br />

<strong>19</strong>02 Rodrigues Alves 3,4<br />

<strong>19</strong>06 Afonso Pena 1,4<br />

<strong>19</strong>10 Hermes da Fonseca 3,2<br />

<strong>19</strong>14 Venceslau Bras 2,4<br />

<strong>19</strong><strong>19</strong> Epitácio Pessoa 1,5<br />

<strong>19</strong>22 Artur Bernardes 2,9<br />

<strong>19</strong>26 Washington Luís 2,3<br />

<strong>19</strong>30 Júlio Prestes 5,7<br />

<strong>19</strong>45 E.G. Dutra 13,4<br />

<strong>19</strong>50 Getúlio Vargas 15,9<br />

<strong>19</strong>60 Jânio Quadros 17,8<br />

Fonte: FAUSTO, Boris. Historia Geral da Civilização<br />

Brasileira, São Paulo: Difel, <strong>19</strong>77; IBGE - Anuários Estatísticos<br />

<strong>19</strong>36, <strong>19</strong>37, <strong>19</strong>50; IBGE - Brasil em números,<br />

<strong>19</strong>60-<strong>19</strong>66; PEREIRA, Raimundo. As Eleições no Brasil<br />

pós-64, Editorial Global, <strong>19</strong>84. Os dados de <strong>19</strong>82 são do<br />

TSE. Todos os dados são retirados de CARTA & PEREI-<br />

RA. Retratos do Brasil, <strong>19</strong>84/<strong>19</strong>85.<br />

gentes da população tiveram mais dificuldade<br />

para alcançar a cultura letrada e, por isso, ficaram<br />

à margem do processo político eleitoral?<br />

A análise de dados estatísticos referentes<br />

às matrículas no ensino primário, na Bahia,<br />

mostra que, embora nosso Estado declarasse<br />

um direito de todos à educação e, até, a<br />

obrigatoriedade do ensino primário na Constituição<br />

de 1891, a forma de colocar em prática<br />

este direito e obrigatoriedade se viu limitada:<br />

a) pela municipalização dos serviços educacionais<br />

(levada a efeito desde 1895 até <strong>19</strong>25), fi-<br />

18<br />

Sendo 3.131.415 na região Norte, 17.742.498 no Nordeste,<br />

32.156.237 no Sudeste, 11.601.743 no Sul e<br />

4.543.917 no Centro Oeste. IBGE, Estatísticas Históricas,<br />

Resultados Eleitorais, p. 629-642.<br />

38 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003


Jaci Maria Ferraz de Menezes<br />

TABELA 3 - Percentagem de alfabetizados segundo a cor de pele. Brasil, São Paulo e Bahia nos<br />

censos em que é estudada. Cálculos a partir da população de 5 anos e mais. Brasil, 1890-<strong>19</strong>80.<br />

* A partir de cálculos nossos<br />

Fonte: IBGE – Censos demográficos.<br />

cando a ação estadual limitada a uma função<br />

supletiva – ao Estado cabia a implantação e<br />

manutenção de duas escolas por município, sendo<br />

uma para cada sexo (Artigo 109 da Constituição<br />

Estadual de 1891 e Regulamento da Instrução<br />

pública Lei complementar de 1895);<br />

b) pelos efeitos da política federalista colocada<br />

em prática a partir da Proclamação da República<br />

– que tanto provocou uma concentração de<br />

recursos nos Estados cuja economia se apresentava<br />

mais dinâmica, como, em conseqüência,<br />

minimizava um papel redistributivo ou equalizador<br />

do Governo Central, mesmo no que diz respeito<br />

à oferta de educação primária.<br />

Se é possível afirmar, por um lado, que a<br />

inclusão na cidadania dependeu das políticas<br />

educacionais e da maior ou menor capacidade<br />

de gastos de cada Estado brasileiro, quais, no<br />

final das contas, foram os que sofreram os efeitos<br />

das políticas educacionais e de concentração<br />

da riqueza? A análise, a partir dos dados<br />

dos censos demográficos, do crescimento dos<br />

índices de alfabetização segundo a cor da pele<br />

nos permite afirmar que foram os negros, em<br />

São Paulo como na Bahia, assim como no conjunto<br />

do Brasil (Tabela 3).<br />

Como se vê, são os pretos e os mestiços<br />

aqueles que, sofrendo mais fortemente o efeito<br />

das desigualdades regionais e da inexistência<br />

de políticas nacionais equalizadoras na área de<br />

educação, têm menor acesso à alfabetização.<br />

Deste modo, a adoção da condição de alfabetizado<br />

como critério para ingresso à cidadania<br />

ativa, para o acesso ao voto, implicou também<br />

no estabelecimento de um sistema de controle<br />

dos negros e de seu ingresso à comunhão brasileira,<br />

nas palavras de Joaquim Nabuco quando<br />

da discussão da Lei Áurea no Parlamento<br />

Brasileiro. Mais que tudo, este parece ter sido<br />

o álveo, o caminho procurado por Rui Barbosa,<br />

para que a garantia da liberdade não se confundisse<br />

com a aquisição da igualdade civil,<br />

permitindo que a transição da escravidão para<br />

a vida livre se fizesse sem conflitos, sem sustos,<br />

de forma segura. Para os senhores.<br />

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A república e a educação: analfabetismo e exclusão<br />

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WEFFORT, Francisco. Os clássicos da política. São Paulo, SP: Ática, <strong>19</strong>89. v. 2.<br />

Recebido em 07.08.02<br />

Aprovado em 02.08.03<br />

40 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>-40, jan./jun., 2003


Edivaldo Machado Boaventura<br />

ESTUDOS AFRICANOS NA ESCOLA BAIANA:<br />

RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA<br />

Edivaldo Machado Boaventura *<br />

RESUMO<br />

O artigo examina a criação da disciplina Introdução aos Estudos Africanos<br />

no ensino fundamental e médio, nos anos oitenta, por proposta do<br />

Centro de Estudos Afro-Orientais e do Conselho das Entidades Negras<br />

da Bahia. O relato inclui a programação dos cursos de especialização e<br />

extensão para formar professores para a disciplina, antecedente da Lei<br />

Nº 10.639/2003 que tornou obrigatório o ensino da História e da Cultura<br />

Afro-Brasileira.<br />

Palavras-chave: Educação Baiana – Estudos Africanos – Entidades<br />

Negras<br />

ABSTRACT<br />

AFRICAN STUDIES AT THE BAHIAN SCHOOL: ACCOUNT<br />

OF AN EXPERIENCE<br />

The article examines the creation of the subject Introduction to African<br />

Studies at elementary and high school, in the eighties, proposed by the<br />

Center of Afro-oriental studies and the Board of the Afro-descendant<br />

Entities of Bahia. The account includes the program of the specialization<br />

and extension courses for training teachers for the subject, prior to Law<br />

N. 10.639/2003, which made mandatory the teaching of History and<br />

Afro-Brazilian Culture.<br />

Key words: Bahian Education – African Studies – Afro-descendant<br />

Entities<br />

No seminário promovido pelo Mestrado em<br />

Educação e Contemporaneidade da Universidade<br />

do Estado da Bahia (UNEB), de 28 a 30<br />

de maio de 2003, sobre experiências educativas<br />

com a cultura afro-brasileira, relatamos a implantação<br />

dos Estudos Africanos na escola fundamental<br />

média baiana, ocorrida nos anos oi-<br />

tenta. Esse nosso relato foi embasado na assertiva<br />

de que a educação estaria comprometida<br />

se não estivesse assentada na realidade histórico-cultural<br />

da sociedade a que se destina. Firmada<br />

nesta convicção, a Secretaria de Educação<br />

e Cultura do Estado da Bahia, gestão <strong>19</strong>83-<br />

<strong>19</strong>87, instituiu a disciplina Introdução aos Estu-<br />

*<br />

Docente livre e Doutor em Direito; Mestre e Ph.D. em Administração Educacional; Professor da Faculdade<br />

de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Salvador (UNIFACS). Entre suas<br />

publicações podem ser citados os livros: O Parque de Canudos (<strong>19</strong>97); UFBA: trajetória de uma universidade<br />

<strong>19</strong>46-<strong>19</strong>96 (<strong>19</strong>99); O território da palavra (2001). Endereço para correspondência: Rua Dr. José<br />

Carlos, 89 – Edf. Parque das Mangueiras, apt. 801, Acupe de Brotas – 40290.040 Salvador-BA. E-mail:<br />

boaventura@edivaldo.pro.br<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003<br />

41


Estudos africanos na escola baiana: relato de uma experiência<br />

dos Africanos, precedida do Curso de Especialização<br />

em Estudos da História e das Culturas<br />

Africanas para habilitar docentes no ensino<br />

dessa matéria. Desenvolvemos uma iniciativa<br />

pioneira e condizente com as tradições afrobaianas.<br />

A Secretaria foi desafiada por segmentos<br />

expressivos de instituições vinculadas à cultura<br />

negra. A criação da disciplina não deixou de<br />

ser uma resposta política às diligências do Centro<br />

de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade<br />

Federal da Bahia (UFBA), que solicitou<br />

ao Conselho Estadual de Educação da<br />

Bahia (CEE/BA), em 8 de agosto de <strong>19</strong>83, a<br />

sua inclusão nos currículos do ensino fundamental<br />

e médio. Nesse mesmo sentido, agiram<br />

as entidades negras de Salvador e do Estado<br />

da Bahia solicitando a inclusão da matéria na<br />

proposta curricular. Ambos os requerimentos<br />

fundamentaram-se nas raízes históricas, nas<br />

relações entre Brasil e África, no intercâmbio<br />

com vistas ao crescimento dos estudos afrobrasileiros,<br />

na necessidade de resguardar a memória<br />

do País e, em especial, da Bahia, na caracterização<br />

da identidade e da diferença do<br />

povo e da cultura baiana.<br />

Ao relatar essa experiência, vinte anos decorridos,<br />

como ex-secretário de Educação e<br />

Cultura do Estado da Bahia que homologou os<br />

atos e liderou a iniciativa, não é despercebido<br />

ressaltar as ricas e plúrimas manifestações dos<br />

afro-descendentes. A institucionalização da disciplina<br />

visou aproximar a escola pública, oficial,<br />

formal e regular, do seu envolvente contexto<br />

cultural. O objetivo da Secretaria de Educação<br />

era eminentemente pedagógico, precisamente,<br />

conscientizar-se do passado e das perspectivas<br />

do futuro recepcionando o portentoso background<br />

africano para formar pessoas mais ajustadas à<br />

sua cultura. Particularmente, para a Bahia o que<br />

interessa sobremodo é poder contar, pedagogicamente,<br />

com expressivo contingente negro que<br />

tanto marca as nossas manifestações religiosas<br />

e sociais.<br />

Encerramos a nossa participação no Seminário<br />

expondo o plano cronológico do processo<br />

de implantação. Primeiramente o CEE/BA recebeu,<br />

analisou e aprovou a inclusão da disciplina,<br />

conforme parecer do conselheiro monsenhor<br />

José Hamilton Almeida Barros. Ato contínuo,<br />

o secretário dirigiu-se ao Conselho das<br />

Entidades Negras da Bahia, comunicando a decisão<br />

do colegiado da Educação. Em segundo<br />

lugar, por sugestão do grupo de professores<br />

participantes, criaram-se a Assessoria de Estudos<br />

Africanos, junto a gabinete do secretário, e<br />

o Centro de Estudos Afro-Baianos, na UNEB.<br />

Uma etapa decisiva constituiu-se na realização<br />

do Curso Pós-Graduação em Especialização<br />

de Introdução aos Estudos de História e<br />

Culturas. Os documentos reunidos para o presente<br />

relato demonstram momentos significativos<br />

da inovação. Destacamos duas partes: em<br />

um primeiro momento, resumiremos a proposta<br />

de inclusão da disciplina e, em seguida, o Curso<br />

de Especialização voltado à formação de professores<br />

a fim de ministra-la.<br />

1 - PROPOSTA DE INCLUSÃO DA DIS-<br />

CIPLINA<br />

1.1 - As proposições do Centro de<br />

Estudos Afro-Orientais e das entidades<br />

negras<br />

O Conselho Estadual de Educação da Bahia<br />

(CEE/BA) recebeu a solicitação de inclusão da<br />

disciplina em 1º de agosto de <strong>19</strong>83, encaminhada<br />

pela diretora do Centro de Estudos Afro-<br />

Orientais da Universidade Federal da Bahia<br />

(CEAO), professora Yeda A. Pessoa de Castro.<br />

A direção do CEAO/UFBA tomou essa iniciativa<br />

como órgão executor do Programa de<br />

Cooperação Cultural Brasil-África argüindo as<br />

seguintes considerações:<br />

a) as raízes históricas do Brasil e especificamente<br />

da Bahia;<br />

b) a evolução histórica e as características étnico-demográficas<br />

da sociedade baiana;<br />

c) a densidade de componentes culturais africanos<br />

na composição da cultura baiana;<br />

d) a permeabilidade étnica e cultural da estrutura<br />

social da Bahia;<br />

e) o atual estágio das relações político-econômicas<br />

e culturais entre o Brasil e a África;<br />

f) as dimensões contemporâneas das relações<br />

interétnicas da cultura baiana;<br />

42 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003


Edivaldo Machado Boaventura<br />

g) a política da União desenvolvida através de<br />

programas de intercâmbio cultural, visando<br />

ao crescimento dos estudos afro-brasileiros;<br />

h) a necessidade de efetivamente resguardar a<br />

memória do País e do Estado da Bahia e firmar<br />

a caracterização da identidade do povo e da<br />

cultura baiana;<br />

i) a receptividade do professorado de 1º e 2º<br />

graus (ensino fundamental e médio) e do público<br />

em geral ao curso ministrado pelo Centro<br />

de Estudos Afro-Orientais, em convênio<br />

com a Fundação Ford, de “Introdução aos<br />

Estudos da História e das Culturas Africanas”,<br />

cabendo salientar que foi o primeiro curso<br />

desse teor oferecido no Brasil;<br />

j) a existência de pessoal habilitado no magistério<br />

público de 1º e 2º graus para desenvolver<br />

atividades de ensino e pesquisa no campo<br />

dos estudos africanos; e<br />

k) a existência de um convênio celebrado, em<br />

<strong>19</strong>74, entre a União, o Estado da Bahia, a Universidade<br />

Federal da Bahia e o Município de<br />

Salvador, para a execução de um Programa de<br />

Cooperação Cultural entre o Brasil e os Países<br />

Africanos para o Desenvolvimento de Estudos<br />

Afro-Brasileiros (CEAO, ofício N. 183,<br />

de 1º de agosto de <strong>19</strong>83).<br />

Por sua vez, referendando o pedido da direção<br />

do CEAO/UFBA, as entidades negras de<br />

Salvador e do Estado da Bahia reforçaram a<br />

inclusão da disciplina no currículo do sistema<br />

de ensino nos seguintes termos:<br />

1. a população de Salvador é constituída por<br />

um contingente majoritariamente de descendência<br />

africana;<br />

2. o Brasil é uma sociedade pluricultural, por isso<br />

é necessário que seja estudada nas escolas a<br />

História das três constituintes da nação brasileira;<br />

3. a ausência do estudo da História e da Cultura<br />

negra, nos currículos escolares, concorre para<br />

a falta de identidade cultural e conseqüentemente,<br />

para a inferiorização do povo negro e<br />

de seus descendentes no Brasil;<br />

4. existe grande receptividade e expectativa da<br />

comunidade a todos os cursos sobre Estudos<br />

Africanos que são oferecidos por iniciativa<br />

dos Movimentos Negros e da Universidade<br />

através do CEAO – Centro de Estudos<br />

Afro-Orientais da Universidade Federal da<br />

Bahia; e<br />

5. as relações político-econômica-culturais entre<br />

o Brasil e a África pressupõem um conhecimento<br />

mútuo da História e Cultura entre as<br />

nações brasileira e africana (OFÍCIO das entidades<br />

negras, 10 de março de <strong>19</strong>84).<br />

As entidades negras fazem referência ao ofício<br />

enviado pelo CEAO ao Conselho de Educação.<br />

Assinaram o documento as seguintes entidades<br />

associações: Sociedade Protetora dos<br />

Desvalidos; Movimento Negro Unificado-BA;<br />

Adé Dudo; Versos Negros; Grupo de Estudos<br />

Afro-Brasileiros (GEAB); Grupo Cultural “Os<br />

Negões”; Ilê-Aiyê; Olodum;Urunmilá;Grupo<br />

Negro do Garcia; Sociedade São Jorge do Engenho<br />

Velho; Núcleo Cultural “Niger-Okan”;<br />

Legião Rasta; Associação Centro Operário da<br />

Bahia. Ambas as reivindicações expressas nesses<br />

dois documentos foram encaminhadas à<br />

apreciação do Conselho Estadual de Educação,<br />

instância deliberativa e normativa competente<br />

para decidir sobre a recepção da nova matéria<br />

pedagógica.<br />

1.2 - Apreciação e aprovação dos<br />

requerimentos pelo Conselho Estadual<br />

de Educação da Bahia<br />

O Conselho apreciou a proposta, tendo o<br />

plenário aprovado a solicitação em 20 de maio<br />

de <strong>19</strong>85, conforme parecer do conselheiro monsenhor<br />

José Hamilton Almeida Barros. Participou<br />

da transmissão a Comissão de Currículos e<br />

Experiências Pedagógicas tendo o CEAO apresentado<br />

documentação suplementar (Processo<br />

CEE/BA Nº 253/<strong>19</strong>89).<br />

Analisando o parecer CEE/BA Nº 089/<strong>19</strong>85,<br />

constata-se que houve dupla fundamentação legal<br />

e cultural. A Lei 5692/71 que, modificada no<br />

que competente pela Lei 7044/82, regula os vários<br />

sistemas de ensino, define no caput do Art. 4º:<br />

Os currículos do ensino de 1º e 2º graus terão um<br />

núcleo comum, obrigatório em âmbito nacional e<br />

uma parte diversificada para atender conforme<br />

as necessidades e possibilidades concretas, às<br />

peculiaridades locais, aos planos dos estabelecimentos<br />

e às diferenças individuais dos alunos.<br />

Em seguida, no art. 5º se declara:<br />

a) as matérias relativas ao núcleo comum de cada<br />

grau de ensino serão fixadas pelo Conselho<br />

Federal de Educação;<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003<br />

43


Estudos africanos na escola baiana: relato de uma experiência<br />

b) as matérias que comporão a parte diversificada<br />

do currículo de cada estabelecimento de ensino<br />

serão escolhidas com base em relação<br />

elaborada pelos Conselhos de Educação, para<br />

os respectivos sistemas de ensino; e<br />

c) o estabelecimento de ensino poderá incluir<br />

estudos não decorrentes de matérias relacionadas<br />

de acordo com a alínea anterior.<br />

Assim se constata que a disciplina proposta<br />

pelo CEAO – “Introdução aos Estudos Africanos”<br />

–, como disciplina para a parte diversificada<br />

do currículo, tem absoluto respaldo na lei<br />

em vigor: pode ela compor o elenco de disciplinas<br />

que venham a ser indicadas pelo Conselho<br />

Estadual de Educação, como acréscimo ao que<br />

é prescrito na Resolução CEE-127/<strong>19</strong>72 como<br />

também pode compor os currículos de 1º e 2º<br />

graus das escolas em decorrência de solicitação<br />

feita pelos próprios estabelecimentos de<br />

ensino.<br />

Após o devido enquadramento da disciplina<br />

na parte diversificada do currículo, conforme a<br />

legislação em vigor, o relator aduziu as considerações<br />

de ordem cultural, sintetizando as razões<br />

apresentadas tanto pelo CEAO como pelas<br />

entidades negras:<br />

a) no Brasil, notadamente na Bahia, existe na<br />

história de sua formação étnica como na realidade<br />

atual de sua cultura, a presença<br />

inconteste e plurivalente do negro: o negro é<br />

parte integrante da própria realidade do “ser<br />

homem”;<br />

b) existe, nos diversos setores culturais do País,<br />

considerados aqui os níveis sociais, culturais<br />

e etários, um interesse, cada vez maior pela<br />

compreensão do homem brasileiro e do seu<br />

modo de ser e de agir, desde as suas origens;<br />

c) já existem, dentro dos próprios quadros do<br />

magistério das escolas oficiais de e 1º e 2º<br />

graus, pessoas, não apenas dispostas, mas<br />

também habilitadas pelo próprio CEAO para<br />

ministrarem as aulas da disciplina Introdução<br />

aos Estudos Africanos;<br />

d) a proposta da disciplina a ser oferecida a alunos<br />

das 8ª séries do 1º grau, objetiva oferecer<br />

a tantos alunos, muitos dos quais encontram<br />

na 8ª série do 1º grau, em razão da lastimável<br />

condição educacional do sistema brasileiro,<br />

o ponto final dos seus estudos escolares, uma<br />

oportunidade de melhor entenderem a formação<br />

psicológica, humana, social numa palavra<br />

cultural do povo brasileiro.<br />

A operacionalização deverá ser discutida pelo<br />

órgão competente da SEC, com o órgão supervisor<br />

da disciplina, no caso, o CEAO e as escolas<br />

interessadas na implantação, a fim de que se<br />

faça de maneira gradual, em vista ao objetivo a<br />

ser alcançado (CONSELHO, Parecer, CEE/BA Nº<br />

089/85).<br />

Em face dessa fundamentação, a conclusão<br />

do plenário foi pela inclusão da disciplina,<br />

devendo ser oferecida tanto na escola de primeiro<br />

como na de segundo graus, particular e<br />

pública. A matéria passou a integrar a parte<br />

diversificada dos currículos dos respectivos<br />

graus de ensino, sem necessidade de aprovação<br />

prévia do Conselho de Educação. Eis os<br />

termos da conclusão:<br />

De tudo que se examinou, pode-se concluir que<br />

a introdução nos currículos das escolas do Sistema<br />

Educacional Baiano, da disciplina Introdução<br />

aos Estudos Africanos atende a uma expectativa<br />

de grande parte da população interessada<br />

na compreensão do ser brasileiro e baiano; para<br />

tanto, acresce o fato de que a contribuição do<br />

CEAO, seja na preparação como na assistência<br />

à execução da programação que se pretende, e<br />

que se acha constante do processo, atende perfeitamente<br />

ao que se espera da introdução da<br />

disciplina nas escolas.<br />

Pelo exposto, somos de parecer que não existe<br />

impedimento de ordem legal para que a disciplina<br />

Introdução aos Estudos Africanos possa ser<br />

oferecida, a nível de 1º e 2º graus, por escolas<br />

particulares ou da rede oficial, que assim desejem<br />

fazê-lo. A referida disciplina pode constar<br />

da parte diversificada dos currículos dos supra<br />

citados graus de ensino, sem que dependa de<br />

prévia aprovação por parte deste Conselho<br />

(CONSELHO, parecer CEE/BA, N. 089/85).<br />

1.3 - Implantação da disciplina<br />

Aprovada a inclusão da disciplina, o secretário<br />

de Educação responde ao CEAO e ao<br />

Conselho de Entidades Negras da Bahia e os<br />

convida para a homologação da resolução do<br />

Conselho de Educação. Pela Portaria Nº 6068,<br />

de 25 de abril de <strong>19</strong>85, determina que o então<br />

Departamento de Ensino de 1º e 2º graus<br />

44 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003


Edivaldo Machado Boaventura<br />

(DEPS/SEC) tome providência para incluir a<br />

disciplina na parte diversificada do currículo na<br />

rede estadual de ensino.<br />

Reuniões foram realizadas com as entidades<br />

e os órgãos envolvidos para discutir a implantação<br />

da disciplina, bem assim o curso de<br />

formação de professores. De pronto, o Colégio<br />

Estadual Governador Lomanto Júnior a inseriu<br />

no seu currículo. O clima favorável de aceitação<br />

da inovação fez-se sentir.<br />

Em 20 de março de <strong>19</strong>86 (Portaria Nº 4064,<br />

de <strong>19</strong> de março de <strong>19</strong>86) é criada a Assessoria<br />

de Estudos Africanos, no âmbito do gabinete<br />

do secretário de Educação, composta dos professores<br />

Aracy Santana Santos, Edson Trenzilbo<br />

França, Eugênia Lúcia Vianna Nery do Espírito<br />

Santo, Newton Oliveira Nascimento, Yolanda<br />

Paredella Ferreira da Silva (Portaria Nº 4367,<br />

de 25 de março de <strong>19</strong>86). A professora Eugênia<br />

Lúcia é designada para coordená-la (Portaria<br />

Nº 5402, de 15 de abril de <strong>19</strong>86).<br />

A participação da Universidade do Estado<br />

da Bahia (UNEB) evidencia-se durante todo<br />

esse processo de implantação. Assim, em 15<br />

de maio de <strong>19</strong>86, cria-se o Centro de Estudos<br />

Afro-Baianos (CEAB), na UNEB (Portaria Nº<br />

6894, de 15 de maio de <strong>19</strong>86).<br />

2 - CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO PARA<br />

O ENSINO DE ESTUDOS AFRICANOS<br />

2.1 - Justificativa<br />

Objetivando capacitar professores para o<br />

ensino de nova disciplina, programou-se o Curso<br />

de Especialização de Introdução aos Estudos<br />

de História e de Culturas Africanas.<br />

Dessa maneira, o Centro de Estudos Afro-<br />

Orientais ofereceu, em convênio com a SEC/<br />

UNEB, o curso de Introdução aos Estudos da<br />

História e das Culturas Africanas, visando à<br />

habilitação de docentes da rede estadual de<br />

ensino na disciplina Introdução aos Estudos<br />

Africanos, como fora instituído pelo Conselho<br />

de Educação. O referido curso, a nível de especialização,<br />

foi integrado em 420 horas, com<br />

carga-horária semanal de 18 (dezoito) horasaulas,<br />

no período de maio a dezembro do ano<br />

de <strong>19</strong>86, tendo como pré-requisito a licenciatura<br />

plena na área de Ciências Humanas – História,<br />

Geografia ou Ciências Sociais. É do interesse<br />

da Secretaria que as unidades indicassem<br />

dois docentes com a qualificação exigida,<br />

para efetuarem inscrição no Centro de Estudos<br />

Afro-Orientais.<br />

A receptividade ao curso Introdução aos<br />

Estudos da História e das Culturas Africanas,<br />

ministrado pelo Centro de Estudos Afro-Orientais<br />

em convênio com a Fundação Ford, foi<br />

indicativa da validade de novos oferecimentos<br />

do curso. A experiência foi demonstrativa de<br />

como, por vários caminhos, tem sido buscada a<br />

identidade cultural brasileira.<br />

Por outro lado, a decisão do Conselho Estadual<br />

de Educação, homologada pela Portaria Nº<br />

6068 de 11 de junho de <strong>19</strong>85 pelo Secretário de<br />

Educação e Cultura do Estado incluindo a disciplina<br />

Introdução aos Estudos Africanos na<br />

parte diversificada dos currículos de 1º e 2º<br />

graus da Rede Estadual de Ensino, levou o<br />

CEAO a envidar novos esforços no sentido de<br />

habilitar recursos humanos necessários à efetiva<br />

implementação da disciplina no sistema de<br />

ensino.<br />

Objetivando cumprir seu papel de órgão executor<br />

do Programa de Cooperação Cultural<br />

entre o Brasil e os Países Africanos e para o<br />

Desenvolvimento dos Estudos Afro-Brasileiros<br />

e, ao mesmo tempo, atender as necessidades<br />

da rede escolar estadual na formação de magistério<br />

habilitado para a regência da disciplina<br />

Introdução aos Estudos Africanos, o CEAO<br />

como parte do seu programa de trabalho para o<br />

ano de <strong>19</strong>86 tem como uma de suas prioridades<br />

o oferecimento desse curso de especialização.<br />

2.2 - Objetivos<br />

O curso de Especialização teve como objetivos:<br />

1. fornecer uma visão geral e atualizada dos<br />

povos e países africanos para professores<br />

de 1º e 2º graus carentes desse tipo de informação<br />

por deficiência dos próprios currículos<br />

oficiais;<br />

2. contribuir para uma compreensão global da<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003<br />

45


Estudos africanos na escola baiana: relato de uma experiência<br />

QUADRO 1 - Curso de Especialização<br />

Curso - Introdução aos Estudos da História e das Culturas Africanas<br />

Especificação – Especialização<br />

Objetivo - Habilitar professores da rede estadual de ensino para o exercício da disciplina<br />

Introdução aos Estudos Africanos nas escolas de 1º e 2º graus.<br />

Integralização - 420 horas<br />

– Conteúdos específicos - Antropologia, História, Geografia, 360 horas<br />

– Metodologia e Prática de Ensino, 60 horas.<br />

Módulo - 35 vagas<br />

Clientela - professores da rede estadual de ensino<br />

Requisito - Licenciatura plena na área de Ciências Humanas (25 vagas) - portadores<br />

de diploma de nível superior (10 vagas)<br />

Avaliação - No processo com observância de freqüência e aproveitamento<br />

Periodização - <strong>19</strong>86.1 abril e junho / <strong>19</strong>86.2 – julho a dezembro<br />

Descrição - O curso dispôs de três disciplinas de conteúdo específico – Antropologia,<br />

História e Geografia – que obedeceram ao planejamento comum, de modo que o caráter<br />

interdisciplinar permitiu uma compreensão global da temática em estudo.<br />

Complementou a parte específica, a carga-horária de Metodologia e Prática de Ensino<br />

que objetiva, basicamente, a elaboração de programas, material instrucional e propostas<br />

didáticas adequadas à disciplina dos níveis de 1º e 2º graus. Teve como organismos<br />

envolvidos UFBA/CEAO/SEC/UNEB.<br />

Fonte: BOAVENTURA, Edivaldo M. Tempos construtivos. Salvador: Arpuador, <strong>19</strong>87, p.61-72.<br />

dinâmica das culturas negro-aficanas, tendo<br />

em vista o maior entendimento do papel<br />

por elas desempenhado na formação da cultura<br />

brasileira;<br />

3. despertar o interesse da comunidade baiana,<br />

através desses professores do conhecimento<br />

da realidade africana aqui proposta;<br />

4. habilitar esses professores para atender as<br />

necessidades de regência da disciplina Introdução<br />

aos Estudos Africanos incluída nos<br />

currículos das escolas de 1º e 2º graus da<br />

rede estadual de ensino; e<br />

5. contribuir para um efetivo resguardo da<br />

memória do Brasil e da Bahia e, para firmar<br />

a característica da identidade do povo e da<br />

cultura baiana.<br />

2.3 - Caracterização e clientela<br />

Visando ao atendimento aos objetivos propostos,<br />

o CEAO ofereceu dois cursos em níveis<br />

diferenciados de especificação.<br />

Especialização, integralizado em 420 (quatrocentos<br />

e vinte) horas, para a habilitação de<br />

docentes da rede estadual na disciplina Introdução<br />

aos Estudos Africanos. (Vide Quadro 1<br />

– Curso de Especialização).<br />

Extensão, integralizado em 120 (cento e vinte)<br />

horas, destinado à comunidade e enquadrado<br />

nas proposições da Educação Continuada,<br />

com possibilidade de oferecimento de mais de<br />

uma turma no decorrer do ano letivo. (Vide<br />

Quadro 2 – Curso de Extensão).<br />

2.4 - Organismos envolvidos<br />

O termo de convênio celebrado, em <strong>19</strong>74,<br />

para a execução de um programa de Cooperação<br />

Cultural entre o Brasil e os Países Africanos<br />

e para o Desenvolvimento de Estudos Afro-<br />

Brasileiros tem levado o CEAO, como seu órgão<br />

executor, a procurar envolver em suas atividades<br />

todos os organismos signatários. Com<br />

46 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003


Edivaldo Machado Boaventura<br />

QUADRO 2 - Curso de Extensão<br />

Curso - Introdução aos Estudos da História e das Culturas Africanas.<br />

Especificação - Extensão<br />

Objetivos - Atender às solicitações das entidades negras da Bahia, visando à qualificação<br />

de monitores para atuarem em grupos comunitários, associações e “escolas<br />

livres”.<br />

– Contribuir para uma compreensão global da dinâmica das culturas negro-africanos,<br />

tendo em vista o maior entendimento do papel por elas desempenhado na formação da<br />

cultura brasileira.<br />

Integralização - 120 horas<br />

Módulo - 20 vagas<br />

Clientela - entidades negras/comunidade<br />

Critério de avaliação – freqüência<br />

Periodização - Turma 1 – abril/maio / Tuma 2 – junho/agosto / Turma 3 – agosto/<br />

outubro / Turma 4 – outubro/setembro<br />

Descrição – O curso será disposto em três disciplinas de conteúdo específico - Antropologia,<br />

História e Geografia – que obedecem a um planejamento comum de modo que<br />

o caráter interdisciplinar permita uma compreensão global da temática em estudo. Paralelas<br />

aos conteúdos específicos do curso, serão desenvolvidas atividades complementares<br />

sob a forma de seminários, palestras, debates, versando sobre temática relacionada<br />

ao curso ou sugerida, a partir da realidade e dos interesses da clientela.<br />

Recursos<br />

Humanos – O projeto será desenvolvido com a atuação de uma equipe supervisionada<br />

pela direção do CEAO, contando com a participação de elementos dos vários<br />

organismos envolvidos.<br />

Materiais - Além do material de expediente imprescindível às atividades propostas<br />

nesse projeto, cumpre observar, que as dificuldades bibliográficas em relação ao<br />

tema, necessariamente levarão a um esforço de aquisição de material instrucional e<br />

recursos áudio visuais para o êxito do processo ensino-aprendizagem.<br />

Previsão orçamentária - As atividades previstas nesse projeto, (Especialização e<br />

Extensão) implicam em previsão orçamentária no montante de Cr$ 500.000.000 (quinhentos<br />

milhões de cruzeiros), assim distribuídos:<br />

Pagamento de docentes - Cr$ 300.000,000<br />

Material de expediente - Cr$ 100.000,000<br />

Eventuais 25% – Cr$ 100.000,00<br />

Total – Cr$ 500.000,00<br />

Fonte: BOAVENTURA, Edivaldo M. Tempos construtivos. Salvador: Arpuador, <strong>19</strong>87, p.61-72.<br />

relação a esse projeto, a UFBA, através do<br />

CEAO, celebrou termos aditivos com a SEC<br />

através da Universidade do Estado da Bahia e<br />

o Departamento de Educação Continuada. O<br />

CEAO dirigiu-se ao ministro da Cultura solicitando<br />

a complementação financeira (OFÍCIO,<br />

Nº 25, de 28 de janeiro de <strong>19</strong>86).<br />

2.5 - Abertura do curso<br />

Em 12 de maio de <strong>19</strong>86, na aula inaugural<br />

na Universidade do Estado da Bahia, tivemos a<br />

oportunidade de destacar alguns aspectos na<br />

capacitação de professores para o ensino dos<br />

Estudos Africanos (BOAVENTURA, <strong>19</strong>87,<br />

p.61-66). Seguem alguns excertos do pronun-<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003<br />

47


Estudos africanos na escola baiana: relato de uma experiência<br />

ciamento na aula de abertura do Curso de Especialização.<br />

Inicialmente, reconhece-se a exigência do<br />

resgate de valores sócio-culturais negados ou<br />

esquecidos nos caminhos da história de nosso<br />

país, ao tempo em que no trabalho da educação<br />

concretiza-se um passo na configuração de um<br />

Brasil como efetivamente ele é, multirracial e<br />

pluricultural. Multiplicidade que encontramos em<br />

todos os segmentos, mormente na Bahia.<br />

A abertura oficial de um curso de introdução<br />

aos estudos da História e das Culturas Africanas<br />

assinala não uma inovação em termos<br />

pedagógicos, mas, em essência, um indicador<br />

de uma modificação de comportamento e de<br />

mentalidade, que, como sabemos, é uma categoria<br />

cuja mudança demanda um tempo estruturalmente<br />

de longa duração (BRANDÃO,<br />

2002, p. <strong>19</strong>).<br />

Resultam o curso e a disciplina da redução<br />

local e temporal de um processo que para evitar<br />

alongamentos maiores, situaremos a partir<br />

dos anos 20, tendo como alguns pontos de referência<br />

o Renascimento Negro, nos Estados<br />

Unidos, de <strong>19</strong>20 a <strong>19</strong>40, com Dubóis e Hugles<br />

à frente, enfatizando a crença na igualdade entre<br />

as raças e na história do negro. O negro<br />

aceita-se, assume a sua cor negada, busca a<br />

afirmação cultural, moral, física e psíquica. O<br />

médico Price Mars, haitiano, reconhece oficialmente,<br />

nas origens negras e africanas da<br />

cultura do Haiti, uma maneira de devolver a memória<br />

ao povo negro. Os movimentos da<br />

negritude na América e na Europa despertaram<br />

a memória e a dimensão histórica tiradas<br />

aos negros.<br />

A revista Étudien Noir, criada na França,<br />

congregava estudantes negros em Paris sem<br />

distinção de origem, apontando como meio de<br />

libertação do negro a volta às raízes africanas.<br />

Destacam-se Aimé Césaire, martiniquense,<br />

Leon Daamas, guianense, e o próprio Leopold<br />

Sedar Senghor, senegalês.<br />

Esses e outros movimentos referidos puderam<br />

determinar os objetivos da negritude: a) o<br />

desafio cultural do mundo negro, em uma palavra,<br />

a identidade; b) o protesto contra a ordem<br />

colonial; c) a emancipação política dos povos<br />

africanos; d) a construção de uma civilização<br />

do universal, como queria René Maheu, diretor-geral<br />

da Unesco, encontro de todas as outras,<br />

concretas e particulares.<br />

Cheik Anta Diop fala na valorização do histórico,<br />

do lingüístico e do psicológico. Assim,<br />

quer esteja o negro na África ou em diáspora,<br />

precisa sempre do estudo da sua história para<br />

encontrar o passado ancestral e reconquistar o<br />

seu lugar no mundo moderno.<br />

Ainda Aimé Césaire concebe a negritude<br />

como identidade, fidelidade e solidariedade:<br />

identidade, ao assumir-se como negro; fidelidade,<br />

a ligação com a origem ancestral, o conhecimento<br />

da herança africana; e solidariedade<br />

que é a civilização do universal. Insiste o autor<br />

na construção de uma nova sociedade, onde<br />

todos os mortais poderão encontrar o seu lugar.<br />

Para a Bahia, é sumamente significativa a<br />

criação da disciplina na parte diversificada do<br />

currículo das suas escolas. É um ato que consideramos<br />

da maior importância cultural. Ajustase<br />

a educação à cultura. O currículo das escolas<br />

baianas passa a refletir ou a expressar um<br />

dos componentes mais ricos e poderosos do<br />

background da nossa terra.<br />

A Secretaria de Estado da Educação e Cultura<br />

vem, desde o início da nossa gestão, em<br />

<strong>19</strong>83, atuando no sentido de que o pedido de<br />

criação da disciplina sobre os estudos africanos<br />

por várias entidades negras e do Centro de<br />

Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade<br />

Federal da Bahia (UFBA) fosse aceito.<br />

Enfatiza-se, por um lado, o acerto da decisão<br />

do Conselhos de Educação, e por outro, as<br />

medidas que a Secretaria já vem tomando para<br />

operacionalizar esta determinação. Dentre elas,<br />

caberá a Colégios como o Lomanto Júnior, em<br />

Itapuã, Newton Sucupira, em Mussurunga, e<br />

o Duque de Caxias, na Liberdade, tomarem a<br />

iniciativa de fazer constar a disciplina nos seus<br />

currículos.<br />

Os problemas que se colocam são os dos<br />

objetivos, dos conteúdos e das estratégias. Definir<br />

as suas metas talvez seja o problema mais<br />

difícil, pois elas implicam na renovação dentro<br />

do atual currículo, com impacto marcante nos<br />

Estudos Sociais. Talvez seja esse o objetivo<br />

48 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003


Edivaldo Machado Boaventura<br />

maior. A consciência da negritude será o objetivo<br />

mais desejado pelos grupos militantes. A propósito,<br />

Kabengele Munanga (<strong>19</strong>86, p.231) observa<br />

no seu Negritude, usos e sentidos:<br />

É através de educação que a herança social de<br />

um povo é legada ás gerações futuras e inscrita<br />

na história (...) Ora, a maior parte das crianças<br />

está nas ruas. E aquela que tem a oportunidade<br />

de ser acolhida não se salva: a história que lhe<br />

ensinam é outra; os ancestrais africanos são<br />

substituídos por gauleses e francos de cabelos<br />

loiros e olhos azuis; os livros estudados lhe falam<br />

de um mundo totalmente estranho, de neve<br />

e do inverno que viu da história e da geografia<br />

das metrópoles, o mestre e a escola representam<br />

um universo muito diferente daquele que sempre<br />

a circundou.<br />

Criticamente concebida, a disciplina Estudos<br />

Africanos implicará numa revisão da História,<br />

da Geografia, da Organização Social e<br />

Política Brasileira, com base nas revisões e nas<br />

novas dimensões antropológicas.<br />

Quanto ao conteúdo, trabalha-se a História<br />

e Cultura Africanas em torno de três áreas específicas<br />

– Antropologia, História e Geografia.<br />

Trata-se, portanto, de matéria interdisciplinar,<br />

de caráter revisionista e criativo. A História da<br />

África, das relações afro-brasileiras, da diáspora<br />

negra, do emprego da força negra de trabalho<br />

no processo produtivo brasileiro, quer na Colônia,<br />

quer no Império, ou na atualidade, tudo isso<br />

mostrará novas perspectivas que trarão impacto<br />

novo à educação.<br />

Além dos objetivos e conteúdos, há de se<br />

pensar concretamente nas estratégias. Primeiramente,<br />

na sua posição no currículo. Duas alternativas<br />

bem claras se esboçam: uma disciplina<br />

nova, como foi a opção da Bahia, ou conteúdos<br />

afro-brasileiros distribuídos nas atuais<br />

disciplinas da área de Estudos Sociais. Consideramos<br />

que a unidade de conteúdos concentrada<br />

em uma disciplina será como uma cunha<br />

a renovar, a revisar, a reestruturar as demais<br />

disciplinas da área.<br />

Ao concluir a aula inaugural do Curso de<br />

Especialização, resumimos os seguintes pontos:<br />

– São diversos os pontos de vista que encaram<br />

o problema do negro e a educação. O<br />

que se pretende com os Estudos Africanos<br />

é o seu papel pedagógico mais profundo, a<br />

longo prazo, mais formativo do que informativo.<br />

– Criar a disciplina foi um passo. Estabelecer<br />

o curso para preparar os professores foi<br />

outro, tão importante quanto o primeiro.<br />

– A densidade cultural baiana e os pressupostos<br />

em que o processo de conscientização<br />

da negritude foram aqui lançados servem de<br />

base para o curso que ora se inicia.<br />

– Características étnico-demográficas da nossa<br />

sociedade e a força dos elementos culturais<br />

africanos na composição da cultura<br />

baiana fundamentam a nossa decisão.<br />

– É preciso firmar a caracterização da identidade<br />

do povo e da cultura de nosso Estado.<br />

E o presente curso vai ajudar esse longo<br />

processo de afirmação. Não há dúvidas, pois<br />

começamos com a ajuda valiosa do CEAO, da<br />

UNEB, da UFBA e da Secretaria da Educação<br />

e Cultura.<br />

3 - APRECIAÇÃO E CONCLUSÃO<br />

Recorridos vinte anos da tentativa de inclusão<br />

da disciplina Introdução aos Estudos Africanos,<br />

no currículo da escola fundamental e<br />

média baiana, o presidente da República sancionou,<br />

em 9 de janeiro de 2003, a Lei nº 10.639,<br />

que torna obrigatório o ensino da história e da<br />

cultura afro-brasileira nas escolas fundamentais<br />

e médias. Conforme o novo dispositivo legal,<br />

deverão ser contemplados o estudo da história<br />

não somente da África, como também dos<br />

africanos, da luta dos negros no Brasil, bem<br />

assim a cultura afro-brasileira gerada desses<br />

embates, na formação da sociedade nacional,<br />

caracterizadamente, mestiça e tropical. Objetiva,<br />

assim, resgatar a “contribuição do povo negro<br />

nas áreas social, econômica e política pertinentes<br />

à história do Brasil”. Os conteúdos referentes<br />

à história da cultura afro-brasileira serão<br />

ministrados no âmbito de todo o currículo<br />

escolar, em especial, nas áreas de educação<br />

artística e de literatura e história brasileiras<br />

(QUEIROZ, 2002, p.17). Alterando a atual Lei<br />

de Diretrizes e Bases (LDB), passa a vigorar<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003<br />

49


Estudos africanos na escola baiana: relato de uma experiência<br />

acrescida dos artigos 26-A e 79-B. Este determina<br />

que o calendário escolar incluirá o dia 20<br />

de novembro como o Dia Nacional da Consciência<br />

Negra. É um passo, uma conquista e uma<br />

mudança nas relações educacionais que precisam<br />

ser efetivadas em programas, em cursos e<br />

na preparação de professores.<br />

O que poderá ser feito pelo ensino da cultura<br />

negra para a conscientização das pessoas<br />

quanto ao passado e às perspectivas do futuro?<br />

No caso da Bahia, que conta com um contingente<br />

expressivo de negritude, estamos ao lado<br />

de suas manifestações religiosas, educativas e<br />

sociais, considerando que a problemática negra<br />

tem um fundo religioso marcante.<br />

Em plano nacional, inova-se com a inclusão<br />

da história e da cultura afro-brasileira como<br />

matérias por força de lei. Cabem-nos, no âmbito<br />

estadual e municipal, o debate, a discussão, o<br />

planejamento e o preparo de professores para<br />

o ensino da cultura e da história afro-brasileira.<br />

(Anexo: cronologia da disciplina, Eugênia Lúcia<br />

Viana Nery).<br />

Cronologia da disciplina – Eugênia Lúcia<br />

Viana Nery<br />

Cronologia da disciplina Introdução aos<br />

Estudos Africanos no currículo das escolas de<br />

1º e 2º graus do Estado da Bahia.<br />

<strong>19</strong>78 – Movimento Negro Unificado – faz<br />

solicitações ao MEC no sentido da inclusão de<br />

História da África nos currículos de ensino da<br />

escola brasileira.<br />

<strong>19</strong>82 – Centro de Estudos Afro-Orientais em<br />

convênio com a Fundação Ford oferece para<br />

professores de 1º e 2º graus o curso de Introdução<br />

aos Estudos da História e das Culturas Africanas<br />

(primeiro oferecido no Brasil).<br />

<strong>19</strong>83 – Exposições de motivos do Centro de<br />

Estudos Afro-Orientais ao Conselho Estadual<br />

de Educação justificando a solicitação quanto a<br />

incluir a disciplina Introdução aos Estudos Africanos<br />

no currículo de 1º e 2º graus da rede estadual<br />

de ensino.<br />

<strong>19</strong>84 – Entidades negras da Bahia, atendendo<br />

à solicitação do MNU (Movimento Negro Unido)<br />

assinaram um documento solicitando ao<br />

Secretário de Educação do Estado da Bahia a<br />

inclusão nos currículos de 1º e 2º graus da disciplina<br />

Introdução aos Estudos Africanos, ao<br />

tempo em que referendavam igual solicitação<br />

do Centro de Estudos Afro-Orientais feita em<br />

<strong>19</strong>83 (NEGO Nº 9).<br />

<strong>19</strong>85 – Aprovação pelo plenário do Conselho<br />

Estadual de Educação do parecer do padre<br />

José Hamilton Almeida Barros favorável à inclusão<br />

da disciplina na parte diversificada do<br />

currículo da escola de 1º e 2º graus, (indicação<br />

do CEAO como órgão de habilitação dos docentes<br />

para a disciplina).<br />

– Portaria nº 6.068/85 do Secretário da Educação<br />

e Cultura determinando a inclusão da<br />

disciplina.<br />

– Reunião com representação da SEC, entidades<br />

negras e CEAO para discutir a implantação<br />

da disciplina e o curso de habilitação<br />

para professores.<br />

– Colégio Estadual Governador Lomanto Júnior<br />

inclui oficialmente no currículo a disciplina<br />

Introdução aos Estudos Africanos.<br />

<strong>19</strong>86 – Portaria nº 4.064/86 do Secretário<br />

da Educação e Cultura cria a Assessoria de Estudos<br />

Africanos no âmbito do GASEC – Gabinete<br />

do Secretário.<br />

– Portaria nº 4.367/86 do Secretário da Educação<br />

e Cultura designando os professores<br />

Arany Santana Santos, Edson Transillo França,<br />

Eugênia Lúcia Viana Nery do Espírito<br />

Santo, Newton de Oliveira Nascimento e<br />

Yolanda Paradella Ferreira da Silva para comporem<br />

a Assessoria de Estudos Africanos.<br />

– Portaria do Secretário da Educação e Cultura<br />

designando a profa. Eugênia Lúcia<br />

Viana Nery do Espírito Santo para exercer<br />

a função de coordenadora da Assessoria de<br />

Estudos Africanos.<br />

– Gestões finais entre SEC, CEAO, UNEB<br />

e entidades negras para operacionalizar o<br />

curso de Introdução aos Estudos da História<br />

e das Culturas Africanas.<br />

– Aula inaugural do curso de Introdução aos<br />

Estudos da História e das Culturas Africanas<br />

proferida pelo Secretário de Educação<br />

e Cultura, professor Edivaldo Machado<br />

Boaventura.<br />

50 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003


Edivaldo Machado Boaventura<br />

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SEC, <strong>19</strong>86.<br />

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Educação e os afro-brasileiros: trajetórias, identidades e alternativas.<br />

Salvador: Novos Toques, <strong>19</strong>97. (A Cor da Bahia – Programa de Pesquisa e Formação sobre Relações<br />

Raciais, Cultura e Identidade Negra na Bahia).<br />

Recebido em 30.05.03<br />

Aprovado em <strong>19</strong>.08.03<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 41-51, jan./jun., 2003<br />

51


Pablo Heredia<br />

BIOLOGÍA DEL MONSTRUO<br />

La identidad del Otro en el positivismo del Cono Sur<br />

RESUMEN<br />

Pablo Heredia *<br />

Este estudio aborda el pensamiento del positivismo latinoamericano, con<br />

respecto a las variadas pero homogéneas construcciones identitarias del<br />

Otro étnico americano. Para los intelectuales positivistas, entender lo<br />

Otro consistía en “penetrar en la ipsidad y en la alteridad” para<br />

incorporarlo al horizonte de comprensión de la cultura europea en constante<br />

expansión. El Otro étnico fue configurado en el imaginario de las<br />

clases dirigentes como un “monstruo” que había que definir, catalogar y<br />

dominar. El mestizo era para ellos el monstruo inmediato, el que acosaba<br />

y subvertía los valores éticos y estéticos (y ocultamente económicos:<br />

hecho que dichos intelectuales obviaron interesadamente) del poder.<br />

Cuando el Otro es la Otredad sin más (completamente diferente y<br />

además habitante de otro espacio territorial), el problema para el Poder<br />

de la oligarquía no es crítico; pero cuando ese Otro está emigrando<br />

hacia la ipsidad, ésta corre el riesgo de esfumarse y “pervertirse” en la<br />

Otredad. Se trató, en suma, de interpretar (construir) y denominar al<br />

Otro para colonizarlo, y por ende, también, para caracterizarlo, tipificarlo,<br />

con el único fin de “diferenciarlo”.<br />

Palabras claves: “Monstruo” – Identidad étnica – Otredad – Mismidad<br />

– Ipsidad – Colonizar – Ética - Estética<br />

RESUMO<br />

BIOLOGIA DO MONSTRO - A identidade do Outro no positivismo<br />

do Cone Sul<br />

Este estudo aborda o pensamento do positivismo latino-americano em<br />

relação às construções da identidade do Outro étnico americano. Para<br />

os intelectuais positivistas, entender o Outro consistia em “penetrar na<br />

Ipsidade e na alteridade” para incorporá-los ao horizonte de compreensão<br />

da cultura européia em constante expansão. O Outro étnico foi<br />

configurado no imaginário das classes dirigentes como um “monstro”<br />

que tinha que ser definido, catalogado e dominado. Para elas o mestiço<br />

era o monstro imediato, o que acossava e subvertia os valores éticos e<br />

estéticos (e ocultamente econômicos: fato que ditos intelectuais aceitaram<br />

interessadamente) do poder. Quando o Outro é a Outridade sem<br />

*<br />

Profesor de Literatura Argentina II, en la Facultad de Filosofía y Humanidades, Universidad Nacional de<br />

Córdoba. Enderezo: Manuel Corvalán 482, Bº San Salvador, Córdoba-Capital. Rep. Argentina. E-mail:<br />

pheredia@ffyh.unc.edu.ar<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003<br />

53


Biología del monstruo: la identidad del otro en el positivismo del Cono Sur<br />

mais (bem diferente e, mais ainda, habitante do outro espaço territorial), o<br />

problema para o Poder da oligarquia não é crítico; mas quando esse Outro<br />

está emigrando à ipsidade, este corre o risco de se esfumar e “perverter”<br />

na Outridade. Trata-se, em suma, de interpretar (construir) e denominar<br />

ao Outro para colonizar-lhe e, por conseqüência, também, para caracterizar-lhe<br />

e tipificar-lhe, com o único fim de “diferenciar-lhe”.<br />

Palavras-chave: “Monstro” – Identidade étnica – Outridade – Mesmidade<br />

– Ipsidad – Colonizar – Ética - Estética<br />

ABSTRACT<br />

BIOLOGY OF THE MONSTER: THE IDENTITY OF THE<br />

OTHER IN THE POSITIVISM OF THE SOUTH CONE<br />

This study approaches the thought of the Latin-American positivism<br />

concerning the constructions of the identity of the American ethnic Other.<br />

For the positivist intellectuals, understanding the Other consisted in<br />

“penetrating the Ipsiness and the alterness” to incorporate them to the<br />

horizon of the understanding of the European culture in constant<br />

expansion. The ethnic Other was configured in the imaginary of the<br />

directing classes as a “monster” that had to be defined, catalogued and<br />

dominated. For them the mixed race was the immediate monster, the<br />

one who cornered and subverted the ethic and aesthetic values (and<br />

occultly economical: fact that so-called intellectuals accepted interestedly)<br />

of the power. When the Other is the Otherness with no further (very<br />

different and, moreover, inhabitant of the other territorial space), the<br />

problem for the Power of the oligarchy is not critical; but when this<br />

Other is emigrating to the ipsiness, he takes the risk of coaling himself<br />

and “perverting” in the Otherness. Inshort, it is about interpreting<br />

(constructing) and denominating the Other to colonize him and, as a<br />

consequence, also, to characterize him and typify him, with the only<br />

objective of “differentiating” him.<br />

Key words: “Monster” – Ethnic Identity – Otherness – Sameness –<br />

Ipsiness – Colonize – Ethics – Aesthetic<br />

¡Y todo barajado, revuelto, yuxtapuesto sin soldarse,<br />

formando un guisado de cosas de Asia, de África,<br />

de Europa, de América! ¡Qué manjar más indigesto<br />

para los historiadores, los literatos, los críticos,<br />

los antropólogos! (...) ...sobre el porvenir de ese caos<br />

de luces y tinieblas, duda el mismo Dios.<br />

(Carlos O. Bunge)<br />

Yo le aseguro a su ilustrísima que en lo que se refiere<br />

a animales de Indias nada puede ser creído ni despachado<br />

tampoco sin mejor argumento. Se diría que el día de su<br />

creación, al Señor le temblaba un poco el pulso.<br />

(Antonio de la Huerte)<br />

Todo lo que nace del hombre [del indio] es pura ficción.<br />

La condición natural de éste es ser malo, y también de la<br />

54 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003


Pablo Heredia<br />

naturaleza. Dios es inclemente y vengativo; se complace<br />

en enviar toda suerte de calamidades y desgracias...<br />

(Alcides Arguedas)<br />

O negro não tem mau carácter, mas sómente carácter<br />

instável como a criança, e como na criança – mas com<br />

esta diferença que êle já atingiu a maturidade do seu<br />

desenvolvimento fisiológico –, a sua instabilidade é a<br />

conseqüência de uma cerebração incompleta.<br />

(Nina Rodrigues)<br />

Dios duda, o le tiembla el pulso; y es inclemente<br />

y vengativo. ¿Cómo “Nosotros” podremos<br />

definir quiénes son los “Otros”, si Dios<br />

mismo duda? Nosotros somos parte de Dios, y<br />

a la vez de la Razón. Con Dios o con la ciencia,<br />

“Nosotros” somos el Orden, lo “Otro” es el<br />

Caos. Por ello, “Nosotros” somos quienes<br />

estamos capacitados para construir el Orden, o<br />

sea la continuidad de la Historia (llámese “Evolución”).<br />

Somos “Superiores”, estamos llamados<br />

– otra vez – o por Dios o por la Razón, para<br />

construir el Orden, es decir la Bondad, y disciplinar<br />

ese mundo del Caos, aquella naturaleza<br />

maligna de lo Otro que puede manifestarse en<br />

el descerebramiento (la falta de conciencia<br />

para sí), o en el primitivismo que nos circunda.<br />

Desde los primeros embates de la conquista<br />

de América, y mediante fundamentaciones y<br />

justificaciones de su posterior colonización,<br />

Occidente redundó alrededor del problema de<br />

la Otredad, es decir, sobre formas ideológicas<br />

de construcción de la identidad. La mayoría de<br />

los agentes de la colonización no se preguntaron<br />

acerca de quiénes eran ellos mismos, sino<br />

quiénes eran los Otros: aquéllos que mientras<br />

los sorprendían con y desde una Diferencia que<br />

les desestabilizaba su etnocentrismo, y que a la<br />

vez les provocaban la necesidad de definirlos<br />

como “inferiores” para justificar y proyectar su<br />

empresa de colonización.<br />

Los epígrafes del comienzo ilustran el pensamiento<br />

del positivismo latinoamericano, con<br />

respecto a las variadas pero homogéneas<br />

construcciones identitarias del Otro étnico americano.<br />

Se corresponde al periodo que Peter<br />

Wade denomina “la era del racismo científico”,<br />

y que comienza alrededor del siglo XVIII, con<br />

la puesta en escena de los naturalistas y viajeros<br />

europeos que “descubrían” al Otro desde el<br />

modelo del Iluminismo y la Ilustración. Intentaban,<br />

siguiendo a Wade, poner en “clave científica”<br />

una “naturalización de las razas”, que desde<br />

la llegada de Colón a América se había configurado<br />

en una “naturalización de las diferencias”<br />

(WADE, <strong>19</strong>97, p.7). Entender lo Otro<br />

consistía en “penetrar en la ipsidad y en la<br />

alteridad” para incorporarlo al horizonte de<br />

comprensión de la cultura europea en constante<br />

expansión (ROJAS MIX, <strong>19</strong>92, p. 66). Obviamente,<br />

dicha incorporación se desarrollaba en<br />

lo económico principalmente, a través de una<br />

ecuación lógica muy sencilla: primero “descubrir”<br />

(“Nosotros” dotamos a los “Otros” del<br />

conocimiento de que existen), para luego conocer<br />

para dominar, dominar para colonizar, colonizar<br />

para explotar.<br />

Una vez “descubierto” el “Otro”, entonces,<br />

se trata de denominarlo para colonizarlo, pero<br />

también para caracterizarlo, tipificarlo, “identificarlo”.<br />

Esta diferencia delimitada desde una<br />

referenciación de los paradigmas de la ipsidad 1 ,<br />

conlleva sin dudas valores morales y estéticos<br />

que están vinculados a un proyecto de esa<br />

mismidad: apropiarse del Otro, poseerlo y<br />

colonizarlo.<br />

Los monstruos positivistas<br />

Miguel Rojas Mix, en un excelente trabajo<br />

de exégesis sobre las imágenes icónicas que<br />

los europeos crearon sobre América durante el<br />

1<br />

Utilizamos ipsidad en el sentido lato del término, es<br />

decir, mismidad, o aquéllo que pertenece o está vinculado<br />

a lo mismo. Lo definimos por oposición dialéctica a<br />

otredad, tal como lo desarrolla Miguel Rojas Mix en su<br />

estudio sobre las imágenes teratológicas que desplegaron<br />

los conquistadores españoles durante los siglos XVI y<br />

XVII en América (ROJAS MIX, <strong>19</strong>92).<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003<br />

55


Biología del monstruo: la identidad del otro en el positivismo del Cono Sur<br />

periodo de la primera colonización, aborda el<br />

fenómeno de la creación de Monstruos, seres<br />

“anormales” que habitan en regiones desconocidas<br />

por los europeos. Si bien aquellas imágenes<br />

no hacen referencia a que dichos Monstruos<br />

estén ligados a los indígenas, sí forman parte<br />

del mundo cultural que ellos habitan. El imaginario<br />

europeo, dice Rojas Mix, realizó una naturalización<br />

de lo Otro diferente como algo nefasto,<br />

o anormal. Los Monstruos habitaban en<br />

las “fronteras del mundo”, lo que implicaba<br />

también, en las fronteras de su conocimiento.<br />

(<strong>19</strong>92, p.66-67)<br />

Estas imágenes monstruosas de la Otredad,<br />

entonces, referían a un Otro Mundo habitado<br />

por la anormalidad. Mi Mundo se constituye en<br />

un Orden, que implica la normalidad, la<br />

Beatitud (según la concepción medieval) y un<br />

espectro bien delimitado de las posibilidades del<br />

“Yo”. Lo Otro es un espacio en donde reinan<br />

las tinieblas, el Caos, la anormalidad, el Pecado<br />

y un espectro amplio y diverso de las proyecciones<br />

de la Maldad, sustentado por la Fatalidad<br />

de Ser lo Otro. El paradigma que definirá la<br />

acción de la colonización de América se basará<br />

en este fundamentalismo: hay una diferencia<br />

natural entre el Nosotros-Orden-Normalidad,<br />

que gnoseológicamente se expresará en la<br />

ipsidad (¿Qué es lo que forma parte de nosotros<br />

mismos?), y lo Otro-extraño-caótico, manifiesto<br />

como la Otredad signada por una fatalidad<br />

inmodificable.<br />

Este paradigma cultural no sufrirá modificaciones<br />

significativas a lo largo de los siglos de<br />

colonización. Los positivistas latinoamericanos<br />

de fines del siglo XIX retomarán el imaginario<br />

de los colonizadores en sus análisis e interpretaciones<br />

de la formación de la cultura americana.<br />

Dentro del marco del proceso de modernización<br />

que se imponía durante ese momento, los<br />

positivistas se propusieron “objetivar”, mediante<br />

sus principios metodológicos (“la experiencia<br />

histórica”) aquella naturalización de las diferencias.<br />

Si en un primer periodo la relación<br />

establecida por los colonizadores con América<br />

se sustentaba en lo “fantástico” (porque el Otro<br />

era desconocido), y en un segundo periodo se<br />

transformó en “Teológica” (ya que conociendo<br />

al Otro, éste se manifestaba como una amenaza<br />

a la cultura cristiana), para los positivistas, dicha<br />

relación deberá establecerse mediante la razón<br />

determinada por la práctica histórica. A la diferencia<br />

naturalizada en un principio, se propusieron<br />

revestirla y fundamentarla empíricamente<br />

en una objetivación que podía expresarse en una<br />

tipología étnica.<br />

Para los intelectuales positivistas, el Otro no<br />

se construiría como la alteridad de Europa, sino<br />

como la Otredad americana de la clase dirigente,<br />

blanca, criolla. En momentos en que la construcción<br />

de la Nación moderna se especifica<br />

inexorablemente como un proyecto social y cultural<br />

homogéneo, el Otro se configuraría entonces<br />

como un problema de índole étnico. Negros,<br />

indios y mestizos se inventaron como un<br />

impedimento de la modernización “nacional”,<br />

porque carecían, a grandes rasgos, de algunos<br />

elementos indispensables (tales como la voluntad,<br />

el carácter y la educación) para incorporarse<br />

o adaptarse a los “nuevos tiempos”. El<br />

revestimiento “científico” del racismo milenarista<br />

europeo, se pondrá en práctica desde el Estado<br />

moderno para justificar la exclusión de la<br />

Otredad étnica. El Otro posee una naturaleza<br />

biológica contradictoria con el Progreso.<br />

Sobre la violencia innata del “negro”:<br />

Nina Rodrigues<br />

Desde un trabajo sobre el Derecho penal vinculado<br />

a la Responsabilidad Civil en el Brasil<br />

inmediatamente posterior a la abolición de la<br />

esclavitud, Nina Rodrigues, en As raças humanas<br />

e a responsabilidade penal no Brasil (1894),<br />

trazó una caracterización biológica de negros e<br />

indios. Con un criterio evolucionista, determinó<br />

que había razas “superiores” y razas “inferiores”;<br />

estas últimas eran las que estaban en un<br />

estado de atraso en la evolución humana en<br />

referencia a un esquema dominado por el<br />

“perfeccionamiento psíquico” (RODRIGUES,<br />

<strong>19</strong>57, p.35). Como el indio tendía a desaparecer<br />

“naturalmente”, antes de una supuesta acción<br />

civilizatoria, el negro se constituiría en la Otredad<br />

biológica a estudiar, ya que se estaba mestizando<br />

rápidamente en la sociedad brasileña.<br />

56 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003


Pablo Heredia<br />

Para Rodrigues, el “negro” carecía de voluntad.<br />

Aún maduro fisicamente era como un niño:<br />

“...num meio de civilização adiantada (...) êle<br />

destoa...”, porque “...conservou vivaz os instintos<br />

brutais do africano...” y en consecuencia<br />

“é rixoso, violento nas impulsões sexuais, muito<br />

dado à embriaguez...” (<strong>19</strong>57, p.117). Como un<br />

evolucionista coherente, el médico brasileño<br />

aceptaba que la institución de la esclavitud había<br />

desaparecido (su periodo estaba concluido), pero<br />

como el “negro” no desaparecería, como el caso<br />

del indio, la clave consistía en pensar el mestizaje<br />

como una posibilidad de homogeneización social.<br />

El mestizaje podría sobrevivir en un Orden si se<br />

determinaban primero y se respetaban después,<br />

las leyes de la “Civilización”, condicionadas por<br />

la “responsabilidad penal”, diferente según las<br />

razas, ya que cada una de éstas estaba en una<br />

fase diferente de la evolución humana. Pero no<br />

es terminante, la Otredad, en cualquiera de sus<br />

formas, era un Monstruo que podía sosprender<br />

a través de su atavismo (las “patadas de<br />

ultratumba”, decía el argentino Bunge). Y de<br />

hecho, la mestización en Brasil se estaba dando,<br />

decía Rodrigues, en malas condiciones: la<br />

criminalidad del “negro” es hereditaria, y por lo<br />

tanto, un mestizaje implicaría tener al monstruo<br />

en la “mismidad”.<br />

Al indio le faltaba “a consciência plena do<br />

direito de propriedade” y “...a impulsividade<br />

[...domina] a livre determinação voluntária e destrói<br />

pela base tôda e qualquer responsabilidade<br />

que se funde na liberdade do querer.” (RODRI-<br />

GUES, <strong>19</strong>57, p.140-141). Para Rodrigues, el<br />

mestizo, una fatalidad exasperante para el “científico”,<br />

era un “degenerado” por causa de<br />

males hereditarios, tales com el alcoholismo, su<br />

carácter licencioso y “as emanações miasmáticas”<br />

(<strong>19</strong>57, p.144). Asimismo, aclaraba sobre la<br />

clásica mulata, para alertar a los líricos románticos<br />

y literatos en general, que la atracción por<br />

ella no era más que una excitación genésica, ya<br />

que es un tipo anormal que, obviamente, despertaba<br />

perversiones sexuales mórbidas (<strong>19</strong>57,<br />

p.145). Con esta observación, Rodrigues estaba<br />

agregando un elemento ya mencionado en el<br />

cientificismo positivista: el sexo y las mujeres.<br />

Construcciones científicas, por definición metodológica,<br />

ateas (o al menos agnósticas), estos<br />

Monstruos se configuraron en el imaginario<br />

biologicista desde un pecado original que, aparentemente,<br />

no podía redimirse. Pero como el<br />

Monstruo – “negro”, y por ende – más adelanteel<br />

Monstruo-Mestizo, por sus capacidades físicas,<br />

podía adaptarse al medio físico mejor que el<br />

Blanco-europeo, era posible una alianza: materia-<br />

“negro” más inteligencia-“blanco”.<br />

Sobre el “indio” parco, triste y<br />

vengativo: Alcides Arguedas<br />

La cita del comienzo, extraída de Pueblo<br />

enfermo (<strong>19</strong>09), tiene su exégesis. El “indio” fue<br />

la Otredad revulsiva para Arguedas, no tanto por<br />

su “maldad violenta” (no le había hecho males al<br />

blanco, sino más bien todo lo contrario, estaba<br />

en las peores condiciones debido al maltrato del<br />

español colonizador) sino por su identidad<br />

impasible, su vacío ontológico. El “indio” “vegeta”<br />

en el Altiplano: la pampa bárbara se proyecta<br />

en el “indio” bárbaro en una sola entidad. Su<br />

“espíritu” era bárbaro porque estaba modelado<br />

por la barbarie de la tierra. “Dureza de carácter”,<br />

“aridez de sentimientos” y “ausencia de afecciones<br />

estéticas”, provocaban a su vez, “ánimo sin<br />

fuerza”, “dolor” y “pesimismo”. Lo que podía<br />

llegar a nacer de esos caracteres era todo “pura<br />

ficción”, como una condición natural del “indio”,<br />

quien moldeaba una ética y una religión manifiestas<br />

en una “ausencia de aspiraciones”, y en<br />

una “limitación hórrida de su campo espiritual”.<br />

No había en el “indio” exaltación pasional como<br />

en los Monstruos de Rodrigues, ni deseos, todo<br />

en él era parco, pobre, frío, desamor; duro por<br />

un lado, y rencoroso, egoísta, cruel, vengativo,<br />

desconfiado cuando odia y sumiso cuando ama,<br />

por el otro. Sin embargo, gustaba de las fiestas<br />

(y de sus ropas y del alcohol): allí estaba su única<br />

dicha. Pero el “indio” asustaba también porque<br />

su apariencia física contrastaba estéticamente<br />

con el gusto del intelectual boliviano: color<br />

cobrizo pronunciado, greña áspera y larga, ojos<br />

de mirar esquivo y huraño, labios gruesos, conformaban<br />

el “conjunto de su rostro poco atrayente<br />

(...) que no acusa ni inteligencia, ni bondad”, todo<br />

en relación, también, “al conjunto de líneas áspe-<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003<br />

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Biología del monstruo: la identidad del otro en el positivismo del Cono Sur<br />

ras y angulosidades acentuadas”. Pero valga una<br />

aclaración: a medida que se apartaban de la región<br />

del Altiplano, esos rasgos, físicos y de carácter, se<br />

iban amenguando, algunos hasta parecían “simpáticos”<br />

(<strong>19</strong>93, p.37-72).<br />

Arguedas (<strong>19</strong>93) dedicó muchas páginas de<br />

su ensayo a esta caracterización, en la que no<br />

nos extenderemos; sin embargo, es notorio destacar<br />

que “la decadencia actual del indio”, para<br />

el escritor boliviano, se debía en gran parte al<br />

sometimiento violento que el “blanco” había<br />

ejercido sobre él. Se había aprovechado de su<br />

“superioridad” y por eso lo había maltratado.<br />

Lo contrario, sugiere el autor, podría haber derivado<br />

en un Monstruo domable y provechoso<br />

para el “blanco”. Pero como en Rodrigues, el<br />

factor criminal de su naturaleza obedecía biológicamente<br />

a su raza. Su debilidad moral y física<br />

era el resultado de la “brutalidad del blanco”,<br />

ante la cual buscó, “como toda raza débil, su<br />

defensa en los vicios femeninos de la mentira,<br />

de la hipocresía, la disimulación y el engaño”.<br />

(<strong>19</strong>93, p.62). Nuevamente aparece la mujer<br />

como referente de los vicios étnicos.<br />

Pero el problema central, para Arguedas, se<br />

constituyó en el “mestizo”: el Cholo, quien había<br />

heredado lo arriba mencionado del “indio”, más<br />

los defectos de la “hidalguía del conquistador”,<br />

tales como su tendencia a no cumplir con el<br />

deber y la falta de disciplina mental y moral.<br />

Arguedas llega aquí a su máxima aspiración<br />

intelectual, la comparación del español con el<br />

gentleman inglés: “No hay ningún tipo de nuestra<br />

América española que pueda igualarse a la<br />

superioridad del inglés.” (<strong>19</strong>93, p.75)<br />

En consecuencia, Bolivia se sumergía en la<br />

hegemonía del Cholo, el Monstruo de hoy y del<br />

futuro, que a través de la simulación (pretendiendo<br />

ser “blanco”), se estaba infiltrando en la<br />

mismidad.<br />

Sobre el “mestizo” como un degenerado:<br />

Carlos O. Bunge<br />

El problema de la homogeneización social y<br />

cultural de los positivistas, indispensable para<br />

construir la Nación que permitiría entrar en la<br />

modernidad internacional, se planteó “científicamente”<br />

para Bunge (<strong>19</strong>94) desde un macroanálisis<br />

rector: el estudio de las razas como el<br />

modo principal de entender las formas de<br />

participación y adaptación de los hombres al<br />

Progreso indefinido de la Historia. El concepto<br />

evolucionista de la biología se fusionaba con el<br />

referente cultural de la Historia: estudiar las<br />

razas a lo largo de su evolución-Historia (pasado-presente-futuro)<br />

le permitiría primero discriminar<br />

entre “superiores” e “inferiores”; y luego<br />

por un lado entre “atraso” y “Progreso”, y por<br />

el otro, entre “fatalismo” y “voluntad”. Al igual<br />

que otros positivistas, Bunge relacionó los<br />

caracteres físicos y psíquicos para delimitar<br />

rasgos típicos de cada raza.<br />

El Hispanoamericano era mestizo, enfatizaba<br />

Bunge. Era una “mélange”, “una ensalada de<br />

hombres y de cosas” que se había producido<br />

debido a factores manifiestos como ingredientes<br />

que resultaban en una composición psíquica<br />

de españoles (arrogancia, indolencia, indiferencia,<br />

uniformidad teológica y decoro), indios (fatalismo<br />

y ferocidad) y negros (servilismo y maleabilidad)<br />

(<strong>19</strong>94, p.97). Otra vez, los caracteres<br />

morales más bajos se proyectaban en el<br />

mestizo. “Como caracteres genéricos de todos<br />

los mestizos de Hispano América (...) citaré tres:<br />

cierta inarmonía psicológica, relativa esterilidad<br />

y falta de sentido moral” (p.121). Este<br />

mestizo se convierte en Monstruo cuando<br />

Bunge introduce su concepto de “degeneración”.<br />

Los híbridos hispanoamericanos eran<br />

“degenerados”, “ineptos para la propagación de<br />

la especie”.<br />

Luego de una larga, variada y dispersa<br />

caracterización de los vicios del mestizo, el<br />

abogado argentino, con un discurso lírico que<br />

rechazaría cualquier cientificista colega suyo,<br />

se interna en una radiografía psicológica que<br />

no puede evitar sin recurrir a las comparaciones.<br />

La mujer, esa Otredad conforme irónicamente<br />

en la ipsidad “blanca”, se constituye<br />

en el referente comparativo de los vicios<br />

étnicos: “es irritable y veleidoso como una<br />

mujer, y, como mujer, como degenerado, como<br />

el demonio mismo, fuerte de grado y débil por<br />

fuerza” (p.127). En síntesis, para Bunge, la<br />

58 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003


Pablo Heredia<br />

relación Mestizo-mujer-demonio se entrelaza<br />

así, como un corpus de respuestas de<br />

sobrevivencia (artimañas, manipulación,<br />

simulación) del Otro para infiltrarse en la<br />

ipsidad.<br />

Conclusión<br />

Hay una imagen previa del Otro, de aquél<br />

que no formaría parte, ética y estéticamente,<br />

de la ipsidad. La imagen del Otro se configura<br />

con la proyección de todo aquéllo que la<br />

mismidad no acepta. La imagen “científica”<br />

del Monstruo, como reproducción y reflejo de<br />

Otro que representa la “anormalidad”, se traspasará<br />

a la imaginación, como una puesta en<br />

escena de esa imagen, para que por fin, de forma<br />

“objetiva” (la experiencia “positiva”) e<br />

indiscutible (por “inobjetable”), pase a formar<br />

parte del imaginario étnico moderno de la<br />

Nación homogénea. 2<br />

Los intelectuales positivistas construyeron una<br />

dialéctica de la identidad social y cultural, desde<br />

una imagen ética y estética del Otro como un<br />

Monstruo étnico. El proceso de modernización<br />

de la Nación, programado por las oligarquías<br />

latinoamericanas en el marco de la construcción<br />

de nuevas formas de sostener, relacionar y<br />

proyectar el poder, precisaba crear otros fundamentos<br />

– bajo el ala de la “experiencia positiva”<br />

– de la existencia de los Monstruos. Pero a dicha<br />

fundamentación se le agregaron las explicaciones<br />

de las nuevas formas (las metamorfosis, las<br />

mutaciones) que estaban adoptando esos<br />

Monstruos y las que podrían adoptar en el futuro:<br />

el mestizo se estaba configurando – infiltrando<br />

– en la ipsidad a través de una astuta metamorfosis.<br />

De allí la categoría de “simulación” que,<br />

según los positivistas, se manifestaba en dos<br />

órdenes: los mestizos simulaban éticamente<br />

poseer los mismos valores morales del “blanco”-<br />

europeo (cuando en realidad era sencillo descubrir<br />

esa apariencia a través de las “patadas de<br />

ultratumba”, es decir en el atavismo), y también<br />

simulaban estéticamente, imitaban el refinamiento,<br />

las costumbres y los acicates de belleza<br />

corporal de los “blancos”.<br />

El mestizo era para ellos el monstruo inmediato,<br />

el que acosaba y subvertía los valores<br />

éticos y estéticos (y ocultamente económicos:<br />

hecho que dichos intelectuales obviaron interesadamente)<br />

del poder. Cuando el Otro es la Otredad<br />

sin más (completamente diferente y además<br />

habitante de otro espacio territorial), el problema<br />

para el Poder de la oligarquía no es crítico;<br />

pero cuando ese Otro está emigrando hacia<br />

la ipsidad, ésta corre el riesgo de esfumarse y<br />

“pervertirse” en la Otredad. Entonces, repetimos,<br />

se recurre a la categoría de la “simulación”<br />

como un muro de advertencia: el Otro “simula”<br />

(en un deber hacer) para ser Uno; o en otras<br />

palabras, el Otro simula ser lo mismo que yo,<br />

y eso me destruirá. Y al destruirme, hay Caos,<br />

ya que Nosotros somos los únicos garantes<br />

del Orden que instaura el Progreso y la<br />

Modernidad.<br />

Se trató, en suma, de interpretar (construir)<br />

y denominar al Otro para colonizarlo, y por ende,<br />

también, para caracterizarlo, tipificarlo, con el<br />

único fin de “diferenciarlo”. Esta “diferencia”<br />

delimitada desde una aprehensión de los<br />

paradigmas de la mismidad, conllevó sin dudas<br />

valores morales y estéticos que estaban vinculados<br />

a un proyecto de esa ipsidad: apropiarse<br />

del Otro, poseerlo y colonizarlo.<br />

2<br />

Reproducimos a continuación las definiciones sobre<br />

Monstruo e imagen<br />

que expone el Diccionario Hispánico Universal (edición<br />

de <strong>19</strong>61).<br />

Monstruo: Producción en contra del orden regular de la<br />

naturaleza. Cosa excesivamente grande y extraordinaria.<br />

Persona o cosa muy fea. [el Diccionario de la Lengua<br />

Española de la Real Academia Española, en su edición<br />

revisada de <strong>19</strong>92, agrega además: “Ser fantástico que causa<br />

espanto”.].<br />

Monstruosidad: Desorden grave en la proporción que<br />

deben tener las cosas. Suma fealdad o desproporción física<br />

o moral.<br />

Monstruoso: Que es contra del orden natural. Enormemente<br />

vituperable (decir a alguien vicioso o indigno) o<br />

execrable.<br />

Imagen: Del latín imâgo: figura, representación.<br />

Imaginación: del latín imaginatio. Facultad del alma, que<br />

representa las imágenes de las cosas. Aprensión falsa o<br />

juicio o discurso de una cosa no real.<br />

Imaginario: del latín imaginarius. Que sólo tiene existencia<br />

en la imaginación. Que no tiene existencia real.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003<br />

59


Biología del monstruo: la identidad del otro en el positivismo del Cono Sur<br />

Apéndice<br />

1. Esta es una anécdota surgida de un diálogo<br />

muy usual que se repite cotidianamente en<br />

mi región; 3 si no es posible escucharla espontáneamente,<br />

sólo hace falta una pizca de<br />

picardía para que se produzca. Alguien está<br />

en pugna con otra persona, y una de las formas<br />

de menospreciarlo en su más íntimo<br />

amor propio consiste en denominarlo “negro”.<br />

Pero ante la observación “ingenua” ¡si<br />

Fulano no es “negro”! la consiguiente respuesta<br />

será: ¡Es un “negro” de alma, un “negro”<br />

por dentro!<br />

2. Cierto día me dirigí al almacén de mi barrio<br />

a comprar pan. El almacén es un negocio<br />

familiar de clase media y funciona en la casa<br />

misma donde habitan sus miembros. En<br />

aquella oportunidad atendía al público el hijo<br />

adolescente, quien conversaba animadamente<br />

con sus amigos y vecinos a través del<br />

mostrador. Entonces, fui testigo del siguiente<br />

diálogo:<br />

–¿¡Viste que María Rosa se puso de novia<br />

con Ricardo?!<br />

–¡No te puedo creer! ¿¡Con ese “negro”!?<br />

–Así es. Es lo mismo que yo le dije. Pero<br />

ella, muy contenta, y justificándose, me<br />

respondió: “¡Es `negro´ sólo de piel!”<br />

La anécdota 1 expresa un ejemplo actual de<br />

la “simulación” positivista. Se construye al Otro<br />

como un “simulador” de una condición “natural”<br />

y “fatal” que lo condiciona a actuar de<br />

determinadas maneras fuera de la ética. Se simula<br />

una estética (no aparenta ser un “negro”),<br />

pero lo que no puede aparentar es una ética (es<br />

algo fatal).<br />

Al respecto, cabe mencionar dos cuestiones:<br />

a) se denomina “negro” a aquéllos que presentan<br />

rasgos físicos mestizos (indio y europeo, y en<br />

menor medida “negro”, indio y europeo)<br />

b) muchas veces ni siquiera posee rasgos<br />

mestizos, simplemente se denomina a alguien<br />

“blanco” como “negro” para indicar su<br />

“degradación” moral, a tal punto que parece<br />

“negro”.<br />

La anécdota 2 resalta de igual manera el<br />

racismo, pero con un argumento a la inversa.<br />

El objeto de denigración cambia. Se habla de<br />

alguien que no es Otro, sino de la ipsidad: aparenta<br />

ser Otro pero pertenece a la mismidad,<br />

forma parte del nosotros, aunque estéticamente<br />

parezca Otro.<br />

REFERENCIAS<br />

ARGUEDAS, Alcides. Pueblo enfermo. La Paz: Librería Ed. “Juventud”, <strong>19</strong>93.<br />

BUNGE, Carlos O. Nuestra América. Buenos Aires: Fraterna, <strong>19</strong>94.<br />

LENGUAJE DICCIONARIO Hispánico Universal. Buenos Aires: W. M. Jacson, <strong>19</strong>92.<br />

DICCIONARIO de la Lengua Española de la Real Academia Española. 2. ed. corregida y aumentada. Madrid:<br />

Joachin Ibarra, <strong>19</strong>61.<br />

RODRIGUES, Nina. As raças humanas. Salvador: Livraria Progresso Ed., <strong>19</strong>57<br />

ROJAS MIX, Miguel. América imaginaria. Barcelona: Ed. Lumen, <strong>19</strong>92.<br />

WADE, Peter. Race and ethnicity in Latin America. Chicago: Pluto Press, <strong>19</strong>97.<br />

Recebido em 30.05.03<br />

Aprovado em 15.06.03<br />

3<br />

Nos referimos a la zona central y mediterránea de la Argentina, correspondiente a la provincia de Córdoba.<br />

60 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 53-60, jan./jun., 2003


Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />

DO MONOPÓLIO DA FALA SOBRE EDUCAÇÃO<br />

À POESIA MÍTICA AFRICANO-BRASILEIRA<br />

Narcimária Correia do Patrocínio Luz *<br />

RESUMO<br />

Analisa o monopólio da fala etnocêntrico-evolucionista que sobredetermina<br />

o pensamento e as políticas de educação nas sociedades contemporâneas,<br />

instituindo o recalque aos valores existenciais de povos<br />

milenares. Destaca com veemência a erudição da episteme africana e<br />

suas linguagens transcendentais, indicando outras perspectivas que envolvem<br />

o rico universo emocional-lúcido vital para a educação.<br />

Palavras chaves: Arkhé – Ethos – Eidos – Comunalidade<br />

ABSTRACT<br />

FROM THE SPEECH MONOPOLY ABOUT EDUCATION TO<br />

THE MYTHICAL AFRO-BRAZILIAN POETRY<br />

It analyses the monopoly of the ethnocentric-evolutionist speech that<br />

determines the thought and the education politics in the contemporary<br />

societies, instituting the repression of the existential values of millenary<br />

peoples. It highlights vehemently the erudition of the African episteme<br />

and its transcendental languages, indicating other perspectives that involve<br />

the rich emotional-lucid universe, vital to education.<br />

Key words: Arkhé – Ethos – Eidos – Communality<br />

... A vida não é só isso que se vê, é um pouco mais... Que os olhos não conseguem perceber, e as mãos<br />

não ousam tocar, que os pés recusam pisar. Sei lá não sei, sei lá não sei não. Não sei se toda beleza de<br />

que lhes falo sai tão-somente do meu coração. Em Mangueira a poesia, num sobe e desce constante,anda<br />

descalço ensinando um modo novo da gente viver, de cantar,de sonhar, de vencer.<br />

Sei lá não sei, sei lá não sei não, a Mangueira é tão grande que nem tem explicação.<br />

(Hermínio Belo de Carvalho e Paulinho da Viola)<br />

INTRODUÇÃO<br />

A educação concebida para os povos que<br />

tiveram seus destinos sobredeterminados pelo<br />

impacto dos valores do mundo neocolonial-imperialista,<br />

sempre esteve ancorada na ordem<br />

produtiva urbano-industrial, ou seja, a dinâmica<br />

do crescimento econômico, dos índices estatísticos<br />

e contábeis que informem sobre as expectativas<br />

das demandas do mercado, de onde<br />

*<br />

Professora Titular do Departamento de Educação I da Universidade do Estado da Bahia-UNEB; Doutora<br />

em Educação; pesquisadora no campo da Diversidade Cultural e Educação; coordenadora do Programa<br />

Descolonização e Educação – PRODESE; autora dos livros: Abebe – a criação de novos valores na educação,<br />

Salvador: Edições SECNEB/2000; (Org.) Pluralidade cultural e educação, Salvador: Edições SECNEB/<br />

Secretaria da Educação, <strong>19</strong>96; membro da Aliance pour le Monde Responsable et Solidaire, Paris. Endereço<br />

para correspondência: Universidade do Estado da Bahia-<strong>Uneb</strong>, Departamento de Educação I, Estrada das<br />

Barreiras, S/N. Narandiba, Cabula - 41.<strong>19</strong>5001 Salvador-BA. E-mail: narci@terra.com.br<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />

61


Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />

se desdobra a prescrição una, linear e totalizante<br />

das políticas educacionais voltadas para a formação<br />

do sujeito produtor e consumidor.<br />

É surpreendente observar, nos constantes<br />

intercâmbios com educadores da África, Ásia,<br />

América Latina e Caribe 1 , todo um esforço em<br />

estabelecer estratégias de descolonização no<br />

âmbito das políticas educacionais.<br />

De fato, a efervescência das estratégias de<br />

descolonização tem sido a implosão do monopólio<br />

da fala 2 produtivista sobre educação, cujo<br />

entulho teórico-ideológico tende a recalcar as<br />

dinâmicas territoriais e comunalidades milenares<br />

que mapeiam o planeta.<br />

Estamos tendo o prazer de ver expandiremse<br />

contemporaneamente, iniciativas coletivas de<br />

educadores em todo o mundo, em torno da afirmação<br />

de uma nova e urgente abordagem sobre<br />

educação, cujo princípio inaugural é a dimensão<br />

ontológica da diversidade humana,<br />

marcada pela angustiante procura da compreensão<br />

sobre o estar no mundo, no universo, enfim,<br />

o processo dinâmico da existência.<br />

Estamos fundando uma concepção sobre<br />

educação capaz de acolher linguagens cuja<br />

matriz seja “... a criação emocional e poética<br />

dos povos que mobiliza e abre caminhos, pontes<br />

de aproximação entre comunidades diversas”<br />

(SANTOS, 2002, p.26).<br />

Esse é um dos desafios apresentado por este<br />

ensaio, contribuindo, de um lado, para a implosão<br />

do monopólio da fala etnocêntrica-evolucionista<br />

sobre a existência; e, do outro, promover e dar<br />

legitimidade à expansão sócio-existencial das<br />

diversidades culturais capaz de consagrar uma<br />

ética do futuro.<br />

No tocante à Educação, pretendemos explorar<br />

o universo complexo que constitui as diversidades<br />

culturais e delas realçar: as identidades<br />

profundas que marcam milenarmente<br />

formas de sociabilidade; cosmogonias, linguagens<br />

e valores transcendentais de distintos povos,<br />

suas dinâmicas territoriais, instituições, visão<br />

de mundo, patrimônios civilizatórios; elaborações<br />

emocionais – gênese de criatividade, importante<br />

legado para a humanidade, que inunda<br />

de poesia o existir.<br />

Nossas expectativas sobre as reflexões que<br />

fomentaremos é que elas constituam um espaço<br />

político-institucional que consagre um debate<br />

transdisciplinar, realçando a importância das<br />

tradições culturais características das sociedades<br />

contemporâneas; enfatize as formas de comunicação<br />

milenares utilizadas nas distintas<br />

territorialidades do planeta, os princípios cosmogônicos,<br />

as concepções filosóficas e expressões<br />

ético-estéticas ancoradas no patrimônio mítico<br />

que dá visibilidade e afirma toda à complexidade<br />

cultural necessária a expansão e à afirmação<br />

existencial da diversidade humana; (re)examine<br />

as novas tendências e perspectivas voltadas para<br />

a promoção dos direitos coletivos e identidades<br />

coletivas; ressalte a implosão das utopias dos<br />

Estados Modernos que, durante séculos, impôs<br />

o monopólio da fala sobre educação, recalcando<br />

distintos patrimônios civilizatórios; e, finalmente,<br />

recomende perspectivas educacionais que<br />

promovam o direito à alteridade.<br />

Uma observação fundamental: nossas vivências<br />

e inserção comunitária nos levam a assumir<br />

uma opção político-ideológica que se esforça<br />

para sair da superfície de analogias sobre a<br />

diversidade cultural, que tendem ao outro fragmentado,<br />

por meio de recortes teóricos em que<br />

a dinâmica de estruturação da alteridade é reduzida<br />

a “hibridismo”, “identidade móvel”, “incluído-excluído”,<br />

traços culturais desprovidos de<br />

arkhé e eidos.<br />

Há que se ter cuidado! De onde provêm<br />

essas análises? De que lugar se está falando?<br />

Qual a origem da bacia semântica que imprime<br />

esse repertório equivocado? Será que todos os<br />

povos do planeta têm as suas existências submetidas<br />

a essas “metamorfoses” típicas do jei-<br />

1<br />

Somos integrantes da Aliança por um Mundo Responsável,<br />

Plural e Solidário com sede em Paris, que vem mobilizando<br />

intelectuais, lideranças e artistas de todo o mundo.<br />

Atualmente, estamos envolvida na organização do<br />

Fórum Mundial Diversidades Culturais no século XXI,<br />

Patrimônio e Criatividade, iniciativa da Sociedade de Estudos<br />

das Culturas e da Cultura Negra no Brasil –<br />

SECNEB, UNESCO, Secretaria da Cultura do Estado da<br />

Bahia e Prefeitura Municipal de Salvador. O Fórum será<br />

realizado na Bahia em 2004, reunindo personalidades de<br />

vários países.<br />

2<br />

Categoria elaborada por Muniz Sodré tendo como referência<br />

o sistema midiático de comunicação.<br />

62 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003


Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />

to de ser anglo-saxônico ou ibérico do qual se<br />

originam o pensamento educacional e a analítica<br />

da finitude que os constituem (no dizer de<br />

Foucault)?<br />

Não custa nada insistir em enfatizar ou<br />

relembrar aqui algumas sabedorias africanobrasileira<br />

e aborígine para notarmos a fragilidade<br />

dessas análises etnocêntricas.<br />

Mãe Aninha, a saudosa Iyá Oba Biyi, fundadora<br />

do Ilê Axé Opô Afonjá, em relação à<br />

projeção sobre a continuidade do patrimônio<br />

africano no Brasil como legado para as gerações<br />

sucessoras dizia: “Quero ver minhas<br />

crianças amanhã de anel no dedo e aos pés<br />

de Xangô”<br />

Mestre Didi nutre o mesmo sentimento:<br />

“Evoluir sem perder a essência”.<br />

Marcos Terena, em relação à prepotência<br />

dos valores do mundo branco e a imposição dos<br />

mesmos a sua comunalidade, afirma com determinação:<br />

“Eu posso ser o que você é sem<br />

deixar de ser quem sou”.<br />

Uma amiga, Jófej Kaingang, conta que teve<br />

que ir estudar Direito no “mundo dos brancos”<br />

e, quando ia deixar a comunidade para embrenhar-se<br />

no repertório jurídico do universo urbano,<br />

os anciãos da sua comunalidade chamaramna<br />

para indagar sobre a necessidade desse esforço.<br />

Para os mais velhos, a ética do povo<br />

Kaingang é radicalmente diferente do mundo<br />

dos valores brancos, e eles não acreditavam que<br />

ela pudesse aprender nada de bom dentro desse<br />

universo estrangeiro. No entender dos<br />

anciãos, as sociedades dos brancos criam leis<br />

que eles mesmos não cumprem..<br />

Ela respondeu que precisava conhecer essas<br />

leis do mundo branco para poder defender<br />

e expandir os direitos da sua comunalidade.<br />

Permitiram, então, sua partida. Hoje, Jófej é<br />

advogada e defende, como guerreira, os interesses<br />

do seu povo.<br />

Essas iniciativas que destacamos nos inspiram<br />

a perseguir iniciativas em prol das Diversidades<br />

Culturais, produzindo possibilidades<br />

didático-pedagógicas que afirmem que EDU-<br />

CAR é repor os valores e princípios herdados e<br />

reelaborados legado ancestral. É expansão<br />

sócio-existencial da diversidade humana, fruto<br />

de civilizações milenares que inauguraram diversos<br />

territórios em todos os cantos do planeta,<br />

e que lutam há séculos, tenazmente, para<br />

mantê-lo viável à vida.<br />

Todo o impacto das proposições sobre educação,<br />

a partir do universo africano, tem o intuito<br />

de ilustrar como é possível o intercâmbio<br />

entre culturas, sem a perda de suas singularidades.<br />

O MONOPÓLIO DA FALA<br />

EM EDUCAÇÃO<br />

A educação, que sobredetermina o viver cotidiano<br />

de distintos povos do planeta, é regulada<br />

pelo monopólio da fala etnocêntrico-evolucionista.<br />

Aqui, o mito de Édipo torna-se fundamental<br />

para abrirmos essa reflexão, porque demonstra<br />

o quanto a onipotência que alimenta as políticas<br />

de educação lineariza, estabelece taxionomias,<br />

simulacros, providencia discursos e retóricas que<br />

saturam todos os espaços que cria, inviabilizando<br />

sistematicamente o florescer de outras epistemes<br />

civilizatórias. A história de Édipo é interessante<br />

pois marca:<br />

... o poder do Ocidente exatamente porque expõe<br />

a pretensão de um olhar universal. Édipo-<br />

Rei é uma tragédia da visão – ele pode ver tudo,<br />

mas não se vê. Ao cegar-se, no final, interiorizando<br />

a sua visão, ele ainda está na pretensão de<br />

tudo ver, mesmo na escuridão. É essa onipotência<br />

edipiana que estrutura o mundo ocidental<br />

que arma o olho funcionalizando-o em termos<br />

eficazes, de todos os recursos possíveis, para<br />

se investir da veleidade de um poder de visão<br />

universal. (SODRÉ, <strong>19</strong>84, p.17).<br />

A lógica dessa onipotência edipiana, característica<br />

da episteme ocidental, reveste-se de princípios<br />

ético-estéticos que visam apenas transformar<br />

o outro no mesmo, ou melhor, o outro<br />

fragmentado, submetido à veleidade de um<br />

poder de visão universal.<br />

É assim que o pensamento cerne das políticas<br />

educacionais, não consegue se abrir para<br />

acolher a riqueza de linguagens e valores que<br />

caracterizam a diversidade cultural de povos<br />

milenares. 3<br />

3<br />

Sobre esses aspectos, conferir obras de Fanon, Césaire e<br />

Diop nas referências bibliográficas.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />

63


Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />

Foto 1 - extraída dos PCNs, vol.<br />

10, p. 34.<br />

No coração dessas análises,<br />

o apelo circunscrevese<br />

à proposição urgente e<br />

ingente de uma outra concepção<br />

de educação, o que<br />

significa romper com as<br />

amarras do circuito que<br />

impõe valores existenciais<br />

ancorados na dinâmica de<br />

financeirização do mundo e<br />

conquista de mercados.<br />

Os espaços institucionais<br />

do sistema escolar são<br />

canais profícuos na formação<br />

de gerações voltadas<br />

para a racionalidade do universo urbano-industrial,<br />

cuja extensão é o acúmulo de riqueza e<br />

capital, além de dominação, dissecamento e<br />

esgotamento da natureza e a matematização da<br />

vida para atender à ordem e ao progresso técnico-científico...<br />

Aqui vale a expressão formulada por Max<br />

Weber 4 , o “desencantamento do mundo”, idêntico<br />

à tragédia da visão de Édipo-Rei. Infelizmente,<br />

nossas crianças e jovens têm vivido espaços<br />

institucionais eivados dessa perspectiva<br />

do “desencantamento de mundo”, pois não conseguem<br />

estruturar suas identidades, nem afirmar<br />

seu direito à alteridade própria a partir das<br />

dinâmicas de comunalidade do seu entorno.<br />

É muito significativa, para nós, a ilustração<br />

fruto da pesquisa 5 que realizamos para o Instituto<br />

Nacional de Pesquisa Educacionais – INEP<br />

em <strong>19</strong>88 em Salvador, no Curuzu, bairro da Liberdade,<br />

numa escola pública. Entrevistando uma<br />

menina da 6ª série do Ensino Fundamental sobre<br />

o sentimento que tinha sobre o espaço e tempo<br />

escolar na sua vida, entre muitas coisas que nos<br />

revelou, a que mais chamou atenção: “... Eu gosto<br />

muito de ficar olhando para a rua quando estou<br />

na sala, por isso fico perto da janela...”<br />

A rua é a referência simbólica de um outro<br />

espaço que pode ser associado à cosmovisão<br />

negra, principalmente em Salvador onde tradicionalmente<br />

foram e são desenvolvidas pelas comunidades<br />

africano-brasileiras, atividades econômicas<br />

e sociais sobredeterminadas por esse<br />

espaço caracterizado como rua. A rua se constitui,<br />

simbolicamente, num território que contribui<br />

fortemente para atualizar, nas comunalidades, a<br />

visão de mundo, as condutas, ações e relações<br />

sociais herdadas dos antepassados africanos.<br />

Assim, a fala dessa menina que destacamos<br />

torna explícita uma cosmovisão africana em que<br />

a rua dos bairros de população predominantemente<br />

negra – como o Curuzu, tão temida pelo<br />

universo da produção – é o espaço de proximidade<br />

entre vida cotidiana e produção simbólica,<br />

lugar de uma atmosfera emocional ou afetiva –<br />

ethos, costumam dizer os antropólogos – que<br />

institui canais especialíssimos, não-lingüísticos,<br />

de comunicação. O território torna-se continente<br />

de uma densidade simbólica, assimilável não<br />

4<br />

Vide as análises e proposições de Michel Maffesoli. No<br />

fundo das aparências.Petrópolis:Vozes, <strong>19</strong>99, p.187-350.<br />

5<br />

Em <strong>19</strong>96, tivemos a iniciativa até então inédita no Brasil,<br />

de organizar um livro reunindo personalidades<br />

exponenciais no campo da Pluralidade Cultural e Educação,<br />

nomes como: Marco Aurélio Luz, Muniz Sodré,<br />

Marcos Terena, Elisa Larkin Nascimento, Kabengele<br />

Munanga, entre outros. O projeto foi considerado muito<br />

ousado, já que na época esta questão não era tratada<br />

devidamente pelos espaços institucionais oficiais.<br />

64 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003


Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />

pela racionalidade conceitual, mas sinestesicamente,<br />

com corpo e espírito integrados numa<br />

atenção participante. (SODRÉ, <strong>19</strong>88)<br />

Enfim, nas comunalidades de base africana,<br />

a utilização do espaço e do tempo ganha outra<br />

dimensão. As relações que se estabelecem são<br />

intergrupais ou a nível bipessoal.<br />

A imagem que apresentamos a seguir é<br />

muito significativa, pois nos leva a uma leitura<br />

sintomal sobre o projeto político-ideológico que<br />

rege o monopólio da fala. (Vide Foto 1)<br />

Essa foto foi selecionada pelo MEC para<br />

compor o volume 10 dos Parâmetros Curriculares<br />

Nacionais – PCNs, abordando o “tema transverspal”<br />

Pluralidade Cultural.<br />

O que nos chama atenção é que não há nenhuma<br />

referência substancial sobre a foto: tempo,<br />

lugar, história da população...<br />

Mas o que está latente na imagem é a pretensão<br />

do olhar universal sobre o outro, homogeneizando-o,<br />

tornando-o o mesmo; convertendo-o<br />

e irreversibilizando-o à geometria e aos signos<br />

das aparências características da modernidade<br />

industrial que tem como extensão a escola.<br />

Observem mais uma vez!<br />

Reparem que a única referência possível na<br />

foto e que, mesmo assim, não tem potência para<br />

abrir uma densa e profícua reflexão sobre pluralidade<br />

cultural, são os traços morfológicos das<br />

pessoas. Em comum, o fardamento escolar,<br />

extensão do monopólio da fala da onipotência<br />

edipiana.<br />

Não conseguimos identificar o sorriso, a alegria<br />

no semblante das crianças...<br />

Outro aspecto importante: a foto abre um<br />

dos sub-capítulos do livro, respondendo às modulações<br />

clássicas do currículo assentado nas<br />

dicotomias do ensino-aprendizagem que lastreiam<br />

os objetivos, metas, conteúdos e avaliação<br />

do tempo e espaço escolar.<br />

Um detalhe: na versão equivocada e incisiva<br />

do MEC sobre Pluralidade Cultural 6 , ainda persistem<br />

os grandes sistemas explicativos, que lidam<br />

com e/ou percebem os múltiplos universos<br />

civilizatórios que constituem a arkhé, eidos e<br />

ethos de distintos povos do planeta através da<br />

superfície de análises totalitárias do “dever ser”,<br />

expressão vital ao esquematismo conceitual.<br />

O que importa ressaltar, aqui, é a necessidade<br />

de compreendermos a dinâmica do eidos<br />

e do ethos neo-africanos e sua permeabilidade<br />

na sociedade brasileira. Trata-se de noções interdependentes,<br />

complementares, interpenetráveis,<br />

pois ambas possibilitam a constituição de<br />

identidades coletivas, dando-lhes suporte para<br />

a continuidade dos valores culturais. Ratificando:<br />

ethos constitui a linguagem grupal enunciada;<br />

as formas de comunicação, os comportamentos,<br />

a visão de mundo, os discursos significantes<br />

manifestos, o modo de vida e a configuração<br />

estética. O eidos se refere às formas de<br />

elaboração e realização da linguagem, aos modos<br />

de sentir e introjetar valores e linguagens,<br />

ao conhecimento vivido e concebido, à emoção<br />

e à afetividade.<br />

No enquadramento desses sistemas explicativos<br />

etnocêntricos-evolucionistas pluralidade<br />

cultural “... quer dizer a afirmação da diversidade<br />

como traço fundamental na construção<br />

de uma identidade nacional que se põe<br />

permanentemente, e o fato de que a humanidade<br />

de todos se manifesta em formas<br />

concretas e diversas de ser humano” (PCN,<br />

<strong>19</strong>97, p.<strong>19</strong> – grifos nossos).<br />

E mais:<br />

... a própria dificuldade de categorização dos<br />

grupos que vieram para o Brasil, formando sua<br />

população, é indicativo da diversidade. Mesmo<br />

para a elaboração de um simples rol, é difícil<br />

escolher ou priorizar certo recorte, seja continental<br />

ou regional, nacional, religioso, cultural,<br />

lingüístico, racial/étnico. Portugueses, espanhóis,<br />

ingleses, franceses, italianos, alemães,<br />

poloneses, húngaros, lituanos, egípcios, sírios,<br />

libaneses, armênios, indianos, japoneses, chineses,<br />

coreanos, ciganos, latino-americanos,<br />

católicos, evangélicos, budistas, judeus, muçulmanos,<br />

tradições africanas, situam-se entre<br />

outras inumeráveis categorias de identificação.<br />

(PCN, <strong>19</strong>97, p.<strong>19</strong> – grifos nossos)<br />

6<br />

Ver artigos e ensaios da autora indicados em algumas<br />

publicações do SEMENTES Caderno de Pesquisa e na<br />

Revista da FAEEBA, por exemplo; já investimos exaustivamente<br />

em outros trabalhos sobre essa questão da<br />

transversalidade do MEC.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />

65


Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />

O efeito dessas pulverizações sobre as diversidades<br />

culturais visa dar continuidade ao<br />

recalque sobre a importância, para o povo brasileiro,<br />

dos contínuos civilizatórios aborígines e<br />

africanos na constituição da própria idéia de<br />

nacionalidade.<br />

Demos esse destaque para enfatizar a superfície<br />

do empirismo empregado nessas afirmações<br />

que denegam, enfaticamente, as identidades<br />

profundas que elaboram as dinâmicas<br />

históricas e existenciais de muitos povos.<br />

Queremos ratificar apenas que o status de<br />

“tema transversal” e abordagem teórica do<br />

MEC não corresponde à exuberância de valores<br />

e linguagens dos distintos patrimônios civilizatórios<br />

que influenciam o nosso viver cotidiano,<br />

determinando a dinâmica pluricultural.<br />

Não podemos conceber pluralidade cultural<br />

na superfície do olhar edipiano que produz o<br />

monopólio da fala sobre a existência e tende a<br />

consagrar a bacia semântica neocolonial.<br />

O que os tecnoburocratas e analistas simbólicos<br />

da educação têm fomentado nessa perspectiva,<br />

é o esquadrinhamento cartorial que dá<br />

supremacia às matérias e/ou disciplinas clássicas<br />

(Língua Portuguesa, Matemática, Ciências<br />

Naturais, História, Geografia, Língua Estrangeira<br />

e Educação Física), consideradas fundamentais<br />

à vida da nossa população infanto-juvenil,<br />

submetendo-a ao engradamento burocrático dos<br />

ciclos do currículo escolar destituído de comunalidade.<br />

Assim negligenciada, a Pluralidade Cultural<br />

perde as suas potências: arkhé, eidos, ethos,<br />

princípios estruturadores de comunalidade, princípios<br />

seminais indispensáveis aos educadores<br />

que pretendem iniciar-se na episteme propulsora<br />

da riqueza ético-estética da educação e<br />

sua relação medular com as diversidades culturais<br />

que caracterizam os distintos povos do<br />

planeta.<br />

Há que se ter cuidado com os discursos e<br />

retóricas extremamente charmosos sobre “pluralidade<br />

cultural”, restritos a modismo e relações<br />

utilitaristas.<br />

A cautela que exigimos sobre isso chama<br />

atenção para as metanarrativas desprovidas de<br />

princípios seminais (núcleo deste ensaio) que<br />

fragmentam, banalizam, superficializam as experiências<br />

milenares de complexos civilizatórios,<br />

primordiais para a compreensão do que somos<br />

como povo.<br />

Pensar e propor políticas que privilegiem as<br />

diversidades culturais, é impulsionar “... as<br />

subjacências absolutas do religare: humanidade<br />

e cosmos, natureza, estrutura comunitária,<br />

linhagem, dinastia, ancestralidade e continuidade<br />

existencial – a sacralidade da vida.” (SAN-<br />

TOS, 2002, p.28).<br />

É nesse sentido que investimos na ruptura<br />

com o monopólio da fala neocolonial, ou, como<br />

propôs Frantz Fanon:<br />

... talvez conviesse recomeçar tudo (...) reinterrogar<br />

o solo, o subsolo, os rios – e por que não? O<br />

sol (...) A discussão do mundo colonial pelo colonizado<br />

não é um confronto racional de pontos de<br />

vista. Não é o discurso sobre o universal, mas a<br />

afirmação desenfreada de uma singularidade admitida<br />

como absoluta (FANON, <strong>19</strong>68, p.31).<br />

O horizonte, que abriremos a partir de agora,<br />

pretende aproximar os educadores de uma outra<br />

episteme que, compreendida na sua complexidade,<br />

pode ajudar-nos a desencadear novas elaborações<br />

que estabelecem formas de solidariedade<br />

e respeito para as distintas experiências que<br />

caracterizam as diversidades culturais.<br />

ARKHÉ, EIDOS E ETHOS:<br />

PRINCÍPIOS SEMINAIS ESTRUTURA-<br />

DORES DA COMUNALIDADE AFRICA-<br />

NO-BRASILEIRA<br />

A potência das noções de arkhé, eidos e<br />

ethos, que abordaremos, repousa nas dinâmicas<br />

existenciais de populações milenares, cuja<br />

pulsão de sociabilidade expressa o discurso sobre<br />

a experiência do sagrado e promove o acesso<br />

a um complexo sistema simbólico que influencia,<br />

profundamente, a estruturação de comunalidades.<br />

A tônica colocada sobre essas noções as<br />

focaliza como princípios seminais, isto porque<br />

estamos lidando com relações simbólicas riquíssimas<br />

carregadas de elaborações emocionais,<br />

transcendentais e imanentes, primordiais à experiência<br />

humana com o seu meio ético, social<br />

e cósmico.<br />

66 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003


Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />

Quando nos referimos a arkhé, estamos lidando<br />

com princípios inaugurais, origem, começo,<br />

continuum, dinâmicas de criação-recriação,<br />

transcendências que orientam o devir-futuro,<br />

estabelecendo a relação visceral entre tradição<br />

e contemporaneidade.<br />

Sobre o eidos, desdobra-se a compreensão<br />

da dimensão ontológica da diversidade humana,<br />

marcada pela angustiante procura de respostas<br />

sobre o estar no mundo, no universo, a<br />

pulsão da existência enriquecida pela linguagem<br />

mítica presentificada e absorvida no viver cotidiano<br />

das comunalidades.<br />

O ethos projeta o emocional-lúcido que envolve<br />

o discurso das comunalidades, expressando<br />

suas dinâmicas territoriais; instituições; visão<br />

de mundo; modos e formas de comunicação,<br />

portando e elaborando conhecimentos, emoções<br />

e gênese de criatividade, característica de universos<br />

simbólicos e formas comunitárias.<br />

É sobre esse corolário da episteme africana<br />

que desenharemos contornos reflexivos importantes,<br />

procurando estabelecer a dialética necessária<br />

às recriações de linguagens pedagógicas<br />

que possam influenciar, com veemência,<br />

políticas educacionais que acolham as diversidades<br />

culturais que mapeiam as sociedades<br />

contemporâneas.<br />

Atenção! Essas noções não podem ser confundidas<br />

pela leitura, dicotômica, linear, irreversível<br />

e simétrica que sobredetermina a produção<br />

acadêmico-científica positiva.<br />

Para aproximarmo-nos dessas noções, é<br />

necessária a elaboração de luto da onipotência<br />

edipiana, que alimenta o monopólio da fala que<br />

exploramos na primeira parte do ensaio.<br />

A fim de evitar esses equívocos, alguns autores/estudiosos,<br />

no campo da diversidade humana<br />

e/ou diversidades culturais, vêm-se dedicando<br />

a interpretar o discurso da comunalidade<br />

africano-brasileira, inserindo-o no âmbito do discurso<br />

teórico da sociedade oficial. Trata-se de<br />

um esforço de traduzir a episteme africana,<br />

procurando emitir idéias que contextualizem, no<br />

discurso acadêmico, o continente teórico-epistemológico<br />

africano.<br />

É preciso referir-se com prudência ao fundamento<br />

da bacia semântica positivista, com o<br />

propósito de convidar o leitor ao despojamento<br />

teórico do esquematismo, mensuração e engradamento,<br />

referência absoluta da sua formação<br />

acadêmica, positivista.<br />

Tudo que o positivismo pretenderá apagar, aplainar,<br />

unidimensionalizar, retorna revigorado, como<br />

que para significar, de uma maneira mais ou menos<br />

trivial, que não há saber absoluto. Do mesmo<br />

modo que somos obrigados a compor com a<br />

alteridade ou com a morte, é preciso que saibamos<br />

admitir a contradição na estática e na dinâmica<br />

das sociedades. (...) O conceito é uno, ou,<br />

pelo menos, compõe-se com conceitos vizinhos<br />

para construir uma unidade. Determina a verdade,<br />

o que deve ser a verdade. Tudo o que escapa<br />

ao seu domínio incide em erro e perde direito à<br />

existência. Eis um tanto esquematizada, a lógica<br />

do “dever-ser” que caracteriza a atitude<br />

conceitual. (MAFFESOLI, <strong>19</strong>85, p.58).<br />

O que propomos como ruptura:<br />

No que tange ao conhecimento, a atividade<br />

nocional se dá conta da heterogeneidade; ela<br />

fornece acerca de um mesmo objeto esclarecimentos<br />

diversos; enfim, indica que um tal objeto<br />

é a um só tempo isto e aquilo. Ela evita ainda que<br />

se transforme uma verdade local numa verdade<br />

universal. Do momento que se reconhece a falência<br />

ou ao menos a relativização do descomedimento<br />

prometéico, do qual é o conceito uma<br />

modulação, é necessário saber aceitar a modéstia<br />

da noção. Nosso estatuto, enquanto intelectuais,<br />

em nada será afetado; ao contrário, encontrará<br />

seu lugar devido na participação orgânica<br />

da sociedade. (MAFFESOLI, <strong>19</strong>85, p.60)<br />

Feitas essas considerações, podemos nos<br />

aproximar de um outro continente teóricoepistemológico<br />

de onde eclode vida e pulsão<br />

existencial.<br />

PULSÃO DE COMUNALIDADE<br />

O outro gradiente de escuta que propomos<br />

ao leitor a partir de agora, na intenção de promover<br />

a compreensão sobre os princípios seminais<br />

– arkhé, eidos e ethos, estruturadores de comunalidade<br />

–, está plenamente entrelaçado com o<br />

legado estético sagrado de Deóscoredes<br />

Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi Axipá,<br />

uma das mais expressivas lideranças do<br />

continuum africano nas Américas, e personalidade<br />

exponencial da educação contemporânea.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />

67


Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />

O legado do Mestre Didi constitui um universo<br />

de criações estéticas singulares que carregam<br />

ancestralidade e visão de mundo próprias<br />

da civilização africana, abrindo perspectiva de<br />

coexistência com outros patrimônios civilizatórios.<br />

Pertencente a importante linhagem de Ketu,<br />

Mestre Didi teve sua iniciação no culto do orixá<br />

Obaluaiyê que junto aos orixá Nanã e Oxumarê<br />

compõem o panteão da Terra, expressões míticas<br />

que nucleiam suas obras.<br />

Seu compromisso como Assogbá, Sacerdote<br />

Supremo, título que recebeu de Mãe Aninha<br />

Iyalorixá Oba Biyi, é executar e sacralizar os<br />

emblemas rituais de seu culto, e isso o torna<br />

herdeiro e continuador dessa experiência ancestral<br />

africana.<br />

Desde a sua infância, Mestre Didi produz<br />

objetos rituais, cuja extensão são belíssimas recriações<br />

no campo das artes escultóricas, obtendo<br />

consagração nacional e internacional.<br />

Além disso, muito pequenino teve o privilégio<br />

de viver imerso no universo mítico literário africano,<br />

que o levou a adaptar diversos contos que<br />

vêm influenciando, sobremaneira, a proposição<br />

curricular de iniciativas de vanguarda na área<br />

de educação.<br />

Mestre Didi possui o título de Alapini, Supremo<br />

Sacerdote do Culto Egungun, e exerce a<br />

liderança da comunidade-terreiro Ilê Axipá, uma<br />

das mais expressivas nas Américas.<br />

Mestre Didi foi iniciado na tradição do culto<br />

Egungun por Marcos Alapini, aos 8 anos de idade,<br />

recebendo o título de Korikouê Olukotun.<br />

Quando fez quinze anos, foi que Iyá Oba Biyi,<br />

yalorixá fundadora do terreiro Ilê Axé Opô<br />

Afonjá, deu-lhe o título de Assogbá-Sumo Sacerdote<br />

do culto de Obaluaiyê, no Ilê Axé Opô<br />

Afonjá. Esse título significa o consertador de<br />

cabaças, renovador da vida, Sacerdote Supremo<br />

do templo de Obaluaiyê.<br />

Em <strong>19</strong>80, Mestre Didi funda o Ilê Axipá, comunidade-terreiro<br />

de culto Egungun, que caracteriza<br />

a continuidade dos valores do Império Nagô<br />

na Bahia. No Ilê Axipá, está reunida a tradição<br />

fundada pelo Alapini Marcos, do antigo terreiro<br />

de Tuntun, englobando o culto aos espíritos ancestrais,<br />

as Iya Agbá, as Mães Ancestrais zeladoras<br />

e transmissoras de Axé, que, quando falecidas,<br />

integram a poderosa corrente mítica da<br />

comunidade (SANTOS, <strong>19</strong>85, p.16).<br />

Ressalte-se, porém, que o Mestre Didi pertence<br />

à família Axipá, originária de Oyó e uma<br />

das fundadoras da cidade de Ketu. Essa família<br />

repõe no Brasil, especificamente na Bahia,<br />

uma dinâmica sócio-política, mítico-religiosa da<br />

cultura Nagô expressa em casas tradicionais<br />

como o Ilê Axé Opô Afonjá. Mestre Didi é neto<br />

de Iyá Oba Biyi e filho de sangue de Mãe Senhora<br />

7 . É o membro mais velho da família Axipá<br />

no Brasil. Podemos afirmar que é um Omo Bibi,<br />

um bem-nascido.<br />

Em uma de suas viagens à África, em <strong>19</strong>67,<br />

quando realizava uma pesquisa para a Unesco,<br />

comparando a tradição dos Orixá da Bahia com<br />

os da África, Mestre Didi viveu um dos momentos<br />

mais emocionantes de sua vida ao encontrar<br />

os descendentes de sua família Axipá.<br />

A narrativa que se segue desse encontro,<br />

além da emoção contida, nos remete, ratificando<br />

com profundidade, a princípios de arkhé,<br />

eidos e ethos de uma elite africana, que preserva<br />

com dignidade a tradição Nagô expandindo<br />

nas Américas comunalidades<br />

Vejamos:<br />

Foi combinado com Pierre Verger que iríamos<br />

visitar o Rei da nação Ketu, no Daomé, África,<br />

para descobrir a família Axipá. Chegando lá, ele,<br />

conhecido por todos como Babalaô Fatumbi e<br />

amigo do Rei, fez nossa apresentação. Entreguei<br />

minha oferenda: uma garrafa de vinho. Imediatamente<br />

após agradecer, o Rei mandou abrir a garrafa<br />

e servir a todos os presentes, ficando, como<br />

é de costume, para se servir por último. Conversa<br />

vai, conversa vem, eu disse que era descendente<br />

da terra de Ketu, e ele, espantado com o<br />

meu Nagô-yorubá, mandou que eu desse prova<br />

do que havia dito. E assim foi que cantei algumas<br />

cantigas enaltecendo a terra, o Rei e a riqueza<br />

de seu povo.<br />

Então ele, todos os ministros e as demais pessoas<br />

que lá se encontravam na ocasião, ficaram<br />

surpresos e me escutaram emocionados, sem ter<br />

nunca imaginado que, do outro lado do oceano,<br />

existisse alguém capaz de cantar os cânticos tradicionais<br />

da nossa terra, dos nossos antepassa-<br />

7<br />

Ambas foram lideranças expressivas, Iyalorixás na comunidade-terreiro<br />

Ilê Axé Opô Afonjá.<br />

68 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003


Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />

dos. Quando terminei de cantar, o Rei, bastante<br />

sensibilizado, mostrou a coroa que estava usando,<br />

e, referindo-se a uma das cantigas, nos disse<br />

que não era daquela coroa que a cantiga falava,<br />

e sim de outra, com a qual os reis são consagrados.<br />

O ambiente era ternura estampados nas faces.<br />

Nisso, Juana lembrou-se de me perguntar por<br />

que não aproveitava para recitar o Oriki ou Orilé<br />

de minha família, que eu chamo de brasão oral.<br />

Dei muito pouca atenção à pergunta, mas, por<br />

insistência dela própria e de Verger, fui forçado a<br />

recitar o Oriki, mesmo porque o Rei observou<br />

quando Juanita se dirigiu a Verger em francês e<br />

ficou muito interessado.<br />

Eu disse, então, as seguintes palavras em Nagô:<br />

AXIPÁ BOROGUN ELESÉ KAN GONGÔÔ.<br />

Quando terminei, vimos o Rei aclamar: “Ah!<br />

Axipá!” e, levantando-se da cadeira onde estava<br />

sentado, apontou para um lado do palácio<br />

dizendo: “A sua família mora ali”.<br />

Ficamos todos surpresos, era inacreditável. Então<br />

o Rei chamou uma das pessoas mais velhas,<br />

a Iyá Nanã, e nos mandou levar à casa dos Axipá.<br />

Quando chegamos, descobrimos que a casa de<br />

Axipá era todo um bairro. Fomos levados à casa<br />

principal. Por ser um dia de semana, a maior parte<br />

dos homens estava trabalhando na roça da<br />

família, denominada Kosiku – onde não há morte.<br />

Fui apresentado a todos os presentes e quando<br />

recitei o orilé foi uma alegria geral, todos bateram<br />

palmas, vieram apertar minha mão querendo<br />

entabular conversações comigo, e eu fiquei<br />

tão emocionado que cheguei a ficar fora de mim,<br />

não entendia nem sabia de nada. Só via alegria, a<br />

alegria do semblante de todos que se acercavam<br />

para me cumprimentar.<br />

Logo nos levaram ao ojubó odé, lugar de adoração<br />

a Oxossi, mostrando onde estava assentado-enterrado-<br />

Axé da casa, e foram chamar uma<br />

das pessoas mais velhas da região da família<br />

Axipá, a fim de nos fornecer informações precisas.<br />

E foi assim que ouvimos e reconhecemos<br />

tudo aquilo que minha mãe, e as pessoas mais<br />

velhas diziam na Bahia. Além da linhagem real,<br />

Asipá foi uma das sete principais famílias fundadoras<br />

do reino Ketu. (SANTOS, <strong>19</strong>85, p.40).<br />

Com admirável delicadeza, abordamos as<br />

noções de arkhé, eidos e ethos, através de<br />

alguns aspectos da história emocionante de vida<br />

do Mestre Didi.<br />

Procuramos destacar e aprofundar que é<br />

através desse continuum civilizatório reposto<br />

no Brasil, que elaboramos a nossa concepção e<br />

proposta de educação pluricultural. Queremos<br />

demonstrar que o continuum civilizatório africano<br />

no Brasil e, especificamente, na Bahia<br />

constitui alteridades e caracteriza, em relação<br />

a outros processos civilizatórios, a nossa diversidade<br />

cultural. É a partir da referência desse<br />

continuum que fixamos nossas elaborações em<br />

torno da educação.<br />

Outro aspecto que acentuamos é que a<br />

Bahia abriga uma rica tradição cultural africana,<br />

uma das mais expressivas do mundo, e,<br />

portanto, tem potencialidade para contribuir na<br />

estruturação de políticas, concepções e linguagens<br />

educacionais, a partir dos valores existenciais<br />

da sua população. Salvador, principalmente,<br />

é uma cidade que está a exigir, há muito<br />

tempo, uma educação democrática que se<br />

abra para a diversidade, reforçando a alteridade<br />

própria e os valores culturais que pulsam<br />

no seu cotidiano.<br />

Assim concebidos, verificamos que o eidos<br />

e o ethos africanos são predominantes na Bahia,<br />

o que implica dizer que a população elaborou,<br />

secularmente, formas e modos de pensar, sentir<br />

estético-religioso, simbologias, filosofias, estratégias<br />

políticas, enfim, uma complexa linguagem,<br />

que irá sobredeterminar as relações sociais.<br />

A ESTÉTICA DO SAGRADO<br />

Ainda nessa viagem de escuta, vamos apresentar<br />

ilustrações da arte escultória de Mestre<br />

Didi, permitindo ao leitor uma compreensão<br />

mais apurada sobre os princípios seminais que<br />

tanto enfatizamos, e que consideramos impostergáveis<br />

para a produção de políticas educacionais<br />

imersas nas diversidades culturais. (Vide<br />

Foto 2).<br />

Esta é uma escultura de Mestre Didi, e representa<br />

Exú Amuniuá. A ilustração nos leva a<br />

outra noção fundamental para os objetivos do<br />

nosso trabalho: a de Exu, que se constitui com<br />

princípio de movimento e circulação.<br />

Exu-Bara é o Orixá responsável pelo interior<br />

do corpo, oba + ara, rei do corpo. Exu-Bara<br />

se constitui num dos aspectos e funções do Orixá<br />

que iremos sublinhar.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />

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Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />

Foto 2 - Exú<br />

Amuniwá – Argila e<br />

cimento / Altura: 67<br />

cm - (Acervo de<br />

Mestre Didi –<br />

Imagem gentilmente<br />

cedida pelo artista<br />

plástico).<br />

O útero, a relação sexual, a interação do sêmen<br />

com o óvulo, a placenta fecundada, a circulação<br />

sanguínea e de outras substâncias, a fala,<br />

são alguns exemplos relacionados ao Orixá Exu.<br />

É importante destacar que o sêmen e o óvulo<br />

caracterizam-se como representações das<br />

matérias massas e dos princípios genitores masculino<br />

e feminino. Através de Exu, a interação<br />

é possibilitada. É ele quem desloca a matéria<br />

de origem Orun para o aiyê, dinamizando o<br />

desenvolvimento que a envolve. 8<br />

Exu também está associado às ações de<br />

introjeção e restituição e essas representações<br />

são encontradas em muitas esculturas que o<br />

apresentam chupando dedo, fumando cachimbo,<br />

soprando uma flauta, etc.<br />

As funções da boca, entre elas a fala e a<br />

comunicação, também se relacionam a Exu. Exu<br />

possibilita o ciclo vital, um corpo humano capaz<br />

de falar, ouvir, sentir e fazer expandir o princípio<br />

de movimento.<br />

Pois bem, é no seio desse universo míticosagrado,<br />

abordado até aqui, que transbordam as<br />

percepções lúdicas, de encantamento, fascinantes,<br />

que deslumbram o conteúdo de educação<br />

que estamos propondo, causando o estilhaçamento<br />

das redomas fronteiriças que constituem<br />

a percepção linear positivista, predominante na<br />

educação erigida pelo monopólio da fala.<br />

O sagrado tem a capacidade de amenizar a angústia<br />

existencial, ou melhor, os mistérios da existência,<br />

através de elaborações e ritualizações<br />

diversas sobre a origem e o devir. Além disso ele<br />

promove sobretudo a satisfação do desejo de<br />

estar junto, origem da vida societária. (...) Porém,<br />

as exigências produtivistas mercantilistas das<br />

sociedades industriais atropelam a temporalidade<br />

e espacialidade do sagrado, tentando esvaziar<br />

sua significação, recalcando as linguagens<br />

míticas e místicas através do enaltecer da técnica<br />

e da ciência, sobretudo reprimindo as<br />

alteridades, através da denegação da morte, o<br />

outro que há em nós mesmos, e pelo qual deixaremos<br />

de ser o que somos agora, transformando-nos<br />

um pouco a cada dia que passa, nesta<br />

ininterrupta e inexorável sucessão do ciclo de<br />

morte-renascimento, do qual todos fazemos parte.<br />

(LUZ, <strong>19</strong>92, p.118).<br />

Pelo exposto, pode-se verificar que continuamos<br />

ousando propor uma neolinguagem pedagógica<br />

ou um neocurrículo, que nos faça avançar<br />

na direção da impostergável necessidade<br />

de elaborar linguagens educacionais que invadam<br />

a ambiência escolar brasileira, inundandoa<br />

com perspectivas que a aproximem do arkhé,<br />

eidos e do ethos da tradição milenar africana,<br />

considerando o seu direito à alteridade própria<br />

das nossas crianças e jovens.<br />

De fato, aquela população infanto-juvenil que<br />

integra a comunalidade africano-brasileira teria<br />

oportunidade de freqüentar escolas que, na sua<br />

estrutura e funcionamento curricular, considerassem<br />

os valores próprios característicos da sua<br />

comunalidade, eminentemente de participação.<br />

Desejamos, portanto, provocar a ruptura com<br />

o sistema oficial de ensino vigente, que se alimenta,<br />

como vimos, do monopólio da fala que<br />

8<br />

Nas comunidades-terreiro nagô, a existência é elaborada<br />

em dois planos: o àiyéo mundo, e o òrun, que representa<br />

o além.O àiyé é o universo físico concreto, e a vida de<br />

todos os seres naturais que o habitam, portanto, mais<br />

precisamente, os ará-àiyé ou aráyé, habitantes do mundo,<br />

a humanidade. Já o òrun corresponde ao espaço sobrenatural,<br />

o outro mundo, o além, algo imenso e infinito. Nele<br />

habitam os ara-òrun, que são os seres ou entidades sobrenaturais<br />

(SANTOS, <strong>19</strong>85, p.17).<br />

70 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003


Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />

utiliza uma política de denegação aos valores<br />

originários da tradição africana. Os orixá do Panteão<br />

da Terra são os que nos alimentam e nos<br />

ajudam a manter a vida. Os meus trabalhos<br />

estão inspirados na natureza, na Mãe Terra-<br />

Lama, representada pelo orixá Nanã, patrona<br />

da agricultura. (Mestre Didi). (Vide Foto 3).<br />

Toda a expressão estética de Mestre Didi<br />

faz transbordar a linguagem mítica, emocionando<br />

e encantando aqueles que se põem a observar<br />

suas obras, aproximando-os dos códigos e<br />

repertórios do universo milenar africano.<br />

Numa poderosa linguagem suas obras contribuem<br />

para atualizar a visão de mundo, herdada e<br />

reelaborada, expandindo-se para fora de sua comunidade<br />

inicial, universalizando-se. Resultado<br />

de antigas memórias introjetadas milenarmente,<br />

vivenciadas - experiência existencial – Mestre<br />

Didi conduz com originalidade a continuidade<br />

emocional do complexo africano<br />

brasileiro, permeandoo<br />

e renovando-o com singularidade.<br />

As obras de Mestre<br />

Didi estão imbuídas de<br />

uma consciência, incorporada<br />

quase que geneticamente,<br />

da relação do homem com<br />

a Terra. Ao assumir a experiência<br />

ancestral de sua comunidade,<br />

recriando-a, sua<br />

alma transmite um sentimento<br />

de atemporalidade quando<br />

presentifica a anterioridade<br />

de origem unida do vital<br />

impulso de constante regeneração”<br />

(SANTOS, <strong>19</strong>85,<br />

Prefácio).<br />

Diante da plasticidade<br />

das esculturas do Mestre<br />

Didi, o observador é transportado<br />

para um outro universo<br />

de percepção que rompe com o olhar matemático<br />

que tende a enxergar apenas cores,<br />

formas e matérias objetivas.<br />

O impacto da linguagem plástica das esculturas<br />

permite acesso “... às subjacências absolutas<br />

do religare: homem, cosmos, homem e<br />

natureza, homem e estrutura comunitária, homem<br />

e linhagem, dinastia, ancestralidade, homem<br />

e continuidade existencial”. (SANTOS,<br />

<strong>19</strong>85, p.14).<br />

A estética do sagrado do Mestre Didi emana<br />

poesia mítica, plena de arkhé, eidos, e ethos<br />

fundamentais à constituição da episteme africana.<br />

Tudo isso é poesia! É essa linguagem que<br />

falta à nossa educação escolar.<br />

É com essa linguagem poética, emocionallúcida,<br />

rica em afetividade portadora do conhe-<br />

Foto 3 – XARARÁ – Cetro reunindo<br />

os símbolos do panteão da<br />

Terra / Nervura de palmeira, couro,<br />

búzios, contas e miçangas. Altura:<br />

72 cm. (Esta foto foi autorizada<br />

pelo autor da escultura,<br />

Deóscoredes Maximiliano dos<br />

Santos - Mestre Didi).<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />

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Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />

cimento vivido e concebido no seio das distintas<br />

comunalidades, atravessadas intermitentemente<br />

por princípios seminais de tradição e<br />

contemporaneidade, que precisamos regar o<br />

cotidiano curricular das instituições que se propõem<br />

a acolher a população infanto-juvenil de<br />

descendência africana.<br />

ODARA, A PLENITUDE DA POESIA<br />

MÍTICA AFRICANO-BRASILEIRA<br />

Interessa-nos destacar algumas características<br />

que procuram ilustrar a dimensão estética<br />

que se manifesta, mediando formas e códigos<br />

de comunicação próprios de arkhé, eidos e<br />

ethos da civilização africana.<br />

Assim, a noção Nagô Odara será aqui utilizada<br />

com a intenção de aflorar os elementos e/<br />

ou aspectos da linguagem que sobredeterminam<br />

a estética mítico-sagrada, exprimindo dessa forma<br />

a identidade comunal. “... Odara exprime<br />

simultaneamente o bom e o belo. O útil e eficaz<br />

não está dissociado da beleza e do sentimento,<br />

o técnico e o estético são expressões únicas.<br />

(LUZ, <strong>19</strong>92, p.122).<br />

Odara permite um sistema de pensamento<br />

em que não há o afastamento do sentir e do<br />

pensar, da razão e da emoção; ao contrário do<br />

Ocidente, cujo exercício de comportamento<br />

exige a dicotomia, a síncrese, o afastamento da<br />

razão e emoção, o esquematismo “racionalista”,<br />

o ascetismo, a linearidade da teoria-prática e a<br />

inércia.<br />

... O elemento estético é bom essencialmente<br />

porque é portador de determinada qualidade e<br />

quantidade de axé, é belo porque sua composição,<br />

forma, textura, matéria e cor simbolizam<br />

aspectos de representação da visão de mundo<br />

característica da tradição, realizando a comunicação.<br />

(LUZ, <strong>19</strong>95, p.566).<br />

A dinâmica da linguagem espaço-temporal<br />

mítico-sagrada é o ancoradouro de Odara, porque<br />

se trata de um valor contido na linguagem do<br />

sagrado, e apenas por ser aprendido mediante<br />

as relações interpessoais, incorporado em situação<br />

iniciática, possibilitando a introjeção de emoções<br />

e sentimentos que se atualizam e se elaboram<br />

por meio de diferentes formas estéticas.<br />

São essas linguagens estéticas que dão teor<br />

às múltiplas relações (individuais e/ou coletivas)<br />

éticas, sociais e cósmicas, transportando, para<br />

o conhecimento vivido, emoção, afetividade e<br />

as elaborações mais profundas das necessidades<br />

existenciais.<br />

Portanto, toda cultura africana de origem<br />

Nagô é Odara. Ritualmente, todos os elementos<br />

estéticos visam magnificar o sagrado e estão<br />

relacionados aos conteúdos e às estruturas<br />

de uma determinada visão de mundo, manifestada<br />

esteticamente por intermédio do apelo a<br />

todos os sentidos (tato, audição, visão, paladar<br />

e olfato) que, numa síntese harmônica e conjunta,<br />

são capazes de transmitir conceitos.<br />

Nessa perspectiva de experiência mítica,<br />

interpessoal e ritual, Odara permite a expressão<br />

de uma linguagem contextual e estética, de<br />

onde transbordam expressões de dança, música,<br />

dramatização, vestuário, instrumentos,<br />

emblemáticas, culinária, polirritmia percussiva,<br />

textos, recriações de elementos dramáticos milenares,<br />

esculturas, etc.<br />

Alguns exemplos nos ocorrem, agora, para<br />

ilustrar e/ou contextualizar, um pouco, a influência<br />

de Odara.<br />

Por exemplo: nos toques de atabaques, há<br />

um tensão muito grande para que se executem<br />

bem as músicas. Os tocadores não estão ali para<br />

tocar apenas, mas para tocar muito bem, pois<br />

se exige que se toque e se execute bem uma<br />

polirritmia harmônica e afinada. Se não for possível,<br />

pára-se, corrige-se, evitando o toque desagradável<br />

que compromete a beleza do ritual.<br />

Há todo um esforço para que se executem bem<br />

os toques.<br />

O ritmo africano contém a medida de um tempo<br />

homogêneo (a temporalidade cósmica ou mítica),<br />

capaz de voltar continuamente sobre si mesmo,<br />

onde todo fim é o recomeço cíclico de uma situação.<br />

O ritmo restitui a dinâmica do acontecimento<br />

mítico reconfirmando os aspecto de criação<br />

e harmonia do tempo. (SODRÉ, <strong>19</strong>79, p.21).<br />

E mais:<br />

O ritmo é uma maneira de transmitir uma descrição<br />

de experiência que é recriada na pessoa que<br />

recebe não simplesmente como uma “abstração”<br />

ou emoção, mas como um efeito físico sobre o<br />

72 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003


Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />

organismo- no sangue, na respiração, nos padrões<br />

físicos de cérebro (...) um meio de transmitir<br />

nossa experiência de modo tão poderoso que<br />

a experiência pode ser literalmente vivida por<br />

outros. (SODRÉ, <strong>19</strong>79, p.24).<br />

Pode-se citar outro exemplo interessante:<br />

avalia-se se a roupa está boa, funcional, expressando<br />

os símbolos, permitindo o desenvolver dos<br />

gestos, a dimensão de beleza na composição<br />

dos diversos elementos (já que há uma técnica),<br />

cores, símbolos que têm a sua conceituação,<br />

as características das simbologias que estão<br />

sendo expressas. Exige-se boa performance<br />

técnica, em meio à criação, uma criatividade<br />

sobre uma linguagem estética.<br />

Aqui, saber e fazer constituem uma coisa só.<br />

Os códigos em Odara são sedutores, significativos<br />

para a formação da identidade cultural.<br />

Assim, por que não pensarmos uma linguagem<br />

pedagógica que se nutra da noção de<br />

Odara?<br />

A Mini Comunidade Oba Biyi 9 , primeira experiência<br />

de educação pluricultural no Brasil,<br />

inseriu na sua linguagem pedagógica a categoria<br />

Odara. Com isso, as crianças ficaram mais<br />

seduzidas a participar das atividades curriculares,<br />

pois se envolviam com a riqueza da dimensão<br />

estética Nagô própria da sua territorialidade.<br />

Fazia-se um apelo aos sentidos durante o<br />

tempo todo, incitando os participantes a aderir<br />

às situações apresentadas nesta comunidade.<br />

Não havia, como elemento centralizador, a<br />

criança trancada na sala de aula, inerte numa<br />

carteira, lidando com os elementos técnicos<br />

e/ou aparatos da escrita que, em nosso entendimento,<br />

são pobres no que tange às sensações<br />

que envolvem o corpo humano, pois nesse contexto<br />

da escrita apela-se, incessantemente, para<br />

a visão e o cérebro, em detrimento do tato, paladar<br />

e olfato, como é a onipotência edipiana da<br />

educação.<br />

A culinária também é um outro exemplo<br />

muito significativo para contextualizarmos a<br />

noção de Odara, principalmente porque há o<br />

pronunciamento de uma complexa combinação<br />

de repertórios de símbolos, sentidos e sensações.<br />

Aqui, encontramos elementos técnicos que<br />

se revelam no fazer, no atender às regras litúrgicas,<br />

à iniciação específica para poder manusear<br />

as oferendas, até que sejam constituídos os alimentos,<br />

cuja feição, correspondente às características<br />

simbólicas de uma estética própria,<br />

mobiliza os sentidos do olfato, paladar, tato, visão<br />

e audição.<br />

Essa totalidade de sentidos expressa odor,<br />

sabor, textura, forma, cor das substâncias que<br />

caracterizam axé 10 , promovendo conhecimento<br />

das qualidades constituintes das forças que<br />

representam cada entidade ou Orixá. Essas<br />

entidades ou Orixá têm seu alimento preferido,<br />

ou seja, as qualidades dos poderes correspondentes<br />

de seu axé.<br />

Assim, há uma profunda classificação de<br />

substância – signos culinários que detêm combinações<br />

pertinentes, formas e modo de preparo<br />

que constituem a ciência da culinária litúrgica.<br />

A culinária litúrgica é muito importante na<br />

circulação, introjeção de axé e na aprendizagem<br />

de conhecimentos no contexto da tradição<br />

africana. Mãe Aninha, a Iyá Oba Biyi, no II<br />

Congresso Afro-Brasileiro em <strong>19</strong>37, realizado<br />

em Salvador, escolheu como tema de sua comunicação<br />

a ciência da culinária litúrgica, afirmando<br />

desta forma a linguagem da tradição no<br />

âmbito acadêmico oficial.<br />

Por meio da culinária litúrgica também se<br />

realiza o re-ligare, que permite o compartilhar<br />

coletivamente conhecimentos e modos de sociabilidade,<br />

que potencializam a existência comunitária.<br />

Como os contos míticos fazem parte da dimensão<br />

estética Nagô e são plenos de Odara,<br />

vamos explorar um pouco a importância dos<br />

mitos na composição de perspectivas educacionais<br />

no âmbito das comunalidades africanas.<br />

Mestre Didi, apresenta narrativas míticas<br />

pelas quais aprendemos a sentir, perceber, valorizar<br />

e incorporar, em função de uma proposição<br />

de linguagem pedagógica.<br />

9<br />

Projeto piloto de Educação Pluricultural, idealizado e<br />

realizado pela Sociedade de Estudos das Culturas e da<br />

Cultura Negra no Brasil-SECNEB, no período de <strong>19</strong>76 a<br />

<strong>19</strong>86, na comunidade-terreiro Ilê Axé Opô Afonjá.<br />

10<br />

Axé, força invisível, mágico-sagrada de toda divindade,<br />

expressa a força vital que assegura a existência, permite o<br />

acontecer e o devir. Como toda a força, o axé é transmitido<br />

e conduzido por meios materiais simbólicos e<br />

acumuláveis.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />

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Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />

... a plasticidade das imagens, as analogias, as<br />

alegorias, os diálogos dramatizáveis, a maneira<br />

negra de falar, o português dos velhos africanos<br />

que procuram adaptar e ilustrar, no plano do texto,<br />

o complexo contexto simbólico nagô. (...) Em<br />

sua genuinidade, os contos são formas específicas<br />

de transmissão dos valores sociais, místicos<br />

e éticos da tradição nagô, dos mais velhos aos<br />

mais jovens. (LUZ, <strong>19</strong>77, p.20.)<br />

O acervo literário do patrimônio civilizatório<br />

africano está caracterizado pelos contos que,<br />

geralmente, estão relacionados ao sistema oracular.<br />

A originalidade dos contos expressa formas<br />

específicas de transmissão dos valores da<br />

tradição, constituindo um aspecto pedagógico<br />

cujo desenvolvimento ocorre numa situação do<br />

aqui e agora, referida a uma experiência vivida,<br />

capaz de gerar uma sabedoria acumulada. Aqui,<br />

a comunicação se processa de maneira direta,<br />

pessoal ou intergrupal, dinâmica, acompanhada<br />

por cânticos, danças e dramatizações.<br />

Mestre Didi Axipá é um dos principais responsáveis<br />

pela preservação e divulgação de um<br />

riquíssimo acervo de contos milenares, em que<br />

as narrativas que ele imprime caracterizam-se<br />

por afirmações pedagógicas socializadoras. São<br />

narrativas orais, apreendidas sobretudo através<br />

da iniciação ritualística, e que dão formas singulares<br />

à pedagogia africana, possuindo importante<br />

finalidade e função, porque, além de expressarem<br />

a arte, constituem o significado das<br />

diversas relações do homem com seu contexto<br />

técnico e estético. O que diferencia os textos<br />

narrados por Mestre Didi da literatura ocidental<br />

do monopólio da fala é que, nos contos, estão<br />

contidos os vários modos utilizados pelo povo<br />

Nagô para promover a adaptação e socialização<br />

dos seus integrantes, a coesão social (LUZ,<br />

<strong>19</strong>93, p.157). Assim:<br />

... os contos ilustram o acervo de textos míticos<br />

acontecimentos históricos (inclusive os ocorridos<br />

na órbita da sociedade global com seus integrantes),<br />

que marcados por sua intemporalidade<br />

narrativa e sua característica fantástica de<br />

representações, reforçam e ensinam os padrões<br />

e valores indicativos dos comportamentos necessários<br />

à coesão do grupo. Os contos narrados<br />

ilustram o significado de conhecimentos e<br />

de moral das diversas representações simbólicas<br />

que ensinam i dirigem a socialização. O significado<br />

das narrativas de Mestre Didi é<br />

patrimônio genuíno da cultura negro-brasileira.<br />

O escritor apresenta-se como narrador, como<br />

porta-voz da comunidade na comunicação com<br />

a sociedade global. (LUZ, <strong>19</strong>77, p.66).<br />

Como estamos imersos na linguagem plena<br />

em Odara, indicando outros valores para uma<br />

educação que acolha as diversidades culturais,<br />

vamos explorar uma das abordagens mais significativas<br />

da episteme africana – os contos<br />

míticos.<br />

Mais uma vez apelaremos para o acervo literário<br />

de Mestre Didi que nos conta o mito A Chuva<br />

de Poderes, numa rica adaptação feita com exclusividade<br />

para a Mini Comunidade de Oba Biyi,<br />

experiência de vanguarda no campo diversidade<br />

cultural e educação, assim reconhecida por ter<br />

inaugurado um denso repertório pedagógico<br />

alicerçado na episteme africano-brasileira.<br />

CHUVA DE PODERES<br />

Desenho feito por Maurício<br />

do Patrocínio Luz – 12 anos.<br />

por Mestre Didi<br />

Há muitos anos passados quando a Terra foi criada,<br />

as primeiras pessoas que vieram se estabeleceram em forma<br />

de uma pequena aldeia que depois cresceu e se tornou<br />

uma cidade chamada Ifé.<br />

Muitos dos Orixá que vieram do Orun, o infinito, foram<br />

morar junto com pessoas em Ifé. Quando os Orixá estavam<br />

saindo do Orun, Olorum, Senhor do Orun, que é o<br />

chefe de todos os Orixá, o mais antigo, o que comanda<br />

74 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003


Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />

a todos, disse para eles que quando fossem morar com as pessoas da<br />

Terra,iam ter uma responsabilidade muito grande com o povo de Ifé.<br />

Ele disse:<br />

– Lembrem que vocês são Orixá e que, sempre, têm que ajudar a<br />

qualquer pessoa que venha ter algum problema.<br />

Bem, nós sabemos que cada Orixá é muito especial, de uma maneira<br />

ou de outra ele tem uma forma de poder ajudar. Orumilá por exemplo,<br />

ele sabe predizer o futuro, ele sabe o que vai acontecer com cada pessoa,<br />

com cada cidade e até mesmo com cada Orixá. Sabemos também,<br />

que Exu é um Orixá que entende todas as línguas do mundo e que ele é<br />

um grande mensageiro entre Olorum e os habitantes da Terra.<br />

Mas nem todos os Orixá naquela época tinham um poder especial.<br />

Depois que os Orixá se instalaram com o povo de Ifé, eles acharam<br />

que não tinham os poderes necessários para que pudessem realmente<br />

ajudar aos seus novos vizinhos. Assim, por exemplo, quando não havia<br />

chuva para fazer crescer a mandioca e os grãos que eram plantados<br />

para fazerem comida, os agricultores, aqueles que trabalhavam na terra<br />

iam aos Orixá para pedir que fizessem chover.<br />

Mas, nada eles podiam fazer sem que primeiro fossem falar com<br />

Olorumilá, porque só ele era quem se comunicava diretamente com<br />

Olorum e sabia predizer o futuro, dizendo o que deveria ser feito para<br />

solucionar os problemas. Assim sendo, os Orixá pouco a pouco começaram<br />

a ficar muito tristes porque não podiam fazer o que deveria ser<br />

feito para ajudar o povo, conforme tinham se comprometido com Olorum,<br />

desde quando estavam dependendo de Orumilá para poderem solucionar<br />

os problemas.<br />

Os problemas eram muitos: eram os quiabos, os inhames, todos os<br />

grãos que não conseguiam crescer, eram as doenças, as brigas entre<br />

vizinhos, sem falar das fofocas.<br />

Assim sendo, todos os Orixá se reuniram e procuraram saber de<br />

Orumilá o que era que eles tinham, e o que fazia eles serem diferentes<br />

das pessoas, uma vez que nada eles podiam fazer para ajudar a elas.<br />

Daí foi que cada um dos Orixá desejou ter um poder especial para<br />

conseguir ajudar ao povo de Ifé e de todo mundo.<br />

Eles queriam ter de presente um poder.<br />

Orixá Xangô se queixando perguntou:<br />

- Por que só você, Orumilá, deve carregar sozinho essa responsabilidade<br />

tão pesada e só você tem o poder de resolver todos os problemas<br />

de Ifé? Dê-me alguma parte do seu conhecimento para que eu possa<br />

compartilhar a responsabilidade com você e poder ajudar também.<br />

Exu disse:<br />

- Eu conheço as línguas de todo o mundo. E o que posso fazer conhecendo<br />

todas essas línguas desde quando não tenho nenhum poder para<br />

realizar algo de bom com esse talento que possuo?<br />

Ogum Oxossi, Oyá, todos os demais Orixá também se queixaram.<br />

Orumilá escutava todas as queixas dos Orixá e finalmente falou:<br />

- Minhas irmãs e meus irmãos eu quero muito bem a todos vocês,<br />

aprecio muito a preocupação que têm comigo e com o povo de Ifé.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />

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Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />

Mas, eu quero ser considerado justo por vocês na distribuição desses<br />

poderes, porque na verdade nem todos os poderes têm a mesma<br />

importância, apesar de que todos eles pequenas ou grandes são necessários<br />

para harmonizar o mundo.<br />

Portanto peço, por favor, que tenham paciência porque eu vou ter<br />

que encontrar uma solução.<br />

Todos os Orixá depositaram confiança em Orumilá e partiram aguardando<br />

a solução do problema.<br />

Assim foi que Orumilá pensou, pensou e pensou. Quanto mais ele pensava<br />

encontrar alguma resposta, mais difícil ficava para ele encontrar<br />

a maneira de como poder solucionar o problema dos poderes para os<br />

Orixá.<br />

Um dia ele resolveu sair para dar um passeio na floresta para ver se<br />

clareavam mais as idéias. Enquanto ele estava caminhando distraidamente,<br />

submergido nos seus profundos conhecimentos, Agemó, o<br />

camaleão começou a observar Orumilá.<br />

Conforme vocês devem saber o Agemó não é um bichinho ordinário<br />

qualquer, ele é o camaleão, o servidor especial de Olorum, o que significa<br />

que ele pode mudar todas as cores, para se harmonizar com tudo que<br />

o rodeia. Assim ele ficou sentado e continuou a observar Orumilá. Ele<br />

estava da cor verde escuro, da mesma cor que estava a floresta. Dessa<br />

forma, Orumilá não podia distinguir Agemó entre as folhas. Finalmente<br />

Agemó falou:<br />

- Orumilá meu irmão, você parece muito preocupado. Você o filho<br />

mais velho de Olorum não pode ter nenhuma coisa tão terrivelmente<br />

séria para lhe deixar tão preocupado?<br />

- Oh! Agemó. – Exclamou Orumilá.<br />

- Eu nem notei você aí. Para responder a sua pergunta, saiba que eu<br />

tenho um verdadeiro desafio, que é ter de distribuir os poderes do<br />

mundo para todos os Orixá. Esse é o grande problema que está me preocupando<br />

no momento.<br />

Daí ele explicou para Agemó, dizendo-lhe:<br />

- Alguns Orixá deverão receber um poder menor do que os outros e<br />

eu quero que todos fiquem satisfeitos com aquilo que receber. Como<br />

você sabe, todos os poderes grandes e pequenos, todos eles são importantes<br />

para harmonia do mundo.<br />

Quando Orumilá terminou de falar, Agemó disse:<br />

- Porque você não volta para Orun, o além, e desde lá não avisa e não<br />

manda para o mundo, para Ifé, em determinado dia e hora uma chuva de<br />

poderes, porque assim todos os Orixá vão ficar esperando no lugar determinado<br />

e cada um terá que pegar aquele poder que coube para ele.<br />

Assim sendo nenhum deles vai pensar que houve proteção de sua parte<br />

para um ou para outro.<br />

- Oh Agemó! Meu querido e velho amigo, foi por isso que meu pai<br />

escolheu você como o seu melhor servidor. A sua idéia é brilhante! Isso<br />

é uma verdadeira resposta. Exclamou Orumilá.<br />

No dia marcado, Orumilá fez a seleção e determinou que ia cair chuva<br />

de poderes, todos os Orixá ficaram esperando em um lugar num<br />

76 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003


Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />

grande espaço aberto, com os olhos dirigidos para onde deveria cair a<br />

chuva dos poderes.<br />

Orumilá deixou cair todos os poderes do mundo, e, assim, foi que<br />

houve uma grande corrida e cada um dos Orixá tratava de pegar alguma<br />

coisa.<br />

Exu era um corredor extremamente rápido e assim ele foi capaz de<br />

conseguir como presente um dos poderes mais importantes do mundo,<br />

que fez dele o dono das encruzilhadas.<br />

Desse dia em diante todo mundo deveria pedir licença a Exu antes<br />

de iniciar alguma viagem ou qualquer projeto. Por isso sabemos que a<br />

personalidade de Exu varia assim como as encruzilhadas, de três a quatro<br />

direções e ele pode escolher a que mais lhe convier.<br />

Assim foi que Xangô também pegou o poder das pedras e do trovão.<br />

Ele se converteu no mais poderoso guerreiro de todos os líderes.<br />

Cada Orixá recebeu o seu presente de acordo com sua habilidade<br />

para poder usar e fazer alguma coisa com sucesso.<br />

E assim todos os Orixá ficaram satisfeitos com seu poder porque<br />

foi o que cada um conseguiu ganhar de acordo com seu merecimento.<br />

Dessa data por diante, cada Orixá ficou com a capacidade para resolver<br />

determinados problemas do mundo, de acordo com o poder que recebeu<br />

do Orun para fazer com que o povo da tradição dos Orixá possa<br />

encontrar em cada um deles uma maneira de resolver seus problemas e<br />

viver com muita paz e harmonia entre os seus semelhantes.<br />

Mais uma vez arkhé, eidos e ethos se intercambiam<br />

influenciando o viver cotidiano e estruturando<br />

a identidade africana. O conto, pleno<br />

de sabedoria, aponta para o infinito de onde<br />

emana a dimensão ontológica da diversidade<br />

humana. A ética estabelecida no contexto do<br />

conto:<br />

... expressa a variedade dos destino, as diferentes<br />

qualidades do axé, força vital, a multiplicidade<br />

da vida e de seu conhecimento. (...) a harmonia<br />

do cosmos se estabelece nesta visão do mundo<br />

através da afirmação da existência da diferença.<br />

A diferença expressa o contraditório, o conflito,<br />

o desconhecido, a complementação, o equilíbrio,<br />

a harmonia e a expansão: Se se pensa nas diferentes<br />

formas de percepção da realidade social e<br />

humana no âmbito do conhecimento ela é um<br />

sistema de nossa característica ontogenética e<br />

cosmogônica. (LUZ, <strong>19</strong>93, p.74)<br />

A fim de compreender melhor o conto, gostaríamos<br />

de realçar algumas características das<br />

personagens que realizam a dinâmica ético-estética<br />

da narrativa de Mestre Didi:<br />

Olorum é a entidade suprema, o detentor de todos<br />

os poderes que tornam possível e regulam a<br />

existência tanto no aiyê – este mundo, como no<br />

Orun – o além. Ele contém os poderes da existência,<br />

da direção e do objetivo. Ele é Alaba, é<br />

axé, aquele que é e possui propósito e poder de<br />

realização. A entidade suprema, origem das origens,<br />

protomatéria espiritual e material de todos<br />

os níveis do existir. (SANTOS, 2000 p.22).<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />

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Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />

Orumilá, princípio de sabedoria de todo o<br />

universo, é responsável pela consulta ao oráculo<br />

mediador entre aiyê e orun, obtendo orientações<br />

para abrir os caminhos.<br />

É assim que, através da Chuva dos Poderes,<br />

cada Orixá adquiriu características originais:<br />

Exu ficou com toda mobilização do sistema<br />

existencial, conduzindo oferenda, mensagens,<br />

mediante a comunicação entre os Orixá e os<br />

seres humanos e até com Olorum.<br />

Ogum, princípio que reúne a força das pedras<br />

e do ferro, é referência das ferramentas,<br />

armas, guerreiros.<br />

Ossayin princípio das folhas, ervas, farmacologia.<br />

Xangô adquiriu o poder do fogo e do trovão<br />

e representa a realeza, a dinastia, as linhagens.<br />

Oxum, princípio das águas doces, é responsável<br />

pelo fluxo menstrual, da maternidade, dos<br />

nascituros.<br />

Nanã, princípio da lama, fecundidade, dialética<br />

da vida e da morte, é patrona da agricultura.<br />

São alguns exemplos de poderes alcançados<br />

pelos orixá, estabelecendo a harmonia no<br />

universo e demonstrando a capacidade interdinâmica<br />

desses poderes.<br />

O conto realça a importância dos Orixá no<br />

panteão ético-estético do universo sagrado africano.<br />

Todo o poder dos Orixá vem da força de<br />

Olorum, expressa através da natureza, água,<br />

floresta, fogo, ar, terra... É desse universo simbólico<br />

que as comunalidades se organizam, estabelecem<br />

instituições e toda conduta emocional-cognitiva<br />

que regula o estar no mundo.<br />

A INFINITUDE DA DIVERSIDADE<br />

Certa vez, na Mini Comunidade Oba Biyi,<br />

primeira experiência de educação pluricultural no<br />

Brasil, uma professora apresentou o globo terrestre<br />

para as crianças dizendo-lhes: “Isso aqui<br />

é o mundo”. Imediatamente, as crianças responderam<br />

admiradas, surpresas e perplexas com a<br />

“verdade” da professora: “Isso é o mundo?”<br />

É essa perplexidade que, todo o tempo, procuramos<br />

imprimir nas contribuições reunidas<br />

neste ensaio – a ruptura com o olhar universal<br />

de Édipo: a dúvida diante de verdades apresentadas<br />

como inquestionáveis, irreversíveis, absolutas.<br />

Relativizar deve ser a meta dos analistas<br />

simbólicos diante dos desafios que nos levam à<br />

leitura do mundo.<br />

A compreensão sobre Pluralidade Cultural,<br />

ou, como preferimos, Diversidade Cultural, não<br />

pode ser finita, mensurável, submetida à taxionomia<br />

cartorial burocrática que a reduz ao confinamento<br />

da bacia semântica erigida pela onipotência<br />

edipiana da episteme ocidental. Precisamos<br />

conceber uma abordagem de Educação que<br />

acolha os múltiplos universos.<br />

Os Universos!<br />

Múltiplos, alternativos, complementares, todos em mim.<br />

E quantos outros, ainda por incorporar viver<br />

viver neles, entre eles, nos interstícios do preformado:<br />

etnia, grupo, família<br />

Interstícios-poentes em meio dos específicos<br />

Pressionada e pressionando aberturas, espaços ricos,<br />

de inconscientes outros que não apenas os da<br />

história limitada de meus próprios ancestrais (...)<br />

Por que não?<br />

sonhar com outros símbolos, ter premonições,<br />

e abalar os próprios limites de um inconsciente<br />

ou um superego herdados contextuais,<br />

quem nem sequer foram por mim escolhidos,<br />

nem mesmo consentidos<br />

78 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003


Narcimária Correia do Patrocínio Luz<br />

a esta altura de minha maturidade.<br />

quero também o outro, ou os outros, múltiplos, diversos,<br />

não quero espelho de mim mesma,<br />

mas seres, eles mesmos, inteiros, belos, sofridos,<br />

Limitados em suas próprias explorações.<br />

(Múltiplos Universos - Juana Elbein dos Santos - outubro <strong>19</strong>80)<br />

Não é possível conceber um pensamento e<br />

projeções políticas para a educação no campo<br />

da pluralidade cultural sem considerar a potência<br />

dos princípios seminais – arkhé, eidos,<br />

ethos, pulsão de comunalidade.<br />

Fica, então, o desafio para as gerações su-<br />

cessoras de reconhecerem as alteridades civilizatórias<br />

que caracterizam distintos povos e<br />

aprenderem a coexistir com essas riquezas étnico-culturais,<br />

banhando o cotidiano escolar com<br />

essas possibilidades de valores e linguagens<br />

viscerais à expansão da vida.<br />

REFERÊNCIAS<br />

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_______. Les Religions africaines comme source de valeurs et civilization. Paris: Presence Africaine, <strong>19</strong>72.<br />

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_____. Cultura negra em tempos pós-modernos. Salvador: SECNEB, <strong>19</strong>92.<br />

_____. Do tronco ao Opa Exin. Salvador: SECNEB, <strong>19</strong>93.<br />

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MAFFESOLI, Michel. O conhecimento comum. São Paulo, SP: Brasiliense, <strong>19</strong>88.<br />

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SANTOS, Juana Elbein. O emocional lúcido. Salvador: SECNEB, 2002.<br />

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003<br />

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Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />

SANTOS, Deóscoredes Maximiliano dos; SANTOS, Juana Elbein. Èsú Bara, principe individuel de la vie. In:<br />

COLLOQUE International sur la notion de personne en Afrique Noire. Paris: CNRS – Centre National de<br />

Recherches Cientifques, <strong>19</strong>71. p.45-60.<br />

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sur les valeurs de civilisation de la religión traditionelle de l´Afrique Noire. Paris: UNESCO, <strong>19</strong>70. p.22-44.<br />

SODRÉ, Muniz. A máquina de Narciso. Rio de Janeiro, RJ: Achiamé, <strong>19</strong>84.<br />

_____. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes, <strong>19</strong>88.<br />

Recebido em 28.05.03<br />

Aprovado em 24.07.03<br />

80 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003


Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />

A (RE)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA<br />

AFRO-DESCENDENTE A PARTIR DE UMA PROPOSTA<br />

ALTERNATIVA DE EDUCAÇÃO PLURICULTURAL<br />

Yara Dulce B. de Ataíde *<br />

Edmilson de Sena Morais **<br />

RESUMO<br />

Apesar de já existirem epistemes que nos balizam teoricamente, as experiências<br />

existentes sobre educação pluricultural são isoladas e as práticas nesse<br />

campo ainda são esparsas e se encontram em fase embrionária. A falta de<br />

políticas sérias e de investimento material, pedagógico e didático por parte<br />

dos dirigentes da educação ainda permitem que as matrizes étnicas afroaborígines<br />

sejam caricaturadas por parte de muitos profissionais que não possuem<br />

referenciais teóricos para a consecução de um projeto de tão significativa<br />

importância. Falta aos educadores a incorporação, de forma corajosa, de<br />

práxis pedagógica e dialógica, de propostas multiculturais que atendam plenamente<br />

às demandas cotidianas da escola. Enquanto isso não acontece, de<br />

forma sistematizada e reconhecida nas escolas, ocorrem apenas experiências<br />

isoladas, que trabalham em busca da construção de uma identidade<br />

étnica, social, cultural e cidadã para afro-descendentes. Estas experiências,<br />

associadas aos referenciais aborígines, trabalham aspectos etno-culturais, que<br />

visam a construção deste grupo enquanto indivíduos-sujeitos. Neste artigo,<br />

apresentamos uma proposta pedagógico-curricular que priorizou a construção<br />

da identidade plural na perspectiva interétnica. A elaboração do texto foi<br />

realizada a partir da análise de uma experiência individual, através da narrativa<br />

de uma jovem afro-descendente, participante de um curso técnicoprofissionalizante<br />

que privilegiou os aspectos das suas matrizes étnicas.<br />

Palavras-chave: Educação – Identidade étnica – Afro-descendentes –<br />

Educação pluricultural<br />

ABSTRACT<br />

THE (RE)CONSTRUCTION OF THE ETHNIC AFRO-DESCEN-<br />

DENT IDENTITY DEPARTING FROM AN ALTERNATIVE<br />

PROPOSAL OF PLURI-CULTURAL EDUCATION<br />

Even though there are already epistemes that theoretically guide us, the<br />

existing experiences about pluri-cultural education are isolated and the<br />

*<br />

Doutora em Educação; professora titular e pesquisadora da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, no<br />

Departamento de Educação, Campus I – Salvador; editora geral da Revista da FAEEBA. Endereço para<br />

correspondência: Rua Ceará, 1072 apto 1301, Ed. Villa Del Rey – 41.8390-451, Salvador-Ba. E-mail:<br />

yaraataide@terra.com.br<br />

**<br />

Licenciado em História (UCSal); especialista em Teoria e Metodologia da História (UEFS); mestre em<br />

Educação e Contemporaneidade (UNEB); professor da Rede Púbica de Ensino Estadual e Municipal do<br />

Estado da Bahia. Endereço para correspondência: Rua Rio Parnaíba, bloco 43, apto 102, Boca do Rio.<br />

Salvador-Ba. CEP 41706-170. E-mail: edmorsaba@yahoo.com.br.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />

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A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />

practices in this field are still sparse and located in an embryonary phase.<br />

The lack of serious politics and of material, pedagogical and didactic<br />

investment on the part of the directors of education still allow that the Afroaborigine<br />

ethnical matrixes be sketched by many professionals who lack<br />

theoretical references for the consecution of a project of such meaningful<br />

importance. Educators lack the incorporation, in a courageous way, of the<br />

pedagogical and dialogical praxis, of multicultural proposals that fully attend<br />

to the everyday demands of school. While this does not happen in a<br />

systematized and recognized way in schools, only isolated experiences occur,<br />

which work in pursue of the construction of an ethnic, social, cultural and<br />

citizen-like identity for Afro-descendants. These experiences, associated to<br />

the aborigine references, work on ethnic-cultural aspects, which aim at the<br />

construction of this group as individuals-subjects. In this article, we present<br />

a pedagogical-curricular proposal that has prioritized the construction of the<br />

plural identity in the interethnic perspective. The elaboration of the text was<br />

realized departing from the analysis of an individual experience, through the<br />

narrative of a young Afro-descendant, participant of a technicalprofessionalizing<br />

course that has privileged the aspects of her ethnic matrixes.<br />

Key words: Education – Ethnic Identity – Afro-descendants – Pluri-cultural<br />

Education<br />

1. Pluriculturalidade: problematizando<br />

a questão da diversidade cultural<br />

As propostas de educação pluricultural pressupõem<br />

a aceitação dos valores essenciais dos<br />

diversos povos ou grupos culturais que compõem<br />

um país, buscando referências e estimulando<br />

pensamentos e práticas sociais que permitam<br />

a todos seus cidadãos construir uma sociedade<br />

e uma visão de mundo que proporcione<br />

inclusão e justiça social. Estas propostas visam<br />

promover, em todos os sujeitos sociais, a<br />

auto-estima, a inserção social e a identidade<br />

étnico-cultural e política. No nosso contexto histórico,<br />

a premissa básica é fazer com que os<br />

historicamente oprimidos 1 pelos valores coloniais<br />

hegemônicos – que se perpetuam até os dias<br />

de hoje – avaliem criticamente a realidade, sobretudo<br />

o referencial eurocentrista, enquanto<br />

modelo civilizatório preponderante e possam<br />

concretamente superá-lo, fazendo emergir seus<br />

próprios valores.<br />

Considerando-se especificamente a questão<br />

da educação pluricultural e do nosso modelo<br />

hegemônico eurocentrista, a partir da realidade<br />

da Cidade do Salvador, podemos afirmar que,<br />

apesar de alguns avanços, as representações<br />

da África e dos africanos ainda são construídas<br />

através da perspectiva eurocêntrica darwinistailuminista.<br />

O “carnaváfrica” 2 foi um grande<br />

exemplo disto. A África que foi apresentada nos<br />

painéis, nas imagens e figuras durante o carnaval<br />

de Salvador, no ano de 2001, nada mais foi<br />

do que a clonagem de uma África e de um africano<br />

primitivo, neolítico, habitante de savanas.<br />

A África não é isto. Sabemos que grandes civilizações<br />

prosperavam naquele continente por<br />

ocasião do impacto colonial, promovido pela<br />

expansão capitalista do século XV. Hoje, existem<br />

grandes conglomerados urbanos e uma<br />

cultura material e espiritual diferenciada e privilegiada.<br />

1<br />

Negros, índios, mulheres, crianças, ciganos e outras tantas<br />

minorias silenciadas e massacradas ao longo da História.<br />

2<br />

Tema do carnaval de Salvador no ano de 2001, a partir da<br />

qual a África foi representada através das savanas e da<br />

vida selvagem; e o africano, por sua vez, estilizado e estigmatizado<br />

em trajes e modos de vida exclusivamente<br />

tribais.<br />

82 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003


Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />

Uma proposta de educação apropriada para<br />

esse momento histórico em que vivemos deve<br />

considerar nossa di versidade cultural e enfocar<br />

a maioria índio e afro-descendente. As bases<br />

curriculares não devem transformar tão importante<br />

assunto simplesmente em “temas transversais”.<br />

Eles devem ser oficialmente incluídos<br />

no currículo, com destaque para os repertórios<br />

civilizatórios afro-aborígines, a partir das suas<br />

visões de mundo. Isso fará com que o aluno,<br />

enquanto sujeito, sinta orgulho da sua ancestralidade<br />

e das suas matrizes etno-culturais, percebendo,<br />

no cotidiano escolar e nos conteúdos<br />

pedagógicos, aspectos relevantes de povos que<br />

tomaram parte na nossa formação étnico-cultural.<br />

Esta abordagem transversal referida é<br />

realizada de forma folclorizada e é flagrante –<br />

e às vezes aberrante – em muitas situações de<br />

sala de aula e eventos culturais nas escolas. Os<br />

currículos passam ao largo e ancoram longe da<br />

cultura africana, produtora de saberes próprios,<br />

de tecnologia, de relações sociais e políticas,<br />

conhecimento científico, uso da botânica,<br />

repertórios da história oral, mitos e religiosidade.<br />

Assim, longe de contribuir para a desmistificação<br />

dessa imagem primitiva-reducionista imposta<br />

pelo colonizador, a omissão desses conteúdos<br />

históricos nos currículos atuais contribui<br />

para a sua obsolescência e marginalização dos<br />

afro-descendentes.<br />

A (re)tomada de valores ético-estéticos dos<br />

vários povos que foram mantidos fora do currículo,<br />

ao longo desse perverso processo<br />

colonialista homogeinizante e globalizante, é<br />

fundamental. Ela constitui o centro basilar da<br />

nova consciência e postura política na qual toda<br />

uma herança sócio-cultural seja revivida, reverenciada<br />

e concebida enquanto matriz formadora<br />

dos mais variados grupos étnicos espalhados<br />

no mundo. Mas, é mister que sejam considerados<br />

os referenciais culturais ancestrais em<br />

seu devir, seu modus vivendi e suas interações<br />

interétnicas.<br />

As “comunalidades” 3 de todo o mundo tendem<br />

cada vez mais a emergir do anonimato<br />

imposto pelos “conquistadores”, anunciando<br />

suas auto-afirmações enquanto povos históricos<br />

e culturalmente localizados. Possuidores de<br />

referenciais civilizatórios próprios, eles são capazes<br />

de contribuir para o legado sócio-cultural<br />

humano com valores ético-estéticos que podem<br />

ser tomados como referenciais de uma sociedade<br />

tão plural quanto a atual.<br />

Dessa forma:<br />

... a contemporaneidade caracteriza-se num aquiagora<br />

que, de um lado, por ser diverso é tenso,<br />

de luta, atrito, conflito, patrimonialista, autoritário<br />

e patriarcal; de outro, é rico em fraternidade,<br />

comoção, indignação, coexistência complementar<br />

das diversidades, paixão, comunicação, sedução,<br />

direito à alteridade própria, constituição<br />

de uma “ética do futuro”.<br />

Esse aqui e agora é enriquecido por essa<br />

dialética que acolhe as contemporaneidades<br />

forjadas pelos distintos continuums civilizatórios<br />

(LUZ, <strong>19</strong>99, p.71).<br />

Faz-se então necessário que tais questões<br />

sejam tomadas como referência, fazendo parte<br />

das discussões em salas de aula, enquanto parte<br />

intrínseca de projetos educacionais que contribuiriam,<br />

em todas as partes do mundo, para a<br />

construção e reconstrução de um conhecimento<br />

plural das arkhés 4 civilizatórias desses povos,<br />

iluminando as reflexões sobre a situação da<br />

conjuntura mundial atual com suas intolerâncias<br />

generalizadas (LUZ, <strong>19</strong>99, p.49-52).<br />

A unidade na diversidade. Este pressuposto<br />

deve ser tomado como parâmetro curricular<br />

nacional para que o conceito de civilização etnocêntrica<br />

européia não continue a ser tomado<br />

como padrão, mas que sejam incorporados nas<br />

propostas educacionais aspectos culturais, filosóficos<br />

e pedagógicos das civilizações ameríndias<br />

e africanas que formam a nação brasileira,<br />

pois não se consideram os valores ético-estéti-<br />

3<br />

Comunalidade e/ou grupo social são organizações sociais<br />

em que “se consolida e estabelece [sic] formas e/ou modos<br />

próprios de comunicação, dos quais derivam-se linguagens<br />

em que está contido um rico repertório de signos<br />

que desenvolvem relações simbólicas que configuram uma<br />

identidade” (LUZ, 2000, p. 100).<br />

4<br />

Palavra de origem grega que se refere tanto à origem<br />

como ao devir, futuro, princípios inaugurais que estabelecem<br />

sentidos, força e dão pulsão às formas de linguagem<br />

estruturadoras da identidade; princípio-começo-origem:<br />

princípio recriador de toda experiência; gênese (LUZ,<br />

<strong>19</strong>99).<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />

83


A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />

cos desses povos dentro de uma visão mais<br />

ampla, valorizando suas arkhés civilizatórias, que<br />

podem contribuir com suas visões de mundo nos<br />

processos de valorização da vida e da preservação<br />

dos ecossistemas (LUZ, <strong>19</strong>99).<br />

Para tanto, uma educação sustentada nesse<br />

viés tem como objetivo valorizar as culturas ancestrais<br />

dos aborígines e afro-descendentes que,<br />

ao longo desses quatro séculos, sofreram e sofrem<br />

discriminação e esvaziamento cultural das<br />

suas matrizes étnicas, principalmente os que estiveram<br />

e estão afastados de comunidades que<br />

lhes dão referências culturais e visões de mundo<br />

próprias como forma de se auto-afirmarem.<br />

Essa educação deve incorporar valores ético-estéticos<br />

– entre outros – dos aborígines e<br />

africanos na dialética da convivência dos diferentes,<br />

respeitando e valorizando suas alteridades,<br />

códigos éticos morais, símbolos, mitos, filosofias,<br />

literatura, arte e hierarquias, que foram<br />

reelaboradas nas Américas pelos africanos e<br />

foram preservadas por muitos grupos aborígenes.<br />

Atualmente, muitos deles estão buscando,<br />

na memória coletiva e na dos mais velhos, a<br />

tradição ancestral que lhes dão dignidade, identidade<br />

e referenciais enquanto sujeitos histórico-culturais.<br />

5<br />

O projeto de educação nacional é exógeno,<br />

baseado no projeto hegemônico capitalista internacional<br />

no sentido de formar sujeitos produtores/consumidores<br />

de seus valores mercadológicos,<br />

para atender à demanda de sua produção<br />

sofisticada e alienadora, internalizando valores<br />

éticos individualistas narcísicos que deformam e<br />

definham expectativas de vida enquanto indivíduos<br />

que necessitam de valores próprios para se<br />

auto-afirmarem (LUZ, <strong>19</strong>99, p.61-66).<br />

Os alunos recebem uma proposta curricular<br />

baseada nos valores euro-americanos que deformam,<br />

depreciam e desconsideram as alteridades<br />

nos seus valores mais intrínsecos numa sala<br />

de aula. Isso compele cada vez mais crianças e<br />

jovens em formação a renegarem suas pessoas<br />

enquanto seres culturais na sua essência, com<br />

ancestralidade, cultura e modo de ser e viver<br />

próprios da sua origem étnica e da sua comunalidade,<br />

que está repleta de representações e<br />

relações, tornando-os sujeitos plurais.<br />

A educação é um instrumento poderosíssimo<br />

nas mãos dos interesses hegemônicos internacionais<br />

reproduzidos nas escolas, onde são aplicadas<br />

apenas teorias pedagógicas dissociadas<br />

dos valores referenciais sócio-ético-estéticos<br />

dos alunos que, por sua vez, são obrigados a<br />

reprimi-los ou sublimá-los, submetendo-se a um<br />

tipo de “cartilha pedagógica” ideologicamente<br />

individualista, consumista e etnocentrista.<br />

O pedagogo formado dentro dos princípios<br />

universalistas tende a ser um reprodutor de teorias<br />

epistemes alienígenas. Quando isso ocorre,<br />

ele perde sua identidade, deixa de ser o condutor<br />

do processo e passa a ser conduzido pelas<br />

tendências externas, como se fora ele uma<br />

mera marionete.<br />

O projeto colonizador europeu, inicialmente,<br />

pretendia relegar os afro-descendentes a uma<br />

condição de completa ausência de referências<br />

étnico-identitárias. Quase conseguiu atingir este<br />

propósito. A instituição das ações “terapêuticas”<br />

promovidas pelo Estado Terapêutico 6 e a sua<br />

taxionomia, preconizavam a homogeneização<br />

das diferenças culturais “alijando as alteridades,<br />

já que representam ‘desvios’, ‘selvageria’, merecendo,<br />

portanto, um tratamento que possa<br />

curar” (LUZ, 2000, p.32). Por fim, a ideologia<br />

do branqueamento passou a ser um referencial<br />

de “ser” numa sociedade onde as oportunidades<br />

eram maiores para aqueles com a cor de<br />

pele cada vez mais clara (MUNANGA,<strong>19</strong>88).<br />

Não raro ouvimos, num passado não muito<br />

remoto, muitas mulheres negras dizerem para<br />

suas filhas: “vamos limpar esta raça”. Essa<br />

concepção deveu-se ao processo da exclusão<br />

social e do mercado de trabalho, dominado pelo<br />

falso discurso da democracia racial. Isto se<br />

desenvolveu de tal forma que os indivíduos de<br />

5<br />

É o caso do grupo indígena Fulni-ô (Águas Belas/PE)<br />

que está resgatando, através da memória e da história, sua<br />

língua materna o Yaathê através de uma cartilha (ANAÍ,<br />

<strong>19</strong>94, p. 6-9).<br />

6<br />

“... um Estado que erige em relação ao seu funcionamento,<br />

organização e estabilidade, valores que constituirão<br />

padrões de comportamentos concentrados numa perspectiva<br />

una, unidimensional, totalizante, absoluta, tentando<br />

assegurar, dessa forma, o índice de ‘normalidade’<br />

necessário à sua afirmação” (LUZ, 2000, p. 30).<br />

84 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003


Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />

pele mais escura se viam relegados a uma marginalização<br />

cada vez maior, com reflexos sobre<br />

sua auto-estima e auto-imagem.<br />

Várias teorias etnocêntricas permearam os<br />

ideais de branqueamento e afirmaram a inferioridade<br />

racial dos africanos, aborígines americanos,<br />

australianos, polinésios, orientais etc. Lombroso,<br />

na Itália, foi um dos preconizadores de<br />

tal visão do “outro” no século passado. Entretanto,<br />

essa não é uma atitude exclusiva da ideologia<br />

euro-etnocêntrica. Existem registros de<br />

preconceitos semelhantes entre os egípcios e<br />

os gregos, que já faziam restrições à presença<br />

de indivíduos culturalmente diferentes no seu<br />

meio (FREIRE-MAIA, <strong>19</strong>81).<br />

O princípio da inferioridade racial, elaborado<br />

em bases supostamente cientificas pelos<br />

europeus, baseava-se no chamado determinismo<br />

biológico-geográfico e na mistura racial.<br />

Segundo esta teoria, esses fenômenos provocavam<br />

a degenerescência humana, na qual os<br />

indivíduos teriam tendências comportamentais<br />

criminosas e perversões libidinosas, advindas<br />

dessas contingências (MUNANGA, <strong>19</strong>99).<br />

Ao longo do tempo, essas ideologias amalgamaram<br />

o comportamento reprimido e inferiorizado<br />

dos afro-descendentes. Somente a partir<br />

dos anos setenta, com o Movimento Negro<br />

Internacional repercutindo em todo o mundo,<br />

no rastro do movimento descolonizador na África<br />

e na Ásia, é que na América do Norte e no<br />

Brasil, os afro-descendentes de São Paulo e da<br />

Bahia passaram a reforçar, através do Movimento<br />

Negro Unificado, o sentimento de africanidade,<br />

enquanto identidade étnica (SILVA,<br />

<strong>19</strong>88).<br />

O projeto pedagógico brasileiro é exógeno e<br />

xenófobo. As concepções de educação são alienígenas<br />

e não se priorizam as especificidades<br />

étnico-culturais dos diversos grupos sociais que<br />

interagem no espaço escolar. Na Bahia, o PRO-<br />

JETO EDUCAR PARA VENCER, elaborado<br />

no sul do país, foi implantado em todo o Estado<br />

para solucionar o grave problema da distorção<br />

série/idade, implantado para a regularização<br />

de fluxo. Este projeto, dentre as múltiplas falhas,<br />

possui conteúdo desvinculado da realidade<br />

do aluno e não favorece discussões e reflexões<br />

sobre as diferenças, a diversidade cultural<br />

e a identidade étnico-cultural. Um outro projeto<br />

em vigor é o PEI, importado de Israel com o<br />

propósito de desenvolver o raciocínio lógico dos<br />

estudantes do Ensino Médio. Este projeto também<br />

peca por não considerar seriamente as<br />

questões étnico-culturais presentes no cotidiano<br />

escolar.<br />

Nesses projetos, o livro e o material didático<br />

transformam-se em cartilhas bitoladas que<br />

limitam o processo pedagógico e a criatividade<br />

do professor, aprisionando-o nos trilhos estreitos<br />

determinados pelos manuais. O livro didático<br />

não deveria assumir o papel de norteador do<br />

processo, pois esta tarefa deveria caber ao professor<br />

enquanto problematizador do seu conteúdo,<br />

que deveria apenas servir como referencial.<br />

Esses materiais, por sua vez, não trazem<br />

abordagens de aspectos civilizatórios aborígines<br />

e africanos, e o profissional que o utiliza não<br />

possui referenciais dessas arkhés civilizatórias,<br />

não as privilegiando na sua prática docente.<br />

Quando o fazem, isso é feito de maneira inadequada<br />

ou caricatural.<br />

Isso nos remete à melancólica reflexão de<br />

que os dirigentes políticos consideram que os<br />

professores da rede pública não teriam capacidade<br />

para desenvolver esse tipo de educação,<br />

razão pela qual, em decorrência desta incapacidade<br />

criativa e incompetência profissional, eles<br />

teriam de ser monitorados na sua atividade; esta<br />

postura governamental implica, porém, na desmoralização<br />

da figura do professor. Em projetos<br />

como esse, não se valoriza o ser plural que<br />

compõe a população baiana e brasileira, de uma<br />

forma geral.<br />

As propostas pedagógicas alternativas baseadas<br />

nos processos civilizatórios afro-aborígenes,<br />

atuantes em Salvador, não são mais que<br />

experiências isoladas. Como práticas pedagógicas<br />

afro-brasileiras bem sucedidas vale citar<br />

o Ilê Axé Opô Afonjá, localizado não bairro de<br />

São Gonçalo, no Cabula e o Ilê Axé Jitolú, no<br />

Curuzu, onde está situada a sede do Ilê Aiyê.<br />

Além dessas, existem, também, outras instituições,<br />

como o Olodum, Steve Bico, o Ceafro<br />

e outras. Uma experiência de educação<br />

pluricultural bem sucedida em Salvador é o Pro-<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />

85


A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />

jeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê, no<br />

qual Mãe Hilda, a Iyalaxé 7 do terreiro Jitolú 8 –<br />

local onde funciona a sede do bloco –, é considerada<br />

uma destacada líder afro que assume<br />

também a posição de pedagoga, transmitindo<br />

valores da arkhé africana aos alunos afro-descendentes<br />

de maneira lúdica, mitológica e pedagógica.<br />

Assim procedendo, ela reafirma os<br />

valores ético-estéticos que reforçam a identidade<br />

afro-descendente das crianças e adolescentes<br />

da instituição. Somente dentro de uma<br />

proposta curricular plural enquanto ação política<br />

pedagógica na educação pública é que, efetivamente,<br />

podemos promover a auto-estima, a<br />

auto-referência afro-identitária e a dignidade<br />

dos grupos afro-descendentes.<br />

Não há instituições com práticas pedagógicas<br />

privilegiando aspectos culturais das civilizações<br />

aborígines na cidade do Salvador. Atualmente,<br />

em muitas partes do Brasil, esses grupos<br />

estão se organizando e tendo autorização<br />

para ministrar aulas nas suas línguas nativas.<br />

Isso está promovendo o renascer da lingüística,<br />

da memória e da história desses povos. Como<br />

exemplo, temos o grupo indígena Fulni-ô (Águas<br />

Belas/PE) que, através de uma índio-descendente,<br />

Marilene Araújo de Sá, funcionária da<br />

FUNAI, professora de Yaathê, língua nativa do<br />

grupo, elaborou uma cartilha para não se perder<br />

esse referencial étnco-cultural do grupo e<br />

promover a (re)construção da identidade ética<br />

dos seus descendentes. Por sua própria iniciativa<br />

e de forma autodidata, ela elaborou uma<br />

pesquisa na qual está resgatando, através da<br />

memória e da história, a língua materna do seu<br />

povo que já havia perdido muitos elementos<br />

lingüísticos (ANAÍ, <strong>19</strong>94, p. 6-9).<br />

A partir de <strong>19</strong>98, o MEC publicou o Referencial<br />

Curricular Nacional para as Escolas Indígenas<br />

(RCNEI). Este documento é dirigido aos<br />

professores indígenas e aos técnicos das secretarias<br />

estaduais de educação. É um subsídio<br />

para a discussão e a implementação de novas<br />

políticas, práticas pedagógicas e curriculares em<br />

terras indígenas, sistematizando um conjunto de<br />

pontos comuns frente à diversidade e multiplicidade<br />

das culturas aborígines. Seu objetivo principal<br />

é apresentar uma proposta pedagógica de<br />

ensino-aprendizagem que visa promover uma<br />

educação intercultural e bilíngüe entre esses<br />

povos (Disponível em: www.mec.gov.br).<br />

Mais recentemente, no ano de 2001, o Projeto<br />

Capacitação Solidária do governo federal<br />

subsidiou projetos comunitários voltados para<br />

cursos profissionalizantes dirigidos à formação<br />

de jovens das classes populares. Dentre estes,<br />

foram privilegiados os cursos de corte e costura,<br />

estética, culinária, ritmos afro, patissaria,<br />

doces e salgados, manutenção de carros, de<br />

equipamentos eletrônicos, artesanatos locais,<br />

viveiros de peixes e crustáceos etc.<br />

A partir dessas experiências bem sucedidas,<br />

outras instituições afro e comunidades de terreiro<br />

passaram a incorporar projetos de educação<br />

técnica ligados a projetos pedagógicos, privilegiando<br />

seus arcabouços culturais. O Terreiro<br />

Oxumarê, na Avenida Vasco da Gama, Salvador-BA,<br />

desenvolveu um projeto de confecção<br />

de instrumentos musicais afro. Na mesma<br />

cidade, um terreiro no Alto de Coutos, Mutá,<br />

desenvolveu um curso no interior do seu ethos<br />

religioso voltado para a produção artesanal de<br />

chaveiros. Outros terreiros trabalharam a culinária<br />

afro-baiana.<br />

Logo, algumas ONG’s, engajadas na luta<br />

política pela promoção da dignidade, inserção<br />

social e melhoria da perspectiva de vida dos<br />

adolescentes das classes populares, conjugaram<br />

suas propostas de ministrar cursos técnicos a<br />

projetos político-pedagógicos, direcionados para<br />

uma perspectiva étnico-cultural, devido à<br />

especificidade de esses contingentes serem de<br />

maioria negra.<br />

Vale ressaltar as realizações do CONGO -<br />

CENTRO MÉDICO SOCIAL, localizado no<br />

Alto de Coutos, no subúrbio ferroviário de Sal-<br />

7<br />

Iyalaxé é a mãe do axé, a responsável pela manutenção<br />

do axé, ou seja, a força dinamizadora cósmica que circula<br />

e promove o continuum da vida entre aqueles que são<br />

vivificados pela força ancestral, que cada vez mais se<br />

expande e se reforça no cotidiano e nas atividades religiosas<br />

de auto-afirmação dentro da comunidade terreiro além<br />

de seu perímetro territorial.<br />

8<br />

Denominação do seu orixá, Omolú, pois cada entidade<br />

possui um nome de acordo com suas características intrínsecas.<br />

86 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003


Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />

vador. Esta instituição, dentre outras propostas,<br />

além da assistência médica social, promove<br />

ações educativas com o objetivo de estimular o<br />

desenvolvimento da consciência ecológica, o<br />

exercício da cidadania e a elevação da autoestima,<br />

convergindo essas atividades no sentido<br />

de resgatar a identidade local, social, étnica,<br />

histórica e cultural da comunidade de entorno.<br />

Esse Centro instituiu o Curso de Corte e<br />

Costura Étnica, numa perspectiva sócio-político-cultural<br />

que faz parte de um desdobramento<br />

mais amplo do seu projeto político-social. Sua<br />

perspectiva é viabilizar a inclusão social de sujeitos<br />

de uma área que sofre problemas estruturais<br />

de habitação, moradia, assistência médico-sanitária<br />

e outros, presentes nos bairros periféricos<br />

das grandes metrópoles. Nesse contexto,<br />

foi percebida a necessidade de possibilitar<br />

a esses sujeitos, de maioria afro-descendente,<br />

uma reflexão a respeito da sua identidade<br />

étnico-cultural, no sentido de contribuir para a<br />

construção do referencial próprio desses sujeitos<br />

étnico-sociais enquanto cidadãos da periferia<br />

de Salvador.<br />

Antonio Risério (<strong>19</strong>88) considera Salvador<br />

uma cidade luso-banto-jeje-nagô pela sua configuração<br />

matricial étnica africana presente no<br />

cotidiano, nas falas, nos gestos, nos rituais, no<br />

colorido dos trajes e nas gentes que formam<br />

seu povo. Por isso, Salvador é considerada a<br />

segunda maior cidade de contingente negro,<br />

depois da Nigéria. Entretanto, percebemos que<br />

Risério eliminou o aborígine dessa configuração,<br />

apesar do elemento índio ter sido completamente<br />

dizimado em áreas das grandes metrópoles<br />

coloniais. Mesmo assim, Darcy Ribeiro,<br />

em seu livro O Povo Brasileiro considera<br />

que o útero brasileiro foi indígena.<br />

Segundo Ribeiro (<strong>19</strong>95), os primeiros contingentes<br />

africanos trazidos como escravos para a<br />

Bahia e outras áreas, posteriormente inseridas<br />

na primeira economia colonial – que foi a cultura<br />

da cana-de-açúcar – foram masculinos, e existem<br />

evidências de que muitos colonizadores usaram<br />

as índias escravizadas, resgatadas dos massacres,<br />

para a reprodução do braço escravo.<br />

Darcy Ribeiro (<strong>19</strong>95), referindo-se à etnia<br />

brasileira, considera o mameluco como o verdadeiro<br />

brasileiro. Na sua concepção, o africano<br />

entra em segunda instância, não negando,<br />

contudo, sua grande contribuição étnico-cultural<br />

na formação do povo brasileiro. Outrossim,<br />

vale reforçar que o processo de miscigenação<br />

foi compulsório em alguns momentos, mas foi<br />

espontâneo em outros, como a presença de indígenas<br />

nos quilombos de Palmares e, conseqüentemente,<br />

em muitos dos milhares de quilombos<br />

que se formaram ao longo da luta contra<br />

a escravidão. Em contrapartida, havia africanos<br />

convivendo em aldeias indígenas. Podemos<br />

chamar esse fenômeno de a “solidariedade<br />

coexistência dos oprimidos”.<br />

Não podemos perder de vista que a presença<br />

indígena não permanece apenas nos elementos<br />

da nossa cultura material, mas a expectativa<br />

de vida desses povos propiciaram a sobrevivência<br />

de outros tantos que aqui chegaram, africanos<br />

e europeus. Como “donos da terra”, passaram<br />

seus conhecimentos tecnológicos e medicinais,<br />

táticas de sobrevivência nas matas tropicais<br />

e um modo de viver próprio que foi assimilado<br />

pelos estrangeiros. Além disso, trazemos<br />

em nossos traços fisionômicos a herança genética<br />

do nativo ancestral.<br />

Por conta disso, a expressão de Risério lusobantu-jêje-nago<br />

deveria conter, também, uma<br />

referencia ao aborígine, também nosso ancestral,<br />

que as comunidades de terreiro reverenciam<br />

chamando-o “caboclo”. Dessa maneira,<br />

propomos incluir na sua denominação um outro<br />

elemento, o tupi. Na realidade, somos um povo<br />

luso-tupi-bantu-jêje-nagô, pluralizado continuamente<br />

pelas mais diversas culturas que migraram<br />

para o nosso país, ao longo da nossa<br />

história, e continuam cada vez mais migrando e<br />

reformulando valores ético-estéticos e sociais.<br />

2. Identidade: processo histórico<br />

das interações sociais<br />

A contemporaneidade se caracteriza como<br />

uma fase de acirramento das contradições sociais<br />

e de confrontos étnico-culturais. Esses<br />

fenômenos desnudaram a face oculta e espúria<br />

da hegemonia eurocentrista e obrigaram todos<br />

a reverem privilégios, conceitos e preconceitos<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />

87


A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />

arraigados. A questão da relação e da convivência<br />

com o “outro”, o diferente, está no cerne<br />

desta problemática. Compelidos pela necessidade<br />

de superação de impasse tão grave, cientistas<br />

sociais e educadores colocaram no centro<br />

de suas indagações as questões relativas à<br />

alteridade, ao diverso, ao plural e aos numerosos<br />

“outros” que convivem, dialogam, educam,<br />

oprimem ou são oprimidos na nossa sociedade.<br />

Todas estas discussões nos remetem à questão<br />

da complexidade humana e social, bem como<br />

aos múltiplos e contínuos processos de construção<br />

das identidades em permanentes interações.<br />

Este processo ocorre através de relações<br />

simétricas e assimétricas que compõem os intrincados<br />

processos globalizantes das relações sociais<br />

e de produção.<br />

Os escritos sobre identidade nos revelam<br />

que, por conta das suas mais variadas manifestações,<br />

hoje, mais do que nunca, esta torna-se<br />

objeto de perscrutação dos cientistas sociais,<br />

no intuito de entender como ela é construída<br />

pelos atores sociais e como se apresenta em<br />

seus contextos histórico-culturais.<br />

O indivíduo, enquanto construção social, resultado<br />

dos valores e das relações intrínsecas da<br />

sociedade à qual pertence, é construído como<br />

sujeito que interage na dinâmica das relações de<br />

produção. Nas infinitas formas de agir, ser, viver,<br />

pensar o mundo (construir, morar, brincar,<br />

produzir símbolos, lutar, resistir), torna-se, enfim,<br />

um sujeito histórico. Neste caso, segundo Ciampa<br />

(2001, p.157), a “identidade é história”; portanto,<br />

para ele, “não há personagem fora da história,<br />

assim como não há história (ao menos história<br />

humana) sem personagens”.<br />

Sendo assim, todo indivíduo, além de possuir<br />

uma identidade pessoal, social, étnica, de<br />

gênero, de sexo, local, regional e nacional, possui<br />

outras tantas difíceis de enumerar. Estes<br />

sujeitos sociais possuem variadas identidades<br />

culturais como efeito das constantes trocas simbólicas<br />

com valores de outras culturas sob os<br />

efeitos da globalização. Nessa nova configuração<br />

mundial preconizada pelo neo-liberalismo,<br />

são evidenciados nódulos de tensão em determinadas<br />

relações hegemônicas gestadas pelo<br />

imperialismo e que ainda se perpetuam em<br />

áreas do leste europeu, África e Ásia, atingindo,<br />

em especial, os sujeitos da diáspora africana<br />

e os sujeitos pós-coloniais. 9<br />

Nesse contexto, insere-se a identidade étnica<br />

afro-descendente – num estudo de caso objeto<br />

deste artigo – antes oprimida e silenciada<br />

que (re)surge, enquanto projeto político-social<br />

da comunidade afro-brasileira na conquista de<br />

sua cidadania plena e de uma identidade construída<br />

e socializada através dos valores da sua<br />

história e das suas matrizes étnico-culturais. Já<br />

estamos há mais de um século da chamada<br />

“abolição da escravatura”, mas a conquista<br />

completa da inserção social, política e cultural<br />

dos afro-descendentes ainda está por ser<br />

alcançada. Isso não se diferencia muito em<br />

outras partes do globo, onde muitos povos continuam<br />

lutando pela descolonização.<br />

O processo complexo da construção da(s)<br />

identidade(s) se estabelece de forma diferenciada<br />

de indivíduo para indivíduo e de grupo para<br />

grupo, a partir das contingências históricas favoráveis<br />

ou desfavoráveis, sem falar nos processos<br />

conflituosos que geram estratégias de<br />

auto-preservação étnica, provocados pelas lutas<br />

locais, nacionais e internacionais. Também<br />

as guerras interétnicas e os conflitos entre nações<br />

provocam diásporas, principalmente, no<br />

nosso caso, a diáspora de africanos maciçamente<br />

promovida pelo tráfico negreiro até meados<br />

do século XIX.<br />

Os filhos da diáspora africana lutaram por<br />

sua preservação física e cultural durante séculos,<br />

começando a conquistar a cidadania apenas<br />

a partir da segunda metade do século XX<br />

através de muitas lutas e movimentos sociais,<br />

os quais continuam em busca da universalização<br />

dos seus direitos. Dessa forma, a auto-identificação<br />

“negro”, utilizada pelo Movimento Negro<br />

Unificado (MNU), nada mais é do que uma<br />

atitude política de luta e resistência aos estigmas<br />

do colonialismo, perpetuadas nas sociedades<br />

pós-coloniais, quando a questão do racismo<br />

9<br />

Ver, entre outros, Silva (<strong>19</strong>95) e Hall (2000), que em<br />

seus textos citam reflexões de pensadores pós-colonialistas<br />

como Paul Gilroy, Edward Said, Frantz Fanon, Homim<br />

Bahba e outros.<br />

88 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003


Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />

era ainda muito mais evidente e explicita do que<br />

é hoje. Entretanto, a questão da tonalidade da<br />

pele estabelece diferenciações, e o termo “negro”<br />

não é mais aceito por muitos. Estes, influenciados<br />

pela teoria do branqueamento que os<br />

“moreniza”, não se acham negros de fato. 10<br />

Os processos de auto-adscrição étnica ocorridos<br />

no Brasil, por conta do tráfico negreiro,<br />

promoveram uma reorganização étnica por parte<br />

dos escravos e dos negros livres. Assim, configuraram-se<br />

aqui na Bahia dois grandes grupos:<br />

os jêje e os nagô, que, por sua vez, no processo<br />

contínuo de relações interétnicas, foram compondo<br />

uma população cada vez mais caldeada,<br />

principalmente por eles, e hoje estão identificados<br />

em todo o Brasil através do culto ao orixá e<br />

aos ancestrais nas comunidades de terreiros.<br />

As religiões africanas tiveram papel fundamental<br />

na construção de uma identidade étnica africano-brasileira,<br />

no que Silva (2001, p.21) considera<br />

“formadoras que são de uma identidade<br />

sedimentada a partir dos ancestrais e seus arquétipos”.<br />

Em nosso caso, devido às nossas especificidades<br />

históricas, a estratificação social foi definida<br />

etnicamente sob a égide das classes dominantes<br />

senhoriais que determinaram a diferenciação<br />

social de forma estigmatizada pela<br />

origem etno-racial e as relações de trabalho.<br />

Portanto, esse processo de diferenciação se<br />

estabelece, até hoje, por conta do racismo, e,<br />

por isso, os movimentos sociais negros têm como<br />

bandeira de luta a igualdade, a conquista de direitos<br />

e a inserção social do negro na sociedade<br />

de classes. Esses movimentos sociais, desde<br />

o início, lutaram e continuam lutando pela<br />

auto-afirmação étnica e social dos afro-descendentes,<br />

buscando nos referenciais dos movimentos<br />

africanos e brasileiros nossas matrizes culturais<br />

africanas e, principalmente, no culto religioso<br />

afro, valores para a constituição de uma<br />

identidade étnica. Esta luta ocorre fora da escola,<br />

já que esta nega ou se omite, nada fazendo<br />

para enfrentar, discutir e buscar a superação<br />

de impasses históricos como este.<br />

A identidade étnica afro-descendente, assim<br />

como todas as demais identidades e formas de<br />

auto-identificação de grupos humanos e de indivíduos,<br />

é ainda uma questão que demanda reflexões<br />

profundas pela fugacidade da sua apreensão<br />

enquanto objeto de estudo. Este fato mantém<br />

a comunidade científica da sociologia dividida,<br />

ao tempo em que muitas instituições sociais<br />

ainda permanecem ausentes da discussão.<br />

Segundo Hall, (2000, p.8):<br />

... o próprio conceito com o qual estamos lidando,”<br />

identidade”, é demasiadamente complexo,<br />

muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido<br />

na ciência social contemporânea para<br />

ser definitivamente posto à prova. Como ocorre<br />

com muitos outros fenômenos sociais, é impossível<br />

oferecer afirmações conclusivas ou fazer julgamentos<br />

seguros sobre as alegações e proposições<br />

teóricas que estão sendo apresentadas.<br />

Assim, por ser algo que diz respeito a processos<br />

mais complexos do fazer humano, ela<br />

insere-se no campo da subjetividade humana,<br />

área subjacente da racionalidade, com a qual<br />

estabelece intrínseca relação enquanto resultado<br />

do processo do viver social, através de símbolos,<br />

imagens, codificações e significações,<br />

resultantes das práticas sócio-histórico-culturais<br />

e das representações sociais abstraídas desse<br />

convívio.<br />

Devido a essa complexidade própria do ser<br />

humano e das contradições das relações sociais<br />

e de produção, mais do que nunca as identidades<br />

afloram em contextos diversos nessa<br />

“modernidade tardia” ou pós-modernidade, como<br />

é denominada por muitos estudiosos atuais. Elas<br />

estão imersas nesse caleidoscópio das mais<br />

variadas realidades culturais, ilhas ou arquipélagos<br />

de culturas, imbricadas nas mais diferentes<br />

teias de universos simbólicos constituidores<br />

de seus modos próprios de ser e ver o mundo.<br />

Telles (<strong>19</strong>96), comparando os afro-americanos<br />

e afro-brasileiros, percebe que, apesar de,<br />

no Brasil, as marcas de identidade étnica africana<br />

serem mais acentuadas culturalmente, ainda<br />

assim não existe uma consciência étnica – diferentemente<br />

do que ocorre nos Estados Unidos –<br />

não só devido à segregação racial, como, também,<br />

à residencial (guetos e favelas). Para ele,<br />

10<br />

Cf. Silva (<strong>19</strong>96), no seu trabalho com os dados do<br />

censo de <strong>19</strong>76 e <strong>19</strong>95.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />

89


A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />

há uma ambigüidade no comportamento dos afrobrasileiros<br />

em se auto-reconhecerem enquanto<br />

negros e tomarem atitudes políticas no sentido<br />

de conseguirem sua cidadania plena. Assim se<br />

reporta o autor, em relação a esta realidade, citando<br />

Thomas Skidmore (<strong>19</strong>96, p.126):<br />

A cor da pele ou ancestralidade parece ser a principal<br />

marca étnica em países com grandes populações,<br />

tanto de origem européia como africana.<br />

Um sistema de classificação racial no qual a identidade<br />

racial do mulato (também mestiço, pardo)<br />

é uma categoria totalmente legitimada, juntamente<br />

com uma ideologia do branqueamento, que dá<br />

maior valor a uma pele mais clara, tem sido apontado<br />

como um obstáculo à formação de uma identidade<br />

afro-brasileira.<br />

Alguns estudos revelam o comportamento<br />

ambíguo de jovens alunos que não conseguem<br />

se inserir numa classificação de cor, mesmo<br />

porque ainda existem muitas divergências teóricas<br />

sobre esta temática. Portela (<strong>19</strong>97, p.93-<br />

5), ao relacionar afro-descendência, exclusão<br />

social e multirrepetência escolar, utiliza dois tipos<br />

de classificação de cor: a autoclassificação<br />

e a classificação dada pelo entrevistador. No<br />

final, percebe a existência, entre os alunos, de<br />

autoclassificações outras como “amarelo”,<br />

“marrom”, “cor de formiga” etc, no que ela<br />

conclui: “isso mostra que, na Bahia, a despeito<br />

de sua população ser majoritariamente constituída<br />

de pretos e morenos escuros, há ainda uma<br />

grande luta a ser empreendida para a construção<br />

de uma identidade racial”.<br />

Por se tratar de “uma grande luta”, como diz<br />

Portela (<strong>19</strong>97), no sentido de construir uma identidade<br />

racial, é que este estudo também se ocupa<br />

de um empreendimento político-social e pedagógico<br />

como o do CONGO-CENTRO MÉ-<br />

DICO SOCIAL. Esta instituição insere na sua<br />

comunidade de entorno uma proposta de<br />

(re)construção de uma identidade que, na realidade,<br />

deveria ser uma estratégia política dos afrodescendentes<br />

no contexto da sociedade brasileira,<br />

cuja história foi forjada num escamoteamento<br />

etno-racial através da ideologia do “branqueamento”<br />

e da “democracia racial”. Apesar disso,<br />

os jovens sujeitos de Coutos interagiram com a<br />

proposta de forma positiva e, também, manifestaram<br />

um engajamento político-cultural, no sentido<br />

de tomar como referência suas marcas de<br />

identidade afro-descendente.<br />

A identidade étnica afro-descendente está<br />

relacionada à própria história dos contingentes<br />

africanos transladados para a América e outras<br />

partes do mundo. Nesse sentido, Henrique<br />

Cunha Jr. (2002, p.21) parte do ponto de vista<br />

de que “a etnia afrodescendente tem sua história<br />

passada delimitada pela história do continente<br />

africano e das relações deste com o resto do<br />

mundo”. Para ele, devemos lembrar que “a presença<br />

africana na América, Ásia e Europa é<br />

anterior ao ciclo das navegações espanholas e<br />

portuguesas”. Ele toma como referência o<br />

achado do fóssil mais antigo do Brasil, a Luíza<br />

de Lagoa Santa.<br />

Para Cunha Jr. (2002, p.21-22):<br />

As identidades afrodescendentes ou negras são<br />

múltiplas e variadas. Podem ser consideradas<br />

como positivas ou negativas, relacionadas com<br />

a auto-imagem que os indivíduos fazem de si e<br />

dos outros. O importante é que encontremos na<br />

cultura nacional e na população um certo número<br />

de referentes sociais que marcam os conjuntos<br />

identitários diferenciadores dos nossos grupos<br />

sociais afrodescendentes com relação ao<br />

indígena e ao eurodescendente.<br />

... As identidades têm um caráter duplo, por vezes<br />

dependem de como os indivíduos se autoidentificam,<br />

outras de como os outros externos<br />

ao grupo os identificam. Uma das marcas da identidade<br />

afrodescendente é como o grupo externo<br />

nos identifica. As restrições sociais e de representações<br />

de que somos alvo dão um contorno<br />

de identidade ao grupo social.<br />

Dessa forma, ao estabelecer um construto<br />

teórico do conceito de etnia, o autor toma como<br />

referência a definição dada por Amselle (<strong>19</strong>85),<br />

para quem tal conceito “tem um caráter político,<br />

pois está relacionado à história construída<br />

do grupo social e não necessita de uma mesma<br />

língua ou território para a sua existência”.<br />

Sintetizando, Cunha Jr. (<strong>19</strong>95, p.160) afirma:<br />

No caso da etnia, é como uma marca onde os<br />

membros reconhecem seus [sic] próprios, dentro<br />

de uma ordem simbólica própria. As nações<br />

de Candomblé, neste caso, podem ser consideradas<br />

uma etnia. As populações negras ou<br />

afrodescendentes podem ser definidas como<br />

90 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003


Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />

uma etnia pelas ligações biológicas, culturais,<br />

mitológicas ou políticas. Concluímos pelas possibilidades<br />

conceituais de identidades e etnias<br />

negras ou afrodescendentes, no caso brasileiro.<br />

Nesse sentido, “devido aos processos históricos<br />

e sociais vividos por afro-descendentes,<br />

as categorias vindas dos conceitos de identidade<br />

e etnia permitem prever a existência de ‘identidades<br />

negras’” (p.161). Sendo assim, sua assertiva<br />

possui estreita relação com o conceito<br />

de etnia elaborado por d’Adesky (2001, p.<strong>19</strong>2),<br />

relacionando etnia à história, às organizações e<br />

às agremiações sociais politicamente organizadas<br />

no sentido de serem reconhecidas pelo Estado-nação<br />

e, através desse reconhecimento,<br />

poderem dirigir políticas públicas para inserir<br />

democraticamente, no contexto social, econômico<br />

e político, os historicamente excluídos, bem<br />

como dar apoio às organizações não governamentais<br />

quanto a captação de recursos e ações<br />

sociais direcionadas para remediar as ações<br />

depredadoras da colonização.<br />

Cunha Jr.(<strong>19</strong>95, p.161), por razões empíricas<br />

e teóricas, se coloca entre aqueles que acreditam<br />

existir identidade negra. “Não se tratando,<br />

entretanto, de um todo único e uniforme, mas<br />

de identidades negras múltiplas, diferenciadas<br />

entre si, multifacetadas. Tais como são também<br />

as possíveis identidades brancas”. Ele acredita<br />

que certas identidades negras possam ser<br />

construídas em espaços de liberdade, e os exemplos<br />

mais marcantes são os afro-descendentes<br />

criados em torno dos movimentos negros, políticos<br />

e dos movimentos populares, como no seu<br />

caso, e no pertencimento a entidades religiosas<br />

ou rurais, da quase totalidade negra (p.161-162).<br />

A identidade, enquanto algo inerente à História,<br />

está também dentro do seu próprio movimento.<br />

A História, em sua dinâmica, promove<br />

transformações constantes em todos os sentidos<br />

da vida humana, construindo novos sujeitos,<br />

inseridos numa realidade específica, determinada<br />

pelos tempos históricos numa perspectiva<br />

diacrônica.<br />

3. De fora para dentro e de dentro<br />

para fora: uma (re)construção de<br />

identidades e valores sócio-culturais<br />

– o depoimento integral<br />

Com o objetivo de analisar uma experiência<br />

pessoal e toda sua riqueza de vivências, faremos<br />

uma incursão no processo de auto-identificação<br />

étnica de uma das afro-descendentes<br />

participantes do Curso de Corte e Costura Étnica,<br />

promovido pelo CONGO-CENTRO MÉ-<br />

DICO SOCIAL de Alto de Coutos. Dentre as<br />

25 jovens alunas que fizeram parte deste grupo,<br />

elegemos a narrativa de Nidiane por considerá-la<br />

uma das mais significativas que obtivemos<br />

através do relato oral gravado. As narrativas,<br />

segundo Silva (<strong>19</strong>95, p.206):<br />

... podem (e devem) ser vistas como textos abertos,<br />

como histórias que podem ser inventadas,<br />

subvertidas, parodiadas, para contar histórias<br />

diferentes, plurais, múltiplas, histórias que se<br />

abrem para a produção de identidades e subjetividades<br />

contra hegemônicas de oposição.<br />

A partir de agora, conviveremos com Nidiane,<br />

através do seu relato, e, nele, perceberemos<br />

como ela construiu valores e estabeleceu relações<br />

e inferências na construção da(s) sua(s)<br />

identidade(s). Seu relato nos remete a uma reflexão<br />

a partir das diversas referências feitas<br />

por ela quanto aos aspectos etno-culturais presentes<br />

em nossa cultura e formadores da nossa<br />

identidade.<br />

A identidade individual é elaborada em uma aparente<br />

diversidade de universos. Tal concepção<br />

de pluripertencimento implica que a identidade<br />

pessoal se edifica e se conserva por meio das<br />

sínteses de identidades múltiplas que formam<br />

os diversos territórios e possessões do eu<br />

(D’ADESKY, 2001, p. 133).<br />

Nossa interlocutora é uma jovem negramestiça,<br />

estudante do ensino fundamental. Seus<br />

planos para o futuro incluem o desejo de ser<br />

uma “grande costureira”. Ela “ama costurar”,<br />

e afirma que vai encarar qualquer obstáculo para<br />

conseguir seu intento.<br />

Ao tomar conhecimento da abertura das inscrições<br />

para o Curso de Corte e Costura Étnica,<br />

decide matricular-se nele, visto que esta era<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />

91


A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />

a profissão escolhida por ela. Além disso, seu<br />

interesse aumentou significativamente por se<br />

tratar de um curso que seria realizado dentro<br />

uma nova modalidade, numa perspectiva étnico-africana.<br />

Embora já tivesse participado de<br />

um curso anterior de corte e costura, desejou<br />

reforçar seu aprendizado através deste curso<br />

patrocinado pelo CONGO-CENTRO MÉDI-<br />

CO SOCIAL.<br />

Nidiane tem consciência da importância de<br />

ampliar e melhorar seus conhecimentos e experiência<br />

na área que escolheu como profissão.<br />

Reconhece a excelência da oportunidade<br />

que tinha diante de si naquele momento, pois<br />

aquele curso iria prepará-la para o ingresso no<br />

mercado de trabalho. Assim ela se expressou a<br />

respeito:<br />

– O espaço de trabalho lá fora está muito difícil...<br />

está difícil encontrar algum espaçozinho, alguma<br />

vaguinha, alguma empresa...estou me preparando<br />

para entrar neste mercado... preciso estar<br />

pronta para enfrentar as condições lá fora... tudo<br />

que aprendi foi muito bom... muito importante...<br />

tudo ajudou muito na minha formação...<br />

Dentre as coisas importantes que Nidiane<br />

aprendeu ela destaca:<br />

– Ter postura, postura no trabalho, lá fora... saber<br />

como conversar... saber como conversar com<br />

as pessoas... como se comunicar com elas lá fora,<br />

tudo isso...<br />

Nidiane teve, também, aulas de etnia, microempreendimento,<br />

Língua Portuguesa, recursos<br />

humanos e cidadania, conhecimentos que muito<br />

contribuíram para reforçar o seu aprendizado.<br />

Etnia, para ela:<br />

– É raça... o que é raça?... o que é ter cultura?... é<br />

tudo isso que a gente está fazendo, o que está<br />

produzindo... tudo isso tem a ver com etnia... e,<br />

dentro da etnia, tem isso tudo que a gente está<br />

produzindo... o que é a raça africana, a cultura da<br />

África... como eles produziam... como a produção<br />

deles veio para cá, para o Brasil...<br />

Nidiane percebe aspectos da cultura africana<br />

através da atividade estética na qual ela está<br />

inserida. Para ela, a valorização da cultura negro-africana<br />

“veio através da beleza negra”:<br />

– Veio de lá para cá, mas aqui ninguém usa este<br />

tipo de roupa que a gente está produzindo... não<br />

usa, mas a gente está produzindo para que ela<br />

venha se espalhar - essa beleza negra - para que<br />

o povo venha ver que não só existe uma raça,<br />

existem várias, principalmente a negra...<br />

O curso ajudou Nidiane a construir uma identidade<br />

cidadã, ao trabalhar questões que envolvem<br />

uma sociedade que, apesar de dita democrática,<br />

ainda é promotora de muitas exclusões,<br />

desigualdades, estratificações e discriminações.<br />

No contexto do curso foram discutidas as principais<br />

questões sociais e raciais que envolvem<br />

as situações de racismo e discriminação racial,<br />

provocadoras da intolerância racial estrutural<br />

que envolve marcadamente nossa história.<br />

Assim nossa depoente define cidadania:<br />

– É ter direitos e deveres de cidadão... ter direitos<br />

e deveres, isso, sim!... o direito de ir e o direito<br />

de vir, também... o direito de ter uma empresa<br />

para si, uma empresa só sua... eu tenho esse direito...<br />

mas, basta o que?... Meu esforço!.... Meu<br />

dever é praticar e lutar para que eu venha a ter<br />

esse direito...<br />

Além de encarar o curso como um meio para<br />

adquirir conhecimentos práticos para ser uma<br />

“grande costureira”, o curso também ofereceu<br />

a Nidiane outros conhecimentos, que lhe permitiram<br />

conhecer um novo contexto, o étnicocultural,<br />

até então pouco conhecido por ela.<br />

Com muito entusiasmo e envolvimento Nidiane<br />

afirma:<br />

– Tudo que aprendi no curso tem a ver com<br />

minha raça....minha raça é negra, então, costura<br />

étnica faz parte de mim... tem um pedaço de mim...<br />

então, para me completar, gostei de ter juntado<br />

eu e o curso...<br />

Percebemos, através da fala da nossa entrevistada,<br />

que a raça, dentre outros elementos<br />

da cultura, como a religião e a língua, “tem mais<br />

força que outros possíveis fatores da identidade<br />

étnica” (D’ADESKY, 2001, p.44).<br />

Ao falar sobre etnia, Nidiane assim se pronuncia:<br />

– Essa parte – etnia – foi o que me chamou mais<br />

atenção... eu já tinha tomado outro curso de corte<br />

e costura... mas no outro curso só ensinaram a<br />

cortar e costurar... foi uma pena... a etnia não<br />

estava incluída e daí acho que foi muito bonito<br />

este curso de corte e costura étnica...<br />

92 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003


Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />

A priorização da questão étnica africana no<br />

currículo do curso levou Nidiane a perceber e<br />

refletir que ela já havia tomado um curso de<br />

corte e costura anteriormente, mas não com<br />

este enfoque, o que lhe pareceu “muito importante”.<br />

A inclusão da temática e das discussões<br />

a respeito das questões étnicas e raciais fez com<br />

que ela aceitasse facilmente a proposta apresentada<br />

no curso.<br />

Ao se identificar com os valores éticos e<br />

estéticos da proposta do curso, Nidiane percebeu<br />

imediatamente e, de maneira eloqüente e<br />

significativa, os elementos culturais da sua etnia,<br />

até então não trabalhados. Esse processo de<br />

sua identificação, enquanto negra, foi facilitado<br />

pela linhagem paterna negra. A construção de<br />

sua identidade foi privilegiada, dessa forma, pela<br />

referência à sua patridescendência negra.<br />

Ao terminar o curso, Nidiane cultivava o desejo<br />

de ser uma “grande costureira”.<br />

– Quero ser conhecida no Brasil inteiro... quero<br />

produzir roupas muito admiradas... Desejo que a<br />

beleza negra venha estar aqui no Brasil, em todo<br />

o Brasil, principalmente aqui na Bahia... a Bahia<br />

tem, mas, não como a gente está produzindo... e<br />

quero que aconteça logo, assim...<br />

Além dos aspectos culturais, políticos e profissionais,<br />

o curso também propiciou reflexões<br />

profundas que influenciaram nas formas de ser<br />

e pensar dos alunos. Segundo Nidiane:<br />

– O curso... mudou muito a minha postura... antes<br />

eu não me comunicava muito... se fosse para<br />

dar essa entrevista, eu não dava... eu era assim...<br />

era muito calada, mas agora me desenvolvi... uma<br />

coisa boa se desenvolveu dentro de mim... meu<br />

eu agora está diferente... não me comunicava com<br />

ninguém. Ficava dentro de casa... Mas, depois<br />

que eu entrei nesse curso, mudou... agora eu<br />

converso com todo o mundo, eu falo com todo<br />

mundo, me comunico com todo o mundo... todo<br />

mundo que chega aqui, eu me comunico... a primeira<br />

a se comunicar sou eu...<br />

A proposta curricular do curso, além de promover<br />

uma formação técnica-profissional, privilegiou,<br />

também, a formação integral, rompeu<br />

estigmas e elevou a auto-estima dos sujeitos<br />

sociais em questão. Eles tiveram aulas de Língua<br />

Portuguesa, Matemática, Etnia, Cidadania,<br />

Comunicação e Expressão, postura, psicodrama,<br />

atividades lúdicas, técnicas de relaxamento, dinâmicas<br />

grupais de socialização e realizaram<br />

passeios e visitas a outras instituições. Enfim, a<br />

proposta do curso pretendia desconstruir sujeitos<br />

historicamente submetidos à “pedagogia terapêutica<br />

e do recalque”, elaborada pelos poderes<br />

dominantes e baseada no discurso eurocêntrico<br />

de educação, para formar sujeitos cultural<br />

e politicamente posicionados, com uma<br />

nova identidade étnica e uma nova consciência<br />

de cidadania. (LUZ, 2000, p.68).<br />

Nidiane representa o resultado de uma proposta<br />

político-educacional promotora de transformações<br />

de indivíduos numa perspectiva pluricultural.<br />

Ao se auto-identificar, enquanto comunicativa<br />

– o que não era anteriormente – ela<br />

demonstra que, quando os atores sociais são<br />

reconhecidos e respeitados como cidadãos,<br />

ocorre uma metamorfose e esses sujeitos exteriorizam<br />

identidades até então silenciadas e represadas<br />

pelo processo de falta e exclusão dos<br />

bens sociais e culturais produzidos pela sociedade.<br />

A capacidade de se expressar, de se reconhecer<br />

como indivíduo-sujeito, histórico,<br />

social e cultural, promove transformações radicais<br />

na forma de ser e de pensar o mundo.<br />

Como não poderia deixar de ser, também<br />

nesse agrupamento, as relações humanas geraram<br />

tensões e desentendimentos. Nesse processo,<br />

as identidades sociais, culturais e grupais<br />

ao se chocarem, promovem, nesta interação,<br />

novas reflexões e novas posturas.<br />

Nidiane afirma:<br />

- Aí é que está o problema!...<br />

As relações grupais, durante o convívio no<br />

curso, foram conflituosas em alguns momentos<br />

e, às vezes, geraram grandes tensões. Houve<br />

estranhamentos, rupturas e condutas agressivas.<br />

No período inicial da convivência do grupo,<br />

houve uma cisão por parte de um grupo de<br />

meninas oriundas da invasão Nova Constituinte,<br />

localizada naquelas imediações. As identidades,<br />

dessa forma, cristalizam-se estabelecendo<br />

fronteiras e dissensões.<br />

Assim relata Nidiane:<br />

A metade das meninas mora aqui, mas não moram<br />

bem aqui em cima, sabe?... Moram lá para<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />

93


A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />

baixo, onde fica a tal da invasão. As meninas<br />

falam que é invasão, mas é a rua direta da Constituinte...<br />

só que elas costumam chamar de invasão...<br />

aí, sempre tem um grupinho que é mais<br />

separado dessas... essa daí, já tem filho, já tem<br />

família, mas não se comporta como uma mãe de<br />

família... não se comporta como uma menina direita...<br />

sempre tem aquele grupo que é separado<br />

delas... então elas chamam de quê?... de<br />

patricinha?... Eu sou uma dessas patricinhas,<br />

entendeu?... eu não tenho nada, sou igual a elas...<br />

eu me acho igual a elas, me comunico com elas<br />

normal, falo com todas elas, mas elas nunca reconhecem,<br />

entendeu?... Então, elas sempre dizem<br />

que a gente é diferente delas... da minha<br />

parte, eu me comunico com todo mundo, falo<br />

com todo mundo... pode me botar defeito, o que<br />

for, mas eu me comunico com todo mundo, eu<br />

não tenho isso... daqui para o final desse curso<br />

isso vai consertar...<br />

De acordo com o relato acima, percebemos<br />

que as diferenças tendem, na grande maioria<br />

das vezes, a provocar conflitos devido à incapacidade<br />

humana de perceber o outro na sua<br />

alteridade.<br />

O grupo, apesar de reunir habitantes de uma<br />

mesma zona – o subúrbio ferroviário – é composto<br />

por moradores de locais diferentes e específicos,<br />

com identidades próprias e diferenciadas.<br />

Uma pequena parte deles mora no conjunto<br />

residencial popular Vista Alegre; outros<br />

moram em Periperi, área adjacente a Coutos, e<br />

uma outra parte mora no Alto de Coutos, área<br />

invadida ao longo do tempo e onde também foram<br />

construídos blocos residenciais.<br />

Essas identidades têm características específicas,<br />

conforme a origem do morador, do local<br />

onde reside, do grau de escolaridade, da<br />

organização familiar, dos modos de comportamento<br />

e comunicação, elementos estes que contribuem<br />

decisivamente para a construção dos<br />

seus perfis individuais e grupais.<br />

Quanto à questão econômica, a renda familiar<br />

varia e está de acordo com a conjuntura<br />

atual. A maioria dos chefes de família está desempregada<br />

e é constituída de biscateiros, ajudantes<br />

de serviços, artesãos, ajudantes de obras<br />

e vendedores ambulantes. As mulheres, por sua<br />

vez, na grande maioria, exercem atividades domésticas.<br />

Poucas possuem profissões nas áreas<br />

técnicas, como enfermagem e magistério. Como<br />

exceções, existem aposentados e funcionários<br />

públicos.<br />

A estrutura sócio-econômica e familiar, na<br />

qual vivem, também define os sujeitos sociais e<br />

as características que os diferenciam. A religiosidade,<br />

a educação e os princípios morais e éticos<br />

são elementos facilmente percebidos, bem<br />

como os diferentes comportamentos e maneiras<br />

de comunicação dos participantes da comunidade.<br />

Entre estes havia alguns evangélicos.<br />

Foi fácil reconhecer a identidade religiosa<br />

dos integrantes deste grupo através do conteúdo<br />

da sua fala, da maneira como se vestiam,<br />

como se arrumavam, como se agrupavam etc.<br />

Esses aspectos os diferenciavam a partir das<br />

suas culturas próprias e das suas visões de<br />

mundo. Essas pessoas representavam, na realidade,<br />

um grupo da comunidade, agregadas aos<br />

mesmos objetivos; entretanto, elas eram diferentes,<br />

de fato, pois eram sujeitos culturais<br />

construídos historicamente através de trajetórias<br />

próprias que as moldaram enquanto indivíduos<br />

de uma sociedade multiétnica, diferencialista e<br />

excludente.<br />

Percebemos, dessa maneira, que o conjunto<br />

dessas características estabeleceu, a princípio,<br />

espaços determinados que passaram a ser vistos<br />

como áreas de atrito entre identidades diferentes.<br />

Assim, por exemplo, uma parte das jovens<br />

da invasão Nova Constituinte, em virtude<br />

de suas maneiras desinibidas, irrequietas, liberais<br />

e rebeldes, não aceitava as colegas que<br />

eram caladas, reservadas e com outras posturas,<br />

fruto de uma cultura específica, diferenciada<br />

das demais. Essa diversidade de comportamentos<br />

provocou situações constrangedoras<br />

e, não raro, desafiadoras para os dirigentes do<br />

Programa..<br />

Apesar de Nidiane afirmar, na sua narrativa,<br />

que não tinha nada contra elas, inconscientemente<br />

o processo de rejeição e discriminação<br />

estava, de alguma forma, presente nas suas<br />

interações.<br />

Esta interação com o outro tende a provocar<br />

reações diversificadas no sujeito, ativando<br />

seus mecanismos de defesa. Um deles é o afastamento<br />

e a rejeição daqueles com os quais não<br />

94 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003


Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />

há identificação ou que não fazem parte do contexto<br />

social no qual o sujeito está inserido. O<br />

outro, o alienígena, o diferente, transforma-se<br />

numa figura ameaçadora e persecutória, que<br />

provoca a criação de barreiras e defesas que<br />

visam a necessidade de proteção e isolamento<br />

contra o perigo iminente que este outro representa.<br />

Do ponto de vista de Nidiane:<br />

– A metade das meninas mora aqui, mas elas não<br />

moram bem aqui em cima... moram lá em baixo...<br />

na tal da invasão, a Rua Direta da Constituinte...<br />

são elas mesmas que costumam chamar lá de<br />

invasão... são as próprias moradoras da invasão<br />

que falam assim... elas não são pessoas de boa<br />

reputação, com quem se deva andar junto...<br />

Fica bem clara, na fala de Nidiane, a diferença<br />

estabelecida a partir do referencial residencial:<br />

as meninas do Alto de Coutos são representantes<br />

de um grupo - as daqui de cima -<br />

e as demais, aquelas outras, são de outro grupo,<br />

as de lá de baixo.<br />

O conflito entre esses dois grupos é reforçado<br />

pelo fato de que as jovens da invasão da<br />

Nova Constituinte já são mães-de-família, mas<br />

não agem como tais, e “não se comportam como<br />

meninas direitas”. A maternidade precoce e<br />

sem companheiro, isto é, sem o marido ratificador<br />

da relação matrimonial, ainda é um grande<br />

diferenciador em nossa sociedade. Como<br />

ficou evidente na entrevista com Nidiane, uma<br />

parte dessas jovens possui os referenciais típicos<br />

da família tradicional. Mesmo as pessoas<br />

de classes populares, pauperizadas pela conjuntura<br />

presente, ainda preservam os valores<br />

da boa conduta que determinam a identidade<br />

de uma pessoa de família, de uma mulher digna<br />

e de respeito.<br />

Como resultado desses olhares diferenciadores,<br />

do ponto de vista de quem vê o outro, as<br />

jovens lá de baixo foram rejeitadas e excluídas<br />

do grupo lá de cima porque não possuíam<br />

referenciais que se coadunassem com os princípios<br />

éticos adotados pelas referidas jovens.<br />

Não se sentindo acolhidas pelas de lá de cima,<br />

em contrapartida, as rejeitadas, as de lá de<br />

baixo, denominaram as de lá de cima de<br />

patricinhas, ou seja, as sofisticadas.<br />

Nidiane se considera uma pessoa comunicativa,<br />

pois “se comunica com todo mundo”.<br />

De fato, seu relato foi animado, seguro, direto e<br />

cheio de detalhes. O que mais nos impressiona<br />

é a forma entusiasmada com que ela abraçou a<br />

proposta do curso. Ela vibrou com aquela nova<br />

perspectiva. A identidade negra aflorou nos seus<br />

gestos e nas suas falas. Para ela, tudo aquilo<br />

era algo inusitado. A beleza negra tornou-se um<br />

grande diferenciador em sua vida, não só no<br />

processo de construção da sua identidade étnica<br />

e de gênero, enquanto mulher negra, mas<br />

também enquanto profissional.<br />

Nidiane, apesar de considerar constrangedoras<br />

algumas situações geradas no seu processo<br />

de socialização, terminou por acreditar<br />

que até o final do curso aquelas situações iriam<br />

se modificar. Face à maneira como o curso estava<br />

sendo conduzido, ela acreditava que as situações<br />

problemáticas seriam satisfatoriamente<br />

resolvidas. O clima no qual o curso foi realizado<br />

– sob a égide da sociabilidade e da liberdade<br />

– sinalizava para Nidiane a perspectiva<br />

de uma coexistência pacífica para o grupo, o<br />

que de fato veio a acontecer. As arestas foram<br />

sendo esmerilhadas pelos valores éticos propostos<br />

e trabalhados durante todo o processo de<br />

interações múltiplas e de constantes trocas de<br />

conhecimentos e reconhecimentos.<br />

Em Coutos, há várias ruas com nomes de<br />

países africanos e asiáticos, a começar pelo<br />

próprio nome da instituição que fica na Rua do<br />

Congo. Outras ruas como Sudão, Guiné etc,<br />

também estão presentes naquele espaço.<br />

Nidiane, apesar de não saber informar a respeito<br />

dos nomes das ruas daquele lugar,<br />

ressignifica a presença desses nomes naquele<br />

local. Para ela:<br />

– Ruas com nomes de países africanos?... acho<br />

que tem tudo a ver com a África, com a raça<br />

negra... tem tudo a ver... aí é que a gente vai ver<br />

que a cultura deles está chegando para nós...<br />

chegando para a gente aqui... já chegou, mas a<br />

gente não sabia... nossos olhos, nossa visão<br />

estavam tapados... agora é que estão se abrindo,<br />

principalmente com este curso... abriu muito<br />

nossa visão para que a gente viesse enxergar a<br />

beleza deles e viéssemos colocar em prática esse<br />

trabalho da costura étnica...<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />

95


A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />

Nessa fala, podemos inferir que, para Nidiane,<br />

a presença de referenciais africanos já existiam<br />

na sua comunidade, mas não eram até<br />

então percebidos, ou seja, os sujeitos não se<br />

apropriavam desses elementos enquanto parte<br />

de suas existências. Esse universo material e<br />

cultural repleto de símbolos e de representações<br />

era carente de significado para as pessoas<br />

enquanto elementos de uma cultura material<br />

e espiritual que deveria ser concebida e reconhecida<br />

como elementos de uma arkhé estruturante<br />

desses sujeitos históricos.<br />

A inserção dessa jovem naquele universo<br />

propiciador de muitas experiências e reflexões,<br />

promoveu uma revolução no seu modo de pensar<br />

e ver o mundo que contribuiu decisivamente<br />

para a ampliação de seus horizontes e de<br />

suas perspectivas em relação a si própria e à<br />

sua comunidade.<br />

O contexto do curso promoveu inferências<br />

a respeito da sua realidade e das relações sociais<br />

e culturais que mantém com os vários sujeitos<br />

nela inseridos. Novas leituras de mundo foram<br />

feitas a partir de um referencial teóricoconceitual<br />

que lhe mostrou como vivem os afrodescendentes<br />

em nossa sociedade.<br />

As metáforas utilizadas pela entrevistada,<br />

quanto à cegueira cultural e estrutural daquelas<br />

pessoas, mostram o quanto nosso patrimônio<br />

cultural africano está sendo desprivilegiado em<br />

relação aos novos artefatos e valores globalizantes.<br />

Em contrapartida, ela percebe o curso como<br />

vetor realimentador dos valores culturais das<br />

nossas matrizes étnicas, principalmente a africana.<br />

Repensar a questão étnica nessa perspectiva<br />

trouxe a possibilidade de novas leituras<br />

e redimencionamentos dos valores culturais e<br />

históricos dos povos da diáspora que fazem<br />

parte da nossa matriz civilizatória.<br />

É necessário que entidades sociais e culturais<br />

realizem o trabalho de reconstituição das<br />

edificações culturais representativas do patrimônio<br />

histórico-cultural e baluarte civilizatório<br />

africano. Isso deve ser feito de maneira didática,<br />

educativa e socializante. Deve ser fruto de<br />

interações sociais, educacionais e culturais, nas<br />

quais predomine a reflexão a respeito das identidades<br />

culturais, possibilitando novos enfoques e<br />

um novo pensar a respeito dessas questões.<br />

A conquista da participação num espaço<br />

privilegiado é outra característica dos sujeitos<br />

envolvidos no curso objeto deste estudo de caso.<br />

Todos os candidatos, de uma maneira geral,<br />

passaram por uma seleção constituída por entrevistas,<br />

conversas e debates. Assim, estar ali<br />

foi um processo que marcou muito a vida de<br />

todos eles. Ao tratar disso, assim Nidiane se<br />

reporta:<br />

– Muitos queriam estar aqui no nosso lugar, mas<br />

não puderam... queriam reivindicar nosso lugar...<br />

queriam falar em nosso lugar... mas não puderam,<br />

porque foram inscritas várias pessoas, acho<br />

que quase cem, mas só foram selecionadas trinta...<br />

então, essas setenta que ficaram lá fora queriam<br />

ficar em nosso lugar... não tinha espaço para<br />

todas elas, entendeu?... Então, eu acho muito<br />

importante que a gente viesse aqui reivindicar<br />

nosso trabalho... desenvolver o nosso trabalho<br />

através de uma entrevista que viesse sair, né?...<br />

não ficasse só aqui no Congo, no Alto de Coutos,<br />

só aqui em Periperi, mas que viesse sair para<br />

outro lugar o nosso trabalho...<br />

No trecho acima, Nidiane nos relata sua<br />

satisfação pela vitória em ter sido selecionada<br />

numa disputa acirrada de quase cem concorrentes,<br />

segundo ela. Isso aumentou sua autoestima,<br />

ao tempo em que a conscientizou da<br />

sua responsabilidade quanto ao sucesso do projeto.<br />

Sentiu que seu desempenho no curso influiria<br />

na imagem do mesmo e na possibilidade<br />

dos seus resultados serem divulgados para o<br />

público.<br />

A presente entrevista, para Nidiane, tinha<br />

esse cunho divulgador, apesar de ter-lhe sido<br />

explicado que ela estava sendo realizada para<br />

fins de um trabalho acadêmico e não para fins<br />

de divulgação jornalística. Na sua perspectiva, o<br />

trabalho desenvolvido no CONGO – CENTRO<br />

MÉDICO SOCIAL deveria ser ampliado para<br />

outras áreas, não só em Periperi e Alto de Coutos,<br />

mas também em outras áreas da cidade.<br />

CONCLUSÃO<br />

Projetos voltados para a educação pluricultural<br />

ainda estão longe de serem concretizados<br />

96 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003


Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />

na sua amplitude e totalidade. Apesar de já possuirmos<br />

epistemes que nos balizem teoricamente,<br />

além de experiências isoladas como as expostas<br />

neste trabalho, as práticas nesse campo<br />

ainda se encontram em fase embrionária. O<br />

desinteresse e a falta de investimento material,<br />

pedagógico e didático por parte dos dirigentes<br />

da educação contribuem para que as matrizes<br />

étnicas afro-aborígines sejam caricaturizadas<br />

por parte dos muitos profissionais que não possuem<br />

referenciais teóricos e práticos na consecução<br />

de um projeto dessa natureza. Os profissionais<br />

da educação não são preparados nem<br />

estimulados a incorporar de forma competente<br />

um projeto de educação multicultural nas práticas<br />

cotidianas. Enquanto isso não acontece de<br />

forma sistematizada e reconhecida nas escolas,<br />

realizam-se apenas experiências isoladas de<br />

pequena monta, que trabalham na construção<br />

de uma identidade étnica, social, cultural e cidadã<br />

para afro-descendentes e aborígines, trabalhando<br />

aspectos etno-culturais que os constroem<br />

enquanto indivíduos-sujeitos.<br />

A experiência individual, apresentada neste<br />

estudo – no contexto de uma discussão sobre a<br />

teoria e a prática da educação pluricultural –<br />

nos mostra quanto os sujeitos são beneficiados<br />

e adquirem, rapidamente, consciência crítica em<br />

situações pedagógicas favoráveis que estimulam<br />

suas autonomias e promovem a (re)construção<br />

de suas identidades.<br />

Esta experiência pedagógica interétnica, calcada<br />

numa perspectiva multirreferencial, possibilitou<br />

à nossa depoente e aos seus colegas de<br />

curso, a oportunidade para discutir e entender<br />

as questões próprias da sua etnia face à conjuntura<br />

atual e ao seu cotidiano. Esse curso<br />

profissionalizante – apesar de ter a duração de<br />

apenas um ano – promoveu mudanças profundas<br />

em seus alunos, proporcionando-lhes oportunidade<br />

para o desenvolvimento da sua consciência<br />

étnico-cultural.<br />

Dessa forma, diante da realidade histórica de<br />

discriminações, a construção da(s) identidade(s)<br />

torna-se um ato político, porque ela não só conscientiza<br />

e ressignifica os atores sociais, como<br />

também faz com que eles percebam o seu papel<br />

social e cultural enquanto sujeitos históricos.<br />

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97


A (re)construção da identidade étnica afro-descendente a partir de uma proposta alternativa de educação pluricultural<br />

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Recebido em 30.05.03<br />

Aprovado em 20.07.03<br />

98 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003


Léa Austrelina Ferreira Santos<br />

ODEMODÉ EGBÉ ASIPÁ: PARA ALÉM DO “ENSINO<br />

DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA”<br />

Léa Austrelina Ferreira Santos *<br />

RESUMO<br />

Este artigo traz uma reflexão sobre a Lei 10.639/03, que insere a temática<br />

da História e Cultura dos afro-descendentes nos currículos da rede oficial<br />

de ensino no Brasil. Em virtude das demandas da Lei, apresenta a<br />

perspectiva pedagógica do Projeto Odemodé Egbé Asipá - Juventude<br />

da Sociedade Asipá, afirmando e analisando a sua linguagem pedagógica<br />

como capaz de compreender o que considera um dos maiores problemas<br />

da sociedade brasileira: o recalque à afirmação existencial, à<br />

identidade dos afro-descendentes e à diversidade étnico-cultural presente<br />

em nosso contexto.<br />

Palavras-chave: Ancestralidade – Pluralidade Cultural – Identidade –<br />

Educação<br />

ABSTRACT<br />

ODEMODÉ EGBÉ ASIPÁ: TOWARDS BEYOND THE “AFRO-<br />

BRAZILIAN HISTORY AND CULTURE TEACHING”<br />

This article brings a reflection over Law 10.639/03, which inserts the<br />

thematic of History and Culture of the Afro-descendants in the curriculums<br />

of the official teaching network in Brazil. Due to the requirements of the<br />

law, it presents the pedagogical perspective of the Project Odemodé<br />

Egbé Asipá - Youth of the Asipá Society, affirming and analyzing its<br />

pedagogical language as capable of understanding what it considers as<br />

one of the greatest problems in the Brazilian society: the repression of<br />

the existential affirmation, of the identity of the Afro-descendants and of<br />

the ethnic-cultural diversity present in our context.<br />

Key words: Roots – Cultural Plurality – Identity – Education.<br />

*<br />

Mestranda do Curso de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da<br />

Bahia; Pedagoga; Pesquisadora do Programa Descolonização e Educação-PRODESE; Assessora pedagógica<br />

do Projeto Odemodé Egbé Asipá; trabalho orientado pela professora Dra. Narcimária P. Luz. Agradeço<br />

profundamente à comunidade-terreiro Ilê Asipá a oportunidade que me foi concedida de conhecer e viver<br />

uma experiência pedagógica vinculada com a afirmação de nossa diversidade cultural, especialmente aos<br />

jovens da comunidade, pela afetividade e laços criados. Endereço para correspondência: Setor C, Rua F,<br />

caminho 36, n.1, Mussurunga I, – 41510-<strong>19</strong>0 Salvador/BA. E-mail: leaferreira@hotmail.com.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003<br />

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Odemodé egbé asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />

1. Introdução<br />

Onilewa alabê Konko<br />

Onilewa alabê Konko<br />

Alabê koriko koriko koriko<br />

Alabê koriko 1<br />

(Alabê o que possui a honorabilidade de membro<br />

da casa Alabê canta como o pássaro koriko)<br />

Alabê é um componente da orquestra ritual<br />

dentro da tradição litúrgica africano-brasileira.<br />

Os alabês são aqueles que devem conhecer o<br />

toque do atabaque, o ritmo, os ritmos percussivos<br />

rituais, as saudações e as cantigas do repertório<br />

litúrgico da tradição. (LUZ, <strong>19</strong>95)<br />

A música alabê traz uma ordem de elaboração<br />

de mundo inerente ao processo civilizatório<br />

africano-brasileiro. O alabê é, antes de tudo,<br />

um membro da casa e possui honorabilidade por<br />

isso, ou seja, há uma implicação de ordem<br />

interpessoal, o sentimento de pertencer a uma<br />

comunalidade 2 , há uma elaboração existencial<br />

da sua presença no mundo. É também uma função,<br />

um título. Há uma relação dialética entre o<br />

técnico e o estético que se unem para a realização<br />

da dimensão nagô Odara 3 das formas de<br />

comunicação africano-brasileiras em meio ao<br />

ato litúrgico.<br />

Ser alabê significa dignificar a tradição em<br />

cada ato litúrgico, ser responsável pela manutenção<br />

dos instrumentos rituais, pelo toque do<br />

atabaque. O alabê deve conhecer as saudações,<br />

as canções, é responsável pela comunicação<br />

entre o aiyê, este mundo, e o orum, o além 4 . É a<br />

concretização da dimensão técnica, do saber tocar<br />

e da responsabilidade da atividade ritual e da<br />

dimensão estética, do conhecimento sobre a<br />

música e todo universo simbólico que a envolve,<br />

um processo que proporciona a afirmação da<br />

identidade própria dos membros da comunidade.<br />

As reflexões sobre a música Alabê remetem<br />

à dinâmica pedagógica do Projeto Odemodé<br />

Egbé Asipá – Juventude da Sociedade Asipá,<br />

que contou com a participação de parte dos jovens<br />

alabês da comunidade-terreiro Ilê Asipá<br />

localizada em Salvador/Bahia. Ser alabê na<br />

comunidade-terreiro significa ter uma referência<br />

de pertencimento, ter uma função, e acima<br />

de tudo, uma identificação com os valores culturais<br />

da comunidade.<br />

O Projeto Odemodé Egbé Asipá, realizado<br />

pela comunidade-terreiro Ilê Asipá, foi elaborado<br />

a partir dos valores culturais e existenciais<br />

desses jovens, que são ilustrados com a música<br />

alabê.<br />

Apresento a perspectiva pedagógica do Odemodé<br />

como uma iniciativa capaz de contemplar<br />

as propostas da Lei 10.639/03, mas que a<br />

transcende, possibilitando a criação de uma<br />

pedagogia contrária à política de recalque à afirmação<br />

da identidade dos afro-descendentes,<br />

pois essa perspectiva pedagógica foi elaborada<br />

a partir da referência existencial dos jovens, dos<br />

valores da comunidade.<br />

Pretendo analisar os pressupostos da Lei e<br />

apresentar a perspectiva pedagógica do projeto<br />

Odemodé, que tem como uma das suas principais<br />

características a de recriação de uma linguagem<br />

ético-estética africano-brasileira aplicada<br />

à Educação, visando gerir os aspectos<br />

mencionados – a afirmação as identidades dos<br />

jovens da comunidade Ilê Asipá e a nossa diversidade<br />

cultural.<br />

A música alabê, neste caso, implica a afirmação<br />

da identidade cultural das populações de<br />

1<br />

Música da tradição litúrgica africano-brasleira (apud<br />

LUZ, <strong>19</strong>95, p. 534).<br />

2<br />

Essa categoria foi elaborada por alguns autores, especialmente<br />

Marco Aurélio Luz, para designar a rede de relações<br />

interpessoais que caracterizam a forma social presente<br />

em comunidades de origem africana no Brasil.<br />

3<br />

Categoria utilizada por alguns autores, entre eles<br />

Narcimária C. P. Luz e Juana Elbein dos Santos, para<br />

caracterizar a dimensão estética presente nas formas e<br />

códigos de comunicação africano-brasileiras.<br />

4<br />

Segundo Santos (<strong>19</strong>86, p.53) a existência, dentro do sistema<br />

nagô, se desdobra em dois níveis: o aiyê e orun; aiyê<br />

corresponde a este mundo, o mundo físico concreto, e a<br />

vida de todos os seres naturais que o habitam, e orun, o<br />

outro mundo, o além, o espaço sobrenatural, uma concepção<br />

abstrata de algo imenso, infinito e distante. Muitos<br />

autores traduzem orun por céu (sky) ou paraíso (heaven)<br />

caracterizando um obstáculo teórico-epistemológico, pois<br />

a idéia de orun é abstrata, orun não é concebido como<br />

localizado em nenhuma das partes do mundo real, é um<br />

mundo paralelo ao mundo real que coexiste com todos os<br />

conteúdos deste. Cada indivíduo, cada árvore, cada animal,<br />

cada cidade possui um duplo espiritual e abstrato no orun.<br />

100 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003


Léa Austrelina Ferreira Santos<br />

origem africana em dois planos: mais especificamente,<br />

na afirmação existencial dos jovens<br />

que estão envolvidos na elaboração da perspectiva<br />

pedagógica do Odemodé e num plano<br />

mais abrangente, em analogia, o da afirmação<br />

das identidades culturais de grande parte da<br />

população infanto-juvenil afro-descendente.<br />

Essa música, além de simbolizar a elaboração<br />

de mundo ligada à identidades dos jovens, fornece<br />

uma referência para todo um segmento<br />

populacional de afirmação da diversidade cultural<br />

em nosso país.<br />

A sanção da referida Lei constitui-se em um<br />

fato importante na história da legislação educacional<br />

brasileira, visto que a historiografia oficial<br />

exerce o silêncio sobre o processo civilizatório<br />

africano no Brasil; entretanto, é necessário refletir<br />

sobre quais são os referenciais contidos para<br />

a sua proposição. A partir de que referências é<br />

que se propõe o ensino de história sobre afrobrasileiros?<br />

Como evitar as visões etnocêntricas<br />

e as imposições de valores neocoloniais e imperialistas<br />

dominantes no ensino da História em<br />

nosso contexto?<br />

2. A Lei 10.639/03: tensões e obstáculos<br />

teórico-epistemológicos na<br />

concepção de perspectivas pluriculturais<br />

de Educação<br />

A Lei 10.639 foi sancionada pelo Presidente<br />

da República, Luís Inácio Lula da Silva, em 9<br />

de janeiro de 2003, e acrescenta dois artigos à<br />

LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação<br />

Nacional, número 9.394, de <strong>19</strong>96. É importante<br />

ressaltar o caráter de “novidade” contido nela,<br />

o que significa que as análises e reflexões são<br />

muito recentes, e o seu conteúdo tem causado<br />

grandes expectativas na comunidade docente<br />

brasileira. As reflexões contidas aqui têm como<br />

característica o fomento de discussões, em vez<br />

da apresentação de propostas fechadas e conclusivas.<br />

A principal mudança estabelecida pela Lei<br />

é que ela torna obrigatório o ensino sobre História<br />

e Cultura Afro-brasileira no currículo oficial<br />

da rede de ensino e inclui como conteúdo<br />

programático:<br />

... o estudo sobre História da África e dos Africanos,<br />

a luta dos negros no Brasil, a cultura negra<br />

brasileira e o negro na formação da sociedade<br />

nacional resgatando a contribuição do povo<br />

negro nas áreas social, econômica e política<br />

pertinentes à História do Brasil. (Texto da Lei<br />

10.639/03 - Grifos meus)<br />

A Lei determina também que esses conteúdos<br />

serão ministrados em todo o currículo escolar,<br />

especialmente na área de Educação Artística,<br />

História e Literatura Brasileiras, e inclui<br />

o dia 20 de novembro como Dia Nacional da<br />

Consciência Negra no calendário escolar.<br />

Esta Lei contaria ainda com mais um inciso<br />

e um artigo que foram vetados 5 pela Presidência<br />

da República: o primeiro, o inciso 3, determinava<br />

que fossem dedicados, no ensino médio,<br />

10% do conteúdo programático anual ou<br />

semestral das disciplinas de História do Brasil<br />

e Educação Artística. Esse inciso foi vetado,<br />

pois iria de encontro à proposta da Constituição<br />

brasileira de <strong>19</strong>88, que impôs à legislação<br />

infraconstitucional o respeito às peculiaridades<br />

regionais e locais, o que teria sido contemplado<br />

no caput do artigo 26 da LDB que preceitua:<br />

Os currículos do ensino fundamental e médio<br />

devem ter uma base nacional comum, a ser<br />

complementada, em cada sistema de ensino e<br />

estabelecimento escolar, por uma parte diversificada,<br />

exigida pelas características regionais e<br />

locais da sociedade, da cultura, da economia e<br />

da clientela.<br />

Além disso, em outro artigo da Constituição,<br />

o 211, afirma-se como de interesse público a<br />

participação dos Estados e Municípios na elaboração<br />

dos currículos mínimos nacionais, preceito<br />

contemplado na LDB no artigo 9, inciso 4. Este<br />

seria também outro interesse público contrariado<br />

pelo inciso 3.<br />

Quanto ao artigo vetado, estabelecia que os<br />

cursos de capacitação para professores deveriam<br />

contar com a participação de entidades do<br />

movimento afro-brasileiro, das universidades e<br />

de outras instituições de pesquisa. Porém a LDB<br />

não disciplina e nem faz menção em nenhum dos<br />

5<br />

Vide Mensagem do Veto número 7, de 09/01/2003. Presidência<br />

da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos<br />

Jurídicos.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003<br />

101


Odemodé egbé asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />

seus artigos a cursos de capacitação para professores,<br />

o que romperia com a unidade de conteúdo<br />

da LDB e contrariaria uma norma de interesse<br />

público da Lei complementar nº 95 de 26<br />

de fevereiro de <strong>19</strong>98, segundo a qual a Lei não<br />

conterá matéria estranha a seu objeto.<br />

Deve-se considerar também que esse assunto<br />

nunca foi devidamente tratado pela legislação<br />

educacional brasileira anterior à LDB. Os próprios<br />

Parâmetros Curriculares Nacionais tratam<br />

a temática da pluralidade cultural como algo<br />

“transversal” dentro dos currículos brasileiros.<br />

Diversos desafios são colocados diante de<br />

nós, tais como: organizar um currículo que atenda<br />

a essas necessidades no que diz respeito à<br />

escolha dos conteúdos a serem abordados,<br />

materiais didáticos a serem utilizados; analisar<br />

capacidade reflexiva do sistema educacional<br />

brasileiro sobre esse tema; e, principalmente,<br />

considerar as interpretações restritivas da retórica<br />

técnica jurídico-política da Lei.<br />

O desafio mais instigante, entretanto, não é<br />

esse. Ele está relacionado às referências existenciais<br />

e às motivações que fizeram a Lei<br />

emergir e, sobretudo, a suas implicações no<br />

contexto das escolas brasileiras.<br />

Nesse sentido é importante ressaltar que o<br />

Projeto Odemodé, cerne deste artigo, nasceu<br />

da necessidade de afirmação existencial dos<br />

jovens de uma comunidade africano-brasileira<br />

na Bahia. A sua linguagem pedagógica foi<br />

construída a partir das referências ancestrais<br />

da comunidade, o que favorecia a afirmação<br />

das identidades culturais.<br />

Os nossos educadores estariam preparados<br />

para a abordagem de tais temas? A resposta é<br />

não! Os professores no Brasil, de uma forma<br />

geral, não têm formação para o ensino de História<br />

da África e não são estimulados a pensar<br />

e perceber a riqueza pluricultural da nação.<br />

Outra questão: De qual noção de África se<br />

está falando? Quais idéias estão implicadas<br />

nessa noção de África?<br />

Existem diversas instituições que se preocupam<br />

com a Lei. Há uma movimentação<br />

incipiente, entre algumas instituições, para criação<br />

de cursos com a finalidade de “capacitar”<br />

professores nessa área. Muitas iniciativas já<br />

existentes devem ser revistas e analisadas. A<br />

Bahia tem muito a contribuir com isso.<br />

Um fato que tem sido colocado em questão<br />

é se a autonomia trazida pela LDB às instituições<br />

educacionais no Brasil estaria sendo comprometida<br />

com a sanção desta Lei. Acredito<br />

que esse argumento não é suficientemente forte<br />

para considerá-la um empecilho para a autonomia<br />

gerada pela LDB, pois a Lei 10.639 não<br />

revoga nenhum de seus artigos anteriores, mas<br />

reforça um aspecto importante que nunca foi<br />

devidamente tratado pela educação nacional;<br />

ou seja, a criação dessa nova lei não exclui a<br />

possibilidade de que sejam ensinados, no currículo<br />

da educação básica, conteúdos inerentes<br />

à história e cultura de outra etnia; ao contrario,<br />

a sanção dessa lei pode estar despertando essa<br />

necessidade em outras partes da população de<br />

origens distintas no Brasil.<br />

Há um problema muito maior que pode estar<br />

sendo tocado com a Lei 10.639/03. É o fato<br />

de a histografia oficial brasileira sempre retratar<br />

o afro-descendente sob o ponto de vista<br />

pejorativo, incutindo a identidade de escravo,<br />

numa leitura linear evolucionista, deixando de<br />

informar sobre o patrimônio civilizatório africano<br />

e de ressaltar a importância desse segmento<br />

social na constituição da população e da identidade<br />

brasileira, recalcando, desta forma, a população<br />

de origem africana.<br />

Há, no discurso da “inteligentzia” brasileira,<br />

um pensamento ainda marcadamente<br />

eurocêntrico. Ilustro este aspecto com uma<br />

análise um tanto equivocada de um editorialista<br />

do jornal Folha de São Paulo, que afirma em<br />

sua coluna:<br />

O fenômeno da discriminação atinge todas as<br />

minorias e até algumas maiorias, como é o caso<br />

das mulheres. Ao fazer uma historiografia dos<br />

negros, estamos deixando de fazer a dos índios,<br />

dos asiáticos, dos árabes, dos judeus e de todos<br />

os grupos étnicos com presença no país e que<br />

poderiam legitimamente reclamar o mesmo tratamento.<br />

E eu não acho que faça o menor sentido enterrarmos<br />

o ensino da história que muitos chamam<br />

pejorativamente de branca e masculina em<br />

favor de dezenas histórias alternativas (...) é<br />

preciso reconhecer que somos uma sociedade<br />

102 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003


Léa Austrelina Ferreira Santos<br />

de origem européia. São valores europeus que,<br />

justa ou injustamente, se impuseram no Brasil ...<br />

(SCHWARTSMAN, 2003, p. 01 - grifos meus)<br />

O pensamento do jornalista, além de equivocado<br />

sobre o que dispõe a Lei, é um pensamento<br />

unívoco. A luta de diversas entidades,<br />

estudiosos e comunidades afro-descendentes é<br />

a de afirmar a diversidade cultural presente em<br />

nossa sociedade. Ao contrário do que ele diz, a<br />

população de origem africana no Brasil não se<br />

constitui em uma minoria: este é um dos maiores<br />

segmentos populacionais do Brasil. Além<br />

disso, não se propõe fazer uma historiografia<br />

dos afro-descendentes em detrimento da história<br />

dos outros povos presentes no País. O que<br />

se propõe é o reconhecimento da diversidade<br />

cultural no Brasil e o ensino da história dos afrodescendentes<br />

pode reforçar esse propósito.<br />

A Lei 10.639/03 pode contribuir para o amadurecimento<br />

da luta da população afro-descendente<br />

no Brasil, com as políticas de ação afirmativa,<br />

para redução das desigualdades. Mas<br />

o aspecto que consideramos mais importante<br />

fica, muitas vezes, esvaziado no contexto dessa<br />

luta, que é a dimensão da afirmação da diversidade<br />

cultural – algo que transcende as<br />

delimitações de “raça” e “cor” –, dizendo respeito<br />

à afirmação existencial da população afrodescendente.<br />

As políticas de ação afirmativa são um tema<br />

muito polêmico e têm gerado diversas discussões<br />

necessárias e urgentes, mas não é minha<br />

intenção discuti-las aqui. A intenção é buscar<br />

uma compreensão sobre a Lei referida, analisar<br />

a sua importância no contexto do Estado da<br />

Bahia, cuja população é, em sua maioria, de<br />

origem africana, e perceber, através de uma<br />

perspectiva já delineada, a do Projeto Odemodé<br />

Egbé Asipá – Juventude da Sociedade Asipá,<br />

a concretização de ações educativas pluriculturais<br />

a partir da referência ancestral africanobrasileira<br />

e que diz respeito à afirmação existencial<br />

da população de origem africana .<br />

Há um aspecto fundamental trazido por essa<br />

Lei. Trata-se da possibilidade de se oferecer<br />

aos jovens brasileiros uma visão distinta da história<br />

dos povos de origem africana, de enfrentar<br />

o silêncio da historiografia oficial e da escola<br />

em relação ao processo civilizatório africano-brasileiro.<br />

Não é novidade que a historiografia<br />

oficial reduz a presença africana e omite as<br />

personalidades que lutaram e lutam para afirmação<br />

desta cultura no Brasil.<br />

São, entretanto, possibilidades, pois a mera<br />

sanção da Lei não assegura que esses conteúdos<br />

serão tratados de forma realmente positiva<br />

para a população afro-descendente, ou seja, que<br />

os jovens possam admirar e reconhecer as suas<br />

origens e possam ter uma auto-imagem positiva<br />

ou que as manifestações culturais de origem<br />

africana deixarão de ser tratadas como folclore<br />

pela escola ou, ainda, e a pedagogia do recalque<br />

às identidades deixará de existir. A Lei em<br />

questão é uma possibilidade de enfrentamento<br />

desses problemas.<br />

Esse aspecto é ressaltado porque foi a partir<br />

da necessidade de afirmação da identidade sócio-cultural<br />

dos afro-descendentes que o Projeto<br />

Odemodé Egbé Asipá foi estruturado. O ensino<br />

da cultura e da história dos afro-descendentes<br />

precisa estar ancorado numa perspectiva fundada<br />

na afirmação da nossa diversidade cultural.<br />

No sentido de enfrentamento da realidade<br />

imposta à população de origem africana e<br />

aborígine no Brasil e especialmente na Bahia,<br />

destacamos algumas iniciativas vinculadas ao<br />

PRODESE - Programa Descolonização e Educação,<br />

do Departamento de Educação, Campus<br />

I da UNEB - Universidade do Estado da Bahia.<br />

O PRODESE fomenta atividades em pesquisa,<br />

ensino e extensão que visam a afirmação<br />

da nossa pluralidade cultural, e apóia e estimula<br />

o desenvolvimento de ações educativas e elaborações<br />

teóricas voltadas para esse sentido.<br />

O Programa Descolonização e Educação –<br />

PRODESE desenvolve produções acadêmicocientíficas<br />

no contexto da diversidade étnicocultural<br />

das Américas. Essas produções vêm fomentando<br />

pesquisas, estudos e atividades de<br />

ensino e extensão, baseados numa ética que<br />

permita a garantia da coexistência e expressão<br />

territorial dos continuuns civilizatórios que caracterizam<br />

este continente.<br />

Agrega estudiosos e pesquisadores que produzem<br />

participações criativas, com vistas a superar<br />

os paradigmas neocoloniais e etnocêntricos<br />

que estruturam a política de educação no Brasil,<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003<br />

103


Odemodé egbé asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />

além de elaborar e difundir conhecimentos sobre<br />

educação referidos às alteridades civilizatórias<br />

que constituem a formação social brasileira.<br />

(...)<br />

Descolonização e Educação é uma iniciativa que<br />

procura restituir aos descendentes das populações<br />

aborígines e africanas a compreensão e dignidade<br />

de sua alteridade civilizatória. (LUZ, 2000,<br />

p. 8).<br />

O PRODESE tem realizado pesquisas importantes<br />

no que diz respeito à afirmação da<br />

diversidade cultural na Bahia, entre elas a abordagem<br />

do universo da Ancestralidade africana<br />

em que sublinho como necessária a elaboração<br />

de políticas educacionais voltadas para o acolhimento<br />

do direito à alteridade e a afirmação<br />

da identidade da população infanto-juvenil afrodescendente,<br />

especialmente na análise sobre o<br />

projeto Odemodé Egbé Asipá.<br />

Em seu volume mais recente, lançado em<br />

maio deste ano, a revista Sementes trouxe uma<br />

gama de artigos compondo um repertório riquíssimo<br />

dentro das abordagens em Educação Pluricultural.<br />

O pólo irradiador das suas temáticas<br />

está fundamentado na ética da coexistência, caracterizando-se<br />

como uma possibilidade de trabalho<br />

com as questões ligadas à Educação.<br />

Para a geração de educadores deste século ainda<br />

persiste a mesma demarcação da norma<br />

geopolítica neocolonial-imperialista, mas com um<br />

novo diferencial: a instituição recente do “eixo<br />

do bem” e “eixo do mal” – fruto de acordos jurídico-políticos<br />

entre nações classificadas como<br />

grandes potências (parafraseando Sartre: ‘o inferno<br />

são os outros’). Tudo isso vem submetendo<br />

a existência do planeta a esses pólos equivocados<br />

que tendem a estimular a intolerância, o<br />

ódio, a negação do direito à alteridade própria e<br />

as identidades culturais de distintos povos. (LUZ,<br />

2002, p.8).<br />

Os artigos publicados por Sementes reforçam<br />

a necessidade de afirmação e concretização<br />

da ética da coexistência. No volume em<br />

questão, a revista traz diversas contribuições<br />

relacionadas ao direito à existência, novas percepções<br />

sobre a continuidade do processo civilizatório<br />

africano-brasileiro, compreensões sobre<br />

dinâmicas sócio-culturais baianas referendadas<br />

no contexto da civilização africano-brasileira,<br />

além de poesias e desdobramentos da pesquisas<br />

do PRODESE e novas perspectivas de leitura<br />

envolvendo essa temática. “A dinâmica<br />

socioexistencial emanada pela da coexistência,<br />

para a equipe do PRODESE, se constitui como<br />

a única possibilidade de assegurar a expansão<br />

da multiplicidade de vida no planeta.” (LUZ,<br />

2002, p. 8).<br />

3. O Odemodé Egbé Asipá – Juventude<br />

da Sociedade Asipá: ancestralidade,<br />

comunalidade e afirmação<br />

existencial num contexto pluricultural<br />

de educação<br />

O Projeto Odemodé Egbé Asipá – Juventude<br />

da Sociedade Asipá foi realizado pela<br />

comunidade-terreiro Ilê Asipá em <strong>19</strong>99 e 2000<br />

e concretizou uma perspectiva pedagógica pluricultural<br />

pautada na referência ancestral africano-brasileira.<br />

A comunidade-terreiro Ilê Asipá foi fundada<br />

por Deoscóredes Maximiliano dos Santos,<br />

Mestre Didi – Alapini, sacerdote supremo do<br />

culto aos ancestrais – e por um grupo de Ojés,<br />

que representam a hierarquia da comunidade e<br />

procuram zelar e manter a continuidade da religião<br />

africano-brasileira com absoluto respeito<br />

à liturgia deixada como legado pelos antepassados<br />

da família Asipá. A família Asipá é, acima<br />

de tudo, um ponto de ancoragem, de princípio-começo-origem,<br />

a arkhé da comunidade.<br />

A noção de arkhé é utilizada para projetar a<br />

compreensão da episteme africana e da linguagem<br />

que a sustenta. Trata-se de uma contextualização<br />

do universo simbólico africano-brasileiro.<br />

Esta é uma categoria utilizada por alguns<br />

autores 6 para a interpretação da episteme africana<br />

no Brasil e para a caracterização de idéias<br />

que a contextualizem no discurso acadêmico.<br />

A arkhé caracteriza-se por princípios inaugurais<br />

que dão propulsão ao existir. É uma elaboração<br />

de passado que dá significado à exis-<br />

6<br />

Para aprofundamento indicamos conhecer os trabalhos<br />

de Narcimária C. P. Luz, Marco Aurélio Luz, Deoscóredes<br />

Maximiliano dos Santos, Juana Elbein dos Santos e<br />

Muniz Sodré.<br />

104 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003


Léa Austrelina Ferreira Santos<br />

tência, imprime sentido e direção ao futuro. No<br />

seio da arkhé estão contidos os princípios de<br />

começo-origem e poder-comando, e não deve<br />

ser associada com antigüidade e/ou anterioridade<br />

e exemplo de um passado rural, não-tecnológico<br />

e mesmo selvagem. Também se refere<br />

ao futuro, a uma força que dá continuidade à<br />

linguagem do sistema histórico-cultural da comunidade.<br />

(LUZ, 2000, p.106).<br />

Em entrevista realizada em 07/02/2000, Marco<br />

Aurélio Luz define: “A família Asipá marca<br />

o reconhecimento da continuidade transatlântica<br />

dos valores da religião africana no Brasil,<br />

tendo conseqüentemente importância especial<br />

no que se refere à ancestralidade africana em<br />

nosso país.”<br />

O Odemodé nasce, então, desse contexto,<br />

de referência da ancestralidade africano-brasileira<br />

que influencia decisivamente na constituição<br />

de suas identidades próprias.<br />

Ancestralidade deve ser entendida, nesse<br />

contexto, como forma de manutenção da memória<br />

individual e coletiva das populações de<br />

origem africana e também como forma de respeito<br />

aos antepassados e ao legado do patrimônio<br />

civilizatório implantado nas Américas.<br />

O que torna o processo civilizatório africanobrasileiro<br />

singular é o tratamento dado pelos seus<br />

integrantes à ancestralidade e às formas de preservação<br />

recriadas pelos afro-descendentes que<br />

renovam seus vínculos ancestrais e os tornam<br />

contemporâneos através de estratégias comunitárias,<br />

expressadas, muitas vezes, nas formas de<br />

sociabilidade e comunicação estabelecidas nas<br />

comunidades. Na mesma entrevista:<br />

A ancestralidade, no nível da tradição religiosa,<br />

tem as suas características específicas tanto<br />

em relação a sua iniciação no culto quanto em<br />

relação a sua ida, a partida das pessoas do aiyê<br />

para o orum, que é permeada por atos litúrgicos<br />

e com a passar do tempo, o destino dessas pessoas,<br />

inclusive depois que falecem, está envolvido<br />

em uma série de regras, um série de atos<br />

litúrgicos para seguir essa transferência.<br />

A ancestralidade influencia de forma significativa<br />

a constituição do repertório filosóficopolítico<br />

que determina as formas de estruturação<br />

de vida e relações sociais originárias desse<br />

processo civilizatório.<br />

As identidades culturais dos afro-descendentes<br />

não podem ser generalizadas, pois apresentam<br />

matizes muito distintas e devem ser consideradas<br />

de acordo com os conflitos que se apresentam<br />

no tempo e espaço, característicos da<br />

sociedade global. No contexto baiano, por<br />

exemplo, essas identidades se apresentam de<br />

forma pujante em virtude do processo civilizatório<br />

que se instalou aqui e que resistiu às imposições<br />

da sociedade escravista.<br />

A identidade cultural dos jovens ligados à<br />

comunidade Ilê Asipá tem uma nuance bastante<br />

expressiva e está alicerçada na sua afirmação<br />

existencial. A religião, a ancestralidade e a<br />

vida comunitária, na comunidade-terreiro Ilê<br />

Asipá, influenciam significativamente o quadro<br />

referencial de princípios e valores presentes nas<br />

identidades dos jovens a ela ligados.<br />

A comunidade-terreiro tem grande importância<br />

na vida dos jovens que a integram. Durante<br />

uma entrevista, um jovem do grupo do<br />

Projeto Odemodé, quando perguntado sobre o<br />

que a comunidade representava em sua vida,<br />

respondeu: “Quando eu passo do portão para<br />

dentro eu acho que meu mundo já se modifica<br />

e cá fora eu acho que é sempre o mesmo.”<br />

A vida dos jovens ligados à comunidade-terreiro<br />

Ilê Asipá é baseada num sentimento de<br />

irmandade, de família extensa, segundo seus<br />

relatos. Essa vivência vem propiciar o fortalecimento<br />

das identidades culturais, pois na comunidade<br />

concentram-se o saber e as elaborações<br />

baseadas no conhecimento ancestral que<br />

lhes fornece um forte referencial para as suas<br />

vidas.<br />

A ordem de percepção de mundo e de valores<br />

recriados no Ilê Asipá estimula os jovens a<br />

exercerem um comportamento espontâneo em<br />

que a sociabilidade preserva a cultura, estrutura<br />

as identidades e fortalece a noção do direito<br />

à alteridade. Os valores que forjam as alianças<br />

sociais e que caracterizam o patrimônio ancestral<br />

fecundam e nutrem o conjunto de ações,<br />

pensamentos e comportamentos da juventude<br />

Asipá.<br />

É permeado por essas relações que surge o<br />

Projeto Odemodé Egbé Asipá, uma iniciativa<br />

na área de educação pluricultural na Bahia, pois<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003<br />

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Odemodé egbé asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />

Foto 1 – Jovens do Projeto Odemodé<br />

Egbé Asipa na aula de inglês na<br />

UNEB com a professora Christiane<br />

Viens (foto: Léa Austrelina F. Santos).<br />

nasce no contexto de uma comunidade africano-brasileira<br />

que recria, dignifica e irradia, por<br />

meio das relações sócio-comunitárias, o<br />

patrimônio civilizatório africano-brasileiro: a<br />

comunidade-terreiro Ilê Asipá.<br />

A proposta pedagógica do Odemodé foi concebida<br />

por integrantes da comunidade, pessoas<br />

que têm uma grande experiência em Educação<br />

Pluricultural e que fazem parte da hierarquia<br />

da própria comunidade-terreiro, como, por<br />

exemplo, Mestre Didi, fundador da comunidade,<br />

e Juana Elbein dos Santos, etnóloga e membro<br />

da comunidade, pessoas responsáveis pela<br />

primeira experiência desse caráter no Brasil, a<br />

Mini Comunidade Oba Biyi.<br />

A Mini Comunidade Oba Biyi foi uma experiência<br />

pioneira em educação pluricultural no<br />

Brasil, tratando-se de uma iniciativa da comunidade-terreiro<br />

Ilê Axé Opô Afonjá, que se desenvolveu<br />

de <strong>19</strong>76 a <strong>19</strong>86.<br />

Iyá Oba Biyi era o nome sacerdotal de Mãe<br />

Aninha. Eugênia Anna dos Santos era o seu<br />

nome católico. Mãe Aninha teve uma vida social,<br />

política e religiosa importantíssima para a<br />

afirmação dos valores e da religião africana no<br />

Brasil. A Mini Comunidade recebeu esse nome<br />

em sua homenagem e visava atender a um de<br />

seus desejos que ficou expressado numa de suas<br />

frases: “Quero ver nossas crianças de hoje, no<br />

dia de amanhã de anel nos dedos e aos pés de<br />

Xangô”. 7<br />

De anel nos dedos e aos pés de Xangô é a<br />

possibilidade de uma educação em que nossas<br />

crianças aprendam a lidar<br />

com o repertório de códigos<br />

da sociedade europocêntrica,<br />

mas utilizando-os como estratégia<br />

de legitimação da<br />

alteridade civilizatória africana;<br />

no caso, conquistando espaços<br />

institucionais, para neles<br />

fincar, recriar, e expandir,<br />

também o repertório de valores da tradição – a<br />

arkhé africana. (LUZ, 2000, p.161).<br />

Os objetivos principais do Projeto Odemodé<br />

envolviam o fortalecimento da rede de relações<br />

comunitárias onde pulsa a sociabilidade que<br />

caracteriza as identidades dos jovens, aliando a<br />

isso a aquisição de conhecimentos do universo<br />

escolar, especificamente em informática e manutenção<br />

de computadores, áreas indicadas<br />

pelos jovens para obter capacitação profissional.<br />

(Vide Foto 1).<br />

Através da capacitação profissional, procurou-se<br />

fortalecê-los, estimulando o desenvolvimento<br />

de determinadas habilidades para inserção<br />

no mercado de trabalho, mas principalmente<br />

de habilidades que concorressem para a<br />

afirmação dos valores comunitários. O Projeto<br />

Odemodé Egbé Asipá integralizou formas de<br />

comunicação, linguagem e códigos, a partir da<br />

referência ancestral emanada da arkhé civilizatória<br />

da comunidade Ilê Asipá.<br />

O Projeto envolveu jovens de 16 a 21 anos<br />

de idade, num total de 20 adolescentes. Além<br />

de ter a participação dos jovens da comunidade<br />

Ilê Asipá, o Odemodé também conseguiu reunir<br />

jovens de outras comunidades-terreiros como<br />

o Ilê Oxumaré e o Ilê Axé Opô Afonjá, favorecendo<br />

o intercâmbio entre os jovens de comunidades<br />

distintas.<br />

7<br />

A dinâmica curricular da Mini Comunidade Oba Biyi e<br />

seus desdobramentos estão apresentados de uma forma<br />

significativa no livro Abebé: a criação de novos valores<br />

em Educação, de Narcimária C. P. Luz (2000).<br />

106 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003


Léa Austrelina Ferreira Santos<br />

Foto 2 – Jovens do Projeto Odemodé<br />

Egbé Asipa durante o módulo de<br />

Informática no NETI – Núcleo de<br />

Tecnologias Inteligentes/ UNEB<br />

(foto: Léa Austrelina F. Santos).<br />

Os jovens possuíam os mais diversos graus<br />

de escolaridade, que iam do ensino fundamental<br />

ao ensino médio, o que dificultou, inicialmente,<br />

a integração do grupo quanto aos aspectos que<br />

envolviam os conteúdos trabalhados no Projeto.<br />

Os jovens foram selecionados por constituírem<br />

um grupo muito positivo e identificado com<br />

a cultura de suas comunidades-terrreiro. (Vide<br />

Foto 2)<br />

Em seu primeiro momento, o projeto foi realizado<br />

em parceria com a SECNEB – Sociedade<br />

de Estudo das Culturas e da Cultura Negra<br />

no Brasil, o PRODESE – Programa<br />

Descolonização e Educação, mobilizando na<br />

UNEB o Departamento de Educação do<br />

Campus I, o Núcleo de Tecnologias Inteligentes<br />

e o CEFET – Centro Federal de Educação<br />

Tecnológica. No segundo<br />

momento, uniram-se em parceria<br />

com o Ilê Asipá, o NEC<br />

– Núcleo de Estudos Canadenses<br />

e as demais instituições<br />

citadas, com exceção do<br />

CEFET.<br />

O Programa Comunidade<br />

Solidária, iniciativa ligada ao<br />

Governo Federal, que, através<br />

da captação de recursos junto à sociedade<br />

civil, busca financiar projetos de capacitação,<br />

foi responsável pelo financiamento do Projeto,<br />

oferecendo bolsas de estudo aos jovens durante<br />

o primeiro período do curso.<br />

A metodologia da proposta pedagógica implicou<br />

dois módulos distintos e interdependentes:<br />

o fortalecimento da identidade cultural e a<br />

capacitação profissional. A integração dos dois<br />

módulos didático-pedagógicos tinha como objetivo<br />

fazer com que os jovens tivessem melhor<br />

compreensão de sua contribuição na sociedade<br />

e da sua responsabilidade quanto à preservação<br />

de seus valores culturalmente adquiridos.<br />

O projeto, em seu primeiro momento, abrangeu<br />

ações educativas nas áreas de Língua Portuguesa<br />

(expressão oral e escrita); Matemática<br />

(noções básicas); História<br />

da África Ocidental e das<br />

comunidades africano-brasileiras<br />

referendadas no contexto<br />

africano de onde se originaram;<br />

Informática, Manutenção<br />

de Computadores e,<br />

no segundo momento, Língua<br />

Inglesa. (Vide Foto 3)<br />

Foto 3 – Momento em que os jovens<br />

do Projeto Odemodé Egbé<br />

Asipa, na aula de Inglês, apresentam<br />

o reggae como possibilidade<br />

de enriquecimento da dinâmica<br />

pedagáogica (foto: Léa Austrelina<br />

F. Santos).<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003<br />

107


Odemodé egbé asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />

O corpo docente do curso constituiu-se de<br />

profissionais que fazem parte da própria comunidade<br />

e de outros profissionais da UNEB e do<br />

CEFET, sensíveis à área de Educação Pluricultural.<br />

A repercussão que o projeto teve nas vidas<br />

dos jovens foi muito significativa, segundo suas<br />

próprias afirmações, principalmente quanto à<br />

profissionalização. Em nosso contexto, onde o<br />

desemprego predomina e o trabalho escraviza<br />

o ser humano, é preciso que nossos jovens ganhem<br />

força e direção no sentido de se apropriarem<br />

dos recursos tecnológicos urbano-industriais<br />

e, assim, possam afirmar a preservar suas<br />

identidades.<br />

O propósito do Projeto Odemodé era de criar<br />

uma linguagem pedagógica que pudesse corresponder<br />

com essa expectativa de capacitação<br />

profissional, procurando fortalecer os jovens,<br />

desenvolvendo determinadas habilidades para<br />

a sua inserção no mundo do trabalho, mas, principalmente,<br />

enfatizando habilidades e conhecimentos<br />

que concorressem para a afirmação dos<br />

valores comunitários.<br />

A comunidade-terreiro Ilê Asipá criou e desenvolveu<br />

o Odemodé em função das políticas<br />

de recalque às identidades dos afro-descendentes,<br />

exercidas pela escola oficial no Brasil (LUZ,<br />

2000). A escola oficial brasileira atua como um<br />

instrumento pelo qual o Estado pratica uma política<br />

de embranquecimento, enfocando uma<br />

cidadania judaico-cristã. O Odemodé representa<br />

uma reação à política educacional brasileira<br />

de recalque e denegação da diversidade e<br />

pluralidade cultural de nossa população.<br />

3.1. História da África através da<br />

referência mítico-ancestral<br />

Para esta abordagem, destaca-se o módulo<br />

de História da África, dentro da perspectiva de<br />

fortalecimento da identidade cultural. As aulas<br />

desse módulo foram ministradas pelo professor<br />

Marco Aurélio Luz, membro da comunidade Ilê<br />

Asipá e cientista social.<br />

Como conteúdo curricular, estiveram presentes<br />

a História do reino Oyó e Ketu, no século<br />

XIX, as etnias que deram continuidade ao processo<br />

de instalação e expansão das comunidades<br />

institucionalizadas, conhecidas como terreiros,<br />

os valores, a linguagem e a tradição africana.<br />

É nesse momento que emerge a riqueza das<br />

formas de comunicação resultantes de uma relação<br />

marcante na cultura africano-brasileira,<br />

a relação entre ancestralidade e educação, resultando<br />

na forma escolhida pelo professor para<br />

o curso: os contos míticos transmitidos na comunidade<br />

por Mestre Didi.<br />

O ethos africano-brasileiro, marcado pelo<br />

elemento estético, da música, da dramatização<br />

e dos contos não poderia deixar de estar presente<br />

no contexto dessas aulas. Destaco que<br />

ethos africano-brasileiro – a sua forma social,<br />

comunal, presente na linguagem e comunicação,<br />

desde as relações estabelecidas com a natureza<br />

até a música e ritmo – constitui a identidade<br />

própria dessas populações e transborda<br />

para um plano transcendente, o eidos.<br />

Não é portanto apenas o ethos, característico<br />

do modo de vida das comunidades-terreiro, que<br />

irradia princípios existenciais constituintes da<br />

cultura negra que estruturam a identidade histórica<br />

e social do mais significativo segmento<br />

populacional. É, sobretudo o seu eidos, sua dimensão<br />

transcendente atualizado no aqui e agora<br />

das relações sócio-litúrgicas do egbé (LUZ,<br />

<strong>19</strong>95, p 68).<br />

Por eidos entendemos a forma como a linguagem,<br />

cosmogonia, a forma social africanobrasileira<br />

se concretiza, se estabelece e se realiza<br />

no mundo caracterizando-se por uma dimensão<br />

transcendente que alimenta a sua sociabilidade<br />

e as redes de relações comunitárias.<br />

Os contos presentes na liturgia africano-brasileira<br />

representam a nossa ancestralidade, a continuidade<br />

e os vínculos comunitários e também<br />

são uma forma de diálogo entre a comunalidade<br />

e a sociedade oficial. Sua originalidade está no<br />

modo pelo qual expressam formas específicas<br />

de transmissão de valores da tradição, sendo de<br />

cunho pedagógico em que o desenvolvimento<br />

ocorre numa situação do aqui e agora, referido a<br />

uma experiência de vida, capaz de gerar uma sabedoria<br />

acumulada. Nesse contexto a comunicação<br />

ocorre de maneira direta, pessoal ou<br />

intergrupal, dinâmica, acompanhada por cânticos,<br />

culinária, liturgia, danças e dramatizações.<br />

(LUZ, <strong>19</strong>98, p.37).<br />

108 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003


Léa Austrelina Ferreira Santos<br />

A dramatização surge em contraposição às<br />

relações estabelecidas na sala de aula da escola<br />

oficial, que priorizam o silêncio, o corpo estático,<br />

sem movimento, sem ação efetiva. A mais<br />

solicitada das ações está presente na relação<br />

olho x cérebro, o que exige uma rígida disciplina<br />

do corpo e da mente e um excesso de concentração<br />

não inerente ao comportamento dos<br />

jovens.<br />

O professor Marco Aurélio Luz já trazia<br />

consigo a experiência da Mini Comunidade Oba<br />

Biyi, e levou à dinâmica curricular do projeto<br />

elementos pertencentes ao ethos africano-brasileiro<br />

do contexto das formas de comunicação<br />

desta tradição.<br />

No mesmo período em que ocorria o Projeto<br />

Odemodé, muitas escolas faziam uma intensa<br />

referência à figura de Pedro Álvares Cabral, na<br />

comemoração pelos 500 anos de Brasil. Se faz<br />

necessário, entretanto, analisar quais as contribuições<br />

reais dos heróis aclamados pela historiografia<br />

oficial e se eles realmente tiveram tantas<br />

qualidades para serem tão exaltados.<br />

Os ancestrais europeus são sempre lembrados<br />

de forma heróica pela historiografia e os africano-brasileiros<br />

são lembrados, muitas vezes, pela<br />

identidade de escravos, contribuindo para incutir<br />

o recalque nos jovens. As personalidades exponenciais<br />

cultuadas e reverenciadas pelas comunidades-terreiro<br />

são aquelas que dignificam as<br />

atividades de tradição em cada ato litúrgico, são<br />

os ancestrais que trazem orgulho e dignidade.<br />

O silêncio da escola oficial em relação ao<br />

processo civilizatório africano-brasileiro seria<br />

outro problema a ser enfrentado. Há, de fato,<br />

uma deturpação ou/e omissão realizada pela<br />

historiografia oficial em relação à presença africana<br />

e às personalidades que lutam para afirmar<br />

a cultura.<br />

Foi trabalhado um conto de Mestre Didi chamado<br />

“A fuga de Tio Ajayi”. Esse conto havia<br />

sido transformado em ópera e hoje constitui-se<br />

como um fato marcante na dramaturgia africano-brasileira.<br />

Ele possui uma linguagem teatral<br />

riquíssima. Marco Aurélio Luz, em entrevista,<br />

descreve:<br />

A fuga de Tio Ajayi possui três características. A primeira refere-se à<br />

vida no engenho no tempo da escravidão. A segunda se inicia quando um tio<br />

da Costa, de nome Ajayi, convoca seus irmãos para fazerem as obrigações a<br />

um orixá adorado por eles. A terceira começa quando um escravo da casa<br />

grande, mandado pelo senhor, espiona o que está se passando e dá o serviço<br />

do local onde estão os negros, reunidos. Segue-se a saga da perseguição do<br />

grupo pelos soldados enviados por um comissário, a mando do senhor de<br />

engenho (...).<br />

Logo que avistaram as tropas, os vigias transmitem, uns para os outros, o<br />

aviso da aproximação até chegar onde está o Tio Ajayi. As cantigas se sucedem<br />

num ritmo de ijexá acompanhando a dramatização de toda a fuga até a<br />

libertação.<br />

Vigia: Tio Ajayi soldadevem<br />

Tio Ajayi: Jakuriman, jakuriman<br />

Tio Ajayi fazendo um sinal para toda sua gente acompanhá-lo.<br />

Entra in beco sai in beco<br />

Todos respondem: Tio Ajayi toca que vai cumpanhando<br />

Em certo momento a sede atormenta a todos naquela caminhada. Sob<br />

proteção dos orixás, os negro recebem uma chuva que lhes renova as forças.<br />

Os soldados, porém já distantes acabam por se arrasar sob o sol causticante.<br />

O grupo atinge o sopé de uma grande montanha e Tio Ajayi resolve liderar<br />

toda a sua gente para subir cantando.<br />

‘Quando eu sobi no ladera<br />

Coro: Eu caí, eu dirruba’<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003<br />

109


Odemodé egbé asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />

E assim chegaram ao topo da ladeira onde Tio Ajayi fez sinal para que<br />

todos sentassem, a fim de descansar um pouco cantou:<br />

‘Ekú, Jokó (solo) Tabará, tabará!<br />

Tin Tin Jaká! (solo)<br />

Tabará, tabará (solo)<br />

Tabará, tabará’<br />

Já iam começar a jornada quando um carneiro berrou e uma criança<br />

chorou. Tio Ajayi atento, cantou :<br />

‘O carnero berrô...(solo)<br />

bereré (coro)<br />

o menino chorô (solo)<br />

bereré (coro)<br />

Tio Ajayi declarou:<br />

Meus irmãos, de agora em diante, estamos livres, não só dos soldados<br />

que nos perseguiam, como também dos senhores e do cativeiro que nos era<br />

dado.<br />

Olorum ati awon orixá da fé awon gbogbo (Deus e que todos os orixás<br />

abençoem a todos). (grifos meus)<br />

A partir da dramatização, o professor Marco<br />

Aurélio Luz explorou uma diversidade de aspectos<br />

que abordavam a História, a Geografia,<br />

a estética e a ética, proporcionando vários desdobramentos.<br />

Essa história, além de fortalecer as identidades<br />

culturais, proporciona dignidade e afirmação<br />

para os jovens, pois a abordagem do<br />

conto transcende a identidade de escravo, tão<br />

exaltada pela historiografia oficial.<br />

O Projeto Odemodé pode ser considerado<br />

como um marco entre as realizações na área<br />

de Educação Pluricultural, pois nasce a partir<br />

da referência de ancestralidade do grupo de<br />

jovens pertencentes à comunidade Ilê Asipá.<br />

Ele recria uma linguagem capaz de fortalecer<br />

as identidades culturais, na transmissão de valores<br />

de um patrimônio civilizatório milenar para<br />

novas gerações, contemplando as afirmação<br />

existencial e das identidades dos jovens envolvidos.<br />

As formas de comunicação tão originais e<br />

sublimes podem inspirar políticas curriculares<br />

que realmente contemplem o direito à alteridade<br />

da população de origem africana à mercê das<br />

políticas recalcadoras da educação brasileira.<br />

4. Conclusão<br />

Iniciei essa abordagem com a música Alabê.<br />

Para concluir, quero reafirmar a importância<br />

dessa música, como ilustração da necessidade<br />

de os projetos, currículos e políticas educacionais<br />

no Brasil estarem voltados para a afirmação<br />

da nossa diversidade cultural e do direito à<br />

alteridade própria da população afro-descendente.<br />

Muitos currículos no Brasil, a partir de agora,<br />

começarão a inserir a temática “História e<br />

Cultura dos Afro-descendentes” em seu escopo<br />

apenas por uma questão de obrigatoriedade<br />

trazida pela Lei.<br />

A proposta pedagógica do Projeto Odemodé<br />

foi capaz da criação de uma linguagem referendada<br />

no contexto da tradição africano-brasileira,<br />

da ancestralidade e de aspectos do<br />

patrimônio civilizatório. Esse projeto concorreu<br />

para a concepção de uma pedagogia capaz de<br />

estruturar as identidades culturais da população<br />

infanto-juvenil, através do ensino da história,<br />

utilizando a referência ancestral.<br />

A afirmação existencial dos jovens da comunidade-terreiro<br />

Ilê Asipá foi a motivação do<br />

Projeto Odemodé Egbé Asipá. Em um país<br />

como o Brasil, cuja pluralidade é imensa, as<br />

possibilidades de criação de currículos signifi-<br />

110 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003


Léa Austrelina Ferreira Santos<br />

cativos para as populações de origens étnicoculturais<br />

distintas se multiplicam.<br />

Apelo, dessa forma, para a sensibilidade dos<br />

educadores que, a partir de então, estarão imbuídos<br />

da tarefa de elaborar esses currículos.<br />

Espero que a compreensão da dinâmica existencial<br />

da música Alabê na vida dos jovens e a<br />

linguagem pedagógica do Odemodé possa inspirar<br />

as ações desses educadores.<br />

A perspectiva desenvolvida pelo PRODESE,<br />

de ênfase na urgência de propostas de<br />

descolonização e de afirmação da nossa diversidade<br />

cultural, configura-se como essencial no<br />

nosso contexto baiano e nordestino para a concepção<br />

de currículos pluriculturais.<br />

A afirmação de Frantz Fanon, inspiradora<br />

do PRODESE, é bastante significativa nesse<br />

sentido:<br />

... a descolonização jamais passa despercebida<br />

porque atinge o ser, modifica fundamentalmente<br />

o ser; transforma espectadores sobrecarregados<br />

de inessencialidade em atores privilegiados, colhidos<br />

de modo quase grandioso pela roda vida<br />

da história. Introduz no ser um ritmo próprio,<br />

transmitido por homens novos, uma nova linguagem,<br />

uma nova humanidade. A descolonização<br />

é em verdade, criação de homens novos.<br />

Há portanto na descolonização a exigência<br />

de um reexame integral da situação colonial<br />

(FANON, apud LUZ, 2000, p. 8).<br />

A Lei está aí, mas se ela vai favorecer para<br />

revertermos a situação “colonial” na qual está<br />

imersa a nossa sociedade e suas instituições<br />

ainda é uma dúvida. Afirmarmos uma outra história<br />

é a grande questão que deixo em aberto,<br />

mas independentemente da Lei, é possível criar<br />

uma perspectiva de “Descolonização e Educação”<br />

e a “Juventude do Odemodé”, em sua<br />

dinâmica curricular e comunitária, pulsa e vive<br />

isso o tempo todo.<br />

Onilewa alabê Konko!<br />

REFERÊNCIAS<br />

LUZ, Marco Aurélio. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. Salvador: Centro Editorial e Didática<br />

da UFBa: Sociedade de Estudos das Culturas e da Cultura Negra no Brasil, <strong>19</strong>95 .<br />

LUZ, Narcimária C.do P. Abebe: a criação de novos valores na Educação. Salvador: SECNEB, 2000. (Coleção<br />

Communitates Mundi)<br />

_____. Odara: os contos de Mestre Didi. Revista da FAEEBA, Salvador, n. 9, p.37-46, jan./jun., <strong>19</strong>98.<br />

_____. Editorial. Sementes: caderno de pesquisa. Salvador, v. 1, n.1/2, p. 8-9, jan./dez., 2000.<br />

_____. Editorial. Sementes: caderno de pesquisa. Salvador, v. 2, n.3/4, p. 8-9, jan./dez., 2001.<br />

_____. Editorial. Sementes: caderno de pesquisa. Salvador, v. 3, n.5/6, p. 8-9, jan./dez., 2002.<br />

SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte: Pàdê, Asésé e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes,<br />

<strong>19</strong>86.<br />

_____ ; SANTOS, Deoscóredes dos. O culto aos ancestrais na Bahia: o culto Egun. In: _____. Olóorisá:<br />

escritos sobre a religião dos orixás. São Paulo, SP: Ágora, <strong>19</strong>81. p. 155-188.<br />

SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a Cidade: a forma social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes, <strong>19</strong>88.<br />

SCHWARTSMAN, Hélio. A escola, o racismo e a Ilíada. Pensata: Folha de São Paulo. Disponível em http:/<br />

/folhaonline.com.br/, acessado em 23.01.03.<br />

Recebido em 28.05.03<br />

Aprovado em 24.07.03<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003<br />

111


José Eduardo Ferreira Santos<br />

PRÁTICAS PEDAGÓGICAS, CULTURA,<br />

HISTÓRIA E TRADIÇÃO:<br />

um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />

José Eduardo Ferreira Santos *<br />

RESUMO<br />

Este artigo descreve a experiência educativa desenvolvida de <strong>19</strong>94 a<br />

2002 em projetos sociais de Novos Alagados, subúrbio de Salvador, com<br />

crianças e adolescentes da área. A intervenção pedagógica baseia-se<br />

na valorização das tradições culturais da Bahia (samba de roda, Folia de<br />

Reis, compositores e cantores populares), na história (do Subúrbio Ferroviário)<br />

e na perspectiva de uma educação voltada para a descoberta<br />

da cultura popular como forma de resgate da cidadania.<br />

Palavras-chave: Educação Contemporânea – Pluralidade Cultural –<br />

Novos Alagados – Memória – Tradições Populares – Diversidade Cultural.<br />

ABSTRACT<br />

PEDAGOGICAL PRACTICES, CULTURE, HISTORY AND<br />

TRADITION: an account of the educative experience in Novos<br />

Alagados<br />

This article describes the educative experience developed from <strong>19</strong>94 to<br />

2002 in social projects in Novos Alagados, a suburb of Salvador, with<br />

children and adolescents from the area. The pedagogical intervention is<br />

based at the valorizing of the cultural traditions of Bahia (dances, parties,<br />

composers and popular singers), the history (of the railroad suburb) and<br />

the perspective of an education aimed at the discovery of the popular<br />

culture as a way of rescue of citizenship.<br />

Key words: Contemporary Education – Cultural Plurality – Novos Alagados<br />

– Memory – Popular Traditions – Cultural Diversity.<br />

Ninguém educa ninguém; ninguém se educa sozinho; os homens se educam em comunhão.<br />

(Paulo Freire)<br />

Educar é um risco.<br />

(Luigi Giussani)<br />

*<br />

Pedagogo formado pela UCSal; mestrando em Psicologia pela UFBA; educador de projetos sociais de<br />

Novos Alagados: Projeto Cluberê dos Meninos Trabalhadores dos Novos Alagados (<strong>19</strong>94-<strong>19</strong>96), Reforço<br />

Escolar (<strong>19</strong>96-<strong>19</strong>99), SESI – Educação de Adultos (<strong>19</strong>96-<strong>19</strong>97) e Centro Educativo João Paulo II (2000-2002).<br />

Endereço para correspondência: Rua Nova Esperança, 34 -E, 1 a Travessa, Plataforma – 40490.036 Salvador/<br />

BA. E-mail: dinhojose@bol.com.br<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />

113


Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />

Introdução<br />

A memória das experiências educativas realizadas<br />

na comunidade de Novos Alagados,<br />

subúrbio de Salvador, em diversas instituições<br />

de ensino e projetos sociais é o objeto deste<br />

trabalho.<br />

Busco descrever uma proposta pedagógica<br />

realizada ao longo de nove anos, desde <strong>19</strong>94,<br />

da qual fiz parte como educador e coordenador<br />

pedagógico, a exemplo do Cluberê de Meninos<br />

Trabalhadores de Novos Alagados, da Sociedade<br />

1 o de Maio; do Reforço Escolar, da Associação<br />

Humano Progresso e do Centro Educativo<br />

João Paulo II, mantido pela AVSI/CDM 1 ,<br />

localizados em um contexto social caracterizado<br />

pela violência, pobreza e situações de risco,<br />

cada vez mais presentes nas favelas brasileiras,<br />

particularmente nas décadas de <strong>19</strong>90 e<br />

2000.<br />

Como no Brasil costumam afirmar que não<br />

temos memória, essa é uma pequena contribuição<br />

para que haja o entendimento de que, enquanto<br />

os teóricos enchem as livrarias, os educadores<br />

que estão na prática cotidiana conseguem<br />

registrar e difundir suas experiências.<br />

Para a sistematização dessas experiências<br />

parto da premissa de que a escrita e outras formas<br />

de registro (fotografias, textos, relatos de<br />

experiências) fazem permanecer aquilo que<br />

realizamos nas salas de aula. Há um conhecimento<br />

que é nosso, brasileiro, culturalmente situado,<br />

e ao qual podemos dar a nossa contribuição,<br />

enquanto participantes da cultura deste país.<br />

Surge, então, a necessidade de escrever e efetivar<br />

estes registros.<br />

Neste sentido, o objetivo destas páginas é<br />

vislumbrar diversas experiências que valorizaram,<br />

no seu conteúdo e na prática, um saber<br />

sonegado pela educação tradicional e oficial, que<br />

reduz os conhecimentos às páginas dos livros<br />

didáticos, esquecendo-se de que há uma cultura<br />

e uma educação que nascem do contexto<br />

social e da cultura popular, como a que indicaremos<br />

ao apresentar as experiências que realizamos<br />

no Samba de roda do Recôncavo baiano,<br />

com Zilda Paim e Roberto Mendes; nos<br />

encontros com compositores populares da Bahia<br />

(Riachão, Jussara Silveira e Roberto Mendes);<br />

no estudo da História do Subúrbio Ferroviário<br />

e na Folia de Reis.<br />

Premissas teóricas norteadoras do<br />

trabalho pedagógico em Novos Alagados:<br />

a educação e o ensino como<br />

prática cultural da liberdade<br />

Ensinar, antes de tudo, é amar, conhecer e<br />

acreditar que os alunos – crianças e adolescentes<br />

– ou educandos, como são comumente<br />

denominados, são portadores de conhecimentos<br />

e saberes que muitas vezes são negados e<br />

abafados pela sociedade da cultura de massas,<br />

com suas informações pautadas pela cultura<br />

oficial. O ato de ensinar pode ser compreendido<br />

como a possibilidade de fazer emergir a experiência<br />

de liberdade diante do conhecimento.<br />

Essas proposições podem ser concebidas e debatidas<br />

num espaço onde a educação tenha uma<br />

função libertadora.<br />

A educação popular, de base libertadora,<br />

como indica Freire (<strong>19</strong>82, p.9), “exige uma postura<br />

crítica, sistemática, que não se ganha a não<br />

ser praticando-a”. Essa educação afirma que<br />

cada pessoa tem uma história singular, que não<br />

se repete, a qual precisamos, enquanto sujeitos,<br />

valorizar e afirmar.<br />

Um dos sentidos da educação de base<br />

libertadora é sair da relação muitas vezes enfadonha<br />

e hierarquizada entre professor e aluno,<br />

passando a uma interação de saberes, diálogos<br />

e conhecimentos mútuos entre os participantes<br />

do processo comunicativo de descobertas, em<br />

comunhão, do mundo.<br />

A educação é um caminho fascinante. Implica<br />

crescimento, fazer mudar, tornar os sujeitos<br />

novos e mais conscientes de si, em um mundo<br />

1<br />

AVSI – Associação de Voluntários para o Serviço Internacional<br />

e CDM – Cooperação para o Desenvolvimento<br />

e Morada Humana. A primeira é uma ONG italiana que<br />

realiza intervenções em contextos de pobreza urbana, violência<br />

e guerra. A segunda, por sua vez, desenvolve importante<br />

trabalho de urbanização de favelas em Belo Horizonte<br />

e Salvador.<br />

114 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003


José Eduardo Ferreira Santos<br />

onde a nossa meta educativa é o respeito à diversidade<br />

e o respeito às diferenças, numa luta<br />

contínua contra as intolerâncias.<br />

A educação, onde quer que esteja sendo<br />

aplicada, precisa assegurar às pessoas o crescimento,<br />

a visão da totalidade de tudo o que<br />

vivemos. Não uma facção da vida, como muitos<br />

querem, mas a vida inteira e em todas as<br />

suas atividades e momentos. Ela deve propor<br />

momentos de descobertas de si próprios – dos<br />

educandos e educadores – e de sua história<br />

social e cultural.<br />

Toda pessoa tem em si as exigências elementares,<br />

segundo Giussani (2000a, p.24), e elas<br />

formam um conjunto que faz do homem um ser<br />

de cultura. Essas exigências que toda pessoa<br />

tem são de beleza, justiça, verdade e felicidade.<br />

O homem reconhece-se como tal porque<br />

nele todas essas exigências gritam no seu peito<br />

e em cada ação, cada movimento que faz<br />

durante os dias, os anos, a vida inteira.<br />

Por esse aspecto, um possível sentido da<br />

educação deve ser o de formar, aguçar nas<br />

crianças e adolescentes o senso para o belo e<br />

para os valores que tornam nova a humanidade.<br />

O trabalho do educador emerge, assim, simples<br />

na convivência e dinâmico no levantamento<br />

de questões que ele possa introduzir na vida<br />

do educando como pequenas gotas de transformação,<br />

percebendo-o como um ser capaz<br />

e criativo, que tem na sua história pessoal experiências<br />

concretas, ou seja, a bagagem existencial<br />

de seus momentos na rua, na casa e na<br />

escola.<br />

Desse modo, ensinar não é só transmitir<br />

conteúdos pré-estabelecidos, mas contar com<br />

uma diversidade de experiências e alternativas<br />

que tornem o contexto escolar um lugar de descobertas.<br />

Assim, indico alguns pontos importantes que<br />

nortearam a prática pedagógica que descrevo<br />

nestas páginas. Eles representam uma ponte<br />

entre a educação, a arte e a cultura, possibilitando<br />

aos educandos o encontro com uma diversidade<br />

de experiências e metodologias, como<br />

o jogo, o teatro, a música e atitudes relacionais,<br />

pautadas sobre o diálogo.<br />

ARTE-EDUCAÇÃO E CULTURA RELA-<br />

CIONAL NA PRÁTICA PEDAGÓGICA<br />

A arte e a educação estão juntas na construção<br />

de uma pedagogia relacional. Ambas nascem<br />

do desejo humano de criar e aperfeiçoar a<br />

realidade, ou mesmo transformá-la. Sendo assim,<br />

na educação pautada sobre a experiência<br />

lúdica e criativa que tenho proposto aos alunos,<br />

alguns pontos emergem como indicadores de uma<br />

metodologia que tenta conciliar diversas linguagens<br />

no espaço da sala de aula, mesmo tendo<br />

um caráter de construção coletiva.<br />

O jogo e a educação fazem parte do processo<br />

de interação casa-escola-rua e entre o<br />

educador, a sala de aula e o educando. A educação<br />

pelo jogo se dá com a percepção de que<br />

a ludicidade tem um papel importante no cotidiano<br />

das crianças e adolescentes que freqüentam<br />

projetos sociais em Novos Alagados, pois<br />

pela própria mobilidade e dinâmica de suas vidas<br />

nas ruas e no bairro há uma acentuada postura<br />

de movimento no espaço educativo.<br />

A utilização da poesia e da literatura é primordial,<br />

principalmente porque existem crianças<br />

e adolescentes que nunca leram uma poesia<br />

ou um livro sequer, e isso é imperdoável num<br />

país de grandes poetas e escritores, como é o<br />

caso do Brasil. Neste sentido, a utilização da<br />

poesia e da literatura tem se mostrado como<br />

um meio eficaz de democratização da cultura<br />

no contexto educativo. A partir dessa experiência<br />

pude perceber que deste encontro pode<br />

emergir nos educandos a necessidade de comunicar-se<br />

e escrever, buscando uma existência<br />

e um diálogo com a escrita.<br />

Sabe-se que a leitura é uma viagem pelos<br />

caminhos do saber, da emoção e da curiosidade<br />

natural de cada ser humano; através deles<br />

ocorrem as descobertas que tornarão os<br />

educandos mais sensíveis à aprendizagem e à<br />

transmissão dos pensamentos poéticos como<br />

forma de liberação, conhecimento e retenção<br />

das diferentes visões de mundo.<br />

O teatro é uma outra forma de ensinar que<br />

ajuda a descobrir as diversas faces da realidade<br />

e os diferentes aspectos do aprender-ensinar,<br />

tendo a possibilidade de fazer a experiên-<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />

115


Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />

cia da alteridade como forma de conhecimento<br />

de seu próprio contexto histórico e de outros.<br />

A música aparece como essencial ao processo<br />

educativo com crianças e adolescentes<br />

em situação de risco social, tanto por causa das<br />

suas letras, como por suas harmonias, que<br />

transmitem diversos sentimentos, e aludem a<br />

questões e referências à auto-estima e à história<br />

dos alunos. A música popular brasileira, por<br />

exemplo, é um dos nossos maiores patrimônios<br />

culturais e precisa ser mais utilizada nas salas<br />

de aula. Nos projetos sociais de Novos Alagados<br />

o uso dessas canções possibilita o encontro<br />

dos educandos com um universo comunal e ao<br />

mesmo tempo trans-histórico, levando a uma<br />

postura crítica, como propôs Hermínio Bello de<br />

Carvalho num texto 2 em que afirma que toda<br />

música é perigosa, e que há uma perenidade<br />

nas canções populares, como os belos sambas<br />

das décadas de <strong>19</strong>30 a <strong>19</strong>60, cada vez mais<br />

atuais.<br />

O diálogo entre educador e educandos aparece<br />

como uma constante, como forma de estabelecimento<br />

de uma sólida relação, onde não haja<br />

opressores e oprimidos, mas seres capazes de<br />

ajudar-se mutuamente a aprender, numa concepção<br />

educativa onde a liberdade está em sintonia<br />

com a cultura e com valores tradicionais.<br />

No Brasil, cada educador está ligado a personalidades<br />

como Anísio Teixeira, Florestan<br />

Fernandes, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, que têm<br />

lutado na linha de frente pela proposição de uma<br />

educação fundada sobre os valores brasileiros,<br />

respeitando tudo o que temos de mais caro em<br />

termos culturais e humanos, respeitando e difundindo<br />

a nossa diversidade. Nessa corrente<br />

ligam-se figuras da cultura brasileira como Mário<br />

de Andrade, Villa-Lobos e o próprio Hermínio<br />

que, através da música e da cultura, têm proporcionado<br />

o encontro de milhares de estudantes<br />

com um Brasil autêntico, negro, indígena,<br />

europeu, fundado sobre os nossos valores ancestrais<br />

e culturais, os mais diversos. (FÁVE-<br />

RO; BRITO, <strong>19</strong>99; CARVALHO, <strong>19</strong>88).<br />

Na Bahia, essa luta pela afirmação de nossa<br />

diversidade cultural e descolonização da educação<br />

vem sendo realizada por nomes como<br />

Narcimária Correia do Patrocínio Luz (2002) e<br />

Marco Aurélio Luz (2000), dentre tantos outros,<br />

a partir de um importante trabalho de afirmação<br />

das identidades africana e indígena, chegando<br />

a palmilhar uma educação fundamentada<br />

nos valores ancestrais dessas culturas, e em<br />

núcleos de estudos sobre a educação contemporânea,<br />

implementados na UNEB. Uma importante<br />

referência para o trabalho que tenho<br />

realizado em Novos Alagados é o livro Educar<br />

é um risco, de Giussani (2000a), que propõe<br />

uma educação voltada às tradições e à realidade<br />

do educando.<br />

PROJETOS SOCIAIS EM UM CONTEX-<br />

TO DE VIOLÊNCIA URBANA 3<br />

No contexto social de Novos Alagados, a<br />

educação ocorre em diversas situações, a exemplo<br />

dos projetos sociais e das escolas. Novos<br />

Alagados é uma favela localizada na área do<br />

Subúrbio Ferroviário de Salvador e conta com<br />

aproximadamente 13.000 habitantes. Esta área<br />

é bastante conhecida pela violência policial, marginalidade<br />

e pela pobreza urbana expressa nas<br />

antigas palafitas. A área também é bastante<br />

conhecida pelas lutas dos movimentos sociais<br />

comunitários, muito fortes e representativos em<br />

toda a década de <strong>19</strong>70 e <strong>19</strong>80. Nos diversos<br />

projetos sociais ali existentes há uma preocupação<br />

com a escolarização, profissionalização<br />

de crianças e adolescentes e a aprendizagem<br />

de aspectos fundantes das tradições culturais<br />

dos sujeitos do processo educativo.<br />

Os projetos sociais são uma nova realidade<br />

de ação educativa que atenta para característi-<br />

2<br />

O texto, intitulado Políticas, foi distribuído pelo autor,<br />

via e-mail, no ano de 2002, a alguns jovens envolvidos<br />

com música popular e educação e trata de políticas culturais<br />

envolvendo a divulgação do legado de grandes compositores<br />

e intérpretes da MPB.<br />

3<br />

Os Projetos Sociais são espaços sócio-educativos que,<br />

mantidos por ONGs (Organizações Não Governamentais)<br />

ou associações de bairro, realizam atividades culturais,<br />

lúdicas, esportivas, educativas e profissionalizantes,<br />

tendo como público alvo as crianças e adolescentes em<br />

situação de risco psicossocial. Em Novos Alagados, atualmente,<br />

há cerca de 30 destas instituições.<br />

116 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003


José Eduardo Ferreira Santos<br />

cas importantes da formação humana, particularmente<br />

aquelas ligadas à cultura e à arte, que<br />

efetivam aquilo que o Estatuto da Criança e do<br />

Adolescente chama de Proteção Integral. Um<br />

exemplo dessa sensibilidade dos projetos sociais<br />

é a proposição da cultura africana e da cultura<br />

popular brasileira como instrumentos de inserção<br />

educativa, através de valores culturais ancestrais<br />

africanos, como a capoeira, o maculelê<br />

e outras manifestações. A escola tem tentado<br />

fazer o mesmo, só que sem o devido sucesso<br />

por reduzir a cultura a conteúdos programáticos,<br />

sem vida.<br />

Os projetos sociais, por sua vez, se caracterizam<br />

pela diversidade de propostas educativas,<br />

geralmente com o escopo de promover a cidadania<br />

através da arte, da cultura e da profissionalização.<br />

Deste modo, conseguem promover<br />

uma proposta pedagógica que tem muito a ensinar<br />

à escola, pois através dessa didática voltada<br />

ao lúdico e às necessidades das crianças e<br />

adolescentes, conseguem o estabelecimento de<br />

vínculos e aprendizagens para a vida. Por fim,<br />

os projetos sociais conseguem favorecer a aprendizagem<br />

e o encontro das crianças e adolescentes<br />

com uma diversidade cultural que muitas<br />

vezes a escola não abarca. A existência<br />

destes espaços educativos favorece, também,<br />

a criação e manutenção de espaços de segurança,<br />

apoio e estabilidade, promovendo o encontro<br />

com referenciais diferentes daqueles da<br />

marginalidade e da violência.<br />

AS CRIANÇAS E OS ADOLESCENTES<br />

As crianças e os adolescentes com os quais<br />

trabalhei em Novos Alagados são iguais a quaisquer<br />

outras do mundo inteiro. Têm as mesmas<br />

exigências, necessidades, o mesmo coração, a<br />

mesma humanidade. Porém, há peculiaridades<br />

pessoais e do contexto, marcadas pela história<br />

individual e do local onde habitam. Eles são o<br />

resultado de um continuum civilizatório que<br />

muitas vezes é marcado pela exclusão e pelo<br />

enfraquecimento das redes sociais.<br />

A falta de melhores condições de alimentação,<br />

moradia, saúde e educação são algumas<br />

características dessa exclusão. As crianças e<br />

os adolescentes de Novos Alagados poderiam<br />

ser caracterizados como aqueles em situação<br />

de risco psicossocial e vulnerabilidade, frente<br />

às situações adversas do contexto social no qual<br />

se encontram, desde a violência até o contexto<br />

próprio da pobreza urbana, na sua face mais<br />

grave, a miséria, o uso de drogas, o trabalho<br />

informal e a exploração e a vitimização sexual.<br />

A miséria pode ser entendida como a impossibilidade<br />

de mudança, enquanto o fracasso<br />

é o aparelho que reforça a idéia de que o homem<br />

é formado de acordo com o lugar onde<br />

está inserido. Daí surgem pensamentos determinantes<br />

e fatalistas do tipo “se favelado, logo<br />

incapaz, marginal, fracassado, que não<br />

aprende”, e outros adjetivos mais desoladores.<br />

Para uma mudança dessa ideologia o educador<br />

deve partir do pressuposto de que todas as crianças<br />

são capazes, ultrapassando essa visão que<br />

é introduzida pela realidade social cada vez mais<br />

excludente. Todas podem aprender, ou seja,<br />

nenhuma criança é destituída das capacidades<br />

de aprender e de se desenvolver, sendo esta a<br />

característica principal das crianças e adolescentes<br />

enquanto pessoas em desenvolvimento.<br />

Aqui a interação, tão sobejamente discutida,<br />

transforma-se em realidade. É fato inconteste<br />

que as crianças aprendem construindo;<br />

porém, é bom lembrar, a construção das interações<br />

com o mundo não podem dar-se<br />

aleatoreamente àqueles que estão por perto. As<br />

crianças necessitam saber-se indivíduos, sujeitos<br />

de direito. Cada nome, cada recomendação<br />

dos pais, todo cuidado com o trato é pouco;<br />

enfim, deve-se entender que ensinar não é transmitir<br />

conteúdos, mas, antes de tudo, ser responsável<br />

por essas pessoas cuja educação nos<br />

foi confiada, para que essa educação não seja<br />

um ideal figurativo e abstrato, mas uma realidade<br />

presente que transforma educadores em<br />

responsáveis pelos alunos e por suas vidas.<br />

Suas características psicossociais revelam<br />

uma experiência inicial com situações de violência,<br />

na família e no bairro, assim como a exposição<br />

a fatores de risco, dentre eles o extermínio<br />

(morte) e outras vitimizações. Ao educador<br />

cabe estabelecer vínculos positivos com os<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />

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Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />

educandos, visando abrir uma perspectiva de<br />

intercâmbio e diálogo com eles, e proporcionando<br />

uma experiência diversa daquela que é pautada<br />

pela violência e pela rigidez ou abandono<br />

aos quais alguns deles estão expostos. Há neles<br />

uma certa vulnerabilidade nascida da exposição<br />

constante a riscos psicossociais. Assim,<br />

não são crianças e adolescentes acostumados<br />

a estarem nas sala de aulas como alunos ideais,<br />

mas sim como pessoas reais, cujos comportamentos<br />

e inquietações refletem suas trajetórias<br />

de vida, muitas vezes marcadas pela violência.<br />

A EXPERIÊNCIA COM AS MONITORAS<br />

DE CRECHE<br />

Dentre as experiências que mais contribuíram<br />

para a minha formação enquanto educador,<br />

destaco um curso oferecido para adolescentes,<br />

no intuito de formar monitoras de creche.<br />

Nos meses de agosto a dezembro realizei,<br />

como coordenador pedagógico e professor do<br />

módulo básico, o curso de capacitação de auxiliar<br />

e monitoras de creche, financiado pelo programa<br />

Capacitação Solidária. O curso recebeu<br />

31 jovens de todo o Subúrbio Ferroviário,<br />

com idades entre 17 e 21 anos, com níveis variados<br />

de escolaridade, do 1 o ao 2 o grau. Esse<br />

curso foi dividido em três momentos diferenciados:<br />

o módulo básico, o módulo específico e a<br />

vivência prática, nos moldes do Capacitação<br />

Solidária, programa do governo federal.<br />

Para mim foi uma experiência muito significativa,<br />

pois tive a tarefa de introduzir essas jovens<br />

em temas da atualidade e da cultura brasileira<br />

e geral, de maneira que nelas fizesse surgir<br />

o gosto e o interesse pelos estudos, visto que a<br />

experiência de escola não foi das melhores.<br />

Tivemos 4 aulas sobre os mais diversos temas,<br />

a saber: sexualidade, globalização e neoliberalismo,<br />

correspondência oficial, história da<br />

arte, redação e interpretação de textos, história<br />

da Bahia, história do Subúrbio Ferroviário, história<br />

do Brasil, literatura infantil, Leis e Diretrizes<br />

de Base da Educação Nacional, poesia brasileira,<br />

postura ética e profissional, história do<br />

Parque de São Bartolomeu, características e<br />

aspirações do homem moderno, elementos para<br />

a construção da cidadania, método de estudo, o<br />

barroco brasileiro. Também tivemos diversas<br />

palestras e visitas de personalidades da cultura,<br />

como Myriam Fraga, escritora e poetisa; professores<br />

e alunos universitários como o biólogo<br />

Gilberto Cafezeiro Bonfim, o advogado Caio<br />

César Tourinho, o estudante de economia Ricardo,<br />

e Jaqueline, estudante do curso de enfermagem,<br />

e partilhamos momentos inesquecíveis<br />

quando, juntos, visitamos diversos lugares da<br />

cidade do Salvador e região metropolitana, a<br />

exemplo do Pelourinho e suas igrejas, o Engenho<br />

Freguesia, em Caboto, e diversos museus<br />

da cidade.<br />

O período mais intenso de aulas foi de agosto<br />

a setembro, quando diariamente ficamos juntos;<br />

com todas as imperfeições e dificuldades, foi um<br />

período de verdadeira aprendizagem, que me<br />

impressionou bastante e que, certamente, me ajudou<br />

a aprender com as experiências de cada uma<br />

dessas jovens, pois as aulas nunca se desenvolviam<br />

da maneira que se tinha planejado.<br />

Os assuntos fomentavam diálogos, conversas<br />

e aprendizagens significativas que nos ajudaram<br />

a entender que aprender é uma capacidade<br />

de fazer nexos entre uma realidade estudada,<br />

vivida e outras diversas que nos rodeiam<br />

e aparecem à nossa frente. Foi muito expressivo<br />

descobrir algumas coisas nesses momentos<br />

que realizam, de fato, o que vem a ser uma prática<br />

educativa, um educador. Primeiro, o educador<br />

deve preparar as aulas. Ele pode não<br />

saber tudo, mas certamente deve ter um universo<br />

cultural que abarque a sua curiosidade e<br />

seja capaz de aguçar ou espicaçar a curiosidade<br />

alheia, ou seja, deve haver uma paixão pelo<br />

ato de transmitir qualquer conhecimento; o educador<br />

é um profissional que deve ter a noção<br />

de previsibilidade, ou seja, segurança daquilo que<br />

vai propor e mediar. Segundo, a aula desenvolve-se<br />

por caminhos a que devemos estar abertos,<br />

utilizando os assuntos, quando estes sur-<br />

4<br />

A experiência educativa relatada nestas páginas envolve<br />

a presença de outros educadores, daí a voz no plural, o<br />

nós, que pode aparecer no corpo do texto.<br />

118 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003


José Eduardo Ferreira Santos<br />

gem, ou os conhecimentos novos trazidos pelas<br />

alunas. Nós aprendemos no diálogo aquilo que<br />

para nós é uma sabedoria viva, que se expressa<br />

no conhecimento que os outros têm e que<br />

certamente nos enriquece a cada momento. A<br />

experiência com o curso de monitoras de creches<br />

mostrou-me que muitas vezes ouvir, dialogar,<br />

ajuda a desenvolver aquilo que a pessoa é<br />

e tem em si e que, muitas vezes, nós os professores<br />

não prestamos a devida atenção ao que<br />

os nossos alunos dizem, porque estamos entulhados<br />

em nossas lamentações e queixas diárias<br />

contra tudo e todos.<br />

Aprendi com elas que o educador deve ser<br />

realista. Não adianta mentir, fingir. Ser verdadeiro,<br />

dizer a vida, é uma tarefa a que muitos se<br />

furtam, e os educandos percebem quando os<br />

estamos enganando sobre a realidade interpessoal,<br />

cultural, política, enfim, qualquer que seja<br />

ela. O educador, a pessoa de referência na sala<br />

de aula, não se deve impedir de propor novos<br />

mundos, novas descobertas culturais. Para mim,<br />

foi importante a experiência de que temas fascinantes<br />

foram estudados, descobertos, aprendidos,<br />

a partir de um interesse que nascia em<br />

mim, mas ao mesmo tempo era evidente a reverberação<br />

na turma e seu conseqüente aprofundamento.<br />

Ou seja, o educador deve permitir-se<br />

querer descobrir, aprender mais. A leitura,<br />

neste sentido, ajuda de uma maneira fundamental.<br />

Nesses meses li e reli alguns livros 5<br />

fundamentais para entender a pessoa e desenvolver<br />

o trabalho na sala.<br />

O educador deve ter uma concepção de<br />

educação e de pessoa, e isso é fundamental pois<br />

só assim a prática pedagógica alcança certas<br />

dimensões. O que pautou o trabalho foi a definição<br />

da educação tomada de Giussani (2000a,<br />

p.49) que a entende como uma introdução da<br />

pessoa na totalidade da realidade; ele parte<br />

do pressuposto de que todas as pessoas têm<br />

dentro de si as mesmas exigências e evidências<br />

constitutivas, e que qualquer um pode se<br />

interessar pela beleza porque todos temos o mesmo<br />

coração, a mesma busca humana.<br />

Lembro também dos momentos em que pedi<br />

silêncio à turma, a qual, não sei se por costume,<br />

mostrava-se difícil em entender que determinados<br />

conteúdos e ensinamentos devem ser<br />

apreendidos com um clima de respeito, pois<br />

quando o conteúdo é novo, ele por si próprio<br />

exige, num primeiro momento, essa atitude, certamente<br />

propícia e preparatória aos diálogos,<br />

às perguntas, comentários, explicitação de dúvidas<br />

e problemas que venham a surgir após<br />

uma explicação.<br />

A aula, então, tem um caráter de relacionamento<br />

com instâncias da realidade pessoal e<br />

intelectual que transparecem no olhar das alunas,<br />

pois vi muitas vezes que o olhar evidenciava<br />

e demonstrava quando cada uma delas aprendia<br />

ou não determinados ensinamentos. Se uma<br />

pessoa aprende, ela comunica aquilo que aprendeu.<br />

Isto para mim foi impressionante; descobri<br />

isso nos relatos de diálogos delas com seus<br />

professores de escola, de cursinho, pais, amigos,<br />

a partir daquilo que foi trabalhado nas aulas.<br />

Ficou evidente que, quando uma pessoa<br />

descobre o significado das coisas, ela tem mais<br />

gosto e prazer de divulgar o conhecimento adquirido;<br />

pois quando uma pessoa explica, divulga<br />

e fala daquilo que aprendeu ela está tornando<br />

esse conhecimento muito mais seu do que<br />

aquela pessoa que o guarda para si.<br />

Aprendi que cada pessoa tem seu ritmo, sua<br />

época de aprender, e, por isso, o professor deve<br />

ser aquele que propõe, provoca, sendo livre para<br />

que, junto com a liberdade do aluno, os dois<br />

cheguem a descobertas. Mas o aluno é livre, e<br />

liberdade significa respeitar os silêncios, as<br />

emoções que eles trazem, suas histórias.<br />

Quando uma pessoa estuda seriamente e é<br />

livre diante de uma aula, ela sente-se provocada<br />

e, então, conceitos internos são afirmados, quebrados,<br />

refeitos. Há conflitos, certamente. Muitas<br />

vezes me dei conta de que um conteúdo<br />

abre brechas para descobertas pessoais, inte-<br />

5<br />

Antropologia Teológica, de Battista Mondin; O Homem<br />

Moderno, Enrique Rojas; Raízes do Brasil, de Sérgio<br />

Buarque de Holanda; O Povo Brasileiro - O Sentido e a<br />

Formação do Brasil, de Darcy Ribeiro; A Lição do Amigo,<br />

com cartas de Mário de Andrade a Drummond; Poesia, de<br />

Manuel Bandeira; Relicário Popular, de Dona Zilda Paim,<br />

de Santo Amaro; Diários Índios, também de Darcy Ribeiro,<br />

entre outros.<br />

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1<strong>19</strong>


Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />

resses e até problemas mal resolvidos de família,<br />

afeto, criação; enfim, a pessoa que está na<br />

sala é um mistério. Há uma complexidade na<br />

pessoa. Há um conjunto de conhecimentos prévios<br />

trazidos pelos alunos, de que muitas vezes<br />

nem sequer me dei conta, só me lembrando<br />

quando pediam para falar deles. Esses conhecimentos<br />

emergiam como produto de uma descoberta<br />

naquele exato momento da aula, fazendo<br />

o nexo entre o seu saber cotidiano e as aprendizagens<br />

em sala.<br />

Algumas vezes tive que calar a voz em meio<br />

à aula para ouvir um desabafo, um choro, que<br />

trazia em si o resquício de um passado, de uma<br />

dor que ainda insistentemente queimava nelas.<br />

Aqui, calar a voz é fundamental, assim como é<br />

importante não interpretar essas falas, pois as<br />

pessoas precisam ser ouvidas em suas questões,<br />

naquilo que é a sua vida. Aqui há uma<br />

confiança em expressar o que se sente, assim<br />

também como uma maneira de partilhar com o<br />

outro aquilo que se tem dentro de si.<br />

Foram muitas aprendizagens... A base da<br />

metodologia utilizada foi a aula como centro de<br />

um primeiro momento de tomada de relacionamento<br />

com o objeto estudado, através de materiais<br />

cuidadosamente preparados, de diversas<br />

fontes de pesquisa e texto-guia.<br />

Depois vieram a investigação, as perguntas,<br />

os comentários e as pesquisas subseqüentes,<br />

de onde emergiram novas descobertas para os<br />

envolvidos no processo ensino-aprendizagem,<br />

professor e alunos. São muito importantes a<br />

descoberta, o contato, a visita, a ida a lugares<br />

onde se tornam visíveis, de maneira concreta,<br />

os conteúdos explicitados no primeiro momento.<br />

Essa última etapa faz com que a pessoa se<br />

dê conta da pertinência da aprendizagem, envolvida<br />

com a própria vida, ou seja, com o ser<br />

de cada um, com a realidade existencial de<br />

cada coisa. A pessoa descobre que há uma conexão,<br />

um nexo profundo entre a aprendizagem<br />

e a realidade, que é o mesmo que entender que<br />

o que eu estudo existe, não é uma invenção ou<br />

uma simples teoria.<br />

Um exemplo foram as aulas para entender<br />

a história do Subúrbio Ferroviário, conforme se<br />

pode ver no texto escrito a partir dessas aulas.<br />

Nós estudamos, lemos alguns textos, etc. Na<br />

hora de verificar a pertinência da realidade com<br />

o tema estudado foi impressionante perceber<br />

como a aprendizagem se torna significativa, isto<br />

é, como passa a ser um patrimônio da pessoa.<br />

Quando fomos visitar o Engenho Freguesia,<br />

em Caboto, ficou evidente que elas aprenderam<br />

a valorizar o subúrbio e, mais do que isso, a<br />

ser uma humanidade que carrega em si o significado<br />

do lugar onde mora. E o significado inclui<br />

o conhecimento do passado, do presente e<br />

das transformações pelas quais esse lugar está<br />

passando.<br />

Essa insistência no aprender é uma característica<br />

quando o professor é visto como o detentor<br />

de um conhecimento maior, cuja tarefa é<br />

abrir horizontes, ajudar os alunos a descobrir o<br />

que há no mundo.<br />

Ou seja, a aula, se é interessante e tocante,<br />

faz com que o outro, que é um sujeito partícipe<br />

da aprendizagem, se mova, busque a si e sua<br />

história em cada coisa que faz. Nesse sentido,<br />

é importante que o elemento aula seja dominado<br />

pelo professor, pelo educador, pois pode acontecer<br />

que, por causa de algumas aulas, a pessoa<br />

esteja ali se refazendo, fazendo-se novamente<br />

em si mesmo.<br />

Por esse motivo a aula deve ser preparada,<br />

estudada, entendida, revisada, etc. É o mínimo<br />

que um professor deve fazer para que haja um<br />

interesse na sala, pois se não há esse antecedente<br />

o momento da aprendizagem torna-se<br />

certamente enfadonho.<br />

É a capacidade de maravilhar-se que toca<br />

o aluno. Se eu não sou provocado a apaixonarme<br />

pelo que faço as coisas saem mecânicas e<br />

sem gosto de uma vida nova, de um novo interesse<br />

pelas coisas. O maravilhamento deve estar<br />

para o professor e para o educador, assim<br />

como o sol está para o dia.<br />

ENCONTROS CULTURAIS COM A<br />

TRADIÇÃO CULTURAL E MUSICAL DA<br />

BAHIA: Riachão, Roberto Mendes,<br />

Jussara Silveira e Zilda Paim<br />

Experiências significativas dentro da educação<br />

em Novos Alagados foram a possibilidade<br />

120 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003


José Eduardo Ferreira Santos<br />

de promover o encontro dos alunos com a cultura<br />

musical baiana através de seus representantes<br />

muitas vezes marginalizados pelas emissoras<br />

de rádio, mas que são fundamentais para<br />

o entendimento do contexto cultural da Bahia.<br />

Realizando encontros com cantores e compositores<br />

como Roberto Mendes, Riachão e<br />

Jussara Silveira, pude compreender que a sala<br />

de aula é o espaço de promover descobertas de<br />

que há personalidades que carregam traços da<br />

nossa identidade em seu fazer artístico, existindo<br />

mesmo contra todas as limitações que lhes<br />

são proporcionadas pelos meios de comunicação.<br />

Roberto Mendes, Jussara Silveira e Riachão<br />

foram significativos na minha trajetória educativa,<br />

porque mostraram que a música de qualidade<br />

existe e é possível manter um intercâmbio<br />

com os alunos e possibilitar que eles aprendam<br />

que há a possibilidade de escolhas diante da<br />

massificação musical da qual sofremos diariamente.<br />

A proposição dessas modalidades musicais<br />

nascidas e desenvolvidas nas tradições do<br />

Recôncavo baiano requer a consciência de uma<br />

democratização da cultura, conforme a proposta<br />

de Hermínio Bello de Carvalho que retoma o<br />

dito de Mário de Andrade, segundo o qual é<br />

preciso “abrasileirar o brasileiro’’.<br />

Roberto Mendes fez o lançamento do seu<br />

CD Tradição para os alunos do Centro Educativo<br />

João Paulo II, promovendo o encontro com<br />

uma cultura tão próxima a nós, baianos, mas ao<br />

mesmo tempo tão sonegada pela mídia.<br />

Uma base metodológica é promover os encontros<br />

culturais como formas de integração e<br />

conhecimento da cultura na qual os alunos estão<br />

inseridos. Essas três apresentações e os<br />

encontros, ao longo dos anos, mostraram-se<br />

como fomentadores de uma possibilidade de<br />

gosto musical diverso daquele que enche as<br />

rádios baianas, onde o gosto duvidoso torna-se<br />

a tônica dos ouvintes, por não terem acessos a<br />

outros ritmos e expressões musicais como a<br />

música de qualidade que é feita na Bahia e é<br />

esquecida.<br />

Junto a isso, o encontro com o samba de<br />

roda através do livro de Dona Zilda Paim foi<br />

outro momento importante dessas descobertas<br />

educativas.<br />

Os encontros com estes compositores e cantores<br />

foram marcados pelo trabalho preparatório<br />

de conhecimento da obra e da discografia,<br />

muitas vezes por alguns meses, antecipando o<br />

diálogo que se estabeleceria. A partir deste<br />

trabalho anterior aconteceram as apresentações<br />

no espaço aberto do Centro Educativo João<br />

Paulo II, onde os educandos e educadores puderam<br />

conhecer pessoalmente essas personalidades,<br />

estabelecendo com eles um contato<br />

importante, mostrando que há possibilidades de<br />

interlocução com as pessoas que desenvolvem<br />

atividades artísticas. Conhecê-los pessoalmente<br />

foi uma oportunidade única na vida de centenas<br />

de crianças e adolescentes, pois, a partir<br />

daí, ficaram estabelecidos em suas memórias<br />

os momentos de encontro e relacionamento.<br />

Os educandos cantaram, ouviram e fizeram<br />

perguntas a cada um dos artistas presentes, promovendo<br />

um encontro cultural e intergeracional,<br />

pautado pela curiosidade e pela liberdade.<br />

OS SAMBAS DE RODA DO RECÔN-<br />

CAVO BAIANO NA SALA DE AULA<br />

Entramos em contato, por intermédio do amigo<br />

Hermínio Bello de Carvalho, com a obra da professora<br />

e folclorista Zilda Paim, uma senhora de<br />

oitenta anos que recolheu e guardou, através de<br />

registro escrito, grande parte da cultura popular<br />

do Recôncavo da Bahia, em especial da região<br />

de Santo Amaro da Purificação, num livro<br />

intitulado Relicário Popular, editado pela Secretaria<br />

de Educação e Cultura, no ano de <strong>19</strong>99.<br />

Ao aproximar-nos das festividades do folclore<br />

resolvemos utilizar o seu livro nas nossas<br />

atividades deste ano. Este livro tem a peculiaridade<br />

de ser uma obra viva, que guarda muitos<br />

elementos culturais ainda presentes em toda a<br />

Bahia, como a capoeira, os sambas, os refrões,<br />

as comidas e outros elementos.<br />

As educandas do curso de monitoras de creche,<br />

por sua vez, resolveram escolher uma das<br />

partes do livro para trabalhar em sala e desenvolver<br />

uma apresentação. A idéia aprovada<br />

pelos educandos foi a de selecionar os sambas<br />

de roda e fazer um pot pourri, com uma verdadeira<br />

roda e apresentação.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />

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Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />

QUADRO 1<br />

Sambas de roda do Recôncavo baiano<br />

“O guarda civil não quer<br />

a roupa no quarador (bis)<br />

meu Deus, onde vou quarar<br />

quarar minha roupa?<br />

“É de Deus<br />

É de Deus<br />

É Deus<br />

Essa casa é de Deus”<br />

“Pega na galha do boi,<br />

pega na galha do boi,<br />

ô mulher (bis)”<br />

“A baiana me deu o sinal,<br />

Olerê baiana! (bis)<br />

Baiana me pega, me joga lama,<br />

Eu não sou camarão,<br />

mas o mar me chama,<br />

Olerê, baiana.<br />

A baiana me deu o sinalOlerê baiana.”<br />

“Tava na beira do rio<br />

quando a polícia chegou<br />

vamos acabar com esse samba<br />

que o delegado mandou”<br />

Escolhemos os sambas curtos e começamos<br />

os ensaios, junto com as crianças do Centro.<br />

Foi uma experiência por demais gratificante. Aos<br />

poucos a nossa cultura festeira ressurgia através<br />

da cadência repleta de palmas ritmadas que<br />

dava um brilho especial ao canto.<br />

O samba de roda caracteriza-se, como o próprio<br />

nome diz, por uma roda onde cada um tem a<br />

sua vez de participar, sambando à sua maneira,<br />

sem homologações, enquanto os refrões são cantados<br />

e repetidos. O significado da roda é que o<br />

samba pode ser repetido várias vezes e as pessoas<br />

podem se manifestar sambando dentro de<br />

um círculo contínuo, que não acaba. Os educandos,<br />

no ensaio, batiam palmas com o ímpeto de<br />

não deixar o ritmo cair enquanto as meninas cantavam<br />

os sambas aprendidos.<br />

No dia da apresentação conseguimos um<br />

atabaque, tocado pelo educador de capoeira do<br />

Centro Educativo João Paulo II, e um pandeiro,<br />

que foi tocado pelos educandos, enquanto cada<br />

um ia ao centro da roda e sambava à sua maneira,<br />

numa interessante demonstração de criatividade.<br />

Os sambas falam de fatos corriqueiros e do<br />

dia-a-dia do povo do Recôncavo da Bahia, a<br />

começar por alguns que são os mais bonitos, na<br />

predileção dos alunos, como o samba no Quadro<br />

1.<br />

O interessante é que quando o samba foi<br />

ficando mais intenso, o clima já não era mais o<br />

de uma atividade escolar, mas sim o de um terreiro,<br />

pois essas festas são a celebração da vida,<br />

e sempre acontecem após uma colheita farta<br />

ou uma festa religiosa, como casamento, batizado<br />

ou festa de padroeiros.<br />

Os educandos, que nem sequer têm acesso<br />

a essa cultura tão nossa, a partir dessa atividade<br />

de redescoberta do folclore se interessaram<br />

bastante e muitos pediram cópias das músicas<br />

para guardá-las. Durante os jogos e outros<br />

momentos eles estavam cantando os sambas já<br />

com muita familiaridade, portadores, agora sim,<br />

de sua própria cultura.<br />

Essa atividade foi importante porque é uma<br />

forma criativa de quebrar a homogeneidade das<br />

letras, ritmos e ‘coreografias’ – não sambas –<br />

dos tantos grupos de pagode que povoam as<br />

nossas rádios, que hoje fazem parte da mídia, e<br />

dos quais ninguém pode fugir, pois as crianças<br />

e adultos, vítimas dessa homogeneidade, não<br />

conseguem se expressar, mas somente repetir<br />

o que ouvem e vêem, sem qualquer contribuição<br />

pessoal.<br />

HISTÓRIA DO SUBÚRBIO<br />

FERROVIÁRIO<br />

Estudando, nos anos de 2000 a 2002, a história<br />

do Subúrbio Ferroviário de Salvador, local<br />

onde os educandos habitam, pudemos fazer<br />

várias descobertas interessantes e que possibilitaram<br />

uma nova significação do espaço e do<br />

território suburbano para eles. Essas descobertas<br />

deram-se através de aulas e visitas ao locais,<br />

estudando, fazendo uma ponte entre a teoria<br />

e a prática pedagógica, através do encontro<br />

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José Eduardo Ferreira Santos<br />

com as realidades históricas que aconteceram<br />

nos locais hoje abandonados pelos poderes públicos,<br />

como as áreas verdes, as praias e as<br />

favelas do referido Subúrbio, que guarda em si<br />

muitos séculos de história e monumentos importantes<br />

do Brasil.<br />

A primeira descoberta foi o próprio conceito<br />

de subúrbio como um referencial territorial<br />

positivo, o contrário daquilo que os alunos percebiam.<br />

Depois, a tônica passou a ser de que<br />

os alunos estavam diante de um conhecimento<br />

sobre a sua própria área de existência tendo<br />

consciência da importância do local na história<br />

do Brasil, fato este que pela primeira vez foi<br />

levado adiante num conjunto de aulas e visitas.<br />

Os conceitos de subúrbio e cidade<br />

A noção de subúrbio tem a ver, certamente, com<br />

a própria noção de afastado da cidade: isto é, o<br />

que podemos ver na própria etimologia da palavra<br />

subúrbio, sub urbis, indicando o que está à<br />

margem, fora da urbis, da cidade, que é o lugar do<br />

trabalho, das relações sociais e dos compromissos<br />

da semana.<br />

Isso fica bem claro na concepção sob a qual<br />

foi fundada a cidade do Salvador, com seu entorno<br />

murado na cidade alta, com o centro comercial<br />

abaixo, a alfândega e o porto, e as áreas afastadas<br />

geralmente ficando em lugares aprazíveis,<br />

longe do centro, como era o caso do Rio Vermelho,<br />

Vila Velha e o próprio Subúrbio Ferroviário,<br />

que é um lugar abaixo da cidade, afastado, uma<br />

sub urbis; uma cidade abaixo da cidade.<br />

O subúrbio, em oposição à cidade, era o lugar<br />

do descanso, um ambiente bucólico, de praias, e<br />

o seu “conceito era o do afastado, mas acessível,<br />

mas ao mesmo tempo o do não acessível às categorias<br />

populares …”. (ESPINHEIRA, <strong>19</strong>98, p.23)<br />

Segundo o professor Espinheira (<strong>19</strong>98, p.23),<br />

o Subúrbio Ferroviário “foi um espaço nobre de Salvador,<br />

no tempo em que a cidade ainda não tinha<br />

sofrido as grandes transformações que vieram fazer<br />

dela, nos anos 70”, principalmente com a abertura<br />

das avenidas de vales, que ampliaram o espaço<br />

urbano de Salvador, de forma desordenada.<br />

Para efeito de demarcação de espaço, entendemos<br />

o Subúrbio Ferroviário como uma área<br />

compreendida entre a Calçada, Baixa do Fiscal e<br />

Lobato, até Paripe, São Thomé, que tem esse<br />

nome devido à grande extensão de linha férrea<br />

que corta e contorna os diversos bairros da Avenida<br />

Afrânio Peixoto, nome oficial da via mais conhecida<br />

como Avenida Suburbana, cercados de<br />

belas praias e acidentes geográficos, outrora lugar<br />

de vegetação aprazível, oferecendo boas condições<br />

de vida, contando ainda com a proximidade<br />

do mar, os rios e cachoeiras, a terra boa para<br />

plantar e a fartura de alimentos do mar e das florestas.<br />

Para se chegar ao Subúrbio Ferroviário, mais<br />

ou menos até a década de 60, existiam somente<br />

dois meios: o marítimo (lanchas, barcos e saveiros)<br />

e o ferroviário.<br />

Embarcações de todo o tipo já aportaram nas<br />

praias do Subúrbio Ferroviário, desde as naus e<br />

grandes embarcações até saveiros, lanchas e<br />

pequenos barcos de pescadores.<br />

O trem foi o mais importante meio de transporte<br />

oficial dessa área, muito antes mesmo da construção<br />

da Avenida Suburbana, que só ocorreria na<br />

década de 70. O transporte ferroviário, dentre outras<br />

coisas, representou e contribuiu para o início<br />

de habitações de diversos empregados nas áreas<br />

do Subúrbio, pois os funcionários da antiga LES-<br />

TE moravam nas imediações dos lugares por onde<br />

passavam as linhas férreas.<br />

Antes, o trem ia pela Estrada Velha do Cabrito,<br />

fazendo um contorno pelo São João do Cabrito e<br />

Plataforma. Em <strong>19</strong>52, com a mudança do percurso,<br />

foi construída a Ponte São João. Esse mesmo<br />

trem ia até as cidades do Recôncavo, fazendo,<br />

com isso, um importante intercâmbio cultural,<br />

social e comercial, sendo um momento de crescimento<br />

e desenvolvimento da economia das áreas<br />

interligadas; hoje, após a sua crescente decadência<br />

devido a diversos fatores econômicos, a linha<br />

vai até Paripe, com uns poucos trens mal conservados.<br />

Andar de trem no Subúrbio Ferroviário é fazer<br />

um passeio diante de belezas naturais, pois apesar<br />

de todos os problemas, o Subúrbio ainda preserva<br />

o ambiente agradável de se ver, desde o<br />

mar, as praias, a maré com suas marisqueiras,<br />

as casas, a ponte de ferro, o túnel, enfim, todos os<br />

componentes para uma viagem inesquecível.<br />

Dentre as estações ferroviárias há uma que é<br />

um dos lugares mais bonitos da cidade, que é a<br />

Almeida Brandão com a sua beleza, sua perfeita<br />

implementação paisagística, com algumas belas<br />

palmeiras imperiais, tendo à frente o mar, e mais<br />

ainda uma bela visão da Baía de Itapagipe, Ribeira,<br />

Penha e Bonfim.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />

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Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />

Um dos outros meios de transportes utilizados<br />

no Subúrbio era a lancha, que conduzia os<br />

moradores na travessia de Plataforma até a Ribeira,<br />

levando principalmente estudantes e trabalhadores.<br />

Com o crescente abandono da área as<br />

lanchas pararam de funcionar, a estação de Plataforma<br />

foi totalmente depredada e hoje está entregue<br />

aos marginais. Ainda da Ribeira, porém,<br />

pode-se ver a belíssima paisagem de Plataforma,<br />

com suas palmeiras imperiais, símbolos de<br />

ostentação e afinidades com o império, os morros<br />

e outeiros verdejantes, assim como as fábricas<br />

abandonadas da Fagip e Fatbrás. A beleza<br />

deste bairro exemplifica muito bem o verdadeiro<br />

conceito do subúrbio, o que era essa área: um<br />

lugar propício ao descanso, ao viver.<br />

Foi assim que essa territorialidade suburbana<br />

passou a fazer parte de um referencial positivo<br />

para as crianças e os adolescentes de Novos<br />

Alagados que participaram destas atividades.<br />

Houve o desejo de conhecer os primeiros<br />

habitantes da área, a história, os locais e os seus<br />

desdobramentos. Esse conhecimento passou a<br />

oferecer uma perspectiva diversa daquela que<br />

vê o Subúrbio como um lugar sem passado e<br />

abandonado, como podemos verificar nas páginas<br />

de jornais e noticiário televisivos.<br />

O caráter didático dessas descrições quis<br />

apresentar inicialmente uma história do Subúrbio<br />

Ferroviário de Salvador que é negada pelos<br />

livros, e que não leva em conta as transformações<br />

sociais e históricas pelas quais o lugar<br />

passou.<br />

Primeiros habitantes<br />

Conforme vimos, no Subúrbio existiam todas<br />

as condições possíveis e imagináveis para a realização<br />

de uma vida em meio à fartura e à grande<br />

quantidade de comida, água doce, frutos do mar,<br />

caças, enfim, era uma espécie de lugar propício à<br />

moradia por parte dos índios que viviam em busca<br />

de condições necessárias à sobrevivência.<br />

Nos primeiros tempos, antes e durante a descoberta<br />

do Brasil, na colonização, a área do Subúrbio<br />

era habitada pelos índios Tupinambás, do tronco<br />

Tupi, que eram caracterizados por andarem nus,<br />

serem semi-nômades e antropófagos, isto é,<br />

comedores de carne humana, geralmente nas lutas<br />

entre tribos, e que conquistaram todo o litoral.<br />

Graças à sua grande população estavam habitando<br />

também “na Baía de Guanabara, no Rio; no<br />

Capibaribe em Pernambuco e na Baía de Todos<br />

os Santos, na Baía de Aratu, estuário do Rio<br />

Paraguaçu, estuário do Jaguaribe e na enseada<br />

dos Tainheiros e do Cabrito e o rio de Pirajá”<br />

(SAMPAIO, <strong>19</strong>98, p.262 ss).<br />

Eduardo Tourinho, no seu Alma e Corpo da<br />

Bahia, diz que “no Subúrbio havia muitas tabas<br />

tupinambás (...) principalmente no rio da aldeia –<br />

e as de Pirajá, Itacaranha, Pirípirí [sic]” (TOURI-<br />

NHO, <strong>19</strong>53, p.87).<br />

Como se pode ver, os Tupinambás tinham<br />

uma preferência pelo litoral brasileiro, de maneira<br />

que migravam com suas grandes tribos para<br />

lugares de localização e natureza privilegiada<br />

como a área do Subúrbio Ferroviário, onde existia<br />

um ambiente essencial para o desenvolvimento<br />

dos seus costumes, sendo, também, um local<br />

onde superabundavam os fartos alimentos marítimos,<br />

como os frutos do mar, o marisco e os<br />

caranguejos.<br />

Um dos chefes indígenas cujo nome chegou à<br />

nossa época é o chefe Mirangaoba, que era “um<br />

dos principais dos Tupinambá, senhor da aldeia<br />

de São João, no esteiro de Pirajá, na Bahia”, e seu<br />

nome moboy-rangá-oba significa “o manto de figura<br />

de cobra”, vestimenta com a qual o chefe indígena<br />

comparecia às festas e solenidades da tribo.<br />

(TOURINHO, <strong>19</strong>53, p.129)<br />

Os Jesuítas<br />

Juntos com Thomé de Souza, em 29 de março<br />

de 1549, vieram à Bahia os padres da Companhia<br />

de Jesus, dentre eles o padre Manoel da<br />

Nóbrega, chamados de Jesuítas, ordem religiosa<br />

recém fundada por Ignácio de Loyola, com a responsabilidade<br />

de catequizar os povos das terras<br />

recém descobertas no expansionismo lusitano.<br />

(CARVALHO, <strong>19</strong>98, p.37 ss.)<br />

É muito forte a presença desses homens na<br />

fundação do Brasil e não se pode pensar os primeiros<br />

anos e décadas da história brasileira, sem<br />

citar figuras importantes dessa ordem que passaram<br />

e fizeram um verdadeiro trabalho de conhecimento<br />

da cultura indígena, assim como a<br />

fundação de colégios para os filhos dos colonos.<br />

Através de toda essa atividade e da ligação com o<br />

centro da ordem em Roma, os Jesuítas prestaram<br />

um enorme serviço à história do Brasil; são<br />

dezenas de cartas que nos permitem recompor o<br />

painel dos primeiros anos da colonização.<br />

124 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003


José Eduardo Ferreira Santos<br />

Na área do Subúrbio aconteceram diversos<br />

aldeamentos jesuítas, que foram as primeiras<br />

tentativas de catequese, e também de fabricação<br />

do açúcar em pequenos engenhos, como os<br />

de São Paulo, a 6 km da cidade, em Brotas; São<br />

João, mais para o interior, “dos lados de Plataforma”,<br />

a cerca de 30 km; e “Espírito Santo [Sancti<br />

Spiritus], no rio Joanes, a 18 km” (CARVALHO,<br />

<strong>19</strong>98, p.44).<br />

Foi um jesuíta, o padre Manuel da Nóbrega, o<br />

conselheiro do Governador-Geral “Mem de Sá ao<br />

iniciar o governo em 3 de janeiro de 1558”<br />

(TOURINHO, <strong>19</strong>64, p.27). Graças a esses conselhos,<br />

Mem de Sá “pôs em prática medidas que<br />

revelaram notável inteligência das cousas (sic) da<br />

terra”. Coibiu a usura. Definiu a “guerra justa” contra<br />

o gentio. Proibiu a antropofagia. Determinou o<br />

aldeamento dos silvícolas em povoações grandes<br />

em forma de repúblicas, com igrejas e casas<br />

para os da Companhia. Daí as “Reduções” em<br />

torno da Cidade do Salvador daqueles tempos: a<br />

do Monte Calvário, no Carmo; a de São Sebastião<br />

do Tubarão, em São Bento; a de Santiago, entre a<br />

Piedade e São Raimundo; a do Simão, no Forte<br />

de São Pedro; a do Rio Vermelho e a de São João,<br />

em Plataforma, “nos domínios do morubixaba que<br />

se chamou Boirangaóba.”<br />

Um grande jesuíta, o padre José de Anchieta,<br />

repousou “para recuperar a saúde em 1566” na<br />

igreja de Nossa Senhora de Escada, no bairro<br />

homônimo, e foi mandado a este local devido às<br />

boas condições de clima do lugar e a boa qualidade<br />

do ar (AZEVEDO, <strong>19</strong>97, p.96).<br />

Consta da tradição e de relatos que foi num<br />

aldeamento jesuíta, o São João, que ficava entre<br />

o São João do Cabrito e Pirajá, que o padre Antônio<br />

Vieira pregou seu primeiro sermão público,<br />

proferido em 1633.<br />

A Estrada das Boiadas<br />

Junto às colinas de Pirajá há uma estrada,<br />

denominada Estrada das Boiadas, hoje asfaltada,<br />

que se tornou a primeira via de acesso dos<br />

portugueses colonizadores para o interior e sertão<br />

da Bahia, e por onde se embrenharam para<br />

conquistar os locais mais afastados, num movimento<br />

comumente denominado de entradas e<br />

bandeiras. A estrada das Boiadas ligava o litoral<br />

do subúrbio ao sertão, pela hoje BR 324, e era<br />

uma importante via de acesso estratégica para<br />

se chegar à cidade do Salvador.<br />

Essa estrada foi um ponto estratégico de lutas<br />

e tentativas de invasões da cidade de Salvador,<br />

conforme veremos mais adiante.<br />

Os portugueses<br />

Segundo Bueno (<strong>19</strong>98, p.262), data de 28 de<br />

julho de 1541 a doação da sesmaria de Pirajá ao<br />

fidalgo João de Velosa e a de Paripe ao castelhano<br />

Afonso de Torres, onde iniciaram o plantio da canade-açúcar<br />

e criação de engenhos de açúcar que<br />

se estendiam até o Recôncavo, como os de<br />

Caboto e Matoim, visitados por nós 6 . Esses colonos<br />

atraíram a ira dos tupinambás com a captura<br />

dos índios para o trabalho escravo, o que levou os<br />

mesmos índios a insurgirem-se contra os donatários,<br />

que, ao contrário dos franceses que traficavam<br />

pau brasil e iam embora, se instalaram<br />

nas terras e recrutaram escravos indígenas.<br />

Padre Manoel da Nóbrega, contemporâneo do<br />

fato, diz que os primeiros portugueses provocaram<br />

escândalos que geraram brigas com os<br />

tupinambás, que se uniram e “com cerca de seis<br />

mil guerreiros queimaram os engenhos, mataram<br />

vários portugueses e sitiaram os sobreviventes<br />

...” e, segundo Gabriel Soares de Souza, em seu<br />

Tratado Descritivo do Brasil, redigido em 1580, tudo<br />

isso aconteceu “numa guerra que durou cinco ou<br />

seis anos, passados em grande aperto”. (BUENO,<br />

<strong>19</strong>98, p. 263).<br />

Esses engenhos foram os núcleos iniciais, fundadores<br />

da cultura comercial dentro do Brasil e<br />

principalmente na Bahia, pois significaram o início<br />

dos trabalhos empregados pelos colonizadores na<br />

utilização e desenvolvimento das potencialidades<br />

econômicas da colônia portuguesa.<br />

Os holandeses<br />

Por duas vezes (1624 e 1638) os holandeses<br />

invadiram a Bahia, na cidade de Salvador e nos<br />

seus arredores, no Recôncavo, causando muita<br />

destruição e grandes prejuízos aos donos de engenhos<br />

de açúcar, que tinham suas casas<br />

saqueadas e as igrejas profanadas.<br />

Em 1638, portanto, na segunda invasão, os<br />

holandeses, chefiados pelo príncipe Maurício de<br />

Nassau, invadiram a cidade de Salvador, aportando<br />

6<br />

Pelas 30 alunas do curso de monitoras de creche, junto<br />

com o autor do texto, no ano de 2000, em virtude das<br />

aulas sobre a história do Subúrbio Ferroviário.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />

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Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />

na Baía de Itapagipe e subindo pelas entradas das<br />

igrejas de São Brás de Plataforma e de Nossa Senhora<br />

de Escada; dali marcharam para a cidade.<br />

(VILHENA, <strong>19</strong>69, p.264).<br />

O príncipe Maurício de Nassau veio com um<br />

exército e uma armada, mas encontrou, segundo<br />

Brás do Amaral, em seu comentário às cartas de<br />

Vilhena (<strong>19</strong>69, p.264), os fortes existentes na cidade<br />

que foram providentes diante de perigo. Na trincheira<br />

de Santo Antonio Além do Carmo, os holandeses<br />

“Ali assaltaram com furor e dali foram repelidos”.<br />

Em Pirajá aconteceu o cerco aos holandeses,<br />

em 17 de abril de 1638, conforme se pode ver<br />

numa placa comemorativa colocada na igreja de<br />

São Bartolomeu.<br />

Graças a essas tentativas de tomada da Bahia<br />

pelos holandeses é que as fortificações militares<br />

começaram a ser construídas.<br />

Dentro do rio Pirajá existiu o forte de São<br />

Bartolomeu da Passagem, demolido em <strong>19</strong>03,<br />

que também serviu como ponto estratégico de<br />

proteção à cidade.<br />

Vilhena, em suas cartas sobre as fortificações<br />

da Bahia, dá indicações da antiga posição deste<br />

forte, que junto com o de Itapagipe e o de<br />

Montserrat, segundo ele, não conseguiam realizar<br />

a tarefa de proteger a cidade de um ataque<br />

vindo da Praia Grande, por exemplo.<br />

Pirajá e São Bartolomeu<br />

Falar do Parque de São Bartolomeu é falar de<br />

um dos lugares mais belos existentes na Bahia,<br />

e que hoje encontra-se abandonado, sem segurança<br />

e esquecido pelos poderes públicos.<br />

Está localizado “no entorno da Baía de Todos<br />

os Santos, no Subúrbio Ferroviário de Salvador”,<br />

faz parte do Parque Metropolitano de Pirajá, é um<br />

dos últimos remanescentes de Mata Atlântica que<br />

há no Brasil e é o único lugar dentro da Cidade do<br />

Salvador a guardar cachoeiras no seu âmbito. (SAN-<br />

TOS, 2002, p.131-146).<br />

O parque de São Bartolomeu tem uma grande<br />

riqueza histórico-cultural, uma grande reserva de<br />

Mata Atlântica, com 1.550 hectares de florestas,<br />

com manguezal, cachoeiras, pedras, ruínas, marcas<br />

de tiros de canhões das lutas pela Independência<br />

da Bahia e da Sabinada.<br />

É espantosa em São Bartolomeu a grande<br />

biodiversidade existente, assim como os sítios<br />

históricos nunca estudados, as lendas, as inscrições<br />

lapidares incrustadas nas pedras referentes<br />

aos milagres do santo protetor. Há a presença<br />

forte também do candomblé com suas oferendas<br />

e ritos, que valoriza toda a geografia e a natureza<br />

do parque, com suas cachoeiras, bacias, mangue<br />

e a floresta.<br />

Existem, logo no início do Parque, duas cachoeiras:<br />

a de Oxum e a de Nanã, que são as quedas<br />

do riacho Mané Dendê que nasce no Rio Sena.<br />

Infelizmente as duas belas cachoeiras estão poluídas<br />

e caem com um mau cheiro insuportável.<br />

Adentrando a trilha feita de cimento, temos a<br />

belíssima Cachoeira de Oxumaré, que nasce dentro<br />

do parque e deságua numa queda de 10<br />

metros de altura, de água limpa. Ocorrem nessa<br />

cachoeira muitos ritos ligados ao candomblé, e<br />

existem também lendas referentes ao arco-íris<br />

que aparece aos banhistas.<br />

Mais à frente e acima há uma outra cachoeira,<br />

a do Cobre, hoje inacessível devido à falta de segurança,<br />

com a água que vem da barragem do<br />

Cobre, antigamente utilizada para tomar banhos.<br />

Um lugar deslumbrante que descobrimos em<br />

meio às últimas visitas com os alunos do Centro<br />

Educativo João Paulo II, por ocasião das comemorações<br />

referentes à primavera.<br />

A história<br />

Nas matas de São Bartolomeu e Pirajá viveram<br />

os Tupinambá, conforme vimos. Também<br />

existiu ali um quilombo, o Quilombo dos Urubus,<br />

no qual 50 negros foram mortos depois da luta<br />

pela independência da Bahia, em 1826. Ele era<br />

chefiado por uma mulher, Zeferina. Conforme afirma<br />

Abdias do Nascimento (<strong>19</strong>80, p.52, apud<br />

SERPA, <strong>19</strong>98, p.68):<br />

... no ano de 1826 os escravos rebelados estabeleceram<br />

quilombo nas matas do Urubu, perto da capital<br />

da Bahia, cujas atividades agressivas contra a estrutura<br />

dominante provocaram sua destruição seguida<br />

de grande número de prisioneiros quilombolas,<br />

dentre estes a escrava Zeferina que valentemente<br />

manejou o arco e a flecha, lutou com denodo antes<br />

de ser capturada.<br />

Ao lado das cachoeiras de Nanã e Oxum existem<br />

as ruínas possivelmente de um engenho de<br />

açúcar dos Jesuítas que existiu naquela área no<br />

inicio da colonização da Bahia, nas primeiras reduções<br />

desta ordem religiosa em terras brasileiras.<br />

Essas ruínas jamais foram pesquisadas, o<br />

que mostra o mais completo abandono que há<br />

com a história do local.<br />

126 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003


José Eduardo Ferreira Santos<br />

Foi nas matas de Pirajá, São Bartolomeu, onde<br />

se travaram as tão importantes batalhas pela Independência<br />

da Bahia (1823), e também a<br />

Sabinada, movimento separatista chefiado por<br />

Sabino Álvares Vieira que queria que a Bahia fosse<br />

independente do governo Central do Rio de<br />

Janeiro, em 1837 7 , sendo esta uma das tantas<br />

revoluções liberais que aconteceram no Brasil<br />

durante o período Regencial. Os combates entre<br />

as forças revolucionárias e as forças regenciais<br />

também foram travadas no Cabrito, Pirajá, Plataforma<br />

e outras áreas da Cidade Baixa.<br />

A consolidação da Independência do Brasil<br />

deu-se na Bahia, no dia 2 de julho do ano de<br />

1823 após a derrota das forças portuguesas que<br />

ainda estavam na Bahia.<br />

Nas áreas do Cabrito e Pirajá, o Exército Libertador<br />

entrou pela Estrada das Boiadas, e nestes<br />

mesmos locais foram travadas as batalhas<br />

decisivas sob as ordens do General Pedro Labatut<br />

(cujos restos mortais se encontram no<br />

Pantheon, ao lado da Igreja de São Bartolomeu,<br />

em Pirajá), que culminaram na derrota dos portugueses<br />

remanescentes.<br />

Existe, mais acima do Parque, a Barragem do<br />

Cobre, antigo Rio Pirajá, que em tupi significa “viveiro<br />

de peixes”, e que foi represada – hoje abandonada<br />

– para abastecer de água a população do<br />

Subúrbio. É impressionante ver suas dimensões,<br />

pois dificilmente acreditamos que exista tamanha<br />

quantidade d’água dentro de uma área como o<br />

Subúrbio.<br />

Note-se que, enquanto realizamos essas descobertas,<br />

foi surgindo uma história de lutas desde<br />

as ancestralidades africana e indígena que habitaram<br />

as matas de São Bartolomeu. Estudar<br />

a História com as crianças e os adolescentes<br />

foi a possibilidade, também, de fazer uma ponte<br />

com a atualidade e verificar a organização popular<br />

que se dá nos dias atuais em comunidades<br />

pobres como Novos Alagados, que tem,<br />

dentre as suas características, as lutas por melhores<br />

moradias e condições de vida aos habitantes<br />

da área.<br />

Com as aulas pudemos descobrir a origem<br />

de alguns bairros do Subúrbio Ferroviário, detentores<br />

de uma história que sempre foi<br />

sonegada pela historiografia oficial.<br />

Plataforma<br />

Plataforma é um dos bairros mais antigos que<br />

surgiu no Subúrbio. Data da época das primeiras<br />

fazendas da colonização localizadas na área hoje<br />

conhecida como Subúrbio Ferroviário. O nome<br />

plataforma vem de uma construção que facilitava<br />

o embarque dos passageiros, quando da construção<br />

da linha férrea, em 1860. Suas primeiras<br />

habitações surgiram no entorno de uma fábrica<br />

de propriedade da UNIÃO Fabril de Tecidos.<br />

A Fagip, de propriedade da União Fabril de Tecidos<br />

(comprada em 1891), surgiu em 1875, sendo<br />

de propriedade da família Martins Catharino.<br />

Essa fábrica é importante porque em função dela<br />

nasceu o bairro de Plataforma, com suas casas de<br />

operários que foram surgindo em seus entornos.<br />

Até os dias de hoje os seus moradores pagam<br />

pelo arrendamento dos lotes onde habitam (A Tarde,<br />

<strong>19</strong>95). É um bairro dos mais bem localizados<br />

e, nos tempos de bom desenvolvimento, existia a<br />

lancha, o trem e uma grande fábrica que gerava<br />

centenas de empregos.<br />

Segundo dona Antonia, antiga moradora do São<br />

João de Plataforma, nos tempos de funcionamento<br />

da Fagip, o bairro viveu um grande crescimento<br />

econômico, com uma grande quantidade de pessoas<br />

que trabalhavam na fabrica e tinham acesso<br />

a armazém, médicos, e isso estimulava a vinda<br />

de comerciantes de todo o Recôncavo baiano que<br />

ali chegavam para vender seus materiais. 8<br />

Lobato<br />

Mais recentemente, em Lobato, no ano de<br />

<strong>19</strong>39, aconteceu a descoberta do primeiro poço<br />

petrolífero brasileiro, que atraiu um enorme contingente<br />

de pessoas do interior baiano, na esperança<br />

de conseguir emprego e melhores condições<br />

de vida.<br />

A descoberta do petróleo no Lobato deu-se, de<br />

maneira não oficial, em <strong>19</strong>30, pela “curiosidade<br />

do Agrônomo Manuel Inácio Bastos e a sua firme<br />

7<br />

Para maiores detalhes recomendo a obra do autor baiano<br />

Eduardo Tourinho, Alma e Corpo da Bahia, que faz um<br />

estudo detalhado desses acontecimentos, com datas, nomes<br />

e lugares, chegando, inclusive, a entreter o leitor com<br />

sua precisa narrativa.<br />

8<br />

Conversa de dona Antonia com o autor do texto registrada<br />

no dia 10 de setembro de 2000, no São João do Cabrito,<br />

onde a referida senhora comentou aspectos antigos do<br />

bairro.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />

127


Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />

determinação de lutar pelo aproveitamento de um<br />

estranho óleo negro, que brotava de uma cacimba<br />

no Cabrito, hoje Lobato, e que era usado pelos<br />

moradores para acender seu fogão e fifó, sem<br />

precisar comprar querosene”, mas só nove anos<br />

depois, em 21 de janeiro de <strong>19</strong>39, com a chegada<br />

de uma sonda de Santa Catarina, o petróleo<br />

jorrou em Lobato, a 210 metros.” (A Tarde, 2001,<br />

p.12-13).<br />

Este fato tão importante acontecido na Bahia é<br />

pouquíssimo divulgado e há entre os poucos conhecedores<br />

da história suburbana, a falta de certeza<br />

e clareza com relação às datas e aos fatos<br />

dessa notável descoberta que modificou a economia<br />

brasileira.<br />

Alagados e Novos Alagados<br />

A invasão dos Alagados surgiu alguns anos<br />

depois da descoberta do petróleo, em junho/julho<br />

de <strong>19</strong>49, nos terrenos do loteamento Jardim Cruzeiro<br />

e nas proximidades 9 , sendo uma expressão<br />

das mudanças urbanas da época e dos diversos<br />

aspectos sócio-econômicos acontecidos na área.<br />

Esta explosão demográfica acarretou o surgimento<br />

da favela dos Alagados, uma favela com<br />

barracos construídos sobre a maré, em palafitas,<br />

de grande precariedade, na área que abrigava<br />

antigamente extensos manguezais.<br />

Uma das características dessas e de outras<br />

famílias é que a precariedade provisória vai se<br />

tornando permanente. A área dos Alagados sofreu<br />

intervenções governamentais em <strong>19</strong>67, <strong>19</strong>72 e<br />

<strong>19</strong>85, com sucessivos aterros, o que, porém, não<br />

solucionou os problemas da comunidade.<br />

Na década de 60, com a criação do Pólo<br />

Petroquímico de Camaçari, repete-se um fenômeno<br />

de êxodo rural em busca de empregos. Em<br />

conseqüência da não realização deste objetivo,<br />

as pessoas que saíram de suas cidades começam<br />

a amontoar-se e a sobreviver em locais provisórios,<br />

que, com o passar do tempo, vão se tornando<br />

permanentes. Assim surgiram as grandes<br />

favelas na Avenida Suburbana, de Lobato até<br />

Paripe. Segundo Pedrotti (2000, p.41), “a favela<br />

nasce da ocupação abusiva de um terreno livre,<br />

na maioria dos casos em áreas urbanas, nas<br />

quais um certo número de núcleos familiares decidem<br />

ali se estabelecer”.<br />

Em <strong>19</strong>80 a favela dos Alagados recebeu a visita<br />

do Papa João Paulo II, na igreja de Nossa Senhora<br />

dos Alagados, construída para a ocasião.<br />

Antes disso, porém, na década de 70, dá-se<br />

início à construção da Avenida Afrânio Peixoto, conhecida<br />

como Avenida Suburbana. O dinheiro da<br />

indenização que os moradores recebiam era pouco<br />

e eles não conseguiram adquirir novos terrenos<br />

e foram, então, ocupar o manguezal e construir<br />

as palafitas na área da enseada do Cabrito:<br />

dá-se início à favela de Novos Alagados, com mais<br />

de 12.000 habitantes, com as mesmas características<br />

dos Alagados “velhos”.<br />

Por fim entendemos que o Subúrbio Ferroviário<br />

de Salvador guarda em si elementos de<br />

toda a história brasileira e, por este motivo,<br />

merece ser preservado e entendido como um<br />

lugar onde a memória viva deve permanecer à<br />

disposição de todos os que nele habitam. Não é<br />

possível que as transformações econômicas e<br />

sócio-culturais façam com que um lugar dessa<br />

envergadura histórica seja esquecido e abandonado.<br />

O abandono é uma categoria do esquecimento<br />

que atinge e deteriora a história dos lugares.<br />

Essas visitas e aulas tiveram o objetivo<br />

de mostrar que o lugar onde habitamos é mais<br />

significativo do que pensamos, e que precisamos<br />

recuperar a história e o passado para melhor<br />

compreender o presente.<br />

A gênese das favelas que cobrem toda a<br />

extensão do Subúrbio vai se dar, deste modo,<br />

pela necessidade de moradia e outras questões<br />

sociais como a busca de emprego, emigração e<br />

conseqüente abandono da área.<br />

FOLIA DE REIS EM NOVOS ALAGADOS<br />

A Folia de Reis é um folguedo popular presente<br />

em todo o Brasil, tradicionalmente realizado<br />

no ciclo do Natal. Sua característica principal<br />

é a junção de tradições culturais as mais<br />

diversas, a música, os versos, as roupas coloridas,<br />

a visitação às famílias da localidade e a<br />

celebração da vida como agradecimento.<br />

Essa experiência educativa foi realizada no<br />

ano de 2002, em Novos Alagados, com cerca<br />

9<br />

Plano de metas AMESA/HAMESA – Governo João<br />

Durval, Salvador, jan./dez. de <strong>19</strong>85.<br />

128 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003


José Eduardo Ferreira Santos<br />

de 320 crianças e adolescentes, percorrendo as<br />

ruas do bairro do Boiadeiro e da rua 1 o de Novembro,<br />

justamente num momento em que a<br />

violência havia tomado conta da vida dos moradores.<br />

O texto que segue remonta aos preparativos<br />

e a toda a dinâmica educativa e cultural<br />

que foi tomando conta de uma área de Novos<br />

Alagados, onde a violência chegou a níveis insuportáveis<br />

no período. O aspecto interessante<br />

é que a festividade dominou as ruas e contagiou<br />

as famílias que contribuíram para a realização<br />

do folguedo.<br />

“Os devotos do Divino /<br />

vão abrir sua morada”<br />

Pela primeira vez estamos realizando a experiência<br />

de propor uma Folia de Reis na festa natalina<br />

do Centro Educativo João Paulo II. Os ensaios<br />

estão transcorrendo com uma consciência de<br />

novidade que se estende aos meninos e meninas,<br />

rapazes e moças que têm se esmerado na<br />

aprendizagem dos cantos e do uso dos instrumentos<br />

percussivos. Uma ordem no ar supera a<br />

violência do ambiente.<br />

A morada das tradições ressurge no meio de<br />

um povo que já nem se lembra delas – os mais<br />

jovens, certamente, nem sequer foram apresentados<br />

a esta forma de viver e festejar.<br />

Cantar de porta em porta, anunciar a chegada<br />

do Menino Deus – eis a tarefa da vida; de quem<br />

tem a dizer muito com a vida e não pode esperar.<br />

Para que gastar a vida com tanta dispersão,<br />

se é tão melhor viver por Ele?<br />

“Pra bandeira do menino /<br />

ser bem vinda, ser louvada”<br />

Vejo os meninos e meninas ensaiando e me<br />

recordo de um tempo que nem mesmo eu alcancei,<br />

quando os mais velhos ensinavam os cantos<br />

e a vida aos mais jovens: mistérios, rezas, cantos<br />

imemoriais, lembranças, episódios de vida e<br />

morte; alegrias e tristezas.<br />

Mas o tempo retorna. Precisamos, então,<br />

aprender a esperar. Não uma espera natimorta,<br />

mas uma espera com força, na qual a esperança<br />

existe – e resiste contra todo desânimo e desesperança.<br />

Uma mãe costura a bandeira do menino com<br />

a sagrada família... Uma avó costura as roupas<br />

dos palhaços; outra, as roupas dos músicos; as<br />

professoras retocam, dão brilho e dão os detalhes<br />

dos chapéus e das coroas.<br />

Tudo escrito, desenhado, discutido e rabiscado<br />

nas horas de almoço.<br />

Nada à toa. Tudo como se deve esperar um<br />

filho: que muda tudo e nos muda para melhor;<br />

que reorganiza nossos dias, nossas correrias.<br />

Como um menino que salta, bole, e se manifesta<br />

como vida nova quando ouve nossas vozes ou<br />

nossas músicas no trabalho educativo de cuidar<br />

dos filhos alheios.<br />

Trabalho de amor, trabalho de artesã que nem<br />

se lembrava mais do nome do Menino Deus encarnado<br />

entronizado num estandarte rubro, como<br />

a cor do maior sinal da vida: o sangue.<br />

“Deus vos salve esse devoto /<br />

Pela esmola em vosso nome.”<br />

Desta vez, a esmola veio das mãos que costuram<br />

a vida. Vidas de filhos e maridos, mais de<br />

filhos, mas também de maridos e uma infinidade<br />

de problemas e situações difíceis de resolver. As<br />

mãos costureiras fizeram o estandarte, as roupas<br />

dos músicos que cantarão a espera eterna<br />

que temos: espera de justiça, espera de bons dias;<br />

espera de felicidade; espera da Totalidade; da<br />

Presença de Deus percebida, mas não vista.<br />

Essas mãos foram as das mães e avós dos<br />

nossos alunos... Nem sabíamos da existência<br />

destes talentos. Agora sabemos – e agradecemos<br />

o Dom recebido e compartilhado.<br />

O dom compartilhado, por Deus é aumentado.<br />

Esta verdade aprendi nestes dias e jamais esquecerei.<br />

A esmola das mães costura um ano no qual<br />

fomos roubados, violentados, entristecidos e amedrontados<br />

pela violência do bairro, mas que recompõe<br />

os laços dos filhos com um lugar que<br />

precisa de Cristo, do Menino Nascido.<br />

Sim, estas mãos nos oferecem seu sim diante<br />

da vida. Querendo dizer: “Recomecem!” “Façam<br />

um novo início, uma nova tentativa”, “O Menino vos<br />

acompanhará, sempre!”<br />

Estas mãos ensinam que sabem agradecer.<br />

O trabalho de costurar as roupas é uma gratidão<br />

ao Menino que renova tudo: a vida, o lugar, as esperanças,<br />

a nossa presença neste lugar e neste<br />

mundo.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />

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Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />

“Que o perdão seja sagrado /<br />

que a fé seja infinita”<br />

A bandeira ensina; as educadoras, também.<br />

As mãos da diretora que compra os materiais e<br />

prevê a beleza do gesto ensina a ter uma esperança<br />

nova, que não se abate nem com a doença,<br />

porque a fé, esta certeza presente, é maior que a<br />

dor. As mãos e o olhar ensinam a perdoar.<br />

Cortar a cartolina, grampeá-la e tecer os detalhes<br />

coloridos supõe uma forma de olhar o mundo.<br />

“Que certeza é essa que nos faz colorir o triste;<br />

amar o cotidiano e propor o Menino Deus que saia<br />

pelas ruas?”<br />

As mãos que rabiscam o giz o ano inteiro; agora<br />

picotam e tecem figuras, detalhes de roupas<br />

coloridas. Na biblioteca do Centro Educativo os<br />

tecidos, as colas e tesouras, mostrando que o<br />

verdadeiro trabalho é sagrado. Tem sempre a ver<br />

com Cristo... Tudo é para Ele. A festa, o trabalho, o<br />

amor, o tempo, tudo.<br />

“A bandeira segue em frente /<br />

atrás de melhores dias”<br />

Por melhores dias acordamos todas as manhãs.<br />

Acordamos, trabalhamos, estudamos, amamos,<br />

recomeçamos, sempre.<br />

Os jovens ensaiando, aprendendo as canções<br />

da Folia mostram que a vida é maior do que aquilo<br />

que pensamos que ela seja, às vezes tão medíocre,<br />

tão pequena, tão em nós, mas a vida é<br />

grande. E Deus, maior que tudo. Tão maior que<br />

nos abraça todo dia, mesmo sem sabermos. Um<br />

grande que nos abraça, ensinando, pedagogo eterno,<br />

nos mostrando o que somos.<br />

E o talento deles, meninos e meninas, aparece.<br />

O que estava escondido surge. As vozes e os<br />

instrumentos nem sempre afinados vão numa<br />

cadência baiana, popular, misto de tradição e de<br />

inovações em que reconhecemos ali um povo,<br />

uma história, uma continuidade tamanha, que sabemos<br />

a quem pertencemos, nesta mesma manifestação<br />

cultural, religiosa e festiva. Porque o<br />

ser humano deve ser tudo isso e muito mais.<br />

Aprender é tarefa difícil. Das mais fatigantes<br />

que existem porque nos colocam na posição de<br />

não sabedores, mas os jovens aprendem – e com<br />

facilidade.<br />

Aprendem, esforçam-se por melhores dias.<br />

Mesmo aqueles teimosos não chegam a ser renitentes.<br />

Olham e aprendem uma ordem, uma indicação<br />

como quem vai crescer sempre mais. E<br />

crescem. Vejo a menina que faz o papel do palhaço:<br />

tímida, não proferia palavras; agora já canta e<br />

antecipa os versos do Divino. Aprendo que a festa<br />

é agora. Hoje, neste dia de tantos ensaios, nas<br />

tantas leituras da origem da Folia de Reis.<br />

Pode ser que a rua, o bairro, nos veja. Pode<br />

ser que não. Mas o que interessa é que os melhores<br />

dias deste Natal de 2002 eu já estou vivendo,<br />

simplesmente por ver o empenho dos meninos,<br />

das mães, das avós e das professoras em costurar<br />

e fazer as roupas e cada detalhe desta festa<br />

que acontece, certamente, em nossos corações<br />

preenchidos pela Presença deste Menino que<br />

pára tudo e que faz tudo acontecer. Que move o<br />

mundo na época do seu nascimento, e que também<br />

unifica até os descrentes, os sem fé, os amargos,<br />

os desiludidos. Menino forte Este que vem<br />

por aí no Natal.<br />

“No estandarte vai escrito /<br />

Que ele voltará de novo”<br />

Mas o novo existe. O Menino vai mostrar-nos a<br />

novidade que é existirem pessoas que se reúnam<br />

por causa dele. A novidade se espalha nos<br />

lugares onde vivemos: uma rua é aberta; uma<br />

palafita que não existirá mais; novas casas que<br />

estão sendo construídas, enfim, novidades que<br />

transparecem na vida da comunidade.<br />

“- ô de casa, / - ô de fora /<br />

– Maria, vai ver quem é!”<br />

Sim. Se tens coragem, vai ver quem é que está<br />

à tua porta? Um grupo de cantadores e tocadores<br />

que vai anunciar que o Natal tem uma presença<br />

que nos ilumina e nos dá novo gosto de vida.<br />

Um grupo colorido e cantante. Um grupo simples,<br />

de jovens e crianças que vão atrás de uma<br />

presença que , em suas vidas, tem um nome: Cristo,<br />

Menino Jesus, o motivo de tantos festejos.<br />

Tomara que aprendamos a segui-lo como seguiremos<br />

esta Folia. Tomara que tenhamos acesso<br />

a este momento com o coração simples dos<br />

nossos antepassados, nossos avós do Recôncavo<br />

e do interior do estado da Bahia, que plantaram<br />

estas sementes de fé em nossa história.<br />

Se o Rei chegar em sua porta, na rua: não<br />

abra só a porta de madeira que protege seu lar<br />

contra os bandidos e o frio da noite. Abra também<br />

– e mais que tudo – o coração e a vida para nos<br />

130 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003


José Eduardo Ferreira Santos<br />

receber; não a nós, mas a Ele que se utiliza destas<br />

vozes e de tantas mãos que talvez nem soubessem<br />

que são capazes de amar com tanto amor<br />

uma Presença tão sem igual.<br />

“Adeus, Santos Reis / adeus de amor /<br />

até para o ano / se nós vivos for”<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

A prática educativa em Novos Alagados,<br />

descrita nestas páginas, revela-se portadora de<br />

significados que convergem com uma abordagem<br />

metodológica que busca valorizar as descobertas<br />

e as tradições culturais brasileiras, em<br />

oposição a uma educação cada vez mais descaracterizada<br />

de valores e percepções de um<br />

saber constituído a partir de nós, brasileiros e<br />

afro-descendentes. Conhecer a história, as<br />

músicas, as tradições e o modo de ser de um<br />

povo pode fazer emergir das práticas pedagógicas<br />

em sala de aula um espaço de convivência<br />

com a pluralidade e a diversidade. Podem<br />

também ganhar o mundo e adquirir os espaços<br />

do cotidiano, na favela e em outros contextos.<br />

Essas experiências que realizei como educador<br />

ajudaram-me a compreender que a educação<br />

é uma abertura à consciência de quem<br />

somos, a quem pertencemos. Identidade essa<br />

que necessita ser fortalecida cada vez mais ante<br />

a enxurrada de mudanças e modismos que vêm<br />

acontecendo na pós-modernidade.<br />

A educação revela que há espaços possíveis<br />

para uma emancipação cultural na educação<br />

brasileira, uma emancipação que nos faça<br />

descobrir quem somos.<br />

Proporcionar o encontro dos educandos com<br />

a cultura da Bahia é estabelecer vínculos e laços<br />

com um continuum civilizatório que acontece<br />

agora, sob os nossos olhos.<br />

A educação popular, conforme aqui descrita,<br />

procura valorizar os saberes ancestrais da<br />

cultura brasileira como forma de socialização<br />

dos educandos e dos educadores envolvidos<br />

nessa proposta. A conseqüência vai em direção<br />

a uma noção de cidadania que passa pela<br />

recuperação da auto-estima dos educandos e<br />

educadores num contexto social marcado pela<br />

estigmatização devido às condições de pobreza<br />

da área suburbana da cidade de Salvador.<br />

Os projetos sociais aparecem como espaços<br />

de educação inclusiva, que buscam valorizar<br />

e desenvolver a diversidade cultural como<br />

forma de reconhecimentos dos laços e vínculos<br />

dos indivíduos com a história civilizatória à qual<br />

pertencem, pois não devemos esquecer que a<br />

diversidade cultural é um dos nossos maiores<br />

patrimônios. Nestes espaços é possível a criação<br />

de alternativas à violência e exclusão, a partir<br />

de iniciativas que proporcionam a descoberta<br />

dessa mesma história comunal, muitas vezes<br />

sonegada.<br />

A proposição do estudo da história do Subúrbio<br />

Ferroviário e do reavivamento das tradições<br />

afro-brasileiras buscou valorizar o espaço<br />

e o território como contextos onde os habitantes,<br />

os antepassados e os atuais, marcaram uma<br />

trajetória de lutas pela sua cidadania, mostrando<br />

que o inconformismo com determinadas situações<br />

de opressão é um traço que não podemos<br />

esquecer.<br />

Essas experiências buscaram mostrar, sinteticamente,<br />

que a educação popular efetivada<br />

em espaços abertos a novas propostas<br />

educativas pode gerar conhecimentos e transformações<br />

na vida de crianças e adolescentes<br />

em situação de risco psicossocial. O encontro<br />

com a diversidade provoca o crescimento da<br />

liberdade, no sentido que vamos criando espaços<br />

de convivência, pautados pelo respeito e<br />

pelo acolhimento dessa mesma diversidade.<br />

Uma educação plural e aberta à história dos<br />

sujeitos envolvidos nela é a emergência que<br />

aparece à frente de todo educador comprometido<br />

com a transformação da realidade.<br />

A sistematicidade e a seriedade com o registro<br />

são fundamentais para fazer permanecerem<br />

as experiências que realizamos. Assim,<br />

estas páginas são um relato de experiências que,<br />

de certo modo, trouxeram às crianças e adolescentes<br />

de Novos Alagados um novo modo<br />

de perceber-se no mundo, no sentido de saberem-se<br />

pertencentes a um contexto mais amplo,<br />

tanto do ponto de vista cultural, quanto histórico,<br />

social e educativo.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />

131


Práticas pedagógicas, cultura, história e tradição: um relato da experiência educativa em Novos Alagados<br />

Talvez a maior questão de todas seja a democratização<br />

daquilo que nós, educadores,<br />

aprendemos na vida e nos bancos das universidades<br />

e cursos que freqüentamos. O nosso<br />

saber tem uma função social. Ele precisa ser difundido<br />

para que outros o encontrem e façam<br />

uso dele da melhor forma possível em suas vidas.<br />

Espero que essas páginas sejam uma provocação<br />

a outros educadores que podem contribuir<br />

para fazer da nossa sociedade um lugar<br />

de convivência e de respeito à pluralidade cultural<br />

da qual fazemos parte, inclusive questionando<br />

a velha ordem que segrega os pobres<br />

cada vez mais a espaços de abandono.<br />

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Recebido em 30.05.03<br />

Aprovado em 20.07.03<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />

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Eduardo Alfredo Morais Guimarães<br />

LAVAGEM DO BONFIM:<br />

ENTRE A PRODUÇÃO E A INVENÇÃO DA FESTA<br />

Eduardo Alfredo Morais Guimarães *<br />

RESUMO<br />

A partir de um análise da lavagem simbólica do Santuário do Senhor do<br />

Bonfim, procura-se analisar aspectos lúdico-festivos que compõem a<br />

chamada “baianidade”. A “lavagem” ocorre antes do Carnaval oficial<br />

e é um “carnaval” que questiona a “ordem”. A identidade e a relação<br />

dos baianos com o sagrado estão no cerne do trabalho que destaca as<br />

investidas do poder público e da indústria cultural, no sentido de circunscrever<br />

a “festa” a um evento turístico. As manifestações culturais<br />

do povo negro, reconhecidas como a “alma” da cidade, pelos dirigentes<br />

de órgãos de turismo, tratadas como manifestações folclóricas, uma<br />

verdadeira prisão reservada ao povo negro alegre e festeiro, qualidades<br />

atribuídas geneticamente ao grupo a partir da raça, apimentadas com<br />

concepções racistas.<br />

Palavras-chave: “Lavagem” – Santuário do Senhor do Bonfim – Festa<br />

– Religiosidade Popular – Rito<br />

ABSTRACT<br />

LAVAGEM DO BONFIM: BETWEEN THE PRODUCTION AND<br />

THE INVENTION OF THE FESTIVAL<br />

Departing from an analysis of the symbolic washing of the Sanctuary of<br />

Senhor do Bonfim, one aims at analyzing ludic-festive aspects that<br />

compose the so-called “baianidade”. The “washing” happens before<br />

the official Carnival and it is a “carnival” that questions the “order”.<br />

The identity and the relationship of Bahians with the sacred are in the<br />

center of the work, which highlights the investing of the public power<br />

and of the cultural industry, in the sense of circumscribing the “festival”<br />

to a tourist event. The cultural manifestations of the Afrodescendants,<br />

recognized as the “soul” of the city by the directors of<br />

tourism organs, are treated as folkloric manifestations, a true prison<br />

reserved for the happy and festive Afro-descendant, qualities attributed<br />

genetically to the group of the race, spiced up with racist conceptions.<br />

Key words: “Washing” – Senhor do Bonfim Sanctuary – Festival –<br />

Popular Religiosity – Rite.<br />

*<br />

Mestre em Sociologia pela UFBA e professor de Antropologia da UNEB. Coordena um projeto da UNEB<br />

com o MST em Ipiaú/Bahia. Endereço para correspondência: Rua Prediliano Pita, 51, Fazenda Garcia -<br />

Salvador/BA. E-mail: ealfredoguimaraes@.bol.com.br.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003<br />

135


Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />

Se o sol brilha só para a burguesia – então, camaradas, apagaremos o sol<br />

(Leon Trotsky)<br />

O brado de Trotsky, de uma tribuna, durante<br />

a revolução de <strong>19</strong>17, na Rússia, citado por Jean<br />

Duvignaud (<strong>19</strong>83, p.31), é uma incitação à subversão<br />

e é exatamente esta subversão exuberante<br />

que melhor descreve o espírito da festa<br />

da Lavagem do Bonfim, realizada anualmente<br />

pelos baianos. A lavagem, apesar de integrada<br />

à dinâmica da sociedade, é um período peculiar<br />

da vida da cidade, marcado, sobretudo, pela<br />

transgressão. Como afirma Durkheim, a efervescência<br />

e o desregramento possibilitam a revificação<br />

e a renovação da ordem cultural e é<br />

durante estas manifestações sagradas que a<br />

criatividade humana atinge o apogeu. A identidade<br />

e a relação dos baianos com o sagrado<br />

estão, assim, no cerne do nosso trabalho sobre<br />

a Lavagem do Bonfim. A festa pode ser considerada<br />

uma verdadeira “liturgia de baianidade”,<br />

construída a partir da presença marcante das<br />

religiões afro-brasileiras, do próprio catolicismo<br />

popular e do “festar” característico destas manifestações<br />

religiosas.<br />

O ritual, na sua dimensão material e temporal,<br />

possui fronteiras e limites. O cortejo parte,<br />

na quinta-feira anterior ao dia da festa do Senhor<br />

do Bonfim, do bairro do Comércio, mais<br />

exatamente das escadarias da Igreja de Nossa<br />

Senhora da Conceição da Praia 1 , segundo Reis<br />

(<strong>19</strong>91, p.120), arquétipo cristão da mãe, na sua<br />

qualidade de conceber e de gerar a vida. O itinerário<br />

de oito quilômetros é calculado em horas<br />

de marcha e corta o centro financeiro da<br />

cidade sacralizando e modelando o espaço por<br />

um breve intervalo de tempo. São as baianas<br />

com seus corpos modelados pelos trajes típicos<br />

que reúnem os elementos ancestrais necessários<br />

à consagração do espaços. Estamos no<br />

centro da atividade ritual e o centro é um lugar<br />

ativo e móvel na festa da Lavagem do Bonfim<br />

que segue ressignificando os espaços pertencentes<br />

ao antigo bairro comercial da cidade.<br />

Após duas ou três horas de marcha o cortejo<br />

chega à Igreja do Senhor Bom Jesus do Bonfim<br />

que é lavada simbolicamente pelas baianas. Sem<br />

dúvida, pode-se perceber que é no adro da Igreja<br />

e nos arredores que a atividade ritual se concentra,<br />

mas este fato não implica que a festa,<br />

ou o próprio ritual, cesse com a passagem do<br />

cortejo. No itinerário distingue-se zonas que são<br />

objeto de maior ou menor atividade ritual e a<br />

festa prossegue em vários lugares até a madrugada.<br />

Vê-se, assim, que as ações do poder público<br />

(ou mesmo privado) no sentido de disciplinar<br />

a festa interferem diretamente na Lavagem<br />

do Bonfim. O poder das autoridades determina,<br />

em certo sentido, o avanço ou o recuo da<br />

atividade ritual e os próprios limites da festa.<br />

Como observa Marc Augé (<strong>19</strong>94, p.60), a linguagem<br />

política é naturalmente espacial; daí,<br />

certamente, o simbolismo político que se expressa<br />

no poder das autoridades de determinar limites<br />

e fronteiras. Concretamente, os caminhos<br />

trilhados pelo cortejo foram traçados pelos próprios<br />

devotos, possuem cruzamentos e praças<br />

onde os homens satisfazem cotidianamente as<br />

mais diversas necessidades, inclusive de intercâmbio<br />

econômico, cujo funcionamento implica<br />

ações econômicas, políticas e rituais.<br />

QUEM TEM FÉ VAI A PÉ!<br />

O caráter de singularidade do ritual da lavagem<br />

simbólica do Santuário do Bonfim é patente.<br />

Ao contrário das procissões religiosas tradicionais,<br />

no cortejo os devotos não acompanham<br />

as imagens dos santos. O Senhor do Bonfim<br />

não deixa a sua casa para “passear” com seus<br />

devotos pelas ruas da cidade, mas aguarda onipotente<br />

os seus filhos em sua morada: uma<br />

multidão de mais de um milhão de pessoas que<br />

acompanha desordenadamente um grupo de<br />

baianas formado, majoritariamente, por gente<br />

de santo dos Candomblés da Bahia. A lavagem<br />

da igreja é simbólica, isto é, as portas da igreja<br />

1<br />

A partir dos primeiros anos da década de <strong>19</strong>40, as escadarias<br />

da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia<br />

passaram a ser o ponto de partida do Cortejo.<br />

136 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003


Eduardo Alfredo Morais Guimarães<br />

permanecem fechadas durante a cerimônia e<br />

as baianas lavam apenas as escadarias e o adro<br />

do santuário.<br />

A palavra de ordem dos participantes do<br />

cortejo, repetida todos os anos pelos mais ardentes<br />

defensores da tradição é quem tem fé<br />

vai a pé. Majoritariamente, os participantes<br />

vestem-se de branco – afinal o branco é a cor<br />

do Orixá Oxalá e do próprio Cristo Crucificado,<br />

o Senhor do Bonfim – e seguem a pé da<br />

Conceição da Praia ao Santuário do Bonfim,<br />

ao som dos blocos afros e afoxés, num percurso<br />

de oito quilômetros. Ao chegar ao Bonfim as<br />

baianas realizam a lavagem simbólica do santuário<br />

e derramam água de cheiro sobre a cabeça<br />

dos fiéis que se encontram nas proximidades.<br />

Não resta dúvida que nem todos conseguem<br />

chegar à Colina Sagrada, pois os apelos<br />

do carnaval instaurado no percurso contém a<br />

marcha de muitos participantes.<br />

Nossas interpretações sobre a Lavagem<br />

Simbólica do Santuário do Senhor Bom Jesus<br />

do Bom Fim, momento mágico da festa<br />

quando os devotos se purificam ao tempo em<br />

que purificam o próprio templo, voltam-se para<br />

algumas discussões já clássicas no âmbito da<br />

antropologia sobre a festa carnavalesca. De um<br />

lado, autores que advogam a existência de uma<br />

inversão na ordem social durante o período carnavalesco.<br />

De outro, aqueles que afirmam que<br />

durante o carnaval a ordem não é subvertida.<br />

Acreditamos que as analises de Mikhail Bakhtin<br />

expressas no seu famoso livro sobre Rabelais e<br />

o Carnaval Medieval, publicado em português<br />

sob o título A Cultura Popular na Idade Média<br />

e no Renascimento, podem ser um ponto<br />

de partida seguro para o desenvolvimento de<br />

nossa abordagem. No livro o autor afirma que<br />

no período carnavalesco, na Europa Medieval,<br />

se instauraria uma outra ordem social marcada<br />

pela abolição das relações hierárquicas:<br />

Em conseqüência, essa eliminação provisória, ao<br />

mesmo tempo ideal e efetiva, das relações hierárquicas<br />

entre os indivíduos, criava na praça<br />

pública um tipo particular de comunicação, inconcebível<br />

em situações normais. Elaboravamse<br />

formas especiais do vocabulário e do gesto<br />

da praça pública, francas e sem restrições, que<br />

aboliam toda a distância entre os indivíduos em<br />

comunicação, liberados das normas correntes da<br />

etiqueta e da decência. Isso produziu o aparecimento<br />

de uma linguagem carnavalesca típica, da<br />

qual encontraremos numerosas amostras em<br />

Rabelais. (BAKHTIN, <strong>19</strong>87, p.9)<br />

Os festejos carnavalescos ocupavam lugar<br />

de destaque na Europa Medieval; a alegria, o<br />

gosto pela festa e o sentimento de liberdade<br />

germinavam e enraizavam-se nos burgos, sendo<br />

parte integrante, inclusive das solenidades<br />

religiosas. Além do Carnaval propriamente dito,<br />

uma série de celebrações cômicas e ritos festivos<br />

faziam parte do cotidiano europeu durante<br />

a Idade Média, marcando a sucessão das estações,<br />

a semeadura, o nascimento e a morte<br />

como expressões de ritos de passagem. Segundo<br />

Bakhtin, não se pode esquecer da festa<br />

dos tolos, da festa do asno, do riso pascal e<br />

de quase todas as festas religiosas realizadas<br />

com forte participação popular e em um ambiente<br />

carnavalesco. Todos esses ritos e espetáculos<br />

criavam, segundo Bakhtin, uma dualidade<br />

do mundo, de um lado as cerimônias oficiais,<br />

de outro, os cultos carnavalescos, cômicos, dominados<br />

pelo riso, “um segundo mundo e uma<br />

segunda vida aos quais os homens da idade<br />

Média pertenciam em maior ou menor proporção,<br />

e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas”<br />

(<strong>19</strong>87, p.4).<br />

É importante observar que o ponto de vista<br />

de Bakhtin não é unânime. Analisando a mesma<br />

problemática estudada por Bakhtin, Jacques<br />

Heers (<strong>19</strong>87), em seu trabalho Festas de Loucos<br />

e Carnavais, segue caminho inverso. Para<br />

Heers, a hierarquia do poder local, as querelas<br />

políticas e os valores dominantes estão presentes<br />

nas festas carnavalescas.<br />

Muitos autores tentaram aproximar as interpretações<br />

de Bakhtin da realidade brasileira,<br />

como o antropólogo Roberto DaMatta ao estudar<br />

o carnaval carioca (<strong>19</strong>73). Para DaMatta,<br />

o Carnaval parece ser uma instituição que permite<br />

a visão do Brasil como uma grande<br />

communitas, “onde raças, credos, classes e ideologias<br />

comungam pacificamente ao som do<br />

samba e da miscigenação racial” (<strong>19</strong>73, p.123).<br />

O ritual carnavalesco possibilitaria o rompimento<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003<br />

137


Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />

com a formalidade cotidiana, através da criação<br />

de um espaço especial onde todos poderiam<br />

permanecer sem preocupações de relacionamento<br />

ou filiação. Por outro lado, outros autores,<br />

a exemplo de Maria Isaura Pereira de<br />

Queiroz, afirmam que no carnaval brasileiro a<br />

ordem não é subvertida (QUEIROZ, <strong>19</strong>95). Da<br />

mesma forma, existiria uma nítida separação<br />

entre atores e expectadores e os foliões saberiam<br />

o seu lugar na festa de acordo com os papeis<br />

que desempenham.<br />

Acreditamos que, concretamente, a Lavagem<br />

do Bonfim guarda muito do segundo mundo<br />

próprio da Idade Média. A festa é “subversiva”<br />

desde a temporalidade: é um carnaval<br />

fora de época. A “lavagem” ocorre antes do<br />

Carnaval oficial e é um carnaval que questiona<br />

a ordem, desconhecendo a distinção entre<br />

atores e espectadores, todos participam efetivamente<br />

do ritual, criando um lapso espacial e<br />

temporal marcado por universalidade, liberdade,<br />

igualdade e, porque não dizer, abundância<br />

(BAKHTIN, <strong>19</strong>87, p.8). Os participantes vivem<br />

efetivamente os festejos da Lavagem do<br />

Bonfim, não são assistentes passivos. A festa é<br />

um momento de transgressão, de liberação, de<br />

abolição de hierarquias, de regras e de tabus<br />

que se mantêm renitentes no cotidiano dos<br />

baianos.<br />

Ao nosso ver, as características lúdico-festivas<br />

da Lavagem do Bonfim autorizam uma<br />

interpretação do ritual nos moldes propostos por<br />

Bakhtin (<strong>19</strong>87). Observamos que, não obstante<br />

as tentativas de enquadramento da lavagem na<br />

“ordem”, em especial as investidas da indústria<br />

cultural (ORTIZ, <strong>19</strong>89) no sentido de circunscrever<br />

os festejos numa lógica que leva em<br />

consideração as forças do mercado, a Lavagem<br />

do Bonfim resiste aos assédios da ordem.<br />

Os foliões continuam decidindo como irão participar.<br />

Os próprios organizadores, mesmo preocupados<br />

com a quebra de barreiras tidas como<br />

intransponíveis, evitam ações que firam o caráter<br />

universal da festa: a Lavagem do Bonfim<br />

é um ritual de todos os baianos. A lei que preside<br />

a festa é a lei da liberdade. A lavagem,<br />

com o seu cortejo, é um momento especial da<br />

vida dos baianos, uma festa que celebra a<br />

baianidade, concepção de vida que possui um<br />

forte conteúdo étnico/religioso, marcado por<br />

elementos da chamada identidade cultural afrobrasileira,<br />

envolvida por uma alternância entre<br />

o sagrado e o profano, uma concepção de mundo<br />

que não separa a alegria e o sagrado e a<br />

principal barreira que os participantes quebram<br />

esta ligada às relações hierárquicas vinculadas<br />

à própria Religião Católica. A marca maior da<br />

festa é a busca de uma relação mais próxima<br />

com o sagrado por parte dos participantes que<br />

saem às ruas da cidade em busca do Axé 2 , liberado<br />

pelas baianas 3 que realizam a lavagem<br />

simbólica do santuário. O clima é de alternância<br />

entre o sagrado e o profano, o clima religioso e<br />

a festa carnavalizada fazem parte do mesmo<br />

ritual. A lavagem poderia, então, ser uma espécie<br />

de “carnaval medieval” onde o sagrado<br />

confunde-se com o profano, as hierarquias são<br />

abolidas e as classes sociais e idades dos participantes<br />

se indiferenciam (BAKHTIN, <strong>19</strong>87,<br />

p.2<strong>19</strong>).<br />

O RITO<br />

Em primeiro lugar, o que é um rito? Segundo<br />

Cazeneuve ([<strong>19</strong>-?]), o rito está carregado<br />

de inércia, tributo pago em função de sua resistência<br />

à mudança. O rito é um ato que sempre<br />

permanece fiel a certas regras que constituem<br />

precisamente o que há nele de ritual, mesmo<br />

sendo bastante flexível para comportar uma<br />

margem de improvisação. Quando tomamos<br />

parte de um ritual expressamos a nossa participação<br />

em uma determinada ordem social. O<br />

ritual, segundo Durkheim (<strong>19</strong>89), está no núcleo<br />

da religião e é o que torna possível a própria<br />

ordem social e moral. A Lavagem do Bonfim<br />

é, entre outras coisas, um rito comemorativo<br />

que se insere em um determinado tempo histórico,<br />

celebrando a identidade cultural baiana,<br />

2<br />

Axé: “Energia que tudo transpassa, movimenta e possibilita.”<br />

(BERKENBROCK, <strong>19</strong>97, p.259-267).<br />

3<br />

As participantes do ritual são em sua maioria baianas do<br />

acarajé. Constatamos na pesquisa de campo que a maioria<br />

das baianas está vinculada aos terreiros das religiões afrobrasileiras.<br />

138 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003


Eduardo Alfredo Morais Guimarães<br />

a “baianidade”. O ritual reproduz o mundo vivido<br />

pelos baianos, mas também se insere em<br />

outro mundo, possuidor de uma lógica própria<br />

apontando modos alternativos de comportamento,<br />

um mundo sagrado capaz de captar e manejar<br />

forças numinosas 4 . O ritual da lavagem expressa<br />

a forma como uma sociedade dividida<br />

em diversos domínios e éticas encontra sua totalidade,<br />

ou, utilizando as palavras de Roberto<br />

DaMatta numa afirmação de base genuinamente<br />

durkheimiana, “... os rituais servem, sobretudo<br />

na sociedade complexa, para promover a<br />

identidade social e construir o seu caráter”<br />

(<strong>19</strong>79, p.24). Sem dúvida, é impossível pensar<br />

a cidade do Salvador sem suas Lavagens e, mais<br />

impossível ainda, pensar a cidade sem a Lavagem<br />

do Bonfim.<br />

As reflexões de Van Gennep (<strong>19</strong>78) sobre<br />

os ritos de passagem são esclarecedoras. No<br />

ritual os participantes são convidados a tomar<br />

um banho purificador, se purificam, se lavam<br />

e se limpam. Inegavelmente, o ritual está relacionado<br />

com as manifestações religiosas afrobrasileiras.<br />

O contato com as águas de cheiro<br />

das baianas garante uma imersão purificadora,<br />

são as águas de Oxalá 5 , orixá da criação. As<br />

águas simbolizam regeneração, operando um<br />

renascimento através do axé de Oxalá, energia<br />

que garante a dinâmica da vida. O simbolismo<br />

da água como fonte de pureza, fertilidade e<br />

vida surge com toda força (BRUNI, <strong>19</strong>94, p.64).<br />

O ritual assinala o início de um novo ciclo temporal<br />

que deve ser marcado pela harmonia.<br />

Como toda atividade religiosa das religiões Afro-<br />

Brasileiras, a lavagem significa uma troca. A<br />

maior oferenda dos participantes é o sacrifício<br />

de seguir o trajeto do cortejo a pé – que tem fé<br />

vai a pé!, afirmam os participantes.<br />

Como nas danças rituais realizadas nos terreiros,<br />

o ritual da lavagem tem o seu ponto focal<br />

na mulher. São baianas dos candomblés,<br />

casas de Umbanda, ou mesmo baianas de outros<br />

credos, que com graça e impetuosidade<br />

seguem dançando pelas ruas acompanhadas de<br />

perto pelo Afoxé Filhos de Gandhy, seguindo o<br />

toque do gexá. Os dirigentes do Afoxé seguem<br />

de perto o grupo de baianas e, com a participação<br />

ativa dos integrantes da agremiação, procuram<br />

suprir as necessidades do cortejo. O ritmo<br />

seguido é o mesmo ritmo litúrgico dos terreiros<br />

e possibilita a distribuição do axé de Oxalá.<br />

O rito aparece, então, como um processo conjuntivo<br />

que objetiva, não obstante as distensões<br />

existentes na sociedade, manter a harmonia do<br />

participante individual, da comunidade e do próprio<br />

universo. O sacrifício ou a oferenda é<br />

dedicada ao Senhor do Bonfim, identificado com<br />

o Orixá do Candomblé, Oxalá, em virtude de<br />

homologias entre os respectivos arquétipos. De<br />

um lado, Senhor do Bonfim, Jesus Cristo, o filho<br />

de Deus; de outro, Oxalá, o mais poderoso<br />

dos orixás, responsável por toda a criação.<br />

Observamos, então, o caráter singular da prática<br />

religiosa dos participantes, que procuram interpretar<br />

o ritual à sua maneira. Eles são na<br />

sua maioria católicos, mas podem ser também<br />

de Candomblé, de Umbanda, Espíritas, ou mesmo<br />

sem religião. Para os praticantes das religiões<br />

afro-brasileiras, a religião abarca todas<br />

as esferas da vida e a lavagem surge como um<br />

ritual que transmite axé indispensável à dinamicidade<br />

da própria vida.<br />

O Senhor do Bonfim pode ser um símbolo<br />

pertencente ao universo simbólico católico; no<br />

entanto, não há incongruência no seu culto por<br />

parte dos adeptos das religiões afro-brasileiras.<br />

O campo simbólico/religioso em questão é marcado<br />

pela “interculturalidade” e modelos míticos<br />

e litúrgicos correlacionam-se de maneira analógica.<br />

O Senhor do Bonfim é identificado com o<br />

orixá do Candomblé, Oxalá, mas esta identificação<br />

parece resumir-se numa analogia entre<br />

os arquétipos e esta analogia tem limites. Os<br />

festeiros não transferem para o Senhor do<br />

Bonfim os mitos ligados ao orixá do Candomblé;<br />

da mesma forma, não acreditamos que algum<br />

festeiro acredite que Oxalá foi crucifica-<br />

4<br />

Termo utilizado por K. Otto, experiências provocadas<br />

pela revelação de um aspecto do poder divino... (citado<br />

por Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano: a essência das<br />

religiões. Lisboa: Livros do Brasil, [<strong>19</strong>-?], p. 24.)<br />

5<br />

Oxalá é o primeiro dos Orixás, recebeu de Olorum, deus<br />

supremo, criador de todos os orixás (Cf. VERGER, <strong>19</strong>81,<br />

p.21-22), a tarefa de criar a terra com tudo em que nela<br />

existe.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003<br />

139


Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />

do! Um observação atenta revela o fervor dos<br />

devotos que rendem homenagens ao Senhor do<br />

Bonfim e pedem bênçãos à Oxalá. Para os católicos<br />

mais dogmáticos esta atitude é incorreta<br />

e até mesmo uma profanação, mas é justamente<br />

uma postura “ecumênica” e “tolerante” que<br />

impera entre a maioria dos leigos, afiliados incorporados<br />

legitimamente à Igreja Católica. O<br />

Catolicismo Popular admitiu, assim, no seu seio,<br />

o povo de santo e sua maneira festiva de viver<br />

a religião. Os Deuses africanos não foram vencidos<br />

e estão presentes no próprio universo simbólico<br />

da Igreja Católica, mas os conjuntos simbólicos<br />

mantêm-se distintos e, certamente, o<br />

mais importante, se os adeptos das religiões<br />

afro-brasileiras se retirassem da lavagem, seria<br />

provavelmente o fim do rito.<br />

Observamos que situações de conflito, envolvendo<br />

grupos rivais, são comuns e o conflito<br />

pode, em muitos casos, localizar-se no coração<br />

do próprio rito, chegando mesmo a reforçar as<br />

assimetrias existentes no universo social sem,<br />

no entanto, deixar de realçar o coletivo, a baianidade.<br />

Não podemos, portanto, menosprezar<br />

as “intenções políticas” presentes na lavagem.<br />

Na hora da luta política a lavagem assume as<br />

características de um jogo de competições que<br />

exalta as rivalidades. A direção do movimento<br />

ritual volta-se para as distensões existentes no<br />

universo social. A festa exalta os poderes dos<br />

grupos que impõem pela sua participação o seu<br />

lugar na “cidade e na sociedade política”<br />

(HEERS, <strong>19</strong>87, p.17). Em determinados momentos,<br />

a lavagem também é uma “cerimônia<br />

do triunfo”, um cortejo triunfal que conduz os<br />

vencedores das contendas políticas, bastante<br />

significativo quando ocorrem mudanças políticas<br />

expressivas.<br />

Vejamos mais de perto como as mudanças<br />

políticas podem influenciar na realização da<br />

Lavagem do Bonfim,<br />

No ano de <strong>19</strong>87, o Jornal Tribuna da Bahia,<br />

de 16 de janeiro, circulou com a seguinte manchete:<br />

“Maior cortejo de toda a história da festa<br />

durou 5 horas em direção à Colina”. O ponto<br />

focal da festa era do Governador eleito pelas<br />

oposições, Waldir Pires, que, através da “sagração”<br />

pelas bênçãos das baianas, fortalecia-se<br />

para a jornada de quatro anos à frente do Governo<br />

do Estado. Cerca de 500 baianas participaram<br />

da lavagem, segundo a matéria publicada<br />

pelo jornal, em meio a mais de 600 mil pessoas<br />

que acompanhavam o ritual.<br />

A lavagem ocorreu em um momento importante<br />

da vida política do Estado da Bahia e o<br />

rito adquiriu, então, um sentido claro de “liturgia<br />

política”, como um momento de “sagração” de<br />

uma “nova ordem” construída a partir da vitória<br />

das oposição nas eleições para o Governo<br />

do Estado. O simbolismo da Lavagem do Bonfim,<br />

rito que celebra a instauração de um novo<br />

ciclo temporal, acompanhado nos momentos<br />

cruciais – lavagem das escadarias da igreja pelas<br />

baianas – por uma simbólica da limpeza e da<br />

purificação, fundia-se, então, com o entusiasmo<br />

popular pela vitória. A cerimônia celebrava,<br />

de fato, uma ordem a ser instaurada e o governador<br />

eleito – Waldir Pires – e seus seguidores<br />

monopolizaram as atenções em praticamente<br />

todos os momentos da “longa caminhada”.<br />

Na Lavagem de janeiro de <strong>19</strong>91, os pedidos<br />

dos baianos para a paz no Golfo Pérsico dominaram<br />

as atenções, ressaltando o caráter universal<br />

do ritual. Associações de classe, partidos<br />

políticos, associações carnavalescas, hotéis,<br />

agências de turismo e os mais diversos “grupos”<br />

faziam-se presentes ao cortejo, através de<br />

camisetas brancas, faixas e adesivos alusivos à<br />

paz no Golfo Pérsico. Constataram-se, ainda,<br />

mensagens pela recuperação de Irmã Dulce,<br />

“a mãe dos baianos”, religiosa que se destacou<br />

por seu trabalho pelos pobres. Faixas colocadas<br />

pela comissão, ao longo do trajeto, pediam<br />

“silêncio para Irmã Dulce” nas proximidades<br />

do Hospital Santo Antonio. A atividade ritual,<br />

sob suas diversas formas, conjugava naquele<br />

momento o participante individual, a comunidade<br />

e o próprio universo. Contrariando as expectativas<br />

da Comissão, nem o governador do<br />

Estado, nem o prefeito da capital participaram<br />

do evento e dentre os políticos que participavam<br />

do cortejo (e eram muitos) apenas o Deputado<br />

Federal Manoel Castro, virtual candidato<br />

a prefeito da capital, nas eleições de <strong>19</strong>92,<br />

acompanhou as baianas até o adro da igreja.<br />

Constatava-se, assim, um “esvaziamento” da<br />

140 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003


Eduardo Alfredo Morais Guimarães<br />

lavagem e este esvaziamento deveu-se, sobretudo<br />

ao caráter intermediário do governo. O<br />

governador Nilo Coelho – eleito Vice-Governador<br />

em <strong>19</strong>86 – estava deixando o cargo e o<br />

governador eleito (em <strong>19</strong>90), Antonio Carlos<br />

Magalhães, preparava-se para assumir o governo.<br />

Por outro lado, o Prefeito de Salvador,<br />

Fernando José, era apontado por todas as pesquisas<br />

de opinião como o “pior prefeito do Brasil”.<br />

Sua popularidade estava em baixa. Outros<br />

políticos, talvez atentos às acusações de manipulação,<br />

preferiram acompanhar o cortejo sem<br />

um envolvimento maior com a parte das baianas<br />

e a lavagem do adro da Igreja.<br />

Na Lavagem de <strong>19</strong>92 ocorreu a “sagração<br />

de um novo governo”, eleito com expressiva<br />

votação. Observávamos, então, a efetivação de<br />

um ritual de “sagração” de uma nova ordem.<br />

Era a primeira lavagem após a posse do Governador<br />

do Estado, Antonio Carlos Magalhães,<br />

eleito em <strong>19</strong>90. Um novo ciclo temporal – os<br />

quatro anos de mandato do governador – iniciava-se<br />

e Antonio Carlos Magalhães, celebrando<br />

o seu governo, num ato coletivo de comunhão,<br />

participava dos momentos mais significativos do<br />

ritual: a partida do cortejo na Conceição da Praia<br />

e a lavagem do Adro da Igreja. Assistimos, então,<br />

à realização de uma das maiores lavagens<br />

da história da devoção e a cerimônia reforçava<br />

as mudanças políticas ocorridas no Estado em<br />

função do resultado das eleições. O governador,<br />

juntamente com seus principais correligionários,<br />

caminhava ao lado das baianas buscando<br />

uma identificação com o lado negro da festa.<br />

O governo definia naquele momento uma<br />

linha de ação que privilegiaria durante todo o<br />

governo uma aproximação com as manifestações<br />

culturais afro-brasileiras existentes no<br />

Estado, encaradas com rico manancial para as<br />

políticas públicas na área do turismo.<br />

O ritual situa-se, assim, entre a arte e a vida<br />

cotidiana. Os participantes não se restringem a<br />

assistir passivamente ao cortejo e à lavagem simbólica<br />

do santuário; eles vivem efetivamente o<br />

ritual, pois a Lavagem do Bonfim é uma festa de<br />

todos em Salvador. É uma “segunda vida do povo”<br />

da cidade (BAKHTIN, <strong>19</strong>87), um momento especial<br />

da existência onde não há lugar para atores<br />

e expectadores; todos celebram, de alguma<br />

forma, as mudanças concretas ou, simplesmente,<br />

imaginárias. No ritual os baianos partilham<br />

uma identidade toda particular; vivem um momento<br />

fora do cotidiano, seguindo as reflexões<br />

de Victor Turner (<strong>19</strong>79, p.118), “... ´momento situado<br />

dentro e fora do tempo’, dentro e fora da<br />

estrutura social profana”, que revela assimetrias<br />

existentes na sociedade.<br />

Talvez a Lavagem do Bonfim seja o único<br />

“carnaval” que tem um sujeito, um símbolo focal<br />

que orienta os participantes, ou seja, que<br />

tem “um dono”, e o Senhor Bom Jesus do Bom<br />

Fim ou o orixá do Candomblé, Oxalá, é o “dono”<br />

desta festa. É precisamente isso que faz da lavagem<br />

um dos momentos mais ricos da vida<br />

ritual da cidade do Salvador. Embora a festa<br />

tenha um “dono”, mantém-se “festa de todos”.<br />

Como Carnaval, o ponto chave é a sua organização<br />

praticamente independente do poder público<br />

e das autoridades religiosas. Observa-se<br />

ainda que o cortejo é um desfile polissêmico, no<br />

sentido de congregar participantes das mais diversas<br />

matizes, pois são católicos, guardiões da<br />

ortodoxia ou não, espíritas, candomblecistas,<br />

umbandistas e muita gente de “outras” religiões,<br />

sem religião, ou que fazem a sua religião. Os<br />

participantes, como no carnaval, organizam-se<br />

em grupos, embora estes grupos não tenham<br />

um caráter permanente, não sejam “blocos” no<br />

sentido de algo compacto, sólido (DAMATTA,<br />

<strong>19</strong>79, p.98). São, na verdade, grupos ordenados<br />

de maneira muito mais livre e alicerçados,<br />

principalmente, nas camisetas que aparecem,<br />

então, como um modo de dizer algo à sociedade.<br />

Essa característica surge, então, como um ponto<br />

muito importante, quando nos damos conta de<br />

que os participantes destes grupos identificamse<br />

com as mensagens expressas nas camisetas<br />

e, mais ainda, quando percebemos que estas pessoas,<br />

ligadas por laços profissionais, de militância<br />

política, ou simplesmente organizadas para a lavagem,<br />

não estão ali só para “brincar”, mas também<br />

para “participar” do ritual, dialogando de<br />

alguma forma com a sociedade.<br />

Por outro lado, a lavagem possui também<br />

características de “procissão religiosa” e o alvo<br />

do cortejo são os pedidos de proteção ao Se-<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003<br />

141


Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />

nhor Bom Jesus do Bom Fim e as “obrigações”<br />

com Oxalá. Como toda procissão, antes da saída<br />

do cortejo, os “participantes” são convidados<br />

a assistirem uma Missa, celebrada na Igreja<br />

de Nossa Senhora da Conceição da Praia,<br />

ou melhor, eram convidados, pois a missa foi<br />

suspensa por determinação do Arcebispo da<br />

Bahia, Dom Lucas Moreira Neves, no início dos<br />

anos <strong>19</strong>90. No centro do cortejo está a “parte<br />

das baianas”, comprimidas pela multidão que<br />

insiste em acompanhá-las, até as escadarias do<br />

santuário. Este núcleo, apesar dos esforços dos<br />

organizadores, permanece formado por um conjunto<br />

desordenado do qual participam as autoridades,<br />

as baianas e gente do povo que consegue<br />

furar o cordão de isolamento. Observamos,<br />

ainda, que, ao contrário das procissões religiosas,<br />

não existem andores carregados pelos<br />

membros de confrarias religiosas, autoridades<br />

civis ou militares, não existindo, portanto, imagens<br />

de santo que são intermediadas pelas autoridades.<br />

A multidão de devotos segue em<br />

direção à Colina Sagrada, cortando o centro<br />

financeiro da cidade do Salvador, uma região<br />

do espaço urbano dominado pelo capital financeiro,<br />

“participando” efetivamente do ritual, reconhecendo<br />

o poder das autoridades, talvez,<br />

mas, acima de tudo, expressando todo o seu<br />

poder. O território do trabalho e da fadiga dá<br />

lugar para o território da dança e do prazer.<br />

O cortejo é seguido de perto pelas autoridades<br />

policiais. As instituições financeiras e demais<br />

empresas que operam na área do comércio<br />

reforçam a segurança, isolando as fachadas<br />

dos prédios com tapumes. O cortejo é também<br />

um perigo para a cidade; o território do<br />

trabalho, da fadiga, espaço mais “produtivo”<br />

da sociedade capitalista é invadido pelo carnaval,<br />

pela dança e pelo prazer. O Estado, através<br />

do seu poder de polícia, opera como árbitro<br />

orientando a ocupação do espaço, determinando<br />

o que pode e o que não pode acontecer.<br />

A Lavagem do Bonfim celebra a mudança.<br />

O rito marca a entrada em um novo período<br />

temporal. O conteúdo simbólico da lavagem leva<br />

as marcas da cerimônia das Águas de Oxalá,<br />

águas para lavar Oxalá – lavagem dos axés de<br />

Oxalá –, realizada nos terreiros de Candomblé,<br />

particularmente os de origem Kêto. Segundo<br />

Pierre Verger (<strong>19</strong>81, p.261):<br />

... os descendentes de africanos, movidos por<br />

um sentimento de devoção, tanto ao Cristo como<br />

ao Deus africano, fizeram uma aproximação entre<br />

as duas lavagens: a dos axés de Oxalá e aquela<br />

do solo da igreja que leva o nome católico do<br />

mesmo orixá.<br />

Não podemos esquecer que as “Baianas do<br />

Candomblé”, com seus trajes típicos, são o centro<br />

focal do cortejo e, principalmente, da lavagem<br />

simbólica do Adro da Igreja. Da mesma<br />

forma, as águas utilizadas na lavagem do Adro<br />

da Igreja – Águas de Cheiro – são preparadas<br />

seguindo rituais próprios das religiões afro-brasileiras.<br />

Por outro lado, a Lavagem, como o<br />

Carnaval, se situa numa escala cronológica<br />

cíclica, independente de datas fixas 6 , uma cronologia<br />

cósmica, diretamente relacionada com<br />

as divindades (DAMATTA, <strong>19</strong>79, p.43).<br />

Acreditamos que é possível compreender<br />

agora as ações das autoridades públicas no sentido<br />

de enquadrar a Lavagem na “ordem”. O<br />

Estado, em nome dos empresários do setor cultural<br />

e, em particular, do turismo, surge hoje<br />

como principal incentivador da lavagem, mas<br />

também como o maior repressor do desregramento.<br />

Nesta nova fase assistimos ao predomínio<br />

de uma lógica comercial que busca a padronização<br />

do cortejo com o “congelamento”<br />

da carnavalização, estreitamente vinculada às<br />

festas religiosas de origem ibérica e um forte<br />

incentivo às manifestações de raízes africanas.<br />

No entanto, há uma diferença importante<br />

entre um sanduíche que se compra na rede Mac<br />

Donalds e uma festa religiosa. As manifestações<br />

culturais são um espaço de luta e distinção<br />

e as diferenças funcionam como signos<br />

distintivos. As ações dos poderes públicos e da<br />

própria indústria cultural não conseguem circunscrever<br />

o ritual ao espaço exclusivo das religiões<br />

afro-brasileiras, em particular a reverência de<br />

um culto à Oxalá. Não conseguem disciplinar e<br />

enrijecer completamente a Lavagem do Bonfim,<br />

mas as manifestações mais carnavalizadas se<br />

6<br />

A Festa do Bonfim ocorre no segundo domingo depois<br />

da Epifania (Festa de Reis).<br />

142 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003


Eduardo Alfredo Morais Guimarães<br />

tornam cada vez mais difíceis e os espaços são<br />

abarcados com rapidez pela lógica comercial<br />

(ORTIZ, <strong>19</strong>89). As últimas modificações introduzidas<br />

no cortejo da lavagem, em nome do<br />

respeito às tradições, amenizaram o “carnaval”<br />

retirando o som eletrizante dos trios elétricos<br />

da festa. Concretamente, as investidas da<br />

industria cultural significaram uma certa perda<br />

de sentido.<br />

A lavagem com seu cortejo se apodera de<br />

todos os espaços onde possa instalar-se: as ruas,<br />

as praças, as casas com suas varandas e quintais,<br />

tudo que serve para o encontro dos participantes.<br />

A carnavalização possui o seu aspecto<br />

de potlach endereçado às forças mágico-religiosas<br />

que dão significado ao ritual. O consumo<br />

de energias no verdadeiro delírio barroco<br />

provocado pelo som eletrizante dos trios-elétricos<br />

injeta no ritual momentos ímpares de efervescência.<br />

É a festa no sentido pleno que pode<br />

assolar e destruir, desprezando as barreiras<br />

sociais. Como nas sociedades tradicionais, não<br />

são indivíduos, e sim coletividades que se encontram<br />

e a essência do encontro é o estabelecimento<br />

de um contrato construído a partir do<br />

conceito de troca-dádiva. 7<br />

ENTRE A PRODUÇÃO E A INVENÇÃO<br />

DA CIDADE<br />

Hoje, é impossível pensar a capital do Estado<br />

da Bahia sem as suas festas populares e,<br />

acima de tudo, sem a cadência dos ritmos do<br />

povo negro. É impossível também pensar a grande<br />

maioria das festas sem suas “lavagens” e,<br />

conseqüentemente, sem as baianas que efetivamente<br />

realizam o ritual de limpeza e purificação.<br />

Por surpreendente, mesmo paradoxal, que<br />

pareça, é impossível separar estas festas das<br />

comemorações em louvor aos santos da Igreja<br />

Católica. Não é fácil, portanto, para o antropólogo,<br />

com seus olhares e ouvidos “disciplinados”,<br />

realizar uma percepção científica dos rituais<br />

que marcam a identidade da cidade do<br />

Salvador (OLIVEIRA, <strong>19</strong>98, p.18).<br />

Os espaços rituais da cidade são marcados<br />

por relações de identidade e alteridade, são lugares<br />

onde os habitantes constroem e reconstroem<br />

identidades particulares balizadas pela<br />

relações sociais cotidianas e pela história. Nestes<br />

lugares dá-se um reconhecimento da<br />

alteridade que articula a organização social. Não<br />

é possível, portanto, compreender as ações do<br />

poder público na arena da política cultural sem<br />

analisar de perto a sua participação na organização<br />

destes espaços rituais.<br />

O reconhecimento do caráter negro da cidade<br />

do Salvador já faz parte do discurso oficial.<br />

As manifestações culturais do povo negro<br />

são a “alma” da cidade, afirmam dirigentes de<br />

órgãos de turismo veiculados ao poder municipal.<br />

No entanto, toda esta cultura é também<br />

folclore, verdadeira prisão reservada ao povo<br />

negro alegre e festeiro, qualidades atribuídas<br />

geneticamente ao grupo a partir da raça, apimentadas,<br />

portanto, com concepções racistas<br />

(MONTES, <strong>19</strong>96, p.53). Assim, as elites brancas<br />

que governam a cidade convivem com esta<br />

gente que, além de ser maioria, consegue redefinir<br />

a cidade como um lugar de identidade partilhada,<br />

habitado majoritariamente pelo povo<br />

negro, a Roma Negra, segundo intelectuais e<br />

ativistas do próprio movimento negro. Mas, os<br />

poderes públicos agem também no sentido de<br />

conter os excessos, pois em algum momento<br />

eles poderão efetivamente acrescentar às suas<br />

“qualidades” características indesejáveis ao tentar<br />

escapar à prisão reservada aos marginalizados.<br />

A partir dos últimos anos do século XX os<br />

poderes públicos começaram a atuar com muito<br />

mais vigor na organização dos espaços rituais,<br />

buscando circunscrever as manifestações<br />

a partir de uma identidade negra particular da<br />

cidade. Os órgãos de turismo passaram, então,<br />

a intervir diretamente na estrutura organizativa<br />

7<br />

O termo potlach é utilizado aqui em conformidade com<br />

o trabalho de Marcel Mauss “Ensaios sobre o dom”<br />

(<strong>19</strong>74). Mauss retirou o termo da língua chinook. O seu<br />

significado é essencialmente alimentar, consumir e está<br />

ligado a uma forma de troca, uma troca-dádiva que possui<br />

como função primordial unir grupos e afastar hostilidades.<br />

Com a utilização do termo procuramos realçar o caráter<br />

agonístico do ritual, observado na exuberância e na<br />

fartura que marcam a atuação dos grupos nos principais<br />

momentos da festa.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003<br />

143


Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />

das festas populares, influenciando, inclusive,<br />

na própria produção de sentido destas festas.<br />

Uma das mais importantes festas populares/<br />

religiosas de Salvador, a Lavagem do Bonfim,<br />

foi o alvo privilegiado. No ano de <strong>19</strong>98, a Prefeitura,<br />

com o apóio da Comissão dos Festejos<br />

Populares da Lavagem do Bonfim, com a<br />

anuência da Associação dos Blocos de Trios e<br />

com o aval dos empresários vinculados à Indústria<br />

do Turismo, decidiu transferir para a<br />

bairro da Barra o som eletrizante dos trios elétricos,<br />

segregando espacial e temporalmente o<br />

carnaval. A nova festa passou a ser realizada<br />

no sábado posterior à quinta-feira da lavagem<br />

e foi nomeada de Farolfolia. Observamos, que<br />

contrariamente à concepção que imperava no<br />

Carnaval da Lavagem, o Farolfolia, além de<br />

servir de vitrine para as associações carnavalescas,<br />

passou a conferir altos lucros aos blocos<br />

que passaram a participar do evento. Uma<br />

organização exemplar garantia a ordem na festa<br />

e toda segurança aos turistas que visitavam<br />

a cidade. O caráter singular do Carnaval da<br />

Lavagem, com seu aspecto de potlach endereçado<br />

às forças mágico-religiosas, foi negligenciado<br />

pelos promotores da festa. No cortejo,<br />

um rito em louvor ao Orixá do Candomblé,<br />

Oxalá, deveria imperar contrição e respeito.<br />

No ano seguinte, em <strong>19</strong>99, a EMTURSA,<br />

Empresa de Turismo de Salvador, outorgou à<br />

Associação das Baianas de Acarajé – ABA,<br />

entidade criada no ano de <strong>19</strong>92, a partir de gestões<br />

da própria empresa de turismo, com o objetivo<br />

de disciplinar o comércio de acarajé na<br />

cidade, a responsabilidade pela organização do<br />

cortejo. Seguindo orientações da EMTURSA,<br />

os diretores da Associação passaram a realizar<br />

o contato com as baianas, filiadas e não filiadas<br />

à associação, e a encaminhar a relação dos<br />

participantes ao órgão de turismo que providenciava<br />

o pagamento de uma espécie de jeton pela<br />

participação na lavagem. A ABA passou, assim,<br />

a disputar com a Federação Baiana do Culto<br />

Afro-Brasileiro a organização do cortejo das<br />

baianas, o que acirrou a rivalidade já existente<br />

entre as duas entidades. Convém ressaltar, ainda,<br />

que a Federação não aceita a ingerência da<br />

ABA na organização do comércio de Acarajé<br />

na cidade, realizado, em muitos casos, por<br />

baianas vinculadas às Casas de Candomblé.<br />

Observamos, ainda, que a alteração introduzida<br />

vem ameaçando o aspecto religioso do ritual da<br />

lavagem, na medida em que a associação está<br />

voltada exclusivamente para a comercialização<br />

dos quitutes produzidos pelas baianas. 8<br />

Na última lavagem do milênio, em janeiro<br />

de 2000, os empresários vinculados ao setor<br />

cultural trouxeram o carnaval de volta à quintafeira<br />

do Bonfim, despindo-o, no entanto, do seu<br />

caráter de potlach. A Bahia Marina, localizada<br />

na Avenida do Contorno, nas proximidades da<br />

Igreja da Conceição da Praia, organizou um<br />

grande grito de carnaval, na quinta-feira da lavagem,<br />

o “Bonfim Light”. A festa começou<br />

logo após a saída do cortejo e contou com a<br />

participação de cerca de 10 mil foliões que brincaram<br />

nos 9 mil metros quadrados do estacionamento<br />

da marina até à noite. O local foi cercado<br />

por tapumes e um grande contingente de<br />

seguranças garantiu a tranqüilidade dos foliões<br />

que pagaram R$40,00 para ter acesso à festa.<br />

O carnaval voltou à Lavagem do Bonfim, mas<br />

ficou segregado espacialmente – não interfere<br />

mais na rotina do centro financeiro da cidade –<br />

e, socialmente, apenas os foliões que podem<br />

pagar o ingresso tem acesso à festa.<br />

Sem dúvida, a Lavagem do Bonfim, como<br />

outras festas populares da cidade do Salvador,<br />

estão sofrendo profundas mudanças e estas<br />

mudanças estão interferindo na própria identidade<br />

da cidade. Não cabe aqui um apelo a nostalgia,<br />

muitas manifestações culturais desaparecem,<br />

ou transformam-se e as transformações<br />

são, muitas vezes, inevitáveis. A festa que nós<br />

estamos vendo não é mais aquela que estávamos<br />

acostumados a ver. No entanto, acreditamos<br />

que as ações dos poderes públicos, incentivando<br />

a comercialização dos principais espaços,<br />

garantindo altos lucros aos produtores culturais<br />

que investem na realização do evento e<br />

aos empresários do setor de turismo representam<br />

uma ameaça contra a linguagem da identidade.<br />

Conforme afirma Marc Augé (<strong>19</strong>94), a<br />

8<br />

A Associação está voltada para a capacitação profissional<br />

das vendedoras de Acarajé.<br />

144 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003


Eduardo Alfredo Morais Guimarães<br />

atividade ritual tem por objetivo essencial estabelecer,<br />

reproduzir ou renovar as identidades<br />

individuais e coletivas. É preciso acrescentar<br />

que o processo de formação de identidades está<br />

no cerne das relações que os habitantes estabelecem<br />

com a sua cidade. A substituição do<br />

caráter utópico do ritual pelo permitido tem<br />

correspondido a um enfraquecimento da lógica<br />

simbólica da festa, a uma falha no par identidade/alteridade<br />

utilizando as palavras de Marc<br />

Augé. É ainda sobre a problemática da identidade<br />

que consideramos importante dizer ainda<br />

uma palavra: a identidade é o núcleo em torno<br />

do qual se articula toda organização social.<br />

CONCLUINDO...<br />

Como já afirmamos anteriormente, a atividade<br />

ritual possui o objetivo essencial reproduzir<br />

ou renovar identidades individuais e coletivas.<br />

Uma leitura parcial do ritual elaborada em<br />

função dos interesses dos empresários da cultura<br />

e, em especial, do turismo, empreendida<br />

pelo órgãos públicos, tem como efeito principal<br />

obscurecer o significado da festa. Não obstante<br />

o zelo missionário dos nossos dirigentes, os<br />

fatos revelam a impossibilidade de um único significado<br />

para o ritual da Lavagem do Bonfim.<br />

Atraídos por uma disposição etnocêntrica foi<br />

fácil compreender a lavagem do Santuário do<br />

Bonfim apenas como uma versão sincretizada<br />

das “Águas de Oxalá”; portanto, a contrição<br />

e o respeito próprios da cerimônia dedicada ao<br />

orixá do Candomblé (VERGER, <strong>19</strong>81, p.261)<br />

deveriam imperar em todos os momentos do<br />

ritual: apenas os blocos afros, afoxés e pequenos<br />

grupos de percussão deveriam ser tolerados.<br />

O ritual da lavagem simbólica da Igreja do<br />

Bonfim se transveste, usando as palavras de<br />

Favareto, em efeméride oficial, transformada<br />

em ‘macumba para turista ’ .<br />

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Recebido em 26.07.01<br />

Aprovado em 25.08.01<br />

146 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003


Fábio Josué Souza Santos<br />

POR UMA ESCOLA DA ROÇA<br />

Fábio Josué Souza Santos *<br />

RESUMO<br />

No presente artigo, debruçando-se sobre a realidade do município de<br />

Amargosa, pretende-se fazer uma crítica ao modelo pedagógico vigente<br />

na maioria das escolas rurais do Estado da Bahia, que, alheio às<br />

especificidades da vida da roça, tem procurado imitar as escolas urbanas,<br />

revelando-se estranho e inapropriado para seus usuários. Apontase<br />

a necessidade urgente de se construir uma escola da roça e, nesse<br />

sentido, são indicadas três experiências alternativas que podem servir<br />

de inspiração para políticas educacionais que valorizem as singularidades<br />

que caracterizam as dinâmicas territoriais das distintas regiões do<br />

Estado.<br />

Palavras-chave: Educação rural – Roça - Escola da roça – Diversidade<br />

Cultural.<br />

ABSTRACT<br />

FOR A RURAL SCHOOL<br />

Based on the reality of Amargosa (located in the countryside of Bahia),<br />

this article intends to criticize the pedagogical model used by the majority<br />

of rural schools in the state of Bahia, which is not according to the<br />

specifications of the countryside life and has been trying to imitate the<br />

urban schools, revealing itself as a strange and inappropriate model to its<br />

users. This article also calls the attention for an urgent necessity of<br />

constructing a rural school and, with this purpose, it indicates three<br />

alternative experiences that can serve as an inspiration to education<br />

politics that value the singularities which characterize the territorial<br />

dynamics of the distinct regions of the state of Bahia.<br />

Key words: Rural Education – Countryside – Rural School – Cultural<br />

Diversity.<br />

*<br />

Pedagogo (UNEB); mestrando em Educação e Contemporaneidade (PEC/UNEB); ex-professor substituto<br />

da UNEB/DCHT, Campus XVII/Bom Jesus da Lapa (<strong>19</strong>98-2000) e da UESC-Universidade Estadual Santa<br />

Cruz (2001-2002); bolsista da CAPES vinculado ao PEC/UNEB; membro do PRODESE-Programa<br />

Descolonização e Educação, vinculado à linha de pesquisa PROCEMP-Processo Civilizatórios: Educação,<br />

Memória e Pluralidade Cultural/Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PEC-<br />

UNEB). Endereço para correspondência: Avenida São Cristóvão, 21 - 45.300-000 AMARGOSA-BA. E-mail:<br />

cetepas.fabio@bol.com.br<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003<br />

147


Por uma escola da roça<br />

1. INTRODUÇÃO 1<br />

Embora relegada pela Universidade ao esquecimento<br />

teórico na última década, a temática<br />

da educação rural nos parece ainda uma problemática<br />

de estudo muito significativa em um<br />

país de dimensão continental como o Brasil.<br />

Sobretudo, no Estado da Bahia, quando consideramos<br />

que, segundo o IBGE (2000), 32,8%<br />

de sua população, o equivalente a 4,3 milhões<br />

de pessoas, reside em áreas rurais, essa problemática<br />

assume uma maior relevância.<br />

A falta de estudos sobre o tema assume<br />

maior gravidade quando consideramos a histórica<br />

ausência de políticas educacionais específicas<br />

para o “meio rural” brasileiro e baiano<br />

(LEITE, <strong>19</strong>99; ARROYO; FERNANDES, <strong>19</strong>99;<br />

RIBEIRO, 2000; SANTOS, 2002); e ainda, o<br />

fato de que a população residente nas “zonas<br />

rurais” não possui hoje escolas suficientes para<br />

atender às demandas de matrículas (principalmente<br />

nas séries finais do ensino fundamental),<br />

forçando, assim, os alunos “rurais” (aqui denominados<br />

de alunos da roça) a buscarem a continuidade<br />

de seus estudos nas escolas da cidade,<br />

se quiserem aspirar níveis mais elevados de<br />

escolarização. Tais aspectos demonstram bem<br />

a forma como a diversidade cultural é ignorada<br />

pelas políticas educacionais totalitárias que negam<br />

o direito à alteridade. Nas escolas da roça 2<br />

e da cidade, os alunos da roça (a grosso modo<br />

entendidos como aqueles que residem em áreas<br />

rurais e estudam em uma “escola rural”; ou ainda<br />

aqueles que, residentes na “zona rural”, se<br />

deslocam diariamente para a sede do município<br />

a fim de freqüentar uma escola, retornando às<br />

suas casas após o turno de estudo) têm os<br />

marcadores de sua identidade negados sobretudo<br />

pelo modelo curricular padronizado, elaborado<br />

a partir de categorias urbanocêntricas e<br />

que os obriga a negar a sua identidade cultural,<br />

sob pena de serem “expulsos” da escola (evasão<br />

ou repetência).<br />

A essa questão, de certa forma, vimo-nos<br />

dedicando no Mestrado em Educação e<br />

Contemporaneidade/UNEB (desde março de<br />

2002), onde desenvolvemos a pesquisa “O aluno<br />

da roça na escola da cidade: um estudo<br />

sobre representação e identidade”. Embora<br />

na referida pesquisa, nossa preocupação esteja<br />

centrada nas tensões identitárias (identificações)<br />

vivenciadas por alunos da roça em distintos<br />

contextos culturais (a roça e a escola da cidade)<br />

no seu desenvolvimento, nós nos temos deparado<br />

com a questão mais ampla da escolarização<br />

no meio rural (roça), através de reflexões<br />

sobre a realidade específica dessas escolas<br />

nos municípios de Amargosa 3 (onde realizo<br />

a investigação) e São Miguel das Matas (onde<br />

desenvolvi experiência profissional no período<br />

<strong>19</strong>98-2001); e da leitura de bibliografia sobre a<br />

questão (BRANDÃO, <strong>19</strong>83; SPEYER, <strong>19</strong>83;<br />

THERRIEN; DAMASCENO, <strong>19</strong>93; AR-<br />

ROYO, <strong>19</strong>97; LEITE, <strong>19</strong>99; CALDART, <strong>19</strong>99).<br />

Nesse sentido, os estudos, as leituras e as<br />

discussões ocorridas no âmbito do Curso de<br />

Mestrado em Educação e Contemporaneidade<br />

têm-nos possibilitado reflexões profundas sobre<br />

as práticas escolares que, erigidas a partir<br />

de um referencial cultural ocidental, branco,<br />

masculino, urbano, tem pretendido enquadrar,<br />

numa racionalidade produtivista, todos que a ela<br />

têm acesso. Possibilitam-nos, ainda, uma crítica<br />

mais sistemática a este tipo de escola; e propiciam<br />

reflexões que nos movem em direção a<br />

uma “descolonização da educação”.<br />

Neste artigo pretendemos, então, sistematizar<br />

essas reflexões sobre a escola rural, apre-<br />

1<br />

Este artigo faz parte de um conjunto de reflexões desenvolvidas<br />

pelo autor no processo de elaboração da dissertação<br />

“O aluno da roça na escola da cidade: um estudo<br />

sobre representações e identidade”, no Curso de Mestrado<br />

em Educação e Contemporaneidade da UNEB, Campus<br />

I, Salvador. O autor agradece aqui à Profª Drª Narcimária<br />

Luz, orientadora daquela dissertação, à Profª Drª Stela<br />

Rodrigues, e ao Prof. Dr. Júlio Lobo, ambos do PEC/<br />

UNEB, pelas valiosas contribuições que vem fornecendo<br />

à referida pesquisa.<br />

2<br />

Em parágrafos adiante, ainda nesta introdução, apresentamos<br />

nossa compreensão do termo roça. Ver também o<br />

tópico 4 deste artigo.<br />

3<br />

Os municípios de Amargosa e São Miguel das Matas<br />

localizam-se numa zona fronteiriça entre as regiões do<br />

Recôncavo Sul (SEI, <strong>19</strong>98) e Vale do Jiquiriçá (SEI, <strong>19</strong>98).<br />

O primeiro possui uma população estimada em 33 mil<br />

habitantes, 11 dos quais residem em áreas rurais; o segundo<br />

tem pouco mais de 10 mil habitantes, sendo que 75%<br />

residem na zona rural.<br />

148 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003


Fábio Josué Souza Santos<br />

sentando uma crítica ao modelo pedagógico em<br />

vigor na maioria das escolas rurais baianas e<br />

apontando alternativas que vêm sendo desenvolvidas<br />

numa corrente contra-oficial em diferentes<br />

regiões do Estado da Bahia e que se<br />

configuram como uma nova forma de fazer a<br />

escola da roça, que revigora a cultura dos espaços<br />

onde ela se insere, contribuindo para uma<br />

vida mais digna para as comunidades onde estão<br />

localizadas.<br />

Utiliza-se neste artigo, o termo roça como<br />

categoria teórica importante construída na compreensão<br />

do ethos cultural que caracteriza “o<br />

rural” do Recôncavo Sul e do Vale do Jiquiriçá.<br />

Emprega-se essa expressão em substituição a<br />

outros possíveis termos (meio rural, campo, fazenda,<br />

sítio), que são utilizados como sinônimos<br />

em outras regiões do Brasil, mas que, no contexto<br />

de onde falamos, não são empregados e, assim,<br />

apresentar-se-iam destituídos de significado.<br />

A categoria teórica roça possui múltiplos sentidos<br />

que se imbricam na caracterização desse<br />

lugar e pode significar: 1) a localidade distante<br />

da cidade (assim, parece ser sinônimo de “zona<br />

rural”: “Moro na roça”); 2) pode ser referido<br />

também como sinônimo de “terreno”, propriedade<br />

(“Eu tenho uma rocinha”; “Vamos na roça<br />

de Fulano?); e 3) ainda pode se referir à plantação<br />

(“roça de milho”; “roça de mandioca;<br />

roça de feijão”). Esses múltiplos sentidos se<br />

imbricam, entrelaçam-se na vivência cotidiana<br />

do povo que nela/dela vive e, portanto, na caracterização<br />

da arkhé 4 que marca o ethos cultural<br />

da “zona rural” daquela região. Com menor freqüência,<br />

naquela região emprega-se o termo<br />

“zona rural” como sinônimo de roça (localidade),<br />

mas a expressão “zona rural”, além de menos<br />

freqüente, nos parece insuficiente para traduzir<br />

o sentido que a expressão roça carrega.<br />

2. EDUCAÇÃO RURAL 5 : A UNIVERSA-<br />

LIZAÇÃO DO MODELO URBANO<br />

O projeto de educação da Modernidade,<br />

erigido sob o princípio do universalismo, pretendeu<br />

estender, pelos quatro cantos do mundo,<br />

os ideais/preceitos da cidadania e da civilização.<br />

No seu afã civilizatório, esse projeto educacional,<br />

obcecado por uma uniformização totalitária,<br />

sufocou subjetividades e recalcou identidades,<br />

transformando o outro num mesmo. A<br />

implantação dos sistemas públicos de ensino foi<br />

um eixo importante desse projeto educacional<br />

que pretendeu uma escola única, laica e científica,<br />

capaz de levar a todos as luzes da razão<br />

iluminista. No caso brasileiro, é preciso considerar<br />

as tensões entre o cientificismo laico e os<br />

interesses da fé católica – estes de forte influência<br />

em nossa educação, mesmo após a instauração<br />

da República. Em ambas as tendências,<br />

entretanto, é uma constante a negação da<br />

subjetividade do outro, o que se faz através de<br />

um processo de homogeneização cultural. 6<br />

Vítima desse processo de uniformização, foi<br />

a escola rural condenada a imitar a escola urbana<br />

(a escola única, pública, laica, científica,<br />

universal), como decorrência de um processo<br />

histórico de isolamento. Assim, os currículos<br />

escolares das escolas rurais impõem ao(à)<br />

aluno(a) da roça um mundo imaginário, uma<br />

realidade social contrastante com as observações<br />

e vivências das quais este(a) aluno(a) é<br />

sujeito histórico. Não há preocupação em aproveitar<br />

e explorar a bagagem cultural, os recursos<br />

locais, as experiências de vida que a criança<br />

traz de casa e do meio. Ademais, o acentuado<br />

valor que o currículo escolar dá aos fatos<br />

sociais distantes e longínquos contribui, decisivamente,<br />

para aumentar o desinteresse do(a)<br />

aluno(a) pela escola e, em conseqüência disso,<br />

é grande o índice de evasão e repetência.<br />

Analisando a história da educação escolarizada<br />

no meio rural brasileiro, poderíamos afirmar<br />

que, verdadeiramente, nunca houve uma<br />

4<br />

Para uma definição de arkhé, remete-se ao tópico 4.<br />

5<br />

Para além de diferenças semânticas que os termos possam<br />

guardar, estamos utilizando, exclusivamente neste<br />

tópico, os termos rural, meio rural, zona rural, da roça,<br />

roça, como sinônimos; deixando a discussão conceitual<br />

sobre os mesmos para o tópico 4.<br />

6<br />

Santos (<strong>19</strong>95) traz uma interessante análise sobre a pilhagem<br />

política e religiosa perpetrada pelos europeus no<br />

continente americano nos séculos XVI e XVII, no capítulo<br />

6 (Modernidade, identidade e cultura de fronteira),<br />

notadamente nas páginas. 136-139.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003<br />

149


Por uma escola da roça<br />

educação rural 7 . A escola que existe na roça<br />

não tem servido para ajudar os(as) rurais a entenderem/compreenderem<br />

as contradições que<br />

marcam a sua realidade e melhorar a sua qualidade<br />

de vida; tampouco tem servido para preparar<br />

um futuro operário capacitado para inserir-se<br />

no mercado de trabalho urbano (agora<br />

mais exigente diante dos desafios postos por<br />

uma economia globalizada, marcada pela automação<br />

dos processos produtivos e pela informatização<br />

dos processos de comercialização e<br />

prestação de serviços). Na verdade, a escola<br />

existente na roça, tem-se constituído como um<br />

forte mecanismo de destruição da cultura local,<br />

através da imposição de uma cultura “urbanocêntrica”<br />

e é, por conseqüência, um fator que<br />

tem estimulado o êxodo rural. É comum, em<br />

conversas com estudantes das escolas na roça,<br />

vê-los(las) manifestar sua pretensão em deixar<br />

o meio rural e deslocar-se para a cidade. Como<br />

afirma uma professora, depoente em nossa pesquisa:<br />

“Se ele já se formou, a roça não serve<br />

mais pra ele” 8 . Outro depoente, Seu Messias,<br />

um trabalhador rural da localidade da Palmeira,<br />

analisando a realidade de seu entorno regional<br />

constata que: “Hoje ninguém mais quer trabalhar<br />

mais nin roça; (...) hoje o povo quer mais<br />

ir pra rua” 9 . Para além das repercussões de<br />

fatores culturais, políticos e econômicos que<br />

impactam sobre a agricultura brasileira/baiana,<br />

essas constatações evidenciam claramente que<br />

a escola contribui para a desestruturação da<br />

identidade do povo da roça; fortalecendo assim<br />

um imaginário depreciativo a seu respeito, e<br />

contribuindo para o êxodo rural que, apesar de<br />

reduzido nas última década, ainda se mantém<br />

de forma pontual.<br />

Para os(as) professores(as) que atuam nas<br />

escolas da roça, o livro didático (durante muito<br />

tempo o único material impresso disponível na<br />

escola rural) 10 , converte-se ainda hoje no principal<br />

instrumento que subsidia o seu fazer pedagógico.<br />

Os livros didáticos, através de seus<br />

textos e gravuras, desconsideram o homem, a<br />

mulher e a criança da roça, pois quase nunca<br />

eles são considerados nos livros didáticos! Há<br />

anos, quando apareciam, eram representados<br />

como seres sem cultura, marcados pelo estereótipo<br />

de sujeitos “atrasados”, um verdadeiro<br />

“bicho do mato que precisava ser civilizado”.<br />

Essas representações ainda persistem,<br />

mas nos últimos anos tem-se visto o espaço rural<br />

ser apresentado como um local destinado às<br />

monoculturas de exportação, ao agronegócio,<br />

ou seja, privilegia-se a perspectiva dos detentores<br />

da propriedade da terra, dos empresários<br />

do setor agropecuário, que estão preocupados<br />

com o estímulo à tecnologia e com o espírito<br />

empreendedor. Essa “afirmação” do “novo<br />

mundo rural” vem de Couto Filho (<strong>19</strong>99) e contrasta<br />

com a realidade concreta que marca o<br />

meio rural das regiões do Recôncavo Sul baiano<br />

e do Vale do Jiquiriçá, onde se situa o município<br />

de Amargosa. Tais regiões se caracterizam pela<br />

existência de pequenas propriedades, destinadas<br />

à agricultura de subsistência<br />

A ausência de políticas educacionais que<br />

atendessem às especificidades do meio rural<br />

brasileiro, levou a escola da roça a uma tentativa<br />

de imitação da escola urbana (LEITE, <strong>19</strong>99).<br />

Os calendários letivos, o regime de organização<br />

das turmas e do ensino (seriação), as disciplinas<br />

e os conteúdos escolares, os métodos e<br />

as técnicas de ensino que pautam o ensino rural,<br />

inspiram-se no modelo escolar urbano e toda<br />

luta do(a)a professor(a) é para buscar aplicá-lo<br />

com a maior eficiência possível. Daí a frustração<br />

quando os(as) alunos(as) em tempo de safras<br />

agrícolas se evadem das escolas ou por lá<br />

não aparecem às sextas-feiras, vésperas das<br />

feiras que acontecem aos sábados nas cidades;<br />

7<br />

Vários autores apresentam essa tese: Leite (<strong>19</strong>99);<br />

Kolling, Nery e Molina (<strong>19</strong>99); Arroyo e Fernandes<br />

(<strong>19</strong>99); Ribeiro (2000). Arroyo (<strong>19</strong>99) observa que o que<br />

houve foi uma escola urbana no ‘campo’ e não uma escola<br />

do ‘campo’ (Cf. ARROYO; FERNANDES, <strong>19</strong>99).<br />

8<br />

Afirmação feita por Gilmara Santos Reis, 25 anos, exaluna<br />

de escola rural, hoje residente na cidade e professora<br />

numa escola municipal, multisseriada, localizada na<br />

zona rural. Depoimento dado em 20 jun. 2003.<br />

9<br />

A referência ao termo “rua” como sinônimo de cidade é<br />

uma constante entre os moradores das várias localidades<br />

rurais de Amargosa.<br />

10<br />

Alerto para o cuidado que se deve ter para não tomar<br />

essa afirmação como carência; na roça, prevalecem as formas<br />

de comunicação que se fundamentam fortemente na<br />

oralidade.<br />

150 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003


Fábio Josué Souza Santos<br />

daí a angústia de ensinar em classes multisseriadas<br />

onde os(as) alunos(as) não estão na<br />

mesma série e a turma não é homogênea (para<br />

os que defendem a seriação como solução para<br />

a escola rural, cabe aqui o questionamento se<br />

algum dia existiu uma turma de alunos iguais?);<br />

daí a dificuldade de fazer pesquisas em materiais<br />

escritos (revistas, jornais, panfletos), quando<br />

estes não existem na roça. A escola na roça,<br />

não sendo a mesma da escola urbana em seu<br />

contexto e condições infra-estruturais, é pensada<br />

como uma anomalia. Assim, o contexto<br />

rural, olhado pelos olhos urbanos, é de uma carência<br />

total, é o lugar onde tudo falta. É preciso<br />

assumir a escola da roça como ela é, o que não<br />

significa deixar de lutar, incansavelmente, para<br />

que ela um dia possa oferecer a seus(suas)<br />

professores(as) e alunos(as) o mínimo de dignidade<br />

possível.<br />

3. DIVERSIDADE CULTURAL E EDU-<br />

CAÇÃO (DA ROÇA)<br />

Entendemos ser importante colocar que a<br />

defesa que aqui se faz da cultura rural, através<br />

da defesa de uma escola da roça, não se situa<br />

nem nas esferas dos ditames econômicos neoliberais,<br />

que advogam uma reestruturação da<br />

escola rural com vistas a preparar um trabalhador<br />

mais afinado às exigências dos processos<br />

produtivos reclamados pela modernização da<br />

agricultura nestas últimas décadas, conforme<br />

parece advogar Couto Filho (<strong>19</strong>99), nem se<br />

enquadra no âmbito de uma visão liberal do<br />

multiculturalismo que advoga, tão-somente, a<br />

tolerância e o respeito pela cultura dos grupos<br />

excluídos; nem tampouco situa-se dentro do que<br />

Sousa Santos (apud MOREIRA, 2002, p.21)<br />

chama de “cultura de testemunho”, que contribui<br />

para isolar grupos, criar guetos, sustentando<br />

um novo apartheid cultural. A perspectiva<br />

aqui defendida assemelha-se ao que propõe<br />

Moraes (<strong>19</strong>99, p.15), quando coloca que, ao se<br />

levantar uma crítica ao modelo de escola vigente<br />

no meio rural:<br />

... não se pretende consagrar, venerar ou cultuar<br />

os conhecimentos dos agricultores, com saudosismo<br />

e romantismo. Busca-se apenas fomentar<br />

a interação crítica entre o conhecimento elaborado<br />

pelos agricultores e o elaborado pelos acadêmicos<br />

ou pelos cientistas.<br />

Na perspectiva que estamos colocando, entendemos<br />

ser, então, necessário problematizar<br />

as condições culturais e as relações de poder<br />

imbricadas num processo em que, historicamente,<br />

excluíram e continuam a excluir, e a silenciar,<br />

as manifestações culturais de certos grupos,<br />

em benefício de outros. É preciso, portanto,<br />

ter cuidado com as pretensões supostamente<br />

inclusivas e democráticas do multiculturalismo<br />

liberal (ou neoliberal?).<br />

Vários autores, como Hall (<strong>19</strong>97), Fleuri<br />

(2002) e Moreira (2002), têm apontado que o<br />

reconhecimento da existência da pluralidade cultural<br />

é consensual nos tempos atuais e, nesse<br />

sentido, o “... discurso em defesa do pluralismo<br />

cultural, do multiculturalismo ou ainda da diversidade<br />

cultural, vem sendo reiteradamente incluído<br />

em documentos oficiais referentes a políticas<br />

de currículo nacional de diferentes países”<br />

(LOPES, 2000, p.1). Entretanto, esses termos<br />

são ambíguos e enganadores e, sob cada um<br />

desses rótulos, cabem perspectivas as mais diversas.<br />

Moreira (2002), analisando o multiculturalismo,<br />

termo que tem sido mais presente nas<br />

produções que discutem a questão da diversidade<br />

cultural, reporta-se a Stoer e Cortesão (<strong>19</strong>99)<br />

para distinguir duas grandes perspectivas teóricas.<br />

A primeira perspectiva, segundo Moreira<br />

(2002, p.18), o multiculturalismo benigno, “... restringe-se<br />

a identificar as diferenças e a estimular<br />

o respeito, a tolerância e a convivência entre<br />

elas”; na outra perspectiva, encontra-se o<br />

multiculturalismo crítico, cujo propósito é “...<br />

desestabilizar as relações de poder envolvidas<br />

nas situações em que as diferenças coexistem”.<br />

Lopes (2000), por sua vez, afirma que a aceitação<br />

da pluralidade cultural pode ser concebida<br />

num contexto de conflitos ou num contexto de<br />

consenso. Esses autores chamam atenção para<br />

um aspecto nem sempre considerado nas discussões<br />

sobre o multiculturalismo: a associação<br />

entre diferenças culturais e relações de poder.<br />

Nesse sentido, o princípio da diversidade<br />

cultural aqui advogado, quando concerne à esco-<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003<br />

151


Por uma escola da roça<br />

la rural, implica uma necessária problematização<br />

das diferenças, identificando, no contexto<br />

social, seu conteúdo, interrogando-se seu<br />

porquê; e, igualmente, as formas como elas foram/são<br />

(re)construídas e mantidas e/ou transformadas.<br />

Implica também aperceber-se das<br />

conseqüências desse processo, bem como das<br />

possibilidades e oportunidades de diálogo com<br />

outras culturas.<br />

O homem, a mulher e a criança da roça estão<br />

permanentemente expostos a um processo<br />

de colonização cultural que nega seus valores,<br />

sua cultura, sua memória, sua identidade. Afirma<br />

Arroyo (<strong>19</strong>99, p.29): “A cultura hegemônica<br />

trata os valores, as crenças, os saberes do campo<br />

ou de maneira romântica, ou de maneira depreciativa,<br />

como valores ultrapassados, como<br />

saberes tradicionais, pré-científicos, pré-modernos”.<br />

Entender a produção histórica desse processo,<br />

promover o resgate da memória cultural<br />

do povo da roça e a valorização de seus marcadores<br />

culturais parece ser uma tática importante<br />

na afirmação da identidade cultural da<br />

criança, do jovem, do adulto, do velho, do homem<br />

e da mulher da roça, objetivando-se contribuir<br />

para que eles se assumam como sujeitos<br />

históricos, produtores de cultura. Assim, entendemos<br />

ser necessário abrir espaço para o resgate<br />

do saber popular (músicas, brincadeiras, festas<br />

populares, comidas, ervas medicinais, conhecimento<br />

sobre o meio, técnicas de trabalho, etc.)<br />

e de práticas culturais que têm sido aniquiladas<br />

através de um perverso processo de homogeneização<br />

cultural que vem sendo levado a cabo<br />

há algumas décadas na zona rural e que, na última<br />

década, se expande e se intensifica de forma<br />

totalitária sob a influência da televisão.<br />

Mas os processos de homogeneização cultural<br />

não correm em águas tão tranqüilas. Como<br />

apontam autores como Hall (<strong>19</strong>97) e Moreira<br />

(2002), os processos de homogeneização cultural<br />

não são assim tão lineares. Stuart Hall<br />

(<strong>19</strong>97, p.<strong>19</strong>) afirma que “... todos sabemos que<br />

as conseqüências dessa revolução cultural global<br />

não são nem tão uniformes, nem tão fáceis<br />

de ser previstas da forma como sugerem os<br />

‘homogeneizadores’ mais extremos”.<br />

4. POR UMA ARKHÉ DA ROÇA<br />

4.1. Rompendo com as categorias<br />

de análise<br />

Os aportes teóricos oferecidos pelas leituras<br />

que temos feito no âmbito de nosso curso,<br />

tais com Luz (<strong>19</strong>99; 2000), Foucault (<strong>19</strong>99;<br />

2002), Martins, (2000), Favero e Santos (2002),<br />

entre outros, têm-nos nos permitido inverter as<br />

lógicas de análises pautadas em conceitos tributários<br />

das metanarrativas que pretendem esquadrinhar<br />

os objetos de análise em conceitos<br />

pré-estabelecidos e congelar a diversidade e a<br />

fluidez que pulsam na vida cotidiana.<br />

Narcimária Luz, buscando romper com análises<br />

ancoradas em valores neocoloniais e imperialistas,<br />

tem recorrido à noção de arkhé para<br />

compreender outros continentes teórico-epistemológicos<br />

que se afastam da racionalidade ocidental.<br />

Nessa perspectiva, compreende arkhé<br />

como “... princípios inaugurais que estabelecem<br />

sentido, forças e dão pulsão às formas de linguagem<br />

estruturadoras da identidade; princípiocomeço-origem”<br />

(<strong>19</strong>99, p. 49).<br />

Assim, para falarmos de nosso lugar, da<br />

arkhé da regiões do Recôncavo Sul e do Vale<br />

do Jiquiriçá, as contribuições de Foucault (<strong>19</strong>99;<br />

2002) e de Martins (2000) revelam-se de suma<br />

importância. O primeiro, por demolir a idéia de<br />

linearidade e, em seu lugar, chamar a descontinuidade,<br />

a imprevisibilidade e o acontecimento<br />

para explicar a realidade; o segundo, por permitir-nos<br />

compreender a roça como o marginal,<br />

o residual, forjado na forma “anômala” como<br />

a Modernidade se materializou no Brasil. Assim,<br />

Foucault e Martins nos oferecem subsídios<br />

para entender que, embora o Brasil tenha<br />

suas origens no meio rural, em determinado<br />

momento de sua história, o rural passa a ser<br />

negado, passa a ser considerado um ‘não lugar’<br />

11 . Mas não é todo o rural que se nega; o<br />

11<br />

Speyer (<strong>19</strong>83) aponta a chegada da Família Real ao<br />

Brasil, em 1808, como o marco inicial desse processo de<br />

desvalorização do rural. Queirós (<strong>19</strong>78) indica as décadas<br />

de 20 e 30 do século XIX como o período em que a<br />

separação entre o rural e o urbano já adquire uma certa<br />

consistência, consolidando-se nas décadas seguintes.<br />

152 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003


Fábio Josué Souza Santos<br />

que se nega é uma determinada face do rural: a<br />

roça, o rural dos pequenos, dos fracos, dos pobres,<br />

da agricultura de subsistência; aquilo que<br />

foi posto à margem pelo afã do ‘progresso’ capitalista<br />

que a Modernidade pretendeu instituir<br />

entre nós. A roça, por ser o residual, passa então<br />

a ser considerado um ‘não lugar’; ou, pelo<br />

menos, um lugar que deveria, pela mão assistencialista<br />

e interventora do Estado, ser transformado,<br />

ser convertido, ser eliminado, retirando-se,<br />

assim, da Nação os entraves ao nosso<br />

desenvolvimento: o povo rude, apegado às tradições<br />

e a valores comunitários; avessos, portanto,<br />

à lógica economicista-produtivista-prometeica-individualista<br />

que a Modernidade, vestida<br />

aqui com o manto de um capitalismo subdesenvolvido,<br />

pretendia imprimir entre nós.<br />

Nesse sentido, como apontamos acima, autores<br />

como Foucault (<strong>19</strong>99; 2002) e Martins<br />

(2000) vazam a “bacia semântica” elaborada<br />

ora sob as luzes da racionalidade européia, ora<br />

nos centros de ilustração acadêmica do eixo<br />

industrializado do País (o Sul-Sudeste) e que,<br />

até então, era ‘importada’ enquanto conceitos<br />

para explicar as realidades residuais... Assim,<br />

categorias como “campo”, “meio rural”, “fazenda”,<br />

“camponês”, “campesino”, “campesinato”,<br />

“caipira” eram forçosamente utilizadas<br />

para dar conta de uma realidade que se<br />

nutria de outras formas de arkhé. Essas categorias<br />

são aqui, no contexto baiano, especificamente<br />

nas regiões do Recôncavo Sul e do Vale<br />

do Jiquiriçá, destituídas de significado; soamnos<br />

estranhas, deslocadas, como estaremos<br />

especificando no tópico a seguir.<br />

4.2. As especificidades do rural no<br />

contexto de Amargosa: “Nem campo,<br />

nem fazenda, isso aqui é roça<br />

mesmo, seu professor!”<br />

O desajuste entre as categorias teóricas<br />

importadas pela Universidade de outros contextos<br />

e a realidade local evidencia-se na ausência<br />

dos referidos termos no linguajar popular<br />

utilizado na região. Em nossa pesquisa, quando<br />

percebemos a dissonância entre o dizer da<br />

universidade e o dizer do povo, detivemo-nos<br />

em indagar os moradores da zona rural sobre<br />

essa questão, a escutar as vozes daqueles em<br />

nome de quem a universidade arrogantemente<br />

se arvora a se pronunciar. D. Maria, 68 anos,<br />

moradora da localidade da Palmeira, município<br />

de Amargosa, indagada sobre “como o povo<br />

chama as terras daqui?”, categoricamente<br />

responde: “Nem campo, nem fazenda, isso<br />

aqui é roça mesmo, seu professor!”.<br />

Nesse sentido, pontuamos que uma pesquisa<br />

que se proponha a discutir a realidade da<br />

zona rural baiana, especificamente nas regiões<br />

do Recôncavo Sul e Vale do Jiquiriçá, não deve<br />

desconsiderar a riqueza de significado que o<br />

termo roça abarca. Assim, em nossos trabalhos,<br />

o termo roça emerge de uma expressão<br />

muitas vezes usada pejorativamente, para assumir<br />

o significado de uma categoria teórica<br />

fundamental na contextualização e na compreensão<br />

da realidade sobre a qual nos temos debruçado.<br />

Em substituição a fazenda (utilizado<br />

em todo o País e que, para nós, tem sido reservado<br />

para nomear grandes propriedades), a sítio<br />

(reservado para se referir a pequenas propriedades,<br />

mas raramente usado entre nós) e,<br />

ainda, a campo (muito utilizado no Sul, Sudeste<br />

e Centro-Oeste do País), a opção pelo emprego<br />

do termo roça se faz não apenas por uma<br />

diferença etimológica ou uma regionalidade lingüística.<br />

Mais que isso, há uma diferença, diríamos,<br />

epistemológica! Tentamos, adiante, estabelecer<br />

a distinção entre os termos fazenda,<br />

sítio, campo e roça, buscando conceitualizálos,<br />

justificando, por fim, a opção pelo emprego<br />

deste último.<br />

No contexto regional onde se situa o município<br />

de Amargosa, a expressão “fazenda” parece<br />

reportar-se a médias ou grandes propriedades,<br />

geralmente destinadas à monocultura,<br />

com fins de comercialização. Para as propriedades<br />

destinadas à produção menor, em pequena<br />

escala e que ocorre de forma variada e simultânea<br />

em um mesmo “pedaço de terra”,<br />

costuma-se chamar “roça”. Assim, a roça é a<br />

pequena propriedade, geralmente destinada ao<br />

cultivo de variadas lavouras de pequena importância<br />

econômica, destinada à subsistência. Do<br />

que se colhe na roça, tira-se uma parte para a<br />

alimentação e a outra é vendida na cidade, nas<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003<br />

153


Por uma escola da roça<br />

feiras nos dias de sábado. Com o dinheiro adquirido,<br />

compra-se o que, sendo necessário à<br />

subsistência, não é disponível na roça/não é oferecido<br />

pela roça: são panelas, copos, açúcar,<br />

óleo, arroz, carne, pão, bolacha, manteiga, roupas,<br />

sapatos e até eletro-domésticos (principalmente<br />

TV e geladeira), que hoje, com a chegada<br />

da energia elétrica, começam a ter presença<br />

nas casas da roça.<br />

A distinção entre fazenda e roça parece tornar-se<br />

mais clara quando substantivada. Fala-se<br />

em “fazenda de gado”, “de cacau”, “de café”<br />

(esta em menor importância hoje, mas muito forte<br />

no passado regional); mas não se fala “fazenda<br />

de mandioca”, “de laranja”, “de cana”, “de<br />

banana”, “de melancia”; estas são roças!<br />

Como fazenda são grandes propriedades, em<br />

oposição a estas, há também quem se refira à<br />

roça como sítio. Seu Josué Prezídio, 59 anos,<br />

dono de uma pequena propriedade rural registrada<br />

no INCRA sob denominação de “Sítio Palmeira”,<br />

assim explica: “Fazenda é de 100<br />

hectária, de 50 prá cima. Terreno pequeno é<br />

sítio! O povo é que tem essa besteira de ter 2<br />

tarefa de terra e dizer que é fazenda.” Questionado<br />

por que “sítio”, se este é um termo raramente<br />

utilizado na região, ao contrário de roça,<br />

ele responde: “Tanto faz dizer ´roça` como dizer<br />

´sítio`. O povo usa mais ´roça` porque já acostumou<br />

dizer que vai pra roça”. 12<br />

O termo “campo”, por sua vez, parece remeter-nos<br />

a grandes extensões de terras que,<br />

às vezes, congregam várias e grandes propriedades,<br />

cortadas por pastos, lavouras, rios, colinas<br />

e um verde abundante. Não serve, pois, para<br />

demonstrar os tabuleiros secos da caatinga (ao<br />

norte e ao oeste de Amargosa), onde, nos meses<br />

de agosto a maio, só se visualiza o licuri, as<br />

palmas e o mandacaru (Que campo poderá por<br />

aí existir?!). Igualmente, não serve para nomear<br />

as pequenas propriedades da região geográfica<br />

mais chuvosa e de clima mais ameno, localizada<br />

ao leste e ao sul do município.<br />

Os fazendeiros, grandes proprietários, geralmente<br />

moram na cidade. Muitos deles são<br />

comerciantes ou funcionários públicos. Suas<br />

propriedades foram adquiridas no contexto da<br />

crise do café (principalmente a partir da década<br />

de 50 do século XX), quando se notabilizou<br />

uma concentração de terra no município. Naquele<br />

contexto, pequenas propriedades (roças)<br />

eram compradas e anexadas formando uma<br />

fazenda (geralmente para pecuária e, mais tarde,<br />

cacau), destinada à especulação financeira.<br />

O acima exposto serve para irmos definindo<br />

o que vem a ser o “aluno da roça”, sujeito<br />

sobre o qual o trabalho da escola pretende<br />

incidir. O “aluno da roça” é, assim, um aluno<br />

pobre, filho de pequenos proprietários ou de pais<br />

que não possuem nenhuma terra. Mais que isso,<br />

é filho da roça porque cresce na lida, nas lavouras,<br />

debaixo dos pés de mandioca, nas casas-de-farinha<br />

e pelo meio das roças plantadas<br />

ou cuidadas por seus pais. Tem, portanto, toda<br />

uma vivência com a terra, uma relação simbiótica<br />

com esta... onde a enxada e o facão são<br />

instrumentos presentes. Nessa relação, produzse<br />

toda uma riqueza de conhecimentos sobre<br />

as técnicas de plantio, de limpa, de colheita; saberes<br />

sobre o tempo de plantar e de colher, o<br />

meio ambiente, a utilidade de cada planta, etc.<br />

O aluno da roça, filho do homem que lavra a<br />

terra, é também um lavrador-infante, porque da<br />

sua lavra na roça é que tira o seu sustento (daí<br />

ter que “ajudar os pais”, como fazem muitos<br />

dos sujeitos com os(as) quais tivemos contatos<br />

nessa pesquisa). O aluno da roça não é o filho<br />

do fazendeiro. O filho do fazendeiro, mesmo<br />

que nascido na zona rural, não pode ser um filho<br />

da roça, pois que não trabalha, vive na mordomia<br />

da “Casa Grande” e não tem uma vivência<br />

concreta com a terra, o facão e a enxada.<br />

Os filhos de fazendeiros são poucos e estes,<br />

geralmente, residem na cidade e estudam em<br />

escolas particulares. Para esses sujeitos, uma<br />

outra formação é pensada: quando crescem,<br />

“vira dotô!”<br />

12<br />

Entrevista realizada em 04 abril 2003. Por ser realizada<br />

de forma imprevista, na oportunidade, a entrevista não<br />

pôde ser gravada. Entretanto, com a anuência do entrevistado,<br />

suas falas foram anotadas.<br />

154 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003


Fábio Josué Souza Santos<br />

5. EXPERIÊNCIAS ALTERNATIVAS DE<br />

EDUCAÇÃO RURAL: CONTRIBUIÇÕES<br />

PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA “ES-<br />

COLA DA ROÇA”.<br />

A caracterização feita no tópico anterior sobre<br />

o contexto agrário do município de Amargosa<br />

e que, de certa forma, retrata a especificidade<br />

das regiões do Recôncavo Sul e do Vale<br />

do Jiquiriçá 13 , coloca para as escolas da roça<br />

desafios que precisam urgentemente ser encarados<br />

com muita coragem, sob pena de se continuar<br />

a repetir o erro histórico de se negar, a uma<br />

parcela significativa dos pobres e dos excluídos<br />

(neste caso, aqueles que residem na roça), a<br />

possibilidade de construir uma vida digna. Para<br />

estes, que estiveram e estão à margem do urbano<br />

(e talvez esta seja mesmo a melhor opção!),<br />

a escola não pode continuar a ser o que sempre<br />

foi: o lócus privilegiado de efetivação de uma<br />

pedagogia reguladora, visando, conforme<br />

Narcimária Luz (2002, p.31), “... tomar a criança<br />

pela mão e controlá-la e conduzi-la no sentido<br />

do que é bom para o serviço público”, ou seja,<br />

“um doutor”, o que equivale, nas palavras da<br />

mesma autora (<strong>19</strong>99, p.63), a formar “... o sujeito<br />

produtor e consumidor, submetido ao paradigma<br />

iluminista e positivista sustentado pelas chefarias<br />

que acreditam ser a ordem e o progresso ‘a única<br />

razão e objetivo da ordem social’ ”. É preciso,<br />

então, substituir a escola na roça por uma<br />

escola da roça! Esta, evidentemente, só pode<br />

ser feita com a participação efetiva daqueles que<br />

seriam os seus maiores beneficiários: os homens,<br />

mulheres, crianças, jovens, velhos e velhas que,<br />

entendendo o clima, os ventos, as chuvas, o solo,<br />

limpando o mato, cavando a terra, plantando a<br />

semente e molhando o broto, vivem “conforme<br />

a terra dá”, e, assim, resistem e não se rendem<br />

a um modelo de sociedade que, considerando-os<br />

inferiores, atrasados, querem vê-los extintos,<br />

para, no lugar das roças que lavram com suas<br />

enxadas e de onde tiram o seu sustento, ver crescer<br />

os campos arados por tratores operados por<br />

computadores e destinados à monocultura ou à<br />

pecuária, o que, certamente, traria muita satisfação<br />

aqueles que são obcecados pelos recordes<br />

de produção agrícola.<br />

Mas, se esta escola da roça só pode ser<br />

construída com a participação do povo da roça,<br />

isso não significa que nada possa ser mobilizado<br />

nos espaços urbanos. A Universidade, lócus<br />

privilegiado da crítica e da produção do conhecimento,<br />

deve ter essa responsabilidade e deve<br />

mesmo estar preocupada em produzir um conhecimento<br />

que, conforme defende Gatti (2003),<br />

tenha impacto, tenha “aderência social” 14 .<br />

O fértil contexto contemporâneo onde explodem<br />

as identidades recalcadas, reclamando<br />

agora seu espaço, é lugar propício para serem<br />

(re)pensadas as práticas educativas vigentes na<br />

Modernidade, com vistas a desestabilizar o<br />

modelo secular de educação escolar que ainda<br />

impera no cenário político-social deste início de<br />

milênio.<br />

Assim, no que diz respeito à educação rural,<br />

não obstante ainda prevalecer oficialmente o<br />

modelo homogeneizador urbanocêntrico acima<br />

descrito, profícuas experiências, construídas conjuntamente<br />

com o povo da roça, já vêm sendo<br />

realizadas em diferentes regiões brasileiras. Na<br />

Bahia, as experiências desenvolvidas pelo<br />

IRPAA (Instituto Regional da Pequena Agropecuária<br />

Apropriada) 15 , localizado em Juazeiro;<br />

pelo MOC (Movimento de Organização Comunitária),<br />

sediado em Feira de Santana; pelas Escolas<br />

das Famílias Agrícolas espalhadas em 23<br />

municípios do Estado; e ainda pelo MST em vários<br />

acampamentos e assentamentos rurais<br />

baianos; são exemplos de esforços que buscam<br />

construir uma escola vinculada à cultura, aos interesses<br />

e às necessidades do povo da roça.<br />

O IRPAA, que tem um trabalho voltado para<br />

o semi-árido e cujo objetivo maior “... não é<br />

enfrentar as secas, mas saber conviver com<br />

13<br />

Sobre o Recôncavo Sul, conferir Santana (<strong>19</strong>98), Souza<br />

(<strong>19</strong>99) e Oliveira (2000). Sobre o Vale do Jiquiriçá, ver<br />

SEI, 2000; confira-se, também, o texto de Milton Santos<br />

A região de Amargosa (<strong>19</strong>63).<br />

14<br />

Fala na Mesa-redonda “A pesquisa em educação nas<br />

regiões Norte e Nordeste”, proferida em 11/06/2003, durante<br />

o XVI EPENN-Encontro de Pesquisa Educacional<br />

do Norte e Nordeste, realizado em São Cristóvão-SE.<br />

15<br />

Maiores informações sobre o IRPAA podem ser consultadas<br />

no site: www.irpaa.org.br<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003<br />

155


Por uma escola da roça<br />

elas”, tem como uma de suas linhas de ação o<br />

trabalho com a formação de professores e professoras<br />

que se faz através de uma “inversão<br />

curricular”, que tenciona rever o conteúdo que<br />

se ensina na escola, a forma e principalmente<br />

sua intencionalidade buscando: a) tornar a escola<br />

um espaço de novas aprendizagens mais<br />

significativas e prazerosas; b) desfazer a cultura<br />

historicamente produzida que criou inúmeros<br />

conceitos e pré-conceitos e produziu diversos<br />

estereótipos (FREITAS, 2002, p. 4). Os<br />

resultados desse trabalho revelam que a escola<br />

passa a ter um outro nível de relacionamento<br />

com a comunidade, passando a ser um espaço<br />

que não só disponibiliza novos conhecimentos,<br />

mas converte-se num espaço de reflexão e criação<br />

de formas de intervenção e transformação<br />

da realidade onde se insere. Conforme testemunha<br />

Freitas (2002, p.6), com o desenvolvimento<br />

da experiência do IRPAA:<br />

Em algumas comunidades (...) a escola tem sido<br />

um dos principais instrumentos que têm modificado<br />

a dinâmica de vida destas comunidades,<br />

algumas que inclusive se encontravam em processo<br />

de despovoamento, após a escola, ganharam<br />

um outro tipo de vida e passaram a ser mais<br />

movimentadas e divertidas.<br />

Merece destaque também a proposta pedagógica<br />

“CAT” (Conhecer, Analisar e Transformar)<br />

desenvolvida pelo MOC em parceria com<br />

a Universidade Estadual de Feira de Santana,<br />

nos municípios de Santa Luz, Santo Estêvão,<br />

Retirolândia e Valente (MOC, <strong>19</strong>99). Trata-se<br />

de um trabalho de capacitação de professores<br />

rurais que tem como princípio metodológico o<br />

respeito à cultura local, partindo-se “... da realidade<br />

concreta em que vivem as crianças”,<br />

para, em seguida, ampliar criticamente “... seu<br />

universo de conhecimento e (...) contribuir para<br />

a inserção da criança, do professor e sua comunidade<br />

no mundo” (MOC, <strong>19</strong>99, p. 9). Elaborada<br />

a partir da PER (Proposta de Educação<br />

Rural) desenvolvida no Estado de Pernambuco<br />

desde os anos 70 do século XX, e (re)elaborada<br />

à medida que se desenvolvia, a proposta do<br />

MOC (CAT - Conhecer, Analisar e Transformar),<br />

metodologicamente, desenvolve-se em<br />

três fases:<br />

1) “O Conhecer: observar, ver, levantar dados<br />

da realidade”;<br />

2) “O Analisar: desdobrar, confrontar, sistematizar,<br />

desenvolver o conhecimento produzido<br />

pelos alunos e alunas e elevá-lo a um<br />

novo patamar”;<br />

3) “O Transformar: agir, vivenciar, intervir na<br />

realidade a partir dos novos conhecimentos<br />

produzidos” (MOC, <strong>19</strong>99, p.22-25).<br />

No desdobramento dessas fases, há uma<br />

preocupação com um calendário letivo que esteja<br />

adequado ao calendário agrícola, de forma<br />

que a escola tire o melhor proveito do trabalho<br />

agrícola desenvolvido nas comunidades da roça,<br />

e que estas, por sua vez, possam fazer proveito<br />

dos conhecimentos mais gerais (re)construídos/<br />

(re)elaborados na escola. Além disso, há uma<br />

constante problematização da questão ambiental/ecológica,<br />

a valorização do material disponível<br />

no meio rural e a inserção da pesquisa como<br />

elemento fundamental do trabalho escolar. Nesse<br />

sentido, todos são aprendizes e não há apenas<br />

um que ensina e outros que aprendem<br />

(MOC, <strong>19</strong>99).<br />

Rodrigues (2002), analisando o Projeto Pedagógico<br />

do MST em dois assentamentos rurais<br />

no município de Vitória da Conquista, sudoeste<br />

baiano, constata que a configuração que<br />

as práticas educativas assumem nas escolas<br />

daqueles assentamento, difere das práticas desenvolvidas<br />

nas demais escolas rurais da rede<br />

oficial de ensino daquele município.<br />

A questão que julgamos interessante trazer<br />

aqui sobre o que diferencia a escola dos assentamento<br />

ligados ao MST das demais escolas da<br />

zona rural é no que tange aos conteúdos e métodos<br />

de trabalho. Este grupo trabalha com redes<br />

temáticas, levantando em reunião com toda<br />

a comunidade os temas que consideram importantes<br />

estar tratando na escola. A partir daí, o<br />

grupo de professores elege os temas geradores<br />

e constrói o programa do curso, associando os<br />

temas aos conteúdos oficiais considerados importantes<br />

para a formação do grupo e seu intercâmbio<br />

com a sociedade urbana. Consideram<br />

a realidade do assentado como sendo importante,<br />

além de dar voz e liberdade ao educando<br />

e ao educador, despertando-os para o<br />

156 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003


Fábio Josué Souza Santos<br />

sentimento de participação na vida social, resgatando<br />

a sua auto-estima. (...) Além de valorização<br />

da realidade socioeconômica e política, o<br />

lúdico é trabalhado, mediante o resgate da memória<br />

cultural dessas comunidades rurais, com<br />

as cantigas populares e de roda, transmitidas<br />

de geração em geração, e ainda com os festivais<br />

de música e poesia, torneios de futebol ...<br />

(RODRIGUES, 2002, p 177-178).<br />

Essas experiências são testemunhas de uma<br />

luta para se construir uma escola alternativa,<br />

uma escola que vá além do papel que lhe foi<br />

conferido na Modernidade: transmitir conhecimentos<br />

(eurocêntricos) ditos universais e docili-<br />

zar os corpos visando integrá-los à lógica<br />

‘prometeico-produtivista’ (LUZ, <strong>19</strong>99). São<br />

exemplos de luta... e de esperança porque nutrem<br />

os desejos de transformações e nos encorajam<br />

para desestabilizar os pilares da escola<br />

moderna: ocidental, branca, católica, machista,<br />

urbana; e construir outras escolas... agora, plurais.<br />

Em específico, essas experiências servem<br />

de inspiração para a construção de uma escola<br />

alternativa (da roça), que não afaste os alunos<br />

da sua realidade, respeite as atividades desenvolvidas<br />

em sua comunidade e contribua para a<br />

construção de uma vida mais digna para os lavradores<br />

e lavradoras.<br />

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157


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Recebido em 28.05.03<br />

Aprovado em 29.07.03<br />

158 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003


Júlio César Lobo<br />

EUROCENTRISMO, POLÍTICA EXTERNA<br />

NORTE-AMERICANA E FUNDAMENTALISMO ISLÂMICO<br />

NO FILME INGLÊS COM AS HORAS CONTADAS<br />

Júlio César Lobo *<br />

RESUMO<br />

O objetivo principal desse texto é discutir as representações do<br />

fundamentalismo islâmico frente ao eurocentrismo, aos petrodólares e à<br />

política externa norte-americana, sob a ótica de um repórter inglês, no<br />

filme Com as Horas Contadas (Deadline, ING.,<strong>19</strong>88, dirigido por<br />

Richard Stroud) partindo-se da hipótese de que as diferenças culturais,<br />

religiosas e raciais são tão importantes na construção de pontos de vista<br />

quanto as categorias econômicas, sociais e políticas. Tomamos como<br />

referenciais para a nossa abordagem ensaios de Barraclough (<strong>19</strong>64),<br />

sobre História Contemporânea; Genette (<strong>19</strong>76), sobre Narratologia;<br />

Michalek (<strong>19</strong>89), sobre os árabes no cinema internacional; e Said (<strong>19</strong>96),<br />

sobre Multiculturalismo Crítico. Esse filme revela, entre outras coisas,<br />

um diferencial na representação dos povos árabes: a antiga representação<br />

da Arábia como um palco exclusivo de uma “sexualidade exuberante”<br />

– quase sempre associada a seqüestro, ciúme, revanche e escravidão<br />

– cede lugar nesse filme à representação de perfídia, traição e revoltas,<br />

traços muito freqüentes na maioria dos filmes ocidentais que têm<br />

árabes como protagonistas, coadjuvantes ou personagens secundárias.<br />

Esse ensaio é parte de uma pesquisa intitulada “O correspondente<br />

estrangeiro em situações de comunicação intercultural no cinema<br />

internacional, <strong>19</strong>68-<strong>19</strong>88”, desenvolvida entre os anos de <strong>19</strong>98 e 2001<br />

na Universidade de São Paulo e na Universidade do Texas em Austin<br />

(EUA), em que analisamos também os seguintes filmes: Os Boinas Verdes<br />

(The Green Berets, EUA, <strong>19</strong>68), O Ano em que Vivemos em Perigo<br />

(The Year of Living Dangerously, AUST.,<strong>19</strong>84), Gritos do Silêncio<br />

(The Killing Fields, ING, <strong>19</strong>82) e Passageiro, Profissão: Repórter (The<br />

Passenger, FR/ITA, <strong>19</strong>75).<br />

Palavras-chave: Cinema inglês – Eurocentrismo – Fundamentalismo<br />

islâmico<br />

*<br />

Licenciado em Letras Vernáculas (UFBA,<strong>19</strong>78), bacharel em Jornalismo (UFBA, <strong>19</strong>82), mestre em Comunicação<br />

e Cultura Contemporâneas (UFBA, <strong>19</strong>93) e doutor em Ciências da Comunicação (USP, 2002). Atualmente<br />

é membro do quadro permanente do Mestrado em Educação e Contemporaneidade da UNEB e dos<br />

cursos de graduação de Comunicação da UFBA e da UNEB. Endereço para correspondência: Universidade<br />

do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas, Campus I, Estrada das Barreiras, s/n, Narandiba –<br />

41150.350 Salvador, BA. E-mail: jceslobo@hotmail.com.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003<br />

159


Eurocentrismo, política externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme inglês Com as horas contadas<br />

ABSTRACT<br />

EUROCENTRISM, NORTH-AMERICAN POLITICS AND ISLA-<br />

MIC FUNDAMENTALISM IN THE ENGLISH FILM DEADLINE<br />

The main objective of this text is to discuss the representations of the Islamic<br />

fundamentalism against the Eurocentrism, the petrodollars and the North-<br />

American external politics, under the optics of an English reporter, in the<br />

film Deadline (ING.,<strong>19</strong>88, directed by Richard Stroud) departing from the<br />

hypothesis that the cultural, religious and racial differences are as important<br />

in the construction of points of view as the economic, social and political<br />

categories. We took as reference for our approach rehearsals by Barraclough<br />

(<strong>19</strong>64), about Contemporary History; Genette (<strong>19</strong>76), about Narratology;<br />

Michalek (<strong>19</strong>89), about the Arabians in the international cinema; and Said<br />

(<strong>19</strong>96), about Critical Multiculturalism. This film reveals, among other things,<br />

a differential in the representation of the Arabians: the old representation of<br />

Arabia as an exclusive stage on an “exuberant sexuality” – almost always<br />

associated to kidnapping, jealousy, revenge and slavery – gives place, in this<br />

film, to the representation of perfidy, betrayal and revolts, very frequent<br />

traces in most occidental movies that have Arabs as protagonists, coadjuvants<br />

or secondary characters. This rehearsal is part of a research entitled “The<br />

foreign correspondent in situations of intercultural communication in<br />

the international cinema, <strong>19</strong>68-<strong>19</strong>88”, developed between the years of<br />

<strong>19</strong>98 and 2001 in the University of São Paulo and in the University of Texas<br />

in Austin (USA), when we also analyze the following films: The Green<br />

Berets (USA, <strong>19</strong>68), The Year of Living Dangerously (AUST.,<strong>19</strong>84), The<br />

Killing Fields (ING, <strong>19</strong>82) and The Passenger (FR/ITA, <strong>19</strong>75).<br />

Key words: English Cinema – Eurocentrism – Islamic Fundamentalism<br />

A título de epígrafe<br />

35. ... Da mesma forma que o Egito tem um clima peculiar, e seu rio é diferente<br />

por sua natureza de todos os outros rios, todos os seus costumes e instituições<br />

são geralmente diferentes dos costumes e instituições dos outros<br />

homens. Entre os egípcios, as mulheres compram e vendem, enquanto os homens<br />

ficam em casa e tecem. Em toda parte, se tece levando a trama de<br />

baixo para cima, mas os egípcios levam-na de cima para baixo. Os homens<br />

carregam fardos em suas cabeças, mas as mulheres os carregam em seus<br />

ombros. As mulheres urinam em pé, e os homens, acocorados. Eles satisfazem<br />

as suas necessidades naturais dentro de casa, mas comem do lado de<br />

fora, nas ruas, alegando que as necessidades vergonhosas do corpo devem<br />

ser satisfeitas secretamente, enquanto as não-vergonhosas devem ser satisfeitas<br />

abertamente. Nenhuma mulher é consagrada ao serviço de qualquer<br />

divindade, seja esta masculina ou feminina; os homens são sacerdotes de<br />

todas as divindades. Os filhos não são compelidos contra a sua vontade a<br />

sustentar seus pais, mas as filhas devem fazê-lo, mesmo sem querer.<br />

160 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003


Júlio César Lobo<br />

36. Os sacerdotes dos deuses em todos os outros lugares usam os cabelos<br />

longos: no Egito, eles raspam a cabeça. Em todos os outros lugares, quando<br />

se trata de chorar pelos mortos, os parentes mais próximos raspam as cabeças;<br />

os egípcios têm-nas raspadas em outras ocasiões, mas, depois de uma<br />

morte, deixam crescer seus cabelos e sua barba. Entre todos os outros povos,<br />

os homens vivem separados dos animais; no Egito, eles mantêm seus<br />

animais consigo dentro de suas casas. Os outros povos se alimentam de trigo<br />

e cevada; para os egípcios, a maior humilhação é usar esses grãos; eles<br />

preparam seus alimentos com um grão rústico, chamado espelta, que outras<br />

pessoas chamam de zeia. Eles preparam as massas de que se alimentam com<br />

os pés, mas amassam a argila com as mãos. Os egípcios e os outros povos que<br />

aprenderam o costume com eles são os únicos a praticar a circuncisão. Todos<br />

os homens usam duas peças de roupa, mas as mulheres usam apenas uma.<br />

As argolas e as cordas das velas são presas em todos os outros lugares na<br />

parte externa das embarcações, mas no Egito são presas na parte interna.<br />

Os helenos escrevem e calculam movendo a mão da esquerda para a direita;<br />

os egípcios movem-na da direita para a esquerda...<br />

Heródoto. História, Livro II (Euterpe)<br />

Introdução 1<br />

A par de uma atenção à contextualização,<br />

busca-se aqui, na análise do filme Com as Horas<br />

Contadas, evidenciar determinadas estratégias<br />

narrativas com a finalidade de se discutirem<br />

determinadas questões, a saber:<br />

a) como são construídas caracterizações dos<br />

correspondentes como tradutores culturais;<br />

b) de que modo e em que intensidade determinados<br />

referenciais culturais influenciam no<br />

desempenho dos repórteres; e<br />

c) como alguns aspectos importantes da sua<br />

subjetividade são trabalhados.<br />

Inclui-se também na última indagação acima<br />

a busca de como se manifesta nos correspondentes<br />

a antiga dicotomia presente nos argumentos<br />

cinematográficos: observar ou participar?<br />

Trata-se de uma oposição que, por sinal,<br />

omite em seu primeiro termo as duas outras<br />

fases do processo de conhecimento – o registro<br />

e a análise – e que costuma perseguir repórteres<br />

investigativos em filmes em que o universo<br />

da política é um dos mais relevantes em<br />

sua fatura.<br />

Em geral, com maior ou menor intensidade,<br />

o filme Com as Horas Contadas parece-nos<br />

constituir uma amostra significativa para uma<br />

discussão mais contemporânea em torno desses<br />

tópicos:<br />

a) “o Ocidente não possui mais respostas” (O<br />

Ano em que Vivemos em Perigo - The Year<br />

of Living Dangerously, AUST, <strong>19</strong>83, dirigido<br />

por Peter Weir);<br />

b) o jornalista em estado de crise, solucionada<br />

através de um percurso que culmina ora<br />

numa espécie de redenção, ora em salvação<br />

pessoal, ou na radicalização fatal;<br />

c) a língua do Outro étnico como uma longa<br />

onomatopéia;<br />

d) o vínculo social que se constrói através da<br />

interação; e<br />

e) por último, mas não menos importante, a<br />

configuração de um novo exotismo: à alteridade<br />

étnica dos antagonistas ou coadjuvantes<br />

dos protagonistas se soma, agora, um<br />

nov estereótipo – o que esses filmes entendem<br />

por “fundamentalistas” islâmicos. O filme<br />

em foco é um bom exemplo do que se<br />

1<br />

Diferentes versões desse ensaio foram apresentadas no<br />

IV Lusocom, São Vicente (SP), <strong>19</strong>-22 de abril de 2000, e<br />

no IV Encontro Anual da Sociedade Brasileira de Estudos<br />

de Cinema (Socine), em Florianópolis, Universidade Federal.<br />

de Santa Catarina, 8-11 de novembro de 2000. Agradecemos<br />

os comentários e as sugestões dos presentes a<br />

ambos os eventos.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003<br />

161


Eurocentrismo, política externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme inglês Com as horas contadas<br />

diz neste tópico que, por sinal, tem sido bastante<br />

atual nas representações ficcionais ou<br />

não de conflitos envolvendo “Aliados” ocidentais<br />

versus Estados orientais<br />

Partimos para a análise do filme com as seguintes<br />

hipóteses:<br />

a) seus artifícios narrativos em graus variados<br />

de virtuosidade encobrem construções de<br />

discursos que buscam passar por “natural”<br />

aquilo que é fruto de uma peculiar visão de<br />

mundo. Por isso, torna-se pertinente a utilização<br />

de elementos da narratologia com<br />

enfoques provenientes dos Estudos Culturais.<br />

Esses últimos entendidos como “um<br />

conjunto de abordagens que busca compreender<br />

e intervir nas relações de cultura e<br />

poder” e em que “o relacionamento particular<br />

entre teoria e contexto é igualmente importante”<br />

(GROSSBERG, <strong>19</strong>93, p.2);<br />

b) esse filme constrói um novo “exótico”: aquele<br />

que, vivendo no Golfo Pérsico, é considerado,<br />

sem maiores detalhes, como “fundamentalista”;<br />

c) o antigo “perigo amarelo”, cujo componente<br />

racial é gritante, encontra-se com o “perigo<br />

fundamentalista”;<br />

d) as diferenças culturais, religiosas e raciais<br />

são tão importantes na construção dos pontos<br />

de vista daqueles que dominam quanto as<br />

categorias sócio-econômicas ou políticas; e<br />

e) as discussões em torno de uma possível “objetividade<br />

jornalística” têm migrado dos textos<br />

teóricos e da academia para a ficção cinematográfica.<br />

O nosso diálogo com o filme Com as Horas<br />

Contadas é marcado principalmente por essas<br />

indagações:<br />

a) como são construídas as representações dos<br />

correspondentes como tradutores culturais?<br />

b) de que forma e com que intensidade determinados<br />

referenciais culturais influenciam o<br />

trabalho dos correspondentes e a sua interação<br />

com nativos e residentes, principalmente<br />

com seus guias ou intérpretes?<br />

c) de que forma e com que objetivos são<br />

construídas as representações dos nativos<br />

ou residentes nos países do terceiro mundo?<br />

e<br />

d) quais os artifícios narrativos utilizados pela<br />

instância narrativa para a construção das<br />

“verdades” desse filme inglês?<br />

Para instrumentalizar o nosso olhar em direção<br />

aos temas e tópicos, recorremos a determinados<br />

textos de autores que seguem diferentes<br />

orientações e pertencem a áreas de conhecimento<br />

diversas que, a partir de um recorte<br />

específico, contribuem pontualmente para a discussão<br />

de problemas localizados tanto no nível<br />

da expressão quanto no do “conteúdo”. Essa<br />

observação quanto à origem das referências<br />

teórico-metodológicas mais recorrentes reconhece<br />

uma postura interdisciplinar, própria, por<br />

sinal, dos Estudos Culturais em que essa análise<br />

se insere.<br />

As idéias-força, partes dos nutrientes de<br />

nosso olhar crítico nesse ensaio, são:<br />

a) a abordagem que Simmel (<strong>19</strong>83) faz dos aspectos<br />

formais do estrangeiro. A carga semântica<br />

que é investida nele torna-se certamente<br />

mais rica se lhe é incumbida a função<br />

de reportar. Associe-se a essa tarefa o<br />

esperado “estranhamento”, que é considerado<br />

consensualmente como um dos itens<br />

fundamentais para o exercício de uma pretensa<br />

“objetividade”. Afinal, é de se esperar<br />

um conjunto de qualidades daquele que é de<br />

outro país, a saber: não se encontra submetido<br />

a componentes nem a tendências específicas<br />

de grupo, a fim de favorecer a sua aproximação<br />

da “objetividade”; não está preso a<br />

nenhum compromisso que poderia prejudicar<br />

a sua percepção, compreensão e avaliação<br />

dos fenômenos; examina os dados com menos<br />

pré-julgamento, justamente pelo seu esperado<br />

não-envolvimento; os seus critérios<br />

são mais amplos; e, finalmente, ele, o estrangeiro,<br />

não está ligado à ação pelo hábito,<br />

piedade ou por precedente (<strong>19</strong>83, p.184-<br />

5). Simmel nos chama ainda a atenção para<br />

a complexa operação cognitiva, que tem de<br />

ser elaborada pelo estrangeiro, pois sua “objetividade”,<br />

que se toma geralmente como<br />

um “dom” natural ou o resultado de uma<br />

“formação”, não deve encobrir “passividade<br />

e afastamento”, mas deve ser produzida<br />

como fruto de uma delicada movimentação,<br />

162 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003


Júlio César Lobo<br />

compreendendo distanciamento-proximidade,<br />

indiferença-envolvimento;<br />

b) a argumentação a propósito do bordão “o<br />

Ocidente não possui mais respostas” fornecida<br />

nos seguintes ensaios de Barraclough<br />

(<strong>19</strong>64): “Do equilíbrio europeu de poder à<br />

era da política mundial” (p.95-112) e “A revolta<br />

do Ocidente (a reação da Ásia e da<br />

África à hegemonia européia)” (p.139-79);<br />

e<br />

c) a crítica a um certo “orientalismo”, segundo<br />

a argumentação de Said (<strong>19</strong>96). Para ele, o<br />

orientalismo não se configura como uma<br />

“fantasia avoada” dos europeus frente aos<br />

orientais, mas trata-se de um “corpo criado<br />

de teoria e prática”, em que se constata um<br />

“considerável investimento material” ao longo<br />

da história. Ele fixa como corpus principal<br />

de sua tese um conjunto de questões relativas<br />

à experiência anglo-franco-americana<br />

dos árabes e do Islã, experiência que,<br />

durante quase mil anos, tem representado o<br />

Oriente.<br />

De nossa parte, há uma certa preocupação<br />

de nos afastarmos na medida do possível da<br />

tendência das pesquisas no campo dos Estudos<br />

Culturais em colocar peso excessivo na análise<br />

do “conteúdo”. Pensando constantemente nesse<br />

desequilíbrio, efetuamos vários movimentos<br />

no sentido de relevar a análise das estratégias<br />

narrativas para a qual contribuem os aportes<br />

de Genette (<strong>19</strong>72), por exemplo. Graças a trabalhos<br />

como os de Gaudreault e Jost (<strong>19</strong>90),<br />

entre outros, a migração desses conceitos da<br />

teoria literária para a cinematográfica já se dá<br />

hoje sem maiores empecilhos de natureza<br />

metodológica.<br />

Ao buscarmos trabalhar no sentido de uma<br />

instrumentalização dos conceitos provenientes<br />

das fontes citadas, tanto os da órbita de um “plano<br />

do conteúdo” quanto aqueles referentes a<br />

um “plano da expressão”, tivemos como inspiração,<br />

além de uma inestimável orientação<br />

metodológica, o ensaísmo cinematográfico de<br />

I. Xavier (<strong>19</strong>95), mais precisamente o texto<br />

“Parábolas cristãs no século da imagem: a<br />

dialética entre continuidade e alegoria no cinema<br />

narrativo norte-americano”. Nesse texto,<br />

flagramos, entre outros aspectos relevantes,<br />

uma preocupação com a localização e discussão<br />

de aspectos da função social do cinema.<br />

I<br />

Com as Horas Contadas trata resumidamente<br />

da participação de um correspondente<br />

inglês, Granville Jones (John Hurt), na cobertura<br />

de um golpe de Estado em país fictício do<br />

Golfo Pérsico e de sua atuação decisiva para a<br />

recondução do emir ao poder. Paralelamente a<br />

essas ações, o filme destaca o protagonista em<br />

freqüentes momentos de rememorações, criando<br />

assim, como conseqüência das sessões nostálgicas,<br />

atmosferas de melancolia. Dessa forma,<br />

não é só o fator tempo que conta (deadline:<br />

data-limite), mas, principalmente o modo como<br />

as várias temporalidades são dispostas pela instância<br />

narradora. Tem-se aqui um manejo peculiar<br />

na ordem da narração com a presença<br />

de um passado-dentro-de-um-outro passado,<br />

algo assim como um passado ao quadrado, um<br />

passado exponenciado.<br />

A nossa abordagem tem como uma de suas<br />

angulações principais a hipótese de que todas<br />

as rememorações relativas à arqueóloga inglesa<br />

(Imogen Stubbs), além de comporem a causa<br />

possível da melancolia do protagonista, articulam-se<br />

na montagem de uma estrutura parabólica,<br />

amparada no referencial bíblico. Essa<br />

estrutura, pela forte analogia, cria as bases simbólicas<br />

para que se leiam as intervenções políticas<br />

pró-Ocidente do correspondente como um<br />

ato de redenção final.<br />

Nossa atenção analítica foi despertada para<br />

o potencial parabólico embutido nas rememorações<br />

por um dado quantitativo: o filme dura aproximadamente<br />

oitenta e cinco minutos, e o total<br />

de seqüências envolvendo recordações do protagonista<br />

compreende vinte e dois minutos. Ou<br />

seja, há um minuto de rememoração para cada<br />

quatro de “presente”, de ação propriamente dita.<br />

Ao adotarmos esse partido, talvez possamos<br />

encontrar algumas evidências para estabelecermos<br />

relações entre tantas referências e falas a<br />

respeito do Livro do Gênesis, Caim, Terra de<br />

Nod, Ocidente, Oriente, islamismo, imprensa<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003<br />

163


Eurocentrismo, política externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme inglês Com as horas contadas<br />

inglesa, Arqueologia, erro e redenção, entre outras<br />

coisas. Essas relações vão cimentando um<br />

longo processo de argumentação pró-Ocidente.<br />

– Fontes de Washington revelam as crescentes<br />

preocupações do governo com o Golfo [Pérsico].<br />

O líder do movimento é o extremista religioso<br />

Fuad Al’Bakr, que se encontra na ilha de Hawar.<br />

Estudantes fundamentalistas estão contra o consórcio<br />

americano de petróleo e querem o fim dessa<br />

aliança. Wall Street reagiu com uma queda de<br />

30 pontos.<br />

Assim começa Com as Horas Contadas.<br />

Uma emissão de rádio em inglês e planos de<br />

ruas de uma cidade muçulmana. No áudio e<br />

nas imagens, logo nos cinco primeiros minutos,<br />

esse filme reitera alguns clichês “orientalistas”,<br />

atualiza outros e sinaliza para alguns dados novos<br />

em um certo cenário geopolítico no Terceiro<br />

Mundo. Ou seja, logo de saída, o filme sinaliza<br />

para uma nova configuração de uma antiga<br />

exoticidade. O árabe não é mais aqui uma<br />

encarnação do mito do homem em “estado de<br />

natureza” ou o bruto em filmes “orientalistas”,<br />

como denuncia Michalek (<strong>19</strong>89, p.3-9).<br />

O exótico aqui – sem deixar de matizar o<br />

que se disse – é deslocado, é politizado para a<br />

esfera da gestão da coisa pública: o emirado,<br />

sua política energética, suas alianças estratégicas.<br />

Essa forte mudança pertence à conjuntura<br />

“real” que vai se construindo ao longo das últimas<br />

décadas e que interfere nessa representação.<br />

Ela tem a ver, entre outras coisas, com o<br />

ocaso do nomadismo (hoje, restrito a apenas<br />

cinco por cento da população) e com a intensificação<br />

do sedentarismo. Isso se deveu à regressão<br />

do nomadismo árabe a partir dos anos<br />

50 com as conseqüências sócio-econômicas<br />

provenientes da exploração petrolífera no Golfo<br />

Pérsico e no Norte da África.<br />

– Chegam mais notícias sobre os distúrbios em<br />

Hawar. O emir abdicou em favor de seu filho,<br />

Ahmed Hatim. O seu primeiro ato foi nomear Al-<br />

Bakr como primeiro ministro. Numa rádio, Hatim<br />

declarou que o novo governo vai se encarregar<br />

de uma revisão nas relações da ilha com os Estados<br />

Unidos quanto ao petróleo.<br />

O noticiário, em um só enunciado “objetivo”,<br />

segundo normas jornalísticas, associa fundamentalismo,<br />

anti-americanismo e negócios com petróleo.<br />

A primeira reação de Granville Jones é<br />

não aceitar a passagem pacífica de poder naquele<br />

país. Vários motivos podem explicar sua<br />

desconfiança, seja isto devido a uma prática cotidiana<br />

de um experimentado repórter, ou até a<br />

manifestação de uma adesão afetiva à sua velha<br />

fonte, o emir. Não é uma coincidência, pelo que<br />

já se expôs, que essa fonte seja pró-ocidental.<br />

O primeiro diálogo entre ambos já estimulara<br />

algumas digressões em torno de cultura e<br />

imperialismo: a decisão do emir em mandar seu<br />

filho ser educado na Inglaterra, tida como um<br />

centro de saber, e a alternância de domínio na<br />

geopolítica pós-Segunda Guerra Mundial com<br />

os britânicos perdendo espaço e poder para<br />

norte-americanos. Com relação ao primeiro<br />

item, a decisão do emir revela-se um verdadeiro<br />

tiro que saiu pela culatra, pois o Príncipe volta<br />

de lá “radical”, associando-se a “fundamentalistas”.<br />

A educação ocidental, pelo que se vê, foi o<br />

estopim para que velhos estereótipos “orientalistas”<br />

voltassem `a tona: sedição, traição e violência.<br />

A propósito das origens desse dado novo,<br />

na realidade mais imediata do Terceiro Mundo,<br />

Barraclough (<strong>19</strong>64, p.139-79) argumenta que<br />

africanos e asiáticos se apropriaram das armas<br />

“forjadas” na Europa e voltaram-se contra os<br />

“conquistadores” europeus. E sobre a associação<br />

entre essa jovem liderança e um certo<br />

fundamentalismo, Barraclough acrescenta: “Em<br />

certos períodos, particularmente nos países onde<br />

a tradição hindu ou muçulmana era poderosa,<br />

essa dominação – a busca por uma ´personalidade<br />

própria` – tomou a forma de uma fuga<br />

para o passado” (p.178).<br />

O fato é que o encontro de Granville com o<br />

emir é a ocasião surgida para esse drama se<br />

agudizar, aproximando-o mais superficialmente<br />

de um thriller: ao se despedir, o ex-governante<br />

passa-lhe uma mensagem. Nesse ponto, colocam-se<br />

duas alternativas para o jornalista. Uma<br />

opção seria desconsiderar essa mensagem e<br />

retornar a Londres, uma vez que houve um golpe<br />

de Estado, e seu velho amigo está fora do<br />

poder. Outra opção seria levar avante a pro-<br />

164 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003


Júlio César Lobo<br />

posta de desmascaramento do novo governo,<br />

ato que teria tripla função: a obtenção de um<br />

furo jornalístico, a manifestação de uma solidariedade<br />

ao emir e a retomada da “aliança” daquele<br />

país com os Estados Unidos.<br />

Granville, ao assumir o desmascaramento do<br />

governo “fundamentalista”, resolve um impasse<br />

freqüentemente colocado para repórteres: observar<br />

ou participar. A decisão pela participação<br />

vai fazer do repórter inglês um agente histórico.<br />

Esse é um dado novo no corpus dos filmes<br />

com correspondentes estrangeiros no<br />

cinema internacional, nos anos 70 e 80, ambientados<br />

no Sudeste Asiático, em que repórteres,<br />

principalmente de imagem, são acusados<br />

de apenas observarem.<br />

Uma outra peculiaridade na composição do<br />

protagonista como agente histórico é que ele<br />

não é mais certamente uma variação ficcional<br />

do tipo “intelectual orgânico”, de matriz gramsciana,<br />

autoinvestido de um mandato do “povo”,<br />

como nos acostumáramos a ver na vertente<br />

urbana do Cinema Novo brasileiro, por exemplo.<br />

À medida que “Gran” se torna esse agente,<br />

ele assume a aura de herói. Para que esse novo<br />

papel cresça de intensidade é preciso que se<br />

construa um grande vilão, e esse é o “extremista<br />

religioso”, “fundamentalista”, “nacionalista”<br />

e “anti-americano” Al-Bakr, personagem pronta<br />

pela farta adjetivação a ser estereotipada.<br />

Tem-se aqui uma ligeira diversificação nessa<br />

dramatização da alteridade, mas ela ainda continua<br />

dualista: há o árabe bom (os amigos de<br />

Granville, inclusive o emir deposto) e há árabes<br />

maus (o filho do emir e Al-Bakr).<br />

Mesmo sendo considerado em determinado<br />

momento uma “pessoa muito importante”, Al-<br />

Bakr não tem direito à focalização interna (o<br />

compartilhamento com a instância narradora de<br />

seu saber) e não tem direito sequer a uma tomada<br />

em câmera subjetiva (o compartilhamento<br />

conosco do que ele vê).<br />

Mas quem é esse vilão? Como ele é representado?<br />

O que diz? Como é construída a sua<br />

influência junto ao Príncipe Hatim? Qual a sua<br />

visão de mundo? O fato é que, nos dez primeiros<br />

minutos de filme, já ouvimos o nome de Al<br />

Bakr três vezes, mas não tivemos, por outro<br />

lado, até então, elementos que façam com que<br />

concordemos ou não com as declarações feitas<br />

– o que contraria em geral a praxe expositiva<br />

de heróis e vilões.<br />

Dessa forma, com tais lacunas, cria-se uma<br />

certa expectativa em nossa recepção quando,<br />

em uma rememoração explicativa de Granville,<br />

vemos Romy levando-o até um local em que o<br />

citado vilão está secretamente alojado. A seqüência<br />

da diligência secreta é construída a<br />

partir do ponto de vista – aqui entendido também<br />

como local onde é colocada a câmera –<br />

do jornalista e da arqueóloga. Há dois planos<br />

em close-up de Al-Bakr mostrados com a interferência<br />

de uma cerca. Gran e Romy conversam.<br />

Durante toda a seqüência, Al Bakr é<br />

visto parado, sem voz, sem trilha sonora, sem<br />

gestos.<br />

Assim, a primeira aparição do outro étnico<br />

enquanto vilão é surda, muda e inerte. Após o<br />

quase parricida golpe de Estado, temos pela<br />

sexta vez o nome de Al-Bakr sendo mencionado.<br />

Pela sexta vez consecutiva, ele não fala,<br />

ele não se move e nem sequer é visto articulando<br />

a tomada do poder. Granville vê Al-Bakr em<br />

mais uma oportunidade, na entrada do Palácio,<br />

mas o silêncio permanece em relação a ele. Em<br />

nenhum momento dessa curta seqüência é<br />

disponibilizado o ponto de vista da “pessoa muito<br />

importante”, agora primeiro-ministro. Novamente<br />

Al-Bakr não fala, não ouve e nem se<br />

mexe.<br />

O outro étnico “vilão” do correspondente<br />

está no poder, várias personagens não se cansam<br />

de se referir a ele, mas, mesmo assim, não<br />

é digno de fala, de gestos significativos. Esse<br />

outro étnico não tem voz nem vez no processo<br />

de enunciação. Se Al-Bakr é importante, por<br />

que ele é silenciado? Qual a relação dos seus<br />

qualificativos com petróleo, política, cultura e<br />

imperialismo?<br />

O fato é que a instância narradora trabalha<br />

superficialmente com expressões e conceitos<br />

complexos, como fundamentalismo, “extremista<br />

religioso” e nacionalismo árabe, associandoos<br />

entre si de uma só vez pela estereotipagem<br />

de uma personagem, que, não por acaso, se opõe<br />

a interesses econômicos de um consórcio nor-<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003<br />

165


Eurocentrismo, política externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme inglês Com as horas contadas<br />

te-americano. Cada um desses conceitos, acreditamos,<br />

merece uma breve explanação.<br />

Por incrível que pareça, o uso contemporâneo<br />

do conceito fundamentalismo foi cristalizado<br />

no país cuja mídia mais o utiliza como um<br />

palavrão: os Estados Unidos. Lá, nos anos 20,<br />

fundamentalismo designava uma variedade do<br />

protestantismo conservador que se opunha inclusive<br />

à divulgação das teorias evolucionistas<br />

de Darwin.<br />

A partir dos anos 60, esse conceito que, originalmente,<br />

possuía uma conotação positiva para<br />

os batistas, por exemplo, teve essa conotação<br />

negativizada, passando a ser mais um pejorativo<br />

a rotular de primeira determinadas facções<br />

do islamismo mais ortodoxo. Essas facções<br />

enfatizam a “perfeição da palavra de Deus”,<br />

assim como está no Alcorão ou O Corão (de<br />

Qurám, Qaraá, ler, expor) em árabe, já que<br />

não se admite a sua tradução, pois isso seria<br />

uma traição ao profeta Maomé.<br />

Os cinco pilares do islamismo são:<br />

a) a narração do Kalima: “Há um só Deus, e<br />

Maomé é o seu profeta”;<br />

b) os cinco períodos diários de oração;<br />

c) a prática da caridade;<br />

d) o jejum durante o mês do Ramada; e<br />

e) a peregrinação a Meca.<br />

Nenhum dos fundamentos acima é mencionado<br />

no filme em discussão.<br />

“Extremista religioso” é uma expressão freqüentemente<br />

referida a protagonista árabe de<br />

conspirações. Ao tratar dessa questão, diz<br />

Pierucci (<strong>19</strong>99, p.<strong>19</strong>6):<br />

Para denominar os radicalismos islâmicos, os<br />

ocidentais só dispõem de termos pejorativos e<br />

ofensivos. Ao invés de tradicionalistas ou de<br />

integristas, dizer que são fundamentalistas implica<br />

de certo modo aludir a seu fanatismo e obscurantismo,<br />

apontar sua rejeição à ciência, à História,<br />

ao esclarecimento, à modernidade, enfim.<br />

Ao se falar em nacionalismo árabe, deve-se<br />

levar em conta dois aspectos: o pan-arabismo<br />

somente ganhou consistência a partir do<br />

entreguerras, associado à formação do Estado<br />

árabe moderno; e a idéia de uma unidade árabe<br />

tem exercido atração no mundo árabe, mesmo<br />

a nível popular, pois a grande maioria da população<br />

é muçulmana e compartilha uma vasta<br />

gama de pressupostos culturais e atitudes sociais<br />

comuns.<br />

Ainda a propósito da estereotipagem a partir<br />

das expressões “fundamentalista” e “extremista<br />

religioso”, talvez seja oportuna essa justificativa<br />

de Said (<strong>19</strong>96, p.291) a despeito de ter<br />

sido elaborada em outro contexto analítico:<br />

Além de ser anti-sionista, o árabe é também<br />

fornecedor de petróleo. Essa é outra característica<br />

negativa, pois que, na maior parte das<br />

vezes em que se fala do petróleo árabe, o boicote<br />

de <strong>19</strong>73-<strong>19</strong>74 – que beneficiou principalmente<br />

as companhias petrolíferas ocidentais e<br />

uma pequena elite dirigente árabe – é visto como<br />

uma amostra da ausência de quaisquer qualificações<br />

morais por parte dos árabes para possuírem<br />

reservas tão vastas de petróleo.<br />

Assim, em Com as Horas Contadas, no<br />

lugar de xeques luxuriosos, como aqueles interpretados<br />

por Rodolfo Valentino, há emires<br />

contemporizadores, pró-Ocidente. Governantes<br />

tidos como despóticos são associados a “extremistas<br />

religiosos”, a “fundamentalistas” e a “nacionalistas”.<br />

No lugar de desertos inóspitos,<br />

espaços de esterilidade e clichê cenográfico<br />

para as crises existenciais de europeus, há poços<br />

de petróleo e áreas urbanas. No lugar de<br />

monarcas carismáticos, há golpistas. Isto posto,<br />

constatamos que a configuração para a<br />

estereotipagem dominante sinaliza nesse filme<br />

para um novo suporte.<br />

II<br />

Os temas levantados no tópico anterior contribuem<br />

para a exposição de um conflito. Temse,<br />

por um lado, a configuração positiva de determinadas<br />

tradições (as ocidentais) que, segundo<br />

a instância narradora, devem valer mais. Temse,<br />

por outro lado, a configuração negativa de<br />

tradições que, segundo a mesma instância, devem<br />

valer menos e, como tais, são desqualificadas.<br />

Inicialmente, abordemos os exemplos da primeira<br />

tradição citada: a escola inglesa de jornalismo.<br />

O emir havia sugerido uma censura prévia<br />

nas matérias do correspondente, fato que<br />

provoca o seu discurso de profissão de fé:<br />

166 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003


Júlio César Lobo<br />

– Eu sou da velha escola de Fleet Street [Londres],<br />

onde nossos jornais são impressos, em<br />

que se diz: ´Os fatos são sagrados‘. Eu fui declarado<br />

persona non-grata em muitos países (...)<br />

Isso porque eu escrevia a verdade, e ela feriu as<br />

pessoas.<br />

Essa é a segunda vez em poucos minutos<br />

em que Granville faz a defesa da imprensa britânica.<br />

A primeira havia sido na seqüência do<br />

jantar. Cardápio do evento: fatos, versões, verdade,<br />

mentira, liberdade de imprensa, responsabilidade<br />

dos políticos, notícia, sensacionalismo,<br />

Lênin, Stálin, Pravda, entre outros itens.<br />

Essa seqüência, além de estabelecer o par romântico,<br />

caracteriza Gran como um veterano<br />

correspondente.<br />

O outro exemplo da tradição que vale mais<br />

é o da escola inglesa de Arqueologia. Talvez<br />

não tenha sido por mero acaso ficcional que<br />

Romy Burton seja também inglesa. Como já<br />

destacou Said (<strong>19</strong>96), arqueólogos são alguns<br />

dos mais freqüentes porta-vozes de discursos<br />

de representação do orientalismo. A citada atividade<br />

começou a tomar corpo justamente com<br />

as grandes expedições colonialistas, como as<br />

de Napoleão no Egito. Numa etapa posterior,<br />

seguem-se as fundações pelos ingleses de estabelecimentos<br />

locais de ensino de Arqueologia.<br />

São eles também que lhe atribuem o estatuto<br />

de ciência.<br />

Para Said (<strong>19</strong>96, p.53), é peça fundamental<br />

nesse movimento exploratório a obra francesa<br />

Description de L´Egypte (1808-1828), “grande<br />

monumento coletivo de erudição, pois forneceu<br />

um cenário para o orientalismo, posto que<br />

o Egito e subseqüentemente as outras terras<br />

islâmicas foram consideradas como a província<br />

viva, o laboratório, o teatro do efetivo conhecimento<br />

ocidental sobre o Oriente”.<br />

A propósito, um ponto em comum a mais<br />

entre as profissões de Granville e de Romy é<br />

que ambas levam em consideração a História.<br />

É fundamental na atividade arqueológica a capacidade<br />

de relacionar dados de um passado<br />

(gostos da época e funções dos utensílios) a<br />

uma função no presente. Troquem-se os objetos<br />

escavados por escritos e imagens plásticas,<br />

e têm-se talvez algumas aproximações entre as<br />

duas profissões aqui mencionadas.<br />

Em nossa análise, o filme configura como a<br />

tradição que vale menos o fundamentalismo<br />

islâmico, o nacionalismo e os “extremistas religiosos”,<br />

itens interrelacionados por Gran numa<br />

exposição a dois colegas ingleses:<br />

– Hatim voltou de uma pequena educação<br />

na Inglaterra e achou que poderia se tornar um<br />

herói local, falando sobre valores islâmicos, a<br />

vontade do povo e a decadência do Ocidente.<br />

Os outros exemplos estão na própria representação<br />

de Al-Bakr. Esses foram alguns recortes<br />

que elaboramos na representação das tradições<br />

nesse filme. Ao seu final, teremos assentada<br />

a que deverá vingar e o que isso quer dizer.<br />

III<br />

Com as Horas Contadas, independente de<br />

seu título original e do brasileiro, enfatiza certas<br />

configurações de temporalidade. Como estratégia<br />

de análise, vamos trabalhar esse fator em<br />

quatro de suas interrelações, a saber: tempo e<br />

religião, tempo religioso e tempo arqueológico,<br />

tempo do jornalismo e fuso horário e a interrelação<br />

entre tempos e narrativas.<br />

Há dois momentos em que o imbrincamento<br />

entre tempo e religião parece-nos mais transparente.<br />

A primeira interrelação é feita pelo emir<br />

sobre a utilidade dos serviços da arqueóloga<br />

para a sua cultura (“Romy faz a História do<br />

que aconteceu anteontem”), e a segunda está<br />

mais próxima do final, quando se fala de Caim,<br />

Livro do Gênesis, etc. Os temas das seqüências<br />

são tempos e origens. Tem-se, então, a associação<br />

entre duas personagens e duas localidades<br />

na configuração de um redentor.<br />

A propósito da relação entre tempo religioso<br />

e tempo arqueológico, tem-se que a descoberta<br />

da Terra de Nod pela arqueóloga traznos<br />

à tona a questão da datação do tempo na<br />

Arqueologia. Há nessa relação um impasse entre<br />

ciência e Bíblia, o que acreditamos ser relevante<br />

apontar numa discussão de um filme em<br />

que as religiões têm um papel político. A corrente<br />

diluvialista, que busca ajustar o conhecimento<br />

geológico à tradição bíblica, afirma que<br />

as grandes transformações por que passou a<br />

terra se devem a violentes cataclismos, de que<br />

seria exemplo o dilúvio bíblico. Já a corrente<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003<br />

167


Eurocentrismo, política externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme inglês Com as horas contadas<br />

fluvialista defende que as transformações geológicas<br />

são o resultado de lentas e demoradas<br />

modificações.<br />

A urgência de Granville em enviar a mensagem<br />

do emir para Londres acrescenta mais duas<br />

instâncias temporais ao filme: o tempo do jornalismo,<br />

compreendendo o desencontro entre o<br />

horário de fechamento da edição matutina e o<br />

fuso horário. Essa defasagem é um dos acionadores<br />

do tom thriller da narrativa.<br />

Por último, temos a interrelação entre tempos<br />

e narrativas. As várias temporalidades (localização<br />

dos eventos) são: presente – é o tempo<br />

do processo enunciativo, pois tomamos a<br />

narração como contemporânea – daí o nosso<br />

envolvimento emocional, sendo ao mesmo tempo<br />

fruto de um certo passado, pois já se dá como<br />

narrado; e passado, que subdividimos operacionalmente<br />

em passado próximo – rememorações,<br />

sonhos e pesadelos de Granville, e passado distante.<br />

Este comportaria mais duas divisões: tempo<br />

arqueológico e tempo místico.<br />

O tempo arqueológico estaria sendo evocado<br />

através das marcas materiais de desgaste:<br />

as ruínas das escavações orientadas por Romy<br />

Burton. O tempo místico refere-se às ancestralidades<br />

narradas no Velho Testamento. Essa remissão,<br />

que associa em determinado momento<br />

Granville a Caim, introduz as relações entre tempo<br />

e Teologia, entre tempo e Juízo Final. Um<br />

outro dado desse filme diz respeito a um certo<br />

passado-no-presente, que estaria configurado<br />

nas tentativas de restauração de uma tradição<br />

por parte de Hatim e Al-Bakr.<br />

Nesse ponto tivemos, então, mesmo que de<br />

modo bastante esquemático, um certo desdobramento<br />

do que entendemos serem as várias<br />

configurações do tempo como componentes da<br />

diegese nesse filme singular.<br />

IV<br />

Nesse filme, como em muitos outros<br />

“orientalistas”, a instância restauradora do “equilíbrio”<br />

é um agente externo, ocidental. O dado<br />

“heróico” manifesta-se principalmente no aspecto<br />

individualista dessa empreitada, que leva<br />

Granville à morte. Por outro lado, algumas<br />

analepses, distribuídas ao longo da narração, foram<br />

trabalhando uma outra dimensão para esse<br />

sacrifício: fazer com que a notícia do golpe de<br />

Estado seja divulgada na imprensa mundial mesmo<br />

que tenha que morrer para isso. Vamos a<br />

essas rememorações.<br />

Um pouco antes de Granville fugir de Hawar,<br />

ele permanece numa angra. Na rememoração<br />

do jornalista, temos duas seqüências, justapostas<br />

por elipse, envolvendo noções de tempo (bíblico,<br />

ou seja mítico) e origens. Em sua divagação,<br />

Granville associa a sua situação errante a<br />

uma vocação marcada genético-culturalmente<br />

pela descendência de Caim, um fugitivo, sendo<br />

que, nessa visada, o paralelismo é estabelecido<br />

pelos que seriam os traços de uma negação.<br />

Desse modo, Granville e Caim se igualariam<br />

naquilo que têm de menor, naquilo que têm de<br />

negativo.<br />

Cabe então à arqueóloga transformar a negatividade<br />

auto-imposta pelo amante em uma<br />

positividade. Como isso se daria? Não mais,<br />

agora, através do acionamento de uma instância<br />

temporal exclusivamente, mas com a introdução<br />

de um componente espacial. O lugar em<br />

que Granville descansa – enquanto, em sua<br />

mente, se desenrolam essas rememorações –<br />

fica nas ilhas Hawar. As ruínas de suas escavações<br />

seriam as evidências materiais da passagem<br />

de Caim por aquele território. Essa contigüidade<br />

espacial cria então as condições para<br />

que se produza então uma inferência espiritual,<br />

o que desenvolveremos adiante.<br />

O fato é que as falas de Romy crescem de<br />

intensidade para a recepção, alicerçando sua<br />

“autoridade” por dois motivos: prática científica<br />

e afetividade.<br />

A propósito do primeiro motivo, deve-se levar<br />

em conta que, enquanto o jornalista aciona<br />

as rememorações, a jovem cientista (parte dessas<br />

lembranças) produz com as escavações uma<br />

outra viagem no tempo: as ruínas de um lugar<br />

mencionado na Bíblia. Com o seu trabalho, a<br />

arqueóloga, mesmo que, a rigor, não produza<br />

acontecimentos significativos para a trama principal,<br />

associa-se a Granville e à instância narradora<br />

no poder de fabular “mundos novos”<br />

(conteúdos diegéticos). Quantos discursos se<br />

168 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003


Júlio César Lobo<br />

referem ou se refeririam àqueles portos? Quantas<br />

narrativas a sua revelação deve ter desencadeado?<br />

Em nosso entendimento, a instância narradora<br />

investe a arqueóloga de mais uma autoridade.<br />

Como isto se dá? Vamos relacionar dois<br />

momentos separados na narração. O primeiro<br />

deles ocorre aos quatro minutos de filme.<br />

Hawar, Golfo Pérsico, interior, dia, penumbra.<br />

A câmera em lento travelling para a direita<br />

“passeia” pelo corpo deitado de Granville até<br />

que ela se detém em seu rosto sulcado. Rapidamente,<br />

o rosto dele é “inundado” por uma<br />

iluminação artificial. Simultaneamente, ouve-se<br />

uma melodia (extradiegética), assemelhando-se à<br />

música de câmera. Essa luz, antes de lhe conferir<br />

uma aura (injustificada até aquele momento), é o<br />

elo para uma superposição e para uma fusão.<br />

Então, lentamente, vai-se impondo a imagem inicialmente<br />

desfocada de uma jovem andando em<br />

direção à câmera em slow-motion. Há uma fusão<br />

com o rosto de Granville, ainda deitado, que,<br />

como conseqüência da breve rememoração, consegue<br />

expressar alguma alegria.<br />

Uma ferramenta fundamental para se analisar<br />

rememorações são as anacronias narrativas,<br />

de que fazem parte as analepses (GE-<br />

NETTE, <strong>19</strong>76, p.31-85). Este teórico francês<br />

cunhou o conceito de analepse – o que antes se<br />

tinha como o flashback –, subdividido em<br />

analepse externa (o seu ponto de alcance é<br />

anterior ao campo temporal da narrativa-base)<br />

e analepse interna, que tem seu campo de alcance<br />

no interior do campo temporal da narrativa-base.<br />

O filme em foco é rico em analepse externa<br />

e do tipo parcial: ela se finda bruscamente numa<br />

elipse, e o processo narrativo recomeça a partir<br />

de onde havia sido interrompido sem colocar<br />

nenhum problema de juntura ou continuidade,<br />

“como se nada a tivesse suspendido” (p.61).<br />

Nesse ponto apresenta-se uma questão<br />

conceitual e não somente terminológica: preferimos<br />

trabalhar com o conceito de analepse ao<br />

de flashback. A despeito da sua universalização,<br />

este termo não nos informa o suficiente<br />

com relação ao alcance de sua rememoração,<br />

nem a quem se deve o seu acionamento, se isso<br />

se deve à instância narradora ou a alguma personagem,<br />

que aí, então, assumiria o papel de<br />

um subnarrador ou narrador-delegado (GAU-<br />

DREAULT; JOST, <strong>19</strong>90).<br />

Não há aparentemente explicação ou associação<br />

no modo como, na maioria das vezes, as<br />

seqüências com a arqueóloga irrompem bruscamente<br />

por todo o filme, principalmente quando<br />

não há explicitamente dados de que elas estejam<br />

sendo “evocadas” pelo protagonista. Essa<br />

observação levou-nos a suspeitar da maioria<br />

dessas ocorrências como parte do processo de<br />

construção paralela de uma longa parábola;<br />

logo, de uma estrutura argumentativa. Voltaremos<br />

a esse aspecto mais adiante.<br />

O segundo momento da construção de uma<br />

“autoridade” para a arqueóloga também é parte<br />

de uma rememoração de Granville. Ele está<br />

entrevistando o emir, antes do golpe, quando,<br />

em meio a uma troca de opiniões sobre imprensa,<br />

fatos, censura, o governante (a propósito do<br />

aforisma “Fatos são sagrados”) diz não acreditar<br />

que o jornalista tenha fé em Deus. E o que<br />

responde Granville? Responde-lhe que, quando<br />

ouve música, acredita Nele.<br />

Recapitulando, tem-se sutilmente a associação<br />

de Deus com música e a música como<br />

motivo recorrente (leitmotiv) da instância narradora<br />

para o acionamento das analepses com<br />

Romy. Talvez tenhamos aqui um artifício engenhoso<br />

para se construir, fora da órbita do discurso<br />

verbal, a “autoridade” da arqueóloga.<br />

Assim, a partir dessa construção de análise,<br />

acreditamos estar criando uma proposta de discussão<br />

para o que se tem no final do filme. Ou<br />

seja, raciocinando-se em termos de contigüidade,<br />

poderíamos aventar a hipótese de que o leitmotiv<br />

associado a Romy (música de câmera) diviniza<br />

o enunciado a ela agregado, ou, mais propriamente,<br />

diviniza a arqueóloga e suas palavras.<br />

Nessa abordagem, ela estaria sendo transportada<br />

de um passado próximo para um tempo<br />

mítico, um tempo de deuses. Uma outra conseqüência<br />

dessa divinização, que estamos propondo,<br />

poderia estar na associação que ela faz<br />

de Granville com Caim, o que ele assume.<br />

É bom que se diga que esse investimento<br />

teológico é nosso, uma vez que Granville não é<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003<br />

169


Eurocentrismo, política externa norte-americana e fundamentalismo islâmico no filme inglês Com as horas contadas<br />

um homem religioso. Por outro lado, é curioso<br />

que a idéia de redenção, acompanhada de recompensa<br />

material (sacos de ouro) ou mitológica<br />

(harpa de ouro), apareça nas últimas falas<br />

do filme quando, em Hawar, dois correspondentes<br />

contemplam a manchete de um diário<br />

inglês com frustração.<br />

Uma outra leitura comportaria um processo<br />

de atualização, de recuperação do Velho Testamento,<br />

fonte comum para cristãos e muçulmanos.<br />

Nesse processo, o repórter se associa<br />

e é associado a Caim pela errância. No entanto,<br />

Granville, mesmo que o seja à sua revelia,<br />

acaba reescrevendo, em nosso entendimento,<br />

o percurso da personagem bíblica, dotando-a e<br />

dotando-se por tabela de uma missão redentora.<br />

Esse jornalista morre (sacrifício) para fazer<br />

chegar a Londres a mensagem que irá repor<br />

seu amigo no poder (a salvação). Assim,<br />

Granville chega ao final do filme e de sua vida<br />

como um Caim revisto, um Caim redentor.<br />

V<br />

Com as Horas Contadas, entre outras coisas,<br />

revela um diferencial no tratamento dos<br />

povos árabes. A antiga representação da Arábia<br />

como palco exclusivo de uma “sexualidade exuberante”<br />

(quase sempre associada a seqüestro,<br />

ciúme, revanche e escravidão) cede lugar<br />

nesse filme à representação de perfídia, traição<br />

e revoltas, traços recorrentes a uma boa<br />

parcela da representação dos árabes no cinema,<br />

conforme Michalek (<strong>19</strong>89, p.3-9).<br />

A velha dicotomia Oriente (Antigüidade)<br />

versus Ocidente (modernidade) é trabalhada no<br />

filme em foco com mais matizes, com mais densidade.<br />

Tende-se mecanicamente a associar o<br />

Oriente do filme a um regime de governo, à<br />

idade do emir deposto e a algumas representações<br />

de visões radicais da interrelação religiãogoverno.<br />

Ao Ocidente ali ficcionalizado, tendemos<br />

a associar automaticamente juventude (a<br />

da arqueóloga), ciência e a presença da imprensa<br />

sem censura prévia, entre outros aspectos.<br />

No entanto, a dicotomia aqui resumida comporta<br />

contradições, pois o inverso também se<br />

configura. Ou seja, a presença do petróleo é<br />

um dado novo na economia dos países árabes<br />

(a rigor, a partir dos anos 30), enquanto que o<br />

dado do Ocidente colonializante não o é. O repórter<br />

Granville Jones é o Ocidente, mas ele é<br />

tão moderno em costumes e modo de ser quanto<br />

o seu amigo deposto.<br />

O jovem oriental, tanto aquele que sobe ao<br />

poder após o golpe, quanto o “fundamentalista”<br />

Al-Bakr, é vinculado a uma tradição. Assim,<br />

ambos são a corporificação de um passado distante.<br />

Desse modo, a amostra de juventude do<br />

Oriente é desqualificada pela interligação radical<br />

que esses jovens propõem entre religião e<br />

governo.<br />

Já a juventude do Ocidente, Romy, representa<br />

vida (ela faz parte das melhores rememorações<br />

de Granville), vigor (pratica acrobacias na<br />

praia) e, principalmente, representa a ciência.<br />

Sinteticamente, o velho e o novo possuem valências<br />

diversas, dependendo se eles estão associados<br />

ao Ocidente ou ao Oriente. Neste último,<br />

encontram-se algumas das alteridades étnicas ao<br />

repórter e à arqueóloga.<br />

O fato é que, ao final do filme, após tantas<br />

rememorações, deslocamo-nos do embate inicial<br />

entre monoteísmos e fomos por instantes<br />

em direção ao universo do politeísmo da mitologia<br />

greco-latina, cultura-base da ocidentalidade.<br />

A nossa leitura teve como um de seus objetivos<br />

apontar para certas reapropiações de imaginários<br />

com a finalidade de estabelecer uma<br />

determinada visão de mundo. Observamos, entre<br />

outras coisas, um jornalista melancólico reescrever,<br />

meio á revelia, o percurso do banido<br />

Caim bíblico, sendo o jornalista considerado, por<br />

si mesmo, como mais um “errante” e, pela arqueóloga,<br />

como o incumbido de uma missão<br />

redentora. Não foi à-toa que ele morreu por<br />

aquela missão.<br />

170 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003


Júlio César Lobo<br />

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GROSSBERG, L. Cultural Studies and/in New Worlds. Critical Studies in Mass Communication, New York,<br />

n.10, p.1-22, <strong>19</strong>93.<br />

HERÓDOTO. História, Livro II (Euterpe). Brasília, DF, UnB, <strong>19</strong>82.<br />

MICHALEK, L. The Arab in American cinema. Cineaste, New York, v. 17, n.1, <strong>19</strong>89 (encarte).<br />

PIERUCCI, A. Fundamentalismo e integrismo. In: _____. Ciladas da Diferença. São Paulo, SP: Ed. 34, <strong>19</strong>99.<br />

p. p.177-200.<br />

SAID, E. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, SP: Cia. das Letras, <strong>19</strong>96.<br />

SIMMEL, G. Sociologia. São Paulo, SP: Ática, <strong>19</strong>83.<br />

XAVIER, I. Parábolas cristãs no século da imagem. Imagens, Campinas, n. 5, p. 8-17, <strong>19</strong>95.<br />

Recebido em 30.05.03<br />

Aprovado em 10.07.03<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 159-171, jan./jun., 2003<br />

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Nilce da Silva<br />

PLURALIDADE CULTURAL, MIGRAÇÃO E O ENSINO<br />

DA LÍNGUA PORTUGUESA NO ENSINO FUNDAMENTAL<br />

Nilce da Silva*<br />

RESUMO<br />

Este artigo discute questões prático-teóricas sobre o ensino de língua portuguesa<br />

no início da escolarização de adultos em escolas públicas paulistanas.<br />

Relacionamos “identidade, língua e cultura” e “atividades pedagógicas” que<br />

considerem a pluralidade cultural em sala de aula.<br />

Palavras-chave: Língua Portuguesa – Identidade – Cultura – Atividades<br />

Pedagógicas – Migração<br />

ABSTRACT<br />

CULTURAL PLURALITY, MIGRATION AND THE TEACHING OF<br />

THE PORTUGUESE LANGUAGE AT ELEMENTARY SCHOOL<br />

This article discusses theoretical-practical questions about the teaching of<br />

the Portuguese language in the beginning of the education of adults in public<br />

schools in São Paulo. We relate “identity, language and culture” and<br />

“pedagogical activities” that consider the cultural plurality in the classroom.<br />

Key words: Portuguese Language – Identity – Culture – Pedagogical<br />

Activities – Migration<br />

INTRODUÇÃO<br />

As atividades de ensino da língua portuguesa<br />

em sala de aula nos anos iniciais da<br />

escolarização devem levar em consideração a<br />

relação entre identidade, língua e cultura. Neste<br />

sentido, a escola deve levar em consideração<br />

a diversidade dos alunos que a compõem.<br />

Esta diversidade é composta por um conjunto<br />

de sub-culturas provenientes da diferença<br />

de gênero, da atividade exercida no local de<br />

trabalho, da pertinência a esta ou aquela classe<br />

social, das diferentes possibilidades de filiação<br />

religiosa, de ser oriundo desta ou daquela região<br />

do território nacional, entre outras possibilidades.<br />

Neste sentido, faz-se mister a compreensão,<br />

por parte do professor, de que o processo de<br />

aprendizado pode ser e é, na maioria das vezes,<br />

um processo de refazer a própria identidade.<br />

Tal deferência é extremamente importante<br />

sobretudo quando nos preocupamos com atividades<br />

em sala de aula nos anos iniciais da<br />

escolarização de migrantes, pois aprender a<br />

* Doutora em Didática e Metodologia do Ensino na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo,<br />

com doutorado sanduíche na Université Paris-Nord e pós-doutorado na Université Paris Nord sobre “Falar,<br />

ler, escrever: um estudo sobre a formação de adultos lusófonos em situação de pouca escolarização em São<br />

Paulo, Paris e Gotemburgo”; professora do Departamento de Didática e Metodologia do Ensino da Universidade<br />

de São Paulo. Endereço para correspondência: Rua Antonieta Leitão, 209, apt. 12, Freguesia do Ó –<br />

02925.160 São Paulo, SP. E-mail: nilce@usp.br<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 173-180, jan./jun., 2003<br />

173


Pluralidade cultural, migração e o ensino da língua portuguesa no ensino fundamental<br />

ler e a escrever implica necessariamente em<br />

mudança de identidade. Ou seja, o nosso objeto<br />

de interesse é a identidade que se constitui na<br />

relação língua, cultura e identidade. A pessoa<br />

(criança, jovem ou adulto) deixa de pertencer<br />

ao mundo daqueles que não dominam a leitura<br />

e a escrita e ingressam no mundo das letras, no<br />

mundo do “Outro”. Ou seja, aprender a ler escrever<br />

implica em: aprendizado de “nova” língua<br />

ou nova modalidade de língua e, junto com<br />

esta transformação, a aquisição de uma série<br />

de hábitos que configurarão mudança de cultura,<br />

mudança de identidade, ou seja, mudança<br />

no jeito de ser.<br />

RELACIONAMENTO “IDENTIDADE,<br />

LÍNGUA E CULTURA”<br />

Pierre Bourdieu (<strong>19</strong>82) faz interessantes afirmações<br />

a respeito da relação entre identidade,<br />

língua e cultura. Ele apresenta-nos toda a riqueza<br />

das interlocuções no cotidiano das pessoas,<br />

captando a relação entre os agentes sociais,<br />

e afirma que a estrutura social é representada<br />

dentro de cada um destes momentos,<br />

percebendo-se a hierarquia social no ato da<br />

interlocução. Nesta hierarquia, há pessoas autorizadas<br />

a falar, ou seja, os detentores da competência<br />

lingüística, que, longe de ser uma capacidade<br />

técnica, é uma posição nas relações<br />

de poder da sociedade. Os locutores são socialmente<br />

caracterizados, ou melhor, o estilo do<br />

falante é a característica que aponta a sua identidade<br />

no grupo. Esta distribuição das pessoas<br />

é o que vai caracterizar, segundo Bourdieu<br />

(<strong>19</strong>82), o campo da linguagem.<br />

Instaura-se desta maneira, uma situação de,<br />

pelo menos, bilingüismo, onde há uma fala menos<br />

legítima, ordinária, trivial, vulgar, corrente,<br />

livre e popular e, ainda, uma fala distinta, correta<br />

e, portanto, publicável.<br />

Assim, todo discurso pode ou não ser aceito<br />

por estes ou aqueles interlocutores e, ainda, ele<br />

tem um preço, sendo que há leis de formação<br />

de preços. Há, por isso, capital lingüístico que é<br />

dito e utilizado. Dito de outro modo, as mesmas<br />

palavras não são as mesmas e não são iguais,<br />

havendo relações de forças lingüísticas. Desta<br />

forma, o que se passa entre dois colegas, patrão<br />

e empregado, dois namorados, professor e<br />

aluno... passa-se entre dois grupos aos quais<br />

pertencem estas pessoas. No caso da nossa<br />

pesquisa, um nordestino em situação de baixa<br />

escolarização que jamais tenha ido a São Paulo,<br />

quando ele fala, sua produção oral vale menos<br />

do que a de um paulistano. Ou seja, sabemos<br />

do preço da fala popular quando ele é confrontada<br />

pelo mercado oficial. O mercado oficial,<br />

por sua vez, tem um grande poder de censura,<br />

e, assim, o falar abertamente só se produz<br />

em condições muito particulares.<br />

Dentro deste contexto, num discurso, o que<br />

mais chama a atenção, ou seja, o que aponta a<br />

pertinência do indivíduo a este ou aquele grupo<br />

social, é a pronunciação, e, ainda, o uso de aparelho<br />

fonador, mais do que a sintaxe e a extensão<br />

do vocabulário.<br />

Dito de outro modo, segundo Bourdieu<br />

(<strong>19</strong>82), aquele que fala, fala em nome do reconhecimento,<br />

ou não, institucionalizado de um<br />

grupo. Ainda que de passagem, ressaltamos que<br />

este modo de utilizar a língua faz parte do habitus<br />

de cada sujeito, pois o mesmo é orientado pelas<br />

maneiras incorporadas pelas pessoas a partir<br />

das interações, sobretudo, familiares.<br />

Sabemos ainda que quando o falante não pertence<br />

ao grupo social de prestígio dentro da sociedade<br />

em questão, há intimidação, violência<br />

simbólica em pequenos gestos no cotidiano. Há,<br />

portanto, uma censura antecipada daquele que<br />

fala, que se manifesta timidamente, com ansiedade,<br />

embaraço e, muitas vezes, calando-se.<br />

Na nossa sociedade, o conhecimento da língua<br />

oficial é feito de maneira desigual, sobretudo<br />

pela escola, e, por isso, modificações estratégicas<br />

são postas em prática pelo falante menos<br />

favorecido, no sentido de corrigir o seu discurso<br />

e torná-lo mais aceitável. Segundo o sociólogo<br />

francês, recorrer a uma sintaxe mais<br />

curta, ou fazer uso de hiper-correções, constituem-se<br />

maneiras através das quais o locutor<br />

busca maior poder simbólico, ou seja, são maneiras<br />

pelas quais o agente social estuda e procura<br />

aplicar as possibilidades que tem, buscando<br />

o sentido do jogo social, ao encontro da autonomia.<br />

174 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 173-180, jan./jun., 2003


Nilce da Silva<br />

Em suma, o uso da língua indica a identidade<br />

social do falante e expressa claramente a<br />

relação de dominação da sociedade, e, como o<br />

falante joga neste espaço potencial, durante toda<br />

a sua vida, a subjetividade da pessoa é formada.<br />

Ressaltamos que o uso do corpo na produção<br />

da língua, especialmente a boca, a garganta...<br />

compõem o estilo articulatório do falante,<br />

como a sonoridade e o ritmo. Da mesma forma,<br />

as maneiras polidas de tratamento, as variações<br />

de estilo, o modo de sustentar e de ter o<br />

próprio corpo, impõem a hierarquia entre classes,<br />

sexo e idade.<br />

A língua autorizada de uma pessoa o é por<br />

uma determinada estrutura social e, neste sentido,<br />

o falante autorizado é porta-voz de um grupo.<br />

Assim, o discurso mais eficaz é aquele que<br />

se dá sob condições institucionais com caráter<br />

de ritual, ou seja, é aquele que propicia a formação<br />

de representações, valores e julgamento.<br />

Para que as palavras tenham efeito, elas não<br />

devem apenas ser certas, eles devem ser socialmente<br />

aceitáveis.<br />

Neste ponto do trabalho de Bourdieu (<strong>19</strong>82),<br />

fica clara a crítica que ele faz aos lingüistas de<br />

um modo geral, e mais especificamente a<br />

Saussure e Chomsky. Isto porque, estes não<br />

verificaram os princípios lingüísticos dentro de<br />

diferentes situações nas quais as produções orais<br />

e escritas são produzidas.<br />

De um modo geral, o não domínio da língua<br />

autorizada constituiu-se como algo que falta no<br />

momento de defender o seu próprio espaço<br />

quando em interação<br />

Nos rituais do saber viver, inclusive nas relações<br />

estabelecidas em sala de aula, é notório<br />

o embaraço que se formava segundo relato dos<br />

nossos entrevistados. Pequenas ações do novo<br />

cotidiano letrado: como abordar um estranho,<br />

como encerrar uma conversação, como se apresentar<br />

ou apresentar alguém e outras, acabam<br />

por definir o lugar de uma pessoa no mundo.<br />

Por outro lado, a sala de aula pode ser caracterizada<br />

como multilingüe e multi-cultural, já que<br />

a comunicação em língua padrão se dá de maneira<br />

pobre, truncada e artificial, e outros recursos,<br />

assim como outras línguas e linguagens são<br />

utilizadas no exterior mais explicitamente.<br />

Dito de outro modo, há um reconhecimento<br />

de que, sob certas condições, uma pessoa legítima<br />

pode enunciar, dentro de uma situação legítima,<br />

para receptores tais, através de formas<br />

igualmente legítimas, litúrgicas ou rituais.<br />

Desta forma, observamos que na escola ocorrem<br />

diversos rituais e obter um diploma ou, ainda,<br />

a colação de grau passa a ser tão mágico<br />

como possuir um amuleto. Ou seja, os ritos e<br />

cerimônias têm o poder de criar diferenças que<br />

anteriormente não existiam, ou reforçar as que<br />

já existiam. Além disso, ter um diploma age sobre<br />

o real no momento de se obter um emprego<br />

como age também sobre a representação deste<br />

real. Assim, o indivíduo tem que agir como portador<br />

deste ou daquele diploma. Cria-se uma fronteira<br />

entre os excluídos e os incluídos desta ou<br />

daquela parte, ou de todo o sistema escolar, e,<br />

quase conseqüentemente, do mundo letrado no<br />

caso da alfabetização. Destacamos ainda que a<br />

crença daqueles que participam do ritual é condição<br />

de eficácia para o mesmo.<br />

No caso específico das séries iniciais da alfabetização,<br />

a supressão da formatura da quarta<br />

série promovida pela lei de diretrizes e bases<br />

5692/71, causou um impacto simbólico muito<br />

forte sobre a população de adultos em situação<br />

de alfabetização, isto porque prolongou-se a não<br />

pertinência dos mesmos ao mundo letrado e a<br />

conseqüente legitimação social do fato. Ou seja,<br />

a entrada no mundo mágico deixa de ocorrer.<br />

Um outro aspecto que gostaríamos de apresentar<br />

diz respeito à conclusão de que muitos<br />

dos alunos dos anos iniciais da escolarização,<br />

migrantes na cidade de São Paulo, utilizam a<br />

escrita sem penetrar no seu mundo sagrado.<br />

Ou seja, ela é apenas ato comunicativo e não<br />

de abstração do pensamento. O que não quer<br />

dizer que o contato com o sagrado não se faça<br />

através da oralidade, ou a partir de textos escritos<br />

na língua materna do sujeito.<br />

Depois destas considerações, acreditamos<br />

que estamos perto de definir aspectos importantes<br />

pertinentes à identidade dos nossos sujeitos<br />

da seguinte maneira: acontecem coisas<br />

em suas vidas, porém as pessoas continuam<br />

sendo as mesmas pessoas.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 173-180, jan./jun., 2003<br />

175


Pluralidade cultural, migração e o ensino da língua portuguesa no ensino fundamental<br />

Neste sentido ainda, concordamos com Bourdieu<br />

(<strong>19</strong>82), quando o mesmo afirma que o falar<br />

denuncia o grupo social ao qual um indivíduo<br />

pertence e conseqüentemente sua identidade. E<br />

ainda, segundo este autor, os conceitos de identidade<br />

regional e étnica, língua e dialeto são manipulados<br />

com a finalidade de determinar a representação<br />

das pessoas.<br />

Tal reflexão é importante por pelo menos<br />

dois motivos:<br />

1. O aumento do número de adultos matriculados<br />

no ensino supletivo não aumenta, de fato,<br />

a possibilidade de inserção social desse mesmo<br />

número de adultos;<br />

2. As diferentes discriminações, quando relacionadas<br />

com os falares, acompanham o indivíduo<br />

por todos os lugares do planeta. Assim<br />

vemos nordestinos em Paris sendo discriminados<br />

por sulistas brasileiros, embora<br />

estejam ambos na mesma situação de vida.<br />

Ressaltamos também que o texto religioso<br />

leva à constituição de uma identidade, permite<br />

o encontro com o texto polissêmico que é a Bíblia,<br />

já que a mesma possibilita associações<br />

livres com seus diversos significados. Concordando<br />

com Dominique Ravinet-Javin (<strong>19</strong>92), o<br />

sujeito encontra o seu significado no texto, a<br />

sua palavra, e pode assim se apropriar de sua<br />

própria vida, do real. A Psicanálise nasceu a<br />

partir desta interpretação: o sujeito vem encontrar<br />

o real, o nome do Pai, e toma distância da<br />

mãe, ocorrendo a ruptura. Em suma, para muitos<br />

dos nossos sujeitos, é pelo acesso à palavra<br />

de Deus que o sagrado pode ser vivido em toda<br />

a sua polissemia.<br />

Seguindo as pistas de Bourdieu (<strong>19</strong>82), encontramos<br />

indicação preciosa na direção dos<br />

diferentes falares a respeito das contribuições<br />

de Labov (<strong>19</strong>93), elaboradas a partir do estudo<br />

das produções lingüísticas no Harlem.<br />

Este químico de formação, no livro Le parler<br />

ordinaire: la langue dans les guettos noirs<br />

des Etats-Unis, estuda o “vernaculaire noiramericaine<br />

“ (VNA), dialeto falado hoje pela<br />

maioria dos jovens negros em bairros segregados<br />

de Nova Iorque, Boston, Chicago, Los Angeles,<br />

entre outras cidades, sendo também discurso<br />

familiar íntimo de vários adultos.<br />

Estudioso da questão desde <strong>19</strong>65, o referido<br />

autor (<strong>19</strong>93) faz um estudo detalhado da gramática<br />

e da fonética do VNA, concluindo que<br />

este é um falar autônomo regional, com léxico,<br />

pronúncia e gramática próprios, pertencente a<br />

um grupo étnico específico e que o mesmo define<br />

a pertinência social de seus falantes e a<br />

identidade dos mesmos.<br />

Para Labov (<strong>19</strong>93), as diferenças dialetais<br />

são um símbolo de conflito de classes e culturas<br />

existentes em diversos países. Decorrente<br />

deste fato, crianças falantes do VNA têm sérias<br />

dificuldades para aprender a leitura e a escrita<br />

do inglês padrão. O autor destaca pelo menos<br />

sete dificuldades:<br />

1. Os alunos têm dificuldade para entender o<br />

inglês falado das professoras e professores.<br />

2. As crianças têm dificuldade para ler e entender<br />

o sentido das frases.<br />

3. Há dificuldade de se comunicar com a professora<br />

através do inglês falado.<br />

4. Há dificuldade de se comunicar por escrito<br />

utilizando a gramática.<br />

5. Há dificuldade do uso ortográfico.<br />

6. Há dificuldade em falar com a gramática<br />

padrão.<br />

7. Há dificuldade de pronunciar como o modelo<br />

de prestígio.<br />

Labov (<strong>19</strong>93) apresenta ainda uma série de<br />

traços lingüísticos no VNA distintos do inglês<br />

padrão, os quais destacaremos a seguir:<br />

1. Ausência do “r” no final das palavras.<br />

2. Ausência de “r” no meio de algumas palavras.<br />

3. Ausência de “l”.<br />

4. Simplificação de grupos de consoantes.<br />

5. Diferenciação na pronúncia.<br />

6. Confusão entre os sons do “t” e do “d”, do<br />

“g” e o “K”, do “i” e do “e”.<br />

7. Formação distinta dos tempos verbais.<br />

8. Estatuto gramatical do sufixo s diferenciado.<br />

9. A questão da contração.<br />

10.Construção da negação diferenciada.<br />

11. Uso de comparativos diversos.<br />

12.Estrutura interrogativa diferenciada.<br />

13.Contração das palavras distinta.<br />

14.O que é esquecido na pronúncia.<br />

15.Acentuação da frase e das suas partes oralizadas<br />

de diferentes maneiras.<br />

16.A desaparição de algumas letras na fala.<br />

176 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 173-180, jan./jun., 2003


Nilce da Silva<br />

Ainda para este autor, as dificuldades da<br />

aprendizagem destas crianças americanas provêm<br />

de conflitos políticos e culturais dentro da<br />

sala de aula. Tal conclusão contraria uma série<br />

de pesquisas realizadas em escolas de guetos<br />

americanos nos Estados Unidos, financiadas<br />

pelo governo deste país, pois estas afirmam que<br />

a deficiência destes alunos é a principal causa<br />

do fracasso escolar. Ou seja, a privação cultural<br />

em casa, a falta de estimulação verbal no<br />

ambiente familiar, e ainda, a inferioridade genética<br />

destas crianças, não facilitariam o aprendizado<br />

da leitura e da escrita das mesmas. Tal<br />

teoria, também conhecida como a da “privação<br />

cultural”, tem produzido um mito que na verdade<br />

é o grande obstáculo da aprendizagem.<br />

Na tentativa de destruir o mito da privação<br />

cultural, o estudioso nos mostra claramente que<br />

a fala destas crianças é rejeitada pela escola já<br />

que o sistema social americano é o de castas,<br />

fundamentado na cor das pessoas.<br />

A pesquisa de Labov (<strong>19</strong>93) ainda nos apresenta<br />

dados referentes à produção lingüística<br />

das crianças negras americanas quando as<br />

mesmas não se sentem ameaçadas. Nestas situações,<br />

elas não falam por gestos, as suas frases<br />

são ligadas entre em si, ou seja, a fluência<br />

verbal se manifesta.<br />

Crítico, como Bourdieu, das análises puramente<br />

lingüísticas, ele questiona: Por que não<br />

se escreve em VNA? Apenas, porque o inglês<br />

padrão tem convenções sociais mais estáveis,<br />

tornando-se a melhor forma de comunicação<br />

escrita. Nem por isso, acrescenta Labov, podese<br />

depreciar o VNA e seus falantes, considerando-os<br />

como portadores de deficiências no<br />

raciocínio lógico, pois este dialeto possui sua<br />

lógica, podendo o lingüista demonstrar este fato.<br />

Ou seja, há de se entender que existem meios<br />

diferentes para se expressar as mesmas coisas.<br />

Retornemos à nossa pesquisa. Os sujeitos do<br />

nosso trabalho, migrantes, na sua maioria, da região<br />

do nordeste em situação de pouca escolarização,<br />

possuem um falar particularmente diferente<br />

do falar paulistano. Neste sentido, nós estivemos<br />

atentos ao como se dá a interação verbal<br />

destas pessoas dentro da sociedade paulistana<br />

tipicamente letrada.<br />

Mais especificamente, quando pensamos nos<br />

falares lusófonos, recorremos à obra da professora<br />

brasileira Ana Maria Cortez Gomes,<br />

docente de Língua Portuguesa, na Universidade<br />

de Paris 13, tese de doutorado intitulada:<br />

Structure Propositionelle et ordre des mots en<br />

Portugais Brésilien et en Portugais Européen”.<br />

Neste trabalho, Cortez Gomes (<strong>19</strong>96) apresenta<br />

uma série de traços lingüísticos diferentes<br />

entre o português de Portugal e do Brasil.<br />

Preferimos, ao invés de relatarmos aqui estas<br />

diversificações, construir uma série de categorias,<br />

que somadas às categorias de Labov, são<br />

úteis para a análise de discurso dos nossos sujeitos<br />

em termos, apenas, da fonologia e do vocabulário<br />

1 . A saber:<br />

Em termos de fonologia:<br />

1. A produção do /di/.<br />

2. A produção do /ti/.<br />

3. A produção do /uma/.<br />

4. A produção do /us/.<br />

5. A produção do /r/: no meio das palavras e<br />

no final delas.<br />

6. A produção dos grupos /lh/ e /nh/.<br />

7. A entonação das frases 2 .<br />

8. A entonação das palavras.<br />

9. A velocidade nas seqüências lingüísticas.<br />

10.Acréscimo ou diminuição de vogais na pronúncia.<br />

11. Acréscimo ou diminuição de consoantes.<br />

12.Diferenciação na pronúncia de consoantes.<br />

Marcos Bagno (<strong>19</strong>99) alerta-nos para a existência<br />

do preconceito lingüístico em nosso país,<br />

e nós acrescentamos: nas salas de aula de ensino<br />

supletivo também. Há diversos “fenômenos<br />

“ lingüísticos que ajudam a entender o preconceito.<br />

A saber:<br />

1) O fenômeno lingüístico conhecido na literatura<br />

especializada como ROTACISMO, presente<br />

na fala de muitos de nossos sujeitos ao<br />

1<br />

A tese de Ana Maria Cortez, citada na bibliografia final<br />

deste trabalho, traz também elementos importantes sobre<br />

as diferenças dialetais da língua portuguesa em termos<br />

da sua gramática.<br />

2<br />

Não conseguimos registrar a entonação das falas dos<br />

nossos entrevistados que possivelmente variariam, já que<br />

têm diversas naturalidades.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 173-180, jan./jun., 2003<br />

177


Pluralidade cultural, migração e o ensino da língua portuguesa no ensino fundamental<br />

QUADRO 1<br />

Etimologia do Português padrão<br />

Português padrão etimologia origem<br />

Branco blank Germânico<br />

Brando blandu latim<br />

Cravo clavu latim<br />

Fraco flaccu latim<br />

Obrigar obligare latim<br />

Prega plica latim<br />

QUADRO 2 – Os termos lexicais 3<br />

No Nordeste Na cidade de São Paulo<br />

Abodego<br />

Abufelado<br />

Afetado<br />

Ao realengo<br />

Aviar<br />

Azeitar<br />

Babaquara<br />

Baludo<br />

Bexiga-lixa<br />

Binga<br />

Bispar<br />

Bozó<br />

Espritado<br />

Cagafum<br />

Caipora<br />

Cangerê<br />

Capa-verde<br />

Fabiana<br />

França (CE)<br />

Fubeca<br />

Gê-gê<br />

Miquimba<br />

Mofumbar<br />

Oxente!<br />

Parteira<br />

Picica<br />

torrar a paciência<br />

irritado<br />

tuberculoso<br />

ao relento<br />

cobrar pressa<br />

apressar<br />

babaca<br />

rico<br />

espantoso<br />

cocô (PB), pênis (BA), fim do<br />

cigarro (AL)<br />

roubar<br />

bruxaria<br />

cão hidrófobo<br />

festa de quinta categoria<br />

fumante inveterado<br />

prostíbulo<br />

demônio<br />

ferida<br />

chicote<br />

vagabundo<br />

coisa boa, positiva<br />

besteira<br />

esconder<br />

aglutinação de “o” e “gente”<br />

guarda-chuva arrebentado<br />

ainda em uso<br />

meninote (CE)<br />

pronunciarem probrema, bicicreta... acontece<br />

também na história da língua. (Vide o Quadro<br />

1).<br />

O exemplo clássico da nossa língua foi Luís<br />

de Camões que escrevia em seus belos textos:<br />

ingrês, pubricar, pranta, frauta, frecha, já<br />

que ele era representante da província romana<br />

da Lusitânia.<br />

Para muitos alunos que têm variedades nãopadrão<br />

em cujo sistema fonético não existe encontro<br />

consonantal com L... o professor precisa<br />

ter consciência de que está trabalhando um aspecto<br />

estrangeiro da língua para estes alunos.<br />

2) Quando o paulistano fala titia, a letra t é<br />

pronunciada como ts (como em tcheco). Neste<br />

caso, observamos a ocorrência do fenômeno<br />

conhecido como PALATALIZAÇÃO. Neste<br />

caso, depois do fonema I, tudo é visto como<br />

normal. Porém, se o nordestino fala oytsu,<br />

oitcho, é motivo de riso e escárnio.<br />

3) Gostaríamos de chamar atenção também<br />

para o fenômeno da MONOTONGAÇÃO:<br />

caixa sendo pronunciada sem o i central (caxa),<br />

ou peixe, como (pêxe), presente na fala dos<br />

nossos sujeitos.<br />

4) Vale a pena ressaltar que a produção fonética<br />

do R e RR é uma das marcas de preconceito<br />

lingüístico e que este fonema aponta, entre<br />

outras pertinências, a origem geográfica e<br />

social do falante.<br />

5) Usar taio no lugar de talho, transformando<br />

o lh em i, por influência do elemento africano.<br />

6) Diz-se correno, andano, caíno... ao invés<br />

de correndo, andando, caindo, por conta<br />

do elemento negro também.<br />

7) Falar os infinitivos dos verbos sem o r<br />

final: casá, vendê, menti.<br />

8) Falar apenas o é ao invés do el tônico das<br />

palavras: papé, ané, coroné, e muié ao invés<br />

de mulher.<br />

9) Outro aspecto do rotacismo, troca do l<br />

pelo r: arto, iguar, tarco...<br />

3<br />

A maior parte destas palavras foram retiradas do livro<br />

“Assim falava Lampião: 2.500 palavras e expressões<br />

nordestinas” de Fred Navarro.<br />

178 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 173-180, jan./jun., 2003


Nilce da Silva<br />

QUADRO 3 - As palavras com diferentes sentidos.<br />

Palavra Em São Paulo No nordeste<br />

Academia local onde se pratica esporte jogo da amarelinha<br />

Bambo aquilo que não tem firmeza ter sorte<br />

Bidê aparelho sanitário mesa de cabeceira ou criado-mudo<br />

Articular unir bater-boca, discussão<br />

Cachimbo aparelho para fumar 1) Festa para comemorar o nascimento do filho;<br />

2) Bebida; 3) Apelido para soldado de polícia;<br />

4) Vagina<br />

Marinheiro funcionário da marinha Em Alagoas, coco verde. Em Pernambuco,<br />

negociante. No Ceará, estrangeiro<br />

Nata a melhor parte de qualquer coisa, secreção do catarro<br />

a elite, parte gordurosa do leite<br />

Nordeste nome da região do Brasil além do nome da região, doença que dizima o<br />

povo<br />

Pereba pequena ferida de crosta dura e fraco, sem qualidade<br />

espessa<br />

QUADRO 4<br />

– Expressões típicas do nordeste.<br />

Expressão<br />

Amarrar a cabra<br />

Amarrar o bode<br />

Arrotar farofa<br />

Com a gota-serena<br />

De boi<br />

História para menino<br />

dormir sem ceia<br />

Sentido<br />

beber demais da conta<br />

ficar de mau humor<br />

contar valentia, proeza<br />

enfurecido<br />

menstruada<br />

conversa mole<br />

10) Outra modalidade do lambdacismo: troca<br />

do r por l: calvão, celveja, galfo... Como<br />

se deu na história da língua: o provençal paper<br />

virou nosso papel; frol, do português provençal,<br />

virou flor.<br />

Finalmente, recordamos que o gerúndio torna-se<br />

ano para muitos brasileiros: andando,<br />

torna-se andano. Vide o Quadro 2, com os<br />

termos lexicais. Seguem o Quadro 3, relacionando<br />

as palavras com diferentes sentidos, e o<br />

Quadro 4, com algumas expressões típicas do<br />

nordeste.<br />

Em suma, afirmamos que, a partir da análise<br />

do discurso dos nossos sujeitos, através das<br />

categorias acima apresentadas, do vocabulário<br />

diferenciado que existe no território nacional –<br />

em termos da pronúncia, do vocabulário e até<br />

da gramática – existem variedades lingüísticas<br />

nas salas de aula de ensino supletivo na cidade<br />

de São Paulo, e a conseqüente produção de um<br />

espaço potencial tenso e conflituoso entre<br />

migrantes nordestinos e sociedade letrada paulistana,<br />

já que os primeiros se encontram em lugar<br />

novo, frente a uma nova língua, inclusive<br />

diante de uma nova modalidade da mesma, no<br />

caso, a escrita. E ainda, no nosso ponto de vista,<br />

aprender a ler e a escrever bem a língua<br />

portuguesa não garante o fim do preconceito<br />

existente entre os brasileiros no Brasil, e no<br />

mundo, como procuramos demonstrar.<br />

“ATIVIDADES PEDAGÓGICAS” E<br />

PLURALIDADE CULTURAL EM SALA<br />

DE AULA<br />

Na parte final deste artigo, gostaríamos de<br />

sugerir alguns caminhos que facilitem o trabalho<br />

do professor alfabetizador diante da diversidade<br />

cultural existente nas salas aula.<br />

Sendo assim, propomos alguns eixos que<br />

podem articular grupo necessários de atividades<br />

relativas à demanda em pauta:<br />

1. Diferentes pronúncias da Língua Portuguesa:<br />

apresentar aos alunos diferentes falares<br />

da nossa língua por meio de filmes, músicas<br />

etc<br />

2. Hierarquização social dos diferentes falas:<br />

com a auxílio da área da História mos-<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 173-180, jan./jun., 2003<br />

179


Pluralidade cultural, migração e o ensino da língua portuguesa no ensino fundamental<br />

trar aos alunos que o desenvolvimento econômico<br />

de determinado local em determinado<br />

tempo faz com que aquele diferente falar<br />

comece a se impor sobre os demais falares<br />

e que tal fenômeno é processual.<br />

3. Relação cultura e língua: apresentar as diferentes<br />

culturas que acompanham os diferentes<br />

falares da língua portuguesa: tipos físicos,<br />

comidas, danças, literatura, fábulas...<br />

4. Preconceito: discutir com os alunos os diferente<br />

preconceitos da nossa sociedade, inclusive<br />

o lingüístico.<br />

5. Língua Padrão: apresentar a importância<br />

do domínio da escrita e da fala padrão para<br />

que possamos ser lidos e ouvidos em sociedade.<br />

6. Identidade: fazer com que o aluno procure<br />

compreender o seu próprio “eu”, chamando<br />

a atenção de que o fato de aprender a ler e<br />

a escrever provocam mudanças na identidade<br />

de cada pessoa.<br />

7. Análise lingüística: ensinar aos alunos os<br />

conceitos necessários à análise lingüística<br />

para que o mesmo possa refletir sobre sua<br />

própria fala, sobre as fala dos outros e a fala<br />

que se orienta pela norma culta.<br />

8. Mercado lingüístico: discutir com os alunos<br />

os “valores” que são atribuídos a determinados<br />

modos de falar e a importância de<br />

dominar os falares melhor avaliados, ou mais<br />

adequados, nas diferentes relações sociais.<br />

Esperamos, desta maneira, ter contribuído<br />

para a reflexão: “Pluralidade cultural, migração<br />

e o ensino da língua portuguesa no ensino fundamental”,<br />

no âmbito teórico e com indicações para<br />

a prática docente do professor alfabetizador.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BAGNO, Marcos. Preconceito Lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo, SP: Edições Loyola, <strong>19</strong>99.<br />

BIARNÈS, Jean. Jeunes et adults en échec, mais encore! Education, Paris, v. 24, p. 24-31, mars/mai, <strong>19</strong>96.<br />

_____. O ser e as letras: da voz à letra, um caminho que construímos todos. Revista da Faculdade de<br />

Educação. São Paulo, SP, v. 24, n. 2. p. 137-161.jul./dez., <strong>19</strong>98.<br />

_____. Universalité, diversité, sujet dans l’espace pédagogique. Paris: L’Harmattan, <strong>19</strong>99.<br />

BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veut dire: l’économie des échanges linguistiques. Paris: Librairie Arthème<br />

Fayard, <strong>19</strong>82.<br />

CORTEZ-GOMES, Ana Maria. Structure Propositionelle et ordre des mots en Portugais Brésilien et en<br />

Portugais Européen. Tese (doutorado) - Faculté de Lettres/Université Paris VIII, Paris, <strong>19</strong>96.<br />

KLEIMAN, Ângela (org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da<br />

escrita. Campinas: Mercado das Letras, <strong>19</strong>95.<br />

LABOV, Willian. Le parler ordinaire: la langue dans les ghettos noirs des Etats-Unis. Paris: Les Editions<br />

des minuits, <strong>19</strong>93. (Le sens commum - collection dirigée par Pierre Bourdieu).<br />

PRETI, Dino. Sociolingüística: os níveis da fala. Um estudo sociolingüístico do diálogo na literatura brasileira.<br />

São Paulo, SP: Editora da Universidade de São Paulo, <strong>19</strong>97.<br />

WINNICOTT, D. W. Jeu et réalité : l’espace potentiel. Paris: Editions Gallimard, <strong>19</strong>75.<br />

Recebido em 28.04.03<br />

Aprovado em 15.07.03<br />

180 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 173-180, jan./jun., 2003


Sandra Simone Q. Morais Pacheco<br />

ALIMENTAÇÃO, CULTURA E EDUCAÇÃO:<br />

EM BUSCA DE UMA ABORDAGEM TRANSDISCIPLINAR<br />

Sandra Simone Q. Morais Pacheco *<br />

RESUMO<br />

Este artigo busca analisar a complexidade da relação homem/alimento, situando-a<br />

para além de um ato estritamente fisiológico, a partir da discussão<br />

acerca da importância dos aspectos culturais na formação de hábitos alimentares<br />

dos diferentes grupos sociais. Os padrões de comestibilidade, o<br />

como, o quando, o onde e o com quem comer, além do ato alimentar em si,<br />

são elementos formados coletivamente a partir de processos complexos<br />

que envolvem valores e significados inerentes aos diferentes contextos culturais.<br />

Em todas as sociedades humanas a alimentação extrapola a busca<br />

de nutrientes essenciais à vida e ganha usos e significados diversos, que<br />

refletem a própria estrutura social e os seus padrões culturais. Por outro<br />

lado, os instrumentos educacionais voltados para as mudanças no perfil<br />

alimentar de indivíduos e coletividades devem atentar para a interdisciplinaridade<br />

necessária a uma visão integral do ser humano, o que envolve<br />

conhecer as particularidades de grupos sociais específicos. A partir de<br />

uma compreensão mais ampliada da formação dos hábitos alimentares cotidianos,<br />

pode-se pensar em intervenções em que sejam respeitados os<br />

elementos culturais presentes em determinada sociedade, a fim de integrar<br />

os conhecimentos gerados no âmbito da ciência da nutrição aos oriundos<br />

dos saberes populares, que podem ser encontrados na própria prática dos<br />

profissionais envolvidos com essa temática. Esta questão também é importante<br />

quando se pensa na dimensão que tem a questão alimentar no Brasil<br />

e as recorrentes políticas públicas que minimizam os aspectos culturais<br />

fundantes de crenças arraigadas nos hábitos alimentares da população.<br />

Palavras-chave: Alimentação – Cultura – Hábito Alimentar – Educação<br />

ABSTRACT<br />

EATING, CULTURE AND EDUCATION: IN PURSUE OF A<br />

TRANS-DISCIPLINARY APPROACH<br />

This article aims at analyzing the complexity of the relation man/food,<br />

situating it beyond a strictly physiological act, departing from the discussion<br />

about the importance of the cultural aspects in the formation of eating habits<br />

of the different social groups. The standards of edibility, the how, the when,<br />

*<br />

Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Endereço para correspondência: Rua<br />

Anthenor Tupinambá, 136/404 - Pituba - 41810.680 Salvador-BA. E-mail: sandra.pacheco@terra.com.br.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 181-188, jan./jun., 2003<br />

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Alimentação, cultura e educação: em busca de uma abordagem transdisciplinar<br />

the where and the who to eat with, besides the act of eating itself, are<br />

elements formed collectively from the complex processes that involve values<br />

and meanings inherent to the different cultural contexts. In all human societies<br />

eating extrapolates the search for nutrients essential to life and gains diverse<br />

uses and meanings, which reflect the social structure itself and its cultural<br />

standards. On the other hand, the educational instruments focusing the<br />

changes in the eating profile of individuals and collectivities must cater for<br />

the inter-disciplinarity necessary to an integer view of the human being,<br />

what involves knowing the particularities of each specific social groups.<br />

Departing from a more magnified understanding of the formation of the<br />

everyday eating habits, one can think of interventions in which the cultural<br />

elements present in a given society are respected, aiming at integrating the<br />

knowledge generated in the sphere of the science of nutrition to the originated<br />

of the popular knowledge, which can be found in the practice itself of the<br />

professionals involved with this thematic. This question is also important<br />

when one thinks of the dimension that the eating question in Brazil and the<br />

recurring public politics that minimize the cultural aspects founding of beliefs<br />

inveterate in the eating habits of the population.<br />

Key words: Eating – Culture – Eating Habit – Education<br />

O ato alimentar obedece a várias necessidades<br />

e apresenta diferentes representações em<br />

distintos grupos sociais. Pode-se dizer que ele<br />

é um comportamento biológico-cultural, já que<br />

o ser humano necessita de uma alimentação que<br />

contenha os nutrientes necessários à manutenção<br />

dos nossos processos vitais, mas também é<br />

um processo adaptativo, empregado pelos seres<br />

humanos em função de suas condições particulares<br />

de existência, que variam no tempo e<br />

no espaço. Conhecendo o modo de obtenção<br />

dos alimentos, quando e por quem eles são preparados,<br />

pode-se obter uma quantidade considerável<br />

de informações sobre o funcionamento<br />

de uma dada sociedade (CONTRERAS, <strong>19</strong>93).<br />

Segundo Lévi-Strauss (<strong>19</strong>91), os alimentos, mais<br />

que bons para comer, também são bons para<br />

pensar, ou seja, são ideais para se apreciar; da<br />

mesma forma que todas as sociedades humanas,<br />

quando cozinham, transformando o cru em<br />

cozido, elaboram a passagem da natureza à<br />

cultura e traduzem inconscientemente sua estrutura<br />

(LAMÓNACA,<strong>19</strong>96).<br />

A visão biomédica vigente, praticada hegemonicamente<br />

nos serviços de assistência à saúde,<br />

traz como referencial teórico uma visão<br />

dualista de mundo postulada inicialmente na<br />

Grécia antiga, notadamente nas tradições filosóficas<br />

de Platão e Aristóteles, e encampadas<br />

depois pela ciência, através da qual firmou-se<br />

uma concepção positiva, legitimada pela matemática<br />

universal de Descartes e consolidada<br />

pelo modelo mecânico explicativo de mundo de<br />

Isaac Newton.<br />

Este legado, chamado usualmente cartesiano,<br />

traz consigo uma visão de homem dividido<br />

em reinos dicotômicos. De um lado está o homem<br />

racional, apto a dominar e controlar, e, do<br />

outro, a natureza. Este conflito homem/natureza<br />

se reproduz também no corpo humano. O<br />

homem é portador de uma mente racional que<br />

é superior e que subjuga o corpo, a materialidade.<br />

Esta dualidade filosófica e metodológica<br />

estimula e contribui para a construção de um<br />

modelo científico em que o método se direcionará<br />

no sentido de superar o conflito desta diferença<br />

ontológica entre homem e natureza,<br />

mente e corpo. Através desta superação, acredita-se<br />

ser possível estabelecer o poder do vencedor,<br />

o homem dominando e vencendo a natureza<br />

e a mente subjugando e vencendo o corpo.<br />

Esta forma de encarar e lidar com o complexo<br />

corpo/mente é, até os dias atuais, predominante<br />

no que costuma-se chamar biomedicina,<br />

182 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 181-188, jan./jun., 2003


Sandra Simone Q. Morais Pacheco<br />

entendida aqui como um conjunto de práticas<br />

médicas preventivas e curativas em que o ponto<br />

de partida para o diagnóstico, tratamento, recuperação,<br />

reabilitação é o corpo biológico, destituído<br />

de subjetividade e descontextualizado sócio-culturalmente.<br />

Esse corpo é considerado como<br />

sendo uma máquina que está funcionando mal,<br />

precisando de reparos para que volte à normalidade.<br />

Esta normalidade é retomada a partir da<br />

interferência de um saber cientificamente comprovado,<br />

baseado na classificação, na experimentação<br />

empírica e na explicação descritiva, saber<br />

esse exercido por profissionais formados nas<br />

hostes daquela visão reinante.<br />

Em função da concepção acima reproduzse,<br />

na relação profissional de saúde/paciente, a<br />

dicotomia já anteriormente observada, isto é, de<br />

um lado alguém que sabe, que tem legitimidade<br />

para intervir no corpo de outro; do outro lado<br />

um ser destituído da possibilidade de opinar sobre<br />

seu próprio corpo, à mercê das interpretações<br />

científicas estabelecidas. Isto evidencia um<br />

outro aspecto importante da abordagem biomédica:<br />

a relação de poder que se estabelece a<br />

partir do saber legitimado pela ciência, em que<br />

os conteúdos, os métodos, os conceitos são saberes<br />

centralizadores, ligados a instituições que<br />

funcionam vinculadas a um discurso científico<br />

organizado no interior de uma sociedade<br />

hierarquizada (FOUCAULT, <strong>19</strong>98).<br />

Postula-se neste trabalho que esta visão ocidental,<br />

segmentada e hierarquizada, é um entrave<br />

na forma como os profissionais que lidam<br />

com alimentação compreendem e atuam nos<br />

processos educativos e de intervenção nutricional<br />

dos indivíduos atendidos em diferentes esferas<br />

do sistema médico. Os processos terapêuticos<br />

parecem ineficazes quando enfatizam o<br />

corpo biológico e destituem o sujeito de sua<br />

vivência psico-social e cultural. Sabe-se que o<br />

homem busca também nos símbolos, nas crenças<br />

e nos deuses a resolução dos males que o<br />

afligem. São comuns práticas consideradas<br />

“místicas” serem ridicularizadas por profissionais<br />

de saúde, sem que seja percebido por eles<br />

o contexto cultural onde se origina esta prática,<br />

o valor que ela tem no imaginário do grupo social<br />

de que o indivíduo faz parte.<br />

A reflexão sobre uma delimitação do campo<br />

que usualmente se define como cultura talvez<br />

seja o primeiro e mais importante passo na<br />

discussão de uma abordagem conceitual mais<br />

ampla na área de saúde e nutrição. Pode-se<br />

pensar a cultura como o próprio campo onde os<br />

comportamentos/hábitos são gerados; “... um<br />

conjunto de mecanismos de controle – planos,<br />

receitas, regras, instruções – para governar o<br />

comportamento” (GEERTZ, <strong>19</strong>89, p.56.). Para<br />

o mesmo autor, o homem é o animal mais desesperadamente<br />

dependente destes mecanismos<br />

de controle para ordenar seu comportamento,<br />

pois:<br />

... o que lhe é dado de forma inata são capacidades<br />

de resposta extremamente gerais, as quais,<br />

embora torne possível uma maior plasticidade,<br />

complexidade e, nas poucas ocasiões em que<br />

tudo trabalha como deve, uma efetividade de<br />

comportamento, deixam-no muito menos regulado<br />

com precisão (...). A cultura, a totalidade acumulada<br />

de tais padrões, não é apenas um ornamento<br />

da existência humana, mas uma condição<br />

essencial para ela – a principal base da sua<br />

especificidade (p.58).<br />

No âmbito da cultura alimentar, quando se<br />

observam as diferenças na alimentação de grupos<br />

sociais diversos, pode-se pensar que elas<br />

não ocorrem como parte de uma escolha individual<br />

ou pessoal, e sim como resultado de um<br />

complexo processo social em que são definidos,<br />

entre outras coisas, os alimentos comestíveis<br />

e como, quando, onde e com quem se<br />

come. Isso pode ser facilmente constatado<br />

quando se observa que não existe qualquer alimento<br />

cujo significado derive exclusivamente<br />

de suas características intrínsecas: todos dependem<br />

das associações culturais que a sociedade<br />

lhes atribui (CONTRERAS, <strong>19</strong>93).<br />

Os hábitos alimentares são, dessa forma,<br />

parte integrante da totalidade da cultura, apesar<br />

de sua concepção estar comumente associada<br />

a um modo padronizado de pensar, sentir<br />

ou agir que foi adquirido pelo indivíduo e tornou-se,<br />

em grande parte, inconsciente e automático.<br />

Quando se alarga esse referencial englobando<br />

a cultura percebe-se que, apesar da<br />

tendência em se achar que este comportamento<br />

habitual é movido por automatismos incons-<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 181-188, jan./jun., 2003<br />

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Alimentação, cultura e educação: em busca de uma abordagem transdisciplinar<br />

cientes, existem significados presentes nas escolhas<br />

alimentares que são sobremaneira<br />

contextualizados. Os hábitos estão embebidos em<br />

símbolos culturais (MORIN, <strong>19</strong>73). As atividades<br />

biológicas mais elementares como o comer,<br />

o beber e o defecar estão estreitamente ligadas<br />

a normas, proibições, valores, símbolos, mitos,<br />

ritos, isto é, a tudo o que há de mais especificamente<br />

cultural (MOTA; PENNA, <strong>19</strong>91).<br />

Significados sociais diversos dados aos alimentos<br />

em diferentes sociedades são amplamente<br />

relatados na literatura antropológica. A<br />

variabilidade nos modelos de alimentação humana<br />

é grande, e às vezes as diferenças são<br />

bastantes profundas. Esses significados sociais<br />

são relatados por Paul Rozin (<strong>19</strong>98), quando<br />

descreve o papel do alimento em três sociedades<br />

muito diferentes, demonstrando a grande<br />

variabilidade que ocorre na sua função social: a<br />

sociedade norte-americana, a sociedade hindu<br />

e os Hua de Papua Nova Guiné.<br />

Observa-se, primeiro, o papel do alimento<br />

em uma sociedade ocidental moderna, os Estados<br />

Unidos. Para os americanos, o alimento tem<br />

duas principais funções: a de nutrir o indivíduo<br />

e a de servir como importante fonte de prazer.<br />

Apesar de a alimentação servir de base para<br />

interações diárias ou reuniões festivas familiares,<br />

o alimento é basicamente o que está no<br />

prato. Há uma descontextualização do alimento<br />

de várias maneiras. Os alimentos são comprados<br />

em embalagens plásticas, preparados por<br />

pessoas anônimas e cultivados em fazendas<br />

automatizadas. Para a sociedade americana, é<br />

indiferente a história particular do alimento, de<br />

onde ele vem, quem preparou, seu significado<br />

simbólico.<br />

Na Índia hindu, o alimento é um, senão o<br />

principal veículo da manutenção das distinções<br />

sociais; as crenças sobre os alimentos codificam<br />

o complexo jogo das proposições morais e<br />

sociais. A qualidade do alimento servido e as<br />

condições de servir (ordem de servir, quem<br />

come as sobras de quem) são aspectos significativos<br />

de cada refeição, o que serve para definir<br />

o status dos participantes da refeição, sendo<br />

a regra básica a ser seguida aquela que dita<br />

que a pessoa não pode aceitar alimentos preparados<br />

por membros de uma casta inferior (inversamente,<br />

membros de classes mais altas<br />

podem dar alimentos para membros de castas<br />

mais baixas). “Por exemplo, na situação doméstica<br />

e nos casamentos, os melhores alimentos<br />

qualitativos são servidos mais cedo e anteriormente<br />

aos homens e para aqueles que são mais<br />

velhos” (ROZIN, <strong>19</strong>98, p.221).<br />

Entre os Hua de Papua Nova Guiné, conforme<br />

o mesmo autor, “trocas de alimentos são<br />

ligados à solidariedade e aliança social ou compromisso,<br />

e alimentar-se e alimento ajudam a<br />

definir o indivíduo” (p.221). A sua visão de<br />

mundo centra-se sobre o conceito de “nu”, uma<br />

essência vital veiculada principalmente pelo alimento<br />

e responsável pelo crescimento e saúde.<br />

Essa essência está contida no corpo do indivíduo<br />

e em todas as coisas contatadas por ele.<br />

Assim, qualquer alimento caçado, colhido, ou<br />

cozido por uma pessoa, contém seu “nu” ou sua<br />

essência vital. Esta crença tem sérias conseqüências<br />

na vida comunitária, porque um indivíduo<br />

pode adquirir propriedades particulares de<br />

uma pessoa pela ingestão de alimentos colhidos<br />

ou preparados por ela. Se a intenção da<br />

pessoa é hostil, causará mal, enquanto que um<br />

“nu” amigável beneficiará a saúde e o bem estar<br />

do indivíduo. Outro dado interessante é que<br />

“... os Hua praticam canibalismo. Eles consomem<br />

seus parentes, após a morte natural deles,<br />

para incorporar tanto suas virtudes específicas<br />

como suas boas intenções” (p.220).<br />

Quando se observa a eleição de alimentos<br />

comestíveis e não comestíveis dentro de uma<br />

sociedade, também chamam a atenção os mecanismos<br />

culturais subjacentes a esta escolha.<br />

Ainda que, em alguns grupos sociais, a seleção<br />

dos alimentos ocorra por razões técnicas e econômicas<br />

ou pelo gosto ou sabor, a sua importância<br />

maior parece ser a função que os alimentos<br />

desempenham na identidade individual<br />

e grupal, em detrimento inclusive do valor nutricional<br />

dos recursos alimentares disponíveis.<br />

Marshall Sahlins (<strong>19</strong>79), ao trabalhar a questão<br />

da comida na sociedade americana, sinaliza<br />

para o fato de que não se deve ater-se apenas<br />

à questão do consumo, pois a forma como é<br />

estabelecida a comestibilidade e a não-comesti-<br />

184 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 181-188, jan./jun., 2003


Sandra Simone Q. Morais Pacheco<br />

bilidade dos alimentos disponíveis nesta sociedade<br />

não são justificáveis por razões biológicas,<br />

ecológicas ou econômicas e exemplifica<br />

isso analisando o modelo de refeição em que<br />

prevalece a carne como alimento central, ficando<br />

os carboidratos e verduras como coadjuvantes.<br />

Neste modelo de refeição, o significado da<br />

centralidade da carne relaciona-se ao fato de<br />

esta evocar o pólo masculino de um código sexual<br />

da comida, que deve ter se originado na<br />

identificação indo-européia do boi com riqueza<br />

e virilidade. No imaginário da sociedade, de<br />

modo geral, uma refeição “forte”, com “sustança”,<br />

tem que ter carne.<br />

Este autor analisa também o porquê se consome<br />

carne de boi e de porco em detrimento da<br />

carne de cavalo e de cachorro na sociedade<br />

americana. Para ele os cachorros e os cavalos<br />

não são comestíveis porque participam daquela<br />

sociedade na condição de sujeitos, que têm inclusive<br />

nomes próprios. Os cachorros são como<br />

se fossem aparentados do homem e sua ingestão<br />

é assim inconcebível, enquanto os cavalos<br />

são como se fossem empregados, sendo sua<br />

ingestão não generalizada, porém concebível.<br />

Os porcos e os bois são comestíveis, pois geralmente<br />

são considerados objetos para os humanos,<br />

levam suas vidas à parte, não são complementos<br />

diretos nem são instrumentos de trabalho<br />

das atividades humanas. Para Sahlins, a<br />

comestibilidade está, portanto, inversamente<br />

relacionada com a humanidade.<br />

Uma outra questão que fornece dados interessantes<br />

para se refletir sobre o caráter sóciocultural<br />

da alimentação é a observação das<br />

mudanças ocorridas na forma de se alimentar,<br />

ao longo da história. Essa análise foi empreendida,<br />

no bojo de uma reflexão mais ampla, por<br />

Norbert Elias (<strong>19</strong>94), ao produzir uma abordagem<br />

sociológica que denominou “sociologia<br />

figuracional ou configuracional”, na qual busca<br />

entender e abordar o surgimento das configurações<br />

sociais, a partir da análise do curso das<br />

transformações ocorridas na sociedade ao longo<br />

do tempo e que desembocaram, seguindo<br />

uma direção específica, no que se denomina<br />

desenvolvimento ou civilização. Para Elias, o<br />

processo civilizador constitui uma mudança na<br />

conduta e nos sentimentos humanos rumo a uma<br />

direção muito específica, embora que não tenha<br />

sido planejada consciente ou racionalmente,<br />

isto é, através de qualquer ação intencional<br />

de pessoas isoladas ou grupos.<br />

Uma das questões mais interessantes no trabalho<br />

de Elias é a constatação de que os hábitos,<br />

incluindo-se aí os hábitos à mesa, são<br />

construídos dentro de um processo histórico de<br />

formação. Em cada momento histórico a sociedade<br />

produz comportamentos que são aceitos<br />

e introjetados por representarem as relações<br />

sociais possíveis/presentes naquele dado contexto<br />

sócio-econômico e cultural. O homem não<br />

introduziu determinados utensílios à mesa, mediação<br />

entre o alimento e o organismo, sem que<br />

mudanças ocorressem na sociedade e dentro<br />

de si mesmo.<br />

O autor, ao analisar as mudanças operadas<br />

no âmbito do uso do garfo, observa que esse<br />

utensílio surgiu no fim da Idade Média com o<br />

objetivo de retirar alimentos da travessa comum,<br />

sendo paulatinamente introduzido como utensílio<br />

de uso individual. De início, o uso do garfo<br />

para se levar o alimento à boca era considerado<br />

um sinal exagerado de refinamento e costumava<br />

ser seriamente reprimido. Mais de cinco<br />

séculos se passariam para que o uso deste utensílio<br />

atendesse a uma necessidade mais geral:<br />

só a partir do século XVI ele passou a ser usado,<br />

e as pessoas que o fizeram inicialmente foram<br />

ridicularizadas por essa maneira “afetada”<br />

de comer, sendo que a inabilidade era tanta que<br />

metade da comida caía no caminho do prato à<br />

boca. Poder-se-ia perguntar por que se come<br />

com o garfo e não com as mãos e a resposta<br />

levaria à idéia de que comer com garfo é “civilizado”,<br />

além de mais higiênico. Para Elias:<br />

A eliminação do ato de comer com a mão do próprio<br />

prato pouco tem a ver com o perigo de contrair<br />

doença, a chamada explicação “racional” (...).<br />

O garfo nada mais é que a corporificação de um<br />

padrão específico de emoções e um nível específico<br />

de nojo. Por trás da mudança nas técnicas à<br />

mesa entre a Idade Média e os tempos modernos<br />

reaparece o mesmo processo que emergiu<br />

na análise de outras explicações desse mesmo<br />

processo: uma mudança na estrutura de impulsos<br />

e emoções (<strong>19</strong>94, p.133).<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 181-188, jan./jun., 2003<br />

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Alimentação, cultura e educação: em busca de uma abordagem transdisciplinar<br />

Outra análise feita por Elias (<strong>19</strong>94) diz respeito<br />

à mudança na maneira como a carne é<br />

servida. Na classe alta medieval o animal morto<br />

– ou grande parte dele – era trazido inteiro à<br />

mesa, onde era trinchado, sendo esta uma tarefa<br />

muito especial designada ao dono da casa<br />

ou a hóspedes ilustres. A partir do século XII<br />

desaparece gradualmente o costume de se colocar<br />

na mesa grandes pedaços de carne. Mudam<br />

o patamar de repugnância e o padrão de<br />

sentimentos, que se direcionam no sentido de<br />

tornar desagradável a lembrança de que o prato<br />

de carne tem algo a ver com o sacrifício do<br />

animal. O ato de trinchar que outrora se constituiu<br />

numa parte importante da vida social, depois<br />

passa a ser julgado repugnante. O animal<br />

continua a ser cortado antes de ser servido,<br />

porém o repugnante é removido para o fundo<br />

da vida social, “para longe da vista” (p.128).<br />

Os hábitos, incluindo-se aí os relacionados à<br />

alimentação, são portanto comportamentos que<br />

refletem um determinado padrão de psiquismo,<br />

que se relaciona diretamente à forma de organização<br />

social. Há uma relação importante entre<br />

mudanças no tecido das emoções, que envolve a<br />

forma como o indivíduo se relaciona consigo<br />

mesmo e com os outros, e a organização e distribuição<br />

do poder na sociedade. A construção social<br />

de um poder central, que institui normas de<br />

convivência, foi fundamental na modelagem de<br />

um padrão de comportamento que reflete, em<br />

cada época e em cada momento, os valores de<br />

uma determinada formação social.<br />

Entre os profissionais e estudantes de Nutrição,<br />

as dimensões sócio-culturais não são totalmente<br />

ignoradas na discussão sobre hábito<br />

alimentar. Alguns trabalhos nesta área enfocam<br />

temas que abrangem o processo de formação<br />

e modificação dos hábitos via veículos socializadores,<br />

como a família, as determinações sócioeconômicas,<br />

geradas pela desigualdade no acesso<br />

e possibilidade de consumo dos alimentos, e<br />

as barreiras impostas pela tradição na modificação<br />

de hábitos arraigados.<br />

Estes estudos comungam da idéia de que os<br />

hábitos alimentares se adquirem na infância<br />

(BOOG, <strong>19</strong>85; CASTRO; PELLIANO, <strong>19</strong>85;<br />

BOEHMER, <strong>19</strong>94). Pode-se falar que há uma<br />

autêntica pedagogia do gosto no contexto familiar,<br />

fazendo com que a criança, desde o seu<br />

nascimento, passe a receber os alimentos considerados<br />

adequados à sua idade, ainda que<br />

estes alimentos variem segundo as diferentes<br />

culturas e classes sociais.<br />

A família e a escola são preponderantes na<br />

formulação de um padrão alimentar. A criança<br />

cresce em um ambiente familiar que tem um<br />

comportamento alimentar definido, que se repete<br />

dia após dia e ao qual ela se adapta, sendo<br />

que este processo não se reduz à simples repetição<br />

de determinadas experiências gustativas,<br />

pois o papel que os outros membros da família<br />

exercem, ao elogiarem ou censurarem determinados<br />

alimentos e preparações, contribui também<br />

para a aquisição de determinados hábitos,<br />

e não outros (BOEHMER, <strong>19</strong>94).<br />

Ao sair do convívio basicamente familiar e<br />

penetrar no contexto escolar, o indivíduo experimentará<br />

outros alimentos e preparações e terá<br />

oportunidade de promover alterações nos seus<br />

hábitos alimentares, a partir das influências do<br />

grupo social e dos estímulos presentes no sistema<br />

educacional.<br />

A partir do final da década de 70, as abordagens<br />

enfocam as diferenças nos padrões alimentares<br />

das classes sociais como historicamente<br />

determinadas, dentro das condições postas<br />

pela estrutura social para as diferentes classes<br />

que a compõem. Nesta abordagem, os fatores<br />

essenciais na determinação dos hábitos<br />

alimentares são: a disponibilidade objetiva de<br />

certos produtos alimentares em condições específicas<br />

de clima e solo; as influências culturais<br />

do processo de colonização; a classe social<br />

como modo de vida, delimitando as práticas e<br />

hábitos; e a contínua produção de novos hábitos<br />

e práticas pela introdução de alimentos industrializados<br />

ou de alimentos não tradicionalmente<br />

usados para o consumo humano (VA-<br />

LENTE, <strong>19</strong>86).<br />

Ao lado dessas duas preocupações – a formação<br />

do hábito via socialização e como resultado<br />

de processos sociais, políticos e históricos<br />

que engendram desigualdades sociais – encontra-se<br />

a abordagem própria dos projetos de intervenção<br />

na área, que, tendo como pano de<br />

186 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 181-188, jan./jun., 2003


Sandra Simone Q. Morais Pacheco<br />

fundo a promoção de ações educativas, toma o<br />

hábito como impedimento à adoção de comportamentos<br />

mais racionais frente à alimentação.<br />

Em muitos casos, é clara a força destes hábitos<br />

e a dificuldade que encontra o indivíduo em<br />

adaptar-se a novos estilos de alimentar-se, pois<br />

os hábitos ritualizam-se, incorporam-se ao cotidiano,<br />

preenchem funções simbólicas, reproduzem-se<br />

num espaço/tempo indeterminado, independentemente<br />

da função fisiológica (CAS-<br />

TRO; PELLIANO, <strong>19</strong>85).<br />

O trabalho na área de educação alimentar,<br />

cujo objetivo é geralmente a modificação e/ou<br />

introdução de hábitos, é considerado por profissionais<br />

da área de nutrição como o maior<br />

desafio da prática cotidiana. Hábitos arraigados,<br />

geralmente carregados de significados psicológicos<br />

e sociais, são profundamente difíceis<br />

de serem mudados. O paladar é um elemento<br />

importante na escolha dos alimentos e sua preparação,<br />

e, de modo geral, convencer o indivíduo<br />

a consumir ou deixar de consumir determinados<br />

alimentos é uma tarefa árdua e que nem<br />

sempre produz os resultados esperados.<br />

O Relatório Nacional Brasileiro da Cúpula<br />

Mundial da Alimentação, realizada em Roma<br />

em <strong>19</strong>96, considera que a informação correta<br />

sobre hábitos alimentares recomendáveis é um<br />

componente essencial nas políticas de combate<br />

a distúrbios nutricionais e deve ser priorizada<br />

nas ações educativas em nutrição. Esta recomendação<br />

institucional ainda cita os hábitos alimentares<br />

errôneos arraigados na população,<br />

como possível elemento contribuinte na determinação<br />

de distúrbios nutricionais de variadas<br />

ordens. Nestas recomendações, se chama atenção<br />

para uma concepção que se encontra freqüentemente<br />

na literatura da área: a idéia do<br />

hábito “errado”, gerando doenças e do “certo”,<br />

que deve ser perseguido pelo indivíduo para que<br />

ele tenha saúde.<br />

Luís da Câmara Cascudo (<strong>19</strong>67), no livro<br />

História da Alimentação no Brasil, pontua<br />

algumas predileções alimentares que os séculos<br />

tornaram hábitos, que só podem ser explicados<br />

como uma norma de uso, um respeito à<br />

herança mantida pela tradição. Para ele, os<br />

padrões alimentares são “... inarredáveis como<br />

acidentes geográficos na espécie geológica”<br />

(<strong>19</strong>67, p.4), que só se modificarão na dependência<br />

do mesmo processo de formação: o tempo.<br />

Impõe-se a compreensão da cultura popular como<br />

realidade psicológica, entidade subjetiva atuante,<br />

difícil de render-se a uma imposição legislativa<br />

ou a uma pregação teórica (...). A batalha das<br />

vitaminas, a esperança do equilíbrio das proteínas,<br />

terão de atender às reações sensíveis e naturais<br />

da simpatia popular pelo seu cardápio,<br />

desajustado e querido (...). Falar das expressões<br />

negativas da alimentação para criaturas afeitas<br />

aos seus pratos favoritos (...) é ameaçar um ateu<br />

com as penas do inferno” (p.5).<br />

O que geralmente se observa, na prática dos<br />

profissionais de nutrição que lidam cotidianamente<br />

com hábitos arraigados e considerados<br />

muitas vezes absurdos, do ponto de vista científico,<br />

é que a orientação ou educação alimentar<br />

parte de um pressuposto normativo, presente<br />

nos livros, distante da realidade social das famílias.<br />

A visão de que há uma forma única de<br />

se alimentar pode incorrer em descrença por<br />

parte da população que tem dificuldade em largar<br />

suas crenças, por vezes relacionadas à religião<br />

ou, então, por um conhecimento adquirido<br />

oralmente por influência de pessoas de prestígio<br />

dentro da comunidade.<br />

Em um país com a diversidade cultural que<br />

tem o Brasil, a implementação de políticas públicas<br />

locais é imperativa para a resolução dos<br />

problemas nutricionais, além do que a atuação<br />

dessas políticas, na esfera educativa, para que<br />

seja eficaz, necessita incorporar linguagens diversas<br />

em que as práticas alimentares incorporadas<br />

possam ser reconhecidas.<br />

As políticas públicas na área de alimentação<br />

e nutrição têm usualmente se pautado em<br />

práticas clientelistas, em que a doação de alimentos<br />

cumpre o papel central na minimização<br />

das desigualdades sociais. Os parcos resultados<br />

conseguidos por esse tipo de ação isolada<br />

têm sido apontados como resultantes de práticas<br />

limitantes e limitadoras na resolução dos<br />

problemas nutricionais. Ao se ater à distribuição<br />

de cestas básicas padronizadas à população<br />

de baixa renda, os programas não mobilizam<br />

o capital cultural que se encontra latente<br />

nos diversos grupos sociais e que poderiam ser<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 181-188, jan./jun., 2003<br />

187


Alimentação, cultura e educação: em busca de uma abordagem transdisciplinar<br />

bons impulsionadores de práticas locais, contextualizadas<br />

e organizadoras do potencial presente<br />

em cada intervenção. Nesse caso, o Programa<br />

“Fome Zero”, lançado recentemente pelo<br />

governo federal, ainda que não se paute em idéias<br />

exatamente novas, parece caminhar no sentido<br />

da parceria Estado-Sociedade, o que pode<br />

significar políticas mais participativas e efetivas<br />

na minimização da penúria nutricional em<br />

que vive grande parcela da sociedade.<br />

Pode-se dizer, portanto, que nenhuma ação<br />

governamental será efetiva sem levar em consideração<br />

a complexidade dos processos sócioculturais<br />

vividos pelos diversos atores sociais.<br />

Este trabalho buscou colaborar com essa reflexão<br />

por compreender a multiplicidade de fatores<br />

que envolve o viver em coletividade, e por acreditar<br />

que a alimentação deve ser tratada como<br />

direito humano fundamental, não só pelas necessidades<br />

orgânicas inerentes à vida, mas também,<br />

entre outras coisas, pelo seu papel nos processos<br />

de sociabilidade, de formação de identidades<br />

culturais e de sentimentos de pertencimento a<br />

grupos específicos, fatores essenciais à condição<br />

de cidadania, neste mundo da globalização e<br />

da naturalização da exclusão social.<br />

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Recebido em 02.06.03<br />

Aprovado em 07.07.03<br />

188 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 181-188, jan./jun., 2003


Antonio Sérgio Alfredo Guimarães<br />

O ACESSO DE NEGROS ÀS UNIVERSIDADES PÚBLICAS<br />

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães *<br />

RESUMO<br />

Neste artigo, analiso o movimento por ações afirmativas, restringindo-me<br />

ao sistema de educação superior do país, justamente o setor mais visado<br />

pelas demandas dos militantes negros. Tais demandas encontraram respostas<br />

quase que imediatas do sistema político brasileiro, tanto por parte<br />

do governo, quanto por parte dos políticos, ainda que continue encontrando<br />

fortes resistências da sociedade civil. O meu objetivo principal é<br />

compreender as razões dessas reações tão díspares. A análise, entretanto,<br />

é antecedida por uma rápida apresentação tanto dos problemas educacionais<br />

do país, quanto das medidas que vêm sendo adotadas pelo governo<br />

e pelo sistema político em geral para contorná-los ou solucioná-los.<br />

Palavras-chave: Ação afirmativa - Negros - Educação Superior - Brasil<br />

ABSTRACT<br />

THE ADMISSION OF BLACKS TO PUBLIC HIGHER<br />

EDUCATION IN BRAZIL<br />

In this article I analyse the campaign for affirmative action policies,<br />

specifically in the national system of higher education, which is precisely<br />

the sector that is the target of demands by Black activists. These demands<br />

drew an immediate and positive response from the Brazilian political<br />

system, in the sense of the government apparatus and individual<br />

politicians. However, civil society is still very resistant. My main aim is<br />

to understand the reasons underlying these quite disparate reactions.<br />

The analysis is preceded by a brief overview of the problems in the<br />

education sector in general, as well as of the governmental measures<br />

being adopted to tackle these problems.<br />

Key words: Affirmative action – Blacks – Higher Education – Brazil<br />

Em <strong>19</strong>78, quando diversas organizações políticas<br />

e culturais negras se reuniram, em São<br />

Paulo, para fundar o Movimento Negro Unificado<br />

Contra a Discriminação Racial, as suas<br />

bandeiras de luta já não eram as mesmas herdadas<br />

da tradição das organizações negras<br />

paulistas, que remontam aos anos <strong>19</strong>20. Naqueles<br />

anos, as organizações negras nutriam o<br />

diagnóstico de que, mesmo que o “preconceito<br />

de cor” fosse um empecilho para o desenvolvimento<br />

e a integração social do povo negro brasileiro,<br />

o principal problema estava nos próprios<br />

negros, principalmente na carência de condições<br />

para competir no mercado de trabalho,<br />

*<br />

PHD em Sociologia pela Universidade de Wisconsin, Madison – EUA, e Livre docente pela USP. Professor<br />

da USP. Endereço para correspondência: Departamento de Sociologia – USP, Av. Luciano Gualberto, 315,<br />

Cidade Universitária – 06342.010 São Paulo, SP, Brasil. E-mail: asguima@uol.br<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003<br />

<strong>19</strong>1


O acesso de negros às universidades públicas<br />

dada a precariedade de educação formal, a ausência<br />

de boas maneiras e a falta de união entre<br />

os negros, ou seja, dada a fraqueza das organizações<br />

negras, vistas como incapazes de promover<br />

o avanço social dos membros da “raça” 1 .<br />

Com a democracia de <strong>19</strong>45, esse diagnóstico<br />

foi parcialmente abandonado pelas novas organizações<br />

negras, que passaram a dar mais ênfase<br />

à existência do preconceito de cor no Brasil,<br />

ainda que mantivessem o foco de seus esforços<br />

em atividades culturais, educativas e psicanalíticas<br />

(como as desenvolvidas pelo Teatro Experimental<br />

do Negro, no Rio de Janeiro). De qualquer<br />

modo, embora passasse a combater com<br />

mais afinco o “preconceito”, acreditava-se ainda<br />

que o ideal de democracia racial, característica<br />

do país, era uma ideologia suficientemente<br />

forte e progressista para abrigar e proteger a<br />

mobilização política e cultural dos negros. Apenas<br />

depois de rompida a ordem democrática, em<br />

<strong>19</strong>64, tal crença foi considerada uma “ilusão” e<br />

a democracia racial um “mito” 2 .<br />

Pois bem, nos anos <strong>19</strong>70, já não era o “preconceito<br />

racial”, mas a “discriminação racial”,<br />

o principal alvo da mobilização negra. Essa foi<br />

uma diferença crucial em relação às décadas<br />

passadas: a pobreza negra passou a ser tributada<br />

às desigualdades de tratamento e de oportunidades<br />

de cunho “racial” (e não apenas de cor).<br />

E os responsáveis por tal estado já não eram os<br />

próprios negros e sua falta de união, mas o<br />

establishment branco, governo e sociedade civil;<br />

numa palavra, o racismo difuso na sociedade<br />

brasileira. Ou seja, a posição da massa negra<br />

e a sua pobreza, tanto quanto a condição de<br />

inferioridade salarial e de poder dos negros mais<br />

educados, seriam fruto desse racismo que se<br />

escondia atrás do “mito da democracia racial”.<br />

A partir de <strong>19</strong>88, ano do centenário da abolição<br />

da escravatura e de promulgação da nova<br />

Constituição, as lideranças negras começaram<br />

a desenvolver um intenso trabalho na área de<br />

defesa dos direitos civis dos negros, principalmente<br />

aqueles garantidos pela nova carta, que<br />

tornou os “preconceitos de raça ou de cor” em<br />

crime inafiançável e imprescritível 3 . No entanto,<br />

passados poucos anos, já se tornava claro<br />

para esses militantes que a luta por direitos necessitava<br />

transpor os limites do combate aos<br />

“crimes de racismo”. Paulatinamente, portanto,<br />

voltaram-se essas organizações para o governo<br />

federal a demandar “ações afirmativas”,<br />

tais como o governo norte-americano adotara<br />

nos anos <strong>19</strong>60 e o governo sul-africano de Nelson<br />

Mandela passara a discutir. Essa demanda<br />

representou uma importante guinada na pauta<br />

de reivindicação dos negros brasileiros, dando<br />

início a uma era de luta contra as desigualdades<br />

sociais do país, vistas agora como “raciais”,<br />

independentemente do combate à discriminação<br />

e ao preconceito.<br />

Junto com o Movimento dos Sem Terra,<br />

ainda que de modo menos dramático, menos<br />

conflituoso, e de escopo social menor, quase que<br />

restrito às “novas classes médias negras” 4 , o<br />

movimento dos negros brasileiros contra as desigualdades<br />

raciais é sem dúvida uma importante<br />

forma de mobilização social no Brasil de<br />

hoje. Mobilização essa que se torna mais importante<br />

à medida que os conflitos urbanos de<br />

classe (como os protagonizados pelos sindicatos<br />

operários) tenderam a se eclipsar na esteira<br />

das reformas “neoliberais” e do realinhamento<br />

internacional da economia brasileira.<br />

Neste artigo, vou restringir a análise desse<br />

movimento por ações afirmativas ao sistema de<br />

educação superior do país, justamente o setor<br />

mais visado pelas demandas dos militantes e,<br />

por isto mesmo, responsável pelo caráter de<br />

1<br />

Ver, a respeito, as análises clássicas de Bastide e Fernandes<br />

(<strong>19</strong>55) e Fernandes (<strong>19</strong>65).<br />

2<br />

Ver Guimarães (2003).<br />

3<br />

A Constituição Federal de <strong>19</strong>88, em seu artigo n° 5,<br />

parágrafo XLII, reza: “a prática do racismo constitui crime<br />

inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão,<br />

nos termos da lei.” Esse parágrafo é regulamentado<br />

pela lei nº 7.716, de 5 de janeiro de <strong>19</strong>89, modificada<br />

depois pela lei n° 9.459 de 13 de maio de <strong>19</strong>97. Ver Silva<br />

Jr (<strong>19</strong>98).<br />

4<br />

Num país como o Brasil, onde, segundo Barros, Henriques<br />

e Mendonça (2000), em <strong>19</strong>97, 14% da população<br />

vivia abaixo da linha de indigência (R$ 76,36 mensais) e<br />

34% abaixo da linha de pobreza (R$ 152,73 mensais), a<br />

categoria “classe média” pode ser enganosa. Seria melhor<br />

dizer que estamos falando de camadas afluentes dos trabalhadores,<br />

de alguns autônomos e profissionais de pouca<br />

renda e pequenos proprietários urbanos, entre outros.<br />

<strong>19</strong>2 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003


Antonio Sérgio Alfredo Guimarães<br />

“classe média”, de que falei acima. Como veremos,<br />

essas demandas encontraram respostas<br />

quase que imediatas do sistema político brasileiro,<br />

tanto por parte do governo, quanto por<br />

parte dos políticos, ainda que continue encontrando<br />

fortes resistências da sociedade civil.<br />

Meu objetivo é compreender as razões de reações<br />

tão díspares.<br />

Antes, porém, faz-se necessário uma rápida<br />

apresentação tanto dos problemas educacionais<br />

do país, quanto das medidas que vêm sendo<br />

adotadas pelo governo e pelo sistema político<br />

em geral para contorná-los ou solucioná-los.<br />

A crise educacional brasileira<br />

O fato mais marcante na política educacional<br />

brasileira depois de <strong>19</strong>64, ou seja, depois da<br />

derrota das forças nacionalistas que entretinham<br />

um projeto socialista para o país 5 , foi a estagnação<br />

da rede de ensino público universitário,<br />

conjuntamente com a expansão do ensino privado<br />

em todos os níveis de educação – o elementar,<br />

o médio e o superior 6 . Esse relativo<br />

abandono da educação por parte do estado brasileiro<br />

é parcialmente responsável pelo fato de<br />

que apenas 7,8% da população brasileira de 18<br />

a 24 anos estivesse nas universidades em <strong>19</strong>98<br />

(IBGE/PNAD, apud SAMPAIO; LIMONGI;<br />

TORRES, 2000) 7 .<br />

Deve-se salientar, entretanto, que a solução<br />

dada pelos governos militares ao “problema<br />

educacional” do país não foi alterada pelos quatro<br />

governos democráticos depois de <strong>19</strong>85 (as<br />

administrações Sarney, Collor, Itamar e Fernando<br />

Henrique). A linha mestra continuou sendo<br />

a expansão do sistema superior de educação<br />

privada e a estagnação da rede pública. A rede<br />

privada de ensino superior, que já congregava<br />

59% dos alunos, em <strong>19</strong>85, passou a concentrar<br />

62%, em <strong>19</strong>98 (INEP-MEC, <strong>19</strong>99). Na verdade,<br />

o ensino público superior se expandiu apenas<br />

através da criação de universidades estaduais<br />

ou municipais, mas em número insuficiente<br />

para contrabalançar a retirada de investimentos<br />

na expansão da rede pública federal.<br />

De fato, a presença do governo federal na educação<br />

superior, medida em termos de alunado,<br />

caiu de 40%, em <strong>19</strong>85, para <strong>19</strong>%, em <strong>19</strong>98<br />

(INEP-MEC <strong>19</strong>99).<br />

Ora, se o problema da escassez de vagas<br />

universitárias foi parcialmente compensada pela<br />

rede privada, formou-se, com o tempo, um novo<br />

problema, pois a expansão do ensino privado<br />

elementar e médio deu-se pari passu ao crescimento<br />

da “qualidade” do serviço ofertado, o<br />

mesmo não acontecendo com o nível superior,<br />

no qual a iniciativa privada demonstrou-se incapaz<br />

de ofertar um ensino equivalente, em termos<br />

de “qualidade”, à rede pública já estabelecida<br />

8 . Isso por vários motivos, o principal deles o<br />

alto custo da formação acadêmica e da pesquisa<br />

científica, que exigem altos investimentos em<br />

recursos humanos e treinamento. No ensino<br />

elementar e médio, ao contrário, a iniciativa privada<br />

foi capaz não apenas de atrair os melhores<br />

professores, como alguns dos melhores professores<br />

tornaram-se eles mesmos, com o tempo,<br />

grandes empresários.<br />

5<br />

As forças socialistas a que me refiro eram aquelas ancoradas<br />

principalmente por três movimentos sociais: as Ligas<br />

Camponesas, no campo, que demandavam por reforma<br />

agrária; o movimento estudantil, que lutava pela ampliação<br />

das vagas das universidades públicas; e o movimento<br />

operário, nas cidades, cujas demandas eram basicamente<br />

salariais. Essas eram as principais forças sociais<br />

a trazerem para o sistema político demandas potencialmente<br />

desestabilizadoras, posto que este se organizava<br />

de modo conservador, preservando e casando os interessas<br />

das antigas oligarquias agrárias aos interesses da indústria<br />

emergente.<br />

6<br />

A tendência de crescimento do ensino privado em detrimento<br />

do ensino público é analisada em Cunha (<strong>19</strong>86). Por<br />

outro lado, Barros, Henriques e Mendonça (2001, p.<strong>19</strong>),<br />

analisando dados internacionais, chegam à conclusão de<br />

que “o sistema educacional brasileiro entre meados dos<br />

anos 60 e 80 se expandiu a uma taxa bem mais lenta que a<br />

média internacional correspondente.”<br />

7<br />

Maria Helena Guimarães de Castro (2000), usando dados<br />

do INEP/MEC, estima em 14,8% o percentual de<br />

jovens entre 20 e 24 matriculados em escolas superiores,<br />

em <strong>19</strong>98.<br />

8<br />

Uso o termo “qualidade” para designar algo que não é<br />

objetivo e unívoco, mas uma construção histórica sobre o<br />

que é o bom ensino. Em grande parte, a percepção da<br />

“qualidade” está associada ao sucesso dos alunos no vestibular,<br />

no caso do ensino de nível médio, e no mercado de<br />

trabalho, no caso do ensino superior.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003<br />

<strong>19</strong>3


O acesso de negros às universidades públicas<br />

O resultado desses dois movimentos em direção<br />

oposta foi que a rede pública e gratuita<br />

de ensino médio e elementar expandiu-se com<br />

baixa “qualidade” ou mesmo, no mais das vezes,<br />

com certa precariedade. Ora, o motivo para<br />

a melhoria do ensino fundamental e médio oferecido<br />

pela rede privada foi justamente a relativa<br />

estagnação do ensino superior, na rede pública.<br />

Isso porque, motivados pelo afunilamento<br />

da oferta de ensino superior de “qualidade”,<br />

assegurado pelo mecanismo do vestibular, as<br />

famílias de classe média e alta demandaram em<br />

números crescentes a rede privada de ensino<br />

elementar e médio, permitindo não apenas a sua<br />

expansão física, mas a melhoria da oferta dos<br />

seus serviços, reforçada ainda mais pela concorrência<br />

entre as escolas particulares. Quanto<br />

mais se acentuava a concorrência, entretanto,<br />

mais difícil ficava para os filhos das classes<br />

médias, situados na sua franja mais pobre, cursarem<br />

os melhores colégios e atingirem a universidade<br />

pública.<br />

Em meados dos anos <strong>19</strong>70, algumas parcelas<br />

da sociedade brasileira, principalmente a<br />

classe média negra, já sentiam os efeitos dessa<br />

política. Como disse Joel Rufino (<strong>19</strong>85), os jovens<br />

negros, para titularem-se, tinham de recorrer à<br />

rede particular de ensino superior, obtendo diplomas<br />

desvalorizados no mercado de trabalho,<br />

que acentuavam ainda mais a discriminação<br />

racial de que eram vítimas. Foram justamente<br />

os negros os primeiros a denunciarem, como<br />

discriminação, o relativo fechamento das universidades<br />

públicas brasileiras aos filhos das<br />

famílias mais pobres, que na concorrência pela<br />

melhor formação em escolas de primeiro e segundo<br />

graus, eram vencidas pelas classes média<br />

e alta. As provas de exame vestibular para<br />

o ingresso nas universidades públicas passaram<br />

a ser realizadas, portanto, num contexto de grande<br />

desigualdade de formação, motivada principalmente<br />

pela renda familiar. Jovens de classe<br />

média e alta, que podiam cursar as melhores e<br />

mais caras escolas elementares e de segundo<br />

grau, praticamente abocanhavam todas as vagas<br />

disponíveis nos cursos das universidades<br />

públicas e gratuitas. A perversão do sistema<br />

tornava-se clara.<br />

O que há de novo, portanto, é que, ao contrário<br />

dos anos <strong>19</strong>60, não foram as classes médias<br />

“brancas”, mobilizadas em torno de ideais<br />

socialistas e empenhadas numa política de alianças<br />

de classes, pretendendo-se, no mais das<br />

vezes, os porta-vozes de camponeses e operários,<br />

que tomaram a cena política. Quem empunhou<br />

a nova bandeira de luta por acesso às<br />

universidades públicas foram os jovens que se<br />

definiam como “negros” e se pretendiam porta-vozes<br />

da massa pobre, preta e mestiça, de<br />

descendentes dos escravos africanos, trazidos<br />

para o país durante mais de trezentos anos de<br />

escravidão. Essa juventude estudantil negra<br />

começa a realizar assim o ideal de luta socialista<br />

verbalizado por Florestan Fernandes (<strong>19</strong>72):<br />

o negro seria o mais oprimido e explorado de<br />

todos, e a sua luta a mais radical das lutas de<br />

emancipação.<br />

A demanda e as resistências às<br />

ações afirmativas<br />

A partir de <strong>19</strong>96, o presidente Fernando<br />

Henrique Cardoso passou a dar mais espaço<br />

para que a demanda por ações afirmativas, formulada<br />

pelos setores mais organizados do movimento<br />

negro brasileiro, se expressasse no<br />

governo 9 . A razão para tal abertura deveu-se<br />

não apenas à sensibilidade sociológica do presidente,<br />

ou à relativa força social do movimento,<br />

mas também à difícil posição em que a doutrina<br />

da “democracia racial” encurralava a chancelaria<br />

brasileira em fóruns internacionais, cada<br />

vez mais freqüentados por ONGs negras. O país,<br />

que se vangloriava de não ter uma questão racial,<br />

era reiteradamente lembrado das suas “desigualdades<br />

raciais”, facilmente demonstráveis<br />

pelas estatísticas oficiais, sem poder apresen-<br />

9<br />

Em julho de <strong>19</strong>96, o Ministério da Justiça organizou em<br />

Brasília um seminário internacional sobre “Multiculturalismo<br />

e racismo: o papel da ação afirmativa nos estados<br />

democráticos contemporâneos”, para o qual foram convidados<br />

vários pesquisadores, brasileiros e americanos, assim<br />

como um grande número de lideranças negras do país.<br />

O presidente em pessoa fez questão de abrir os trabalhos<br />

do seminário, acompanhado pelo vice-presidente e pelo<br />

ministro da Justiça.<br />

<strong>19</strong>4 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003


Antonio Sérgio Alfredo Guimarães<br />

tar, em sua defesa, nenhum histórico de políticas<br />

de combate a essas desigualdades. Era em<br />

busca de uma saída política que o presidente<br />

queria trazer o debate sobre ações afirmativas<br />

para perto do governo.<br />

De fato, o diagnóstico técnico sobre o caráter<br />

racial das desigualdades sociais brasileiras<br />

já era internacionalmente conhecido desde os<br />

anos <strong>19</strong>80 (SILVA, <strong>19</strong>78; HASENBALG,<br />

<strong>19</strong>79). A crise educacional brasileira, inclusive<br />

o acesso restrito de negros ao ensino superior,<br />

a má qualidade da escola fundamental pública<br />

e a grande desigualdade racial em todos os níveis<br />

de ensino, já era amplamente discutida nos<br />

meios intelectuais e políticos quando o governo<br />

social-democrata de Fernando Henrique tomara<br />

posse em <strong>19</strong>95. Em um importante artigo,<br />

publicado em <strong>19</strong>90, em que analisam dados da<br />

PNAD de <strong>19</strong>82, Hasenbalg e Silva (<strong>19</strong>90, p.99),<br />

por exemplo, chamavam a atenção para o fato<br />

de que:<br />

As informações da PNAD de <strong>19</strong>82 indicaram que,<br />

no que diz respeito ao acesso ao sistema escolar,<br />

uma proporção mais elevada de crianças não<br />

brancas ingressa tardiamente na escola. Além<br />

disso, a proporção de pretos e pardos que não<br />

têm acesso de todo à escola é três vezes maior<br />

que a dos brancos. Estas desigualdades não<br />

podem ser explicadas nem por fatores regionais,<br />

nem pelas circunstâncias sócio econômicas das<br />

famílias. Embora uma melhor situação sócio econômica<br />

reduza a proporção de crianças que não<br />

têm acesso à escola independentemente de sua<br />

cor, ainda persiste uma diferença clara nos níveis<br />

gerais de acesso entre crianças brancas e<br />

não brancas mesmo nos níveis mais elevados de<br />

renda familiar per capita.<br />

Na verdade, durante todos os anos <strong>19</strong>80 e<br />

nos cinco anos dos <strong>19</strong>90 que antecederam a<br />

posse de Cardoso, as mobilizações em torno do<br />

centenário da abolição da escravatura (<strong>19</strong>88) e<br />

dos 300 anos de Zumbi (<strong>19</strong>93) 10 possibilitaram<br />

que o diagnóstico sobre as desigualdades raciais<br />

brasileiras, assim como o racismo à brasileira,<br />

fosse amplamente discutido na imprensa<br />

(GUIMARÃES, <strong>19</strong>98). Especialmente porque,<br />

a partir da regulamentação das disposições transitórias<br />

da Constituição de <strong>19</strong>88, que tornou crime<br />

a prática de preconceitos de raça, passou a<br />

haver uma grande movimentação das ONGs<br />

negras em torno da denúncia e da perseguição<br />

legal de atos de discriminação. Foi justamente<br />

o esgotamento da estratégia de combater as<br />

desigualdades através da punição da discriminação<br />

racial que levou as entidades negras a<br />

demandar por políticas de ação afirmativa 11 .<br />

Nos primeiros tempos, de <strong>19</strong>95 até bem recentemente,<br />

a reação da sociedade civil, através<br />

de seus principais intelectuais e meios de<br />

comunicação de massa, foi largamente contrária<br />

à adoção de políticas de cunho racialista. O<br />

movimento negro, assim como os poucos intelectuais<br />

brancos que defendiam tais políticas,<br />

viram-se politicamente isolados, por mais de<br />

uma vez, sob a acusação de vocalizar e deixarse<br />

colonizar culturalmente pelos valores norteamericanos.<br />

De fato, nada mais contrário à identidade<br />

nacional brasileira, tal como foi formada<br />

historicamente – como identidade anti-colonial,<br />

culturalmente híbrida e racialmente mestiça –,<br />

que o reconhecimento étnico-racial dos negros.<br />

Assim, os que porventura tinham sólidos interesses<br />

na manutenção das desigualdades encontraram<br />

aliados cujos motivos eram puramente<br />

ideológicos, pessoas que viam nas políticas<br />

dirigidas preferencialmente aos negros a penetração<br />

no Brasil do “multiculturalismo” e do<br />

“multiracialismo” de extração anglo-saxônica.<br />

Não foi surpresa, portanto, que alguns setores<br />

do governo, mesmo diante do diagnóstico<br />

de que as barreiras educacionais que atingem<br />

os negros são o principal entrave à igualdade<br />

racial no país, tivessem resistido duramente,<br />

durante toda a administração Cardoso, à adoção<br />

de medidas racialistas (SILVA, 2000). O<br />

10<br />

Zumbi, chefe do Quilombo dos Palmares, que resistiu<br />

bravamente aos portugueses e aos holandeses, transformou-se<br />

em símbolo da resistência negra, sendo reconhecido<br />

como herói nacional brasileiro, em <strong>19</strong>95.<br />

11<br />

A campanha pela punição do racismo culminou com o<br />

endurecimento, em <strong>19</strong>93, da lei que pune as ofensas raciais<br />

com cinco anos de reclusão. A estratégia de<br />

“criminalização” do racismo passou a receber mais restrições<br />

que incentivos por parte da opinião pública, quando<br />

o crime se mostrou muito mais comum que o esperado<br />

pelo legislador.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003<br />

<strong>19</strong>5


O acesso de negros às universidades públicas<br />

Ministério da Educação, sobretudo, se recusou<br />

a aceitar o caráter “racial” das desigualdades<br />

educacionais, preferindo atribuí-las ao mau funcionamento<br />

do ensino fundamental público e a<br />

questões de renda e classe social. Para o ministro<br />

Souza (2001), o problema de acesso do<br />

negro às universidades só poderia ser resolvido<br />

através da universalização do ensino de nível<br />

fundamental e médio e da melhoria da suas<br />

condições de funcionamento, ou seja, através<br />

da política implementada durante sua gestão<br />

(<strong>19</strong>95-2002) e cujos frutos seriam colhidos pelas<br />

próximas gerações.<br />

Portanto, até 2001, quando se realiza a Conferência<br />

de Durban, o grosso da ação governamental<br />

restringiu-se ao combate à pobreza, através<br />

de programas color-blind, como os programas<br />

Alvorada, Avança Brasil e Comunidade<br />

Solidária. Até então, apenas alguns programas<br />

específicos do governo federal levavam<br />

explicitamente em consideração a identidade<br />

racial dos participantes. Estes programas eram<br />

conduzidos por ministérios em que quadros negros<br />

do partido do governo tinham alguma ascendência:<br />

Justiça (programa Nacional de Direitos<br />

Humanos), Trabalho (o projeto “Brasil:<br />

Raça e Gênero” e o PLANFOR – Programa<br />

de Formação Profissional) e Cultura (Titulação<br />

de Terras de Remanescentes de Quilombos).<br />

Em relação à pobreza, a ação governamental<br />

foi relativamente bem sucedida, mesmo porque<br />

tal redução pode ser atribuída, em grande<br />

parte, à estabilização econômica, lograda com<br />

o Plano Real. Segundo os números divulgados<br />

pelo governo brasileiro, registrados no Projeto<br />

Alvorada (BRASIL, 2000), de <strong>19</strong>90 a <strong>19</strong>97<br />

reduziu-se em 10 pontos percentuais o número<br />

de brasileiros abaixo da linha da pobreza (de<br />

44% para 34% da população).<br />

Mas, se a estabilidade diminuiu a pobreza<br />

absoluta, as desigualdades sociais, principalmente<br />

as raciais não parecem ter diminuído. É o<br />

que dizem Barros, Henriques e Mendonça<br />

(2000, p.38):<br />

O maior declínio no grau de desigualdade, apesar<br />

de pouco relevante, encontra-se na entrada<br />

da década, entre os anos de <strong>19</strong>89 e <strong>19</strong>92. Em<br />

particular, no que se refere ao Plano Real, não<br />

dispomos de evidência alguma de que tenha produzido<br />

qualquer impacto significativo sobre a<br />

redução no grau de desigualdade, apesar de a<br />

pobreza ter sofrido uma redução importante ...<br />

Ademais, se é inegável que a administração<br />

Cardoso conseguiu vitórias expressivas no terreno<br />

social 12 , a diminuição da pobreza não pode<br />

ser considerada como um ganho irreversível,<br />

mas, ao contrário, uma oscilação cuja manutenção<br />

dependerá do crescimento econômico<br />

futuro. Pelo menos é isso que sugerem os dados:<br />

Ao longo das últimas duas décadas, a intensidade<br />

da pobreza manteve um comportamento de<br />

relativa estabilidade, com apenas duas pequenas<br />

contrações, concentradas nos momentos de<br />

implementação dos Planos Cruzado e Real. Esse<br />

comportamento estável, com a percentagem de<br />

pobres oscilando entre 40% e 45% da população,<br />

apresenta flutuações associadas, sobretudo,<br />

à instável dinâmica macroeconômica do período.<br />

O grau de pobreza atingiu seus valores<br />

máximos durante a recessão do início dos anos<br />

80, quando a percentagem de pobres em <strong>19</strong>83 e<br />

<strong>19</strong>84 ultrapassou a barreira dos 50%. As maiores<br />

quedas resultaram, como dissemos, dos impactos<br />

dos Planos Cruzado e Real, fazendo a percentagem<br />

de pobres cair abaixo dos 30% e 35%,<br />

respectivamente. (BARROS; HENRIQUES;<br />

MENDONÇA, 2000, p.23)<br />

Para um país que gastava, em 2000, cerca<br />

de 20% do PIB em programas sociais, e que<br />

tinha uma renda per capita anual em torno de<br />

US$ 2.900,00, a persistência de altos níveis de<br />

pobreza só pode estar “vinculada a uma distribuição<br />

de renda extremamente desigual e à<br />

baixa eficácia do gasto público” (BRASIL,<br />

2000, p.23).<br />

A resistência da sociedade civil brasileira a<br />

políticas públicas racialistas, entretanto, foi parcialmente<br />

quebrada pela repercussão favorável,<br />

na opinião pública internacional, às posições<br />

do Brasil na Conferência Mundial Contra a<br />

Discriminação Racial, em 2001. De fato, em<br />

12<br />

Utilizando-se os dados da PNAD de <strong>19</strong>99, vê-se que, a<br />

taxa de analfabetismo caiu de 14%, em <strong>19</strong>95, para 5,5%,<br />

em <strong>19</strong>99; e que o número de crianças fora da escola oscilou<br />

de 17,8% para 4,3%, entre <strong>19</strong>89 e <strong>19</strong>99; que o número<br />

de domicílios atendidos por rede de água aumentou de<br />

76,3% para 79,8%, entre <strong>19</strong>95 e <strong>19</strong>99.<br />

<strong>19</strong>6 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003


Antonio Sérgio Alfredo Guimarães<br />

TABELA 1 - Distribuição dos estudantes segundo a cor: UFRJ, UFPR, UFMA, UnB, UFBA e<br />

USP - 2001<br />

COR UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB USP<br />

Branca 76,8 86,5 47 50,8 63,7 78,2<br />

Negra 20,3 8,6 42,8 42,6 32,3 8,3<br />

Amarela 1,6 4,1 5,9 3,0 2,9 13,0<br />

Indígena 1,3 0,8 4,3 3,6 1,1 0,5<br />

Total 100 100 100 100 100 100<br />

% de negros no Estado 44,63 20,27 73,36 74,95 47,98 27,40<br />

Déficit 24,33 11,67 30,56 33,55 15,68 18,94<br />

Fonte: Pesquisa Direta: Programa A Cor da Bahia /UFBA; I Censo Étnico-Racial da USP; e IBGE - Tabulações<br />

Avançadas, Censo de 2000.<br />

Durban, o empenho pessoal do presidente levou<br />

a chancelaria brasileira a aposentar definitivamente<br />

a doutrina da “democracia racial”, reconhecendo,<br />

em fórum internacional, as desigualdades<br />

raciais do país e se comprometendo a<br />

revertê-las através da adoção de políticas afirmativas.<br />

Como conseqüência, depois de Durban, vários<br />

segmentos da administração pública brasileira<br />

passaram a adotar cotas de emprego<br />

para negros, tais como os ministérios da Justiça<br />

e da Reforma Agrária. No entanto, no setor<br />

crucial, a Educação, tudo que se logrou foi<br />

a criação de uma comissão de trabalho, como<br />

veremos adiante.<br />

A pequena absorção de jovens “negros”<br />

nas universidades brasileiras<br />

O problema de acesso do negro brasileiro<br />

às universidades é também um problema de sua<br />

ausência nas estatísticas universitárias. Até dois<br />

anos atrás (2000), não havia em nenhuma universidade<br />

pública brasileira registro sobre a identidade<br />

racial ou de cor de seus alunos. Só quando<br />

a demanda por ações afirmativas para a<br />

educação superior fez-se sentir é que surgiram<br />

as primeiras iniciativas, na forma de censos e<br />

de pesquisas por amostra, para sanar tal deficiência<br />

13 . Nesse item vou valer-me dos dados<br />

produzidos pelas primeiras iniciativas nesse sentido,<br />

tomadas pela Universidade de São Paulo<br />

e pelo Programa “A Cor da Bahia” da Universidade<br />

Federal da Bahia.<br />

Esses dados mostram que a proporção de<br />

jovens que se definem como “pardos” e “pretos”<br />

nas universidades brasileiras, principalmente<br />

naquelas que são públicas e gratuitas, está<br />

muito abaixo da proporção desses grupos de<br />

cor na população.<br />

Vejamos alguns dados. Na Universidade de<br />

São Paulo (USP), em 2001, havia 8,3% de “negros”<br />

(ou seja, 7% de “pardos” e 1,3% de “pretos”)<br />

para uma população de 20,9% de pardos<br />

e 4,4% de “pretos” no Estado de São Paulo. A<br />

USP, com 34 mil estudantes graduação, é a<br />

única universidade pública na região da Grande<br />

São Paulo, que congrega 17 milhões de pessoas,<br />

excetuando a Escola Paulista de Medicina<br />

(Unifesp), que tinha 1.281 alunos em 2001.<br />

A tabela 1 mostra que a mesma desigualdade<br />

de acesso é registrada em outras universidades<br />

públicas do país, como a do Rio de Janeiro<br />

(UFRJ), do Paraná (UFPR), da Bahia<br />

(UFBA), do Maranhão (UFMA), e de Brasília<br />

(UnB).<br />

A análise dos dados da FUVEST, órgão que<br />

administra o vestibular para a USP, referentes<br />

aos resultados do vestibular 2000, nos permite<br />

13<br />

A pergunta sobre identidade de cor (“qual é a sua cor?”)<br />

no formulário de inscrição ao vestibular foi formulada<br />

pela primeira vez na Universidade Federal da Bahia, em<br />

<strong>19</strong>99, e hoje já consta dos formulários de muitas universidades.<br />

A única estatística oficial sobre a identidade de cor<br />

dos estudantes universitários é aquela que consta das estatísticas<br />

do Exame Nacional de Cursos, chamado<br />

“provão”, que, entretanto, não compreende todos os cursos<br />

universitários.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003<br />

<strong>19</strong>7


O acesso de negros às universidades públicas<br />

TABELA 2 - Taxa de sucesso (relação aprovados/candidatos) no vestibular 2000 por cor do<br />

candidato, segundo o nível sócio-econômico<br />

Classe/cor branca preta parda amarela indígenas total<br />

A 8,1% 5,6% 8,5% 13,1% 7,6% 8,5%<br />

B 7,4% 4,9% 6,4% 10,9% 5,6% 7,6%<br />

C 5,5% 3,0% 3,9% 8,5% 6,1% 5,5%<br />

D-E 4,2% 3,7% 2,2% 7,2% 2,0% 3,9%<br />

Fonte dos dados brutos: FUVEST (Guimarães et al. 2002).<br />

verificar alguns dos fatores que explicam a pequena<br />

absorção de “negros” nas universidades<br />

brasileiras. Em primeiro lugar, como era de se<br />

esperar, nota-se uma grande seletividade segundo<br />

as classes sócio-econômicas das famílias dos<br />

candidatos (vide Tabela 2).<br />

A tabela 2 mostra, por exemplo, que a classe<br />

sócio-econômica interfere no desempenho<br />

dos membros de todos os grupos de cor: quanto<br />

maior a classe sócio-econômica do candidato,<br />

melhor o seu desempenho, maiores as chances<br />

de acesso. A influência da classe também se<br />

manifesta através de três outras variáveis. Primeiro,<br />

a possibilidade de dedicação exclusiva<br />

aos estudos: aqueles que não precisam trabalhar<br />

têm um desempenho melhor no vestibular.<br />

Segundo, e relacionado a esse, o turno em que<br />

cursou a escola secundária: aqueles que estudaram<br />

no período diurno têm mais sucesso.<br />

Terceiro, a natureza do estabelecimento de 1º e<br />

2º graus em que se estudou: aqueles que cursaram<br />

escolas públicas estaduais e municipais têm<br />

menos possibilidade de sucesso (GUIMARÃES<br />

et al., 2001).<br />

Evidentemente, esses dados apontam para<br />

problemas estruturais da sociedade brasileira,<br />

que precisam ser enfrentados, entre os quais<br />

destacam-se a pobreza dos “negros” e a baixa<br />

qualidade da escola pública.<br />

No entanto, os dados apontam também para<br />

dois outros fatores que precisamos destacar. Em<br />

primeiro lugar, o candidato “negro” (“pardo” ou<br />

“preto”), quando comparado ao candidato que<br />

se identifica como “amarelo”, demonstra que<br />

lhe falta apoio familiar e comunitário. Assim, o<br />

maior sucesso dos “amarelos”, também uma<br />

minoria de cor, se explica, em parte, no caso da<br />

USP, pelo maior número de vezes que eles tentam<br />

o vestibular, pelo maior tempo de preparação<br />

para o vestibular, medido por anos de cursinho,<br />

e pelo fato de se inscreverem em maior<br />

número como “treineiros”. Ao contrário, são os<br />

“negros” os que estão em pior situação nesses<br />

três indicadores. Uma conclusão preliminar que<br />

se impõe, portanto, é a de que, além de problemas<br />

de ordem sócio-econômica, os “negros”<br />

enfrentam também problemas relacionados com<br />

preparação insuficiente e pouca persistência ou<br />

motivação. Problemas desse tipo acompanham<br />

todas as minorias que vivenciaram posição social<br />

subalterna por um longo período de tempo,<br />

seja porque os laços comunitários são ainda fracos,<br />

seja porque o grupo não desenvolveu uma<br />

estratégia eficiente de reversão de sua posição<br />

de subordinação.<br />

Com essa observação, chegamos ao segundo<br />

fator que gostaria de destacar: a evidência<br />

inconteste de elementos de racismo introjetado.<br />

Ou seja, o desempenho inferior dos grupos “pardo”<br />

e “preto” em todas as classes sócio-econômicas<br />

(exceto os “pardos” de classe A) sugere<br />

que há também um elemento subjetivo,<br />

talvez um sentimento de baixa auto-confiança,<br />

que interfere no desempenho dos “negros” em<br />

situação de grande competição, tal como ocorre<br />

também com outros grupos oprimidos. O fato<br />

de que situações de grande competição, como<br />

o vestibular, não medem adequadamente as<br />

qualidades e os saberes dos estudantes “negros”<br />

fica comprovado, quando comparamos o rendimento<br />

escolar e a pontuação no vestibular por<br />

grupos de cor. Mascarenhas (2001), em estudo<br />

sobre os estudantes da Universidade Federal<br />

da Bahia, achou, por exemplo, que os alunos<br />

“pretos” do curso de Medicina ingressaram com<br />

escore inferior aos “brancos”(5,32 contra 5,48),<br />

<strong>19</strong>8 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003


Antonio Sérgio Alfredo Guimarães<br />

mas durante o curso apresentavam rendimento<br />

superior aos mesmos (7,49 contra 7,31). Ou<br />

seja, tudo leva a crer que o exame vestibular,<br />

dado o seu caráter de competição extremada e<br />

tensa, prejudica mais o desempenho de membros<br />

de minorias.<br />

Com essa última observação, quero sugerir<br />

também que há problemas com a forma de seleção<br />

para as universidades: o exame vestibular<br />

não deixa espaço para que outras qualidades e<br />

potencialidades dos alunos sejam avaliadas.<br />

Sintetizando, as causas da pequena absorção<br />

dos “negros” têm a ver com (a) pobreza;<br />

(b) a qualidade da escola pública; (c) preparação<br />

insuficiente; (d) pouca persistência (pouco<br />

apoio familiar e comunitário); (e) e com a forma<br />

de seleção (o exame de vestibular não deixa<br />

espaço para que outras qualidades e potencialidades<br />

dos alunos sejam avaliadas).<br />

A luta por ações afirmativas<br />

A primeira tentativa das organizações negras<br />

de fazer face à obstrução do acesso dos<br />

negros à universidade brasileira deu-se na forma<br />

de criação de cursos de preparação para o<br />

vestibular. Organizados geralmente a partir do<br />

trabalho voluntário de militantes e simpatizantes,<br />

que se dispunham a ensinar gratuitamente,<br />

ou a um preço puramente simbólico, a jovens<br />

negros da periferia do Rio de Janeiro, São Paulo<br />

e de outras grandes cidades brasileiras, esses<br />

cursos funcionavam, e ainda funcionam, em<br />

espaços físicos cedidos por entidades religiosas<br />

ou associações comunitárias. Estima-se hoje<br />

em mais de 800 o número desses núcleos espalhados<br />

por todo o país. O mais famoso e mais<br />

amplo desses cursos é o Pré-Vestibular para<br />

Negros e Carentes, no Rio de Janeiro, e o<br />

Educafro, em São Paulo, ambos ligados à Pastoral<br />

Negra da Igreja Católica e liderados pelo<br />

Frei David (ARAÚJO, 2001; MAGGIE, 2001) 14 .<br />

Trata-se de um verdadeiro movimento social,<br />

organizado nos últimos anos por diversas lideranças<br />

“negras” e religiosas. O sucesso dessa<br />

estratégia, no entanto, é apenas relativo. Se é<br />

verdade que tais cursinhos têm conseguido ajudar<br />

milhares de jovens a ingressar no ensino<br />

superior, é também verdade que o seu sucesso<br />

é bem maior nas escolas particulares que nas<br />

públicas, o que coloca de cara o problema de<br />

custeio do curso universitário. O Ministério da<br />

Educação não tem colocado bolsas de estudos<br />

à disposição desses alunos. Mais importante<br />

ainda: as melhores escolas superiores do país,<br />

as universidades federais e estaduais paulistas,<br />

têm-se mantido praticamente inexpugnáveis a<br />

essa estratégia.<br />

De um modo geral, a defasagem entre alunos<br />

“negros” e “brancos” é tão grande, acumulada<br />

ao longo das escolas primária e secundária,<br />

fortalecida pela ausência de políticas públicas<br />

que compensem a desigualdade de distribuição<br />

de renda e de outros recursos, que a<br />

estratégia de fazer cursos pré-vestibulares para<br />

negros e carentes, apesar de valorosa e importante<br />

para soerguer a auto-estima desses alunos,<br />

cujo grande capital é a esperança (SAN-<br />

TOS, 2001), só pode ter resultados concretos<br />

(em termos de acesso a universidade) muito<br />

parciais. Em sua página na Internet, por exemplo,<br />

o Educafro, de São Paulo, torna pública a<br />

sua crítica às universidades públicas:<br />

Em São Paulo, chegamos ao mês de abril /2001<br />

com 87 bolsistas na Universidade São Francisco<br />

de Assis; 26 bolsistas na PUC-SP; 65 bolsistas<br />

na UNISA e 25 bolsistas na ESAN; 2 bolsistas<br />

na FEI; 16 bolsistas na Faculdade São Luiz; 29<br />

bolsistas na UMC; 22 bolsistas na São Camilo;<br />

144 bolsistas na Faculdades Claretianas; 105<br />

bolsistas na Unisal; 6 bolsistas na Unisantos e 7<br />

bolsistas na Unisanta. No total, até abril de<br />

2001, tínhamos 534 universitários bolsistas!!!<br />

Na pública USP, temos 46 alunos entre os matriculados<br />

e os que estão cursando como alunos<br />

especiais. O fato do vestibular da USP ser o mais<br />

elitista do Brasil, inclusive não permitindo que<br />

os pobres tenham isenção da taxa do vestibular,<br />

tem dificultado o ingresso dos nossos alunos<br />

nesta Universidade (a Educafro teve que abrir<br />

49 processos contra a USP, para conquistar a<br />

isenção). A USP, como Universidade Pública,<br />

deveria estar voltada para os alunos da rede<br />

pública. É fundamental ampliarmos o combate a<br />

esta injusta postura. É falta de visão social ou<br />

de coragem do comando da USP não criar políticas<br />

públicas voltadas para o combate das<br />

14<br />

Ver também site disponível em <br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003<br />

<strong>19</strong>9


O acesso de negros às universidades públicas<br />

estruturas que, nestes 501 anos, geraram a ausência<br />

dos pobres e dos afrodescendentes nos<br />

bancos universitários. 15<br />

Uma outra via, no entanto, tem sido tentada<br />

ultimamente, e já está implementada em alguns<br />

estados brasileiros, como o Rio de Janeiro e a<br />

Bahia, de maioria populacional negra: a definição<br />

de cotas nas universidades estaduais. Assim,<br />

em 9 de novembro de 2001, o governador<br />

Garotinho, do Rio de Janeiro, sancionou a Lei<br />

3.708, que reserva um mínimo de 40% de vagas<br />

nas universidades estaduais cariocas (a<br />

Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a<br />

Universidade Estadual do Norte Fluminense) a<br />

estudantes “negros e pardos”. Essa Lei modificou<br />

a Lei 3.524/2000, assinada pelo mesmo Garotinho<br />

que reservou 50% das vagas da UERJ e<br />

UENF aos estudantes oriundos de escolas públicas.<br />

Em 20 de julho de 2002, a Universidade do<br />

Estado da Bahia (UNEB), através da resolução<br />

<strong>19</strong>6/2002, segue o mesmo caminho, reservando<br />

40% das suas vagas de vestibular aos afro-descendentes<br />

(pretos e pardos).<br />

Ainda que a importância simbólica das medidas<br />

adotadas pelos governos do Rio e da Bahia<br />

seja inegável, tem-se que esperar um pouco<br />

mais para avaliar o resultado concreto, em termos<br />

de ampliação do acesso dos negros, das<br />

políticas adotadas. Mesmo porque não sabemos<br />

qual o número atual de “negros” já matriculados<br />

nessas universidades, sendo bem possível<br />

que este já esteja dentro das cotas anunciadas.<br />

É preciso também saber se as cotas serão<br />

adotadas para cada curso ou se serão aplicadas<br />

ao seu conjunto. Só no primeiro caso há chance<br />

de abrirem-se aos negros os cursos “de elite” da<br />

universidade brasileira, tais como os de Medicina,<br />

Engenharia, Direito, etc.<br />

Alguma mobilização para que as universidades<br />

federais adotem programas de ação afirmativa<br />

começa a se fazer notar também na<br />

Universidade de Brasília, na Universidade Federal<br />

da Bahia, na Universidade Federal do Paraná<br />

e na Universidade Federal de São Carlos.<br />

No entanto, nada de concreto, até o ano de 2002,<br />

resultou dessas mobilizações, exceto, talvez, o<br />

fato de que o Ministério da Educação, que se<br />

opusera tenazmente à adoção de cotas ou políticas<br />

de ação afirmativa, restringindo a sua atuação<br />

à melhoria do ensino básico e de 2º. grau,<br />

acabou, recentemente, se rendendo às pressões<br />

da comunidade negra 16 e, através de medida<br />

provisória n° 63, de 26 de agosto de 2002, assinada<br />

pelo Presidente da República, criou o Programa<br />

Diversidade na Universidade “com a finalidade<br />

de implementar e avaliar estratégias<br />

para a promoção do acesso ao ensino superior<br />

de pessoas pertencentes a grupos socialmente<br />

desfavorecidos, especialmente dos afro-descendentes<br />

e dos indígenas brasileiros”.<br />

Essa mobilização já tinha encontrado eco<br />

anteriormente no Senado, onde a Comissão de<br />

Constituição, Justiça e Cidadania aprovara a Projeto<br />

de Lei do Senado n° 650, em <strong>19</strong>99, ainda<br />

não votado em plenário, que institui a cota de<br />

20% das vagas das universidades federais para<br />

estudantes negros. No entanto, o estabelecimento<br />

de cotas uniformes para “negros” nas universidades<br />

públicas, tal como proposto por este e outros<br />

projetos de lei em tramitação no Congresso<br />

Nacional, não parece ser uma boa alternativa.<br />

Isso porque elas ignoram as disparidades regionais<br />

em termos demográficos, assim como as<br />

especificidades de cada universidade 17 .<br />

No que toca aos universitários brasileiros, é<br />

preciso se reconhecer que há, de fato, interes-<br />

15<br />

Como resposta a essa reivindicação, a FUVEST, em<br />

São Paulo, isenta anualmente 16.000 estudantes de pagamento<br />

de taxa de inscrição para vestibular. Tal isenção se<br />

dá também em várias outras universidades brasileiras como<br />

resposta às reivindicações do movimento negro.<br />

16<br />

Usamos o termo “comunidade negra” para designar o<br />

grupo de ativistas, simpatizantes políticos e religiosos<br />

que se definem politicamente como “negros”. Tal definição<br />

é registrada por Sansone (2000).<br />

17<br />

Felizmente, nos últimos anos, temos assistido à mobilização,<br />

nas principais universidades públicas brasileiras,<br />

no sentido de produzirem estatísticas, através de censos,<br />

pesquisas por amostragem e de modificações nos registros<br />

administrativos, que possam servir para diagnosticar<br />

e planejar políticas públicas de justiça racial. A Universidade<br />

Federal de Minas Gerais, por exemplo, introduziu<br />

em seus registros administrativos, a partir da matrícula<br />

de 2002, uma pergunta sobre a cor de seus alunos. Com<br />

isso, esta universidade poderá, no futuro, estabelecer<br />

metas temporais bem delimitadas de absorção de “negros”<br />

e, eventualmente, desdobrá-las em políticas e mecanismos<br />

concretos de flexibilização dos instrumentos de<br />

seleção, como, por exemplo, a ponderação dos resultados<br />

dos exames de conhecimento, levando em conta a extração<br />

social e racial dos candidatos.<br />

200 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003


Antonio Sérgio Alfredo Guimarães<br />

ses contraditórios em jogo entre o movimento<br />

negro, por um lado, e professores e alunos já<br />

matriculados, por outro. Uns, os estudantes que<br />

tiveram uma boa educação escolar e que podem<br />

entrar nas universidades públicas através<br />

do vestibular, temem que políticas de acesso<br />

especial para negros diminuam as suas chances,<br />

posto que o número de vagas não se expande<br />

na mesma razão da expansão da demanda; outros,<br />

os professores, temem que a política educacional<br />

do governo tome a via mais fácil, cedendo<br />

às reivindicações negras, mas mantendo<br />

razoavelmente estável o investimento na educação<br />

superior pública, o que, na prática, significaria<br />

o comprometimento do nível de “qualidade”<br />

dos cursos universitários da rede pública.<br />

Ora, como vimos, parte da garantia dessa<br />

qualidade é justamente a relativa estagnação<br />

no tempo da oferta de vagas.<br />

Porque ações afirmativas<br />

Para finalizar, gostaria de mudar o tom do<br />

discurso que adotei até aqui e assumir uma posição<br />

nitidamente mais engajada, favorável às<br />

ações afirmativas que estão sendo demandadas<br />

pelo movimento negro. Para tanto, vou discutir,<br />

no restante deste texto, três argumentos,<br />

usados normalmente para desqualificar a adoção<br />

de políticas de ação afirmativa na educação<br />

superior brasileira: a sua alegada ineficácia,<br />

que seria devida à inexistência, no Brasil,<br />

de identidades de cor bem definidas; as suas<br />

possíveis implicações negativas sobre a qualidade<br />

do ensino público; e o da injustiça que elas<br />

representariam para alguns grupos sociais. Comecemos<br />

pela cor.<br />

Um dos argumentos mais fortes usados, no<br />

Brasil, contra a adoção de políticas que levem<br />

em conta a identidade racial dos indivíduos é de<br />

ordem prática: não haveria fronteiras raciais<br />

bem definidas no país. O argumento, me parece,<br />

é melhor como efeito discursivo, desarmando<br />

os adversários pelo apelo ao senso comum e<br />

às representações consensuais de si mesmo,<br />

que como apelo substantivo ou racional.<br />

Vejamos os dados disponíveis para a USP,<br />

por exemplo. Quando fizemos a pergunta<br />

“Usando as categorias do censo do IBGE, qual<br />

a sua cor?”, oferecendo como respostas possíveis<br />

as cinco alternativas censitárias (branco,<br />

preto, pardo, amarelo e indígena), dos 14.794 alunos<br />

de graduação que responderam ao censo<br />

apenas 0,1% recusou-se a responder ou escolheu<br />

mais de uma opção. Quando selecionamos<br />

uma amostra aleatória, independente do censo,<br />

composta por 1509 alunos, o percentual de nãoresposta<br />

se elevou para 1,7%. Ou seja: está claro<br />

que a população brasileira, em particular a<br />

universitária, cultiva identidade de cor. Serão<br />

essas identidades tão fluidas a ponto de impedir<br />

“políticas de cor”? Creio que não. Mesmo os<br />

autores que ressaltam a “ambigüidade” do sistema<br />

de classificação racial brasileiro, como Peter<br />

Fry (<strong>19</strong>55), reconhecem que este se assenta sobre<br />

uma polaridade básica entre branco e preto.<br />

Historicamente, é para esses pólos que convergem<br />

as reivindicações políticas.<br />

Chegados a esse ponto, talvez convenha<br />

fazer um parêntese para lembrar o que é o sistema<br />

de classificação racial brasileiro em suas<br />

linhas mestras.<br />

“Raça”, no século XIX, no Brasil e no resto<br />

do mundo, ganhou uma conotação científica,<br />

biológica, da qual mesmo hoje temos dificuldade<br />

em nos desembaraçar. Na percepção da<br />

maior parte dos estrangeiros que visitam hoje o<br />

país, assim como na percepção dos viajantes<br />

do século XIX, a população do Brasil é composta<br />

em sua maior parte por mestiços, que não<br />

encontram grandes dificuldades e barreiras<br />

para sua ascensão social 18 . Esta percepção só<br />

é verossímil, entretanto, se trabalharmos com a<br />

categoria biológica de raça, própria ao século<br />

XIX, ainda que seja um fato inquestionável que<br />

a idéia de que somos uma nação mestiça é uma<br />

ideologia ainda hoje presente no Brasil. Paradoxalmente,<br />

entretanto, isso não impede que os<br />

nacionais percebam a existência do racismo <strong>19</strong> .<br />

18<br />

Sobre a percepção dos viajantes sobre a mistura de<br />

raças no Brasil, ver Schwarcz (<strong>19</strong>93).<br />

<strong>19</strong><br />

Em pesquisa realizada em <strong>19</strong>95 por um instituto de<br />

pesquisa, 89% dos brasileiros afirmaram existir preconceito<br />

de cor no Brasil. Ver: Folha de São Paulo e DataFolha<br />

(<strong>19</strong>95).<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003<br />

201


O acesso de negros às universidades públicas<br />

No século XX, a partir da segunda metade<br />

dos anos <strong>19</strong>20, para ser mais preciso, a idéia de<br />

“raça”, no Brasil, passou a ser utilizada com um<br />

significado mais propriamente histórico e cultural,<br />

à maneira como W.E. Du Bois (<strong>19</strong>86) a utilizava,<br />

e como passou a ser também utilizada no<br />

mundo francófono pelos poetas e políticos da<br />

negritude. A partir dessa idéia mais histórica e<br />

cultural de raça, os “homens de cor” no Brasil<br />

passaram a se definir como “negros” e a aceitar<br />

que os mestiços claros que se definiam como<br />

“brancos” fossem realmente brancos. Ou seja,<br />

o Brasil moderno, cujo marco é geralmente a<br />

Revolução de <strong>19</strong>30, é um país onde o grupo racial<br />

“branco”, assim como o grupo “negro” já se encontra<br />

razoavelmente coalescido, sendo designados<br />

oficialmente pelos censos demográficos<br />

do país, desde 1872, pelas cores “branca”, “preta”<br />

e “parda”. A designação “negra” passou a<br />

ser utilizada politicamente para agrupar os pretos<br />

e pardos, quando não é usada de forma insultuosa<br />

e derrogatória. Nesse sistema classificatório,<br />

no entanto, é verdade que a designação “morena”,<br />

preferida por 1/3 da população, é usada<br />

geralmente para designar a cor nacional, ou seja,<br />

da “raça brasileira” 20 . No entanto, como comentei<br />

acima, a propósito da resposta às questões de<br />

cor, a população brasileira convive bem com as<br />

duas linguagens: a cromo-racial e a nacionalracial,<br />

o que não constitui um obstáculo incontornável<br />

para a implantação de políticas de ação<br />

afirmativa.<br />

Mas alguém pode argüir que o núcleo racional<br />

do argumento é o que aponta para o fato de<br />

que nossa identidade de cor é fluida, não sendo<br />

suficiente para controlar o “problema da carona”,<br />

ou seja, impedir que pessoas que se identificam<br />

normalmente como brancas ou amarelas<br />

se identifiquem como “pardas”, “pretas” ou “indígenas”<br />

com o propósito exclusivo de se<br />

beneficiar dessas políticas. Esse é um risco verdadeiro,<br />

cuja extensão, infelizmente, não temos<br />

meios hoje de dimensionar. Sabemos que é possível<br />

que políticas de ação afirmativa realmente<br />

induzam a um aumento razoável do número<br />

de “negros” e de “indígenas”, ou seja, que criem<br />

incentivos para que se assumam identidades<br />

até aqui marcadas por estigmas, sem nenhum<br />

reconhecimento social. Assim, a simples<br />

mobilização negra nas décadas dos <strong>19</strong>80 e <strong>19</strong>90<br />

pode ter incentivado um maior número de pessoas<br />

a se definirem como “pretas”, no censo<br />

de 2000, contrariando a tendência histórica de<br />

declínio 21 . Do mesmo modo, têm-se assistido a<br />

um aumento do número de pessoas que se definem<br />

como “indígenas”, sem qualquer referência<br />

a grupos indígenas de pertença 22 . Este, entretanto,<br />

é um risco que pode ser controlado de<br />

diversas maneiras. Mesmo porque a condição<br />

de “negro” tem sido acoplada constantemente<br />

à de “carente”. Se o risco é verdadeiro, cabe<br />

às universidades adaptar sua administração para<br />

fazer face à eventuais fraudes. Não há porque<br />

supor que estas sejam incontroláveis, o que só<br />

seria correto se não tivéssemos identidades raciais<br />

e de cor bem estabelecidas, o que é um<br />

pressuposto gratuito, como vimos. Em suma, não<br />

me parece que este seja um risco incontornável.<br />

Um outro argumento muito usado, principalmente<br />

por professores das universidades públicas,<br />

contra as políticas de ação afirmativa para<br />

negros é de que a flexibilização do sistema de<br />

ingresso poderia acarretar uma perda de qualidade<br />

do ensino e de excelência das universidades.<br />

Para não dizer que acho esta opinião preconceituosa,<br />

direi que não conheço os dados em<br />

que ela pode estar baseada. Com que notas se<br />

ingressa, normalmente, nas universidades brasileiras?<br />

Essas notas variam de curso para curso?<br />

Há uma nota mínima de aprovação? Ou<br />

seja, o que quero dizer é que a competência<br />

para cursar o nível superior deve ser uma pre-<br />

20<br />

Alguns antropólogos, como Harris et al. (<strong>19</strong>93), criticam<br />

o IBGE por não incluir a designação “morena” no<br />

censo, argumentando que tal procedimento induz a<br />

racialização das formas de identidade social.<br />

21<br />

Entre <strong>19</strong>80 e 2000, a população que se define como<br />

“preta” e “parda”, no Brasil, segundo o IBGE, teve um<br />

pequeno aumento (respectivamente de 0,23% e 0,08%)<br />

enquanto a população branca caiu de 0,81%. Foi a primeira<br />

vez que isso aconteceu no século XX.<br />

22<br />

Os dados apresentados na Tabela 1 deste texto mostram<br />

um número de indígenas muito maior do que o que<br />

seria esperado nas universidade brasileiras, não se tratando,<br />

certamente, de pessoas pertencentes a comunidades<br />

indígenas, mas de pessoas que escolheram livremente se<br />

definir como tal.<br />

202 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003


Antonio Sérgio Alfredo Guimarães<br />

ocupação das universidades, mas não acredito<br />

que todos os ‘negros” que prestem exame vestibular<br />

e obtenham nota superior à mínima, digamos<br />

5 numa escala de 0 a 10, sejam aprovados.<br />

Talvez devessem ser.<br />

Na verdade, o argumento dos professores<br />

reflete muito mais, como vimos, a falta de confiança<br />

no governo por parte da comunidade<br />

universitária. A política do Ministério da Educação<br />

em relação às universidades gerou a desconfiança<br />

de que o governo tinha a intenção de<br />

desmanchar ou, pelo menos, diminuir a importância<br />

do sistema público de ensino superior do<br />

país, construído nos anos <strong>19</strong>30, <strong>19</strong>40 e <strong>19</strong>50.<br />

Finalmente, uma terceira maneira de desqualificar<br />

as políticas públicas que beneficiam membros<br />

de grupos privilegiados negativamente tem<br />

sido alegar o prejuízo que tais medidas podem<br />

causar a membros de outros grupos. Afinal, nossos<br />

direitos são definidos e garantidos a indivíduos<br />

e não a grupos. É perfeitamente possível que o<br />

estabelecimento de uma cota que beneficie os<br />

“negros”, por exemplo, acabe por limitar o acesso<br />

de “amarelos” à universidade.<br />

Como evitar esses efeitos perversos? Em<br />

primeiro lugar, é preciso que fique bem claro o<br />

objetivo das universidades públicas: elas se destinam<br />

apenas aos mais competitivos e mais capazes?<br />

Elas se destinam apenas aos estudantes<br />

mais carentes? Qual é o perfil que se deseja<br />

para o alunado dessas escolas? Como evitar<br />

uma associação perversa entre competitividade<br />

e nível de renda? Entre competitividade e identidade<br />

racial? São essas, eu creio, as questões<br />

éticas que estão em jogo. As respostas a essas<br />

questões devem ser buscadas nas próprias comunidades<br />

universitárias e na sociedade como<br />

um todo.<br />

Há muita coisa em jogo, inclusive a sobrevivência<br />

das universidades orientadas para a pesquisa<br />

e não apenas para o ensino. Enquanto não<br />

ficar claro o compromisso do governo com a expansão<br />

da pesquisa científica nessas universidades,<br />

qualquer movimento no sentido da flexibilização<br />

do acesso pode ser mal interpretado.<br />

No entanto, a questão básica continua: a<br />

excelência acadêmica pode ficar reservada aos<br />

“brancos”? A comunidade científica pode continuar<br />

a dar de ombros e dizer que esse não é o<br />

seu problema?<br />

Em termos práticos, indico apenas algumas<br />

saídas: é preciso, em primeiro lugar, criar mais<br />

vagas, para evitar assim o “jogo de soma zero”.<br />

Em segundo lugar, talvez seja também necessário<br />

ir mais além: por uma questão de justiça<br />

social, aliar ao critério da cor o critério da carência<br />

sócio-econômica; unir políticas de flexibilização<br />

ao acesso às universidades públicas<br />

com políticas de concessão de bolsas de estudo<br />

para alunos de universidades particulares, etc.<br />

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Recebido em 30.05.03<br />

Aprovado em <strong>19</strong>.08.03<br />

204 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. <strong>19</strong>1-204, jan./jun., 2003


José Manuel Gonçalves<br />

RELAÇÕES ECONÔMICAS NO ATLÂNTICO SUL:<br />

EVOLUÇÃO NO INÍCIO DO SÉCULO XXI<br />

José Manuel Gonçalves *<br />

RESUMO<br />

Este artigo aborda a evolução nos dois primeiros anos do século XXI,<br />

dando seqüência a texto anterior sobre os últimos anos do século XX.<br />

Quatro países servem como base de análise: Angola, África do Sul,<br />

Argentina e Brasil, sendo que entre Brasil e África do Sul as trocas são<br />

mais importantes. O artigo trata também de outros aspectos do relacionamento<br />

econômico nesta área oceânica: o projeto de zona de livre<br />

comercio entre o Mercosul e a SACU, os interesses comuns nas negociações<br />

mundiais e os grandes traços do desempenho interno das quatro<br />

economias.<br />

Palavras-chave: Comercio Exterior – Negociações Econômicas – Transcontinentalidade<br />

ABSTRACT<br />

ECONOMICAL RELATIONS IN THE SOUTH-ATLANTIC:<br />

EVOLUTION IN THE BEGINNING OF THE 21 ST CENTURY<br />

This article approaches the evolution in the first two years of the 21 st<br />

century, giving sequence to a previous text about the last years of the<br />

20 th century. Four countries serve as base of analysis: Angola, South<br />

Africa, Argentina and Brazil, being the most important trades between<br />

Brazil and South Africa. The article also encompasses other aspects of<br />

the economical relation in this oceanic area: The project of free commerce<br />

zone between the Mercosul and the SACU, the common interests in the<br />

world negotiations and the great traces of the internal performance of<br />

the four economies.<br />

Key words: Exterior Commerce – Economical Negotiations – Transcontinentality<br />

*<br />

Doutor em Economia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFFRJ. Professor de Economia no<br />

Mestrado História da África da UCAM - Universidade Cândido Mendes. Colabora com o Mestrado em<br />

Educação e Contemporaneidade, UNEB, na organização da área de pesquisas sobre as relações entre Brasil<br />

e África no Atlântico Sul. Ex-membro do Comitê Executivo do CODESRIA - Conselho para o Desenvolvimento<br />

da Pesquisa em Ciências Sociais em África. Membro do Centro de Estudos e Desenvolvimento da<br />

Diocese do Cunene, Angola. Endereço para correspondência: Universidade Candido Mendes - Instituto de<br />

Humanidades, Praça Pio X, n.7, 9º andar, Centro – 20040.020 Rio de Janeiro, RJ. E-mail: jogo34@hotmail.com.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003<br />

205


Relações econômicas no Atlântico Sul: evolução no início do século XXI<br />

Este texto faz parte do monitoramento bienal<br />

das relações econômicas no Atlântico Sul, iniciado<br />

com um trabalho relativo aos dois últimos<br />

anos do século XX, compreendendo aqui os dois<br />

primeiros do século XXI.<br />

Trata-se de uma região oceânica, cujos<br />

limites variam consoante os trabalhos. A noção<br />

mais alargada situa todos os territórios africanos<br />

e sul-americanos ao sul do estreito de<br />

Gibraltar. Outros, reduzem para o sul do Trópico<br />

de Câncer ou até para o sul do Equador.<br />

Neste texto, como ponto de partida, abordamos<br />

apenas quatro países dos extremos meridionais<br />

de ambas as margens, mas não temos<br />

nenhuma objeção ao alargamento da base geográfica<br />

de trabalho.<br />

O relacionamento entre as regiões, nesta<br />

área do globo, compreende vários séculos, iniciando-se<br />

com as empresas ibéricas de expansão<br />

marítima e tendo incidido, essencialmente,<br />

no tráfico escravista ao longo de quase três<br />

séculos.<br />

O fim deste período deu lugar a uma fase<br />

de escassos contatos comerciais e até políticos,<br />

mantendo-se, sobretudo entre Brasil e Angola,<br />

o que poderíamos chamar de “momentos<br />

de olhar cultural”.<br />

Na década de sessenta do século XX, as<br />

ditaduras militares do cone sul latino-americano<br />

e o regime de apartheid sul-africano imaginaram<br />

a possibilidade de aliança conservadora,<br />

iniciativa frustrada. Após a guerra das Malvinas,<br />

a ONU lançou o projeto “Zona de Paz e Cooperação<br />

do Atlântico Sul” que reuniu algumas<br />

conferências com vários países de ambas as<br />

margens.<br />

As sucessivas democratizações na América<br />

do Sul e África, as articulações de países do<br />

hemisfério Sul perante a configuração econômica<br />

mundial e iniciativas acadêmicas de conhecimento<br />

recíproco fizeram emergir de novo o<br />

interesse pelo estudo da área e até pela criação<br />

de uma zona de livre comércio na mesma.<br />

De fato, é da problemática geral das integrações<br />

transcontinentais que se trata, em toda<br />

esta pesquisa, abordando uma questão que tem<br />

estado presente, sob diversas formas, ao longo<br />

da História Econômica da Humanidade.<br />

As condições do desenrolar da economia<br />

mundial, no começo do século XXI, tornam a<br />

questão ainda mais presente: as proximidades<br />

geográficas que facilitam as trocas econômicas<br />

– e outras – são hoje muito mais vastas que<br />

no passado, com o progresso dos transportes,<br />

das telecomunicações, da comunicação cultural<br />

e do movimento de capitais.<br />

A situação econômica mundial conhece uma<br />

fase recessiva, desde o começo do século, sobre<br />

a qual a situação política consecutiva aos<br />

atentados de 11 de setembro exerce uma pressão<br />

suplementar.<br />

A conjuntura que se criou dá lugar a três<br />

fenômenos :<br />

– acentua o protecionismo em setores dos<br />

países do Norte – como a industria do aço e<br />

a agricultura;<br />

– aumenta o interesse das grandes potências<br />

pelos países do Sul, no quadro da política<br />

anti-terrorista, mas faz aparecer também<br />

uma postura mais autoritária, se comparada<br />

com final do século passado, em nível do<br />

relacionamento inter-Estados e com o FMI;<br />

– movimentos internacionais de protesto, por<br />

vezes violentos, contra instituições do tipo<br />

FMI, Banco Mundial, OMC, ou mesmo o<br />

Banco Africano de Desenvolvimento e o<br />

Banco Interamericano de Desenvolvimento.<br />

Nestas condições, a arena internacional não<br />

está propícia a acordos capazes de melhorar os<br />

níveis de crescimento dos países do Sul, nem<br />

os termos de equilíbrio na relação Norte-Sul ou<br />

mesmo na relação entre economias emergentes<br />

e economias mais atrasadas.<br />

Este fato, aliás, pode provocar acréscimo e<br />

radicalização das pressões para obter tais alterações<br />

por ruptura.<br />

As barreiras impostas pelos Estados Unidos<br />

às importações de aço foram seguidas por<br />

atitude semelhante da União Européia, provocando<br />

uma prova de força entre ambos, mas<br />

também mais dificuldades para produtores de<br />

aço do Sul, como Brasil, Índia e África do Sul.<br />

No capítulo dos subsídios agrícolas – que<br />

distorcem os preços no mercado mundial em<br />

favor dos países com mais poder financeiro –<br />

eles estão em ligeira redução, segundo o rela-<br />

206 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003


José Manuel Gonçalves<br />

tório da OCDE, nesta matéria, divulgado em<br />

junho de 2002. Ainda assim, os níveis foram<br />

superiores a 350 bilhões de USD para 2001, no<br />

conjunto da OCDE, a maior parte dos quais de<br />

apoio aos produtores no que toca a preços.<br />

Dois aspectos favoráveis, porém, são importantes<br />

pelo menos para os países beneficiados.<br />

Trata-se do importante crescimento do México<br />

– hoje a maior economia latino-americana – em<br />

grande medida graças à NAFTA e o aumento,<br />

em cerca de 50%, nas exportações da África<br />

do Sul para a União Européia, em 2000 e 2001,<br />

como resultado do Acordo de Livre Comércio<br />

entre ambos.<br />

No Atlântico Sul, o fato mais marcante, desde<br />

final de 2001 a final de 2002, foi a crise argentina.<br />

A imagem deste país como tendo uma<br />

economia problemática, mas articulada e com<br />

bom nível de responsabilidade governativa, desapareceu<br />

e passou a fazer parte dos países do<br />

Terceiro Mundo, altamente problemáticos, mesmo<br />

quando no primeiro trimestre de 2003 deu<br />

sinais de recuperação.<br />

A situação da moeda argentina foi fortemente<br />

abalada e, durante meses, ficou pior que a da<br />

moeda do Brasil, tão criticada nos anos noventa<br />

por Domingo Cavallo. Com o “corralito”<br />

(blocagem de levantamento de depósitos a prazo)<br />

seu sistema bancário perdeu credibilidade<br />

interna e internacional. Como efeito de seu enfraquecimento,<br />

o país foi muito pressionado pelo<br />

FMI, que procura restabelecer seus paradigmas<br />

e autoridade à escala dos países sub-desenvolvidos.<br />

A crise provocou uma brusca mudança de<br />

Presidência da Republica e sucessivas mudanças<br />

nos ministérios mais ligados à economia,<br />

enquanto se manifesta um importante movimento<br />

social, com potencial para impor mudanças.<br />

Perspectivas de crescimento, ainda que modesto,<br />

inverteram-se: o PIB acusou em 2002, segundo<br />

dados do INDEC (2003), uma perda de<br />

10%, situando o mesmo em cerca de 93 bilhões<br />

de USD ao câmbio do começo de 2003.<br />

As incertezas do comportamento do sistema<br />

bancário e a redução do poder de compra,<br />

tanto dos consumidores como das empresas,<br />

reduzem em cerca de 59% as importações procedentes<br />

do Brasil (segundo dados oficiais citados<br />

na mídia brasileira), diminuindo o impacto<br />

do Mercosul no plano das trocas.<br />

No plano dos posicionamentos, no entanto,<br />

a crise argentina reforçou a solidariedade entre<br />

os membros do Mercosul, quase não se assistindo<br />

mais a troca de críticas entre entidades<br />

oficiais do Brasil e Argentina, como tem sido<br />

comum e como foi constante no final da década<br />

de noventa.<br />

A questão principal neste momento é avaliar<br />

até que ponto a crise argentina vulnerabiliza<br />

mais os países do Mercosul nas negociações<br />

para configurar a ALCA, nas quais o Brasil<br />

continua insistindo em bloco de garantias para<br />

não acentuar desequilíbrios com a economia dos<br />

Estados Unidos.<br />

O Brasil absorveu relativamente bem a crise<br />

do Real de <strong>19</strong>99, manteve baixas taxas de<br />

inflação e permaneceu como um dos maiores<br />

destinos no Sul para Investimento Direto Estrangeiro<br />

(IDE), mas não reduziu significativamente<br />

as taxas de desemprego nem as elevadas<br />

faixas de pobreza, o que retira a sustentabilidade<br />

do modelo.<br />

Para acentuar este elemento, no começo de<br />

2002 tornou-se evidente que a elevada dívida<br />

interna do governo federal reduzia o interesse<br />

do mercado pelos títulos da dívida publica, o que<br />

provocou surtos de subida do dólar e oscilações<br />

em baixa da bolsa. As particularidades da campanha<br />

pré-eleitoral para a Presidência foram,<br />

por seu lado, aproveitadas pelo capital especulativo<br />

para ataques no mercado de câmbios e<br />

no financeiro em geral.<br />

Mesmo assim, o Brasil conseguiu um dos<br />

maiores saldos de sua balança comercial nesse<br />

mesmo ano e uma subida do PIB da ordem de<br />

1,5%, colocando-o em cerca de 388 bilhões de<br />

USD, ao câmbio de final de março de 2003<br />

(IBGE, 2003)<br />

A conjuntura sul-africana se assemelha à do<br />

Brasil, com respeito à inflação relativamente<br />

baixa (pelo menos em termos africanos), no<br />

caráter atraente de alguns setores da economia<br />

do país ao capital internacional e, também,<br />

na persistente blocagem do mercado de trabalho,<br />

portanto, no alto índice de desemprego.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003<br />

207


Relações econômicas no Atlântico Sul: evolução no início do século XXI<br />

Tal como no Brasil, o grande desemprego está<br />

relacionado com as camadas de mais baixo nível<br />

profissional, mas com as atuais taxas de crescimento,<br />

a interrogação de base é se programas<br />

de formação em larga escala não produzirão um<br />

número elevado de desempregados saídos desses<br />

programas, em ambos os países.<br />

Tal como o Real, o Rand também tem foi alvo<br />

de ataques especulativos ou de depressões por<br />

desconfiança do mercado. O ano de 2001 conheceu<br />

a mais vertiginosa queda da moeda sul-africana<br />

e, um inquérito posterior detectou, entre as<br />

causas, uma seqüência de três grandes operações<br />

do Banco da Alemanha (Deutsche Bank)<br />

relativas a três grandes empresas sul-africanas.<br />

No começo do segundo trimestre de 2002, o<br />

Rand recuperou grande parte das perdas do ano<br />

anterior e um acordo (quase todo secreto) de<br />

compensação foi assinado entre o Deutsche e<br />

o Banco de Reserva da África do Sul. De setembro<br />

a dezembro de 2002, a recuperação foi<br />

de 18%, a ponto que, em começo de 2003, os<br />

exportadores queixavam-se que o Rand estava<br />

forte demais (Business Day, vários números de<br />

março 2003).<br />

Assim, apesar de uma inflação que, pela<br />

primeira vez em vários anos, chegou a 10%, o<br />

PIB sul-africano cresceu 2,6%, segundo dados<br />

do Reserve Bank, situando o país acima da<br />

média dos 30 membros da OCDE. Partindo dos<br />

dados do Banco Mundial (WORLD BANK,<br />

2002) para 2001, esta taxa de crescimento situa<br />

o PIB sul-africano na faixa dos 115 bilhões<br />

de USD em 2002.<br />

Nestes primeiros anos do século XXI, a<br />

África do Sul lidera, junto com o Senegal, Egito<br />

e Nigéria, uma campanha internacional para<br />

captação constante de investimentos, capazes<br />

de assegurar o sucesso do programa Nova Parceria<br />

para o Desenvolvimento da África<br />

(NEPAD).<br />

Iniciativas do mesmo tipo já foram tomadas<br />

no passado, sendo os principais exemplos, o<br />

Plano de Lagos na década de setenta – de forte<br />

cunho nacionalista – e um Programa de Recuperação<br />

elaborado na Comissão Econômica<br />

para África da ONU, nos anos oitenta, já mais<br />

“market orientated”.<br />

A NEPAD acentua esta viragem e procura<br />

criar condições de infra-estrutura para a recuperação<br />

das economias africanas sob condições<br />

institucionais estimulantes. Visando uma taxa<br />

de crescimento da ordem dos 7%, durante todo<br />

um período (dificilmente determinável mas que<br />

pode situar-se num mínimo de uma década), as<br />

exigências de investimento seriam de cerca de<br />

64 bilhões de USD anuais, o que é considerado<br />

como incomportável na presente conjuntura<br />

mundial, segundo declarações atribuídas a responsáveis<br />

do G-8.<br />

A viabilidade deste programa e a sua diferença<br />

dos anteriores fracassos, residirá na capacidade<br />

africana de aumentar e mobilizar sua<br />

própria poupança interna, valorizando sua produção<br />

e aumentando os níveis dos recursos<br />

humanos.<br />

De qualquer forma, as expectativas em<br />

relação à NEPAD se estendem a todas as economias<br />

do continente africano e marca o conjunto<br />

de seu relacionamento externo.<br />

Outro projeto que pode marcar as economias<br />

do extremo sul da África, a zona de livre<br />

troca da Comunidade de Desenvolvimento de<br />

África Austral (SADC), vai ganhando contornos<br />

jurídicos, mas na prática pouco avançou em<br />

relação a <strong>19</strong>99. Quer dizer, as trocas entre os<br />

membros não se alterou muito, continuando a<br />

África do Sul a constituir um eixo muito desequilibrado<br />

de troca em função de sua incomparável<br />

capacidade produtiva.<br />

A quarta economia que acompanhamos nesta<br />

pesquisa, Angola, voltou a revelar mais recursos<br />

na área petrolífera e uma maior controle<br />

na extração e comercialização de diamantes,<br />

ficando a produção agrícola e industrial em níveis<br />

exíguos – 7% e 3,5% do PIB respectivamente<br />

– enquanto a inflação permanece em 3<br />

dígitos.<br />

O petróleo permanece acima dos 60% do<br />

PIB e atinge cerca de 80% das exportações.<br />

As importações continuam a centrar-se em<br />

bens de consumo imediato e alguns bens de<br />

equipamento, automóveis sobretudo. Em 2000,<br />

Portugal, com 15,9%, e Estados Unidos, com<br />

10,3%, são os maiores fornecedores, mas a<br />

África do Sul subiu ao terceiro lugar, quase em<br />

208 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003


José Manuel Gonçalves<br />

igualdade com os norte-americanos. A África do<br />

Sul representa 10,2% das importações angolanas<br />

(EIU, 2001), o que constitui um dos raros<br />

casos de elevado reforço de relações comerciais<br />

na zona SADC e, de certa maneira, reduz os<br />

efeitos da queda nas relações sul-africanas com<br />

o Zimbabwe, em virtude da crise neste país.<br />

A este volume, aliás, deve somar-se o<br />

comércio através da fronteira de Angola com a<br />

Namíbia, sobretudo na área do Cunene, com<br />

grande impacto no Sudoeste angolano. Grande<br />

parte do movimento é informal o que dificulta a<br />

recolha estatística. A maioria dos produtos é de<br />

origem sul-africana, comercializados por empresas<br />

namibianas, muitas vezes filiais de matrizes<br />

da África do Sul<br />

A subida dos preços do petróleo em 2003<br />

deve permitir que o PIB angolano atinja os 10<br />

bilhões de USD até final do ano, com base nos<br />

dados sobre o PIB em 2002 publicados pelo<br />

Banco Mundial (WORLD BANK, 2002)<br />

Mas o fato mais relevante é o fim da longa<br />

guerra civil e as fracas possibilidades de que<br />

possa recomeçar, como ocorreu em <strong>19</strong>92. Apesar<br />

disso, os efeitos do conflito exigem tempo<br />

para serem superados e, por exemplo, quase<br />

três milhões de pessoas continuam na situação<br />

de deslocadas.<br />

A corrupção, problema grave nos quatro países,<br />

assume em Angola aspectos mais repugnantes,<br />

dada a escala da pobreza. O fim da guerra<br />

já produziu algumas aberturas que autorizam uma<br />

abordagem publica mais livre e implicando prestação<br />

de contas.<br />

Consultas internacionais decorrem desde<br />

março de 2002 para convocar uma conferência<br />

internacional financeira, de onde possa sair<br />

apoio às intenções angolanas de reconstrução<br />

e, neste quadro, há indicações de empenho por<br />

parte do Brasil que reabriu sua linha de crédito<br />

com Angola e que vai recebendo carregamentos<br />

de petróleo para amortizar a dívida angolana<br />

anterior.<br />

Esta linha de crédito é, aliás, responsável pela<br />

reativação do comércio entre os dois países,<br />

colocando o Brasil em quinto lugar na lista das<br />

importações angolanas, com 4,4% do total em<br />

2000 (EIU, 2001).<br />

No começo do segundo semestre de 2002,<br />

Angola e Uruguai assinaram um acordo de cooperação<br />

agrícola.<br />

As relações econômicas entre os dois países<br />

africanos e os dois sul-americanos, considerados<br />

neste trabalho, aumentaram nos três<br />

últimos anos tendo o Brasil como ponto fulcral.<br />

São as trocas entre Brasil e África do Sul e<br />

Brasil e Angola que determinam a evolução, que<br />

se processa agora num marco institucional um<br />

pouco diferente do século XX e com tendência<br />

para se modificar mais ainda.<br />

Na reunião de Cúpula do Mercosul de 2000<br />

em Florianópolis, o Presidente sul-africano<br />

Thabo Mbeki esteve presente e foi assinado um<br />

acordo para negociações sobre a criação de<br />

uma zona de livre comércio entre ambos. Embora<br />

tal acordo se destine apenas a promover<br />

negociações, sua existência e a realização (durante<br />

a visita de Mbeki) de uma compra importante<br />

de aviões brasileiros, por uma empresa<br />

da África do Sul, funcionaram como ponto de<br />

partida para aumento das trocas.<br />

Em 2001, o Presidente moçambicano, Joaquim<br />

Chissano, na qualidade de Presidente da<br />

SADC esteve na reunião do Mercosul em<br />

Assunção, Paraguai. Meses mais tarde, o Chefe<br />

de Estado angolano, José Eduardo dos Santos,<br />

visitou uma vez mais o Brasil, em termos<br />

bilaterais, num momento em que também aumentavam,<br />

percentualmente, as trocas entre os<br />

dois países.<br />

O primeiro passo concreto das negociações<br />

Mercosul-África do Sul foi a elaboração de uma<br />

lista de produtos a isentar de direitos aduaneiros,<br />

submetida pelos sul-americanos e que deve<br />

ter resposta sul-africana em data próxima à<br />

redação deste artigo.<br />

Progressos deste tipo provocaram reações<br />

várias, entre as quais o aumento do interesse<br />

entre diversas empresas de ambos os lados do<br />

Atlântico e algumas reclamações de proteção<br />

no caso de assinatura do acordo formal.<br />

Neste caso, foi bastante noticiada, em finais<br />

de maio de 2002, a declaração da entidade sulafricana<br />

de produção e comercialização de<br />

frangos, sublinhando a fatia de mercado da<br />

África do Sul já ocupada pelo frango brasileiro<br />

e receando seu aumento esmagador.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003<br />

209


Relações econômicas no Atlântico Sul: evolução no início do século XXI<br />

O diretor-geral do ministério do Comércio e<br />

Industria da África do Sul, na sua resposta, forneceu<br />

duas indicações importantes: ainda não<br />

há decisões concretas em nível de produtos, mas,<br />

até final deste ano, o acordo na generalidade já<br />

deverá revelar seu perfil; nesse sentido, o governo<br />

da África do Sul sabe da existência de<br />

reservas na área agrícola, mas chama a atenção<br />

para as vantagens que considera existirem<br />

para o conjunto da economia.<br />

Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento,<br />

Indústria e Comércio Exterior do Brasil<br />

(MDCI, 2002), as exportações brasileiras<br />

para a África do Sul, no ano 2000, progrediram<br />

27,37% em relação a <strong>19</strong>99, tendo as importações<br />

acusado um movimento de subida em<br />

32,15%. O ano de <strong>19</strong>99 não representa um bom<br />

termo de comparação por ter sido um dos mais<br />

baixos em toda a década de 90, sobretudo no<br />

que se refere às exportações sul-africanas.<br />

No ano 2000, estas exportações situam-se,<br />

apesar da recuperação relativa ao ano anterior,<br />

em cerca de 50% inferiores a <strong>19</strong>96.<br />

Em 2001 o Brasil aumentou em 40,28% suas<br />

vendas para a África do Sul, graças em larga<br />

medida aos aviões Embraer, que naquele ano<br />

constituíram o primeiro item. Esse ano foi o<br />

ponto mais alto nas exportações do Brasil para<br />

a África do Sul em vinte anos.<br />

As exportações sul-africanas em 2001 tiveram<br />

crescimento anualizado de 25,55%, o que<br />

já revela uma tendência para se aproximar dos<br />

melhores desempenhos da década anterior.<br />

As trocas entre os dois países continuaram<br />

assentes em material de transporte do Brasil e<br />

produtos de origem mineral sul-africana.<br />

A mesma fonte (MDIC, 2002) revela que<br />

as exportações do Brasil para Angola, em 2000,<br />

aumentaram 65,78% em relação ao ano anterior,<br />

continuando sua progressão em 2001 de<br />

33,58%, aproximando-se dos níveis de <strong>19</strong>94 –<br />

os mais altos da década de 90.<br />

As exportações angolanas para o mercado<br />

brasileiro subiram 17,15% em 2000 e 457,27%<br />

em 2001, ano em que a balança comercial bilateral<br />

foi favorável a Angola e atingiu o ponto<br />

mais alto das exportações com este destino<br />

desde <strong>19</strong>88.<br />

Os produtos vendidos pelo Brasil foram sobretudo<br />

do setor alimentar e de material de transporte,<br />

enquanto que a exportação angolana é<br />

constituída por petróleo, não se incluindo, nas<br />

porcentagens referidas, os carregamentos destinados<br />

à cobertura da dívida anterior.<br />

As trocas da África do Sul com a Argentina<br />

estão em baixa desde <strong>19</strong>98, sendo a balança<br />

favorável à Argentina em 2000 (INDEC, 2001).<br />

Os montantes, em ambos os sentidos, nesse ano,<br />

foram significativamente inferior às trocas com<br />

o Brasil, como se vê nos quadros anexos.<br />

No caso Argentina-Angola, houve subida no<br />

comércio em 2000, mas com totais pouco relevantes.<br />

Fazendo uma adição do movimento registrado<br />

em 2000, os dois países africanos exportaram<br />

para a Argentina e Brasil cerca de 360<br />

milhões de USD e importaram 664 milhões de<br />

USD, situando, portanto, o volume total um pouco<br />

acima do um bilhão de USD, percentualmente<br />

diminuto em relação ao comércio exterior<br />

global dos quatro países, com uma relativa<br />

exceção das importações angolanas.<br />

Em 2001, considerando apenas o comércio<br />

entre o Brasil e os dois africanos, verifica-se<br />

que ultrapassa os totais do ano precedente em<br />

relação aos quatro.<br />

No curto prazo, em virtude das incertezas da<br />

conjuntura na Argentina, serão as relações entre<br />

esses três países que vão demonstrar o potencial<br />

de troca no Atlântico Sul. A conclusão, mesmo<br />

parcial, do Acordo iniciado em Florianópolis<br />

e a evolução da linha de crédito Brasil-Angola<br />

constituem os grandes instrumentos.<br />

Mas, além das trocas comerciais, um outro<br />

aspecto do relacionamento ganha mais dimensão<br />

e revela potencial prático, dada a semelhança<br />

de interesses: a articulação de posições<br />

sobre as negociações econômicas no quadro da<br />

Organização Mundial do Comércio (OMC).<br />

210 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003


José Manuel Gonçalves<br />

ANEXO ESTATÍSTICO<br />

TABELA 1 - PIB das quatro economias - em bilhões<br />

de USD a preços do mercado<br />

Países/ano <strong>19</strong>97 2002*<br />

África do Sul 129,200 135,000<br />

Angola 7, 396 8,800<br />

Argentina 321, 384 200,000<br />

Brasil 739, 009 530,000<br />

* Estimativas.<br />

Fontes: Africa: WORLD BANK, “World Development<br />

Report”, <strong>19</strong>98/9; América Latina: Indicadores de Ciencia<br />

y Tecnologia, RICYT, OEA, <strong>19</strong>97.<br />

TABELA 2 - Relações comerciais África do Sul -<br />

Angola (<strong>19</strong>98)<br />

Milhões % sobre<br />

Movimento<br />

de Rands* <strong>19</strong>97<br />

Exportações 1.064,6 +22%<br />

Importações 9,3 - 96%<br />

* 1 USD = 6 rands<br />

Fonte: IDC in “Business Day”, Johannesburg 10.05.99.<br />

TABELA 3 - Relações comerciais África do Sul -<br />

Países SADC fora da zona Rand (<strong>19</strong>98)<br />

Movimento<br />

Milhões % sobre<br />

de Rands* <strong>19</strong>97<br />

Exportações 15 387,5 +1,9%<br />

Importações 2 065,3 -10,3%<br />

* 1 USD = 6 rands<br />

Fonte: IDC in “Business Day”, Johannesburg 10.05.99.<br />

TABELA 5 - Argentina em <strong>19</strong>97<br />

(milhões de USD)<br />

Países Exportações Importações<br />

Angola 3981,2 5 656,6<br />

África do Sul 302 978,6 109 335,6<br />

Fonte: I.N.D.E.C. - Buenos Aires<br />

TABELA 6 - Relações comerciais<br />

África do Sul - Brasil<br />

Anos Exportações Importações<br />

2000 227.754.664 302.141.830<br />

2001 285.943.909 423.838.849<br />

Fonte: MDIC.<br />

TABELA 7 - Relações comerciais<br />

Argentina - África do Sul<br />

Ano Exportações Importações<br />

2000 243.887.000 85.791.000<br />

Fonte: INDEC.<br />

TABELA 8 - Relações comerciais<br />

Brasil - Angola<br />

Anos Exportações Importações<br />

2000 106.269.<strong>19</strong>4 31.415.792<br />

2001 141.955.984 175.069.234<br />

Fonte MDIC.<br />

TABELA 4 - Brasil em <strong>19</strong>97 (milhões de USD)<br />

Países Exportações Importações<br />

Angola 81 795 36 801<br />

África do Sul 331675 366914<br />

Fonte: MITC/SECEX / Dep. Promoção Comercial do Min.<br />

Relações Exteriores - Brasília.<br />

TABELA 9 - Relações comerciais<br />

Angola - Argentina<br />

Ano Exportações Importações<br />

2000 11.759.000 15.323.000<br />

Fonte: INDEC.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003<br />

211


Relações econômicas no Atlântico Sul: evolução no início do século XXI<br />

REFERÊNCIAS<br />

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento, Industria e Comercio Exterior: <strong>19</strong>82 a primeiro trimestre de 2002.<br />

Brasília, DF: MDIC. Secex 2002.<br />

CEA-USP/SDG Marinha/CAPES. A Dimensão Atlântica da África. São Paulo, SP: CEA-USP/SDG Marinha/<br />

CAPES, <strong>19</strong>97.<br />

ECONOMIST INTELIGENCE UNIT – EIU. Angola at a Galance. London, 2001.<br />

ECONOMIST INTELIGENCE UNIT – EIU. Country Profiles (dos quatro países em <strong>19</strong>97 e em 2001).<br />

GEMDEV. L’integration regionale dans le Monde. Paris: Khartala, <strong>19</strong>97.<br />

MILLS, Greg; MUTSCHLER, Claudia. Exploring South-South Dialogue: Mercosul in Latin America & SADC.<br />

In: Southern Africa. Johannesburg: SAIIA, <strong>19</strong>99.<br />

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: . Acessado<br />

em 02 mar. 2003.<br />

INDEC Informa. Buenos Aires: Ministério de Economia, <strong>19</strong>96-<strong>19</strong>99.<br />

_____. Buenos Aires: Ministério de Economia, 2000/2001.<br />

_____. Buenos Aires: Ministério de Economia, 2003.<br />

PINHEIRO, Armando Castelar; MOREIRA, Mauricio Mesquita. Investimentos e Comercio Brasil-Africa do<br />

Sul: presente e futuro. Rio de Janeiro, RJ: BNDES, <strong>19</strong>96.<br />

SADC (Comunidade de Desenvolvimento de África Austral). Annual Report <strong>19</strong>97 and 2001. Gaborone.<br />

WORLD BANK. World Development Indicators – 2002.<br />

Jornais<br />

“Business Day” - Johannesburg<br />

“América economia” - Rio de Janeiro<br />

“Jornal de Angola” - Luanda<br />

“La Nación” - Buenos Aires<br />

Outros sites de Internet<br />

UOL – Brasil<br />

IOL – África do Sul<br />

Ebonet – Angola<br />

Recebido em 30.05.03<br />

Aprovado em <strong>19</strong>.08.03<br />

212 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 205-212, jan./jun., 2003


José Otávio Serra Van-Dúnem<br />

ANGOLA PÓS-GUERRA: NOVOS E VELHOS DESAFIOS<br />

José Octávio Serra Van-Dúnem *<br />

RESUMO<br />

O presente texto tem como tema um novo momento na história de Angola,<br />

marcado pelo acordo de paz assinado no dia 4 de abril de 2002<br />

entre o Governo de Angola e o alto comando militar da Unita. Este<br />

momento deixa em aberto vários desafios aos angolanos, dentre os quais<br />

escolhemos dois: primeiro, a pacificação; segundo, as possibilidades de<br />

cidadania enquanto instrumento de promoção de coesão social. Balizados<br />

por esses dois desafios, procuramos ao longo do texto questionar as<br />

principais dificuldades que Angola enfrenta hoje e apontar pistas que<br />

possibilitem rápidos avanços. O texto refere-se, ainda, a como entendemos<br />

que a experiência do Brasil pode ser benéfica para o (re)encontro<br />

das duas margens.<br />

Palavras-chave: Coesão social – Cidadania – Construção da paz –<br />

Democracia – Espaço público<br />

ABSTRACT<br />

ANGOLA AFTER WAR: NEW AND OLD CHALLENGES<br />

The present text has as its topic a new moment in the history of Angola,<br />

marked by the piece agreement signed as of April 04 th , 2002 between<br />

the government of Angola and the high military command of UNITA.<br />

This moment leaves open various challenges to the Angolans, among<br />

which we chose two: first, the pacification; second, the possibilities of<br />

citizenship as an instrument of promotion of social cohesion. Guided by<br />

these two challenges, we try to, along the text, question the principal<br />

difficulties that Angola faces today and point at clues that make quick<br />

advances possible. The text also refers to how we understand that the<br />

experience of Brazil can be benefic for the (re)union of the two margins.<br />

Key words: Social Cohesion – Citizenship – Piece Construction –<br />

Democracy – Public Space<br />

Agradeço à Universidade do Estado da Bahia<br />

e aos organizadores deste seminário, nomeadamente<br />

ao Departamento de Educação, através<br />

de seu Mestrado, o convite para convosco<br />

trocar idéias sobre o momento atual que Angola<br />

vive e tentar vislumbrar caminhos mais viáveis<br />

para o seu futuro. Depois de termos assistido<br />

as apresentações, ao longo deste seminá-<br />

*<br />

Doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ - Universidade<br />

Cândido Mendes. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, em Angola. Pesquisador<br />

sênior do AIP - Instituto de Pesquisa Econômica e Social, Angola. Endereço para correspondência:<br />

Rua Duvivier 43, 403, Copacabana – 22020.020 Rio de Janeiro. E-mail: otdunem@hotmail.com<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 213-218, jan./jun., 2003<br />

213


Angola pós-guerra: novos e velhos desafios<br />

rio, ressaltando laços e conexões existentes entre<br />

África e Brasil, sobre vários pontos de vista,<br />

optamos por trazer o nosso contributo, mostrando<br />

a situação concreta de um País africano<br />

irmão, Angola, que vive um dos momentos mais<br />

delicados da sua história recente. Ponto prévio,<br />

para dizer que não se trata de um texto político,<br />

no sentido estrito do termo, mas sim uma abordagem<br />

sobre novos e velhos desafios, à luz de<br />

um momento novo.<br />

O texto que vos apresento é resultado de<br />

algumas preocupações intelectuais, sobre o<br />

novo quadro que Angola vive, resultado do final<br />

da guerra, uma das mais sangrentas da humanidade.<br />

A este quadro não é indiferente a situação<br />

vivida pela maioria dos Países africanos que<br />

em situação de conflito armado, ou não, vivem<br />

situações sociais muito idênticas a de Angola.<br />

Num segundo momento, preocupado com a<br />

constatação levantada no segundo parágrafo do<br />

texto de apresentação deste seminário, irei referir<br />

o que penso sobre a possibilidade de aproveitarmos<br />

a nossa história, e as experiências<br />

daí decorrentes para que num contexto mais<br />

contemporâneo possamos tirar mais valias para<br />

todos. O efeito surpresa do acordo de paz assinado<br />

pelo governo de Angola e o alto comando<br />

militar da Unita no dia 4 de Abril de 2002, deixaram<br />

claro que a imprevisibilidade e a vontade<br />

dos homens, por vezes, pode estar além das<br />

análises acadêmicas. Contudo, pensamos que<br />

as reflexões acadêmicas podem apontar caminhos<br />

possíveis, sendo neste sentido que nos propomos<br />

trazer aqui o nosso contributo. Não é<br />

possível refletir sobre o futuro de Angola, sem<br />

se referir ao quadro dramático em que vive.<br />

A guerra de Angola, que se arrastou por mais<br />

de 30 anos, criou um quadro político, econômico<br />

e social quase sem igual na história de África<br />

e do Mundo, levou a que hoje se encontrem,<br />

segundo estatísticas oficiais, cerca de quatro<br />

milhões de angolanos despojados dos mais elementares<br />

direitos 1 . Sendo que esse número cresce,<br />

se somado ao conjunto de angolanos que,<br />

mesmo dentro das áreas urbanas, de certa maneira<br />

mais protegidas, vive situações de pobreza<br />

acentuada 2 . As conseqüências da guerra<br />

foram muito além dos atingidos diretamente por<br />

ela; refletiram-se, indiretamente, no conjunto da<br />

nação angolana, deixando claro que só será<br />

possível estancar tal situação com programas<br />

políticos e sociais corajosos, priorizando, entre<br />

outras ações, o reassentamento 3 das populações.<br />

A inexistência de um sector que seja, da vida<br />

social, política, cultural e econômica que não<br />

tenha a guerra como justificação para o seu não<br />

desenvolvimento, é a prova do que atrás referimos.<br />

Depois da euforia justificada pelo fim da<br />

guerra, momento de júbilo para todos os angolanos,<br />

cabe uma reflexão mais atenta sobre o<br />

que esperam os angolanos num quadro de paz.<br />

Afinal é uma nova era que se abre, e neste sentido<br />

são tantas as áreas que carecem de análise<br />

e reflexão que correria o risco de cair num<br />

generalismo inconseqüente, se sobre todas elas<br />

me fosse debruçar. A nossa contribuição incidirá<br />

na discussão de duas questões, a primeira referente<br />

ao que se entende por pacificação, após<br />

o “calar” das armas; e a segunda referente às<br />

possibilidades da cidadania, enquanto instrumento<br />

de promoção da coesão social.<br />

Os desafios da pacificação<br />

Os finais dos anos 80 e início dos 90 ficaram<br />

marcados por turbulências internas e pressões<br />

externas e internas em vários países africanos,<br />

que vieram a culminar em abertura política,<br />

multipartidarismo, elaboração de novas constituições<br />

e organizações de eleições livres, elementos<br />

que se mostraram, rapidamente, em<br />

nosso entender, necessários, mas não suficien-<br />

1<br />

Ver Relatório Sobre o Desenvolvimento Mundial 2000/<br />

2001 “Luta contra a Pobreza”, Banco Mundial, Oxford<br />

University Press. Ver também Relatórios de Desenvolvimento<br />

Humano, Angola <strong>19</strong>97/<strong>19</strong>99.<br />

2<br />

Ter presente os grandes fluxos migratórios para os centros<br />

urbanos, e seus arredores, transformando estes em<br />

áreas de grande concentração de pobreza, devido à situação<br />

de guerra e à procura de melhores condições de sobrevivência.<br />

3<br />

Sobre esta problemática ver o trabalho de Adauta de<br />

Sousa (2001). O autor remete para outros estudos que<br />

ilustram bem essa questão.<br />

214 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 213-218, jan./jun., 2003


José Otávio Serra Van-Dúnem<br />

tes 4 , mesmo porque o denominador comum a<br />

todos eles (países africanos), a pobreza, continuava<br />

(e continua) presente. Se observarmos<br />

que os processos políticos, em alguns casos,<br />

geraram outras situações de intolerância política,<br />

de maior ou menor densidade, aliados a uma<br />

situação de caos econômico e social que colocou<br />

as populações no limite da sobrevivência,<br />

então poderemos questionar se a aplicação das<br />

ementas políticas habituais, recomendadas pela<br />

comunidade internacional, e acatadas pelas elites<br />

políticas nacionais, proporcionam respostas<br />

adequadas aos principais problemas, que a grande<br />

maioria dos povos africanos vive (VAN-DÚ-<br />

NEM, 2001).<br />

No caso de Angola, o fim da guerra deixou<br />

em aberto a necessidade de criação de programas<br />

sociais que, aplicados de maneira objetiva<br />

e tendo em conta os contextos onde os mesmos<br />

podem, ou não, ser aplicados, podem contribuir<br />

para a elevação dos níveis de vida das<br />

populações. Essa perspectiva não pode ser retórica,<br />

tem mesmo que estar acima dos interesses<br />

políticos 5 , senão vejamos: um quadro de<br />

pobreza extrema em que o País se encontra; a<br />

fraca capacidade de investimento em recursos<br />

humanos; a situação econômica degradada, seja<br />

por fatores internos, como a paralisação quase<br />

completa do parque industrial, e um ineficiente<br />

funcionamento da rede comercial nacional<br />

(FERREIRA, <strong>19</strong>99), seja por fatores externos,<br />

como a situação periférica que a África em geral,<br />

e Angola em particular, ocupam na economia<br />

mundial.<br />

O dever de casa de quem governa (e de<br />

quem deseja governar) é muito exigente, sendo<br />

mesmo necessário que, em algum momento, se<br />

socorra dos governados, podendo ser essa uma<br />

chave para concluir com êxito a sua tarefa. Mas<br />

deverá questionar-se de que maneira isso pode<br />

acontecer. Diríamos que essa seria a chave para<br />

evitar mais desagregação social e quiçá criar<br />

um modelo novo de abordagem das questões<br />

complexas que nos envolvem. Essa chave seria<br />

a possibilidade de dar voz a novos espaços e<br />

a novos atores, num contexto em que os mecanismos<br />

tradicionais do mundo da política têm<br />

dificuldade para dar respostas a todos os desafios.<br />

É necessário que o social seja o eixo de<br />

um novo modelo, valorizando de forma efetiva<br />

políticas públicas orientadas para a garantia de<br />

direitos sociais e do “direito a ter direitos”, principalmente<br />

numa óptica harmonizada entre necessidades<br />

e sua satisfação. Ora, sobre isso,<br />

não tenhamos ilusões, não é somente com uma<br />

Constituição, que confere direitos, nem sempre<br />

respeitados, que se irão resolver as incongruências<br />

em que as sociedades africanas, das<br />

quais faz parte a angolana, estão mergulhadas;<br />

também não será com programas de solução<br />

econômica e “empresarial” vindos de fora, encontrando<br />

respaldo interno, muitos deles envoltos<br />

em vestes emergenciais mas sem um foco<br />

social (mesmo porque esse não é o seu objeto),<br />

que se irá reverter a situação de exclusão em<br />

que se encontra uma parcela grande da população<br />

angolana. Não queremos com isso dizer<br />

que se deve virar as costas à necessidade de<br />

um esforço gigantesco financeiro – comprometido<br />

com a necessidade de apoio financeiro internacional<br />

– para reverter a situação atual, mas<br />

tão-somente deixar espaço para que os angolanos<br />

possam, também, ser sujeitos da sua história,<br />

e deste esforço, com dignidade e cidadania.<br />

Cidadania e construção da paz<br />

Com essa abordagem, entro na segunda<br />

questão que trago à discussão: será a cidadania,<br />

termo hoje tão em uso, mas algo desgastado<br />

pela maneira nem sempre adequada da sua utilização,<br />

instrumento que pode ajudar a edificar<br />

a paz para além da ausência de guerra? Pare-<br />

4<br />

Foram exemplo disso as rebeliões militares, o caso da<br />

Guiné-bissau, acompanhado de instabilidade política, o<br />

Zimbábue, com os conflitos de terras e com processos<br />

eleitorais não muito transparentes, bem como conflitos<br />

armados de média e longa duração (como foi o caso de<br />

Angola), ou ainda uma terceira situação, não menos<br />

preocupante, em que não havendo uma situação de conflito<br />

armado, a indisponibilidade de convivência democrática<br />

inviabiliza aplicação e o funcionamento de agendas<br />

sociais que tenham como principal objetivo reverter a<br />

situação de pobreza.<br />

5<br />

Referimos o excesso de “burocratização” da vida política,<br />

deixando de lado questões prioritárias.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 213-218, jan./jun., 2003<br />

215


Angola pós-guerra: novos e velhos desafios<br />

ce-nos que a resposta se encontra na medida<br />

em que o cidadão se possa rever num projeto<br />

de cidadania. Antes, é importante referir que<br />

o tema da cidadania, tão em voga, não tem<br />

respaldo em nenhuma teoria, tem sim recebido<br />

contribuições teóricas sobre a sua conceptualização<br />

que permitem encontrar melhores<br />

razões para a sua atualidade (VIEIRA,<br />

<strong>19</strong>99; KYMLICKA, <strong>19</strong>95; HABERMAS,<br />

<strong>19</strong>95 6 , apud VIEIRA, <strong>19</strong>99, p.397). Destas<br />

contribuições, retemos as formulações de<br />

Bryan Turner (<strong>19</strong>90 7 ) referidas por Liszt Vieira<br />

(<strong>19</strong>99, p.396) que apontam para dois tipos de<br />

cidadania: uma cidadania passiva, a partir “de<br />

cima”, via Estado, e uma cidadania ativa, a<br />

partir “de baixo”. Parecendo-nos ser este um<br />

dos dilemas dos nossos novos processos de<br />

democracia, ainda em embrião. O debate sobre<br />

cidadania está diretamente associado à<br />

discussão sobre “a questão democrática” e<br />

sobre as possibilidades de transformação do<br />

Estado e da Sociedade. Isso mesmo é mais<br />

verdadeiro em Países como Angola, onde as<br />

distorções sociais, já aqui referidas, levam à<br />

necessidade de se percorrer um longo caminho<br />

rumo à cidadania e à democracia, em sentido<br />

mais amplo, aqui entendido como práxis.<br />

Concorre para tal a necessidade urgente da<br />

Reforma do Estado, ampla e gradual, criando<br />

um quadro de arrumação das Instituições e<br />

proporcionando mais direitos e garantias ao cidadão<br />

(FEIJÓ, 2000), porquanto o nosso Estado<br />

atual decorre de uma configuração do Estado<br />

colonial. Como refere Eric Hobsbawm:<br />

(... a cidadania e a democracia são palavras<br />

pelas quais todos correm a manifestar<br />

o seu entusiasmo...), nós acrescentaríamos,<br />

que nesse entusiasmo se esbatem as reais dimensões<br />

da sua funcionalidade. É neste sentido<br />

que pensamos que, numa situação de pósconflito,<br />

como o que Angola vive, é preciso ter<br />

como farol o seguinte: ao situar a possibilidade<br />

de se aperfeiçoarem os direitos políticos do<br />

cidadão, através da implementação de mecanismos<br />

de democracia direta e das possibilidades<br />

de participação ativa do cidadão na vida<br />

pública, estaremos montando o esteio para o<br />

exercício de cidadania plena, despojada do<br />

complexo de que os problemas africanos e, no<br />

caso angolano, por se situarem no continente<br />

esquecido, têm obrigatoriamente que ter tratamento<br />

diferenciado.<br />

Isto implica buscar espaços de intervenção<br />

que visem antes de mais nada estabelecer uma<br />

relação viva cidadania/cidadão, espaço público<br />

para as decisões coletivas, que ultrapassem o<br />

simples regime de liberdades individuais e da<br />

representação. O que só acontecerá na medida<br />

em que for viável, com a prática de uma<br />

cidadania ativa, que institui o cidadão como portador<br />

de direitos e deveres, e com capacidade<br />

de estabelecer novos espaços de participação<br />

política. Neste sentido a cidadania exige instituições,<br />

mediações, consubstanciando-se na<br />

criação de espaços sociais (movimentos sociais,<br />

sindicais e populares, ONGs), estabelecendo<br />

uma ponte com instituições permanentes<br />

para a expressão política, como partidos e órgãos<br />

do poder público. Distinguindo-se a cidadania<br />

ativa de uma outra, outorgada pelo Estado,<br />

com a idéia moral do favor e da tutela. Este processo<br />

é complexo e lento, mas nem por isso deve<br />

ser subestimado, pois dele dependerá o processo<br />

de criação democrática contínua. Pensamos<br />

ser este o cenário para o funcionamento de uma<br />

democracia participativa, que, em nosso entender,<br />

melhor se adaptará aos novos tempos.<br />

Alertamos para o fato de que na base desse<br />

edifício deverá estar a educação, como um todo<br />

que, embora seja sempre tratada como parente<br />

pobre nas agendas sociais, é fundamental para<br />

a consolidação de uma cidadania plena. Referindo<br />

aqui, a educação política – entendida como<br />

educação para cidadania ativa – deve ser olhada<br />

como o ponto nevrálgico da participação do<br />

cidadão que só se processa na prática. Neste<br />

sentido, entender a participação popular como<br />

uma “escola de cidadania” implica rejeitar a<br />

6<br />

HABERMAS, Jurgen. Citizenship and national identity:<br />

some reflections on the future of Europe. In: BEINER, R.<br />

(org.). Theorizing Citizenship. New York: State<br />

University of New York Press, <strong>19</strong>95.<br />

7<br />

TURNER, Bryan. Outline of a theory of citizenship<br />

sociology. The Journal of the British Sociological<br />

Association, v. 24, n. 2, <strong>19</strong>90.<br />

216 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 213-218, jan./jun., 2003


José Otávio Serra Van-Dúnem<br />

argumentação habitual que, por vezes, exagera<br />

as condições de apatia e despreparo absoluto<br />

do cidadão, considerando-o incapaz, submisso<br />

e insusceptível de ser educado. A educação<br />

política não pode ser entendida como uma via<br />

de mão única – só do Estado para o cidadão,<br />

mas ao invés, pela exigência da pluralidade de<br />

agentes políticos e não só de partidos políticos,<br />

apesar da sua clara e necessária função pedagógica,<br />

em que a tarefa primordial é a de, em<br />

conjunto, criar condições de inclusão de todos<br />

os angolanos no processo de reconstrução.<br />

Neste sentido, a nossa proposta é a seguinte:<br />

1) Estabelecer novos modelos de políticas sociais,<br />

voltados para a promoção da cidadania,<br />

com base na colaboração, formação de<br />

redes sociais e espaços de construção de<br />

consenso. Tais modelos deverão estar de<br />

acordo com os seguintes princípios: papel<br />

mobilizador do poder local; organização dos<br />

atores sociais; melhor gestão de recursos;<br />

estratégias a médio e longo prazo.<br />

2) Os objetivos devem ser: identificação de formatos<br />

de políticas urbanas que combinem<br />

concepções universais/redistributivas e focalizadas/compensatórias;<br />

sistematização e<br />

divulgação de experiências de políticas urbanas,<br />

tanto em relação às relações intragovernamentais,<br />

quanto às relações sociedade<br />

local e poder político local; capacitação,<br />

através de projetos em parceria, dos atores<br />

locais, governamentais e não governamentais,<br />

para formulação e gestão de políticas<br />

urbanas comprometidas com o ideário de<br />

justiça social, voltada para os novos desafios,<br />

e exigências de eficiência; monitoramento<br />

dos atores locais, governamentais e não governamentais,<br />

na elaboração de projetos<br />

estratégicos que permitam a mobilização de<br />

recursos e forças sociais para a busca do<br />

desenvolvimento local a médio e longo prazo;<br />

criação de bancos de dados sobre as<br />

áreas de intervenção, reunindo informações<br />

quantitativas e qualitativas que subsidiem a<br />

avaliação das políticas urbanas.<br />

No fundo, a nossa aposta vai no sentido de<br />

um maior fortalecimento do espaço público onde,<br />

como acima referimos, o cidadão se possa rever.<br />

Aqui chegado é o momento de referir que<br />

nos parece que tal empreitada necessitará de<br />

grande esforço nacional e de boas parcerias<br />

internacionais. E sublinhamos a expressão “boa<br />

parceria”, porquanto nem todas as parcerias têm<br />

sido benéficas. Pensamos ser aqui que o Brasil,<br />

com as suas características próprias de país<br />

periférico já aqui apontadas, pode servir de laboratório<br />

para vários programas que podem vir<br />

a ser implementados em Angola. Isso mesmo<br />

poderá ser uma ação de mão dupla, no sentido<br />

em que haveria uma maior aproximação entre<br />

os nossos Países pela via dos nossos problemas<br />

mais contemporâneos, indo mais além do<br />

normal folclore com que são apresentados.<br />

Possibilitando um novo encontro entre as margens,<br />

não somente para avaliar os processos<br />

de desconstrução da nossa identidade, de que<br />

fomos alvos no passado, mas para pensar como<br />

podemos daqui para frente construir um processo<br />

dialogante sobre os muitos problemas que<br />

nos afligem neste mundo globalizado para uns<br />

e excludente para outros.<br />

Concluímos, reafirmando ser este tipo de<br />

concepção que nos deve nortear em relação às<br />

questões de cidadania e criação de pactos sociais,<br />

acreditando serem estes instrumentos fundamentais<br />

para a coesão social. Os assuntos<br />

aqui colocados fazem parte de um conjunto<br />

maior de questões que devem ser incorporadas<br />

em programas de estabilização social e, necessariamente,<br />

devem mobilizar os angolanos em<br />

torno dos seus objetivos. Esperamos que possam<br />

ser sinal de “Alerta à Navegação”. Por<br />

outro lado, deixo aqui claro que as dificuldades<br />

de uma Angola envolta em guerra desde a data<br />

da independência deixaram o seu povo mais<br />

maduro, sendo o momento de paz vivido hoje<br />

um exemplo real disso mesmo. Concluo referindo<br />

que deverá ser olhando para dentro da<br />

sua realidade, mas, colhendo para o bem e para<br />

o mal, o exemplo de Países como o Brasil que<br />

nós, de Angola, podemos crescer. Entendemos<br />

esse seminário e os esforço de muitos Professores<br />

brasileiros que se dedicam a estudar África<br />

e Brasil, como aqui tivemos alguns, dentro<br />

desse espírito.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 213-218, jan./jun., 2003<br />

217


Angola pós-guerra: novos e velhos desafios<br />

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Recebido em 30.05.03<br />

Aprovado em <strong>19</strong>.08.03<br />

218 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 213-218, jan./jun., 2003


Ubiratan Castro de Araújo<br />

CONEXÃO ATLÂNTICA:<br />

HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE<br />

Ubiratan Castro de Araújo *<br />

RESUMO<br />

Para compreender o processo permanente de elaboração da identidade<br />

negra neste país africano da Bahia, é necessário, sobretudo, não esquecer<br />

o cordão umbilical pelo qual os baianos acreditam estar ligados à<br />

África. Ao longo da história, depois do tempo da escravidão, este mito<br />

fundador dos negros da Bahia se adapta, se transforma, muda suas<br />

máscaras e seus hábitos para desempenhar o papel mágico de um espantalho<br />

que afasta a tentação, aliás sempre proposta pelas elites brancas,<br />

de aceitar a idéia segundo a qual os negros brasileiros seriam um<br />

simples produto da sociedade escravista luso-tropical. Para esses negros<br />

da Bahia, é necessário estabelecer suas raízes antes e fora da<br />

escravidão. Assim, o tempo e o lugar da liberdade original não podem<br />

estar dentro do Brasil. Utopia, anacronismo, pouco importa, esse refugio<br />

da herança cultural da escravidão é o núcleo duro da identidade<br />

negra baiana. Esta utopia identitária fundamenta-se em uma constante<br />

evocação e reelaboração das matrizes culturais africanas, o que só é<br />

possível graças às comunidades religiosas do Candomblé, verdadeiros<br />

arquivos da memória africana na Bahia.<br />

Palavras-chave: Identidade negra – Cidadania negra – Memória e História<br />

afro-brasileira<br />

ABSTRACT<br />

ATLANTIC CONNECTION: HISTORY, MEMORY AND<br />

IDENTITY<br />

To understand the permanent process of elaboration of the Afrodescendant<br />

identity in this African country of Bahia, it is necessary, above<br />

all, not to forget the umbilical cord through which Bahians believe to be<br />

connected to Africa. Along history, after the slavery times, this founder<br />

myth of the Afro-descendants of Bahia adapts, transforms, changes its<br />

masks and its habits to perform the magic role of a scarecrow that<br />

keeps away the temptation, always proposed by the white elite, of<br />

accepting the idea according to which the Brazilian Afro-descendants would<br />

*<br />

Doutor em Historia pela Université de Paris IV - Sorbonne. Professor do Departamento de Historia e exdiretor<br />

do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia. Atual presidente da Fundação<br />

Cultural Palmares do Ministério da Cultura. Endereço para correspondência: SBN Qd. 02, Ed. Central<br />

Brasília, bloco F, 1º subsolo – 70040.904 BRASÍLIA-DF. E-mail: ubiratancastro@palmares.gov.br – Website:<br />

http://www.palmares.gov.br.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003<br />

2<strong>19</strong>


Conexão Atlântica: história, memória e identidade<br />

Por volta do fim do século XVIII, no início<br />

do século XIX, o Ocidente foi sacudido pela<br />

primeira vaga de revoluções liberais, desencadeadas<br />

pela independência dos Estados Unidos<br />

da América, pela Revolução Francesa, pela<br />

Revolução dos Negros do Haiti, e pelas Revoluções<br />

produzidas pela expansão napoleônica<br />

na Europa, e pelo desmoronamento do Império<br />

de Portugal. Dentro desse novo momento da<br />

mundialização, fundado sobre o “livre comércio”<br />

e sobre a universalização dos direitos do<br />

homem, dois desafios se apresentaram para a<br />

sociedade escravista brasileira: o fim do pacto<br />

colonial com a metrópole portuguesa e o fim do<br />

tráfico de escravos africanos.<br />

No que diz respeito ao primeiro desafio, foi<br />

necessário às elites coloniais formarem um estado<br />

independente, com novas instituições, com<br />

uma ideologia nacional e com novos critérios<br />

de enquadramento dos povos habitantes do território<br />

do novo estado americano. Dentro dessa<br />

nova nação, quem seriam os brasileiros? As<br />

minorias de “brancos portugueses e de brancos<br />

da terra” ao lado da maioria de escravos africanos,<br />

de escravos crioulos, de pretos e pardos<br />

libertos e livres? Um novo regime político, ainda<br />

que exaltando um liberalismo semeado por<br />

todos os lugares, seria capaz de aceitar a univerbe<br />

a simple product of the slaving Portuguese/Brazilian-tropical society.<br />

For these afro-descendants of Bahia, it is necessary to establish their<br />

roots before and outside slavery. This way, the time and place of original<br />

freedom can not be inside Brazil. Utopia, anachronism, it does not matter<br />

much, this refugee of the cultural heritage of slavery is the hard nucleus of<br />

the Bahian Afro-descendant identity. This identifying utopia bases itself<br />

on a constant evocation and re-elaboration of the African cultural matrixes,<br />

what is only possible thanks to the religious communities of Candomblé,<br />

true archives of the African memory in Bahia.<br />

Key words: Afro-descendant Identity – Afro-descendant Citizenship –<br />

Afro-Brazilian Memory and History<br />

A utopia africana<br />

Para compreender o processo permanente<br />

de elaboração da identidade negra neste país<br />

africano da Bahia, é necessário, sobretudo, não<br />

esquecer o cordão umbilical pelo qual os baianos<br />

acreditam estar ligados a África. Ao longo da<br />

história, depois do tempo da escravidão, este<br />

mito fundador dos negros da Bahia se adapta,<br />

se transforma, muda suas máscaras e seus hábitos<br />

para desempenhar o papel mágico de um<br />

espantalho que afasta a tentação, aliás sempre<br />

proposta pelas elites brancas, de aceitar a idéia<br />

segundo a qual os negros brasileiros seriam um<br />

simples produto da sociedade escravista lusotropical.<br />

Para esses negros da Bahia, é necessário<br />

estabelecer suas raízes antes e fora da<br />

escravidão. Assim, o tempo e o lugar da liberdade<br />

original não podem estar dentro do Brasil.<br />

Utopia, anacronismo, pouco importa, esse refugio<br />

da herança cultural da escravidão é o núcleo<br />

duro da identidade negra baiana. 1<br />

Essas tentações são especialmente apresentadas<br />

durante as conjunturas de mudança acelerada<br />

dos termos de integração do Brasil em<br />

uma economia mundial, durante as quais foram<br />

registradas algumas medidas importantes para<br />

a modernização da sociedade brasileira e, por<br />

conseqüência, das relações raciais no país. Entretanto,<br />

o fracasso de todas as sinceras tentativas<br />

de desenvolvimento das novas identidades<br />

negras nessas conjunturas de modernização<br />

explica o retorno dos movimentos de afirmação<br />

negro à tradição africana, tal como ela<br />

é preservada dentro das comunidades religiosas.<br />

Os Nagôs e os Sabinos: a formação<br />

do Estado Nacional Brasileiro<br />

1<br />

Texto resultante da participação no Seminário Relações<br />

no Atlântico Sul: Historia e Contemporaneidade, 28-30<br />

de abril de 2003. Salvador, Bahia.<br />

220 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003


Ubiratan Castro de Araújo<br />

salização dos direitos de cidadania em beneficio<br />

das pessoas de cor? A Revolução Francesa,<br />

ela mesma, não foi capaz de aceitar as reivindicações<br />

de Vincent Ogé para o alargamento<br />

dos direitos de cidadania para os negros de<br />

São Domingos – esta é a origem da Revolução<br />

Negra Haitiana. Da mesma maneira no Brasil,<br />

os independentes tiveram necessidade de pessoas<br />

de cor para carregar os fuzis, mas não os<br />

incorporaram como negros cidadãos.<br />

Neste quadro muito estreito de escolha, as<br />

populações negras da Bahia se dividiram em<br />

dois movimentos. Os negros nascidos no Brasil,<br />

chamados na época de crioulos – libertos,<br />

escravos e negros livres – escolheram o caminho<br />

da participação no processo de formação<br />

do estado nacional, reclamando para eles uma<br />

nova identidade nacional, assim como na América<br />

Espanhola, sob o impulso do movimento<br />

bolivariano. Segundo o barão de Aramaré, um<br />

general baiano, estes negros eram pessoas sem<br />

pátria, que desejavam fazer uma a seu modo,<br />

contra aquela dos descendentes dos portugueses,<br />

verdadeiros brasileiros. Esta massa crioula<br />

constituiu a base armada das revoltas e dos<br />

levantes populares, desde a Revolução dos<br />

Búzios, em 1798, até 1838, por ocasião do aniquilamento<br />

da revolução federalista chamada<br />

Sabinada. O saldo dessa participação politica foi<br />

muito negativo: a manutenção da escravidão<br />

negra, a exclusão politica pela adoção do voto<br />

censitário e o reforço da discriminação contra<br />

os negros segundo o critério da cor de pele. Em<br />

lugar de uma república liberal, eles viram se<br />

afirmar um Império Brasileiro escravista. Abatidos,<br />

humilhados, esses negros brasileiros fracassaram<br />

nos seus propósitos de afirmação de<br />

uma identidade brasileira plena, a seu modo.<br />

Os negros nascidos na África, escravos e<br />

libertos, rechaçados por todos, brancos e negros<br />

brasileiros, foram estimulados a empreender<br />

várias revoluções escravas. De 1811 até<br />

1835, por ocasião do levante dos africanos<br />

islamizados chamados de Malês, suas esperanças<br />

foram renovadas. Para esses revolucionários,<br />

não estava em questão a criação de um<br />

novo Estado Americano mas, simplesmente, a<br />

superação do estatuto da escravidão e a colocação,<br />

em seu lugar, de um estado negro fundado<br />

sobre as tradições africanas. Derrotados<br />

como os outros, eles guardaram ao menos a<br />

honra do bom combatente. A propósito desses<br />

combatentes, foi formado o mito da resistência<br />

africana, com um forte apelo identitário.<br />

A Abolição e a República<br />

No final do século XIX, tempo do cientificismo<br />

e do imperialismo, as elites brasileiras<br />

propuseram, mais uma vez, a modernização da<br />

sociedade brasileira. O Brasil era o último país<br />

escravista do Ocidente e a única monarquia na<br />

América. Era necessário então abolir a escravidão<br />

e proclamar a república. E os negros brasileiros,<br />

que pensavam eles? Abolição, sim, mas<br />

com o direito a terra e ao trabalho. República<br />

sim, mas com a ampliação dos direitos de cidadania<br />

para todos os brasileiros. Para miséria<br />

deles, foram considerados pelos republicanos<br />

positivistas como pouco civilizados para o trabalho<br />

qualificado e para a liberdade. Assim, o<br />

novo regime republicano brasileiro decidiu pela<br />

substituição da mão-de-obra escrava pela mão<br />

de obra livre pela via da imigração européia.<br />

No que diz respeito aos direitos de cidadania, a<br />

Constituição de 1891 decidiu pela incapacidade<br />

política da maioria negra, recentemente saída<br />

da escravidão, excluindo-os do direito ao voto<br />

sobre o pretexto do analfabetismo. Era ainda<br />

uma questão de cultura! Existiam no Brasil pessoas<br />

civilizadas e outras bárbaras. Esta república<br />

constituiu então uma espécie de colonialismo<br />

interno pelo qual os verdadeiros brasileiros<br />

seriam aqueles que guardariam, dentro da<br />

sua cultura, os traços constitutivos da civilização<br />

européia.<br />

Era o tempo de civilizar os bárbaros a tiros<br />

de fuzis. Essa nova ordem foi finalmente imposta<br />

em 1897, quando o Exercito brasileiro, sob<br />

o comando da esquerda republicana, exterminou<br />

o arraial baiano de Canudos, e decapitou<br />

milhares de camponeses negros e mestiços,<br />

considerados culpados de barbarismo, resistência<br />

à modernidade, monarquismo, etc... Ainda<br />

no território do massacre, o coronel Dantas<br />

Barreto escreveu à família dizendo que ele esta-<br />

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Conexão Atlântica: história, memória e identidade<br />

va impaciente para retornar à civilização – Rio<br />

de Janeiro – porque ele estava, por muito tempo,<br />

entre os Tuaregs, no deserto, de fato naquele fim<br />

de mundo que era o interior da Bahia. Depois<br />

dessa derrota, todos os movimentos negros de<br />

integração política fracassaram: os negros republicanos,<br />

a guarda negra monárquica e mesmo o<br />

Partido Operário Democrático da Bahia, dirigido<br />

por antigos negros abolicionistas.<br />

Na experimentação de um papel colonizador,<br />

as elites brasileiras e sua república adotaram<br />

as idéias racistas, desenvolvidas na Europa,<br />

sob o rótulo da modernidade científica. Produziram<br />

um sistema de representações que se<br />

dizia cientifico, no qual os negros da Bahia e<br />

suas tradições africanas foram enquadrados em<br />

uma classificação inferior enquanto raça negra<br />

africana, portadora de uma cultura selvagem,<br />

um perigo potencial à civilização. Era necessário<br />

então, segundo esses cientistas do racismo,<br />

compreender as diferenças culturais das etnias<br />

africanas representadas na Bahia, entender todos<br />

os perigos ocultos que eles poderiam aportar<br />

contra a civilização e contra a ordem republicana.<br />

Esse barbarismo era muito mais perigoso<br />

porque estava disfarçado em práticas religiosas,<br />

ou em manifestações folclóricas. A Faculdade<br />

de Medicina da Bahia foi um dos centros<br />

mais prestigiados no Brasil, nos domínios da<br />

Medicina Legal, da Criminologia, da Antropologia<br />

Criminal. Nessa instituição foram produzidos<br />

os critérios da racialização do povo baiano.<br />

Era o tempo da Antropologia de Nina Rodrigues.<br />

Da teoria à prática, o novo regime passara<br />

então a considerar toda manifestação pública da<br />

cultura negra de origem africana como uma vergonha<br />

para o Brasil civilizado. A capoeira foi<br />

então declarada contravenção criminal, assim<br />

como a religião africana – o Candomblé. Os grupos<br />

de carnaval formados por negros, que desfilavam<br />

na rua com motivos africanos – a coroação<br />

do rei Ménelik da Ethiopia, por exemplo –<br />

foram proibidos pela policia. Não estava em questão<br />

fazer a Bahia parecer com a África.<br />

É assim que os negros da Bahia, para salvar<br />

suas identidades, se refugiaram na sua africanidade<br />

originaria. Apesar das expedições punitivas<br />

da policia, os candomblés resistiram. Apesar<br />

das dificuldades, os intelectuais negros, tal como<br />

o Prof. Martiniano Bonfim, estabeleceram contato<br />

direto com os Agoudas da Costa Ocidental<br />

Africana. A pureza africana constituiu então o<br />

núcleo duro da resistência negra contra o<br />

colonialismo interno. Manoel Querino, um antigo<br />

abolicionista, desenvolve as proposições sobre o<br />

papel do “colono negro” na formação do Brasil.<br />

Segundo ele, a honra dos negros brasileiros seria<br />

a sua africanidade, porque o colono negro tinha<br />

trazido para o Brasil todas as virtudes do trabalho,<br />

da disciplina, da sociabilidade, da espiritualidade,<br />

da força civilizatória. Os portugueses, ao<br />

contrário, aportaram para o país os restos de suas<br />

civilizações, os condenados pela justiça, a violência<br />

da conquista, a preguiça dos senhores de<br />

escravos.<br />

A democracia racial<br />

Depois dos anos 30 do século XX, em seguida<br />

à revolução que propôs a modernização<br />

do velho Brasil republicano, mais uma vez a<br />

questão racial estava no centro da questão nacional<br />

brasileira. Os imperativos da industrialização<br />

e o surgimento de uma nova classe operária<br />

exigiam um novo enquadramento das classes<br />

populares no Brasil. Quem são os brasileiros?<br />

É sempre a mesma questão! Um novo<br />

paradigma, aquele da democracia racial brasileira,<br />

substituiu o racismo cientifico de outrora.<br />

Este novo choque de modernidade impôs às<br />

elites brasileiras um grande desafio: como integrar<br />

as massas dentro de um processo de desenvolvimento,<br />

sem os riscos da revolução social<br />

e sem o fracionamento do tecido social, levando<br />

em conta a diversidade racial da população?<br />

Os dois grandes modelos propostos ao<br />

mundo, justamente após a 2ª Guerra Mundial,<br />

eram, de um lado a revolução e o comunismo<br />

soviético e, do outro lado, a democracia americana,<br />

marcada pela segregação e conflitos raciais<br />

permanentes. Como então enquadrar as<br />

massas sem perder o controle? Contra o perigo<br />

revolucionário, é colocada em ação uma dinâmica<br />

social centrada sobre a mensagem de<br />

união nacional à procura do desenvolvimento<br />

econômico, sob controle do estado populista,<br />

222 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003


Ubiratan Castro de Araújo<br />

interposto entre os burgueses e os operários para<br />

amortecer a luta de classes.<br />

No que respeita a população negra, viu-se<br />

o estabelecimento sólido de uma ideologia nacional,<br />

em que um dos elementos constitutivos<br />

era a negação da questão racial. Este novo<br />

consenso se apoiara sob a convergência de<br />

duas fortes correntes teóricas, da direita e da<br />

esquerda. Inicialmente, o desenvolvimento do<br />

marxismo como um instrumento de analise e<br />

ação política, a partir da obra de Caio Prado<br />

Jr., recolocara a questão racial no domínio da<br />

história da escravidão colonial, nos termos da<br />

expansão do capitalismo centrado na Europa<br />

e depois nos Estados Unidos. De fato, a questão<br />

racial seria amplamente secundária, pois<br />

os descendentes dos antigos escravos são hoje<br />

os explorados sob o capitalismo contemporâneo.<br />

Do antigo sistema de exploração, restam<br />

alguns traços secundários, no domínio da cultura,<br />

de fato um epifenômeno da superestrutura<br />

social. O verdadeiro problema do povo<br />

seria sua consciência de classe, o instrumento<br />

necessário para o inicio da revolução social e<br />

não as identidades fundadas sobre algumas<br />

permanências culturais. Esta tradição está enraizada<br />

no pensamento de esquerda no Brasil.<br />

É a convicção de que a questão racial e as<br />

identidades que daí decorrem são questões<br />

externas ao Brasil, uma espécie de exportação<br />

malvada ou desastrosa de um problema<br />

que não interessa senão aos Estados Unidos,<br />

e cuja evocação no Brasil somente pode acarretar<br />

o fracionamento do proletariado brasileiro.<br />

Do lado da direita, a obra de Gilberto Freyre<br />

lança as bases da negação da questão racial<br />

no Brasil pela afirmação da democracia racial<br />

contemporânea, resultado histórico da adaptação<br />

da sociedade patriarcal portuguesa aos<br />

trópicos. A apologia da mestiçagem das três<br />

raças, do branco, do índio e do negro foi tomada<br />

como ideologia de estado para demonstrar<br />

o desenvolvimento harmônico do povo brasileiro,<br />

um “povo novo” dentro da versão contemporânea<br />

apresentada por Darci Ribeiro.<br />

Segundo Gilberto Freyre, estava se desenvolvendo<br />

no Brasil um tipo “meta-racial” denominado<br />

“moreno”. Uma vez que não havia uma<br />

prática de segregação de raças como nos Estados<br />

Unidos, a questão racial não aparecia<br />

na classificação dos problemas brasileiros. O<br />

racismo seria então uma questão americana,<br />

e os brasileiros, em seu subdesenvolvimento,<br />

deveriam ser muito orgulhosos de terem superado<br />

um problema que sempre constrange os<br />

ricos americanos.<br />

Para os movimentos negros brasileiros, o<br />

grande obstáculo à formação das identidades<br />

negras, autônomas e anti-racistas, foi a deportação<br />

da questão racial do imaginário brasileiro.<br />

Racismo era coisa de estrangeiro, de americano.<br />

Diz-se hoje que o pior do racismo brasileiro<br />

é crer e fazer crer que não existe racismo<br />

no Brasil. Em um cenário contemporâneo<br />

de mundialização da cultura e da informação,<br />

em que se tornam possíveis as trocas entre<br />

vários movimentos negros no mundo, este obstáculo<br />

não chega a ser superado. Apesar do<br />

surgimento e da estabilização de novas identidades<br />

e de práticas sociais formadas dentro<br />

destes contatos, do panafricanismo, do black<br />

power, do reggae, do hip hop, tudo termina<br />

sendo reduzido a uma escala de efêmeros<br />

acontecimentos da moda internacional, igualmente<br />

estrangeiros em relação ao Brasil.<br />

O único refúgio dos movimentos negros na<br />

Bahia para a afirmação de sua identidade, para<br />

além da sua herança da sociedade escravista<br />

da Bahia, é a tradição africana, guardada com<br />

cuidado pelas comunidades religiosas do Candomblé.<br />

Ninguém ousa dizer que o Candomblé,<br />

cada um cultivando suas raízes africanas<br />

específicas- suas nações, seja estrangeiro na<br />

Bahia, Isto explica o fato de que, desde a experiência<br />

política e cultural de Edison Carneiro<br />

sob a ditadura do Estado Novo em <strong>19</strong>37,<br />

até os movimentos de esquerda negra contemporânea,<br />

inspirados por “aggiornamientos” à<br />

la Gramsci e Thompson, todos esses marxistas<br />

negros procuram dentro do Candomblé o<br />

relicário de suas identidades ancestrais. Esta<br />

co-habitação necessária entre o materialismo<br />

e o Candomblé produziu a deliciosa excentricidade<br />

cultural que Jorge Amado chamava<br />

“materialismo” mágico.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003<br />

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Conexão Atlântica: história, memória e identidade<br />

Os suportes materiais da Utopia<br />

Assim, ao longo da história do Brasil independente,<br />

as comunidades formadas por homens<br />

e mulheres muito pobres, colocados em<br />

regiões negras do subúrbio da cidade, todos<br />

submetidos ao peso do racismo, foram capazes<br />

de constituir um lugar da memória africana.<br />

Como isto foi possível? Os que crêem respondem<br />

logo em seguida: é o poder dos Orixás!.<br />

Os menos crentes estão sempre em condição<br />

de afirmar que as características das religiões<br />

africanas, fundadas sobre os cultos dos ancestrais,<br />

têm necessidade de guardar na memória<br />

coletiva toda a ambiência cultural originária, sem<br />

a qual os Orixás não teriam sentido. Isto explica<br />

o empenho dessas comunidades na preservação<br />

das tradições africanas, da língua yoruba<br />

e da recusa à nacionalização do Candomblé, tal<br />

como ocorreu com a Umbanda.<br />

As razões religiosas, somente, não explicam<br />

totalmente o fenômeno da preservação da memória<br />

africana. O Candomblé, como aliás as<br />

outras tradições, foi atacado por todos os choques<br />

de modernidade, e também obrigado a toda<br />

sorte de adaptação para assegurar a solidariedade<br />

interna nas comunidades. Teve igualmente<br />

que estabelecer as negociações e as trocas<br />

com “os outros”, os clientes, os que procuram<br />

no Candomblé socorros e cuidados materiais e<br />

espirituais. Como fazer para impedir que as<br />

adaptações sucessivas não resultem em um tipo<br />

de deformação da tradição originária e, por conseqüência,<br />

o enfraquecimento desses lugares<br />

de memória, sés e bastiões de nossa identidade<br />

negra baiana?<br />

Ao longo dos anos, as pessoas do Candomblé<br />

desenvolveram estratégias para assegurar<br />

a sobrevivência das comunidades e, ao mesmo<br />

tempo, para a consolidação desse corpus de<br />

memória. Antes de mais nada, era necessário<br />

manter o contato permanente com a “fonte”,<br />

com o fundamento, com a África. Durante a<br />

escravidão, assim como a aranha, o trafico transatlântico<br />

de escravos teceu sua teia de conexões<br />

entre as duas bordas do Atlântico, um verdadeiro<br />

e complexo território de terras e de<br />

águas pelo qual circularam homens e mulheres,<br />

com seus bens, seus poderes e seus saberes.<br />

Este foi o fluxo e refluxo da Bahia para o Golfo<br />

de Benin, de que nos falou Pierre Verger, que<br />

ocorreu por meio do transporte de pessoas. Isso<br />

tornou possível um sistema de circulação de<br />

mercadorias, compreendendo os produtos utilizados<br />

nos rituais, como também a circulação<br />

de religiosos – Yialorixás, babalorixás, babalôs.<br />

Este vai-e-vem sobre o Atlântico nutriu a<br />

tradição religiosa e, por conseqüência, assegurou<br />

o fluxo de informações políticas e culturais<br />

entre a África e a Bahia. As revoltas africanas<br />

do início do século XIX determinaram a chegada,<br />

na Bahia, das informações sobre os movimentos<br />

sociais na África. Depois do fim do tráfico<br />

de escravos, de 1850 até 1889 a navegação<br />

na direção da Costa da África quase cessou.<br />

Apesar desta interdição, a antiga teia ancorou<br />

seus laços na memória afetiva dos povos<br />

sobreviventes, os afro-descendentes baianos na<br />

borda oeste e os Agudas espalhados ao longo<br />

da borda leste do Atlântico. Persistiu ainda a<br />

correspondência entre familiares e conhecidos.<br />

No final do século XIX, a chegada da República<br />

ao Brasil e a ocupação colonial na África<br />

impuseram o distanciamento das duas bordas<br />

do Atlântico. Alguns religiosos, como o<br />

Babalaô Martiniano Bonfim e a Yalorixá Aninha,<br />

ainda conseguiram várias vezes realizar a<br />

travessia para a Costa da África, durante a primeira<br />

metade do século XX. Apesar desses<br />

esforços heróicos, aquele foi o tempo mais difícil<br />

para a preservação da memória africana no<br />

Brasil.<br />

Em <strong>19</strong>59, ano da criação do Centro de Estudos<br />

Afro-Orientais na Universidade Federal<br />

da Bahia, assistiu-se ao restabelecimento das<br />

relações bilaterais entre Bahia e África, por<br />

força da ação desse centro universitário, em<br />

um quadro de abertura da diplomacia brasileira<br />

para a África. Durante uma dezena de anos,<br />

pesquisadores e professores partiram em missão<br />

nas duas bordas do Atlântico. Foi assim que<br />

os religiosos do Candomblé fizeram a descoberta<br />

de que o seu modo de falar dos Yorubá,<br />

mesmo arcaico em relação àquele falado<br />

contemporaneamente na Nigéria, ainda era entendido<br />

e louvado nos cursos dados por profes-<br />

224 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003


Ubiratan Castro de Araújo<br />

sores da língua Yorubá no CEAO, vindos da<br />

Universidade de Ilê Ifé. Depois de <strong>19</strong>70, mais<br />

algumas personalidades negras da Bahia tiveram<br />

sucesso na travessia do Atlântico, graças<br />

ao apoio da UNESCO e de outros organismos<br />

internacionais.<br />

Hoje, constatamos que as possibilidades de<br />

contatos entre as comunidades africanas e as<br />

afro-baianas, por seus próprios meios, são praticamente<br />

impossíveis diante dos custos da viagem.<br />

De outra parte, as instituições públicas,<br />

tal como a Universidade, não têm êxito na constituição<br />

dos suportes materiais para assegurar<br />

a circulação de pessoas e de idéias entre os<br />

dois lados do Atlântico, de forma a realimentar<br />

a memória africana das comunidades religiosas<br />

da Bahia. Diante do perigo da desafricanização,<br />

da dissolução da memória afro referente,<br />

em uma conjuntura cultural marcada pela<br />

pressão interna para a negação das identidades<br />

negras e da pressão externa da geléia geral<br />

globalizante, é imperioso redobrar os esforços<br />

para o restabelecimento desta conexão atlântica,<br />

condição indispensável para o fortalecimento<br />

da identidade negra baiana. É importante reconhecer<br />

também que esta conjuntura é marcada<br />

por um novo choque de modernidade, com a<br />

realização da III Conferência Mundial contra o<br />

Racismo, na África do Sul, em 2001, e pela<br />

posse de um novo governo de esquerda no Brasil.<br />

Esta será, com fé nos Orixás, uma outra<br />

História.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ARAÚJO, Ubiratan Castro de. 1846: um ano na rota Bahia-Lagos: negócios, negociantes outros parceiros.<br />

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Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003<br />

225


Conexão Atlântica: história, memória e identidade<br />

ANEXOS<br />

1<br />

Atrás do cordão umbelical<br />

Enterrado lá no Senegal<br />

E em toda a África negra gritando<br />

O Atlântico ouça um conselho<br />

Que se abra como o Mar Vermelho<br />

E a Bahia, o Olodum n’lar adentro voltando.<br />

REIS, Artúlio. Tambores e cores. In:<br />

RODRIGUES, João Jorge (org.). A Música do<br />

Olodum: a revolução da emoção. Salvador:<br />

Olodum, 2002. p.153.<br />

2<br />

A Música do Olodum - 23 anos<br />

..... “A poderosa música do Olodum é acima<br />

de tudo a música dos Yorubás, dos Ibos, dos<br />

Gêges, dos Ijexás, dos Kimbundos, dos<br />

Umbundos, dos Macuas, negros africanos que<br />

vieram do Golfo da Guiné, da costa dos escravos,<br />

e da baía de Luanda (Angola) em tamanha<br />

quantidade que fizeram de Salvador da Bahia a<br />

Roma Negra, a terra dos Gladiadores da Negritude.<br />

É também a música do fenômeno religioso<br />

chamado por todo o povo de “Olodumaré”,<br />

o nome de Deus em Yorubá, o nome da rosa, a<br />

explosão que criou o mundo, e fez os homens e<br />

as mulheres, criou a terra e o mar, o sol, e a lua,<br />

separou a noite do dia, e deu-nos a capacidade<br />

de pensar, sonhar e fazer músicas.” (RODRI-<br />

GUES, João Jorge (org.). A música do Olodum:<br />

a revolução da emoção. Salvador: Olodum,<br />

2002).<br />

3<br />

ABAIXO ASSINADO<br />

Os abaixo assinados, reunidos no Axé Opô<br />

Afonjá, por ocasião das comemorações dos vinte<br />

e cinco anos da gestão de Mãe Stella de<br />

Oxossi desta comunidade religiosa, consideramos<br />

que:<br />

• Em todos os tempos, os países, os povos e<br />

as comunidades vítimas dos atos de guerras<br />

têm reclamado reparações pelos prejuízos<br />

que sofreram. Freqüentemente, suas<br />

postulações foram aceitas e obtiveram compensações<br />

materiais ou morais a título de<br />

reparação”.<br />

• No caso da África, muitas vozes tem se levantado<br />

para deplorar os numerosos anos<br />

de exploração que sofreram os povos deste<br />

continente por força da escravidão, do tráfico<br />

negreiro e do colonialismo, responsáveis<br />

pela pobreza, subdesenvolvimento e desorganização<br />

social que aflige todo o continente<br />

africano.<br />

• No caso das populações afro-descendentes<br />

em todo o mundo, e especialmente no caso<br />

da população afro-descendente brasileira, a<br />

pobreza, a discriminação racial e a exclusão<br />

social são os resultados contemporâneos do<br />

crime do tráfico e da escravidão contra ela<br />

praticado.<br />

Por isso proclamamos o nosso direito à reparação<br />

pelos efeitos do tráfico de escravos e<br />

da escravidão, entendendo-o como um direito<br />

coletivo difuso, do qual é portador o conjunto<br />

da cidadania negra brasileira, e exigimos do<br />

Estado brasileiro:<br />

• O reconhecimento, por ato legislativo, do tráfico<br />

de escravos e da escravidão como crimes<br />

contra a humanidade.<br />

• A reparação moral dos que já sofreram, no<br />

passado, a escravidão e a discriminação racial,<br />

de modo que se institua o reconhecimento<br />

pleno da cidadania negra por todos<br />

os brasileiros.<br />

• A execução de políticas sociais de impacto<br />

imediato, com o objetivo de alterar, a curto<br />

prazo, os indicadores das desigualdades raciais<br />

no Brasil.<br />

• A implantação de programas de longa duração<br />

para erradicar os mecanismos sociais<br />

e culturais de reprodução da desigualdade<br />

racial, de modo que possam estabelecer-se,<br />

de fato, as condições iguais de competição<br />

entre brasileiros de todas as cores e de to-<br />

226 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003


Ubiratan Castro de Araújo<br />

das as tradições culturais, conforme letra e<br />

espírito da Constituição Cidadã de <strong>19</strong>88.<br />

Para a consecução destes objetivos, reivindicamos:<br />

• A constituição de uma comissão nacional<br />

para a reparação das populações negras<br />

brasileiras, com a participação ampla das representações<br />

do Movimento Negro, da sociedade<br />

civil e da sociedade política, com<br />

estatuto de Secretaria de Estado.<br />

• A instituição de um Fundo Nacional de Reparação,<br />

cujos recursos sejam fixados por<br />

lei e representem um percentual vinculado<br />

da receita da União, dos Estados e dos Municípios,<br />

durante um período inicial de 10<br />

anos, para o financiamento de projetos especiais<br />

de caráter reparatório.<br />

• A incorporação em todos os programas e<br />

projetos de ação governamental (União, Estados<br />

e Municípios) de prioridades e metas<br />

relativas à promoção da população negra brasileira.<br />

• A negociação de uma convenção reparatória<br />

dos danos sofridos pelas populações negras<br />

por força do tráfico de escravos e da escravidão,<br />

de âmbito internacional, que inclua<br />

como beneficiárias as populações africanas<br />

e as populações negras da diáspora africana<br />

nas Américas. Também neste caso, deve ser<br />

proposta a criação de um Fundo Internacional<br />

de Reparação, gerido pela ONU, com o<br />

objetivo de financiar ações e projetos de promoção<br />

das populações negras. Este fundo<br />

deve atender diretamente comunidades e não<br />

governos e agências governamentais.<br />

Somente assim, a reparação pode constituirse<br />

em um novo pacto de convívio social, expresso<br />

por um programa completo, nacional, de<br />

longa duração, onde estejam definidos os compromissos<br />

da República Federativa do Brasil<br />

para a erradicação da desigualdade racial e do<br />

racismo no Brasil.<br />

Salvador, 08 de junho de 2001.<br />

Recebido em 30.05.01<br />

Aprovado em <strong>19</strong>.08.01<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 2<strong>19</strong>-227, jan./jun., 2003<br />

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Wilson Roberto de Mattos<br />

VALORES CIVILIZATÓRIOS AFRO-BRASILEIROS, POLÍTICAS<br />

EDUCACIONAIS E CURRÍCULOS ESCOLARES<br />

Wilson Roberto de Mattos *<br />

RESUMO<br />

O presente texto é um breve ensaio acerca da importância e necessidade<br />

de se considerar, na elaboração dos projetos pedagógicos e currículos<br />

escolares, um conjunto de concepções, orientadoras de práticas sociais<br />

comuns às populações negras brasileiras que, por suas notórias<br />

vinculações a um passado africano reconstruído no Brasil, convencionouse<br />

nomear valores civilizatórios afro-brasileiros. Procura-se chamar atenção<br />

para a historicidade dessas concepções, bem como das práticas<br />

nelas fundamentadas, como forma deliberada de fazê-las figurarem na<br />

esfera das políticas educacionais com efetivas possibilidades de colaborarem<br />

com uma formação escolar, não só respeitadora das diferenças,<br />

mas, verdadeiramente, pluricultural.<br />

Palavras-chave: Educação – História – Identidade – Pluriculturalidade<br />

– Valores Civilizatórios<br />

ABSTRACT<br />

AFRO-BRAZILIAN CIVILIZING VALUES, EDUCATIONAL<br />

POLITICS AND SCHOOL CURRICULUMS<br />

The present text is a brief account of the importance and necessity of<br />

considering, in the elaboration of the pedagogical projects and school<br />

curriculums, a set of conceptions that guide common social practices to<br />

the Afro-Brazilian populations that, because of its notorious links to an<br />

African past reconstructed in Brazil, was conventionally nominated Afro-<br />

Brazilian civilizing values. One aims at calling the attention to the<br />

historicity of these conceptions, as well as to the practices based on<br />

them, as a deliberate way of making them figure in the sphere of the<br />

educational politics with effective possibilities of collaborating with a<br />

school formation, not only respectful of the differences, but, truly, pluricultural.<br />

Key words: Education – History – Identity – Cultural Plurality – Civilizing<br />

Values<br />

*<br />

Doutor em História Social pela PUC-SP. Professor Adjunto de História na Universidade do Estado da<br />

Bahia. Diretor do Departamento de Ciências Humanas/UNEB – Campus V. Professor do Mestrado em Educação<br />

e Contemporaneidade/UNEB – Campus I. Endereço para correspondência: Rua B, n. 305, Edf. Ibiporã,<br />

apt. 403, Imbuí – 41720.120 Salvador-BA. E-mail: mattosfamily@uol.com.br<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003<br />

229


Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e currículos escolares<br />

Abordar o tema dos valores civilizatórios, seja<br />

na sociedade brasileira ou em qualquer outra<br />

sociedade com características pluriculturais semelhantes,<br />

não é tarefa de pouca dificuldade, sobretudo<br />

quando nos ocupamos em identificar<br />

seus conteúdos e significados amplos a partir de<br />

um referencial circunscrito a um universo cultural,<br />

por definição de pouca precisão, no caso que<br />

nos interessa, o universo cultural afro-brasileiro.<br />

Sendo assim, antes mesmo de propormos formas<br />

de introduzir os valores civilizatórios afrobrasileiros<br />

na elaboração dos currículos escolares,<br />

convém especificarmos, ainda que brevemente,<br />

qual a nossa compreensão do tema e,<br />

sobretudo, deixar clara a posição teórica que<br />

referencia essa nossa compreensão.<br />

Se tão somente considerarmos os traços notórios<br />

da presença africana no Brasil – da língua<br />

à densidade numérica, da arte à religiosidade –,<br />

dada a extensão e significado desta presença,<br />

pensar em valores civilizatórios afro-brasileiros<br />

é quase o mesmo que pensar em valores<br />

civilizatórios nacionais. Perguntaríamos, então:<br />

qual a forma mais adequada de caracterizar os<br />

fundamentos e significados de determinadas práticas<br />

que envolvem os descendentes de africanos<br />

no Brasil que, no conjunto, nos possibilite<br />

atribuir-lhes o estatuto de valores civilizatórios,<br />

ou seja, uma reunião articulada de proposições<br />

éticas, relacionais e existenciais que responde por<br />

uma especificidade no interior da chamada civilização<br />

brasileira?<br />

O caminho mais seguro e, certamente, o mais<br />

usual é o esforço em identificar, no interior do<br />

complexo cultural brasileiro, sobretudo através<br />

da interpretação dos significados mais amplos<br />

das manifestações hegemonizadas numérica ou<br />

culturalmente pelas populações negras, recriações<br />

cosmológicas herdadas de sociedades africanas<br />

pré-coloniais ou mesmo similares às dimensões<br />

culturais mais profundas das sociedades<br />

africanas contemporâneas.<br />

Evidentemente, por ser a sociedade brasileira<br />

composta na sua grande maioria por afrodescendentes,<br />

há um número considerável dessas<br />

recriações que nos une ao continente africano<br />

de forma inexorável. Alguns exemplos conhecidos<br />

e presentes na bibliografia especializada<br />

podem ser aqui enumerados: as concepções<br />

diferenciais de morte e ancestralidade; o significado<br />

cosmológico da vida humana e da relação<br />

com a natureza; a oralidade como forma<br />

privilegiada da comunicação e transmissão dos<br />

saberes, bem como o valor da palavra e o caráter<br />

sagrado de todas as dimensões da existência<br />

humana.<br />

Não obstante a necessária identificação desses<br />

valores, cremos ser de igual ou de maior<br />

importância considerarmos a forma como os<br />

concebemos. A elevação desses valores a verdadeiros<br />

redentores da nossa dignidade e identidade,<br />

aviltadas pela supremacia dos valores<br />

brancos hegemônicos, mesmo que cumpra a<br />

função de um recurso político contra-hegemônico,<br />

imediato e igualmente reconfortante para<br />

a nossa subjetividade individual e coletiva, não<br />

pode obscurecer nossa visão em relação ao risco<br />

muito provável de incorrermos nas armadilhas<br />

dos essencialismos, na reprodução não refletida<br />

desses valores como conteúdos inalterados<br />

de uma tradição supostamente imune às<br />

injunções do tempo. A desatenção ao imperativo<br />

da história, com suas mudanças e permanências<br />

no continuum temporal, no mínimo, pode levar<br />

a cristalização de valores absolutamente<br />

extemporâneos em relação às características e<br />

demandas da contemporaneidade.<br />

Pensar a historicidade dos valores civilizatórios<br />

afro-brasileiros como forma de aumentarmos<br />

a sua eficácia no sentido daquilo que<br />

definirmos como nossas principais demandas de<br />

ordem política, cultural, racial ou, como prefiro,<br />

da ordem da necessidade de edificação de uma<br />

cultura política afro-descendente, implica em um<br />

esforço intelectual de retomada da nossa história<br />

através, principalmente, do trabalho de construção<br />

da nossa memória social própria, em<br />

conjunto com a crítica da memória social que<br />

a supremacia branca ocidental nos legou como<br />

herança, e que, na maioria das vezes, reproduzimos<br />

com pouca consciência acerca das suas<br />

formas, conteúdos e efeitos reiteradores de uma<br />

economia de relações raciais, calcada na pressuposição<br />

da nossa inferioridade.<br />

230 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003


Wilson Roberto de Mattos<br />

Não se trata simplesmente de contrapor de<br />

forma maniqueísta e ingênua, à memória social<br />

herdada, uma outra memória social e racial positiva<br />

e supostamente superior. Qualquer tentativa<br />

de substituir uma supremacia racial por<br />

outra, além de ser historicamente improvável, é<br />

igualmente condenável. Trata-se, sim, de ativar<br />

a possibilidade de dar expressão e significado a<br />

conteúdos históricos concretos silenciados pelas<br />

memórias dominantes, trazer à cena e<br />

positivar os conteúdos não codificados pelas linguagens<br />

convencionais, ressignificar as sociabilidades<br />

não-hegemônicas e as múltiplas<br />

temporalidades do viver cotidiano. Em palavras<br />

mais ousadas, trata-se de construir e divulgar<br />

concepções e pressupostos capazes de reorientar<br />

a nossa compreensão do nosso próprio passado<br />

– e, se preciso, mudá-lo na forma como<br />

ele se nos mostra –, à luz consciente de um<br />

projeto político e civilizacional contemporâneo,<br />

ao mesmo tempo emancipador e anti-racista.<br />

São de um eminente judeu levado à morte por<br />

uma insidiosa perseguição racista, os seguintes<br />

excertos sobre a história:<br />

Articular historicamente o passado não significa<br />

conhecê-lo como ele foi de fato. Significa apropriar-se<br />

de uma reminiscência, tal como ela relampeja<br />

no momento de um perigo (...). O dom de<br />

despertar no passado as centelhas da esperança<br />

é privilégio exclusivo do historiador convencido<br />

de que também os mortos não estarão em<br />

segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo<br />

não tem cessado de vencer. (...) existe um encontro<br />

secreto, marcado entre as gerações precedentes<br />

e a nossa. Alguém na terra está à nossa<br />

espera. Nesse caso, como a cada geração, foinos<br />

concedida uma frágil força messiânica para<br />

qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não<br />

pode ser rejeitado impunemente. (BENJAMIN,<br />

<strong>19</strong>87, p. 222-232)<br />

O passado do povo negro brasileiro tem-nos<br />

feito apelos incessantes, cabe a nós configurarmos<br />

os quadros que podem dar-lhe visibilidade<br />

significativa para além do que as narrativas<br />

dominantes estabeleceram como sua “verdade”.<br />

Os nossos mortos não descansarão em<br />

paz, enquanto não nos apropriarmos da memória<br />

de suas vidas conectando-as às nossas lutas<br />

presentes.<br />

Embora o passado africano, tanto pré como<br />

colonial e pós-colonial, componha um amplo<br />

repertório de temas e processos que devemos<br />

enfrentar a partir de novas configurações interpretativas<br />

afinadas com as nossas reais demandas,<br />

e isso é uma necessidade inadiável eu, particularmente,<br />

considero de igual urgência uma<br />

revisitação crítica e politicamente orientada sobre<br />

as experiências negras em terras brasileiras<br />

e, dentre estas, a principal delas, a experiência<br />

traumática da escravidão. Justifico: dos<br />

cinco séculos de história, a partir do nosso ingresso<br />

involuntário no mundo moderno, quase<br />

quatro séculos nós vivemos sob o jugo do regime<br />

escravista.<br />

Um regime de relações humano-sociais, infelizmente,<br />

tão longevo – para o bem ou para<br />

o mal, dependendo de onde nos localizamos<br />

socialmente, num país onde a desigualdade é<br />

uma perversa insistência histórica –, deixa<br />

marcas profundas e indeléveis na forma como<br />

nos concebemos como seres humanos, organizamos<br />

a nossa existência, elaboramos nossas<br />

memórias, construímos nossas identidades<br />

e nos relacionamos uns com os outros e com o<br />

real. Negligenciar a sua importância como<br />

substrato cultural na definição de papéis, relações<br />

sociais e raciais contemporâneas é abdicar<br />

da chance de formularmos nossas demandas<br />

políticas e culturais anti-racistas com maior<br />

precisão e possibilidade de êxito. Acreditar em<br />

uma ponte que nos ligue ao passado, ou mesmo<br />

ao presente africano, sem a intermediação<br />

do que a própria escravidão nos legou como<br />

herança em termos de resistência e recriações<br />

culturais relativamente originais, em nome de<br />

uma tentativa, ainda que compreensível, de<br />

apagar as marcas negativas que ela, a escravidão,<br />

cravou em nossas consciências individuais<br />

e na dinâmica das relações sociais, de<br />

um modo geral, é, para dizer o mínimo, desprezar<br />

o vigor criativo e culturalmente fecundo<br />

de um imenso contingente populacional que<br />

jamais se conformou com os limites das imposições<br />

normativas e legais.<br />

Como exemplo, para nos concentrarmos no<br />

campo da historiografia, cabe mencionar a<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003<br />

231


Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e currículos escolares<br />

existência de um número considerável de estudos<br />

que, rompendo com as concepções tradicionais<br />

que levavam ao pé da letra a definição<br />

jurídica do escravo como coisa, inauguram<br />

a concepção, já hoje consensual, do papel<br />

que os escravos – e populações negras de um<br />

modo geral –, desempenharam tanto no processo<br />

que culminou na abolição, quanto no forjar,<br />

cultural e politicamente, formas possíveis<br />

de resistência e sobrevivência no interior da<br />

própria escravidão. Reconhece-se também que<br />

as possibilidades interpretativas dessa forma<br />

diferenciada de angular o processo, com suas<br />

variáveis e desdobramentos, obrigaram esforços<br />

no sentido de uma ampla revisão crítica<br />

das bases teórico-metodológicas anteriores,<br />

assim como a edificação ou adoção de postulados<br />

que, ancorados em pesquisas cuidadosas<br />

quanto à definição dos temas, periodizações<br />

e objetos, garantiram o seu rigor.<br />

No conjunto desses estudos, o binômio escravidão-liberdade,<br />

alicerçado em um conceito<br />

ampliado de resistência, possibilitou o rompimento<br />

justificado com a idéia de escravidão<br />

concebida estruturalmente e, à luz de novos<br />

significados atribuídos a termos conceituais<br />

mediadores, como por exemplo: paternalismo,<br />

hegemonia, cultura e experiência, inclusive, valores<br />

civilizatórios, facilitou o desvendamento<br />

das múltiplas variáveis da relação fundamental<br />

entre senhores e escravos.<br />

É forte a idéia de que a dinâmica das relações<br />

entre senhores e escravos – e outras formas<br />

de relações verticais correlatas, no interior<br />

de uma, digamos, economia moral paternalista<br />

que aproximava, não sem conflitos, uns e outros,<br />

em meio a resistências e arranjos de acomodação<br />

cotidianos –, forjou um espaço social<br />

no interior do qual os escravos construíram um<br />

mundo próprio, relativamente autônomo, e que<br />

também configura-se na contemporaneidade<br />

como nossa herança.<br />

Tanto esta idéia de paternalismo, quanto a<br />

de experiência como lastro histórico concreto<br />

no fazer-se das coletividades (grupais ou<br />

de classes), com implicações formativas ao<br />

nível da sua consciência e cultura, libertaram<br />

a historiografia sobre a escravidão dos esquemas<br />

interpretativos tradicionais, pouco ou nada<br />

flexíveis e, na maioria das vezes, absolutamente<br />

infrutíferos do ponto de vista da necessidade<br />

de construção de uma nova memória capaz<br />

de orientar as lutas anti-racistas contemporâneas.<br />

Alguns procedimentos historiográficos, inclusive,<br />

já avançam hipóteses mais ousadas<br />

sobre a interpretação das experiências negras<br />

no Brasil, adentrando no núcleo do que tem<br />

sido considerado como valores civilizatórios<br />

afro-brasileiros. Um exemplo é a tentativa de<br />

tematizar conteúdos pouco usuais no campo<br />

da historiografia. O historiador e professor da<br />

Universidade Estadual de Campinas, Sidney<br />

Chalhoub (<strong>19</strong>96), no capítulo intitulado Raízes<br />

culturais negras da tradição vacinophobica,<br />

do seu livro Cidade Febril, através de um<br />

método originalmente batizado por ele de “saltos<br />

e saltinhos”, emprestado à personagem<br />

machadiana Capitú, busca nas tradições africanas<br />

dos mitos das divindades da terra como<br />

Omolu/Obaluaiê (nagô) / Xapanã (jêje), valores<br />

culturais-religiosos, cuja recriação/atualização<br />

no Brasil, através das populações afro-descendentes,<br />

acredita-se, funcionou como orientadora<br />

cultural na reação popular à vacinação<br />

obrigatória contra a febre amarela no conflito<br />

conhecido como a Revolta da Vacina, ocorrido<br />

no começo do século XX, na cidade do Rio<br />

de Janeiro. Citando um outro historiador original<br />

na adoção de um método semelhante, escreve<br />

Chalhoub (<strong>19</strong>96, p.144):<br />

Robert Slenes vem demonstrando que as culturas<br />

religiosas da África Central informavam muito<br />

do que os escravos do sudeste pensavam de<br />

sua condição, sendo mesmo decisivas na articulação<br />

de formas de resistência ao cativeiro. Sendo<br />

assim o que é necessário fazer para reforçar a<br />

hipótese da importância de Omolu na resistência<br />

à vacinação, é mostrar a possibilidade real de<br />

reinterpretação desse orixá em termos dos pressupostos<br />

cosmológicos básicos dos povos da<br />

África Central.<br />

Está claro que estas concepções e inovações<br />

temáticas e teórico-metodológicas cum-<br />

232 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003


Wilson Roberto de Mattos<br />

priram um papel decisivo, no sentido de nos orientar<br />

a pensar a escravidão e os próprios escravos<br />

para além da sua mera posição na estrutura<br />

produtiva. As interpretações pautadas<br />

nesses princípios relativizam o peso estrutural<br />

do escravismo como sistema para que os escravos<br />

possam emergir como sujeitos na história,<br />

assim como, sujeitos da sua própria história.<br />

Mas, mesmo reconhecida a importância intelectual<br />

desta virada teórico-metodológica e<br />

temática, particularmente continuo acreditando<br />

que, às nossas demandas políticas, culturais e<br />

de luta anti-racista contemporâneas, a história<br />

da África, a história da escravidão brasileira ou<br />

mesmo a história da presença da África no Brasil,<br />

através de valores recriados ou de qualquer<br />

outro expediente histórico-cultural, só farão sentido<br />

– citando uma frase significativa de Stuart<br />

Hall (<strong>19</strong>96) –, se forem recontadas através da<br />

política da memória e do desejo.<br />

Para finalizar exponho, de modo sintético,<br />

alguns aspectos iniciais, portanto provisórios, de<br />

um trabalho que tenta dar operacionalidade à<br />

conjunção entre memória e história de populações<br />

afro-descendentes, na perspectiva de uma<br />

interpretação alternativa aos postulados<br />

hegemônicos.<br />

Em execução há um ano, o projeto de pesquisa<br />

intitulado: Negras Lembranças: memórias<br />

da dor e da alegria, desenvolvido no recôncavo<br />

sul do Estado da Bahia, através dos<br />

procedimentos da história oral, tem como objeto<br />

as memórias de velhos afro-descendentes<br />

moradores da região e, como objetivos, identificar<br />

e interpretar os significados que por eles<br />

são atribuídos às suas experiências no mundo<br />

do trabalho, nas relações de parentesco e vizinhança,<br />

no universo da religiosidade, das festas<br />

e de outras formas de expressão criativas.<br />

As histórias de vida – opção inicial acerca<br />

do formato dos depoimentos –, registram em<br />

proporção significativa, fatos, práticas, processos,<br />

hábitos e concepções que configuram<br />

aquilo que Paul Gilroy (2001) codificou conceitualmente<br />

como o “sublime”, ou seja, a dimensão<br />

redentora da dor ou a capacidade criativa<br />

que as populações negras tinham, na escravidão,<br />

e têm, ainda hoje, de transformar<br />

a experiência da exclusão social, da opressão,<br />

do preconceito e da discriminação racial, em<br />

substrato cultural-existencial vívido, voltado<br />

para a afirmação positiva e celebração da vida,<br />

principalmente através da inventividade nas<br />

formas de expressão criativas como a música,<br />

a literatura, a dança e outras artes performáticas,<br />

mas também na edificação de valores<br />

humanos, ético-relacionais, cuja dimensão prática,<br />

nas lutas empreendidas cotidianamente<br />

pelas populações negras da região, são evidentes:<br />

a astúcia em arranjar cotidianamente<br />

a sobrevivência; a solidariedade como imperativo<br />

ético nas relações intra e inter-grupos;<br />

a fé na vida como possibilidade e devir, a certeza<br />

de que tudo pode melhorar.<br />

Os pressupostos básicos da pesquisa, sustentados<br />

na articulação entre memória e história,<br />

informam que as sociabilidades e modos de<br />

vida não-hegemônicos dos grupos negros<br />

pesquisados, expressos das mais variadas formas<br />

no universo amplo da cultura, produzem<br />

valores e significados que configuram identidades<br />

e conferem sentidos à sua existência social.<br />

Mais do que isso, as próprias narrativas, expressando<br />

o vivido tal qual concebido, via memória<br />

dos depoentes, indicam que essas identidades<br />

e sentidos não devem ser vistos como<br />

características definitivas ou essenciais cristalizadas<br />

de uma vez por todas, mas como resultados<br />

provisórios, porque contextuais, históricos,<br />

de um processo agonístico de resistências e<br />

acomodações em relação aos vetores impositivos<br />

dos estratos hegemônicos da cultura.<br />

Contemporaneamente, é no interior desta<br />

arena conflituosa, permeada pelas injunções da<br />

história, que se constroem e se reconstroem<br />

valores, que se avaliam as possibilidades de que<br />

esses valores contribuam para o aperfeiçoamento<br />

da nossa civilização, não só através dos processos<br />

de elaboração de políticas educacionais<br />

e currículos escolares mas, sobretudo, através<br />

de uma nova cultura política que interiorize nossa<br />

memória própria e a nossa história afro-descendente<br />

como instituidoras de novas formas<br />

de se organizar as relações humano-socias, nas<br />

diferenças e nas semelhanças.<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003<br />

233


Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e currículos escolares<br />

REFERÊNCIAS<br />

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: _____. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e<br />

política. 3. ed. São Paulo, SP: Brasiliense, <strong>19</strong>87. p. 222-232.<br />

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo, SP: Cia. das Letras,<br />

<strong>19</strong>96.<br />

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34, 2001.<br />

HALL, Stuart. Identidade Cultural e Diáspora: “cidadania”. Organizado por Antonio Augusto Arantes.<br />

Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, DF, n. 24, p 68-75, <strong>19</strong>96.<br />

SLENES, Robert. Malungo n´goma vem!: África coberta e descoberta do Brasil. Revista USP, São Paulo, SP,<br />

n.12, p. 48-67, <strong>19</strong>91/<strong>19</strong>92.<br />

_____. Na senzala, uma flor. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, <strong>19</strong>99.<br />

Recebido em 30.05.03<br />

Aprovado em <strong>19</strong>.08.03<br />

234 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 229-234, jan./jun., 2003


RESUMO DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO<br />

MORAIS, Edmilson de Sena.* “Corte e costura étnica”: representações da identidade<br />

afro-descendente nas relações sócio-educativas no CONGO-CENTRO<br />

MÉDICO SOCIAL. Salvador, 2002. 235 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de<br />

Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade. Universidade do Estado<br />

da Bahia (UNEB).**<br />

Num país pluriétnico como o Brasil, a construção<br />

da identidade étnica afro-descendente<br />

em todas as suas regiões, principalmente em<br />

Salvador, é uma problemática recorrente no<br />

processo de reconhecimento da sua diversidade<br />

etno-cultural e de uma efetiva democracia<br />

racial. A relevância desta questão está diretamente<br />

relacionada à auto-afirmação do indivíduo<br />

negro-mestiço, sua inserção sócio-econômica<br />

e o seu reconhecimento enquanto cidadão<br />

numa sociedade racista e de classes, onde<br />

prevalecem mecanismos de exclusão que se<br />

iniciam desde seu nascimento até o modelo de<br />

educação instituído no qual ele é “formado”.<br />

Para este estudo, tomamos como referência<br />

o Projeto Educacional de Corte e Costura<br />

Étnica promovido pelo CONGO – CENTRO<br />

MÉDICO SOCIAL, localizado no Alto de<br />

Coutos, subúrbio ferroviário de Salvador/Bahia,<br />

porque sua proposta sócio-educativa contempla<br />

a questão da identidade étnica afro-descendente.<br />

Assim, buscamos perceber a forma como<br />

os jovens afro-descendentes daquela área geográfica<br />

construíram suas identidades. As identidades<br />

sociais daquela área foram tomadas<br />

como objeto de estudo por se tratar de uma<br />

questão crucial que tanto interesse suscita entre<br />

muitos segmentos: sociais, políticos, acadêmicos,<br />

e por entendermos ser esta uma construção<br />

política necessária no contexto das relações<br />

inter-raciais existentes em nosso país.<br />

O CONGO – CENTRO MÉDICO SOCI-<br />

AL, além de implementar um curso de formação<br />

técnica em corte e costura, incluiu em sua<br />

proposta político-pedagógica uma educação<br />

multicultural-cidadã enquanto recurso de inclusão<br />

social desses sujeitos que, historicamente,<br />

foram submetidos à ideologia do recalque e do<br />

branqueamento.<br />

Palavras-chave : Identidade – Identidade étnica<br />

afro-descendente – Representações Sociais<br />

ABSTRACT OF MASTERS’ THESIS: “Ethnic<br />

Tailoring”: representations of the Afro-descendant<br />

identity in the socio-educative relations at CONGO-<br />

Social Medical Center<br />

This study is about the construction of the<br />

young Afro-descendant ethnic-cultural identity<br />

through the Ethnic Tailoring Course implemented<br />

by CONGO – SOCIAL MEDICAL CENTER of Alto<br />

de Coutos – Salvador/Bahia/Brazil. The results<br />

reveal how these subjects began re-evaluating<br />

attitudes, co-inhabiting norms and the exercise of<br />

citizenship, that, as a whole, have contributed to the<br />

(re)construction of their identities and performances<br />

as historic subjects, participants of a multicultural<br />

society characterized by chronic social and economical<br />

problems and, promoters of many exclusions.<br />

Key words: Identity – Afro-descendant Ethnic<br />

Identity – Social Representations<br />

* Professor de História do ensino médio e fundamental da rede pública do Estado da Bahia. Endereço para<br />

correspondência: Rua Rio Parnaíba, bloco 43, apt. 102, Boca do Rio – 41706.170 Salvador/BA. E-mail:<br />

edmorsaba@yahoo.com.br.<br />

** Orientadora: Professora Yara Dulce Bandeira de Ataíde (UNEB); data: 16 de abril de 2003; Banca: Professor<br />

Henrique Cunha Júnior (UFC), Professora Ana Célia da Silva (UNEB).<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n o <strong>19</strong>, jan./jun., 2003<br />

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INSTRUÇÕES AOS COLABORADORES<br />

A Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade é uma publicação semestral e<br />

aceita trabalhos originais que sejam classificados em uma das seguintes modalidades:<br />

– resultados de pesquisas sob a forma de artigos, ensaios e resumos de teses ou monografias;<br />

– entrevistas, depoimentos e resenhas sobre publicações recentes.<br />

Os trabalhos devem ser apresentados em disquete (Winword), ou enviados via Internet para<br />

Jacques Jules Sonneville: jacqson@uol.com.br / jacques.sonneville@terra.com.br, segundo as<br />

normas definidas a seguir:<br />

1. Na primeira página devem constar: a) título do artigo; b) nome(s) do(s) autor(es), endereço,<br />

telefone, e-mail para contato; c) instituição a que pertence(m) e cargo que ocupa(m).<br />

2. Resumo (português) e Abstract (língua estrangeira): com no mínimo 200 palavras e no máximo<br />

250, cada um, de acordo com a NBR 6028. Logo em seguida, as Palavras-chave (português) e<br />

Key words (língua estrangeira), cujo número desejado é de no mínimo três e no máximo cinco.<br />

3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias, quando apresentados em folhas separadas, devem<br />

ter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser titulados e apresentar referências de sua<br />

autoria/fonte. Para tanto devem seguir a Norma de apresentação tabular, estabelecida pelo<br />

Conselho Nacional de Estatística e publicada pelo IBGE em <strong>19</strong>79.<br />

4. As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem, assim como os<br />

agradecimentos, apêndices e informes complementares.<br />

5. O sistema de citação adotado por este periódico é o de autor-data. As citações bibliográficas<br />

ou de site, inseridas no próprio texto, devem vir entre aspas ou em parágrafo com recuo e sem<br />

aspas, remetendo ao autor. Quando o autor faz parte do texto, este deve aparecer em letra<br />

cursiva, observando e respeitando a língua portuguesa; exemplo: De acordo com Freire (<strong>19</strong>82,<br />

p.35), etc. Já quando o autor não faz parte do texto, este deve aparecer no final do parágrafo,<br />

entre parênteses e em letra maiúscula, como no exemplo a seguir: A pedagogia das minorias<br />

está a disposição de todos (FREIRE, <strong>19</strong>82, p.35). As citações extraídas de sites devem, além<br />

disso, conter o endereço (URL) entre parênteses angulares e a data de acesso. Para qualquer<br />

referência a um autor deve ser adotado igual procedimento. Deste modo, no rodapé das páginas<br />

do texto devem constar apenas as notas explicativas estritamente necessárias, que<br />

devem obedecer à NBR 10520.<br />

6. Sob o título Referências deve vir, após parte final do artigo, em ordem alfabética, a lista dos<br />

autores e das publicações conforme a NBR 602, da ABNT (Associação Brasileira de Normas<br />

Técnicas).<br />

7. Os artigos devem ter, no máximo, 30 páginas, e as resenhas até 4 páginas. Os resumos de<br />

teses/dissertações devem ter no mínimo 250 palavras e no máximo 500, e conter título, autor,<br />

orientador, instituição, e data da defesa pública.<br />

Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no Winword 97 ou 2000:<br />

• fonte: Times New Roman 12;<br />

• tamanho da folha: A4;<br />

• margens: 2,5 cm;<br />

• espaçamento entre as linhas: 1,5 linha;<br />

• parágrafo justificado.<br />

8. As colaborações encaminhadas à revista são submetidas à análise do Conselho Editorial, atendendo<br />

critérios de seleção de conteúdo e normas formais de editoração, sem identificação da<br />

autoria para preservar isenção e neutralidade de avaliação. A aceitação da matéria para publicação<br />

implica a transferência de direitos autorais para a revista.<br />

238 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n o <strong>19</strong>, jan./jun., 2003

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