[Traficando Conhecimento] Jéssica Balbino
[Traficando Conhecimento] Jéssica Balbino
[Traficando Conhecimento] Jéssica Balbino
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
2<br />
<strong>Traficando</strong> conhecimento<br />
Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
Programa Petrobras Cultural<br />
Apoio
Copyright © 2010 Jessica <strong>Balbino</strong><br />
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL)<br />
organização<br />
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA<br />
consultoria<br />
ECIO SALLES<br />
produção editorial<br />
CAMILLA SAVOIA<br />
projeto gráfico<br />
CUBICULO<br />
TRAFICANDO CONHECIMENTO<br />
produtor gráfico<br />
SIDNEI BALBINO<br />
designer assistente<br />
DANIEL FROTA<br />
revisão<br />
CAMILLA SAVOIA<br />
LETÍCIA BARROSO<br />
revisão tipográfica<br />
CAMILLA SAVOIA<br />
B145t<br />
<strong>Balbino</strong>, Jéssica<br />
<strong>Traficando</strong> conhecimento / Jéssica <strong>Balbino</strong>. - Rio de Janeiro : Aeroplano,<br />
2010. il. - (Tramas urbanas)<br />
ISBN 978-85-7820-041-1<br />
1. <strong>Balbino</strong>, Jéssica. 2. Projeto Cultura Marginal. 3. Hip-hop (Cultura<br />
popular) - Poços de Caldas, MG. 4. Rap (Música) - Aspectos sociais.<br />
5. Música e juventude - Aspectos socias - Poços de Caldas, MG.<br />
6. Movimento da juventude - Poços de Caldas, MG. 7. Movimentos sociais -<br />
Poços de Caldas, MG. 8. Jornalismo. I. Programa Petrobras Cultural. II.<br />
Título. III. Série.<br />
10-1574. CDD: 305.2350981512<br />
CDU: 316.346.32-053.6(815.12)<br />
12.04.10 20.04.10 018538<br />
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS<br />
AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA<br />
AV. ATAULFO DE PAIVA, 658 / SALA 401<br />
LEBLON – RIO DE JANEIRO – RJ<br />
CEP: 22.440-030<br />
TEL: 21 2529-6974<br />
TELEFAX: 21 2239-7399<br />
aeroplano@aeroplanoeditora.com.br<br />
www.aeroplanoeditora.com.br<br />
A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre<br />
esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar<br />
ou autorizar a produção cultural dos artistas que se<br />
encontram na periferia por critérios sociais, econômicos<br />
e culturais. Faz parte da percepção de que a cultura<br />
da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade<br />
de ter sua voz.<br />
No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos<br />
vem mostrar que não se trata apenas de artistas<br />
procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos,<br />
profundamente conectados com experiências<br />
sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias<br />
assume contornos biográficos de um sujeito ou de um<br />
grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas<br />
condições socioeconômicas e da afirmação cultural de<br />
suas comunidades.<br />
Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais,<br />
criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos<br />
a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros<br />
tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase<br />
desta coleção.<br />
Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade<br />
do projeto Tramas Urbanas trata de procurar<br />
não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas<br />
experiências novas formas de responder a questões<br />
culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como<br />
diz a curadora do projeto, “mais do que a internet,<br />
a periferia é a grande novidade do século XXI”.<br />
Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.
Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da<br />
periferia se impõe como um dos movimentos culturais<br />
de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável<br />
dicção proativa e, claro, projeto de transformação<br />
social. Esses são apenas alguns dos traços inovadores<br />
nas práticas que atualmente se desdobram no panorama<br />
da cultura popular brasileira, uma das vertentes<br />
mais fortes de nossa tradição cultural.<br />
Ainda que a produção cultural das periferias comece<br />
hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas<br />
mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural,<br />
sua história ainda está para ser contada.<br />
É neste sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como<br />
objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse<br />
novo capítulo da memória cultural brasileira.<br />
Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva<br />
ao direito da periferia de contar sua própria história.<br />
Heloisa Buarque de Hollanda
Dedicado a você.<br />
A Deus, minha fé eterna.<br />
Para<br />
Meus pais, pelos pequenos gestos e grandes demonstrações<br />
diárias de carinho e afeto.<br />
Minha irmã e minhas sobrinhas.<br />
Toda a equipe da redação do Jornal Mantiqueira e Mais Poços.<br />
Os garotos do portal Central Hip-Hop/Bocada-Forte.<br />
Agradecimentos<br />
Heloisa Buarque de Hollanda, por acreditar que o projeto poderia<br />
virar livro.<br />
Camilla Savoia, pela paciência durante o processo de revisão e editoração.<br />
“Quando vi a estrada pela primeira vez nem sequer sabia o quanto ia ter que<br />
caminhar pra chegar até aqui, e mal sabia que esse tipo de estrada não tem<br />
fim, só paradas breves para que o coração possa registrar os momentos.<br />
A vida não para, nem aqui, nem hoje e talvez, nem nunca. Quem sabe o<br />
futuro? Ninguém vence enquanto a luta não acaba (...)”<br />
Sérgio Vaz<br />
Anita Motta (in memorian), Ademiro Alves (Sacolinha), Alessandro Buzo,<br />
China Trindad, Coletivo Hip-Hop Mulher, CUB, Dina Di (in memorian),<br />
DJ Cortecertu, DJ Mancha, DJ TR, Eduardo Herrera, Elemento.S, Ferréz,<br />
Guilherme Bryan, Juliana Martins, Kaká Soul, Leopac, Lu Afri, Mary do<br />
Rap, Michel da Silva, Renan Inquérito, Renato Vital, Rúbia Fraga, UClanos,<br />
Sérgio Vaz, Tubarão DuLixo, Wakka Alves, Zulu King Nino Brown e a todas<br />
as pessoas que colaboram para a viabilização de projetos como este.<br />
Um salve especial aos fotógrafos Luciano Santos, Márcio Pinto e Marcos<br />
Corrêa, pela paciência de sempre.
Citação do caminho certo<br />
Do povo para o povo: “Hip-Hop –<br />
A Cultura Marginal”<br />
Sumário<br />
13 Prefácio<br />
14 Introdução<br />
16 Cap.01 Periferia adentro: o hip-hop<br />
O início<br />
Trajetória<br />
Os interesses<br />
Tempo para leitura<br />
Escola da vida<br />
Campo de batalhas<br />
Uai, hip-hop<br />
Os tios do hip-hop<br />
Passo sincopado em direção ao futuro<br />
Cotidiano<br />
Marcando vidas<br />
“Crime desorganizado”<br />
72 Cap.02 Passos pela vida<br />
Um zine diferente<br />
Rap de dentro<br />
Jornalismo no zine<br />
Tempo de mudanças<br />
Patrimônio cultural e histórico<br />
Monitorando a infância e o futuro<br />
Do desemprego ao mais perfeito possível<br />
Entre livros<br />
Despejo no quarto<br />
114 Cap.03 Concepção<br />
Caldeirão de ideias<br />
O despertar<br />
<strong>Traficando</strong> informação<br />
Preparando o terreno<br />
Hip-hopeando<br />
Um grito de emergência<br />
170 Cap.04 No ar: o hip-hop<br />
Agora sim, profissão repórter!<br />
Salvando vidas<br />
Blog<br />
Ciranda<br />
O hip-hop não foi inventado<br />
Oficinas<br />
Uma letra, um beat<br />
Sacolinha, vídeo-documentário e TCCs<br />
Mixando<br />
Pelas periferias do Brasil<br />
Do lado de dentro da periferia<br />
Plano B<br />
Cultura Marginal<br />
256 Cap.05 Em foco<br />
3... 2... 1 gravando!<br />
Caixinhas poéticas<br />
Às margens da sociedade<br />
Pela vida<br />
O que você está lendo?<br />
362 Cap.06 Estatística<br />
Literatura, pedras e sementes<br />
Do verbo produzir<br />
Sem parada<br />
Beatz<br />
Passa Livros<br />
Palavra cruzada: literatura e<br />
conhecimento<br />
Rap educativo<br />
Fronteiras quebradas<br />
Profissão: transmissora de<br />
conhecimento<br />
Palestrando: parte II<br />
Repercussom<br />
Querem nosso sangue<br />
Em dia com a leitura<br />
496 Imagens: índice e créditos<br />
503 Sobre a autora
13<br />
Prefácio<br />
Não confunda briga com luta. Briga tem hora para<br />
acabar, e luta é para uma vida inteira. E a maior prova<br />
disso é a história da guerreira Jéssica <strong>Balbino</strong>.<br />
Ela é daquelas pessoas que nascem com tudo para<br />
dar errado, mas por uma força estranha — que só as<br />
pessoas que não se entregam sabem que têm, ela<br />
está vencendo.<br />
E insistentemente, quer através das suas oficinas<br />
de literatura na periferia ou por intermédio de suas<br />
matérias, ela faz questão que outras pessoas que<br />
vieram do mesmo destino e lugar que ela, também<br />
vençam. E para que isso aconteça, ela não descansa<br />
sua caneta, e sua atitude vai muito mais além<br />
do que palavras despencadas no papel.<br />
Sua letra é forte sem ser arrogante, ela não bate, mas<br />
revida, a doçura fica por conta de quem lê. Ela não<br />
teve tempo pra isso. Aqui a verdade prevalece, por<br />
isso acho que deve ter doído escrever esse livro, talvez<br />
doa quando você ler, e como todos sabem viver<br />
dói, e de onde ela vem, dói mais ainda.<br />
Num dos primeiros parágrafos do livro, ela diz “O<br />
hip-hop salvou a minha vida”, e é isso que você vai<br />
encontrar nesse livro: uma sobrevivente.<br />
Só que com os punhos cerrados, e um enorme sorriso<br />
no rosto.<br />
As ruas agradecem.<br />
Sérgio Vaz<br />
Poeta da Cooperifa
15<br />
Introdução<br />
O interesse pela arte e pela cultura plantados na infância<br />
e na juventude produzem as árvores de um futuro<br />
sem massacres cotidianos.<br />
Nem sempre o tesouro está nos grandes centros urbanos.<br />
Pode ser encontrado um pouco mais longe, em<br />
pequenas trouxas de conhecimento e em grandes invólucros<br />
contendo uma substância de aparência cultural.<br />
Nas bocas do conhecimento é que o tráfico da periferia<br />
precisa se fundamentar.<br />
Prazer, conhecimento!<br />
Da mesma maneira que salvou a minha vida, eu penso<br />
que o hip-hop, o conhecimento e a literatura podem ser<br />
ferramentas de resgate dentro das periferias.<br />
É logo ali, onde termina a linha do trem e começa a cultura<br />
marginal.<br />
Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
Traficante de conhecimento<br />
Como uma sociedade que quer evoluir dá as costas<br />
para a periferia? Para alcançar propósitos é preciso<br />
incluir os que são esquecidos.<br />
O livro desvela a periferia de Poços de Caldas sem medo<br />
de expor as chagas de uma gente subtraída.<br />
Propõe um olhar livre de preconceitos para a periferia.<br />
Imagine as pessoas cantando as letras mixadas em<br />
forma de protesto sem julgá-las antes mesmo de ouvir.<br />
As balas de borracha não vão parar a produção cultural<br />
dos guetos.<br />
Os quilombos modernos são grandes centros culturais.<br />
Não existe mais utopia na periferia e sim gente que<br />
sonha com as mãos e faz acontecer.<br />
Os salários-misérias ainda são os mesmos, mas a cidadania<br />
exercida por meio do conhecimento e da literatura<br />
são novos.<br />
14
Cap.01<br />
Periferia adentro: o hip-hop<br />
Cap.01<br />
Periferia adentro: o hip-hop
O início<br />
“O hip-hop salvou a minha vida...”. É assim que começo a<br />
falar da minha vida durante as minhas palestras e oficinas<br />
sobre cultura marginal, mas, antes de contar esta história,<br />
é preciso voltar no tempo e lembrar como tudo começou.<br />
Sinônimo de voz, de atividade e de exteriorização de um<br />
submundo. Assim é a literatura produzida na periferia<br />
e acompanhada por projetos culturais que invadem as<br />
casas sem reboco, arrebanha os jovens sem perspectivas<br />
e tira as quebradas do limbo cultural.<br />
Este é o projeto Cultura Marginal, que começou naturalmente<br />
e sem que eu mesma percebesse, já existia<br />
fazendo barulho e ecoando dos lugares mais distantes um<br />
grito ensurdecedor de produção literária. Veio para fugir<br />
do jargão periférico de tráfico, opressão e sofrimento,<br />
presentes em qualquer periferia brasileira e daí a expressão<br />
de Gog: “periferia é periferia em qualquer lugar”.<br />
No entanto, é impossível contar a história deste movimento<br />
na periferia de Poços de Caldas sem, antes, contar<br />
sobre a minha indignação diante do descaso e a minha<br />
necessidade de expressão.<br />
18
Periferia adentro: o hip-hop<br />
21<br />
Trajetória<br />
Aos três anos, aprendi a escrever meu nome e de meus<br />
familiares, em aulas intensivas nos dias de muito frio e<br />
chuva, quando minha mãe, que cursou apenas até o 4°<br />
ano primário e sempre trabalhou de forma assalariada,<br />
me ensinava.<br />
Para fugir das únicas referências culturais do bairro: a<br />
novela das 20h da Globo e o programa do Sílvio Santos,<br />
ficava com livros e papéis espalhados sobre a mesa,<br />
cena que ainda não mudou no meu cotidiano.<br />
Inverno de 1985. Época em que o frio na cidade de Poços<br />
de Caldas era constante e a temperatura sempre inferior<br />
a 0° C. Neste mesmo período, o Brasil era governado por<br />
José Sarney após a morte de Tancredo Neves e o fim da<br />
ditadura militar. Na periférica zona sul da cidade, sem<br />
asfalto, saneamento básico adequado, posto de saúde<br />
ou escolas eu nasci e cresci.<br />
Considerada a cidade com o melhor Índice de Desenvolvimento<br />
Humano (IDH) do Estado e, segundo esta<br />
mesma pesquisa, o 4° melhor município para se viver no<br />
ranking nacional, Poços mascarava, como faz até hoje,<br />
o sofrimento das quebradas. Mascara-se a existência<br />
de favelas e treme-se ao ouvir dizer periferia. Não pode<br />
ter. Mas tem, e ela apresenta todos os problemas e<br />
encantos de qualquer outra.<br />
Entre brincadeiras nas ruas e terrenos baldios do bairro<br />
mais distante do centro da cidade — o Jardim Kennedy<br />
— cresci na linha entre a total falta de infraestrutura e<br />
a vontade real de mudar esta realidade. Além das típicas<br />
brincadeiras como pega-pega, esconde-esconde,<br />
amarelinha, elefante colorido e passa-anel, desenvolvi,<br />
muito antes de saber juntar as letras e formar palavras,<br />
o gosto por folhear livros, gibis e revistas, fingindo ler.<br />
Como em qualquer periferia, as opções para diversão são<br />
nulas. A ausência de praças, centros culturais, atividades<br />
que envolvam crianças e jovens se transformava em criatividade<br />
enquanto as ruas ainda não eram tão movimentadas,<br />
e permitiam que, para o sossego das mães, ficássemos<br />
brincando em grupos. Quando alguém ganhava<br />
uma bicicleta, um par de patins ou construía um carrinho<br />
de rolimã, as brincadeiras poderiam ser variadas.<br />
Para os adultos, entre as casas, muito próximas fisicamente,<br />
as janelas e portas estão sempre abertas aos vizinhos,<br />
que, como forma de lazer e contato com o mundo,<br />
estão sempre um dentro da casa de outro, formando uma<br />
grande família, à margem da sociedade, dita, elite.<br />
O alfabeto e as primeiras operações matemáticas foram<br />
aprendidas em um prédio velho, em uma rua de terra,<br />
cheio de goteiras. Mas era divertido ir à aula nos dias<br />
chuvosos, tínhamos arrastar carteiras e nos sentarmos<br />
em outro ambiente, o que sempre representava quebra<br />
de rotina.<br />
Biblioteca, asfalto, posto de saúde, linhas de ônibus,<br />
iluminação pública e saneamento básico eram secundários<br />
na região, afinal, as casas populares do bairro ao<br />
lado já haviam sido entregues. Justamente nesta época,<br />
aprendi a ler, no pré-primário e, de presente dos meus<br />
20
22 <strong>Traficando</strong> conhecimento Periferia adentro: o hip-hop<br />
23<br />
pais, ganhei um livro que havido sido deles: “Simbad, o<br />
marujo”. Encantei-me pela história que se passava do<br />
outro lado do mundo. A quantidade de papéis sobre a<br />
mesa aumentou. Também ganhei, nessa época, minha<br />
primeira Bíblia e arriscava pequenas leituras, acompanhando<br />
as ilustrações. Devia ter uns sete anos quando<br />
comecei a produzir os primeiros textos, que, hoje, se perderam<br />
em limpezas de armário e vontade de mudança.<br />
Vim de uma família simples, entretanto, nunca faltou o<br />
pão e a literatura. Os livros sempre foram parte da decoração<br />
e da rotina. Muito cedo percebi que a literatura<br />
mudava minha forma de visão e entendimento de mundo.<br />
Sempre que me sugeriam um presente, pedia um livro<br />
e a rotina continua a mesma, até hoje, no bairro. Brincadeiras<br />
na rua, falta de infraestrutura básica para as<br />
famílias e a obrigatoriedade em mudar de escola. Por<br />
ainda não termos idade suficiente para cursar o primário<br />
na escola do bairro, eu e alguns outros companheiros<br />
do pré-primário fomos obrigados a fazer uma prova<br />
na superintendência de ensino, que nos garantiria uma<br />
vaga em uma escola do Estado.<br />
Passamos e fomos encaminhados. Ficava há uns 12 quilômetros<br />
de distância e fazer o caminho era sempre um<br />
transtorno. Carro, vans, ônibus e longas caminhadas a<br />
pé. Assim foi resumido meu primeiro ano. Mais tempo<br />
entre o trajeto do que dentro da escola e pouco tempo<br />
para brincar, ou mesmo ler. Foi o tempo em que as responsabilidades,<br />
embora ainda pequenas, começaram a<br />
surgir, tomando o lugar das farras nas ruas.
Periferia adentro: o hip-hop<br />
25<br />
Os interesses<br />
mortos para sobreviver durante o tempo em que estiveram<br />
nos destroços do avião, aguardando um, quase<br />
impossível, resgate.<br />
Não parei mais. Entre livros de adulto e de criança,<br />
pouco tempo mais tarde, abri uma ficha na biblioteca da<br />
cidade e comecei a ler sobre tudo. É difícil saber quantos<br />
livros li na época, mas uma coisa nítida na lembrança<br />
é que tinha dois interesses profissionais: escrever e me<br />
tornar jornalista.<br />
Estudar fora do bairro sempre foi um problema pelo<br />
conflito de realidades. Alguns vinham de regiões mais<br />
nobres e, desde cedo, aprendi como é ser diminuída só<br />
porque moro em determinada região.<br />
Minha vida, aos sete anos e meio se resumia em acordar,<br />
me arrumar, ir para a escola, voltar, fazer as lições,<br />
tomar banho, comer e dormir. Devido ao longo trajeto, o<br />
tempo para as diversões ficou apenas para os finais de<br />
semana, quando alguns colegas iam para minha casa e<br />
ficávamos na rua, como sempre, brincando.<br />
Quando isso não acontecia, por ter crescido sozinha –<br />
sem irmãos na mesma casa —, o tempo livre era para<br />
fugir do ócio da televisão e acontecia com a leitura dos<br />
clássicos infantis da série Vaga-Lume, os volumes de<br />
Pedro Bandeira e os infanto-juvenis com histórias de<br />
Sherlock Holmes, todos pegos na biblioteca da escola.<br />
Dividida entre a escola e o pouco tempo de lazer, o cenário<br />
era sempre o mesmo: professores mal remunerados e<br />
com pouca vontade de transmitir conhecimento, alunos<br />
agressivos que vandalizavam o pouco do espaço público<br />
que tínhamos para estudar, um longo caminho de ida e<br />
volta para casa, que em 1996, quando eu estava no 5°<br />
ano do Ensino Fundamental, ficou ainda mais longe, com<br />
a mudança do prédio da escola, que saiu do centro da<br />
cidade para a Zona Leste.<br />
Eu continuava morando na Zona Sul com a ânsia de fazer<br />
algo mais do que simplesmente estudar.<br />
Aos nove anos eu já havia lido quase todos da sessão<br />
infantil e, durante uma das greves do colégio — entre<br />
as inúmeras que aconteceram —, sem nada para fazer<br />
em casa, peguei o exemplar do meu pai de “Os Sobreviventes<br />
– A tragédia dos Andes” e, em três dias, li toda<br />
a história dos jogadores de futebol que caíram de avião<br />
na cordilheira e foram obrigados a comer pedaços dos<br />
24
Periferia adentro: o hip-hop<br />
27<br />
Tempo para leitura<br />
Parti, também, para leituras de infanto-juvenis como<br />
“Confissões de Adolescente” e “Ensaio de um beijo”,<br />
além de clássicos como “Iracema”, “O Guarani”, “Lucíola”<br />
e “O Cortiço”. No fim do ano, fiquei com os pés recuperados<br />
e a mente renovada, cheia de ideias.<br />
Foi justamente nessa época que descobri um problema<br />
crônico nos dois pés — a existência de um osso a mais<br />
que me levava a uma dor insuportável e me impedia de<br />
caminhar mais do que um quarteirão sem chorar por não<br />
conseguir prosseguir — que me obrigou a ficar vários<br />
dias afastada da escola e a viajar vinte vezes, no mesmo<br />
ano, cerca de 180 quilômetros até a cidade de Campinas<br />
(SP) para fazer uma cirurgia que removeria estes ossos.<br />
Aos 11 anos, no trajeto e nas longas horas de espera,<br />
o tempo era preenchido com livros, gibis (uma grande<br />
paixão desde que aprendi a ler) e escrita aleatória em<br />
folhas de caderno, que, tristemente, se perderam em<br />
uma das limpezas de quarto, assim como os primeiros<br />
textos da infância.<br />
A falta de um local adequado para tratamentos desse<br />
tipo em Poços de Calda me obrigava a ir para Campinas.<br />
Creio ter lido uns 50 livros naquele ano. Na época passei<br />
a me interessar por algo mais adulto, e conheci o universo<br />
de escritor que mais tarde se tornaria minha referência<br />
em estrutura textual, Marcelo Rubens Paiva, nos<br />
textos de “Feliz Ano Velho” e “Blecaute”. Li também um<br />
pouco de Shakespeare, nos clássicos adaptados para<br />
infanto-juvenil como “Otelo”. Apaixonei-me pelo texto<br />
de “Sonho de uma noite de verão”.<br />
26
Periferia adentro: o hip-hop<br />
29<br />
Escola da vida<br />
Ao voltar para a escola, dividi com professores e colegas<br />
de classe meu desejo de escrever e me tornar jornalista.<br />
Fui ridicularizada. Pobre não pode ter esse tipo<br />
de profissão, me diziam.<br />
Por que meu desejo, assim como o das demais garotas<br />
da minha classe não era terminar o 2° grau, arrumar um<br />
marido e ter filhos?<br />
Não, não era. Não naquele momento. Eu queria aprender<br />
coisas novas a cada dia. Queria estudar. Queria escrever.<br />
Não poderia falar mais sobre isso em sala de aula<br />
e demorei para perceber, pois, todos os dias, repetia o<br />
mesmo sonho para toda a classe. Queria ser jornalista.<br />
Gostava de escrever. Continuei lendo e juntando os trocados<br />
da mesada que meu pai me dava, com base no<br />
salário de aposentado do ramo da metalurgia, para comprar<br />
alguns livros que me chamavam atenção.<br />
A falta de informações era tremenda, mas conseguimos<br />
eleger uma chapa e criamos um pequeno grêmio, para<br />
o qual fui nomeada assessora de imprensa. Achei lindo<br />
o nome, afinal, tinha a palavra imprensa e eu poderia<br />
considerar um trabalho jornalístico. Longe de qualquer<br />
conhecimento sobre o que realmente era a profissão,<br />
acho que não me saí tão mal, afinal, eu sempre divulgava<br />
nossas ações em panfletos e fazia barulho junto com os<br />
demais alunos, além de ter documentado boa parte das<br />
nossas pequenas ações dentro do colégio.<br />
Conseguimos poucos resultados, afinal, em uma escola<br />
onde o único objetivo pregado pela direção e pelos educadores<br />
é a conquista de um diploma, não importando<br />
como, os alunos não davam muito importância ao grêmio.<br />
Leitura. Muita leitura. Entre todas estas atividades,<br />
minha vida continuava marcada por muitos livros e textos.<br />
A aquisição de um computador e o acesso à internet,<br />
naquela época, ainda eram coisas raras e, com<br />
muito sacrifício dos meus pais, conseguimos isso.<br />
No universo gigante que a internet mostrava, comecei<br />
a pesquisar novos textos e, diante do computador,<br />
escrevi minhas primeiras linhas, desconexas, mas que,<br />
mesmo assim, achava que formavam literatura. Mas<br />
não importa. Foi o primeiro passo.<br />
Pouco tempo mais tarde, por ter sempre estudado na<br />
mesma escola e militar em causas para o bem-estar<br />
dos alunos, um grupo de alunos me convidou para montarmos<br />
um grêmio estudantil. Inspirados pela participação<br />
dos meus pais no colegiado, que sempre tentaram<br />
melhorar o ambiente estudantil, consolidamos<br />
nossa ideia inicial.<br />
28
Periferia adentro: o hip-hop<br />
31<br />
Campo de batalhas<br />
Falta de informação, de atividades, de lazer conduzindo<br />
a um resultado comum e aterrador: violência dentro da<br />
escola. Foi por volta de 1999 que as gangues surgiram,<br />
dentro das escolas, com mais impacto.<br />
Grupos da Zona Sul, onde vivo, rivalizavam com grupos<br />
da Zona Leste, onde a escola estava situada, e as disputas<br />
por espaço e poder dentro da instituição eram<br />
cada vez mais constantes. Um estrondo forte, de tremer<br />
todo o prédio trouxe a notícia de que uma bomba<br />
caseira, fabricada por um aluno, fora colocada em um<br />
dos banheiros.<br />
O motivo? A imagem que a forma arquitetônica do prédio<br />
transmitia a alguns alunos, que passaram a chamá-la de<br />
pavilhão 9, talvez pela semelhança física e pela existência<br />
de uma grade que separava as salas de aula do pátio<br />
e do portão de saída.<br />
A inexistência de disciplina fomentou, cada dia mais, as<br />
brigas entre os grupos e gangues, fazendo com que um<br />
espaço onde a educação deveria acontecer se transformasse<br />
em um campo de batalhas.<br />
Nesta mesma época, brigas eram formadas durante o<br />
intervalo entre as aulas e nem mesmo os professores<br />
conseguiam conter. Várias vezes a polícia teve de intervir<br />
e alguns alunos foram conduzidos à delegacia. Foi<br />
então que uma viatura passou a fazer parte da paisagem<br />
estudantil dos quase dois mil estudantes daquele<br />
colégio. Para evitar as brigas frequentes, os policiais<br />
circulavam pelo pátio e arredores.<br />
Nem isso impediu que, sem qualquer motivo, um aluno da<br />
minha sala fosse espancado até quase a morte enquanto<br />
saía da escola apenas porque esbarrou em outro. A educação<br />
cedeu, facilmente, o lugar para a violência incontida.<br />
As ofertas de drogas fáceis na porta do colégio também<br />
eram uma realidade. Apesar da presença policial, da<br />
Guarda Municipal, dos professores e diretores, o tráfico<br />
não deixava de acontecer, à luz do dia, e atingir todos os<br />
alunos. Graças a Deus, eu tinha outros sonhos e ideais.<br />
Nunca me chamou atenção ficar “louca” por conta de<br />
alguma substância. Preferia viajar pelos livros.<br />
O grêmio se desfez pelas ameaças e ridicularizações das<br />
gangues, que traziam personagens reais dos filmes de<br />
terror, colocando medo em todos os demais alunos que<br />
ousassem desobedecer às regras estabelecidas por eles.<br />
Era triste observar e não poder mais lutar pelos direitos<br />
dos alunos. Quase todos os jovens, com problemas<br />
em casa e também na escola, não tinham mais sequer<br />
o direito à merenda que era distribuída nos intervalos e<br />
garantia a única refeição diária de muitos deles.<br />
Num tempo em que a única referência em educação é um<br />
campo minado de batalhas entre grupos rivais, apenas por<br />
diferenças geográficas, o desenho de profissionalização<br />
e curso superior passa longe dos sonhos das periferias.<br />
A porta da escola, mesmo com a presença policial, foi<br />
transformada em ponto de tráfico pelos moradores do<br />
30
34 <strong>Traficando</strong> conhecimento Periferia adentro: o hip-hop<br />
35<br />
morro vizinho. Os que tinham mais de 16 anos, e uma<br />
família um pouco mais ordeira e trabalhadora, abandonavam<br />
os estudos ou migravam para o período noturno e<br />
passavam a trabalhar, quando conseguiam um primeiro<br />
emprego com carteira registrada. Outros deixavam de<br />
lado os estudos e partiam para atividades informais<br />
como serventes de pedreiros, babás e diaristas.<br />
Foi também neste período, que, não pela falta de informação,<br />
constante em atividades do governo e palestras,<br />
mas pela falta de oportunidades e de ousadia por<br />
uma vida diferente, muitas garotas da minha classe e<br />
de toda escola, todas com idades entre 12 e 16 anos,<br />
ficaram grávidas.<br />
Sem estrutura em casa, com pais e mães separados ou<br />
já falecidos e namorados, quase sempre, ligados à atividades<br />
ilícitas, elas ostentavam as barrigas e carregavam<br />
no ventre não apenas os bebês, mas o sonho de<br />
uma vida diferente, com casa própria, marido e carro do<br />
ano. Todas elas, também, deixaram os estudos e as que<br />
tiveram mais sorte foram viver com os companheiros. A<br />
maioria continuou vivendo na mesma casa e, hoje, cria os<br />
filhos sozinhos, sem reconhecimento ou apoio paterno.<br />
Acho que meus pais nunca entenderam esse gosto, esse<br />
desespero por conhecer mais dessas culturas populares.<br />
Com o tempo, passaram a aceitar e acompanhar,<br />
afinal, era melhor estar vivendo isso do que aliando aos<br />
problemas e às ofertas perigosas da periferia.<br />
Outro sonho, atuar nos palcos de teatro, já tinha ficado<br />
na infância, mas, mesmo assim, na ânsia de saber e<br />
aprender cada vez mais sobre tudo, me matriculei em<br />
um curso de teatro do Conservatório Municipal. Aprender<br />
a falar em público, articular melhor os movimentos<br />
corporais e perder a vergonha diante da plateia. Estas<br />
foram as matérias mais proveitosas do curso.<br />
Apresentei uma peça no fim do ano e, no ano seguinte,<br />
me dediquei à produção e à atuação em outra peça,<br />
sobre os problemas cotidianos de uma família tipicamente<br />
brasileira.<br />
Meu sonho de ser jornalista continuava e muito deste<br />
retrato cotidiano, formado pelos acontecimentos da<br />
escola, se transformaram em crônicas na própria escola,<br />
durante as aulas de português, geografia e literatura.<br />
Estava escrevendo a nossa própria história e caminhando<br />
rumo ao meu sonho: ser jornalista.<br />
Desde cedo me incorporei à contracultura, à cultura<br />
negra, aos movimentos populares. Não sei de onde surgiu<br />
tamanha paixão e nem o porquê, mas o fascínio que<br />
ela exerce sobre mim é incrível. Naquela época já não me<br />
imaginava sem estes sonhos, sem estes engajamentos.
Periferia adentro: o hip-hop<br />
37<br />
Uai, hip-hop<br />
Era uma tarde qualquer de sexta-feira no ano de 2000 e<br />
a mesma cena, comum em todas as periferias do país,<br />
onde as casas não têm reboco, dependuradas nos morros<br />
e encostas. As vielas, sujas e abandonas, e o mau<br />
cheiro dos esgotos a céu aberto misturam-se com o mau<br />
cheiro da violência.<br />
Para contrastar, o hip-hop chegava naquela região, que é<br />
a mais pobre da cidade de Poços de Caldas, e propunha<br />
novos rumos à vida de tantos jovens do local.<br />
Em meio ao caos urbano dos que estão fora da escola,<br />
envolvidos com o tráfico e a violência generalizada,<br />
porém, a cena vista era totalmente inesperada e envolvente:<br />
um grupo de sete garotos dançava, numa roda<br />
formada por eles próprios, ao som das batidas do rap.<br />
A expressão em inglês hip-hop, na tradução literal, significa<br />
saltar movimentando os quadris. Tão diferente<br />
quanto possível desta analogia, a cultura propõe um<br />
sem-número de outras manifestações. Na ânsia de<br />
conhecer mais sobre o movimento, desisti de seguir até a<br />
biblioteca montada recentemente naquela região – cerca<br />
de 1,5 quilômetros de caminhada distante da minha casa<br />
– e entrei no poliesportivo.<br />
Isso acontecia dentro do poliesportivo do bairro Conjunto<br />
Habitacional Pedro Afonso Junqueira (Cohab),<br />
que já estava caindo aos pedaços no final da década de<br />
1990 e, então, passou a ser o abrigo da cultura nascida<br />
nas ruas do bairro.<br />
A novidade da dança praticada por jovens com roupas<br />
largas e uma música com batidas diferentes, trazia a<br />
esperança de um estilo singular de vida. Para o grupo de<br />
quatro garotas que passavam pelo local, até então, sem<br />
qualquer esperança de encontrar algo fora da rotina, a<br />
surpresa pela cena vista era, talvez, a possibilidade de<br />
um mundo mais colorido e ritmado naquela periferia.<br />
No dia seguinte, a mesma cena podia ser vista, no<br />
mesmo horário e a aproximação entre os grupos foi inevitável.<br />
Eu estava lá, entre outras três garotas, feliz por<br />
ver, de forma próxima, algo que então fazia parte da distante<br />
reprodução televisiva.<br />
Era a época em que os programas de TV, aqueles dos<br />
quais eu tentava fugir sempre, traziam um pouco da cultura<br />
importada dos Estados Unidos e mostravam como<br />
ela valorizava a periferia brasileira. Diante da magia exercida<br />
por aqueles passos sincopados e executados pelos<br />
garotos, senti que, de repente, era esta a oportunidade de<br />
levar aquilo para as escolas e substituir o cenário violento<br />
e sem perspectivas por uma dança colorida, uma música<br />
envolvente e a vontade de mudar a realidade.<br />
Na semana seguinte, o mesmo poliesportivo deu lugar a<br />
um evento batizado apenas como Hip-Hop que invadiu o<br />
espaço e trouxe grupos de cidades vizinhas, tão ligadas<br />
à cultura de rua que era fascinante observar tudo.<br />
Um casal de pouca idade circulava pelo local exibindo<br />
os cabelos em estilo black power e as roupas típicas dos<br />
adeptos do hip-hop daquela época.<br />
36
38 <strong>Traficando</strong> conhecimento Periferia adentro: o hip-hop<br />
39<br />
Com uma voz forte, a moça, que não teria mais que 18<br />
anos, chamava a atenção de todos os presentes ao<br />
embalar-se no ritmo e na poesia da música feita pela<br />
cultura nascida nas ruas. Ao lado dela, o marido, dava<br />
sentido ao rap, relatando os fatos cotidianos do lugar e<br />
incrementando com um pouco do amor que sentia pela<br />
esposa. Nasceu então, acompanhando a paixão do casal<br />
e o amor dos garotos pela dança e pela cultura de rua, o<br />
meu envolvimento com o hip-hop.<br />
A magia do evento podia ser sentida diante da cena real<br />
vista por centenas de jovens reunidos com um único<br />
objetivo comum, descoberto depois, de promover paz,<br />
amor, diversão e união, como profetizou o criador da cultura<br />
Afrika Bambaataa, nos anos 1970, nos guetos novaiorquinos.<br />
Mais tarde, este mesmo casal ficaria conhecido<br />
como Os tios do hip-hop.<br />
Tentei encontrar alguma forma de contribuir com aquilo<br />
que deu um novo sentido a minha vida: a cultura hip-hop.<br />
Devagar, alguns garotos que moravam próximos a mim,<br />
começaram a levar os passos para a escola e, alheios ao<br />
que as gangues pregavam, passaram a disputar as diferenças<br />
através dos passos de break.<br />
Diariamente, comentava com duas das minhas amigas<br />
— Juliana e Karina — que me apresentaram, mesmo<br />
que involuntariamente, à arte do hip-hop, tão próxima da<br />
minha realidade, que mais de uma opção sempre existia<br />
nas nossas vidas e entre o tráfico, o sexo tão aflorado<br />
e as culturas populares, ficamos com a terceira opção.<br />
Rapidamente, os intervalos de aula sangrentos e cheios<br />
de medo foram substituídos pelo som que ecoava dos<br />
micro-systems e faziam dançar.<br />
Era hora de fazer alguma coisa.
Periferia adentro: o hip-hop<br />
41<br />
Os tios do hip-hop<br />
Era o ano de 1991. Havia apenas um tape velho e uma fita<br />
K7 vindos de São Paulo com os primeiros rappers nacionais<br />
como: Thaíde e DJ Hum e Racionais MC´s. Esta fita<br />
chegou nas mãos de um jovem idealista e sonhador que<br />
tratou logo de espalhar o novo som para aquela periferia.<br />
Quando o assunto ou referência é hip-hop, rap ou cultura<br />
negra, eles são, automaticamente, lembrados e citados:<br />
“Eles já são titios do hip-hop aqui em Poços”. É o que<br />
dizem os adeptos da cultura na cidade, quando se referem<br />
a Suburbano, 30 anos, e a Lu Afri, 26 anos, os pioneiros do<br />
rap e consequentemente da cultura hip-hop na cidade. É<br />
injusto contar minha história sem citar a do grupo.<br />
Casados há dez anos, eles fazem rap há muito mais que<br />
isso. Suburbano conheceu o hip-hop aos 10 anos, através<br />
do rap, em fitas que vinham até ele por meio de amigos<br />
que faziam a ponte entre São Paulo e o sul de Minas<br />
Gerais. Desde muito novo ele se interessou por música e<br />
resolveu cantar rap.<br />
Lu Afri cantava em um grupo chamado Valor Moral e<br />
também dançava, quando um amigo em comum resolveu<br />
apresentá-los. “Eu esperava encontrar um negão, cantor<br />
de rap. Encontrei o Suburbano (risos)”, diz Lu, brincando,<br />
enquanto conta sobre como se conheceram.<br />
O primeiro encontro significou flertes e, com o pretexto<br />
de cantarem juntos, iniciaram o namoro que, anos mais<br />
tarde, resultaria no casamento e na união das vozes em<br />
cima do palco. Com músicas sobre cotidiano, política,<br />
problemas sociais e amor, eles fazem questão de dizer<br />
que integram a nova escola do hip-hop, mas sempre<br />
inspirados pela old school, mesclando elementos e formando<br />
um grupo diferenciado.<br />
Para se manterem e sustentar o filho, Jeam, sete anos,<br />
o casal trabalha em tempo integral com as noites divididas<br />
entre ensaios, gravações e composições. Mas, para<br />
chegar nisso, dividiram muitas histórias recheadas de<br />
vitórias e dissabores. “Nós tentamos sempre correr pelo<br />
certo, e passar o que há de bom, formar uma juventude<br />
cabeça”, afirma Lu Afri, quando questionada sobre as<br />
propostas do grupo.<br />
Desta maneira, conquistaram a cabeça de Roberto<br />
Moreira, conhecido como Bebeto. Assim que entrava na<br />
adolescência, ele assistiu a um show do casal no poliesportivo<br />
da Zona Sul da cidade e se encantou. “Mexeu<br />
demais comigo o jeito que o Flávio fazia rap, rimava e a Lu<br />
também.” Tempos mais tarde ele foi convidado para integrar<br />
o clã de suburbanos, que dá origem ao nome UClanos.<br />
Em uma casa simples, de quatro cômodos, nos fundos<br />
da residência da mãe de Suburbano, eles recebem<br />
todos os amigos com muita simplicidade e hospitalidade.<br />
Quem tem o primeiro contato com o hip-hop na<br />
cidade logo procura o casal e num armário branco, meio<br />
que caindo os pedaços no canto da sala, encontram as<br />
informações que buscam sobre a cultura, desde o surgimento<br />
desta no Brasil até os dias atuais, passando<br />
por várias fases e vários artistas.<br />
40
42 <strong>Traficando</strong> conhecimento Periferia adentro: o hip-hop<br />
43<br />
Transmitindo muita paz e energia positiva, seguindo os<br />
princípios de paz, amor, diversão e união pregados por<br />
Afrika Bambaataa, o casal dispõe de um bom acervo e o<br />
disponibiliza para consulta. Assim que os conheci, também<br />
me diriji à casa deles e me encantei com o acervo<br />
bem organizado e montado em pastas.<br />
Não diferente da maioria das casas dos guetos, o casal<br />
mora em um canto simples, sem muito luxo ou conforto,<br />
em um bairro a dez quilômetros de distância do centro da<br />
cidade. Mas possui, na sala de estar, um moderno computador,<br />
junto da aparelhagem de som. Contrastando o<br />
luxo eletrônico à humildade carinhosa, eles se sentam<br />
para trocar ideias com quem quer que esteja em busca<br />
de informações sobre hip-hop. “Estamos sempre procurando<br />
nos informar, e tentar levar a cultura adiante,<br />
mudar alguma coisa na sociedade, tirar as crianças da<br />
rua, ensinar”, diz Suburbano, lembrando de um projeto<br />
que ele desenvolveu junto ao G do Gueto, um MC amigo<br />
do grupo, no qual participam em músicas juntos. Espelhados<br />
por King Nino Brown, eles têm a intenção de, um<br />
dia, disponibilizar o acervo de hip-hop em Poços de Caldas<br />
ao estilo Casa do Hip-Hop, em Diadema (SP).<br />
Além de MC, Suburbano se arrisca no graffiti já tendo<br />
exposto seus desenhos nos muros de duas escolas públicas<br />
do subúrbio onde mora. Sempre bem-humorado e<br />
disposto, o casal divide atenção entre o trabalho, os amigos<br />
e o pequeno Jeam. Suburbano trabalha como auxiliar<br />
em uma empreiteira e Lu Afri é tosadora em um pet-shop.<br />
No restante do dia, ela cuida da casa e deixa Jeam na<br />
escola, onde ele fica por todo o dia. Na maioria das vezes,<br />
para economizar dinheiro e ajudar no orçamento mensal,<br />
eles caminham quase 13 quilômetros para ensaiar com<br />
o grupo, na casa de Bebeto — que depois de inserido no<br />
grupo, se transformou em MB2 — do outro lado da cidade.<br />
Entre tantos quilômetros percorridos quase todo final<br />
de semana, eles contam, aos risos, uma aventura que<br />
viveram uma vez, indo para a cidade de Lavras (MG),<br />
que fica mais ou menos 220 km de distância de Poços<br />
de Caldas. O casal e mais quatro amigos foram fazer<br />
uma apresentação em um evento de hip-hop e perderam<br />
a condução que os levaria. Foram pedindo carona<br />
pela estrada, durante a madrugada. Os seis amigos viajavam<br />
um pedaço de carona e andavam outro tanto a pé,<br />
pela beira da estrada, sem iluminação e sem conhecer<br />
o caminho. “Gastamos muita sola de sapato para fazer<br />
aquele show, mas temos histórias para contar”, diz Lu<br />
Afri, lembrando o ocorrido. “Nós não tínhamos dinheiro<br />
para pegar ônibus, nada. O Sidão, um amigo que estava<br />
conosco, conseguiu sacar tudo que ele tinha no banco e<br />
pegamos algumas conduções picadas até lá”, diverte-se<br />
Suburbano, aos risos, lembrando da história.<br />
Eles caminharam toda a madrugada e, quando chegaram<br />
ao local do show, estava amanhecendo. O único<br />
grupo que faltava era o UClanos, que, mesmo com toda<br />
correria, se apresentaram, recebendo muitos aplausos.<br />
Ao término do show, entretanto, como eles voltariam<br />
para Poços de Caldas novamente, sem dinheiro, sem<br />
carona, com fome e muito cansados? Fizeram amizade<br />
com alguns moradores da cidade que os hospedaram, e<br />
Lu Afri lembra, com saudade, do tempo que passou lá:<br />
“O Suburbano e eu estávamos em lua-de-mel e a dona<br />
da casa cedeu a cama dela para gente”, diz. Durante<br />
uma semana eles ficaram na casa dos amigos recémconquistados,<br />
tentando arrumar algum dinheiro para<br />
voltar. “O nosso amigo, o b.boy Dinho, arrumou até um<br />
relacionamento lá. Uma namorada que não queria deixálo<br />
ir embora”, conta Suburbano. Com o dinheiro emprestado<br />
pelos amigos, eles conseguiram voltar para Poços de
44 <strong>Traficando</strong> conhecimento Periferia adentro: o hip-hop<br />
45<br />
Caldas uma semana depois, mas, quando chegaram, sentiram<br />
saudades da vida diferente que tiveram em Lavras.<br />
Hoje eles são orgulhosos por terem vivido histórias como<br />
essas, conhecido gente famosa. Eles são considerados<br />
os tios do hip-hop na região, e sempre são convidados<br />
para vários eventos em cidades vizinhas, em parceria com<br />
um grupo K2, uma banda da cidade que toca o estilo ska.<br />
Junto com o grupo, o casal sempre se esforça para mostrar<br />
o lado positivo da cultura e acreditam que o hiphop,<br />
pode sim, resgatar as pessoas. “Quando eu comecei,<br />
queria mostrar o que tinha dentro de mim, na minha<br />
cabeça, o que pensava. Queria mostrar para as pessoas<br />
que o hip-hop veio para não termos preconceito, para<br />
lutarmos pelo certo, fazermos nossa correria. Para os<br />
jovens trabalharem, estudarem. É isso que queremos<br />
dentro do hip-hop, ver os jovens, as crianças aprendendo<br />
coisas legais que o hip-hop proporciona”, diz Lu<br />
Afri, defendendo seu envolvimento com o hip-hop.<br />
as atenções estão voltadas para os trabalhos com novas<br />
músicas e eles pretendem inovar o cenário interiorano,<br />
compondo um rap misturado com reggae, ambos ritmos<br />
com raízes afro.<br />
Entre aventuras e desventuras, o casal pretende levar,<br />
por muito tempo, a bandeira do hip-hop, e representar<br />
o sul de Minas. Suburbano tem projetos para criar um<br />
jornal sobre hip-hop, ao estilo dos “zines”, informativos<br />
e independentes, com distribuição gratuita e ilustrado<br />
com grafites feitos por ele mesmo. Cheios de sonhos,<br />
expectativas e disposição, os tios do hip-hop continuam<br />
trabalhando na divulgação do movimento enquanto cultura,<br />
e resgate, para o povo da periferia.<br />
Suburbano acredita na expansão das informações e atitudes<br />
positivas, e conta que eles sempre realizam eventos<br />
beneficentes de hip-hop, onde recolhem alimentos<br />
e doam para entidades carentes. Desta forma, pretendem<br />
dar um bom exemplo à sociedade, além de contribuir<br />
com os mais necessitados: “Sem o hip-hop isso não<br />
seria possível, ele veio para resgatar todo mundo. Esses<br />
quatro elementos vieram para tirar os jovens da rua, das<br />
drogas, do álcool, da prostituição, do crime. Veio para<br />
ocupar a cabeça das pessoas, para incentivar a prática<br />
do bem”, diz Lu Afri.<br />
Ainda na memória, eles trazem as lembranças dos primeiros<br />
eventos realizados na periferia, quando muitos<br />
quilos de alimentos eram arrecadados e distribuídos<br />
para creches e entidades da região. Mas, atualmente,
46 <strong>Traficando</strong> conhecimento Periferia adentro: o hip-hop<br />
47
Periferia adentro: o hip-hop<br />
49<br />
Passo sincopado<br />
em direção ao futuro<br />
Embalada pelo ritmo da poesia das letras de rap, que<br />
eram cantadas e dançadas no poliesportivo, eu já não<br />
passava um dia sequer sem ir ao poliesportivo e observar<br />
a explosão da cultura de rua.<br />
Contudo, longe de ter aptidão para cantar, dançar e,<br />
quem dirá, grafitar, me contentava em apenas acompanhar<br />
e pesquisar sobre o assunto. Comecei a ler tudo<br />
que encontrava sobre a cultura e a guardar o material em<br />
pastas. Porém, a vontade de integrar, fazer parte, e ajudar<br />
no fortalecimento da cultura era mais forte e junto<br />
à crew, que dançava break, e ao grupo de rap UClanos<br />
passei a fazer parte da organização dos eventos beneficentes<br />
que aconteciam regularmente na comunidade.<br />
Fiquei com a parte da divulgação e cobrança dos ingressos,<br />
que não era mais do que 1 kg de alimento, sempre<br />
destinado à entidades e creches do próprio bairro. O<br />
ano ainda era 2000 e o novo século prometia ser culturalmente<br />
diferente. Novos estilos surgiam a cada dia<br />
e, poder fazer música e dança, sem precisar de muito<br />
investimento financeiro, trazia mais sonhos aos jovens<br />
que, até então, apenas carregavam suas fitas e seus<br />
micro-systems ladeiras acima.<br />
Garotas com roupas largas, tênis grandes e um desafio:<br />
aprender a dançar como os meninos. Assim, neste ritmo,<br />
crews, compostas apenas por garotas, começaram a<br />
surgir no poliesportivo e, talvez, atraídas — assim como<br />
eu e minhas amigas — por alguns garotos em particular<br />
e, consequentemente, pela cultura, passaram a treinar o<br />
break e descobriram que dava certo.<br />
Inspiradas pelas rimas feitas por Lu Afri, passaram,<br />
também, a cantar e, quando não estavam ensaiando o<br />
sapateado no chão, mandavam as rimas de uma forma<br />
consciente, entretanto, por terem de ajudar em casa<br />
com as tarefas domésticas, a presença delas não era<br />
tão constante, mesmo que abrilhantasse a cultura que,<br />
até aquele momento, havia sido, praticamente, masculina<br />
na comunidade.<br />
Contudo, a exemplo de certas garotas da escola, algumas<br />
delas deixaram de treinar com tanta frequência e<br />
passaram a namorar firme alguns rapazes, atitude que,<br />
posteriormente, lhes trariam filhos e uma distância<br />
ainda maior da cultura.<br />
As que continuaram envolvidas com o hip-hop tiveram,<br />
assim como eu, vontade de mostrar o trabalho, o que<br />
se concretizou com a proposta de organização de um<br />
evento. Mas, para ser um evento bacana, que chamasse<br />
atenção, precisava ser beneficente, que além de entreter<br />
trouxesse benefício à comunidade.<br />
Por intermédio de cartas e telefonemas rápidos, grupos<br />
de outras cidades receberam convites para participar do<br />
evento. Os desafios do evento iam muito além de conhecer<br />
bastante gente e repassar convites. Era preciso arrumar<br />
um som emprestado, autorização para que o evento<br />
acontecesse e termos em mente a garantia de que não<br />
teriam brigas e nem depredação do espaço público.<br />
48
50 <strong>Traficando</strong> conhecimento Periferia adentro: o hip-hop<br />
51<br />
Reuníamo-nos todas as tardes para discutir como o<br />
evento seria montado, que nome teria, como receberíamos<br />
os convidados, onde encontraríamos troféus, e cada<br />
um ficou responsável por uma parte. A falta de dinheiro<br />
da condução para ir até o centro da cidade, a conciliação<br />
da escola e do trabalho com a organização do evento,<br />
tudo isso, se transformava em entraves e, justamente por<br />
isso, é que o desejo de fazer uma grande festa crescia.<br />
Decidimos que o nome seria apenas Hip-Hop Sul, por<br />
estarmos na Zona Sul e por ser simples, fácil de ser<br />
assimilado.<br />
A notícia correu entre os amigos da região e, logo, todos<br />
aguardavam ansiosos o domingo, dia escolhido porque a<br />
presença poderia ser maior.<br />
O poliesportivo se transformou, então, em palco de uma<br />
das maiores festas da periferia, com as competições de<br />
break e os shows e batalhas de rap.<br />
O brilho nos olhos de cada um da organização, inclusive<br />
nos meus, que, naquele dia, trancei o cabelo liso ao<br />
estilo rasta para tentar incorporar um pouco da cultura<br />
negra no staff do evento.<br />
Claro que o amadorismo deixou algumas falhas e algumas<br />
pessoas acabaram entrando sem deixar como ingresso o<br />
quilo de alimento, mas, nem por isso, o evento deixou de<br />
ser um sucesso, tanto pelos sons novos, que foram apresentados,<br />
quanto pela constatação de que foram feitos<br />
com a mão de obra mais preciosa da periferia: a dificuldade<br />
do dia a dia.<br />
Sem qualquer briga ou desentendimento, as rachas de<br />
break se seguiram por horas, com jurados e premiação<br />
em troféus, que mesmo simples, imprimiam a qualidade<br />
de algumas crews, tanto da cidade como de fora.<br />
Tal qualidade era medida pela quantidade de tempo que<br />
cada uma treinava e a que realizava o evento, por se<br />
considerar acima dos que se apresentavam, ficou como<br />
jurada e apresentação final. Feliz por estar lá, mesmo<br />
sem saber qualquer passo do break, continuava encantada<br />
pelos passos, pelas gírias, pelos discos riscados<br />
pelos DJs e pelas competições de gírias.<br />
Como nada é perfeito, para um evento montado por<br />
jovens que não tinham 18 anos ainda, até que estávamos<br />
muito bem, quando alguns gritos do lado de fora<br />
atraíram a atenção de quem estava do lado de dentro.<br />
Dois grupos, vindos de fora, se desentenderam e distantes<br />
da proposta do evento, queriam resolver a diferença<br />
com violência. Proibidos, pelos garotos da crew local,<br />
um deles mudou o foco e queria briga com ele, naquele<br />
momento. A apreensão por ter o evento finalizado com<br />
brigas corporais fez a roda aumentar ainda mais em<br />
torno dos dois, quando ficou resolvido que uma racha de<br />
dança tiraria a diferença.<br />
Uma observação positiva é que os grupos de fora trouxeram<br />
garotas junto com as crews, o que significava<br />
uma presença maior do grupo feminino na cultura e um<br />
fortalecimento desta parte na região. Abstraí o preconceito<br />
da família e de alguns colegas de escola, que<br />
diziam que os b.boys estavam lá apenas para encerar<br />
o chão – que era, obviamente, liso e apropriado para<br />
dança – do poliesportivo.<br />
Foi apenas o primeiro evento e as creches da região<br />
comemoraram a chegada de 500 Kg de alimentos, arrecadado<br />
como cobrança de ingresso para o evento. Naquele<br />
domingo voltei para casa leve e feliz: as manifestações<br />
encheram minha alma e a sensação de realização me<br />
trouxeram a certeza de que, com muito trabalho e desejo<br />
de construções positivas, tudo era possível.
52 <strong>Traficando</strong> conhecimento Periferia adentro: o hip-hop<br />
53<br />
Da segunda vez que uma festa foi organizada, conseguimos<br />
convidar outros grupos de rap e break de outras quebradas<br />
da cidade. A escolha da data para acontecer foi a<br />
mesma, um domingo durante a tarde, e o Centro Comunitário<br />
se tornou palco de um grande encontro.<br />
Com a experiência da outra vez, o evento foi batizado<br />
como Hip-Hop Sul II, mas trouxe os mesmos entraves,<br />
como crews que tinham desejo de tirar a diferença com<br />
brigas e não com rachas. Resolvido o problema, o clima<br />
lembrava os bailes Black da década de 1970 e a chegada<br />
do break ao Brasil. Ao redor das rodas observavam-se<br />
garotos, garotas e desta vez, alguns pais, que foram<br />
convidados a assistir a apresentação dos filhos, e também<br />
algumas crianças no local.<br />
Conseguimos, mesmo que, na época, sem idealizar isso,<br />
trazer para a nossa quebrada uma opção de lazer aos<br />
domingos à tarde que não fossem os programas televisivos<br />
como Faustão e Sílvio Santos.<br />
Não fomos atrás e, também, não recebemos nenhum<br />
tipo de apoio ou incentivo do poder público ou privado.<br />
Além da cessão do local, que tínhamos direito a usar,<br />
não pedimos mais nada e, mesmo assim, fizemos uma<br />
grande festa. Devagar, ambulantes trouxeram os carrinhos<br />
para a porta do local e tiveram uma renda diferente<br />
naquele domingo.<br />
Além dos benefícios para os jovens das periferias de<br />
toda cidade, as creches ficaram, novamente, felizes por<br />
conta dos alimentos recebidos. Não foram 500 kg como<br />
da outra vez, mas representaram que, além do resgate<br />
na vida de cada um daqueles jovens, poderiam ser, também,<br />
revertidos em prol da comunidade e assim foram.<br />
Novos eventos nos mesmos moldes foram realizados,<br />
além dos treinos diários e incessantes, na tentativa de<br />
competir em outras cidades da região ou mesmo em<br />
nível nacional. Sem internet ou divulgação televisiva, o<br />
acesso a novas informações surgia pelas experiências<br />
de quem viajava aos grandes centros ou pelas revistas<br />
segmentadas da época.<br />
Não demorou para que a literatura marginal entrasse em<br />
nossas vidas por meio das revistas, “zines” e publicações<br />
acerca do hip-hop. Os primeiros textos de identificação<br />
chegaram alguns anos depois, pelo lendário escritor<br />
Ferréz. Uma revista encontrada, ao acaso, por alguém<br />
do grupo. A atenção despertada por um texto escrito de<br />
forma diferente. Uma linguagem nova despontava na<br />
periferia e trazia temas recorrentes na nossa realidade.<br />
Longe de qualquer ligação criminosa, o termo literatura<br />
marginal refere-se apenas à condição em que, não só a<br />
literatura, mas o hip-hop se encontram. À margem da<br />
sociedade e à beira de mudanças positivas, os textos<br />
dos poetas do gueto, denunciam, de uma forma “romanceada”,<br />
a violência e a miséria experimentas na periferia.<br />
Começa assim uma nova fase na cultura marginal<br />
poços-caldense, envolta de conhecimento e sabedoria.<br />
As letras de rap se tornaram mais conscientes e o número<br />
de grupos foi aumentando. Os locais onde as festas beneficentes<br />
aconteciam foram se alternando, ora acontecendo<br />
no poliesportivo, ora no centro comunitário, localizado<br />
à poucos metros de distância. Nos bolsos das<br />
calças largas, vários manos traziam em papéis amassados,<br />
encontrados ao acaso, espalhados pela casa, novas<br />
letras de rap e alguns arriscavam até mesmo alguns contos,<br />
textos e crônicas, que entoavam a lembrança de tantas<br />
tardes passadas no poliesportivo em meio aos treinos<br />
de break, as batalhas e os sonhos da juventude.<br />
Poesias românticas eram escritas em pedaços de folhas<br />
de cadernos e os mais ousados tratavam dos problemas
54 <strong>Traficando</strong> conhecimento Periferia adentro: o hip-hop<br />
55
56 <strong>Traficando</strong> conhecimento Periferia adentro: o hip-hop<br />
57
58 <strong>Traficando</strong> conhecimento Periferia adentro: o hip-hop<br />
59<br />
sociais e da própria realidade. Tínhamos descoberto<br />
uma nova forma de externar nossos pensamentos ao<br />
mundo: a palavra. A revista Rap Brasil se tornou, também,<br />
uma referência de conhecimento sobre a cultura<br />
e a cada mês, um somava as pequenas economias e ia<br />
até o centro da cidade para comprar um exemplar, que<br />
trazia sempre o que havia de mais novo no cenário do rap<br />
e algumas pinceladas dos demais elementos da cultura.<br />
Líamos tudo que podíamos sobre o assunto e quem<br />
podia viajar para São Paulo ou Rio de Janeiro trazia sempre<br />
um som novo, um passo diferente e novos textos.<br />
Dos poucos que tinham acesso à internet, e eu era um<br />
deles, visitava sites em busca das novidades e de mais<br />
informações sobre qualquer coisa que estivesse ligada à<br />
cultura. Saber mais significava melhorar a comunidade e<br />
trabalhávamos, mesmo sem pretensão, para isso.<br />
Sons de Racionais MC´s, Thaíde e DJ Hum e Sampa Crew<br />
eram os mais ouvidos e serviam como inspiração. O<br />
conhecimento sobre novos passos, novos sons, a existência<br />
de uma liga de DJs e o despontar da literatura e produção<br />
cultural feitas no gueto vieram, então, da revista.<br />
Arrisquei-me, também, a produzir alguns pequenos textos<br />
com as cenas que observava diariamente no local.<br />
Escrevia e apresentava aos garotos que treinavam.<br />
Comigo, levava duas das garotas que me levaram até lá<br />
pela primeira vez, onde conheci todo universo mágico da<br />
cultura de rua.<br />
Dos textos, lembro que descrevia a segurança que<br />
sentia em estar no poliesportivo observando os treinos<br />
e guardando as lembranças. Todos gostavam e me<br />
incentivavam a escrever mais. O sonho era, e continua<br />
sendo, ter as sacadas parecidas com as do Ferréz e a<br />
produção, também.<br />
Começava então, uma produção textual na roda, mesmo<br />
por aqueles que não frequentavam mais a escola ou que<br />
escreviam precariamente. Todas as tardes, ao término<br />
dos treinos, quando nos sentávamos para conversar,<br />
contar os acontecimentos cotidianos, os textos eram<br />
lidos. Pena que alguns eram ridicularizados, mas, nem<br />
por isso, deixavam de ser feitos.<br />
Hoje, entre as poucas lembranças que guardei daquela<br />
época, um texto sobreviveu às várias limpezas no<br />
guarda-roupa todos estes anos. Inspirado no que eu lia,<br />
via e observava.<br />
Homem do Gueto<br />
Hoje o hip-hop chora, o homem do gueto foi embora.<br />
Cantou, pregou, tentou. Não conseguiu. Cansou, não<br />
aguentou. Se matou.<br />
Mas não se matou assim, de repente, como quem dá um<br />
tiro na cabeça, puxa uma corda no pescoço, se atira dum<br />
prédio e pronto! Não... O homem do gueto morreu aos<br />
poucos, como bom brasileiro que era, pensava que seu<br />
lema era, “não desistir nunca”.<br />
Com 10 anos de idade, quando o homem do gueto ainda<br />
era um menino, viu o pai se separar da mãe e fugir como<br />
um covarde. Alguns anos depois, tomou um tiro de raspão<br />
do padastro e carregou a mãe, baleada pelo padastro,<br />
até o hospital. Viu a coroa morrer. Chorou, cansou,<br />
mas não desistiu.<br />
Se lembrou das madrugadas em que levantava sob a<br />
geada, para apanhar café com a coroa e ajudar a sustentar<br />
o lar. Chorou. Mas não desistiu. Aguentou. “Mãe, fique na<br />
paz, pois seu filho, aqui na terra, te ama demais...”, cantou.<br />
Pensou que fazer umas letras de rap e cantar para a<br />
juventude amenizaria a dor e ajudaria na construção de
60 <strong>Traficando</strong> conhecimento Periferia adentro: o hip-hop<br />
61<br />
um país melhor, afinal, o homem do gueto era brasileiro e<br />
não poderia, em hipótese alguma, desistir.<br />
Queria respeito, dignidade, cantar um rap que abalasse<br />
toda a cidade. Não deu. Se fodeu. Leu num livro que não<br />
devia se meter com as drogas, mas foi numa balada, uma<br />
noite qualquer, cantando um rap, que ficou de barato<br />
com a primeira “bola” que deram.<br />
O homem do gueto, apesar de ser ele mesmo, também caiu<br />
em tentação. Rodou na mão dos “homi”. Acontecia com<br />
todos os manos mesmo, por que com ele seria diferente?<br />
Desistiu. Não de viver, mas da maconha. Continuou cantando.<br />
Trabalhando. Acordava toda madrugada. “Não<br />
sabem como faz frio aqui no gueto dessa cidade de desacerto”,<br />
pensava. Mas nem pensava no dia que passava,<br />
apenas trabalhava.<br />
Quanto tinha 16 anos, o homem do gueto, que ainda era<br />
um garoto, arrumou uma garota, conhecida como “mina<br />
de fé”, que o acompanhava nas baladas de hip-hop, aprovava<br />
o rap, e não fazia cara feia para as novas composições.<br />
Uma mina que o chamava de homem do gueto.<br />
Mas a mina de fé, assim como a mãe do homem do<br />
gueto, se apaixonou. Não por ele, mas pelo “vida loka”<br />
que morava na esquina da mesma rua. Ele era melhor<br />
e tinha o “carro do ano”, sem falar que não pagava um<br />
veneno no trampo.<br />
O homem do gueto chorou de novo. Se cansou, mas não<br />
desistiu. No trampo, resolveu chutar o balde, não aguentava<br />
mais inveja, cara feia e bronca do patrão. Mesmo<br />
com as contas pra acertar, deixou de trabalhar.<br />
Se jogou no hip-hop. Letras de rap, viagens para São<br />
Paulo. “O berço da cultura do gueto no Brasil”. Decepção.<br />
Histórias, mais letras. Trabalhos sociais, voluntários,<br />
ajudar a molecada mais nova, da rua, da mesma quebrada,<br />
eram as ideias que martelavam na cabeça do<br />
homem do gueto, agora, homem feito, maior de idade.<br />
“Periferia mano, é bem diferente, só mano linha de<br />
frente”, dizia.<br />
Se enganou. Quando mais precisou de ajuda para botar<br />
os projetos do bem pra frente, não conseguiu. Em cada<br />
porta que batia, era um “não” que recebia. “Por que é tão<br />
difícil correr pelo certo?”, pensava.<br />
E foi assim, sem emprego, vendo a mina com outro, o pai<br />
bebendo como o padastro e quase todos os amigos mortos,<br />
por conta das drogas e do crime, que ele morreu. Dia<br />
após dia, com a barriga vazia. Morreu fraco. A fraqueza<br />
da fome o consumiu e todos que o admiravam, hoje, choram,<br />
o homem do gueto foi embora!<br />
O interessante é o que aconteceu nos eventos e encontros<br />
que se seguiram a essa época. Mesmo mais espaçados<br />
e com menos gente, um novo movimento surgiu. O<br />
movimento daqueles que escreviam. Por várias vezes, o<br />
apresentador da festa, ou mesmo o MC, antes de anunciar<br />
atrações ou mandar as rimas, lia algum trecho de<br />
texto ou mesmo declamava, deixando a plateia um<br />
pouco confusa quanto à novidade e, ao mesmo tempo,<br />
excitada, com a existência de uma literatura que falava<br />
a língua deles, algo que eles podiam entender.<br />
A falta de dinheiro e apoio nunca permitiram que levássemos<br />
cópias dos textos nos eventos para distribuir<br />
entre os participantes. Mas, certa vez, pedi a um amigo,<br />
Elton, um b.boy, que se apresentava em shows no Centro<br />
Comunitário do Cohab, para ler o meu texto “Homem<br />
do Gueto”. Mesmo querendo ser jornalista e tudo mais,<br />
tive vergonha de me arriscar no palco. Coisas da idade,<br />
medos infundados, sei lá. Só sei que imprimi o texto em<br />
casa e pedi que ele lesse. No início, houve um certo medo,<br />
um certo receio, mas insisti e ele acabou concordando.
62 <strong>Traficando</strong> conhecimento Periferia adentro: o hip-hop<br />
63<br />
A ideia de fazer isso surgiu de um filme, daqueles exibidos<br />
todas as semanas na sessão da tarde, quando estudantes<br />
têm um problema, um caso de amor e alguma batalha<br />
para vencer até os 120 minutos finais daquela fita. Observando<br />
em um filme, que eu não me recordo o nome, mas<br />
que um garoto interrompia a performance de uma banda<br />
e lia um poema no palco, pensei que, de repente, pudesse<br />
imitar a ação para as nossas festas, entretanto, de forma<br />
mais sutil. Assim, usei o hip-hop para divulgar meus textos<br />
e contos e acho que a fórmula deu certo.<br />
Entre uma música e outra o meu amigo, Elton, pediu<br />
licença e leu, não da forma como alguém que declama,<br />
mas melhorou a qualidade de leitura a medida que ia<br />
colocando sentimento nas palavras ali escritas.<br />
O zumzumzum foi desfazendo e as pessoas passaram<br />
a prestar um pouco mais de atenção, fazendo silêncio<br />
e acompanhando o que ele dizia. Aos poucos, a história<br />
narrada pelas minhas palavras se desenhou e todos<br />
pareceram gostar. Alguns sorriam, outros estavam emocionados.<br />
Eu não aguentei e desabei a chorar. Pelo texto,<br />
por ter escrito algo e tê-lo visto ser lido em público e pela<br />
realidade da história, que acontece todos os dias em<br />
todas as periferias do Brasil.<br />
Não ficou na primeira vez. Sempre que havia qualquer<br />
pequena manifestação envolvendo o hip-hop, lá estava<br />
eu, com meus textos, sempre pedindo para alguém ler<br />
em público para mim.<br />
Aos poucos, a coragem de outros colegas foi surgindo e<br />
eles também passaram a ler alguns de seus textos nos<br />
eventos. Arrependo-me de não ter feito cópias de todos,<br />
mas, basicamente, as histórias seguiam a mesma linha.<br />
Baseadas em acontecimentos na vida de todos eles,<br />
surgiam pequenos contos e textos que incrementavam<br />
a abertura dos eventos ou intervalos, porém, a falta de<br />
experiência não permitia que fossem coisas organizadas<br />
e, portanto, sempre se tornavam dispersivas ou o interesse<br />
dava lugar a alguma outra coisa, como uma música<br />
ou um grupo novo. Mais tarde tomei conhecimento de<br />
que outros escritores, poetas e até mesmo músicos,<br />
usavam o mesmo artifício para divulgar o que escreviam<br />
de maneira não escrita.<br />
Entretanto, a necessidade de expressão, que acompanha<br />
o homem desde os primórdios, com as inscrições<br />
rupestres nas paredes das cavernas, trouxe, junto com<br />
os textos produzidos na periferia, algumas pequenas<br />
pichações nas paredes do poliesportivo, para a grande<br />
tristeza de quem estava esclarecido pela cultura. A boa<br />
notícia é que bairros vizinhos também passaram a promover<br />
competições de dança com troféus como prêmio,<br />
e a cultura se consolidava na região.<br />
O centro comunitário de outro bairro serviu como palco<br />
para uma das batalhas de break mais acirradas da<br />
região, além da apresentação dos grupos de raps locais,<br />
que, a cada evento, se mostravam mais profissionais e<br />
traziam novas técnicas, novas rimas e também novos<br />
figurinos, compondo um cenário único naquelas periferias.<br />
Curioso observar que todo movimento acontecia<br />
independente de qualquer ajuda, apoio ou mesmo incentivo<br />
de órgãos públicos ou iniciativa privada. Diferente<br />
do colégio, onde o objetivo era estudar e não brigar, o<br />
hip-hop promovido em eventos fazia o papel inverso e<br />
transformava as disputas em educação por meio das<br />
manifestações artísticas.
Periferia adentro: o hip-hop<br />
65<br />
Cotidiano<br />
Ainda embalada pelo som do rap, nas tardes em que eu<br />
não estava no poliesportivo, me reunia com algumas<br />
amigas, principalmente as que me apresentaram o hiphop,<br />
entre elas a Juliana, que tem papel fundamental na<br />
minha curta existência. Quatro anos mais nova que eu,<br />
nos conhecemos desde o dia que ela nasceu e crescemos<br />
juntas, tendo nossas mães como amigas.<br />
Sentadas em algum canto da casa dela ou da minha, nos<br />
dedicávamos a falar sobre a vida, sobre sonhos, sobre<br />
as vontades e, também, para comer. O engraçado é que<br />
era muito bom estar na casa dela por conta da liberdade.<br />
Como os pais dela nunca estavam, pois trabalhavam<br />
fora, podíamos nos arriscar na cozinha livremente,<br />
entretanto, a falta de recursos financeiros sempre nos<br />
deixava com as receitas pela metade.<br />
Nossas preferências eram brigadeiro de panela, tareco<br />
e bolo. Às vezes um macarrão ou batatas fritas faziam<br />
parte do cardápio, mas somente quando a situação<br />
estava boa. Entretanto, na hora de bater o bolo ou o<br />
tareco sempre faltava leite, ou açúcar ou, ainda, os ovos.<br />
Era uma correria boa para buscar na casa dos vizinhos,<br />
contar as moedas para poder comprar e por aí vai.<br />
O bacana era que as tardes eram sempre embaladas<br />
com muito rap e registradas em pequenos diários de<br />
onde saíam alguns rabiscos de textos também. O ponto<br />
alto era poder ver o Kaio, irmão da Juliana, quase 10<br />
anos mais novo que eu, aprendendo tudo sobre hip-hop<br />
e aprendendo a dançar break. A sensação boa era ver<br />
que ele estava aprendendo a escrever e, entre as primeiras<br />
palavras que rabiscava, estavam hip-hop, b.boy<br />
e o próprio nome.<br />
As lembranças daquelas tardes são incríveis e apesar<br />
de conviver diretamente com a escassez de recurso do<br />
local onde a Juliana morava – sem asfalto, saneamento<br />
precário, casa sem muro, sem portão, numa rua totalmente<br />
deserta, à beira de um rio nada cheiroso, éramos<br />
felizes naqueles momentos. Muitas vezes, nos pequenos<br />
cadernos que chamávamos de diários, escrevíamos<br />
como era sair de casa pisando no barro, enfrentando o<br />
mau cheiro do rio ou, ainda, sem ter comido direito.<br />
Ela sempre ficava semanas sozinha, tomando conta do<br />
irmão, enquanto os pais trabalhavam em São Paulo. Com<br />
R$ 10 ou R$ 20, na época, era quase impossível passar a<br />
semana, fazer comida e alimentar dois cães. A luz elétrica<br />
estava sempre cortada pelo departamento de energia da<br />
cidade e os banhos eram sempre frios nestas ocasiões,<br />
mesmo com as baixas temperaturas da cidade.<br />
De forma sutil, esses pequenos acontecimentos que eu<br />
acompanhava, tão de perto, fizeram crescer a minha vontade<br />
de escrever ao mundo as misérias humanas e cotidianas.<br />
A vontade de ajudar também foi crescendo e foi<br />
por meio do hip-hop que eu encontrei as maneiras, mesmo<br />
que pequenas, de iniciar um movimento para fazer isso.<br />
64
Periferia adentro: o hip-hop<br />
67<br />
Marcando vidas<br />
Foi numa roda formada, depois dos treinos, que suados<br />
e cansados conversávamos para contar os últimos acontecimentos.<br />
Pela primeira vez e de forma aleatória, ouvi<br />
a frase que mais me marcou na vida, e chama atenção<br />
até hoje: O hip-hop salvou minha vida.<br />
Valdair Ribeiro, na época com 17 anos, contava como<br />
conheceu a cultura e os benefícios. Envolto por uma aura<br />
de paz que, até hoje, acho que apenas o hip-hop proporciona,<br />
ele disse, claramente, que enquanto dançava e<br />
treinava não tinha tempo para pensar em outras coisas.<br />
Assim, soubemos que ele ensaiava alguns raps e riscava<br />
alguns discos, além de ter sido convidado, recentemente,<br />
para grafitar os muros do colégio do bairro,<br />
onde grande parte estudava. A imagem mais marcante<br />
que ainda vive, debaixo das várias demãos de tinta jogadas<br />
por cima, é uma figura de Jesus Cristo com os traços<br />
livres da arte contemporânea das ruas.<br />
Em uma conversa das mais profundas e intensas que já<br />
rolaram naquele espaço público, soube, também, que o<br />
mesmo garoto, loiro, de olhos claros e muitos sonhos,<br />
não conhecia o próprio pai e era criado pela avó, já de<br />
bastante idade, a quem ele chamava de mãe.<br />
66
68 <strong>Traficando</strong> conhecimento Periferia adentro: o hip-hop<br />
69<br />
Vindo de uma infância pobre, Valdair sempre trabalhou,<br />
ora como servente de pedreiro, ora como ajudante em<br />
oficinas e, naquele momento, como chapeiro em um<br />
trailer de lanches do bairro, ao lado de um parceiro,<br />
Charles, também do hip-hop.<br />
O dinheiro suado, ganhado durante seis noites em claro<br />
toda semana iam para as mãos da mãe, que comprava<br />
alimentos e leite para os dois sobrinhos dele. Muitas<br />
vezes, tendo que cuidar das crianças enquanto a irmã<br />
e a mãe trabalhavam, Valdair ensinava a eles os primeiros<br />
passos de sapateado. Feliz. Completo. Assim ele se<br />
resumiu com a vida que levava e acrescentou: graças ao<br />
hip-hop e, também, por organizar eventos beneficentes<br />
para a comunidade.<br />
Como a história dele, a dos outros garotos se assemelhava<br />
em quase tudo e o movimento era fortalecido, no<br />
entanto, não eram raras as vezes em que éramos surpreendidos<br />
pela ausência daqueles que tinham mais de<br />
16 anos. Muitos conseguiam o primeiro emprego, mesmo<br />
sem a carteira assinada, e passavam a garantir uma<br />
renda maior dentro de casa.<br />
dentes da frente. Foi zoado por quase todos. O trabalho<br />
era de ajudante de coveiro, no cemitério próximo à<br />
comunidade. Ele não ligou e só chegava para participar<br />
dos treinos nos fins de semana nos quais estava de<br />
folga ou quando eles aconteciam durante a noite. Mais<br />
tarde, com o dinheiro ganho como coveiro, ele conseguiu<br />
arrumar os dentes, encontrou outro emprego e Valdair<br />
foi quem assumiu o cargo de ajudante de coveiro.<br />
Certa vez, perguntei a eles se a profissão de enterrar as<br />
pessoas e ficar no cemitério não os incomodava ou se<br />
não achavam um pouco mórbido. Ambos concordaram<br />
que não era a coisa mais prazerosa e que preferiam viver<br />
de uma renda obtida com rap ou break, mas, já que não<br />
era possível nas condições da comunidade, era melhor<br />
garantir o sustento por isso do que aliados ao tráfico.<br />
Concordei e nunca mais toquei no assunto.<br />
Tempos mais tarde surgiu um texto sobre isso na roda.<br />
Foi ignorado. Trabalho honesto e mórbido, mesmo, era ver<br />
uma porção de gente que havia crescido junto conosco<br />
fazendo corre como aviõezinhos do tráfico que se instala<br />
devagar na região.<br />
Certa vez ele também comentou que, muitas vezes, era<br />
duro trabalhar em prol do hip-hop, arrecadar tantos<br />
quilos de alimento e não ter alimento em abundância<br />
em casa. “Por várias vezes pensei em levar um saco de<br />
farinha ou de feijão para casa, mas não estaria sendo<br />
honesto com o evento e nem comigo mesmo”, comentou<br />
em um certo momento.<br />
Mas, de repente, entendi que a fome, a vontade de comer<br />
algo diferente era de mudar a própria realidade: de fazer<br />
o povo da periferia ser mais consciente.<br />
A história de Digo era diferente. Ele conseguiu um emprego<br />
com registro na carteira. Coisa rara, ainda mais para ele<br />
que, mesmo com a pouca idade, não tinha vários dos
Periferia adentro: o hip-hop<br />
71<br />
“Crime<br />
desorganizado”<br />
Inspirados pela vida e as cenas assistidas diariamente<br />
pelas quebradas onde vivíamos, surgiu o convite para a<br />
montagem de uma peça de teatro a ser apresentada em<br />
um evento no Teatro Municipal existente na cidade.<br />
O curso de teatro, a atuação e a produção de uma peça,<br />
que eu havia feito no ano anterior, foram fundamentais<br />
para a montagem de “Crime Desorganizado”, uma<br />
peça curta apresentada às escolas municipais de toda<br />
a cidade, durante uma mostra de dança no Espaço Cultural<br />
da Urca, o único de uso comum em toda a cidade,<br />
localizado no centro. Com ensaios, todas as tardes no<br />
poliesportivo, na hora de chegar até o local da apresentação,<br />
o dinheiro da passagem foi rachado entre quem<br />
tinha uns trocados a mais e quem não tinha nenhum.<br />
Desde que eu fosse parte integrante, estava feliz. Com<br />
cenas leves, mas carregadas de realidade, fomos aplaudidos<br />
pelo esquete do cotidiano com um assalto mal<br />
sucedido e o aborto da juventude dos jovens da periferia,<br />
que escolhem a vida do crime como única opção.<br />
Como lição, até meio óbvia, a peça trazia a moral da história,<br />
incentivando a adesão ao hip-hop, ou às culturas<br />
populares, como forma de resgate.<br />
Mas, como em qualquer periferia, o crime crescia em<br />
paralelo e levava consigo alguns dos adeptos, que, cansados<br />
da discriminação nas ruas e no mercado de trabalho,<br />
por serem negros, morarem longe do centro da cidade e<br />
se vestirem com roupas humildes, se renderam ao tráfico.<br />
O senso comum leva a vida de todos a continuar envolta<br />
pela cultura marginal.<br />
Nervosismo antes de entrar em cena. Oração de mãos<br />
dadas. Último repasse das falas. Conferir figurino, que<br />
era muito pobre, com roupas já surradas e até remendadas,<br />
imprimindo, automaticamente, a realidade periférica<br />
da cidade apenas por isso.<br />
Preferi não atuar por não saber os passos mínimos do<br />
break que seriam usados para compor o espetáculo e<br />
fiquei na montagem e direção de cena. Não que eu soubesse<br />
muito sobre isso, mas deu para auxiliar um pouco.<br />
70
Cap.02<br />
Passos pela vida
Passos pela vida<br />
75<br />
porta que representava uma mínima possibilidade de<br />
emprego na cidade.<br />
No ônibus cheio, tanto na ida como na volta, por cerca<br />
de 40 minutos em cada viagem, continuava com minhas<br />
leituras e passei a me interessar, também, por poesia.<br />
Tudo que era autor eu passei a ler, com destaque para o<br />
chileno, Pablo Neruda. Despertei também um interesse<br />
pela história do revolucionário Che Guevara e tudo que<br />
era comunicação sobre isso, eu lia.<br />
Encontrar um trabalho com carteira assinada. Essa era<br />
a esperança do ano de 2003, que começou promissor,<br />
com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumindo<br />
o país e prometendo melhorar inúmeras coisas para as<br />
classes menos favorecidas, principalmente, a questão<br />
do desemprego, que na época era aterradora.<br />
O último ano tinha sido fechado com uma taxa de desemprego<br />
de 11,7%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia<br />
e Estatística (IBGE), e todos jovens com mais de 16<br />
anos – como eu – queriam trabalhar registrados.<br />
Seguindo meu coração e instintos, no fim de 2002 prestei<br />
vestibular para a faculdade de jornalismo. Fiz a prova<br />
em duas universidades particulares. A mais próxima<br />
na cidade de São João da Boa Vista (SP) – há 40 km de<br />
Poços de Caldas – e a outra em São Paulo.<br />
Optei pela que fica em São João. Poderia continuar<br />
morando com meus pais, comer e dormir em casa e arrumar<br />
um emprego na minha cidade. A última opção foi a<br />
mais difícil de ser alcançada. O número de desempregados<br />
crescia e o tempo de procura por uma vaga, também.<br />
Frequentar diariamente o poliesportivo já era mais<br />
complicado porque, grande parte do tempo, eu passava<br />
confeccionando e distribuindo currículos em qualquer<br />
Fiquei assim durante os nove primeiros meses da faculdade,<br />
que vale explicar, era paga com uma poupança que<br />
meu pai fez para mim desde que nasci – depositando a<br />
parcela do auxílio natalidade – e mensalmente, guardando<br />
um pouco de dinheiro lá. Ela permaneceu intocável<br />
até o pagamento da primeira parcela da van, que me<br />
levava até a cidade vizinha. Consegui uma bolsa de 30%,<br />
o que, provavelmente, garantiria o pagamento dos quatro<br />
anos do curso.<br />
Por já ter nascido em meio à guerra social travada entre<br />
os ricos e pobres, me senti desafiando o sistema quando<br />
emergi da classe C (ou seria D?) direto para um banco de<br />
universidade. Contrariando as estatísticas, não deixei que<br />
estacionassem a minha mente e, apesar do sem-número<br />
de convites recusados para o uso de drogas, dentro e fora<br />
da faculdade, tentei combater o dia a dia do pobre, sempre<br />
sentindo na pele o que é ser uma excluída neste Brasil<br />
que meu povo humilde construiu.<br />
Apaixonei-me logo de cara pelo curso e pela chance de<br />
aprender, cada vez mais. Entretanto, devagar, deixei<br />
o hip-hop um pouco de lado, envolvida pelos textos e<br />
matérias jornalísticas, os trabalhos que tinha que fazer<br />
para o curso e a nova rotina.<br />
74
76 <strong>Traficando</strong> conhecimento Passos pela vida<br />
77<br />
Aos 17 anos e tomada pelas descobertas da juventude,<br />
passei a me interessar, além da cultura marginal, pelo<br />
rock’ n’ roll e por livros sobre magia e paganismo. Abandonei,<br />
de repente, a leitura dos clássicos e adolescentes<br />
e frequentava a biblioteca e as livrarias, em busca de algo<br />
mais obscuro. Nesta fase de transição e mudanças, deixei<br />
de atuar com tanta frequência nos eventos de hip-hop<br />
e até mesmo de ler tanta literatura nacional e revistas<br />
sobre hip-hop e, para minha própria decepção, entrei em<br />
uma de ler Paulo Coelho e ouvir Raul Seixas.<br />
Não conseguia encontrar na paz do hip-hop a dose que<br />
eu desejava de rebeldia para marcar, nem que fosse<br />
ao final, a adolescência. Como tudo na adolescência<br />
passa mais rápido, a fase durou pouco e, após uns dois<br />
meses de faculdade, abri a cabeça novamente, abandonei<br />
as roupas pretas, o preconceito que o grupo de<br />
“amigos” roqueiros nutria pelo hip-hop e voltei a ouvir<br />
o bom e velho rap, que trazia nas letras a consciência<br />
que eu necessitava para seguir adiante, em meio a tudo<br />
isso, contudo, emprego ainda era um sonho distante e a<br />
entrega de currículos era diária.<br />
Os garotos e garotas da crew que eu frequentava iniciaram<br />
um processo de resgate da minha autoestima no<br />
universo do hip-hop e, cheios de novidades, me procuravam<br />
para contá-las e tentavam me levar, novamente,<br />
aos eventos.<br />
Novamente, uma fase que durou pouco.
Passos pela vida<br />
79<br />
Um zine diferente<br />
Meu primeiro emprego foi conquistado em setembro de<br />
2003. Não havia carteira assinada, mas a promessa de<br />
uma renda própria e o trabalho em um jornal, mesmo que<br />
fosse apenas um zine, era um novo horizonte. Comecei<br />
no dia seguinte e seria vendedora de publicidade. Como<br />
não havia uma sede para o Fãzine, eu deveria tomar uma<br />
condução até o centro da cidade, encontrar o “patrão” e<br />
sair para vender os espaços do jornal.<br />
Descobri-me uma boa vendedora, porque os preços eram<br />
exorbitantes e o impresso pouco conhecido. Muita sola<br />
de sapato foi gasta para fazer algumas poucas vendas,<br />
mas encarei seriamente, acordando super cedo todos<br />
os dias, mesmo indo dormir por volta de 1h da manhã –<br />
horário que a van me deixava em casa.<br />
Por cada venda, eu tinha direito a 10% do valor do anúncio<br />
e, no primeiro mês, devo ter recebido uns R$ 100, o que<br />
na época, para mim, era bastante. Oportunidade. Tentei<br />
encarar assim e partir para o segundo mês, quando o<br />
sócio do meu “patrão” abriu espaço para que eu fizesse<br />
uma matéria sobre umas noites black que aconteciam<br />
em um pub da cidade.<br />
Animadíssima com a chance, abstraí a falta de experiência<br />
e me encontrei com o dono do bar no próprio<br />
local, durante uma tarde bem quente do mês de outubro<br />
e sem um gravador, sentei nos bancos de madeira<br />
e fui anotando tudo que ele falava. Como sempre gostei<br />
de perguntar e saber coisas novas, a minha primeira<br />
“entrevista” durou mais de uma hora e fiz muitas outras<br />
perguntas além das básicas que havia anotado.<br />
Ficamos amigos e ele me deu um convite permanente<br />
para entrar no bar quando eu quisesse. Voltei a curtir<br />
as músicas black por conta dessa entrevista. Levei dias<br />
para escrever uma página de matéria e fiquei extremamente<br />
frustrada com as correções feitas pelo “editor”,<br />
mas feliz porque na edição seguinte teria meu nome<br />
assinado.<br />
Como era um zine, a circulação entre roqueiros, rappers<br />
e outros adeptos de vários estilos, era grande. Assim que<br />
chegou aos locais de distribuição gratuita, recebi alguns<br />
telefonemas comentando o meu trabalho na área jornalística.<br />
Como uma forma de encontro entre mim mesma, e<br />
o que mais gosto de fazer, com a cultura hip-hop, passei a<br />
fazer minhas primeiras reportagens sobre o tema.<br />
Na edição seguinte surgiu uma nova oportunidade. Uma<br />
matéria exclusiva sobre rap. Pesquisei, batalhei pela<br />
matéria e, novamente, assinei a pequena reportagem.<br />
Estava retornando ao meu mundinho de paz, amor, diversão<br />
e união quando o grupo de pessoas que ia comigo na<br />
van para a faculdade, cada um de um curso diferente,<br />
resolveu criar uma banda de forró.<br />
No auge do forró universitário no Brasil, descobri a<br />
chance de adquirir um pouco de ritmo e aprender a dançar,<br />
pelo menos o forró, que era bem menos complicado<br />
do que o break ou o street dance. Como sempre,<br />
a rivalidade entre as tribos urbanas marcou também<br />
este período e me equilibrar entre universos musicais e<br />
78
80 <strong>Traficando</strong> conhecimento<br />
ideológicos diferentes, era um desafio. A crew não aceitava<br />
me ver comentando sobre os forrós e reggaes novos<br />
que havia conhecido e os forrozeiros se divertiam ao<br />
tirar sarro da minha paixão pelo hip-hop.<br />
Tentava, então, me dividir entre o forró, o hip-hop, o<br />
trabalho e os estudos. Nesta época agitada, mais um<br />
acontecimento me levou de volta a cultura marginal.<br />
Um ponto importante é que, na faculdade, assim como<br />
no colégio, eu era obrigada a conviver com o livre uso de<br />
drogas na porta, dentro, fora, nas esquinas e a recusar<br />
convites a todo o momento. Nunca tive a curiosidade<br />
de saber como era fumar maconha, cheirar pó e, tampouco,<br />
pedra. Mas via, num ambiente em que eu jurava<br />
ser acadêmico, muita gente – cujo pai ralava para pagar<br />
a faculdade – queimando o dinheiro investido nas aulas<br />
em drogas para fugir da realidade.<br />
É claro que, no meu bairro, o contato com as drogas arrebanhava<br />
quase todos os jovens da minha idade, mas nem<br />
isso me fez desistir da caminhada. Não quis saber. Disse<br />
não e prossegui à minha maneira. Não achei tentador<br />
trocar todos os sonhos por uma pequena viagem, que<br />
segundo o que eu lia, duraria, no máximo, um minuto.<br />
Conheci um rap, originalmente, poços-caldense e mais,<br />
feito na Zona Sul, do ladinho da minha casa.<br />
Surgiu, novamente, uma pequena reportagem no Fãzine.
Passos pela vida<br />
83<br />
Rap de dentro<br />
Contradizendo sua história de vida, G do Gueto, o MC da<br />
região afirma: “Eu tinha aquela visão, assim, que fazer<br />
rap em Minas não tem jeito, aqui não tem morte. Até<br />
então eu pensava que rap era só falar de morte, tiro,<br />
treta, e aqui não dá. É uma cidade pacífica”, diz.<br />
“Doa a quem doer”, é desta maneira que ele se lançou<br />
na cidade e se tornou conhecido pela faixa 8 do CD. Intitulada<br />
“Fatos Reais”, contando a história de um garoto,<br />
que muito novo, trabalhou em lavouras e na sequência<br />
levou um tiro e perdeu a mãe, assassinada pelo padrasto.<br />
Com o álbum gravado dentro de casa, através de programas<br />
de computador e uma mesa de som, G fez as<br />
próprias bases, contou com a participação de outros<br />
rappers como Suburbano, Lu Afri e Leopac, que sustenta<br />
esse apelido pela semelhança física com o rapper<br />
norte-americano.<br />
Sábado, oito da noite, a rua está totalmente escura e<br />
pouco habitada. Há casas somente de um lado. O outro<br />
é ocupado por extenso matagal que prejudica a visão.<br />
A iluminação é precária e é necessário utilizar os faróis<br />
altos do carro para poder enxergar. É impossível sair do<br />
carro sem atolar o pé na lama da chuva que caiu à tarde.<br />
A descrição é da casa dele, periferia de Poços de Caldas,<br />
Zona Sul da cidade. Há quatro anos ele mora num<br />
sobrado e tem seu quarto num cômodo acoplado. O dormitório<br />
tem personalidade própria, mesmo sem qualquer<br />
luxo, é aconchegante e acolhedor.<br />
Para fazer a divulgação, ele conseguiu criar uma “bolacha<br />
adesiva” com a própria foto estampada. Com o<br />
disco caracterizado, encartaram de forma caseira e<br />
distribuíram entre os amigos da região. Diariamente era<br />
possível ver G no poliesportivo, distribuindo o CD. Imediatamente,<br />
o micro-system da crew deixou de tocar as<br />
batidas próprias para dançar break e deu lugar às composições<br />
do amigo.<br />
Em pouco tempo, as letras sobre os problemas locais e<br />
com críticas ao cotidiano estavam na boca dos moradores<br />
dos bairros da região sul da cidade. A grande sacada<br />
foi quando G conseguiu espaço para vender em um torneio<br />
de golf, no Golf Club da cidade, onde ele fazia bico<br />
nos fins de semana como Ked – garoto que recolhe as<br />
bolinhas. “O cara abriu espaço para eu vender lá, levei<br />
os CDs e vendi a dez reais para os golfistas né, porque os<br />
caras têm dinheiro”, conta com entusiasmo. Com essas<br />
vendas, G conseguiu levar o rap até a alta sociedade e<br />
introduzir, quem não conhecia, no universo periférico do<br />
hip-hop. Em mais ou menos três ou quatro meses, G conseguiu<br />
vender uma média de quinhentos CDs em Poços,<br />
o que o deixa, até hoje, muito feliz e orgulhoso. Impossível<br />
não me sensibilizar com a história e as letras feitas<br />
por ele. O lançamento do álbum marcava um novo tempo<br />
no hip-hop da região sul da cidade.<br />
Os eventos continuavam a acontecer e, agora, além da<br />
dança, que era o forte da região, contavam também<br />
com shows de rap e as letras de G eram a sensação,<br />
seguidos pelo UClanos, que sempre estavam dispostos<br />
a cantar em nossos bailes.<br />
82
84 <strong>Traficando</strong> conhecimento Passos pela vida<br />
85<br />
Como eu continuava no Fãzine, soltei uma matéria sobre<br />
o lançamento do CD do G, e a repercussão continuava.<br />
Enciumados pela minha “atenção jornalística” ao rap, o<br />
grupo de forró da minha van me pediu uma matéria, e eu<br />
não tinha desculpas. Novamente, uma matéria sobre os<br />
sons do meu cotidiano.<br />
Ganhei uma coluna fixa no zine e fiquei relativamente<br />
conhecida neste meio, no entanto, a grana que rolava<br />
das propagandas ficou cada vez mais escassa e vender<br />
se tornava ainda mais difícil.
Passos pela vida<br />
87<br />
Jornalismo no zine<br />
Além das pequenas matérias, ganhei um espaço para<br />
publicar alguns artigos. Era bom poder expressar algumas<br />
ideas e saber que existia um público, embora pequeno,<br />
específico para ler minhas primeiras linhas.<br />
Tenho a clara consciência de que evoluí muito e, obviamente,<br />
devo continuar em processo constante de aprimoramento,<br />
mas, na época, era o que eu conseguia.<br />
Um dos primeiros que escrevi foi sobre o dicionário.<br />
O poder do dicionário<br />
Poucas pessoas o sabem, muitas o desconhecem, somente<br />
algumas sabem manuseá-lo com eficácia.<br />
Estou falando dele sim. Quem? Você também não o<br />
conhece?<br />
Pois é, ele está bem ali. Poderoso e capaz de salvar muitas<br />
vidas, trocando apenas algumas letras.<br />
Ele é o dicionário. Em suas mais variadas formas e<br />
cores, só recorrem a ele os inteligentes, que reconhecem<br />
sua ignorância.<br />
Se vamos ao mercado quando precisamos de ingredientes<br />
para uma sopa, para nós, jornalistas, quando vamos<br />
escrever um texto, vamos ao dicionário.<br />
O dicionário é superior ao mercado em muitos aspectos.<br />
Em primeiro lugar, porque no dicionário o preço das palavras<br />
não cresce a cada dia – como ocorre com os legumes<br />
no mercado – posto que todas são de graça. Ademais, os<br />
dicionários podem ser guardados na estante da sala, o<br />
que seria impossível fazer com um mercado – não por<br />
sua forma, muitas vezes retangular como os dicionários,<br />
mas devido ao tamanho (mais provável seria guardar a<br />
estante da sala no mercado, mas isso seria inútil tendo<br />
em vista que nosso objetivo não é dar cabo da estante e<br />
sim, escrever um texto). Há uma diferença básica entre<br />
os mercados e os dicionários: se nos primeiros os produtos<br />
entram novos e saem assim que ficam velhos, no<br />
segundo não se encontra um só artigo novo, pois, ser<br />
velho, é condição para estarem ali.<br />
Apesar das considerações anteriores, é impossível provar<br />
logicamente a superioridade de um mercado sobre<br />
um dicionário ou vice-versa. Prova disso é que podemos<br />
tanto encontrar dicionários em um bom mercado, como<br />
mercado em um bom dicionário.<br />
Assim sendo, deixemos de lado essas comparações inúteis<br />
e voltemos ao tema, o poder de um dicionário.<br />
Livre de qualquer comparação, ele é único, rico, culto,<br />
e faz questão de transmitir isso para quem quer que<br />
esteja interessado.<br />
Sempre interessada em desbravar o jornalismo, ainda<br />
bem cru para mim naquela época, saiu isso:<br />
A pauta de hoje é a ECONOMIA<br />
As coisas mudaram de nome, segundo Mário Prata, abajur<br />
passou a ser luminária, e não vai demorar muito até<br />
que jornalista seja jornaleiro.<br />
Dá mais lucro e credibilidade.<br />
86
88 <strong>Traficando</strong> conhecimento Passos pela vida<br />
89<br />
As redações estão se tornando multimídia, e os jornais<br />
todos estão padronizados, presos a uma fórmula chamada<br />
lead, em que todos os repórteres respondem as<br />
mesmas perguntinhas básicas, e, nas bancas, encontram-se<br />
todos os dias, as mesmas notícias, contadas<br />
do mesmo jeito, sem novidades. O furo jornalístico foi<br />
substituído pela igualação das redações.<br />
A pauta do dia é economia, economia nos jornais. Cortam-se<br />
os gastos, as notícias, e os profissionais. Ao<br />
final sobram só as publicidades, às quais todos se renderam<br />
para sobreviver. Daqui a pouco o repórter será<br />
desnecessário, o computador fará todo o serviço dele.<br />
As matérias serão apenas formulários a serem preenchidos<br />
com palavras claras que responderão com objetividade<br />
a apenas cinco questões: quem, onde, quando,<br />
como e por quê?<br />
O diploma será descartado em breve, e com uma experiência<br />
de cinco anos vendendo jornal, podermos fazê-lo,<br />
inclusive.<br />
Ou o jornalista passará a vender o jornal, ou morrerá à<br />
míngua, soterrado pelas publicidades e pela economia.<br />
Pela falta de criatividade no mundo jornalístico, saiu este.<br />
Cadê a ideia que estava aqui???<br />
— Cadê a ideia que estava aqui? – alguém berra, lá dentro<br />
na redação.<br />
Acontece, todos os dias, toda hora, em todos os lugares.<br />
Roubo?<br />
Chacrinha já dizia que, na TV, nada se cria, tudo se copia.<br />
Eu ousaria afirmar que na vida é assim, tudo é copiado.<br />
As ideias são roubadas em toda parte. No jornalismo,<br />
então, é de praxe. Além do roubo há o plágio de ideias,<br />
matérias, programas, enfim. Uma rivalidade que não<br />
acaba nunca.
92 <strong>Traficando</strong> conhecimento Passos pela vida<br />
93<br />
Andam dizendo por aí que é antiético roubar ideias e plagiar<br />
redações. Um exemplo disso é o livro de Luiz Maklouf,<br />
“Cobras Criadas”, que relata casos escabrosos e ditos<br />
como “antiéticos” de nosso país. Só há um defeito no livro,<br />
é que o Maklouf esqueceu de citar ali o caso da “operação<br />
mela PT”, no qual ele esteve envolvido e foi abafado. Neste<br />
episódio, que renderia uma ótima história nas páginas de<br />
“Cobras Criadas”, Maklouf plagiou uma matéria inteira<br />
de um jornal de pequeno porte em Campinas, escrita por<br />
duas jornalistas recém-formadas, na época. As jornalistas<br />
abstiveram-se do caso, mas o jornal em que elas trabalhavam<br />
moveu uma ação, que deu em nada.<br />
Portanto, a ética mesmo, só existe na teoria e na relatividade<br />
individual, e enquanto isso não for mudado...<br />
- Êpa, cadê a minha ideia na linha acima???<br />
E, por fim, algo sobre o vazio da vida, do jornalismo.<br />
(x . y) + z = vazio<br />
Vazio. Sim, vazio jornalístico. É o que encontramos nos<br />
jornais, um total vazio.<br />
A investigação jornalística, o dito jornalismo investigativo,<br />
sumiu de vez. Nas redações a única coisa que se<br />
encontra são jornalistas indiferentes que apenas transcrevem<br />
releases prontos.<br />
leitor não pode perder tempo, só a informação, prazer da<br />
leitura e do conhecimento.<br />
Daqui a pouco, o jornalista não mais precisará se deslocar<br />
das redações para as ruas em busca de notícias quentes,<br />
de furos. Os jornais já se aliaram. Daqui a pouco, vão apenas<br />
comprar de um publicitário bem criativo, um texto<br />
que seja curto e objetivo. Neste texto existirão lacunas a<br />
serem preenchidas, e o repórter terá, então, que passar o<br />
tempo apurando no texto de três parágrafos dos releases<br />
as seguintes informações:<br />
Quem?<br />
Onde?<br />
Quando?<br />
Como?<br />
O porquê ele não terá de responder, senão toma<br />
muito tempo e não fica pronto para a gráfica antes do<br />
fechamento.<br />
Antigamente, estas cinco perguntas básicas eram<br />
nomeadas de lead, ou “cabeça da matéria”. Hoje é,<br />
simplesmente, coisa de jornalista que não tem cabeça e<br />
que banalizou a profissão.<br />
O gosto pela profissão vai se esvaindo ao encarar as fórmulas<br />
prontas, que são chamadas de objetivas.<br />
Cujo objetivo é desinformar. O jornal apenas desinforma,<br />
ou traz nas suas páginas assuntos que já conhecemos e<br />
que não merecem destaque algum.<br />
A novidade, o inusitado, ficou por conta dos veículos mais<br />
rápidos, como a TV ou o rádio. O texto aprofundado é literatura,<br />
quando muito, revista muito centrada. No jornal<br />
não, as coisas devem ser rápidas, práticas, factuais. O
Passos pela vida<br />
95<br />
Tempo de mudanças<br />
Como o tempo passava e nada parecia tão estável, a<br />
condição para que eu continuasse escrevendo no zine<br />
era vender propagandas e o dinheiro que gastava com<br />
a condução era maior do que o lucro com as vendas.<br />
Resultado: estava pagando para trabalhar.<br />
Conversei com minha amiga de classe e parceira de profissão,<br />
Anita, de quem me tornei amiga logo no primeiro<br />
dia de aula, e, depois de uma série de ponderações, resolvi<br />
desistir do zine e continuar buscando um novo emprego.<br />
A cena foi mudando e a montagem de grupos grandes<br />
de dança de rua se fortaleceu. O fim da época da crew<br />
aconteceu poucos meses depois, quando o poliesportivo<br />
foi fechado para uma reforma da prefeitura. Os<br />
treinos, bem menos frequentes, aconteciam no centro<br />
comunitário ou em um gramado existente na frente do<br />
poliesportivo, mas era possível praticar apenas os saltos<br />
e movimentos importados da capoeira.<br />
A falta de um local fixo de encontro me afastou ainda<br />
mais da cultura, que passou, de forma inédita, a conquistar<br />
a área central da cidade, quando grupos de<br />
dança usavam uma fonte, em frente a um prédio tombado<br />
pelo patrimônio histórico, como local de treinos.<br />
Alguns jovens da antiga crew migraram para lá, unindo o<br />
patrimônio cultural ao edificado da cidade e inovando a<br />
história do hip-hop e das periferias locais.<br />
Era final de 2003 e aquele ano tinha sido marcado por<br />
descobertas. Continuava na linha entre o hip-hop, o forró<br />
e o reggae. O rap me seduzia pelas letras e vinha acompanhado<br />
dos demais elementos que formavam a minha<br />
cultura local. O forró me embalava pela dança, que eu<br />
podia aprender e o reggae pelo sentimento de paz que<br />
surgia nas músicas.<br />
Entre as várias baladas que frequentava, percebi que<br />
cada vez menos pessoas se interessavam pela organização<br />
dos Hip-Hop Sul e mais jovens deixavam de frequentar<br />
as reuniões diárias, porque, assim como eu, estavam<br />
trabalhando ou em busca de um trabalho. Outros<br />
já haviam entrado para a vida do crime e não apareciam<br />
mais nos eventos ou no poliesportivo.<br />
94
Passos pela vida<br />
97<br />
Patrimônio cultural<br />
e histórico<br />
A união entre o local, tombado pelo patrimônio histórico<br />
e cultural da cidade, e a cultura hip-hop, marginal e propriedade<br />
do gueto, feita do povo e pelo povo, trouxe uma<br />
nova marca na história local.<br />
São oito horas da noite de sábado. Tanto faz o sábado,<br />
desde que não esteja chovendo. Lá estão deles, misturados,<br />
compondo um espetáculo de dança que faz todas<br />
as pessoas que passam por ali pararem. Turistas ficam<br />
maravilhados com a cena observada. A mistura entre<br />
um local histórico e os movimentos da dança nascida<br />
nas ruas, ao som da música composta com as mazelas<br />
do cotidiano, desperta a atenção de quem passa pela<br />
cidade para uma nova visão.<br />
De São Paulo, a artista plástica, Sueli Magalhães Piva,<br />
comenta com o marido que precisou viajar quase 300 quilômetros<br />
para reparar na arte urbana em contraste com<br />
os locais históricos. “Eles estão escrevendo a própria<br />
história por meio de uma que já existe e isso é magnífico.<br />
Vai muito além de ser apenas uma dança, uma música ou<br />
um movimento. É parte da identidade escondida de uma<br />
cidade”, afirma enquanto observa e tira fotos.<br />
todas as crews de dança dos bairros migraram. Tanto<br />
os garotos como as garotas que praticam a dança nas<br />
escolas, nos centros comunitários e nas ruas – tal como<br />
no início da cultura hip-hop em Nova Iorque – resolveram<br />
integrar o grupo, que trazia na ideologia, e também na<br />
prática, a essência da cultura.<br />
Com ensaios em uma praça de Poços de Caldas, um<br />
ponto turístico, ao lado de uma fonte de água, o grupo<br />
treina passos, se desenvolve e forma, assim, os dançarinos.<br />
A cada dia a crew ganha novos adeptos, que chegam<br />
de saias até o local do ensaio. Tempos depois, o grupo<br />
mudaria os ensaios para outro local, também público,<br />
e passaria a competir dentro e fora da cidade, além de<br />
promover anualmente o Poços Fest Dance, sempre com<br />
o foco no hip-hop.<br />
Os exemplos da cultura nos eventos despertam também<br />
o interesse em outros jovens, que criaram uma nova<br />
crew e passaram a treinar no antigo ponto do The Power<br />
Dance, na fonte, conhecida como fonte do leãozinho.<br />
Trazem no nome o que o grupo quer passar a quem os<br />
assiste: Origens. E, por meio da comunicação, da informação<br />
e dos textos, tentam descobrir os primórdios da<br />
dança e da cultura de rua. Minha participação se tornou<br />
esporádica e quando tinha algum evento, ou quando,<br />
durante as noites de treino da crew, eu passava pelo<br />
local, parava para apreciar e voltar, mesmo que por<br />
pouco tempo, literalmente, às origens.<br />
Contudo, embora entre todas estas transições, voltei a<br />
escrever algumas coisas. Abaixo um dos textos escritos<br />
nessa época, como a verbalização de uma saudade:<br />
Resgatando as origens da dança desde o início. Assim<br />
teve início o grupo The Power Dance, para onde quase<br />
96
100 <strong>Traficando</strong> conhecimento Passos pela vida<br />
101<br />
Uma brasileira<br />
Lavando roupa, limpando a casa, dando banho no filho,<br />
esquentando a janta, pensando no trabalho do próximo<br />
dia, aguardando o amanhã...<br />
“Será que algum dia será diferente?”<br />
Na cabeça, algo além do lenço que prende o cabelo<br />
chama atenção. Talvez seja o sonho. A esperança. Ou a<br />
nova rima que está tentando compor para gravar mais<br />
uma música de rap.<br />
Assim é Maria Lúcia, uma brasileira, mais uma, do tipo<br />
mais comum que existe. Morena, bonita e de cabelo<br />
crespo. Pobre.<br />
Foi criada pela avó na periferia de uma cidade do interior<br />
de Minas Gerais. Uma criança comum, brincava na<br />
rua e cantava na igreja, onde todos diziam que tinha<br />
uma voz linda.<br />
Ficou mocinha e casou-se por amor. Apaixonou-se por<br />
um homem branco, pobre, humilde e cantor de rap.<br />
Em comum? Eles tinham um sonho. Cantar rap e levar<br />
uma mensagem positiva aos jovens do gueto. “Eles precisam<br />
de palavras de incentivo para seguir suas vidas<br />
correndo pelo certo”, diziam.<br />
Mas correr pelo certo nem sempre era fácil. Assim sentia-se<br />
o casal, com um filho de três anos para criar.<br />
Acordar às 4h da manhã e, na hora de ir para cama, sentir<br />
que o dia não passou é coisa de gente pobre, do gueto,<br />
que se sente um nada quando chega o final do mês, nada<br />
para comer. Palavras de incentivo alimentavam, dentro<br />
da pequena casa nos fundos de um quintal, cômodos<br />
pequenos, apertados, aconchegantes, como só as casas<br />
da periferia têm.<br />
Mais dia. Menos dia. A mesma coisa sempre. A falta de<br />
mistura era motivo de briga. O casal que se amava, passava<br />
a se insultar. A barriga vazia trazia a desesperança<br />
e a fraqueza, impedia que a caneta se movesse sob forma<br />
de letras e novas composições de rap.<br />
Como milhares de outros casais, esse era só mais um,<br />
que, durante a brava guerra da sobrevivência, tinha que<br />
optar por continuar ou por sonhar.<br />
Tão iguais e tão diferentes, cada um resolveu seguir seu<br />
caminho. De comum eles continuaram compartilhando<br />
somente a cama.<br />
Maria Lúcia quis continuar sonhando e, de tanto sonhar,<br />
se esqueceu de trabalhar, de buscar alguma forma de se<br />
alimentar e deixou o filho para o marido cuidar.<br />
Já o marido, que não sabia como era o preconceito do<br />
racismo, mas sentia o da pobreza, desistiu de sonhar<br />
para poder continuar vivendo.<br />
Ambos morreram. Não que eles tenham sido sepultados<br />
ou algo parecido. É que um já não sonha mais para continuar<br />
vivo e outro de tanto sonhar se esqueceu de viver.<br />
E assim eles prosseguem. Mais um casal, com filho para<br />
criar, e uma vida que passa distante do verbo em ação.<br />
Contudo, apenas escrevi. Já não encontrava mais espaço<br />
para divulgar os textos nos eventos, embora o desejo<br />
de gritar para o mundo minhas palavras continuasse<br />
cada dia maior.
Passos pela vida<br />
103<br />
Monitorando a<br />
infância e o futuro<br />
Sentada no ônibus, lendo um texto de Ferréz na revista<br />
“Caros Amigos”, tento encher a cabeça de novas ideias e<br />
novos conhecimentos e, assim, conseguir um emprego.<br />
O sonho de ter a carteira assinada ainda continua sendo<br />
apenas um sonho.<br />
Para continuar comprando livros, CDs, estudando e<br />
indo a algumas festas nos fins de semana não desisto<br />
da busca. Nas poesias e contos que leio diariamente,<br />
encontro um pouco de alimento para a alma, faminta de<br />
saber e de vida de verdade.<br />
Sou chamada para um freela. Infelizmente, em uma área<br />
bem diferente da que eu estava estudando. Devo ser<br />
monitora infantil num hotel da cidade. A parte boa: estar<br />
em contato com as crianças, coisa que eu adoro, e poder<br />
levá-las ao cinema e, assim, assistir o que há de novo nas<br />
telas da cidade. Conversar com crianças de vários estados<br />
também significava conhecer mais sobre as diferentes<br />
regiões, o que não deixava de ser aprendizado.<br />
Se eu não tinha um emprego formal, o jeito era me virar<br />
como podia e, para bancar meus pequenos hobbies, o<br />
esquema era esse.<br />
Das culturas musicais e urbanas eu estava distante. Até<br />
mesmo do forró da banda da minha van. Com quase 19<br />
anos, queria mesmo era um emprego fixo. Ainda não era<br />
hora e fui chamada para trabalhar em um buffet infantil,<br />
também como monitora. Não tinha carteira assinada,<br />
mas era fixo. Quando tinha festas, eu era chamada.<br />
Ganhava ao final de cada mês. A quantia era inferior a um<br />
salário mínimo, mas a diversão no trabalho era garantida.<br />
A curiosidade é que, na entrevista – e até para esta vaga<br />
havia disputa —, uma das perguntas foi decisiva para eu<br />
garantir o emprego. “Cite seus três livros favoritos”. Tive<br />
de pensar bastante, porque foram tantos. Citei “Feliz Ano<br />
Velho”, “Quarto de Despejo” e “Chatô – O Rei do Brasil”,<br />
inspirada pela faculdade. Não pude deixar de citar que<br />
diariamente eu lia revistas, outros livros e muita literatura<br />
que começava a ser produzida na periferia. Já havia<br />
sido apresentada à Ferréz muitos anos atrás e não perdia<br />
a paixão, tampouco deixava de frequentar o blog dele.<br />
Mais tarde, fui informada de que, por conta disso, garanti<br />
o emprego que durou oito meses. Com a redução da procura<br />
por festas, os freelas ficaram mais espaçados e já<br />
não compensava mais ficar à disposição por tanto tempo<br />
sem saber se iria ou não trabalhar no dia seguinte. Saí<br />
fora e caí dentro de outras tentativas de sustento.<br />
Quando não estava no hotel, fazia outros trabalhos<br />
temporários e, desta vez, era para entregar panfletos<br />
na principal rua da cidade. Por diversas vezes fui questionada<br />
por parentes e pessoas da faculdade se eu não<br />
me sentia envergonhada de fazer isso. De jeito nenhum.<br />
102
Passos pela vida<br />
105<br />
Do desemprego<br />
ao mais perfeito<br />
possível<br />
Entre reuniões, com muita comida, refrigerantes e bingos,<br />
topei vender tuppeware – aqueles potes que na<br />
década de 1980 faziam sucesso entre as donas de casa,<br />
mas que em 2005 eram impossíveis de comercializar.<br />
Competir com os plásticos úteis vendidos nas lojas de<br />
R$ 1,99 parecia injusto e elitista, principalmente em um<br />
bairro onde a maior ocupação das moradoras era como<br />
auxiliares de limpeza ou domésticas.<br />
Sem ter sucesso com os potes mais caros do Brasil,<br />
fui chamada por uma vizinha para vender filtros d’água<br />
supermodernos, uma empresa japonesa se instalava no<br />
Brasil e precisava de vendedores. Como sempre, os trabalhadores<br />
entravam com o dinheiro da condução, dos<br />
telefonemas, do lanche, a cara e a coragem para tentar<br />
vender algo fora da realidade do mercado. Tanto pelo<br />
preço, quanto pela cultura dos consumidores.<br />
Chamou-me novamente para trabalhar com ele. Não<br />
podia pagar nada. Nem tinha o esquema das propagandas,<br />
mas existia a chance de mexer diretamente com<br />
jornalismo cultural, algo que eu gostava demais.<br />
Jogo rápido. Aceitei. Esse era, também, o nome da mídia<br />
distribuída em vários estabelecimentos da cidade, para<br />
onde fiz várias matérias sobre exposições, mostras de<br />
arte, lançamentos de livros e dicas culturais. Eram textos<br />
pequenos, mas que me permitiam a flexibilidade que<br />
precisaria, mais adiante, ao mexer com jornalismo.<br />
Foi durante esse período, de efervescência cultural<br />
por todos os lados, que comecei a ler Clarice Lispector,<br />
Paulo Leminski e Charles Bukowski. Mesmo na busca por<br />
um emprego e diante de todas as dificuldades, a leitura<br />
e a poesia continuaram fazendo parte do meu dia a dia.<br />
Estimulada por estas culturas, por frases sábias, pela<br />
descoberta de novos horizontes, descobri em mim mesma<br />
a capacidade de produzir um texto mais livre, mais solto,<br />
mais com a minha cara, dentro daquilo que eu acreditava.<br />
Passei por assuntos variados e me apaixonei ainda<br />
mais pelo jornalismo cultural e foi nessa fase, graças<br />
à minha paixão por livros, que conquistei meu primeiro<br />
emprego com carteira assinada.<br />
Sem dinheiro e já desanimada, prestes a terminar meu<br />
curso de inglês – pago pela minha irmã que estava em<br />
uma situação boa, na época – e seguindo com a faculdade,<br />
já não sabia mais o que fazer, quando o cara que<br />
trabalhava como meu “chefe” no Fãzine abandonou o<br />
zine e resolveu montar uma toalha de mesa cultural.<br />
Como aquelas do MC Donald´s, mas com dicas e agenda<br />
cultural da cidade.<br />
104
Passos pela vida<br />
107<br />
Entre livros<br />
momentos mais interessantes eram as chegadas dos<br />
livros. Abrir a caixa dos lançamentos era como abrir um<br />
presente.<br />
Atender os clientes também estava entre o que eu mais<br />
gostava de fazer. Sugerir leituras, presentes e trocar<br />
informações sobre o universo literário se tornaram um<br />
hobby e não apenas um trabalho com carteira assinada.<br />
Imersa nas letras do livro que estava relendo — “Feliz<br />
Ano Velho” —, no ônibus, tentava pensar no que dizer<br />
ou justificar meu interesse em trabalhar em uma livraria.<br />
Encontrei a resposta na própria cena. Reconhecime<br />
como uma leitora compulsiva e, naquele inverno de<br />
2005, de férias da faculdade, fui admitida na Livraria<br />
Alfarrábios, de propriedade de uma amiga que sempre<br />
ia comigo aos shows de MPB que aconteciam na cidade.<br />
Juntas, tínhamos certeza que trabalhar seria diversão e<br />
não obrigação. Eu poderia começar no outro dia. Deveria<br />
abrir, limpar e organizar a livraria. Quando não estivesse<br />
atendendo os clientes poderia ler alguns livros. Se<br />
fossem livros repetidos poderia levar para casa e ler no<br />
ônibus e antes de dormir. Logo na primeira semana li um<br />
livro por dia e estava amando estar ali.<br />
Em estilo europeu, com apenas uma portinha e um<br />
espaço aconchegante, a livraria atraía diferentes pessoas<br />
e muitos turistas que se hospedavam em um hotel<br />
bem próximo.<br />
Demorei três anos para conseguir este emprego, mas,<br />
como disse um amigo da época, “se eu tivesse que imaginar<br />
um emprego perfeito para você seria exatamente<br />
esse”. Perfeito e que me deixava imensamente feliz. Os<br />
Logo na primeira semana, satisfiz minha curiosidade<br />
sobre o nome da livraria — “Alfarrábios” — através dos<br />
livros mesmo. O nome veio inspirado no filósofo Al-Farabi,<br />
que viveu em Bagdá no século IX e vivia absorvido no<br />
estudo, além de trabalhar com os livros.<br />
O convite desse trabalho não poderia ter vindo em<br />
melhor hora e o contato com a literatura, de forma tão<br />
íntima, fez surgir na minha mente prateleiras de ideias<br />
em volumes, feito a organização dos livros na loja.<br />
Empolgada com os inúmeros livros que poderia ler e com<br />
as amizades que poderia fazer no trabalho, fui pega de<br />
surpresa, em um sábado de manhã, antes mesmo de ir<br />
trabalhar, com um telefonema me avisando que a Adeine<br />
— patroa — tinha sofrido um acidente de carro e estava<br />
hospitalizada. Mesmo assim fui para a livraria, afinal, ela<br />
não poderia ficar fechada no dia de maior movimento.<br />
Receosa por ser a primeira vez que eu iria fazer tudo<br />
sozinha no local, fui acudida pelo irmã da minha patroa,<br />
que, logo cedo, me levou troco para o caixa e ficou me<br />
fazendo companhia, ansiosa para receber notícias sobre<br />
o estado da irmã.<br />
Por volta de meio-dia, quando a loja estava cheia, ficamos<br />
sabendo que o estado era grave. Ela havia quebrado<br />
três vértebras e deveria passar por uma cirurgia<br />
na manhã do dia seguinte. Até lá, não deveria se mexer<br />
para não agravar o quadro.<br />
106
108 <strong>Traficando</strong> conhecimento Passos pela vida<br />
109<br />
Desde esse dia, passei a tocar a livraria “sozinha”, apenas<br />
com a ajuda do sobrinho da minha patroa, que fazia<br />
serviço de office boy e me ajudava em várias coisas, além<br />
de fazer companhia.<br />
Uma semana depois, chegou a notícia de que o quadro de<br />
saúde dela era bem mais grave do que parecia e que ela<br />
deveria passar por outras cirurgias para operar as vértebras,<br />
e ficar afastada por tempo indeterminado. Foi,<br />
também, neste período, que o pai dela passou a ficar<br />
mais tempo na loja, e, mesmo doente, me ajudava e trabalhávamos<br />
em um ambiente muito bom, sem falar que<br />
era a chance que tinha de aprender muito.<br />
Oportunidade. Assim eu encarava o meu emprego e, por<br />
incrível que pareça, o hip-hop voltou à minha vida. Muito<br />
por meio dos livros, de literatura marginal, que não paravam<br />
de chegar contando histórias de várias periferias de<br />
toda parte do país.<br />
A loja ao lado da livraria, que trabalhava com pijamas,<br />
contratou uma das garotas que faziam parte da crew da<br />
zona sul, assim que eu conheci o hip-hop. Passávamos o<br />
tempo vago na porta da loja lembrando daquele tempo e<br />
conversando sobre a cultura. Como eu comprava livros<br />
com descontos, passei a oferecer a ela grande parte da<br />
literatura que eu li na época, como: “Cabeça de Porco”,<br />
“Literatura Marginal”, “Capão Pecado”, “Memórias de<br />
um sobrevivente”, “O povo Brasileiro”, “O Invasor”,<br />
entre tantos outros.<br />
Com muita ânsia de conhecimento, nos primeiros seis<br />
meses de trabalho li quase 60 livros. A preferência era<br />
pelos que traziam alguma alusão à periferia ou à literatura<br />
marginal, embora eu lesse de tudo e sobre tudo, o<br />
que facilitava na hora de fazer uma sugestão ou venda.<br />
Voltei a escrever e, quando cansava os olhos da leitura,
110 <strong>Traficando</strong> conhecimento Passos pela vida<br />
111<br />
escrevia alguns textos no computador da livraria. O meu<br />
remorso foi não ter salvo em algum outro lugar e ter perdido<br />
todos em uma pane do computador.<br />
Lembro que eram textos sobre o cotidiano, sempre mesclando<br />
o jornalismo e a literatura marginal, tentando<br />
dar estilo à minha maneira de escrever. Como eu estava<br />
quase terminando meu curso de inglês e, para chegar<br />
até o fim da faculdade com ele concluído, mudei de horário<br />
passando a frequentar as aulas na hora do almoço.<br />
Acho que foi a época mais tumultuada, em questão<br />
de tempo, que já vivi. Acordava às 7h, tomava banho,<br />
pegava o ônibus — torcendo para achar um banco vazio<br />
e me sentar para ler durante todo o trajeto, ou mesmo,<br />
anotar as ideias, que não paravam de surgir — e chegava<br />
na livraria pouco antes das 9h.<br />
Fazia a limpeza matinal diária, cuidava da parte dos<br />
livros vendidos, comprados e, pouco antes do almoço,<br />
me sentava para ler um pouco, alternando entre um<br />
cliente e outro. Devagar, algumas amizades foram surgindo<br />
e sempre algumas pessoas passavam pela manhã<br />
na loja me deixando cafés, pães de queijo e algumas<br />
palavras de bom dia.<br />
tração total, sempre recheados com muitas músicas,<br />
que eram de vários estilos.<br />
Foi, durante a faculdade, que aprendemos a confeccionar<br />
o jornal laboratório – Entrelinhas – e minha primeira<br />
matéria foi sobre grupos musicais independentes.<br />
Claro que, no meio, apareceu os grupos de rap da minha<br />
região. Época em que o UClanos se fortalecia e programava<br />
a gravação de novas músicas.<br />
A volta para Poços de Caldas acontecia às 23h, quando<br />
saíamos de São João. A van me deixava na porta de casa<br />
por volta de 00h50. Neste horário tomava outro banho e,<br />
por muitas vezes, fiquei estudando ou fazendo trabalhos<br />
da faculdade. Dormir era considerado um período muito<br />
raro, contudo, o desejo de aprender, de viver, de me entregar<br />
à época e ao que eu poderia fazer eram mais fortes.<br />
Sem tempo para organizar os eventos, buscava, em<br />
alguns domingos, eventos espalhados em partes diferentes<br />
da cidade e ia curtir um pouco do hip-hop, afinal,<br />
minha paixão tinha voltado com tudo e não poderia<br />
mais abrir mão de me encontrar com a minha verdadeira<br />
essência: a periferia e a cultura produzida dentro dela,<br />
do povo para o povo.<br />
Na hora do almoço, voltava para casa, almoçava e já saía<br />
correndo novamente para a livraria. Às terças e quintas<br />
meu pai levava uma marmita e me levava até a escola de<br />
inglês, comia rapidamente, assistia a aula e voltava para<br />
a livraria. O horário de saída era às 18h20 e eu ia direto<br />
pegar a van que me levaria até São João da Boa Vista.<br />
Muitas vezes lamentei ter de ir para a faculdade sem<br />
banho. Comer antes de viajar já não era um problema<br />
e tudo que gostaria era de poder tomar um banho e<br />
mudar a roupa. Os momentos na van eram de descon-
Passos pela vida<br />
113<br />
Despejo no quarto<br />
Um livro pequeno e com um título que, a primeira vista,<br />
não me chamava a atenção. Mas bastou uma folheada<br />
para eu ter vontade de não vender a encomenda de uma<br />
cliente. “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus,<br />
o primeiro livro no Brasil escrito por uma favelada me<br />
abriu, um tanto mais, a mente e a vontade de produzir<br />
algo sobre e para a periferia.<br />
Ressaltando a fome, a miséria que oprime e o que é<br />
viver numa favela, a guerreira Carolina brindou o mundo<br />
todo com o livro — traduzido para mais de 13 idiomas<br />
— recheado com histórias reais de quem cozinhava<br />
ossos para fazer sopa aos filhos e quase não dormia<br />
para poder sobreviver e, mesmo assim, mantinha um<br />
sonho: transformar as letras que anotava em um livro<br />
que denunciaria todo o sistema.<br />
Lançado pela primeira vez em 1960 o livro fez sucesso<br />
na minha vida quarenta e cinco anos depois, quando<br />
constatei que os problemas continuaram os mesmos ao<br />
longo de todo o período.<br />
“Eu me alimentava com comida azeda”, é o que conta<br />
minha mãe, todas as vezes que vê alguém torcendo o<br />
nariz para um prato de comida. “Eu catava balas pisadas<br />
e sujas ao lado de uma fábrica perto de casa”, diz meu<br />
pai com frequência.<br />
Até então, nunca tinha dado tanto valor as palavras<br />
deles. Foi quando vi o desafio de uma mulher que transformou<br />
a fome em inspiração para escrever e levou ao<br />
mundo um pouco da própria história. Fez do pão duro a<br />
poesia do dia a dia.<br />
Se ela, que não tinha o que comer, conseguiu transformar<br />
— de alguma forma — a própria realidade, embora<br />
alguns parentes e amigos meus ainda vivessem com<br />
fome, eu também tinha o direito e, sobretudo, o dever<br />
de fazer o conhecimento chegar até quem nunca tinha<br />
sabido de sua existência, de alguma maneira.<br />
Passei a pensar em infinitos projetos que poderia desenvolver<br />
relacionados aos livros, como criar minibibliotecas,<br />
promover saraus, doar livros, imprimir textos e distribuir<br />
para as pessoas.<br />
Infelizmente, no ano que se seguiu, quase nada foi possível,<br />
exceto uma pequena arrecadação de livros usados<br />
que promovi na própria livraria. Entre os clientes que<br />
se tornaram amigos. Fui pedindo alguns exemplares,<br />
ganhei outros do meu patrão e ainda tive de guardá-los<br />
durante um bom tempo antes de poder pôr em prática<br />
tudo que eu tinha vontade de fazer.<br />
Lendo o que ela escreveu, lembrei de todas as histórias<br />
contadas por meus pais, que foram tão pobres<br />
quanto, embora nunca tenham vivido na favela, passaram<br />
fome e foram obrigados a se alimentar com restos<br />
deixados no lixo.<br />
112
Concepção<br />
CON<br />
CEP ÇÃO<br />
Cap.03<br />
Concepção
Concepção<br />
117<br />
Quando recebi meus textos me reconheci na mesma hora.<br />
Feliz por já ter lido a maioria deles há vários anos, quando<br />
conheci a revista “Caros Amigos” e, na sequência, os textos<br />
da literatura marginal, além de acompanhar também<br />
a nova cena editorial, com livros originais, de autores<br />
naturais do gueto, com textos singulares sobre o tema.<br />
Em discussão, foi a primeira vez que tive a oportunidade<br />
de falar abertamente – e com quem tem entendimento –<br />
em sala de aula sobre minha paixão pelo hip-hop, os eventos<br />
organizados anteriormente e a paixão pela literatura.<br />
Com os olhos apertados e enxugando as lágrimas, a professora<br />
Rosa Helena Carvalho Serrano, responsável pela<br />
disciplina de Antropologia para o curso de Jornalismo,<br />
se desculpa pelo choro em plena banca examinadora de<br />
um trabalho de conclusão de curso.<br />
A emoção é justificada pela surpresa de sequer imaginar<br />
que, algum dia, um tema tratado naturalmente em sala<br />
de aula poderia se tornar um livro-reportagem ou, ainda,<br />
um trabalho junto à periferia e um caldeirão de efervescência<br />
cultural dentro e fora do curso.<br />
E a pergunta dela na banca examinadora foi: “Após o trabalho,<br />
o que ficou e mudou na vida de vocês?”.<br />
Para chegar nesta cena, vale voltar no tempo a um<br />
ano antes. Na sala de aula, durante uma abordagem<br />
comum, esta mesma professora entregou aos 32 alunos<br />
um chumaço de folhas contendo inúmeros textos<br />
do escritor Ferréz.<br />
A sugestão do assunto em sala de aula surgiu de um<br />
outro aluno que trabalhava com jovens de periferias e foi<br />
apresentado aos textos produzidos pelo escritor, morador<br />
do Capão Redondo.<br />
Um momento singular. Assim pode ser definido o tempo<br />
da aula em que os textos de Ferréz foram lidos em voz<br />
alta por alguns alunos e debatidos de forma acadêmica.<br />
A periferia foi explorada e questionada por quem ainda<br />
a desconhecia. Tomei a palavra por várias vezes e contei<br />
parte das minhas experiências com o hip-hop, com a<br />
literatura e com o local onde vivo. Novamente, a cultura<br />
entrava na minha vida de forma sutil. Eu mal sabia que<br />
desta maneira, seria “para sempre”.<br />
Os textos fariam parte da prova no fim do ano e, em uma<br />
manhã, que parecia como qualquer outra, eu fui para o<br />
trabalho estudando dentro do ônibus. Peguei-me quase<br />
perdendo o ponto em que teria de descer com lágrimas<br />
nos olhos ao ler um texto do escritor paulistano.<br />
Ele falava sobre hip-hop de uma forma tão natural que eu<br />
senti muita falta do universo que fez parte da minha vida<br />
no início desta década. Chorei por saudade, por vontade<br />
de fazer parte novamente, movida por um desejo enorme<br />
de voltar a realizar eventos e beneficiar creches e instituições<br />
da região. Naquela noite eu decidi. Meu Trabalho<br />
de Conclusão de Curso (TCC) seria sobre hip-hop e<br />
eu voltaria a integrar a cultura, independente do que eu<br />
precisasse fazer.<br />
116
118 <strong>Traficando</strong> conhecimento Concepção<br />
119
120 <strong>Traficando</strong> conhecimento Concepção<br />
121<br />
Fui embora feliz, mas nem por isso consegui me afastar<br />
do meu cotidiano. A faculdade, de certa forma, “distante”<br />
dos problemas periféricos, me deixava algumas<br />
poucas horas por dia longe da minha quebrada, mas,<br />
todos os dias ao voltar para casa eu era obrigada a despertar<br />
do mundo “universitário”, ao qual apenas 1% da<br />
população brasileira tem acesso, e enfiar o pé no barro<br />
quase todas as noites, ao descer da van, passar pelos<br />
moradores de rua que sempre buscam abrigo na marquise<br />
de um comércio na porta da minha casa e ouvir os<br />
barulhos de tiro se confundirem com as letras dos livros<br />
que eu lia antes de pegar no sono para repor as energias<br />
e enfrentar mais um dia lotado de afazeres e sonhos.<br />
Para completar, mesmo cursando o nível “superior” de<br />
ensino, não deixava de pegar o ônibus cheio e enfrentar<br />
o massacre diário que todos os trabalhadores são obrigados<br />
a tolerar no transporte público e foi justamente no<br />
“aperto do busão” que dias depois da aula com os textos<br />
da literatura marginal me bateu o estalo: “Vou fazer um<br />
livro-reportagem sobre o hip-hop.”<br />
nessa?” e foi exatamente assim que eu falei e vi os olhos<br />
dela brilhando. “Sim. Hip-hop rola demais como TCC, fala<br />
de pessoas, é super social e jornalismo puro no relato<br />
do cotidiano.” Essa foi a resposta dada por ela. Poucas<br />
palavras que soaram como alívio após meses de discussão<br />
sobre qual tema poderíamos fazer para o TCC – trabalho<br />
que assombra todos os alunos de jornalismo e que<br />
decidimos, desde o segundo ano, que faríamos juntas e,<br />
caso isso não desse certo, faríamos sozinhas.<br />
Convicta. Assim eu estava. Certa de que abordar o<br />
hip-hop no meio acadêmico de uma cidade do interior<br />
era novidade e falar dele na região seria inédito. Abracei<br />
a causa e sozinha, ou com a Anita, eu decidi pelo<br />
livro-reportagem que traria elementos como DJ, MC,<br />
Break, Grafite e <strong>Conhecimento</strong>.<br />
Com as lembranças da melhor fase da minha adolescência,<br />
de quando eu conheci a crew de break e todo o universo<br />
mágico do hip-hop é que eu cheguei a pensar no<br />
que poderia fazer como projeto experimental. Naquela<br />
manhã, dentro do ônibus, enquanto pensava na prova<br />
que faria à noite, em que os textos de Ferréz seriam<br />
objetos de interpretação antropológica, senti que minha<br />
vida estava ali e que não poderia ser diferente.<br />
Após a prova, comuniquei à Anita, pessoa fundamental<br />
durante meus quatro anos de faculdade, de altos e baixos,<br />
brigas, momentos de paz e muita troca de conhecimento.<br />
A melhor amiga que tive na vida. A pessoa com<br />
quem melhor trabalhei até hoje. “Vou fazer um livroreportagem<br />
sobre hip-hop, decidi. Você vem comigo
Concepção<br />
123<br />
Caldeirão de ideias<br />
Outubro de 2005: o final do terceiro ano de faculdade<br />
e a mente fervilhando de ideias. Saímos em disparada<br />
no preparo inicial do livro-reportagem. Ainda com a<br />
mesma ânsia por conhecimento que sempre me acompanhou,<br />
durante toda a vida, fiz uma lista com a bibliografia<br />
que poderia ser útil para a execução do trabalho<br />
e saí à captura de toda e qualquer informação técnica a<br />
respeito da cultura.<br />
as faces, passando pelas dificuldades enfrentadas pelos<br />
militantes da periferia, com o descaso existente em qualquer<br />
gueto, com a ligação entre pobreza e cultura marginalizada<br />
e com o prazer que cantar as próprias mazelas<br />
produz em quem compõe as letras de rap e faz com que<br />
muitos dancem ao som deste ritmo diferente.<br />
Ao mesmo tempo, senti minha perspectiva mudar e, diariamente,<br />
me sentava com a Anita para falar sobre isso,<br />
comentar sobre o tema, discutir que rumos poderíamos<br />
dar ao trabalho e de que forma, na prática, aplicaríamos<br />
o universo que estávamos descobrindo.<br />
Após o término das provas e aprovadas para o 4° ano da<br />
faculdade, ficamos os meses de dezembro e janeiro distantes<br />
– ela morava em Mogi Mirim, estado de São Paulo<br />
e, assim como eu, viajava diariamente para estudar – mas<br />
prometemos estudar e pesquisar ainda mais para o TCC.<br />
Decidi: faria do livro a melhor reportagem da minha vida.<br />
Troquei as comédias românticas e muitos livros técnicos<br />
pela literatura brasileira e por toda aquela, que poderia<br />
ser utilizada como forma de conhecimento no processo<br />
de entendimento da cultura brasileira.<br />
Por trabalhar em uma livraria, aproveitei para encomendar<br />
vários livros e, assim, poder comprá-los com desconto<br />
– já descontados em folha. Por meio das leituras,<br />
passei a me identificar ainda mais com as manifestações<br />
culturais e sociais vinda da periferia e, diferente de<br />
quando eu tinha 15 e 16 anos, compreendi melhor como<br />
tudo isso funcionava no país, em todos os termos.<br />
Em pouco mais de um mês, senti despertar o desejo de<br />
reportar o hip-hop nacional e local em um livro, com todas<br />
122
Concepção<br />
125<br />
O despertar<br />
Nem tudo foi fácil nesta trajetória. Descobri, diariamente,<br />
como é difícil crescer na vida. Como é complicado fazer<br />
uma faculdade quando saímos de um local pobre. Como<br />
é duro ter de contar cada centavo para poder tirar uma<br />
cópia, comer um lanche na hora do intervalo e ainda assimilar<br />
isso tudo e se sentir no céu por fazer parte de uma<br />
sociedade “elitizada” que nem mesmo a minoria de onde<br />
eu vim tem acesso.<br />
Ser jornalista num país como o Brasil é uma guerra diária.<br />
Ser estudante de jornalismo, assalariado, ainda mais. Vir<br />
de uma periferia e sentir a juventude vibrar no peito pela<br />
vontade de mudança sem nada a fazer é duro.<br />
Eu precisava fazer algo na prática. Ainda não sabia como<br />
poderia aproveitar os livros que arrecadei na livraria, mas<br />
tinha uma certeza: queria fazer com que tantas histórias<br />
chegassem até o meu povo. Ao menos, até aqueles que<br />
soubessem ler. E foi neste ponto também que um desespero<br />
imenso tomou conta de mim: o analfabetismo.<br />
Sei que, para os que estão do lado de fora, muito se julga<br />
sobre o hip-hop e a literatura da periferia quanto à falta<br />
de normas cultas, de pontuação, de palavras escritas da<br />
forma correta. Entretanto, se esquecem de que milhares<br />
de seres humanos não sabem ler. O analfabetismo<br />
também mata. Mata de desgosto e tristeza aqueles que<br />
querem compreender o que assinam, que querem ver um<br />
filme, mas não compreendem as legendas, que passam<br />
pela banca de jornal e não entendem como o homem<br />
pode gastar dinheiro em algo que é de papel e que se<br />
acaba rapidamente, sendo bom apenas por um motivo:<br />
aquece as noites de frio.<br />
Eu não poderia alfabetizar a todos e me sentia extremamente<br />
mal porque nem todos poderiam ler o livro que eu<br />
escreveria. Se eu falaria com o povo, como eles entenderiam?<br />
Mas jornalismo não é apenas palavra escrita e<br />
eu encontraria uma forma de transmitir isso de alguma<br />
outra maneira, qualquer que fosse.<br />
De desgosto agi da única forma que consegui naquele<br />
momento e com a única arma que tinha: o hip-hop para<br />
reportar.<br />
Com o relógio marcando 20h e o horário de verão ainda<br />
deixando uma claridade, mesmo quando já é noite, saio<br />
da livraria e vou até o ponto do ônibus. Já estava trabalhando<br />
até mais tarde por ser mês de dezembro, por<br />
conta das vendas de Natal. Observo um grupo formado<br />
numa roda no ponto do ônibus e paro para observar. Surpreendo-me<br />
ao ver que é uma crew de break se apresentando,<br />
como parte das comemorações natalinas, patrocinadas<br />
pela prefeitura.<br />
Interpreto como um sinal positivo para o bom andamento<br />
do projeto e me convenço, cada dia mais, de que o hiphop<br />
realmente é meu caminho. Foi neste tempo que me<br />
lancei novamente nas reuniões das crews e nos shows<br />
de rap em busca de personagens e representantes da<br />
cultura na cidade e também no sul do Estado.<br />
Tirei do arquivo as antigas Rap Brasil e listei quem eu<br />
poderia entrevistar, que teria algo interessante para<br />
124
126 <strong>Traficando</strong> conhecimento Concepção<br />
127<br />
acrescentar ao livro. Mais do que isso, com um novo<br />
olhar — talvez o de uma jornalista em processo de formação<br />
—, passei a notar mais do que um simples grupo<br />
reunido para curtir uma música, uma dança ou uma arte.<br />
Percebi que cada uma daquelas pessoas trazia histórias<br />
únicas e que se fundiam em um ponto comum, que era<br />
a marginalização dos que vivem nas periferias e guetos.<br />
O desejo de conhecer a fundo o movimento foi ao encontro<br />
da vontade de fazer algo para, na prática, promover<br />
mudanças nos guetos onde estava acostumada a frequentar.<br />
Na semana seguinte, um novo evento de dança<br />
marcou meu calendário e o contato com novos grupos<br />
– que surgiram durante o tempo em que estive distante<br />
– foi sendo firmado.<br />
A volta às aulas foi marcada pela divisão dos grupos e<br />
a definição oficial dos temas. Ao explanarmos o nosso<br />
objeto de pesquisa e o tema que seria praticado no livroreportagem,<br />
fomos tolhidas pelo coordenador do curso,<br />
que achou ser algo que não dizia respeito à proposta<br />
acadêmica da universidade.<br />
Não conseguiu. O único jeito era trabalhar no assunto e<br />
definir a linha de pesquisa. Resolvemos que Anita faria<br />
a parte do relatório técnico, que é semelhante a uma<br />
monografia, com a coleta de dados e referências teóricas<br />
e eu ficaria responsável pela parte das entrevistas e<br />
escrita do texto que entraria no livro.<br />
Já cansada das baladas universitárias, do forró e de<br />
outros estilos, me envolvi novamente com as leituras e<br />
procurei saber mais sobre cultura popular. Nesse embalo,<br />
passei a fichar tudo que encontrava referente ao tema, ou<br />
mesmo, à cultura popular e, por mais que já estivesse,<br />
desde a adolescência, inserida no contexto da cultura,<br />
descobri novos aspectos e vertentes que me fizeram<br />
mudar um pouco o pensamento e despertar a vontade de<br />
mudar a realidade em que vivia.<br />
Como não? O tema era livre, desde que rendesse uma<br />
boa reportagem e, muito antes do ano letivo começar, já<br />
estávamos empenhadas nas pesquisas. Outro ponto: se<br />
o assunto já havia sido debatido em sala de aula, como<br />
poderia fugir da proposta acadêmica?<br />
Como sempre, fomos teimosas e persistentes, batemos<br />
o pé e não recuamos. O nosso tema seria o livro-reportagem<br />
sobre hip-hop, seria o TCC e pronto.<br />
Uma nova briga começou com a escolha do professor<br />
orientador. O designado pelo orientador do curso não<br />
gostou. Tentou, mais uma vez, nos fazer mudar de ideia<br />
e trocar de tema. Sem sucesso. Tentou junto ao coordenador<br />
que outro orientador assumisse o trabalho.
Concepção<br />
131<br />
<strong>Traficando</strong><br />
informação<br />
Beats dos anos 1970 e 1980 foram escolhidos a dedo<br />
para serem a vinheta de abertura do programa de rádio<br />
que teríamos de montar para a disciplina de radiojornalismo.<br />
Como sempre, fiz dupla com a Anita e já dá para<br />
ter certeza de qual foi o tema escolhido para o programa.<br />
É claro que falaríamos de hip-hop. Não poderia ser algo<br />
muito longo. Um pequeno documentário para o rádio,<br />
com entrevistas, músicas e vinhetas. O programa, <strong>Traficando</strong><br />
Informação, levou a toda a universidade um<br />
pouco de informação sobre o que é o hip-hop. Pela primeira<br />
vez, sentimos o impacto disso. Primeiro diante do<br />
técnico de som do laboratório de rádio, na sequência<br />
pelos alunos da nossa turma e depois, por todos que<br />
ouviram o documentário.<br />
preconceito, que era grande, por parte de professores e<br />
muitos alunos.<br />
A intenção foi mudar a visão destas pessoas através de<br />
um retrato da realidade. Entre as entrevistas do programa<br />
estavam um b.boy que fazia parte da crew que<br />
eu conheci no poliesportivo perto de casa e que se dispôs<br />
a usar o horário de almoço para me dar a entrevista<br />
na livraria onde eu trabalhava. Outro caso era de<br />
uma espectadora do movimento e também universitária,<br />
estudante de jornalismo, que, depois de fazer uma<br />
matéria sobre um festival, se apaixonou pelo tema.<br />
Na sequência, uma visão antropológica da professora<br />
Rosa Helena para amarrar o documentário. De forma<br />
simples, ela contextualizou o que queríamos dizer sobre<br />
a expansão do movimento no Brasil. “A desigualdade<br />
social é tão danada. É tão intensa, que não temos como<br />
ver movimentos como este diminuindo. Temos mais<br />
de 50 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da<br />
pobreza, é natural que este tipo de movimento cresça.”<br />
Esse era o início da mudança de realidade que levava<br />
histórias reais e marginais para pessoas que sempre<br />
taparam o ouvido para isso. Em breve seriam as palavras<br />
documentadas em livro.<br />
Algumas entrevistas já estavam sendo feitas e foram aproveitadas<br />
para abrir o programa, além de levar para dentro<br />
da universidade elementos e manifestações da rua. A vantagem<br />
do programa de rádio era falar a todos, sem exceção.<br />
O nome surgiu da música do rapper MV Bill, que também<br />
foi escolhida como vinheta de algumas partes do<br />
documentário. A alusão era ao tráfico de informações da<br />
rua para dentro da universidade, sempre combatendo o<br />
130
Concepção<br />
133<br />
Preparando o<br />
terreno<br />
Em uma noite fria, típica em Poços de Caldas, em um final<br />
de domingo, decidi ir até a casa de um dos b.boys que<br />
tinha conhecido há mais de seis anos, numa tarde qualquer,<br />
e que mudou tanto a minha concepção de mundo.<br />
Sentados na calçada em frente à casa dele ainda não<br />
terminada, Valdair me contou que havia se afastado um<br />
pouco do hip-hop por ter que trabalhar para ajudar no sustento<br />
da casa, onde ele vivia com a avó que o criou e a tia,<br />
a quem ele chamava de irmã, junto com dois sobrinhos.<br />
Contou-me ainda como começou no hip-hop e os sonhos<br />
que tinha, de montar oficinas e competições para ensinar<br />
os garotos tomados pelo ócio do local. Aquela conversa<br />
se transformou em uma matéria para a disciplina<br />
de Técnicas de Reportagem II na faculdade. Mais tarde<br />
entrou para o livro.<br />
Esta foi a primeira entrevista que surgiu, de forma<br />
espontânea, como um bate-papo e definiu a linguagem<br />
usada em todo livro — o new jornalism ou, como também<br />
é chamado, jornalismo literário — com a descrição de<br />
cenas, pensamentos e personagens que, como Valdair,<br />
foram explorados e explanados em meio ao colorido de<br />
muitas histórias e o preto e branco de outras tantas. A<br />
trajetória dele me inspirou e foi se somando as que eu<br />
ouvia diariamente, tanto durante as pesquisas como no<br />
ônibus, na livraria e na faculdade.<br />
As dificuldades do povo que vive nos guetos, nas quebradas,<br />
se revelaram dentro do hip-hop, contida nas<br />
letras dos raps, na forma de dançar dos b.boys e b.girls,<br />
na forma de se vestirem e nas linhas de vários escritores<br />
brasileiros.<br />
Li Ferréz novamente. Li Marçal Aquino. Li Plínio Marcos.<br />
Li Luiz Eduardo Soares, Darcy Ribeiro, João Ubaldo<br />
Ribeiro e até mesmo Gay Talese.<br />
Minha vontade de mudar meu espaço e minha quebrada<br />
ficava a cada dia maior, entretanto, eu sabia que trabalhando,<br />
fazendo faculdade, inglês, pesquisando e escrevendo<br />
o livro ficaria difícil elaborar algo ainda aquele ano.<br />
Contudo, a cada entrevista que fazia – como uma que<br />
rolou com um b.boy e rapper dentro da livraria –, quando<br />
eu precisava de depoimento para um programa de rádio<br />
da faculdade, me sentia mais inserida no movimento e<br />
com mais vontade de permanecer e fazer acontecer.<br />
O prazer em gravar as entrevistas era algo que alimentava<br />
minha alma e me dava uma certeza: eu seria jornalista,<br />
sim! Decupar as fitas e montar o texto também me faziam<br />
pensar muito e me deixavam inspirada a conhecer, ainda<br />
mais, sobre esta cultura popular tão fascinante.<br />
Sem perceber, havia voltado a fazer parte da cultura e<br />
frequentar os eventos por toda parte. Onde havia qualquer<br />
vestígio de hip-hop, eu estava lá. Cacei todos os contatos<br />
e visitei todos os colegas da época do poliesportivo.<br />
Shows de rap, apresentações de break, eventos beneficentes<br />
e qualquer música nova composta eu fazia tudo<br />
que podia para estar presente. Descobri que, durante o<br />
tempo em que fiquei afastada, muita gente nova surgiu e<br />
132
134 <strong>Traficando</strong> conhecimento Concepção<br />
135<br />
estava fazendo a diferença. Descobri outro estilo de rap.<br />
Voltei a aprender e fazer parte.<br />
Ansiosa e um pouco receosa, entrei no teatro municipal<br />
da cidade, que estava lotado de gente vinda de toda<br />
circunscrição. Pessoas ocupavam os assentos, o chão<br />
e se apoiavam na parede em volta. Todos muito estilosos,<br />
aguardando o início das apresentações. Cacei um<br />
lugarzinho bem na frente e me sentei. Do meu lado, um<br />
garoto de São Paulo puxou conversa e me contou um<br />
pouco sobre o grupo do qual ele fazia parte. Com um<br />
nome diferente – Silêncio Crewativo – ele me contou<br />
como funcionava. Por coincidência foi o primeiro grupo a<br />
se apresentar e, embora não tenham sido os campeões,<br />
apresentaram uma coreografia com uma proposta bastante<br />
diferenciada.<br />
E, quando eu menos esperava, o primeiro semestre terminou,<br />
o livro continuava sendo feito e a tão esperada viagem<br />
a São Paulo – berço do hip-hop no Brasil – aconteceu.<br />
Grupos de cidades como Caconde (SP), Campestre (MG),<br />
Vargem Grande do Sul (SP) e Cabo Verde (MG) também<br />
se apresentaram, além dos tradicionais de Poços de Caldas.<br />
Ao término das apresentações procurei fazer mais<br />
contatos e algumas primeiras entrevistas.<br />
Por incrível que pareça, tive a sensação incrível de me<br />
sentir muito bem enquanto estava cercada pelas manifestações<br />
culturais da periferia. Como se uma espécie<br />
de paz diferente me invadisse e me fizesse sonhar com<br />
coisas melhores, me injetasse ânimo para lutar e me<br />
fizesse ver que coisas boas ainda eram possíveis e que<br />
pessoas boas ainda existiam.<br />
Tive vontade de, novamente, entregar alguns textos<br />
a conhecidos e pedir que eles lessem antes do evento<br />
ou durante os intervalos, mas, como estava voltando<br />
naquele momento, não poderia ir com tanta sede ao<br />
pote. Talvez depois do livro pronto.
136 <strong>Traficando</strong> conhecimento Concepção<br />
137
Concepção<br />
139<br />
Hip-hopeando<br />
Debaixo de uma forte chuva, que caía fora de época – em<br />
julho – embarcamos para São Paulo onde passaríamos<br />
uma semana para apurar um pouco mais sobre a chegada<br />
do hip-hop ao Brasil e as diferenças dos grupos da<br />
maior cidade do país para os grupos do sul de Minas.<br />
Mesmo sem conhecer a metrópole e deslumbradas com<br />
a vida que, em São Paulo, não para nos lançamos em<br />
uma aventura pelo Largo São Bento, galeria 24 de maio<br />
e outros locais famosos por terem sido “oficialmente” o<br />
berço da cultura.<br />
Entre a Casa do Hip-Hop em Diadema, alguns rolés por<br />
quebradas como Jaraguá na Zona Oeste, uma favela no<br />
Morumbi e os ataques do Primeiro Comando da Capital<br />
(PCC), que retornaram justamente naquela semana,<br />
entrevistamos muitas pessoas, anônimas ou renomadas,<br />
dentro da cultura e aprendemos tudo que poderíamos<br />
naquele curto espaço de tempo.<br />
Personagens como um vendedor de loja na galeria 24 de<br />
maio que trocou as drogas pelo hip-hop e passou a compor<br />
e cantar rap gospel nos fez avaliar um tanto do propósito<br />
cultural e muito do propósito da vida.<br />
Em razão do tempo em que passei afastada, muita coisa<br />
nova havia sido lançada e todo dinheiro que economizei<br />
durante meses não foi suficiente para que eu comprasse<br />
todos CDs e DVDs novos que iriam me ajudar no trabalho,<br />
além de atualizar a indumentária e passar a ser reconhecida,<br />
esteticamente, como alguém do movimento.<br />
Com as entrevistas, passamos a entender mais como<br />
uma cultura pode mudar a vida de muitas pessoas,<br />
transformando-as sempre em ex-viciados, ex-criminosos<br />
ou dando um sentido ao ócio. O engraçado foi que<br />
essa, como algumas outras entrevistas, surgiram de<br />
forma inesperada, enquanto tentávamos entender mais<br />
sobre esse universo. Caminhando entre as lojas, fomos<br />
abordadas por conta da camiseta que vestíamos, em<br />
que se lia “Jornalista por formação”.<br />
Neste mesmo rolé encontramos o telefone de um DJ na<br />
porta de uma loja. Ele procurava um back vocal. Talvez<br />
fosse um sinal, pensamos. Ligamos naquele mesmo dia<br />
e marcamos uma entrevista para o dia seguinte. Sem<br />
nunca ter andado de trem, embarcamos em vários até<br />
cruzar a cidade e chegar na Zona Oeste. Um bairro agradável<br />
se revelou aos nossos olhos, embora muito pobre<br />
e com vários barracos. A semelhança com o local onde<br />
moro foi detectada logo no início. Cenas que só podem<br />
ser vistas na periferia. Nenhuma praça inteira, nenhum<br />
centro cultural, nenhuma biblioteca e o posto de saúde<br />
mais próximo há muitos quilômetros de distância.<br />
Crianças empinando pipas, correndo pelas ruas e vielas,<br />
sempre em meio à falta de saneamento básico e de<br />
infraestrutura para abrigar diversas famílias. O som que<br />
ecoa também é o mesmo: letras de rap que relatam o<br />
cotidiano. O trabalho era incrivelmente prazeroso. Parecia<br />
festa. Em todos os cantos, parávamos para tirar uma<br />
foto, registrar tudo para botar no making of.<br />
138
142 <strong>Traficando</strong> conhecimento Concepção<br />
143<br />
Personagens como um DJ que deixou as drogas para se<br />
dedicar a arranhar os discos na Zona Oeste de Poços<br />
de Caldas que, tão logo percebeu que poderia ser feliz<br />
sem estar muito louco, recebeu um convite para tocar<br />
junto ao grupo UClanos. Também como o professor e<br />
arte-educador, Éder, que deixou os empregos com carteira<br />
assinada para ensinar break e dança de rua para<br />
as crianças da cidade, ocupando também a Fonte do<br />
Leãozinho e mantendo a tradição de unir os patrimônios<br />
materiais e imateriais da cidade.<br />
crime e de resgate me fizeram ter um objetivo: trabalhar<br />
com hip-hop e levar o projeto do livro adiante.<br />
Mesmo sem saber como, a emoção que sentia quando<br />
ouvia todas aquelas histórias que desenham a cultura<br />
como ela é, foi o que me fez ser parte integrante da cultura<br />
novamente e de uma forma muito mais ativa. Vale<br />
lembrar que isso se deu mesmo sem que eu soubesse<br />
cantar, dançar, riscar discos e tampouco grafitar.<br />
As lágrimas nos olhos de Stephanie, com 13 anos na<br />
época, me fizeram segurar o choro enquanto a entrevistava.<br />
Indo ao encontro da proposta de Éder, que era<br />
tirar as crianças e jovens das ruas, evitando que eles<br />
se envolvessem com o crime, ela me contou que optou<br />
por aprender a dançar e preencher as noites de sábado<br />
com as aulas para se ver livre das drogas e da saudade<br />
do irmão que morreu, após uma parada cardíaca provocada<br />
por uma overdose. “Meu irmão é exemplo. Eu acho<br />
que se ele fosse envolvido com hip-hop, estaria com a<br />
cabeça ocupada.”<br />
Mais uma vez senti a certeza do caminho certo pulsando<br />
no meu coração. E eu? Se não estivesse trabalhando com<br />
hip-hop e cultura, estaria fazendo o quê? Se não tivesse<br />
sido seduzida pelos livros e por uma cultura popular, o<br />
que estaria fazendo?<br />
Relatos como os de um grupo que arrecadava cada centavo<br />
para ajudar as crianças e jovens que estavam nas<br />
ruas e como espaço usavam uma sala de uma casa de<br />
repouso onde viviam idosas em fase terminal ou como<br />
as de King Nino Brown ao tentar cuidar para que o hiphop<br />
fosse retransmitido de forma certa são parte do<br />
livro e que me emocionam muito. Bem como a história<br />
de André Du Rap, que sobreviveu ao massacre do<br />
Carandiru e encontrou no hip-hop um caminho longe do
Concepção<br />
145<br />
Um grito de<br />
emergência<br />
Retornei à Poços de Caldas e Anita ficou em Mogi Mirim.<br />
Cheguei à cidade cheia de ideias e vontades para aplicar<br />
e montar projetos locais. Toda experiência em São<br />
Paulo e também em Poços me fizeram constatar que,<br />
realmente, as periferias eram tratadas como “Quartos<br />
de Despejo”, de acordo com o que relatou Carolina<br />
Maria de Jesus no primeiro livro brasileiro escrito por<br />
uma favelada. Era para lá que eram jogadas as pessoas<br />
sem renda alta, sem grandes perspectivas, analfabetas,<br />
negras, feias, e tudo aquilo que a elite não queria<br />
“sujando” a sociedade “bem organizada”.<br />
Perto disso tudo e louca de raiva, de fúria, senti o mesmo<br />
ímpeto de todos aqueles que usam o hip-hop como arma:<br />
gritar e mostrar ao mundo, de alguma maneira, o quão é<br />
cruel tratar seres humanos como lixos. Como não saberia<br />
fazer isso através de letras de rap, ou sequer cantando,<br />
como inúmeros dos grupos que entrevistávamos<br />
faziam, tampouco conseguiria dançando ou grafitando,<br />
realmente a única forma era escrever. E assim foi, me<br />
lancei a escrever tudo que vi, ouvi, vivenciei através do<br />
hip-hop para pôr no livro.<br />
Cada palavra digitada, pensada, rascunhada, foi posta<br />
ali, com todo coração, numa tentativa de dar ainda mais<br />
voz àqueles que eram calados diariamente pela fome,<br />
pelo descaso, pela falta de informação, pela falta de<br />
acesso de cultura.<br />
Descobri o hip-hop como uma ferramenta capaz de ajudar<br />
na luta diária pela sobrevivência dos guetos e foi,<br />
justamente, em cima disso que tentamos trabalhar no<br />
texto e no relatório técnico.<br />
Como um grito de dor, uma emergência. Assim descobri<br />
a existência da Cooperifa. Um sarau poético, um movimento<br />
da periferia, um local de uma energia singular e<br />
capaz de mudar tantas vidas.<br />
Surgiu na Zona Sul de São Paulo como um desespero em<br />
levar poesia e literatura até donas de casa, metalúrgicos,<br />
estudantes e cidadãos. Cidadãos de qualquer raça, sexo<br />
ou credo. Cidadãos “marginais”, que nunca haviam pego<br />
um livro ou lido uma poesia. Arte e cultura não existiam no<br />
jargão periférico de tráfico, opressão e sofrimento.<br />
Como um quilombo cultural foi criado o sarau que funciona<br />
no bar do Zé Batidão. Este movimento não poderia<br />
ficar de fora do livro e, por meio de uma apuração que<br />
me tomou bastante tempo, consegui traçar um pequeno<br />
perfil do movimento, que, mais tarde, me inspirou totalmente<br />
na criação de projetos e na forma de colocá-los<br />
em prática. Fazendo mais e pensando menos.<br />
O que mais me chamou atenção na história do sarau é<br />
que muita gente, que nunca havia pego em um livro ou<br />
sequer sabia ler e escrever tinha voltado a estudar e<br />
estava escrevendo a própria história através de reuniões<br />
semanais em um bar onde a única exigência era o silêncio<br />
em forma de prece e respeito ao poeta.<br />
Dessa maneira, verbalizar a opressão e o descaso social<br />
se transforma em valorização das lutas que moradores<br />
da periferia vivem diariamente e a Cooperifa abre<br />
144
146 <strong>Traficando</strong> conhecimento Concepção<br />
147<br />
espaço para esta realização, funcionando como a academia<br />
de letras do subúrbio. Esta ideia inspira outros<br />
saraus pelas periferias de São Paulo, a maioria em botecos,<br />
com gente simples e humilde, e que transforma<br />
todo conteúdo sofrido do dia a dia em poesia.<br />
O principal da Cooperifa é a transformação social. Gente<br />
que não sabia ler e, agora, já está escrevendo livros.<br />
Fez-me acreditar que as mudanças podiam realmente<br />
acontecer. A proximidade disso tudo com o hip-hop?<br />
Total. Descobri o Sérgio Vaz ligado à cultura marginal,<br />
à pessoas envolvidas com o hip-hop e, por conseguinte,<br />
à literatura. E por ser também uma forma de manifestação,<br />
um novo elemento da cultura.<br />
Com esta história contada de forma tão real e citada<br />
no pré-projeto do livro, um mês depois da viagem a São<br />
Paulo, Anita e eu fomos aprovadas na pré-banca e bastante<br />
elogiadas pelas professoras que analisaram o projeto.<br />
Na apresentação básica mostramos o que poderíamos<br />
contextualizar através do livro e durante a viagem<br />
constatamos o que já vinha observando há tempos. Parafraseando<br />
Mano Brown, periferia é periferia em qualquer<br />
lugar. Seja em São Paulo, em Poços de Caldas ou em qualquer<br />
outra cidade. Mudam as gírias, o sotaque e a localização<br />
geográfica, mas os moradores se assemelham da<br />
mesma forma e carecem das mesmas coisas.<br />
A falta de estudo e a desinformação acarretam diversas<br />
consequências, bem como a falta adequada de condições<br />
de vida. Os jovens aliam-se às drogas, e, por não<br />
conseguirem empregos dignos, passam para o tráfico,<br />
quando o dinheiro vem fácil e rápido. As garotas são<br />
mães muito cedo, e viram donas de casa e chefes de<br />
família muito cedo. Os moradores da quebrada também<br />
não costumam levar o estudo adiante devido às pesadas<br />
jornadas de trabalho, na maioria das vezes, em troca de
148 <strong>Traficando</strong> conhecimento Concepção<br />
149<br />
um salário mínimo. E quase sempre estão cansados ao<br />
anoitecer, quando é hora de ir para a escola.<br />
No fim do dia, os moradores da favela preferem conversar<br />
na porta de suas casas, namorar, ir a eventos próximos<br />
– a maioria de hip-hop ou samba –, igrejas e bares.<br />
Antropologicamente, todos os autores discutem isso em<br />
livros, teses e dissertações e as atitudes aqui retratadas<br />
são as mais típicas dos guetos, e deles, o país está<br />
repleto. De repente, é isso que faz com que as periferias<br />
sejam tão mágicas, mas, ao mesmo tempo, faz com o<br />
que o povo seja cada vez mais miserável, principalmente<br />
no que diz respeito à parte cultural.<br />
Desta forma, as situações de exclusão transformam-se<br />
em indignação, em um grito preso na garganta, oprimido,<br />
triste, sofrido. Um berro prestes a explodir. Os moradores<br />
dos guetos necessitam encontrar um espaço para<br />
expor toda a indignação.<br />
O hip-hop é uma destas saídas. Ele reúne manifestações<br />
culturais expressivas. É um movimento que nasceu da<br />
necessidade do povo em expressar sua arte.<br />
O livro foi, então, tomando forma e ganhando corpo. Cada<br />
fonte foi trabalhada de forma individual, e em um conjunto,<br />
constatamos, pelas histórias, que grande parte<br />
nunca foi a uma biblioteca e nem sabe onde elas ficam,<br />
uma vez que as mais próximas, ficam a quilômetros de<br />
distância, assim como as demais opções de lazer, que<br />
terminam, mais uma vez, restritas aos bares, biqueiras<br />
e televisão.<br />
Desta forma eles desenvolvem uma cultura própria, que<br />
inclui linguajar, vestimenta, comportamento. São as<br />
subculturas ou a cultura popular, visto que este povo,<br />
excluído e humilhado, ainda sente na pele a mesma coisa<br />
que os escravos. O gueto é apenas a senzala moderna e<br />
eles vendem a mão de obra por um prato de comida, ou,<br />
muitas vezes, nem isso. A dignidade fica esquecida, a<br />
identidade perdida.<br />
Vítimas dos constantes descasos governamentais, aos<br />
moradores das periferias restam apenas uma válvula<br />
de escape: a confiança em suas próprias forças. Buscar<br />
dentro deles as afirmações culturais, as ideologias e<br />
uma saída para tantos problemas sociais que os afligem.
Concepção<br />
151<br />
Citação do<br />
caminho certo<br />
Recordo-me que, durante todo processo de feitio do<br />
livro, Anita e eu comentávamos que nosso sonho era<br />
ver nosso trabalho citado em algum outro trabalho acadêmico.<br />
Apesar de todo prazer da execução queríamos<br />
também reconhecimento e se fôssemos referência em<br />
algum trabalho, ficaríamos extremamente felizes. Eis<br />
que já quase no mês de outubro fui procurada, na internet,<br />
por uma garota de Goiânia-GO, conhecida como<br />
Kaká Soul, que estava se formando em Relações Públicas<br />
e fazendo uma monografia acompanhada de um<br />
documentário como TCC.<br />
Ela queria algumas referências. Tornamos-nos amigas,<br />
trocamos livros, filmes e todos os materiais que tínhamos<br />
sobre hip-hop. De tão parecidas, passamos a nos<br />
tratar como “mana”, como se fôssemos, realmente,<br />
irmãs perdidas e mesmo tanto tempo depois, permanecemos<br />
irmãs de cultura, de hip-hop, de afinidade popular.<br />
Como o trabalho dela seria apresentado somente em<br />
dezembro, deu tempo de enviar o nosso pronto a ela e<br />
vê-lo citado nas páginas da monografia que ela escreveu.<br />
Emoção completa. Lembro-me, também, que pela internet<br />
nos falávamos todos os dias e trocávamos ideais<br />
sobre projetos que poderíamos montar nas periferias<br />
que vivíamos. Apesar de algumas poucas diferenças de<br />
costumes, elaboramos algumas ações, como oficinas.<br />
Kaká foi um anjo na minha vida. Com valores bem parecidos,<br />
me mandava mensagens dizendo para me acalmar<br />
em meio ao caos que a minha vida estava, ela tinha certeza<br />
que daria tudo certo. Aquelas simples mensagens me<br />
faziam um bem enorme. Saber que meu trabalho poderia<br />
ajudá-la me fazia pensar que ele não era, enfim, tão ruim.<br />
Ela, como dançarina, reuniria os amigos e daria aulas<br />
para crianças carentes, além de trabalhar a parte do<br />
conhecimento, da leitura, das bibliotecas comunitárias.<br />
Eu deveria fazer o mesmo aqui, assim que 2007 invadisse<br />
o calendário, e fomos seguindo, trabalhando, estudando<br />
e registrando um pouco mais sobre a cultura marginal.<br />
E assim, diante de vários problemas financeiros, a livraria<br />
em que eu trabalhava estava prestas a falir. A luz foi<br />
cortada. Poucos livros preenchiam as prateleiras e eu<br />
estava, há um bom tempo, sem receber meu salário.<br />
Na hora do almoço saía para procurar outros empregos.<br />
Ir para a faculdade diariamente já se tornara insuportável,<br />
afinal, aguentar viajar durante quatro anos<br />
seguidos em vans e chegar em casa super tarde não<br />
era mais tão divertido.<br />
Escrever o livro era prioridade e a falta de tempo começava<br />
a pesar. Sem energia elétrica na livraria – ou seja,<br />
não podia usar o computador – e sem muito que fazer,<br />
escrevia em folhas de caderno e, como era impossível<br />
trabalhar até às 18h20, por conta da falta de luz, saía<br />
mais cedo, ia até uma lan house e digitava o que já tinha<br />
escrito a mão. Trabalho dobrado. Por várias vezes pensei<br />
que não daria conta de terminar no prazo. Fiquei três<br />
noites inteiras acordada acompanhando a diagramação<br />
– na companhia de Anita – e fiz os últimos acertos, como<br />
150
152 <strong>Traficando</strong> conhecimento Concepção<br />
153<br />
introdução e legendas, na última hora. O diagramador,<br />
publicitário e amigo, Guilherme Dore, que foi fundamental<br />
durante toda minha trajetória profissional e sempre me<br />
deu muita força na área pessoal, também, teve a disposição<br />
de ficar acordado nas madrugadas, mesmo tendo<br />
de trabalhar no outro dia, para diagramar o livro comigo,<br />
além de toda paciência quando resolvia mudar algum<br />
detalhe e bagunçava toda ordem das páginas.<br />
Com todo profissionalismo e amizade, ele conseguiu terminar<br />
a diagramação, e começamos uma corrida contra<br />
o tempo para encontrar uma gráfica e imprimir o trabalho,<br />
antes do prazo final de entrega. Na última noite, com<br />
o livro quase pronto, descobri que não tinha ainda um<br />
texto para a orelha e tampouco um texto de abertura.<br />
Às pressas, mandei um e-mail para Mirella Domenich,<br />
autora do livro “Hip-Hop - a periferia grita”, que nos inspirou<br />
muito, e pedi uma orelha. Acho que meu tom desesperado<br />
e urgente surtiu efeito. Meia hora depois ela me<br />
mandou uma orelha tão precisa que a sensação era de<br />
que ela havia lido o livro inteiro naquela meia hora, realmente.<br />
Quanto ao texto de abertura, sentei, peguei uma<br />
folha de rascunho e pensei: o que sair aqui será o texto.<br />
Não dá mais tempo de mudar. E assim foi:<br />
HIP<br />
Vem ardendo, sangrando e machucando. É o berro que<br />
emana dos morros, guetos e favelas. Vem dos locais mais<br />
pobres, o grito desesperado que vem da periferia. Chega<br />
ao asfalto carregado de protesto, indignação, carência,<br />
vontade, luta e marginalidade.<br />
A força que vem do lado negro, pobre e inferiorizado e<br />
atinge toda a sociedade com sua forma, sua arte e sua<br />
cor. O nome dela é hip-hop e está aí para fazer barulho,<br />
debater as questões controversas de uma sociedade que<br />
se finge de surda para este grito de protesto.
154 <strong>Traficando</strong> conhecimento Concepção<br />
155<br />
Hip-hop é um terno que vai além. Significa cultura, mas<br />
também significa movimento, arte, expressão, paz, amor,<br />
soluções, lutas e igualdade de direitos.<br />
O hip-hop é ilustrado por personagens sobreviventes de<br />
guerra. Uma guerra diária pela vida. Ele acolhe e tenta<br />
proteger os que já nascem condenados à morte. Personagens<br />
reais, cercados pela miséria, fome, desinformação,<br />
violência, crueldade, desemprego, drogas, descaso,<br />
desabrigo, armas de fogo, tráfico e desrespeito. Em meio<br />
a tantas armas que eles podem escolher no jogo real do<br />
“matar ou morrer”, o hip-hop escolhe a maior de todas<br />
as armas: a cultura. Uma cultura marginal, mas que não<br />
é propriedade dos grandes, não é da elite nem da burguesia.<br />
É a cultura de quem foi capaz de criá-la e levá-la<br />
adiante. É a cultura das ruas, do povo.<br />
para preparar a apresentação, as roupas, a decoração.<br />
Finalmente, consegui fazer um acordo na livraria e ter<br />
pouco mais de uma semana para finalizar o trabalho.<br />
Lembro-me desta época como a única da minha vida em<br />
que eu não estava lendo absolutamente nada, apenas<br />
escrevendo. Não havia tempo. Era preparar o material da<br />
apresentação. Revisar. Fazer os convites. Revisar. Ajustar<br />
o detalhes. Revisar. E tentar controlar a ansiedade<br />
até o dia 31 de outubro de 2006, quando apresentaríamos<br />
o trabalho. Seria o último de toda turma. Fecharíamos<br />
as apresentações daquele ano. Anita se tornou jornalista.<br />
Eu me tornei jornalista!<br />
O hip-hop não foi inventado, ele nasceu naturalmente no<br />
gueto, recebeu a forma dos negros e excluídos e, hoje,<br />
auxilia o povo a encontrar uma identidade. Esta cultura<br />
marginal traz de volta os sonhos daqueles que carregam<br />
o sofrimento como estilo de vida. Ela eleva a autoestima<br />
daqueles que antes eram forjados de estorvo pela<br />
sociedade.<br />
Através de expressões artísticas intensas, o povo da periferia<br />
encontrou no hip-hop a vontade de viver, a motivação<br />
e a consciência de cidadania. O mínimo que o hip-hop propõe<br />
com suas manifestações e expressões que mudam e<br />
desenvolvem-se a cada dia é um olhar livre de preconceitos.<br />
Livro diagramado. Às 18h40 consegui pegá-lo na gráfica<br />
e estava sem a última página! “Ai meu Deus, serei reprovada”,<br />
pensei. E, desesperada, fizemos uma gambiarra na<br />
própria gráfica e deu certo, imprimimos a última página,<br />
que amarrava todo o texto, concluía todo o livro e o trabalho<br />
de mais de um ano.<br />
Uma hora depois e ele estava entregue. Faltavam apenas<br />
alguns dias para a banca final e era o tempo que tínhamos
Concepção<br />
157<br />
Do povo para o<br />
povo: “Hip-Hop – A<br />
Cultura Marginal”<br />
São 22h. Preparo-me para dormir. Pela primeira vez na<br />
vida tomo um calmante. Na verdade é um remédio homeopático,<br />
mas que eu engulo com fé e pensando que vai<br />
me fazer dormir mais tranquila. Esta é a véspera da<br />
apresentação do TCC. Tento pensar que está tudo certo.<br />
Que ninguém na banca sabe mais sobre o tema do que<br />
nós – Anita e eu – afinal passamos o último ano inteiro<br />
nos dedicando a ele.<br />
Durmo a noite toda, mas acordo cedo. Seria querer<br />
demais dormir até tarde. Ainda faltam algumas coisas.<br />
Como pouco. Quando fico ansiosa não consigo comer<br />
muito. Ainda falta um violão para o grupo que vai tocar<br />
e dançar como show durante a apresentação. Ligo para<br />
Anita. Ligo para todas as pessoas que conheço. Entro<br />
em desespero e, por fim, consigo três violões.<br />
Por volta de 15h, saímos de casa. O casal Lu Afri e Suburbano,<br />
que integram o UClanos vão comigo e mais uma<br />
amiga. Minha mãe vai dirigindo. Meu pai fica em casa para<br />
ir mais tarde, levando o outro integrante que sai do serviço<br />
às 18h. Ele vai matar aula para estar na apresentação.<br />
Chegamos a São João. Anita chega logo em seguida.<br />
Montamos todo nosso cenário. Erguemos nosso painel<br />
grafitado com o nome do livro e em poucos minutos, chamamos<br />
atenção de quem passava pelo local. Pelo menos<br />
no campus, falar de hip-hop de forma tão explícita era<br />
novidade. Uma boa sacada do coordenador do grupo foi<br />
colocar nossa apresentação na sequência da apresentação<br />
de uma colega de classe que produziu um livroreportagem<br />
sobre congadas na região de Poços de Caldas.<br />
Ambos os trabalhos traziam cultura popular como<br />
tema. Ambas as culturas produzidas do povo para o povo<br />
e congregando os negros, excluídos socialmente.<br />
Após tudo decorado, subimos para o banheiro mais sossegado<br />
da faculdade para tomar um banho de gato, trocar<br />
de roupa, passar maquiagem e ensaiar uma última<br />
vez toda a apresentação. A ansiedade era quase palpável.<br />
Sentimentos de alívio, medo e conquista eram visíveis<br />
no nosso comportamento.<br />
Um último ensaio. Quem fala o quê. Quem dá boa noite<br />
para a banca. 21h. Hora de encarar o auditório, que<br />
estava movimentado por conta do intervalo, do término<br />
da primeira apresentação e de quem aguardava a nossa.<br />
Vestidas como os hip-hoppers, nos posicionamos, colocamos<br />
o CD com a apresentação no computador e nos preparamos<br />
para aquele que seria, sem dúvida, o momento<br />
mais importante de toda nossa trajetória dentro da universidade.<br />
Ainda muito nervosas, demos início a apresentação<br />
e, aos poucos, conseguimos nos soltar, entrar<br />
no tema e adentrar novamente no mundo que vivemos<br />
durante todo último ano, além de eu ter vivido durante<br />
um bom tempo na adolescência, diariamente.<br />
Conforme fui falando, senti dentro de mim o desejo de<br />
realmente ser parte de tudo aquilo, de continuar pesquisando,<br />
de permanecer estudando a cultura. Contamos<br />
de forma resumida toda a trajetória, como o livro foi concebido,<br />
pesquisado, escrito e formatado.<br />
156
158 <strong>Traficando</strong> conhecimento Concepção<br />
159
160 <strong>Traficando</strong> conhecimento Concepção<br />
161
164 <strong>Traficando</strong> conhecimento Concepção<br />
165<br />
Finalizada a apresentação, as considerações da banca.<br />
Algumas pequenas observações e pedidos de esclarecimentos<br />
sobre trechos do livro vieram de uma professora<br />
que, durante todo o tempo também, nos apoiou, direta e<br />
indiretamente, sobre a escolha do tema. Da outra professora,<br />
a antropóloga Rosa Helena, apenas uma pergunta.<br />
A que deu início a todo este capítulo e que, talvez,<br />
deu sentido a todos os projetos envolvendo literatura e<br />
conhecimento que existem hoje.<br />
A banca pediu que nos retirássemos para decidirem a<br />
nota. Por normas da universidade, as notas não poderiam<br />
mais ser divulgadas para os alunos durante a<br />
banca, somente após o fechamento oficial do ano letivo.<br />
Fim. A apresentação terminou. Fomos aprovadas. Hora<br />
dos parabéns, dos abraços, dos cumprimentos, de tirar<br />
as últimas fotos da turma toda reunida. Estávamos<br />
todos formados. Agora seria a vida profissional. O mercado<br />
de trabalho. O mundo lá fora.<br />
Posei para as fotos e cumprimentei todos. Com a certeza<br />
de que continuaria trabalhando com hip-hop e ansiosa<br />
para pôr todas as minhas ideias em prática. Ainda não<br />
sabia como faria para executar tudo o que eu tinha vontade,<br />
mas a certeza na alma me mantinha apaixonada e<br />
ligada à cultura negra, ao hip-hop e a literatura.<br />
Já não cabia mais em mim de tanta felicidade por ter<br />
feito a apresentação, por ter chegado ao fim desta etapa<br />
e por saber que eu continuaria. Abracei meus pais e os<br />
agradeci, por terem dividido comigo os quatro anos da<br />
faculdade e por terem apresentado o trabalho ao meu<br />
lado, além de terem passado várias noites perguntando<br />
o que poderiam fazer para me ajudar a terminar o livro.<br />
Claro que fizeram por mim muito mais, começando pelo<br />
sacrifício em poupar durante dezessete anos e depositar<br />
para que eu pudesse cursar a faculdade, por terem<br />
me incentivado a escrever, a ler, a ser a pessoa que sou e<br />
por acreditar naquela que eu gostaria de me tornar.<br />
Por fim, respondendo a pergunta da professora: o livro<br />
mudou tudo e na vida ficou a vontade de mudar, de fazer<br />
diferente, de construir projetos, de ajudar quem nos<br />
ajudou, de abrir nosso coração e nossa mente cheia de<br />
ideias para aqueles que abriram suas vidas e portas de<br />
suas casas para nos receber e nos deixaram conhecer<br />
um pouco mais do hip-hop e desta cultura marginalizada.<br />
O choro de Rosa foi justificado quando eu e Anita dissemos,<br />
em coro, que nossa vontade era fazer pós ou mestrado<br />
em antropologia, para dar sequência. Pude então<br />
usar a frase que mais me marcou durante toda a trajetória:<br />
o hip-hop também salvou a minha vida.<br />
Hora de voltar para Poços de Caldas. Suburbano me<br />
olha nos olhos e dispara: “Foi a melhor apresentação<br />
que já fiz com o UClanos.” Emocionada, pergunto:<br />
“Por quê?” E ele: “Porque antes de tudo foi trabalhado<br />
o conhecimento. Você explicou o que é a cultura, sem<br />
falar que nos apresentou como os tios do hip-hop. Foi<br />
muito gratificante”, disse.
166 <strong>Traficando</strong> conhecimento Concepção<br />
167
No ar: o hip-hop<br />
Cap.04<br />
No ar: o hip-hop
No ar: o hip-hop<br />
173<br />
— Sim. Claro que vou. Que horas preciso chegar?<br />
Às 10h da manhã de sábado, subi a escadaria que me<br />
levaria até o estúdio AM da emissora. Aline foi uma<br />
colega de classe, também fã do hip-hop, que, inclusive,<br />
usou alguns dos personagens do livro para uma matéria<br />
do programa de televisão que o grupo dela produziu para<br />
o TCC. Ao chegar no local, me lembrei do dia em que fui<br />
lá pedir emprego ainda no segundo ano e recebi um não.<br />
Pensei que, realmente, o mundo gira.<br />
A tênue linha entre o crime e os cidadãos de bem é cruzada<br />
diariamente por milhões de jovens que vivem nos<br />
guetos de todo país. Na minha quebrada não é diferente<br />
e o livro “Hip-Hop – A Cultura Marginal” revelou-se uma<br />
arma. Diferente das empunhadas pelos soldados do<br />
tráfico, a munição veio em forma de palavras, que passaram<br />
a chamar a atenção dos jovens em oficinas promovidas<br />
nas escolas, centros comunitários e sedes de<br />
Organizações Não-Governamentais (ONGs).<br />
Assim, o desejo de voltar à cultura marginal e levá-la<br />
adiante se tornou realidade. Não foi possível iniciar pós<br />
ou mestrado em antropologia, mas dar sequência no que<br />
tinha vontade, foi algo vital.<br />
Meu telefone toca.<br />
— Alô?<br />
— Oi Jéssica. Aqui é Aline Bertolli. Você pode participar<br />
do programa da Tereza no sábado de manhã aqui na Rádio<br />
Difusora, onde trabalho?<br />
— Posso. Mas para falar o quê?<br />
— Sobre o seu livro.<br />
Pensei um pouco. Um friozinho na barriga e na espinha<br />
me fizeram hesitar por um breve momento. Claro que eu<br />
iria participar. Uma primeira oportunidade oficial para<br />
divulgar o livro. Não teria porque recusar.<br />
Uma senhora muito simpática me recebeu e disse que<br />
seria mais um bate-papo o que não me tranquilizou nem<br />
um pouco. Não por falar no rádio ou num microfone,<br />
porque isso, eu adorava, mas por saber que a emissora<br />
AM era uma das mais ouvidas na região, principalmente<br />
naquele horário e eu falaria sobre algo relativamente<br />
novo até então para aquele público.<br />
Com uns três copinhos de água na minha frente, o operador<br />
da mesa de som me deu bom dia e pediu para ver o<br />
livro. O sorriso no rosto dele me deixou mais confortável.<br />
Ele aprovou a capa e o design. Meio caminho andado.<br />
Três. Dois. Um. No ar. A entrevista começou e ela me apresentou<br />
como uma jovem, recém-formada, com um livro<br />
em mãos e me perguntou tudo sobre o trabalho. Pela primeira<br />
vez tive a oportunidade de expressar, de forma tão<br />
simples – pelo meio de comunicação mais democrático –<br />
a emoção que senti ao conhecer a cultura, ao me envolver,<br />
ao me distanciar e ao voltar, para fazer o livro.<br />
Narrei várias aventuras em busca do produto final e li<br />
alguns trechos, acompanhada por ela, que de forma<br />
muito sagaz, se declarou uma nova fã do movimento e<br />
porque não dizer, uma nova adepta, segundo ela própria.<br />
Quando recebi o convite, imaginei que duras horas em<br />
uma rádio era tempo demais. A leveza da conversa me<br />
172
174 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
175<br />
fez perceber que o tempo foi ínfimo perto de tudo que<br />
poderia ser dito. Para finalizar, li o texto de introdução e<br />
ela fez questão de ler a poesia “Jorginho” de Sérgio Vaz,<br />
que usei para destacar a Literatura Marginal no livro.<br />
Ainda naquela manhã, quando deixei a rádio recebi vários<br />
telefonemas de conhecidos e muita gente que sequer<br />
sabia que estava envolvida com o movimento. Vibrei com<br />
a repercussão e me senti realizada em poder, de alguma<br />
maneira, levar o conhecimento através do hip-hop até<br />
mesmo para quem não sabia ler ou escrever. Minha paixão<br />
pelo rádio começou a crescer, também, neste dia.
No ar: o hip-hop<br />
177<br />
Agora sim,<br />
profissão repórter!<br />
Novamente a busca por um emprego com carteira assinada<br />
fez parte da minha rotina, entretanto, com muito<br />
mais seriedade. Agora eu estava formada e precisava<br />
encontrar algo na minha área para não enlouquecer.<br />
Saí pela cidade munida com currículos e não me limitei.<br />
Embora minha vontade fosse trabalhar com jornalismo,<br />
procurei emprego em lojas, supermercados e restaurantes.<br />
A única coisa que não queria era voltar a viver de freelas<br />
e não ter estabilidade.<br />
Com o vento soprando a favor, pelo menos desta vez, consegui<br />
um emprego na segunda semana do ano. Após um<br />
teste de três dias, garanti a vaga para ganhar um pouco<br />
mais que um salário mínimo e trabalhar de segunda a<br />
sábado com horário de entrada e sem horário de saída.<br />
Aceitei, pois era melhor do que nada, sem falar na chance<br />
de aprendizado. Pela primeira vez vi o livro me proporcionara<br />
um retorno. Durante a entrevista, mostrei o que tinha<br />
produzido de concreto e, no teste, a experiência com as<br />
reportagens do livro foi fundamental para o desenvolvimento<br />
das reportagens para o jornal.<br />
Fui contratada no dia 16 de janeiro de 2007. A partir<br />
daí, com a rotina bastante mudada, precisei encontrar<br />
algum tempo e forma de divulgar o livro, de implantar os<br />
projetos na minha região, enfim, de fazer tudo aquilo que<br />
havia prometido a mim mesma.<br />
Logo de cara, marquei um estilo próprio, sempre aproximado<br />
do jornalismo literário, optava sempre pelas pautas<br />
mais humanas e que lidavam com comportamento,<br />
regiões, problemas periféricos. Na primeira reunião de<br />
pauta, sugeri uma série de reportagens nas comunidades.<br />
Dispus-me a visitar um bairro por semana e captar<br />
todas as necessidades em cenas, palavras, expressões<br />
e imagens.<br />
Com um patrão durão e elitista, fiquei surpresa ao ver que<br />
ele havia apoiado a ideia e colocado a minha disposição o<br />
carro do jornal ou, em último caso o motoqueiro-faz-detudo,<br />
que também era fotógrafo. Iniciei a série pela Zona<br />
Leste, do outro lado de onde eu residia, e só para confirmar<br />
o que já sabia, os problemas eram os mesmos.<br />
Crianças soltas pelas ruas sem uma quadra, parque ou<br />
centro de lazer decente, nenhuma biblioteca e apenas<br />
um posto de saúde em total deficiência. Isso sem falar<br />
na pavimentação, inexistente em 80% das ruas. Com<br />
material suficiente para encher uma página de jornal,<br />
batizei a série que acabava de ser lançada como “JP<br />
Comunidade”, lembrando o nome do Jornal de Poços de<br />
Caldas e dando voz aos moradores das quebradas.<br />
Ficou combinado que as matérias sairíam toda quintafeira<br />
e minhas quartas ficaram lotadas. Passei a receber<br />
ligações de vários outros bairros que pediam a visita<br />
da reportagem no local. Na segunda semana visitei<br />
um bairro na Zona Sul. Não o que vivo, mas um vizinho<br />
e assim por diante, fui dando voz aos moradores que<br />
sofrem com a dureza da vida, o mau cheiro dos esgotos,<br />
a falta de asfalto, de saúde e do básico.<br />
Entre uma visita e outra aos bairros, durante as entrevistas<br />
com moradores, por diversas vezes, me deparei<br />
com adeptos da cultura hip-hop e lamentei não ter<br />
176
178 <strong>Traficando</strong> conhecimento<br />
dinheiro suficiente para fazer diversas cópias do livro e<br />
distribuir entre eles. Foi aí que a internet entrou como<br />
peça fundamental para a divulgação do trabalho e para a<br />
emissão de um outro tipo de voz: a que canta as mazelas<br />
através do rap, que grita as injustiças nas cores que tingem<br />
o muro e que relata a dureza cotidiana nas palavras<br />
das poesias marginais.
No ar: o hip-hop<br />
181<br />
Salvando vidas<br />
— Como assim?<br />
— Ela morreu esta noite. Teve uma parada cardíaca. Ainda<br />
não sabemos direito. Será enterrada em Mogi Mirim, mas<br />
ainda não sei o horário do enterro.<br />
Tentei desligar o mais rápido possível.<br />
Ainda não são 8h da manhã e me reviro na cama ao<br />
ouvir o toque do telefone. Terça-feira. É feriado. Pelo<br />
menos até às 18h, quando vou sair de casa para cobrir<br />
o desfile das Escolas de Samba campeãs do Carnaval<br />
de Poços de Caldas.<br />
Desejo que não seja para mim. Tinha planos de acordar<br />
umas 10h e dar sequência em um trabalho de decupagem<br />
de entrevistas para uma prima da Anita. Ganharia<br />
um dinheiro legal e, como tinha uma boa experiência com<br />
isso, topei fazer o freela. Fui interrompida pela minha<br />
tentativa de voltar ao sono. A ligação era para mim. Do<br />
outro lado da linha era a mãe da Dani, a moça para quem<br />
eu estava fazendo o trabalho. Estranhei.<br />
— Alô?<br />
— Jéssica, desculpe te ligar tão cedo. É que tenho uma<br />
notícia não muito boa para te dar...<br />
Será que ela vai cancelar o trabalho? Foi meu único pensamento<br />
naquela hora, ainda entre o sono e o despertar.<br />
— É que a Nitinha se foi...<br />
Era assim que eles chamavam a Anita. Tomei um susto e<br />
me obriguei a raciocinar.<br />
Como a minha amiga, uma das pessoas mais importantes<br />
da minha vida, poderia ter morrido? Ela tinha apenas<br />
25 anos, se formara oficialmente há apenas 15 dias<br />
e tínhamos o livro e diversos outros projetos para cuidar.<br />
Sem falar que ela começaria um emprego novo no<br />
dia seguinte. Se eu não estivesse trabalhando, estaria<br />
passando o Carnaval com ela.<br />
Como ela estava morta? E todos os nossos sonhos, projetos,<br />
planos? E as vontades dela, os pensamentos, o<br />
talento para a escrita? Como eu seguiria sozinha? Éramos<br />
amigas desde o primeiro dia de aula, quando tomamos<br />
o trote da faculdade juntas.<br />
Consegui pensar tudo isso enquanto desligava o telefone,<br />
dava a notícia ao meu pai e começava a chorar de forma<br />
descontrolada. Quando tinha nove anos, uma amiga<br />
minha, que na época tinha sete, morreu atropelada e a<br />
dor foi terrível. Conhecia a dor de perder uma pessoa tão<br />
querida e tão próxima. Apesar de todas as nossas brigas e<br />
arranca-rabos diários, éramos amigas mesmo. O que faria<br />
sem ela? Como prosseguiria com o livro, com os ideais de<br />
criar projetos sociais e jornalísticos?<br />
Tentei responder tudo isso e chorei durante meses,<br />
todos os dias. No mesmo momento, um amargo terrível<br />
me subiu do estômago à boca e me lembrei da frase que<br />
mais ouvi durante toda a trajetória: o hip-hop salvou a<br />
minha vida. Infelizmente, não salvou a vida da Anita.<br />
Talvez não a tenha cativado com tanta força, como me<br />
cativou e salvou. Como atuou na vida de tantas outras<br />
pessoas de quem colhi depoimentos ou convivi.<br />
180
182 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
183<br />
Não acreditei que ela estivesse morta. Durante muito<br />
tempo fiquei em estado de negação e quando soube a<br />
causa, me senti uma comunicadora muito impotente.<br />
Diante de tantas informações, como ela poderia ter morrido<br />
inalado gás propano butano de uma daquelas buzinas<br />
barulhentas usadas durante o Carnaval?<br />
Ouvi relatos de que o gás, quando inalado, provoca um<br />
barato ao estilo do lança-perfume, entretanto, com riscos<br />
imensos, sendo que, um deles leva, a pessoa à morte.<br />
Lancei-me em campanhas sobre o assunto, fiz matéria<br />
para o jornal, procurei entender e orientar as pessoas. Até<br />
a data — 19 de fevereiro de 2007 — cinco pessoas, contando<br />
com a Anita, haviam morrido da mesma maneira<br />
no país. Vi ainda algumas matérias televisivas que divulgaram<br />
o caso, os perigos e tudo mais, mas as notícias de<br />
morte pela mesma causa continuam chegando.<br />
Durante muitas noites, que passei em claro tentando<br />
entender como faria para seguir adiante, sozinha, sem<br />
ela para me dar conselhos sobre como poderia enriquecer<br />
uma matéria, um título. Sem ela para ouvir minhas<br />
histórias pessoais, compartilhar os raps recém-lançados,<br />
tirar fotos dos grafites pelas cidades afora, divulgar<br />
o livro, me perguntei como poderia usar o hip-hop e a cultura<br />
marginal para impedir que mais pessoas morressem<br />
de uma forma tão estúpida. Questionei-me por que tantas<br />
pessoas morrem e nós perdemos a batalha da vida<br />
para o mundo das drogas. Não compreendi como ela,<br />
uma jornalista com um livro tão rico sobre uma cultura<br />
marginal, pôde esquecer todo conhecimento e embarcar<br />
num prazer momentâneo que lhe roubou a existência.<br />
Ainda procuro a resposta, mas me consolei por saber que<br />
ainda tenho a cultura onde posso me amparar e também<br />
desenvolver tudo que me faz doer a alma. Naquela mesma<br />
época, precisei imprimir alguns poucos exemplares do<br />
livro e não sabia como fazer. Ele não era mais da forma<br />
como concebemos. Faltava um pedaço. No livro, na minha<br />
vida, na da família dela e nas minhas lembranças da vida<br />
universitária, que eram só nossas e nunca mais puderam<br />
ser compartilhadas.<br />
Resolvi escrever um texto para ela. Publiquei no jornal<br />
onde trabalhava, no jornal de Serra Negra, cidade onde<br />
ela morreu e resolvi que seria uma espécie de dedicatória<br />
no livro. As pessoas que receberam a segunda remessa<br />
dos exemplares puderam conhecer um pouco do que ela<br />
representou para mim. Senti, novamente, o meu rosto<br />
molhado pelo meu choro. Senti o hip-hop chorando por<br />
ter perdido mais uma pessoa para o mundo das drogas<br />
e mais uma vez foi ele que me salvou, que deu rumo e<br />
sentido a minha vida. Foi nas manifestações artísticas e<br />
culturais que senti força para seguir adiante.<br />
Por que ela se foi?<br />
“Ela tinha acabado de se formar, cheia de vida, cheia<br />
de planos, cheia de sonhos. Tudo era perfeito: família,<br />
amigos, ia começar a trabalhar naquela semana.<br />
Aconteceu, injustamente, mas aconteceu. Fazer o quê?<br />
Ela se foi, e como diz a música, cedo demais. Ela não<br />
poderia ir assim, sem dizer adeus, sem escrever os livros<br />
que queria, sem conhecer os lugares que havia prometido,<br />
sem realizar tudo que pretendia. Ela simplesmente<br />
não poderia deixar para trás tantos sonhos... Mas deixou!<br />
Por mais que tentemos explicar a vida, ela tem seus<br />
mistérios que só o outro lado pode nos fazer entender.<br />
Quero me lembrar de uma menina de olhos azuis, que<br />
me olhava nos olhos quando falava, que ria de tudo, que<br />
me abraçava quando as coisas não estavam bem, que<br />
me passava cola nas provas e que, assim como eu, tinha<br />
um sonho: ser jornalista.
184 <strong>Traficando</strong> conhecimento<br />
Vou me lembrar eternamente de uma amiga de verdade<br />
e de quatro longos anos de cumplicidade dividida. Vou<br />
me lembrar da gente brigando e discutindo sempre,<br />
mas sem sair uma do lado da outra. Nunca nos abandonamos.<br />
Quero me recordar da melhor amiga que fiz<br />
naquela faculdade, da grande pessoa que ela foi. Uma<br />
menina corajosa, sonhadora, idealizadora, que, um dia,<br />
sonhou com uma profissão que pudesse mudar algo e<br />
deu o melhor de si por ela. Vou sempre me lembrar de<br />
uma menina que me ensinou muito, não só profissionalmente,<br />
mas sobre a vida.<br />
Sempre terei no coração a lembrança de uma pessoa<br />
que lutou pelo hip-hop, “correu pelo certo” e que,<br />
mesmo num curto período de tempo, fez história, como<br />
grande jornalista que foi.<br />
Anita, aqui não dá espaço para eu citar todas as coisas<br />
boas que você representa, tudo que a gente viveu e<br />
nem cabe em palavras o quanto eu te amo, os grandes<br />
momentos que vivemos, as loucuras que dividimos e<br />
tudo que construímos.<br />
Tá doendo muito não poder mais dizer o quanto eu te amo,<br />
saber que nunca mais vou ouvir sua voz me xingando ou<br />
brigando comigo, saber que nunca mais vou te fazer ouvir<br />
um rap diferente, ou tirar uma foto em um grafite. Saber<br />
que nunca mais vou te pedir conselhos, contar meus<br />
sonhos, discutir os caminhos do hip-hop ou planejar um<br />
mundo melhor e mais humano.<br />
Como você gostava de ser chamada e me chamava:<br />
“Kbça, o hip-hop chora por você e sente sua falta. Desculpe<br />
por não ter conseguido te impedir de ir embora,<br />
também acho que você se foi cedo demais. Tô com saudade<br />
e tá doendo muito. Vai com os anjos, vai em paz.”<br />
Valeu a pena!!!
No ar: o hip-hop<br />
187<br />
Blog<br />
Assim como a dureza do pão que alimenta milhares de<br />
famílias nas periferias do Brasil, a vida também é rígida<br />
e não para. Mesmo com muita dor e saudade da Anita,<br />
deveria prosseguir e prometi a mim mesma que faria<br />
tudo que pudesse para divulgar nosso trabalho.<br />
Preciso de um nome para um blog. Foi o que pensei ao<br />
perceber que não poderia usar meu espaço – diário virtual<br />
– pessoal para propagar o livro. Optei por Cultura<br />
Marginal. Soava tão semelhante ao livro e dava espaço<br />
também a quem não era necessariamente ligado ao<br />
hip-hop. Passei a escrever textos quase diários sobre<br />
os assuntos que via, lia e ouvia falar, mas, sempre, com<br />
um toque de opinião, impossível no meu trabalho como<br />
repórter no Jornal de Poços de Caldas.<br />
Como já havia mantido blogs na internet, mas nem sempre<br />
sobre o assunto, não foi tão difícil divulgar e encontrar<br />
um público-alvo específico. Ao mesmo tempo, descobri<br />
o site “Leia Livro”, mantido pela Secretaria de<br />
Estado de Cultura de São Paulo, em que um programa de<br />
incentivo à leitura chamou muito a minha atenção.<br />
O leitor poderia enviar uma resenha de algum livro e se<br />
esta fosse inédita e bacana, poderia se tornar um boletim<br />
de rádio, divulgado em algumas emissoras conveniadas.<br />
O prêmio era um livro novo, enviado gratuitamente pelo<br />
correio ao vencedor.<br />
Resolvi participar e, ao resenhar o livro “Crack – o caminho<br />
das pedras”, de Marco Antônio Uchôa, simplesmente<br />
para ver se seria publicado, ganhei um livro novo.<br />
O texto se tornou um boletim. Inspirada, resolvi divulgar<br />
o programa por meio dos meus amigos que gostavam<br />
de ler e, também, pelo blog. Encontrei também no<br />
site o escritor Sérgio Vaz, fundador da Cooperifa, e que,<br />
durante o TCC, me inspirou muito. Entre os textos dele<br />
e de outros escritores, fui desenhando, mentalmente, o<br />
que gostaria de criar em Poços.<br />
Outras resenhas surgiram e me fizeram ganhar mais livros<br />
novos e inéditos. Era uma chance de ler e aprender mais<br />
sobre novos assuntos também. De presente, dei o livro a<br />
alguns conhecidos e ganhei um maior ainda. Uma resenha<br />
sobre a minha obra publicada no “Leia Livro”.<br />
Confira, abaixo, o que foi dito sobre meu trabalho naquela<br />
época:<br />
Hip-Hop, esta cultura marginal<br />
por Gabriel Barbosa Machado (ator)<br />
“Paz,amor, união e diversão”, essa é a proposta do livro<br />
“Hip-Hop – A Cultura Marginal”, que é, o tempo todo, fiel<br />
à história do hip-hop no Brasil e no mundo.<br />
Com uma linguagem jornalística das grandes reportagens,<br />
clara, doce, dinâmica, eficiente, coloquial e informativa,<br />
marcada por histórias singulares com uma riqueza de<br />
dados surpreendente. Definitivamente é um livro que<br />
traz o retrato de uma cultura urbana, emergente das<br />
classes populares das metrópoles. Uma verdadeira aula<br />
de hip-hop, que já começa no título, nos fazendo questionar,<br />
que cultura é essa? Que marginal é esse?<br />
186
188 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
189<br />
É um livro gostoso de ler, com conteúdos específicos, poesias,<br />
histórias e curiosidades únicas. Um material que é,<br />
com certeza, um registro histórico-cultural, daquele que<br />
é o maior movimento social dos últimos 30 anos. Esta<br />
obra, contribui, inegavelmente para dar mais visibilidade<br />
a uma cultura que carrega em sua face, o olhar do preconceito,<br />
da ignorância, da desigualdade e da exclusão a<br />
partir daqueles que desconhecem, rotulam ou ignoram.<br />
a um pedido mútuo de desculpas e nos tornamos amigos.<br />
Trocávamos mensagens diárias a respeito da cultura, dos<br />
nossos projetos e de nossas vontades.<br />
Afirmo que é louvável a produção das jornalistas que se<br />
lançaram a campo para registrar a voz de um movimento,<br />
ritmo e cultura, certificando que, mesmo numa forma de<br />
deficiência, a universidade ainda forma seres pensantes,<br />
que estão à frente na análise das manifestações culturais<br />
e fenômenos sociais, muito antes do que qualquer<br />
meio de comunicação. Elas dizem assim, no capítulo inicial:<br />
“Vem ardendo, sangrando e machucando. É o berro<br />
que emana dos morros, guetos e favelas. Vem dos locais<br />
mais pobres, o grito desesperado de quem vem da periferia.<br />
Chega ao asfalto carregado de protesto, indignação,<br />
carência, vontade, luta e marginalidade”. Para adentrar<br />
no mundo do hip-hop e conhecer faces totalmente ignoradas<br />
da hiphoptude, o livro “Hip-Hop – A Cultura Marginal”<br />
é um bom começo.<br />
Como não conseguia parar, peguei umas revistas Rap<br />
Brasil emprestadas com a Lu Afri e em uma delas uma<br />
entrevista com o Alessandro Buzo me fez tremer. Ele criticava<br />
os acadêmicos que escreviam teses e livros sobre<br />
hip-hop e dizia que tais pessoas não tinham propriedade<br />
para tratar do tema.<br />
Descolei o e-mail dele, não lembro onde e nem com quem,<br />
e mandei um texto até meio mal-educado, questionando a<br />
postura e apresentando a minha versão. Eu havia escrito<br />
um livro. Mas tinha toda propriedade que qualquer outra<br />
pessoa, pois havia vivenciado tudo na pele. Recebi a resposta<br />
no mesmo dia, após uma troca de e-mails, chegamos
No ar: o hip-hop<br />
191<br />
Ciranda<br />
federal para a cultura e questionou: “Desde quando isso<br />
é cultura?”. Como resposta, recebeu vários textos de<br />
Sérgio Vaz, King Nino Brown e outros adeptos. As pessoas<br />
ligadas à cultura através do 5° elemento – conhecimento<br />
– puderam, então me conhecer, e, a partir daí, as<br />
coisas começaram realmente a acontecer. Com um texto<br />
para botar mais lenha na fogueira, consegui chamar<br />
a atenção de vários adeptos e passei a receber alguns<br />
convites para participar de outros blogs e publicações.<br />
Como na música da brincadeira de roda infantil, descobri<br />
um site que faria o saber circular e por intermédio da<br />
“Ciranda Internacional de Informação Independente”,<br />
consegui publicar alguns artigos com todas as opiniões<br />
que tinha sobre o mundo, sobre as opressões, sobre o<br />
hip-hop e sobre o jornalismo, que não podia ser praticado<br />
em sua totalidade no órgão em que eu trabalhava.<br />
Quando um jovem de 17 anos presta vestibular para jornalismo,<br />
ele tem um sonho. Grande parte quer aparecer<br />
na televisão e ser famoso. O restante quer mudar o<br />
mundo. Eu me enquadrava na segunda opção. Mas, na<br />
prática, mudar o mundo com minha visão era bem mais<br />
complicado e eu já sabia, claramente, que não seria<br />
através do jornal que faria isso.<br />
Já neste site poderia publicar meus textos de forma livre.<br />
Escrevi alguns artigos e enviei, todos foram aprovados.<br />
Era gratificante ver meu nome circulando na rede. Consegui,<br />
também, aprovação para colocar o livro disponível<br />
para download no site “Overmundo” e, assim, várias pessoas<br />
puderam ter acesso a ele.<br />
Mas foi cerca de um mês depois que uma bomba estourou<br />
em todo universo do Hip-Hop. A jornalista da Folha de<br />
São Paulo, Bárbara Gancia, criticou uma verba do governo<br />
190
No ar: o hip-hop<br />
195<br />
O hip-hop não foi<br />
inventado<br />
Frente às discussões provocadas pela jornalista Bárbara<br />
Gancia e o escritor Sérgio Vaz, sinto-me na obrigação de<br />
botar mais lenha na fogueira.<br />
Além de fazer das palavras de Sérgio Vaz as minhas,<br />
gostaria de esclarecer algumas coisas. Estive lendo a<br />
declaração de Alessandro Buzo na revista Rap Brasil, em<br />
que ele afirmava que era um escritor marginal porque era<br />
marginalizado, mas agia preconceituosamente em relação<br />
às teses acadêmicas sobre o hip-hop.<br />
No meio do fogo cruzado, postei no meu blog assim,<br />
adaptando do texto dele: “Me considero uma escritora<br />
marginal porque sou marginalizada. Se chegamos atrasados<br />
no trampo, o patrão olha torto. Somos escravos<br />
modernos. Hoje não existe escravidão, mas existe salário,<br />
que nunca dá para o que precisamos, o transporte é<br />
mó veneno. Essa vida é marginal. Se escrevo e vivo nessa<br />
vida, sou uma escritora marginal. É original porque vivo<br />
isso, apesar de ter feito faculdade e escrito uma tese<br />
sobre a periferia, esse é o meu dia a dia.”<br />
Para os hip-hoppers, que acham que acadêmicos e estudiosos<br />
não podem ser da cultura porque não passam os<br />
mesmos venenos. Puro preconceito. Sou uma jornalista<br />
que vive o hip-hop no dia a dia e luta para preservar a cultura.<br />
Sou uma jornalista que foge à regra, ando de busão<br />
trem lotado, não é porque estive em uma sala de aula de<br />
um curso superior e escrevo sobre política, arte e filosofia<br />
que sou diferente ou elitizada. Não é porque carrego<br />
um diploma debaixo do braço que deixo de carregar a<br />
marmita amassada na bolsa. Também estou nesse país<br />
vendendo o almoço para pagar a janta, por mais contraditório<br />
que isso pareça.<br />
Para a “jornalista” (que envergonha a classe) Bárbara<br />
Gancia, eu escrevo para enganar a fome e boto no papel<br />
as indignações que é ser um “escravo moderno”. Respondendo<br />
a sua pergunta, em seu próprio texto “Desde<br />
quando hip-hop, rap e funk são cultura?”. Desde que<br />
você deixou sua ignorância tomar conta e não se informou<br />
para escrever.<br />
Em primeiro lugar, hip-hop é uma cultura. Uma cultura<br />
marginal, porque é feita pelo povo, vivida pelo povo e<br />
difundida pelo povo. É marginal porque está à margem<br />
da sociedade em todos os sentidos, porque é vítima do<br />
preconceito, explícito ou velado, porque é excluída e congrega<br />
os excluídos, dando-lhes oportunidades.<br />
Portanto, o hip-hop é uma cultura marginal, nascida na<br />
periferia, como um grito ensurdecedor de protesto, que<br />
fere, machuca e atinge. Até então o hip-hop reflete o<br />
comportamento de uma classe social, uma grande parcela<br />
da população e por fim, de uma cultura com personalidade<br />
própria, singular. Esta cultura carrega consigo<br />
a força do protesto e da indignação. Ela sobrevive e se<br />
opõe ao obscuro mundo da criminalidade, contra a exclusão<br />
e incluindo, mesmo que ainda na marginalidade, toda<br />
uma nação, num misto de alegria e tristeza, a cultura hiphop<br />
sobrevive, marca e faz história para quem se sente<br />
maravilhado por tudo que o hip-hop proporciona.<br />
Continuando, o rap é uma manifestação artística dentro<br />
da cultura hip-hop, através do MC (Mestre de Cerimônias),<br />
assim como o break, o grafite e o DJ.<br />
194
196 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
197<br />
O hip-hop é uma cultura desde o dia 12 de novembro de<br />
1974, quando o DJ Afrika Bambaataa o batizou, no bairro<br />
do Bronx, gueto de Nova Iorque, na tentativa de congregar<br />
os negros do local para atividades artísticas, substituindo<br />
as brigas entre as gangues pelas rachas entre<br />
as crews (grupos) de break ao som do DJ, da voz do MC,<br />
sob os grafites nos muros. Quando Bambaataa resolveu<br />
batizar o hip-hop (termo em inglês que, na tradução literal,<br />
significa saltar movimentando os quadris, mas que,<br />
na prática, vai muito além disso), o fez na esperança de<br />
disseminar: “Paz, amor, diversão e união”, segundo as<br />
palavras do mesmo.<br />
Quem sabe, se antes de julgar, sejam jornalistas ou<br />
hip-hoppers, as pessoas pensassem, observassem,<br />
pesquisassem e praticassem as palavras de quem criou<br />
uma cultura?<br />
“Vem ardendo, sangrando e machucando. É o berro que<br />
emana dos morros, guetos e favelas. Vem dos locais mais<br />
pobres, o grito desesperado que vem da periferia. Chega<br />
ao asfalto carregado de protesto, indignação, carência,<br />
vontade, luta, marginalidade.<br />
A força que vem do lado negro, pobre, inferiorizado.<br />
Atinge toda sociedade com sua forma, sua arte e sua cor.<br />
O nome dela é hip-hop e está aí para fazer barulho, debater<br />
as questões controversas de uma sociedade que se<br />
finge de surda para este grito de protesto.<br />
Hip-hop é um termo que vai além. Significa cultura, mas<br />
também significa movimento, arte, expressão, paz, amor,<br />
soluções, lutas e igualdade de direitos.<br />
O hip-hop é ilustrado por personagens sobreviventes de<br />
guerra. Uma guerra diária pela vida. Ele acolhe e tenta<br />
proteger os que já nascem condenados à morte. Personagens<br />
reais, cercados pela miséria, fome, desabrigo, armas<br />
de fogo, tráfico e desrespeito. Em meio a tantas armas<br />
que eles podem escolher no jogo do “matar ou morrer”,<br />
o hip-hop escolhe a maior de todas as armas: a cultura.<br />
Uma cultura marginal, mas que não é propriedade dos<br />
grandes, não é da elite, nem da burguesia. É a cultura de<br />
quem foi capaz de criá-la e levá-la adiante. É a cultura<br />
das ruas, do povo.<br />
O hip-hop não foi inventado, ele nasceu naturalmente<br />
no gueto, recebeu a forma dos negros e excluídos e,<br />
hoje, auxilia o povo a encontrar uma identidade. Esta<br />
cultura marginal traz de volta os sonhos daqueles que<br />
carregam o sofrimento como estilo de vida. Ela eleva<br />
a autoestima daqueles que antes eram forjados de<br />
estorvo pela sociedade.<br />
Através de expressões artísticas intensas, o povo da periferia<br />
encontrou no hip-hop a vontade de viver, motivação e<br />
a consciência de cidadania. O mínimo que o hip-hop propõe<br />
com suas manifestações e expressões que mudam e<br />
desenvolvem-se a cada dia é um olhar livre de preconceitos”.<br />
Texto retirado do livro “Hip-Hop - A Cultura Marginal”.<br />
O que mais dizer senão minhas próprias palavras no<br />
capítulo de abertura do meu livro, resultado de mais de<br />
um ano de trabalho árduo para concluir, com muita dificuldade<br />
o curso de jornalismo. Fugindo da generalização<br />
de que os jornalistas são elitizados, cá estou, militando<br />
pelo hip-hop e gritando, com ardor, o que eu penso sobre<br />
o texto da jornalista Bárbara Gancia.<br />
Salve!<br />
Paz, amor, diversão e união.<br />
Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
O número de comentários sobre o texto foi expressivo e o<br />
de amizades e contatos que fiz, também. A jornalista da<br />
Folha continuou com a mesma opinião e eu, com os mesmos<br />
sonhos. Entre a polêmica, me dedicava ao jornal<br />
que estava trabalhando. Ralava, no mínimo, dez horas<br />
por dia e tinha pavor de perder o emprego.
198 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
199<br />
Para me especializar, fiz a inscrição em um curso de extensão<br />
universitária na faculdade existente na cidade. Seria<br />
durante quatro sábados das 12h às 18h. Empolgada com<br />
a possibilidade de aprender um pouco mais sobre antropologia,<br />
a disciplina que era carro-chefe do curso, me inscrevi<br />
e aguardei com total ansiedade o início das aulas.<br />
Combinei com a editora do jornal que trabalharia até 12h e<br />
voltaria após às 18h, além de adiantar algumas matérias<br />
frias para não deixar ninguém na mão. Mas, no sábado<br />
marcado, logo no terceiro mês de emprego, me descobri<br />
uma escrava moderna. Com uma raiva que não cabia em<br />
mim e me fazia lembrar e recitar mentalmente trechos<br />
do livro “Manual prático do ódio” do Ferréz, eu, que já<br />
havia escrito seis matérias naquele dia para deixar o trabalho<br />
adiantado e não pude ir no curso por pura implicância<br />
e jogos de poder, escrevi para o site Ciranda o<br />
seguinte texto:<br />
Escravidão Moderna<br />
Hoje não existe mais escravidão. Será que não mesmo?<br />
Acredito naquilo que chamamos de “escravidão moderna”.<br />
Ela atinge a todas as raças, negros, brancos, índios ou<br />
amarelos. A escravidão foi substituída pelo salário, que<br />
nunca dá para o que precisamos. Se chegarmos atrasados<br />
no serviço, o patrão olha torto. Com endereço da<br />
favela ou da periferia, ninguém consegue emprego. Se<br />
o pé estiver sujo de barro da enchente da noite anterior<br />
então... Esquece.<br />
As universidade formam milhares de analfabetos todos<br />
os anos e a mídia continua afirmando que “sobram vagas<br />
no mercado de trabalho, o que falta é qualificação profissional”.<br />
Como é que é mesmo?<br />
Um círculo vicioso. Se o negro está desempregado, não<br />
consegue pagar para se “qualificar” e consequentemente,<br />
está cada dia mais, fora do mercado.<br />
Grande mercado, que, quando emprega, escraviza. Tem<br />
gente que trabalha dez, doze horas por dia, sem falar do<br />
horário em que levanta, para pegar as conduções e chegar<br />
cedo no trabalho, antes que o patrão olhe feio.<br />
A capa da revista “Carta Capital” (que pouca gente lê,<br />
porque é cara, linguagem culta, não fala para o povão) –<br />
e as revistas de fofoca são mais interessantes, nos tiram<br />
da rotina maçante – deste mês traz jovens diplomados<br />
que não conseguem emprego. Em determinado trecho da<br />
reportagem, alguns jovens da classe média, atualmente<br />
em crise, dizem que não farão estágio, tampouco vão<br />
trabalhar por um salário de R$ 1 mil. “Isso seria o mesmo<br />
que prostituir a minha profissão.” É o que dizem, porque<br />
pensar, ninguém pensa mesmo.<br />
Já na capa da “Caros Amigos”, que menos pessoas leem,<br />
traz a reportagem “Como é a cabeça dos estudantes de<br />
jornalismo”. A resposta está dentro da reportagem. É uma<br />
cabeça vazia, alienada e na maioria das vezes, elitista.<br />
Agora eu pergunto, como é a junção da cabeça de um<br />
estudante de jornalismo, com os baixos salários que<br />
pagam aos recém-formados, somada a uma jornada de<br />
no mínimo dez horas de trabalho diários (isso inclui fins<br />
de semana), que mora na periferia???<br />
É, sobreviver ao sistema é difícil. Sou jornalista, recémformada,<br />
ganho muito aquém do que eu paguei, com<br />
muito esforço, por mês na faculdade, trabalho, em<br />
média, dez horas por dia (sem horário de almoço), paro,<br />
no máximo, vinte minutos para comer a marmita esquentada,<br />
que carreguei dentro da mochila, toda amassada,<br />
no busão lotado. Fico com medo do patrão chegar e brigar<br />
porque esquentar a comida deixa todo o prédio do jornal<br />
cheirando. Não tenho a menor condição de fazer um curso<br />
de aperfeiçoamento da profissão. Preciso trabalhar, me<br />
manter. Se for na área, pagam menos, mas gosto do que<br />
eu faço, preciso adquirir experiência no campo prático.
200 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
201<br />
Queria me qualificar. Paguei um curso que poderia fazer,<br />
quatro sábados à tarde. Mas eu trabalho no sábado à<br />
tarde. Talvez se eu ficasse doze horas por dia durante a<br />
semana, adiantando as minhas matérias e mais umas<br />
quatro horas no sábado, eu conseguiria ir para o curso<br />
sem que meu patrão percebesse ou me xingasse. Arrisquei.<br />
Paguei o curso, relativamente caro, perto do que<br />
ganho. Animei-me em conhecer um pouco mais sobre<br />
um determinado assunto. É na área que eu pretendo<br />
mestrado. Fodeu. Meu patrão está descontente. Quer<br />
um jornal feito só para ele. Estrutura? A gente tem que se<br />
virar, no final do dia ele quer matéria polêmica. Sábado à<br />
tarde... Fiquei sem o curso, sem a grana e frustrada. Na<br />
cabeça dos estudantes de jornalismo não passa muita<br />
coisa. Na minha, que já me formei, milhões de questionamentos,<br />
dúvidas, incertezas e uma imensa tristeza, por<br />
não conseguir sair do lugar, dentro do nosso sistema. Se<br />
estiver animada, à noite vou a um evento de hip-hop, buscar<br />
na minha cultura, marginal, algo que ainda me faça<br />
sonhar... E se estiver animada, escrevo uma matéria.<br />
O texto continua no ar e recebe comentários até hoje. É<br />
normal que pessoas que frequentam o site tenham opiniões<br />
parecidas, sobre luta, desigualdade e escravidão mental.<br />
Naquele dia entendi que não há parto sem dor e que o<br />
descaso é a melhor arma para que saiam bons textos.<br />
Fui convidada pelos moderadores da “Ciranda” a escrever<br />
textos com uma periodicidade maior. Topei. Afinal,<br />
era meu trabalho sendo reconhecido. A partir daí, percebi<br />
que havia voltado a escrever como deveria ser. Com<br />
a alma, com o coração, com a experiência da quebrada.<br />
Como uma manifestação de amizade ao Buzo, após as<br />
brigas por conta da entrevista numa revista, resolvi fazer<br />
uma matéria com ele e soltar no blog, no “Ciranda” e muito<br />
tempo depois ela também entrou no jornal como parte de<br />
uma série especial que criei.<br />
Gosto bastante do texto porque foi um dos primeiros em<br />
que pude misturar jornalismo e literatura marginal numa<br />
mesma fórmula e que deu certo. Eu podia imaginar, mas<br />
não tinha a certeza de que, mais adiante, muitos textos<br />
e construções semelhantes me aguardavam.<br />
Poeta do gueto<br />
Hip-Hop, literatura marginal e o sistema são discutidos<br />
pela escritor da periferia Alessandro Buzo.<br />
Palavras... pedras... duras palavras que mais parecem<br />
pedras e que ecoam dos lugares mais distantes, lá da<br />
favela, como um grito ensurdecedor, sem ligar para<br />
regras gramaticais, a poesia da periferia transforma<br />
as letras em desabafo, em poesia e recria um estilo: a<br />
literatura marginal.<br />
“É um tapa na cara do sistema”, afirma o escritor Alessandro<br />
Buzo, 34 anos, ao se referir ao estilo de escrita<br />
dos poetas do gueto.<br />
O escritor, que teve seu primeiro contato com a cultura<br />
hip-hop quando esta chegou ao Brasil, há mais de vinte<br />
anos, é autor de quatro livros independentes no país. O<br />
primeiro deles é intitulado “O Trem - Baseado em fatos<br />
reais”. O segundo, traz o nome que Buzo usa na sua marca<br />
e no blog no qual relata seu cotidiano e as indignações<br />
contra o sistema: “Suburbano Convicto - O Cotidiano do<br />
Itaim Paulista”.<br />
Em 2005, Buzo lançou seu terceiro livro, chamado “O Trem<br />
- Contestando a versão oficial”. Em 2007, lançou “Guerreira”,<br />
o primeiro romance de uma série de fatos reais e,<br />
por último, em 2008, o “Favela Toma Conta”. Quando questionado<br />
sobre a maior dificuldade em ser um escritor marginal,<br />
Buzo afirma: “Minha maior luta é conseguir vender<br />
os livros de mão em mão, de mano em mano.”
202 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
203
204 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
205<br />
No entanto, ele conta, feliz, que o livro “Guerreira” será<br />
relançado no meio deste ano por uma editora grande,<br />
com distribuição nacional nas livrarias. Fora os trabalhos<br />
independentes da literatura, Buzo participou de coletâneas<br />
como “Rastilho de Pólvora - Antologia poética do<br />
Sarau da Cooperifa” e “Literatura Marginal - Talentos da<br />
escrita periférica”, organizado por Ferréz.<br />
Informação é fundamental<br />
“Hoje, 90% do que eu ouço em casa é rap nacional, desde<br />
que me envolvi mais com a cultura, passei a promover<br />
eventos, vender shows de grupo, só depois de pesquisar<br />
e me informar sobre o movimento através de jornais e<br />
revistas é que eu virei escritor”, conta Buzo, lembrando<br />
que a boa informação dentro do hip-hop é fundamental.<br />
Ao referir-se ao real significado da cultura, o escritor,<br />
que dedica-se a vários eventos e projetos sociais,<br />
afirma que a palavra que lhe vem primeiro a mente é atitude.<br />
“Quem é do hip-hop não fica rebolando a jaca nem<br />
ouvindo modinhas, são jovens mais instruídos”, afirma.<br />
Dentre os trabalhos atrelados ao hip-hop, Buzo conta<br />
que promove o evento “Favela Toma Conta”, que já teve<br />
11 edições, em que grupos de rap, famosos da cena paulistana<br />
como o extinto RZO, De Menos Crime, Thaíde,<br />
DMN, Expressão Ativa, Tribunal MC’s, Cabal, entre outros.<br />
“Geralmente são festas na favela, sem cobrar ingressos. O<br />
objetivo é promover o entretenimento para a periferia”, diz.<br />
Através do conhecimento, o 5º elemento do hip-hop,<br />
incorporado na cultura posteriormente, pela Universal<br />
Zulu Nation, Buzo montou uma biblioteca comunitária no<br />
bairro onde mora, a fim de levar informação e entretenimento,<br />
através da literatura, para as crianças e jovens<br />
carentes do Itaim Paulista, Zona Leste da cidade de São<br />
Paulo, onde vivem 320 mil habitantes. “Pelo 5º elemento<br />
eu também participo como colaborador de vários sites e<br />
blogs ligados ao hip-hop e atuo, também, como repórter<br />
colaborador para a revista Rap Brasil. Tento ajudar de<br />
várias formas”, conta.<br />
E no dia a dia...<br />
“Meus contos são ficção, mas sempre relatam histórias<br />
que poderiam ter acontecido. Vejo acontecer parecido na<br />
minha quebrada”, informa Buzo, quando questionado a<br />
respeito de como é a literatura marginal que ele produz,<br />
e diz ainda: “Me baseio no meu cotidiano, passo para o<br />
papel as dificuldades do dia a dia”. Para o escritor, a literatura<br />
marginal assusta o sistema, porque segundo ele:<br />
“A elite pensava que não sabíamos nem ler e, agora, estamos<br />
escrevendo livros. Só tem conhecimento quem pisa<br />
no barro, quem sobe e desce o morro, quem atravessa<br />
suas vielas. Acho que a literatura marginal é importante,<br />
porque a cena está forte e não é só modinha.”<br />
Buzo, atualmente, tem uma rotina tranquila, um pouco<br />
diferente até do que da maioria dos moradores do Itaim<br />
Paulista. “Acordo cedo, passo a manhã com minha esposa<br />
e meu filho de sete anos, pois gosto de tomar café em<br />
casa, tranquilamente, com eles. Depois vou trabalhar<br />
na DGT Filmes, uma produtora de vídeos, onde faço o<br />
horário de 12h às 19h. No meio tempo, escrevo minhas<br />
colunas, atualizo meus blogs e faço palestras e oficinas.<br />
Assim é meu dia a dia”, relata o autor, que diz adorar<br />
música, cinema e leitura, mas “detesto orkut, programas<br />
de fofoca, novelas, reality shows, falsidade e gente que<br />
só reclama”, desabafa.<br />
Dos problemas e soluções<br />
“A elite precisa entender que não dá para se morar em um<br />
palácio ao lado de uma favela, então, é utopia acreditar<br />
no fim da desigualdade social”, afirma Buzo, convicto. O<br />
escritor não vê o fim da desigualdade social no Brasil,<br />
alegando que ela sempre existiu, mas acredita em uma
206 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
207<br />
redução. “Precisamos de programas de distribuição de<br />
renda, de empregos com melhores salários”, reivindica.<br />
Durante a entrevista, Buzo é questionado sobre a notícia<br />
publicada pelo jornal Folha de São Paulo que dizia que<br />
mendigos da Praça da Sé serão retirados do local durante<br />
a visita do Papa Bento XVI ao Brasil e afirma: “Acho que<br />
deveriam tirar os mendigos não só da Praça da Sé, mas<br />
de todo o Brasil e levá-los para lugares limpos, onde eles<br />
possam retomar suas vidas e não só tirar porque o Papa<br />
vem, porque o Bush vem e depois devolvê-los para as<br />
ruas, sem nenhuma perspectiva de vida”, reflete.<br />
Para ele, a saída dos problemas sociais seria mais estudo<br />
e leitura. “O povo tem que parar de se alienar através da<br />
TV e ler mais, o hip-hop é uma porta para isso, pois é uma<br />
cultura que vive constantemente em movimento. É a cultura<br />
dos favelados e não vão tomar o hip-hop da gente,<br />
ele é nosso”, diz.<br />
Planos para o futuro<br />
Sem nunca parar, o escritor está abrindo uma loja,<br />
Suburbano Convicto, e diz que terá mais um “corre” no<br />
cotidiano, além de estar se dedicando a um novo livro,<br />
com o título provisório de “Profissão MC” e a um outro,<br />
praticamente pronto: “Do conto à poesia”.<br />
Tudo isso sem deixar de lado as palestras e oficinas<br />
sociais, sempre disseminando a cultura hip-hop na<br />
cidade de São Paulo e em todo país. Ao deixar uma mensagem,<br />
Buzo é direto: “Desligue a TV e leia um livro.”<br />
Era chegada a hora de procurar os eventos e iniciar o<br />
que já estava planejando há tempos. Voltar a ler os textos<br />
de literatura marginal nos intervalos dos shows.<br />
Com muito mais propriedade do que quando o meu<br />
primeiro texto foi lido em uma roda de amigos de uma<br />
crew ou em um evento de bairro, passei a frequentar os<br />
festivais de hip-hop, de dança, as batalhas, novamente<br />
e sempre levando um pouco do meu trabalho. Os poucos<br />
exemplares do livro que tinha, sempre pedia que anunciassem<br />
em sorteios ao final das competições. O bacana<br />
era ver a cara de espanto de muitos jovens da periferia<br />
de Poços de Caldas ou das cidades vizinhas, que vinham<br />
em excursões para as competições. Eles sempre exclamavam:<br />
“Puxa! Existe um livro sobre hip-hop. Foi escrito<br />
por alguém do nosso meio.”<br />
Toda lisonjeada eu fazia questão de parar para conversar,<br />
cumprimentar, além de sempre acompanhar quando<br />
alguém subia no palco e lia um texto, sempre alguns dos<br />
antigos, dos produzidos na época na faculdade sobre<br />
jornalismo e outros sobre periferia, dos que havia guardado.<br />
Diferente e inspirador. Assim eu via os textos<br />
sendo lidos e o pessoal, sempre na plateia, observando<br />
e se perguntando de onde surgira aquela novidade.<br />
Mesmo quando eram eventos pequenos, com pouco<br />
mais de 100 pessoas, eu ficava encantada por participar.<br />
Por um lado eu gostava de estar rodeada pela cultura<br />
e por outro porque era uma chance de divulgar o livro<br />
e alguns textos. Ainda sem um movimento específico,<br />
minha cabeça não parava de fervilhar de ideias.<br />
Mais rápido do que imaginava, minha pequena obra se<br />
tornou conhecida e alguns eventos beneficentes do<br />
bairro passaram a me convidar para aberturas e para<br />
ler alguns textos, que sempre versavam sobre os menos<br />
favorecidos socialmente. Conciliando com o trabalho no<br />
jornal, que, de alguma maneira, também rendia alguma<br />
popularidade, eu podia frequentar os eventos e somar,<br />
apresentando sempre algumas pequenas frases relacionadas<br />
à periferia.
Oficinas<br />
Em roda, uma meia dúzia de alunos esperava, de forma<br />
dispersa, que alguém começasse a lhes falar sobre literatura<br />
– talvez uma das matérias que eles menos gostassem<br />
por ter de ler e escrever, hábito muito distante<br />
da realidade na periferia.<br />
Sem expressão de contentamento, eles me receberam<br />
pela primeira vez, desde que propus ao diretor da instituição<br />
de ensino algumas oficinas voluntárias àquelas<br />
crianças e jovens sobre literatura. Claro que, para<br />
não assustá-lo e colocá-lo no pano do preconceito, não<br />
revelei, logo no início, que era uma oficina sobre literatura<br />
marginal/periférica.<br />
Com o livro nas mãos, era impossível disfarçar o nervosismo<br />
e tudo que havia pensado para falar parecia um<br />
ponto distante naquele momento. Não sabia como encarar,<br />
pela primeira vez, aqueles alunos que pareciam não<br />
estar gostando nem um pouco de estar ali, aguardando<br />
uma manifestação minha. O pior era quebrar o silêncio.<br />
Não havia nem um zunzunzum para eu esperar ou<br />
mesmo relembrar a programação mentalmente.<br />
Devagar e improvisando – como as melhores coisas<br />
acontecem – me apresentei e expliquei o porquê de estar<br />
ali. Li o texto de introdução do livro e me senti lendo em<br />
208
210 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
211<br />
voz alta no meu quarto. Nenhum murmúrio. Propus uma<br />
roda e um bate-papo. Cansei de ouvir minha própria voz.<br />
A sensação era de que os garotos queriam testar minha<br />
vontade e disposição de voluntária para lhes apresentar<br />
à literatura feita nas quebradas.<br />
Com a persistência nata de quem vem do gueto, mantive<br />
o sorriso no rosto e a mesma garra com a qual idealizei<br />
utilizar o hip-hop para mudar vidas. Mudei a abordagem<br />
e contei uma história pessoal. Notei uma leve<br />
mudança de expressão. O tempo da oficina daquele<br />
mês estava acabado.<br />
Foi assim que comecei e, logo na primeira vez, me senti<br />
não exatamente triste, mas decepcionada, porque os<br />
estudantes não se mostraram exatamente empolgados.<br />
Não tive muito tempo para chorar e, tampouco,<br />
alguém para me consolar. No meu universo de convívio,<br />
as pessoas que estava lidando achavam loucura eu<br />
perder o pouco do tempo livre que tinha com garotos<br />
que, segundo elas, não tinham qualquer futuro, e tampouco<br />
interesse pela literatura, mesmo que ela fosse<br />
ligada a uma cultura marginal.<br />
Como vim de onde eles estavam julgando e talvez, em<br />
algum momento, tenha sido também uma estatística ou<br />
alguém que, para eles, não deveria estar estudando ou<br />
mesmo apreciando a leitura, dei a cara para bater e continuei,<br />
sem esmorecer.<br />
Na segunda vez, passei a notar que o motivo da falta de<br />
interesse era muito além das oficinas que eu propunha.<br />
A escolha de quem iria participar era feita de acordo<br />
com aqueles que se recusavam a assistir as aulas e causavam<br />
algum tipo de transtorno na escola, então eram<br />
obrigados a ir, uma vez por mês, no período noturno,<br />
assistir a uma oficina. De forma simples, comecei com<br />
alguns textos do livro e alguns materiais colhidos nas<br />
pesquisas, como textos em revistas, letras de musica e<br />
histórias de personagens reais do hip-hop.<br />
Quando passei a falar a linguagem deles fui aceita de<br />
forma melhor e quando lhes mostrei o texto “O homem<br />
do gueto”, muitos passaram a se interessar. A oficina<br />
era básica. Líamos, numa roda formada, os textos que<br />
levava e discutíamos alguns aspectos. Na sequência,<br />
lhes passava algumas atividades e perguntas para<br />
serem respondidas em casa e levadas na próxima vez.<br />
Mesmo com as dificuldades do espaçamento das oficinas,<br />
o saldo estava sendo positivo. Pelo menos comigo,<br />
todos eles mudaram a postura e se mostraram mais<br />
interessados. Claro que isso aconteceu de forma gradativa,<br />
quando fui mostrando que já havia enfrentado as<br />
mesmas dificuldades financeiras, os preconceitos, mas<br />
sempre com uma diferença: a de gostar de ler e escrever.<br />
Algum tempo depois um garoto trouxe um pequeno<br />
texto. Devia ter umas oito linhas e falava sobre o pai<br />
bater na mãe, mas escrito de uma forma bem sutil, então<br />
o incentivei a escrever mais e, exceto pelos erros gramaticais,<br />
que até eu tenho, aos montes, ele estava escrevendo<br />
muito bem.<br />
Sem que eu, os professores ou mesmo aqueles jovens<br />
percebessem, a literatura já havia tomado parte na vida<br />
deles e o velho estigma de que o brasileiro não gosta<br />
de ler estava sendo deixado de lado. Por serem iniciantes,<br />
além dos textos que distribuía, sempre retirados de<br />
livros do Ferréz, Sérgio Vaz, do blog do Buzo ou ainda que<br />
eu mesma havia escrito, gostaria que eles lessem muito<br />
para as próximas oficinas e fiquei bem feliz por ver que<br />
a sugestão que dei, adequada para a idade deles, foi a<br />
coleção do Pedro Bandeira, autor brasileiro que trazia<br />
a história de um grupo de adolescentes aventureiros e
212 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
213<br />
acostumados a resolver problemas incríveis, chamados<br />
“Os Karas”, que tinham uma garota como parte do grupo,<br />
foi bem aceita.<br />
Quase todos conseguiram pegar, na biblioteca da própria<br />
escola, os livros do Pedro Bandeira e pela história<br />
ser também próxima da realidade, passaram a discutir<br />
entre si e, assim, chegaram com a novidade:<br />
— Olha, dona. Você falou que ler é bom e, realmente, é mesmo.<br />
Estamos nos sentindo os Karas dos livros, tem mais alguma<br />
indicação, é?<br />
Puxa, já não cabia mais nos meus 100 quilos, de tanto<br />
orgulho e felicidade. Eles, que nunca haviam tido interesse<br />
por qualquer tipo de leitura, estavam me pedindo<br />
sugestões. O bacana mesmo era observar que aqueles<br />
jovens, até então sem qualquer perspectiva de futuro,<br />
estavam adquirindo senso crítico através da leitura, formando<br />
a própria vida com caráter e humildade, além de<br />
muita coragem para seguir adiante, vencendo as dificuldades<br />
diárias do submundo periférico.<br />
A vida é mesmo engraçada. Nestes momentos que eu<br />
lembrava de palavras de agitadores culturais que sempre<br />
me incentivaram. Eles diziam que, com pouco, podemos<br />
fazer toda a diferença e bastaram poucas oficinas para<br />
que aquela meia dúzia de garotos com comportamento<br />
ruim estivessem dedicando boa parte do tempo à leitura.<br />
No jornal, em curtos períodos, matérias sobre voluntariado<br />
e pessoas que praticavam o bem em comunidades<br />
carentes eram frequentes e foi durante uma entrevista<br />
que descobri uma associação em outra parte da minha<br />
quebrada.<br />
No Jardim Kennedy II, uma senhora mantinha uma sede<br />
onde mães aprendiam tricô, crochê e pintura em panos<br />
de prato, tendo a chance de aprender algo e ampliar a<br />
renda familiar, ao mesmo tempo em que os filhos ficavam<br />
como monitores, recebendo aulas de capoeira ou<br />
dança. Propus a ela um evento pequeno de hip-hop, talvez<br />
em um domingo – quando tinha mais tempo – e as<br />
opções de lazer e ocupação para as crianças eram nulas.<br />
Organizei, junto com os amigos da antiga, um evento<br />
pequeno. Apenas um minishow dentro da sede com<br />
alguns textos lidos e distribuídos. O ponto alto foi quando<br />
dois dos garotos da oficina apareceram no local, conferindo<br />
o que estava acontecendo e me reconheceram<br />
nessa ação. De repente, senti que um resultado, mesmo<br />
que pequeno, estava surgindo, sem qualquer exigência.<br />
Em outro encontro um deles veio me contar que tinha<br />
encontrado um livro do Ferréz na biblioteca da região,<br />
onde ele havia feito uma ficha para empréstimo, e que<br />
estava tentando ler e entender mais. Percebi que a literatura<br />
tinha ganhado a quebrada e ambas nunca mais<br />
seriam as mesmas. Pequenas conversas como estas me<br />
faziam ter mais ânimo de prosseguir e, por ser uma pessoa<br />
do bairro, talvez tenha facilitado também as coisas.
214 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
215
No ar: o hip-hop<br />
217<br />
Uma letra, um beat<br />
Vendendo meu próprio peixe, colocava tudo que podia<br />
na internet e através de sites, blogs e comunidades do<br />
orkut, além dos amigos, fazia questão de propagar o meu<br />
livro. Não me lembro como, mas ele chegou ao conhecimento<br />
de Bruno, um garoto da minha idade, que vive em<br />
Belo Horizonte que me pediu que lhe enviasse o texto<br />
em pdf. Assim o fiz e ele me escrevia todos os dias para<br />
dizer como o hip-hop era bom para ele e como ele estava<br />
crescendo após ler um pouco mais sobre o surgimento e<br />
propósito da cultura.<br />
pesarosa por aqueles que não sabiam ler, que eram<br />
analfabetos e não entendiam o propósito do livro, não<br />
acreditei quando recebi o convite. É claro que eu topei<br />
na hora. Era mais uma oportunidade de divulgar o trabalho<br />
de uma forma não escrita e que daria a mais gente a<br />
opção de entendimento.<br />
Uma vez autorizado, ele me manteve informada sobre<br />
o andamento do CD, da gravação, da escolha de outras<br />
músicas e sempre contando episódios sobre a própria<br />
vida e novas descobertas feitas através do hip-hop e<br />
da literatura, que ele começou a tomar gosto. Sem que<br />
eu percebesse, ficamos amigos. Claro que apenas virtualmente,<br />
até aquele momento, mas um elo foi criado e<br />
graças a essa cultura, que vem dos locais mais pobres,<br />
que está sempre à margem e que congrega tanta gente.<br />
O Bruno é um amigo entre os muitos que fiz ao longo da<br />
estrada, sempre na cultura periférica.<br />
Os e-mails se tornaram mais longos ao passar dos dias<br />
e, quando ele me perguntou sobre a outra autora —<br />
Anita —, eu lhe contei de forma resumida toda a história.<br />
Notei que ele se entristeceu e, mais uma vez, ouvi a<br />
frase que pontua toda esta caminhada: o hip-hop salvou<br />
a minha vida. E me disse que fez ele enxergar com outra<br />
perspectiva o futuro e não se aliar às drogas, apesar dos<br />
convites, que tanto ele como eu sabemos que chegam<br />
aos montes e quase diariamente.<br />
MC do grupo Elemento.S, que, na ocasião, estava começando,<br />
ele me pediu autorização para gravar o texto<br />
de abertura do livro. O objetivo era transformá-lo em<br />
introdução para o CD do grupo. Como eu sempre ficava<br />
216
No ar: o hip-hop<br />
219<br />
Sacolinha,<br />
vídeo-documentário<br />
e TCCs<br />
Ele era cobrador de lotação e, para passar o tempo,<br />
começou a ler dentro do trem entre Suzano e São Paulo.<br />
Com pouco mais de 20 anos já tinha o primeiro romance<br />
escrito e renovava, também, a cena da literatura periférica<br />
do país. De codinome curioso, Sacolinha chamou<br />
minha atenção através de um blog e de uma entrevista<br />
para uma revista. Embora não se considere como autor<br />
marginal ou periférico, despertou meu interesse pelos<br />
livros que ele mesmo escreveu.<br />
Através do contato que alguém me conseguiu, escrevi<br />
para ele, que me passou o telefone e travamos contato<br />
em tempo real. Ele me explicou como fez para editar o<br />
primeiro romance “Graduado em Marginalidade”, que<br />
traz uma história de lugar-comum, mas de forma completamente<br />
diferente. Um dos críticos o considerou um<br />
enxadrista, pelas sacadas geniais do texto e o xequemate<br />
da narrativa. Assim o vi também, e me apaixonei<br />
pelo texto, pelo blog, pela história de vida e pela amizade.<br />
Mais uma travada através da internet e que só veio<br />
a somar para as minhas vontades e iniciativas.<br />
Agitador cultural e disseminador da cultura no Brasil, através<br />
de e-mails e envio de materiais, Sacolinha me ensinou<br />
como eu poderia, de repente, mesmo à contramão<br />
de tudo, trabalhar com literatura de forma voluntária e<br />
ainda, editar meu livro de forma independente. A troca<br />
de ideias me trouxe mais um amigo de literatura, de<br />
resistência, de movimento, de futuro.<br />
O Sacolinha foi uma pessoa que me deu total apoio e<br />
em agradecimento, fiz uma resenha bem bacana sobre<br />
o livro “Graduado em Marginalidade” e publiquei no site<br />
“Leia Livro”. Ganhei um incentivo a mais, para me tornar,<br />
quem sabe, crítica da literatura marginal, avaliando<br />
talvez as histórias escritas por quem é massacrado nos<br />
ônibus, em casa, nas bebidas, na panela vazia, no bolso<br />
furado e na janela sem esperança. Pensei sobre isso e<br />
continuei a ler , recebendo com enorme carinho os materiais<br />
de Suzano que ele me mandava, como livros editados<br />
através de programas da cidade, revistas e materiais<br />
de autores também iniciantes.<br />
Minha maior surpresa – e satisfação – é que eu já não<br />
tinha mais exemplares, dos poucos que fiz, do meu próprio<br />
livro para distribuir, doar, vender, enfim, fazer nada e<br />
mesmo assim, o trabalho era reconhecido e cada dia mais<br />
pessoas chegam até mim em busca de informações sobre<br />
hip-hop, ora para fazer trabalho, ora por curiosidade.<br />
Uma das pessoas que chegou até mim, também em<br />
busca do livro para usar no TCC, foi a Érica Guimarães,<br />
na época, estudante de jornalismo em Campinas. Junto<br />
com uma turma ela estava fazendo um vídeo-documentário<br />
sobre hip-hop para o TCC e me pediu o texto<br />
do livro para servir como referência bibliográfica. O<br />
mais engraçado é que, quando ela me mandou o texto<br />
pronto, eu comecei a ler e reconheci uma frase, sem dar<br />
conta de que era minha mesma, retirada do livro, numa<br />
das contextualizações sobre o rap.<br />
218
220 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
221<br />
Imensurável o tamanho do orgulho que senti, por ver<br />
meu trabalho, mais uma vez, sendo utilizado de forma<br />
positiva e acadêmica. A minha tristeza foi não ter mais a<br />
Anita por perto para dividir o momento. Mas, como a vida<br />
segue, logo na sequência, um outro grupo de estudantes<br />
solicitou minha amiga para responder algumas perguntas<br />
sobre o hip-hop. Mandei o livro, mas não adiantou.<br />
Eles tinham pressa de montar um documentário e<br />
queriam algo de forma mais resumida. Fiz isso para eles<br />
e, daí em diante, os convites para gravações em novos<br />
documentários e os pedidos de livros não pararam de<br />
chegar. Era a revolução acontecendo, pelo menos, ainda<br />
que de forma modesta, na minha vida.
No ar: o hip-hop<br />
223<br />
Mixando<br />
Um assunto bom, novo, que chame atenção, renda interesse<br />
e se transforme em venda de jornal, de espaço<br />
publicitário na rádio e que nos deixe com a sensação de<br />
dever cumprido. Este é o desafio diário de ser jornalista.<br />
A notícia fica velha com uma rapidez incrível e encontrar<br />
coisas novas, a todo o momento, é uma tarefa incrivelmente<br />
árdua e absurdamente prazerosa.<br />
Com poucos meses de trabalho no jornal, fiz amizade<br />
com grande parte da imprensa local. Algumas pessoas<br />
eu já conhecia da época da faculdade, então, somando<br />
forças, formei uma parceria com o jornalista Eduardo<br />
Correia, que trabalhava na Rádio Difusora e, também,<br />
na TV Plan, duas empresas de um mesmo grupo e com<br />
parceria com o jornal em que eu estava. Assim, saíamos<br />
juntos no carro da rádio todas as manhãs para fazer as<br />
matérias. O mínimo eram três matérias, algumas vezes<br />
conseguíamos mais, outras menos. A união tornava a<br />
prática do ofício ainda mais estimulante.<br />
Também, na mesma rádio, trabalhava a editora do jornal.<br />
Pela manhã ela fazia produção na emissora e apresentava<br />
um programa na FM e à tarde, editava o jornal. Como<br />
estava sempre com o Eduardo, quase todos os dias passava<br />
pela rádio e foram momentos fundamentais, que<br />
me ensinaram muito sobre a arte do radiojornalismo. O<br />
Edu foi um grande professor e muito do que sei hoje na<br />
prática, eu devo a ele.<br />
Logo nas primeiras semanas da nossa parceria, fui com<br />
ele até a rádio gravar uma entrevista e um dos apresentadores<br />
do programa da FM estava atrás de um jornalista<br />
para participar como convidado do dia. Como o programa<br />
durava até às 13h e invadia o horário de almoço do<br />
Edu, ele passou a bola para mim e disse que eu me sairia<br />
muito bem no programa – Mix 104+ – que reunia informação<br />
e bom humor.<br />
Sempre dada aos desafios profissionais, topei no ato<br />
participar e a pauta ficou em torno do meu trabalho como<br />
recém-formada e mais, a minha atuação com o hip-hop.<br />
Pude, em uma segunda vez, na mesma rádio, contar<br />
um pouco da minha trajetória, dos meus objetivos e do<br />
trabalho que desta vez estava ainda mais consolidado.<br />
Exemplos vividos nas oficinas, trechos do livro lidos<br />
durante o programa e inúmeras perguntas marcaram<br />
a minha primeira participação no quadro. Enquanto eu<br />
dava a entrevista no programa de duas horas, o apresentador<br />
Francis, que mais tarde se tornou um grande<br />
amigo e incentivador, lia alguns textos e eu fiquei impressionada<br />
com o poder do rádio. O programa permitia participações<br />
ao vivo e muita gente ligava querendo saber<br />
onde comprar um exemplar ou como fazer para implantar<br />
oficinas, conhecer mais, enfim.<br />
Prometi outras participações e a Neusa, que trabalhava<br />
lá e editava o jornal, disse que não me deixaria escapar<br />
tão facilmente das programações. Na semana seguinte<br />
fui novamente convidada para participar do programa,<br />
desta vez para ajudar a entrevistar uma pessoa. Fiquei<br />
bastante lisonjeada. Eu não ganhava nada para estar<br />
lá e, na maior parte das vezes, sacrificava o horário de<br />
222
224 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
225<br />
almoço e ainda tinha que almoçar em restaurante, o que<br />
descontrolava o orçamento, mas, mesmo assim, era<br />
muito bom poder falar para um grande número de pessoas<br />
e fazer parte do programa mais ouvido da rádio.<br />
Durante a segunda participação também pude falar<br />
mais sobre os projetos sociais das oficinas, eventos de<br />
hip-hop e mais sobre o livro, a experiência de vivenciar e<br />
reportar esta cultura marginal e também, como era ser<br />
repórter recém-formada e tudo mais. Eram duas horas<br />
que passavam tão rapidamente que eu ansiava por<br />
novos convites.<br />
O pessoal da rádio gostou das minhas participações e<br />
apenas alguns dias depois a Neusa me convidou para<br />
fazer parte de um programa matinal da AM que tinha o<br />
nome de “Debates Populares”, quando assuntos daquele<br />
dia eram postos em pauta e discutidos com jornalistas,<br />
políticos, apresentadores, populares. Tinha quinze<br />
minutos de duração e era apresentado pelo Ricardo Luiz,<br />
locutor, ex-dançarino de street dance – começou no hiphop<br />
no início dos anos 1990, assim que ele chegou na<br />
cidade – e, também, gerente geral da rádio. Pelo ponto<br />
em comum – a cultura hip-hop – também nos tornamos<br />
colegas e eu passei a participar, ao menos uma vez, dos<br />
“Debates Populares”.<br />
Com participações simultâneas na AM e FM da rádio,<br />
fiquei um pouco mais conhecida na cidade, o que facilitou<br />
as minhas incursões em outras escolas, centros<br />
comunitários e bairros para pequenas oficinas, mesmo<br />
com um único dia ou período de duração, mas que, pelo<br />
que podia observar, transformavam a realidade daquelas<br />
crianças e jovens.<br />
Sempre acreditei – e já mencionei aqui – que vejo o rádio<br />
como o veículo de comunicação mais democrático que<br />
existe, pois enquanto as pessoas ouvem o rádio podem<br />
estar envolvidas com outras atividades e ele não atrapalha<br />
em nada, além de ser super dinâmico – é possível<br />
entrar ao vivo, pelo telefone ou celular, de qualquer local<br />
e passar uma informação em tempo real – e ter uma linguagem<br />
coloquial, entendível por qualquer pessoa, seja<br />
ela alfabetizada ou não. Enquanto ele é tudo isso, o jornal<br />
impresso é mais profundo, mais detalhista, com uma<br />
notícia mais apurada, mais firme, mais consistente: um<br />
documento.<br />
Foi uma época de muito encanto, quando podia me<br />
envolver com as duas atividades e me deliciar com<br />
cada uma delas. Eram dias de muito trabalho e super<br />
lotados de afazeres, entretanto, eu tinha de fazer tudo<br />
naquela época. Várias vezes, no Mix, o Francis me deixou<br />
ler textos meus, feitos recentemente, ao vivo, além<br />
de divulgar textos em blogs, sites, no jornal e sempre<br />
comentar das oficinas.<br />
Pelo MSN, onde mantínhamos contato direto, sugeria<br />
entrevistados e pautas e sempre puxava sardinha para o<br />
lado do hip-hop, claro, como quando pude levar, pela primeira<br />
vez, o UClanos para participar do programa e tocar<br />
ao vivo algumas das novas composições do grupo. Outra<br />
vez foi quando Francis me ligou desesperado pedindo<br />
que eu participasse do programa que iria um grupo novo<br />
de rap na cidade e que ele queria alguém que entendesse<br />
para entrevistá-los.<br />
Após este programa, a dona de uma autoescola que fica<br />
em frente ao estúdio da rádio conseguiu meu telefone<br />
pessoal no jornal e me ligou pedindo o contato do grupo,<br />
que fez uma música que se trata de um alerta sobre<br />
o trânsito e a direção perigosa e ainda fez questão de<br />
comprar um livro, me fazendo prometer que quando eu<br />
lançasse um segundo, guardaria um exemplar para ela.
226 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
227
228 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
229<br />
O reconhecimento do rádio também era uma coisa que<br />
me deixava bastante feliz. Por ser tão abrangente, muita<br />
gente ficava se perguntando como eram as pessoas que<br />
atuavam lá. O Francis, a Neusa, outros apresentadores<br />
e até eu mesma e quando descobriam orkut, MSN,<br />
e outras ferramentas virtuais, não paravam de escrever<br />
querendo ver pessoalmente e tudo mais. Aí então percebi<br />
o valor e a responsabilidade das informações.<br />
Quando eu ia sozinha, no período da tarde, entrevistar<br />
alguém, no outro dia passava esta entrevista ao Edu e<br />
elas iam ao ar, com as minhas perguntas, intervenções<br />
e com a minha voz.<br />
Outro fator positivo era a popularidade concedida pelo<br />
rádio, que me impulsionava ainda mais a buscar outros<br />
trabalhos voluntários e sempre ligados à cultura marginal.<br />
Minha parceria com o Edu continuou, estávamos sempre<br />
juntos, fazendo as matérias pela manhã e tentando praticar<br />
um jornalismo responsável no município, quando,<br />
numa segunda-feira bem cedo, meu telefone toca.<br />
— Alô.<br />
— Jéssica. Bom dia. (reconheci a voz bem impostada de<br />
locutor de rádio).<br />
Interrompi:<br />
— Fala Francis! O que você manda?<br />
— Você pode me salvar? A Neusa está doente e não<br />
vem trabalhar hoje. Estou desesperado, não sei fazer o<br />
programa sozinho.<br />
— Claro, pode contar comigo. Às 11h, estarei aí.<br />
E assim foi. Cheguei na rádio também ansiosa, afinal,<br />
eu sempre participava ajudando nas entrevistas, mas<br />
nunca havia sido âncora. Tomei coragem e fomos para<br />
o estúdio. No ar o programa fluiu tranquilamente e ao<br />
término conseguimos arrancar elogios dos donos da<br />
rádio. Embora eu não ganhasse um só centavo por estas<br />
participações e tudo mais e muita gente me criticasse,<br />
achando que eu deveria cobrar ou então abrir mão, eu<br />
ganhava bem mais que isso. A experiência em trabalhar<br />
num programa de entretenimento ou de participar<br />
de debates era algo incrível. Nenhum dinheiro poderia<br />
pagar tudo que eu estava aprendendo. Aos poucos,<br />
fui também arriscando algumas matérias para a AM.
No ar: o hip-hop<br />
231<br />
Pelas periferias<br />
do Brasil<br />
Entre pautas, e-mails, MSN, telefone tocando e gente<br />
berrando, numa cena típica de qualquer redação de jornal<br />
do Brasil é que eu recebi, de forma bastante natural,<br />
o convite para participar da coletânea “Suburbano Convicto<br />
– Pelas Periferias do Brasil”.<br />
Era o início do projeto e o Buzo me disse ter gostado de<br />
alguns textos meus que circulavam na rede e queria que<br />
eu somasse ao livro. Quase sem reação – mas explodindo<br />
de felicidade – aceitei no ato e pensei em como<br />
a vida é engraçada. Poucos meses antes eu estava trocando<br />
farpas com ele via internet e agora ele me convidava<br />
para participar de um livro que seria mais um<br />
ponto de mudança na minha existência. A regra para<br />
participação era morar na periferia, estar envolvida, de<br />
alguma maneira, com a cultura marginal e ter ou participar<br />
de algum projeto social, além de ser iniciante no<br />
mundo da literatura, ou seja, não ter nada publicado<br />
por alguma editora grande. Inicialmente eu atendia os<br />
requisitos e estava dentro.<br />
O desafio era produzir ou usar textos já feitos, mas que<br />
versassem sobre o tema que eram as periferias. Quanto<br />
mais perto da realidade da própria quebrada, melhor.<br />
Aos poucos o Buzo montou uma lista de e-mails coletiva<br />
que era praticamente um fórum, onde todos escreviam,<br />
perguntavam e trocavam mensagens. Fiquei surpresa<br />
por ver que eu era a segunda mulher do livro. Além de<br />
mim, do sexo feminino havia apenas a Mary do Rap, do<br />
Rio Grande do Sul.<br />
Curiosa por conhecer cada um dos outros 12 autores de<br />
outros seis Estados do país, passei a responder alguns<br />
e-mails e tentar firmar amizades. É incrível como a afinidade<br />
virtual acompanha a da vida real e cada pessoa<br />
reagiu de uma forma, mas todos me escreveram. Minha<br />
maior curiosidade era saber, por meio dos textos, como<br />
era a periferia e a vida de cada um. Alguns prazos foram<br />
dados para envio dos textos e também das fotos (com<br />
qualidade) para compor o livro, uma vez que cada autor<br />
teria o rosto estampado antes dos textos.<br />
No prazo final, mandei os textos, paguei a pequena participação<br />
de cada um e aguardei a resposta, quando veio<br />
um e-mail do Buzo lamentando e dizendo que faria de<br />
tudo, mas que outra parte da organização estava barrando<br />
meus textos. Fiquei tão desnorteada que nem<br />
lembro direito o motivo. Talvez fosse porque os meus<br />
projetos sociais fossem espaçados e não tivessem ainda<br />
um nome específico. Apesar das oficinas e eventos que<br />
eu participava como idealizadora e tudo mais, talvez não<br />
fosse suficiente para aprovação para ter o nome do livro.<br />
Três dias depois – de pura agonia durante a espera – Buzo<br />
me mandou um novo e-mail, dizendo que havia batido o<br />
pé – e na mesa também – praticamente exigindo a minha<br />
participação e apoiado no meu texto “Olhar para o hiphop<br />
que ...”, feito para a introdução do livro-reportagem<br />
“Hip-Hop – A Cultura Marginal” e que ele havia gostado,<br />
por isso, se tornou parte do Suburbano e, também, com<br />
o texto “Será mesmo uma ironia”, produzido com base<br />
numa charge do Angeli que toda a turma de jornalismo<br />
do 4° ano, isso na época da faculdade, devia analisar e<br />
escrever um texto sobre. Inspirada pelos textos da revista<br />
“Caros Amigos” naquela época, produzi o seguinte:<br />
230
232 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
233<br />
Será mesmo uma ironia?<br />
Casas sem reboco, dependuradas nos morros e encostas,<br />
vielas sujas e abandonadas, o mau cheiro dos esgotos a<br />
céu aberto misturam-se com o mau cheiro da violência.<br />
Milhares de crianças estão sem escola, envolvidas com o<br />
tráfico de drogas. A violência é generalizada. Exploração<br />
do trabalho. Subemprego, ônibus, trens e metrôs. Chacinas<br />
e invasões policiais.<br />
Este é o retrato da senzala moderna, mais conhecida<br />
como favela, periferia ou gueto. Crianças estão jogadas,<br />
largadas por todos os cantos, tentando fazer do duro e<br />
sofrido dia a dia algo mais leve e alegre. Os campinhos de<br />
futebol estão presentes em toda parte, na terra batida,<br />
com traves improvisadas e bolas roubadas.<br />
“— Aqui não era para ser um campo de futebol?” perguntam<br />
alguns garotos ao se depararem com um cemitério<br />
clandestino no meio da favela.<br />
Sim, a sociedade promete, a elite ironiza, e a guerra continua.<br />
A céu aberto estão covas e corpos, sangue fresco<br />
de quem morreu há pouco, e é enterrado ali mesmo,<br />
como indigente, com a mãe chorando ao lado. Lágrimas<br />
desesperadas, de quem já previa o futuro do filho.<br />
A cena é típica em qualquer “submundo” brasileiro. E, por<br />
mais que os habitantes dos morros gritem por socorro, a<br />
resposta vem como um tiro de fuzil, disparado por policiais,<br />
toda semana na quebrada.<br />
Aliás, a polícia e a sociedade matam mais do que a AIDS.<br />
Uma situação irônica? Acho que mais triste e desesperadora<br />
do que qualquer outra coisa.<br />
Que futuro tem a criança que dribla a bola em meio aos<br />
corpos caídos na favela? Pelos becos e vielas também<br />
há outros, esperando uma vaga no novo “cemitério” que<br />
está sendo construído.<br />
Do lado de lá, no asfalto, a “burguesia” delicia-se com o<br />
fato irônico, tentando explicar como ele foi descoberto,<br />
contanto piadas acerca da situação. A imprensa adora,<br />
é mais sangue estampado na primeira página. É uma<br />
branda denúncia ao sistema?!<br />
A solução? Ninguém conhece. Se conhece, desconhece.<br />
O menino que queria o campo de futebol prometido sonha<br />
a noite, com uma bola nova, um par de chuteiras, e um<br />
campo igual ao que ele vê na TV. Mas ele vai ter de esperar,<br />
crescer para poder virar ladrão, traficante e respeitado<br />
no morro, aí vai poder comprar tudo isso, se ele não<br />
morrer e cair na cova de mais um cemitério que poderia<br />
virar quadra esportiva.<br />
E mesmo contra a vontade de alguns, eu pulei para o<br />
lado de dentro do muro. O próximo passo era aguardar<br />
a impressão e acompanhar os passos por e-mail. O feitio<br />
da capa. Cada autor também deveria responder uma<br />
entrevista para o Buzo, que iria para o site Buzo Entrevista<br />
e em uma das principais perguntas, sobre como<br />
estava sendo participar da coletânea, eu disparei: “Só<br />
é positivo” e ainda pontuei ser por conta dos amigos feitos,<br />
a chance de praticar a profissão e também de fazer<br />
bons e grandes amigos. E foi justamente isso que ficou,<br />
até porque os 30 exemplares recebidos por cada autor<br />
acabariam rapidamente, mas as portas abertas e os<br />
contatos feitos seriam por toda jornada.<br />
E assim foi. No dia 25 de setembro de 2007 – data do<br />
aniversário do Buzo – estava marcada a festa de lançamento<br />
na Ação Educativa, em São Paulo. Tudo era<br />
novidade. Embora os autores marginais estivessem lançando<br />
livros com uma frequência cada vez maior, ainda<br />
não era semanalmente e o lançamento fez um pouco de<br />
barulho e chamou atenção.
234 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
235
236 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
237<br />
Antes de ir comuniquei aos garotos das oficinas e todos<br />
ficaram muito orgulhosos, afinal, o que eu falei logo nos<br />
primeiros encontros estava realmente acontecendo e<br />
era época de colher os frutos e um trabalho bastante<br />
árduo. Para faltar ao emprego, tive de deixar matérias<br />
frias prontas e pedir, meses antes e com muito jeitinho<br />
ao meu patrão, que eu sabia, não gostaria que eu fosse.<br />
Não havia como não ir.<br />
Emoção. Assim pode ser resumido, seguramente, um<br />
dos dias mais felizes da minha vida. Entre muitos livros,<br />
revistas e publicações de todos os cantos do Brasil, eu<br />
deixei a sede da ONG Ação Educativa mais de 0h, acompanhada<br />
pela minha família e com a alma leve. Eu havia<br />
conseguido e o livro “Suburbano Convicto” estava publicado,<br />
pronto para ganhar as várias periferias brasileiras.<br />
Este dia tão importante começou na terça-feira pela<br />
manhã. Fiz uma extravagância para o meu salário e<br />
fui ao salão de cabeleireiro. Tingi e fiz escova. Pintei<br />
as unhas. Poucas foram as vezes em que fiz isso fora<br />
de casa. A verba curta não permitia, mas para o lançamento<br />
de um livro era obrigatório.<br />
Durante a viagem até São Paulo me deixei chorar por<br />
um longo trecho, principalmente quando passamos por<br />
Mogi Mirim, cidade onde vivia a Anita. Lamentei de verdade<br />
o fato dela não estar mais viva e não poder partilhar<br />
da minha felicidade.<br />
Seguimos e o tempo voou até o horário do lançamento, às<br />
19h, no centro. Levei toda a família — pais, irmã e sobrinhas<br />
gêmeas, na época com seis anos — além de convidar<br />
alguns amigos que nunca tinham ouvido falar em<br />
literatura marginal, primos que cruzaram toda cidade<br />
apenas para me ver e prestigiar o lançamento, além de<br />
um amigo de muito tempo — do litoral — que não via há<br />
anos e uma amiga que conhecia pela internet há exatos<br />
dez anos, com quem já havia trocado todo tipo de confidências,<br />
mas nunca tinha visto pessoalmente.<br />
Em uma noite cheia de primeiros encontros e também<br />
reencontros, me lancei ao fundo de mim mesma e reencontrei<br />
minha essência, meus sonhos, minhas verdades.<br />
Nos olhos de cada um dos participantes que sei que<br />
estavam ali após um dia duro de trabalho e que, mesmo<br />
assim, estavam produzindo literatura, e falavam de suas<br />
vidas por meio dos livros. Registravam com palavras,<br />
poesias e lançamentos de livro nossa história de guerra<br />
urbana, civil, de opressão e descaso. Encontrei-me com<br />
o povo que quero ao meu lado e em que acredito. Percebi<br />
o tipo de trabalho que queria fazer e a urgência com<br />
que isso precisava acontecer na minha quebrada. Fiquei<br />
emocionada com cada autor que Buzo chamou ao palco<br />
e antes de entregar o microfone, falou um pouco da “biografia”<br />
e da quebrada da pessoa. Não senti meus pés no<br />
chão quando foi a minha vez, mas não me esqueço da<br />
cena. Embaixo do palco, meus primos me fotografavam.<br />
Minha amiga-irmã que era de Poços de Caldas e estava<br />
morando em São Paulo para tentar “ganhar a vida” me<br />
olhava cheia de ternura. Minhas sobrinhas se deslumbravam<br />
com toda a cena e meus pais e irmã sorriam<br />
orgulhosos. Os espectadores se expressavam curiosos e<br />
atentos. Estavam ali porque queriam, ninguém os tinha<br />
forçado a nada e era o nosso sarau, o nosso lançamento,<br />
a nossa poesia e a nossa vida.<br />
O Buzo sempre fez questão de frisar que nosso livro<br />
deveria ser o livro e não apenas mais um livro que falasse<br />
sobre periferia. Não sei para os outros 12 autores, mas<br />
para mim foi exatamente o que aconteceu. Chegou para<br />
somar e mudou tudo, para melhor.
238 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
239<br />
Numa festa com cerveja, refrigerante e amendoins, paramos<br />
para conversar com todos, trocar informações sobre<br />
as quebradas e nos conhecermos um pouco mais. Espantei-me<br />
quando alguém pediu que eu assinasse o livro e,<br />
ainda mais, para tirar uma foto comigo. Fiz toda a cena<br />
conforme deveria ser e fiquei ainda mais emocionada<br />
quando o Buzo veio comentar o fato de eu ter levado minha<br />
família, cheia de crianças, para conhecer mais a literatura.<br />
Ele me disse “puxa, é superimportante ver as crianças<br />
tão à vontade num ambiente assim, em meio aos livros”.<br />
E foi realmente superimportante. Meu primo mais novo –<br />
na época com oito anos – fez questão de conversar com<br />
cada um dos autores e também tirar fotos, além de pedir<br />
que todos autografassem o exemplar que ele comprou.<br />
Outra cena marcante, e também inspiradora, foi ver que<br />
um amigo do meu pai, convidado por ele, foi até o lançamento.<br />
Os dois se conheceram aos 18 anos, enquanto<br />
serviam o exército e quarenta anos depois se encontravam<br />
para bater papo e acompanhar o lançamento. O<br />
mais bacana é que o amigo do meu pai, um descendente<br />
de japonês, nunca tinha ouvido falar em literatura periférica<br />
e ficou deslumbrado. Comprou dois livros e ainda<br />
me pediu um exemplar do “Hip-Hop – A Cultura Marginal”.<br />
Neste mesmo momento conheci o rapper e escritor Renato<br />
Vital. Da Zona Sul de São Paulo, ele chegou de mansinho,<br />
pediu para tirar uma foto, trocar uma ideia. Ficamos amigos,<br />
trocamos e-mails e um tempo depois, confidências.<br />
Ganhei um texto de presente dele:<br />
Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
por Renato Vital<br />
Seu sorriso encanta<br />
Sua coragem é tanta<br />
Tem na mente e no coração<br />
Armas para revolução<br />
Sua beleza é mais do que isso<br />
Beleza inteligência no nível<br />
Com sua inteligência ativa<br />
Muda as pessoas a quem cativa<br />
Ama o Hip-Hop de coração<br />
Considera de verdade os irmão<br />
Vive a vida na correria<br />
Sempre batalhando no dia a dia<br />
Cabelos longos<br />
Longos como a jornada<br />
Jornalista do Jornalismo<br />
Jornada imensa, imenso caminho<br />
Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
Seu olhar brilha<br />
Seu rosto que penumbra<br />
Através da luz<br />
A caneta na sua mão<br />
Vai desenhando o futuro<br />
Carimbando com sua inteligência<br />
Todo e qualquer ser imundo<br />
Sua beleza faz parte<br />
De sua ideologia<br />
Que também é bela<br />
Justiça aqui na terra
240 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
241<br />
Quando anda pelas ruas<br />
As flores sentem seu cheiro<br />
O vento sopra mais leve<br />
E o sol ilumina seu jeito<br />
As palavras em seu nome<br />
Se transformam nas palavras<br />
Desse humilde poeta<br />
Que corteja sua face<br />
Ela vai caminhando<br />
Em busca de seus objetivos<br />
Com seu charme mineiro<br />
Olha para mim sorrindo<br />
O seu sorriso faz parte<br />
Da sua pessoa então<br />
Que complementa sua beleza<br />
Junto com sua simpatia<br />
Jéssica és bela<br />
Suas palavras te cercam<br />
Seu sorriso se preza<br />
É uma linda guerreira aqui na terra.<br />
Incrível como uma noite tão mágica pode proporcionar<br />
tantas mudanças e ao mesmo tempo desperta mais<br />
interesses.
No ar: o hip-hop<br />
243<br />
Do lado de dentro<br />
da periferia<br />
Do lado de cá. O lado que poucos conseguem enxergar<br />
e que é colorido pela magia das ruas, das casas simples,<br />
das pessoas cheias de vida e da realidade encoberta<br />
e deturpada pelos noticiários e donos do poder.<br />
É deste lado que eu sempre estive e fazia questão de<br />
estar. Estas pessoas cheias de vida são as que eu queria<br />
defender com as armas que me foram dispostas: o<br />
hip-hop e as palavras.<br />
Como lugar de repórter é na rua, em uma manhã eu<br />
estava com meu parceiro de trabalho Eduardo Correia,<br />
repórter da Rádio Difusora, quando caçávamos uma<br />
pauta boa para o dia e nos deparamos com um menor<br />
que abordava quem passava pelo local. O frio na cidade<br />
era de rachar e havia chovido durante toda a noite, deixando<br />
as ruas todas molhadas. Resolvemos descer do<br />
carro e conversar com o garoto, que quando nos viu mais<br />
próximos ficou receoso e tentou fugir. Numa conversa<br />
rápida ele nos contou o que estava fazendo em Poços<br />
de Caldas e o que sonhava para a própria vida. Ainda de<br />
forma rápida, nos disse que gostava muito de cantar e<br />
que seu estilo preferido era o rap. A cena que já havia<br />
chamado a minha atenção causou revolta. O jovem de 17<br />
anos, com documentos enfiados num saquinho plástico,<br />
roupas maltrapilhas e a voz falha de anos consumindo<br />
crack me fizeram ligar o gravador e propor a ele uma<br />
matéria para o jornal. O Edu fez o mesmo e propôs uma<br />
matéria em conjunto para o rádio.<br />
A maior indignação é que, dias antes, o prefeito e o vice<br />
tinham aparecido em toda mídia local anunciando que<br />
Poços de Caldas havia sido considerada a 4ª melhor<br />
cidade do país em qualidade de vida. Mas se havia qualidade<br />
na vida daquele menor, onde ela estava? Embasados<br />
nestas perguntas passamos a questionar o jovem.<br />
Para o jornal, a reportagem abaixo é que foi escrita:<br />
Problemas sociais são detectados em Poços de Caldas<br />
Por Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
Participação Eduardo Correia<br />
“Quando eu ficar mais velho, quero arrumar um serviço e<br />
ser gerente. Quero trabalhar, ganhar meu dinheiro e não<br />
precisar mais ficar na rua. Quero alugar uma casa para<br />
morar, se Deus quiser”, conta Lucas Pedro da Silva, 17<br />
anos, mas pela baixa estatura e os traços infantis aparenta<br />
ter bem menos.<br />
Engana-se quem pensa, ou afirma, que em Poços de<br />
Caldas não existe moradores de ruas ou mendicância.<br />
A reportagem do Jornal de Poços pode comprovar isto<br />
através da história de Lucas.<br />
Durante a fria manhã de terça-feira (17), o garoto está no<br />
Parque José Affonso Junqueira, atrás do Palace Hotel,<br />
“trabalhando” como flanelinha ou “guardador de carros”,<br />
como ele diz.<br />
Lucas conta que veio da cidade de Caconde, interior de<br />
São Paulo, para Poços de Caldas há pouco mais de um<br />
mês e que está morando na rua. “Eu saí de casa porque<br />
meu pai morreu já faz tempo e minha mãe bebe, não<br />
dá para ficar com ela, ela me agride. Então eu vim para<br />
242
244 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
245<br />
Poços, pedindo carona e hoje eu moro na rua. Durante<br />
o dia eu guardo os carros e à noite eu fico embaixo de<br />
alguma ponte ou cobertura.”<br />
O garoto, que usa roupas e sapato folgados para o corpo<br />
e tem o cheiro de quem não toma banho há bastante<br />
tempo, diz que com as moedas que ganha olhando os carros,<br />
compra comida. Os banhos são tomados em postos<br />
de gasolina e as roupas foram ganhas na rua.<br />
Para suportar as baixas temperaturas do inverno poçoscaldense<br />
o garoto diz que tem um cobertor e que deixa<br />
guardado embaixo dos trailers que vendem lanches na<br />
praça.<br />
Para os moradores da cidade, como o motorista particular<br />
Wellington Silva Alves, encontrar crianças moradoras<br />
de rua em Poços de Caldas é uma situação estranha. “Eu<br />
me surpreendi muito ao ser abordado por este garoto,<br />
porque eu sempre trago meu patrão aqui na praça e esta<br />
é a primeira vez que eu vejo alguém na situação dele.<br />
Infelizmente a desigualdade social está no Brasil todo e<br />
a gente pode ver que a tendência é piorar cada vez mais.<br />
Poços de Caldas sempre foi vista como uma das cidades<br />
com o maior Índice de Desenvolvimento Humano e agora<br />
está recebendo este tipo de coisa, vemos muitas pessoas<br />
por aí andando de carros importados, mas também<br />
vemos que a pobreza está cada vez mais intensa aqui na<br />
cidade, infelizmente”, diz.<br />
Ao ser questionado sobre a vida na rua, Lucas diz que é<br />
feliz com a vida que leva e conta que nunca foi agredido<br />
por outras pessoas, nem pela polícia. “Acho que a polícia<br />
até ficou feliz em saber que estou aqui olhando os<br />
carros, porque, antes, os garotos murchavam os pneus,<br />
riscavam, eu não, fico só olhando mesmo, este é o meu<br />
trabalho”, defende.<br />
Ele conta também que já usou drogas, como maconha,<br />
mas que parou há algum tempo. “Hoje não uso mais nada,<br />
também não estudo. Já tentei procurar um emprego normal,<br />
mas não acho serviço. Quero sim, poder trabalhar e<br />
alugar uma casa”, reforça.<br />
O psicólogo residente em Poços de Caldas, Fábio Rimenschneider,<br />
acredita que o que faz a criança ou adolescente<br />
abandonar o conforto do lar, por mais humilde que seja, e<br />
viver na rua são um grupo de fatores como a questão econômica<br />
e a questão das relações interpessoais. “Ao lidar<br />
com menores carentes e infratores, ao checar a história,<br />
descobrimos um lar absolutamente caótico, rompendo<br />
com o equilíbrio familiar e, se esse cuidado básico não<br />
vem, a criança tende a comportamentos delinquentes ou<br />
vai às ruas, buscar algum reconhecimento, e isto leva a<br />
uma perversidade e estas crianças acabam sendo vítimas<br />
de organizações e facções criminosas. Surpreendeme<br />
que isto tenha chegado em Poços. É duro sermos tão<br />
fatalistas, mas quando uma criança sai às ruas e tem de<br />
sobreviver ali, já há um rompimento com o futuro dela.<br />
Não estou generalizando, mas na maioria das vezes é<br />
assim que acontece”, pontua.<br />
Assistência Social<br />
A Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas)<br />
tem um trabalho chamado Atendimento Cidadão, que<br />
recolhe as pessoas em situação de risco das ruas da<br />
cidade e as encaminha para centros de tratamento e de<br />
Desenvolvimento Humano.<br />
Por intermédio de telefones emergenciais, a Semas<br />
presta o serviço de recolher as pessoas. No entanto,<br />
nesta manhã, o número de telefone divulgado pela Semas<br />
foi chamado para prestar atendimento ao garoto, no<br />
período de uma hora, nenhuma mobilização ocorreu por<br />
parte da Semas.<br />
Procurada pela reportagem, a coordenadora do setor emergencial<br />
da Assistência, Rosa Fleming, informou que desconhece<br />
o fato. “É muito estranha esta história. Não chegou<br />
ao meu conhecimento este fato. Estou surpresa”, afirma.
246 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
247<br />
Ela diz ainda, que, em casos semelhantes, envolvendo<br />
menores de idade, o Conselho Tutelar é acionado e<br />
procura entrar em contato com a família e cidade de<br />
origem da criança ou adolescente, buscando o melhor<br />
encaminhamento.<br />
O Conselho Tutelar do município também disse desconhecer<br />
o fato e informou que, em situações como esta, o Conselho<br />
Tutelar da cidade de origem é procurado e enquanto<br />
as informações são levantadas, a criança ou adolescente<br />
é mantida em abrigos. “Por isso estamos lutando por uma<br />
casa de passagem para crianças e adolescentes aqui na<br />
cidade. Fatos como este não são frequentes, mas já aconteceram<br />
e a nossa instrução é para que o Atendimento<br />
Cidadão seja chamado”, diz Sandra de Fátima dos Santos<br />
Lapa, coordenadora do Conselho Tutelar.<br />
A Guarda Municipal, que é o órgão que recebe as ligações<br />
através do plantão de emergência da Assistência Social<br />
afirma que apenas recebe as ligações e as encaminha<br />
para a viatura do atendimento social que fica pelas ruas<br />
da cidade realizando o patrulhamento.<br />
“O que observamos é que os chamados aumentam durante<br />
o inverno, pois muita gente fica penalizada de ver pessoas<br />
na rua com o frio que faz na cidade. Porém, um dado interessante<br />
que temos aqui em Poços é que não há moradores<br />
de rua. Existem, sim, pessoas morando na rua, mas em<br />
todos os casos, são pessoas que têm famílias e que por<br />
algum desentendimento acabam indo para a rua”, conta o<br />
inspetor Marcelo Bastos, da Guarda Municipal.<br />
Contudo, a Assistência Social disse que irá averiguar<br />
a situação de Lucas e encaminhá-lo ao melhor tratamento<br />
possível.<br />
Apesar da reportagem não ser nenhuma novidade nos<br />
grandes centros urbanos do país. No centro da cidade de<br />
Poços representou uma cena pouco comum. Mais além,<br />
enquanto lugar-comum, passa despercebido aos olhos<br />
de toda a população e se ninguém gritar ao mundo que<br />
estes seres tratados como invisíveis existem, eles vão<br />
realmente se tornar ocultos no corre-corre do dia a dia e<br />
nada será feito, fazendo com que as cidades do interior<br />
se transformem, mesmo que em pequenas proporções,<br />
em abrigos de problemas, como as capitais.<br />
Para tentar defender isso e garantir não apenas ao Lucas,<br />
mas a outros menores que enfrentem a mesma situação,<br />
tentamos fazer algo.<br />
Há muito tempo eu já me espelhava em profissionais<br />
como a Eliane Brum, que enxergava, enquanto jornalista,<br />
além do óbvio e sempre retratava histórias comuns<br />
de uma forma recheada de poesia e transformava a realidade,<br />
nos fazendo enxergar mais do que uma pessoa<br />
inserida em uma estatística ou problema social. Sempre<br />
busquei trabalhar como ela e ir além da pauta, além do<br />
que todos vão dizer, além do que todos já sabem, além<br />
da situação visível.<br />
Esta foi uma primeira tentativa e dar voz a um ser marginalizado<br />
e me deixou extasiada. A repercussão também<br />
foi boa e, no dia seguinte, enquanto Edu e eu enfrentávamos<br />
mais um dia frio em Poços de Caldas, ouvíamos<br />
o rádio onde um ex-vereador da cidade apresentava um<br />
programa matinal e discutia a manchete do jornal, que<br />
havia sido a reportagem do garoto e chamava a atenção<br />
das autoridades para o problema.<br />
A matéria foi também tema no “Debates Populares” e,<br />
desta vez, o Francis não aceitou o horário de almoço<br />
do Edu como desculpa e praticamente exigiu que participássemos<br />
do Mix. O que era para ser uma simples<br />
matéria de rádio AM se transformou quase em um minidocumentário,<br />
com trilha sonora e tudo, que o próprio
248 <strong>Traficando</strong> conhecimento No ar: o hip-hop<br />
249<br />
Edu gravou e que foi ao ar durante todo aquele dia, também<br />
na FM, através do Mix. O assunto rendeu durante<br />
todo o programa e o pedido de intervenção para o problema<br />
rendeu ligações de políticos e participações ao<br />
vivo também no quadro.<br />
Acho que o mais comovente era a voz do garoto e o jeito<br />
dele falar quando sonhava em alugar algo e não precisar<br />
mais viver na rua. O sonho de Lucas era o mesmo de<br />
mais de 10 mil crianças que vivem nas ruas. Embora elas<br />
fiquem de fora dos censos feitos pelo Instituto Brasileiro<br />
de Geografia e Estatística (IBGE), uma pesquisa do Conselho<br />
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente<br />
(Conanda) estima que, entre crianças e adolescentes,<br />
mais de 10 mil vivem pelas ruas de todo país.<br />
Pode ser pouco, pode ser quase nada, mas foi o que deu<br />
para fazer com aquela primeira matéria que, mais tarde,<br />
inspirou uma série de reportagens.
No ar: o hip-hop<br />
251<br />
Plano B<br />
E se o que planejamos não der certo? E se surgirem<br />
imprevistos? Devemos sempre ter um Plano B. Foi assim<br />
que li em um livro com este título e, desta forma, começou<br />
a apresentação de um grupo de estudantes da<br />
minha classe para o TCC.<br />
Foram aprovados com a nota 10 porque a 11 não existe.<br />
Só por terem feito algo inédito na faculdade: um programa<br />
televisivo com formato de revista eletrônica com<br />
o público-alvo, em Poços de Caldas, de 18 a 24 anos. Foi<br />
louvável.<br />
Uma das três matérias do programa era sobre hip-hop,<br />
na fonte de Leãozinho, onde surge a união entre o patrimônio<br />
material e imaterial da cidade. Com isso, o grupo<br />
conseguiu apoio de uma produtora e comprou um horário<br />
nas tardes de sábado com reprise no domingo na<br />
recém-fundada TV Plan.<br />
O programa, assim como a TV, era uma promessa de<br />
entretenimento e fui convidada pelo idealizador, Jorge<br />
Junior, que era também o apresentador, para montar um<br />
quadro onde eu percorreria todas as periferias da cidade<br />
e falaria com as mais variadas tribos urbanas e expressões<br />
de cada quebrada, a começar, é claro, pelo hip-hop<br />
e as oficinas de literatura na Zona Sul.<br />
Como ele já tinha alguns programas gravados, fui para<br />
estúdio apenas para gravar uma participação sobre o<br />
livro, uma breve explanação do que é a cultura marginal<br />
e para anunciar que a melhor frase sobre o programa<br />
concorreria a um exemplar do “Suburbano Convicto”.<br />
Como minhas afinidades eram, até então, com jornal<br />
impresso e eu estava descobrindo o rádio naquele<br />
tempo, não sabia como me sairia na TV, mas acreditei<br />
que poderia tentar, elaboramos um roteiro e empacamos<br />
um nome para o quadro. Após várias reuniões de<br />
brainstorm, me inspirei no nome do CD que o UClanos<br />
estava gravando e disparei: Pelos Cantos. O quadro vai<br />
se chamar Pelos Cantos, pois vou percorrer cada quadradinho<br />
da periferia de Poços.<br />
A ideia era trazer para a nossa realidade algo parecido<br />
com o quadro Central da Periferia, feito pela Regina<br />
Casé, no Fantástico, mas havia um único inconveniente.<br />
Meu patrão, senhor dos escravos modernos, não queria<br />
que eu participasse de programas televisivos e nem<br />
fizesse freelas, alegando que eu deveria ser funcionária<br />
exclusiva do jornal, podendo fazer apenas algumas participações<br />
na rádio.<br />
Mas, como eu já estava de saco cheio da imposição de<br />
regras sem pé nem cabeça, resolvi arriscar. Contudo,<br />
antes de começarmos as gravações para valer, a TV saiu<br />
do ar por falta de uma concessão do Governo Federal<br />
e não dava para manter o programa e nem para levá-lo<br />
para a outra emissora da cidade. Como demorou mais<br />
do que os dois meses previstos para que a concessão<br />
saísse, o Jorge abandonou o sonho que tinha e se mudou<br />
para São Paulo, onde iria trabalhar em uma empresa<br />
multinacional. Lamentei não ter podido colocar em prática<br />
o quadro, que seria quinzenal dentro do programa.<br />
250
252 <strong>Traficando</strong> conhecimento<br />
As poucas edições que foram ao ar fizeram sucesso e o<br />
quadro que eu participei, sorteando o livro, me trouxe<br />
um pouquinho mais de publicidade, o que ajudou na articulação<br />
de projetos que eu tinha na mente, além de ter<br />
dado o livro de presente a um garoto que morava na Zona<br />
Leste da cidade.<br />
Quando ele foi até o estúdio retirar o prêmio, nos cumprimentou<br />
e disse: “Que ‘da hora’ a iniciativa do programa.<br />
Nem imaginava que existia gente em Poços para escrever<br />
sobre hip-hop. Tô bem feliz com o presente.”<br />
Assim, apesar do pouco tempo em que o sonho durou,<br />
valeu a pena ter tentado e as ideias ficaram para uma<br />
próxima oportunidade. Quem sabe de uma outra vez.
No ar: o hip-hop<br />
255<br />
Cultura Marginal<br />
positiva que só a periferia tem e que só os talentos da<br />
quebrada conseguem proporcionar através das próprias<br />
manifestações artísticas.<br />
Claro que eu gostaria que o evento tivesse reunido a<br />
região toda, que as pessoas fizessem fila para entrar<br />
e que fosse um verdadeiro estouro, naquela tarde de<br />
domingo, contudo, mais uma vez, não tive tempo para<br />
lamentar porque a urgência em conseguir tocar novos<br />
projetos adiante era enorme.<br />
Durante as tempestades de ideias para dar um nome<br />
ao quadro que não foi ao ar, ficamos bastante tempo<br />
com o nome temporário de Cultura Marginal, até surgir<br />
o Pelos Cantos e trocarmos, mas a expressão não deixou<br />
de me acompanhar. Primeiro porque faz parte do<br />
nome do meu primeiro livro e segundo porque resume<br />
exatamente o que o hip-hop e a literatura são, juntos.<br />
Há tempos eu precisava de um nome para o projeto<br />
social das oficinas, das pequenas palestras e de todo<br />
o trabalho que eu pretendia realizar. O ano de 2007 já<br />
estava no final e para 2008 eu pretendia ainda mais atuação<br />
nesse sentido.<br />
Resolvi batizar o último evento daquele ano como Cultura<br />
Marginal. No centro comunitário do Cohab, onde<br />
aconteceu a primeira leva de encontros do Hip- Hop<br />
Sul, no início da década, formamos uma turma de colegas<br />
que dançavam e cantavam e tentamos atrair os<br />
garotos da oficina da escola do bairro e mais quem quisesse.<br />
Apesar de não ter tido um comparecimento em<br />
massa, foram mais de 100 pessoas, o que é pouco para<br />
o local. Continuamos a ler nossos textos em um sarau<br />
improvisado e sem muitas regras, mas com a energia<br />
254
Cap.05<br />
Em foco<br />
Cap.05<br />
Em foco
Em foco<br />
259<br />
Marginal” e “Suburbano Convicto”. Garanti que no final<br />
do evento alguns participantes ganhariam exemplares<br />
deste segundo.<br />
“Cinco elementos, humildade e talento, b.boy, DJ, Grafite,<br />
MC e <strong>Conhecimento</strong>... E conhecimento.”<br />
Com este pequeno refrão eu fiz a abertura do 1° Hip-Hop<br />
em Foco, que lotou o Teatro Municipal durante o Viva<br />
Urca – evento anual de atrações locais.<br />
Os mais de 700 lugares – poltronas e em pé – foram<br />
ocupados por jovens dos quatro cantos da cidade que,<br />
cheios de expectativa, pagaram o ingresso ao preço de<br />
R$ 3 que seria revertido para manutenção do Espaço<br />
Cultural da Urca e aguardavam, ansiosos, o início do<br />
evento que promete tudo que o hip-hop tem. As cinco<br />
manifestações reunidas em uma única noite, de forma<br />
histórica na cidade.<br />
Representando o 5º elemento da cultura – o conhecimento<br />
– subo ao palco com o nervosismo natural da<br />
“primeira vez que estou fazendo isso” e dou boa noite<br />
à casa cheia.<br />
Tremendo por dentro e tentando me controlar por fora.<br />
Digo baixinho para a emoção “fique ali do lado, na<br />
coxia e me observe, depois a gente comemora juntas o<br />
sucesso desta noite”, dei prosseguimento, explicando<br />
que estava ali em nome da literatura periférica, do meu<br />
trabalho com oficinas e dos livros “Hip-Hop – A Cultura<br />
A cada manifestação que subia no mesmo palco, intercalando<br />
a dança, o grafite, o DJ, o conhecimento e o rap,<br />
eu apareço para explicar o que aquilo significa, como<br />
surgiu e para o que serve. De uma forma simples e não<br />
professoral, a noite se transforma em uma enorme<br />
palestra-show sobre a cultura periférica de Poços que<br />
deu a oportunidade a todos os grupos, inclusive àqueles<br />
que nunca se apresentaram para tanta gente.<br />
Um beat, uma batida, um passo sincopado, um movimento<br />
mais forte e uma racha de break estão formados.<br />
Duas crews de diferentes regiões se confrontam no<br />
pequeno espaço do palco e arrancam suspiros da plateia<br />
que está ali. É visível que muitos turistas estão em contato<br />
com a cultura do hip-hop pela primeira vez na vida<br />
e alguns comentários como “eu só vi isso pela televisão”<br />
podem ser ouvidos.<br />
Mas, nem mesmo as explicações sobre a proposta inicial<br />
do hip-hop, de paz, amor, diversão e união para acabar<br />
com as brigas de gangues nas ruas consegue parar<br />
alguns representantes das duas crews, que se estranharam<br />
durante a dança e quando foram interrompidos<br />
pelo mediador partiram para uma discussão do lado de<br />
fora do espaço. Foi neste momento que alguns integrantes<br />
do Concepção Urbana que fazem parte do staff do<br />
evento, foram até lá para tentar apartar uma briga prestes<br />
a ser iniciada. Voltaram e comentaram que alguns<br />
dos garotos estão alcoolizados e foram mantidos do<br />
lado de fora do teatro.<br />
Volto ao palco com mais uma intervenção do 5° elemento<br />
e explico que é exatamente este tipo de comportamento<br />
258
260 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
261<br />
que a cultura hip-hop visa acabar e que ele pode ser<br />
alcançado através de qualquer uma das manifestações,<br />
dispostas como armas, feitas para combater a guerra<br />
diária travada entre grupos rivais, seja entre jovens,<br />
adultos, classes sociais ou grupos políticos.<br />
Enquanto falo, um jovem grafiteiro pinta, ao meu lado, a<br />
palavra PAZ em um painel de madeirite. Com destreza,<br />
ele conclui o desenho ao mesmo tempo em que eu me<br />
retiro, dando lugar a mais uma demonstração de dança.<br />
O inconveniente provocado pela briga entre as crews<br />
foi esquecido quando um grupo de rap subiu ao palco e<br />
desrespeitou o tempo limite de apresentação. Também<br />
estavam alcoolizados e deixaram de cumprir o acordo<br />
firmado com a organização, além de ferir os ouvidos do<br />
público com letras improvisadas de forma distante do<br />
verdadeiro hip-hop.<br />
Contudo, mesmo com esses vexames, o evento prossegue<br />
e eu já digo à emoção: “Não se entristeça. Estamos<br />
indo bem. Não é nossa culpa. A falha de algumas pessoas<br />
não deixa de ser poesia dura e marginal.”<br />
Produzir amor onde não há e cantar belezas onde não<br />
tem era exigir demais daqueles grupos que estavam<br />
despreparados para o evento. A falta de conhecimento<br />
do 5º elemento, que versa, justamente, sobre a sabedoria<br />
é o que culminou para cenas tão lamentáveis.<br />
As competições entre crews continuam, as apresentações<br />
de rap também e o DJ Dunha trabalha firme nas<br />
pickups para a minha entrada com algum dado e fato<br />
histórico que recheia o evento com um tanto da compreensão<br />
acerca da cultura marginal.<br />
Após quase três horas ali, a emoção que latejava no meu<br />
peito tinha conseguido se acalmar e quietinha, em um<br />
canto, me observa. Sou interrompida por Nando, que<br />
deveria estar no camarim se aprontando para fechar
262 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
263<br />
as apresentações da noite com uma coreografia montada<br />
especialmente para o evento. Ao lado de Mário,<br />
diretor do grupo, agradeço a presença de cada pessoa<br />
no público e espero, de coração, que o hip-hop em foco<br />
daquela noite tenha agregado coisas positivas.<br />
Nando me abraça, toma meu microfone e passa a ler,<br />
como quem representa – afinal, iniciamos juntos no teatro<br />
há alguns anos – o texto “Olhar para o hip-hop” e quando<br />
termina o público que ainda resta o aplaude em pé. Claro<br />
que essa euforia é quanto à performance empregada por<br />
ele e outro tanto pelo texto, que me enche, novamente,<br />
de orgulho. Não um orgulho explosivo, mas uma felicidade<br />
concreta por saber que, naquele fim de noite, muitas das<br />
pessoas que pagaram para estar ali deixariam o teatro<br />
após ouvir um pouco da nossa cultura pelas minhas<br />
palavras, escritas em uma largada de emoção, pressa e<br />
urgência em reportar toda a grandeza desta cultura.<br />
Para agradecer ao público presente, já no embalo do<br />
clima de sarau improvisado criado pelo Nando, sorteamos<br />
três exemplares do “Suburbano Convicto” e as pessoas<br />
que ganharam o livro puderam levar para casa um<br />
pouquinho de cada uma das 13 periferias espremidas<br />
entre as letras e fotos daquelas páginas do livro. Criamos,<br />
também, uma forma de agradecer os grupos que<br />
estiveram no evento e separamos troféus para os três<br />
melhores lugares de cada categoria: dança e música.<br />
Todos os participantes também ganharam um certificado<br />
de agradecimento e participação.<br />
Já com as cortinas abaixadas, grito a minha emoção, que<br />
sai de onde estava escondida e vem ao meu encontro.<br />
Pula sobre mim e me abraça, rodopiamos pelo teatro já<br />
com as cortinas abaixadas e corremos para abraçar a<br />
minha família, meus amigos e os grupos vencedores, que<br />
posam para fotos exibindo os troféus. O evento chega ao<br />
fim e o hip-hop, de uma forma ou de outra, apesar dos<br />
contratempos, esteve em foco naquela noite.
Em foco<br />
265<br />
3... 2... 1 gravando!<br />
A ideia de produzir TCCs sobre hip-hop para as universidades<br />
de todo Brasil ainda estava em alta e a cada<br />
mês, grupos de diferentes regiões entravam em contato,<br />
sempre através do blog, com pedidos de dicas, sugestões<br />
e tudo mais.<br />
No início de 2008 um grupo de São Paulo estava gravando<br />
um vídeo-documentário sobre a produção cultural na<br />
periferia e queria unicamente o capítulo que eu falava<br />
sobre literatura marginal, o sarau da Cooperifa e as iniciativas<br />
do Ferréz, do Buzo. Travamos contatos e mais<br />
uma vez a troca de experiências se relevou fundamental.<br />
Aos poucos os DVDs e outros trabalhos já produzidos<br />
foram chegando em minhas mãos e passei a separá-los<br />
para poder aplicar em oficinas.<br />
Vídeos como o produzido pela Kaká Soul, de Goiânia,<br />
e o produzido pela Érica Guimarães, de Campinas, se<br />
tornaram parte dos momentos em que eu passava na<br />
companhia dos alunos, desta vez pouco mais de meia<br />
dúzia, também selecionados pelos professores e diretores<br />
da escola para frequentar, uma vez por mês, as<br />
oficinas no período noturno.<br />
Exibir coisas produzidas por gente da periferia sobre a<br />
nossa cultura se tornou parte, também, da formação<br />
crítica desses estudantes, o que eu considerava fundamental<br />
para o sucesso das oficinas. Oficinas essas que<br />
deixaram de ser na escola e passaram a ser cada dia em<br />
um local, ora na quadra do bairro, ora na casa de alguém,<br />
ora no poliesportivo e assim por diante, de maneira<br />
informal, mas bastante produtiva.<br />
Outro ponto foi o lançamento de novos livros escritos<br />
por autores periféricos. Logo no início do ano surgiu um<br />
produzido pelo selo Elo da Corrente, que trazia a literatura<br />
do sarau comandado pelo Michel e pela Rachel, com<br />
textos e contos de gente superimportante para a quebrada.<br />
O livro “Prosa e Poesia Periférica” se revelou mais<br />
uma arma para o arsenal que estávamos montando em<br />
nossa quebrada.<br />
Alimento. Assim eu encaro as novas produções e, mesmo<br />
morando a pelo menos 280 km de São Paulo, onde a produção<br />
literária realmente acontece, acompanho por meio<br />
da internet o que surge de novo e sempre que posso compro<br />
os exemplares – e graças à amizade muitas vezes os<br />
ganho – e tenho a oportunidade de conhecer o que há de<br />
mais fresquinho saindo dos fornos periféricos e mostrar à<br />
turma de estudantes que, para que as coisas aconteçam,<br />
basta que nós tenhamos vontade de transformação.<br />
Com alguns exemplares do “Suburbano Convicto” em<br />
mãos o trabalho também ficou mais fácil. Resultados<br />
palpáveis chamam atenção dos jovens e em pouco<br />
tempo, pequenos textos também estavam sendo produzidos<br />
por eles.<br />
Com muita luta e confiança, pude – de forma bem real<br />
– mostrá-los à infinidade de blogs existentes na rede,<br />
todos tratando de hip-hop e literatura, sempre com novidades<br />
incríveis sobre o universo marginal.<br />
264
266 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
267<br />
O que ouvi foi “da próxima vez que eu for à lan house vou<br />
visitar o site” e também “vou deixar de jogar country<br />
strike e ler um pouco mais”. Frases como estas, soltas<br />
em meio às oficinas me fazem crer que as transformações<br />
são possíveis.<br />
Com o recurso audiovisual dos documentários e da confiança<br />
em cada um dos garotos para emprestar os meus<br />
materiais e deixá-los circulando na roda, de mão em<br />
mão, ficou mais fácil, também, verbalizar um pouco do<br />
contexto. Trabalhar com tudo isso em um horário tão<br />
ingrato como o que eu tinha de tempo disponível era<br />
como um brinde, uma promoção incrível, um número<br />
acertado na loteria.<br />
A maioria dos garotos que participava tinha entre 9 e 13<br />
anos e todos pediam mais clipes de rap, mais vídeos e em<br />
um dos encontros um pedido inusitado mexeu comigo,<br />
chamou minha atenção. Um dos garotos me lembrou que<br />
fazia tempo que não trazia um texto novo, feito por mim.<br />
Um conto talvez. Eu já havia lido “O homem do gueto”,<br />
“Uma brasileira”, os que estavam no “Suburbano” e algumas<br />
partes do livro-reportagem, sem falar nos textos do<br />
Elo da Corrente, do Sacolinha e do Buzo.<br />
O questionamento me fez reparar que eu estava tão<br />
embalada no Jornal de Poços, cobrindo a editoria de polícia<br />
que eu havia assumido no Carnaval e que não gostava<br />
nem um pouco, que não tinha mais tanta disposição para<br />
atualizar o blog ou mesmo escrever meus contos da literatura<br />
marginal. Percebi também que o tempo estava<br />
passando e que eu precisava, com urgência, me dedicar<br />
mais ao hip-hop. Reformulei o blog, fiz um layout diferente<br />
e soltei na rede textos novos. Produzi o conto “Periferia<br />
Adentro”, inspirado em uma realidade que observei<br />
durante as pesquisas do TCC e cheguei na oficina do mês<br />
seguinte toda feliz, mostrando o texto:<br />
Periferia adentro<br />
Quarta-feira, uma hora da tarde. O trem para. Estação<br />
Jaraguá, Zona Oeste, São Paulo, capital. Para sair do<br />
trem é um sofrimento já que ele está parado muito longe<br />
da plataforma e é preciso pular. É mês de julho, inverno.<br />
Mas o sol está muito quente. Passa dos 30°C. É preciso<br />
caminhar um quarteirão e tomar um ônibus para a Praça<br />
Panamericana. Uma praça bonita, porém, sem muito<br />
verde. Tem uma pista de skate toda grafitada, denunciando<br />
a presença do hip-hop por ali.<br />
Em frente ao supermercado Panamericano também há<br />
vários muros e fachadas de estabelecimentos comerciais<br />
exibindo seus grafites. Subindo uma ladeira íngreme dá<br />
para entrar em uma viela, cheia de casas próximas. É<br />
uma quase-favela. O real retrato do gueto, da periferia.<br />
Aliás, estas são as palavras que mais aparecem na literatura<br />
ou em qualquer coisa relacionada ao hip-hop e são<br />
quase endeusadas pelos autores e ativistas.<br />
Mas o gueto é ali mesmo, naquelas casas, com seus<br />
“muros” de madeira pichados e grafitados, com seus<br />
aparelhos de som “top de linha”, contrastando com a<br />
pobreza do lugar, e tocando rap no último volume. O rap é<br />
a trilha sonora deste pessoal, que encontra nas letras de<br />
protesto uma forma de gritar para o mundo, de chamar<br />
atenção da sociedade para seus problemas cotidianos.<br />
É nessa poesia urbana que eles encontram uma forma de<br />
extravasar tudo que lhes oprime.<br />
Saindo dessa rua, uma escadaria enorme tem de ser<br />
enfrentada e os moradores locais reclamam diariamente<br />
deste percurso. No topo do morro tem um portão branco e,<br />
descendo vários degraus, está à casa de Pow, 28 anos, integrante<br />
de um grupo famoso na cena do hip-hop paulistana.<br />
Ele anda o mais rápido que pode, vai se encontrar com o<br />
MC Eduardo, do grupo de rap e vão compor alguns sons<br />
para tocar no próximo baile da quebrada.
Em foco<br />
269<br />
Numa das vielas o cheiro de sangue fresco ainda é forte.<br />
São os vestígios de mais uma morte “da noite de ontem”.<br />
— Aqui não era para ser um campo de futebol? — perguntam<br />
alguns garotos ao se depararem com mais um<br />
corpo em um dos inúmeros cemitérios clandestinos no<br />
meio daquela favela.<br />
Pow não liga para os comentários. “É só mais um corpo”,<br />
pensa. Ele já está acostumado com a cena. “Corpo jogado<br />
na vala da periferia é o mesmo que moleque batendo bola<br />
no campinho. Faz parte do dia a dia, corre e volta a pensar<br />
na letra que está compondo.<br />
“Falta alimento em nossas mesas e o país é culpado”,<br />
cantarola baixinho.<br />
A céu aberto estão covas e corpos, sangue fresco de<br />
quem morreu há pouco, e é enterrado ali mesmo, como<br />
indigente, com a mãe chorando ao lado. Lágrimas desesperadas,<br />
de quem já sabia o futuro do filho.<br />
A indiferença está em quem passa. Pode ser conhecido<br />
ou não o corpo de quem está em uma das valas. Não<br />
vale a pena.<br />
A bola batendo entre os corpos transforma as covas em<br />
mais um campinho de futebol, entre os muitos já existentes<br />
nas periferias.<br />
Nos jornais, na banca em frente à Praça Panamericana<br />
estão diários, com manchetes como “Integrante de grupo<br />
de rap é morto após confronto com traficantes”, “Bandido<br />
é alvejado no Panamericano” e “Jovem rapper é morto por<br />
envolvimento com tráfico”.<br />
As fotos, ainda piores que as manchetes, trazem detalhes<br />
do corpo do jovem em meio às valas e a mãe, chorando ao<br />
lado. O menino que queria o campo de futebol prometido<br />
sonha à noite, com uma bola nova, um par de chuteiras,<br />
e um campo igual ao que ele vê na TV. Mas ele vai ter de<br />
esperar, crescer para poder virar ladrão, traficante e res-
270 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
271<br />
peitado no morro, aí vai poder comprar tudo isso, se ele<br />
não morrer e cair na cova de mais um cemitério que poderia<br />
virar quadra esportiva.<br />
Após enfrentar o morro e chegar em casa, Pow desembrulha<br />
a carne que comprou e no jornal vê o corpo do MC Eduardo.<br />
O grito, em forma de rap, ecoa por todas as vielas e chega<br />
ao ouvido dos mais desatentos: “Falta alimento em nossas<br />
mesas e o país é culpado.”<br />
Surpreendi-me ainda mais quando aquele mesmo garoto<br />
me trouxe um texto feito por ele. Era mais uma redação e<br />
dizia sobre o que ele gostaria para a vida dele no futuro.<br />
Desinibido e diferente de todos que eu já havia trabalhado<br />
até então, não teve objeções quando disse a ele para ler<br />
o texto em voz alta. Com a voz impostada, Rodrigo contou<br />
ao grupo que, antes das oficinas, tinha vontade de ser<br />
músico e depois, a vontade havia aumentado. Tinha vontade<br />
de ser músico e escritor.<br />
Como eu me senti? Não preciso nem relatar que absurdamente<br />
feliz e lisonjeada. Embora ele tivesse alguns erros<br />
de português e uma construção ainda um pouco precária,<br />
era ótima para a idade dele e pela falta de leitura também.<br />
A exemplo da oficina anterior, sugeri que ele passasse<br />
a ler um pouco de Pedro Bandeira, que tinha tudo a<br />
ver com a realidade e, novamente, o formato deu certo.<br />
Outra sugestão que resolvi trabalhar com os meninos<br />
foi o “Quarto de Despejo”, da Carolina Maria de Jesus.<br />
Sempre considerei uma grande obra e levei alguns trechos.<br />
Nas mãos dos garotos senti maior firmeza quando<br />
eles revelaram a identificação com a autora.<br />
Outro texto fundamental e que pode ser atrelado ao<br />
audiovisual foi “Cidade de Deus”, de Paulo Lins. Primeiro<br />
o livro e, por último, a exibição do filme. Um pouco<br />
antes havia também estourado no Brasil o documentário<br />
“Falcão e os Meninos do Tráfico”, acompanhado do livro,<br />
algo que também se tornou importante para as oficinas e<br />
passou a ser trabalhado em salas de aulas de todo Brasil.<br />
Outros projetos com hip-hop e literatura passaram a usar<br />
os exemplos também para promover mudanças nas vidas<br />
dos jovens locais, e mostrar, com a clareza existente no<br />
documentário, o quão ruim é a vida do crime e o destino<br />
quase único que ela leva.<br />
Sucesso pela linguagem utilizada pelos autores e idealizadores.<br />
A mesma falada em qualquer roda de amigos<br />
de qualquer bairro de qualquer periferia de qualquer<br />
cidade de qualquer estado de todo este Brasil. Diante<br />
da empolgação desta turma, convidei o grupo anterior<br />
também, para voltar no mês seguinte e apreciar um dos<br />
encontros, reunindo as informações e vivências.<br />
Para incrementar, usei da experiência no jornal para<br />
sugerir que produzíssemos algumas matérias sobre<br />
nossa própria quebrada. Nem que fossem apenas notas<br />
e fizéssemos uma espécie de folheto, um minijornal,<br />
apenas para exercitar a arte da escrita e também da<br />
apuração. Alguns gostaram, outros preferiam continuar<br />
nos textos e documentários. Fizemos uma experiência,<br />
mas como tudo tinha de sair do meu bolso e do meu salário<br />
de miséria, não deu muito certo, mas, valeu pela tentativa<br />
e experiência.<br />
Não precisava ser um projeto perfeito. Bastava que fosse<br />
feito e vivido de todo coração e que acrescentasse algo<br />
àquelas vidas. Era suficiente que um encontro mensal<br />
despertasse nos jovens – nem que fosse um deles – a<br />
vontade de driblar o péssimo ensino e a desinformação,<br />
mudando as consequências e os planos já traçados pela<br />
elite, que se interessa pela ignorância do povo, que sempre<br />
plantou frases feitas como “o pobre não tem vez”, “o<br />
pobre não tem estudo”, “o pobre nasceu para sofrer” e
272 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
273<br />
“brasileiro não gosta de ler”, “esse povo não tem nem o<br />
que comer como vai comprar livros”. A elite esqueceu-se<br />
que a fome é um ingrediente a mais na inspiração e que o<br />
sofrimento é doce para o poeta que transforma a própria<br />
desgraça em revolução.<br />
E as mudanças — mesmo que pequenas como árvores<br />
que começam a florescer bem antes de dar frutos —<br />
eram inspiradoras para que o fantasma da desistência<br />
passasse bem longe do desejo de comer a fruta no pé,<br />
debaixo da árvore frondosa em tarde quente de verão.<br />
Assim se seguiram as oficinas de 2008, com mais facilidade<br />
e experiência que as de 2007, e a expansão para<br />
outros bairros tornou-se um projeto a ser pensando,<br />
contudo, eu precisava trabalhar e fazer pelo menos o<br />
dinheiro das cópias dos textos e da condução para os<br />
eventos de hip-hop.<br />
3...2...1... gravando! Gaguejando de vergonha e felicidade,<br />
ele parou, se recompôs e como um poeta em um<br />
sarau daqueles movimentos do início do século, sendo<br />
revivido atualmente pela Cooperifa, Elo da Corrente,<br />
entre outros, ele declamou tudo que havia escrito com<br />
naturalidade surpreendente. A equipe de reportagem<br />
me fitou e como quem não acredita que um estilo literário<br />
e o incentivo a leitura tenham feito aquilo, perguntaram<br />
a ele o motivo do texto.<br />
A resposta: “A dona nos incentiva a ler e a escrever o que<br />
estamos sentido igual a ela mesma e aos autores que ela<br />
traz os textos. Pensando nisso em casa eu resolvi tentar<br />
e saiu esse texto aí.”<br />
Por outro lado, o trabalho no jornal me favorecia em contatos<br />
e amizades com os colegas da imprensa, que sempre<br />
me prestavam favores, como a gravação de matérias<br />
sobre os livros e desta vez sobre as oficinas.<br />
No encontro preparado entre o grupo de 2007 e o de 2008<br />
recebemos a visita de uma equipe de reportagem da TV<br />
local. Para driblar a vergonha e excitação dos garotos,<br />
fizemos um laboratório prévio em que expliquei que esta<br />
era a oportunidade que tínhamos — e muito rara — na<br />
nossa existência de falar num microfone, através de<br />
uma reportagem que seria exibida no “horário nobre” da<br />
cidade sobre os problemas do nosso bairro e da nossa<br />
tentativa de melhorá-los com a produção literária.<br />
Convidei Rodrigo, autor do texto sobre o que ele gostaria<br />
para o futuro, para ler, em frente às câmeras, a produção<br />
que ele havia feito. Foi preciso cortar e começar de novo.
Em foco<br />
275<br />
Caixinhas poéticas<br />
E se toda poesia do mundo coubesse em uma caixinha?<br />
E se ela fosse achada, ganhada ou entregue na forma<br />
de um presente? E se a literatura presente na vida de<br />
alguns poucos brasileiros pudesse ser encontrada, casualmente,<br />
em um banco de praça, em um orelhão, no meiofio,<br />
no balcão de um bar, dentro do ônibus, na fila de<br />
espera de um posto de saúde, no meio de uma balada,<br />
em um restaurante, no trânsito ou comprando pão de<br />
manhã na padaria?<br />
A expressão sisuda de um senhor que se encaminhava<br />
para o trabalho em mais uma manhã se transformou em<br />
sorriso e o dia dele mudou. Quando parou em um orelhão<br />
qualquer da rua para fazer uma ligação encontrou uma<br />
caixinha. Pequena, formato 4x4 cm, feita com papel reciclado,<br />
toda colorida. Abriu e encontrou dentro um pedaço<br />
de esperança, de sorriso, de solidariedade, de gentileza.<br />
Um trecho de poesia selecionada com cuidado foi depositado<br />
dentro da caixinha, que imitando as atitudes gentis<br />
de José Dantrino, conhecido como profeta Gentileza<br />
e inspirada pelo filme europeu “O Fabuloso Destino de<br />
Amélie Poulain”, soltei pela cidade, inúmeras delas feitas<br />
a partir de cartões postais de propagandas, com poesias<br />
dentro. Ajudada em ideias pelo meu amigo e também<br />
poeta, Eduardo Herrera, que tem no projeto Gentileza<br />
uma grande referência, o objetivo maior era transformar o<br />
dia das pessoas e lhes chamar atenção às pequenas coisas<br />
da vida. Mesmo correndo contra o tempo para chegar<br />
ao trabalho em um horário bom e acompanhar todas as<br />
ocorrências policiais do dia, perdia — neste caso ganhava<br />
— alguns minutos observando de longe quem seriam as<br />
pessoas a pegar as caixinhas e qual seria a expressão.<br />
Com o olhar atento ao que se passa ao redor, elas procuram<br />
pelo dono da caixinha e, como no mar de gente que<br />
inunda as ruas, é impossível identificar quem é dono do<br />
que, acabam por levar a caixinha na mão e deixavam no<br />
ar a expressão de um sorriso.<br />
Arrisquei-me, algumas vezes, a deixar caixinhas em<br />
alguns espaços da delegacia. Tive medo de ser presa<br />
ali mesmo, por tentativa de mudança, disseminação do<br />
saber e incentivo a alegria e gentileza.<br />
Além da brincadeira e do prazer terapêutico em recolher<br />
os cartões e confeccionar as caixinhas durante<br />
horas o melhor era poder semear, de uma forma tão<br />
poética, a literatura.<br />
Com frases, poesias e pensamentos escolhidos, cuidadosamente<br />
e retirados de anos de muita leitura, guardava<br />
cada trechinho impresso nas caixinhas, embaralhava,<br />
colocava na bolsa e saía pela rua na distribuição.<br />
Pensei inclusive em levar a ideia às oficinas, mas o<br />
entrosamento do grupo poderia, de repente, ruir, se<br />
mais alguma atividade fosse proposta. Ensinar o processo<br />
de confecção das caixinhas toma tempo e não<br />
seria tão simples fazer isso em apenas 1 hora e meia de<br />
encontro mensal.<br />
Apenas mencionei o projeto e deixei em aberto, se alguém<br />
quisesse me auxiliar com sugestões de frases e poesias<br />
para pôr nas caixinhas ou, ainda, na arrecadação de cartões<br />
postais, seria uma ajuda e tanto.<br />
274
276 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
277<br />
Já esquecida da proposta me surpreendi quando, no<br />
mês seguinte, quase todos apareceram com cartões e<br />
papéis que poderiam servir para as caixinhas e algumas<br />
frases. Na maioria eram retiradas de contos do<br />
escritor Ferréz, por quem eles demonstravam nítida<br />
preferência, talvez por ter sido o primeiro que conheceram,<br />
contudo, até mesmo letras de rap eles sugeriram e<br />
não é que muitas se encaixavam?<br />
Resolvi aderir e a segunda leva de caixinhas e ela circulou<br />
pelas ruas com letras de rap e MPB.<br />
Uma observação é que as pessoas, sempre imersas na<br />
cultura da pressa, passavam de forma despercebida<br />
pelas caixinhas, que só faltavam pular e gritar: “Olá, sou<br />
o seu presente”, em analogia ao tempo. Curiosamente<br />
os seres “invisíveis” eram os que melhor enxergavam e<br />
acabavam contemplados com as poesias. Moradores de<br />
rua, catadores de lixo, bêbados, prostitutas, varredores<br />
e anônimos, sem a necessidade urgente de correr contra<br />
o tempo para alcançar – ou seria fugir – deles mesmos.<br />
Notar as caixinhas e poesias beneficiando estas pessoas<br />
era como vencer uma das batalhas nessa guerra<br />
da vida. Um presente encontrado, no presente, era como<br />
lhes restaurar parte da dignidade, tão afetada pelo desprezo<br />
dos demais.<br />
Gostaria, porém, de nunca ter me deixado vencer pela<br />
pressa, pelo individualismo e egoísmo, pela necessidade<br />
de trabalhar, trabalhar e trabalhar e ter parado de<br />
confeccionar as caixinhas poéticas e distribuí-las, contudo,<br />
durante um tempo em 2008 estive fechada no meu<br />
mundinho jornalístico-e-policial e não me dediquei à<br />
muita coisa mais.
Em foco<br />
279<br />
Às margens da<br />
sociedade<br />
Talvez por ser nova. Talvez por ser boba. Talvez pela falta<br />
de experiência. Uma sequência de talvez é o que eu consigo<br />
para justificar a minha ausência, mais uma vez, nos<br />
eventos de hip-hop, a falta de entusiasmo para as oficinas<br />
e a pausa na produção literária. Quase corrompida<br />
pelo sistema, deixei de usar as armas — o hip-hop e a<br />
literatura — que sempre estiveram ao meu alcance para<br />
driblar os adversários que jogam a favor do sistema.<br />
Esgotada por trabalhar quase doze horas por dia e passar<br />
a maior parte do tempo atrás de sirenes de polícia,<br />
bombeiros e Samu, sempre montada na garupa de uma<br />
moto — com sol, frio ou chuva — deixei, mesmo que por<br />
um período de tempo pequeno, de acreditar que poderia<br />
mudar alguma coisa e me rendi à escravidão moderna<br />
de trabalhar em troca do salário, que nunca dá para o<br />
mínimo e aguentar esculacho de patrões bem abonados<br />
que tentavam me demover da ideia de ser eu mesma, de<br />
correr pelo meu povo oprimido, de escrever as minhas<br />
injustiças e de gritar para o mundo, através de cinco<br />
manifestações criadas há mais de trinta anos, o quão<br />
interessante pode ser a vida periférica.<br />
Esgotada por não ter nem o mínimo, que seria a dignidade<br />
no emprego e ter de comer marmita fria, ser obrigada a<br />
trabalhar bem vestida mesmo depois de um temporal<br />
tomado enquanto estava na garupa da moto perseguindo<br />
a polícia, que perseguia os bandidos, e ainda ser ferida<br />
nos direitos morais, esmoreci durante um tempo da luta<br />
diária contra a desigualdade social.<br />
Nunca achei que o pobre devesse ser rico, mas sempre<br />
lutei pela melhor distribuição de renda, pela panela cheia<br />
de comida e a cabeça cheia de ideias e ideais. Sempre<br />
defendi a democracia e a liberdade de expressão, por<br />
acreditar que já nos privam de tanta coisa, o que faremos<br />
se nos tirarem também o pão da poesia marginal?<br />
Mas, como tudo na vida muda e, graças a Deus, passa.<br />
Uma semana depois, em uma manhã em que eu era,<br />
mais uma vez, massacrada dentro do ônibus cheio, percebi<br />
que era hora de fazer como tantos guerreiros da<br />
nossa história. Virar o jogo. Lutar com o que temos nas<br />
mãos — e eu tinha um espaço no jornal, as palavras e a<br />
mente fervilhando.<br />
Ao meu lado, 90% dos passageiros do ônibus iam para<br />
o trabalho e, deste percentual, quase todas diaristas e<br />
empregadas domésticas, vivendo de salários de fome e<br />
acreditando em dias melhores.<br />
Anunciei no jornal que, naquela semana, estava criada a<br />
série de reportagens “Às margens da sociedade” e traria<br />
matérias especiais em todas as edições de domingo com<br />
perfis e fatos inusitados vividos pelas pessoas invisíveis.<br />
A intenção da série era contar as histórias reais de personagens<br />
com faces desconhecidas ou ignoradas que<br />
frequentemente são forjados de estorvo e marginalidade,<br />
em uma guerra diária pela vida.<br />
Inspirada pelas manhãs cotidianas, a primeira reportagem<br />
da série foi sobre as diaristas, que teriam o dia<br />
comemorado justamente naquele domingo, 27 de abril.<br />
278
280 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
281<br />
Lavar, passar e cozinhar – Empregada Doméstica<br />
Vidas que se cruzam nos ônibus, elevadores — de prédios<br />
pobres e residenciais chiques —, supermercados, venda,<br />
feira e pelas estradas da vida. As empregadas domésticas<br />
são muitas e algumas trazem o ofício na história da família,<br />
com a profissão passada de mãe para filha.<br />
Tema de muitas discussões, histórias e estórias, as<br />
empregadas domésticas já viraram filmes, documentários,<br />
textos e personagens de um Brasil real, que não foge,<br />
seja onde for, capital, interior, cidade de médio porte,<br />
praia, montanha, sertão, riacho, as domésticas sempre<br />
existiram, promovendo a limpeza e o bem-estar dos<br />
patrões, em um ofício insubstituível e, quem sabe, eterno.<br />
Apesar do corre-corre da profissão e do dia a dia, muitas<br />
empregadas domésticas exercem a função além das oito<br />
horas diárias e não são aquelas que moram no emprego,<br />
são as que saem dele e voltam para casa, onde são ainda<br />
“donas de casa” ou “do lar”, e realizam o mesmo serviço<br />
por duas vezes no mesmo dia.<br />
É um trabalho difícil e, por estas e outras, as empregadas<br />
domésticas vêm sendo, cada vez mais, valorizadas hoje<br />
em dia. Com isso, conseguem fazer valer seus direitos. A<br />
recente conquista do depósito do Fundo de Garantia por<br />
Tempo de Serviço — FGTS — mesmo que opcional para o<br />
empregador, é sinal de que os tempos mudaram.<br />
Guerreira<br />
Parece título de livro. E é neste ramo mesmo que ela quer<br />
trabalhar.<br />
Um exemplo de uma vida corrida de empregada doméstica<br />
é o caso de Marilice Bagesteiro, conhecida como<br />
Mary, 45 anos, que trabalha há dois como diarista,<br />
depois de ter deixado de comercializar roupas usadas<br />
de porta em porta.<br />
Atualmente, Mary se levanta às 7h, entra no serviço às<br />
9h e trabalha até às 17h. Apesar da violência no ônibus,<br />
prefere usar este meio de transporte, na ida e na volta, a<br />
caminhar até o serviço. No entanto, anteriormente a isso,<br />
quando trabalhava como vendedora de roupas usadas,<br />
aceitando inclusive doações, fazia disso seu ganha pão e<br />
a pé, caminhando trechos longos por dia, economizava o<br />
dinheiro da passagem para comprar comida.<br />
Aos 15 anos, Mary foi mãe do primeiro filho, Eduardo, que<br />
hoje tem 30 anos. Também é mãe de Adriana, 25 anos.<br />
Relata que sempre trabalhou para poder sustentar os<br />
filhos, visto que o primeiro casamento não deu certo.<br />
“Eu sempre trabalhei, saía cedo com as roupas para vender<br />
e só voltava à noite, quando conseguia trazer algo de<br />
comer para meus filhos. Saí de casa quando vi que meu<br />
casamento não daria certo e trabalhei com fome, a base<br />
de feijão e polenta no estômago, para aguentar. Nesta<br />
época, eu ainda trabalhava com roupas usadas e dormia<br />
em um casebre, no chão, até ganhar uma cama. Digo isso<br />
para as outras mulheres, para que elas saibam como é a<br />
força de uma mina com vontade de vencer. Temos que ter<br />
uma conexão com a vitória. O que eu gostaria de colocar<br />
é que, mudanças são necessárias, e é assim que eu vejo,<br />
nosso país está precisando de gente corajosa para fazer<br />
grandes mexidas”, relata.<br />
Ela diz, ainda, que, hoje em dia, chega a ganhar R$ 30 por<br />
dia, o que dá para o seu sustento porém, fala com tristeza<br />
que a patroa reduziu os dias de serviço na semana,<br />
fazendo, consequentemente, a renda diminuir. “Eu ia<br />
todos os dias, agora, vou trabalhar apenas três vezes por<br />
semana e não sei como vai ser. Tenho muitas contas para<br />
pagar, colocar comida em casa, coisas do tipo. Pretendo<br />
continuar trabalhando como doméstica, mas a renda<br />
está curta até para sair e procurar emprego”, conta.
282 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
283<br />
Mary afirma também desconhecer que exista um dia<br />
no calendário nacional que comemore a profissão que<br />
ela exerce, mas, deixa como mensagem, que as mulheres<br />
devem lutar para alcançar os objetivos e lugares na<br />
sociedade, independente da profissão.<br />
“Eu quebrei muitas barreiras, aquelas que são impostas<br />
na vida das mulheres. Eu tenho um filho que tem a idade<br />
do cara que eu vivo hoje, o Bagé, de 30 anos, e eu quero<br />
dizer que funciona cheio de moralismos e falsos valores<br />
que não nos levam a nada. Impedindo as mulheres, principalmente<br />
as domésticas e diaristas, de serem livres<br />
e felizes. Nós temos que ter, hoje, uma livre expressão<br />
do corpo, da alma e, ainda mais, do pensamento, para<br />
podermos nos expressar e lutar pelos nossos sonhos e<br />
direitos”, acrescenta.<br />
Além de trabalhar como doméstica, Mary escreve letras<br />
de rap e participa de sites e blogs — diários virtuais —<br />
que difundem a literatura marginal.<br />
Há vinte anos na profissão, com prazer<br />
“O preconceito é frequente, muita gente torce o nariz<br />
quando digo a minha profissão”, é o que afirma a doméstica<br />
Maria Benedita Marcondes de Lima, 56 anos, conhecida<br />
como Dita, que trabalha como empregada doméstica<br />
e diarista há mais de vinte anos.<br />
“Por vestir-me bem e estar sempre arrumada, as pessoas<br />
não acreditam que sou doméstica. Ainda tem aquela visão<br />
de que empregada está sempre malvestida, o que não é<br />
verdade”, destaca.<br />
Para criar os quatro filhos e ajudar a pagar, inclusive a<br />
faculdade de um deles, Dita, sempre trabalhou como<br />
doméstica, sendo registrada em um serviço e fazendo<br />
alguns bicos após o expediente.<br />
Ela levanta-se todos os dias antes das 6h, enfrenta o ônibus<br />
lotado da manhã em um trajeto de 10 quilômetros e<br />
trabalha até às 15h. Dali, sai e trabalha como diarista em<br />
outros locais, aumentando o orçamento, visto que cobra<br />
R$ 30 por diária em apartamentos e casas.<br />
Satisfeita com a profissão escolhida, Dita relata que há<br />
sete anos está trabalhando na mesma casa e diz que a<br />
patroa sempre foi muito boa com ela.<br />
“Gosto muito de onde eu trabalho. Eu que determino<br />
como será o meu dia de serviço. Quando eu chego, a<br />
primeira coisa que faço é tomar café, depois, começo o<br />
meu serviço normal, mas, em um dia eu lavo, no outro eu<br />
passo e assim por diante”, diz.<br />
Desconhecendo o dia instituído para comemorar a profissão,<br />
Dita garante que é feliz na profissão escolhida. “Sinto<br />
prazer em ser doméstica. Me acostumei, embora exista o<br />
preconceito, eu gosto bastante do que faço. As pessoas<br />
sempre me dizem ‘Você não tem cara de doméstica!’, e eu<br />
retruco ‘E para ser doméstica, precisa de cara?’”, destaca.<br />
Da história...<br />
Uma outra história, de uma também guerreira não apenas<br />
poços-caldense, mas do Brasil, é a vivida por Laudelina<br />
Mello, que nasceu em Poços de Caldas, em 12 de outubro<br />
de 1904 e começou a trabalhar com 7 anos de idade em<br />
casas de família, como era típico na época.<br />
Aos 16, inicia a militância em organizações de mulheres<br />
negras e atua, principalmente, em atividades de lazer<br />
e cultura. Para ela, essa era a porta de entrada para a<br />
consciência de classe, gênero e raça.<br />
Na década de 1930 muda-se para Santos (SP) e começa<br />
a atuar em movimentos populares e reivindicatórios,<br />
filiando-se ao Partido Comunista Brasileiro. Em 1936,<br />
funda a primeira Associação de Trabalhadores Domésticos<br />
do país, na qual foi presidenta até 1949. No mesmo<br />
período ajuda a fundar a Frente Negra Brasileira, a maior<br />
organização da história do movimento negro, que chega<br />
a ter 30 mil filiados.
284 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
285<br />
Alguns anos depois, muda-se para a cidade de Campinas<br />
(SP), e participa, também, do movimento negro e de atividades<br />
culturais e recreativas. Sua liderança, consciência<br />
de classe e disposição para a luta a levam a organizar e<br />
incentivar o surgimento de diversos sindicatos da categoria,<br />
projeto interrompido em 1964 com o golpe militar.<br />
Instalada a ditadura, Laudelina é presa, entra para a<br />
clandestinidade e, posteriormente, passa a atuar em<br />
comunidades eclesiais de base, formadas pela ala progressista<br />
da Igreja Católica.<br />
Por conta de problemas de saúde e disputas políticas,<br />
afasta-se, durante os anos 1970, do movimento das<br />
empregadas domésticas, mas volta à direção do, hoje,<br />
Sindicato dos Trabalhadores Domésticos de Campinas, em<br />
1982. Nesse período, entra para o Partido dos Trabalhadores<br />
e incentiva a filiação de seu sindicato à recém-fundada<br />
Central Única dos Trabalhadores.<br />
Laudelina morre em 12 de maio de 1991, tendo como<br />
único patrimônio uma casa em Campinas, que deixa de<br />
herança para o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos.<br />
Ali é fundada a sede a entidade.<br />
Na batalha do dia a dia<br />
Na luta diária pela vida e sobrevivência está Elizabeth<br />
Camilo, 47 anos, trabalhando há dois anos como empregada<br />
doméstica, após ter se separado do marido.<br />
Para garantir o sustento, Elizabeth acorda todos os dias<br />
também antes das 6h e vai para o trabalho, além de ter<br />
que se dividir entre o emprego e os cuidados com a filha<br />
caçula, de 7 anos.<br />
“Eu me separei e tive que arrumar um serviço e como a<br />
idade não facilita, de emprega doméstica fica mais fácil<br />
e como eu era do lar, já tinha prática, acabei me tornando<br />
empregada doméstica”, conta.<br />
Elizabeth afirma ainda desconhecer o dia de comemoração<br />
da empregada doméstica, mas diz sentir-se bem em<br />
ser doméstica, apesar das dificuldades.<br />
“Com a minha filha, de 7 anos, é que as coisas se complicam<br />
em razão do horário. Eu tenho que deixar café pronto,<br />
arrumar alguém para dar almoço para ela, tenho que sair<br />
do serviço e pegá-la na escola, tudo é mais difícil”, relata.<br />
A única coisa da qual Elizabeth reclama é de ter de fazer<br />
o serviço no emprego, para a patroa e depois fazer o<br />
serviço em casa.<br />
“São duas vezes a mesma coisa e, às vezes, é bastante<br />
cansativo, mas é a luta pela sobrevivência. O que importa<br />
para mim é o meu crescimento pessoal”, conclui.<br />
No cinema<br />
Existentes por todas as partes, as domésticas, que<br />
sempre fizeram um papel de pano de fundo no cinema,<br />
passaram às telonas, em “Domésticas - O Filme”, como<br />
protagonistas da própria história, deixando de ser as<br />
figurantes de bandeja na mão, como as donas dos conflitos<br />
e tramas.<br />
O filme se passa em São Paulo na capital, centrado<br />
no cotidiano, nos anseios e nas expectativas de cinco<br />
profissionais do lar. E, na mão dela, não só o cafezinho,<br />
mas o cardápio completo: humor, tragédia e poesia.<br />
O fato é que, nas telonas, ou na tela diária da vida real,<br />
as empregadas domésticas são peças fundamentais do<br />
dia a dia brasileiro, seja para uma fonte de renda, para<br />
a família, ou para quem elas prestam serviços. Guerreiras,<br />
ou não, as empregadas domésticas assumem suas<br />
formas, seus lugares e merecem destaque, neste dia<br />
dedicado à profissão.<br />
Encontrei, mais uma vez, nas mazelas humanas, a força<br />
para abandonar o meu próprio limbo e voltar a lutar
286 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
287<br />
pela minha vida, a “correr pelo certo”, como quem é do<br />
hip-hop costuma falar.<br />
Para a segunda edição da série, preparei uma reportagem<br />
sobre as mães que têm filhos presos, dependentes<br />
de drogas e que, nem de longe, passam um dia feliz no<br />
segundo domingo do mês de maio.<br />
Infeliz Dia das Mães<br />
A história única das mães que amam, sofrem e choram<br />
com os filhos por problemas com drogas e dependência<br />
química.<br />
Nesta data, a reportagem traz histórias de mães desconhecidas.<br />
Mães como todas as outras, que só querem<br />
o maior bem do mundo para seus filhos, mas que nem<br />
sempre ouvem um “Feliz dia das mães” na data de hoje.<br />
Em uma guerra diária pela vida, são alvos de preconceito<br />
ou, até mesmo, descaso por parte da população,<br />
mães que têm filhos desconhecidos e sofrem, pelo amor<br />
que têm neles.<br />
Os nomes das fontes foram preservados, portanto, alterados<br />
para nomes fictícios.<br />
Mãe do vício<br />
“Lágrimas, medo, sobressaltos e cansaço”, isto é o que<br />
marca a rotina de Marta P., 52 anos, nome fictício da mãe<br />
de Lucas P., 20 anos, e que vive o drama de ter um filho<br />
dependente químico em casa. A família mora na Zona Sul<br />
da cidade e, chorando, ela conta como é o dia a dia de um<br />
usuário de drogas e de como a família fica comprometida<br />
em razão do vício do filho.<br />
“Uma mãe sempre quer o melhor para seu filho, mas,<br />
chega em um ponto em que o cansaço é tremendo, ficamos<br />
sem saber o que fazer. Não aguento mais ver meu<br />
filho usando drogas, devendo para outras pessoas, se<br />
acabando, morrendo aos poucos”, relata, soluçando e<br />
com os olhos inchados de tanto chorar.<br />
Lucas usa drogas há sete anos, ou seja, desde os 13 e<br />
a mãe não sabe dizer o que levou o filho a enveredar-se<br />
pelo caminho tortuoso dos tóxicos.<br />
“É estranho e ao mesmo tempo intrigante, porque além<br />
do Lucas, tenho um outro filho de 18 anos, porém, o outro<br />
sequer bebe. Não consigo encontrar onde eu possa ter<br />
falhado na educação ou criação dele que o levou a usar<br />
drogas. Na infância ele sempre foi um bom filho, muito<br />
carinhoso, mas, ao entrar na adolescência, mudou um<br />
pouco o comportamento, e eu demorei a perceber que<br />
ele estava usando drogas. É difícil, porque não sei onde<br />
falhei com ele”, comenta a mãe.<br />
Atualmente, Lucas não trabalha, porque perdeu o emprego<br />
que tinha, como entregador de mercadorias para um<br />
supermercado. Passa o dia todo dormindo ou ouvindo<br />
música e, assim que a noite cai, vai às ruas, em busca<br />
de drogas. Quando não as consegue, volta para casa e<br />
conta histórias mirabolantes à mãe, para convencê-la<br />
a dar-lhe dinheiro.<br />
“Geralmente eu choro muito, não sei o que fazer e acabo<br />
dando o pouco do dinheiro que ganho, fazendo faxinas.<br />
No grupo que frequento, com ajuda psicológica para<br />
mães que têm filhos dependentes químicos, já fui instruída<br />
para não dar mais, mas, quando vejo meu filho<br />
sofrendo, desesperado, acabo dando a droga. Sei que<br />
estou financiando pequenas doses de morte para ele e<br />
isso me deixa muito deprimida”, conta Marta.<br />
Sem conseguir dormir enquanto o filho não chega, Marta<br />
passa quase todas as noites acordada, temendo o pior<br />
para Lucas. “Não adianta, é coração de mãe. Sempre fico<br />
pensando que vou receber uma má notícia. Já pedi até<br />
que desligassem o telefone da nossa casa, porque fico<br />
sempre achando que vão me ligar dizendo que meu filho<br />
foi preso, morto”, desabafa, chorando.
288 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
289<br />
Ao ser indagada sobre o filho estar envolvido com o tráfico,<br />
Marta destaca que não sabe sobre isso, mas prefere<br />
acreditar que não. “Ás vezes eu acho que ele está<br />
envolvido, outras acho que não. O que eu sei é que, várias<br />
vezes, os traficantes foram até a porta da minha casa<br />
cobrá-lo, ameaçando toda a família e eu acabei pagando<br />
a dívida, mas, geralmente, são dívidas pequenas, que<br />
ficam entre R$ 20 ou R$ 30”, conta.<br />
Marta destaca que as drogas consumidas pelo filho, que<br />
ela tem conhecimento, são crack e maconha. Ela conta<br />
que várias vezes já encontrou os dois tipos da droga nas<br />
coisas do filho, enquanto limpava ou separava roupas.<br />
“Quando ele era mais novo, fazia questão de esconder,<br />
agora não esconde mais. Parece que ele também perdeu<br />
o sentido na vida e vive apenas por conta da droga”, relata.<br />
A mãe acredita, também, que o filho não se envolve com<br />
furtos e roubos, dizendo que se isso ocorresse, ele já<br />
teria sido preso, contudo, o grupo de apoio às mães com<br />
filhos dependentes já lhe alertou para o fato de que nem<br />
sempre os usuários de drogas são pegos praticando<br />
pequenos delitos, mas, que, na maior parte das vezes,<br />
eles furtam para financiar a droga.<br />
“Em casa ele já roubou quase tudo. Dinheiro, televisão,<br />
DVD, aparelho de som e, inclusive, coisas do meu outro<br />
filho. Agora, já tomamos o cuidado de não deixar as coisas<br />
pela casa e eu conversei com ele, pelo menos a TV e<br />
meu radinho ele deixou”, afirma.<br />
Ela diz ainda que perdeu muito da autoestima por conta<br />
do filho. Embora tenha um outro filho, Marta se deixa<br />
levar pelo sofrimento causado pela conduta de Lucas.<br />
“Eu sei que meu outro filho sofre por me ver assim,<br />
mas ele nem comenta nada. Eu não tenho mais ânimo<br />
para nada. Trabalho porque devo trabalhar. O pai deles<br />
também sofre bastante com isso e sente-se culpado de<br />
alguma forma”, diz.
290 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
291<br />
No auge do desespero, Marta procurou uma entidade<br />
assistencial da cidade, que pode tentar encaminhar Lucas<br />
para uma internação, mesmo que involuntária, para tentar<br />
sanar o problema tão desgastante para a família.<br />
“Faz uns dois dias que ele disse ter parado de usar drogas<br />
e afirmou, chorando, que a única solução seria uma<br />
internação forçada, mas nunca sabemos se isto resolverá<br />
de fato, ou se ele irá recair. Ele sempre afirma que<br />
acabou, mas sabemos que este é um discurso comum.<br />
Creio que, se ele ficasse internado, talvez resolvesse,<br />
mas, eu também preciso fazer algo mais por ele, porque<br />
com meu coração de mãe, eu acabo atrapalhando, ajudando<br />
a financiar a droga”, cobra-se Marta.<br />
Mesmo culpando-se por não ser mais firme quando precisa,<br />
Marta não esconde seu amor por Lucas e chora a<br />
todo momento, ao relatar episódios em que o filho lhe<br />
pediu dinheiro, mesmo que inventando histórias, e ela<br />
cedeu, ou quando o filho passou por uma situação difícil.<br />
“Há um ano ele perdeu um filho. Em um namoro adolescente,<br />
ele engravidou a namorada, ela resolveu ter o<br />
bebê e, quando estava no hospital, ainda com 2 dias, teve<br />
um problema no coração e morreu, o que deixou Lucas<br />
ainda mais triste e depressivo, daí em diante, ele começou<br />
a ficar menos em casa, parou de trabalhar e de certa<br />
forma, fica se culpando também”, conta.<br />
Para Marta, seria um sonho ver o filho se recuperando,<br />
bem, namorando, trabalhando e pensando em formar<br />
uma nova família, porém, sem autoestima, ela diz que<br />
não se permite sonhar.<br />
“Eu tenho esta fantasia e, ao mesmo tempo, deixo de ter.<br />
Só queria ver meu filho bem, que voltássemos a ser uma<br />
família, sabe?”, finaliza, chorando novamente.<br />
Do outro lado da grade<br />
Uma outra mãe que sofre pelos problemas que tem com<br />
o filho e, mesmo assim, não perde as esperanças é Olga<br />
B., 67 anos, uma senhora baixinha, gordinha, de cabelos<br />
brancos presos em um coque e uma sacola pendurada no<br />
braço, ela vai até a cadeia de segurança pública, visitar o<br />
filho que está preso há um ano, Pedro B., 28 anos.<br />
Mãe de quatro filhos, ela conta que esta é a segunda<br />
vez que o filho cumpre penas em regime fechado. Da<br />
primeira vez, Pedro foi preso por roubo e após ser solto,<br />
ficou seis meses em liberdade, sendo preso novamente,<br />
por tentativa de homicídio. Tudo isso se dá porque o<br />
filho já foi usuário de drogas e ela diz que não sabe se<br />
ele parou de usá-las.<br />
“Desde muito jovem o Pedro usa drogas, começou com<br />
cigarro e bebida, depois maconha e, de uns tempos para<br />
cá, até mesmo drogas fortes como o que eles chamam de<br />
pó e um famoso mesclado, que parece que é a mistura da<br />
maconha com outra substância mais forte”, relata.<br />
Os outros filhos de Olga trabalham e são encaminhados<br />
na vida, dois deles já se casaram e moram fora de casa.<br />
Ela acredita que o motivo da prisão do filho e do uso<br />
desenfreado de drogas se deva ao fato de que, quando<br />
ele era criança, ficava apenas com sua filha mais velha,<br />
que hoje tem 35 anos, para que ela fosse trabalhar.<br />
“Somos de uma origem pobre, então eu tinha que trabalhar<br />
para ajudar no orçamento de casa. Depois que o pai<br />
dos meus filhos também faleceu, por beber demais, fiquei<br />
sozinha para terminar de criá-los e não tinha como ficar<br />
com eles, ou mesmo vigiar e aconteceu isso. O Pedro se<br />
desencaminhou, começou a usar drogas, ficou agressivo,<br />
começou a roubar em casa, depois na rua, ficou preso. Eu<br />
pensei que ele fosse melhorar quando saísse, mas não,<br />
fez ainda pior e agora eu estou aqui”, conta, emocionada.
292 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
293<br />
Olga destaca ainda que é bastante humilhante ter um<br />
filho preso, ter de ir visitá-lo na cadeia, passar por revistas<br />
e todo o procedimento exigido.<br />
“Eu fico muito envergonhada, até mesmo para andar na<br />
rua, pegar um ônibus, parece que todos me apontam<br />
como mãe de um marginal. Meu filho não é marginal, ele<br />
errou, sei disso, mas eu também errei com ele e me sinto<br />
tão culpada por tudo isso. Não sei nem de onde eu tiro<br />
forças para continuar vivendo, vir aqui na prisão vê-lo,<br />
trazer coisas para ele, é tudo muito triste”, relata, já com<br />
lágrimas nos olhos.<br />
Na pesada sacola que Olga carrega, em direção à cadeia,<br />
ela leva alimentos, sabonetes e toalha para o filho e diz<br />
que, mesmo sabendo que ele errou, ora todas a noites e<br />
pede que Deus tenha piedade dele, além de tentar, com<br />
pouco, zelar pelo bem-estar de Pedro, dentro da cadeia.<br />
Com um olhar triste, Olga comenta que espera ansiosa<br />
pelo dia em que o filho sairá da cadeia, e faz planos para<br />
poder sentar e conversar com ele. Ela destaca, também,<br />
que pretende procurar alguma ajuda, para tratar a<br />
dependência química dele.<br />
“Sou sozinha, as coisas são difíceis, mas espero conseguir<br />
tratar a dependência química do meu filho. Vou buscar<br />
ajuda, e quando ele sair da cadeia, penso em procurar<br />
um serviço e ter uma vida normal. Sei que não é fácil, mas<br />
se eu não sonhar, fica ainda mais difícil”, diz.<br />
Ela fala ainda sobre o preconceito que enfrenta, até<br />
mesmo para encontrar emprego, ou no bairro onde<br />
reside, na Zona Leste da cidade, onde, segundo Olga, os<br />
vizinhos, ao saberem das mazelas do filho, lhe viraram as<br />
costas e a julgaram.<br />
“Muitos nem sabem como foi difícil criar meus filhos e<br />
dar pelo menos o que comer a eles, sem pedir nada a ninguém.<br />
Julgam-me e isso é fácil, mas só eu sei a dor que<br />
é ter um filho preso, não poder vê-lo sempre, ou mesmo<br />
protegê-lo, como eu gostaria de fazer, afinal, mãe é mãe<br />
e não deixa de ser porque o filho está preso, usa drogas,<br />
tentou matar alguém, sempre vou amar meu filho. Não<br />
posso dizer que nunca fiquei decepcionada com ele,<br />
senão, estaria mentindo, mas o amo da mesma maneira,<br />
mesmo ele errado”, desabafa.<br />
Para o Dia das Mães, Olga diz que não está totalmente<br />
feliz, por saber que Pedro passará longe dela, na cadeia,<br />
mas, pretende fazer um almoço para os outros três filhos<br />
e a família deles. “Vamos almoçar em casa, fico feliz<br />
pelos meus outros filhos, mas, no fundo do coração,<br />
sempre tem aquela dor, aquele desespero, porque eu<br />
queria que o Pedro estivesse conosco”, lamenta.<br />
Ouvir e relatar histórias como estas me fizeram deixar o<br />
esgotamento pela rotina de lado e voltar com tudo para<br />
as oficinas. Percebi que poderia fazer jornalismo e literatura<br />
ao mesmo tempo, trabalhar com as ferramentas<br />
do jornalismo literário nos meus textos, produzir literatura<br />
marginal por meio dos fatos reais que assolam<br />
nosso povo, cercados pelo preconceito, pelas situações<br />
limite, pela linha invisível do tráfico, pelo desejo de liberdade<br />
e pelo descaso social.<br />
Levei os dois primeiros textos produzidos para a oficina<br />
e bolei, mentalmente, oficinas futuras, além de voltar a<br />
atualizar o blog e colaborar com o Literatura Periférica,<br />
mantido pelo amigo Buzo.<br />
Voltei, mesmo que ainda endividada, a comprar livros<br />
de literatura marginal. Primeiro para alimentar a minha<br />
alma e segundo para usar no trabalho com as crianças<br />
e adolescentes da oficina fixa e também do projeto itinerante<br />
que eu estava pensando em criar. Com um novo<br />
layout, o Cultura Marginal voltou a fazer jus ao nome,<br />
e ao projeto, e a receber textos quase diários, além de<br />
matérias semanais, sempre reproduzidas na coluna Às<br />
Margens da Sociedade.
294 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
295<br />
A terceira reportagem da série foi a história de um andarilho.<br />
Pelos acostamentos da vida<br />
Mochila surrada nas costas e cantil pendurado no ombro.<br />
Assim segue Osmar, 53 anos, andarilho pelas estradas do<br />
país. Um homem de rosto queimado pelo sol e a pele desgastada<br />
pelo tempo passado às margens de estrada, diz<br />
não se recordar do sobrenome e conta que está há mais<br />
de trinta anos perambulando pelo Brasil.<br />
Em uma manhã quente, ele deixou a cidade de Triunfo, em<br />
Pernambuco e seguiu, a princípio de bicicleta, para São<br />
Paulo, onde pretendia encontrar um emprego, naquele<br />
que chamam de o maior centro empresarial do país.<br />
Enquanto ainda carregava sonhos na mochila, Osmar<br />
deixou a família no interior de Pernambuco e foi, pedalando<br />
e vivendo a vida das estradas, até chegar na maior<br />
cidade brasileira, a capital do estado de São Paulo.<br />
Após viajar meses, com histórias peculiares sobre o trajeto<br />
feito entre Triunfo e São Paulo, Osmar lembra que<br />
foram meses sofridos, porém, guarda boas lembranças.<br />
“Eu ainda era moço quando saí de casa, então, tinha<br />
um certo charme que a juventude deixa. Não me faltava<br />
nenhum dente e tudo mais e eu conheci uma moça, assim<br />
que saí de Triunfo, num bar. Ela era a garçonete. A danada<br />
atrasou a minha viagem para São Paulo”, se diverte, com<br />
um sorriso no rosto e os olhos brilhando.<br />
Ele conta que, por causa da moça, ficou bastante tempo<br />
em volta do bar, gastou boa parte do dinheiro que tinha<br />
guardado e levado para a viagem e o romance não deu<br />
em nada.<br />
“Eu saí de casa para achar um trabalho, então, era isso<br />
que tinha que fazer. Tive que deixá-la para trás. Era um<br />
tempo bom, apesar dos medos da estrada e dos perrengues<br />
que passei”, destaca.<br />
Na estrada<br />
Já na estrada, Osmar lembra que, para comer, gastava<br />
o dinheiro que havia levado. A princípio, pensou que as<br />
economias conseguiriam mantê-lo até São Paulo, mas se<br />
enganou e já no interior da Bahia o dinheiro estava praticamente<br />
no fim, o que o obrigou a arranjar bicos em bares<br />
e restaurantes de beira de estrada, bem como postos de<br />
gasolina e oficinas mecânicas. “Eu trabalhava horas em<br />
troca de um prato de comida, para tentar chegar até a<br />
próxima cidade e prosseguir a viagem”, diz.<br />
Foi então, que uma noite, em uma cidade baiana da qual<br />
não se recorda do nome, que Osmar teve a bicicleta furtada<br />
enquanto dormia em um posto de combustível. A<br />
bicicleta, estacionada junto a outras, no mesmo lugar,<br />
foram levadas por ladrões durante a noite.<br />
Ao acordar e não encontrar mais meios de se transportar,<br />
Osmar lembra que ficou desesperado. “Eu não sabia<br />
o que fazer como chegar a São Paulo. Sem dinheiro, sem<br />
a bicicleta, sem ter onde dormir e com medo de continuar<br />
na estrada. Mas também, não tinha mais como voltar,<br />
então tive que prosseguir com a viagem. Foi um período<br />
difícil, mas me lembro que fiz grandes amigos”, afirma,<br />
deixando transparecer a saudade.<br />
Mesmo sem a bicicleta, ele foi seguindo a viagem, a pé<br />
e da mesma maneira, fazendo bicos para conseguir se<br />
alimentar.<br />
Amizade feita na estrada<br />
Foi nesta época também que Osmar conheceu um grande<br />
parceiro, chamado de Pernilongo, que o acompanhou<br />
durante a viagem, a pé.<br />
“Eu conheci o Pernilongo, como a gente o chamava, no<br />
mesmo lugar onde furtaram a bicicleta. Levaram a dele<br />
também e, conversando, ficamos amigos. Ele estava<br />
indo para o Rio de Janeiro e fomos andando e seguindo
296 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
297<br />
juntos, mas, por fim, ele acabou indo para São Paulo<br />
comigo”, relata.<br />
Durante anos, os dois viveram juntos e se ajudando.<br />
Fazendo bicos em troca de comida e caminhando a pé.<br />
Osmar, já não se recorda de quanto tempo levou para<br />
chegar a São Paulo, mas ele acredita que caminhou por<br />
mais de um ano.<br />
“Era difícil, porque não conseguíamos ir muito longe<br />
ou caminhar por muito tempo, por falta de comida e<br />
tudo mais. Tínhamos receio de pegar muitas caronas.<br />
Às vezes íamos até determinado ponto de carona com<br />
alguém que conhecíamos nos postos ou bares que ficávamos<br />
parados”, conta.<br />
A amizade com Pernilongo durou até pouco tempo, quando<br />
no Rio de Janeiro, este faleceu. Osmar acredita que foi<br />
uma vítima da dengue.<br />
“Ele ficou bem doente, achamos que foi dengue. Tentei<br />
levá-lo para um albergue, mas ele faleceu. Também, já<br />
estava velho, mesmo assim, sinto falta de ter um companheiro<br />
para caminhar comigo”, diz.<br />
Seguindo viagem<br />
Mesmo com a morte de Pernilongo, Osmar continuou<br />
peregrinando pelo Brasil afora e conta que já esteve em<br />
estados como a Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito<br />
Santo, Paraná e, atualmente, em Minas Gerais.<br />
Porém, desde que saiu de casa, nunca mais teve notícias<br />
da família ou mesmo retornou para Pernambuco. “Sinto<br />
saudade, me pergunto como minha família pode estar,<br />
mas não tive como retornar. Nunca tive trabalho fixo ou<br />
residência. Permaneço, há mais de trinta anos nesta vida<br />
de andarilho. Já passei em albergues e tudo, mas é difícil<br />
me acostumar, ou ficar muito tempo num mesmo lugar,<br />
penso que o meu propósito de vida é andar até chegar a<br />
minha morte”, acrescenta<br />
Por cada estado e cidade que passou, Osmar guarda<br />
uma passagem ou alguma coisa. Por não saber ler, nem<br />
escrever, ele diz que se perde muito pelo caminho e<br />
ainda esclarece que prefere andar a pegar carona com<br />
caminhoneiros ou viajantes. “Eu gosto mesmo é de caminhar,<br />
como não tenho um destino certo, vou parando.<br />
Sempre peço um pouco de comida, como, levo um tanto,<br />
esquento em fogareiros que eu mesmo improviso e procuro<br />
me abastecer com água, assim, vou caminhando,<br />
observando cada paisagem, que é diferente por cada<br />
lugar que eu passei e isso me dá uma paz de espírito e me<br />
sinto mais perto de Deus”, destaca.<br />
Questionado sobre a fé, Osmar ressalta que crê bastante<br />
em Deus e que se sente próximo a ele enquanto caminha<br />
pelo país afora. “Enquanto ando, vou rezando, conversando<br />
com o criador deste mundo tão grande e bonito,<br />
que apesar das desigualdades, também tem belezas.<br />
Basta saber enxergá-las.”, acredita.<br />
Em Poços de Caldas<br />
Osmar diz que chegou até Poços após vir caminhando<br />
pelo interior de São Paulo e conversando em bares, onde<br />
adquiriu um gosto especial por tomar pelo menos uma<br />
pinga por dia em cada local que passa. Assim ele descobriu<br />
que aqui é uma cidade com águas termais e veio até<br />
aqui, conhecer.<br />
“Parado em um bar no estado de São Paulo, passou um<br />
caminhoneiro que disse que viria para Poços e que a<br />
cidade era bonita, com águas quentes e tudo mais e eu<br />
senti vontade de conhecer, peguei carona com ele e aqui<br />
estou, acho que já tem umas duas semanas, porém,<br />
pretendo ir embora semana que vem rumo a Belo Horizonte”,<br />
conta.<br />
Em Poços, ele conta que se alimentou, nos primeiros<br />
dias, com o caminhoneiro que o trouxe, depois, fez amizade<br />
com outros moradores de ruas e passou a comer<br />
com eles, do alimento que os mesmos pediam em resi-
298 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
299<br />
dências e cozinhavam em uma casa abandonada, a qual<br />
eles invadiram e habitavam.<br />
“É uma vida diferente a que eles levam, foi bom, ficamos<br />
amigos, conheci a cidade, mas agora já sinto vontade de<br />
ir embora, talvez um dia eu volte, pois gostei do lugar, das<br />
pessoas, dos amigos que fiz”, destaca.<br />
Desta forma, seguindo por cada cidade, Osmar vai<br />
vivendo e permanecendo na estrada, e pelo que ele<br />
afirma, durante toda vida. “Não vejo porque mudar de<br />
vida, sou feliz assim”, finaliza.<br />
Comovida por relatos de luta e coisas inusitadas, como<br />
as contadas por Osmar, me abriram os olhos, fazendo<br />
ver que a vida vai mais além e que de repente, era tempo<br />
de deixar algumas coisas para trás, como o tronco de<br />
escrava ao qual eu estava presa. Na segunda-feira após<br />
o fim de semana em que a matéria foi veiculada, enchi<br />
uma pasta com vários currículos e visitei os demais<br />
órgãos de comunicação, inclusive os que ficam na<br />
mesma rua e calçando a cara, pedi um emprego.<br />
Fui bem recebida em todos e, como resposta, a promessa<br />
de que assim que surgisse uma vaga, ela seria<br />
minha. Esperançosa, continuei à minha maneira e para<br />
descontrair resolvi encarar a produção de mais um<br />
evento de hip-hop, desta vez, com um sarau, ao melhor<br />
estilo dos da capital paulista. Porém, enquanto trabalhava<br />
nos preparativos, não deixei de produzir as reportagens,<br />
com o intuito de, mais tarde, transformá-las em<br />
outro tipo de publicação para além do jornal e do blog.<br />
Minha vontade continua sendo fazer pós-graduação em<br />
jornalismo literário e mestrado em antropologia, justamente<br />
para abordar o jornalismo em conjunto com a realidade<br />
e a literatura, principalmente no relato cotidiano<br />
presente na literatura periférica que usa o submundo<br />
como pano de fundo. Confira algumas reportagens:
300 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
301<br />
Por amor: bandeira arco-íris<br />
Na linha entre o amor e o preconceito, casal de gays<br />
conta como vive e relata as particularidades da vida<br />
entre dois homens.<br />
“Eu amo ser homossexual e quero é pregar a felicidade,<br />
porque eu sou feliz assim. Eu respeito, mas também<br />
quero ser respeitado”, é o que afirma Daniel Sampaio<br />
(nome alterado), personagem desta edição da série Às<br />
Margens da Sociedade que fala sobre a vida de um casal<br />
gay, preconceito e orgulho da causa que abraça, que vai<br />
em defesa de homossexuais.<br />
Aos 27 anos, Daniel vive com um outro homem, Caio Paschoal*,<br />
26 anos. Ele conta que eles se conheceram em<br />
uma boate voltada ao público gay na cidade de São Paulo<br />
e não se desgrudaram mais.<br />
“Eu não gostava muito de sair e ir à boates gays, mas<br />
naquele dia, há quase cinco anos, resolvi sair da toca e<br />
fui nessa boate. Assim que botei os olhos no Caio e ele<br />
em mim, nos aproximamos. Ficamos a noite toda conversando<br />
e bateu, ficamos amigos já com terceiras intenções”,<br />
brinca, ao lembrar.<br />
Quem continua a narração do primeiro encontro é Caio,<br />
que lembra que, logo de cara, se deram bem. “Eu sempre<br />
fui muito reservado e a empatia que surgiu com o Daniel<br />
foi incrível. Na primeira noite, contei toda a minha vida a<br />
ele e ele me contou muita coisa também. Combinamos de<br />
nos encontrarmos no outro dia para caminhar e estamos<br />
juntos, caminhando, até hoje”, conta.<br />
Daniel é funcionário público e Caio cabeleireiro. O casal<br />
conta que na ocasião em que se conheceram, Daniel<br />
estava passando um feriado em São Paulo com amigos.<br />
Antes mesmo do fim de semana chegar ao final, os dois<br />
já estavam de volta a Poços, para que Caio conhecesse a<br />
cidade e talvez se mudasse.<br />
“Não demorou um mês e estávamos morando juntos no<br />
nosso apartamento”, comentam.<br />
O casal vive em um apartamento pequeno, porém muito<br />
bem decorado, por Caio, que gosta bastante de explorar<br />
o próprio lado artístico. “É para fazer jus. Dizem que todo<br />
gay se dá bem com decoração”, se diverte.<br />
Em uma sala bem decorada e limpa, eles contam as particularidades<br />
de um mundo que nem sempre é exposto<br />
e, poucas vezes, é compreendido. Falam de preconceito,<br />
aceitação e felicidade.<br />
O primeiro momento<br />
Para ambos, é difícil falar do momento em que se aceitaram<br />
e assumiram como homossexuais e cada um tem<br />
uma história diferente.<br />
Daniel relata que sempre teve a famosa “tendência” e<br />
nunca se deu muito bem com os garotos de sua idade em<br />
época escolar. “Eu não gostava de jogar bola, brincar na<br />
rua e coisas desse tipo, mas não entendia o porquê. Na<br />
pré-adolescência, eu me forçava a fazer estas coisas<br />
e, até mesmo, namorei garotas, para me enquadrar nos<br />
padrões sociais. Quando fiquei adulto, percebi o grande<br />
erro que cometi comigo mesmo. Eu não era feliz”, comenta.<br />
Já Caio relata que desde muito novo, assumiu a homossexualidade.<br />
“Eu era garoto e contei, inocentemente para<br />
minha mãe, que gostava de outro garoto. Claro que foi<br />
um choque para toda a família. Passei pelos psicólogos,<br />
terapeutas, psiquiatras, familiares, irmão mais velho e<br />
nada adiantou. Aceitei-me e meus pais tiveram de fazer o<br />
mesmo. Não adianta lutar contra algo que é da natureza,<br />
sabe? Nunca namorei mulheres. Claro que já estive com<br />
algumas, mas acho que foi mais para desencargo de consciência,<br />
para constatar que eu gosto mesmo é de homens.<br />
Hoje, gosto do homem que é o Daniel”, diz, bem-humorado.
302 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
303<br />
Daniel, contudo, diz que contar em casa a natureza preferencial<br />
por homens e não por mulheres foi um processo<br />
doloroso. “Sempre tive medo de magoar e decepcionar<br />
meus pais, mas eu estava sendo infeliz em fingir que<br />
era algo que não era. Contei primeiro para minha mãe,<br />
morrendo de medo da rejeição e para minha surpresa,<br />
embora tenha ficado chateada, ela me apoiou, disse que<br />
me amava e que gostaria de me ver feliz. Já com meu pai<br />
foi diferente. Ele esbravejou, tentou me fazer mudar, mas<br />
como adiantaria? Hoje ele aceita, mas mantém uma certa<br />
distância. Por exemplo, ele nunca veio à minha casa, por<br />
saber que eu vivo com o Caio”, relata.<br />
A vida à dois<br />
Ao serem questionados sobre a vida à dois, o casal<br />
comenta que, assim como um casal hétero, existem as<br />
dificuldades de um casamento. Eles dão risada ao se<br />
atacarem sobre as preferências domésticas de cada um e<br />
Daniel brinca com Caio. “Sempre discutimos sobre o modo<br />
de apertar a pasta de dentes ou arrumar a cama”, ri.<br />
Porém, mesmo com as pequenas diferenças domésticas,<br />
eles afirmam que vivem bem e sem brigas. “Claro<br />
que temos ciúmes, crises, momentos difíceis, mas nos<br />
damos bem. Acho que nos completamos, sabe? Não<br />
imagino minha vida sem o Caio. Somos o que falta um no<br />
outro e somos muito felizes. Temos vida de casal, pessoal<br />
e social”, acrescenta Daniel.<br />
Para selar a união, eles contam que não fizeram festa,<br />
casamento ou recepção, porém, ambos tatuaram uma<br />
lua azul nas costas, como prova de amor. “Acho que é<br />
uma marca. As pessoas dizem que é loucura marcar o<br />
corpo e tudo mais, porém, eu penso que, mais do que o<br />
corpo, marcamos nossa alma ao nos unirmos e isso não<br />
tem laser que apague”, reflete Caio.<br />
Preconceito<br />
“O preconceito deixa marcas”, afirma Daniel, que diz que<br />
já sofreu vários tipos de preconceito, na rua, em antigos<br />
empregos e em situações corriqueiras.<br />
“Não tem como um gay dizer que não aparenta ser gay.<br />
Claro que alguns demonstram mais, outros menos, mas<br />
as diferenças de comportamento são visíveis e o preconceito,<br />
mais visível ainda”, destaca.<br />
Já Caio acredita que, dentro do que é classificado como<br />
preconceito, o que mais deixa marcas é no que diz respeito<br />
à parte psicológica. “Já deixamos de frequentar<br />
vários lugares pela forma como somos tratados. Não<br />
temos doenças contagiosas ou coisas do tipo. A única<br />
coisa que difere é que a pessoa ao meu lado é o Daniel<br />
e não uma mulher, mas temos amor em nossa relação,<br />
coisa que muitos héteros não têm. Mas é um fato, o preconceito<br />
dói. As piadas na rua, a forma de tratamento,<br />
a discriminação. Enfrentar o preconceito é muito difícil.<br />
Mas é o preço de ser diferente, de ser feliz”, destaca.<br />
Sobre ser xingado nas ruas, Daniel comenta que várias<br />
vezes, há alguns anos, parou para discutir com as pessoas.<br />
“Hoje vi que não vale a pena. Penso que por meio<br />
de campanhas temos mais chances de atingir estas pessoas<br />
do que parando para discutir na rua. Recordo-me<br />
de uma vez que estava andando pela rua e um monte de<br />
adolescentes começou a me xingar. Parei e fui discutir<br />
com eles. Um deles retrucou e me disse que o pai dele<br />
tinha horror a homossexual e disse que contaminávamos<br />
a sociedade. Percebi que ali existia muito mais a<br />
ser combatido do que provar que eu sou feliz e não faço<br />
mal. Desisti da discussão após alguns minutos e quando<br />
saí, este mesmo adolescente atirou objetos contra mim.<br />
Não parei para ver e quando cheguei em casa, desabei.<br />
O meu consolo foi o amor do Caio. Desde então, aprendi
304 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
305<br />
que podemos lutar contra o preconceito utilizando nossa<br />
maior arma, que é o amor. Mesmo, muitas vezes, sendo<br />
taxados de marginais pela sociedade, o amor nos fortalece<br />
e obriga a lutar contra este preconceito gritante”,<br />
desabafa Daniel.<br />
Iniciativa<br />
Discretamente, pois onde Daniel trabalha, nem todas as<br />
pessoas sabem de sua vida com Caio, o casal se organiza<br />
em manifestações e campanhas contra a homofobia<br />
e o preconceito.<br />
“Quando vamos a São Paulo visitar a família do Caio,<br />
nos engajamos em ONGs e buscamos o conhecimento<br />
para aplicá-lo em Poços também. Claro que é mais difícil,<br />
pois tenho que manter a discrição que meu cargo<br />
público exige, mas não estou impossibilitado. Através<br />
da Internet trocamos ideias, informações e agitamos<br />
uma campanha virtual”, conta.<br />
Caio afirma também que sua afinidade com a arte vai<br />
além dos fantásticos cortes de cabelo e da decoração do<br />
apartamento onde vivem.<br />
“Estou desenvolvendo um projeto. Pretendo ir às periferias,<br />
me encontrar com jovens carentes e que também<br />
são taxados de marginais e com eles, montar uma<br />
peça teatral para tratar justamente da homofobia e do<br />
preconceito, da invisibilidade social e gritante desamor.<br />
Ainda não tenho nada pronto, mas posso garantir que<br />
assim que conseguir implantar e desenvolver este projeto,<br />
muitas pessoas conhecerão o amor e os milagres<br />
que ele é capaz de fazer”, pontua.<br />
Vida contemporânea x vida nas estradas<br />
“Pela estrada da vida”, assim vive o casal de hippies, Marcelo<br />
Pivovarte Camargo, 30 anos, e Tamayra de Andrade,<br />
22 anos, conhecidos como Pivô e Tayta, que passam viajando<br />
Brasil afora, vendendo bijuterias ou biojoias (bijuterias<br />
feitas com materiais naturais como pedras, folhas de<br />
árvores secas, sementes) como são conhecidas e sobrevivendo,<br />
ou como eles dizem, vivendo o real sentido da vida.<br />
A história do casal se confunde com a da maioria dos<br />
brasileiros, porém, com o diferencial de que ambos<br />
abandonaram o conforto da vida contemporânea para<br />
viver na estrada. Aos 30 anos, Pivô já fez curso de torneiro<br />
mecânico pela escola profissionalizante, SENAI e<br />
abandonou tudo isso para ser hippie, vivendo já há dez<br />
anos na estrada.<br />
“O que me levou a ser hippie foi a busca pela liberdade.<br />
Viajar, conhecer, não ter patrão. Ganhar meu dinheiro<br />
honestamente e curtir a vida, como os hippies de antigamente”,<br />
conta. Com um sotaque de paulistano, ele<br />
conta ainda que sofre até hoje os preconceitos de viver<br />
às margens da sociedade. “É o rapa, a galera, a falta de<br />
cultura, tudo isso é muito, somos muito discriminados<br />
porque queremos ser felizes”, afirma.<br />
Já Tamayra conta que vivia em Manaus (AM), quando<br />
conheceu Pivô em um bar, onde ele fazia bijuterias e se<br />
encantou pela história e estilo de vida do mesmo. “Na<br />
verdade eu abri mão de tudo, do sistema. Eu tinha uma<br />
vida totalmente diferente da que eu levo agora, mas<br />
estou satisfeita. No início, larguei tudo por amor e arranjei<br />
um outro, que é o amor pela estrada. Estou viajando<br />
direto e sou realizada do jeito que estou”, destaca.<br />
Antes de se tornar hippie, Tamayra cursou até o 5° período<br />
da faculdade de administração de empresas, trabalhou<br />
no banco HSBC e conseguiu, inclusive, comprar um<br />
carro com o próprio dinheiro. “Eu abri mão pela felicidade<br />
mesmo, fora do sistema”, acrescenta.<br />
Ambos definem o dia a dia como uma correria, não muito<br />
diferente dos milhões de brasileiros que se adequaram<br />
às normas da sociedade.
306 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
307<br />
“Contudo, continuamos sempre firmes. Nem pensamos<br />
em desistir. Nosso ganha pão são nossos “trampos”, que<br />
fazemos com muito amor e cada um tem uma história”,<br />
conta Tamayra.<br />
Ao serem indagados sobre a quantia adquirida mensalmente<br />
com a venda dos trabalhos artesanais, os hippies<br />
ressaltam que não têm noção, uma vez que assim que o<br />
dinheiro entra, já é gasto com comida e bebida.<br />
“Um dia é maré alta, outro dia maré baixa, mas, investimos<br />
o dinheiro em nossa história, além de alimentação,<br />
temos um dinheiro guardado, para ser investido numa<br />
terra em Manaus.”, diz Pivô.<br />
Desmistificando<br />
Apesar de viverem pelas estradas, acampando nos<br />
campings, praças e locais públicos, o casal destaca que<br />
também tem casas, como a dos pais, onde passam algum<br />
tempo quando a saudade aperta.<br />
Atualmente, em razão de uma cirurgia na hérnia, Pivô não<br />
tem viajado grandes distâncias, ficando concentrado no<br />
sudeste, com paradas regulares na casa da mãe, que vive<br />
em São Paulo, na capital.<br />
“Minha mãe mora no Ipiranga, eu fico por lá, mas sei<br />
lá, de repente é como se não estivesse, porque ela não<br />
admite o meu jeito, a minha vida. Mas, eu tô vivendo a<br />
minha vida, honestamente”, destaca.<br />
Contudo, o casal faz questão de ressaltar que não tem<br />
planos ou mesmo rotina e afirmam que a vida é o dia a dia.<br />
“Não tenho grandes ambições como o carro do ano, uma<br />
TV de Plasma, eu só quero curtir a vida. Se eu tiver um<br />
pedaço de terra onde morrer, já é válido. Eu armo minha<br />
barraquinha no meio do terreno e já era”, comenta Pivô.<br />
O hippie conta, também, que já passou por 16 capitais<br />
brasileiras, o que o torna um ser humano feliz e cheio de<br />
histórias vividas em locais diferentes do país.<br />
Mesmo vivendo, aparentemente, sem regras ou controles,<br />
os hippies buscam conhecimento e se interam de fatos atuais<br />
do país, não somente os culturais, mas também política<br />
e democracia e, contudo, tecem críticas ao sistema.<br />
“É muita discriminação, burocracia e ninguém respeita<br />
as leis, porque temos o livro da constituição que traz<br />
que quem faz seu trabalho honestamente, artesanal,<br />
tem direito a um metro quadrado em cada terra, só que<br />
a lei municipal passa por cima da federal e continuamos<br />
nessa luta. É Brasil, né mano?”, acrescentam.<br />
Um misto entre lucidez e doideira, esta é a impressão causada<br />
por quem conversa com o casal ou fica perto durante<br />
algum tempo. Com garrafas de vinho tinto na mão, logo às<br />
9h, eles dizem que bebem para suportar o frio que é estar<br />
nas ruas durante os meses mais gelados do ano.<br />
Além das garrafas, eles têm nas mãos os apetrechos<br />
necessários para confeccionar bijuterias, que podem<br />
ser do gosto do cliente, feitas na hora, ou as que já estão<br />
prontas, nos mostruários.<br />
Ao abordar as pessoas, eles sempre ressaltam que o<br />
dinheiro pago é para ser investido em mais uma garrafa de<br />
vinho. “É para fortalecer o vinho da manhã”, dizem. Da concepção<br />
social e do senso comum de que os hippies estão<br />
às margens da sociedade, Tamayra adquire uma postura<br />
concisa e forte a respeito disso. “É coisa de gente leiga,<br />
estão por fora, são sem cultura. Hippie é só alto astral, só<br />
felicidade. Aprendi a viver fora da cultura do sistema, vivo<br />
bem, não passo fome, bebo o quanto quero, curto o quanto<br />
quero e tento passar isso adiante”, acrescenta.
308 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
309<br />
Amizade<br />
Acompanhando o casal está uma amiga, também conquistada<br />
na estrada. É Kelly da Silva Pereira, 23 anos, que saiu<br />
de Alagoas para viajar pelo país. “Conhecer o movimento<br />
hippie foi uma revolução na minha vida. Há cinco anos que<br />
eu estou vivendo assim e é muito bom. Massa”, diz.<br />
O dia a dia dela é bastante parecido com o do casal.<br />
Ela faz o que sente vontade no momento e mantém a<br />
mesma postura de pregar “paz e amor” e a vida fora dos<br />
padrões sociais.<br />
Segundo os hippies, uma das vantagens deste estilo de<br />
vida é o fato de que, pela estrada, muitas amizades são feitas<br />
e levadas por toda a vida, como a história dos mesmos.<br />
O movimento hippie<br />
A cultura e movimento hippie nasceu e teve o maior<br />
desenvolvimento nos Estados Unidos da América (EUA),<br />
com uma juventude rica e escolarizada que recusava<br />
as injustiças e desigualdades da sociedade americana,<br />
nomeadamente a segregação racial.<br />
Na sua expressão mais radical, os jovens hippies abandonavam<br />
o conforto dos lares paternos e rumavam para as<br />
cidades, principalmente São Francisco. Viviam em comunidade<br />
com outros hippies; noutros casos se estabeleciam<br />
em comunas rurais. Dois valores defendidos: a “paz” e o<br />
“amor”. Opunham-se a todas as guerras, incluindo a que<br />
o seu próprio país travava no Vietnã. Defendiam o “amor<br />
livre”, quer no sentido de “amar o próximo”, quer no de<br />
praticar uma atividade sexual bastante libertária. Podiase<br />
partilhar tudo, desde a comida aos companheiros. A<br />
palavra de ordem que melhor resume este sentimento foi<br />
a famosa “Make love, not war” (Faça amor, não guerra).<br />
Os hippies apreciavam a “filosofia oriental”, o que significava<br />
alguns aspectos da religião hindu misturada com<br />
doutrina da “não violência” de Gandhi. Em uma das ações<br />
mais espetaculares (e mais ridículas) um numeroso<br />
grupo de hippies rodeou o Pentágono (sede do aparelho<br />
militar americano) e tentou fazê-lo levitar apenas com a<br />
“força da meditação”.<br />
Estabeleceu-se um “estilo hippie”, com roupas coloridas,<br />
túnicas, sandálias, cabelos compridos em ambos os sexos.<br />
A flor foi um dos seus símbolos e chegou a usar-se a expressão<br />
“flower power” como designação do movimento.<br />
Desta forma, alguns hippies ainda permanecem pelo<br />
mundo, inclusive pelo Brasil, vivendo em comunidades<br />
específicas ou viajando, pregando o princípio de paz e<br />
amor por onde passam, fugindo das obrigações sociais e<br />
do sistema, que eles consideram injusto e ineficaz.<br />
Profissão: Prostituta<br />
Maquiagem, salto alto, vestido curto e bolsa pequena,<br />
estes são apenas alguns acessórios de Flávia Oliveira,<br />
18 anos, que adotou este nome fictício ao tornar-se<br />
travesti e começar fazer o famoso ponto, nas ruas de<br />
Poços de Caldas.<br />
Conhecida como Flavinha, ela conta que se tornou travesti<br />
e prostituta há um ano porque quis. “Ninguém me<br />
obrigou a nada, desde pequena eu queria isso e somente<br />
agora eu tomei esta postura para me assumir mesmo,<br />
entendeu? É uma coisa que quero mesmo”, dispara.<br />
Por sempre ter tido uma convivência no meio de mulheres,<br />
Flavinha conta que nunca levou jeito para ser hétero,<br />
então começou a tomar remédios e tornar-se mais feminina,<br />
além de brincar mais com mulheres.<br />
“Eu fui criada por mulheres, sempre convivi nesse meio.<br />
Os homens da minha casa trabalhavam, então eu sempre<br />
vivi em meio às mulheres. Então, para tornar-me o que<br />
sou hoje, comecei a tomar certos tipos de remédios, usar<br />
coisas mais femininas, desde os meus 12 anos e, até
310 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
311<br />
hoje, me sinto evoluindo. Então, aos 17 anos eu decidi ser<br />
travesti, mas uma travesti de programa”, detalha.<br />
Ao ser indagada sobre o momento em que descobriu ser<br />
homossexual e se decidiu pela prostituição, Flavinha<br />
lembra que teve a primeira experiência sexual aos 10<br />
anos. “Mas eu ainda tinha medo e a incerteza de querer<br />
realmente aquilo para minha vida. Aos 12 anos, quando<br />
cheguei em Poços, vinda da Bahia com a minha família,<br />
vi como é a vida aqui, encontrei-me com pessoas mais<br />
evoluídas e passei a me travestir”, diz.<br />
Flavinha fala também, com certa tristeza, que os pais<br />
não aceitaram de imediato o fato de ela ter começado a<br />
se travestir, aos 12 anos.<br />
“Demorou alguns anos para eles entenderem que eu<br />
havia assumido. Isso aconteceu há uns dois anos apenas,<br />
mas foi uma grande batalha”, afirma.<br />
Sobre praticar sexo por dinheiro, ela conta que os pais<br />
sabem do fato, mas ainda não assimilam com clareza a<br />
situação.<br />
A vida em Poços de Caldas<br />
“Minha vida é ótima”, conta Flavinha. Vinda da Bahia há<br />
quase oito anos, Flavinha atualmente mora sozinha, no<br />
centro da cidade. Os pais também moram em Poços, mas<br />
não dividem a mesma casa com a travesti.<br />
Com uma rotina diferente, até mesmo pelo tipo de vida<br />
escolhida, durante o dia Flavinha arruma os objetos e<br />
pertences em casa.<br />
“Minha mãe tem um estabelecimento em casa e às vezes<br />
vou para o local, que prefiro não citar, como travesti<br />
mesmo e as pessoas que entram no estabelecimento me<br />
aceitam, me tratam muito bem, da mesma forma que eu<br />
as trato”, enfatiza.<br />
Contudo, ela detalha, também, os maus tratos, vindos do<br />
preconceito e de pessoas que não assimilam situações<br />
como a que Flavinha vive.<br />
“Claro que existem pessoas maldosas, que me xingam<br />
na rua, mas eu passo de cabeça baixa, não respondo,<br />
porque a melhor a resposta é o silêncio. Mas tento ser<br />
normal, aliás, eu sou uma pessoa normal”, destaca.<br />
O programa<br />
Ao assumir que realiza programas sexuais por dinheiro,<br />
Flavinha faz questão de ressaltar que é por opção e que<br />
faz isso simplesmente porque gosta e sente prazer.<br />
Nas proximidades do Complexo Cultural da Urca, conhecido<br />
como “paredão”, é onde Flavinha costuma ficar<br />
durante as noites, em busca de dinheiro atrelado à satisfação<br />
sexual e pessoal.<br />
“Eu costumo ficar ali perto, mas já tenho vários clientes.<br />
Espero eles me buscarem em casa, pois, como sou<br />
independente, moro sozinha, eles me pegam em casa<br />
ou, aqueles fixos, que eu já conheço há tempos, costumam<br />
entrar”, conta.<br />
O preço estipulado por ela vai de acordo com a hora.<br />
Quando o programa é feito em casa, Flavinha cobra R$ 100.<br />
E quando é na rua, o preço costuma ser de R$ 50 por meia<br />
hora, que geralmente é gasta em motéis.<br />
“Ás vezes chega a acontecer no carro ou mesmo em<br />
alguns outros lugares que eu já conheço, ou que nos<br />
levam, mas que já temos referências”, diz.<br />
Ela conta, também, que não são todos os dias da semana<br />
em que programas são feitos. A frequência maior é no<br />
final de semana. “Tem dias que eu não vou ao ‘paredão’<br />
pois não estou com cabeça mesmo”, comenta.<br />
Há também horários pré-determinados pelos travestis e<br />
garotas de programa que frequentam os locais famosos
312 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
313<br />
por oferecer prostituição. De acordo com Flavinha, o<br />
movimento se intensifica após às 21h de sexta-feira e vai<br />
até antes do amanhecer, por volta das 5h. Nestes locais,<br />
muitas amizades são feitas entre as outras prostitutas.<br />
“Tenho muitas amigas ali, sim, somos bastante unidas, já<br />
passamos por vários desentendimentos anteriormente,<br />
mas isso era quando uma não conhecia a outra e gerava<br />
aquela confusão, agora, somos bastante unidas”, relata.<br />
O inusitado<br />
Ao ser questionada sobre situações ou programas inusitados,<br />
Flavinha conta que já saiu para fazer programa<br />
com dois casais heterossexuais. “O que eu observo é que<br />
as mulheres querem ter uma relação sexual com uma<br />
travesti. Já saí com dois casais. Porém, da primeira vez,<br />
não fiz nada com a mulher. Já na segunda vez, eu fiz porque<br />
fiquei com vontade, aí aconteceu. Foi a primeira vez<br />
que eu tive relações com uma mulher”, detalha.<br />
Sobre os programas feitos com homens, ela garante que<br />
não existe mais os estereótipos de travesti passivo ou<br />
ativo. “Depende do que os homens querem ou pagam,<br />
mas, no meu caso, o que eles querem, eu faço”, garante.<br />
O “paredão” por ser um local antigo e bastante conhecido,<br />
por muitos moradores da cidade, como um ponto de<br />
prostituição, é também alvo de muitos preconceitos por<br />
parte da sociedade e, algumas vezes, até mesmo da polícia,<br />
como conta Flavinha. “Já sofremos algumas ameaças<br />
de cidadãos e também vários policiais já pediram<br />
para que deixássemos o local, mas eu não entendo, também,<br />
o porquê disso. Não é a primeira cidade de Minas<br />
Gerais que tem profissionais do sexo nas ruas, todas as<br />
cidades têm. Muitas vezes tentam nos tirar de lá, nos dão<br />
‘gerais’ desnecessárias e ficamos inclusive constrangidas,<br />
porque as pessoas passam, olham, eles reviram<br />
nossa bolsa, jogam nossas coisas no chão, pedem-nos<br />
para tirar a roupa, às vezes”, descreve.<br />
Defendendo a classe em que trabalha, Flavinha não<br />
acredita que as ações policiais sejam exclusivamente<br />
para zelar pela ordem pública e bem-estar da sociedade,<br />
mas classifica tais atividades como abuso de poder.<br />
“Tem muita gente em Poços que pensa que a prostituição<br />
nas ruas é uma coisa sobrenatural, sabe? São reações<br />
superpreconceituosas, mas, estas pessoas que pensam<br />
assim, por trás disso, são os que vão nos procurar mais<br />
tarde. Na calada da noite, eles mostram a verdadeira<br />
cara. Porque durante o dia, são um tipo de pessoas, à<br />
noite, são outro e isso é o que eu não aceito”, desabafa.<br />
Sobre a procura por programas, Flavinha acredita que o<br />
que leva um homem ou mesmo mulher em busca de um<br />
travesti na rua é a busca pelo prazer. “Muita gente tem<br />
vontade, mas nem todos têm coragem. Eu acho que é<br />
uma fantasia sexual”, destaca.<br />
Já para ela, o maior prazer da profissão é ser reconhecida<br />
entre os homens. “Eu gosto da propaganda do boca<br />
a boca, os homens dizem que eu sou boa e indicam, para<br />
que outros saiam comigo. Isso é o que me dá prazer”,<br />
afirma. Além disso, Flavinha não deixa de citar o dinheiro,<br />
que, de certa forma, vem fácil por meio da prostituição.<br />
Os perigos da prostituição<br />
Por semana, Flavinha consegue ganhar em média R$ 350,<br />
ou seja, um pouco menos que um salário mínimo. Porém,<br />
vários fatos tristes também fazem parte da história, pouco<br />
comum, de Flavinha. Ela conta que no Carnaval de 2007,<br />
saiu com um rapaz da cidade vizinha de Caconde (SP).<br />
“Ele começou a passar de carro, que também tinha<br />
as placas de Caconde (SP) e eu não estava na Urca. Na<br />
terceira vez que ele passou, parou. Contudo, ele estava<br />
com uma cara um pouco suspeita, aparentando estar<br />
bêbado”, conta.
314 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
315<br />
Com isso, alertada por uma amiga, Flavinha fotografou<br />
uma das placas, como uma espécie de garantia. Dali,<br />
Flavinha e o rapaz foram para um local já conhecido por<br />
ela, próximo à Avenida João Pinheiro.<br />
“Eu já conhecia e quis ir para aquele local, justamente,<br />
por isso, pensando que se algo acontecesse, eu saberia<br />
para onde correr, fugir ou mesmo pedir socorro”, relata.<br />
Daí em diante, um programa entre os dois foi feito e na<br />
hora de acertar o prazer recebido, o rapaz não quis efetuar<br />
o pagamento, sacando uma faca.<br />
“Ele disse que não me pagaria, puxou esta faca, porém,<br />
eu também estava com uma navalha e tentei me defender.<br />
Descemos do carro, começamos discutir e o resultado é<br />
que eu tenho uma cicatriz nas costas, onde ele passou a<br />
faca em mim. Porém, eu também passei a faca nele. Ele<br />
disse que iria registrar um boletim de ocorrência e eu<br />
garanti que quem teria a temer era ele, pois todos saberiam<br />
com quem ele havia saído e eu explicaria para a polícia<br />
que ele não quis pagar meu programa. Porque, neste<br />
caso, eu acho que a polícia deve ir atrás”, narra Flavinha.<br />
Após estes fatos, Flavinha começou a correr e gritar ao<br />
rapaz que estava com ela que havia tirado foto das placas<br />
do carro. Quando chegou no centro da cidade, próximo<br />
ao “paredão”, o mesmo rapaz parou Flavinha, pediu<br />
que ela não fizesse nada e lhe deu o dinheiro devido pelo<br />
programa. “Naquele momento aceitei, mas foi um apuro<br />
pelo qual passei”, diz.<br />
Ela relata ainda que nem sempre anda como armas brancas<br />
como facas, estiletes ou navalhas e diz que naquela<br />
noite, por sorte, estava com uma navalha.<br />
“Aqui em Poços eu não me armo mais, porque a polícia<br />
já me parou, porque tinham pessoas denunciando que<br />
estávamos armadas, mas só pode ser quem sai com a<br />
gente”, comenta. Porém, Flavinha afirma que, quando<br />
vai para a cidade de São Paulo fazer programas, arma-se<br />
com medo de sofrer alguma coisa.<br />
Na capital paulista, fato semelhante já aconteceu com ela,<br />
o cara recusou-se a pagar o programa, lhe apontou uma<br />
arma e a deixou no meio da rua. “Ele me deixou no meio do<br />
nada, eu nem sei onde desci, mas graças a Deus eu tinha<br />
dinheiro na bolsa, liguei para um táxi e ele foi me buscar,<br />
mas foi um dia em que eu senti bastante medo”, lembra.<br />
O preconceito<br />
“Tem muitas pessoas que nos apontam nas ruas. Acham<br />
que somos alvo de zombaria”, diz, ao referir-se ao preconceito<br />
existente da sociedade com os travestis e, também,<br />
com as prostitutas. Contudo, Flavinha destaca que prefere<br />
ignorar o preconceito e levar a vida como está acostumada,<br />
sem se deixar abater com o julgamento alheio.<br />
“Eu prefiro esquecer isso tudo, embora alguns falem, eu<br />
vou levando a vida, pois, para conseguir o que quero, eu<br />
devo passar por isso”, afirma. Quando diz que quer chegar<br />
a algum lugar, Flavinha refere-se ao ideal que criou para si<br />
mesma, que é colocar mais silicone no corpo e mais próteses<br />
e ela enxerga, como única alternativa para alcançar o<br />
sonho, se prostituir.<br />
Relacionamento<br />
Além dos sonhos já citados por Flavinha e dos planos<br />
para o futuro, Flavinha conta que possui um namorado<br />
em Poços. “Ele é muito bacana comigo, acho que ainda é<br />
a única coisa que realmente me prende na cidade”, conta.<br />
Os dois se conheceram na rua e segundo relatos dela, ele<br />
a aceitou enquanto prostituta. “Mesmo não querendo,<br />
ele tenta entender isso”, afirma.<br />
O dia de hoje... O futuro...<br />
Diferente dos relatos comuns de prostitutas, que iniciaram<br />
na profissão por falta de recursos financeiros, Flavinha<br />
nunca passou por nenhuma necessidade e conta que os<br />
pais sempre lhe proporcionaram bem-estar dentro de casa.
316 <strong>Traficando</strong> conhecimento<br />
“Eles sempre batalharam, tanto na Bahia como aqui, mas<br />
me prostituir foi uma opção. Não precisava de nada disso<br />
que estou passando, faço porque gosto mesmo, embora<br />
não seja fácil ficar na rua, é algo que quero passar, para<br />
chegar onde quero”, relata.<br />
Ela diz, também, que trabalhar em um emprego convencional,<br />
por ora, não está nos planos, visto que a rua<br />
oferece dinheiro mais rápido. Contudo, a travesti relata,<br />
também, que, às vezes, a rua não é tão agradável e sedutora,<br />
numerando fatos como não ter clientes todos os<br />
dias, ou fatos desagradáveis com pessoas que fazem o<br />
programa e recusam-se a pagar o preço estipulado.<br />
“Eu já procurei empregos convencionais, mas aqui em<br />
Poços não consegui nada. Acho que os empresários são<br />
preconceituosos ainda. Só existem opções para cabeleireiro<br />
e quero trabalhar com moda”, conta Flavinha.<br />
Ela diz ainda que não conseguiu se firmar em um emprego<br />
comum, porque deixou de tentar ao longo do caminho.<br />
Atualmente, Flavinha quer continuar na rua, trabalhando<br />
como prostituta, mas não descarta a hipótese de, futuramente,<br />
dedicar-se ao sonho, que é trabalhar com moda.<br />
Sem se esquecer do sonho e que cada dia ou mesmo programa<br />
é um passo dado em direção ao futuro, Flavinha<br />
conta que sempre se previne contra Doenças Sexualmente<br />
Transmissíveis (DST) ou mesmo da Aids. “Minha<br />
bolsa é lotada de camisinhas, eu tenho a carteirinha no<br />
DST / Aids e me cuido também. Muitos caras chegam até<br />
mim, dizem que são casados, que não têm nada, porém,<br />
eu bato o pé e exijo o uso da camisinha”, relata.<br />
Para finalizar, Flavinha reafirma considerar-se uma pessoa<br />
bastante feliz e realizada no que faz. “Eu sou hiperfeliz<br />
no que sou, no que faço e com as amizades que tenho<br />
neste mundo. Eu tenho que dizer para as pessoas abrirem<br />
a mente, porque todo mundo é igual, não tem quem seja<br />
diferente, perante Deus, todos somos iguais”, finaliza.
318 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
319<br />
Caminho de pedras<br />
É uma manhã ensolarada de sábado. Os termômetros<br />
marcam algo em torno de 22° C e, apesar da época ser<br />
considerada fria, faz um dia agradável.<br />
Sentado, na porta de casa, Augusto Caetano* (nome<br />
alterado), 19 anos, conhecido como Toquinho, pela baixa<br />
estatura, conta à reportagem que naquela mesma manhã,<br />
assim que se levantou, por volta das 9h30, já havia usado<br />
crack, droga derivada da mistura da cocaína ao bicarbonato<br />
de sódio, geralmente fumada em cachimbos e bastante<br />
comum nos locais mais pobres das comunidades.<br />
Por ser mais barato que a cocaína, o crack chega mais<br />
facilmente às mãos dos jovens e casos como o de Toquinho<br />
são mais raros, visto que os jovens começam a fumar<br />
o crack com idades entre 10 e 12 anos. “É uma droga que<br />
tem um efeito legal, embora dure pouco tempo. Uma<br />
pedra de crack custa R$ 10”, conta, timidamente o rapaz.<br />
Estudos acerca da droga mostram que este é um vício<br />
bastante caro e que de pedra em pedra, os usuários<br />
passam a quantidades maiores, tentando obter o mesmo<br />
efeito das primeiras vezes consumidas.<br />
O crack chega a ser até seis vezes mais potente que a<br />
cocaína, contudo, provoca dependência física e pode<br />
levar à morte por ter uma ação fulminante sobre o sistema<br />
nervoso central e cardíaco.<br />
O antes e o depois<br />
“Lutei muito tempo para me assumir como um dependente<br />
de crack”, conta Toquinho. “Quando eu era moleque,<br />
fumava muita maconha e achava o máximo, até que<br />
com uns 16 anos, fiquei amigo do pessoal que repassa<br />
a droga e entre um repasse e outro, junto com eles,<br />
treinando para ‘aviãozinho’ — pessoa que leva a droga<br />
de um local a outro — eu experimentei cocaína e gostei<br />
bastante. É estranho a gente falar que gostou de uma<br />
coisa que faz mal, né?”, comenta.<br />
Após usar cocaína e maconha por anos, Toquinho conheceu<br />
o crack há pouco mais de um ano e, deste então,<br />
diz que raras foram as vezes em que ele não fez o uso<br />
da droga. “Antigamente usava com um maior espaço de<br />
tempo. Agora, acordo fissurado, como hoje, levantei e já<br />
fumei. Parece que foi ontem mesmo, mas vejo que minha<br />
vida mudou”.<br />
Neste momento, Toquinho abaixa a cabeça e mostra<br />
sinais de estar levemente emocionado. Em seguida, conta<br />
que, antes de usar o crack, saía todos os fins de semana,<br />
namorava e sentia mais prazer em viver. “Como eu contei,<br />
sempre usei drogas, mas agora parece que é pior. Eu me<br />
sinto em função do crack. Uma parte de mim diz que não é<br />
viciado e outra me mostra que sou totalmente dependente<br />
do cachimbo para estar feliz ou mesmo vivo”, declara.<br />
Antes de conhecer o crack, Toquinho, apesar de morar em<br />
um bairro pobre da cidade, trabalhava e levava uma vida,<br />
aparentemente natural, como outros rapazes da idade<br />
dele e que também fumam maconha e cheiram cocaína.<br />
Ao conhecer o crack, se viciou quase instantaneamente<br />
e revela que perdeu o emprego, a namorada e com isso,<br />
muito da vontade de viver.<br />
Sustentando o vício<br />
Segundo o Departamento Estadual de Investigação sobre<br />
Narcóticos (Denarc), o crack é a droga com um dos mais<br />
altos poderes viciantes e uma pessoa, apenas de experimentar,<br />
já se torna um viciado.<br />
O efeito do crack passa muito depressa, e o sofrimento<br />
pela ausência do mesmo no corpo vem em 15 minutos, ou<br />
seja, o usuário, a cada dia que passa, faz uso de quantidades<br />
maiores e aumenta, com isso, os gastos.<br />
Surge então a fase em que a pessoa faz qualquer coisa<br />
para obter a droga. Isto é confirmado por Toquinho, que,<br />
ao perder o emprego de auxiliar mecânico, passou a atuar<br />
como “aviãozinho” onde mora, para obter um pouco mais
320 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
321<br />
da droga. “Eu sempre tenho que entregar a pedra, algumas<br />
vezes, vender e, com isso, ganho algumas. Depende<br />
do meu desempenho. As que eu ganho, posso vender por<br />
conta própria, ou usar. Como eu uso, fico com elas para<br />
mim. Mas, cada dia que passa, me vejo obrigado a entregar<br />
ainda mais pedras para usar mais”, conta.<br />
Toquinho revela, também, que, para comprar drogas,<br />
muitas vezes, furtou pequenos objetos em casa ou pediu<br />
dinheiro para a mãe. “Minha mãe trabalha como doméstica,<br />
então, por várias vezes, peço dinheiro para ela. Ela<br />
sabe que é para drogas, me xinga, pede que eu procure<br />
um novo emprego, mas eu não quero, quero só a pedra,<br />
fumar o crack, sozinho em paz”, diz.<br />
Outras vezes, para comprar droga, Toquinho furtou CDs,<br />
um par de tênis e blusas do irmão mais velho. “Como ele<br />
trabalha o dia todo, quando bate a fissura, tenho que<br />
fazer isso. Mas não sou um monstro. Eu me arrependo<br />
depois. Conto para ele. Peço desculpas”.<br />
Para Toquinho, o crack é ao mesmo tempo um alívio e um<br />
peso. Como fuga da realidade, ele embrenha-se, cada diz<br />
mais, no uso da substância e não tem intenções de parar,<br />
porém, não sabe o que faz para manter o vício. “Não<br />
vejo sentido em continuar, mas não quero parar. Queria<br />
apenas uma forma de poder ter quanto crack eu preciso.<br />
A sensação que ele me causa é ótima. Não faz sentido<br />
parar”, dispara, se contradizendo.<br />
Sensação<br />
A contradição de Toquinho é comum em usuários de<br />
crack, conforme afirmam muitos psicólogos e pessoas<br />
que lidam com situações semelhantes, como é o caso<br />
de Luciana Marques, estudante de psicologia e estagiária<br />
em centros de reabilitação. “O crack gera um prazer<br />
imediato, então, em cerca de dez segundos, o usuário<br />
se sente um super-homem e toma coragem para fazer<br />
abordagens. Mas o fim do efeito vem repleto de sentimento<br />
de culpa e depressão, daí a tendência dele usar<br />
de novo, para não enfrentar o desconforto que a droga<br />
provoca”, explica.<br />
Contudo, a sensação do crack é muitas vezes ilusória,<br />
como relata Toquinho. “Ao mesmo tempo em que me<br />
sinto muito bem usando o crack, vejo que perco muita<br />
coisa. Antigamente eu me preocupava com o tipo de<br />
roupa que usava e a forma como me vestia. Hoje, não ligo<br />
mais para isso. Meu único interesse é obter a pedra e<br />
usá-la da melhor forma possível”, conta.<br />
Para Luciana, esta posição denota o processo de “suicídio<br />
inconsciente”, em que grande parte dos usuários foge<br />
das responsabilidades e nem cogitam a ideia de deixar o<br />
crack. “É mais fácil se entregar a isso, não querer ficar<br />
adulto, esperar que a morte venha, de uma forma ou de<br />
outra. Pode ser pelo uso prolongado da droga e da degeneração<br />
do organismo, ou através da polícia, das dívidas<br />
com os traficantes”, afirma.<br />
Toquinho conta que em uma única noite, já chegou a fumar<br />
até sete pedras de crack. Número considerado alto, até<br />
mesmo entre os usuários. “Foi durante uma festa. Eu<br />
tive várias alucinações. Não sabia se era dia, noite, quem<br />
estava a minha volta, mas, foi uma sensação muito boa<br />
também. Se eu pudesse, fumaria tudo novamente”, afirma.<br />
Medo<br />
Ao ser questionado sobre ter medo da morte ou mesmo da<br />
polícia ou de traficantes, Toquinho hesita e diz que o medo<br />
varia.“De morrer eu não tenho medo. Mas, por outro lado,<br />
tenho dó da minha mãe, sabe? Ela faz tudo por mim. Vejo<br />
que errei na vida. Sinto-me fraco e sem vontade de parar.<br />
É mais forte do que eu. Só quem já fumou crack entende o<br />
que digo. Mas é uma coisa que me comanda. Ao invés de<br />
eu mandar em mim, quem manda é a droga. Imagino que<br />
tentar parar dá mais trabalho do que continuar fumando.<br />
Agora, da PM ou dos traficantes eu não tenho medo. Não
322 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
323<br />
fico dando bobeira. Fumo crack em casa. Ando com pouca<br />
quantidade. Os caras que passam a droga, também, são<br />
meus amigos. É só ficar esperto e não fazer dívidas, mas<br />
sobre isso eu ainda tenho controle”, revela.<br />
Futuro?<br />
Não existe um tempo estimado de vida para os usuários<br />
de crack, mas é sabido que grande parte deles, se não<br />
deixam a droga, morrem por motivos já citados, como<br />
dívidas, presos ou por degeneração do organismo.<br />
Toquinho afirma que não acredita em um futuro para ele,<br />
uma vez que não pretende abandonar a droga.“Quando<br />
eu era criança, tinha muitos sonhos. Pensava em jogar<br />
futebol, em ter uma casa grande, com piscina, em comprar<br />
um carro, uma moto. Conforme fui crescendo, percebi<br />
o trabalho que eu precisaria fazer para ter tudo isso<br />
e desisti. Assumo que sou fraco e optei pelo lado mais<br />
fácil. Se você me perguntar, qual é o meu maior prazer,<br />
vou te responder ‘fumar crack’, certo? Minha vida é isso.<br />
Nem quero pensar em futuro”.<br />
Às Margens da Rodovia<br />
São 12h15 de uma sexta-feira. É dia 16 de maio de 2008 e<br />
Neusa Bastos, aproximadamente 35 anos, está estendida<br />
às margens da rodovia L-MG 877, rodovia Geraldo Costa<br />
Martins, conhecida também como rodovia do Contorno.<br />
Parcialmente consciente, Neusa está imóvel, caída, com<br />
metade do corpo na estrada e metade no acostamento,<br />
sem conseguir se mexer.<br />
Passando pelo local, a reportagem quer saber o que houve<br />
com aquela pessoa, para ela estar ali, daquela maneira.<br />
Ao averiguar que a pessoa ali estendida estava viva, a<br />
reportagem telefonou para o Serviço de Atendimento<br />
Móvel de Urgência (Samu) e pediu auxílio e socorro, contudo,<br />
devido a localização em que se encontrava, a ligação<br />
foi cortada por falta de sinal no celular.<br />
Em seguida, o Corpo de Bombeiros foi chamado e após<br />
muitas perguntas e confirmação de nome, endereço e<br />
telefone do solicitante, a reportagem foi informada que<br />
uma Unidade de Resgate (UR) estava a caminho do local.<br />
O relógio marcava 12h19. A vítima, ainda caída ao solo e<br />
imóvel, abriu os olhos e murmurou “eu estou morrendo,<br />
eu fui atropelada” e expressava dor por estar ali, daquela<br />
maneira, sem poder ser removida.<br />
Alguns carros que passaram pelo local pararam para oferecer<br />
ajuda. Um deles, de uma empresa da cidade parou.<br />
Uma moça desceu, foi em direção a Neusa, começou a<br />
medir seus batimentos cardíacos, contatando que ela<br />
estava com vida, quando esta afirmou mais uma vez que<br />
estava morrendo.<br />
O homem que acompanhava a moça ligou para o Samu,<br />
desta vez, conseguindo informar o local onde a vítima<br />
estava. No movimento cotidiano pela rodovia, passou<br />
uma viatura da Polícia Rodoviária Estadual (PRE), que<br />
reduziu a velocidade para observar a cena, uma mulher<br />
caída às margens da rodovia, e foi embora, sem parar no<br />
local para realmente confirmar o que aconteceu.<br />
Poucos minutos depois, para uma Kombi velha, praticamente<br />
caindo aos pedaços e descem alguns homens,<br />
acompanhados por uma criança. Um desses homens<br />
apresenta-se como Joaquim, companheiro de Neusa.<br />
Os outros são vizinhos deles e informam que Neusa está<br />
daquele jeito, pois bebeu cachaça com uma amiga, no<br />
bairro vizinho, Jardim Kennedy, na Zona Sul da cidade.<br />
É neste momento que ela abre os olhos novamente e<br />
murmura que foi atropelada. Todos os presentes na cena<br />
param para observar se existe alguma marca de sangue,<br />
que não é encontrada, mas, marcas de freio podem ser<br />
observadas próximas ao local.<br />
Estes homens acompanhando Joaquim afirmam, também,<br />
que Neusa tem alguns distúrbios mentais e talvez<br />
tenha tido uma convulsão, por ter bebido. Joaquim se diz
324 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
325<br />
preocupado com a companheira estar caída ali, porém,<br />
em uma conversa com a reportagem, informa que vive<br />
com ela há apenas um mês e que eles não são casados.<br />
“A gente só mora junto”, diz.<br />
E, a partir daí, ele começa a contar um pouco sobre a<br />
vida. Diz que mora em uma casinha, tipo chácara, em um<br />
terreno às margens da rodovia e também, às margens<br />
da sociedade. Ele conta que não sabe a idade exata de<br />
Neusa, mas desconfia que ela tenha 35 anos. Diz, ainda,<br />
que nenhum dos dois trabalha e que apenas ela recebe<br />
aposentadoria.<br />
“Ela é aposentada, mas a mãe dela pega todo o dinheiro<br />
que ela recebe”, relata. Joaquim diz também que não trabalha<br />
porque tem problemas de saúde, uma hérnia. “Eu não<br />
posso trabalhar. Então, moro aqui nesta casa que é de um<br />
daqueles rapazes da Kombi. Eu cuido da criação de gansos<br />
que ele tem. Não pago nada para morar aqui”, conta.<br />
Aparentando ter bastante idade, Joaquim contou, também,<br />
que, em razão da hérnia, está tentando aposentar-se. “Eu<br />
já separei meus documentos e a resposta que tive é que<br />
foi para Brasília. Acho que não vou conseguir”, lamenta-se.<br />
Enquanto aguarda a chegada de um socorro, Joaquim<br />
fica em volta de Neusa, dividido entre saber se ela bebeu,<br />
realmente, se foi atropelada e quando ela afirma que foi<br />
atropelada, em um tom de quem sente dor, ele afirma a<br />
ela que é por conta da bebida. Com isso, com bastante<br />
esforço e a respiração forte e ofegante, Neusa mexe-se<br />
da posição em que encontra e vira, no acostamento, com<br />
o peito para cima, tombando a cabeça para o lado.<br />
Contudo, Joaquim permaneceu a seu lado, ora em pé, ora<br />
sentado em uma pedra a beira da porteira, que dá acesso<br />
a casa em que ele reside. Outros carros passaram pelo<br />
local e ofereceram ajuda. Uma viatura da Polícia Militar<br />
também passou e, assim como a viatura da PRE, diminuiu<br />
a velocidade, observou a cena e sequer parou.<br />
Após longos vinte minutos, chega uma viatura do Corpo<br />
de Bombeiros, com as luzes ligadas e as sirenes desligadas.<br />
Assim que se aproximaram de Neusa, o militar do<br />
Corpo de Bombeiros foi verificar se havia sangue em sua<br />
cabeça, momento em que esta despertou e novamente<br />
resmungando, disse que havia sido jogada por um carro<br />
às margens da rodovia.<br />
Cerca de dois minutos após a chegada do Corpo de Bombeiros,<br />
o Samu chegou e em conjunto, fizeram o atendimento<br />
de Neusa. Enfermeiros do Samu, ao descerem<br />
da UR afirmaram que não estavam encontrando o local<br />
descrito na ligação e, por isso, a demora para chegar e<br />
fazer o resgate.<br />
O nível de glicose no sangue de Neusa foi medido, constando<br />
sim, que ela estava alcoolizada. Porém, nenhum<br />
comentário sobre atropelamento foi feito. Joaquim ficou<br />
em volta dos bombeiros e dos enfermeiros do Samu,<br />
aguardando um resultado ou diagnóstico de Neusa.<br />
Ao ver as viaturas do Corpo de Bombeiros e do Samu paradas<br />
no local, uma terceira viatura da PM passou e parou,<br />
estacionando o veículo e querendo informar-se sobre o<br />
acontecido. Neusa foi colocada na maca de emergência do<br />
Corpo de Bombeiros e, segundo os militares, seria levada<br />
para a Policlínica Central, onde deveria ser medicada com<br />
glicose e posteriormente liberada.<br />
Uma das enfermeiras do Samu, antes de ir embora,<br />
comentou que Neusa teria tido uma convulsão, mas,<br />
nada comprovado. Joaquim foi solicitado para acompanhar<br />
Neusa até o pronto socorro, porém, ele disse que<br />
não poderia, alegando ter muitos afazeres, como guardar<br />
algumas ferramentas. No entanto, foi convencido pelo<br />
Corpo de Bombeiros, o que não foi muito fácil, mas acabou<br />
cedendo e informou que guardaria apenas algumas<br />
coisas que havia deixado ali, às margens da rodovia.
326 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
327<br />
A Polícia Militar aguardou, esperou o Samu ir embora, o<br />
Corpo de Bombeiros, e não registrou nenhuma ocorrência.<br />
Neusa foi na ambulância afirmando ter sido jogada<br />
por um carro. As marcas no asfalto apresentavam freadas.<br />
Nenhum carro. Nenhuma prova. Nenhuma ocorrência.<br />
Mais um ser humano jogado, às margens da rodovia,<br />
às margens da sociedade.<br />
Entre outras reportagens estas foram as que mais chamaram<br />
minha atenção. Não acho que foram as melhores,<br />
jornalisticamente falando, mas, sem dúvida, foram<br />
as histórias que mais me envolveram durante a execução<br />
e foram as que fortaleceram a minha inspiração para<br />
trabalhar com a literatura atrelada ao jornalismo.<br />
Sei que não devemos escolher personagens pela profissão<br />
e sim pela história, mas desobedecer esta regra,<br />
muitas vezes, foi inevitável. As profissões e ocupações,<br />
além de estereótipos sempre reservaram bons relatos e<br />
como a intenção era praticar o jornalismo literário e, ao<br />
mesmo tempo, dar voz aos que estão às margens, penso<br />
que fiz as escolhas certas.<br />
Do ouvido atento a estes relatos o movimento só amadureceu.<br />
Por intermédio de grandes experiências de vidas<br />
captadas num único lugar: a quebrada.<br />
Havia, também, a intenção de reunir material suficiente<br />
para transformar em livro, ou em revista, ou em qualquer<br />
que seja o tipo de publicação, apenas para distribuir de<br />
outra maneira que não o jornal circulando aos domingos.<br />
Mas, para continuar fazendo valer, resolvi, mais uma vez,<br />
embarcar no mundo dos eventos de hip-hop e promover<br />
um ao melhor estilo do Hip-Hop Sul de antigamente.<br />
Após economizar, ir e voltar do “Baile Chique”, palco destinado<br />
ao hip-hop, na 3ª edição do evento Virada Cultural<br />
em São Paulo, apesar do desrespeito, a mente não parava<br />
nem para dormir de tanta vontade de fazer tudo. Porém,<br />
diante da situação de opressão encontrada no local,<br />
escrevi o texto abaixo, que circulou toda internet e virou<br />
notícia em todos os sites ligados ao hip-hop e à literatura.<br />
Opressão e desrespeito com o hip-hop na<br />
Virada Cultural 2008<br />
Revista policial, abuso de autoridade e distanciamento<br />
marcam o Baile Chique, palco destinado ao hip-hop, na<br />
3ª edição do evento Virada Cultural<br />
Após viajar 280 quilômetros de ônibus, depois de ter<br />
trabalhado 12 horas seguidas, cheguei para a Virada Cultural.<br />
Fui porque várias atrações prometiam, entre elas,<br />
grandes nomes no palco do hip-hop, como os precursores<br />
Thaíde, Dj Hum e o pai de toda esta cultura, Afrika<br />
Bambaataa, como atração de encerramento.<br />
Mesmo sem nunca ter ido a uma Virada Cultural, esperava<br />
um evento bem organizado e estruturado, com policiamento<br />
para garantir a segurança do público e não para<br />
constranger. Ao chegar, me deparei com vários palcos,<br />
entre eles o principal, onde marcava atrações como Gal<br />
Costa, Zé Ramalho, Teatro Mágico e Marcelo D2, citando<br />
este último como rapper.<br />
Agora eu questiono. Se ele é um rapper, o que estava<br />
fazendo no palco principal do evento? Por que não<br />
estava no palco do hip-hop, ao lado de tantos outros<br />
nomes bons? E reafirmo questionamentos já feitos.<br />
Qual é a representatividade do Marcelo D2, dentro<br />
da cultura hip-hop, para ocupar o palco principal? E o<br />
Afrika Bambaataa? São indagações longe, ainda, de<br />
serem o problema principal deste artigo.<br />
Em um mapa distribuído em vários pontos da Virada Cultural,<br />
os palcos de shows eram mostrados, qual não foi
Em foco<br />
329<br />
minha surpresa ao ver que o palco do hip-hop ficava bastante<br />
longe dos demais, localizado na praça Cível Ulysses<br />
Guimarães, no Parque Dom Pedro. Pelas informações do<br />
mapa e de moradores de São Paulo, deveria pegar um<br />
metrô, do Vale do Anhangabaú até a Praça.<br />
Contudo, pela inexperiência no evento e na maior cidade<br />
do país, somente ao descer do metrô, percebi que estava<br />
mais longe do local do que se tivesse ido a pé de onde<br />
eu estava anteriormente. Um cidadão ainda me disse que<br />
eu deveria pegar um ônibus da estação do metrô até o<br />
Parque Dom Pedro, pois o caminho feito a pé poderia ser<br />
perigoso, “pelo povo que passava por ali”. Não questionei<br />
e fui. Seguindo um som distante, cheguei próxima a um<br />
local pouco iluminado, onde, para entrar, deveria passar<br />
por um corredor de grades. Mais uma surpresa na noite<br />
e, esta, bastante desagradável, quando vi meus companheiros<br />
de cultura sendo revistados por policiais, aliás,<br />
um grande número de policiais, bem maior do que nas<br />
outras concentrações do evento. Não contentes em efetuar<br />
a revista pessoal, expondo a cultura hip-hop novamente<br />
à margem da sociedade, dizendo, nas entrelinhas,<br />
que somos todos bandidos e que expomos a sociedade<br />
à riscos, os policiais faziam com que colocássemos<br />
as mãos na cabeça, ou estendidas na grade e abríssemos<br />
as pernas, para a revista completa. Sem estarem<br />
satisfeitos, boa noite ou bom dia para quê? A estupidez<br />
costumeira tomou o devido lugar, quando os policiais,<br />
cheios de abuso de autoridade, abordavam os manos e<br />
minas que chegavam ao local com o único intuito de curtir<br />
a Virada Cultural com o tipo de música preferido. Fácil<br />
notar, também, que a cada árvore do parque havia três<br />
policiais, ou seja, mais policiamento do que público, sem<br />
falar na cavalaria, também presente no maior evento cultural<br />
do país. Lamentável. Já me sentindo um lixo, pela<br />
decepção do local do show, o pequeno público e a revista<br />
policial, tirei uma foto da revista e fui lesada nos meus
330 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
331<br />
direitos de jornalista formada por uma cabo, que não<br />
sabia nem falar, mas, abusando da autoridade, me fez<br />
apagar a imagem, me impedindo, não apenas de curtir<br />
meu estilo musical preferido em paz, como de trabalhar<br />
e exercer minha profissão, com todos os direitos previstos<br />
pela lei. Nos shows, meia dúzia de gatos pingados,<br />
isolados, discriminados e julgados tentavam curtir o<br />
rap, com uma aparelhagem de som desregulada, o que<br />
denota ainda mais o descaso da organização do evento,<br />
e também da sociedade, com a cultura hip-hop. Contudo,<br />
mesmo sofrendo com as mazelas impostas pela sociedade,<br />
o público do “Baile Chique” comportou-se como<br />
deveria, ou seja, como sempre, civilizadamente, porém,<br />
com a dispersão deste, os policiais fizeram questão de<br />
aproximar-se do palco, alvoraçados, como se os negros<br />
e pobres, ali presentes, pudessem, a qualquer momento,<br />
atacar alguém, como animais mitológicos. Não aguentei<br />
e fui embora logo. Fiquei decepcionada por ter viajado e<br />
investido em um evento no qual meu estilo fora desprezado<br />
em último grau. Em outras partes da Virada Cultural,<br />
com público estimado de quatro mil pessoas. No palco<br />
da dança, no Vale do Anhangabaú, onde público tinha até<br />
cadeiras, um garoto de uns 12 anos cheirava cola livremente<br />
em frente aos policiais que faziam a “ronda” por<br />
ali e, não satisfeitos pela ronda, faziam também vista<br />
grossa para isso. Um pouco mais adiante, um grupo<br />
fumava maconha livremente na cara dos policiais, coisa<br />
natural, e ninguém tomou geral por isso, foi impedido de<br />
fotografar, ou ficou isolado em suas comemorações, em<br />
um parque ‘enjaulado’ e à parte do evento. No outro dia,<br />
voltei para o show do Afrika Bambaataa e fiquei em um<br />
evento, no qual, não havia constatado na noite anterior,<br />
não havia barracas vendendo comes e bebes e, para<br />
tomar uma água, tínhamos de sair do pátio feito pela<br />
organização da Virada Cultural. O pai do hip-hop chegou<br />
para tocar para o maior público daquele palco, algo em<br />
torno de seis mil pessoas, contra as 50 mil que foram aos<br />
shows do palco principal, na Avenida São João. Quando o<br />
criador de toda a cultura subiu no palco, ficou por mais de<br />
meia hora regulando o som, que estava mal sintonizado,<br />
ou seja, outra vergonha para o público do hip-hop.<br />
Em entrevista ao Jornal da Tarde, o secretário de Cultural<br />
Carlos Augusto Calil justificou o local escolhido. “Houve<br />
uma certa inocência em colocar, no ano passado, o palco<br />
de hip-hop na Praça da Sé, que passa por um processo<br />
de urbanização.” Segundo o secretário, para evitar novos<br />
incidentes, os espaços foram melhor distribuídos e<br />
adequados ao público. “Criamos condições para que o<br />
público de hip-hop, por exemplo, que tem um comportamento<br />
diferenciado, possa curtir a festa deles.”<br />
Eu pergunto, que condições? Que público? O que este<br />
secretário entende de hip-hop para fazer isso? Não subestimando,<br />
mas creio que não entenda mais do que o preconceito<br />
criado acerca da nossa cultura, pois referir-se ao<br />
“comportamento diferenciado” como se fôssemos bichos<br />
agindo por instinto, foi demais. Durante a semana que se<br />
seguiu a Virada Cultural, minha caixa de e-mails fervilhou<br />
de mensagens debatendo o assunto. Vários sites também<br />
publicaram artigos, matérias e indignações. Cada um<br />
mantém a sua opinião acerca dos fatos acontecidos.<br />
Na minha? Culpa dos dois lados. O primeiro, da falta de<br />
comprometimento do hip-hop com ele mesmo. Cadê as<br />
lutas? A prática da pregação de Bambaataa por “paz,<br />
amor, diversão e união”. Quem é que luta por isso? Quem<br />
tenta mudar nossa situação de escravidão moderna? O<br />
que o hip-hop, ou seja, nós mesmos, fazemos por isso?<br />
Só escrever um texto adianta? Publicar várias opiniões<br />
dispersas resolve?
334 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
335<br />
É, eu também estou publicando a minha, e como todos,<br />
acredito que o desabafo e o compartilhamento dos pensamentos<br />
possa nos levar a algum lugar. Jogo o desafio<br />
aos manos e minas, que queiram se reunir, na representatividade<br />
da nossa cultura, mostrando ao Secretário de<br />
Cultura, aos novos eleitos neste ano eleitoral e à população<br />
que não podemos mais ser tratados como escravos e<br />
que a nossa inteligência não pode mais ser subestimada<br />
em revistas policiais. Que temos, sim, direito a trabalhar<br />
e exercer nossas profissões e, ainda mais, de termos o<br />
que os outros estilos musicais têm.<br />
No mais, acho que o que todos queremos é a Paz.<br />
Fiz questão de salvar alguns comentários e, na época,<br />
publicar no blog e apresentar, também, aos garotos das<br />
oficinas e aos grupos da cidade, como uma tentativa de<br />
chamar atenção ao problema e ao fato de precisarmos<br />
nos organizar mais.<br />
Os comentários:<br />
Olá, Jéssica. Parabéns pela visão crítica ao hip-hop e pela<br />
bela coluna escrita. Infelizmente o hip-hop é um movimento<br />
quase que falido que não consegue responder mais<br />
às questões, como você mesma fez no seu texto, poucos<br />
que estão no ativismo devem ser respeitados e merecem,<br />
cada vez mais, um suporte para nos tirar deste novo<br />
modelo de escravidão que se perpetua, cada vez mais,<br />
sobre os pobres e pretos deste país. Nossa maior prisão<br />
ainda está na mente e para se livrar dela é necessário mais<br />
do que só o hip-hop, que hoje é sexista, consumista e não<br />
agrega mais valores para melhoria da nossa autoestima e<br />
crescimento sócio-político do nosso povo.<br />
Parabéns e paz!<br />
Ass: MT Ton - CUFA BH / Realistas NPN<br />
—<br />
Olá, Jéssica,<br />
Seu texto me deixou deveras pensativo. Até quando?<br />
Resolvi disponibilizá-lo para leitura no meu site (www.<br />
gograpnacional.com.br). Pode ser?<br />
Abs,<br />
GOG<br />
—<br />
Olá, Jéssica<br />
Muito bacana e necessário seu texto. É isso aí. Obrigado por<br />
ter me enviado. Havia feito um questionamento em minha<br />
Coluna no Le Monde Diplomatique, mas a realidade foi<br />
muito pior do que eu imaginava. Você foi brilhante nas suas<br />
posições.<br />
Eleilson Leite (Ação Educativa)<br />
—<br />
Li a a sua matéria da Virada; parabéns pela atitude e voz!!<br />
Juntos!<br />
Abços,<br />
Nelson Maca<br />
—<br />
Olá, guerreira!<br />
Eu não estive na Virada Cultural, mesmo morando na<br />
cidade, pois no sábado eu trampei e, domingo, preferi<br />
prestigiar o evento Favela Toma Conta do Buzo, porém<br />
fiquei sabendo de toda a movimentação, em especial sobre<br />
os acontecimentos no palco do hip-hop. Gostei muito da<br />
problematização que contém seu texto e pela descrição<br />
da realidade sobre esse acontecido, por isso quero saber<br />
se posso publicar em dois blogs do nosso coletivo: Elo da<br />
corrente (www.elo-da-corrente.blogspot.com) e o Grupo<br />
Alerta ao Sistema (www.alertaaosistema.blogspot.com).<br />
Aguardo resposta.<br />
Saudações!!!<br />
Michel da Silva
336 <strong>Traficando</strong> conhecimento<br />
—<br />
Firmeza!<br />
Valeu, Jéssica. O que precisar pode conta conosco, pode<br />
crer? Admiro muito o seu trabalho. Essa conexão é muito<br />
importante.<br />
PAZ guerreira<br />
Elemento.S
Em foco<br />
339<br />
Pela vida<br />
Sem opção de lazer, o domingo à tarde é o dia escolhido<br />
para a realização de um novo evento de hip-hop. Na<br />
mente as boas lembranças dos primeiros Hip-Hop Sul e<br />
no coração o desejo de transformar a realidade, nem que<br />
fosse por apenas alguns segundos.<br />
Correndo contra o tempo e, novamente, sem qualquer tipo<br />
de patrocínio, o evento foi realizado e manteve a proposta<br />
de atrelar qualquer atividade a uma ação beneficente. Um<br />
ingresso = um quilo de alimtento. A tentativa era livrar o<br />
hip-hop do preconceito e mostrá-lo muito além do que a<br />
sociedade pensa e propaga. Serve, também, como um<br />
instrumento de amor e de ajuda a quem precisa.<br />
Mesmo com pouco a dar, os hip-hoppers e adeptos fazem<br />
“um corre qualquer” e conseguem o alimento para doar.<br />
A favor da informação e da socialização, o encontro foi<br />
batizado como “Cultura Marginal: Pela vida!” O convite é<br />
único: toda periferia pode participar.<br />
Como influências foram captadas as experiências da<br />
Cooperifa, do Favela Toma Conta, do Hip-Hop em Foco,<br />
das oficinas, dos eventos na cidade vizinha de Pouso Alegre<br />
e do sem-número de atividades feitas por parceiros<br />
de outras periferias em cidades e estados brasileiros.<br />
Uma tempestade de ideias, apenas para poupar o tempo<br />
das reuniões foi o que definiu a programação. Shows de<br />
rap feitos com artistas locais e convidados de outras<br />
cidades, apresentações dos grupos de dança, batalhas<br />
de break, batalhas de rimas, exibição de grafite e DJs no<br />
comando. A novidade, até então, explorada apenas de<br />
forma simbólica, seria o sarau literário com a distribuição<br />
das caixinhas poéticas.<br />
“As juras de amor não são mentiras, de maneira alguma!<br />
São verdades com prazo de validade.” (Sérgio Vaz)<br />
“A elite me causa nojo, porque quer exigir, exigir, exigir e<br />
nunca dividir.” (Alessandro Buzo)<br />
“A Humildade de um homem serão as armas para a paz<br />
universal.” (Mano Brown)<br />
“Dou ‘mó’ valor para quem suporta vida dura.” (Gog)<br />
“A elite já é suicida há muito tempo.” (Ferréz)<br />
—<br />
“Eita negro!<br />
Quem foi que disse<br />
que a gente não é gente?<br />
Quem foi esse demente,<br />
se tem olhos não vê…<br />
— Que foi que fizeste mano<br />
para tanto falar assim?<br />
— Plantei os canaviais do nordeste.<br />
— E tu, mano, o que fizeste?<br />
— Eu plantei algodão<br />
nos campos do sul<br />
pros homens de sangue azul<br />
que pagavam o meu trabalho<br />
com surra de cipó-pau<br />
…”<br />
(Solano Trindade)<br />
338
340 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
341<br />
Estas foram algumas das frases que os participantes<br />
puderam ler quando encontraram as caixinhas espalhadas<br />
por todo poliesportivo. Claro que havia um número<br />
suficiente para todos participantes, mas provocar a surpresa<br />
em quem chegava primeiro era uma forma de brincar<br />
com as palavras. Pelas paredes liam-se pequenas<br />
frases, poemas e poesias, afixadas como um jeito de dar<br />
um charme no evento.<br />
Os integrantes das oficinas, tanto das de literatura<br />
como das de dança seriam parte do staff e deveriam<br />
nos auxiliar com som, controle de entrada, arrecadação<br />
de alimentos, além de, claro, participar das apresentações<br />
nas respectivas áreas. O comprometimento<br />
e o empenho dos garotos das oficinas no evento chamaram<br />
atenção. Quando propus que eles fossem inseridos<br />
em oficinas e tomassem gosto pela leitura não imaginava<br />
que o desenvolvimento da cidadania, do respeito<br />
e da responsabilidade seria desenvolvido e aflorado em<br />
tão pouco tempo. Cumprindo horários e prazos, eles<br />
apresentavam textos lidos, trechos escritos e sempre<br />
propunham mudanças em tais trechos, em um dado<br />
momento da apresentação, além de colaborar firme na<br />
arrecadação de papel reciclado para as caixinhas.<br />
Quanto ao evento, era impossível saber quando e, se,<br />
aconteceria outro, então era fundamental fazer deste o<br />
melhor possível. Cinco exemplares do “Suburbano Convicto”<br />
estavam separados para serem sorteados no<br />
evento. O objetivo era entregá-los a quem se manifestasse<br />
no sarau. Pequenos e simples troféus seriam entregues<br />
aos vencedores das batalhas.<br />
Não foi preciso montar uma lanchonete no local como<br />
fora sugerido na tempestade de ideias da primeira reunião.<br />
Assim que ônibus e vans com grupos das cidades<br />
vizinhas encostaram próximos ao ginásio, vendedores<br />
ambulantes com carrinhos de cachorro-quente e pipoca<br />
encostaram-se à calçada. Todas as pessoas que, de<br />
alguma forma, estavam ou estiveram ligadas ao hip-hop<br />
foram convidadas e os amigos da antiga crew, aquela<br />
mesma que conheci quando ainda desconhecia a cultura<br />
foram chamados para compor a banca de jurados para<br />
as batalhas de break e de rimas.<br />
Após algumas horas espremidas nos espaços curtos de<br />
vans e ônibus, pessoas das cidades vizinhas deram colorido<br />
especial ao poliesportivo. Com figurinos feitos apenas<br />
para as apresentações de dança e roupas sempre<br />
chamativas, deixaram o quilo de alimento com a portaria<br />
improvisada e seguiram o som vindo das pickups do DJ.<br />
Figurinos, músicas, dança. Além do clima de paz natural,<br />
o encontro traz a lembrança dos bailes black do início da<br />
década de 1980, propagados por Gerson King Combo. A<br />
volta dos cabelos black marca o resgate da autoestima<br />
entre os afrodescendentes e registra, também, uma<br />
nova fase da história da cultura hip-hop.<br />
“Respeite o próximo, também é nosso, se você pode eu<br />
também posso... hip...hop... hip...hop”, assim o show é<br />
aberto na marcante voz de Lu, que, no palco se transforma<br />
em Lu Afri e exibe, diferente das outras vezes,<br />
um penteado black power que lembra a força do movimento<br />
nos anos 1970.<br />
Levanto-me de onde estou e, emocionada, começo a<br />
tirar fotos do grupo e cantar junto. Observo um grupo de<br />
garotas que cantam junto no refrão e dançam, tentando<br />
acompanhar as rimas. Do outro lado, um grupo de garotos<br />
também parece bastante animado. Mais de 300 pessoas<br />
já estavam dentro e mães com filhos pequenos resolveram<br />
sair de casa acompanhando o som e chegaram até o<br />
poliesportivo. Sem o quilo de alimento para poder doar,
342 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
343<br />
lamentaram não poder participar do encontro e em uma<br />
pequena reunião entre a organização ficou decidido que<br />
elas poderiam entrar, afinal, o objetivo era promover a<br />
inclusão e 10 ou 20 pessoas a mais não mudariam os<br />
rumos. Era justo que todos pudessem participar. Todos<br />
entraram e era nítido que aquele era o primeiro contato<br />
com a cultura. Crianças se encantam com os dançarinos<br />
de break e suas roupas largas e coloridas. Imitam os trejeitos<br />
dos MCs ao cantar e correm soltas pelo ginásio.<br />
Vou ao encontro de algumas das mães com crianças<br />
que entraram e ouço falarem: “Que legal, é bem da paz!<br />
As crianças estão adorando.” Mas é claro que o evento<br />
era da paz e que a intenção era de que as crianças adorassem.<br />
Que todos presentes saíssem dali diferente do<br />
que quando entraram e com um sentimento bom, com a<br />
mesma vontade que tínhamos de fazer acontecer e de<br />
mudar a realidade.<br />
Aprendi durante os contatos com outras pessoas, também<br />
da literatura, que o grande barato não é mudar da<br />
periferia e sim mudar a periferia e acho que, por meio do<br />
evento e das oficinas, era exatamente isso que estava<br />
acontecendo. Nada melhor do que a letra criada pelo<br />
grupo ocasionalmente para refletir e registrar o momento.<br />
Reviver os bailes black faz parte do encontro, do evento e<br />
da união das almas naquela noite, através do hip-hop.<br />
Pela fisionomia de todos, penso em como aquele<br />
momento é importante. Revejo, mentalmente, toda a<br />
trajetória do grupo, cheia de dificuldades, desencontros<br />
e agora uma vitória. O CD quase pronto e prestes<br />
a ser gravado. Incrível. Assim pode ser descrita a cena<br />
do grupo sobre o palco, cantando o cotidiano poços-caldense<br />
para gente de toda a região.<br />
Paralelo ao show, b.boys dançam e alguns MC’s se preparam<br />
para o confronto em batalhas de rimas, lembrando<br />
os primórdios e resgatando a ancestralidade<br />
afro, levanto para todos os presentes o valor da cultura<br />
negra, dos quilombos. O meu estado é de euforia total.<br />
Superemocionada circulo por todo o espaço e me lembro<br />
que a prática oral de expressão acompanha a evolução<br />
da humanidade e que, naquele momento, estávamos<br />
todos vivendo a nossa história.<br />
Em um bairro periférico e em um espaço nada consagrado,<br />
raps da nossa realidade, pessoas próximas e<br />
o hip-hop puro, transformando as atividades em paz.<br />
“Evento muito fera”. “Sem dúvida, animal”. Estas são<br />
algumas frases de um diálogo que ouço próximo a mim.<br />
“Muito bom o som deste grupo”, é o que escuto em uma<br />
outra roda. Vale destacar que, desde os primórdios, a<br />
prática oral de expressão acompanha a evolução da<br />
humanidade e, até hoje, continua sendo um importante<br />
meio de comunicação entre as periferias. Para Suburbano,<br />
MC do grupo, o rap feito na Zona Sul de Poços tem<br />
elementos próprios, no entanto, traz na essência, a prática<br />
de antigos quilombos. “Os africanos e escravos trazidos<br />
ao Brasil utilizavam a expressão verbal e o canto<br />
para transmitir crenças e valores comportamentais através<br />
das gerações, o nosso rap de hoje tem a mesma função”.<br />
A afirmação do rapper vai ao encontro da situação.<br />
Elas são negras, bem vestidas, de salto alto, mineiras e<br />
de ancestralidade no sangue, daí a química entre os grupos.<br />
Elas correm e abordam os integrantes do UClanos,<br />
fazem perguntas, pedem para tirar fotos e requisitam um<br />
CD. “Então vocês gostaram da apresentação?”, pergunto.<br />
“Sim, diz muito sobre a gente”, me respondem. São garotas<br />
de um grupo de rap da cidade vizinha de Lavras, que<br />
junto com uma equipe de dança vieram conferir o evento.
344 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
345
346 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
347
348 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
349<br />
O primeiro show termina e classificadas como azul e<br />
amarela, as crews enfrentam-se em grandes disputas.<br />
Os olhos dos competidores não negam a emoção<br />
de estarem sendo julgados pela melhor crew de break<br />
brasileira. Na roda, eles colocam todo o nervosismo do<br />
momento e a disputa segue acalorada. A plateia delira<br />
a cada movimento feito. A vencedora da competição é<br />
uma crew de Lavras, interior de Minas Gerais. Chamada<br />
de Action Break, é a crew mais eclética e tem a participação<br />
de uma garota dançando e entrando na roda com<br />
os homens. Ela é Poliana, 20 anos, que dança break há<br />
quatro. Especialista no freeze – congelamento do movimento<br />
– ela se orgulha de ter vencido os preconceitos de<br />
ser mulher e dançar break.<br />
Além de ter a única mulher na crew, a Action Break também<br />
levou ao evento o mais novo b.boy competidor.<br />
Rodrigo, 11 anos, que entra na roda com segurança e<br />
consegue intimidar a crew adversária, além de ser bastante<br />
aplaudido pelo público.<br />
A empolgação frenética deu lugar ao silêncio pedido para<br />
o início do sarau, ainda novidade. Apesar de textos lidos<br />
em eventos e de um elemento caminhar com o outro compondo<br />
a cultura marginal, muitos visitantes de outras cidades<br />
não estavam acostumados com aquilo. Porém, como<br />
no hip-hop o respeito prevalece, todos se calaram quando<br />
o silêncio foi pedido e aguardaram o que viria a seguir.<br />
Enquanto aguardavam, caixinhas com poesia dentro<br />
foram entregues de mão em mão, como um presente<br />
para a periferia. Expressões das mais variadas tomaram<br />
conta dos rostos dos presentes e como da primeira vez<br />
em que espalhei caixinhas aleatoriamente, pude sentir a<br />
emoção em espalhar a cultura, dialogando com os presentes<br />
através da literatura. O interesse era promover<br />
a formação crítica para a juventude. De experiências<br />
anteriores somadas a esta, as ações passam a ser cada<br />
vez mais fundamentadas.<br />
Entregues todas as caixinhas, li pela primeira vez em um<br />
evento o conto “Periferia Adentro” e aproveitei o embalo<br />
do silêncio em sinal de aprovação do público e li um texto<br />
do Ferréz e outro do Sérgio Vaz. A intenção foi mostrar<br />
que Brasil afora estão produzindo e que também podemos<br />
fazer isso.<br />
Incentivado pelos textos, Rodrigo, um dos garotos das<br />
oficinas me chamou no canto e disparou: “Oh, dona, fiz<br />
mais um texto e queria ver o que você acha e se eu posso<br />
ler hoje aqui. É que eu quero muito mostrar para a minha<br />
mãe o que eu tô aprendendo.” Como eu poderia negar a<br />
ele esta oportunidade de ler, para um público bacana<br />
e para a genitora, um texto feito por ele mesmo e que<br />
falava, justamente, sobre o amor de mãe, outro tema<br />
recorrente da literatura marginal.<br />
Mesmo tremendo – medo e ansiedade – ele empunhou o<br />
microfone ao melhor estilo de MC e disparou um salve para<br />
a galera, que na mesma hora simpatizou com o garoto.<br />
Tirou do bolso uma folha de caderno amassada e, olhando<br />
para a mãe, que devolvia a expressão terna, declamou:<br />
Quem é essa mulher que na quebrada é bastante respeitada?<br />
Quem é ela que não tem parada, nos dá de tudo e não nos<br />
cobra nada?<br />
Sempre disposta a nos ajudar<br />
Ela tira comida da própria boca para nos alimentar.<br />
Quem é essa mulher que está sempre tão disposta?<br />
E que, no gueto, sempre banca a nossa aposta<br />
Pode ser herói, ladrão, bandido ou mocinho<br />
Para todos ela sempre tem um colinho<br />
Veio ao mundo com a missão de nos cuidar e dar educação<br />
Sem você, mãe, não dá para encarar este mundão.
350 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
351<br />
Apesar de ainda ser um texto cru, o jovem teve a coragem<br />
que as oficinas buscavam estimular e o leu. Pediu<br />
licença e, ainda com o microfone na mão, leu um texto<br />
do livro “Cabeça de Porco”. Arrancou muitos aplausos<br />
do público. Convidei algumas pessoas para declamar.<br />
Devagar o MC de um grupo de rap da cidade de Vargem<br />
Grande do Sul foi até lá. Declamou uma letra de rap.<br />
Válido. Mais um quis falar. Mandou uma rima.<br />
Não foram bem poesias. Subi de novo e li um trecho do<br />
“Quarto de Despejo”. Propus um debate acerca da informação<br />
fora do palco. Enquanto o próximo grupo de rap<br />
a se apresentar se preparava, formamos uma roda e ao<br />
som das batidas vindas das pickups comentamos sobre<br />
o que acabara de acontecer. Muitas pessoas queriam<br />
mais caixinhas e doamos todas que tínhamos feito para<br />
o evento. Outros queriam aprender a fazer e muitos trocavam<br />
as poesias que continuam dentro.<br />
Embriagados com o conhecimento, celebramos, realmente,<br />
a cultura marginal pela vida, por meio da difícil<br />
existência na periferia. Homenageamos escritores,<br />
sugerimos títulos, sorteei meus volumes do “Suburbano<br />
Convicto” e lembramos toda literatura marginal como<br />
Carolina Maria de Jesus, que iniciou a literatura periférica<br />
ao ser traduzida e publicada no mundo todo, para 13<br />
outros idiomas, as mazelas do povo que vive nas favelas<br />
brasileiras. E ainda, alertar a todos aqueles jovens que<br />
estavam ali e como nós, algum dia tiveram um exemplo,<br />
algo para fazer em uma tarde de domingo e um objetivo:<br />
se envolver com o hip-hop e praticar o bem.<br />
Como quem vive na quebrada não tem outra opção senão<br />
se drogar, seja pelos entorpecentes como crack, cocaína<br />
e maconha ou pelas drogas servidas nas bandejas das<br />
TVs abertas, principalmente aos domingos, minha tarefa<br />
enquanto comunicadora era fazer algo que mudasse, de<br />
alguma maneira, a forma das crianças e adolescentes de<br />
encarar as dificuldades.<br />
Falei sobre o conhecimento, que sempre nos foi negado.<br />
Os pobre já nascem nas quebradas excluídos do mundo<br />
e muito cedo tem que se incursionar numa guerra diária<br />
pela vida, lutando para manter os costumes, as origens<br />
e as tradições, ao mesmo tempo que brigamos para sermos<br />
melhores, produzirmos mais e limparmos o limbo<br />
cultural dos guetos. As pessoas não têm acesso à cultura<br />
e o grande barato era justamente esse, direcionar<br />
as palavras a estas pessoas que só estão acostumadas<br />
a uma tela colorida que mostra a vida em preto e branco.<br />
Feito: o protesto é contra a massificação da informação<br />
reduzida às periferias. Os pobres e marginalizados também<br />
têm direito ao conhecimento e o evento tinha esta<br />
proposta: descentralizar a informações, propagando-a<br />
até as margens invisíveis da cidade.<br />
Com a literatura e as palavras guerreamos contra as barreiras<br />
impostas ao conhecimento, discorri rapidamente<br />
sobre a falta de informações nas periferias e o quanto a<br />
elite trabalha duro para nos privar da sabedoria. Minhas<br />
palavras ecoaram como um grito há muito tempo represado<br />
e era a minha maneira de dizer a todo aquele público<br />
que podemos fazer acontecer e mudar a realidade, basta<br />
nos organizarmos e trabalhar ainda mais pesado para<br />
transformar a nossa própria maneira de pensar e inserir o<br />
conhecimento no dia a dia das casas e barracos.<br />
O objetivo é romper as correntes que nos aprisionam às<br />
telas da televisão e libertar do salário de fome pelo qual<br />
todos lutam tanto e sequer conseguem comer. Imagino<br />
como uma semente jogada ao vendo que corta os barracos<br />
e casas mal acabadas da periferia.
352 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
353
Em foco<br />
355<br />
O que você<br />
está lendo?<br />
“Eu não gosto de ler.” De repente, com a propagação dos<br />
eventos em todas as regiões e o surgimento de novos grupos,<br />
bandas e escritores, essa frase foi apagada da boca<br />
da juventude que vive nos mais bairros mais afastados.<br />
Não como quem apaga com borracha algo escrito a lápis,<br />
mas como quem arranca e põe fogo numa página ditada<br />
pelos coronéis da elite. Cópias de autores e poetas marginais<br />
passaram a circular entre rodas de eventos e grupos<br />
de rap e de dança do hip-hop. Novamente a internet,<br />
blogs e sites foram ferramentas que difundiram o elemento<br />
conhecimento.<br />
Um balanço feito pela Divisão de Cultura de Poços mostra<br />
que 2007 para 2009 as bibliotecas mostram um<br />
aumento de 24% no número de empréstimos de livros,<br />
sendo que a maior parte é retirada na biblioteca da Zona<br />
Sul, no Cohab, onde as oficinas e eventos do projeto Cultura<br />
Marginal acontecem com mais frequência.<br />
Não é mais uma cena gritante ver um jovem lendo dentro<br />
do ônibus, pelas ruas e ainda comentando que pretende<br />
editar os próprios livros, sempre contando a própria historia.<br />
Nesta mesma cena, muitos deles rumaram para a<br />
3ª Feira Nacional do Livro e Festival Literário de Poços,<br />
para palestras-show de MV Bill acompanhado de Nega<br />
Gizza e Gabriel, o Pensador.<br />
Durante dois dias seguidos, os jovens de toda Poços de<br />
Caldas puderam acompanhar tais palestras e se envolver<br />
ainda mais com literatura. Ponto para mim, que<br />
consegui que grande parte dos garotos do bairro fosse.<br />
Consequência das oficinas. Todas as partes da cidade<br />
estiveram presentes e o melhor é que cada um doou um<br />
livro pelo incentivo a leitura para poder estar ali.<br />
Para MV Bill, rapper, natural da Cidade de Deus, uma<br />
das comunidades com os mais altos índices de violência<br />
do município carioca, inclusive já retratada no livro<br />
de Paulo Lins e no filme de Fernando Meireles, em casos<br />
como o festival literário, o hip-hop representa salvação.<br />
“O hip-hop, neste caso, é um agente que promove a paz.<br />
Não acontece em todos os eventos, mas quando temos<br />
um criado com o ponto central de entretenimento em<br />
paralelo tem educação, inclusão e inserção, criamos um<br />
evento que tem esta aura de paz. Já é um encontro com a<br />
paz intensificada, um ambiente diferente”, coloca.<br />
Tal frase é complementada pelo estudante e aspirante<br />
a escritor Felipe Paulo de Assis. “Palestra com um<br />
cara como MV Bill é diferente. Dá vontade de ler o livro,<br />
saber mais, conhecer mais sobre nossa própria cultura.<br />
Aumentou minha vontade de ser escritor”, acrescenta.<br />
Com letras conscientes e de muito sucesso há quase dez<br />
anos, o rapper, também carioca, Gabriel, o Pensador, traz<br />
uma linguagem um pouco diferente. Embora nunca tenha<br />
vivido na periferia, sempre foi politizado e teve uma infância<br />
recheada por acontecimentos divertidos, tristes e de<br />
ensinamentos, como todos os jovens que ali estavam.<br />
Autor de um livro em forma de diário e um infantil, o<br />
músico improvisa e manda a rima ao melhor estilo<br />
Freestyle e se revela conhecedor da realidade nacional.<br />
Bastante aplaudido, os jovens tentam somar as<br />
354
356 <strong>Traficando</strong> conhecimento<br />
experiências das duas noites e concluem que o caminho<br />
realmente é através do conhecimento e da boa prática<br />
da cultura urbana existente em cada região.<br />
Impulso. Assim as palestras somadas das oficinas podem<br />
ser classificadas para descrever o que os jovens passaram<br />
a fazer enquanto multiplicadores. Por meio de blogs e<br />
comunidades, a divulgação se estendeu para outros bairros<br />
que passaram a fazer o mesmo.<br />
Em pouco tempo chegou a notícia de que os bairros<br />
vizinhos e, também, mais afastados estavam reunindo<br />
grupos, sempre ligados ao hip-hop, e promovendo estudos<br />
sobre a cultura, a literatura marginal e baixando<br />
livros pela internet.<br />
E por aí se seguem os eventos, as oficinas, os saraus,<br />
quando vários outros grupos começam a congregar alunos<br />
em períodos diferentes do das aulas e lhes passar<br />
algo sobre a cultura marginal, seja por meio de oficinas<br />
de dança, canto ou literatura. E, finalmente, tornou-se<br />
comum ouvir jovens comentando entre si: “O que você<br />
está lendo?”
358 <strong>Traficando</strong> conhecimento Em foco<br />
359
Cap.06<br />
Estatística<br />
Cap.06<br />
Estatística
Estatística<br />
365<br />
Um ano à frente, em 1988, os brasileiros passaram a notar<br />
o mesmo comportamento em cidadãos da maior cidade do<br />
país, São Paulo, onde a droga chegou primeiro. Vinte anos<br />
depois, não há sequer um cidadão que nunca tenha ouvido<br />
falar nas famosas pedras, no crack, na cocaína derivada.<br />
Policiais, médicos, estudiosos, jornalistas, cidadãos<br />
comuns. Todos querem entender o que leva as pessoas<br />
a se acabarem por este caminho. O caminho das pedras<br />
tem dois únicos destinos: a morte ou a prisão.<br />
A manchete do jornal de maior circulação na região diz:<br />
“Envolvimento de menores com o tráfico aumentou<br />
277% no último ano”. A matéria, assinada por mim, inaugura<br />
uma nova fase da minha vida profissional no Jornal<br />
Mantiqueira, vizinho do Jornal de Poços, porém, com<br />
melhor e maior estrutura. Estes números já martelavam<br />
na minha cabeça desde que eu me aventurei a escrever<br />
uma reportagem especial sobre o poder devastador<br />
do crack. Pensei em iniciar o novo emprego com estes<br />
números que, na ocasião, assombravam toda a cidade.<br />
Após ouvir inúmeras músicas de rap que aludiam sobre o<br />
problema da epidemia do crack, da morte de amigos, de<br />
pais e mães e de várias quebradas devastadas pelo problema,<br />
me senti na obrigação de escrever algo.<br />
Crack: o caminho das pedras<br />
Um cachimbo. Dentro dele, pequenas pedras porosas,<br />
de um branco sujo, cinza, amarelado, com aparência de<br />
sabão ou cera. Pessoas tremendo e andando rápido com<br />
os olhos vidrados. A cena representa como se comportam<br />
os usuários de crack – droga potente, derivada da cocaína<br />
– que surgiu, de acordo com um primeiro registro histórico,<br />
em 1982 nos Estados Unidos, sendo que cinco anos<br />
mais tarde, em 1987, passou a ser considerada e tratada<br />
como uma epidemia no país.<br />
Feita em grandes ou pequenas quantidades, as pedras<br />
de crack, que tem este nome devido o estralar que<br />
produzem quando estão sendo feitas ou, às vezes, até<br />
mesmo quando são fumadas, assombram crianças, adolescentes,<br />
famílias inteiras e se tornam um peso para a<br />
sociedade. Nas esquinas de qualquer cidade brasileira, e<br />
Poços de Caldas, desta vez, não é uma exceção, existem<br />
histórias dos dependentes de uma droga, que se alastra<br />
como um vírus.<br />
Produção<br />
As pedras podem ser feitas de duas maneiras: com<br />
pasta-base ou cocaína em pó, depende do produto disponível<br />
no mercado. As feitas com pasta-base – um produto<br />
bruto, não-refinado com éter ou acetona – apresentam<br />
uma coloração escura, entre o amarelo e o marrom.<br />
As pedras de cocaína em pó são mais claras. Os viciados<br />
afirmam que a pedra da pasta-base é mais forte e não<br />
esfarela com facilidade.<br />
Para os fabricantes, o segredo de fazer a boa pedra está<br />
em dosar a quantidade de pasta-base ou cocaína em pó,<br />
água e um agente, normalmente o bicarbonato de sódio,<br />
comprado com facilidade em farmácias ou em laboratórios<br />
de manipulação. O bicarbonato tem a função de reagir<br />
com a mistura para deixá-la mais consistente, como cristais,<br />
além de facilitar a combustão no momento de fumar.<br />
364
366 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
367<br />
Há ainda as variações, onde os usuários esfarelam a<br />
pedra feita com a pasta-base e misturam o crack com a<br />
maconha, improvisando cigarros conhecidos como mesclados<br />
ou brazuca.<br />
O lucro na venda do crack é representado pela grande<br />
quantidade da pedra que o traficante consegue obter<br />
com cada grama de cocaína, visto que com um grama é<br />
possível fazer de três a quatro pedras.<br />
Vidas queimadas em cachimbos<br />
Ouvir o relato de dependentes químicos e de mães que<br />
lutam para que os filhos abandonem o vício é como um castigo.<br />
Tido como a pior das drogas pela fulminante dependência<br />
que cria e pela brutalidade que provoca no viciado,<br />
traz, cada vez mais, violência para dentro das famílias.<br />
Há cerca de três meses, entrevistado pela reportagem<br />
do Jornal de Poços, Augusto Caetano (nome alterado),<br />
19 anos, conhecido como Toquinho, já estava magro<br />
e com semblante acabado, em razão do uso do crack.<br />
Em um segundo encontro, para realização desta matéria<br />
especial, o jovem já está bastante consumido pela<br />
droga. Aparenta ter bem mais idade do que o registro<br />
de nascimento marca e já não tem mais a mesma vitalidade<br />
para falar.<br />
Com uma baixa estatura, que parece ainda mais afetada<br />
em razão dos efeitos da droga, Toquinho, bastante<br />
sonolento, comenta que os últimos dias, os que<br />
se lembra, foram divididos entre dormir e fumar crack.<br />
“Estou fumando cada dia mais. Antes eu pensava em<br />
parar algum dia. Agora, evito esse tipo de pensamento. A<br />
única coisa que penso é em como vou conseguir a droga.<br />
Minha mãe já não me dá mais dinheiro. Eu não trabalho.<br />
Estou tendo que furtar alguns estabelecimentos. Não<br />
quero pensar nisso. Quero fumar minha próxima pedra<br />
em paz”, diz, encostado na mureta do portão de casa,<br />
com os olhos perdidos e os dentes da frente amarelados,<br />
pelo uso constante do crack.<br />
Em uma fase de fissura, ele conta que, para obter a droga,<br />
atua como “vapor” na região onde mora e o que “recebe”,<br />
pega em pedra, para consumo próprio. Na primeira<br />
entrevista, Toquinho ainda era “aviãozinho”, ou seja,<br />
apenas entregava a droga. Atualmente, vende pequenas<br />
quantidades e o que recebe, consome em pouco tempo.<br />
“Como eu uso, fico com o pagamento todo para mim, mas<br />
cada dia que passa me vejo obrigado a vender mais, receber<br />
mais, fumar mais”, diz.<br />
Um outro usuário de crack ouvido pela reportagem é<br />
Wallace Rafael de Oliveira, 18 anos, conhecido como Buiú<br />
da Barão, por ser morador da rua Barão do Campo Místico,<br />
no centro da cidade, e que é acusado de ter cometido<br />
vários furtos na área central da cidade. Ele relata que já<br />
furtou e continua furtando diversas residências para sustentar<br />
o vício e em um apelo, pede uma internação. “Quero<br />
que alguém arrume um lugar para eu ficar internado, tranquilo<br />
e parar de atormentar a população”, pede.<br />
O tráfico de drogas é um crime que repercute nos demais<br />
crimes e, por ser o crack, o que mais atrai os usuários e<br />
daí uma dependência maior, embora antigamente considerado<br />
como uma droga barata, ele custa tudo que o<br />
viciado tem e ainda aquilo que obtém de outras pessoas.<br />
Os crimes contra o patrimônio, como furto, roubo e relacionados<br />
à violência doméstica são frequentes em Poços<br />
de Caldas e atribuídos a popularização da droga.<br />
No caso de Buiú, ele comenta que não pode ver uma janela<br />
aberta, que entra para furtar. Embora não cometa roubos<br />
e nunca tenha utilizado de violência contra as vítimas, ele<br />
confessa ter feito inúmeros furtos. “Faço isso para sustentar<br />
meu vício, para comprar a pedra. Eu dou preferências<br />
às carteiras, mas furtava, também, outros produtos<br />
como computador, tela de computador, capacete, celular,<br />
enfim, o que tem pela frente eu levo embora”, relata.
368 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
369<br />
Ele frisa que o que mais deseja é uma internação em<br />
uma clínica de reabilitação para dependentes químicos.<br />
“Quero ficar longe das drogas”, deseja. A mãe do jovem,<br />
Lúcia Regina de Oliveira Gonçalves, 44 anos, faxineira,<br />
conta o martírio que é ter um filho dependente do crack<br />
dentro de casa. Com a expressão cansada de quem já<br />
não sabe mais o que fazer ou para que lado correr, ela<br />
revela que não tem tempo para si mesma e que, embora<br />
tenha outros filhos, uma moça já casada e uma garota de<br />
8 anos, têm vivido em função do Buiú e na busca de um<br />
tratamento de desintoxicação para o mesmo.<br />
Para controlar as crises de abstinência do filho, ela revela<br />
que, por contra própria, lhe dá remédios que atuam como<br />
calmantes, como Diazepan e Rivotril. “Eu faço isso para<br />
ele dormir, para tentar segurá-lo dentro de casa, para<br />
ver se ele não sai para comprar drogas, para furtar, para<br />
mexer nas coisas dos outros”, conta.<br />
Assombrada pelo medo de receber uma notícia ruim,<br />
assim como vivem os pais de usuários de drogas, Lúcia<br />
afirma que não dorme durante a noite e que passa longos<br />
períodos atrás do filho, chamando-o pela casa e pelo<br />
quintal, desejando que ele volte logo.<br />
A rotina de Buiú é semelhante com as dos demais usuários<br />
de crack. Durante a noite, ele consome a droga.<br />
Dorme durante o dia e, no final da tarde, sai para tentar<br />
encontrar um meio de conseguir mais crack.“Minha vida<br />
com ele dessa maneira tem sido muito difícil. Todos os<br />
dias tenho uma reclamação na minha porta. A polícia<br />
vêm até minha casa atrás do meu filho e, muitas vezes,<br />
quem atende é minha filha de 8 anos e tenho medo que<br />
ela possa se envolver nesse caminho também. Dentro<br />
de casa, Buiú é um amor de pessoa. Ele não briga, não<br />
xinga e nos trata super bem. Talvez por isso que eu tenho<br />
vontade de ajudá-lo”, comenta.<br />
Já chorando, com o coração partido, a mãe do jovem<br />
conta que, no início, quando ele tinha ainda 12 anos e<br />
começou a trabalhar como engraxate e cheirar cola, ela<br />
relutou em ver o vício do filho e só reconheceu quando<br />
este tomou grandes proporções e ele passou a trilhar o<br />
caminho das pedras de crack.<br />
“Recentemente ele foi preso e eu vi pela televisão, a<br />
quantidade de coisas que ele furtou. Eu não imaginava<br />
que meu filho era capaz de furtar tudo aquilo. Eu que<br />
sustento a casa, trabalho quatro vezes por semana e<br />
ganho R$ 30 a cada vez que faço faxina. Não temos muita<br />
coisa, mas ele começou furtando meus cremes, perfumes,<br />
mas eu não imaginava que ele tivesse capacidade<br />
de pegar tudo aquilo.”<br />
No último dia 9 de setembro, Buiú foi localizado pela<br />
Polícia Civil e levado para a 25ª Delegacia Regional de<br />
Segurança Pública para prestar esclarecimentos. No<br />
local, ele informou quem são os receptadores do material<br />
por ele furtado. Segundo Lúcia, ele já esteve preso<br />
por vinte dias, quando ainda era menor de idade e afirma<br />
que, na cadeia, passou por coisas que nunca imaginou<br />
passar. Na cabeça da mãe, o tratamento policial com o<br />
filho deve ser agressivo. “Ele tem muito medo da polícia,<br />
então eu não acho que a polícia trate ele bem”, acredita.<br />
Com o baixo salário, ela não consegue bancar um tratamento<br />
de desintoxicação que busca há quatro anos para<br />
o filho, embora ele já tenha tentado o que é oferecido pelo<br />
Sistema Único de Saúde (SUS), no programa de Álcool e<br />
Drogas, dentro do programa de Saúde Mental, mas que<br />
ele se recusou a continuar a frequentar as consultas psiquiátricas<br />
e a tomar os remédios necessários.<br />
“Eu consegui junto a ONG Poços de Luz para interná-lo,<br />
mas eu não tenho recurso financeiro para isso. A internação<br />
mais barata fica em torno de R$ 420, mais dez cestas<br />
básicas e eu não tenho condições de dar esse dinheiro,
370 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
371<br />
porque se eu fizer isso, como vou pagar minha água, luz<br />
e fazer compras, se eu tenho uma menininha de 8 anos<br />
para criar?”, argumenta.<br />
Lúcia fala, também, com saudade, de quando o filho<br />
não fumava crack, trabalhava e tinha força e energia de<br />
vida.“Desde que ele passou a fumar esse tal de crack, o<br />
comportamento dele mudou. Ele deixou de comer, emagreceu<br />
muito, está só pele e osso. Passa a noite toda fumando<br />
crack, quando levanta, umas 15h, pede um prato de comida<br />
e larga tudo pela metade. Ele está muito acabado.”<br />
Ainda em relação ao uso do crack, a mãe conta que o filho<br />
consome a droga dentro de casa, com o consentimento<br />
dela. “Eu deixo ele usar no quintal, dentro de casa. Faço<br />
isso para evitar que ele faça na rua, com outras pessoas,<br />
e se envolva ainda mais com coisas que não deve”, diz,<br />
chorando novamente.<br />
Durante a entrevista, ela relata, também, que o pai do<br />
jovem já foi usuário de drogas e passou um longo período<br />
preso. Atualmente, pai e filho não têm nenhum tipo de<br />
contato ou relacionamento, e toda sobrecarga dos problemas<br />
acarretados pelo crack ficam por conta da mãe,<br />
que mostra, claramente, sinais de esgotamento.<br />
Para ela, já cansada da situação, a internação em uma<br />
clínica seria a única coisa que talvez pudesse salvar<br />
Buiú, que ela considera muito jovem, aos 18 anos. “Eu<br />
sei que meu filho ainda vai ser um grande homem, porque<br />
ele sempre trabalhou e tem boa vontade. Quero<br />
ver ele recuperado e me ajudando em casa, financeiramente<br />
e cuidando um pouco de mim. Até o momento,<br />
ele concorda com a internação, demonstra vontade de<br />
parar de usar a droga. Meu maior sonho é ver ele recuperado.<br />
Eu acredito em Deus e sei que Ele vai me ajudar.<br />
Sei que vou vencer. Falo isso para meu filho todos os<br />
dias, quando me pergunto se agi errado, tentando ver<br />
onde errei, mas não estou conseguindo saber”, encerra<br />
a entrevista, chorando muito.<br />
Organismo em pedras<br />
O programa de Álcool e Drogas do município também<br />
recebe, diariamente, várias pessoas acometidas pelo uso<br />
de drogas, principalmente do crack. O médico responsável<br />
pelo atendimento clínico, Walter de Abreu, destaca que o<br />
acompanhamento dos pacientes vai desde a parte psiquiátrica,<br />
com acompanhamento psicológico, com terapeuta<br />
ocupacional para poder desvincular o paciente daquele<br />
ritmo de vida que ele vem levando.<br />
Quanto aos efeitos do crack, ele destaca que existem<br />
várias maneiras para ser analisado. “Os efeitos que vejo<br />
como médico e os que o usuário pensa. Os que eu penso<br />
são os mais graves, que podem levar à morte, os efeitos<br />
que os usuários pensam são porque ele pensa que<br />
está fazendo bem. Outro dia mesmo, eu estava ouvindo<br />
um rapaz falar, na Zona Rural, que todos os funcionários<br />
dele estavam usando o crack, porque estavam<br />
desenvolvendo um trabalho muito melhor, trabalhando<br />
assustadoramente, não precisavam se alimentar, não<br />
comiam, não bebiam água, o sol não era motivo de afastamento<br />
do trabalho, não precisavam de sombra, chuva<br />
não os impedia. Por quê? O rapaz fica confuso, não sabe<br />
o limiar de dor dele, ferimentos, estas coisas ele não<br />
sente, para ele, aquilo não faz diferença.<br />
Ele adquire uma maior virilidade para o trabalho, fica<br />
mais rápido, ágil no raciocínio, enfim, tudo isso leva o<br />
leigo a pensar que é uma droga boa. As consequências, a<br />
longo prazo, são letargia, o indivíduo começa a ficar apático,<br />
diminui o ritmo de trabalho, começa a apresentar<br />
taquicardia, batimento rápido do coração. O aumento da<br />
velocidade do batimento do coração pode diminuir a oxigenação<br />
cerebral e o indivíduo começar a ficar confuso,<br />
agitado, agressivo, com ideias suicidas e, até mesmo,<br />
homicidas. Ele pode ter, ainda, colapsos ou infarto pela<br />
própria frequência cardíaca, visto que as irrigações das<br />
coronárias no coração não são benfeitas”, considera.
372 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
373<br />
O tratamento clínico consiste em uma desintoxicação inicial,<br />
em que o médico procura afastar o usuário do meio de<br />
convívio que ele se encontra. Walter afirma, também, que<br />
o crack é uma droga em que a pessoa fica viciada quase<br />
que instantaneamente após o uso da mesma. “A pedra, o<br />
usuário pode se tornar viciado em cinco ou dez minutos e a<br />
cocaína vai matá-lo lentamente, já o crack pode fazer isso<br />
rapidamente, visto a agressividade do mesmo”, comenta.<br />
Uma das causas do vício é a rapidez do efeito da droga,<br />
que dura, no máximo, 15 minutos. Inicialmente, a droga,<br />
por ser aspirada pelas mucosas, que fica toda queimada, e<br />
por ser inalatória, há uma maior rapidez de atingir as células<br />
neuronais. Ele impede as mensagens que são enviadas<br />
de um neurônio para o outro no cérebro, começa a cortar<br />
como se fosse um curto circuito, bloqueia as mensagens,<br />
o que causa um estado de confusão no usuário da droga.<br />
Por ser inalatória, fumada por um cachimbo, a droga pode<br />
comprometer o pulmão também, visto que torna frágeis<br />
os alvéolos, que são as extremidades terminais dos pulmões,<br />
o que deprime as defesas do organismo, causando<br />
pneumonias de repetição ou, até mesmo, tuberculose.<br />
Problema social<br />
Embora o crack esteja diretamente ligado apenas aos consumidores,<br />
ou seja, viciados e as pessoas ao redor dele,<br />
toda sociedade fica comprometida pelos problemas que a<br />
droga traz. Além do comprometimento da saúde dos usuários,<br />
os problemas sociais também ficam em destaque.<br />
Para falar sobre o assunto, o cientista social e, também,<br />
conselheiro tutelar, Diney Lenon, garante que a disseminação<br />
do crack está intimamente ligada com os conceitos<br />
pregados pela mídia e pela sociedade como um todo.<br />
O individualismo é fortalecido de todas as formas, gerase<br />
a busca pelo prazer imediato por parte dos jovens, o<br />
que os atrai rapidamente ao universo das drogas e, mais<br />
precisamente, ao esfumaçado mundo do crack, onde a<br />
cor predominante é o cinza, sem vida.<br />
Por atuar no Conselho Tutelar, muitos casos chegam até<br />
ele como apelos e urgentes pedidos de ajuda. Um dos<br />
casos mais chocantes, que ele diz sentir até mesmo dor<br />
no coração ao se lembrar e relatar, é o de um adolescente<br />
cuja digital dos dedos já se tornou imperceptível, por ter<br />
sido queimada pelo contato da pele com o cachimbo utilizado<br />
para fumar o crack.<br />
“E vejo o crack inserido no mundo atual onde nossa<br />
juventude deixou de sonhar. A perspectiva de mundo, de<br />
transformação, foi um pouco perdida. E nossos jovens,<br />
hoje, estão muito preocupados com o presente e um<br />
presente não muito agradável faz com que a gente queira<br />
fugir desse presente. A droga é um subterfúgio mais fácil<br />
para sair dessa realidade, que, muitas vezes, não é o que<br />
a TV nos vende. Em relação a Poços de Caldas existe um<br />
surto, hoje, de uso de crack. Até cinco anos atrás, não<br />
tínhamos esse problema tão grave”, considera Lenon.<br />
Para ele, a droga assume o papel à frente de tudo, porque<br />
o tudo que deveria estar à frente, na verdade, está<br />
atrás. Em uma comparação confusa e simples ao mesmo<br />
tempo, ele garante que isso seria a garantia dos direitos<br />
básicos, feridos de todas as maneiras quando se fala de<br />
crianças e adolescentes envolvidos com o crack e, até<br />
mesmo, o tráfico.<br />
Como forma de amenizar os inúmeros problemas gerados<br />
pelas pedras, ele acredita que uma reorientação<br />
orçamentária e investimentos pesados nas políticas de<br />
prevenção, nos programas sócio-educativos, na geração<br />
de empregos e na garantia de habitação seriam ideais.<br />
“Daria uma anestesiada.”<br />
Já em longo prazo, Lenon é mais pretensioso e crê em<br />
uma discussão e mudança na educação que existe<br />
hoje. “O que leva a uma consciência individualista,<br />
utilitarista e imediatista. Temos que garantir sonhos<br />
para nossa juventude, por meio de um novo modelo de<br />
educação, novos valores, para que o jovem venha a ver
374 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
375<br />
a droga como algo chato e não como algo legal. Muitas<br />
vezes, o bandido é o que é apresentado como referência<br />
e isso contribui muito. As crianças sonham em ser<br />
bandidas, traficantes, usuárias de droga, e seria importante<br />
mudar este desejo, esta visão”, ressalta.<br />
Trabalho policial<br />
Diariamente, usuários ou traficantes são presos portando<br />
drogas e o que, antigamente, era maconha ou, até mesmo,<br />
papelotes de cocaína, hoje, foi substituído pelo crack.<br />
Nesta semana, a Polícia Militar da cidade apreendeu<br />
crack todos os dias em pontos diferentes do município,<br />
mostrando que a droga, não atinge somente as pessoas<br />
de baixo poder aquisitivo, como também as pessoas das<br />
castas mais elevadas da sociedade.<br />
Não diferente, na Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes, o<br />
crack, sem dúvida, é o responsável pelas maiores apreensões.<br />
Ainda não existem levantamentos sobre o quanto de<br />
crack foi apreendido, porém, destaca-se que as apreensões<br />
ficam em torno da droga. Para falar sobre o assunto,<br />
o delegado Carlos Eduardo Galhardi Di Tommaso destaca<br />
que nos últimos anos, o crack vêm assumindo o papel que<br />
a maconha e a cocaína tinham. “Antigamente, elas eram<br />
drogas muito difundidas, hoje o crack, que é um subproduto<br />
da cocaína, assume este papel. Nós percebemos<br />
que a maioria das apreensões ultimamente de drogas é de<br />
crack. Sejam grandes porções, sejam pequenas porções,<br />
já destinadas à venda, ou mesmo o pessoal que é pego<br />
com porte para uso, a maior quantidade é de crack que<br />
assumiu, roubou o espaço da cocaína, que, hoje, vemos<br />
com menos frequência. Em geral, quando apreendemos<br />
cocaína hoje em dia, ela é apreendida em grandes volumes,<br />
que provavelmente não se destinariam, a princípio, à<br />
venda, mas para fazer o crack.”<br />
Questionado sobre as razões de um traficante comercializar<br />
as pedras de crack, mesmo com a consciência de<br />
que as mesmas viciam com mais rapidez e, dessa forma,<br />
degeneram, também com mais rapidez o usuário, o delegado<br />
acredita que em razão do crack ser um subproduto<br />
da cocaína, o lucro pode ser maior e consequentemente,<br />
em razão dos usuários serem ainda mais viciados, as<br />
vendas crescem. “Se entendermos que com cada grama<br />
de cocaína pode-se fazer três ou quatro pedras de crack<br />
e, se cada uma é vendida por R$ 10, o traficante alfere um<br />
lucro bem maior”, acredita.<br />
Para ele, o que faz com que o número de apreensões<br />
cresça é somente a procura pela droga. “Em geral o crack<br />
é encontrado com pessoas de mais baixa renda, muito<br />
embora o papelote de cocaína e a pedra de crack custem,<br />
a princípio, a mesma coisa, em geral, são pessoas de<br />
menor poder aquisitivo e as pessoas que são pegas, com<br />
cocaína, com um poder aquisitivo um pouco maior, mas<br />
acredito que a forma como as pessoas estão se viciando,<br />
vá se alastrar aos poucos nas classes mais altas”, diz.<br />
O delegado acredita também que a Polícia seja a última<br />
medida no que se referente ao combate às drogas e critica,<br />
também, a Lei nº 11.343, conhecida como Lei de Tóxicos e<br />
que, recentemente, completou dois anos.“A cocaína vem<br />
do sul ou dos países fronteiriços e, para chegar aqui, bastante<br />
gente já falhou, né? E a polícia é o último caminho.<br />
A rigor, teria que ter um apoio aos dependentes químicos<br />
mais intenso. Seriam lugares destinados para eles se<br />
livrarem dos vícios. Infelizmente, o que podemos perceber<br />
é que é muito rara, muito difícil, uma vaga, especialmente<br />
em estabelecimentos públicos. Existem clínicas particulares,<br />
mas, em geral, boa parte da população que é acometida<br />
pelo vício não tem possibilidade de pagar, então a<br />
minha visão é que deveriam existir novos e maiores estabelecimentos<br />
para recepção desses dependentes. Esta<br />
seria a saída que cumpriria a Lei por efetivo, para tentar<br />
diminuir a procura pela droga. Mas nós continuamos com<br />
as apreensões de forma estoica”, considera.
376 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
377<br />
Em busca de luz<br />
Como não existe o tratamento previsto na Lei nº 11.343<br />
para os usuários de drogas, os caminhos ficam interrompidos<br />
e o voluntariado passa a ser a opção para quem<br />
está na escuridão, grande parte das vezes, provocada<br />
pela fumaça cinza do crack ao sair dos cachimbos.<br />
Segundo Vilma Jorge, voluntária da ONG Poços de Luz, que<br />
há sete anos atua na ajuda aos familiares e dependentes<br />
químicos da cidade, o número de atendimentos relacionados<br />
ao crack aumenta assustadoramente a cada dia. Dos<br />
259 casos que estão em atendimento na ONG, 233 são por<br />
dependência ao crack, ou seja, quase 90% das pessoas<br />
que procuram atendimento, são viciadas nas pedras.<br />
“Em Poços de Caldas o número de atendimentos por<br />
crack está crescente. Dia a dia temos novos casos. Todos<br />
os dias nos chegam casos de mães e familiares que vêm<br />
nos procurar para atendimento de desintoxicação, de<br />
internação, mas temos uma dificuldade muito grande<br />
com relação à internação por conta de vagas e do lado<br />
financeiro, porque não existe clínica gratuita. Todas as<br />
clínicas trabalham por pagamento. São clínicas geralmente<br />
fora de domicílio, que são aconselhadas para este<br />
tipo de tratamento”, afirma a voluntária.<br />
Para ajudar, a ONG tem parcerias com clínicas do interior<br />
de São Paulo e algumas no sul de Minas Gerais, que<br />
trabalham com preços mais acessíveis, visto que as pessoas<br />
que procuram a ajuda são de um poder aquisitivo<br />
mais baixo. Dos 233 atendimentos, 93 dizem respeito a<br />
menores de idade. Ela ressalta, também, que o ponto<br />
comum entre as pessoas afetadas pelo crack é a desestruturalização<br />
familiar.<br />
De acordo com a experiência adquirida na ONG, uma<br />
alternativa para reduzir o envolvimento, cada vez mais<br />
frequente das pessoas com o crack, seriam atitudes<br />
positivas do poder Executivo e também do Legislativo,<br />
principalmente em um atendimento específico para o<br />
dependente químico.<br />
“Quando vamos à Secretaria Municipal de Assistência<br />
Social, encontramos sempre um ‘não’. Temos apenas um<br />
atendimento paliativo, emergencial, no Hospital Santa<br />
Lúcia. Se a cidade tivesse mais clínicas, seria importante,<br />
visto que a estimativa levantada revela que 30%<br />
dos habitantes poços-caldenses são usuários de drogas<br />
e é um número muito alto”, acredita Vilma.<br />
Embora a ONG trabalhe no sentido de reverter o número<br />
de dependentes químicos, a tarefa não é fácil. O tempo<br />
mínimo de internação aconselhável é de seis meses,<br />
porém, há pacientes que ficam por mais tempo. No<br />
entanto, para a organização, uma oportunidade de<br />
melhora no quadro, seria evitar o preconceito enviado<br />
por todas as camadas da sociedade. “Geralmente, a<br />
sociedade vê o dependente químico como um criminoso,<br />
um vagabundo, um ladrão. Eles se esquecem que aquela<br />
pessoa tem uma mãe, uma família, filhos. Poços de<br />
Caldas está em um estágio que pede socorro. Estamos<br />
travando uma luta que não temos como vencer sozinhos.<br />
Precisamos de apoio”, pede, em apelo, não somente de<br />
uma voluntária do apoio aos viciados em crack, mas de<br />
toda a sociedade, que assiste à degradação dos seres<br />
humanos que resolvem trilhar o caminho das pedras.<br />
A matéria teve boa repercussão e os jovens que faziam<br />
parte das oficinas, não apenas no bairro onde morava,<br />
como em outros, passaram a refletir mais sobre o problema.<br />
Porém, o objetivo não era fazer com que a pessoa<br />
que já vivenciava isso tivesse consciência, mas<br />
abrir para uma discussão mais ampla, com sugestões.<br />
Pode parecer pouco, entretanto, tinha plena visão de<br />
que o hip-hop atrelado com a literatura, quando levados<br />
a sério, promoviam mudanças e não deixavam que<br />
os jovens cruzassem a linha invisível entre o caminho<br />
do bem e o mundo do crime.
380 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
381<br />
A sugestão de leitura do livro “Crack – O Caminho das<br />
pedras” feito pelo jornalista, já falecido, Marco Antônio<br />
Uchôa também pode ser trabalhado e difundido entre os<br />
jovens, que pareciam poucos, mas que, como multiplicadores<br />
de informações positivas, eram muitos. Assim,<br />
poderia parecer clichê ou repetição, mas achei necessário<br />
falar sobre o problema e surgiu o texto da matéria<br />
no Jornal Mantiqueira, onde estreava minha temporada<br />
com a estatística.<br />
Envolvimento de menores com o tráfico aumentou 277%<br />
no último ano<br />
Levantamento feito pela Polícia Militar mostra o aumento<br />
significativo de crianças e adolescentes que se envolveram<br />
com o comércio de drogas em 2008.<br />
Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
Poços de Caldas (MG) – Repetitivo, porém assustador, o<br />
número de crianças e adolescentes envolvidos com o tráfico<br />
de drogas aumenta diariamente e sem mecanismos<br />
de recuperação ou punição se torna impossível contê-los.<br />
São comuns cenas de adolescentes, recém-saídos da<br />
infância, com idades entre 12 e 13 anos, cometendo<br />
pequenos furtos para sustentar vícios ou ainda servindo<br />
de base e de “laranjas” para o tráfico de drogas.<br />
Todos os dias a Polícia Militar registra diversas ocorrências<br />
relacionadas ao tráfico de entorpecentes e de<br />
acordo com um levantamento, de janeiro a novembro de<br />
2008, 34 menores foram apreendidos por tráfico de drogas.<br />
Em um comparativo com o mesmo período do ano de<br />
2007, apenas nove menores foram apreendidos, ou seja,<br />
houve um aumento de 277,78% nos casos.<br />
Segundo a ONG Poços de Luz, 93 adolescentes aguardam<br />
tratamento para desintoxicação. Já a delegacia de Tóxicos<br />
e Entorpecentes da 25ª Delegacia Regional de Segurança<br />
Pública, chefiada pelo delegado Carlos Eduardo<br />
Galhardi Di Tommaso, recebe em média três denúncias<br />
por dia relacionadas ao tráfico de drogas.<br />
O último levantamento feito pela Polícia Civil em 2008<br />
aponta que 14 adolescentes foram autuados por envolvimento<br />
direto com o tráfico e que tiveram 83 ocorrências<br />
de menores que fazem uso de drogas. Além dos adolescentes,<br />
no último ano, um menino de 11 anos foi conduzido<br />
pela Polícia Militar até a 25ª DRSP, por estar com<br />
drogas dentro de um saquinho de salgadinho na Cadeia<br />
Pública, acompanhado pela mãe, que para fugir do flagrante,<br />
fez com que o filho segurasse a droga. O menor,<br />
conforme manda a lei, foi encaminhado a programas de<br />
apoio através do Conselho Tutelar.<br />
“O que percebemos dos adolescentes é que eles são<br />
facilmente seduzidos pelas pessoas mais velhas a fim<br />
de ganharem um dinheiro fácil e terem acesso a algumas<br />
mordomias, ou bens de consumo, que a mídia expõe como<br />
coisas muito interessantes e, então, eles acabam acreditando<br />
que tem de ter de qualquer forma, daí o tráfico”,<br />
avalia Tommaso, delegado de Tóxicos e Entorpecentes.<br />
Motivo<br />
Para o delegado, como os pais geralmente não têm condições<br />
de entregar aos filhos os bens materiais que eles<br />
almejam, como camisetas, bonés e eletroeletrônicos,<br />
eles terminam seduzidos pelos traficantes mais velhos.<br />
“Essas crianças costumam ficar sozinhas o dia todo, sem<br />
muitos cuidados e os traficantes, mais velhos, sabem<br />
da dificuldade da polícia em apreender esses menores<br />
e mantê-los presos então utilizam, com cada vez mais<br />
frequência, a mão de obra destes adolescentes para realizar<br />
o tráfico”, acrescenta.<br />
A psicóloga Mariângela Moura Santos tem a mesma visão<br />
e acredita que o nível cultural e social dessas crianças<br />
é muito ruim. “São crianças muito carentes, sem refe-
382 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
383<br />
rencial paterno positivo, sem referencial materno e que<br />
começam muito cedo na rua, se agrupam com outras<br />
crianças entram muito precocemente nas drogas, sendo<br />
influenciadas por adultos muito cedo”, comenta.<br />
Por não existir um centro de reabilitação em Poços de<br />
Caldas, o envolvimento dos menores no tráfico fica<br />
favorecido e de certa forma, impune. “Quando a Lei dispõe<br />
de forma tão diversa da censura aos menores, tem<br />
como objetivo a ressocialização, independentemente da<br />
imposição de uma pena. Só que, para isso, é preciso de<br />
uma estrutura que corresponda a essa expectativa de<br />
reestruturar a pessoa e a maioria das cidades não tem<br />
isso. Nós observamos que não podemos prender estas<br />
crianças e adolescentes, então eles retornam para as<br />
ruas e repetem o ato infracional”, queixa-se o delegado.<br />
De acordo com a psicóloga, tal comportamento por parte<br />
dos menores pode ser atribuído a uma psicopatologia<br />
chamada delinquência. “Ao contrário do que as pessoas<br />
pensam, a delinquência não é apenas um comportamento,<br />
é também um desvio de caráter considerada uma<br />
doença como esquizofrenia ou psicose e ela faz com que<br />
os jovens e adolescentes busquem esta vida mais fácil e<br />
isso, somado às influências familiares, contribui para o<br />
ingresso destes menores no tráfico”, explica.<br />
Mariângela compartilha ainda da mesma opinião que<br />
Tommaso em relação à influência da mídia no comportamento<br />
dos jovens que ingressam no tráfico.“Acredito na<br />
influência social na questão do ter. Isso contribui, além<br />
da falta de instrução e de carinho”, diz a psicóloga.<br />
Procedimento<br />
A máxima punição aos menores envolvidos com o tráfico<br />
de drogas é a internação em algum estabelecimento de<br />
reintegração social, no entanto, como a cidade não possui<br />
um, em geral, quando os adolescentes são apreendidos, há<br />
o auto da apreensão em flagrante. Mas, geralmente, eles<br />
são postos em liberdade aos cuidados dos familiares, para<br />
que respondam um processo na Vara da Infância e Juventude<br />
por aquele ato infracional. “Via de regra, mesmo após<br />
aplicação de reprimenda final que no máximo é o encaminhamento<br />
a uma instituição de recuperação, estes jovens<br />
são orientados a prestar algum serviço comunitário ou<br />
encaminhados a alguma outra instituição para que sejam<br />
atendimentos por psicólogos, mas não sofrem nenhuma<br />
repressão mais intensa”, enfatiza Tommaso.<br />
Questionado sobre o fato de terem crianças apreendidas<br />
em razão do tráfico, ele esclarece que os menores<br />
de 12 anos não deveriam sequer ser levados à Delegacia e<br />
a Polícia, e que nesses casos, não se pode fazer nada.“A<br />
única coisa que se faz é não constranger, de maneira<br />
nenhuma a criança e não tomar nenhuma medida policial.<br />
Apenas contatar, imediatamente, os familiares e na<br />
impossibilidade de contato, o Conselho Tutelar”, revela.<br />
Opção<br />
Para reverter o quadro cada vez mais alarmante, Mariângela<br />
pensa que um trabalho social e de conscientização<br />
feito com as crianças, os adolescentes e os pais poderia<br />
ser uma opção.<br />
“É um caso complexo. Uma falta de tudo. Precisaríamos<br />
de um trabalho muito benfeito que envolva saneamento<br />
básico, alimentação, escola e educação. Talvez instituições<br />
que fazem estes trabalhos podem ter algum resultado”,<br />
diz. Tommaso acredita que locais para recepção<br />
destes menores pode ser uma opção de ressocialização<br />
e que talvez reverta o quadro: “Um local para que eles<br />
ficassem mais ocupados, fossem reeducados e que não<br />
fossem novamente presas fáceis aos traficantes mais<br />
velhos. Em relação às crianças, eu não sou um defensor<br />
da redução da maioridade penal. As pessoas jovens<br />
mesmo não tem essa capacidade de discernimento, de
384 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
385<br />
escolha. Elas são realmente seduzidas. Em vez de ficar<br />
tanto tempo discutindo esta redução, podia voltar as<br />
energias para o desenvolvimento de um plano de recepção<br />
desses adolescentes para tentar a ressocialização<br />
da forma que a lei de execução penal e o Estatuto da<br />
Criança e do Adolescente (ECA) promovem”, enfatiza.<br />
Como conselho, o delegado pede aos pais para que fiquem<br />
atentos ao comportamento dos filhos. “Não devem deixálos<br />
muito tempo sozinhos na rua porque é uma idade que<br />
precisa de uma autoafirmação grande e que às vezes se<br />
o pai não está por perto, está um pouco descuidado e os<br />
traficantes chegam, outras pessoas chegam, conseguem<br />
convencê-lo a andar por um caminho errado”, finaliza.<br />
Com o balanço feito e opiniões como a da psicóloga e do<br />
delegado, a ênfase em locais onde os jovens ficassem<br />
ocupados e passassem a pensar por si era uma das alternativas<br />
para a redução do envolvimento com o tráfico.
Estatística<br />
387<br />
Literatura, pedras<br />
e sementes<br />
Um espaço quase centenário. A precariedade contrasta<br />
com as cores repintadas nas paredes usando a técnica<br />
do grafite. A história dos bailes e do culto aos antepassados<br />
negros é presente por meio de quadros, recortes<br />
de jornais e da energia que emana do galpão adaptado<br />
para receber jovens e crianças em situação de risco. O<br />
nome é Chico Rei e a simples menção remete a bailes<br />
realizados na cidade quando a estância ainda recebia<br />
inúmeros turistas para a lua de mel e o espaço se dedicava<br />
a receber a periferia. Transforma-se, atualmente,<br />
em Centro Cultural Afro Brasileiro Chico Rei.<br />
Como um resgate, arte-educadores propõe oficinas<br />
durante todo o período da tarde a alguns jovens moradores<br />
da região. Um resgate de autoestima, de cidadania,<br />
de consciência. Com um trabalho feito pelos próprios<br />
jovens, toda fachada do galpão foi redecorada com tintas<br />
coloridas e grafites, sempre em alusão às oficinas<br />
de hip-hop. Com aparelhagem de som, pickups e muita<br />
rima, o rapper Job passou a ministrar oficinas para a<br />
garotada. Com uma visita, pude conferir o local, o que<br />
estava sendo passado e de forma breve um pouco do 5º<br />
elemento – conhecimento – lhes foi passado por meio<br />
de audiovisual e da literatura.<br />
386
388 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
389
392 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
393<br />
Não há dados científicos ou computados quanto aos<br />
resultados, mas o fato é que, por meio de uma pesquisa<br />
empírica com a arte-educadores e instituições que, de<br />
alguma maneira, nos últimos dois anos tinha trabalhado<br />
com hip-hop ou literatura, mais de 1000 jovens já<br />
tinham passado de oficinas itinerantes, onde também<br />
estive presente com textos da literatura marginal, ora<br />
feitos por mim, ora feitos por estudantes e, também,<br />
do cenário nacional. Com lares desfeitos ou abalados<br />
pelo crack, por pais adictos, familiares dependentes do<br />
álcool, todos os jovens integrantes do projeto Chico Rei<br />
são vitimas do desemprego, da humilhação e da falta<br />
de saúde e educação.<br />
Com a mesa desfeita e a barriga vazia, grande parte<br />
estava ali, inicialmente, para receber o lanche oferecido<br />
pelos responsáveis pelo programa que mais do<br />
que o estômago, encheu a alma. Completaram-na com<br />
sonhos, com palavras, com arte, cultura e poesia. Em<br />
pouco tempo estavam apegados aos livros e com o senso<br />
crítico fortalecido. Minha visita aconteceu em uma tarde<br />
em que pude fugir do jornal. Com trabalhos feitos a partir<br />
de notícias ocorridas no próprio bairro deles envolvendo<br />
polícia e, não raras vezes, pessoa conhecidas, eles aprenderam<br />
a gostar de ler o jornal e entender a importância de<br />
estar por dentro dos acontecimentos da cidade.<br />
Com iPods, MP3 e outros tocadores de músicas, eles<br />
mostram, entre si, durante o intervalo, raps nacionais<br />
novos e, quando pergunto algumas coisas básicas sobre<br />
o conhecimento do hip-hop, eles não hesitam em me responder<br />
sobre a origem dos ritmos, da dança e da música.<br />
Pergunto quanto à produção literária e a coordenadora<br />
do projeto mostra algo escrito por eles. A volta do intervalo<br />
acontece quando eles podem assistir um filme<br />
exibido num telão conseguido para o centro cultural.<br />
O filme trata, também, sobre as origens e os antepassados,<br />
tema que os adolescentes passam a respeitar<br />
desde que ingressaram no projeto.<br />
Por meio de incentivos assim, muitos que eram ausentes<br />
na escola voltaram a frequentar a sala de aula pela<br />
manhã, com melhora no comportamento, na concentração<br />
e nas notas. Sou convidada para um dia específico<br />
levar um pouco das oficinas até eles. Combino e marcamos<br />
uma noite. Chego e o clima de sarau toma conta do<br />
ambiente. Os garotos chegam e o acontecimento – ficar<br />
horas longe de casa, da televisão e não estar fazendo<br />
algo reprovável, é quase inédito – os mobiliza a ajudarem<br />
a arrumar cadeiras, mesa e telão.<br />
Aos poucos o salão lota. Mães, pais, avós e vizinhas.<br />
Muitos vêm saber o que vai acontecer ali. Abro uma<br />
pasta e retiro um caderno do Jornal Mantiqueira. O que<br />
estou trabalhando atualmente e que me permite, vez ou<br />
outra, publicar textos de amigos da literatura marginal.<br />
Começo a ler o texto e só depois que termino, explico.<br />
A presença da mulher na sociedade de hoje<br />
Por Renato Vital<br />
Qual seria sua reação, ao se deparar com uma mulher<br />
dirigindo um ônibus há vinte anos atrás? Muitas pessoas<br />
ficariam, no mínimo, assustadas com a cena, por não<br />
se tratar na época de um fato comum. Ao compreender<br />
o assunto, podemos notar a evolução das mulheres na<br />
sociedade e no mercado de trabalho. Pois, hoje em dia,<br />
é normal nos depararmos com mulheres ao volante,<br />
mulheres escritoras, jornalistas, policiais, bombeiras,<br />
médicas, jogadores de futebol etc.<br />
Especialistas afirmam que elas se destacam por serem<br />
ágeis, organizadas, sensíveis e detalhistas. Outras pessoas<br />
dizem apenas que essa evolução feminina se deve
394 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
395<br />
pelo quesito boa aparência. Quer dizer que as empresas,<br />
em vez de contratarem mão de obra masculina, utilizamse<br />
da beleza e exuberância da mulher, afim de causar boa<br />
impressão em seus clientes, sócios, associados etc.<br />
Mas as mulheres, por sua vez, alegam que a presença<br />
maciça no mercado de trabalho foi causada pelas diversas<br />
manifestações e piquetes, que aconteceram no decorrer<br />
dos anos. Como sabemos elas conseguiram, na base de<br />
lutas e conquistas, os direitos de voto, atendimento especial<br />
nos hospitais e postos de saúde, a Lei Maria da Penha<br />
(que as protege da violência machista), entre outras.<br />
Podemos dizer que a ousadia delas é, na grande maioria<br />
dos casos, motivo pelo qual ocupam esse espaço na<br />
sociedade, que, em alguns anos, poderá ser ainda maior.<br />
É uma pena que muitas consigam destaque apenas com<br />
apelo sexual, ao posarem nuas em revistas masculinas<br />
ou mostrarem o corpo de maneira explícita na televisão,<br />
em variados programas (muitos deles dominicais).<br />
É lamentável, também, que muitas delas confundam:<br />
“espaço e direitos iguais” com “liberdade sexual e desvalorização<br />
ideológica e de seus próprios corpos”, como<br />
acompanhamos em bailes funks entre outras festas de<br />
apelação sexual feminina. É bom nos apegarmos aos<br />
bons exemplos de mulheres de coragem e firmeza, para<br />
que possamos assimilar bem essa evolução, pois daqui<br />
há alguns anos, será comum irmos a um estádio de futebol<br />
e assistir a jogos de futebol feminino.<br />
Escrito pelo rapper e escritor Renato Vital, da Zona Sul<br />
de São Paulo, o texto traz muito do que vivemos aqui,<br />
onde todos andam sujos, como a mente da sociedade, e<br />
trazem — ora no corpo, ora na alma — sequelas de uma<br />
vida miserável. Comento como é possível se expressar<br />
por meio da literatura periférica e como isso pode chegar<br />
a um veículo de comunicação. Conto que convidei<br />
o jovem de pouco mais de 20 anos, funcionário de um<br />
supermercado e que passa os mesmos venenos diários<br />
que todos nós a publicar o texto no jornal.<br />
Mostro que não apenas o Jornal Mantiqueira tem este<br />
espaço, como todos da cidade podem abrir a coluna<br />
Opinião ou Espaço do Leitor para que jovens, adultos e<br />
idosos publiquem o que pensam sobre tudo que os leva<br />
a refletir. Ato contínuo, leio outro texto de Vital, também<br />
publicado no jornal.<br />
Não aponta o dedo<br />
Por Renato Vital<br />
Madrugada fria, e não tem desculpa, não tem choro, não<br />
tem pelo amor de Deus, ou levanta para trabalhar ou vai<br />
se ver com o patrão. O patrão também acorda cedo, se<br />
ele, que é patrão, levantou cedo, você não pode fazer<br />
diferente. O trabalhador não tem escolha, o patrão às<br />
vezes também não tem escolha, o presidente, muitas<br />
vezes, não tem escolha, e quem escolhe então? O patrão<br />
acorda cedo, porque sabe que tem pagar os funcionários,<br />
ele sabe que tem que pagar imposto, ele sabe que<br />
se não pagar as contas os agiotas vão ligar para ele, o<br />
patrão sabe que precisa vender, o patrão às vezes não<br />
queria, mas é obrigado a pagar pouco, porque é pouco<br />
que lhe sobra, mas, muitas vezes, o patrão também fica<br />
com a parte mais gorda do lucro. O empregado sai de<br />
casa todo dia, rumo ao trabalho, seu descanso é temporário,<br />
o tempo menor, talvez o sábado e domingo, ou só o<br />
domingo, ou uma folga por semana, ou cinco folgas por<br />
mês. Hora extra quase não existe mais, é só banco de<br />
horas, tudo controlado pelo sindicato. O patrão chega<br />
em casa e liga a televisão, o empregado chega em casa<br />
e liga a televisão, um assiste futebol, o outro também, o<br />
empregado pega sua camisa pirata do time do coração,<br />
o patrão pega sua camisa oficial do time do coração,<br />
mas que comprou na promoção. Ninguém aponta o
396 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
397<br />
dedo para ninguém, no mundo social assim é melhor, na<br />
sociedade em que vivemos nada se pode apontar, nem o<br />
lápis que o menino não quer usar, o futebol é mais atraente<br />
que a prova de matemática. Na televisão algumas<br />
pessoas são apontadas como culpadas, temos obras<br />
superfaturadas, temos “big luxo”, casas na praia, a propaganda<br />
de turismo pro empregado soou como piada,<br />
enquanto a mulher do patrão interrogou o esposo:<br />
Pra qual praia vamos no próximo recesso?<br />
O patrão pensa sozinho “Não vou para praia, se julho for<br />
lucrativo”. A patroa adivinha o pensamento do patrão<br />
e solta uma exclamação: “Pensando em trabalhar nas<br />
férias de novo? Não cansa não?”. O patrão tenta dizer<br />
algo, mas é novamente abduzido pela propaganda que<br />
mostra cerveja e praia. Quem abre livros para ler no país<br />
do carnaval? O patrão se preocupa com o lucro, o empregado<br />
com o salário no fim do mês, e o livro fica dando<br />
sopa para quem? Algum estudante quer saber de Dante,<br />
enquanto mal sabe da sua origem? Os livros vão se empoeirando<br />
em alguma estante, empregaram o espanador e<br />
o aspirador de pó e só, ou será que eles, um dia, vão ser<br />
percorridos, com suas páginas já amareladas, mas que<br />
trazem palavras claras e precisas sobre o mundo que<br />
vivemos? Deixa para lá. Se alguém apontar o dedo, dedos<br />
serão apontados, mas o que a gente sabe é que o lucro<br />
virá novamente e as contas, também, e o empregado<br />
ficará com o quê? Não sei lhe dizer!<br />
Para não deixar cansativo, no telão, exibi o documentário<br />
“Hip-Hop: A Revolução que vem das ruas”, produzido<br />
pela jornalista Érica Guimarães, em 2007, pela Unip de<br />
Campinas. Sem narração, os próprios personagens contam<br />
a história desta cultura e conforme o Zulu King, Nino<br />
Brown – representante da Zulu Nation no Brasil – define,<br />
não há hip-hop sem conhecimento, sem saber dos antepassados,<br />
sem voltar no tempo e percorrer as próprias<br />
raízes, sem a leitura e sem a escrita.<br />
Nos olhos dos garotos que queriam tudo e não tinham<br />
quase nada, pude ver um rastro de esperança, rondando<br />
aquelas pequenas mentes com corpos tão sofridos.<br />
Senti, novamente, que algo havia mudado. Entretanto, a<br />
maior transformação acontecia dentro de mim, que não<br />
deixava uma escola, um centro cultural, uma quebrada,<br />
sem ter lágrimas nos olhos por ter plantado, mesmo que<br />
bem pequena, a sementinha do conhecimento na vida de<br />
crianças e adolescentes que até então só tinham recebido<br />
as pedras da ignorância.<br />
Com estes exemplos reais e palpáveis, ouvi as colocações<br />
dos jovens sobre os textos e deixei em aberto para<br />
que eles me apresentassem os feitos por eles mesmos.<br />
Apenas dois jovens se manifestaram e leram redações<br />
escritas por eles. Recusaram-se a usar a frente da sala<br />
e de onde estavam, engasgando, disseram um pouco<br />
daquilo que pensavam por meio do que fora anotado<br />
algum tempo antes.
398 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
399
Estatística<br />
401<br />
Do verbo produzir<br />
Mudar de emprego foi a melhor opção feita por mim<br />
desde que ingressei na vida “dos que tem carteira assinada”.<br />
Estava ganhando a mesma coisa, entretanto,<br />
havia deixado o tronco e as chibatadas para a liberdade<br />
de produção e qualidade de textos. Profissionalmente o<br />
salto foi incrível. Ingressei em um jornal maior, com mais<br />
estrutura, onde posso aprender, até hoje, diariamente,<br />
as artimanhas do fechamento, da edição e do direcionamento<br />
das matérias.<br />
Tenho ainda mais espaço para divulgar os eventos de<br />
hip-hop, os escritores, os movimentos literários Brasil<br />
afora e, ainda, a coluna das opiniões, onde vários amigos<br />
já puderam participar com textos e crônicas da literatura<br />
marginal. Sem ser obrigada a produzir inúmeras<br />
matérias por dia – incumbida de fazer apenas uma,<br />
desde que fosse boa – pude pensar mais no que poderia<br />
fazer em relação às oficinas, em relação à própria vida,<br />
além de ter mais tempo para ler e assistir documentários<br />
e filmes relacionados com a periferia.<br />
A ideia antiga de trabalhar, antropologicamente, a literatura<br />
produzida nos guetos voltou à mente e mais uma<br />
vez, com ajuda de amigos e através da internet, entrei<br />
em contato com vários autores e comecei um trabalho<br />
de pesquisa, que sei, ainda vai levar anos, até que seja<br />
admitida em um mestrado de comunicação e possa trabalhar<br />
a produção literária vinda das quebradas.<br />
Através de questionários, muitos escritores e afins da<br />
literatura, frequentadores de saraus e agitadores culturais<br />
me contaram mais sobre o universo e toparam fazer<br />
parte da pesquisa. Sem parar, me lancei novamente em<br />
oficinas, desta vez em outras regiões e sem a obrigatoriedade<br />
de ser com estudantes. Bastava que quem estivesse<br />
a fim aparecesse, até porque quem não quisesse não iria<br />
se dispor a receber dicas de livros, textos e filmes.<br />
Jovens apegados aos livros para o fortalecimento do<br />
senso crítico. Esse era meu objetivo com as oficinas.<br />
Fazer com que eles parassem de achar que porque eram<br />
pobres, muitos deles negros e moradores da periferia<br />
não tinham muito alimento nas mesas, precisavam ser<br />
acomodados e conformados com a existência de miséria<br />
que o sistema nos oferece.<br />
Como exemplo, passei a usar a minha própria vida e trajetória.<br />
Encontrar um emprego não é fácil. Ganhar bem é o<br />
mesmo que acertar seis números na loteria. Mas frequentar,<br />
mesmo firme, a escola pendenga. Comer, mesmo fria,<br />
a marmita amassada e procurar, mesmo com uma enorme<br />
coleção de nãos. Nunca desisti de me encontrar e continuava,<br />
de alguma forma, lutando por aquilo que acredito.<br />
Não é pecado ter a barriga vazia, mas a mente sem ideologia<br />
é quase um crime, se não te leva para o mundo do<br />
mesmo. A minha pequena trajetória passou a ser exemplo,<br />
citada com a de outros parceiros que também tiveram<br />
caminhos parecidos, mas que sempre foram firmes<br />
ao dizer não para os convites às drogas e sim para o convite<br />
às leituras. Dispor ideais escritos por mim nem sempre<br />
era uma tarefa fácil. Muitos passavam para uma fase<br />
400
402 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
403<br />
comparativa do tipo: “Mas na sua casa tem tal coisa.<br />
Mas você pode fazer tal coisa. Mas você tem apoio”.<br />
Optei, então, por usar e casar, textos e relatos meus<br />
com os de outros escritores que tem a mesma situação.<br />
Pareceu funcionar e, através de blogs e mesmo do orkut,<br />
que não gosto, mas acho uma ferramenta de inserção e<br />
até mesmo de divulgação, os jovens, e até as garotas,<br />
que, como nas crews, passaram a aparecer um tempo<br />
depois, formaram uma integração e listas de discussões<br />
sobre os textos.<br />
Citar MV Bill e Racionais MCs, rapper e grupo dos quais<br />
todos tinham bastante afinidade por conta das letras<br />
também se tornou uma ferramenta importante, até porque,<br />
ambos já participaram de saraus, livros, prefácios<br />
e tudo mais. A literatura e a leitura, até então vistas<br />
como chatas, se tornavam coisas importantes porque<br />
os “espelhos” também estavam praticando.<br />
Algo que sempre fiz questão de ressaltar foi um pouco<br />
da vida e luta dos meus pais. Aposentado no ramo da<br />
metalurgia, meu pai começou a trabalhar aos seis anos,<br />
quando levava marmitas, vendia bucha de aço na feira e<br />
ajudava os pais com o orçamento doméstico. Nas horas<br />
vagas, catava balas de goma descartadas ao lado de<br />
uma fábrica. Nunca teve qualquer luxo. Estudou até o 4º<br />
ano primário e fez de tudo para me dar estudo. Sempre<br />
gostou de ler, fazer palavras cruzadas e tem uma mente<br />
incomum para resolver problemas e praticar a honestidade.<br />
Enfrentou problemas na capital paulista como<br />
qualquer pessoa pobre enfrenta. Hoje, continua vivendo<br />
em um local pobre, não tem plano de saúde e com diversos<br />
problemas, enfrenta horas para ser atendido.<br />
Já minha mãe cresceu sem mãe. Criada pela avó analfabeta<br />
até os 13 anos, ficou sozinha no mundo. Também<br />
trabalha desde os 6 anos. Passou fome. Comeu restos<br />
de lixo para encher a barriga. Orgulha-se de nunca ter<br />
usado drogas e de ter parado de fumar, vício que adquiriu<br />
por achar “chique”, ainda adolescente.<br />
Cuidou/cuida dos familiares, até hoje. Tentou a sorte em<br />
São Paulo no ramo da metalurgia, vivendo no caos do<br />
transporte público, nas horas intermináveis trabalhando<br />
feito máquina e botando brioche na mesa do patrão,<br />
retornou a Poços e nem tanta coisa mudou. Assim como<br />
meu pai, cursou até o 4° ano primário e, nas horas vagas,<br />
quando termina de cuidar da casa e preparar a minha<br />
marmita, se senta e lê tudo que encontra pela frente.<br />
Diante das pequenas passagens, que faço questão de<br />
contar para que todos os jovens saibam que as dificuldades<br />
existem na vida de todo mundo e que os caminhos<br />
somos nós mesmos que traçamos. Basta termos força<br />
de vontade e discernimento para mudar a própria periferia<br />
e as oficinas caminham de forma mais produtiva.<br />
Por falar em produção, após dois anos de trabalho com<br />
as oficinas, somente quando elas se tornaram itinerantes<br />
e através da internet foi possível ver o empenho e desejo<br />
dos garotos em produzir textos. Com o ingresso de garotas<br />
nas oficinas e encontros, a produção ficou ainda maior.<br />
Não sei se são mais sensíveis, mas o fato é que passaram<br />
a escrever ainda mais. Muitos questionam, perguntam,<br />
especulam: “O que pode virar conto, texto, notícia?”<br />
Respondo que as cenas inéditas no papel e cansativas<br />
na vida são ótimos começos: a goteira que pinga na<br />
cama, o vizinho que ninguém quer ter, o invisível que ninguém<br />
quer ver, o mendigo que todos tropeçam e as crianças<br />
que já não sorriem. O pessoal quer saber se relatar<br />
a própria vida funciona... Não existe fórmula e, pelo fato<br />
da literatura estar às margens, tudo vale.
404 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
405<br />
Alguns, que já desistiram da escola, passam a ler bastante<br />
e pensando em escrever, ignoram o analfabetismo<br />
e pensando bem, ler e escrever são brindes em um país<br />
de estatísticas. O último levantamento feito pela Secretaria<br />
de Promoção Social mostra que a cidade tem cerca<br />
de 500 analfabetos. Menos de 1% da população. E esta é<br />
mais uma estatística, que me inspira um texto. Bem real:<br />
Invisibilidade<br />
Por Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
O cheiro da sujeira misturada com a pobreza é insuportável.<br />
Permanecer poucos minutos nos dois cômodos da<br />
casa é sufocante. As garrafas pet, sapatos velhos, pedaços<br />
de madeira, de ferro e muito papel ficam empilhados<br />
e obstruem a passagem para os demais cômodos e dão à<br />
casa um aspecto de aterro sanitário.<br />
Quando é questionada sobre o porquê de tanta sujeira<br />
acumulada, ela tenta se defender e, enrolando a língua,<br />
tropeçando nas palavras, diz que não vai se desfazer de<br />
“suas coisas”, que, para quem observa do lado de fora<br />
(tanto da casa como daquele mundo), não passa de um<br />
monte de lixo e um convite para focos de dengue. É quase<br />
incompreensível o que ela quer dizer. Ela é surda. E, por<br />
ter nascido assim, não aprendeu a se comunicar. Por<br />
causa disso é analfabeta e, dentro desta situação, se<br />
transforma em mais uma estatística. Ou em muitas.<br />
Brasileiros que recebem benefício por incapacidade de<br />
trabalhar. Brasileiros que vivem em situação de risco. Brasileiros<br />
que são completamente analfabetos. Brasileiros<br />
que ganham apenas um salário mínimo. Brasileiros que<br />
pagam aluguel. Brasileiros que não podem se alimentar<br />
de forma decente. Que vivem sem higiene. Que tem problemas<br />
mentais. Que se transformam em mais um ou são<br />
divididos em vários, por categorias, deixando de pensar,<br />
sentir e, até mesmo, de existir. Vira apenas um número.<br />
Transforma-se em uma pessoa inválida de guerra, mas<br />
é uma guerra urbana e social, que deixa sequelas de<br />
variados tipos. Ela se transforma em uma aleijada, tipo<br />
aqueles que se arrastam pelas ruas da cidade com seus<br />
passos incertos queixando-se dos muros invisíveis, que<br />
os impedem de serem pessoas – seres humanos.<br />
A maior tristeza que me invade repentinamente, várias<br />
vezes ao dia, é a lembrança de vê-la olhando o jornal e<br />
tentando compreender quais eram as notícias que aquelas<br />
folhas impressas com letras, fotografias e infográficos<br />
traziam e que, para ela, fazia parte de um mundo<br />
ainda mais distante.<br />
Entristeço-me cada vez que lembro de como deve ser<br />
duro o dia a dia de quem não entende as letras. Penso<br />
que seria, então, um desperdício não incentivar a leitura<br />
daqueles que podem ler e não o fazem.<br />
Todas as vezes que me deparo com esta realidade,<br />
lembro-me da história contada por meu pai. Cheio de<br />
emoção e, também, de angústia ele sempre relata que a<br />
mãe dele – a avó que não tive a oportunidade de conhecer<br />
– certo dia estava folheando uma revista de cabeça<br />
para baixo. “Foi duro ver aquilo”, ele sempre comenta,<br />
quando conta a passagem.<br />
E voltando à dona de toda a bagunça – lixo – acumulada<br />
em uma pequena casa, por se encaixar em tantas<br />
estatísticas e ao mesmo tempo ficar do lado de fora dos<br />
padrões impostos pela sociedade, foi despejada do local<br />
onde vive sem direito à defesa. Foi atropelada. Não há<br />
quem queira cuidar até que ela se recupere.<br />
Nunca fez mal para ninguém. Nunca teve desejo de riquezas<br />
materiais. Nunca desejou ter mais do que tinha. Nunca<br />
conseguiu expressar sua indignação diante de um mundo<br />
“injusto”, que escraviza quem já nasce condenado, por<br />
nascer no meio de pobres e da pobreza. Nunca conseguiu<br />
construir uma identidade. Nunca conseguiu comer carne<br />
todos os dias. Nunca conseguiu se desgarrar da cultura
406 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
407<br />
negra, como foi ensinada – embora sempre tenha sido loira<br />
de olhos claros – nunca conseguiu se “divertir” da forma<br />
como dita a sociedade. Nunca conseguiu ser “alguém” e,<br />
mesmo sendo taxada a vida toda como “ninguém”, teve<br />
quem chorasse quando a notícia chegou: ela seria internada<br />
em um hospício. Não, nunca foi louca. Apenas surda<br />
e analfabeta. Quando foi comunicada, não conseguiu dizer<br />
o que pensava, apenas repetia, da mesma forma enrolada<br />
de sempre: “Não quero ir. Não quero.”<br />
Mas, novamente, a invisibilidade social fez com que as<br />
palavras, desejos e vontades dela não fossem respeitados.<br />
Todos decidiram o que para eles, seria melhor<br />
para ela, sem saber que ela era feliz da maneira como<br />
vivia. Antes de se despedir, pediu que quem estivesse<br />
chorando enxugasse as lágrimas, prometeu ficar bem<br />
e finalizou: “Deus é grande.” Saiu e continuou invisível.<br />
Todos seguiram suas vidas. Ah, a propósito, ela tem um<br />
nome, embora nem todos se recordem ou se dirijam a ela<br />
da mesma maneira. Geralda Dionésia de Jesus 1 . E ainda<br />
acredita neste último, embora pareça que ele não acredita<br />
muito nela. Continua analfabeta.<br />
O fato de, como no Chico Rei, inserir outros elementos<br />
do hip-hop nas aulas e oficinas só foi positivo para a evolução.<br />
Entre uma oficina e outra, a produção literária só<br />
foi crescendo e em comunidades, orkut e blogs é que os<br />
jovens passaram a divulgar os próprios textos.<br />
As garotas tratavam de sentimentos, de letras de músicas,<br />
de histórias de amor. Os garotos de descaso, de<br />
problemas sociais, da própria vida. Atitude, assim eles<br />
autodefiniam o trabalho que estavam fazendo. E assim,<br />
realmente, é! Muitos voltaram a estudar, trocaram as<br />
horas de bar e sinuca pelo cinema, pela música, pelos<br />
ensaios, pela produção de novas bases.<br />
1 Texto escrito poucos dias antes de Geralda falecer de forma misteriosa,<br />
em um hospital, sozinha, em uma cidade vizinha. Foi enterrada com marcas<br />
roxas no pescoço e sem laudo médico.
Estatística<br />
409<br />
Sem parada<br />
O bonde não para. Esta é uma das frases preferidas de<br />
quem está inserido no hip-hop. Trata-se da letra de uma<br />
música de MV Bill que é usada com muita frequência<br />
para aludir que, quem está do lado de dentro da cultura<br />
marginal, não pode estacionar.<br />
Estar em movimento significa fazer algo em prol da<br />
própria quebrada. Mudar a realidade que contorna os<br />
problemas enfrentados na periferia. Há nove anos na<br />
estrada o grupo UClanos, os tios do hip-hop, conseguiram,<br />
por meio de uma audição realizada em Poços, participar<br />
do programa Astros, do SBT, onde ficaram entre<br />
os três melhores grupos.<br />
Pela primeira vez conseguiram cobertura de todos os veículos<br />
locais e chamaram ainda mais atenção por serem<br />
um grupo de rap, estilo pouco apreciado em competições<br />
e, mesmo assim, terem alcançado uma boa colocação.<br />
Com as portas abertas por conta da participação, ficaram<br />
em primeiro lugar no Festival Rap Popular Brasileiro<br />
de Belo Horizonte, como em uma seletiva para o Festival<br />
Hutúz no Rio de Janeiro. Para fortalecer, não apenas<br />
o profissionalismo como a amizade, me apresentei como<br />
assessora de imprensa deles e todos ganhamos.<br />
Durante o mesmo período, na capital mineira, onde o rap<br />
ainda é o elemento mais forte da cultura hip-hop, devagar,<br />
o conhecimento foi tomando espaço e em tempo<br />
simultâneo o grupo Elemento.S, que, em 2007, havia<br />
pedido para gravar um texto como música, participou de<br />
um sarau no Palácio das Artes.<br />
O evento conhecido como Terças Poéticas, pela primeira<br />
vez, reuniu grupos de rap e empurrou a Literatura<br />
Marginal elite adentro. Bruno, conhecido como MC<br />
Budog, se uniu aos integrantes Pquena e Rapper Julim<br />
e, com roupas em alusão aos mendigos, leram e encenaram<br />
o texto “Olhar para o hip-hop que ...”, publicado<br />
no “Suburbano Convicto”.<br />
Pois é, estávamos vencendo as barreiras geográficas e<br />
do sul do Estado, estava na capital, interagindo com a<br />
sociedade por meio de um texto escrito as pressas para<br />
ser a introdução do livro-reportagem do TCC. Bruno<br />
explicou que o CD estava em fase de produção e que,<br />
em breve, a música estaria pronta, mas fez questão de<br />
filmar a leitura do texto e colocar no youtube. Assim,<br />
mais uma vez, a internet ajudou na divulgação, nos<br />
incentivando a praticar o 5º elemento.<br />
Por ser um evento tradicional na capital, mais de 150 pessoas<br />
frequentam o sarau toda semana e saber que o texto<br />
chegou a todo este público foi um ponto bastante importante.<br />
Objetivos alcançados. Disseminação de conhecimento<br />
e de informação. Lembro do primeiro contato com<br />
o Bruno, quando ele pediu o livro, disse que o que estava<br />
escrito estava mudando a vida dele, que ele queria ler e<br />
conhecer, cada vez mais, sobre a própria história. Como<br />
um filme rápido, enquanto eu assistia a apresentação,<br />
repensava em toda trajetória e enfim, sorri realizada.<br />
408
412 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
413<br />
Como uma maneira de fortalecer o trabalho, fiz uma<br />
matéria que consegui publicar no Mantiqueira e, também,<br />
no blog. Confira:<br />
Literatura Marginal entra pela porta da frente no Palácio<br />
das Artes em BH<br />
por Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
Na última semana o MC Budog, 25 anos, do grupo de rap<br />
mineiro Elemento .S participou do evento Terças Poéticas<br />
no Palácio das Artes em Belo Horizonte. Com os integrantes<br />
Pquena e Rapper Julim, o texto “Olhar para o hip-hop<br />
que...”, escrito por mim, do livro “Suburbano Convicto”<br />
foi lido pelo grupo, que caracterizados e em uma performance<br />
singular, fizeram uma cena impossível de deixar o<br />
público calado, ou alheio.<br />
Jéssica <strong>Balbino</strong> - Como funciona o evento?<br />
Budog - O evento se chama Terças Poéticas, é realizado<br />
todo ano nos jardins internos do Palácio das Artes, em<br />
Belo Horizonte, local de grande nome e difícil acesso<br />
aos eventos da cultura hip-hop, mas graças a Deus e ao<br />
esforço dos artistas, as portas para a cultura estão se<br />
abrindo! Os artistas passam por uma seleção e tem um<br />
espaço para estar divulgando seu trabalho, lembrando<br />
que está é a primeira vez que a cultura marginal, ou<br />
melhor, a literatura marginal teve seu espaço e continuaremos<br />
batalhando para conquistar cada vez mais.<br />
Como disse a jornalista Janaina C. Melo (Mina Jana) e<br />
Ice band: “O hip-hop entrou nos jardins do palácio pela<br />
porta da frente, da próxima vez, estaremos no Teatro do<br />
Palácio e seremos convidados a entrar.”<br />
Jéssica <strong>Balbino</strong> - Foi a primeira vez que vocês participaram<br />
do evento?<br />
Budog - Sim. Através do rapper Ice Band e de sua esposa,<br />
a jornalista Mina Jana, que abriram esse espaço não só<br />
para o grupo Elemento. S, mas para vários artistas mostrarem<br />
sua literatura marginal como: Blitz (Crime Verbal),<br />
Leo (Comando Rap Mineiro), Arte Favela, Coletivo Voz,<br />
Gen (Retrato Radical), Black W, Kadu (S3M). E teve, também,<br />
uma apresentação do Artista “Novato”, um grande<br />
nome na literatura marginal em Minas Gerais.<br />
Jéssica <strong>Balbino</strong> - Como foi a performance feita pelo<br />
seu grupo?<br />
Budog - Olha, foi muito louca a performance, mas vou<br />
avaliar de uma forma geral. Seguinte, Ice band abriu o<br />
espaço para todos nós, como disse anteriormente, e em<br />
cima disso ele montou um único espetáculo com todos<br />
os grupos, vestidos como marginais. “Assim a sociedade<br />
julga, né? Apenas pela aparência.” Mas então, estávamos<br />
a maioria de touca cobrindo a face, outros de óculos escuros,<br />
jaqueta, alguns sem camisa, pois estava amarrada<br />
em seu rosto cobrindo toda a face. A ideia foi causar um<br />
impacto no público e mostrar que o marginal que eles julgam,<br />
também tem talento, e que não deve ser julgado pela<br />
aparência e sim, pelo caráter e pela sua atitude. Enfim, a<br />
performance, em geral, foi um sucesso, foi mil grau!<br />
Jéssica <strong>Balbino</strong> - Parece que rolou uma homenagem<br />
aos nomes da cultura hip-hop e literatura marginal que<br />
já se foram? Como foi?<br />
Budog - A apresentação foi um tributo feito aos artistas<br />
da cultura hip-hop que já se foram. Cada poeta ao finalizar<br />
a literatura, poesia, prestava a sua homenagem aos mesmos,<br />
vitimas do descaso, do sistema, do crime etc. “Acho<br />
que o motivo da morte não importa, são todos guerreiros.”<br />
Alguns citados foram: Anita Motta, Duke (Retrato Radical),<br />
Sabotagem, Alex F(Sistema Negro), Chacrinha(Decreto<br />
Verbal) e vários outros artistas importantes que, com certeza,<br />
estão no coração de todos nós!<br />
Jéssica <strong>Balbino</strong> - Como o público reagiu?<br />
Budog - Eu achei que o público iria reagir de uma forma<br />
preconceituosa, mas não! Fomos recebidos com palmas
414 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
415<br />
e bastante barulho. Ao final de cada literatura, o público<br />
aplaudia, alguns gritavam “Bravo! Bravo!” Por incrível<br />
que pareça, fomos muito bem recebidos no Palácio das<br />
Artes, alguns podem pensar assim ao ler essa entrevista:<br />
“Que bosta, no palácio das Artes, até parece!” Mas para<br />
todos nós é mais uma vitória, também para a cultura<br />
hip-hop, são mais portas se abrindo para a periferia e,<br />
com certeza, isso é muito importante.<br />
Jéssica <strong>Balbino</strong> - Como você avalia sua experiência?<br />
Budog – Nossa, sem palavras. Primeira vez que recito um<br />
poema, que participo deste tipo de evento apesar de já<br />
estar envolvido no rap que também é poesia, mas dessa<br />
forma sem beat, sem DJ, foi a primeira e confesso que<br />
gostei! Recitei, junto com meu parceiro Rapper Julim, a<br />
sua poesia “Olhar para o hip-hop que...”, eu a gravei com<br />
base, com melodia, mas recitar foi diferente. Comecei a<br />
recitar, aí, do nada, me deu uma vontade de falar cada<br />
vez mais alto, às vezes suspirava, falava mais baixo, é<br />
inexplicável, foi ótimo. Muito interessante!<br />
Jéssica <strong>Balbino</strong> – Tem algo que não foi perguntado, mas<br />
que você acha importante destacar?<br />
Budog - Agradeço à você, Jéssica, e também à Anita<br />
Motta (in memorian), pelo apoio e por ter confiado no<br />
nosso “trampo”, por ter cedido a sua literatura para gravarmos<br />
como introdução do nosso CD e por permitir que<br />
nós, do grupo Elemento. S, possamos recitá-la pelas ruas,<br />
palácios, periferias etc. Agradeço ao Centro de referência<br />
Hip-Hop Brasil pelo apoio e pela oportunidade e, ainda, à<br />
coordenação do evento Terças Poéticas. “Não julgue pela<br />
aparência, julgue pelo caráter.” Aos guerreiros in memorian:<br />
“Perde-se um homem na Terra, mas ganha-se um anjo<br />
no Céu.” Descansem em paz, sua missão foi cumprida!!!<br />
Sem parada, o contato firmado com grupo UClanos permite<br />
que eu vá a vários eventos e fique sempre próxima<br />
do público que trabalho em oficinas e encontros literários.<br />
Como o projeto Cultura Marginal tem tudo a ver com a oralidade,<br />
o registro do 5º elemento em uma música foi ao<br />
encontro da ousadia de Suburbano, que fez questão de<br />
cantar a história do hip-hop e ainda teve a sensibilidade de<br />
me agradecer, sendo que eles é que sempre me ajudaram.<br />
“Obrigado Jéssica, pelo seu trabalho, com o hip-hop, meu<br />
pit stop, onde eu me abasteço (...)”, assim canta Suburbano<br />
na canção “É tudo nosso”, parte de um projeto, também<br />
do grupo.<br />
A Cultura Marginal em versos, de Poços para todo o país.<br />
Assim aconteceu a divulgação. Em uma outra música,<br />
cantando, o grupo defende a história do hip-hop e pede<br />
respeito. “Respeite o próximo, também é nosso, se você<br />
pode, eu também posso”, cantou durante o show do<br />
UClanos no Circo Voador, no Rio de Janeiro.<br />
Escolhidos para abrir o show de MV Bill e Racionais MCs,<br />
o clã de suburbanos se deixa levar pela magia existente<br />
debaixo da lona do Circo Voador. É fácil ser sentida e<br />
vários grupos conseguem curtir os embalos da noite. A<br />
volta dos cabelos black marca o resgate da autoestima<br />
entre os afrodescendentes e a utilização de um espaço<br />
“nobre” no centro da cidade registra também uma nova<br />
fase da história da cultura hip-hop.<br />
“Soul, black, funk, afro... Sou da beleza negra”, assim o<br />
show é aberto na marcante voz de Lu, que, no palco, se<br />
transforma em Lu Afri e exibe, diferente de outras vezes,<br />
um penteado black power que lembra a força do movimento<br />
nos anos 1970. Pela fisionomia de todos, penso<br />
em como aquele momento é importante. Revejo, mentalmente,<br />
toda a trajetória do grupo, cheia de dificuldades,<br />
desencontros e, agora, uma vitória. Quando o Flávio, que<br />
no palco se transforma em Suburbano, exibindo inclusive<br />
o pseudônimo em uma tatuagem, pega o microfone
Estatística<br />
417<br />
e faz questão de dizer que é muito satisfatório estar no<br />
Hutúz e, mais ainda, no Circo Voador, lembro que muitos<br />
artistas como Cazuza, Lobão, Capital Inicial e Legião<br />
Urbana começaram a carreira debaixo da lona, inicialmente,<br />
para 50 pessoas e posteriormente para 3000.<br />
Incrível. Assim pode ser descrita a cena do grupo sobre o<br />
palco, cantando o cotidiano poços-caldense para gente<br />
de todo país em um grande festival de rap. “Mesmo sem<br />
qualquer apoio do poder público ou da iniciativa privada<br />
da nossa cidade, estamos aqui hoje, cantando para<br />
vocês e é um orgulho muito grande”, fala Bebeto, que no<br />
palco transforma-se em MB2, ao microfone, lembrando<br />
como tem valor um microfone na mão de um MC. Assim<br />
pode ser notado pelos gritos da plateia e pela agitação.<br />
Deduzo que isso acontece porque todos têm histórias<br />
parecidas e vêm de periferias, que, como diz Mano<br />
Brown, são assim em todo lugar. Canto e danço ao som<br />
de rimas e refrãos que acompanho desde que conheço o<br />
hip-hop e que dizem tanto sobre mim como sobre qualquer<br />
pessoa que acompanha uma cultura popular.<br />
Todos os suburbanos que viajaram conosco estão envolvidos<br />
pela magia que é ver um grupo da nossa própria<br />
quebrada no palco do Circo Voador, entoando para o<br />
Rio de Janeiro o som produzido na periferia de Poços de<br />
Caldas. Paralelo ao show, b.boys dançam em um palco<br />
alternativo, outros grupos cantam e MC’s se confrontam<br />
em batalhas de rimas, lembram os primórdios, resgatam<br />
a ancestralidade afro e levam para todos os presentes o<br />
valor da cultura negra, dos quilombos.<br />
O meu estado é de euforia total. Superemocionada circulo<br />
por todo o espaço e me lembro que a prática oral<br />
de expressão acompanha a evolução da humanidade<br />
e que, naquele momento, estávamos todos vivendo a
418 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
419<br />
nossa história. No centro do Rio de Janeiro, um bairro<br />
boêmio, em um espaço consagrado artisticamente, raps<br />
da nossa realidade, pessoas próximas e o hip-hop puro<br />
transformam as atividades em paz.<br />
“Respeite o próximo, também é nosso, se você pode, eu<br />
também posso”, canto durante o show. Quando abro os<br />
olhos, após ter dançado sozinha e embalada na letra,<br />
me deparo com um garoto na minha frente. Sei que já vi<br />
o rosto dele em algum lugar, mas levo alguns segundos<br />
para me lembrar de onde o conheço.<br />
É ele. Parto para um abraço sincero e carinhoso, que<br />
parece de saudade. Mas, como podemos sentir saudade<br />
de alguém que nunca vimos pessoalmente? Nesse<br />
caso é normal. Trata-se de Bruno Eustáquio, conhecido<br />
como Budog MC. Importantíssimo na minha vida por ter<br />
gravado um texto meu como introdução do CD Demonstrativo<br />
do grupo Elemento.S, é uma grande satisfação<br />
encontrá-lo pessoalmente.<br />
Ganho um CD, com dedicatória, e uma homenagem para<br />
Anita Motta (em memória) no encarte do álbum. Fico<br />
extremamente feliz por saber que ele está distribuindo<br />
as cópias no Hutúz. Ele pede licença e se afasta para distribuir<br />
outras cópias. Afasto-me de choro sozinha. Feliz,<br />
completa, realizada. Neste instante, lembro e canto<br />
mentalmente “tua ausência fazendo silêncio em todo<br />
lugar”, música do Teatro Mágico que, embora não seja<br />
gravada sobre bases de rap, também mistura ritmo e<br />
poesia. Apesar de todo o som rolando, sinto o silêncio da<br />
ausência dela, que poderia estar ali, naquele momento,<br />
somando e curtindo conosco, se emocionando, também,<br />
por ouvir um texto transformado em música.<br />
A “conquista” surgiu naturalmente. Assim que Bruno leu,<br />
em um site, que eu era uma das autoras de um livro sobre<br />
hip-hop, com textos sobre a periferia de Poços de Caldas,<br />
me pediu uma cópia, que, prontamente, lhe enviei<br />
por e-mail. Na época, em 2007, trocávamos e-mails quase<br />
diariamente, quando ele me dizia o que estava achando<br />
do livro e o mais emocionante, comentava que a literatura<br />
e o hip-hop estavam mudando a vida dele para melhor.<br />
Em determinado momento ele me pediu permissão para<br />
usar o texto de abertura do livro, que, posteriormente, foi<br />
usado em uma coletânea de textos de autores periféricos,<br />
para fazer a abertura do CD que ele preparava junto<br />
com o grupo. Permissão dada. Mais de um ano depois<br />
recebo via MSN um arquivo em mp3 com a música, que<br />
marca a introdução do álbum demo do grupo.<br />
Extasiada pela noite de hip-hop, só consigo chorar,<br />
quieta no meu canto, pois uma balada precedida por<br />
uma viagem de quase oito horas, um passeio pelo Rio<br />
de Janeiro histórico e um encontro com a essência da<br />
cultura nascida nas ruas e que faz parte do meu dia a<br />
dia periférico, é inesquecível.<br />
Um tempo depois, que não sei precisar quanto, enxugo<br />
as lágrimas, procuro o Bruno, agradeço de forma decente<br />
e recito, mentalmente, o texto, que foi escrito às pressas,<br />
em uma noite chuvosa do mês de outubro de 2006,<br />
quando precisava de algo como introdução para o livro e o<br />
diagramador precisava terminar aquele trabalho.<br />
Na sequência, me sento na escadaria que dá para o palco<br />
e apenas ouço o show do MV Bill e um trecho do show do<br />
Racionais MC’s, feliz pelo momento, pela conquista e pela<br />
experiência que posso levar para a minha quebrada e trabalhar<br />
lá, reunindo os elementos do hip-hop, que buscam<br />
congregar os perifericamente excluídos de todo país.<br />
Com a gravação da música, mais uma prática oral pode<br />
ser incorporada a oficinas e encontros com jovens.
420 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
421<br />
Resultados. Apresento-a como o resultado de um trabalho<br />
de tantos anos. Viver, conviver, me inspirar, escrever<br />
um texto, publicar, divulgar e posteriormente, vê-lo gravado<br />
como música.<br />
Quer orgulho maior? A quebrada de Poços de Caldas já<br />
tinha chegado em Belo Horizonte e, agora, estava invadindo<br />
o Rio de Janeiro. Com vários CDs demo na bolsa,<br />
Bruno distribuiu todos eles entre pessoas de diversas<br />
partes do Brasil. Mesmo sendo uma cópia demonstrativa<br />
fiquei absurdamente feliz por ver meu trabalho<br />
circulando.<br />
Fiz questão de reportar a gravação da música no jornal<br />
e, como os contatos são tudo na vida... A Kaká Soul, irmã<br />
de hip-hop, de TCC e de ideais, me pediu um texto para<br />
o marido dela, Alemão. Ele estava entrando em estúdio<br />
para gravar o CD Identidade e queria uma introdução. Saiu<br />
o texto abaixo, que entrou para o CD e desta vez circulou<br />
no centro-oeste brasileiro, na cidade de Goiânia (GO).<br />
Favela – Identidade<br />
Lá está ela, que vem, que fica.<br />
Conhecida por seus vários nomes. E pode ser gueto, arrabalde,<br />
subúrbio, periferia ou favela.<br />
das favelas e o colorido do grafite, que vem, de alguma<br />
forma, colorir a vida periférica.<br />
Aí está a identidade dos excluídos, com suas expressões<br />
artísticas marcantes, que refletem as expressões desenvolvidas<br />
a cada dia, atrás da vontade de mudança que<br />
ecoa dos becos e vielas.<br />
A alma do povo que arde nos locais mais pobres, clamando<br />
por socorro, vem do lado negro e inferiorizado,<br />
batendo de frente com uma sociedade que se faz de<br />
morta para esta identidade que movimenta-se em seus<br />
contrastes a cada dia, fazendo vibrar o grito desesperado<br />
que vem dos guetos.<br />
Sonhos embalados com som de tiros e barulho de fome,<br />
roncando no estômago, registram a identidade, sofrida,<br />
da periferia.<br />
Seja onde for, marcada pelo tráfico, pelo medo e pelo<br />
desrespeito. Ritmada por letras de rap refletem a violência,<br />
as drogas e o domínio dos que se julgam mais forte.<br />
Através das misturas controversas, a favela encontrou no<br />
hip-hop um fio de luz que traz a vontade de viver, crescer,<br />
mudar e transformar o gueto num local mais humano, com<br />
uma identidade.<br />
É a cultura das ruas, do povo, surge nos locais mais pobres,<br />
através de rima em um estilo único, misturando formas,<br />
injustiças, cor, desigualdades, paz, dor, amor, guerra,<br />
personagens reais, diversão, miséria e união, assim vem a<br />
identidade da favela, do rap, do hip-hop...<br />
Um caldeirão de misturas e contrastes, que trazem uma<br />
identidade ilustrada por pessoas cercadas pela miséria<br />
combinadas com as batidas do rap, os discos arranhados<br />
dos Djs, os passos quebrados dos dançarinos, nos chãos
Estatística<br />
425<br />
Beatz<br />
Um pouco diferente e organizado por outras pessoas<br />
da cidade, um evento de hip-hop gospel foi organizado<br />
também na Zona Sul da cidade e, conforme uma das<br />
organizadoras detectou, o local foi escolhido por ter<br />
uma presença maior de adeptos e mais necessidade de<br />
formas de diversão.<br />
Assim, o evento acontece em uma noite de sábado, talvez<br />
mais uma noite qualquer, em uma periferia onde<br />
todas as noites são iguais. O que incomoda é o frio do<br />
final do mês de maio. O vento vem gelado, e, para os<br />
jovens se aquecerem e aguentar mais uma noite fora de<br />
casa, só mesmo o álcool em bebidas.<br />
Em um salão já bem gasto pelo tempo de uso, alguns<br />
jovens fecham-se em rodas e praticam o break, enquanto<br />
o MC Chicão, cantor de rap faz a sua rima no palco,<br />
acompanhado pelo DJ Scooby em sua performance. Eles<br />
integram o grupo carioca Manuscritos. Em meio a um<br />
freestyle, eles levam até os jovens as palavras da bíblia,<br />
referindo-se à Deus. Algo novo, e até um pouco estranho,<br />
principalmente para a sociedade que encara o hip-hop<br />
como uma cultura marginal e desvairada, longe de Deus.<br />
No entanto, o evento, chamado Beatz é exclusivamente<br />
de Holy Hip-Hop. Nome que vem do inglês Holy Spirit<br />
— Espírito Santo. Aqui no Brasil atende também por hiphop<br />
gospel e recebe a cada dia mais adeptos, cantando<br />
as dificuldades da classe menos favorecida, dos guetos,<br />
e pregando as palavras bíblicas.<br />
Enquanto os grafiteiros Gal e Eco finalizam a arte que<br />
mostram dois caminhos possíveis de se escolher entre<br />
o crime e o conhecimento, dois jovens aproximam-se do<br />
palco e ajoelham-se perante ele, tiram os bonés e pedem<br />
benção ao Senhor. Sendo, desta forma, abençoados pelo<br />
MC Chicão, que é, também, diácono da igreja que frequenta,<br />
Assembleia de Deus.<br />
Participantes de um evento de hip-hop gospel, os grafiteiros<br />
presentes também são religiosos, e seguem Deus.<br />
Eco já passou por experiências marginais na vida e conta:<br />
“Antes de começar com o grafite eu pichava muros,<br />
naquela época, eu fui até preso e passei altos sufocos.<br />
Hoje já passou tudo, chegou uma época em que tudo aqui<br />
começou a me fazer mal. Estava fazendo grafite de uma<br />
forma errada, marginalizada, então comecei a buscar o<br />
lance da verdade. Foi na época que comecei a ler a bíblia,<br />
comecei a praticar e ter experiências com Deus.”<br />
Gal também tem uma postura parecida e considera:<br />
“Não faço parte do hip-hop, mas acompanho o Manuscritos<br />
porque somos amigos. Além de estar fazendo o<br />
grafite, nosso objetivo é passar uma mensagem do bem.<br />
Não é pregar religião, é, de repente, a questão espiritual<br />
do bem-estar social.”<br />
Quando questionado a respeito do que é exatamente o<br />
hip-hop gospel, MC Chicão afirma: “Deixe-me fazer um<br />
pequeno resumo, o hip-hop é um lance que os negros<br />
dos EUA usaram para poder protestar, reclamar, aquilo<br />
que eles não conseguiam fazer apenas com as palavras.<br />
Eles usavam isso para passar as informações e fazer as<br />
424
426 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
427<br />
pessoas refletirem naquilo que acontecia na realidade<br />
deles. Nós estamos fazendo a mesma coisa. A gente<br />
passa a informação a fim de fazer as pessoas refletirem<br />
naquilo que nós vivemos. O que nós vivemos? Uma<br />
vida diferente, com Cristo (...). A gente usa o hip-hop para<br />
falar do amor de Cristo, para pregar o evangelho, é basicamente<br />
isso.”<br />
Ao mesmo tempo, enquanto os organizadores do evento<br />
vibram por verem jovens convertidos, do lado de fora do<br />
ginásio alguns deles estão bebendo “tubão”, uma famosa<br />
bebida entre os jovens da periferia, resultado da mistura<br />
de pinga com refrigerante. Estes jovens entornam a<br />
bebida, falam muito palavrão misturado às gírias e sequer<br />
param para admirar o grafite que está sendo finalizado.<br />
A festa prossegue, as rachas de break continuam entusiasmando.<br />
Os moradores do bairro achegam-se para<br />
“dar uma olhada” no evento. Do lado de fora do portão<br />
do ginásio os policiais “guardam” a segurança com as<br />
armas de fogo em punho.<br />
O grafite fica pronto, o MC Chicão e o DJ Scooby finalizam<br />
a mensagem, mandando muita paz e fé em Deus.<br />
Assim como o hip-hop convencional, o gospel também<br />
é baseado em protesto e resistência, mas é transmitido<br />
de uma forma diferente, por outros canais, utilizando a<br />
linguagem bíblica, pregando o evangelho.<br />
MC Chicão conta que, antes de se converter, ele era<br />
“do mundo”, como os evangélicos costumam dizer, ele<br />
fumava, bebia e tinha uma vida como a de muitos outros<br />
hip-hoppers. “Pude ouvir a voz de Deus falando comigo<br />
‘o que você tá fazendo aí?’ Então, percebi que podia usar<br />
o dom que Deus me deu para louvar o nome Dele como<br />
forma de agradecimento. Para mim o hip-hop é isso,<br />
expressa minha vida em versos e melodias.”<br />
O público presente no evento começa a sair pelas laterais<br />
do ginásio, e a festa chega ao fim com meia dúzia de pessoas.<br />
Os viajantes, que acompanharam o grupo Manuscritos,<br />
fazem pose em frente ao grafite recém-pintado.<br />
Um dos jovens que se converteu há poucos minutos vem<br />
querendo tirar uma foto, em uma mão ele segura um<br />
cigarro aceso e, na outra, a bíblia. Parece estar bêbado e<br />
sem coerência no que diz, mas promete, com a voz elevada,<br />
que daquele momento em diante, será uma nova pessoa,<br />
seguidora de Deus. O grupo aplaude, e sai contente por ter<br />
conseguido tocar o coração de alguém que estava ali.<br />
Do lado de fora, a festa continua, ainda com muita<br />
bebida, “tubão” e drogas. Os viajantes sobem no ônibus<br />
e deixam o bairro periférico, os vizinhos voltam para suas<br />
casas, e os policias continuam empunhando armas, rondando<br />
toda redondeza.<br />
Aquele sábado frio continua sendo apenas mais um<br />
sábado frio, sempre com rap, mesmo que, desta vez, um<br />
rap convertido, mas a trilha sonora é a mesma, a falta<br />
de sonhos, maior. É, justamente, nesta falta de sonhos<br />
que a Cultura Marginal trabalha. Por meio do hip-hop –<br />
seja gospel ou não – e da literatura, promove a autoestima<br />
destes jovens que para aquecer o corpo e a alma<br />
usam bebidas alcoólicas. O intuito é que eles usem as<br />
letras, os poemas, o conhecimento e a sabedoria para<br />
aquecer os sonhos, em fogueiras que queimem apenas<br />
os desafetos, o preconceito e o comodismo. Que das cinzas<br />
renasça a vontade de mudança, o caminhar rumo à<br />
positividade e forças para realizar desejos.<br />
Desta vontade surge, então, um novo projeto dentro do<br />
Cultura Marginal. Um subprojeto que, talvez, tenha mais<br />
alcance e se destaque até melhor.
428 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
429
430 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
431
Estatística<br />
433<br />
Passa Livros<br />
“Também quero doar livros e fazer o saber circular. Como<br />
eu faço?”, pergunta, surpreso o operador de hidroelétrica<br />
Paulo César Alexandre, ao ser abordado com a pergunta<br />
“Você aceita um livro?”. A cena, pouco comum, foi<br />
protagonizada por muitos rostos anônimos que circulavam<br />
pelo Terminal de Linhas Urbanas em uma manhã<br />
nublada e chuvosa de quarta-feira. O projeto “Passa<br />
livros” é adotado pelo Cultura Marginal e ganha mais<br />
edições e novos colaboradores.<br />
Em vez de oferecer esmolas, oferece livros. Exemplares<br />
de romances, clássicos, históricos, livros-reportagens<br />
e técnicos são distribuídos gratuitamente a quem quis<br />
receber uma história ou informação nova. Na cidade,<br />
a ideia foi colocada em prática pela pedagoga Angela<br />
Caruso, que em uma das manhãs mais frias do mês<br />
de julho de 2009, quando o termômetro localizado em<br />
frente ao prédio da Thermas Antônio Carlos marcava 10<br />
graus, ela se dispôs a carregar uma pilha de livros sobre<br />
temas diversos pela praça Pedro Sanches e foi, lentamente,<br />
abordando várias pessoas e entregando a elas,<br />
gratuitamente, os exemplares que incluíam todo tipo de<br />
estórias e também histórias.<br />
Quando tomei conhecimento do projeto, propus uma<br />
reportagem para o Jornal Mantiqueira e, encantada por<br />
mais esta forma de distribuir o saber, aderi na mesma<br />
hora. Naquele mesmo dia limpei as estantes e ainda saí<br />
pedindo a todos conhecidos os livros que eles poderiam<br />
doar. Aos 47 anos, após ler uma reportagem do jornalista<br />
Rodrigo Ratier, da cidade de São Paulo, sobre um projeto<br />
parecido, Angela sentiu a necessidade de retirar os livros<br />
empoeirados da estante e fazer com que eles pudessem<br />
ser aproveitados por várias pessoas e passados adiante.<br />
“Eu não queria criar uma biblioteca circulante, mas que<br />
as pessoas recebessem o livro e tivessem o prazer e a<br />
responsabilidade de passá-los adiante”, diz.<br />
Por intermédio da revisora de texto do jornal em que trabalho,<br />
Delma Maiochi, consegui muitos outros exemplares<br />
e levei o projeto para além das praças da cidade. O<br />
Terminal de Linhas Urbanas foi um dos pontos escolhidos,<br />
por conta do número de pessoas que circulam diariamente<br />
e, também, por serem pessoas de baixa renda.<br />
Com uma sacola cheia de livros, pela primeira vez que<br />
saí às ruas para distribuí-los, parei no local e para brincar,<br />
comecei a espalhar alguns livros, que na quarta<br />
capa trazem a mensagem:<br />
“Olá, cuide bem deste livro e após desfrutar desta leitura,<br />
ofereça-o a alguém, aqui mesmo onde o recebeu. Não deixe<br />
que esta história fique aprisionada novamente na estante.<br />
Permita que outros possam ter a mesma oportunidade que<br />
você. Faça as histórias circularem pela praça.”<br />
Pelas muretas, bancos e orelhões do Terminal comecei<br />
a deixar alguns livros. Com a experiência das caixinhas<br />
poéticas, resolvi brincar um pouco e observar a reação<br />
das pessoas. O primeiro senhor que avistou o exemplar<br />
sobre o apoio do orelhão, escolhido, propositalmente, por<br />
ser o do meio, entre outros dois, se dirigiu ao da direita,<br />
432
434 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
435<br />
olhando desconfiadamente para o livro, como se, de<br />
repente, ele deixado ali, fosse uma brincadeira ou ameaça.<br />
Na sequência, uma mulher também olhou para o<br />
livro e se dirigiu para o orelhão da esquerda. Então, uma<br />
terceira pessoa olha para o livro e se aproxima. Trata-se<br />
de outro senhor que, finalmente, vê a mensagem colada<br />
na primeira página. Ele segura o exemplar alguns poucos<br />
segundos e o entrega a uma senhora, que rapidamente<br />
entra em um dos ônibus. Já o artesão Eduardo de Lima<br />
Pereira ficou intrigado quando viu o livro em um dos bancos,<br />
folheou, olhou para os lados e então começou a ler<br />
um pouco. “No início eu pensei que se tratava de uma<br />
brincadeira, uma pegadinha e depois gostei da ideia de<br />
ganhar um livro. Vou ler e passar adiante”, comenta.<br />
Ao lado dele, a vendedora Ana Paula Rodrigues já tinha<br />
notado o livro, mas, por vergonha, não pegou. Quando viu<br />
a distribuição, foi até as jovens que estavam distribuindo<br />
e pediu um exemplar. “Vou embora feliz porque ganhei<br />
uma edição. Gostei do projeto, incentiva quem não tem<br />
acesso aos livros”, declara. Já o operador de hidroelétrica<br />
Paulo César Alexandre, ao receber das mãos da<br />
jornalista um livro, perguntou se poderia escolher um<br />
exemplar e prometeu: “Tenho vários livros empoeirados<br />
na estante de casa. Vou doá-los ao projeto e, como você<br />
tem o dom de conversar com as pessoas e entregar os<br />
livros, vou ficar feliz com a ação.”<br />
Enquanto ele escolhia um volume, outras pessoas, entre<br />
elas professoras, mães ou apenas passantes se aglomeram<br />
e, em pouco menos de três minutos, os livros foram<br />
distribuídos. Teve gente que quis mais de um exemplar.<br />
Outros saíram felizes, já lendo as primeiras páginas.<br />
Passar os volumes literários apenas aos moradores da<br />
cidade vai ao encontro da real proposta, que é dar continuidade<br />
ao processo de ler e transmitir o conhecimento<br />
contido naquele livro a outras pessoas e promover, também,<br />
o acesso à leitura, que, ainda hoje, é deficiente no<br />
país, segundo dados da pesquisa Retratos da Literatura<br />
no Brasil, que mostra que entre 95 milhões de pessoas<br />
entrevistas, 45% não são leitores.<br />
A intenção foi expandir o projeto a bairros e comunidades<br />
também carentes, e assim está acontecendo. Quero<br />
mudar o cenário da falta de leitura e integrar os livros<br />
a quem não está nas oficinas e também não tem afinidade/interesse<br />
com o hip-hop. O intuito é levar os livros<br />
a quem não tem acesso, não conhece ou não frequenta<br />
as bibliotecas por medo, vergonha, ignorância e pessoas<br />
que tampouco podem comprar exemplares.<br />
Enquanto arrecado os livros, lembro de Carolina Maria<br />
de Jesus, que viveu a máxima pobreza no Brasil, sendo<br />
obrigada a revirar os livros para comer, mas que nunca<br />
deixou de pegar, junto com os restos de comida, migalhas<br />
de livros e revistas para ler em casa e mesmo sem<br />
dominar a gramática escreveu um relato singular sobre<br />
a favela e fez história no país e fora dele por conta disso.<br />
Penso que, se as donas de casa que são viciadas em<br />
televisão, substituíssem algumas horas do dia pela leitura<br />
poderiam mudar a própria realidade periférica que<br />
as circunda. Penso ainda que ganhar um livro assim,<br />
sem mais nem menos, como um ato de gentileza em um<br />
dia chuvoso, em um horário qualquer, pode transformar<br />
o dia das pessoas apenas pela atitude. Se for atrelada<br />
ao conteúdo e à forma de repassar estas histórias pode<br />
sim ser um incentivo.<br />
Logo na primeira vez distribuí mais de cem exemplares<br />
e continuei arrecadando mais. Quero que as pessoas<br />
façam os livros circularem, tirem a poeira e os ácaros da<br />
estante e coloquem o saber nas praças e comunidades.
436 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
437<br />
Não acho difícil fazer isso. Acho que falta vontade e incentivo,<br />
portanto, a minha parte está sendo feita. E o mais<br />
bacana é o prazer em poder servir, em poder distribuir os<br />
livros, em ver a expressão de surpresa nas crianças.<br />
Em pouco tempo o projeto ganhou as ruas centrais, onde<br />
um grande número de pessoas circula diariamente.<br />
As abordagens se inverteram e durante a distribuição,<br />
sempre que alguém nos pede esmolas, oferecemos um<br />
livro, que raramente são recusados. Os bairros também<br />
já fazem parte do itinerário por onde as histórias circulam<br />
e a intenção é continuar arrecadando cada vez mais<br />
livros e fortalecendo a corrente de conhecimento.<br />
Sempre peço que alguém vá comigo, seja a minha amiga<br />
Juliana, algum artista local para realizar intervenções<br />
urbanas, como entregar o livro a alguém recitando uma<br />
poesia ou pintando poesias com giz na rua e nas praças,<br />
para que sejam apagadas apenas com a chuva. No rosto<br />
de quem recebe as histórias pode se notar a expressão<br />
de surpresa, afinal, por muito tempo, os livros foram<br />
considerados produtos das elites.<br />
Assim, a ideia de que livro na estante só tem vida quando<br />
manuseado e lido por alguém é colocada em prática. O<br />
fato mais marcante foi de uma garotinha, de não mais do<br />
que oito anos, em um dos bairros da região onde moro.<br />
Ao nos ver com os livros nas mãos, começou a nos acompanhar,<br />
discretamente, e, depois de algum tempo, nos<br />
observando enquanto entregávamos os livros aos passantes<br />
e à outras crianças, começou a chorar baixinho,<br />
um pouco distante.<br />
Intrigada, me aproximei e perguntei o que estava acontecendo.<br />
Com vergonha, ela tentou enxugar os olhos<br />
e relutou até começar a falar, que na casa onde a mãe<br />
dela trabalha como doméstica, os dois filhos da patroa<br />
ganham livros toda semana e que ela gostaria muito que<br />
a mãe dela tivesse dinheiro para comprar histórias coloridas<br />
para ela. Na mão, não havia nenhum livro infantil<br />
que eu pudesse dar a ela. Limitei-me a dizer que um dia<br />
ela teria os livros que tanto quer.<br />
Não imagino o que ela pensou em nos ver entregando os<br />
livros à outras pessoas e não à ela, uma vez que tínhamos<br />
uma quantia razoável naquele dia.<br />
Quando eu cheguei em casa, olhei para a minha estante<br />
e vi os meus primeiros livros de história e pensei em<br />
levar para ela, mas como ela queria um colorido, aqueles<br />
desbotados já não serviriam mais. No dia, estava<br />
dura, mas prometi a mim mesma que no pagamento,<br />
passaria na livraria e compraria uma história bacana<br />
para aquela garotinha.<br />
Quando fui procurar, encontrei uma educativa, sobre<br />
medos. Como o preço era acessível, resolvi levar. Na<br />
dúvida sobre como entregar, decidi que a surpresa dela<br />
e o mistério seriam mais interessantes. Embalei o livro<br />
em um plástico transparente e deixei na porta da casa<br />
dela. Posicionei-me do outro lado da rua, onde há uma<br />
pracinha com bancos e passei a ler o meu livro, ansiosa<br />
pela reação dela quando encontrasse a história. Algum<br />
tempo depois, ela saiu acompanhando a mãe. Por um<br />
minuto, pensei que ela não tivesse notado o embrulho,<br />
mas, discretamente, exatamente como quando chorou<br />
por não ter histórias coloridas, ela se abaixou, pegou o<br />
livro e ficou uns bons segundos olhando o presente, até<br />
que se sentou na beira da porta e começou a admirá-lo.<br />
Não tenho como saber o que ela pensou quando encontrou<br />
o livro, nem se ela imagina quem pode ter dado à<br />
ela, mas tenho certeza que consegui fazer mais uma<br />
criança gostar de ler e ter amor pelos livros com este<br />
pequeno presente.
438 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
439
440 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
441
Estatística<br />
443<br />
Palavra cruzada:<br />
literatura e<br />
conhecimento<br />
Conseguir apoio para ações como essas nem sempre<br />
é fácil. Aproveitei os contatos de editoras que tinha<br />
quando trabalhava na livraria e fiz pedidos de doações.<br />
Não importa o tipo dos livros. Importa distribuir o saber.<br />
Até hoje não recebi nenhuma resposta e é impossível<br />
que eu compre os livros para distribuir. Peço a toda e<br />
qualquer pessoa que conheço. Alguns que veem o projeto<br />
se interessam e também doam livros. Uma banca<br />
de troca, implantada na biblioteca central da cidade,<br />
também facilita a troca de livros técnicos por literatura.<br />
Eles disponibilizam os livros repetidos do acervo para<br />
troca, assim, todos ganham. Faço várias por semana.<br />
Nem sempre é fácil encontrar os exemplares ou mesmo<br />
agradar. As crianças são as que ficam mais encantadas<br />
e literatura infanto-juvenil é sempre complicada de<br />
encontrarmos. Infantil, então, é raríssimo. Mas nenhuma<br />
dificuldade é forte o suficiente para me tirar a vontade<br />
de observar a alegria das pessoas que vivem nas periferias<br />
e se sentem “importantes” ao serem lembradas e ao<br />
ganhar algo, sem precisar dar nada em troca.<br />
Em poucos meses, mais de dois mil exemplares já foram<br />
distribuídos pela cidade em vários locais diferentes. Nas<br />
oficinas da Cultura Marginal várias pessoas também<br />
fizeram questão de ajudar, de tentar arrecadar e isso é<br />
fundamental para o sucesso do Passa Livros. Qualquer<br />
ajuda é essencial.<br />
Assim, uma das minhas patroas – Sônia – se dispôs a<br />
nos ajudar e, como recebeu um número grande de palavras<br />
cruzadas de uma editora, para distribuir em um projeto<br />
chamado Mantiqueira na Escola, me disponibilizou<br />
mais de cem volumes.<br />
No ato eu já soube onde entregaria. Meu bairro é, e sempre<br />
foi, muito pobre. Entretanto, em uma das partes,<br />
construída mais recentemente, a população sofre com<br />
as enchentes, com a falta de assistência, com a falta<br />
de asfalto, de iluminação pública decente, de hospital,<br />
de creche e de escolas. Falta tudo, só não falta vontade<br />
para mudança e, pensando na preocupação de todas<br />
as mães, que fazem de tudo para dar o que comer aos<br />
filhos e ainda mantê-los longe das drogas e da criminalidade,<br />
o presidente da Sociedade Amigos de Bairro<br />
(SAB) do local, Élio Ricoy, conseguiu uma sede e, duas<br />
vezes por semana, oferece aulas de capoeira para as<br />
crianças. Ao todo, são 110 que participam das rodas e,<br />
ao som das palmas, ritmadas pelo berimbau, as rodas<br />
com crianças de todas as idades são formadas e já íntimas<br />
do esporte criado no Brasil, elas se dedicam aos<br />
movimentos e imprimem cultura popular no quilombo<br />
moderno da periferia poços-caldense.<br />
Além das crianças, são 110 mães despreocupadas com<br />
o que os filhos podem estar fazendo ou se estão na rua.<br />
No local para fazer uma reportagem – pois continuo<br />
encantada pelos que estão às margens e, mesmo assim,<br />
são marcantes – percebi que gostaria demais de ajudar<br />
e oferecer algo também àquelas crianças que, simpáticas,<br />
sorriam enquanto eu batia fotos e me rodeavam.<br />
442
444 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
445<br />
O sr. Élio está, a maneira dele, promovendo o resgate destas<br />
crianças. Sugeri oficinas do Cultura Marginal a elas,<br />
mas a falta de horários na sede da SAB é um fator que<br />
complica, entretanto, não desisti. Da forma que pude,<br />
separei as palavras cruzadas e, no mesmo dia em que<br />
elas ganharam uniformes doados por uma ONG para praticar<br />
a capoeira, levei as revistinhas.<br />
Mas gostoso mesmo é ver o empenho de outras pessoas,<br />
de quem já passou pelas oficinas, de quem já conheceu o<br />
universo do Cultura Marginal, que já esteve ligado ao hiphop<br />
por meio de algum elemento, enfim, todos que se dispuseram<br />
a ajudar a captar livros, a entregar e a recitar e<br />
fazer poesias e textos.<br />
Extasiadas por ganhar duas coisas em um mesmo dia,<br />
elas correm de um lado para o outro e, eufóricas, perguntam<br />
sobre as palavras cruzadas, pegam, pedem aos<br />
irmãos e mostram aos pais, loucas para começar a fazer.<br />
Mais uma vez, uma garotinha, de não mais que 8 anos,<br />
chama a minha atenção. Ela me pergunta como fazer<br />
as palavras cruzadas e dispara: “Você pode me dar um<br />
gibi?”. Como eu responderia que não? Claro que posso.<br />
“Eu quero um da Turma da Mônica.”<br />
Não disse nada, mas já comecei a fazer as contas do<br />
quanto vou precisar ter e desembolsar para levar gibis a<br />
eles. Perguntei se ela gostava de ler e a resposta foi afirmativa.<br />
Já separei os livros infantis também.<br />
Apesar do Passa Livros ser uma biblioteca itinerante e<br />
circulante com mais impacto do que um simples local<br />
para empréstimos de livro, com as chuvas de verão, já<br />
estava ficando com muitos exemplares doados acumulados,<br />
sem ter para onde levar os livros que já estavam<br />
empoeirando em sacolas e caixas. Por isso, resolvi<br />
doá-los para a sede da SAB do bairro. Não são tantos,<br />
cerca de 50, mas servem para empréstimos sem prazo,<br />
como o Passa Livros, e ficam dispostos em uma mesinha<br />
existente no local. Quem quiser ler passa por lá, pega um<br />
livro, lê e, quando terminar, coloca no mesmo local. Penso<br />
que é a forma mais democrática de disponibilizar os volumes<br />
quando não é possível entregá-los de mão em mão.
446 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
447
Estatística<br />
449<br />
Rap educativo<br />
“Morrem no Brasil muitos inocentes e os médicos não<br />
dão nada por essa gente. Gripe Influenza, precisamos<br />
liquidar, antes que seja tarde demais.” É com esta parte<br />
de uma música ao estilo do rap que o aluno Malcon Martins<br />
Barbosa, 11 anos, divulga um trabalho de conscientização<br />
sobre a gripe Influenza A (H1N1) desenvolvido<br />
pela escola municipal Pedro Afonso Junqueira no bairro<br />
Jardim Kennedy, na Zona Sul da cidade também.<br />
O nome de guerreiro, o garoto já tem e, mesmo com vergonhar<br />
de empunhar o microfone e mandar a rima feita por<br />
ele, veste-se de coragem e vai, ao som do violão tocado<br />
por outro garoto. Todos os presentes ficam surpresos ao<br />
vê-lo cantar um rap e a professora logo explica que tem<br />
trabalhado as letras das músicas em sala de aula porque<br />
são, justamente, ligadas ao estilo de vida que as crianças<br />
levam. “Ele não fala em outra coisa senão no rap, então,<br />
ninguém melhor para representar a música.”<br />
conta que, ao fazer a música, aprendeu que a doença<br />
deve ser liquidada. “Temos que observar as outras pessoas<br />
e também compartilhar o conhecimento”, destaca.<br />
De forma tão positiva a professora conseguiu levar para<br />
a periferia algo da periferia e tratar de um tema tão<br />
importante, que, em 2009, tirou a vida de pelo menos<br />
quatro poços-caldenses. Na visita, perguntei à professora<br />
se dos alunos apenas o Malcon gostava de rap, e<br />
fomos interrompidas por outro professor que disse:<br />
“Não existe não gostar de rap na periferia”. Fiquei feliz<br />
por ouvir isso de um educador e ver que há gente aberta<br />
em admitir que a cidade com o melhor Índice de Desenvolvimento<br />
Humano (IDH) do estado tem crianças que<br />
precisam de alguém que fale a língua delas.<br />
Para apoiar a atitude rara por parte dos educadores,<br />
doei os últimos exemplares do “Suburbano” e me dispus<br />
a praticar oficinas com aquelas turmas, mesmo que<br />
breves e em horário de aulas. Por ser fim de ano, ainda<br />
aguardo uma resposta e sonho em poder acrescentar<br />
mais a vida destas crianças que já, tão cedo, cantam e<br />
fazem o papel de conscientização.<br />
O trabalho faz parte de atividades lúdicas promovidas<br />
pela escola para a conscientização e a disseminação<br />
da informação sobre a gripe suína. A letra de rap<br />
cantada pelo garoto Malcon foi escrita a partir de uma<br />
aula de diversidade textual. Satisfeito por ter cantado<br />
e demonstrado um pouco do talento para a escola, ele<br />
448
450 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
451
Estatística<br />
453<br />
Fronteiras<br />
quebradas<br />
— Eu gosto de escrever, apesar de não gostar de ler. —<br />
diz Danilo.<br />
— Como? É meio esquisito, mas me mande um texto. —<br />
respondo.<br />
— Tenho vergonha.<br />
— Não tenha, enfrente, me mande, é a sua expressão.<br />
Dias depois...<br />
Por mais que um estado esteja separado do outro por<br />
fronteiras geográficas, regionais, culturais, a internet, a<br />
comunicação e o conhecimento provam que elas podem<br />
ser quebradas.<br />
“Pensar, refletir, escrever, sentir e digitar.<br />
Escrevo o que sinto, sinto o que escrevo e depois, é digitar.<br />
Reflito para entrar em uma concordância e aí as palavras<br />
vêm em abundância.”<br />
Este é um trecho de um dos primeiros textos escritos<br />
pelo baiano Danilo Henrique. Aos 21 anos, por um chat<br />
onde nos conhecemos, sacamos logo de cara nossa afinidade<br />
com o hip-hop e a minha paixão pela Bahia, mas<br />
nos estranhamos no que é literatura. Já disparei a contar<br />
do Cultura Marginal e do Passa Livros e ele revelou<br />
que não gostava de ler.<br />
“Não vamos ter assunto”, pensei. E, diariamente, pela<br />
internet ele me perguntava o que eu estava lendo, o que<br />
estava escrevendo, começou a frequentar os blogs, descobriu<br />
que um rapper que ele admira – Gog – era um dos<br />
autores do “Suburbano” e passou a tomar gosto pelo<br />
tema, mesmo que de uma forma lenta.<br />
— Posso enviar o texto?<br />
— Claro!<br />
— Então vou digitar.<br />
— Ok.<br />
Horas depois...<br />
— Aí está meu primeiro texto.<br />
— Tudo bem, vou ler e depois comento.<br />
Um texto sobre a saudade do pai, já falecido, trazia as<br />
expressões dele. Ainda um pouco imaturo no que se refere<br />
à escrita, mas com vontade de melhorar. Na semana<br />
seguinte, a mesma história e um novo texto, falando justamente<br />
sobre o novo do ano novo.<br />
Alguns dias depois:<br />
— Comprei um livro – revela Danilo.<br />
— Como? Por quê? Você nem gosta de ler. — provoco.<br />
— Vou tentar. De tanto te ver lendo, falando e escrevendo<br />
sobre literatura, vou arriscar.<br />
Aplausos internos e singulares. Mesmo há quase dois<br />
mil quilômetros de distância, por meio de um chat e de<br />
uma tela de computador eu tinha conseguido incentivar<br />
a leitura. Batizei a iniciativa, para mim mesma, como<br />
Literatura em Incentivo Amplo (Leia). Foi apenas uma<br />
ideia de usar a internet para isso, mas a longo prazo.<br />
Não fiz nada ainda, mas sei que ele comprou um livro de<br />
autoajuda que leu inteiro.<br />
452
454 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
455<br />
Duas semanas depois, comprou mais dois livros e presenteou<br />
uma tia com um. Não contente, saiu de rolé e foi passear<br />
em uma livraria. Comprou o “Capão Pecado”, do Ferréz,<br />
começou a ler e confessou: estou amando.<br />
Criou um blog, mudou o nome e, agora, atua no projeto<br />
próprio chamado de Literatude. Com posts quase diários,<br />
escreve textos, crônicas e já arriscou um conto.<br />
Melhorou a escrita, o vocabulário e a gramática. Visita<br />
todos os dias blogs de escritores e agitadores culturais<br />
como Sérgio Vaz, Alessandro Buzo, Sacolinha, Michel da<br />
Silva, Gog, Nelson Maca, de Salvador, e comenta sempre<br />
no meu. É seguidor de muitos outros e afirma: não quero<br />
desistir nunca da leitura. Quero trabalhar com hip-hop e<br />
com conhecimento e vou conseguir.<br />
Segue na busca por um emprego desde que se demitiu<br />
de uma unidade do MC Donald’s e pretende ler todos os<br />
livros que conseguir neste ano. E no outro também. Não<br />
quer parar de ler nunca mais. “Vou ter meu próprio sarau<br />
no Farol da Barra.”
Estatística<br />
457<br />
Profissão:<br />
transmissora de<br />
conhecimento<br />
São inúmeros jovens que, ansiosos diante do que está<br />
por vir, se aglomeram entre cadeiras de madeira colocadas<br />
em volta das mesas. É sempre excitante sair da<br />
rotina escolar — professor fala, aluno escuta e anota —<br />
e participar de uma palestra, mesmo que o tema ainda<br />
não tenha sido revelado.<br />
Devagar, alguns abordam o palestrante e perguntam:<br />
“Oi, você que vai falar?”, “Sobre o que será a palestra?”,<br />
e comentam entre si sobre conhecer ou não o assunto<br />
ou o impacto que o tema tem sobre a vida de cada um.<br />
É a primeira vez que acontece uma palestra mesmo.<br />
Antes eram oficinas, coisas simples, informais. Ou eventos.<br />
Tudo era festa. O programa é federal e exige profissionalismo.<br />
Exige novidade. Exige mais: didática para<br />
lidar com adultos. Todos, invariavelmente, têm mais de<br />
18 anos. Falar para crianças e adolescentes é difícil.<br />
Para adultos, ainda mais.<br />
Em alguns minutos, todos estão acomodados aguardando<br />
que a palestra seja iniciada e a observação é<br />
sempre a mesma. Em alguns, o olhar é de curiosidade<br />
total, noutros, um misto de cansaço — afinal, trabalharam<br />
o dia todo — e em outros, de repente, até mesmo<br />
um pouco de desinteresse, não apenas pelo debate que<br />
vai se seguir, mas pela vida.<br />
Todos os alunos têm uma coisa em comum: vivem em<br />
periferias e estão cursando o ensino médio, ou algum<br />
curso profissionalizante, depois de adultos, afinal, o<br />
programa só aceita jovens com mais de 18 anos. Entretanto,<br />
nenhum tem mais de 29 anos, afinal, é a idade<br />
limite do ProJovem, seja Urbano ou Trabalhador.<br />
Diante deste ponto comum, outros vão surgindo. Também<br />
vim da periferia e revelo isso logo no início, quando conto<br />
ter uma história de vida semelhante a de todos. Tenho<br />
também uma idade compatível com a deles — 24 anos.<br />
Na sequência, o hip-hop invade o espaço através de um<br />
telão. Com um logotipo colorido e cheio de desenhos<br />
que lembram a arte urbana do grafite, todos os olhares,<br />
até mesmo os mais desinteressados e cansados, têm<br />
a atenção captada. Devagar, e ainda com um pouco de<br />
receio, conto como surgiu o convite para falar a eles e<br />
revelo ser uma das primeiras experiências em falar para<br />
tanta gente, afinal, são quase 100 estudantes.<br />
Neste momento, os alunos se acomodam melhor e alguns<br />
até comentam entre si já terem me visto ou me conhecerem<br />
e ouço alguns falando: “É a Jéssica <strong>Balbino</strong>.” Feitas<br />
as apresentações, um pouco do hip-hop é explicado,<br />
através de slides e imagens comuns ao dia a dia<br />
dos estudantes. Logo na contextualização, um grafite<br />
é exibido e todos o reconhecem, por ter sido feito no<br />
muro de uma escola da região onde estudam ou moram,<br />
na Zona Sul da cidade, considerada a mais periférica e<br />
carente do município.<br />
Diante do reconhecimento, mesmo aqueles alunos que<br />
não tinham tido contato anterior com a cultura das<br />
ruas é remetido a algo cotidiano e, então, a afinidade<br />
acontece. Mesmo tímidos, alguns levantam a mão e<br />
fazem algumas perguntas e diante da minha narração,<br />
456
458 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
459<br />
também nascida no local e habitante da Zona Sul,<br />
palavras empregadas por mim também fazem parte do<br />
vocabulário que todos utilizam.<br />
Com todos ambientalizados, uma pergunta é jogada no<br />
ar: “De que forma as culturas populares podem beneficiar<br />
quem vive nas comunidades?” e a interrogação é<br />
visível na fisionomia de todos os alunos. Acostumados<br />
a se sentirem inferiores, ninguém encontra a resposta<br />
rapidamente e, conforme coloca o professor de comunicação<br />
de uma turma, Guilherme Dore, por serem pobres<br />
e viverem em periferias, todos têm mania de se autodesprezar.<br />
“Eles não acreditam neles mesmos, não têm<br />
confiança no próprio potencial. Muitos não se acham<br />
capazes. Quando o programa começou, a maioria tinha<br />
vergonha de falar o próprio nome”, conta.<br />
Entretanto, ele coloca, também, que, diante de uma<br />
pessoa que tem a mesma linguagem dos estudantes, as<br />
informações fluem com mais facilidade. “É bom porque<br />
você é do bairro deles e eles gostam de se reconhecerem<br />
assim. Serviu para provar a eles que construir as coisas<br />
na vida só depende deles”, enfatiza.<br />
Dando sentido às observações do professor, eu, que<br />
também sou jornalista e escritora, continuo, mostrando<br />
aos alunos que, mesmo diante destas posições, permaneço<br />
morando na periferia, andando de ônibus e a pé<br />
todos os dias para chegar ao trabalho, comendo de marmita<br />
e ganhando pouco, mas, nem por isso, desisto de<br />
sonhar, escrever e batalhar em causas sociais, como a<br />
transformação por meio das culturas sociais e principalmente<br />
do hip-hop.<br />
Conto como tento me beneficiar por meio da cultura<br />
marginal e como palestras deste tipo me fazem bem,<br />
tanto por poder compartilhar conhecimento como para<br />
manter viva a cultura hip-hop e na sequência, desmistifico,<br />
esclarecendo que ela não tem nada a ver com a<br />
bandidagem e que o Afrika Bambaataa, quando resolveu<br />
criar o movimento, o fez na esperança que ele gerasse<br />
“paz, amor, diversão e união”.<br />
Diante desta informação, mais da metade dos alunos se<br />
sensibiliza e consigo ver, mesmo incutido na face deles,<br />
as expressões de “ooohhh”, se questionando, então, o<br />
porquê da cultura hip-hop, ser, até então, vista como<br />
algo ruim. Entretanto, consigo perceber também que<br />
muitos não acreditam no que digo e têm até uma certa<br />
resistência, mas faz parte de qualquer informação nova.<br />
Conto, também, que o hip-hop não é música estrangeira,<br />
como a maioria acredita e sim, movimento e cultura.<br />
Esclareço que o rap é que é o som ouvido e cantado dentro<br />
da cultura, exaltando os problemas sociais e as histórias<br />
de cada um pelas batidas ritmadas e entrecortadas<br />
pelos DJs, um dos outros elementos da cultura.<br />
Alguns ficam entusiasmados com as informações, principalmente<br />
sobre os parâmetros iniciais do hip-hop, que<br />
são mostrados diferentes daquilo que sempre acreditaram<br />
que fossem. Ouço alguns comentários entre eles, se<br />
perguntando como podem, de repente, conhecer mais<br />
sobre isso e já me adianto, contando que posso mandar<br />
o texto do meu primeiro livro “Hip-Hop – A Cultura Marginal”<br />
por e-mail e percebo vários interessados.<br />
Na sequência, sempre que conto alguma coisa sobre o<br />
hip-hop, a história e a cultura popular, tento manter a proximidade<br />
da realidade e sempre citar algum fato acontecido<br />
comigo. Procuro lembrar que, durante as pesquisas<br />
para fazer o livro, praticamente abdiquei da minha vida<br />
em nome da causa e cito minha rotina, que era levantar às<br />
7h, ir para o trabalho, fazer algumas coisas relacionadas,
460 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
461<br />
almoçar correndo, aula de inglês durante o horário de<br />
almoço, voltar para o trabalho, escrever a mão porque<br />
não tinha mais energia onde eu trabalhava — em razão<br />
da falência do local —, sair correndo, pegar a van, viajar<br />
40 quilômetros, assistir aula, voltar para Poços, pegar<br />
um ônibus no centro da cidade e ainda andar um quilômetro<br />
para chegar em casa. Aí sim, ler o que faltava e<br />
escrever algumas coisas do livro, para compor o trabalho<br />
apresentado a eles.<br />
Noto que eles se sentem próximos da vivência, até porque<br />
90% trabalha durante o dia, mal almoça, também<br />
anda longas distâncias e, enfim, podem estudar e veem<br />
no programa a chance de um diploma do Ensino Fundamental,<br />
além de uma melhor oportunidade de trabalho.<br />
Sei que muitos estão ali unicamente para isso, enquanto<br />
outros querem aproveitar cada minuto e reverter o<br />
tempo perdido, tentando aprender sobre tudo em apenas<br />
dezoito meses, que é o tempo total do curso.<br />
Nesse misto, eles se perdem, entretidos nas imagens do<br />
datashow e no mundo do hip-hop e alguns, menos tímidos,<br />
iniciam algumas perguntas. Querem saber o porquê<br />
de eu me interessar por hip-hop e dão risada quando<br />
digo que eu nunca soube cantar, dançar, grafitar e que<br />
nem me arrisquei a arranhar os discos, por isso me<br />
dedico ao 5° elemento, que é o conhecimento.<br />
Neste ponto, ingresso no assunto da literatura periférica<br />
e da ascensão que ela tem no cenário nacional,<br />
principalmente nos grandes centros e capitais e noto<br />
olhos mais brilhantes quando conto experiências pessoais<br />
ligadas ao assunto, como o garoto de 21 anos que<br />
vive em Salvador e que conheci, por acaso, pela internet.<br />
Ele tem o mesmo problema dos alunos. A mania de se<br />
achar inferior por ser pobre e morador da periferia. Relatei<br />
que, em minhas conversas com ele, sempre via MSN,<br />
consegui despertar o interesse dele pela escrita.<br />
Quando começamos a conversar, ele me contou, com<br />
todo receio do mundo, que gostava de escrever e que,<br />
de repente, escreveria um texto para me mandar. Levou<br />
quase duas semanas para que eu recebesse um texto<br />
pequeno, simples, mas que, mesmo com erros gramaticais,<br />
tão comuns na literatura marginal, conseguiu<br />
expressar tudo aquilo que ele sentia no momento: saudades<br />
do pai que já se fora.<br />
Ainda me refazendo da emoção de ler um texto dele, que<br />
nunca tinha deixado ninguém ver os textos, ele me contou<br />
que tinha saído e comprado um livro, hábito que, até<br />
então, ele desprezava e que já estava lendo. Emocionada,<br />
contei esta história aos alunos e acredito que, por toda<br />
simplicidade dela, consegui sensibilizá-los também. Fui<br />
interrompida pela professora, que me contou que alguns<br />
já gostam de escrever e que de repente, histórias como<br />
estas são um incentivo para que eles comecem a produzir<br />
os próprios textos. Neste momento, outros me perguntam<br />
como editar um livro e quais as dicas para escrever<br />
melhor. Sugiro que sempre leiam, cada vez mais.<br />
Falo, ainda, dos livros produzidos nas periferias e<br />
dos assuntos abordados, que sempre são do interesse<br />
deles e têm temas relevantes aos jovens da periferia,<br />
com crônicas cotidianas. Cito, ainda, algo que li há tempos<br />
em blogs pela internet, dizendo que os novos livros<br />
são os raps escritos e encadernados. Acho esta analogia<br />
bacana e compartilho. Alguns alunos, que antes da palestra<br />
estavam ouvindo rap, se mexem ansiosos na cadeira,<br />
talvez pensando em transformar os rascunhos em livros.<br />
Conto, ainda, que existe no Brasil uma Casa do Hip-Hop,<br />
em defesa das produções literárias e acadêmicas sobre o<br />
tema e também uma organização universal Zulu Nation,<br />
que cuida do hip-hop em todo o mundo, preservando para<br />
que a cultura seja disseminada de forma correta.
462 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
463
464 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
465<br />
Divido com estes alunos histórias de escritores brasileiros<br />
de que eles nunca ouviram falar, mas que, ao contrário<br />
dos clássicos, despertam um interesse maior para<br />
que eles leiam, visto que trazem uma linguagem comum,<br />
que eles podem acompanhar e histórias que eles se<br />
identificam, como a de “Graduado em Marginalidade”,<br />
do Sacolinha, os textos reunidos de Ferréz, e, ainda,<br />
“Noite Adentro”, de Robson Canto, entre tantas outras<br />
coletâneas dos autores que despontam no cenário literário<br />
nacional e estão ganhando mais público a cada dia.<br />
Neste espaço, comento, também, a necessidade de<br />
conhecer mais sobre a própria cultura, os antepassados<br />
e a história das coisas. Lembro aos alunos que isso deve<br />
acontecer não apenas com o hip-hop, mas com qualquer<br />
que seja a cultura popular produzida na periferia, que<br />
tem sempre uma história riquíssima, que merece ser<br />
conhecida e divulgada. Percebo que todos ficam atentos<br />
a isso, com exceção daqueles que já foram vencidos<br />
pelo cansaço e que, nesta hora, se apoiam sobre livros<br />
e mesas para cochilar enquanto falo. A postura não me<br />
incomoda, afinal, já fui estudante e, muitas vezes, extremamente<br />
cansada, cochilei durante aulas, debates,<br />
palestras. Não há como recriminar.<br />
Dentro disso, procuro sempre atrelar a minha experiência<br />
e fazer com que todos conheçam um pouco mais<br />
sobre a minha vida e trajetória, então, separo um slide<br />
com uma foto minha, do Nino Brown na casa do hip-hop e<br />
de Anita Motta, a jornalista que escreveu o “Hip-Hop – A<br />
Cultura Marginal” comigo. Até os mais desatentos param<br />
e prestam atenção. Conto que ela nunca foi da periferia<br />
e que o primeiro contato com o hip-hop foi durante<br />
o processo de execução do livro e que, infelizmente, no<br />
caso dela, a cultura não representou uma salvação como<br />
ouvimos em todas as entrevistas.<br />
No Carnaval de 2007, quinze dias após nossa colação<br />
de grau, ela morreu de parada cardíaca após inalar gás<br />
propano butano que vem naquelas buzinas a gás. Fez<br />
isso para ter “barato” como os provados pelo lança perfume<br />
e, de uma vez, faleceu, abandonando os sonhos,<br />
o legado do livro e muitas lembranças incompletas de<br />
quem poderia caminhar ao meu lado e estar, naquele<br />
momento, palestrando. A este ponto, me encaminho<br />
para o fim da palestra, deixando aberto o espaço para<br />
as perguntas e concluindo como uma cultura popular<br />
mudou a minha vida, a das pessoas à minha volta e que,<br />
mesmo sem recursos, consigo praticar ações beneficentes,<br />
como o projeto Passa Livros e, também, oficinas<br />
sobre hip-hop com crianças carentes.<br />
Novamente, olhares mais atentos e curiosos, querendo<br />
saber como é meu trabalho social. Uma breve explicação,<br />
um slide com frases de pessoas de vários locais do<br />
país e de várias atividades contextualizando o hip-hop e<br />
o quão bom ele é para este ou aquele indivíduo e ainda<br />
para esta ou aquela coletividade.<br />
Pronto. Gosto de encerrar exibindo no telão a mesma<br />
imagem com que comecei. Talvez seja pelas cores, talvez<br />
porque foi um MC famoso – na comunidade e Brasil<br />
afora – que fez, com todo carinho, para o meu trabalho<br />
ou, talvez, porque represente o hip-hop tal como<br />
ele é, uma mescla de elementos que propõe somente<br />
coisas positivas. Tentando trabalhar neste positivismo,<br />
encerro e aguardo as perguntas, que são poucas e tímidas.<br />
Entendo o receio que todos têm de falar alto, levantar<br />
a mão e se dirigir a um palestrante. O medo de serem<br />
ridicularizados supera o medo de permanecerem ignorantes<br />
em alguma questão.
466 <strong>Traficando</strong> conhecimento<br />
Começo a juntar minhas coisas e devagar, um, dois, três.<br />
Uma fila de estudantes é formada a minha volta e todos<br />
querem trocar e-mails, contatos e me pedem meus dados<br />
como blog, e-mail e telefone. Por questões financeiras,<br />
não possuo cartão de visita. Distribuo, então, folhas com<br />
meu nome e telefone. Todas extraídas de um bloquinho<br />
comum aos jornalistas. Menos tímidos por estarem em<br />
um grupo menor, eles me enchem de questões e comentam<br />
o que falei na palestra. Alguns elogiam bastante.<br />
Outros, tomam o rumo e partem em busca do lanche, distribuído<br />
pelo programa, gratuitamente aos estudantes.<br />
Tento responder a todas as questões e dar atenção a<br />
cada um. Um aluno, com roupas típicas aos adeptos da<br />
cultura, se aproxima com um celular na mão. Nele toca<br />
uma música do grupo Racionais MC’s, talvez o mais<br />
popular da década de 1990, que popularizou o rap sem<br />
se aliar à indústria e a grande mídia.<br />
Alguns conhecidos de quebrada, eventos e também do<br />
ônibus comentam comigo que já me conhecem e fazem<br />
referências às fotos de pessoas conhecidas, também<br />
exibidas nos slides enquanto eu falava. Despeço-me<br />
com um único sentimento: paz. Consegui, apesar de<br />
todas as adversidades, realizar uma palestra e o mais<br />
bacana foi deixar a escola sabendo que eles estavam<br />
comentando, cada um na sua roda, que querem ler mais<br />
sobre literatura periférica.
Estatística<br />
469<br />
Palestrando: parte II<br />
Entre mamadeiras, fraldas e choro de crianças. Assim<br />
foi a minha segunda experiência com as palestras sobre<br />
hip-hop.<br />
Segunda-feira, 20h. A chuva não para e já cai água sobre<br />
a cidade há dois dias seguidos e ininterruptos. Mesmo<br />
assim, cerca de 90% dos alunos que cursam Comunicação<br />
Social e Marketing vão à aula. A presença garante<br />
a bolsa de R$ 100 que eles recebem mensalmente por<br />
fazerem parte do programa federal, o ProJovem Urbano.<br />
Entre esses estudantes estão duas mães, que, pela<br />
fisionomia, não têm mais de 20 anos e ambas carregam<br />
no colo seus bebês, que, por problemas pessoais, não<br />
tem com quem deixar.<br />
Há cinco meses, Giovana frequenta as aulas ao lado da<br />
mãe e já cativou todos os demais colegas de classe e,<br />
até mesmo, os professores. Muitos chegam para brincar<br />
com a criança, ajudam a segurar, levam e buscam<br />
mamadeira e, até, trocam fraldas. Da mesma forma,<br />
Antonela, de apenas 6 meses acompanha a mãe há um<br />
mês. Tâmara, mãe do bebê, conta que teve de optar por<br />
isso porque quem cuidava da criança – a avó – passou<br />
por uma cirurgia e não podia mais cuidar.<br />
Morrendo de fome, pergunto se posso pegar um pão com<br />
mortadela e um guaraná, distribuídos aos alunos pelo<br />
curso. Posso. Enquanto como, observo as mães, que,<br />
embalando os bebês, tentam não perder nada da palestra<br />
que inicio, descontraidamente, por terem pouco mais<br />
de 10 pessoas na classe.<br />
Entre um choro e outro das crianças, noto que alguns<br />
alunos se incomodam por terem a atenção desviada,<br />
mas, como sou apaixonada por crianças, vejo logo que<br />
para elas, não é fácil ficar até depois das 22h acordadas,<br />
em um ambiente que não é a casa delas e, principalmente,<br />
em um dia frio e chuvoso como aquela segundafeira.<br />
As mães embalam os bebês e tentam acompanhar<br />
as aulas, mantendo a presença para garantir a<br />
bolsa mensal de R$ 100, oferecida pelo programa.<br />
Conforme explica Andreza, os alunos não podem ter<br />
mais de duas faltas por mês e, caso isso aconteça, a<br />
bolsa é cancelada. “Não é só por isso que frequento as<br />
aulas, mas porque o curso é superimportante para mim.<br />
Muitas pessoas me aconselharam a desistir por conta<br />
da Giovana, dizendo para eu fazer quando ela crescesse,<br />
mas era uma oportunidade única que eu não poderia deixar<br />
passar”, conta. As histórias são muitas. Os exemplos<br />
também. Andreza revela que conta nos dedos os dias<br />
em que a filha deixou de acompanhá-la, logo no início do<br />
curso e ficou com o pai. “Por algumas vezes, pedi que ele<br />
a olhasse para que eu fosse para a escola, mas, como<br />
ele é usuário de drogas, nossa relação acabou no dia que<br />
eu voltei para casa e ele tinha ido embora e levado várias<br />
coisas da casa. Não tive mais notícias e, desde então, a<br />
Giovana me acompanha”, relata. Já no caso de Tâmara, a<br />
falta de creche onde deixar o bebê e de alguém que possa<br />
olhar tem sido uma espécie de empecilho. “Eu arrumei<br />
um serviço e não pude assumir. Só em fevereiro que ela<br />
468
470 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
471<br />
vai poder entrar na creche”, conta. Questionada sobre a<br />
maior dificuldade, ela diz que é a distância que percorre,<br />
diariamente, para estudar. Somente de ônibus ela percorre<br />
cerca de 10 quilômetros e ainda anda do terminal<br />
de linhas urbanas até o colégio municipal – aproximadamente<br />
1000 metros – a pé, com o bebê no colo. “É ruim<br />
porque tenho que sair com ela na chuva, no frio, andar<br />
a pé, carregar as coisas dela e as minhas, mas, mesmo<br />
assim, compensa, porque estou estudando.” E assim ela<br />
segue, enquanto tenta anotar o que o professor fala e<br />
ao mesmo tempo amamentar a Antonela no seio. O professor<br />
Guilherme Dore comenta que, inicialmente, não<br />
soube como reagir a situação, entretanto, compreendeu<br />
que aceitar as crianças na sala, após analisar caso a<br />
caso, foi a única maneira de fazer com que as mães não<br />
abandonassem o curso. “Para mim isso é o mais importante”,<br />
diz. Desafio. Assim pode ser definido o fato de<br />
participar de uma sala de aula onde os bebês também<br />
se tornam alunos e carinhas vistas diariamente no local.<br />
É difícil, tanto para as mães, como para as crianças e<br />
para os educadores, que veem na realidade algo que, de<br />
repente, possa comprometer o rendimento. Já os bebês,<br />
por serem fofos, por chorarem fora de hora e por caberem<br />
no colo e precisarem de tanta proteção materna,<br />
dividem a atenção das mães e dos alunos, mas, para o<br />
professor, isto é algo que pode ser superado por meio da<br />
criação de formas para deixar as aulas mais atrativas.<br />
Como o professor coloca, a única coisa que ele não<br />
tolera são pessoas acomodadas e, de repente, a história<br />
das mães se torna um exemplo de vida. “Compreendemos<br />
a situação e fazemos de tudo para que elas consigam<br />
acompanhar o restante da sala e, no futuro, estejam<br />
bem inseridas no mercado de trabalho”, ressalta.<br />
As alunas-mães comentam que percebem muitas vezes<br />
que o professor perde a paciência, mas elas entendem.<br />
“Em alguns momentos, os bebês choram, se mexem, gritam,<br />
querem andar e isso pode desviar a atenção, então<br />
prefiro sair da sala e voltar depois”, revela Andreza.<br />
Por outro lado, levar os bebês para a aula tem algo de<br />
positivo. O carinho que elas recebem de outros alunos.<br />
“A Giovana ganhou muitas fraldas e roupinhas e a<br />
empresa do ProJovem nos dá toda a assistência. Como<br />
eu tive problemas em casa com o pai dela, fui encaminhada<br />
para o Centro de Referência em Assistência<br />
Social (Creas) e estudar não apenas me qualificou como<br />
mudou minha vida pessoal. Fiquei com a autoestima elevada<br />
e tomei rumo. Foi a melhor coisa dos últimos anos.<br />
Foi tudo”, acrescenta. E, assim, segue a rotina destas<br />
mães até o próximo dia 22, quando as aulas do curso de<br />
Comunicação Social e Marketing são encerradas e elas<br />
recebem o diploma de conclusão e partem para o mercado<br />
de trabalho. Sempre acompanhadas pelos bebês,<br />
carregando-os no colo, assim como carregam os sonhos<br />
de conquista profissional.<br />
A palestra segue e a participação dos alunos é de 100%,<br />
transformando o momento em um bate-papo, como eu<br />
havia previsto e desejado inicialmente. A cada tema,<br />
manifestações e perguntas surgem, principalmente por<br />
dois estudantes, que conforme o professor me descreveu<br />
anteriormente, gostam muito de escrever e têm pretensões<br />
de criar livros.<br />
O mais bacana é observar as reações do professor que,<br />
por coincidência, foi o diagramador do meu livro para a<br />
faculdade. Éramos amigos antes, quando viajávamos<br />
juntos os 40 quilômetros diários para ir e vir da faculdade,<br />
enfrentando as mesmas dificuldades, já citadas.<br />
No meio da explanação de um assunto sobre o que podemos<br />
mudar em nossa comunidade, ele me interrompe<br />
para dizer, de forma alegre e descontraída, que não aceita
472 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
473
Estatística<br />
475<br />
gente acomodada e que se espelha em nossas histórias<br />
— pobres, fizemos faculdade com muito sacrifício e,<br />
mesmo assim, continuamos lutando. “Não aceito quem<br />
não se interessa por nada. Não importa o que a pessoa<br />
faça, seja faculdade, um curso de informática, de javanês,<br />
sei lá, desde que não fiquem parados”, dispara e,<br />
assim, arranca sorrisos de toda a sala, inclusive dos meus<br />
pais que me acompanham no momento.<br />
Como um dos exemplos de superação, além de citar os<br />
episódios da minha vida ligados ao hip-hop, pontuo o<br />
desafio das mães em assistir aulas com os bebês no colo<br />
e as mamadeiras ao redor. Como nenhuma experiência<br />
é igual, este bate-papo foi inusitado. A cada imagem<br />
mostrada no slide uma reação diferente e intensa podia<br />
ser observada nos estudantes. Uma garota afirmou<br />
já ter praticado dança de rua. Outro garoto quis saber<br />
a diferença entre hip-hop e rap e recebeu a explicação<br />
– detalhada – de como funciona toda a cultura. Mas o<br />
mais empolgante é que todos, sem exceção, até os que<br />
demonstravam mais cansaço nos olhos e no corpo, ficaram<br />
bastante atentos quando falei da literatura e inúmeras<br />
dúvidas surgiram.<br />
Como editar um livro? Qual a melhor forma de organizar<br />
as ideias e escrever? Quanto tempo levei para produzir<br />
o meu? Como escolhi o tema? Entre tantas outras<br />
questões, tentei responder com a maior relevância e<br />
prosseguimos. Pausa para o espanto de todos quando<br />
comentei sobre Anita Motta. Mais perguntas e uma saudade<br />
imensa dentro do peito. Adoraria que ela estivesse<br />
lá comigo, dividindo o trabalho, o momento, as lições de<br />
vida e a leveza de alma.<br />
Finalizo com a parte em que discorro sobre hip-hop,<br />
minha vida periférica, meus trabalhos com o projeto<br />
Passa Livros e com o incentivo à literatura. A pedido do
476 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
477<br />
professor, preparei, também, um pequeno material sobre<br />
jornalismo. Ao término do assunto hip-hop, poderia falar<br />
sobre a profissão. Como o eixo do curso é Comunicação<br />
Social e a área de formação dele é Publicidade e Propaganda,<br />
me pediu uma passada rápida sobre jornalismo –<br />
como pautar, como desenvolver um tema e dicas de texto.<br />
Surpreendi-me com o interesse dos alunos e, também,<br />
comigo mesma. Tenho pouco tempo de formação e como<br />
o jornalismo é uma profissão muito ampla, fiquei com<br />
medo de não conseguir responder todos os questionamentos.<br />
Graças a Deus, tudo que foi perguntado eu<br />
sabia como elucidar e foi muito bacana observar a curiosidade<br />
deles pela profissão, especialmente pelo jornalismo<br />
impresso, já tão condenado por alguns teóricos.<br />
feliz da vida, acompanhada pelos meus pais e pelo meu<br />
amigo Luciano Santos – que fez as fotos da ocasião —,<br />
caminhei com os passos leves e a alma sem tocar o chão,<br />
satisfeita porque fiz a minha parte: contextualizei minha<br />
vida e sonhei com as mãos, colocando em prática o que<br />
é o hip-hop, em poucas e intensas horas permeadas de<br />
“paz, amor, diversão e união”.<br />
Todos demonstraram interesse em como saber mais<br />
sobre o ofício e o que me chamou mais atenção e valeu<br />
pela palestra foi o entusiasmo de uma garota, a mesma<br />
que já participou de um grupo de dança e reconheceu<br />
boa parte das pessoas nas fotos dos slides. Anotando<br />
tudo que eu falava e fazendo inúmeros questionamentos,<br />
ela me perguntou como poderia fazer um estágio<br />
não remunerado no jornal, sem receber nada, apenas<br />
para acompanhar de perto o nosso trabalho.<br />
Outro garoto, participativo, comentou que fizeram uma<br />
visita ao jornal, mas que não viram a redação e quer<br />
conhecer, visitar, saber também como é de perto. Ambos<br />
escrevem textos para a escola e publicam em um blog<br />
criado especialmente para divulgá-los. Ambos querem<br />
se tornar escritores. Ambos me pediram dicas de livros e<br />
prometeram me escrever.<br />
Encerrei a palestra e apenas uma experiência se repetiu.<br />
Vários deles me cercaram e pediram e-mail, deixaram<br />
e-mail, querem o livro, querem vídeos, dicas e trocas<br />
de ideias. Ainda com uma chuva forte, saí da sala,
Estatística<br />
479<br />
Repercussom<br />
A repercussão do som no ar, para toda a cidade, por meio<br />
de uma rádio comunitária montada em um quartinho, nos<br />
fundos de uma casa, no alto de um morro, na Zona Leste!<br />
Assim, todas as tardes de sábado, das 18h às 21h, o rapper<br />
Leopac e o DJ Mancha se reúnem para apresentar um programa<br />
cheio de informação, música black e hip-hop.<br />
promovida pelos projetos. Ao meu lado, Suburbano também<br />
comenta sobre a influência do hip-hop e da literatura<br />
na vida dele e um pouco das nossas desventuras. À<br />
vontade e entre amigos, para falar sobre tudo que sempre<br />
tivemos vontade, consumimos, facilmente, as três<br />
horas de programa.<br />
Mais uma vez tive a oportunidade de usar uma rádio, em<br />
um horário em que todos estão conectados com a informação,<br />
falar um tanto sobre o projeto Cultura Marginal e<br />
conseguir agregar mais pessoas, que é o objetivo. Também<br />
me ocorreu algo que pensei na tarde de encontro<br />
com o escritor: me encontrei comigo mesma e com a<br />
minha essência.<br />
Existente há apenas quatro meses, o programa é sucesso<br />
entre as periferias e enquanto se arrumam para sair,<br />
muitos adeptos da cultura se deliciam com os ritmos de<br />
Gerson King Combo, Tim Maia e Seu Jorge. Em pequenos<br />
quadros com músicas antigas, rap e raps românticos, DJ<br />
Mancha tenta resgatar as origens dos bailes black e leva<br />
muita informação.<br />
Com toda a precariedade do local – faltam cadeiras,<br />
estrutura, microfone e espaço – os jovens levam pequenos<br />
potes com comida e fazem uma vaquinha para comprar<br />
refrigerante. Correm por ruas tortuosas, sobem e<br />
descem morros, vão e voltam até encontrarem as músicas<br />
certas para aquele programa.<br />
Sou convidada para falar um pouco da minha trajetória<br />
– que foi feita em grande parte com Leopac, desde<br />
os primórdios, os eventos antigos e a época do TCC – e<br />
explicar a influência da literatura marginal, da cultura<br />
478
Estatística<br />
483<br />
Querem nosso<br />
sangue<br />
Para dar sequência, rolou, também, a 2ª edição do Hip-Hop<br />
em Foco. Como a primeira edição do evento foi um verdadeiro<br />
sucesso, o pessoal do grupo de dança Concepção<br />
Urbana resolveu investir em uma segunda e, dentro da<br />
programação do Viva Urca, apresentou quatro grupos de<br />
rap e quatro grupos de dança, em apresentações marcantes,<br />
em uma noite completa de periferia, música, dança<br />
gospel e hip-hop. O destaque, desta vez, ficou por minha<br />
conta, que fui, novamente, a mestre de cerimônias e pude<br />
mostrar, novamente em forma de palestra, um pouco do<br />
que é a Cultura Marginal, discorrer sobre a literatura e<br />
ainda apresentar e anunciar os grupos.<br />
livros, textos, aprender dançar, curtir, tirar fotos. Enfim,<br />
deu tudo certo. Não poderia ser diferente. Organizamos<br />
com amor. Todos que estavam ali não ganharam um único<br />
centavo. E, por isso, foi sensacional.<br />
Para contrastar, naquela mesma noite, tivemos um contratempo<br />
com um dos organizadores de eventos que chegou<br />
na cidade há alguns anos e pensou que seria fácil<br />
enganar o povo do hip-hop. Cheio de marra e pisando<br />
no vazio, ele inventou um curso furado, uma agência de<br />
modelos falsa, e um evento que, realmente, não poderia<br />
dar em nada. Ele não entendia nada de hip-hop, de cultura<br />
marginal, de cultura negra. Levaram muitos dos nossos<br />
parceiros no bico. Pediu serviços e não pagou. Prometeu<br />
cachê e não cumpriu. Cancelou o evento bem antes de ele<br />
acontecer e, o melhor, assistiu e foi obrigado a aplaudir<br />
de pé o nosso sucesso, a nossa vitória com o Hip-Hop em<br />
Foco. Como não chutamos cachorro morto, ele segue com<br />
a vidinha dele. Não trabalhamos mais de graça nem para<br />
patrão. Nosso objetivo é quebrar as amarras, jogar fora a<br />
opressão. Acuar nas cordas do destino os que tentam se<br />
aproveitar do hip-hop, mesmo assim desistimos de registrar<br />
B.O. por estelionato e continuamos praticando a paz.<br />
No mesmo palco, por quase três horas, falamos, cantamos,<br />
dançamos e arranhamos discos para quase 100<br />
pessoas. Público nem tão grande, mas bastante participativo.<br />
Realizada, foi assim que me senti quando todos<br />
os envolvidos neste evento, que também já se tornou um<br />
projeto, subiram ao palco e puderam cantar e dançar<br />
juntos, gritando no final:<br />
Hip-hop! Hip-hop!<br />
Vibrante!<br />
Nosso novo quilombo. Em cima do palco do Teatro Municipal<br />
da cidade, onde todo e qualquer artista que se apresenta<br />
aqui também sobe. Foi maravilhoso. Todos queriam<br />
482
Estatística<br />
487<br />
Em dia com a leitura<br />
É bom demais fazer aquilo que gostamos. No meu caso,<br />
comunicar é quase uma bênção. Por ser tão apaixonada<br />
pelo ofício, fui convidada pelo SESC para participar do<br />
evento SESC em Dia com a Leitura, por meio do Encontro<br />
com o escritor.<br />
Falar da minha obra, como escrevi meu livro, como pesquisei<br />
as fontes, como tirei as fotos, escolhi o que deveria<br />
entrar ou não, enfim, foi muito bom, mesmo com poucos<br />
exemplares, falar com adultos, jovens, crianças, e<br />
explicar porque escolhi o hip-hop como estilo de vida.<br />
Vários passantes e turistas foram atraídos pelo banner<br />
que coloquei na tenda destinada ao “meu espaço”. O<br />
bacana é que eu tinha uma tenda própria e um espaço<br />
também. O banner é o que o Suburbano pintou na época<br />
do TCC e que serviu, mais uma vez, literalmente, como<br />
pano de fundo para expor sobre nossa cultura. Perguntaram-me<br />
sobre o evento que estava acontecendo,<br />
sobre a cidade e sobre meu trabalho. Contei um pouco<br />
dos venenos que havia passado para estar ali e ainda<br />
dos que passo para tentar ser alguma coisa, para tentar<br />
construir a própria realidade, para tentar transformar e<br />
para encontrar forças não sei bem onde para continuar<br />
empenhada em projetos sociais como o Cultura Marginal<br />
que engloba o Passa Livros também.<br />
Foi somente naquele dia, quando várias crianças me<br />
pediam livros, corriam pela praça “brincando” com a<br />
arte, que percebi que, apesar de todas as dificuldades,<br />
das fases difíceis, de perder as pessoas queridas, de<br />
me desdobrar em trabalhos de mais de doze horas por<br />
dia, fora o veneno do transporte, do descaso, da falta<br />
de dinheiro para o básico, de sustentar um diploma, um<br />
título, um bacharelado e, mesmo assim, ganhar uma merreca<br />
que sequer paga o valor da mensalidade investida na<br />
faculdade, enfim, saquei que, apesar de todos os reveses,<br />
eu não quero desistir e somente trabalhar como meus<br />
familiares, meus vizinhos e meus amigos. Não quero o<br />
título de “escritora”, de “agitadora cultural” de “voluntária”<br />
e o de jornalista é consequência. Quero chegar em<br />
casa feliz com o sorriso das crianças, com o dia das pessoas<br />
transformado por uma caixinha poética, por um<br />
livro ganhado assim, no meio do caos urbano, quero a<br />
lembrança de idosos sorrindo por ver algo de bom sendo<br />
feito neste mundo egoísta.<br />
Estava ali naquela tenda, vi o SESC promover a leitura,<br />
incentivar as crianças e pensei que não sei mais viver<br />
sem isso. Sem propagar as ações, sem escrever por<br />
meio do hip-hop.<br />
Não queria apenas vender os livros. Queria algo bem mais<br />
do que isso. Queria exatamente o que estava acontecendo.<br />
Que as pessoas parassem para perguntar, não<br />
unicamente a mim, mas se perguntar o porquê de elas<br />
também não fazerem mais. Muita gente, com muito<br />
mais condições, se fecha no próprio mundinho de whisky<br />
importado, prozac e carro do ano, cheirando pó em algum<br />
iatezinho por aí e se esquece dos empregados, funcionários<br />
e demais habitantes do mundo. Eles têm sonhos e<br />
na maior parte das vezes, são estas pessoas, com mais<br />
condições, que pisoteiam nos ideais de quem é mais<br />
pobre, marginalizado.<br />
486
488 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
489
490 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
491<br />
Para ficar, realmente, em dia com a leitura, naquele<br />
momento, revi toda a trajetória. Todos os sonhos, quase<br />
interrompidos, quando a Anita morreu e me deixou com<br />
o livro, com uma bagagem bem pesada de coisas para<br />
realizar e sem tê-la por perto para me ajudar a continuar,<br />
a sonhar. Lembrei ainda de todas as vezes que<br />
pensei em desistir, em largar tudo, porque era massacrada<br />
no emprego do Jornal de Poços que pagava mal,<br />
tinha um assédio moral absurdo, sugava todas as energias<br />
e não deixava tempo, sequer, para eu dar um beijo<br />
na minha mãe.<br />
Sem falar das inúmeras críticas de quem sempre esteve à<br />
volta, passando os mesmos perrengues e pagando de elite,<br />
dizendo que cultura marginal é coisa de bandido e que,<br />
bom mesmo, é estar “nas paradas do sucesso”, o que, para<br />
mim, não é nada mais do que puxar saco de político falso.<br />
Engraçado que o evento me fez pensar e rever tudo isso.<br />
Rever gente que lutou e desistiu na primeira queda e<br />
guerreiros que não abandonam o barco. Gente que faz<br />
muito e gente que carrega um título e nem sempre faz o<br />
que precisa para evoluir. Saquei que queria, sim, o progresso,<br />
que queria continuar e que desistir não seria<br />
mais nem pensado.<br />
Minha mãe estava lá comigo, como sempre, acompanhando<br />
e apoiando as ações. Nunca me deixou cair, assim<br />
como meu pai. E, talvez, justamente por isso, eu nunca<br />
tenha desistido. Entretanto, não deixa de ser difícil. Lembrei<br />
que, em 2008, quando meu pai ficou doente e quase<br />
morreu, o meu desespero em não ter de onde tirar grana<br />
para levá-lo no médico particular, pagar um tratamento<br />
bom e vendo gente, que, como minha irmã — funcionária<br />
pública — nadava no dinheiro do Estado e não podia,<br />
sequer, pagar a ele um tratamento ou um convênio médico.<br />
Por isso, jurei a mim mesma que passaria o veneno que<br />
fosse, mas não deixaria meus pais na mão. Fácil não é,<br />
e faço muita coisa errada, estou aprendendo, mas já<br />
adianto que não vou parar. Cada dia que passa tenho<br />
mais vontade de lutar, trabalhar e fazer em prol da cultura<br />
do gueto na minha quebrada.<br />
Na última semana participei da Confraria das Ideias<br />
para a V Feira do Livro e Festival Literário na cidade, a<br />
mesma que indiquei o Sérgio Vaz para participar ao lado<br />
de Ferréz, e introduzir, ainda mais, a cultura marginal em<br />
Poços. Como sugestões pedidas, penso que descentralizar<br />
as ações e usar os artistas locais para irem aos bairros<br />
convidar a população para conhecer a feira, participar<br />
das oficinas e palestras, estar em meio aos livros é o<br />
que de melhor há para democratizar o evento.<br />
Fico feliz por ser reconhecida pelo trabalho que faço<br />
como jornalista e, também, na área cultural. No último<br />
resolvi que reportagem nenhuma vai mais me sugar<br />
como acontecia anteriormente. Vou dar o sangue por<br />
todas elas e fazer o meu melhor, pois amo estar na rua<br />
e reportar, porém, tudo tem limite e o meu tempo diário<br />
para dedicação à cultura e literatura, escrita, blogs e<br />
afins vai continuar sendo respeitado.<br />
Não vou deixar de escrever, de captar livros, de distribuir,<br />
de fazer o que gosto. Espero mudar a consciência das<br />
pessoas e fazê-las ver que, por meio da arte e do conhecimento,<br />
podemos conquistar o que queremos. Ainda ando<br />
de ônibus e os quarenta minutos na ida e mais quarenta<br />
minutos na volta são preenchidos com muita literatura<br />
nacional. E as oficinas devem se tornar, em breve, mais<br />
organizadas e acontecer também em escolas, como atividades<br />
extracurriculares, paralelas às aulas.
492 <strong>Traficando</strong> conhecimento Estatística<br />
493<br />
Ainda naquela tarde bem quente do final do ano pensei,<br />
revi minha vida e tive uma única certeza: o projeto Cultura<br />
Marginal vai continuar existindo. Como diz Sérgio<br />
Vaz, “a arte que liberta não vem da mão que escraviza”<br />
e estamos juntos, pelas periferias brasileiras, lutando e<br />
quebrando as correntes e amarradas invisíveis da sociedade.<br />
Um brinde ao saber, ao conhecimento, à arte, à<br />
literatura e ao hip-hop, que salvou a minha vida e a de<br />
tantos outros parceiros Brasil afora. Um brinde àqueles<br />
que sempre gostaram de ler e um maior ainda àqueles<br />
que diziam “não gosto de ler” e, hoje, fazem questão de<br />
gritar: “Literatura é minha vida.”<br />
Esta cultura carrega consigo a força do protesto e da<br />
indignação. Ela sobrevive, se opõe ao obscuro mundo da<br />
criminalidade e enfrenta uma guerra diária de preconceitos.<br />
Mas se rebela contra a exclusão e inclui, mesmo<br />
que ainda na marginalidade, toda uma nação, em um<br />
misto de alegria e tristeza, a cultura hip-hop. Sobrevive,<br />
marca e faz história para quem se sente maravilhado<br />
por tudo que a Cultura Marginal proporciona.<br />
“Paz, amor, diversão e união”, a ideologia criada por<br />
África Bambaataa quando ele batizou o maior movimento<br />
social dos últimos trinta anos – o hip-hop – e que<br />
permanece presente. Mesmo entre uma realidade que<br />
em um primeiro momento consegue colocar fim a tantos<br />
sonhos. O hip-hop, atrelado à arte e à literatura, continua<br />
se opondo às opressões raciais e sociais.<br />
Muitas vezes sinuosa e controversa, não deixa de ser<br />
fascinante. Mesmo estando à margem da sociedade,<br />
não deixa de ser uma cultura. Uma cultura guerreira, que<br />
caminha sobre pedras, mas, mesmo assim, não deixa de<br />
sonhar, fazer música, poesia, arte, dança e pintura.<br />
Em um caldeirão de misturas, a Cultura Marginal é um<br />
marco de pessoas, filosofias e ideais. Posteriormente, o<br />
discurso poderá mudar, ser substituído por outro, mas<br />
a essência do movimento continuará marcando povos e<br />
fazendo história, afinal é o hip-hop, a cultura marginal.<br />
As pessoas podem parar. Uma cultura, jamais. O hip-hop e<br />
a literatura não param nunca. Vários livros, teses e reportagens<br />
foram escritos sobre o assunto, e terminaram<br />
sempre no ponto final da última página, mas as produções<br />
culturais do gueto continuam independente deles.<br />
Desta vez não será diferente.<br />
Enquanto tiver uma cultura marginal, sempre haverá o<br />
que ser estudado e reportado. Qualquer tema acerca da<br />
periferia nunca será esgotado. Até o momento o gueto<br />
refletiu estilos de vida e comportamento, marcou gerações,<br />
mudou radicalmente muitas pessoas, salvou muitas<br />
vidas. Continua carregando consigo uma enorme<br />
força de protesto, vontade de progresso.
Imagens:<br />
índice e créditos<br />
P.19 Periferia de Poços de Caldas<br />
foto: Márcio Pinto<br />
P.23 Periferia de Poços de Caldas<br />
foto: Márcio Pinto<br />
P.27 Projeto LEIA<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.32-33<br />
Polícia em combate ao tráfico no Morro São João<br />
foto: Márcio Pinto<br />
P.39 Evento Hip-Hop Sul<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.90-91<br />
P.98-99<br />
Evento “Casa da Imprensa”<br />
foto: Luciano Santos<br />
Ensaio de break na fonte do Leãozinho, patrimônio<br />
histórico em Poços de Caldas<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.108 Entre Livros no primeiro trabalho com carteira assinada,<br />
na Livraria Alfarrábios<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.118-119 Banca examinadora do TCC “Hip-Hop – A Cultura Marginal”<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.128-129 Show do MV Bill durante o Hutúz 2009 no Circo Voador<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.135 Apresentação de dança no Hip-Hop em Foco<br />
foto: Wagner Alves<br />
P.136-137 Grupo Silencia Crewativo no Morumbi (SP), durante as<br />
pesquisas para o livro-reportagem<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.140 Anita Motta entrevistando aluno da oficina de MC<br />
na Casa do Hip-Hop<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.46-47<br />
P.54-55<br />
P.56-57<br />
Suburbano e Lu Afri, do grupo UClanos<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
Back Spin Crew como jurados de batalhas de break<br />
em Pouso Alegre, sul de Minas<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
Apresentação de dança no Hip-Hop em Foco<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.141 Grafite no Vale do Anhangabaú<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.143 Jéssica <strong>Balbino</strong> nas pick-ups do DJ Pow, na Zona Oeste de<br />
São Paulo durante as pesquisas do livro<br />
foto: Anita Motta<br />
P.147 Garoto na Casa do Hip-Hop em Diadema (SP)<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.67 Valdair, b.boy<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.76 Jéssica <strong>Balbino</strong> lendo na livraria Alfarrábios<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.81 Jéssica <strong>Balbino</strong> na periferia de Poços de Caldas<br />
foto: Márcio Pinto<br />
P.85 Leopac no 2º Hip-Hop em Foco<br />
foto: Wagner Alves<br />
P.89 Jéssica <strong>Balbino</strong> na redação do Jornal Mantiqueira<br />
foto: Marcos Corrêa<br />
P.152 Guilherme Dore e Anita Motta diagramando o<br />
livro-reportagem para o TCC<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.155 Jéssica <strong>Balbino</strong> e Anita Motta, no banheiro da faculdade,<br />
provando as roupas para apresentação do TCC<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.158-159 Banner grafitado por Suburbano para apresentação do TCC<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.160-161 Anita Motta e Jéssica <strong>Balbino</strong> durante apresentação<br />
do trabalho<br />
foto: Acervo pessoal
P.162-163 Grupo UClanos durante apresentação do TCC<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.166-167 Comemoração após o término de todas apresentações<br />
de TCCs em 2006<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.168-169 Professores da banca examinadora e alunas<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.175 Gravação de programa sobre Hip-Hop nas aulas<br />
de radiojornalismo<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.179 Periferia de Poços de Caldas<br />
foto: Márcio Pinto<br />
P.185 Anita e Jéssica no encerramento das aulas no<br />
4º ano de faculdade<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.189 Grafite no centro de São Paulo<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.192-193 Grafite no centro de São Paulo exaltando a cultura de rua<br />
foto: Elza <strong>Balbino</strong><br />
P.202-203 Lançamento do livro Suburbano Convicto —<br />
Pelas Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP)<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.209 Oficina de Hip-Hop e literatura na Zona Sul de<br />
Poços de Caldas<br />
foto: Juliana Martins<br />
P.214-215 Oficina de Hip-Hop em escolas públicas<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.221 Jéssica <strong>Balbino</strong> na biblioteca pública em Poços de Caldas<br />
foto: Marcos Corrêa<br />
P.226-227 Participação no programa de rádio Mix na rádio 104+<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.234-235 Lançamento do Suburbano Convicto – Pelas<br />
Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP)<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.241 Lançamento do Suburbano Convicto – Pelas<br />
Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP)<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.249 Participação no programa Mix 104 +<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.253 Periferia de Poços de Caldas<br />
foto: Márcio Pinto<br />
P.260 Grafite no Hip-Hop Em Foco e Leopac no Hip-Hop Em Foco<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.263 Espetáculo de dança no Hip-Hop Em Foco<br />
foto: Wagner Alves<br />
P.268 Gueto de Poços de Caldas<br />
foto: Márcio Pinto<br />
P.277 Jéssica <strong>Balbino</strong> no Jornal de Poços de Caldas em 2007<br />
foto: Michele Miyake<br />
P.288 Jéssica <strong>Balbino</strong> durante entrevista para o livro-reportagem<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.299 Entrevista com King Nino Brown durante as pesquisas<br />
para o TCC<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.317 Periferia de São Paulo, capital<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.328 Palco do Hip-Hop na Virada Cultural em 2008<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.332-333 Apresentação para o show do pai do Hip-Hop,<br />
Afrika Bambaataa, na Virada Cultural<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.337 Grafite no palco do Hip-Hop na Virada Cultural em 2008<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.344-345 Cultura Marginal: Pela Vida<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.346-347 Apresentação de break no evento Cultura Marginal: Pela Vida<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.352-353 B.girl e MC durante o evento Cultura Marginal: Pela Vida<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.357 Gabriel, O Pensador lendo durante a Feira de Livros,<br />
em Poços de Caldas<br />
foto: Acervo pessoal
P.358-359 Jéssica <strong>Balbino</strong> entrevista MV Bill durante palestra na<br />
Feira do Livro em Poços de Caldas<br />
foto: Márcio Pinto<br />
P.360-361 Jéssica <strong>Balbino</strong> e Nega Gizza durante palestra na Feira do<br />
Livro em Poços de Caldas<br />
foto: Márcio Pinto<br />
P.378-379 Jéssica <strong>Balbino</strong> lendo o Jornal Mantiqueira durante o evento<br />
“Casa da Imprensa”<br />
foto: Juliana Martins<br />
P.385 Ensaio do grupo de break Silêncio Crewativo<br />
foto: Anita Motta<br />
P.387 Oficina de DJ na Casa do Hip-Hop<br />
foto: Anita Motta<br />
P.388-389 Grafites na Casa do Hip-Hop<br />
foto: Anita Motta<br />
P.390-391 Periferia de Poços de Caldas<br />
foto: Márcio Pinto<br />
P.398 Jéssica <strong>Balbino</strong> e o escritor Renato Vital<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.399 King Nino Brown no acervo da Casa do Hip-Hop<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.407 DJ Pow do grupo Império Z/O durante as entrevistas para<br />
o livro-reportagem<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.410-411 Lançamento do livro Suburbano Convicto —<br />
Pelas Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP)<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.416 UClanos durante show no Circo Voador no Hutúz 2009<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.422-423 Encontro do grupo UClanos com MC Budog do grupo<br />
Elemento.S<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.428-429 Grafite no evento Beatz, Zona Sul de Poços de Caldas<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.438-441 Projeto Passa Livros no Terminal de Linhas Urbanas de<br />
Poços de Caldas<br />
foto: Eduardo Correia<br />
P.445 Projeto Passa Livros na periferia de Poços de Caldas<br />
foto: Elza <strong>Balbino</strong><br />
P.446-447 Projeto Passa Livros distribui palavras cruzadas na periferia<br />
de Poços de Caldas<br />
foto: Elza <strong>Balbino</strong><br />
P.450-451 Rap educativo em escola pública de Poços de Caldas<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.455 Jovens fazem letras de rap na Casa do Hip-Hop<br />
foto: Acervo pessoal<br />
P.462-463 Jéssica <strong>Balbino</strong> durante palestra/oficina para estudantes<br />
de Jornalismo<br />
foto: Luciano Santos<br />
P.467 Alunos durante oficina sobre literatura marginal e Hip-Hop<br />
foto: Luciano Santos<br />
P.472-473 Palestra sobre literatura marginal e Hip-Hop em escola<br />
pública para alunos do ProJovem<br />
foto: Luciano Santos<br />
P.474 Professor entrega textos sobre literatura marginal<br />
para alunos<br />
foto: Luciano Santos<br />
P.480-481 Programa Repercussom com música negra na periferia<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.484-485 Evento Hip-Hop em Foco 2<br />
foto: Wagner Alves<br />
P.488-489 Evento Sesc em Dia com a Leitura<br />
foto: Elza <strong>Balbino</strong><br />
P.494-495 Programa Repercussom<br />
foto: Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
P.502 Jéssica <strong>Balbino</strong><br />
foto: Marcos Corrêa<br />
P.430-431 Garoto se converte durante o show do grupo Manuscritos<br />
em Poços de Caldas<br />
foto: Acervo pessoal
502<br />
Sobre a autora<br />
Jéssica escreve para a massa. E por não conseguir largar<br />
mão desse vício tornou-se jornalista. Já acreditou na<br />
utopia de mudar o mundo. Hoje tenta mudar a própria<br />
quebrada. Prefere a rua às redações e gosta mesmo é de<br />
mergulhar nas matérias, indo além das pautas. Foge do<br />
jornalismo convencional e se alia ao literário, tentando<br />
descobrir pequenas histórias, sempre relatadas em<br />
grandes matérias.<br />
É apaixonada pelo hip-hop, pela sua vivência e essência.<br />
Não sabe cantar rap, riscar discos, dançar break ou<br />
mesmo grafitar. É eclética e aliou-se ao 5º elemento —<br />
conhecimento — ainda adolescente e nunca mais conseguiu<br />
deixar. Tem mania de falar que o hip-hop salvou a<br />
sua vida e passando isso adiante faz de tudo para tentar<br />
salvar esta cultura.<br />
Atua em projetos como “Cultura Marginal”, por meio de<br />
palestras e oficinas com literatura para crianças e jovens,<br />
promove e participa de eventos de hip-hop e distribui<br />
livros, poemas e sorrisos pelas ruas da cidade de forma<br />
gratuita, por acreditar que um dia fica melhor na vida de<br />
quem recebe cultura. Não vive sem e fora da periferia.<br />
Acha esta palavra tão linda e rica quanto este mundo é na<br />
realidade, e o melhor: pulsa.
Este livro foi composto em Akkurat.<br />
O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m².<br />
Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m².<br />
Impresso pela Imprinta Express em setembro de 2010.<br />
Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter<br />
as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha<br />
nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro<br />
de identificação do próprio contato. A editora está à disposição<br />
para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.