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IV Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade - UNESP-Assis

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Anais<br />

<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Universi<strong>da</strong>de Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”<br />

Facul<strong>da</strong>de de Ciências e Letras de <strong>Assis</strong><br />

08 a 10 de maio de 2012<br />

Organização dos Anais<br />

Dra. Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade<br />

Dra. Maira Angélica Pandolfi<br />

Dra. Norma Domingos


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

UN<strong>IV</strong>ERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”<br />

Vice-Reitor no exercício <strong>da</strong> Reitoria - Prof. Dr. Julio Cezar Durigan<br />

FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ASSIS<br />

Diretor - Dr. Ivan Esperança Rocha<br />

Vice-Diretora - Dra. Ana Maria Rodrigues de Carvalho<br />

Chefe do Departamento de Letras Modernas - Dr. José Luís Félix<br />

Vice-Chefe do Departamento de Letras Modernas - Dra. Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade<br />

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras - Dra. Cleide Antonia Rapucci<br />

Vice-Cordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras - Dr. Álvaro Santos Simões Junior<br />

Grupo de Pesquisa - Narrativas Estrangeiras Modernas: Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de (CNPq)<br />

Líder - Dra. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti<br />

Vice-líder - Dr. Antonio R. Esteves<br />

Comissão organizadora do evento<br />

Dra. Ana Maria Carlos<br />

Dr. Antonio R. Esteves<br />

Dra. Brigitte Monique Hervot<br />

Dra. Carla Cavalcanti e Silva<br />

Dra. Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade<br />

Dra. Cleide Antonia Rapucci<br />

Dr. Francisco Cláudio Alves Marques<br />

Dra. Maira Angélica Pandolfi<br />

Dra. Maria de Fátima A. de O. Marcari<br />

Dra. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti<br />

Dra. Norma Domingos<br />

Dr. Sérgio Augusto Zanoto<br />

Kátia Rodrigues M. Miran<strong>da</strong><br />

César Palma dos Santos<br />

Luana Apareci<strong>da</strong> de Almei<strong>da</strong><br />

Tchiago Inague Rodrigues<br />

Comissão científica do evento<br />

Dra. Ana Maria Carlos<br />

Dr. Antonio R. Esteves<br />

Dra. Brigitte Monique Hervot<br />

Dra. Carla Cavalcanti e Silva<br />

Dra. Cleide Antonia Rapucci<br />

Dr. Francisco Cláudio Alves Marques<br />

Dra. Gabriela Kvacek Betella<br />

Dra. Luciana Moura Colucci de Camargo<br />

Dr. Márcio A. S. Maciel<br />

Dra. Maira Angélica Pandolfi<br />

Dra. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti<br />

Dra. Norma Domingos<br />

Dr. Sérgio Augusto Zanoto<br />

Dr. Wellington Ricardo Fioruci<br />

Secretária do evento - Dra. Norma Domingos<br />

Equipe de Apoio - Maria Catarina Ferreira de Jesus Machado e Juliana Porto<br />

Arte - Luana Domingos Cesetti Gomyde<br />

Revisão dos Abstracts - Dra. Cleide Antonia Rapucci e Guilherme Mariano Martins <strong>da</strong> Silva<br />

Evento realizado na Facul<strong>da</strong>de de Ciências e Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Estadual Paulista (<strong>UNESP</strong>),<br />

Câmpus de <strong>Assis</strong>, de 08 a 10 de maio de 2012, com apoio de: FUND<strong>UNESP</strong>, Departamento de Letras<br />

Modernas, Programa de Pós-Graduação em Letras e SAEPE.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Sumário<br />

Apresentação 5<br />

Textos completos 7<br />

ALVES, Maria Cláudia Rodrigues 8<br />

ANDRADE, Anderson de Souza; BINATO, Cláudia Valéria Penavel 21<br />

ASK, Célia Cristina de Azevedo 29<br />

BETELLA, Gabriela Kvacek 40<br />

BOTOSO, Altamir 49<br />

CALLIPO, Daniela Mantarro 59<br />

CARLOS, Ana Maria 67<br />

COPATI, Guilherme; LAGUARDIA, Adelaine 77<br />

DANTAS, Gregório 88<br />

DOMINGOS, Norma 97<br />

FERREIRA, Eliane Apareci<strong>da</strong> Galvão Ribeiro; VALENTE, Thiago Alves 105<br />

FERREIRA, Sandra 118<br />

FIORUCI, Wellington R. 130<br />

FRANCO, Gabriele; PANDOLFI, Maira Angélica 143<br />

GROSSI, Solange 151<br />

HERVOT, Brigitte Monique 161<br />

KOBAYASHI, Teresa Cristina 172<br />

LANDUCCI, Camila Apareci<strong>da</strong> 181<br />

LOPES, Jorge Augusto <strong>da</strong> Silva 188<br />

MARCARI, Maria de Fátima Alves de Oliveira 198<br />

MILREU, Isis 206<br />

MORAES, Carla D.; FIORUCI, Wellington R. 219<br />

NAGAE, Neide Hissae 229<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

NEVES, Angela <strong>da</strong>s 239<br />

PAGLIONE, Marcela Barchi 248<br />

PANDOLFI, Maira 257<br />

PARRINE, Raquel 266<br />

P<strong>IV</strong>A, Paula Cristina 274<br />

PORTO, Teresa Augusta Marques 283<br />

REMIGIO, Cristiane Aguiar 291<br />

RIBEIRO, Fernan<strong>da</strong> Apareci<strong>da</strong>; MIRANDA, Katia Rodrigues Mello 299<br />

ROCHA, Denise 307<br />

ROCHA, Renato Oliveira 322<br />

RODRIGUES, Tchiago Inague 334<br />

SANTOS, César Palma 343<br />

SANTOS, Héder Junior dos 352<br />

SANTOS, Juliana Oliveira Macedo dos 366<br />

SANTOS, Luana Ester Alves de Souza 374<br />

SCHRAMM JR., Roberto Mário 382<br />

SENA, José Eduardo Botelho de 392<br />

SOUZA, Laís Brancalhão; FERREIRA, Eliane Apareci<strong>da</strong> Galvão Ribeiro 402<br />

ZOCARATO, Clayton Alexandre 409<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

APRESENTAÇÃO<br />

O <strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de: a narrativa policial foi realizado<br />

entre os dias 08 e 10 de maio de 2012, na Facul<strong>da</strong>de de Ciências e Letras, câmpus de <strong>Assis</strong>. O<br />

evento, em sua quarta edição, é organizado pelo Grupo de Pesquisa “Narrativas Estrangeiras<br />

Modernas: Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de”, vinculado ao Departamento de Letras<br />

Modernas, registrado junto ao CNPq, cujo líder e vice-líder são, respectivamente, Profa. Dra.<br />

Maria Lídia Lichtscheild Maretti (<strong>UNESP</strong>-<strong>Assis</strong>) e Prof. Dr. Antônio Roberto Esteves<br />

(<strong>UNESP</strong>-<strong>Assis</strong>). O Grupo de Pesquisa reúne docentes de Universi<strong>da</strong>des Brasileiras como a<br />

<strong>UNESP</strong>, USP, UNIFAL, UNIOESTE, UFPR, UFMS e UEMS. Desde sua criação em 2002, o<br />

Grupo tem promovido diversas ativi<strong>da</strong>des, organizando encontros próprios ou participando <strong>da</strong><br />

organização de Simpósios em eventos de maior porte. Da mesma forma, tem publicado os<br />

resultados de suas pesquisas em diversos meios, seja em livros organizados pelo Grupo, seja<br />

em revistas especializa<strong>da</strong>s.<br />

Dentro de seu objetivo geral de estu<strong>da</strong>r a questão dos gêneros na narrativa literária e<br />

suas interfaces, visando um redimensionamento <strong>da</strong> categoria após a incorporação de gêneros<br />

mistos, ocorri<strong>da</strong> na literatura do século XX, o Grupo desenvolve projetos bianuais que se<br />

dedicam às várias mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de narrativas híbri<strong>da</strong>s. Desse modo, já foram estu<strong>da</strong>dos e<br />

apresentados em eventos científicos os resultados de pesquisas acerca <strong>da</strong> relação entre<br />

literatura e história, sobre narrativas do eu, narrativas de viagem e literatura no cinema.<br />

O <strong>IV</strong> Simpósio, por sua vez, focou-se na apresentação de trabalhos sobre a narrativa<br />

policial. Durante os dias do evento foram ministra<strong>da</strong>s duas conferências, a de abertura,<br />

proferi<strong>da</strong> pela Dra. Vera Lúcia Follain de Figueiredo, <strong>da</strong> PUC-RJ , “Declínio <strong>da</strong> estética <strong>da</strong><br />

provocação: a retoma<strong>da</strong> do gênero policial” e a de encerramento, “Paratextos iconográficos de<br />

romances policiais”, apresenta<strong>da</strong> pela Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves, do<br />

IBILCE/<strong>UNESP</strong>, São José do Rio Preto. As mesas-redon<strong>da</strong>s “Narrativa policial: percursos”,<br />

“Narrativa policial: (re)leituras” e “Policial e fantástico: releituras de Poe”, traçaram um<br />

panorama sobre o gênero policial desde os clássicos do gênero até as releituras <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de.<br />

No decorrer do evento foram apresenta<strong>da</strong>s cerca de oitenta comunicações. Boa parte<br />

dessas apresentações percorreu os principais caminhos <strong>da</strong> narrativa policial a partir <strong>da</strong> análise<br />

de obras ou de personagens clássicos do gênero como Edgar Allan Poe, Conan Doyle,<br />

Leonardo Sciascia, Georges Simenon, Sherlock Holmes, Dupin, Maigret, entre outros. Outros<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

trabalhos, porém, se focaram nas releituras e trouxeram para o centro <strong>da</strong> análise obras que<br />

também se tornaram grandes clássicos <strong>da</strong> literatura como, por exemplo, O nome <strong>da</strong> rosa, de<br />

Umberto Eco. Foram abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s e analisa<strong>da</strong>s, ain<strong>da</strong>, narrativas policiais que têm como<br />

característica a presença de um tipo especial de personagem histórico, seja como protagonista<br />

ou personagem secundário, que de uma maneira ou de outra faz parte <strong>da</strong> trama. Assim, nessa<br />

nova tendência nos deparamos com a ficcionalização de escritores como Jorge Luis Borges,<br />

Ernest Hemingway, Pablo Neru<strong>da</strong>, Guy de Maupassant, entre outros.<br />

Além <strong>da</strong>s conferências, mesas-redon<strong>da</strong>s e sessões de comunicações o evento contou<br />

também com ativi<strong>da</strong>des culturais como a Performance teatral “Os crimes <strong>da</strong> rua Morgue” pela<br />

Cia Em Cena Ser, com a<strong>da</strong>ptação e interpretação de Cristiana Gimenes e a exibição do filme,<br />

segui<strong>da</strong> por debate coordenado pelo Dr. Antonio R. Esteves, O segredo dos seus olhos (2009),<br />

de Juan José Campanella. Desse modo, acreditamos que o <strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong><br />

Moderni<strong>da</strong>de: a narrativa policial proporcionou um amplo diálogo entre todos os<br />

pesquisadores e representou uma contribuição para os estudos dos gêneros híbridos.<br />

Estes Anais apresentam os textos completos que foram enviados para a publicação.<br />

Todos efetivamente apresentados no evento nas sessões de comunicações e um deles em uma<br />

<strong>da</strong>s conferências. A comissão organizadora dos Anais não procedeu a nenhuma revisão dos<br />

arquivos enviados, exceto a dos abstracts, sendo o conteúdo de ca<strong>da</strong> texto de inteira<br />

responsabili<strong>da</strong>de de seus respectivos autores.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

TEXTOS COMPLETOS<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Paratextos iconográficos de romances policiais<br />

ALVES, Maria Cláudia Rodrigues (<strong>UNESP</strong>/São José do Rio Preto)<br />

RESUMO: É costume dizer que “nunca devemos julgar um livro por sua capa”. No entanto,<br />

se todo livro conta uma história, to<strong>da</strong> capa de livro também conta. A capa pode dizer-nos<br />

muito sobre um livro ou, ao contrário, criar grande suspense para o leitor/consumidor. A<br />

pesquisa referente às capas de livros, peritexto editorial, assim denominado por Genette em<br />

Palimpsestes (1982), e posteriormente em Seuils (1987), insere-se nos estudos de Literatura<br />

Compara<strong>da</strong>, na teoria <strong>da</strong> Imagologia, que busca estu<strong>da</strong>r as relações culturais entre os povos e<br />

também <strong>da</strong> Sociologia <strong>da</strong> Literatura. Foi a partir do exame do paratexto iconográfico, mais<br />

especificamente <strong>da</strong>s capas <strong>da</strong> obra de Rubem Fonseca traduzi<strong>da</strong> para o francês, que começou<br />

nosso interesse por esse tipo de material. O presente texto é parte de um estudo mais<br />

abrangente sobre as capas de romances policiais. Trata-se de um recorte que busca observar a<br />

evolução <strong>da</strong>s capas de alguns dos romances antológicos do gênero para, em segui<strong>da</strong>, focalizar<br />

capas de romances brasileiros traduzidos para outras línguas/culturas, sobretudo de autores<br />

brasileiros traduzidos na França. Nesse percurso, notaremos aspectos a respeito <strong>da</strong> evolução<br />

<strong>da</strong>s artes gráficas, <strong>da</strong>s opções editoriais que podem evidenciar um projeto editorial ou não.<br />

Também nos permitiremos emitir algumas hipóteses a respeito <strong>da</strong> recepção <strong>da</strong> literatura<br />

brasileira traduzi<strong>da</strong> no exterior e sua difusão e recepção, a partir <strong>da</strong>s capas estrangeiras.<br />

PALAVRAS-CHAVE: literatura compara<strong>da</strong>; romance policial; paratextos; peritexto<br />

editorial; capas.<br />

RÉSUMÉ: Selon l’expression consacrée: il ne faut pas juger de l’arbre par l’écorce, c’est-à<br />

dire, on ne doit jamais juger un livre par sa couverture. Cepen<strong>da</strong>nt, si tous les livres racontent<br />

une histoire, toutes les couvertures le font aussi. La couverture peut nous dire beaucoup sur le<br />

livre ou, contrairement, créer un grand suspense auprès du lecteur/consommateur. La<br />

recherche concernant les couvertures, le péritexte éditorial, comme l’appelait Genette en<br />

Palimpsestes (1982), et ultérieurement en Seuils (1987), s’inscrit <strong>da</strong>ns les études de<br />

Littérature Comparée, <strong>da</strong>ns la théorie de l’Imagologie, qui cherche à étudier les rapports<br />

culturels entre les peuples et également <strong>da</strong>ns la Sociologie de la Littérature. C’est à partir de<br />

l’examen du paratexte iconographique, en spécial des couvertures de l’œuvre de Rubem<br />

Fonseca, traduite pour le français, qui est né notre intérêt par ce genre de matériel. Ce texte-ci<br />

fait partie d’une étude plus étendue sur les couvertures de romans policiers. Il s’agit d’une<br />

coupure qui cherche à observer l’évolution des couvertures de quelques romans anthologiques<br />

de ce genre pour, ensuite, focaliser les couvertures de romans brésiliens traduits en d’autres<br />

langues/cultures, surtout des auteurs brésiliens traduits en France. Dans ce parcours, nous<br />

remarquerons des aspects concernant l’évolution des arts graphiques, des options éditoriales<br />

qui peuvent démontrer un projet éditorial ou non. Nous nous permettrons aussi d’émettre<br />

quelques hypothèses concernant la réception de la littérature brésilienne traduite à l’étranger<br />

et sa diffusion et réception, à partir des couvertures y produites.<br />

MOTS-CLÉS: littérature comparée; roman policier; paratextes; péritexte éditorial;<br />

couvertures.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Convém iniciarmos este panorama explicando que nosso interesse pelo estudo de<br />

paratextos <strong>da</strong>ta de nossas pesquisas já na graduação com vistas à dissertação de Mestrado, na<br />

qual exploramos a presença de Victor Hugo em Álvares de Azevedo, por meio <strong>da</strong>s epígrafes<br />

hugoanas na obra azevediana (ALVES, 1999). Em segui<strong>da</strong>, nossa tese de Doutorado abordou<br />

a recepção de Rubem Fonseca na França. Nesse estudo, analisamos diversos paratextos<br />

(prefácios, epígrafes, correspondência troca<strong>da</strong> entre autor e tradutor, capas, contracapas e<br />

orelhas etc). Nesta apresentação, buscaremos realizar um recorte desse material, evidenciando<br />

os aspectos paratextuais iconográficos (ilustrações de capas). Para tanto, teceremos algumas<br />

considerações a respeito <strong>da</strong> noção de “paratexto”, lançaremos mão de alguns exemplos de<br />

capas próprias ao gênero policial a partir de capas antológicas de romances policiais, para<br />

finalmente citarmos alguns autores brasileiros traduzidos na França e, mais especialmente,<br />

grande parte <strong>da</strong> obra de Rubem Fonseca traduzi<strong>da</strong>.<br />

Partimos, pois, do conceito de “paratexto”, evidenciado por Gérard Genette, para<br />

quem:<br />

A obra literária consiste exaustiva ou essencialmente, em um texto, ou seja<br />

(definição extremamente minimalista) em uma sequência mais ou menos<br />

longa de enunciados verbais mais ou menos providos de significado. Mas<br />

esse texto raramente se apresenta em seu estado « nu », sem o reforço e o<br />

acompanhamento de um certo número de produções, verbais ou não, como<br />

um nome de autor, um título, um prefácio, ilustrações, os quais nunca<br />

sabemos se devemos considerar que pertencem ao texto, mas que, em todo<br />

caso, estão ao seu redor e o prolongam, justamente para APRESENTÁ-LO 1 ,<br />

no sentido habitual desse verbo, mas também, em seu mais forte sentido:<br />

para TORNÁ-LO PRESENTE, para garantir sua presença no mundo, sua<br />

«recepção» e seu consumo, sob a forma, ao menos hoje, de um livro.<br />

Consideramos pois o paratexto como sendo tudo aquilo que faz de um texto<br />

um livro e se propõe como tal a seus leitores e, mais genéricamente, ao<br />

público. (GENETTE, 1987, p.7-8)<br />

Podemos pensar que a atual capa de nossos livros evoluíram <strong>da</strong>s iluminuras<br />

medievais, ornamentos <strong>da</strong>s letras iniciais de parágrafos/capítulos. Sendo assim, as ilustrações,<br />

iluminuras ou posteriormente pranchas ilustrativas, são talvez uma <strong>da</strong>s primeiras formas<br />

paratextuais de narrativas que surgiram antes do aparato paratextual editorial que conhecemos<br />

hoje e que, pela história <strong>da</strong> editoração, é historicamente bem recente.<br />

Dessa forma, ao nos debruçarmos sobre as ilustrações presentes em capas de<br />

romances policiais, delimitamos bastante nosso campo de observação e, aparentemente,<br />

1 TRADUÇÃO E GRIFO NOSSOS<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

atentamos somente para o aspecto gráfico <strong>da</strong>s obras, para o que se dá a ver. No entanto, como<br />

disse recentemente o escritor angolano José Eduardo Agualusa, em programa de televisão <strong>da</strong><br />

TV Senado, em princípio “quando compramos um vinho pela garrafa, compramos o conteúdo<br />

e não o continente, com o livro é a mesma coisa”, importa-nos igualmente a relação entre a<br />

capa e o texto, o conteúdo do livro, pois a capa deve ser a promessa de seu conteúdo.<br />

Interessa-nos aqui observar e mostrar de que forma alguns romances policiais<br />

foram/são apresentados ao público leitor, revelando uma certa tradição <strong>da</strong>s capas do gênero,<br />

bastante clássica, que visa atingir, seduzir, esse público, desde sempre, de maneira simples,<br />

com características comuns e, por vezes, com alguma originali<strong>da</strong>de, no exterior e no Brasil.<br />

Interessa-nos igualmente verificar se as capas de romances brasileiros traduzidos no exterior<br />

aqui citados revelam um projeto editorial mais domesticador ou exoticizante, em que nível<br />

eles respeitam o “pacto <strong>da</strong> promessa” <strong>da</strong> narrativa.<br />

Vale, pois, iniciarmos nossa apresentação traçando aqui um breve panorama <strong>da</strong>s<br />

capas mais conheci<strong>da</strong>s do gênero. Selecionamos inicialmente, a título de exemplo e evolução<br />

gráfica, o antológico romance de Conan Doyle The hound of the Baskervilles. A capa de1902,<br />

do pintor e ilustrador Alfred Garth Jones, traz o vulto de um cão que será, inúmeras vezes,<br />

retomado e reutilizado ao longo do século XX e XXI. O leitor reconhece de imediato a<br />

referência que evolui com as capas.<br />

A realização de capas clássicas ou plenas de clichês do gênero policial pode<br />

apresentar, entretanto, na atuali<strong>da</strong>de, releituras que buscam inovar e sugerir ludicamente a<br />

relação entre o conteúdo e sua apresentação, como as duas capas dos romances de James<br />

Ellroy que jogam com elementos <strong>da</strong> narração e o próprio objeto livro, o que nos parece<br />

bastante lúdico e inovador:<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

L<br />

O design gráfico no Brasil tem inevitavelmente raízes norte-americanas e européias,<br />

mas muito rapi<strong>da</strong>mente buscou originali<strong>da</strong>de estilística e sofisticação conceitual. As capas de<br />

livros, inicialmente realiza<strong>da</strong>s por membros de uma equipe editorial, foram pouco a pouco<br />

sendo material de criação de capistas profissionais, hoje ain<strong>da</strong> denominados “capistas” ou<br />

“designers gráficos”. E o que importávamos ou copiávamos no início do século XX foi<br />

rapi<strong>da</strong>mente substituído por um ofício que valoriza o profissional nacional. No caso <strong>da</strong>s capas<br />

de romances policiais traduzidos no Brasil observamos a tendência gráfica expressionista do<br />

início do século XX, muito popular e cujo estilo ain<strong>da</strong> hoje é explorado em edições mais<br />

populares, cujo maior representante foi o gaúcho Edgar Koetz. Uma outra tendência gráfica<br />

são as capas com figuras femininas com grande apelo sexual. A partir dos anos 60/70,<br />

composições abstratas começam a serem considera<strong>da</strong>s. Mais recentemente, o gênero vem<br />

sendo revisitado por algumas editoras, merecendo capas mais sofistica<strong>da</strong>s, e evidenciando e<br />

valorizando o autor, por exemplo.<br />

E por falar em Dashiell Hammett (última imagem acima), e em sua obra O Falcão<br />

maltês, um dos maiores clássicos do gênero, sugerimos aqui observarmos o percurso de sua<br />

capa. A capa original, de 1930 do romance de Dashiell Hammett apresenta a estatueta, objeto<br />

<strong>da</strong> cobiça do romance, com uma mão cheia de jóias.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A figura do falcão vai ser constantemente utiliza<strong>da</strong> na capa <strong>da</strong>s diversas edições pelo<br />

mundo, com as mais diversas variações, como poderemos observar mais adiante.<br />

Abre-se uma exceção às cores amarela/doura<strong>da</strong> e negra, quando a obra é inseri<strong>da</strong> em<br />

alguma coleção que já tem na capa características próprias, como é o caso <strong>da</strong> famosa coleção<br />

inglesa Penguin Crime, na qual grafismos negros, por vezes com algum detalhe em branco,<br />

saltam sobre o fundo verde.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Porém, em geral, as capas do romance evocarão, com freqüência, a estátua do falcão,<br />

eventualmente um grafismo relacionado a crime (um corpo atingido por um golpe, uma<br />

arma...).<br />

Não podemos deixar de citar igualmente capas nas quais a presença feminina<br />

evocam, com maior ou menor intensi<strong>da</strong>de e sutileza, o apelo sexual:<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Pelo mundo, seja qual for a época e o tipo de representação figurando na capa do<br />

Falcão maltês, é inevitável, entretanto que haja dois momentos bem distintos: antes e depois<br />

do antológico filme estrelado por Humphrey Bogart.<br />

A partir desse momento, inclui-se a opção extremamente utiliza<strong>da</strong> de grafismos com<br />

o perfil do ator ou mesmo fotos do filme.<br />

No Brasil, não foi diferente e uma rápi<strong>da</strong> consulta às capas nos mostra que a<br />

preferência em geral recai sobre a utilização <strong>da</strong> referência ao filme.<br />

O jogo de luz e sombras, em fotos ou em grafismo, a utilização do preto e branco são<br />

igualmente marcas do gênero, assim como uma constante utilização de cores fortes. No<br />

entanto, retomamos nosso comentário a respeito <strong>da</strong>s coleções. Muitas vezes, uma capa<br />

original mais singela e direta, perde, na edição traduzi<strong>da</strong> em prol de um projeto editorial já<br />

estabelecido. Observemos o que ocorre com as obras de Luiz Alfredo Garcia-Roza e Tony<br />

Bellotto na edição francesa. Elementos <strong>da</strong> capa que dialogam com o textual, na capa em<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

português, desaparecem na coleção francesa. No entanto, a opção <strong>da</strong> coleção francesa não<br />

deixa de ser bastante interessante. A imagem feminina no círculo nos sugere,<br />

misteriosamente, a chega<strong>da</strong> de uma mulher vista por um olho mágico de uma porta, por<br />

exemplo.<br />

Quando não passam por um filtro que os uniformiza, em geral, a opção <strong>da</strong>s edições<br />

estrangeiras recai na opção de exotização. No caso de nossos autores que têm como pano de<br />

fundo o cenário do Rio de Janeiro, é inevitável que certas capas originais mais intimistas<br />

passem a ter paisagens cariocas consagra<strong>da</strong>s em suas edições estrangeiras, como no caso<br />

abaixo:<br />

Fato semelhante ocorrerá com a obra de Rubem Fonseca, o que merecerá nosso<br />

comentário mais adiante. Vale ain<strong>da</strong> salientar que esse procedimento, por vezes é muito bem<br />

explorado como no caso de uma <strong>da</strong>s capas <strong>da</strong> edição francesa de Inferno de Patrícia Mello, na<br />

qual um Cristo Redentor vermelho é colocado sobre fundo negro. Essa capa nos parece<br />

bastante bem sucedi<strong>da</strong>:<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Ain<strong>da</strong> sobre o jogo de luzes e sombras e alguns clichês presentes em capas do gênero<br />

policial, destacamos os elementos <strong>da</strong>s duas capas abaixo, distantes no tempo, mas tão<br />

próximas: atentemos para as duas figuras e a importância do olhar em ambas as capas, para o<br />

jogo de sombras evidente na primeira capa e as sugestões na segun<strong>da</strong> (em vermelho, no chão,<br />

o contorno de um corpo, na parede, um vulto que persegue o homem à janela), as inevitáveis<br />

cores vermelha e o preto:<br />

À guisa de conclusão, revisitaremos algumas capas de Rubem Fonseca que ilustram<br />

o percurso de suas edições francesas e desven<strong>da</strong>m alguns projetos editoriais. Abaixo, a edição<br />

brochure de A grande arte, em francês e sua edição de bolso. A primeira traz a paisagem do<br />

Rio de Janeiro e a segun<strong>da</strong>, um grafismo Amore de Elvira Bach. O cenário dos romances de<br />

Fonseca é, em geral, o Rio de Janeiro. No primeiro exemplo, vemos que a paisagem carioca<br />

foi utiliza<strong>da</strong> na edição que consagrou o romance e, em segui<strong>da</strong>, optou-se por uma capa mais<br />

composta, mais chamativa, com a cor vermelha em destaque e que sugere, por todos seus<br />

elementos, uma intriga plena de clichês do romance policial: amor, sexo, mulheres, corpos<br />

etc.<br />

É preciso destacar que, apesar dos sinais de exotismo, em geral no que diz respeito à<br />

obra fonsequiana (e de Garcia-Roza igualmente) parece inevitável que se explore elementos<br />

<strong>da</strong> narrativa ligados ao potencial do exotismo brasileiro e, sobretudo, carioca. A capa de Buffo<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

& Spallanzani traz o Pão de Açúcar ao fundo, mas não deixa de ter no emblema do carro em<br />

primeiro plano, o sapo, de onde provém o veneno <strong>da</strong> trama. A opção <strong>da</strong> imagem do destaque<br />

de carnaval na capa <strong>da</strong> edição francesa de Vastas emoções e pensamentos imperfeitos pode<br />

parecer exagera<strong>da</strong>, mas parte <strong>da</strong> trama gira em torno do Carnaval. São elementos internos à<br />

narrativa, explorados de forma inteligente pela editora nas respectivas capas, que cumprem<br />

seu papel tanto paratextual, quanto comercial.<br />

Observemos as capas de Agosto para a edição francesa em brochure e a edição de<br />

bolso francesa. A parte a enorme gafe editorial relativa ao título de Un été brésilien (Um<br />

verão brasileiro) para o romance Agosto, verificaremos o incrível mal entendido <strong>da</strong>s capas.<br />

Pode-se vislumbrar na primeira a intenção do artista em representar elementos do<br />

submundo (o malandro e a prostituta) em uma atmosfera tropical (charuto, palmeiras, chapéu<br />

panamá). A cor vermelha também é sugestiva: tanto do clima tropical, como de uma intriga<br />

criminal. Embora se reconheça aqui a quali<strong>da</strong>de do trabalho de Philippe Sohiez, a capa não é<br />

completamente reveladora do conteúdo do romance – uma ficção histórica, mas trata-se de<br />

uma ilustração bastante sugestiva, contendo os clichês de uma capa de romance policial. Ao<br />

se pesquisar sobre o fotógrafo e artista plástico Philippe Sohiez, verifica-se a preocupação na<br />

elaboração dessa capa. Segundo informações forneci<strong>da</strong>s pelo ilustrador <strong>da</strong> capa <strong>da</strong> edição<br />

brochure de Un été brésilien, o fotógrafo e artista plástico Philippe Sohiez, em geral há dois<br />

procedimentos para a escolha de uma capa de livro, por parte dos editores e maquetistas, que<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

contenha foto ou ilustração: uma encomen<strong>da</strong> ou a utilização de material já existente nos<br />

bancos de imagens ou agências de fotos como a Getty, a Corbis e a Photonica.<br />

Philippe Sohiez nos esclareceu como se realizou a encomen<strong>da</strong> para o grafismo e<br />

como foi sua concepção, em depoimento de 2005 2 :<br />

Para falar bem rapi<strong>da</strong>mente de nosso papel de ilustrador. Ele se limita, em<br />

geral, à leitura do comentário <strong>da</strong> 4ª. capa, para ter uma idéia. Nos dias de<br />

hoje, as criações tornam-se ca<strong>da</strong> vez mais raras. Os editores e os projetistas<br />

buscam suas ilustrações em bancos de imagens e escolhem a que convém<br />

melhor ao romance...<br />

Para voltar à capa de “Un été brésilien”, estávamos ain<strong>da</strong> a época em<br />

que se realizavam capas sob encomen<strong>da</strong> e como se trata de um tempo já<br />

ultrapassado, tudo era feito globalmente, sem meios informáticos, pouco<br />

difundidos na época. Portanto, em geral, trata-se de uma fotomontagem, com<br />

fotografias tira<strong>da</strong>s de meu arquivo.<br />

- um fundo de palmeiras<br />

- uma personagem tipo mafioso <strong>da</strong> América do Sul<br />

- uma jovem, tipo prostituta<br />

A fotomontagem é realiza<strong>da</strong> recortando-se e colando-se as imagens. O<br />

conjunto é fotocopiado, primeiro em preto e branco. Em segui<strong>da</strong> eu utilizei<br />

uma copiadora CANON em cores para banhos de diferentes cores.<br />

Para a edição de bolso, imaginamos que a mesma informação deve ter sido passa<strong>da</strong> à equipe<br />

de edição, sem, no entanto, mencionar que se tratava <strong>da</strong> ditadura getulista (o que também é um erro<br />

histórico, já que o romance não se insere exatamente nesse período). Porém, vemos que a imagem<br />

utiliza<strong>da</strong> na edição de bolso representa claramente uma cena comum à ditadura <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 70 no<br />

Brasil.<br />

Esse tipo de mal entendido é bastante comum. A função do paratexto como vestíbulo<br />

<strong>da</strong> narrativa, como elemento de diálogo entre imagem inicial e conteúdo textual fica<br />

comprometi<strong>da</strong> e perde sua força, desacreditando a publicação.<br />

Acreditamos que este breve panorama possa ter sido esclarecedor de algumas opções<br />

editoriais quanto às capas de romances policiais e mais especificamente sobre alguns<br />

romances brasileiros traduzidos para o francês. Buscamos apenas ressaltar alguns elementos<br />

mais utilizados pelo mercado editorial internacional quanto ao gênero policial, características<br />

que são manti<strong>da</strong>s, experiências inovadoras e outras mais clássicas, algumas releituras desses<br />

elementos, que fazem <strong>da</strong>s capas de romances policiais importantes indícios <strong>da</strong> recepção do<br />

gênero e de nossa literatura traduzi<strong>da</strong> no exterior.<br />

2 Depoimento obtido via internet em 21.07.2005.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

REFERÊNCIAS:<br />

ALVES, M.C.R. Rubem Fonseca na França. Tese (Doutorado em Letras) – Facul<strong>da</strong>de de<br />

Filosofia, Letras e Ciências Humanas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo. São Paulo: USP, 2006.<br />

BELLOTTO, T. Bellini e o demônio. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1997.<br />

______ Bellini et le demon. Arles: Éditions Actes Sud, 2007.<br />

FONSECA, R. Du grand art. Paris: Grasset, 1986.<br />

______. Bufo & Spallanzani. Paris: Grasset, 1989.<br />

______. Vastes émotions et pensées imparfaites. Paris: Grasset, 1990.<br />

______. Un été brésilien. Paris: Grasset, 1993.<br />

______. Du grand art. Paris: Librairie Générale Française/Grasset, 1995. (Collection Le Livre<br />

de Poche, n° 13694)<br />

______. Un été brésilien. Paris: Librairie Générale Française/Grasset, 1996. (Collection Le<br />

Livre de Poche, n° 13969)<br />

GARCIA-ROZA, L.A. O silêncio <strong>da</strong> chuva. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras,1996.<br />

______. Uma janela em Copacabana. São Paulo: Cia. <strong>da</strong>s Letras, 2004.<br />

______. Le silence de la pluie. Arles: Éd. Actes Sud, 2004/2007.<br />

______. Une fenêtre à Copacabana. Arles: Éd. Actes Sud, 2008.<br />

GENETTE, G. Seuils. Paris: Seuil, 19987. P.7-8<br />

MELO, P. Inferno. São Paulo: Cia. <strong>da</strong>s Letras, 2001.<br />

______. Enfer. Arles: Éd. Actes Sud, 2001/2004.<br />

IMAGENS<br />

Disponível em: . Acesso em: 23 jan. 2012.<br />

Disponível em: . Acesso em 23 jan 2012.<br />

Disponível em: . Acesso em:<br />

23 jan. 2012.<br />

Disponível em: . Acesso em: 25 jan 2012.<br />

Disponível em: . Disponível em:<br />

Acesso em: 25 jan. 2012.<br />

Disponível em:<br />

. Acesso em: 27 jan. 2012.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Disponível em: . Acesso em: 27 jan. 2012.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O clássico e a interface policial em Poe: origens e intertextuali<strong>da</strong>de<br />

ANDRADE, Anderson de Souza (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

BINATO, Cláudia Valéria Penavel (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Há intertextuali<strong>da</strong>de entre o conto de Edgar Allan Poe, “O Gato Preto” (1843),<br />

cujo protagonista, após assassinar sua esposa, encerrou-lhe o corpo em uma parede do porão,<br />

e algumas histórias clássicas <strong>da</strong> mitologia como a de Níobe, filha de Tântalo, circun<strong>da</strong><strong>da</strong> viva<br />

por uma cama<strong>da</strong> de pedra, a de Perséfone, que desceu ao Hades em vi<strong>da</strong>, e a do filho de Drias,<br />

que foi confinado por Dioniso em uma prisão de pedra, além do trágico fim sofocleano de<br />

Antígona, que, por ter desobedecido às ordens <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de, foi, igualmente, enclausura<strong>da</strong><br />

ain<strong>da</strong> vivente em uma caverna, como também o cegamento de Édipo. A morte e a maneira<br />

pela qual foram inseridos em paredes os corpos dessas personagens mostram as referências<br />

comuns entre essas histórias e a narrativa policial, que geralmente envolve crimes, detetives,<br />

mistérios, investigações e punições. Vale ressaltar que não há lugar para a impuni<strong>da</strong>de em<br />

obras policiais. Assim, é possível encontrar em outros gêneros características próprias <strong>da</strong><br />

literatura policial, em que o leitor é motivado, pela trama do suspense, não só a desven<strong>da</strong>r<br />

assassinatos, mas também a desejar o castigo de criminosos. Pretende-se, nestas<br />

considerações, indicar alguns pontos de convergência entre o gênero híbrido <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de -<br />

a narrativa policial -, mediante análise, mormente pelo viés psicanalítico, do conto de Poe, e<br />

os clássicos <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Fantástica; Tragédia; Intertextuali<strong>da</strong>de.<br />

ABSTRACT: There is intertextuality between the short story by Edgar Allan Poe, The Black<br />

Cat (1843), whose protagonist, after murdering his wife buried her body in a basement wall,<br />

and some classic stories from mythology like that of Niobe, <strong>da</strong>ughter of Tantalum,<br />

surrounded alive by a layer of stones, of Persephone, who descended into Hades in life, and<br />

the son of Drias, who was confined by Dionysus in a prison of stone, and the tragic end in<br />

Sophocles’ Antigone, who, disobeying the orders of authority, was also enclosed still living in<br />

a cave. The death and the way in which the bodies of these characters are placed in walls<br />

show the common references between these stories and police narrative, which often involves<br />

crimes, detectives, mysteries, investigations and punishments. It is noteworthy that there is no<br />

place for impunity in police novel. It is possible to find in other genres characteristics of<br />

detective fiction, in which the reader is motivated by the plot of suspense, not only to unravel<br />

murders, but also want the punishment of criminals. It is intended, with this presentation,<br />

indicate some points of convergence between the hybrid genre of modernity - the police<br />

narrative - through analysis of Poe's story, and the classics of antiquity.<br />

KEYWORDS: Fantastic Literature; Tragedy; Intertextuality.<br />

Entre a literatura clássica e a moderna, apesar <strong>da</strong> distância temporal que as separa,<br />

pode existir intertextuali<strong>da</strong>de. Ao falar dos mitos clássicos, seria mais prudente fazer<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

referência apenas às origens de todo pensamento ocidental, no qual se incluem também as<br />

artes e, portanto, a literatura. Porém, como ler o conto fantástico “O gato preto”, de Edgar<br />

Allan Poe, e não remetê-lo às primeiras histórias <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de escritas com requintes de<br />

suspense<br />

A narrativa policial geralmente fala sobre crimes, detetives, mistérios e<br />

investigações; é um gênero em que o suspense desperta, no leitor, o medo, a paixão, a<br />

curiosi<strong>da</strong>de; trata-se, sobretudo, de uma narração na qual não há lugar para a impuni<strong>da</strong>de.<br />

Este estudo salienta alguns tópicos do conto de Poe elencando pontos de<br />

convergência entre o gênero híbrido <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de - a narrativa policial - e os clássicos.<br />

Edgar Allan Poe (1809-1849) foi um célebre escritor norte-americano, nascido em<br />

Boston nos Estados Unidos; teve uma infância muito difícil, principalmente pela per<strong>da</strong> dos<br />

pais. A vi<strong>da</strong> turbulenta e caótica de Poe reflete-se em seus contos permeados de desabafos e<br />

crises psicológicas, que se percebem em várias de suas obras como, por exemplo, “O Corvo”<br />

(1845), “A que<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa de Usher” (1839) e outras de suas magníficas criações.<br />

No conto “O gato preto” (1843), uma história é conta<strong>da</strong> por um narrador<br />

homodiegético, ou seja, um narrador que conta e participa <strong>da</strong> história: trata-se de um homem<br />

casado que vive uma vi<strong>da</strong> tranquila com a esposa e seus animais domésticos muito estimados<br />

por ele que, desde menino, cultivava grande afeto pelos animais, o que denotava seu caráter<br />

dócil e seu espírito humano:<br />

Casei-me muito moço. Tive sorte. Minha mulher possuía um caráter<br />

adequado ao meu. Sentiu logo minha predileção pelos animais domésticos.<br />

Não perdia, então, oportuni<strong>da</strong>de de procurar os <strong>da</strong>s espécies mais agradáveis.<br />

Pássaros, peixes dourados, um belo cão, coelhos, um macaquinho e um gato.<br />

(POE, 2003, p. 8).<br />

Essa aproximação com os animais durou muitos anos. Por uma propensão natural ou<br />

pela “diabólica intemperança” ou por outra razão qualquer, o temperamento e o caráter do<br />

narrador passaram a sofrer radical alteração. Dia após dia, tornava-se mais irritável, mais<br />

indiferente aos sentimentos alheios, chegando a ser brutal até com a mulher. Sua exasperação<br />

só aumentava, chegando ao ponto de um dia, embriagado, agarrar seu gato de estimação e<br />

arrancar-lhe um dos olhos.<br />

Esse animal é um dos mais importantes personagens na tessitura do conto, texto que<br />

oferece, aos leitores, varia<strong>da</strong>s leituras possibilitando-lhes inúmeras interpretações dos leitores.<br />

Seguindo a vertente histórica, é possível dizer que todo o desvario na vi<strong>da</strong> do narrador foi<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

causado por esse animal. Sua simbologia é marcante na história mundial. No Egito Antigo, os<br />

gatos pretos eram venerados como deuses, mas a crendice que envolve esses animais vem<br />

desde a I<strong>da</strong>de Média. O Papa Inocêncio VIII chegou a incluí-los na lista de perseguidos pela<br />

Inquisição. A forte presença dessa crendice pode ser conferi<strong>da</strong> no trecho abaixo:<br />

Grande, todo preto. E muito inteligente. Essa inteligência era pouco<br />

comenta<strong>da</strong> porque minha mulher embora não fosse supersticiosa, referia-se<br />

com frequência à crença popular que olha os gatos pretos como feiticeiras<br />

disfarça<strong>da</strong>s. (POE, 2003, p.8).<br />

À parte a superstição <strong>da</strong> crença popular, o gato, antes estimado e depois torturado<br />

pelo narrador, lembra ain<strong>da</strong> traços característicos ou marcas demoníacas: sua cor é negra, o<br />

nome Plutão é o mesmo do deus dos infernos e no dizer do narrador um animal de espantosa<br />

sagaci<strong>da</strong>de. Porém, no conto, realmente demoníaco, cruel, é o comportamento do narrador<br />

que usa de violência gratuita contra a mulher e os animais, especialmente contra o felino:<br />

Permitia-me mesmo usar de uma linguagem brutal para com minha mulher.<br />

Por fim, cheguei a usar de violência corporal contra ela. Meus bichos, sem<br />

dúvi<strong>da</strong>, acabaram também por ressentir essa mu<strong>da</strong>nça de meu caráter [...]<br />

não tinha escrúpulos em maltratar coelhos, o macaco ou mesmo o cachorro<br />

[...] até mesmo Plutão começou a experimentar os efeitos desse meu mau<br />

temperamento (POE, 2003, p.8).<br />

É possível observar outra referência mitológica no conto, pois Plutão também era<br />

tido como o deus <strong>da</strong> prosperi<strong>da</strong>de: to<strong>da</strong> riqueza era oferta<strong>da</strong> ou retira<strong>da</strong> por ele, como prêmio<br />

ou punição. Além do fogo, elemento punitivo por excelência nos infernos onde o rei Plutão<br />

reina, o narrador foi punido, após o incêndio, com a pobreza supostamente pelo fato de ter<br />

enforcado o gato:<br />

A casa inteira ardia. Com grande sacrifício escapamos vivos, mas a<br />

destruição foi completa. Perdi to<strong>da</strong> a minha fortuna. Entreguei-me ao<br />

desespero. Não quero pensar se essa desgraça teve alguma relação com as<br />

atroci<strong>da</strong>des cometi<strong>da</strong>s por mim. Mas também não quero deixar que seja<br />

esquecido nem um elo dessa cadeia. (POE, 2003, p. 9).<br />

To<strong>da</strong>via, faz-se referência, neste conto, não apenas à simbologia negativa do gato<br />

preto, mas também ao comportamento instável do narrador, sob a vertente psicanalítica. Para<br />

tanto, utiliza-se, nestas considerações, a obra Figuração <strong>da</strong> Intimi<strong>da</strong>de: imagens na poesia de<br />

Mário de Andrade, de João Luiz Lafetá (1986), que compartilha dos conceitos psicanalíticos<br />

trabalhados por Marie Bonaparte (1882-1962), discípula de Freud, presentes em suas<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

pesquisas, publica<strong>da</strong>s em seu livro The life and works of Edgar Allan Poe (1949), acerca <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> e obra de Edgar Allan Poe.<br />

Para Bonaparte, Poe associava problemas pessoais as suas obras. Observa-se em “O<br />

Gato Preto”, um narrador-personagem descontrolado psicologicamente e com o mesmo vício<br />

de Poe, a bebi<strong>da</strong>, ou seja, o narrador também era um homem alcoólatra. Segundo essa autora,<br />

talvez Poe tenha transferido sua conturba<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> para seus contos como uma forma de relatar<br />

conflitos existenciais:<br />

Poe sabia também, por experiência, o poder <strong>da</strong> bebi<strong>da</strong> para liberar as<br />

fantasias de violência e de ataques sádicos. Porém, na ver<strong>da</strong>de, pelo fato de<br />

ele não as ter realizado, elas assombraram seu inconsciente com uma<br />

intensi<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong> maior [...]. (BONAPARTE, 1949, p. 461, tradução nossa).<br />

Em seus contos, Poe expõe a outra face do homem, aquela que poucos admitem<br />

possuir e mostrar. O narrador de “O gato preto” mu<strong>da</strong> completamente seu comportamento.<br />

Antes tão carinhoso, tão amigo, por causa <strong>da</strong> dipsomania é tomado pelos instintos mais<br />

perversos. A bebi<strong>da</strong> provoca, certamente, a liberação de seus impulsos reprimidos e<br />

irrefreáveis.<br />

Poe apresenta a dupla natureza do homem. Quanto ao narrador-personagem, suas<br />

propensões para o bem, para uma vi<strong>da</strong> tranquila de paz, lutam contra seus instintos cruéis que<br />

o inclinam para o mal, estabelecendo nele um conflito. Existem as leis humanas e repressoras,<br />

dita<strong>da</strong>s pela socie<strong>da</strong>de, e a lei natural, impressa no tribunal <strong>da</strong> consciência:<br />

Embora inocente, o gato preto é o símbolo vivo de todos os impulsos<br />

considerados negativos e destruidores que o narrador encontra dentro de si.<br />

Horrorizado, ao perceber em seu comportamento tendências que sua própria<br />

consciência moral rejeita e condena [...], o personagem de Poe projeta num<br />

objeto exterior tudo que dentro dele é condenável. (LAFETÁ, 1986, p.80).<br />

O desejo incontrolável de matar surge como um bicho infernal cuja existência sua<br />

consciência rejeita. Matar o gato lhe <strong>da</strong>ria expansão às tendências agressivas e, ao mesmo<br />

tempo, ele conseguiria eliminá-las simbolicamente. Porém, tal atitude não lhe abran<strong>da</strong> os<br />

instintos cruéis; as exigências morais voltam a lhe cobrar, intensificando a tensão<br />

estabeleci<strong>da</strong>:<br />

A morte do gato é a morte do desejo compreendido como “mal”, punição<br />

que busca satisfazer a severi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s exigências morais, mas que, sendo<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

perversi<strong>da</strong>de, consegue só agudizar o drama <strong>da</strong> consciência; a tortura e o<br />

assassínio são cruel<strong>da</strong>des que tentam aplacar o apelo dos instintos<br />

agressivos, mas preenchendo-os apenas em parte [...], resultam em frustração<br />

decepcionante. (LAFETÁ, 1986, p.81).<br />

Em consequência desses sentimentos, o narrador procura e acha outro gato preto para<br />

extravasar seus delírios, renovando, num círculo vicioso, seu inferno.<br />

Outro tópico presente em Poe é o empare<strong>da</strong>mento. Especialmente neste conto, o<br />

narrador empare<strong>da</strong>, de maneira consciente, a mulher morta, para se livrar do corpo e ocultar<br />

seu crime, e, despercebi<strong>da</strong>mente ou de forma não consciente, o gato vivo. Na ver<strong>da</strong>de, o gato<br />

seria o seu alvo, mas a mulher, na tentativa de detê-lo, surgiu inespera<strong>da</strong>mente, levando o<br />

golpe fatal. Um crime. Uma tragédia.<br />

Uma vez ocultado o cadáver e <strong>da</strong>do por sumido o gato, o narrador age como se<br />

tivesse resolvido seu conflito e apaziguado seus instintos. Porém, o monstro ameaçador não se<br />

encontrava em seu exterior e, sim, no mais profundo de sua alma.<br />

Ao <strong>da</strong>r vazão aos seus sentimentos inconfessáveis, o narrador sentiu uma grande<br />

satisfação. Fato que se deduz quando ele, diante <strong>da</strong> polícia que investigava o sumiço <strong>da</strong><br />

mulher, em seu orgulho desmedido, bate, com a bengala, na parede onde se encontrava morta<br />

sua esposa. De dentro do túmulo improvisado, partiu uma voz, um grito prolongado,<br />

“inumano e anormal”, denunciando-o aos investigadores.<br />

Da estrutura característica de narrativa policial presente no conto de Poe, constantes<br />

de crime, cadáver, polícia, denúncia e investigação, parte-se para a apresentação de algumas<br />

semelhanças temáticas nos enredos <strong>da</strong>s histórias <strong>da</strong> mitologia e tragédia clássica.<br />

O crime, o segredo e a descoberta do criminoso, que representam, na grande maioria<br />

<strong>da</strong>s vezes, o núcleo do enredo no gênero policial, cedem espaço para que seja abor<strong>da</strong>do o<br />

antiquíssimo modo de castigar vítimas encerrando-as, ain<strong>da</strong> vivas, em paredes, mundos ou<br />

túmulos subterrâneos.<br />

Assim, além <strong>da</strong> hamartía cometi<strong>da</strong> por aquele que transgride uma ordem, sempre<br />

aparece, subjacente às histórias clássicas, outra vertente temática: a religiosa, capaz de punir o<br />

criminoso e também os seus descendentes, herança maldita, e a psicanalítica, em decorrência<br />

dos conflitos humanos.<br />

É o caso, por exemplo, de Níobe, filha do criminoso Tântalo. Ao ser puni<strong>da</strong>, por sua<br />

altivez e petulância, com o assassínio de seus catorze filhos, foi circun<strong>da</strong><strong>da</strong> viva por uma<br />

cama<strong>da</strong> de pedra. Transforma<strong>da</strong> em rochedo pelos deuses olímpicos, suas muitas lágrimas<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

passaram a correr em cascata. Também, o filho de Drias foi confinado pelo deus Dioniso em<br />

uma prisão de pedra.<br />

Já Perséfone, filha de Deméter – deusa do trigo - e de Zeus, foi rapta<strong>da</strong> por Plutão. A<br />

terra se abriu e ela foi traga<strong>da</strong> pelo mundo subterrâneo. Após perder a filha, Deméter abdicou<br />

de suas funções divinas de ensinar aos homens a arte de semear, cultivar e colher o trigo e<br />

também a de fabricar o pão, símbolo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Por isso, uma seca terrível abateu sobre a terra e<br />

Zeus implorou a Plutão que devolvesse Perséfone. O rei dos infernos atendeu parcialmente o<br />

pedido do irmão: Perséfone passaria quatro meses com ele e oito com a mãe. Reencontra<strong>da</strong> a<br />

filha, Deméter permitiu que a terra se recobrisse de verde. Junito de Souza Brandão (2001),<br />

em sua obra Mitologia Grega I, menciona Mircea Eliade que, com sua autori<strong>da</strong>de de grande<br />

conhecedor <strong>da</strong>s religiões antigas, conclui que o rapto de Perséfone, entendido como morte,<br />

trouxe a aproximação entre os reinos do Hades e do Olimpo.<br />

Outro exemplo a ser tratado é o trágico fim sofocleano de Antígona, que, por ter<br />

desobedecido às ordens <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de por prestar serviços fúnebres religiosos a seu irmão, foi,<br />

igualmente, encerra<strong>da</strong> viva em um túmulo subterrâneo.<br />

A morte e a maneira pela qual foram inseridos os corpos dessas personagens em<br />

paredes de pedras e tijolos mostram intertextuali<strong>da</strong>de entre esse gênero, a narrativa policial,<br />

alguns contos de Poe como “O Gato preto” e “A que<strong>da</strong> <strong>da</strong> Casa de Usher” (1836) e as<br />

histórias <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de. Lafetá (1986) destaca também o empare<strong>da</strong>mento, processo<br />

“obsessivo em Poe”, como mais uma forma de recalque do narrador, em razão de este<br />

empare<strong>da</strong>mento do corpo <strong>da</strong> mulher ser o empare<strong>da</strong>mento de seu próprio desejo. Em “O gato<br />

preto”, Poe lançou mão dessa prática tão antiga de punição para que o narrador-personagem<br />

desfizesse sua tensão e resolvesse seu conflito.<br />

Outro ponto de convergência entre o conto e as tragédias clássicas trata <strong>da</strong> mutilação<br />

ocular do gato pelo narrador, em seu primeiro acesso de fúria e cruel<strong>da</strong>de. Esse fato remete o<br />

leitor imediatamente à tragédia clássica Édipo Rei, de Sófocles, uma vez que a autopunição de<br />

Édipo, ao cegar-se, é o símbolo universal <strong>da</strong> castração.<br />

Faz-se necessário lembrar que o protagonista <strong>da</strong> tragédia é um herói em conflito. A<br />

tragédia só se realiza quando a medi<strong>da</strong> de ca<strong>da</strong> um (metron) é ultrapassa<strong>da</strong>. Qualquer<br />

desmedi<strong>da</strong> de um mortal, ao aspirar igualar-se aos deuses, é motivo para castigos<br />

irremediáveis.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Pela violência contra si e contra os deuses (hybris), o herói trágico é punido<br />

imediatamente; contra ele é lança<strong>da</strong> a cegueira <strong>da</strong> razão (até): tudo que realizar, realiza-o<br />

contra si mesmo.<br />

Édipo, por exemplo, por mais que tentasse fugir <strong>da</strong>s premonições dos oráculos, ia<br />

sempre ao encontro do destino cego ( moira); acabou matando o pai e casando-se com a mãe.<br />

A falta cometi<strong>da</strong> (hamartía) pelo herói foi ser suficientemente arrogante e presunçoso ao<br />

pretender resolver, sozinho, a terrível peste que assolava Tebas. A arrogância de Édipo o<br />

destruiu e a cegueira voluntária foi sua punição.<br />

No conto “O gato preto”, também é possível perceber que o narrador ultrapassa sua<br />

medi<strong>da</strong>, tornando-se, de fato, cruel e perverso. Sua hybris foi entregar-se ao álcool, sua<br />

desmedi<strong>da</strong>, causar sofrimento aos animais e à esposa, sua hamartía, enforcar o gato e matar a<br />

mulher. Seria um crime perfeito se não fosse sua autoconfiança e arrogância no ato de<br />

vangloriar-se de sua façanha, batendo com a bengala na parede-túmulo. Assim, o narrador, em<br />

consequências de suas atitudes, submetia-se, ca<strong>da</strong> vez mais, a sua moira.<br />

Édipo é duplo. Édipo acreditava ser filho dos reis de Corinto e, por ironia do destino,<br />

ao procurar o causador de a desgraça, isto é, o assassino do rei de Tebas, descobriu-se o<br />

homici<strong>da</strong> de seu ver<strong>da</strong>deiro pai e o marido de sua mãe. Havia nele outro homem, o qual<br />

jamais imaginou ser.<br />

Duplo também é o narrador de “O gato preto”. O Homem, no princípio, bom e afável<br />

deu lugar ao homem impiedoso e colérico que cega e mata. O narrador possui outra face, a<br />

face do mal. O homem em conflito entre o bem e o mal, no conto, iguala-se ao herói trágico.<br />

Por to<strong>da</strong>s essas considerações, conclui-se que há intertextuali<strong>da</strong>de nas temáticas entre<br />

o gênero policial, o conto “O gato preto”, de Edgar Allan Poe, e as histórias mitológicas e<br />

trágicas <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de clássica.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

ÉSQUILO & SOFÓCLES. Tragédias Gregas: Prometeu Acorrentado; Rei Édipo; Antígone.<br />

Tradução de J. B. Mello e Souza. Rio de Janeiro: Ediouro,1997.<br />

BONAPARTE. M. The life and works of Edgar Allan Poe: A psycho-analytic interpretation.<br />

Londres: Imago Publishing Co. Ltd, 1949.<br />

BRANDÃO. Junito de Souza. Mitologia I. Petrópolis: Vozes, 2001.<br />

______. Mitologia III. Petrópolis: Vozes, 2001.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

______. Teatro Grego. Tragédia e Comédia. Petrópolis: Vozes, 1999.<br />

LAFETÁ, J. L. “Milhões de Gatos Verdes”. In: ______. Figuração <strong>da</strong> Intimi<strong>da</strong>de: Imagens<br />

na poesia de Mário de Andrade. São Paulo: Martins Fontes, 1986. p. 65-94.<br />

POE, E. A. Histórias Extraordinárias de Allan Poe. Trad. Clarice Lispector. Rio de Janeiro:<br />

Ediouro, 2003.<br />

ROSENFIELD, Kathrin H. Sófocles & Antígona. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Entre culpa<strong>da</strong> e vítima, a mulher – uma leitura de The Driver’s Seat, de Muriel Spark<br />

ASK, Célia Cristina de Azevedo (<strong>UNESP</strong>/ <strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Nas narrativas contemporâneas, tornou-se frequente a presença de mulheres<br />

detetives, assim como o fato de as personagens femininas exercerem funções coadjuvantes,<br />

mas que, mesmo assim, permitem a elas interferir na resolução dos casos auxiliando de forma<br />

direta ou indireta, bem como atrapalhando as investigações. As reflexões acerca do papel <strong>da</strong>s<br />

mulheres nas histórias de investigação leva-nos a voltar o olhar para o cenário de The Driver’s<br />

seat, romance de Muriel Spark que coloca a mulher na cena do crime exercendo a dupla<br />

função de vítima e de culpa<strong>da</strong>. Enquanto a narrativa se ocupa de acompanhar os passos <strong>da</strong><br />

protagonista, as ações e situações narra<strong>da</strong>s contribuem para que se construa uma imagem<br />

desta mulher, que passa a ser vista como louca sob a perspectiva predominante no texto. A<br />

preocupação que origina este trabalho passa a ser a de averiguar o porque de determina<strong>da</strong>s<br />

imagens femininas persistirem na Literatura contemporânea, passíveis de compor uma<br />

reali<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong> ampara<strong>da</strong> em velhos estereótipos originados pela tradição hierarquizante dos<br />

gêneros. Neste âmbito, a observação <strong>da</strong>s personagens femininas apresenta<strong>da</strong>s no romance<br />

pode oferecer meios para uma reflexão e, ain<strong>da</strong>, uma identificação dos fatores que concorrem<br />

para a composição deste cenário. Assim, sob o amparo dos estudos de gênero, o presente<br />

estudo resultará em comentários referentes aos papéis desempenhados por mulheres e homens<br />

que o romance sparkiano evidencia, bem como em um posicionamento quanto a estes papéis,<br />

evidentemente construídos com base nos conceitos tradicionais de gênero e de atuação social.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Muriel Spark; The Driver´s seat; investigação policial; questões de<br />

gênero; vitimização.<br />

ABSTRACT: In contemporary narratives it has become frequent the presence of women<br />

detectives, as well as the fact that female characters still perform supporting roles, which<br />

nonetheless allow them to interfere in the resolution of cases by helping directly or indirectly,<br />

as well as hindering the investigations. The reflections on the role of women in such crime<br />

stories leads us to turn our gaze to the stage of The Driver's Seat by Muriel Spark, a novel that<br />

puts the woman at the scene performing the dual role of victim and culprit. While the<br />

narrative is concerned about following the protagonist’s steps, the actions and situations that<br />

are being told contribute to build a picture of this woman, who starts to be seen as insane<br />

under the prevailing perspective in the text. The concern that guides this work turns out to be<br />

the question why certain female images persist in contemporary literature, being capable of<br />

composing a reality yet supported on old stereotypes generated by the hierarchical gender<br />

tradition. In this context, the observation of the female characters presented in the novel can<br />

provide ways of reflection and further identification of factors that contribute to this scenario<br />

composition. Thus, supported by the gender studies, this work will result in comments<br />

regarding the roles of women and men that the sparkian novel shows, as well as in a position<br />

about these roles, which are evidently built on the traditional concepts of gender and of social<br />

action.<br />

KEYWORDS: Muriel Spark; The Driver´s seat; police investigation; gender issues;<br />

victimization.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

INTRODUÇÃO<br />

Os romances policiais contemporâneos, apesar de instituírem diversas mu<strong>da</strong>nças<br />

relativas às características dos romances policiais tradicionais, mantiveram alguns elementos<br />

que Massi (2011) considera indispensáveis para a constituição do enredo: “o criminoso, a<br />

vítima e o detetive, que existem um em função do outro, ou seja, só há vítima se houver<br />

criminoso e só há detetive se houver crime, cujo autor é desconhecido” (p. 19). A autora, que<br />

faz um levantamento dos romances policiais mais apreciados pelo público leitor do século<br />

XXI, tece considerações quanto a aspectos deste gênero literário que põem em evidência as<br />

mu<strong>da</strong>nças ocorri<strong>da</strong>s desde as primeiras obras e, por este motivo, mencionaremos alguns<br />

destes aspectos ao propormos uma leitura do romance de Muriel Spark, The Driver’s seat<br />

(1994), publicado em 1970 e geralmente descrito como sombrio e inquietante. Acreditamos<br />

que, mesmo tratando-se de uma obra que descreve uma investigação, os elementos que<br />

compõem o romance sparkiano suscitam uma abor<strong>da</strong>gem distinta do gênero por sua ênfase na<br />

personagem que Massi descreve como secundária, que é a vítima.<br />

A narração de The Driver’s seat tem por objetivo acompanhar a protagonista, Lise,<br />

em sua viagem de férias ao sul <strong>da</strong> Europa (Roma). No entanto, no início do terceiro capítulo<br />

revela-se que a personagem será vítima de um assassinato e que to<strong>da</strong>s as suas ações<br />

contribuirão para isso. Ain<strong>da</strong> que a voz narradora insista em relembrar o destino desta mulher<br />

a todo instante, não é possível para quem a acompanha, através <strong>da</strong> leitura, criar qualquer tipo<br />

de vínculo, sentindo por ela empatia ou pena, pois suas atitudes e ações causam um<br />

estranhamento e um desconforto tão intensos que se tem a impressão, ao final, que não<br />

poderia haver um destino diferente para ela e que sua morte era inevitável. Sproxton, ao<br />

analisar as personagens sparkianas, classifica Lise como uma vítima e o romance como “a<br />

new kind of thriller with a highly obscure plot, intended to mystify and shock” (SPROXTON,<br />

1992, p. 137). Por isso, ao destacarmos alguns elementos deste romance, optamos por<br />

questionar o papel <strong>da</strong> mulher nesta narrativa, adotando uma perspectiva passível de <strong>da</strong>r-lhe a<br />

voz que foi embarga<strong>da</strong>, buscando no texto indícios dos limites entre a culpa e a vitimização <strong>da</strong><br />

personagem feminina no romance policial.<br />

UMA VÍTIMA DESCONCERTANTE<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Apesar de o romance contemporâneo haver <strong>da</strong>do espaço a personagens femininas<br />

marcantes, como mulheres detetives fortes, ágeis e hábeis, a vítima feminina ain<strong>da</strong> retém<br />

resquícios <strong>da</strong> fragili<strong>da</strong>de de seu gênero. Segundo Massi, o crime envolve paixões diversas <strong>da</strong>s<br />

partes envolvi<strong>da</strong>s em um crime, sendo a vítima o elemento para o qual elas convergem:<br />

A vítima deve ser assassina<strong>da</strong>, pois este é um crime romanticamente superior<br />

carregado de diversas paixões entre os envolvidos, sejam eles a própria<br />

vítima, que teme a morte, o criminoso, que tem motivos para realizar o<br />

assassinato, e as pessoas envolvi<strong>da</strong>s com a vítima, que lamentam a ausência<br />

e que, em geral, acionam o fazer do detetive. (MASSI, 2011, p. 20)<br />

Contudo, o que observamos no romance de Spark é a supressão de qualquer sinal<br />

destas paixões, se considerarmos que Lise em momento algum pode ser vista como alguém<br />

que teme a morte, principalmente quando se destaca que a voz narradora marca to<strong>da</strong>s as suas<br />

ações como preparatórias e antecipatórias de seu destino. O enfoque sobre a vítima <strong>da</strong>do neste<br />

romance resulta em uma leitura inquietante, em função de as informações sobre ela e as<br />

demais personagens envolvi<strong>da</strong>s no crime serem muito vagas, o que reforça a perspectiva de<br />

que Lise seja vista como cúmplice de seu próprio assassinato. Desta forma, a presença <strong>da</strong><br />

vítima feminina funciona, segundo Sproxton, como um elemento necessário para expor a<br />

“rede de perseguições estabeleci<strong>da</strong> por outro agente”: “The victim is often a necessary<br />

character, whose problems highlight the web of persecution established by another agent.”<br />

(SPROXTON, 1994, p. 114)<br />

Em sua jorna<strong>da</strong>, a personagem feminina institui uma metáfora marcante no romance<br />

porque, mediante a descrição de situações que estabelecem uma relação entre seus atos e sua<br />

morte, nota-se que o desejo de encontrar o “homem certo”, ain<strong>da</strong> que pareça uma busca pelo<br />

controle do seu destino, revela-se um erro <strong>da</strong> personagem, não por ela querer distanciar-se de<br />

uma situação opressiva, mas por colocar o poder de mu<strong>da</strong>nça nas mãos erra<strong>da</strong>s, nas mãos de<br />

um homem que ain<strong>da</strong> não conhece. Segundo Foucault, ao realizar uma jorna<strong>da</strong>, o indivíduo<br />

deve “ir em direção a alguma coisa” que é si próprio, descrevendo um trajeto que, para Lise,<br />

representaria a exposição a riscos que “poderiam comprometer [seu] itinerário” e até levá-la a<br />

extraviar-se no caminho rumo ao seu “lugar de salvação” (2004, p. 302). No entanto, para<br />

conseguir chegar ao lugar de pertencimento a personagem traça uma jorna<strong>da</strong> que toma a<br />

forma <strong>da</strong> exposição pública através <strong>da</strong>s roupas chamativas e de comportamento socialmente<br />

inadequado, levando-a de uma vi<strong>da</strong> aparentemente equilibra<strong>da</strong>, mas certamente sufocante,<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

para uma série de situações capazes de levá-la a um destino indesejado. Branco & Brandão<br />

chamam este tipo de jorna<strong>da</strong>, apresenta<strong>da</strong> no texto de Spark, de “trajetória suici<strong>da</strong>” e, a partir<br />

de questionamentos, refletem acerca do papel <strong>da</strong>s mulheres neste tipo de projeto:<br />

Afinal, como pode ser li<strong>da</strong> essa trajetória suici<strong>da</strong> que marca tais<br />

personagens Em que se relacionam a morte e o feminino nessas narrativas<br />

Ora, a mulher, em nossa cultura, caracteriza-se sobretudo como um ser de<br />

falta. Mais ain<strong>da</strong> que o homem, é ela quem se define através <strong>da</strong> privação, <strong>da</strong><br />

per<strong>da</strong>, <strong>da</strong> ausência: é ela a que não possui. Destituí<strong>da</strong> de voz, de poder, de<br />

intelecto, de alma, de pênis, resta-lhe a falta, a lacuna, esse lugar do vazio<br />

em que o feminino se instaura. Nisto reside seu extremo poder: em sua<br />

capaci<strong>da</strong>de de manipular a per<strong>da</strong>, em sua íntima relação com a morte.”<br />

(BRANCO & BRANDÃO, 1989, p. 125)<br />

Em busca do homem que é seu “tipo”, Lise afirma poder reconhecê-lo não como uma<br />

presença, mas como “a falta de uma ausência” (SPARK, 1994, p. 71); ou seja, é alguém que<br />

possa complementar aquilo que consideram ser negativo: o feminino. A angústia <strong>da</strong> procura<br />

leva-a a agir fora do padrão instituído pela tradição sexista, exigindo para si a atenção <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de e mostrando o quanto seu espaço social é limitado. Suas roupas, desse modo, têm<br />

como propósito esconder a opaci<strong>da</strong>de de sua vi<strong>da</strong> e sua solidão por meio <strong>da</strong>s cores gritantes e<br />

modelos fora de mo<strong>da</strong>, paradoxalmente chamando atenção sobre si enquanto afastam as<br />

pessoas. Flügel (1966) afirma que as roupas que um indivíduo usa “nos dizem imediatamente<br />

algo de seu sexo, ocupação, nacionali<strong>da</strong>de e posição social” (p. 10-11) e permitem que o ato<br />

de vestir seja usado para comunicar uma ideia ou sentimento.<br />

MULHERES E HOMENS: TESTEMUNHAS RELUTANTES<br />

As testemunhas que contribuem com a investigação, por sua vez, terão em seus<br />

depoimentos sentimentos contrastantes com relação à vítima. O grupo <strong>da</strong>s mulheres,<br />

composto mormente pelas atendentes com quem Lise grita e para as quais seu comportamento<br />

e gosto não condizem com os de uma mulher “normal”, em na<strong>da</strong> pode contribuir para a<br />

constituição de um perfil favorável. Pode-se ponderar, no entanto, que Mrs. Fiedke, tia de<br />

Richard, seja uma exceção, pois parece não se surpreender com o comportamento <strong>da</strong><br />

protagonista, embora o narrador insista em afirmar que tanto sua visão como sua audição<br />

eram deficientes o suficiente para “eliminar o efeito de Lise em percepções normais”: “the<br />

woman’s eyesight is sufficiently dim, her hearing faint enough, to eliminate, for her, the<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

garish effect of Lise on normal perceptions” (SPARK, 1994, p. 51). De qualquer forma, o<br />

contato entre as mulheres é sempre superficial e breve, não havendo entre elas qualquer tipo<br />

de vínculo.<br />

O grupo masculino, por sua vez, estabelece um contato relativamente mais longo<br />

com a protagonista, já que são estas figuras que a acompanham no decorrer <strong>da</strong> narrativa: Bill<br />

a acompanha no avião e, depois, segue-a até o local do assassinato; Carlo salva a personagem<br />

<strong>da</strong> multidão de estu<strong>da</strong>ntes e leva-a de carro pela ci<strong>da</strong>de; Richard acompanha sua vítima do<br />

hotel até o cenário do crime. É possível afirmar que tais relacionamentos amparam-se em uma<br />

falha de comunicação, em que a mensagem se corrompe quando se trata de uma mulher que,<br />

apesar <strong>da</strong>s roupas extravagantes, não deixa de atrair os olhares masculinos. É através do corpo<br />

e, de certa forma, por causa dele que Lise vai sentir as consequências de sua ação pública: o<br />

assédio de Bill, ansioso por sexo; a tentativa de estupro de Carlo, o mecânico; e o rompimento<br />

definitivo com o mundo pelas mãos de Richard, seu assassino.<br />

Massi (2011, p. 113) afirma que o sexo figura dentre os elementos <strong>da</strong>s narrativas<br />

policias contemporâneas, até mesmo o estupro; mas, no caso de Lise, há uma tentativa de<br />

negação deste tipo de proximi<strong>da</strong>de entre a mulher e os homens, sendo que ela insiste em<br />

afirmar sua falta de interesse por esse tipo de relação: “‘If you think you’re going to have sex<br />

with me,’ she says, ‘you’re very much mistaken. I have no time for sex’ [...] ‘Sex is no use to<br />

me’” (SPARK, 1994, p. 94). Ao recusar o papel de objeto sexual, Lise mostra-se detentora de<br />

uma autonomia não aceita por estes homens, que geralmente veem as mulheres como fracas,<br />

manipuláveis e prontas para satisfazerem seus desejos a qualquer momento. Por ter que li<strong>da</strong>r<br />

com o assédio destes homens, Lise percebe que eles reivindicam um poder socialmente<br />

adquirido que a ela não seria <strong>da</strong>do o direito de questionar e, de certa forma, denuncia a<br />

violência estabeleci<strong>da</strong> por uma força hierarquizante que coloca os valores masculinos acima<br />

dos valores femininos, que delega atitudes às mulheres e não aceita questionamentos.<br />

Esse poder autoritário, possível causador <strong>da</strong> morte <strong>da</strong> protagonista, também não<br />

contribui para que se identifique a motivação do assassino, sempre nega<strong>da</strong> por ele e atribuí<strong>da</strong><br />

à vítima, uma vez que Richard, afirma que ela o obrigou a agir <strong>da</strong>quela forma, <strong>da</strong>ndo-lhe até<br />

mesmo instruções quanto à forma como desejava ser morta: “She told me to kill her and I<br />

killed her. She spoke in many languages but she was telling me to kill her all the time. She<br />

told me precisely what to do” (SPARK, 1994, p. 107). A dificul<strong>da</strong>de em conciliar as<br />

motivações do assassino no romance sparkiano se dá em função <strong>da</strong> presença desta força que<br />

subjuga a vontade de ambas as partes.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Estas forças, possivelmente sociais, impõem-se sobre as personagens: a mulher, em<br />

busca de realização, vê na figura masculina a possibili<strong>da</strong>de de consegui-la; no entanto, seu<br />

projeto revela-se um engodo, pois consegue apenas garantir sua própria morte. O homem, que<br />

tradicionalmente seria a figura dominante, é “levado” pela agressivi<strong>da</strong>de e pela autori<strong>da</strong>de<br />

feminina a realizar o ato de violência. Por um lado, pode-se levar em consideração que ao<br />

escolher a morte a mulher estaria aceitando uma condição que, segundo Branco & Brandão,<br />

seria considera<strong>da</strong> a “plenitude do feminino, enquanto defesa contra a castração” (1989, p. 34).<br />

A morte como destino simbólico <strong>da</strong> marginalização social indica a recusa a estereótipos<br />

opressores e, concomitantemente, a exigência <strong>da</strong> autonomia nega<strong>da</strong> às mulheres.<br />

A MARGINALIZAÇÃO DO DETET<strong>IV</strong>E<br />

É necessário atentarmos para uma figura essencial <strong>da</strong>s narrativas policiais que, em<br />

The Driver’s Seat, fica apaga<strong>da</strong> e é menciona<strong>da</strong> somente no último parágrafo do romance: o<br />

detetive que, de acordo com Massi, “trabalha em segundo plano, quase obscuramente”, o qual<br />

“deve sempre sair vencedor, ou seja, encontrar o criminoso e entregá-lo a um destinadorjulgador”<br />

(MASSI, 2011, p. 20-21). Spark, por sua vez, torna esta figura ain<strong>da</strong> mais obscura,<br />

deixando-a quase imperceptível ao evitar mencionar sua presença na narrativa. A importância<br />

deste personagem se dá em vários níveis no texto: primeiro, por conferir justiça social à<br />

vítima ao prender o assassino; segundo, por sutilmente orientar a leitura do romance.<br />

Nesta obra, a autora leva a sério sua afirmação quanto à necessi<strong>da</strong>de de orientar os<br />

leitores ao realizarem uma leitura, uma vez que se deve levar em consideração a perspectiva<br />

do investigador para que a estrutura narrativa e a forma de apresentação <strong>da</strong>s personagens<br />

sejam compreendi<strong>da</strong>s. Com relação à estrutura do texto, primeiramente torna-se claro o<br />

emprego dos tempos verbais no presente e no futuro no lugar do pretérito, que habitualmente<br />

predomina nas narrativas. Segundo Roof,<br />

The narrator drops hints in the future and future perfect tenses that make it<br />

apparent that Lise’s present actions are part of a plan whose fulfillment will<br />

correspond to the end of the novel […] Leaping into the future gives the<br />

present a design, while the present, which already seems to belong to a<br />

future perfect, defines a future whose possible failure of fulfillment produces<br />

tension (ROOF, 2002, p. 50).<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A tensão produzi<strong>da</strong> por esta relação entre os tempos presente e futuro que, de acordo<br />

com a estudiosa, contribuem para o entendimento de que Lise possa ser cúmplice de seu<br />

próprio assassinato, tem como base o enfoque <strong>da</strong>do exclusivamente ao percurso <strong>da</strong> vítima,<br />

que descarta os percursos do criminoso e do detetive, que poderiam prestar esclarecimentos<br />

quanto aos motivos do crime. Acreditamos, porém, que o intuito do romance não reside em<br />

esclarecer as motivações do assassino nem apresentar os detalhes <strong>da</strong> investigação, mas <strong>da</strong>r<br />

relevo à figura feminina, em especial a protagonista, através de um jogo simbólico em que o<br />

que está aparente oculta a ver<strong>da</strong>deira natureza do crime: a violência que assola mulheres<br />

desde há muito tempo e que dificilmente pode ser combati<strong>da</strong> ou evita<strong>da</strong>. Ao contrário, a<br />

empatia <strong>da</strong>s mulheres é substituí<strong>da</strong> por um sentimento constrangedor de que, de certa forma, a<br />

agressivi<strong>da</strong>de e incoerência de suas atitudes a teriam levado a este destino. Por esta razão,<br />

mesmo os leitores, sendo lembrados recorrentemente de que a morte de Lise é inevitável, têm<br />

a impressão de que o problema não estava nos homens que a assediavam, ou no assassino,<br />

mas nela mesma, de forma que sua morte torna-se aceitável e até “natural”: “her death does<br />

not make much impact; we have been alerted to it several times in the narrative and so little<br />

are we drawn to her” (SPROXTON, 1992, p. 142).<br />

INVESTIGANDO CRIMES CONTRA MULHERES<br />

Sob o amparo de feministas como Palmer, cuja afirmação de que os problemas <strong>da</strong>s<br />

mulheres não são pessoais, mas políticos, é possível distinguirmos neste romance sparkiano<br />

um agenciamento <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de se estabelecer uma socie<strong>da</strong>de mais justa para as<br />

mulheres, cujas desigual<strong>da</strong>des devem ser combati<strong>da</strong>s mas, acima de tudo, reconheci<strong>da</strong>s:<br />

“woman’s supposedly ‘personal’ problems, rather than reflecting her own inadequacy, stem<br />

from a collective oppression originating in the imbalance of power between the sexes.”<br />

(PALMER, 1989, p. 43). Justamente este contraste entre os direitos <strong>da</strong>s mulheres e os direitos<br />

dos homens é que marca o romance ao evidenciar que as personagens, por serem desprovi<strong>da</strong>s<br />

de profundi<strong>da</strong>de psicológica ou de motivação, na<strong>da</strong> mais são que títeres sociais, obedecendo<br />

às forças sexistas que regem as relações entre os atores sociais.<br />

A passivi<strong>da</strong>de tanto <strong>da</strong> vítima quanto do assassino deve ser considera<strong>da</strong> primordial<br />

para a constituição do romance porque exigem uma atitude ativa de leitoras e leitores,<br />

contrapondo modelos de interpretação tradicionais de forma a realizar uma leitura que, de<br />

acordo com Queiroz, reivindique<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

outras interpretações naqueles pontos em que elas dizem respeito a<br />

valorações, a juízos de valor sobre conduta de personagens, a partir dos<br />

quais se inferem conceitos gerais retirados <strong>da</strong>s experiências e dos<br />

comportamentos dos personagens nas tramas dos romances. (QUEIROZ,<br />

1997, p. 32 – grifo <strong>da</strong> autora).<br />

Estas “outras interpretações” a que se refere a teórica devem recusar os “conceitos<br />

gerais” estabelecidos pela tradição e olhar a mulher fora de seu papel estereotipado de objeto<br />

sexual, irracional, inferior, dentre outros adjetivos negativos. O romance de Spark busca<br />

oferecer representações dos papéis sociais colocando as mulheres em funções de destaque e<br />

não secundárias, denunciando sua marginalização e opressão, <strong>da</strong>ndo visibili<strong>da</strong>de à reali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s mulheres e atualizando os conceitos para que ocorra uma mu<strong>da</strong>nça.<br />

Atenta para as desigual<strong>da</strong>des sociais/sexuais, Spark traz o leitor para o presente e, de<br />

forma contundente, deixa claro que a história <strong>da</strong>s mulheres conta<strong>da</strong>s por homens não pode ser<br />

justa para elas. A visão do detetive e do assassino que predomina na narrativa tece um destino<br />

inevitável para a mulher, que é a morte, incompreensivelmente deseja<strong>da</strong> por ela, tão ilógica<br />

quanto qualquer atitude feminina. Sob este aspecto, quanto às personagens femininas <strong>da</strong><br />

autora, devemos considerar a contribuição de Sproxton, em sua análise <strong>da</strong>s mulheres<br />

sparkianas, quanto ao conceito de feminismo presente nos romances. Segundo a teórica, Spark<br />

descreve mulheres em busca de digni<strong>da</strong>de e autonomia (domínio de mente) que reivindicam a<br />

integri<strong>da</strong>de espiritual <strong>da</strong> mulher: “she has, in several of her novels, depicted women in a<br />

search for dignity and possession of mind which, in its own way, vindicates a woman’s<br />

spiritual integrity” (SPROXTON, 1992, p. 18).<br />

Para a teoria crítica feminista, a morte pode ser entendi<strong>da</strong> como a aceitação<br />

simbólica <strong>da</strong> margem, do espaço fronteiriço onde as mulheres experimentam suas vivências e<br />

a cultura masculina não pode interferir. Assim, aceitar esta cultura feminina e seu espaço é<br />

considerado uma “transgressão do limite, desobediência à lei do lugar, [e] representa a<br />

parti<strong>da</strong>, a lesão de um estado, a ambição de um poder conquistador, ou a fuga de um exílio, de<br />

qualquer maneira a “traição” de uma ordem.” (CERTEAU, 2003, p. 215 apud BORGES<br />

FILHO, 2007, p. 104-5). À sua maneira, Lise aceita a fronteira quando recusa obedecer aos<br />

padrões comportamentais tradicionais, principalmente ao rejeitar os ditames <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>,<br />

escolhendo roupas chamativas e fora de mo<strong>da</strong>. To<strong>da</strong>via, a aceitação mais evidente deste<br />

espaço cultural feminino é a renúncia ao papel sexual, que fatalmente resulta em sua morte.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

VÍTIMA NO ROMANCE, VÍTIMA NO FILME<br />

Destacamos, ain<strong>da</strong>, que o romance, por mais perturbador e sombrio que seja, não<br />

contou com uma recepção tão negativa quanto sua versão fílmica de 1974, sob a direção do<br />

italiano Giuseppe Patroni Griffi. Curiosamente, um dos fatores que a crítica mais destacou<br />

como falha do filme, não está diretamente relacionado à constituição <strong>da</strong>s personagens, uma<br />

vez que este elemento perdeu seu destaque quando, para o papel de Lise, escolheu-se<br />

Elizabeth Taylor. Como resultado, o que poderia ser fator de divulgação <strong>da</strong> obra em ambas as<br />

versões tornou-se fator de repúdio pelo público <strong>da</strong> atriz, acostumado a vê-la como mulher<br />

atraente e “feminina”. A não aceitação dos fãs <strong>da</strong> atriz, que viram suas características mais<br />

evidentes apaga<strong>da</strong>s pela personagem sparkiana, deixam evidente a afirmação de Souza (1974)<br />

de que<br />

No cinema, a presença em imagem do ator se aplica na sensibili<strong>da</strong>de<br />

inconsciente. Não há oposição entre o espectador e o intérprete. O assistente<br />

identifica-se com o personagem. Ele dá ao personagem a sua carne. Porque o<br />

cinema se dirige à reali<strong>da</strong>de inconsciente, não analisável racionalmente no<br />

primeiro momento ao menos. (SOUZA, 1974, p. 141).<br />

As características de Lise resultaram em um contraste com o conceito de “objeto de<br />

desejo” atribuído a Taylor, o qual era considerado por seus fãs o único tipo de papel que a<br />

atriz poderia desempenhar nos cinemas. Por interpretar mulheres fortes e autônomas, Lyz<br />

Taylor não poderia ter sido associa<strong>da</strong> a uma personagem como a sparkiana, destituí<strong>da</strong> de<br />

poder cuja história, segundo Sproxton, é “a narrativa mais nauseante” <strong>da</strong> escritora escocesa, o<br />

que impede qualquer indício de identificação entre personagem e leitores, tão cara a qualquer<br />

livro ou filme: “Lise’s horrific plot for her own immolation is the most nauseating of Spark’s<br />

narratives […] Her deception, her remoteness, her coldness, her unpredictability, all serve to<br />

alienate her from our capacity for identification” (SPROXTON, 1992, p. 144).<br />

É relevante destacar, ain<strong>da</strong>, que o romance e o filme foram levados ao público na<br />

déca<strong>da</strong> de 1970, quando o movimento <strong>da</strong>s mulheres ain<strong>da</strong> não havia conseguido estabelecer<br />

as mu<strong>da</strong>nças sociais que são observa<strong>da</strong>s hoje. Naquele momento, as mulheres ain<strong>da</strong> sofriam<br />

muitas restrições quanto à atuação pública e, por isso, o romance recebeu um pouco mais de<br />

atenção que o filme.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

The Driver’s Seat passou por uma classificação muito duvidosa <strong>da</strong> crítica, que não<br />

conseguir enquadrá-lo em nenhum gênero literário, sendo denominado de novela, romance de<br />

ficção científica. Por tratar-se de uma narrativa em que predomina uma investigação policial,<br />

seria razoável que figurasse entre as obras do gênero. Contudo, a estrutura narrativa, a forma<br />

de apresentação e constituição <strong>da</strong>s personagens afasta-o deste grupo, pois suas características<br />

não são facilmente identifica<strong>da</strong>s.<br />

Assim, o trabalho de Spark tem a feliz tarefa de desconstruir um gênero e seus<br />

padrões em favor de uma personagem tanto típica quanto secundária dos romances policiais.<br />

É provável que a proposta de inovar o gênero seja esclareci<strong>da</strong> por McQuillan, que acredita<br />

que a escritora escocesa reorganiza os “resquícios <strong>da</strong> tempestade”, que são os conceitos e<br />

práticas sociais contemporâneos, para compor sua ficção: sob seu ponto de vista, Spark<br />

entende a contemporanei<strong>da</strong>de em sua complexi<strong>da</strong>de com base na relação entre mídia, poder<br />

econômico e bélico e práticas sociais e, por conseguinte, seus romances são condutores “dos<br />

sinais e significados em circulação na contemporanei<strong>da</strong>de”: “Spark is a writer of the ‘is’, of<br />

the present. Her novels are a conductor for all the signs and meanings in circulation in the<br />

contemporary scene.” (McQUILLAN, 2002, p. 5).<br />

Colocando a mulher no centro <strong>da</strong> narrativa, retirando-a <strong>da</strong> margem e questionando<br />

seu papel literário, assim como social, Muriel Spark orienta seus leitores a mu<strong>da</strong>rem a<br />

perspectiva. Tradicionalmente acostumados a seguir o ponto de vista em que as mulheres, nas<br />

narrativas policiais, seriam secundárias, sem importância e, muitas vezes incapazes de<br />

contribuir com a investigação, em The Driver’s Seat temos a mulher em um papel que pode<br />

até ter-lhe sido atribuído em narrativas em que o herói é sempre um homem, mas este papel<br />

não se apresenta mais como até então se via.<br />

Lise, que ao longo <strong>da</strong> narrativa parece ser vítima e cúmplice de sua morte, cala<strong>da</strong><br />

pela perspectiva de uma voz narradora que leva em consideração a visão de outras pessoas,<br />

revela a condição de muitas mulheres acusa<strong>da</strong>s de incentivarem a violência masculina em<br />

função de seu comportamento inaceitável. O que a personagem sparkiana enfatiza é, contudo,<br />

uma socie<strong>da</strong>de basea<strong>da</strong> em estereótipos que deve ser repeli<strong>da</strong> pelas mulheres, primeiramente,<br />

para que sejam estabeleci<strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças efetivas e reais na cultura humana contemporânea.<br />

Spark dá visibili<strong>da</strong>de à sua personagem excêntrica em busca de liber<strong>da</strong>de e autonomia para<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

que as mulheres socialmente injustiça<strong>da</strong>s também busquem pelo lugar social que lhes é de<br />

direito, mesmo que pareça um projeto absurdo.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BRANCO, Lucia Castello. BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Apres. Affonso<br />

Romano de Sant’Anna. Rio de Janeiro: Casa-Maria Editorial: LTC – Livros Técnicos e<br />

Científicos Ed., 1989.<br />

FLÜGUEL, J. C. A psicologia <strong>da</strong>s roupas. Tradução Antônio Ennes Cardoso. São Paulo:<br />

Editora Mestre Jou. 1966.<br />

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Ed. François Ewald e Alessandro Fontana<br />

(dir.) Frédéric Gros. Trad. Márcio Alves <strong>da</strong> Fonseca, Salma Tannus Muchail. São Paulo:<br />

Martins Fontes, 2004. (Tópicos)<br />

MASSI, Fernan<strong>da</strong>. O romance policial do século XXI: manutenção, transgressão e inovação<br />

do gênero. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011.<br />

MCQUILLAN, Martin (ed.). Introduction: ‘I Don’t Know Anything about Freud’: Muriel<br />

Spark Meets Contemporary Criticism. In: ______. Theorizing Muriel Spark: Gender, Race,<br />

Deconstruction. New York: Palgrave. 2002, p. 1-31.<br />

PALMER, Paulina. Contemporary women’s fiction: narrative practice and feminist theory.<br />

Jackson: University Press of Mississippi. 1989.<br />

QUEIROZ, Vera. Crítica literária e estratégias de gênero. Niterói: EDUFF, 1997.<br />

ROOF, Judith. The Future Perfect’s Perfect Future: Spark’s and Dura’s narrative drive. In:<br />

MCQUILLAN, Martin (ed.). Theorizing Muriel Spark: Gender, Race, Deconstruction. New<br />

York: Palgrave. 2002, p. 29-66.<br />

SOUZA, Enéas Costa de. Trajetórias do cinema moderno. 2ª. Ed. Porto Alegre: A Nação;<br />

Instituto Estadual do Livro, 1974.<br />

SPARK, Muriel. The Driver’s Seat. 3a. Ed. New York: New Directions Bibelot. 1994.<br />

SPROXTON, Judy. Women as victims. In: The women of Muriel Spark. London: Constable,<br />

1992, p. 114-155.<br />

THE DR<strong>IV</strong>ER’S SEAT. Direção: Giuseppe Patroni Griffi. Produção: Franco Rosselini.<br />

Roteiro: Raffaele La Capria/from the novel by Muriel Spark. Intérpretes: Elizabeth Taylor,<br />

Ian Bannen; Guido Mannari, Mona Washbourne, Maxane Mailfort, Andy Warhol e outros.<br />

[Miracle Pictures], 2004. 1 DVD (105 min).<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

La scomparsa de Majorana de Leonardo Sciascia e I ragazzi di Via Panisperna (Gianni<br />

Amelio, 1989): quando a ciência dos fatos prevalece<br />

BETELLA, Gabriela Kvacek (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Quando Leonardo Sciascia publica o romance no qual utiliza o fato real do<br />

desaparecimento de Ettore Majorana para armar o que chamou de “romance filosófico de<br />

mistério”, o público provavelmente já havia se esquecido dos intrigantes fatos de 1938,<br />

quando o jovem e brilhante físico sumiu, ao que tudo indica, voluntariamente, sem deixar<br />

provas de sua morte ou indícios confiáveis de seu paradeiro. Em 1972, Sciascia toma<br />

conhecimento de pistas misteriosas através de Erasmo Recami, considera os motivos que<br />

poderiam ter feito Majorana sair <strong>da</strong> Itália e depois abandonar a vi<strong>da</strong> quase à maneira<br />

ficcionaliza<strong>da</strong> por Pirandello. Enquanto o romance delibera sobre os vestígios, expõe algumas<br />

teorias sobre o destino do personagem, o filme de Gianni Amelio refaz outro percurso, o <strong>da</strong><br />

história dos rapazes <strong>da</strong> rua Panisperna, evidenciando a figura enigmática de Majorana e os<br />

episódios vibrantes envolvendo alguns dos maiores físicos do mundo. Nosso trabalho revisita<br />

as duas reconstruções do desaparecimento do cientista siciliano explorando os instrumentos<br />

detetivescos movidos por Sciascia, que prefere se deter sobre os fatos diretamente ligados ao<br />

incidente e às possibili<strong>da</strong>des de solução do mistério, e o contexto oferecido por Amelio, cujo<br />

roteiro privilegia a convivência de Majorana com o grupo de jovens cientistas capitaneados<br />

por Enrico Fermi no Instituto de Física em Roma. A opção do diretor oferece as questões<br />

mais humanas envolvi<strong>da</strong>s na atitude pensa<strong>da</strong> do físico, especialmente por explorar as<br />

ansie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong> do grupo, incluindo o que diz respeito aos sentimentos mútuos,<br />

aos medos e, especialmente, ao entusiasmo pela ciência.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Ettore Majorana; Leonardo Sciascia; I ragazzi di Via Panisperna;<br />

Gianni Amelio<br />

ABSTRACT: When Leonardo Sciascia publishes the novel in which he uses the actual fact<br />

of Ettore Majorana’s disappearance in order to create what he calls a “philosophical novel of<br />

mystery”, the public had already probably forgotten the intriguing events of 1938, when the<br />

young and bright physicist disappeared, by all accounts, voluntarily, without leaving proofs of<br />

his death or reliable evidence of his whereabouts. In 1972, Sciascia learns about mysterious<br />

clues by means of Erasmo Recami and considers the motives that could have made Majorana<br />

leave Italy and later abandon his life almost in the mode fictionalized by Pirandello. While the<br />

novel ponders about the traces left by Majorana and expounds some theories about the fate of<br />

the character, the movie by Gianni Amelio goes through another path, of the story of Via<br />

Panisperna boys, stressing the enigmatic figure of Majorana and the exciting episodes<br />

surrounding some of the greatest physicists of the world. Our work revisits the two<br />

reconstructions of the disappearance of the Sicilian scientist, exploring the detective tools<br />

employed by Sciascia, who prefers to concentrate himself upon the facts directly linked to the<br />

incident and to the possibilities of solutions to the mystery, and the context offered by<br />

Amelio, whose script privileges the sociability of Majorana with the group of young scientists<br />

headed by Enrico Fermi in the Physics Institute of Rome. The director’s choice stresses the<br />

more human questions involved in the reasoned attitude of the physicist, especially for<br />

exploring the anxieties of the private life of the group, including all that concerns their mutual<br />

feelings, their fears and especially their enthusiasm for science.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

KEY-WORDS: Ettore Majorana; Leonardo Sciascia; I ragazzi di Via Panisperna; Gianni<br />

Amelio.<br />

A FICÇÃO DOS FATOS<br />

Este trabalho apresenta os resultados de leituras estimula<strong>da</strong>s por um interesse<br />

essencialmente pessoal. O objetivo é estabelecer algumas relações entre o romance de<br />

Leonardo Sciascia (1921-1989), um dos grandes escritores italianos e talvez o maior autor de<br />

romances policiais de seu país, e o filme de Gianni Amelio (1945-), um dos melhores<br />

cineastas <strong>da</strong> geração que começa a produzir filmes na Itália nos anos de 1980, do chamado “o<br />

novo cinema italiano” ou “nova on<strong>da</strong>”. A intenção principal é mostrar alguns aspectos do<br />

filme como leitura de eventos que cercaram alguns homens de ciência no século XX, já que<br />

não se trata de uma a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong> obra de Sciascia. O romance foi publicado em 1975 e o<br />

filme, produzido para a televisão, é de 1989.<br />

A trama de ambos os registros volta-se para fatos reais dos anos de 1930, uma época<br />

efervescente para a física, sobretudo no Instituto de Física <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Roma (hoje<br />

“La Sapienza”) localizado na rua Panisperna número 90, onde jovens cientistas (os “ragazzi”<br />

ou “rapazes” de via Panisperna) produziram além de dois prêmios Nobel e diversos trabalhos<br />

relativos à teoria atômica, mais especificamente grandes contribuições para a manipulação <strong>da</strong>s<br />

forças de atração entre as partículas que formam o átomo. Entre esses cientistas estava o<br />

siciliano Ettore Majorana, um ver<strong>da</strong>deiro prodígio que certamente teria uma brilhante carreira<br />

anuncia<strong>da</strong> pelas suas descobertas até 1938, quando desaparece misteriosamente, aos 32 anos,<br />

deixando mensagens de suici<strong>da</strong>. Seu corpo nunca foi encontrado, porém oficialmente ele<br />

nunca mais foi visto.<br />

O romance de Sciascia indica algumas possibili<strong>da</strong>des para esse desaparecimento, na<br />

ver<strong>da</strong>de concebe uma teoria para explicá-lo: Majorana, cuja sensibili<strong>da</strong>de era privilegia<strong>da</strong>,<br />

teria percebido antes de todos os colegas o perigo que representavam as descobertas sobre a<br />

força destrutiva <strong>da</strong> energia atômica, e não quis tomar parte no possível desenvolvimento de<br />

armamento nuclear para o regime fascista de Mussolini, ain<strong>da</strong> mais naquele momento que<br />

antecedia a segun<strong>da</strong> guerra.<br />

Essa tese de Sciascia provocou muitas reações na Itália. Primeiro, Edoardo Amaldi<br />

(1966; 1968) (um dos “rapazes”) se opôs, argumentando que nenhum cientista poderia prever<br />

na altura dos anos de 1930 o final <strong>da</strong>s pesquisas nucleares. Mais tarde, Erasmo Recami,<br />

organizador <strong>da</strong> bibliografia de Majorana, considera a hipótese do escritor siciliano como uma<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

entre muitas possibili<strong>da</strong>des para explicar a atitude do cientista, sem deixar de dizer que não<br />

estava de acordo com Sciascia porque o autor, convencido <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> de uma i<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

trevas, na qual todos os males <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de são consequências <strong>da</strong>s descobertas científicas, não<br />

soube estabelecer uma distinção entre ciência, tecnologia e produção industrial. Para Recami<br />

(2006), a ciência se assemelha à poesia e à arte, pois é essencialmente busca pelo saber e amor<br />

pelo conhecimento. O tecnólogo está mais interessado em vender um protótipo, produzir em<br />

série, assumir poder econômico ou político.<br />

Ain<strong>da</strong> que tal raciocínio não correspon<strong>da</strong> totalmente à reali<strong>da</strong>de contemporânea, é<br />

preciso considerá-lo para entender o momento histórico <strong>da</strong>s descobertas de Majorana e dos<br />

físicos de sua época. Por outro lado, também é essencial pensar no engajamento de Sciascia<br />

como criador de um personagem sensibilizado pela ameaça do avanço <strong>da</strong> ciência nos anos de<br />

1930. Essa figura literária idealiza<strong>da</strong> por Sciascia nos anos de 1970 não somente traz de volta<br />

os primórdios <strong>da</strong> teoria atômica que culminou na criação de dois dos maiores instrumentos de<br />

destruição (as bombas atômicas lança<strong>da</strong>s sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945), como<br />

discute, através do personagem Majorana e <strong>da</strong> interpretação de sua atitude de abstenção <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, a posição do cientista, levantando um debate muito válido em 1975.<br />

Leonardo Sciascia foi grande especialista em histórias policiais. Normalmente, a<br />

crítica separa esses romances dos “ensaios investigativos” nos quais o autor examina com<br />

atenção documentos de arquivo relativos a fatos reais sem explicação definitiva, como é o<br />

caso de La scomparsa di Majorana. Neste livro a metodologia detetivesca (ou o modo<br />

policial de armar uma história) constrói a narrativa que, no entanto, está impregna<strong>da</strong> <strong>da</strong>s<br />

discussões éticas <strong>da</strong> época em que o livro é escrito. Segundo Wren-Owens (2004), nos anos<br />

de 1970, quando a violência estava sendo usa<strong>da</strong> para justificar posições morais tanto <strong>da</strong><br />

esquer<strong>da</strong> quanto <strong>da</strong> direita, quando os mesmos meios de violência estavam sendo usados para<br />

ganhar terreno, Sciascia volta aos anos de 1930 para tratar os esforços para obtenção de<br />

energia atômica como indiscrimina<strong>da</strong>mente nefastos, ou seja, tanto fazia desenvolver a<br />

pesquisa nuclear para um lado ou para outro dos possíveis rivais na guerra que chegaria.<br />

Dessa forma, o autor se baseia na reali<strong>da</strong>de do seu presente – em que tanto direita quanto<br />

esquer<strong>da</strong> sequestravam, puniam e matavam civis. Sciascia (1991) lê o passado e justifica a<br />

desistência de Majorana, sem classificá-la como atitude antifascista (ou mesmo entusiasta do<br />

fascismo), impossível de se provar tendo em vista o momento e o espaço em que Ettore<br />

transitava, quando só se encontravam antifascistas na prisão.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Sciascia cria um poderoso personagem como símbolo de protesto ao descontrole <strong>da</strong>s<br />

forças de violência e dos abusos de poder. Erasmo Recami (2006, 148) afirma que<br />

A propósito do próprio relato “misto de história e invenção”, Sciascia havia<br />

declarado: “Eu o escrevi a partir <strong>da</strong> memória que tinha do desaparecimento e<br />

sobre os documentos que, por intermédio do professor Recami, cheguei a ter,<br />

depois de ter casualmente ouvido um físico falar com satisfação, e ain<strong>da</strong> por<br />

cima com entusiasmo, sobre as bombas que haviam destruído Hiroshima e<br />

Nagasaki. Por indignação, então, e entre os documentos e a imaginação, os<br />

documentos aju<strong>da</strong>ndo a tornar provável a imaginação, fiz de Majorana o<br />

símbolo do homem de ciência que reluta em se colocar naquela perspectiva<br />

de morte na qual outros com desenvoltura, para dizer pouco, tinham-se<br />

iniciado.”<br />

Na obra de Sciascia, o desaparecimento de Majorana é interpretado como uma<br />

espécie de sacrifício para nos dizer que a utilização <strong>da</strong> ciência com propósitos de progresso e<br />

poder é responsabili<strong>da</strong>de de todos. O cientista comparado a Galileu e Newton pelo Prêmio<br />

Nobel Enrico Fermi renuncia à ciência e se retira dela. Essa construção simbólica é<br />

essencialmente literária – imagina<strong>da</strong> pelo autor – e por isso pode adquirir capaci<strong>da</strong>de de<br />

transformar os fatos e pessoas reais em situações romanescas e personagens emblemáticos,<br />

como Majorana, síntese do comportamento do bom cientista. Se a situação forja<strong>da</strong> por<br />

Sciascia preferiu um final mais reconfortante, depositando uma grande confiança no fato de<br />

Ettore Majorana ter forjado sua morte e sobrevivido, também é preciso levar em conta, de<br />

acordo com Aurora Bernardini (apud RECAMI, 2006, p. 153), que<br />

[...] a hipótese crível e fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> de uma sobrevivência de Majorana não<br />

só é generosa, como é mais revolucionária ou, pelo menos, mais progressista<br />

do que o cômodo suicídio. Descartando o lugar-comum segundo o qual o<br />

gênio dos físicos é precoce e de vi<strong>da</strong> breve, ou que um físico pode ter um<br />

grande talento no seu domínio e ser um imbecil no resto, tanto quanto se<br />

sabe Majorana não ficou senão acreditando que nele a geniali<strong>da</strong>de tinha<br />

antecipado a descoberta <strong>da</strong> sua ver<strong>da</strong>de, ou <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de tout court que Ivan<br />

Ílitch de Tolstói descobre somente pouco antes de morrer. Quais são os<br />

momentos ver<strong>da</strong>deiramente vivos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> Ca<strong>da</strong> um tem a sua resposta,<br />

quase sempre em atraso. Majorana a teria obtido antes. Seria muito útil para<br />

a humani<strong>da</strong>de odierna o seu legado em propósito. Talvez ain<strong>da</strong> mais útil que<br />

o seu legado enquanto físico.<br />

Se por um lado Ettore Majorana cultivava hábitos pouco sociáveis, por outro não<br />

fazia questão de mencionar ou detalhar a importância nem a natureza de suas pesquisas,<br />

preferindo classificá-las como “de natureza varia<strong>da</strong>”, ao contrário de presunçosos acadêmicos<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

de hoje em dia. O desapego pelo tom e pela organização burocrática é a característica de<br />

Majorana mais explora<strong>da</strong> por Sciascia. A narrativa deixa claro o quão embaraçoso é para o<br />

rapaz atender às solicitações, cumprir as obrigações, afinal tratava-se de um processo de<br />

a<strong>da</strong>ptação “de um homem não a<strong>da</strong>ptado” (SCIASCIA, 1991, p. 22). O romance define<br />

Majorana pelo seu isolamento e desconfiança de algo despertado pela equipe de Fermi no<br />

físico siciliano. Também considera sua origem, afirmando que assim como “todos os ‘bons’<br />

sicilianos, como todos os sicilianos melhores, Majorana não tinha o menor pendor para<br />

formar grupos [...] (os sicilianos piores são aqueles que têm o espírito de clã, de camarilha)”<br />

(SCIASCIA, 1991, p. 24). Conforme se observa, os aspectos mais humanos de Majorana não<br />

deixam de aparecer, ain<strong>da</strong> que por insinuação, no relato de Sciascia. Entretanto, é numa<br />

versão audiovisual <strong>da</strong> história vivi<strong>da</strong> pelos físicos italianos dos anos de 1930 que a<br />

sensibili<strong>da</strong>de do cientista é explora<strong>da</strong> mais deti<strong>da</strong>mente.<br />

O filme de Gianni Amelio aparece após mais de dez anos do livro de Sciascia, em<br />

tempos de muita populari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ficção científica – a déca<strong>da</strong> de 1980 foi, definitivamente, o<br />

período <strong>da</strong>s grandes produções do gênero no cinema, se lembrarmos sobretudo de Blade<br />

Runner (Ridley Scott, 1982) dos filmes idealizados, produzidos ou dirigidos por George<br />

Lucas e Steven Spielberg (Guerra nas Estrelas episódios 5 e 6; E.T., o extraterrestre). Mas, a<br />

déca<strong>da</strong> de 1980, na Itália, é marca<strong>da</strong> pelos dois man<strong>da</strong>tos de Benedetto Craxi como primeiroministro,<br />

cuja carreira política, além de todos os efeitos de desastrosos passos, sofreu um<br />

grande baque com as investigações <strong>da</strong> operação Mani pulite (Mãos limpas), que colocaram o<br />

político como um dos símbolos <strong>da</strong> corrupção no país. A título de atualização, é preciso<br />

recor<strong>da</strong>r o desastre nuclear na usina de Chernobyl, ocorrido em 1986, considerado o pior<br />

acidente desse tipo, provocando um grande debate internacional sobre energia nuclear. No<br />

que diz respeito aos fatos <strong>da</strong> história de Majorana, o filme estreia um ano depois do<br />

cinquentenário de seu desaparecimento. Como se pode observar, a época de fato pedia uma<br />

representação capaz de questionar o papel <strong>da</strong> ciência e dos cientistas.<br />

Na cena que abre o filme de Amelio, um ponto importante é colocado, possivelmente<br />

com o intuito de separar a nova fase representa<strong>da</strong> pelo grupo de Fermi na ciência italiana. Os<br />

rapazes fazem uma brincadeira durante a transmissão que deveria levar um discurso de<br />

Marconi através do rádio. Com engenhoso planejamento, os jovens interrompem a<br />

transmissão para noticiar a morte do notório cientista precursor do rádio. A atitude se<br />

configura como protesto, e pode ser entendi<strong>da</strong> como uma posição contrária à idolatria <strong>da</strong><br />

figura do cientista, procedimento utilizado pelo fascismo como exemplo de patriotismo e<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

geniali<strong>da</strong>de do povo italiano. Ao desautorizar e praticamente protestar contra o estereótipo, os<br />

jovens rapazes do Instituto de Física criam um grande problema para Orso Corbino,<br />

incentivador do instituto, porém marcam sua trajetória como expoentes de um novo modo de<br />

se pensar a ciência, sobretudo a física, naquele momento. Os personagens no filme de Amelio<br />

apostam nesse caminho, ain<strong>da</strong> que o comportamento quase imaturo pudesse colocar em risco<br />

a credibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> crítica ao sistema.<br />

OS FATOS DA FICÇÃO<br />

Depois de sua passagem pela via Panisperna, Majorana era professor de física teórica<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Nápoles desde janeiro de 1938. Já era bastante conhecido pelas suas<br />

pesquisas sobre o núcleo e a fissão do átomo, considera<strong>da</strong>s por muitos a origem <strong>da</strong> energia<br />

atômica. Desde 25 de março <strong>da</strong>quele ano não se teve mais notícias dele. Para Leonardo<br />

Sciascia a inquietação de Majorana se torna lucidez e consciência em meio a um panorama de<br />

futuro catastrófico. Para Gianni Amelio, a noção precisa dos fatos e a toma<strong>da</strong> de atitude é<br />

serena, conforme se percebe na cena em que Majorana (interpretado por Andrea Pro<strong>da</strong>n) erra<br />

os cálculos durante uma aula, sorri com certa ironia e abandonando a sala para em segui<strong>da</strong><br />

deixar o convívio dos que o conheciam. Após Ettore fechar a porta do gabinete de professor,<br />

anexo ao anfiteatro, a cena corta para os colegas desolados ao redor de uma mesa,<br />

inconformados com o suposto fim do companheiro.<br />

Majorana era un enfant prodige do cálculo, um erudito neurótico, admirador de<br />

literatura clássica – Shakespeare, Pirandello, Ibsen, e tantos outros – e, na leitura de Amelio,<br />

também de Aldous Huxley. No filme, Il mondo nuovo (título em italiano para Brave New<br />

World) é o romance folheado por Ettore numa cena de rua que antecede uma conversa com<br />

Fermi que, sensibilizado ou interessado em estreitar relações com Ettore, oferece o romance<br />

ao colega como presente. Esse exemplar do livro mais famoso de Huxley, publicado em 1932,<br />

é recebido pelo personagem de Enrico Fermi <strong>da</strong>s mãos de Antonio Carrelli quando vai a<br />

Nápoles em busca de pistas de Majorana. Nessa cena, talvez início <strong>da</strong> única sequência<br />

policialesca do filme, <strong>da</strong>do o caráter investigativo, Fermi encontra uma fotografia de Ettore<br />

dentro do volume, como uma pista a ser segui<strong>da</strong>. O instantâneo mostra o rapaz de perfil, como<br />

pego de surpresa caminhando, sorrindo – com ironia, loucura, sereni<strong>da</strong>de, deboche, enfim<br />

várias interpretações são possíveis. Ao seu lado, uma espécie pia de água benta, ostentando<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

acima uma grande placa com a inscrição: Similis erit mors atque vita fuit (que do latim ao<br />

português seria algo como “A morte será similar ao que foi a vi<strong>da</strong>”). Utiliza<strong>da</strong> em igrejas<br />

especialmente durante a I<strong>da</strong>de Média para amedrontar os fiéis, pela ameaça de uma morte<br />

terrível para uma vi<strong>da</strong> desregra<strong>da</strong>, a frase também pode conter uma certeza inexorável, se<br />

toma<strong>da</strong> no sentido mais imediato (e laico), permanecendo a ideia de que assim como houve<br />

vi<strong>da</strong> haverá morte.<br />

No entanto, quando Fermi prossegue a investigação seguindo a pista <strong>da</strong> fotografia,<br />

encontra a pia num mosteiro (e uma <strong>da</strong>s hipóteses levanta<strong>da</strong>s na investigação real do caso<br />

Majorana foi a de que ele teria se recolhido a um mosteiro) e, permanecendo parado por<br />

alguns instantes diante dela, provavelmente entendia a mensagem cifra<strong>da</strong> na pista deixa<strong>da</strong> por<br />

Ettore. Para o espectador, muito se revela na imagem: Fermi está de costas para a câmera, de<br />

frente para a inscrição na pedra, e sua sombra, à altura <strong>da</strong> cabeça até os ombros, encobre parte<br />

<strong>da</strong> sentença em latim. O que permanece é Similis mors atque fuit – que, por sinal, soa melhor<br />

como máxima de efeito – ou algo que admite a tradução como “Assim como a morte (ele) se<br />

foi”.<br />

Majorana teria deixado um conforto para o colega com quem tivera anima<strong>da</strong>s<br />

competições de cálculo. Fermi, por sua vez, não reluta em seguir o indício que poderia<br />

explicar o paradeiro de Ettore, pois a ver<strong>da</strong>de é que sua obstinação e seu inconformismo<br />

revelam a grande admiração pelo prodígio, pela esperança de uma grande carreira e muito<br />

provavelmente um Prêmio Nobel. Gianni Amelio reproduz essa relação como amizade não<br />

assumi<strong>da</strong>, tanto por causa do isolamento de Majorana quanto devido às dificul<strong>da</strong>des de<br />

relacionamento de Fermi. Num determinado momento do filme, Ettore lhe diz: “Você ama as<br />

coisas mortas porque tem medo dos seres humanos”.<br />

Fermi é o cientista genuíno, preocupadíssimo com as experiências que desenvolvia<br />

com seu grupo no Instituto de Física, a ponto de perder o momento do nascimento <strong>da</strong> primeira<br />

filha. Ain<strong>da</strong> que estivessem conscientes de inaugurar uma nova era na física, Fermi e os<br />

rapazes de via Panisperna tinham muito de ousadia <strong>da</strong> juventude. Mais que um retrato<br />

ideológico, o filme de Amelio traz um retrato sentimental do grupo. O tom íntimo vem<br />

assinalado desde os créditos iniciais, quando os papéis são apresentados apenas pelo primeiro<br />

nome, e os personagens se tratam dessa forma o tempo todo, à exceção de algumas referências<br />

ao “Professore Fermi” e ao “Professore Majorana”. Amelio recria a convivência e suas<br />

implicações (afetos, ressentimentos, interesses, ciúmes), bem como a proposta ideológica<br />

através de um pensamento contemporâneo que respeita a “i<strong>da</strong>de <strong>da</strong> inocência” e não deixa de<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

tocar nos conflitos provocados pela liber<strong>da</strong>de de pesquisa e pelo estreitamento <strong>da</strong>s relações<br />

sociais. O diretor permite o uso de situações ficcionais para tratar desse conflito.<br />

As últimas cenas do filme I ragazzi di via Panisperna (Gianni Amelio, 1989) trazem<br />

Enrico Fermi embarcado para a América no conturbado ano de 1938, após ser premiado com<br />

o Nobel de Física. As leis raciais já estão em vigor na Itália, Enrico e a esposa Laura estão<br />

apreensivos com a condição de imigrantes que os aguar<strong>da</strong>. Ettore Majorana havia<br />

desaparecido e todos os esforços para encontrá-lo, inclusive do próprio Fermi, foram em vão.<br />

O professor relembra o colega com uma frase de Isaac Newton, que Ettore repetia, e reproduz<br />

deste modo: “Eu não sei como o mundo me julga. Tenho a impressão de ser uma criança<br />

brincando à beira-mar, divertindo-se em descobrir uma pedrinha mais lisa que as outras ou<br />

uma concha mais bonita que as outras, enquanto o oceano <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de continua inexplorado<br />

diante dele.” No filme a fala é a seguinte: Io non so come mi giudica il mondo. A me sembra<br />

di essere un bambino che gioca sulla riva del mare, ed è contento quando trova un ciottolo<br />

più liscio degli altri o una conchiglia più bella delle altre; mentre il mare della verità resta<br />

inesplorato <strong>da</strong>vanti a lui. A frase original, por sua vez inseri<strong>da</strong> no fragmento completo<br />

atribuído a Isaac Newton, seria: I don't know what I may seem to the world, but as to myself, I<br />

seem to have been only like a boy playing on the sea-shore and diverting myself in now and<br />

then finding a smoother pebble or a prettier shell than ordinary, whilst the great ocean of<br />

truth lay all undiscovered before me (apud MANDELBROTE, 2001, p. 9). Com a<br />

comparação devi<strong>da</strong>, Amelio oferece ao brilhante físico italiano o lugar ao lado do cientista<br />

idolatrado por to<strong>da</strong> a comuni<strong>da</strong>de científica. Fermi refere-se a Majorana como gênio, defende<br />

sua posição de querer desaparecer, embora Laura ressalte que Ettore, com to<strong>da</strong>s as suas<br />

quali<strong>da</strong>des excepcionais, não tinha bom senso. O filme deixa marca<strong>da</strong> a opinião do cientista e<br />

a opinião dos leigos, que realmente dividirão território nos comentários sobre o<br />

desaparecimento.<br />

O filme se encerra com a figura de Majorana à meia-luz, aparentemente também ao<br />

ar livre numa embarcação, com o semblante triste. O som de ventania, presente desde a<br />

toma<strong>da</strong> com o casal Fermi, se intensifica. O vulto de Majorana é substituído, num corte, pelo<br />

de Fermi, a imagem de Ettore retorna. O contraponto está feito: o cientista humanizado não<br />

resiste ao mundo de convenções, enquanto o acadêmico segue o percurso linear com<br />

resultados de reconhecimento. Um está na consciência do outro, como se tivessem<br />

experimentado seu oposto. A tela escurece e o vento sopra por alguns instantes – seria o vento<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

pirandelliano Aqui, o filme parece optar pela visa<strong>da</strong> literária, apostando na citação oblíqua<br />

de um autor siciliano, não por acaso ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1934.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

AMALDI, Edoardo, Nota biografica. La vita e le opere di Ettore Majorana. Roma:<br />

Accademia Nazionale dei Lincei, 1966.<br />

_____. Ricordo di Ettore Majorana. Giornale di Fisica. vol. 9, p. 300 Bologna 1968 S.I.F.<br />

Società Italiana di Fisica. Disponível em:<br />

. Acesso em: 12 dez. 2011.<br />

I ragazzi di via Panisperna. Direção: Gianni Amelio. Itália: La Bin Distribuzione, 1989.<br />

Filme (180 min), 35 mm, colorido.<br />

MANDELBROTE, Scott (Org.). Footprints of the lion: Isaac Newton at work. Catalogue of<br />

Exhibition at Cambridge University Library. Cambridge: Cambridge University Library,<br />

2001.<br />

RECAMI, Erasmo. I peccati della scienza. Fon<strong>da</strong>zione liberal 38, 2006, p. 146-153.<br />

SCIASCIA, Leonardo. Majorana desapareceu. Trad. Mário Fondelli. Rio de Janeiro: Rocco,<br />

1991.<br />

WREN-OWENS, Liz. he Tools of the Detective: Leonardo Sciascia’s approach to literature<br />

in the mid to late 1970s. Proceedings of the International Conference: The Value of<br />

Literature in and after the Seventies: The Case of Italy and Portugal, 11-13 March 2004,<br />

Utrecht, The Netherlands. Disponível em: . Acesso em: 12<br />

dez. 2011.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O folhetim, o policial e o picaresco no romance Malditos paulistas, de Marcos Rey<br />

BOTOSO, Altamir (UNIMAR-SP)<br />

RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar uma análise do romance Malditos paulistas:<br />

romance policial-picaresco (1980), do escritor paulista Marcos Rey (1925-1999), visando<br />

destacar os elementos de sua construção na qual se verifica a mescla de três gêneros literários:<br />

o romance folhetim, a narrativa policial e o relato picaresco. O romancista empreende uma<br />

retoma<strong>da</strong> paródica desses três gêneros e o resultado disso é um livro no qual o humor e o riso<br />

são os elementos preponderantes e garantem uma leitura amena e bastante agradável para o<br />

deleite de todo e qualquer leitor.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Folhetim; Romance Picaresco; Romance Policial; Marcos Rey;<br />

Malditos paulistas.<br />

RESUMEN: El objetivo de este artículo es presentar un análisis de la novela Malditos<br />

paulistas: romance policial-picaresco (1980), del escritor de São Paulo Marcos Rey (1925-<br />

1999), buscando destacar los elementos de su construcción en la cual se verifica la mezcla de<br />

tres géneros literarios: el folletín, la narrativa policíaca y la novela picaresca. El novelista<br />

realiza una retoma<strong>da</strong> paródica de eses tres géneros y eso resulta en un libro en el cual el<br />

humor y la risa son los elementos predominantes y garantizan una lectura amena y muy<br />

agra<strong>da</strong>ble para el deleite de todo y cualquier lector,<br />

PALABRAS-CLAVE: Folletín; Novela Picaresca; Novela Policíaca; Marcos Rey; Malditos<br />

paulistas.<br />

O romance Malditos paulistas, de Marcos Rey (1925-1999), foi publicado pela<br />

primeira vez em 1980, pela Editora Ática. Nessa obra são narra<strong>da</strong>s as aventuras de um<br />

malandro, Raul, que sai do Rio de Janeiro e vai para São Paulo, onde entrará em contato com<br />

a alta socie<strong>da</strong>de, ao conseguir o emprego de motorista na mansão do italiano Duílio Paleardi.<br />

Ele mantem casos amorosos com as emprega<strong>da</strong>s <strong>da</strong> casa e trabalha pouco. Tudo vai bem até<br />

que uma joia muito valiosa de Alba, mulher de Duílio, é rouba<strong>da</strong>. A polícia é chama<strong>da</strong> e<br />

encontra a joia no painel de um dos carros dirigidos por Raul, o Alfa-Romeo. Ele é preso, mas<br />

nega veementemente que tenha sido o autor do delito. Permanece na prisão por algum tempo<br />

até ler a notícia <strong>da</strong> morte de um marinheiro, Johanson Olsen, que ele vira conversando com<br />

Duílio na mansão. Escreve a Duílio, ameaçando vela<strong>da</strong>mente revelar à polícia esse fato.<br />

Duílio retira a queixa contra Raul e o contrata como seu secretário.<br />

Na mansão, Raul conhece a nova mulher do patrão, Walesca, uma mulata de quem se<br />

torna amante. A joia que pertencia a Alba desaparece uma segun<strong>da</strong> vez. Um pouco mais tarde,<br />

Raul é demitido do trabalho. Conhece Talita, uma streapteaser que usa o nome de April<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Jones, apaixonando-se por ela. Em seu apartamento, Raul vê uma foto de Olsen e começa a<br />

investigar, chegando até a um teatro de marionetes coman<strong>da</strong>do por Victor Sandrini e descobre<br />

que seu patrão contrabandeava diamantes e man<strong>da</strong>ra matar Olsen porque este o chantageara.<br />

Depois que consegue fugir de Sandrini e seus comparsas, Raul retorna à casa de Paleardi à<br />

noite para apanhar a joia que ele havia escondido novamente no Alfa-Romeo.<br />

O livro contem setenta e cinco capítulos curtos e todos recebem um título, de modo<br />

semelhante a relatos ficcionais como Dom Quixote (1ª parte, 1605, 2ª parte, 1615), de Miguel<br />

de Cervantes (1547-1616), Os três mosqueteiros (1844), de Alexandre Dumas (1802-1870),<br />

Tom Jones (1749), de Henry Fielding (1707-1754), só para mencionar alguns títulos bastante<br />

conhecidos.<br />

Ao longo <strong>da</strong>s peripécias de Raul, se pode perceber niti<strong>da</strong>mente que o romance de<br />

Marcos Rey segue a fórmula do folhetim, com os cortes no fim do capítulo, as reviravoltas na<br />

trama, os capítulos curtos e a tentativa de entreter o leitor e cativá-lo para garantir a sua<br />

adesão à história que é conta<strong>da</strong>.<br />

Marcos Rey escreveu não só romances, mas também diversos livros de literatura<br />

infanto-juvenil, novelas para televisão como A Moreninha (1975-1976), Cuca legal (1975),<br />

minisséries – Os tigres (1968), Memórias de um gigolô (1986) e, portanto, é compreensível<br />

que ele dominasse a técnica do folhetim e a empregasse na confecção de suas histórias.<br />

O romance folhetim, segundo Marlyse Meyer (apud CONVERSANI e BOTOSO,<br />

2010, p. 38), divide-se em três períodos:<br />

1) de 1836 a 1850 – cujos representantes foram Eugène Sue (1804-1857)<br />

com Os mistérios de Paris (1842-43), O judeu errante (1844-45) e<br />

Alexandre Dumas (1802-1870) com Os três mosqueteiros (1844) e O conde<br />

de Monte Cristo (1845). Tais obras definiram o perfil do romance-folhetim,<br />

basea<strong>da</strong>s nos dramas do quotidiano e também na vertente histórica, com<br />

obras do inglês Walter Scott (1771-1832);<br />

2) de 1851 a 1871 – destacam-se Pierre Aléxis Ponson du Terrail (1829-<br />

1871) com Dramas de Paris (1865) e Paul Féval (1817-1887) com Mistérios<br />

de Londres (1844);<br />

3) de 1871 a 1914 – tornaram-se célebres Xavier de Montépin (1823-1902),<br />

autor de A entregadora de pães (1885) e Émile Richebourg (1833-1898),<br />

que escreveu A toutinegra do moinho (1892).<br />

No primeiro período do romance-folhetim há heróis, quase super-homens, que são<br />

capazes de vencer qualquer obstáculo e auxiliar as cama<strong>da</strong>s mais desfavoreci<strong>da</strong>s a<br />

solucionarem seus problemas. No segundo, a maior preocupação dos escritores de folhetim é<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

proporcionar entretenimento ao público-leitor por meio <strong>da</strong>s histórias de aventuras que<br />

privilegiam o enredo e, no último período, as histórias folhetinescas buscam contestar o poder<br />

do governo e oferecer soluções palpáveis para os problemas sociais enfrentados pelo povo<br />

francês.<br />

Raul pode ser aproximado dos heróis do segundo período, visto que a sua história é<br />

um relato de aventuras e ele pode ser visto como uma paródia de personagens como<br />

Rocambole, Edmond Dantès, Rodin dentre outros, já que é um anti-heroi, que só se preocupa<br />

consigo mesmo e sua meta é sobreviver sem ter que se dedicar a um trabalho rotineiro e diário<br />

e com dinheiro para satisfazer suas necessi<strong>da</strong>des, sem ter que depender de um patrão.<br />

Em Malditos paulistas, Raul é o narrador-personagem que se define como alguém<br />

avesso ao mundo do trabalho desde as primeiras páginas do romance:<br />

[...] Salva-vi<strong>da</strong>s em Ipanema e Leblon, com curso especializado de boca-aboca,<br />

e falso cabo eleitoral junto a fábricas e colégios foram duas de minhas<br />

profissões temporárias. Fracassei nessas e noutras ativi<strong>da</strong>des, obstado pelo<br />

calor e entretido pelo fascínio <strong>da</strong> natureza do Rio.<br />

[...]<br />

Desiludido, e um tanto amargurado por ain<strong>da</strong> não ter aos trinta e poucos<br />

caderneta de poupança, tomei a imprevista decisão de mu<strong>da</strong>r-me para São<br />

Paulo [...]. Em São Paulo, enquanto aprendia o idioma, trabalhei numa casa<br />

de jogos eletrônicos, dirigi um ônibus de turismo urbano, o insípido SÃO<br />

PAULO À NOITE, fui garçom de cantina do Bexiga, extra duma telenovela,<br />

instrutor de natação dum paraplégico rico [...]. (REY, 1985, p. 5-6).<br />

Além de exercer ofícios temporários, Raul usa sua beleza para conquistar as<br />

mulheres que cruzam seu caminho e chega a viver alguns períodos do dinheiro que consegue<br />

extrair de suas vítimas. No entanto, a sua característica mais marcante é a itinerância, que o<br />

conduz, como um barco à deriva, a viver constantemente uma vi<strong>da</strong> de aventuras, cheia de<br />

ação, emoção e suspense. Nesse sentido, Raul pode ser visto como uma recriação do<br />

pícaro, o protagonistas dos romances picarescos espanhóis.<br />

O romance picaresco é uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de literária que abrange um conjunto de obras<br />

escritas na Espanha, durante os séculos XVI e XVII. Seu eixo centra-se no pícaro,<br />

personagem de baixa condição social, que procura por todos os meios possíveis e,<br />

particularmente, pela trapaça, pelo engano, pelo roubo e pelo rufianismo, ascender<br />

socialmente e viver confortavelmente, sem precisar trabalhar. Três obras constituem o núcleo<br />

clássico, ou picaresca clássica: Lazarillo de Tormes, de autor anônimo, publica<strong>da</strong> em 1554,<br />

Guzmán de Alfarache, de Mateo Alemán (1547-1615), cuja primeira parte apareceu em 1599<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

e a segun<strong>da</strong>, em 1604, e El Buscón, de Francisco de Quevedo (1580-1645), que vem a público<br />

em 1626. Esses livros apresentam a história de um anti-herói que, valendo-se de sua astúcia,<br />

tenta integrar-se à socie<strong>da</strong>de, narrando ele próprio as suas aventuras e desventuras.<br />

Devido a sua estrutura episódica, a obra Lazarillo de Tormes é a primeira a ser<br />

publica<strong>da</strong> num espaço específico do jornal – o ro<strong>da</strong>pé, conforme aponta Marlyse Meyer:<br />

[...] Lançando a sementeira de um boom lítero-jornalístico sem precedentes e<br />

aberto a formidável descendência, vai-se jogar ficção em fatias no jornal<br />

diário, no espaço consagrado ao folhetim vale-tudo. E a inauguração cabe ao<br />

velho Lazarillo de Tormes: começa a sair em pe<strong>da</strong>ços cotidianos a partir de 5<br />

de agosto de 1836. [...] A receita vai se elaborando aos poucos, e, já pelos<br />

fins de 1836, a fórmula “continua amanhã” entrou nos hábitos e suscita<br />

expectativas. [...] a<strong>da</strong>ptado às novas condições de corte, suspense, com as<br />

necessárias redundâncias para reativar memórias ou esclarecer o leitor que<br />

pegou o bonde an<strong>da</strong>ndo. No começo <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1840 a receita está no<br />

ponto, é o filé mignon do jornal, a grande isca para atrair e segurar os<br />

indispensáveis assinantes. (1996, p. 59)<br />

O romance picaresco, como é o caso do Lazarillo de Tormes, caracteriza-se pelo fato<br />

de se estruturar em episódios, tendo como elemento unificador o pícaro, que vivencia as<br />

aventuras de tais episódios e, por isso, pôde ser publicado em partes na imprensa.<br />

Ao analisar o romance I Beati Paoli (1909), de Luigi Natoli (1857-1941), Umberto<br />

Eco acentua a retoma<strong>da</strong> de elementos de construção do romance picaresco pelo referido<br />

romance:<br />

O romance, embora adensando os episódios e reabrindo os que pareciam<br />

fechados, não desdenha em recorrer por momentos à estrutura picaresca, e<br />

vemos o herói realizar várias peregrinações, encontrar e reencontrar velhas e<br />

novas personagens, enfrentar adversi<strong>da</strong>des inauditas, sem jamais perder suas<br />

características de irresponsável joviali<strong>da</strong>de. (1991, p. 82)<br />

O romance-folhetim, portanto, em muitas ocasiões, recorre a elementos <strong>da</strong> picaresca<br />

para plasmar seus protagonistas e abrir-lhes as portas para a “exploração extrema <strong>da</strong><br />

capaci<strong>da</strong>de fabuladora” (CANDIDO, 1996, p. 15) de seus autores.<br />

Assim, com base no que foi exposto, percebe-se em Malditos paulistas que Marcos<br />

Rey funde a estrutura folhetinesca à narrativa picaresca, conforme denuncia o subtítulo de seu<br />

texto: “romance policial-picaresco” (REY, 1991).<br />

O protagonista do livro de Marcos Rey é um ser sem raízes familiares, que sobrevive<br />

de empregos temporários, os quais é sempre obrigado a abandonar, em virtude de praticar<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

alguma contravenção: roubar, explorar as mulheres que cruzam seu caminho, tentar sempre<br />

tirar alguma vantagem <strong>da</strong>queles que o cercam. Também dedica-se ao jogo, enganando todos<br />

que se atrevem a enfrentá-lo numa parti<strong>da</strong> de pôquer, bacará, pife-pafe etc.<br />

Lázaro de Tormes, Guzmán, Pablos de Segóvia, protagonistas dos romances<br />

picarescos do núcleo clássico, também apelam para o trabalho, são explorados por seus<br />

patrões (seus amos), costumam roubá-los e são frequentemente demitidos de seus ofícios. Em<br />

determinados momentos de suas aventuras, valem-se do jogo para sobreviver e aspiram a uma<br />

posição dentro <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de que criticam em suas narrativas.<br />

Dessa maneira, é plausível considerar que Marcos Rey parodia o romance picaresco<br />

ao utilizar como personagem central um anti-herói que se pauta pela sua inteligência e astúcia<br />

para tentar se integrar a uma socie<strong>da</strong>de que é to<strong>da</strong> corrompi<strong>da</strong> e que se empenha em minar<br />

to<strong>da</strong>s as tentativas <strong>da</strong>queles que são pobres de penetrar e fazer parte de seu destacado grupo.<br />

No romance em apreço, Duílio Paleardi, Alba, sua primeira mulher, e Walesca, a<br />

segun<strong>da</strong> mulher do poderoso italiano, são representantes dessa socie<strong>da</strong>de parasitária, dedica<strong>da</strong><br />

ao ócio e que se sustenta por meio de ativi<strong>da</strong>des ilícitas como é o caso de Duílio, um<br />

contrabandista de diamantes. No fim, ninguém é punido e constamos que Raul não é melhor e<br />

nem pior que seus patrões e usa as mesmas armas que eles para ser bem sucedido.<br />

A retoma<strong>da</strong> paródica efetua<strong>da</strong> por Marcos Rey estende-se também à narrativa<br />

policial, em especial o romance enigma de Agatha Christie (1890-1976). Esse tipo de<br />

narrativa contem duas histórias: “a história do crime e a história do inquérito” e as<br />

personagens <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> história “não agem, descobrem” (TODOROV, 1969, p. 96), isto é,<br />

elas investigam, recriam a história <strong>da</strong> vítima e desven<strong>da</strong>m as motivações do crime e<br />

descobrem a personagem que praticou o crime.<br />

No terceiro capítulo de Malditos paulistas, Raul, depois de ler o anúncio no qual se<br />

informa que há uma vaga para motorista na mansão de Duílio Paleardi, dirige-se para esse<br />

local e encontra mais onze candi<strong>da</strong>tos à vaga. Durante a eliminação dos candi<strong>da</strong>tos que se dá<br />

por motivos variados – ser baixo, fumar, ser banguela, falar italiano – surgem fragmentos do<br />

romance O caso dos dez negrinhos (1939), de Agatha Christie. Esses fragmentos fazem parte<br />

de um poema que aparece sobre a lareira dos quartos de dez personagens que são convi<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

a passar um fim de semana num ilha. To<strong>da</strong>s vão sendo assassina<strong>da</strong>s e, a ca<strong>da</strong> assassinato, uma<br />

estátua de negrinho (havia dez delas), que estava numa cristaleira <strong>da</strong> sala <strong>da</strong> casa onde as<br />

personagens foram aloja<strong>da</strong>s, desaparece.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

No romance de Marcos Rey, os trechos do poema surgem após a eliminação do<br />

quinto candi<strong>da</strong>to e seguem sequencialmente até o final, quando Raul é contratado para a vaga<br />

de motorista:<br />

Quatro negrinhos ao mar, a um tragou de vez<br />

o arenque defumado, e então ficaram três.<br />

[...]<br />

Três negrinhos passeando no zôo. E depois<br />

O urso abraçou um, e então ficaram dois.<br />

[...]<br />

Um deles se queimou, e então ficou só um. (REY, 1985, p. 8-11).<br />

A relação intertextual que se nota entre a eliminação dos candi<strong>da</strong>tos no livro de<br />

Marcos Rey e o romance de Agatha Christie deixa patente a intenção humorística do escritor<br />

paulista, uma vez que ninguém é morto durante a seleção para o cargo de motorista de Duílio<br />

Paleardi.<br />

No final de sua história, Raul descobre que o patrão é um contrabandista de<br />

diamantes, que usa bonecos fabricados por Victor Sandrini, dono de um teatro de marionetes,<br />

para transportar as pedras para fora do país. A investigação de Raul inicia-se quando ele lê um<br />

jornal no qual se noticia a morte de um marinheiro estrangeiro, Johanson Olsen, que ele havia<br />

visto conversando com seu patrão, quando ain<strong>da</strong> trabalhava na mansão do magnata italiano.<br />

Raul vai ao teatro de marionetes e confronta Victor Sandrini, perguntando-lhe quem<br />

assassinou Johanson Olsen. Ele recebe uma panca<strong>da</strong> na cabeça e é mantido como prisioneiro.<br />

Então, Victor conta-lhe a ver<strong>da</strong>de: Olsen fora morto por Franz, um de seus empregados do<br />

teatro, a mando de Duílio, porque começou a chantageá-lo, exigindo dinheiro. Raul crê que<br />

será morto e, novamente, aparece uma citação do trecho final do poema que se encontra em O<br />

caso dos dez negrinhos: “Um negrinho aqui está a sós, apenas um; / Ele então se enforcou, e<br />

não ficou nenhum” (REY, 1985, p. 168).<br />

No entanto, diferentemente do que ocorre com as personagens do romance <strong>da</strong><br />

escritora inglesa, Raul consegue fugir e se dirige à mansão onde trabalhava como motorista e<br />

revela a ver<strong>da</strong>de sobre o sumiço <strong>da</strong> joia que ele jurava não haver roubado:<br />

Abrindo meu bilhete fechado de loteria, comecei a erguer a mão direita, que<br />

repousara sobre o joelho. Num vôo de palmo e meio, toquei os dedos no<br />

luxuoso painel adormecido, e fui tateando em Braile sua superfície fria e<br />

granula<strong>da</strong>. [...] Minha mão rumou para o sul, na curva abismal do painel,<br />

atingindo a parte inferior, metálica, nua, não revesti<strong>da</strong>. Enfiei então todo o<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

braço no fundo dum saco invisível. [...] meus dedos haviam interrompido o<br />

trajeto à primeira e espera<strong>da</strong> resistência. Iniciei a Operação Descolagem.<br />

Não usara chiclete, como a polícia precipita<strong>da</strong>mente afirmara. Sempre<br />

detestei chicletes, o maior responsável pelas cáries dentárias. Numa e noutra<br />

vez pregara-a com tiras bem finas de esparadrapo escuro. Solta, apertei-a<br />

com força na mão espalma<strong>da</strong>. Queria marcar a pele com a reali<strong>da</strong>de e a<br />

glória <strong>da</strong>quele momento. E piscando para o doberman, guardei a valiosa jóia<br />

azul-guanabara no bolso. (REY, 1985, p. 172).<br />

A cena final do romance que transcrevemos dialoga com dois romances de Agatha<br />

Christie – O assassinato de Roger Ackroyd (1926) e Noite sem fim (1967), nos quais o<br />

narrador personagem é também o assassino, fato que o leitor só descobre no final de sua<br />

leitura.<br />

Ao tratar do papel do narrador na ficção, Roland Barthes enfatiza que as narrativas só<br />

transmitem dois sistemas de signos: o pessoal, ligado à pessoa (eu) e o apessoal, à não pessoa<br />

(ele), podendo ocorrer a mescla de ambos:<br />

A mistura dos sistemas é evidentemente senti<strong>da</strong> como uma facili<strong>da</strong>de: um<br />

romance policial de Agatha Christie [O mistério de Sittaford (1931)] só<br />

mantém o enigma enganando sobre a pessoa <strong>da</strong> narração: uma pessoa é<br />

descrita do interior, quando já é o assassino; tudo se passa como se em uma<br />

mesma pessoa houvesse uma consciência de testemunha, imanente ao<br />

discurso, e uma consciência de assassino, imanente ao referente; só o<br />

entrelaçamento abusivo dos dois sistemas permite o enigma. (2011, p. 52)<br />

Embora Roland Barthes (2011, p. 52, grifo do autor) condena o engano perpetrado<br />

pelo narrador do romance O mistério de Sittaford, de Agatha Christie e considera que “o<br />

processo é ain<strong>da</strong> mais grosseiro em O assassinato de Roger Ackroyd, já que o assassino aí diz<br />

francamente eu”, a fusão narrador/assassino revela-se um artifício brilhante, que impossibilita<br />

o leitor de desven<strong>da</strong>r o criminoso <strong>da</strong> história narra<strong>da</strong>.<br />

Raul coaduna-se perfeitamente com esse narrador testemunha e assassino ao mesmo<br />

tempo, uma vez que assume os dois posicionamentos levantados por Barthes: é testemunha,<br />

na quali<strong>da</strong>de de narrador que relata o que vê, e é criminoso, enquanto personagem que realiza<br />

o furto <strong>da</strong> joia menciona<strong>da</strong>.<br />

Marcos Rey, por meio <strong>da</strong> paródia, revitaliza os sentidos do romance picaresco e<br />

policial em Malditos paulistas, prestando uma homenagem a dois gêneros <strong>da</strong> literatura<br />

tradicional e termina por imprimir, “na sua própria forma, a do texto que parodia”<br />

(HUTCHEON, 1989, p. 56), uma vez que o relato de Raul amalgama a uma estrutura<br />

55


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

folhetinesca, as vicissitudes de um anti-herói que se transforma em detetive, esclarece e revela<br />

o assassino <strong>da</strong> narrativa e, “ao final, triunfa a inocência e o desfecho assemelha-se bastante<br />

àqueles contidos nos clássicos romances folhetins” (BORELLI, 1996, p. 212).<br />

Em síntese, Silvia Helena Simões Borelli tece as seguintes ponderações a respeito <strong>da</strong><br />

produção ficcional do escritor paulista:<br />

[...] to<strong>da</strong> a obra de Marcos Rey dialoga com padrões <strong>da</strong> picaresca e com<br />

modelos do romance policial. Em Malditos paulistas, um dos romances em<br />

que mais se evidencia esta articulação, o personagem principal – Raul, o<br />

narrador, tipo que pode ser qualificado de pícaro-detetive – circula de<br />

malandragem em malandragem, vivencia um perigoso jogo de cartas<br />

marca<strong>da</strong>s e busca, permanentemente, uma saí<strong>da</strong> para o desven<strong>da</strong>mento do<br />

mistério que envolve roubo de diamantes, assassinatos, perseguições. O<br />

malandro, típico personagem no contexto <strong>da</strong> literatura brasileira, tem suas<br />

características mescla<strong>da</strong>s a outras, do detetive, figura singular do romance<br />

policial em suas mais diversas concepções. (1996, p. 191-192, grifo <strong>da</strong><br />

autora)<br />

Efetivamente, em Malditos paulistas, Marcos Rey realiza uma “síntese picarescapolicial”<br />

(HOHLFELDT, 1991, p. 179) ao juntar dois veios bastante diferentes do romance<br />

ocidental: o picaresco e o policial, sendo, portanto,<br />

tênues as fronteiras que separam pícaros, detetives e criminosos; todos<br />

encontram-se unidos, literariamente, por múltiplas teias comuns. Todos<br />

permanecem à margem e percorrem, de maneira errante, caminhos tortuosos.<br />

A viagem, no sentido do deslocamento geográfico, temporal e social, une<br />

detetives, pícaros e delinquentes. Nenhum deles possui relações estáveis,<br />

familiares, de vizinhança, de amizade [...]. A vi<strong>da</strong> desses personagens<br />

resume-se ao eterno desven<strong>da</strong>mento do enigma, na superação do desafio e na<br />

convivência com frustrações e desenganos.<br />

Além disso, outros traços do pícaro aproximam-nos dos detetives e<br />

criminosos: a astúcia, a dissimulação, a sagaci<strong>da</strong>de e a esperteza, mais que a<br />

vilania, a infâmia e a torpeza. Assim como os pícaros, também detetives e<br />

criminosos encontram-se à margem <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. [...] (BORELLI, 1996, p.<br />

214).<br />

Enfim, o malandro Raul pode ser visto como uma recriação do pícaro clássico, uma<br />

vez que apresenta diversas características que o aproximam de tal personagem e também do<br />

detetive dos romances policiais, pois necessita empregar a sua astúcia e intelecto para<br />

sobreviver e poder desven<strong>da</strong>r a misteriosa morte do marinheiro Johanson Olsen.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A mescla pícaro-detetive e romance-folhetim ressalta a importância <strong>da</strong> paródia<br />

dentro do relato de Raul, já que ela revela-se como a chave interpretativa para o romance<br />

Malditos paulistas, conforme acerta<strong>da</strong>mente afirma Eliana Faganello:<br />

Parodiar é a essência virtual do romance de Marcos Rey. Sob uma estrutura<br />

picaresca, surgem mescla<strong>da</strong>s reminiscências temáticas do gênero<br />

autobiográfico com o policial-suspense. Assim, parodiam-se os romances de<br />

Agatha Christie e Conan Doyle, ao mesmo tempo que se alude à obra de<br />

Machado de <strong>Assis</strong> (Dom Casmurro), ao teatro de Pirandello, ao teleteatro , à<br />

televisão, à música de Carlos Gardel e ao filme de Francis Ford Coppola O<br />

poderoso chefão.<br />

Parodiando estilo e géneros distintos, o romance de Marcos Rey recupera a<br />

visão intertextual <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de do século XX e as contradições do sistema<br />

capitalista [...].<br />

[...] Em suma, Malditos paulistas recria o romance picaresco como pretexto<br />

à formulação de um novo tipo de obra de arte, abrangente e totalizadora,<br />

enquanto aglutinação paródica <strong>da</strong>s artes cénicas com os géneros literários.<br />

Reflecte, porém, através desta aparente miscelânea artística, uma reali<strong>da</strong>de<br />

de regime totalitário, que na essência conota a fragili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> dominação<br />

frente à astúcia do aparentemente inofensivo. (1981, p. 104-105, grifo <strong>da</strong><br />

autora)<br />

Ao retomar parodicamente o romance folhetim, o policial e o picaresco em Malditos<br />

paulistas, Marcos Rey amplia os horizontes do anti-herói, revaloriza três mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

narrativa ocidental e irmana o pícaro/malandro e o detetive num mesmo território que<br />

permanece em constante mutação e que abriga esses seres que vivem instalados<br />

assumi<strong>da</strong>mente nas margens, nos interstícios, sempre em busca de novas aventuras para o<br />

deleite de todos os leitores que tem que se contentar em acompanhar suas aventuras para,<br />

confortavelmente, em sua poltrona, descobrir o criminoso e preparar-se para partir para uma<br />

nova aventura e se deparar com um novo detetive/pícaro, um novo crime, novas pistas e um<br />

prazer que pode sempre ser renovado.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural <strong>da</strong> narrativa. In: BARTHES, Roland et al.<br />

Análise estrutural <strong>da</strong> narrativa. Tradução de Maria Zélia Barbosa Pinto. 7. ed. Petrópolis:<br />

Vozes, 2011, p. 19-62.<br />

BORELLI, Silvia Helena Simões. Ação, suspense, emoção. Literatura e cultura de massa no<br />

Brasil. São Paulo: EDUC: Estação Liber<strong>da</strong>de, 1996.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

CANDIDO, Antonio. Nota prévia. In: MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo:<br />

Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1996, p. 13-16.<br />

CHRISTIE, Agatha. O mistério de Sittaford. Tradução de Rocha Filho. Rio de Janeiro:<br />

Record, 1987.<br />

______. Noite sem fim. Tradução de Sizínio Rodrigues. Rio de Janeiro: Record, 1987.<br />

______. O caso dos dez negrinhos. Tradução de Leonel Vallandro. São Paulo: Círculo do<br />

Livro, 1989.<br />

______. O assassinato de Roger Ackroyd. Tradução de Leonel Vallandro. São Paulo: Círculo<br />

do Livro, 1992.<br />

CONVERSANI, Ângela A. B. e BOTOSO, Altamir. A presença do folhetim na minissérie<br />

Incidente em Antares. Bauru: Canal6, 2010.<br />

ECO, Umberto. O super-homem de massa: retórica e ideologia no romance popular. Tradução<br />

de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1991.<br />

FAGANELLO, Eliana. Recensão crítica a Malditos paulistas, de Marcos Rey. Revista<br />

Colóquio/Letras. Recensões críticas, n. 64, nov. 1981, p. 104-105.<br />

HOHLFELDT, Antonio. A síntese picaresca-policial de Marcos Rey (Posfácio). In: REY,<br />

Marcos. Malditos paulistas: romance policial-picaresco. 4. ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 179-<br />

191.<br />

HUTCHEON, Lin<strong>da</strong>. Uma teoria <strong>da</strong> paródia. Tradução de Teresa Louro Pérez. Lisboa:<br />

Edições 70, 1989.<br />

MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1996.<br />

REY, Marcos. Malditos paulistas. São Paulo: Círculo do Livro, 1985.<br />

______. Malditos paulistas: romance policial-picaresco. 4. ed. São Paulo: Ática, 1991.<br />

TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: TODOROV, Tzvetan. As estruturas<br />

narrativas. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 93-104.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Quatrevingt-treize, de Victor Hugo: ficção, história e suspense<br />

CALLIPO, Daniela Mantarro (<strong>UNESP</strong>/ASSIS)<br />

RESUMO: Quatrevingt-treize é o último romance de Victor Hugo. Publicado em 1874,<br />

alguns anos após a Comuna de Paris, o romance tem como pano de fundo a guerra civil<br />

ocorri<strong>da</strong> em 1793 nas regiões contrarrevolucionárias <strong>da</strong> Vendeia e <strong>da</strong> Bretanha, durante a<br />

Revolução Francesa. Trata-se de um romance histórico tradicional, que também pode ser lido<br />

como uma narrativa policial. O objetivo deste estudo é o de apresentar e discutir algumas<br />

questões a respeito deste romance hugoano, considerado por alguns críticos como seu melhor<br />

trabalho.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Victor Hugo, romance histórico, narrativa policial.<br />

ABSTRACT: Quatrevingt-treize is the last novel by the French writer Victor Hugo.<br />

Published in 1874, shortly after the bloody upheaval of the Paris Commune, the novel<br />

concerns the Revolt in the Vendée and Chouannerie – the counter-revolutionary revolts in<br />

1793 during the French Revolution. It’s a traditional historical novel that can be read like a<br />

police narrative. The aim of this article is to present and discuss some questions about the<br />

novel by Hugo, which is regarded by some critics as his greatest work.<br />

KEY-WORDS: Victor Hugo, traditional historical novel, police narrative.<br />

Victor Hugo consultou mais de 30 obras históricas para compor o romance<br />

Quatrevingt-treize, publicado em 1874. Tendo como pano de fundo a Revolução Francesa e a<br />

Guerra <strong>da</strong> Vendeia, a obra trata do conflito entre o dever e a honra, a covardia e o heroísmo,<br />

conflito este vivido pelas personagens fictícias Lantenac, Gauvain e Cimour<strong>da</strong>in, que<br />

convivem com as personagens históricas Robespierre, Danton e Marat. Estas personagens<br />

registra<strong>da</strong>s pela historiografia conferem credibili<strong>da</strong>de à narrativa que mistura ficção e História<br />

e, segundo as características aponta<strong>da</strong>s por Lukács em seu O Romance Histórico (2011),<br />

permitem que Quatrevingt-treize seja considerado romance histórico.<br />

A trama se desenvolve em 1793, momento em que regiões como a Bretanha e a<br />

Vendeia organizam movimentos contrarrevolucionários, isto é, voltam-se contra a República<br />

e defendem a Monarquia. Lantenac é a personagem que representa os ideais dos realistas e<br />

junta-se a eles para lutar contra os republicanos, representados por Gauvain e Cismour<strong>da</strong>in.<br />

Entretanto, Gauvain é sobrinho-neto de Lantenac e terá de perseguir um membro <strong>da</strong> própria<br />

família, colocando os ideias <strong>da</strong> Pátria acima dos laços familiares.<br />

No meio dessa guerra civil, uma camponesa tenta proteger seus três filhos pequenos<br />

e busca a segurança no meio <strong>da</strong> floresta. Viúva, Michelle Fléchard é encontra<strong>da</strong> pelos<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

revolucionários, fuzila<strong>da</strong> por sol<strong>da</strong>dos de Lantenac, salva por um ancião miserável que trata<br />

seus ferimentos até que ela se sinta em condições de partir em busca de seus filhos,<br />

sequestrados pelos realistas.<br />

É importante observar que Hugo insere no romance a presença de personagens<br />

registra<strong>da</strong>s pela historiografia apenas en passant, para <strong>da</strong>r credibili<strong>da</strong>de ao que estava sendo<br />

narrado, e a imagem dessas figuras históricas não foi altera<strong>da</strong> nem contesta<strong>da</strong>. No exemplo<br />

abaixo, Robespierre, Danton e Marat dialogam com Cimour<strong>da</strong>in e Gauvain, que estão<br />

comprometidos a manter a ordem e a República e lutar contra os monarquistas:<br />

3 Pen<strong>da</strong>nt que Cimour<strong>da</strong>in lisait, Marat le regar<strong>da</strong>it.<br />

Marat dit à demi-voix, comme se parlant à lui-même:<br />

- Il faudra faire préciser tout cela par un décret de la Convention ou par un<br />

arrêté spécial du Comité de salut public. Il reste quelque chose à faire.<br />

- Citoyen Cimour<strong>da</strong>in, deman<strong>da</strong> Robespierre, où demeurez-vous<br />

- Cour du Commerce.<br />

_ Tiens, moi aussi, dit Danton, vous êtes mon voisin. (HUGO, 1979, p. 191) 4<br />

Outro ponto importante para qualificar Quatrevingt-treize como romance histórico é<br />

a caracterização de um espaço geográfico restrito e fiel ao acontecimento 5 : Hugo cria dois<br />

espaços opostos, que representam a luta por ideais diversos: Paris representa o espaço<br />

Republicano e Revolucionário, enquanto a Bretanha e a Vendeia simbolizam o espaço<br />

Monarquista, Católico e Contrarrevolucionário. A descrição <strong>da</strong> floresta <strong>da</strong> Vendeia e de seus<br />

habitantes é minuciosa, o relato <strong>da</strong> travessia de Lantenac é tão preciso, que Lukács (2011)<br />

chegou a afirmar que se tratava de um romance realista, embora Hugo seja considerado<br />

escritor romântico. Até mesmo a interferência do narrador, comedi<strong>da</strong> em relação aos outros<br />

romances hugoanos, confere ao drama mais reali<strong>da</strong>de: “Cette guèrre, mon père l’a faite et j’en<br />

puis parler”, afirma o narrador. O fato autobiográfico real garante mais veraci<strong>da</strong>de ao<br />

romance histórico, pois o pai de Hugo foi general do exército de Napoleão I.<br />

Entretanto, Quatrevingt-treize, apesar do título e do momento histórico tão<br />

importante para a França, apresenta uma discussão sobre os valores que devem imperar em<br />

3 To<strong>da</strong>s as traduções são minhas.<br />

4 Enquanto Cimour<strong>da</strong>in lia, Marat olhava-o.<br />

Marat disse à meia-voz, como se falasse consigo mesmo:<br />

-Será preciso man<strong>da</strong>r definir tudo isso por um decreto <strong>da</strong> Convenção ou um man<strong>da</strong>do especial do Comité de<br />

Salvação Pública. Ain<strong>da</strong> temos algo a fazer.<br />

- Ci<strong>da</strong>dão Cimour<strong>da</strong>in, perguntou Robespierre, onde você mora<br />

- Na Cour du Commerce.<br />

- Eu também, disse Danton, você é meu vizinho.<br />

5 Ver, a esse respeito, o excelente estudo de Ribeiro (2008).<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

to<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. O ano do Terror é o pano de fundo para questões humanistas e metafísicas. A<br />

história que interessa ao leitor é a de Cimour<strong>da</strong>in, Gauvain e Lantenac, que lutam pelos seus<br />

ideais políticos, mas também a de Michelle Fléchard, disposta a tudo para recuperar seus<br />

filhos.<br />

Guy Rosa, em seu artigo “Quatrevingt-treize ou la critique du roman historique”<br />

(1975), salienta que, de fato, o romance coloca à disposição um material histórico bastante<br />

volumoso, que abor<strong>da</strong> todos os aspectos do ano do Terror, <strong>da</strong> guerra civil <strong>da</strong> Vendeia, mas<br />

também descreve a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>quele tempo, suas instituições e seus problemas políticos. Até<br />

mesmo a linguagem <strong>da</strong>quela época é recupera<strong>da</strong> por meio <strong>da</strong>s personagens. O título, aliás,<br />

conserva a ortografia do século XVIII. Mas, segundo o crítico francês, é preciso tomar<br />

cui<strong>da</strong>do para não considerar o romance uma obra exclusivamente histórica: apesar de servir<br />

de consulta para muitos estudiosos <strong>da</strong> Revolução Francesa e do Ano do Terror, trata-se de<br />

ficção, pois o princípio organizador do livro não é histórico: “L’histoire profite du récit, elle<br />

ne le détermine pas” (ROSA, 1975, p. 331)<br />

O romance apresenta, igualmente, a necessi<strong>da</strong>de de refletir sobre o momento pelo<br />

qual passava a França de 1872 e, ain<strong>da</strong> segundo Lukács, a necessi<strong>da</strong>de de se escrever sobre<br />

um passado glorioso vem sempre em um momento de crise, como o foi em 1872-74, quando o<br />

livro foi produzido por Hugo e a França acabava de ser derrota<strong>da</strong> pela Prússia, levando ao<br />

afastamento de Napoleão III e à Terceira República.<br />

Ribeiro (2008) observa que 1793 se repete em 1871:<br />

Note-se que situação similar ocorria em 1871: a ditadura e Império de<br />

Napoleão III haviam acabado, a França perdera a guerra contra a Prússia, o<br />

país estava desolado e buscava soluções à situação. Em ambos os casos, a<br />

população descontente não hesitou em pegar em armas e defender até<br />

mesmo seu pe<strong>da</strong>ço de pão. Nesse momento de grande instabili<strong>da</strong>de Victor<br />

Hugo expressa a “necessi<strong>da</strong>de” <strong>da</strong>s revoluções. (p.41)<br />

No final do romance, Danton, Marat e Robespierre deixam de ter importância. O<br />

drama vivido por Michelle Fléchard, Lantenac, Gauvain e Cismour<strong>da</strong>in adquire força e<br />

significado. As crianças são feitas reféns na Tourgue, uma antiga fortaleza que pega fogo.<br />

Lantenac consegue escapar e deixá-la, mas ao ver Michelle Fléchard em pânico, desiste de<br />

fugir de Gauvain e Cismour<strong>da</strong>in, que o perseguiam para executá-lo. A pobre mãe, que<br />

procurara as crianças durante vários dias, desespera-se ao reconhecê-las pela janela <strong>da</strong> Torre.<br />

Ela grita, descontrola<strong>da</strong>, não percebendo a presença do marquês ao seu lado: o grito <strong>da</strong>quela<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

mãe desperta em Lantenac os sentimentos sufocados pela guerra e pela Revolução: ele volta<br />

para a Tourgue, salva as crianças e é preso pelos Revolucionários.<br />

francês:<br />

Para Chamarat- Malan<strong>da</strong>in (1989), o grito de Fléchard representa a voz do povo<br />

A mi-chemin de la matière vivante et du surnaturel mythique, la voix de<br />

Michelle Fléchard accomplit le plus fort bouleversement du roman, le plus<br />

invraisemblable. Mais ce bouleversement fait écho à l'autre, à celui,<br />

historique, de la Révolution. Le cri de la femme du peuple, en effet, retourne<br />

la face de l'histoire, de la petite comme de la grande; il obtient du<br />

"seigneur" qu'il l'écoute et le considère, qu'il reconnaisse l'absolu de son<br />

droit. Il est le modèle d'un renversement des ordres qui devrait se faire en<br />

plus grand, qui se fait effectivement en plus grand, mais <strong>da</strong>ns un<br />

arrachement sanglant, mené par celui qui se définit lui-même comme "le cri<br />

de tout", Marat. 6<br />

Neste romance, portanto, a parte mais importante - e sangrenta - <strong>da</strong> história <strong>da</strong><br />

França ressurge em meio a atos heroicos, posturas generosas, escolhas éticas, combates<br />

morais. Em meio aos massacres cometidos no ano do Terror, Hugo parece vislumbrar o<br />

progresso <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. Em Quatrevingt-treize, são crianças do povo que despertam a<br />

bon<strong>da</strong>de do Marquês de Lantenac; o desespero de uma mulher miséravel o faz enxergar "la<br />

grande lueur éternelle".<br />

Gauvain, diante <strong>da</strong> coragem de Lantenac, não consegue cumprir as ordens de<br />

Danton, Robespierre et Marat e liberta o tio-avô. Cismour<strong>da</strong>in, para quem o dever está acima<br />

de tudo, man<strong>da</strong> Gauvain para a guilhotina e suici<strong>da</strong>-se. O discurso final de Gauvin aponta<br />

para a crença na civilização, num futuro luminoso para a socie<strong>da</strong>de: "je veux la liberté devant<br />

l'esprit, l'égalité devant le coeur, la fraternité devant l'âme." 7 . Desse modo, a trama fictícia<br />

ocupa o primeiro plano do romance, ela canaliza a atenção maior tanto do narrador quanto dos<br />

leitores e a época histórica é somente um contexto, melhor, um pano de fundo, embora não<br />

tenha uma importância secundária.<br />

Quatrevingt-treize faz pensar. Faz pensar na Revolução Francesa, responsável pela<br />

morte de adversários políticos, mas também de inocentes. Faz pensar nos valores éticos,<br />

6 A meio caminho <strong>da</strong> matéria viva e do sobrenatural mítico, a voz de Michelle Fléchard promove a mais forte<br />

transformação do romance, a mais inverossímel. Mas essa transformação faz eco a uma outra, àquela histórica,<br />

<strong>da</strong> Revolução. O grito <strong>da</strong> mulher do povo, com efeito, inverte a face <strong>da</strong> história, <strong>da</strong> pequena como <strong>da</strong> grande;<br />

ele obtém do “senhor” que o ouça e o considere, que ele reconheça o seu direito absoluto. Ele é o modelo de<br />

uma inversão <strong>da</strong>s ordens que deveria ser feita numa escala maior, que se faz, efetivamente em uma escala<br />

maior, mas em uma extirpação sangrenta, feita por aquele que se define como “o grito de tudo”, Marat.<br />

Disponível em: .<br />

7 Quero a liber<strong>da</strong>de diante do espírito, a igual<strong>da</strong>de diante do coração, a fraterni<strong>da</strong>de diante <strong>da</strong> alma.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

humanitários, deixados de lado em nome de um dever imposto. Faz pensar no passado de uma<br />

nação, mas também no seu futuro. Segundo Esteves (2010)<br />

Ficção e história também são, no entanto, apostas contra o futuro. Se bem<br />

que o fato de escrever a história como romance e escrever romances com os<br />

fatos <strong>da</strong> história já não signifiquem apenas a correção <strong>da</strong> versão hegemônica<br />

<strong>da</strong> história, tampouco um ato de oposição ao discurso do poder constituído,<br />

não deixam de continuar sendo ambas as coisas. As ficções sobre a história<br />

reconstroem versões, opõem-se ao poder e, ao mesmo tempo, apontam para<br />

adiante. Mas o que significa apontar para o futuro Não significa certamente<br />

ter a intenção de se criar uma nova socie<strong>da</strong>de por meio do poder<br />

transformador <strong>da</strong> palavra escrita. Significa que se escreve apenas para forjar<br />

o leito de um rio pelo qual navegará o futuro no lugar dos desejos humanos.<br />

(p. 25)<br />

Em Quatrevingt-treize não se lê apenas a visão histórica de Victor Hugo, suas<br />

reflexões acerca <strong>da</strong> sangrenta – mas necessária, segundo ele – Revolução Francesa. Lê-se<br />

também a manifestação do humanismo hugoano, fenômeno que, segundo Lukács (2011),<br />

diferencia o romance histórico escrito por Hugo dos romances históricos elaborados por<br />

Walter Scott. A metafísica, como doutrina humanitária, e o próprio humanismo social estão<br />

presentes no romance hugoano, promovendo sua renovação enquanto gênero. Nas páginas<br />

finais <strong>da</strong> trama, há uma discussão a respeito <strong>da</strong> justiça e do dever: Cismour<strong>da</strong>in afirma: “Só<br />

vejo a justiça”, ao que Gauvain replica: “Eu, eu vejo mais acima”. O ex-sacerdote, então,<br />

pergunta: “O que existe acima <strong>da</strong> justiça”. E o sobrinho-neto de Lantenac responde: “A<br />

equi<strong>da</strong>de”. (HUGO, p. 468, trad. nossa)<br />

Além de misturar ficção e História, Victor Hugo recorre ao mistério e ao suspense<br />

para elaborar sua narrativa, deixando o leitor intrigado a respeito <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira identi<strong>da</strong>de de<br />

Lantenac, do motivo de sua fuga e do crime que cometeu, fatos que serão revelados no<br />

decorrer <strong>da</strong> obra, o que também permite ler Quatrevingt-treize como um romance policial,<br />

uma vez que nele se encontram elementos desse gênero romanesco.<br />

Quatrevingt-treize possui, de fato, características de um romance policial. Tomandose<br />

por base as reflexões de Reimão (1983) e Todorov (1969), é possível traçar as linhas gerais<br />

que permitem esse tipo de leitura do romance hugoano.<br />

Primeiramente, a identi<strong>da</strong>de de Lantenac é manti<strong>da</strong> em sigilo. O marquês viaja<br />

incógnito em um navio que o transportará a Vendeia. O leitor tem acesso a poucas<br />

informações a respeito <strong>da</strong> personagem: sabe que ele tem oitenta anos, embora aparente ser<br />

jovem e saudável; é uma figura importante para os acontecimentos que afligem a França, deve<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

ser protegido a todo custo e tem inimigos em Paris que o perseguem e desejam guilhotiná-lo.<br />

Somente no último capítulo <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> parte, é que a identi<strong>da</strong>de do marquês é revela<strong>da</strong>. Este<br />

fato cria suspense na narrativa, mas a distancia do romance policial tradicional, em que a<br />

identi<strong>da</strong>de do criminoso é revela<strong>da</strong> apenas nas últimas páginas.<br />

Lantenac é perseguido por personagens que não são policiais, nem investigadores<br />

que pertencem à polícia enquanto instituição. Para Reimão (1983), essa é uma característica<br />

importante dos primeiros romances policiais. Gauvain e Cimour<strong>da</strong>in são enviados por<br />

Robespierre, Danton e Marat para prender o marquês e assim proteger a Revolução Francesa<br />

dos contrarrevolucionários. Eles representam a lei e estão dispostos a tudo para mantê-la.<br />

Lantenac passa a ser visto como um inimigo social, pois se une aos realistas <strong>da</strong> Vendeia e<br />

pensa em se aliar aos ingleses para derrubar a República e reinstaurar a Monarquia; é,<br />

portanto, um inimigo <strong>da</strong> Revolução Francesa que deve ser combatido. Entretanto, ain<strong>da</strong><br />

segundo Reimão (1983), a figura do criminoso no romance policial é patologiza<strong>da</strong>, pois ele<br />

seria um doente mental, cujos sentimentos éticos e morais estão deteriorados. Nesse ponto,<br />

Quatrevingt-treize se distancia <strong>da</strong> narrativa policial: Lantenac é um inimigo público, um<br />

inimigo de Paris, mas não é um doente mental. Ao contrário, apesar <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de (80 anos), é<br />

lúcido e atlético. Seus sentimentos éticos e morais não estão deteriorados e se ele mata civis,<br />

mulheres e sequestra crianças, é porque coloca seus ideais acima dos sentimentos.<br />

Para Todorov (1969), o culpado não deve ser um criminoso profissional, nem o<br />

detetive; deve matar por razões pessoais. Em Quatrevingt-treize, Lantenac não é um<br />

criminoso, é um monarquista contrarrevolucionário que não mata por razões pessoais, mas<br />

pelos ideais conservadores:<br />

ça croit en Dieu, ça croit à la tradition, ça croit à la famille, ça croit à ses<br />

aïeux, ça croit à l’exemple de son père, à la fidélité, à la loyauté, au devoir<br />

envers son prince, au respect des vieilles lois, à la vertu, à la justice; et ça<br />

vous ferait fusiller avec plaisir 8 . (HUGO, p. 445)<br />

Mais uma característica aproxima o último romance hugoano do romance policial:<br />

ain<strong>da</strong> segundo Todorov, o culpado deve gozar de certa importância na vi<strong>da</strong>: não ser um<br />

empregado ou uma camareira: em Quatrevingt-treize, Lantenac é um marquês, o príncipe <strong>da</strong><br />

Bretanha. E no livro, é uma <strong>da</strong>s personagens principais, to<strong>da</strong> a trama se desenvolve a partir de<br />

8 Este aqui crê em Deus, crê na tradição, crê na família, crê em seus antepassados, crê no exemplo de seu pai, na<br />

fideli<strong>da</strong>de, na leal<strong>da</strong>de, no dever para com seu príncipe, no respeito às velhas leis, na virtude, na justiça; e este<br />

aqui man<strong>da</strong>ria fuzilá-lo com prazer.<br />

64


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

sua chega<strong>da</strong> e o destino de Gauvain e Cimour<strong>da</strong>in é traçado a partir de sua captura e posterior<br />

fuga.<br />

Como se vê, o último romance de Victor Hugo pode ser lido de várias maneiras. Para<br />

Thanh Van Ton-That (2002), Quatrevingt-treize é um romance plural: trata-se de uma<br />

aventura espiritual, um percurso de iniciação, um romance de aprendizagem, de educação e<br />

até mesmo, um romance policial em um fundo histórico. Segundo o crítico, Lantenac seria<br />

semelhante a Jean Valjean: é um proscrito, cuja cabeça tem um preço e, como o herói de Os<br />

Miseráveis, poderia fugir ao invés de salvar os inocentes que não significam na<strong>da</strong> para ele<br />

(p.89).<br />

Esta é, sem dúvi<strong>da</strong>, a maior diferença entre o romance hugoano e o romance policial:<br />

neste último,o leitor se posiciona a favor do detetive e contrário ao criminoso; em<br />

Quatrevingt-treize, o leitor se emociona com a decisão de Lantenac de salvar as crianças num<br />

ato heroico e oferecer a cabeça aos Revolucionários. Ao mesmo tempo, Gauvain, que<br />

persegue o tio-avô durante to<strong>da</strong> a narrativa, começa a se perguntar se aquele homem que<br />

salvara as crianças deveria ser guilhotinado. Todos os valores estabelecidos são questionados<br />

e a divisa “Liber<strong>da</strong>de, Igual<strong>da</strong>de, Fraterni<strong>da</strong>de” começa a ser relativiza<strong>da</strong>. Desse modo, o<br />

“criminoso” é absolvido e o “investigador”, coloca em dúvi<strong>da</strong> a utili<strong>da</strong>de de sua perseguição.<br />

Romance histórico, romance que dialoga com a narrativa policial, Quatrevingt-treize<br />

retoma um tema caro à história <strong>da</strong> França: uma Revolução transformadora que modificou de<br />

forma violenta a ordem social e impulsionou outras reformas e outras transformações. Mas<br />

não deixa de lado aspectos humanistas: existem revoluções que não estão nos livros de<br />

História e precisam de mais tempo para se concretizar.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BOILEAU-NARCEJAC. O romance policial. São Paulo: Ática, 1991.<br />

ESTEVES, A. R. O romance histórico brasileiro contemporâneo (1975-2000). São Paulo:<br />

Editora Unesp, 2010.<br />

HUGO, Victor. Quatrevingt-treize. Paris: Gallimard, 1979.<br />

LUCKÁCS, Georg. O Romance Histórico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

CHAMARAT- MALANDAIN, Gabrielle. Voix et parole du peuple <strong>da</strong>ns Quatrevinqt-treize,<br />

1989. Disponível em: .<br />

REIMÃO, Sandra Lúcia. O que é romance policial. São Paulo: Brasiliense, 1983.<br />

RIBEIRO, Rosária Cristina Costa. Caracterização Dos Espaços Monárquicos Em<br />

Quatrevingt-Treize De Victor Hugo. In: ÍKALA, vol 13, nº 20, 2008.<br />

________. O Papel Da Espaciali<strong>da</strong>de Em Quatrevingt-Treize De Victor Hugo Um Romance<br />

Histórico À Espreita Dos Espaços Monárquicos E Revolucionários. Dissertação de Mestrado,<br />

Araraquara, <strong>UNESP</strong>, 2007.<br />

ROSA, Guy. “Quatrevingt-treize ou la Critique du Roman Historique”. Revue d’Histoire<br />

Littéraire de la France.Paris, mars-juin, nº 2-3, 1975.<br />

THANH, Van Ton-That Quatrevingt-treize. Paris: Bréal, 2002.<br />

TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: ________. As estruturas narrativas.<br />

São Paulo: Perspectiva, 1969.<br />

66


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Entre o investigativo e o literário: as crônicas policiais de Dino Buzzati<br />

CARLOS, Ana Maria (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Paralelamente à sua carreira literária, o autor italiano Dino Buzzati (1906-1972)<br />

foi também jornalista, ativi<strong>da</strong>de que desenvolveu por to<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> profissional e através <strong>da</strong><br />

qual buscou investigar a reali<strong>da</strong>de circun<strong>da</strong>nte, sobretudo quando esta lhe parecia opaca.Tal<br />

processo indiciário resultou nas crônicas que escreveu para os jornais Corriere dela sera e<br />

Corriere dell'informazione, além de outros em que atuou como colaborador. Na ver<strong>da</strong>de,<br />

sempre houve em sua obra uma relação estreita entre a literatura e o jornalismo. O autor<br />

chegava mesmo a inverter as estruturas tradicionais de ambos os tipos de narrativa. Podia<br />

iniciar um conto fantástico como se organizasse uma notícia de jornal, utilizando as regras<br />

básicas do jornalismo e, em contraparti<strong>da</strong>, escrever crônicas do cotidiano como se fossem<br />

fábulas. É nossa intenção neste trabalho analisar um dos textos que fazem parte <strong>da</strong> obra La<br />

nera di Dino Buzzati (2002), a fim de destacar o modo como o autor, em uma crônica policial,<br />

constrói sua narrativa a partir <strong>da</strong> imbricação entre o jornalismo, o modo fantástico e o gênero<br />

policial tradicional.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Dino Buzzati; crônica policial; La nera di Dino Buzzati.<br />

ABSTRACT: In addition to his literary career, the italian writer Dino Buzzati (1906-1972)<br />

was also a journalist, an activity that he developed throughout his professional life and<br />

through which sought to investigate the surrounding reality, especially when it seemed<br />

opaque.This process resulted in the chronicles that he wrote for the newspapers Corriere dela<br />

sera and Corriere dell' informazione, and also in others in which acted as a contributor. In<br />

fact, there has always been in his work a close relationship between literature and journalism.<br />

The author even used to reverse the traditional structures of both types of narrative. He could<br />

start a fantastic tale as if organizing a newspaper report, using the basic rules of journalism<br />

and, on the other hand, he could write chronicles as fables. It is our intention in this work to<br />

analyze one of the texts that is part of the book La nera di Dino Buzzati (2002), in order to<br />

highlight how the author, in a crime fiction, builds his narrative from the overlapping between<br />

journalism, the fantastic and the traditional crime fiction.<br />

KEYWORDS: Dino Buzzati; crime fiction; La "nera" di Dino Buzzati<br />

Quando perguntado sobre suas influências, Dino Buzzati, autor italiano<br />

marca<strong>da</strong>mente de linha fantástica, no mais <strong>da</strong>s vezes se reportava "aos grandes narradores<br />

'puros' do século XIX: Stevenson, Victor Hugo, Melville e os mestres do horror <strong>da</strong> narrativa<br />

gótica", (ARSLAN, 1993, p.7), dentre os quais podemos salientar Edgar Allan Poe, por quem<br />

Buzzati tinha grande admiração. Como Poe, também ele escrevia para os jornais, onde<br />

começara como repórter. Porém, sua tendência à fantasia contrastava com a necessi<strong>da</strong>de de<br />

reportar os fatos observados de maneira objetiva. As crônicas que publicava diariamente<br />

traziam, assim, uma união entre o imaginário e a reali<strong>da</strong>de, por trás <strong>da</strong> qual Buzzati acreditava<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

haver sempre outras reali<strong>da</strong>des. Como analisa Gaetano Afeltra, Buzzati "transformava a<br />

crônica em poesia" (2000, p.18, tradução nossa).<br />

Em 2002, Lorenzo Viganò reúniu, em uma antologia intitula<strong>da</strong> La "nera" di Dino<br />

Buzzati, os artigos escritos por Buzzati em um período de quase trinta anos. Nessas crônicas<br />

encontraremos "os pesadelos do cotidiano diante dos quais a socie<strong>da</strong>de revela to<strong>da</strong> sua<br />

impotência e que Buzzati sabia tornar seus. Crônicas, comentários, elzeviri que mostram a<br />

contínua troca entre literatura e jornalismo, entre o Buzzati cronista e o Buzzati escritor (mas<br />

também pintor e dramaturgo), em um afresco <strong>da</strong> Itália desde o pós-guerra aos anos setenta."<br />

(VIGANÒ, 2000, p.XI, tradução nossa)<br />

Dentre os inúmeros textos que compõem os dois volumes <strong>da</strong> antologia, escolhemos<br />

para observar mais deti<strong>da</strong>mente a crônica "Il delitto del cavaliere Imbriani" por considerá-la<br />

um modelo <strong>da</strong> imbricação entre a crônica jornalística, a literatura fantástica e a narrativa<br />

policial que Dino Buzzati tantas vezes experimentou. Basea<strong>da</strong> em um crime real, a crônica é<br />

uma transfiguração literária que esquadrinha a reali<strong>da</strong>de factual do crime através de um olhar<br />

que cria uma irreali<strong>da</strong>de fantástica, um mundo mágico e simbólico que o metaforiza.<br />

O CRIME REAL<br />

Em 28 de outubro de 1951, Silvia Da Pont, 21 anos, emprega<strong>da</strong> doméstica, é<br />

encontra<strong>da</strong> morta no porão <strong>da</strong> casa onde trabalhava, atrás de algumas caixas de madeira.<br />

Segundo os exames médico-legais, o óbito havia ocorrido oito dias antes e a causa <strong>da</strong> morte<br />

havia sido desnutrição. Após investigações policiais, é responsabilizado pela morte <strong>da</strong> jovem<br />

o comerciante e farmacêutico diletante Carlo Candiani, 70 anos, viúvo duas vezes. Ao ser<br />

interrogado, Carlo confessou que havia imobilizado a jovem com éter e a levado para sua<br />

casa, onde a manteve durante dois meses e meio, alimentando-a apenas com pequenas doses<br />

de vinho e leite. Quando a jovem enfraqueci<strong>da</strong> morreu, o sequestrador levou seu corpo ao<br />

porão <strong>da</strong> residência onde a moça trabalhava, escondendo-o atrás de algumas caixas de<br />

madeira, esperando que alguém <strong>da</strong> casa o encontrasse. Carlo foi preso e, após longo<br />

julgamento, foi condenado, em 1953, a 25 anos de prisão. Porém, em 1957, morreu no<br />

cárcere, vítima de ataque cardíaco.<br />

O crime, que chocou o país, obteve grande repercussão. Porém, como to<strong>da</strong> notícia,<br />

logo foi substituí<strong>da</strong> por um fato mais novo. As páginas dos jornais passaram a noticiar, em<br />

segui<strong>da</strong>, a morte por afogamento de outra jovem, fato que chegou às primeiras páginas dos<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

cotidianos por causa do envolvimento <strong>da</strong> moça com o filho de um político influente. Entre o<br />

assassinato de uma emprega<strong>da</strong> doméstica e um caso com repercussões políticas, mais do que a<br />

novi<strong>da</strong>de do fato parece ter prevalecido a situação social <strong>da</strong>s duas vítimas, com a emprega<strong>da</strong><br />

doméstica "perdendo" importância diante <strong>da</strong> morte de uma jovem envolvi<strong>da</strong> com o filho de<br />

um político. Talvez tenha sido esse o motivo que impulsionou Buzzati a perpetuar o caso de<br />

Silvia Da Pont, jovem pobre e "apenas" uma emprega<strong>da</strong>, em uma crônica que apresenta o fato<br />

real interpretado por um viés fantástico e simbólico, escolhendo para sua representação<br />

artística uma espécie de narrativa policial, criando, assim, uma narrativa híbri<strong>da</strong> entre<br />

jornalismo, literatura fantástica e gênero policial noir.<br />

A TRANSFIGURAÇÃO LITERÁRIA<br />

Na Itália, assim como a crônica policial é identifica<strong>da</strong> pela cor preta (cronaca nera),<br />

o romance policial é conhecido pela cor amarela <strong>da</strong>s capas com que se publicavam os<br />

romances policiais no passado – os chamados romances gialli. Buzzati parecer ter querido, na<br />

crônica "Il delitto del cavaliere Imbriani", misturar as duas cores para pintar sua versão do<br />

crime. Por ter sido impressa primeiramente em um jornal, a crônica de Buzzati, publica<strong>da</strong> em<br />

1953 ao lado <strong>da</strong>s reportagens sobre o julgamento de Carlo Candiani, <strong>da</strong>va aos leitores uma<br />

interpretação pessoal e artística do crime, para que, através <strong>da</strong>quela atmosfera fantástica que<br />

criara, observassem por outros ângulos todo o ocorrido. Porém, como a crônica possuía<br />

construção artística, anos depois, em 1957, passou a figurar entre os contos <strong>da</strong> obra Il crollo<br />

della Baliverna. Para o leitor que lesse o conto "Il delitto del cavaliere Imbriani" no livro,<br />

tornava-se difícil estabelecer uma relação entre aquela espécie de fábula e o crime, por to<strong>da</strong>s<br />

as transfigurações efetua<strong>da</strong>s pelo autor na história real do assassinato de Silvia Da Pont.<br />

O enredo dessa crônica (ou conto ou fábula), narra<strong>da</strong> em 3ª pessoa, apresenta como<br />

protagonista o advogado misantropo Tullio Imbriani que certa tarde, ao voltar para casa,<br />

encontra um gato dormindo tranquilo na soleira <strong>da</strong> porta de sua casa. A primeira impressão<br />

que teve do animal era que já o havia visto antes. Depois de acariciá-lo, Imbriani o chama<br />

para dentro de casa. O gato o segue, inspeciona o local e depois se aninha em seu colo.<br />

Imbriani, que sempre odiou animais, passa a sentir vontade de manter aquele gato consigo.<br />

Enquanto conjectura sobre essa possibili<strong>da</strong>de, ouve uma mulher à sua porta chamando pelo<br />

gato. Irritado, vai até a janela e responde negativamente às perguntas <strong>da</strong> mulher sobre ele ter<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

visto algum gato nas redondezas. Porém, a mulher, que continuava a procurar pelo gato,<br />

chama-o agora pelo nome, Iris. Ao ouvir seu nome, o gato levanta-se e começa a miar.<br />

Receoso de que a mulher acabasse descobrindo sua mentira, tenta silenciá-lo, colocando-o<br />

com força sob uma almofa<strong>da</strong>. Porém, a mulher ouvira o miado e passou a atirar pedras na<br />

janela <strong>da</strong> casa. Imbriani, enfurecido, reafirmou não saber de gato algum. Quando voltou para<br />

a sala, deu-se conta de que o gato havia morrido sufocado. A sua preocupação passou a ser,<br />

então, a forma de se livrar do cadáver do animal. Decidiu jogá-lo em um bueiro que havia<br />

atrás <strong>da</strong> casa. Enquanto pensava na operação, soou a campainha <strong>da</strong> porta. Era um homem que,<br />

pelos trajes, Imbriani julgou ser um empregado de gente rica. Também ele procurava pelo<br />

gato, mas o advogado voltou a afirmar que não vira gato algum.<br />

No dia seguinte, depois de ter jogado o corpo do gato no bueiro, Imbriani está<br />

tomando café em um bar quando percebeu uma movimentação estranha na rua,<br />

principalmente de policiais. Perguntou ao dono do bar se sabia o que estava acontecendo, ao<br />

que ele lhe responde que estavam procurando um gato, que provavelmente tinha sido morto.<br />

"Mas é só um gato, não é uma criatura como nós!" é a frase que Imbriani emite sem pensar.<br />

Assustado, voltou para casa e, na praça, viu a guar<strong>da</strong> real preparando uma forca para<br />

executarem o assassino do gato. Mais à frente, viu monges vestidos de preto que carregavam<br />

madeira nos ombros para fazerem uma fogueira onde seria queimado o assassino do gato.<br />

Quando estava próximo à sua casa, Imbriani viu sol<strong>da</strong>dos enfileirados à sua espera em frente<br />

ao portão de casa.<br />

Como podemos ver, a crônica de Buzzati transformou a vítima Silvia Da Pont em um<br />

gato e o criminoso, Carlo Candiani, no advogado Tullio Imbriani. A transfiguração do fato<br />

real em fábula, em narrativa fantástica, parte justamente <strong>da</strong> identificação entre a emprega<strong>da</strong><br />

doméstica e o gato, duas criaturas que, segundo seus algozes, não teriam nenhuma<br />

importância na socie<strong>da</strong>de. As notícias sobre o julgamento do comerciante traziam a frase por<br />

ele proferi<strong>da</strong> para se defender, em que dizia estarem fazendo muito estar<strong>da</strong>lhaço por alguém<br />

que era "apenas" uma emprega<strong>da</strong>.<br />

Desde a segun<strong>da</strong> metade do século XX, o fantástico parece querer privilegiar<br />

a investigação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de interior e a investigação sobre o próprio<br />

fantástico. Para ser levado em consideração pelo mundo contemporâneo, o<br />

fantástico só pode tender a uma construção lúci<strong>da</strong> <strong>da</strong> mente, recorrendo a<br />

visões desencanta<strong>da</strong>s e irônicas; portanto, não aspira a um uso emocional<br />

dos seus elementos, mas a uma meditação sobre os pesadelos e sobre as<br />

tensões do homem moderno. É importante salientar que a operação efetua<strong>da</strong><br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

por muitos autores do fantástico <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> metade do século XX é mais do<br />

que nunca literária, ou melhor dizendo, metaliterária: frequentemente há<br />

referências a modelos literários, à produção dos mestres do fantástico, que<br />

"evidenciam uma forte autoconsciência literária" (ZANGRANDI, 2011,<br />

p.46, tradução nossa)<br />

A citação acima nos é útil por dois motivos. Primeiramente porque nos aju<strong>da</strong> a<br />

caracterizar o tipo de fantástico buzzatiano, o qual, "meditando sobre pesadelos e sobre as<br />

tensões do homem moderno", como afirma Zangrandi, propicia ao leitor uma reflexão sobre<br />

os comportamentos ca<strong>da</strong> vez mais doentios que o homem moderno vem apresentando. Como<br />

é sabido, a narrativa fantástica tradicional apresentava o mal como força mágica, sobrenatural,<br />

exterior ao homem. Já no fantástico contemporâneo, tal impulso maligno, quando existe,<br />

provem do próprio homem, através <strong>da</strong> construção de narrativas que não promovem a vitória<br />

do bem ou a expulsão do mal às regiões infernais, já que o "inferno" agora nos habita. Diante<br />

desse quadro, a prisão de Candiani-Imbriani não irá restabelecer a ordem, como ocorria no<br />

fantástico tradicional. O leitor <strong>da</strong> crônica percebe horrorizado que novos crimes ocorrerão<br />

todos os dias, como consequência de uma socie<strong>da</strong>de injusta e doente.<br />

O segundo motivo que nos levou a fazer a citação do texto de Silvia Zangrandi é a<br />

referência à operação metaliterária leva<strong>da</strong> a cabo pela literatura fantástica contemporânea. No<br />

caso <strong>da</strong> crônica de Buzzati que estamos analisando, podemos perceber referências ao conto de<br />

Edgar Allan Poe (1809 – 1849), intitulado "O gato preto". E não só isso. A transformação de<br />

um crime real em uma crônica fantástica, pela maneira em que foi construí<strong>da</strong> por Buzzati,<br />

apresenta também características de narrativa policial, conforme veremos a seguir.<br />

CRÔNICA, CONTO FANTÁSTICO OU NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Dino Buzzati desenvolveu uma carreira profissional bastante eclética. Nos jornais,<br />

além de cronista, foi crítico literário e escreveu sobre esportes, sobre música, sobre cinema,<br />

teatro e artes plásticas; atuou como correspondente de guerra e, depois como enviado especial<br />

no Japão, na Etiópia e na Índia. As duas ativi<strong>da</strong>des, para ele, estavam liga<strong>da</strong>s: "O jornalismo<br />

não é para mim um segundo ofício, mas um aspecto de meu ofício. O mais importante do<br />

jornalismo coincide com o mais importante <strong>da</strong> literatura". (BUZZATI, apud PANAFIEU,<br />

1988, p. 251, tradução nossa). Além disso, Buzzati também foi pintor. Suas telas buscavam<br />

captar o mundo caótico, sempre à beira <strong>da</strong> desintegração, que tinha diante dos olhos: os seres<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

que pintava parecem riscos, pequenas linhas negras sempre a testemunhar algum tipo de<br />

acidente, tragédia ou catástrofe. Uma tal diversi<strong>da</strong>de de perspectivas resultou em uma<br />

produção artística híbri<strong>da</strong>. A crônica/conto/narrativa policial que estamos examinando é<br />

exemplo disso, uma vez que apresenta características de diferentes gêneros narrativos.<br />

Com relação à narrativa policial, podemos identificar no texto alguns de seus<br />

elementos típicos: uma vítima, um assassino e dois "investigadores", encarnados no conto por<br />

Ermínia, responsável por cui<strong>da</strong>r do gato, e pelo "jovem de paletó colorido e botões dourados:<br />

um empregado de gente rica" (BUZZATI, 2002, p.150, tradução nossa), uma espécie de<br />

mordomo. Além disso, o modo de construção <strong>da</strong> trama apresenta traços do gênero noir.<br />

O romance negro é um romance que funde as duas histórias [a do crime e a<br />

do inquérito] ou, por outras palavras, suprime a primeira e dá vi<strong>da</strong> à<br />

segun<strong>da</strong>. Não é mais um crime anterior ao momento narrativa que se conta, a<br />

narrativa coincide com a ação. [...] Não há história a adivinhar, não há<br />

mistério, no sentido em que êle estava presente no romance de enigma.<br />

(TODOROV, 1969, p.98-9)<br />

Herdeiro distante <strong>da</strong> literatura gótica, o noir, nascido nos Estados Unidos na déca<strong>da</strong><br />

de 1920, acabou colocando em crise o romance policial clássico, uma vez que não<br />

configurava mais um jogo de raciocínio no qual o detetive, do tipo de Dupin ou Holmes,<br />

resolvia o enigma apenas por meio de sua inteligência. "O romance enigma atua na esfera do<br />

raciocínio quase-matemático, na esfera <strong>da</strong> montagem racional, e o romance negro atua na<br />

esfera de viver e perceber criticamente o mundo que nos cerca" (REIMÃO, 1983, p.83).<br />

Presença importante tanto na narrativa gótica como na noir é a caracterização do<br />

ambiente em que ocorre a ação. No conto em questão, no momento em que há o encontro de<br />

Imbriani e o gato, a "rua estava deserta, cinza o céu, tudo absolutamente quieto em volta"<br />

(Buzzati, 2002, p. 147, tradução nossa). E é com voz "gutural" que o velho chama o gato para<br />

dentro de casa. Também a casa estava deserta, pois "a mulher, que vinha fazer a limpeza por<br />

hora, já havia ido embora" (Buzzati, 2002, p. 147, tradução nossa). A presença de uma<br />

faxineira diarista determinaria, a princípio, a época em que ocorre a ação. Também a "pasta de<br />

advogado", dentro <strong>da</strong> qual Imbriani cogita transportar o cadáver do gato até o canal, é outro<br />

elemento determinante <strong>da</strong> época em que se <strong>da</strong>ria a ação, o presente. Porém, como acontece na<br />

maioria <strong>da</strong>s narrativas buzzatianas, há um momento em que os nexos que estruturam a<br />

narração sofrem um corte, uma ruptura. De repente – expressão chave na poética do autor –,<br />

sem que o leitor espere, há uma espécie de vácuo que desfaz os nexos entre causa e efeito que<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

até então vinham sendo construídos. E deste corte abrupto parece se descortinar uma janela de<br />

onde chegam mensagens de uma reali<strong>da</strong>de mais profun<strong>da</strong>. De acordo com Carlo Ginzburg, "a<br />

reali<strong>da</strong>de é opaca, mas há certos pontos – pistas, sintomas – que nos permitem decifrá-la."<br />

(2008, p. 127, tradução nossa). Na trama construí<strong>da</strong> pelo autor, esse momento-chave ocorre<br />

no momento <strong>da</strong> morte do gato, a partir <strong>da</strong> qual entramos como que em outra dimensão<br />

temporal. Os elementos sombrios e oníricos e a mu<strong>da</strong>nça temporal apresenta<strong>da</strong> criam uma<br />

atmosfera angustiante e de mistério, bastante próxima <strong>da</strong>s narrativas góticas tradicionais, que<br />

privilegiavam a I<strong>da</strong>de Média e as tradições antigas, como a execução pela forca e pela<br />

fogueira insinua<strong>da</strong>s no final <strong>da</strong> narrativa. Porém, diversamente <strong>da</strong> narrativa gótica, em que<br />

tais tradições serviam a reafirmar a legali<strong>da</strong>de e a ordem, no conto de Buzzati o clima<br />

angustiante não se desfaz com a sugestão <strong>da</strong> pena imposta ao culpado. O "esclarecimento" do<br />

conto, uma espécie de interpretação do crime, poderemos encontrar em outro texto, em "O<br />

gato preto", de Poe.<br />

A SOLUÇÃO DO TEXTO ESTÁ EM OUTRO TEXTO<br />

No trecho que anteriormente tomamos de empréstimo de Silvia Zangrandi, a autora<br />

faz referência ao jogo intertextual entabulado pela narrativa fantástica contemporânea. Como<br />

é sabido, não é só a narrativa fantástica contemporânea, porém, que se utiliza do jogo<br />

intertextual em seus textos, e sim to<strong>da</strong> a produção contemporânea que, em certa medi<strong>da</strong>, vem<br />

incorporando a intertextuali<strong>da</strong>de como estratégia para discutir o caráter de ficcionali<strong>da</strong>de de<br />

suas composições e de sua relação com o real.<br />

A distinção comumente admiti<strong>da</strong> entre literatura referencial e literatura não<br />

referencial coloca fronteiras cômo<strong>da</strong>s entre discurso sobre o mundo e<br />

discurso ficcional. A intertextuali<strong>da</strong>de convi<strong>da</strong> a desarrumar um pouco essa<br />

distinção, introduzindo um terceiro pólo, para o qual propomos o<br />

neologismo référencialité (referenciali<strong>da</strong>de), para diferenciarmos <strong>da</strong><br />

référentialità (referenciali<strong>da</strong>de) e que corresponderia bem a uma referência<br />

<strong>da</strong> literatura ao real, mas media<strong>da</strong> pela referência propriamente intertextual.<br />

(SAMOYAULT, 2008, p.108)<br />

Acreditamos que o texto buzzatiano que estamos examinando possa ser um exemplo<br />

desse terceiro polo descrito por Samoyault, já que a crônica/conto refere-se ao crime real<br />

ocorrido em 1951, mas o faz por intermédio do conto "O gato preto" de Poe, apontando ao<br />

mundo real e àquele ficcional em sua tentativa de observar ficcionalmente o crime.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Logo no início <strong>da</strong> narrativa nos deparamos com uma vaga alusão ao conto de Poe.<br />

Ao ver aquele belo gato na soleira de sua casa, o protagonista Imbriani pergunta-se: "Onde foi<br />

que já vi este gato" (BUZZATI, 2002, p.147, tradução nossa). A trama do conto de Poe<br />

apresenta um narrador que, à semelhança do protagonista do conto de Buzzati, também adota<br />

um gato, de nome Plutão. Por perversi<strong>da</strong>de, um dia ele arranca um dos olhos do gato. A<br />

referência a esse gato se dá na narrativa de Buzzati através do nome que lhe é <strong>da</strong>do, Iris, que<br />

menciona, indiretamente, o suplício impingido ao olho do gato do conto de Poe. Tempos<br />

depois, por desejo "de fazer o mal pelo próprio mal", ao narrador de Poe acaba enforcando o<br />

animal.<br />

Esse espírito de perversi<strong>da</strong>de, digo eu, foi a causa de minha que<strong>da</strong> final. O<br />

vivo e insondável desejo <strong>da</strong> alma de atormentar-se a si mesma, de violentar<br />

sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a<br />

continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo<br />

animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do<br />

pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. (POE, 1973, p.44).<br />

Na noite em que enforca o gato, sua casa pega fogo. As duas punições finais que<br />

encontramos na narrativa de Buzzati – a forca e a fogueira – parecem remeter a esses dois<br />

elementos do conto de Poe. Imbriani possui perversi<strong>da</strong>de e frieza semelhantes a de seu<br />

"antecessor": depois de matar o gato, por quem aparentemente se afeiçoara, seus únicos<br />

pensamentos dizem respeito a como se desfazer do cadáver.<br />

"Sorte que ninguém viu na<strong>da</strong>" – disse o velho a si mesmo. " E agora Onde o<br />

coloco Não posso, é claro, conservá-lo aqui em casa. E nem escondê-lo no<br />

porão. Imagine o cheiro depois de alguns dias. Enterrá-lo no jardim, então<br />

E se alguém me visse Simplesmente jogá-lo na rua Ou levá-lo, fechado na<br />

pasta de advogado, até o canal mais próximo"<br />

Que canal, que na<strong>da</strong>. O que seria melhor do que o bueiro que <strong>da</strong>va no<br />

esgoto O bueiro ficava numa espécie de corredor entre a casa e o muro dos<br />

fundos. Um beco onde olhares estranhos não entravam. A manobra seria<br />

muito simples: levantar a tampa de ferro, atirar no buraco a carniça.<br />

(BUZZATI, 2002, p.150)<br />

O trecho se assemelha muito àquele proposto por Poe, quando o narrador pensa nas<br />

formas se livrar do corpo <strong>da</strong> esposa.<br />

Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução,<br />

esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo de casa, nem de dia nem de<br />

noite, sem correr o risco de ser visto pelo vizinhos. Ocorreram-me vários<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pe<strong>da</strong>ços e<br />

destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão <strong>da</strong><br />

adega. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma<br />

mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse<br />

<strong>da</strong> casa. Finalmente, tive a idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi<br />

emparedá-lo na adega, como faziam os monges <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média com suas<br />

vítimas. (POE, 1973, p.48-9)<br />

Nos parece que tenha sido esse trecho a disparar na memória de Buzzati a<br />

lembrança do conto de Poe, justamente por causa <strong>da</strong>s semelhanças que mantém com o crime<br />

real cometido por Carlo Candiani. Uma <strong>da</strong>s hipóteses cria<strong>da</strong>s pela mente doentia do narrador<br />

de Poe, como podemos ver, é a de colocar o corpo <strong>da</strong> esposa numa caixa, como as que<br />

Candiani usou para esconder o cadáver de Silvia.<br />

Buzzati criou identi<strong>da</strong>des entre o conto de Poe e o crime real nesta sua releitura<br />

do mundo, que remete tanto à reali<strong>da</strong>de objetiva como àquela ficcional. O tema do desvio de<br />

comportamento, <strong>da</strong> perversão e <strong>da</strong> mal<strong>da</strong>de gratuita – que Poe entendia como parte integrante<br />

de qualquer ser humano, passível de explodir a qualquer momento – é retomado por Buzzati<br />

aqui, como em tantas obras suas. Também ele, com suas crônicas, contos, romances, teatro e<br />

pinturas, sempre buscou representar, através dos mais variados pontos de vista, o lado<br />

sombrio e irracional do homem.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

AFELTRA, Gaetano. Dino Buzzati al "Corriere della Sera" e al "Corriere d'Informazione". In:<br />

GIANETTO, Nella. Buzzati giornalista. Milano: Mon<strong>da</strong>dori, 2000.<br />

ARSLAN, Antonia. Dino Buzzati: tra fantastico e realistico. Modena: Mucchi, 1993.<br />

BUZZATI, Dino. A que<strong>da</strong> <strong>da</strong> Baliverna. Trad. Ana Maria Carlos. São Paulo: Nova<br />

Alexandria, 1997.<br />

_______. La "nera" di Dino Buzzati. Crimini e misteri. A cura di Lorenzo Viganò Milano:<br />

Mon<strong>da</strong>dori, 2002, vol. 1.<br />

GINZBURG, Carlo. Chaves do mistério: Morelli, Freud e Sherlock Holmes. In: ECO,<br />

Umberto; SEBEOK, Thomas A. O signo de três. Trad. Silvana Garcia. São Paulo:<br />

Perspectiva, 2008.<br />

PANAFIEU, Yves. Dino Buzzati, qui êtes-vous Lion: TexTel, 1988.<br />

POE, Edgar Allan. O gato preto. In: Histórias extraordinárias. Trad. Bruno Silveira et alii.<br />

Círculo do Livro: São Paulo, 1973.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

REIMÃO, Sandra Lúcia. 2.ed. O que é romance policial. São Paulo: Brasiliense, 1983.<br />

SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextuali<strong>da</strong>de. Trad. Sandra Nitrini. São Paulo: Aderaldo &<br />

Rothschild, 2008.<br />

TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: As estruturas narrativas. São Paulo:<br />

Perspectiva, 1969. (Debates, 14)<br />

VIGANÒ, Lorenzo; Buzzati: la vocazione per la "nera". In: BUZZATI, Dino. A cura di<br />

Lorenzo Viganò. La "nera" di Dino Buzzati. Crimini e misteri. Milano: Mon<strong>da</strong>dori, 2002.<br />

ZANGRANDI, Silvia. Cose dell'altro mondo. Percorsi nella letteratura fantastica italiana del<br />

Novecento. Bologna: Archetipolibri, 2011.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Do crime ao mistério: convergências entre o policial e o gótico em Alias Grace, de<br />

Margaret Atwood<br />

COPATI, Guilherme (UFSJ)<br />

LAGUARDIA, Adelaine (UFSJ)<br />

RESUMO: A narrativa pós-moderna caracteriza-se pela multiplici<strong>da</strong>de de gêneros que a<br />

constitui, como ilustra Alias Grace, <strong>da</strong> escritora canadense Margaret Atwood. Nesse texto, o<br />

emprego de elementos do romance policial, em especial do romance de enigma, bem como do<br />

romance gótico, converge para a construção narrativa de um crime, motivo que conduz à<br />

caracterização <strong>da</strong> mal<strong>da</strong>de nas personagens <strong>da</strong> trama, sob a ótica do questionamento particular<br />

às pretensões pós-modernas. Como uma narrativa gótica que se constrói em torno de um<br />

crime de assassinato, o romance de Atwood lança mão <strong>da</strong> figura pseudo-detetivesca do<br />

médico psicanalista, e revisita os relatórios médicos, policiais e jornalísticos <strong>da</strong> época como<br />

forma de fun<strong>da</strong>mentar uma adesão ao gênero policial, ao passo que tais relatórios se prestam<br />

ao adensamento <strong>da</strong> caracterização <strong>da</strong> personagem criminosa como louca, deprava<strong>da</strong>, digna de<br />

notorie<strong>da</strong>de por sua conduta avessa aos valores sociais, retrato <strong>da</strong> degeneração moral e sexual<br />

de que a narrativa gótica procura revestir os acontecimentos que narra. O imbricamento de<br />

elementos pertencentes a gêneros variados é favorecido no interior <strong>da</strong> estética pós-moderna,<br />

que, aqui, ao coadunar o gótico ao policial, questiona a objetivi<strong>da</strong>de analítica de um e a<br />

adesão do outro à hor<strong>da</strong> do sobrenatural, demonstrando que a convivência entre gêneros<br />

diversos é um procedimento estético válido e central à pós-moderni<strong>da</strong>de.<br />

PALAVRAS-CHAVE: pós-moderni<strong>da</strong>de; gênero gótico; narrativa policial; Alias Grace;<br />

Margaret Atwood.<br />

ABSTRACT: Postmodernity witnesses the production of narratives which consist of a<br />

multiplicity of genres within the very same novel, as Canadian writer Margaret Atwood’s<br />

Alias Grace illustrates. In Alias Grace, the exploration of elements coming from the mystery<br />

genre, especially from the “whodunit” type, and of elements coming from the gothic genre,<br />

contributes to converge this into a narrative of crime, motif for the introduction of evil<br />

characters within the plot, under the questioning view peculiar to the postmodern critical<br />

attitude. As a gothic plot built upon the crime of murder, Atwood’s novel introduces a<br />

pseudo-detective in the figure of a psychoanalyst, and revisits medical, juridical and<br />

journalistic reports from the time as a means of substantiating the adherence to the mystery<br />

genre, whereas such reports help render the criminal characters as insane, depraved or<br />

peculiar due to their questioning of social values, a portrait of moral and sexual degeneration<br />

with which the gothic narrative embodies the narrated events. The overlapping of elements<br />

pertaining to various genres is favored by postmodern aesthetics, which by coordinating<br />

mystery to gothic, questions both the former’s analytical objectivity and the latter’s adherence<br />

to the supernatural, thus demonstrating that multiple genres coexist as a typical procedure in<br />

the heart of postmodernism.<br />

KEYWORDS: postmodernism; gothic genre; detective story; Alias Grace; Margaret<br />

Atwood.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Este artigo discute as possíveis convergências entre o gótico e o policial em Alias<br />

Grace, de Margaret Atwood (1997), a partir <strong>da</strong> perspectiva pós-moderna, que direciona o<br />

olhar criativo <strong>da</strong> escritora para um diálogo produtivo com o cânone literário, a um só tempo<br />

reverenciando a tradição e buscando reestruturá-la, já que, como observou Steven Connor<br />

(2004, p. 67), na pós-moderni<strong>da</strong>de “a tentativa de novi<strong>da</strong>de está condena<strong>da</strong> desde o começo<br />

como repetição, a única maneira de evitar a repetição parece ser repetir continuamente”.<br />

Tendo em vista essa postura criativa, em que o contemporâneo visita o antigo e o<br />

atualiza por meio <strong>da</strong> constante repetição, Lin<strong>da</strong> Hutcheon (1989) compreende o procedimento<br />

estético <strong>da</strong> paródia como mecanismo central <strong>da</strong> arte na pós-moderni<strong>da</strong>de. Em Hutcheon, a<br />

paródia extrapola as convenções humorísticas a que a visão aristotélica a limitava e demonstra<br />

que se trata agora de um movimento intertextual e intergenérico, uma homenagem ao texto do<br />

passado que o ressignifica e produz um olhar suplementar sobre sua construção estética,<br />

atribuindo a este novo valor. Tal movimento, ao centralizar a paródia como preocupação<br />

central <strong>da</strong> pós-moderni<strong>da</strong>de, atenta também para a reali<strong>da</strong>de do mercado editorial, em que<br />

abun<strong>da</strong>m obras de ficção no campo do romance policial, do gótico, do romance de Harlequim,<br />

e de outros gêneros populares do passado que se mostram perenes na produção literária<br />

contemporânea.<br />

Ao se examinarem em Atwood as convergências entre esses dois gêneros narrativos<br />

de naturezas distintas, conquanto próximas, no espaço <strong>da</strong> pós-moderni<strong>da</strong>de estética e crítica,<br />

insinua-se a necessi<strong>da</strong>de de compreendê-los como repetição e atualização, dentro de uma<br />

perspectiva <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> mistura de gêneros e de tempos a que Hutcheon (1991) se<br />

refere para caracterizar o pós-moderno. Nesse procedimento, depara-se inicialmente com a<br />

dificul<strong>da</strong>de habitual que Tzvetan Todorov (1979; 2007) reconhece no estudo dos gêneros<br />

narrativos, em especial dos gêneros policial e fantástico, e com outras que pesquisas mais<br />

recentes no campo do gênero gótico, como as de SPOONER (2007) e BEVILLE (2009), vêm<br />

confirmar: a dificul<strong>da</strong>de de conceituação inequívoca de ca<strong>da</strong> gênero e de suas características,<br />

ain<strong>da</strong> mais problemática no campo <strong>da</strong> estética pós-moderna, em que as distinções são<br />

implodi<strong>da</strong>s em nome <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de e do questionamento dos limites que constituem uma<br />

identi<strong>da</strong>de genérica.<br />

Na visão clássica, expressa por Fred Botting (2005), o gótico constitui uma<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de literária narrativa em que questionamentos direcionados às ordens sociais e<br />

culturais vigentes em determina<strong>da</strong>s épocas se dão por meio do apelo ao sobrenatural, ao terror<br />

e ao horror, ao suspense, ao aprisionamento e ao assassinato, como metáforas de<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

desestabili<strong>da</strong>de emocional e social, que o gótico procura revelar. Por sua vez, a narrativa<br />

policial, conforme a conceitua Todorov (1979), é uma história de mistério envolvendo um<br />

crime, geralmente um assassinato, que servirá de subterfúgio para a atuação de um detetive e<br />

o desenrolar de uma trama em que mistérios serão aos poucos revelados, em que a ver<strong>da</strong>de<br />

será desestrutura<strong>da</strong> e posteriormente restabeleci<strong>da</strong> por meio <strong>da</strong> ação intelectual. Distinguemse<br />

dois subgêneros centrais em sua teoria: o romance de enigma, que encena a ação do<br />

detetive em momento posterior ao crime cometido, e o romance negro, que situa o detetive<br />

como anti-herói <strong>da</strong> trama, vivenciando in loco a sequência de acontecimentos e o jogo de<br />

poderes que a narrativa procura encenar.<br />

O primeiro entrave que se impõe quando pensamos as convergências entre o<br />

romance gótico e o romance policial é a natureza amiúde oposta do tratamento que esses<br />

gêneros dão ao evento do crime. Afinal, o gênero policial li<strong>da</strong> com o crime e o mistério sob a<br />

perspectiva <strong>da</strong> razão analítica: são eles os motores do trabalho intelectual detetivesco, <strong>da</strong>s<br />

facul<strong>da</strong>des mentais <strong>da</strong> dedução, <strong>da</strong> observação científica, <strong>da</strong> montagem do quebra-cabeça que<br />

satisfará a curiosi<strong>da</strong>de do leitor e re-estabilizará uma ordem perdi<strong>da</strong> pelo intermédio <strong>da</strong> ação<br />

criminosa. Não raro, o crime é também parte central do romance gótico, mas a elaboração<br />

estética <strong>da</strong><strong>da</strong> a este no interior do enredo salienta seus aspectos sombrios, <strong>da</strong>ntescos, e até<br />

mesmo inexplicáveis, que contribuirão para o adensamento do suspense e <strong>da</strong> paranoia <strong>da</strong>s<br />

personagens nele envolvi<strong>da</strong>s.<br />

Assim, embora o gótico nos presenteie com personagens que, cedo ou tarde,<br />

deparam-se com uma explicação para o crime que as envolve, não é através do uso de<br />

facul<strong>da</strong>des analíticas que esta ver<strong>da</strong>de virá à tona. Em geral, a solução para o crime que<br />

complica a trama advém <strong>da</strong> influência do mundo sobrenatural, de coincidências<br />

apropria<strong>da</strong>mente inseri<strong>da</strong>s em momentos anticlimáticos, de revelações e confissões<br />

voluntárias ou feitas em sonho.<br />

S.S. Van Dine (1928), exímio contista de narrativas policiais, tendo teorizado a<br />

respeito do gênero em Twenty rules for writing detective stories, afirma que “o problema do<br />

crime deve ser resolvido por meios estritamente naturais: métodos de apreender a ver<strong>da</strong>de<br />

como a psicografia, o uso de tábuas ouija, leitura de mentes, sessões espíritas e visões em<br />

cristal são tabus”, de forma que tudo quanto se circunscreve ao mundo <strong>da</strong> narrativa gótica e a<br />

ele dá fun<strong>da</strong>mento precisa ser completamente evitado como método possível de resolução do<br />

enigma no romance policial. Chega-se aí a um aparente impasse entre as convergências dos<br />

gêneros gótico e policial no que diz respeito à consideração do crime como motor <strong>da</strong><br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

narrativa: enquanto a narrativa policial faz uso do crime como pretexto para a exibição do<br />

quebra-cabeça articulado pelo autor, em que ca<strong>da</strong> peça será desven<strong>da</strong><strong>da</strong> a tempo certo e por<br />

meio de uma ativi<strong>da</strong>de mental intensa, a narrativa gótica tem no crime a motivação de estados<br />

emocionais descontrolados, e muitas vezes o ponto de inserção do sobrenatural na ordem<br />

natural dos acontecimentos – veja-se aí a profusão de elementos, como elmos fantasmas que<br />

despencam do céu matando homens, crimes de morte motivados pela possessão espiritual ou<br />

suicídios concebidos como assassinatos na figura do duplo.<br />

As observações precedentes evidenciam distinções mais ou menos óbvias entre o<br />

policial e o gótico em suas estruturações. Sua importância se faz, justamente, por suscitarem<br />

quais seriam as convergências entre os gêneros levando em consideração os mesmos<br />

elementos que se mostram opostos em um número significativo de narrativas, o que será<br />

possível se os considerarmos sob uma visão menos específica. É possível observar, com certa<br />

dose de generalização, que tanto o romance gótico quanto o policial têm no crime um<br />

elemento que introduz na trama a dimensão <strong>da</strong> mal<strong>da</strong>de. Sabe-se que este é um conceito<br />

amplo, absoluto e que, sem dúvi<strong>da</strong>, só pode ser apreendido em sua dimensão comparativa e<br />

relativista, sendo passível de questionamentos de ordem filosófica e mesmo teológica sobre a<br />

natureza do bem e do mal. Ain<strong>da</strong> assim, aplica-se ao gótico e ao policial em suas diversas<br />

manifestações, principalmente se levarmos em conta que as personagens em ambos os<br />

gêneros narrativos se dividem antagonicamente entre o bem e o mal, entre o heroísmo e a<br />

vilania.<br />

Uma vez que tanto o gótico quanto o policial fazem uso dessas distinções entre o<br />

bem e o mal, é possível crer que existe aqui um importante ponto de convergência entre os<br />

dois gêneros narrativos no que tange ao crime como elemento estrutural do enredo: este, tanto<br />

na narrativa gótica quanto na policial, sempre será uma marca <strong>da</strong> mal<strong>da</strong>de. As motivações de<br />

um criminoso na narrativa policial podem ser explica<strong>da</strong>s e compreendi<strong>da</strong>s; podem até mesmo<br />

despertar certa simpatia e pie<strong>da</strong>de no leitor – mas jamais poderão ser perdoa<strong>da</strong>s. O criminoso<br />

deverá ser punido por sua má conduta – assim como, no gótico, o crime e a mal<strong>da</strong>de são<br />

castigados tanto no mundo terreno quanto no mundo espiritual.<br />

Para Todorov (1979), no contexto <strong>da</strong> narrativa policial de enigma, o crime é parte de<br />

uma primeira história: uma história que é apenas aludi<strong>da</strong>, que não faz parte <strong>da</strong> centrali<strong>da</strong>de do<br />

enredo, que o antecede e o motiva sem ser parte de sua construção. A observação <strong>da</strong>s<br />

narrativas de enigma clássicas, como as de Agatha Christie, mostra que o crime geralmente já<br />

aconteceu quanto o detetive entra em ação, ou que acontece nos primeiros capítulos <strong>da</strong> trama.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Assim, existe uma cisão entre a história do crime e a história do inquérito, a segun<strong>da</strong> história.<br />

Esse aparato teórico que Todorov desenvolve para caracterizar a construção do romance<br />

policial alude a outro, que Ricardo Piglia (1994) constrói nas premissas de O laboratório do<br />

escritor, e que podemos também aplicar à construção <strong>da</strong> narrativa gótica. Partindo <strong>da</strong><br />

observação <strong>da</strong>s narrativas de Edgar Allan Poe – o mestre do conto gótico e o precursor do<br />

romance de enigma nos moldes em que hoje é conhecido – Piglia reconhece no conto a<br />

presença de duas histórias: uma superficial, a própria narrativa, em cuja superfície se<br />

interpõem flashes de outra história profun<strong>da</strong>, apenas sugeri<strong>da</strong>, sendo o conto a arte de se fazer<br />

coincidir ambas.<br />

Ajustando-se os conceitos de Todorov aos de Piglia, podemos inferir que tanto o<br />

romance de enigma quanto o romance gótico podem ser compreendidos como gêneros em que<br />

duas histórias são narra<strong>da</strong>s: quanto ao romance de enigma, a narrativa superficial coincidiria<br />

com a segun<strong>da</strong> história a que se refere o crítico formalista, qual seja a história do inquérito, ao<br />

passo que a história profun<strong>da</strong>, a primeira história ou história do crime, deixa-se perceber na<br />

narrativa superficial pelo acúmulo de pistas, pela reconstituição do crime, ou pelo indefectível<br />

“erro” que todo criminoso comete e que eventualmente conduzirá à resolução do mistério. Por<br />

sua vez, o romance gótico tem como história superficial, ou segun<strong>da</strong> história, a narrativa dos<br />

acontecimentos presentes, contemporâneos à leitura <strong>da</strong> obra, a encenação dos conflitos de<br />

perseguição e violência a que submergem acontecimentos anteriores à narrativa, segredos de<br />

família guar<strong>da</strong>dos por gerações, crimes antigos, coincidências narrativas, revelação de<br />

mistérios que antecediam à história narra<strong>da</strong>. Em ambos os casos, as complicações <strong>da</strong> narrativa<br />

deixam entrever acontecimentos ulteriores, que coincidirão ao clímax narrativo para<br />

configurar os sentidos de enredos que, ca<strong>da</strong> qual ao seu modo, giram em torno <strong>da</strong><br />

desambiguação de mistérios.<br />

Assim, partindo <strong>da</strong> premissa que caracteriza o romance de enigma na visão de<br />

Todorov (1979), é possível estendê-la à conceituação do romance gótico, logrando uma<br />

semelhança construtiva a ser discuti<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> observação de uma narrativa gótica<br />

contemporânea, Alias Grace, <strong>da</strong> consagra<strong>da</strong> escritora canadense Margaret Atwood (1997). A<br />

escolha de Alias Grace se mostra útil, uma vez que ilustra as premissas até aqui levanta<strong>da</strong>s<br />

por duas razões: em primeiro lugar, porque se trata de uma obra gótica que mantém estreitas<br />

conexões com o romance de enigma, muito em função de se inspirar na história real de dois<br />

assassinatos cometidos no Canadá em meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 50 do século XIX e de suas<br />

circunstâncias misteriosas, ain<strong>da</strong> hoje inexplica<strong>da</strong>s. E, em segundo lugar, porque se trata de<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

uma obra tipicamente pós-moderna, cuja elaboração se dá pela recorrência a diversos gêneros<br />

narrativos, somente possível através de um questionamento dos paradigmas que constituem<br />

ca<strong>da</strong> um desses gêneros, o que lhe permite aprofun<strong>da</strong>mento elaborativo e maior amplitude<br />

estética.<br />

Alias Grace narra a história de Grace Marks, adolescente irlandesa habitante do<br />

Canadá novecentista, uma cria<strong>da</strong> acusa<strong>da</strong> do duplo assassinato de seu patrão e governanta <strong>da</strong><br />

casa, em conclave com James McDermott, também criado, ambos motivados por ciúme e,<br />

possivelmente, por insani<strong>da</strong>de. Trata-se de um romance narrado em forma pós-moderna,<br />

como afirma Wisker (2000), e motivado pelos questionamentos que a pós-moderni<strong>da</strong>de<br />

direciona a preocupações de gênero (gender) e identi<strong>da</strong>de, à relativização do conceito de<br />

ver<strong>da</strong>de e à implosão <strong>da</strong>s convenções narrativas clássicas de gêneros diversos, como as do<br />

próprio gótico que procura parodiar, e de outros gêneros, como o romance de enigma.<br />

Enquanto romance gótico, Alias Grace recupera elementos narrativos do gênero ao retratar os<br />

conflitos de opressão de suas diversas personagens no seio de uma socie<strong>da</strong>de cujos valores<br />

são questionados e redirecionados pela ação de transgressões morais, políticas e sexuais, pela<br />

interferência do mundo sobrenatural e pela prevalência <strong>da</strong> superstição sobre a razão prática,<br />

pelas motivações passionais e pelo apelo à violência, tudo encenado em locações tais como a<br />

masmorra, o asilo, a prisão, o navio de emigrantes, o laboratório, que evocam o medievo e o<br />

espírito de treva que dominou o período e que, segundo Botting (2005), constituiu inspiração<br />

recorrente do gótico.<br />

Ao reelaborar as convenções góticas e recriar a história do caso Grace Marks como<br />

um romance pertencente a esse gênero, Margaret Atwood (1997) produz uma paródia<br />

narrativa (HUTCHEON, 1989) que difere do gênero gótico clássico pelo aprofun<strong>da</strong>mento<br />

característico <strong>da</strong>do a seus elementos, através, principalmente, <strong>da</strong> relativização <strong>da</strong>s figuras de<br />

herói e de vilão, inspira<strong>da</strong> na falta de evidências acusatórias para a prisão de Grace Marks, e<br />

nos processos de fragmentação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de desta, oscilante entre anjo e demônio, entre<br />

assassina e vítima, entre humano e cobaia, sem ser precisamente defini<strong>da</strong> por nenhuma dessas<br />

facetas.<br />

Além disso, a técnica parodística emprega<strong>da</strong> na construção do romance e sua<br />

vinculação aos procedimentos estéticos característicos <strong>da</strong> pós-moderni<strong>da</strong>de são evidencia<strong>da</strong>s<br />

no imbricamento de gêneros narrativos que constituem o todo <strong>da</strong> obra. Esse procedimento se<br />

evidencia através <strong>da</strong>s frequentes menções a diários, relatos jornalísticos, relatórios médicos,<br />

confissões e outros tipos textuais que compõem as epígrafes de ca<strong>da</strong> seção, contribuindo para<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

a construção em patchwork que perpassa o enredo como metáfora do próprio ato de narrar ali<br />

problematizado, bem como pela recorrência a elementos de gêneros outros que não o gótico<br />

para construção do enredo, como a narrativa de memórias, o romance de costumes, e o<br />

próprio romance de enigma.<br />

Dentre as epígrafes que inauguram ca<strong>da</strong> seção de Alias Grace (ATWOOD, 1997)<br />

encontram-se trechos <strong>da</strong>s confissões de ambos os acusados, relatórios médicos e jurídicos,<br />

descrições jornalísticas do julgamento de Grace Marks e James McDermott, elementos<br />

factuais que corroboram a decisão judicial pela culpabili<strong>da</strong>de dos acusados e que dão à obra o<br />

tom narrativo do romance policial, em especial do romance de enigma, que li<strong>da</strong> com a<br />

evidência como forma de reconstrução do crime e apontamento de seu culpado. A confissão<br />

de Grace Marks ao Star and Transcript, jornal canadense que ofereceu cobertura aos<br />

assassinatos Kinnear-Montgomery, reproduzi<strong>da</strong> como epígrafe para diversos trechos <strong>da</strong> obra,<br />

é cabalmente concebi<strong>da</strong> como uma digressão narrativa para o momento do crime que<br />

geralmente se localiza ao final do romance de enigma, caracteriza<strong>da</strong> pela descrição do passoa-passo<br />

<strong>da</strong>s ações dos criminosos, quando o detetive, ao modo de um narrador, encaixa as<br />

peças que faltavam para o desven<strong>da</strong>r de uma ver<strong>da</strong>de obstruí<strong>da</strong>. No entanto, ao fragmentar o<br />

discurso oficial <strong>da</strong> acusa<strong>da</strong> e reorganizá-lo sob uma perspectiva cronológica cujos interstícios<br />

são preenchidos por trechos de outros discursos e pela pura produção ficcional, Margaret<br />

Atwood questiona a vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> evidência, a ver<strong>da</strong>de supostamente inerente aos documentos<br />

e, consequentemente, as bases narrativas do próprio romance policial.<br />

O momento <strong>da</strong>s narrativas policiais de enigma em que o criminoso ganha voz na<br />

condição de criminoso, confessando-se e aceitando as deduções lógicas do detetive cuja<br />

indiscutibili<strong>da</strong>de finaliza o mistério que movimenta a trama, fragmenta-se, assim, pelos<br />

diversos capítulos de Alias Grace (ATWOOD, 1997), obra em que se produz uma bricolagem<br />

consciente de trechos <strong>da</strong> confissão de Grace Marks, atestado maior de sua culpa, os quais,<br />

reorganizados às necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> obra de Atwood, e direcionados sob um olhar pós-moderno<br />

que questiona o valor <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des absolutas e do próprio discurso que as produz, serão<br />

desautorizados pela reconstrução fictícia <strong>da</strong> biografia de Grace, em especial dos misteriosos<br />

momentos que circun<strong>da</strong>ram um crime sem testemunhas que não os próprios acusados.<br />

Por outro lado, a inclusão de trechos <strong>da</strong> confissão de Grace Marks, se interessa ao<br />

caráter detetivesco do romance de Margaret Atwood (1997), também contribui para uma visão<br />

geral <strong>da</strong> obra como um exemplar <strong>da</strong> narrativa gótica, especialmente por enfatizarem o<br />

envolvimento de uma adolescente em acontecimentos escabrosos e que despertaram reações<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

violentas por parte de todos os que acompanharam de perto o caso Kinnear-Montgomery. Na<br />

época, o envolvimento de Grace Marks no assassinato despertou profun<strong>da</strong> antipatia na<br />

audiência canadense que veio a desqualificá-la moralmente, como louca e prostituta. Grace<br />

Marks converte-se em um elemento abjeto (KRISTEVA, 1982), um estranho à socie<strong>da</strong>de e<br />

aos valores que professa, converte-se na femme fatale que povoa a narrativa policial e no<br />

diabo encarnado que assombra o gótico e que tantas vezes encontra representação na figura <strong>da</strong><br />

mulher.<br />

Alias Grace (ATWOOD, 1997) inicia-se segundo a tradição do romance de enigma:<br />

o capítulo de abertura descreve o assassinato que se converterá em problema central do<br />

enredo. Narrado sob o ponto de vista memorialístico, como convém ao romance de enigma<br />

(TODOROV, 1979), o capítulo desdiz a clareza e quase absoluta falta de estilo que também<br />

são características do gênero, além de questionar um de seus postulados mais clássicos: tratase,<br />

aqui, de um crime reconstituído em a partir de seus fragmentos, pela própria voz <strong>da</strong><br />

acusa<strong>da</strong>, o que se justifica no fato de que, ao longo <strong>da</strong> narrativa, ela se revelará talvez<br />

inocente, talvez culpa<strong>da</strong> <strong>da</strong>s acusações que lhe são imputa<strong>da</strong>s. Para tal, a narrativa se vale de<br />

um salto temporal e vem se localizar em plena segun<strong>da</strong> história todoroviana, a história do<br />

inquérito reaberto: um grupo de espiritualistas, reformistas e benfeitores procuram por um<br />

perdão para Grace Marks, que desde a acusação dos crimes de assassinato fora recolhi<strong>da</strong> em<br />

diversos sanatórios sob alegação de insani<strong>da</strong>de, tendo sua pena de morte comuta<strong>da</strong> para prisão<br />

perpétua.<br />

A reabertura do caso Grace Marks suscita a chega<strong>da</strong> de uma figura semidetetivesca,<br />

e esta função será relega<strong>da</strong> à personagem do Dr. Simon Jor<strong>da</strong>n, médico que se dedica ao<br />

estudo <strong>da</strong> mente humana e de seus desvios, acionado no intuito de recuperar as memórias<br />

perdi<strong>da</strong>s do dia do crime. Ao modo de um Sherlock Holmes, Simon Jor<strong>da</strong>n aplica<br />

procedimentos pseudocientíficos do estudo <strong>da</strong> mente humana, então em voga, para fazer<br />

emergir a primeira história e reconstituir o crime de morte pelos elementos então à sua<br />

disposição: ouvindo o testemunho dos envolvidos, principalmente o de Grace Marks,<br />

revisitando os relatórios médicos e jurídicos à época conclusivos <strong>da</strong> culpabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> acusa<strong>da</strong>,<br />

visitando o local do crime, e produzindo a tradicional reconstituição criminal que marca<br />

inúmeros romances policiais.<br />

Simon Jor<strong>da</strong>n simboliza, ain<strong>da</strong> que de forma questionável, a razão analítica que<br />

deverá apresentar uma solução inequívoca para o crime que se faz acor<strong>da</strong>r: uma voz <strong>da</strong> razão<br />

que se mostrará ineficiente ao abandonar o empirismo de suas observações e se deixar seduzir<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

pela narrativa de Grace Marks que, ao modo de Sherazade, tece uma interminável história de<br />

suas memórias, inúteis na medi<strong>da</strong> em que na<strong>da</strong> de factual acrescentam ao conhecimento dos<br />

eventos do dia do crime. Acrescentam, é certo, ao tom <strong>da</strong> narrativa, à elaboração <strong>da</strong><br />

personali<strong>da</strong>de de Grace, e à sugestão de certos eventos que possivelmente a teriam motivado a<br />

uma conduta criminosa. Sob outro ponto de vista, o uso de recursos psicanalíticos parece<br />

alienado às necessi<strong>da</strong>des do romance de enigma, já que carece de evidência científica, <strong>da</strong><br />

prova que confere embasamento ao trabalho do detetive, do contrário um amontoado de<br />

hipóteses inventivas a respeito do caso. Assim, o romance de Atwood (1997) oscila entre os<br />

gêneros, questionando ora as características de um, ora as do outro.<br />

A segun<strong>da</strong> história em Alias Grace (ATWOOD, 1997) se resolverá por intermédio <strong>da</strong><br />

personagem do Dr. Jerome DuPont, hipnotizador, cujos métodos de mesmerismo, tão em<br />

voga como forma de atração circense no século XIX, farão sobrevir em Grace Marks a figura<br />

possessora do espírito de Mary Whitney, outra <strong>da</strong>s personagens <strong>da</strong> trama. A solução para o<br />

crime surge, pois, através <strong>da</strong> intervenção do elemento sobrenatural, que se faz aceito no meio<br />

<strong>da</strong>s personagens face às falhas de todos os outros recursos até então empregados. Na cena de<br />

revelação do culpado, é o próprio culpado quem se aponta, provocando sua audiência a<br />

reconstruir os elementos <strong>da</strong> trama, desautorizando a figura do detetive e sua onisciência, e<br />

demonstrando que em uma narrativa em que se coadunam gêneros diversos, há que se<br />

fazerem concessões entre uns e outros, há que se <strong>da</strong>r passagem ao sobrenatural como ponto de<br />

resolução de eventos <strong>da</strong> ordem natural e há que se aceitar um detetive cuja voz será incapaz<br />

de apontar um culpado concreto, num contexto em que culpa e inocência são relativiza<strong>da</strong>s ao<br />

ponto <strong>da</strong> fragmentação.<br />

Alias Grace (ATWOOD, 1997) coordena, portanto, recursos extraídos do gótico a<br />

recursos extraídos do romance de enigma, construindo-se, assim, uma obra cuja complexi<strong>da</strong>de<br />

exala <strong>da</strong> convivência de elementos díspares, outrora considerados incompatíveis. A<br />

observação de exemplos esporádicos nos leva a afirmar que se trata de uma obra em que se<br />

coadunam as visões estéticas de gêneros distintos, numa convivência dialética em que os<br />

mesmos elementos se revestem de interpretações varia<strong>da</strong>s, autoriza<strong>da</strong>s pela multiplici<strong>da</strong>de de<br />

gêneros que caracterizam a ficção pós-moderna, de que nos fala Hutcheon (1989).<br />

Entre o policial e o gótico, Margaret Atwood (1997) subverte expectativas narrativas<br />

e organiza os elementos do romance policial pelo seu avesso, atribuindo-lhes novas<br />

significações no interior <strong>da</strong>s convenções góticas, produzindo a implosão <strong>da</strong>s barreiras entre os<br />

gêneros, para demonstrar que a pós-moderni<strong>da</strong>de propõe um jogo não apenas com a<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

relativização dos conceitos de ver<strong>da</strong>de e, podemos dizer, com o conceito de mal<strong>da</strong>de no<br />

interior de narrativas como o gótico e o policial, mas também com as próprias limitações e<br />

circunscrições dos gêneros literários, fun<strong>da</strong>mentais para a caracterização <strong>da</strong> obra na visão<br />

formalista de Todorov.<br />

Na pós-moderni<strong>da</strong>de, importa menos o pertencimento <strong>da</strong> obra a um gênero único,<br />

prevalece o jogo entre os gêneros, o questionamento de valores estéticos, o aprofun<strong>da</strong>mento<br />

que permite aos mistérios do romance gótico um casamento estético com os mistérios do<br />

romance de enigma.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

ATWOOD, Margaret. Alias Grace. New York: Anchor Books, 1997.<br />

BEVILLE, Maria. Gothic postmodernism: voicing the terrors of postmodernity. New York:<br />

Rodopi, 2009.<br />

BOTTING, Fred. Gothic. London: Routledge, 2005.<br />

CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo. Trad.<br />

A<strong>da</strong>il Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.<br />

HUTCHEON, Lin<strong>da</strong>. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro:<br />

Imago, 1991.<br />

______.. The politics of postmodernism. London: Routledge, 1989.<br />

KRISTEVA, Julia. Powers of horror: an essay on abjection. New York: Columbia University<br />

Press, 1982.<br />

PIGLIA, Ricardo. O laboratório do escritor. São Paulo: Iluminuras, 1994.<br />

SPOONER, Catherine. Contemporary gothic. London: Reaktion Books, 2007.<br />

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello.<br />

São Paulo: Perspectiva, 2007.<br />

______. Tipologia do romance policial. In: As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva,<br />

1979. P. 93-104.<br />

VAN DINE, S.S. Twenty rules for writing detective stories. 1928. Disponível em:<br />

. Acesso em: 01 jun. 2012.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

WISKER, Gina. Post-colonial and African American women’s writing: a critical introduction.<br />

New York: St. Martin’s Press, 2000.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O escritor-detetive na literatura contemporânea: o caso de Alberto Manguel<br />

DANTAS, Gregório (UFGD)<br />

RESUMO: É comum, no romance contemporâneo, a apropriação (muitas vezes paródica) de<br />

formas narrativas tradicionais, como o romance policial, o qual adequa-se a determinados<br />

imperativos <strong>da</strong> ficção contemporânea, como os ostensivos diálogos intertextuais e a obsessão<br />

pelo discurso metaficcional. No romance policial contemporâneo, o escritor atua como<br />

detetive, investigando crimes, identi<strong>da</strong>des perdi<strong>da</strong>s ou pessoas desapareci<strong>da</strong>s, processo que é<br />

também o <strong>da</strong> investigação de sua própria identi<strong>da</strong>de e dos limites e impasses de sua escrita.<br />

Neste sentido, o detetive/escritor não é mais um gênio <strong>da</strong> dedução, como Sherlock Holmes, no<br />

romance de enigma do século XIX, e sim uma figura perplexa diante de sua incapaci<strong>da</strong>de de<br />

elaborar um discurso coeso sobre o real. Em Todos os homens são mentirosos, de Alberto<br />

Manguel, um jornalista/detetive investiga a vi<strong>da</strong> do escritor Alejandro Bevilacqua, morto em<br />

circunstâncias misteriosas. Essa investigação torna-se a investigação de uma geração de<br />

expatriados e dos limites entre ficção e memória. Entre máscaras, sombras e duplos, o escritor<br />

aprende a dolorosa lição do narrador de “O quarto fechado”, de Paul Auster: a reali<strong>da</strong>de só<br />

pode ser apreendi<strong>da</strong> através <strong>da</strong> ficção.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Literatura contemporânea; Romance Policial; Alberto Manguel.<br />

ABSTRACT: It is common, in the contemporary novel, the appropriation (commonly<br />

parodic) of traditional narrative forms, such as the detective novel, which is suitable for<br />

certain imperatives of contemporary fiction, as the overt intertextual dialogues and obsession<br />

with metafictional discourse. In the contemporary crime novel, the writer acts as a detective,<br />

investigating crimes, missing persons or lost identities, a process that is also the research of<br />

their own identity and of the limits and impasses of his writing. In this sense, the<br />

detective/writer is no longer a genius of the deduction as Sherlock Holmes, but a figure<br />

perplexed before his inability to develop a cohesive discourse on the real. In Alberto<br />

Manguel’s Todos os homens são mentirosos, a journalist / detective investigates the life of<br />

writer Alexander Bevilacqua, who died in mysterious circumstances. Such investigation<br />

becomes the investigation of a generation of expatriates and of the boun<strong>da</strong>ries between fiction<br />

and memory. Among masks, shadows and doubles, the writer learns the painful lesson of the<br />

narrator of "The locked room" by Paul Auster: reality is only apprehended through fiction.<br />

KEYWORDS: Contemporary literature; detective novel; Alberto Manguel.<br />

1.<br />

O ostensivo interesse <strong>da</strong> literatura contemporânea pelos enredos policiais deve-se a<br />

diferentes fatores. Não há dúvi<strong>da</strong> de que o apelo comercial é uma delas: um enredo<br />

policialesco pode ser significativo para a recepção comercial de uma obra. Prova disso são<br />

não apenas os títulos que multiplicam modelos de sucesso como O código <strong>da</strong> Vinci — já uma<br />

diluição do modelo estabelecido por Umberto Eco em O nome <strong>da</strong> rosa —, como também um<br />

sem número de títulos supostamente mais “sérios”, <strong>da</strong> “alta literatura”. Isso porque, para certa<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

prosa contemporânea, são quase obrigatórios determinados procedimentos ditos pósmodernos,<br />

como o comentário metaficcional, as referências intertextuais e a apropriação, no<br />

mais <strong>da</strong>s vezes paródica, de formas narrativas consagra<strong>da</strong>s, como o romance policial. E certa<br />

visa<strong>da</strong> irônica, promovi<strong>da</strong> por tais procedimentos, parece garantir a chancela de quali<strong>da</strong>de<br />

literária — destina<strong>da</strong> aos textos autorreflexivos — por parte <strong>da</strong> crítica mais apressa<strong>da</strong>, que é a<br />

parte <strong>da</strong> crítica mais comum, esteja ela dissemina<strong>da</strong> em resenhas jornalísticas que atuam<br />

como releases de lançamentos ou consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> na rotina <strong>da</strong> multiplicação de artigos imposta<br />

ao mundo acadêmico. Ain<strong>da</strong> assim, e apesar <strong>da</strong> banalização do procedimento, a apropriação<br />

do modelo policial pela literatura contemporânea é bastante significativa de um movimento de<br />

autorreflexão dessa literatura.<br />

O policial pode, por exemplo, emergir em uma narrativa para ser desbancado,<br />

evocado como um modelo narrativo a ser combatido. É assim para o narrador de O delfim, de<br />

José Cardoso Pires, para quem “a literatura policial é um tranquilizante do ci<strong>da</strong>dão instalado.<br />

To<strong>da</strong> ela tende a demonstrar que não há crime perfeito”. E se houve crimes compensadores,<br />

eles “não vêm nos romances. O burguês pacato precisa de acreditar nas instituições. Mostrarlhes<br />

que pode haver crimes perfeitos era o fim <strong>da</strong> sua tranquili<strong>da</strong>de” (PIRES, 1983, p. 122).<br />

Ou seja, fica claro que o crime de O delfim não se resolverá a contento do leitor acostumado a<br />

resoluções lógicas; a narrativa de José Cardoso Pires desestabiliza as certezas, as <strong>da</strong> literatura<br />

e as do mundo que descreve. Trata-se de uma literatura que, de certo modo, desenvolve a tese<br />

de um personagem de O túnel, de Ernesto Sábato:<br />

— Minha teoria —explicou — é a seguinte: o romance policial representa,<br />

no século XX, o que o romance de cavalaria representava na época de<br />

Cervantes. E mais: acho que se poderia fazer alguma coisa equivalente ao<br />

Dom Quixote: uma sátira do romance policial. Imaginem um indivíduo que<br />

passou a vi<strong>da</strong> lendo romances policiais e que chegou à loucura de acreditar<br />

que o mundo funciona como um romance de Nicholas Blake ou Ellery<br />

Queen. Imaginem que esse pobre homem finalmente sai por aí desven<strong>da</strong>ndo<br />

crimes e agindo na vi<strong>da</strong> real como age um detective num desses romances.<br />

Acho que se poderia fazer uma coisa diverti<strong>da</strong>, trágica, simbólica, satírica e<br />

bonita (SÁBATO, 2012, p. 100-1).<br />

José Cardos Pires e Ernesto Sábato, ao se apropriarem do modelo policial, satirizam<br />

não apenas as facili<strong>da</strong>des do modelo em si, mas as expectativas do leitor quixotesco que<br />

explica o mundo e a literatura através de regras e modelos pré-estabelecidos. O policial, neste<br />

contexto, surge como um gênero facilitador, apaziguador e alienante como os produtos <strong>da</strong><br />

indústria de massa e, portanto, um gênero a ser superado pela literatura destes autores.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O fato, porém, é que tanto Cardoso Pires quanto Sábato terminam por comprovar a<br />

permanência e a relevância do policial. O mais provável é que o enredo centrado em uma<br />

investigação seja adequado para incorporar certas questões <strong>da</strong> literatura contemporânea, como<br />

o discurso metaficcional. Basicamente, porque a figura do detetive é bastante adequa<strong>da</strong> para<br />

representar um movimento de reflexão <strong>da</strong> obra sobre seu próprio estatuto, na medi<strong>da</strong> em que<br />

personifica uma dupla presença sobre o texto literário: a do autor e a do leitor.<br />

O detetive é sempre um leitor, na medi<strong>da</strong> em que lê o mundo, as pistas, para<br />

descobrir a autoria de um crime. Além disso, é comum que o leitor possa se identificar com<br />

esse personagem, ou pelo menos com seu olhar interrogativo, na esperança de decifrar, por<br />

sua própria conta, o enigma (risco calculado para o escritor mais hábil). Não à toa, segundo o<br />

narrador de “Ci<strong>da</strong>de de vidro”, de Paul Auster,<br />

o leitor e o detetive são permutáveis. O leitor vê o mundo através dos olhos<br />

do detetive, experimentando a proliferação dos detalhes desse mundo como<br />

se o visse pela primeira vez. O leitor desperta para as coisas à sua volta<br />

como se elas pudessem falar com ele, como se, em virtude <strong>da</strong> atenção que<br />

agora lhes dedica, elas passassem a ter algum outro significado além do<br />

simples fato de existir. Detetive particular, private eye (AUSTER, 2004, p.<br />

14-15).<br />

Segundo Ricardo Piglia, o detetive pode também encarnar um leitor no sentido<br />

literal, ou seja, pode ser ele próprio um leitor de livro: “uma <strong>da</strong>s maiores representações<br />

modernas <strong>da</strong> figura do leitor é a do detetive privado (private eye) do gênero policial”<br />

(PIGLIA, 2006, p. 74). Basta nos lembramos de que o primeiro encontro entre o narrador de<br />

“Os assassinos <strong>da</strong> rua Morgue” (1841) e o detetive Auguste Dupin se dá numa livraria, onde<br />

procuram o mesmo livro, fato que os põe “em estreita comunhão”. Segundo Piglia, mesmo o<br />

Philip Marlowe de Raymond Chandler era um leitor atento, como comprova a importância<br />

dos versos de T. S. Eliot em O longo adeus. Poderíamos ain<strong>da</strong> evocar um sem número de<br />

detetives contemporâneos, como os de Luiz Alfredo Garcia-Roza, Lawrence Block ou Donna<br />

Leon (cujo detetive é casado com uma professora de teoria literária).<br />

Devemos ir além: se o detetive é um leitor, ele é também um escritor. Ao definir<br />

verossimilhança, Todorov (2003) recorre a uma breve história. Após um acidente, os dois<br />

lados envolvidos encontram-se frente às autori<strong>da</strong>des para provar, ca<strong>da</strong> um, sua versão dos<br />

fatos. Importa menos o que realmente aconteceu — já que a ver<strong>da</strong>de está perdi<strong>da</strong>,<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

irremediavelmente — e mais a capaci<strong>da</strong>de de se criar uma versão verossímil para os eventos<br />

em questão. A verossimilhança é muita vez to<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong>de, para citar Dom Casmurro.<br />

Recorrendo novamente a Ricardo Piglia — mais precisamente a suas “Teses sobre o<br />

conto” —, podemos dizer que, assim como todo conto encerra duas histórias, uma superficial<br />

e outra oculta, o mesmo ocorre no romance policial: há sempre duas histórias, a do crime<br />

(oculta) e a <strong>da</strong> investigação (que está sendo produzi<strong>da</strong> na medi<strong>da</strong> em que se examinam as<br />

pistas). A segun<strong>da</strong> história tenta recompor a primeira. Se não de maneira inequívoca, pelo<br />

menos de maneira verossímil.<br />

Na narrativa clássica de enigma, uma mente dedutiva como Sherlock Holmes<br />

consegue reconstruir plenamente a história oculta. Mas o modelo do detetive racionalista saiu<br />

de mo<strong>da</strong> há muito tempo, pelo menos desde o romance noir surgido na déca<strong>da</strong> de 1920. E não<br />

voltou. Os detetives contemporâneos, sem serem mais as figuras infalíveis de outrora,<br />

parecem assumir que a intuição é parte tão significativa <strong>da</strong> investigação quanto a análise<br />

científica <strong>da</strong>s pistas. Além disso, talvez porque seja hoje muito claro que a ver<strong>da</strong>de não pode<br />

ser reconstruí<strong>da</strong> senão dentro dos limites <strong>da</strong> memória e, portanto, <strong>da</strong> ficção. Daí a frustração<br />

inevitável do leitor frente ao policial contemporâneo, ou melhor, “anti-policial”:<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, a satisfação de se ler a ficção policial tradicional — tanto a<br />

clássica, britânica, quanto o tipo “hard boiled”, norte-americano — deve-se à<br />

assunção implícita de que o detetive e o leitor vão, eventualmente, ascender<br />

à posição do autor. A ficção anti-policial, contudo, nega essa satisfação e, ao<br />

invés disso, retrata a busca frustra<strong>da</strong> do detetive por reconhecimento autoral<br />

(SORAPURE, 1995, p. 72).<br />

2.<br />

Todo esse prelúdio sobre o romance policial é necessário para se compreender o<br />

lugar ocupado pelo romance Todos os homens são mentirosos (2008), do argentino Alberto<br />

Manguel. Autor de diversos ensaios sobre literatura — Uma história <strong>da</strong> leitura (1996), A<br />

biblioteca à noite (2006), A ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s palavras (2007) — Manguel faz dos livros também<br />

o tema preferencial de sua ficção. Em Todos os homens são mentirosos, o jornalista francês<br />

Jean-Luc Terradillos investiga a vi<strong>da</strong> do argentino Alejandro Bevilacqua, autor de uma obraprima<br />

literária intitula<strong>da</strong> Elogio de la mentira, e morto em circunstâncias misteriosas.<br />

Ouvimos quatro personagens, cujas vozes compõem um quadro nem sempre coeso <strong>da</strong><br />

personali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de Bevilacqua. A começar por um escritor chamado Alberto Manguel.<br />

Através dele, conhecemos um grupo de literatos argentinos exilados em Madri nos anos 70,<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

fugidos <strong>da</strong> violenta ditadura de seu país. E conhecemos as linhas gerais <strong>da</strong> tragédia que<br />

envolveu o autor de Elogio de la mentira: o casamento fracassado, o horror <strong>da</strong> prisão, a fuga<br />

<strong>da</strong> Argentina, o trabalho como autor de fotonovelas, a publicação (à sua revelia) de seu único<br />

manuscrito e o aparente suicídio.<br />

A certa altura de seu relato, Manguel cita o escritor catalão Enrique Vila-Matas e seu<br />

Bartleby e companhia, (2004) para inserir Bevilacqua dentro <strong>da</strong> ilustre tradição de autores que<br />

optaram por não escrever, ou que se tornaram reconhecidos antes mesmo de terem uma obra<br />

literária. Mas a referência é oportuna também para nos lembrar de que o próprio Manguel<br />

parece ser um caso clínico de “doente de literatura”, aquela pessoa obceca<strong>da</strong> pelo literário,<br />

que não consegue entender o mundo se não mediado pelos livros, perfil descrito por Vila-<br />

Matas em O mal de Montano (2005). Manguel descreve seu conterrâneo, por exemplo, nos<br />

seguintes termos:<br />

Agora me ocorre que a vi<strong>da</strong> de Bevilacqua foi apenas um esboço de vi<strong>da</strong>.<br />

Em termos literários, não passa de uma compilação de fragmentos, de<br />

retalhos, de episódios inconclusos. Qualquer um deles serviria para <strong>da</strong>r<br />

início a um grande romance de mil páginas, profundo e ambicioso. Em<br />

compensação, a biografia que lhe conto é bem ao estilo do personagem:<br />

indecisa, indefini<strong>da</strong>, inepta (MANGUEL, 2010, p. 51).<br />

E nenhum dos personagens está imune à “mitomania literária”; nem mesmo a<br />

segun<strong>da</strong> narradora, Andrea, para quem Manguel é um “imbecil”, alguém que não acredita que<br />

na<strong>da</strong> seja ver<strong>da</strong>deiro “a menos que ele veja a coisa escrita num livro” (MANGUEL, 2010, p.<br />

78). Ain<strong>da</strong> assim, ela não pode deixar de reconhecer que encaminhou a publicação dos<br />

originais de Bevilacqua movi<strong>da</strong> pela fantasia do escritor que ele poderia ser, cujo nome<br />

figuraria nas estantes entre Benedetti e Cortázar. E insiste em entender a vi<strong>da</strong> em termos<br />

literários: “Eu não sei se essas histórias conta<strong>da</strong>s eram minhas ou dele, ou sei lá de quem. (...)<br />

Imagino que se nos lêssemos num livro não nos reconheceríamos, não saberíamos que aqueles<br />

somos nós fazendo aquelas coisas e comportando-nos <strong>da</strong>quela maneira” (MANGUEL, 2010,<br />

p. 92).<br />

O mesmo acontece com os outros narradores: Chancho, esse estranho personagem<br />

que dividiu a cela com Bevilacqua nos porões <strong>da</strong> ditadura argentina, confessa ser “hábil” na<br />

arte <strong>da</strong> ficção (talento convertido em relações escusas com os militares), mostra habili<strong>da</strong>de ao<br />

refletir sobre o gênero literário que escolheu (uma carta) e cria aquela que talvez seja a mais<br />

elabora<strong>da</strong> <strong>da</strong>s ficções: uma nova identi<strong>da</strong>de. Quanto ao relato delirante (e onírico) de Tito<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Gorostiza, o quarto narrador, basta dizer que exerceu de maneira bastante convincente o papel<br />

de ficcionista, ao convencer os militares do passado negro de alguns prisioneiros.<br />

Desse modo, o estatuto <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de é sempre posto à prova. Os relatos não são<br />

confiáveis, porque estão todos, de alguma maneira, ligados à mentira, à ficção. Em primeiro<br />

lugar, porque a ver<strong>da</strong>de é sempre media<strong>da</strong> pelas testemunhas e, sem que haja uma voz<br />

onisciente que ordene os eventos de maneira unívoca, os testemunhos por vezes se<br />

contradizem ou se deslegitimam uns aos outros. Além disso, são constantes as aproximações<br />

entre a vi<strong>da</strong> dos personagens e a literatura. O personagem Alberto Manguel, por exemplo,<br />

sempre esnobe em seus galicismos e seu repertório literário, alguém para quem “na<strong>da</strong> é<br />

ver<strong>da</strong>deiro a menos que ele veja a coisa escrita num livro” (MANGUEL, 2010, p. 78), é<br />

responsável por evocar o teatro como metáfora <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, além <strong>da</strong> referir-se constantemente à<br />

tradição literária:<br />

Minha memória, ca<strong>da</strong> vez mais <strong>da</strong><strong>da</strong> a lapsos, é ao mesmo tempo precisa e<br />

imprecisa. Quer dizer, ela não consiste num tecido de lembranças níti<strong>da</strong>s,<br />

mas num acúmulo de muitas lembranças minuciosamente confusas,<br />

contamina<strong>da</strong>s, digamos, de literatura. Acho que estou me lembrando de<br />

Bevilacqua, e me vêm à mente retratos de Camus, de Boris Vian<br />

[...](MANGUEL, 2010, p. 16).<br />

Tal procedimento tende a obscurecer os limites entre ver<strong>da</strong>de e ficção, assim como a<br />

própria ficcionalização de Manguel como um personagem, à maneira do que Paul Auster<br />

fizera em “A ci<strong>da</strong>de de vidro” (1985).<br />

Deste modo, evidencia-se o hábil manuseio, por parte do escritor, de temas e<br />

procedimentos muito em voga na literatura contemporânea — o uso irônico <strong>da</strong> trama policial,<br />

a ficcionalização do autor dentro do enredo, as reflexões metaficcionais. E ain<strong>da</strong> que tais<br />

procedimentos, que repercutem a questão do esgotamento <strong>da</strong>s formas narrativas tradicionais,<br />

venham se esgotando, e se banalizando ao ponto de se tornarem quase pré-requisitos para a<br />

ficção “pós-moderna”, Manguel manipula tais procedimentos não em nome de inócuos jogos<br />

de linguagem, mas a serviço de se narrar uma história subterrânea, secreta, que confere uma<br />

outra dimensão ao romance.<br />

Trata-se <strong>da</strong> própria história <strong>da</strong> Argentina, descrita não nas minúcias de um romance<br />

histórico, mas na melancolia resigna<strong>da</strong> <strong>da</strong>queles exilados, dedicados aos jogos literários como<br />

se na<strong>da</strong> mais lhes restasse. Condição que se deixa notar na recorrência de certas imagens que,<br />

repeti<strong>da</strong>s em diferentes contextos, adquirem novas formas e sentidos. A principal delas a do<br />

93


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

autômato: os bonecos do titeriteiro que manipula os sentimentos do jovem Bevilacqua; a autodescrição<br />

de Chancho como um Pinóquio caricato; o editor imberbe cujos traços e<br />

comportamento provocam a impressão de “alguém não totalmente humano”; o apelido<br />

insólito — “boneco” — para um torturador cujo rosto não se revela; o corpo de uma avó<br />

moribun<strong>da</strong>, reduzido “ao tamanho de um fantoche”, e com feições de um palhaço.<br />

Esse desfile de autômatos sugere que importante não são os jogos e velei<strong>da</strong>des<br />

literárias, mas o fato de os personagens não conseguirem fugir do sombrio baile de máscaras<br />

em que atuam:<br />

Nenhum rosto era ver<strong>da</strong>deiro, todos dissimulavam algo, ca<strong>da</strong> qual mentia<br />

quase por hábito, era uma mascarazinha que refletia a máscara <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

inteira, uma ci<strong>da</strong>de que pretendia não ser o que era, não sentir essa espécie<br />

de mal-estar sempre presente, esse desgosto que ameaçava ca<strong>da</strong> canto<br />

(MANGUEL, 2010, p. 40)<br />

A máscara e o boneco funcionam como metáforas <strong>da</strong> condição do expatriado. Um<br />

processo de desumanização atravessado por quem viveu a ditadura e foi silenciado por ela. O<br />

expatriado, sem voz, sem acesso ao “arquivo do silêncio” <strong>da</strong> ditadura (MANGUEL, 2010, p.<br />

73), é um ser alheado de sua própria identi<strong>da</strong>de. Até mesmo o torturador, agente do horror, é<br />

um boneco, mero títere manipulado pelo Estado.<br />

E é preciso, sobretudo, narrar a experiência do horror, urgência que perpassa os<br />

personagens de Todos os homens são mentirosos:<br />

Conheço os capítulos que sucederam sua morte (ia dizer “desaparecimento”,<br />

mas essa palavra, meu caro Terradillos, está proibi<strong>da</strong> para nós). Ele não,<br />

claro. Quero dizer que sua história, essa que ele teceu e desteceu tantas<br />

vezes, agora é minha. Eu decidirei seu destino, eu <strong>da</strong>rei sentido a seu<br />

itinerário. Essa é a missão do sobrevivente: contar, recriar, inventar, por que<br />

não, a história alheia (MANGUEL, 2010, p. 17)<br />

De modo que a condição política e moral do expatriado possui sua correspondência<br />

metaliterária: a necessi<strong>da</strong>de de se narrar a história de Bevilacqua, que é uma forma de narrar a<br />

história de to<strong>da</strong> a Argentina sob o jugo dos militares.<br />

A ver<strong>da</strong>de, porém, não se deixa alcançar, não se deixa narrar. Ao final, o jornalista<br />

termina por desaparecer: ele fracassa como autor e como detetive, porque não está apto a<br />

reconstruir a ver<strong>da</strong>deira história de Bevilacqua (e a história oculta <strong>da</strong> Argentina). Tudo o que<br />

lhe resta são relatos ca<strong>da</strong> vez mais fragmentados, subjetivos e, inevitavelmente, ficcionais.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Decidi não escrever o retrato de Bevilacqua. Amante, herói, amigo, vítima,<br />

traidor, autor apócrifo, suici<strong>da</strong> acidental e tantas outras ciosas mais: são<br />

muitas para um único homem. Conheço muito bem minhas limitações. E<br />

simultaneamente, no próprio fato de me conformar a não escrever, sinto que<br />

meu personagem adquire vi<strong>da</strong>, sinto que é Bevilacqua quem se afirma. Com<br />

meu gesto de renúncia, é Alejandro Bevilacqua quem adquire corpo, voz,<br />

presença. Sou eu, seu leitor, seu esperançoso cronista, eu, Jean-Luc<br />

Terradillos, quem desaparece (MANGUEL, 2010, p. 176-7)<br />

Desaparece o narrador, para restar apenas a voz dos personagens. Conceder-lhes voz<br />

é, de certa forma, <strong>da</strong>r-lhes vi<strong>da</strong>, libertá-los <strong>da</strong> condição de títeres: “Algo nessas comuni<strong>da</strong>des<br />

exila<strong>da</strong>s arrebenta os fios, desamarra o centro, e ca<strong>da</strong> um segue seu próprio caminho, ca<strong>da</strong> um<br />

por si” (MANGUEL, 2010, p. 72). Deste modo, o modelo policial atua, em Alberto Manguel,<br />

como um mecanismo para uma investigação mais profun<strong>da</strong>, mas não está a altura <strong>da</strong> tarefa; é<br />

preciso encontrar novas formas. Mas se Terradillos fracassa como investigador, Manguel, o<br />

personagem, decide abandonar a companhia desse grupo de intelectuais sonâmbulos, a<br />

caminho de Paris. Vai viver de histórias, ser escritor. E não deixará de narrar, ou de tentá-lo, o<br />

que é sempre uma forma de resistência.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

AUSTER, Paul. A trilogia de Nova York. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia<br />

<strong>da</strong>s Letras, 2004.<br />

HUTCHEON, Lin<strong>da</strong>. Narcissistic narrative – the metaficcional paradox. London: Routledge,<br />

1991.<br />

MANGUEL, Alberto. Todos los hombres son mentirosos. Buenos Aires: RBA Libros, 2008.<br />

MANGUEL, Alberto. Todos os homens são mentirosos. Trad. Josely Vianna Baptista. São<br />

Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2010.<br />

PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. Trad. Josely Vianna Baptista. Folha de S. Paulo, 30<br />

dez. 2001.<br />

PIGLIA, Ricardo. O último leitor. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras,<br />

2006.<br />

PIRES, José Cardoso. O Delfim. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.<br />

SÁBATO, Ernesto. O túnel. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: MEDIAfashion, 2012.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

SORAPURE, Madeleine. The detective and the author: City of glass. In: BARONE, Dennis<br />

(ed). Beyond the red notebook. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1995.<br />

TODOROV, Tzvetan. Introdução ao verossímil. In: Poética <strong>da</strong> prosa. Trad. Cláudia Berliner.<br />

São Paulo: Martins Fontes, 2003.<br />

VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e companhia. Trad. Maria Carolia de Araújo e Josely<br />

Vianna Batista. São Paulo: Cosac Naify, 2004.<br />

VILA-MATAS, Enrique. O mal de Montano. Trad. de Celso Mauro Paciornik. São Paulo:<br />

Cosac Naify, 2005.<br />

WAUGH, Patrícia. Metafiction: the theory and practice of self-conscious fiction. London:<br />

Routledge, 2003.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A narrativa fantástica e o romance policial: convergências<br />

DOMINGOS, Norma (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Várias obras de Villiers de l’Isle-A<strong>da</strong>m (1838-1889) carregam traços<br />

significativos <strong>da</strong> influência do contista americano Edgar Allan Poe (1809-1849), assim, a<br />

partir <strong>da</strong> análise do contos “O segredo do patíbulo” (“Le secret de l’échafaud”), do autor<br />

francês, e de “O caso do Sr. Valdemar” (“The Facts in the Case of M. Valdemar”), de Poe,<br />

este estudo quer ressaltar as intertextuali<strong>da</strong>des poeanas presentes no texto villieriano e refletir<br />

sobre a natureza do mistério nas narrativas fantásticas e nos romances policiais. Tanto a<br />

narrativa policial quanto a fantástica fun<strong>da</strong>mentam-se no princípio do enigma, entretanto,<br />

quando a narrativa policial apropria-se do sobrenatural, a ambigui<strong>da</strong>de será dissolvi<strong>da</strong>; por<br />

outro lado, como ilustram os contos analisados, a narrativa fantástica mantém o leitor na<br />

incerteza. Em “O segredo do patíbulo” e “O caso do Sr. Valdemar”, Villiers e Poe<br />

transcendem os limites <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de por meio <strong>da</strong>s teorias ocultistas e <strong>da</strong>s experiências do<br />

mesmerismo e colocam o leitor nos mistérios <strong>da</strong> existência. Ain<strong>da</strong>, é importante lembrar que<br />

“[o] temor diante do desconhecido, [o] assombro produzido pela resolução do enigma, eis os<br />

traços do romance policial. Todo arranjo <strong>da</strong>s coisas que produz uma situação perturbadora já é<br />

o anúncio – tão afastado quanto se queira – do romance policial” (BOILEAU-NARCEJAC,<br />

1991, p.10).<br />

PALAVRAS-CHAVE: Narrativa fantástica; romance policial; Villiers de l’Isle-A<strong>da</strong>m; Edgar<br />

Allan Poe; enigma.<br />

RÉSUMÉ: Plusieurs œuvres de Villiers de l'Isle-A<strong>da</strong>m (1838-1889) portent des marques<br />

significatives de l'influence de l’écrivain américain Edgar Allan Poe (1809-1849), ainsi, à<br />

partir de l'analyse des contes «Le secret de l'échafaud», de l'auteur français, et«Le cas de M.<br />

Valdemar» (“The Facts in the Case of M. Valdemar”), de Poe, cette étude veut mettre en<br />

évidence les intertextualités issues de l’œuvre de Edgar Allan Poe <strong>da</strong>ns le texte villiérien et<br />

réfléchir sur la nature du mystère <strong>da</strong>ns les récits fantastiques et <strong>da</strong>ns les romans policiers. Le<br />

récit policier aussi bien que le récit fantastique se fondent sur le principe de l’énigme,<br />

cepen<strong>da</strong>nt, quand le récit policier s'approprie du surnaturel, l'ambiguïté sera dissoudre; d'autre<br />

part, comme illustrent les contes analysés, le récit fantastique mantient le lecteur <strong>da</strong>ns<br />

l'incertitude. Dans «Le secret de l'échafaud» et <strong>da</strong>ns «Le cas de M. Valdemar», Villiers et Poe<br />

dépassent les limites de la réalité par les théories occultistes et par les expériences du<br />

mesmérisme et mettent le lecteur <strong>da</strong>ns les mystères de l'existence. En plus, il est important de<br />

se rappeler que «[la] peur face à l'inconnu, [l’] épouvante produit par la résolution de<br />

l'énigme, voici les caractéristiques du roman policier. Tout arrangement des choses qui<br />

produit une situation inquiétante est déjà l'annonce – même éloigné – du roman policier»<br />

(BOILEAU-NARCEJAC, 1991, p.10).<br />

MOTS-CLÉ: Récit fantastique; roman policier; Villiers de l'Isle-A<strong>da</strong>m; Edgar Allan Poe;<br />

énigme.<br />

Quase contemporâneas, a narrativa fantástica e a narrativa policial são gêneros<br />

fun<strong>da</strong>mentados no princípio do enigma. Ca<strong>da</strong> uma contém elementos <strong>da</strong> outra e grandes<br />

97


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

mestres do fantástico, como Poe ou Conan Doyle, são precursores do romance policial; ou<br />

mesmo Agatha Christie, que escreveu algumas novelas fantásticas, também, mescla elementos<br />

do fantástico em suas obras policiais (TRITTER, p. 22). No mais, podemos ain<strong>da</strong> pensar em<br />

Borges para quem as narrativas policiais aproximam-se do fantástico, mas são textos nos<br />

quais prevalece a ativi<strong>da</strong>de intelectual:<br />

9 Poe não queria que o gênero policial fosse um gênero realista, queria que<br />

fosse um gênero intelectual, um gênero fantástico se os senhores preferirem,<br />

mas um gênero fantástico <strong>da</strong> inteligência, não <strong>da</strong> imaginação somente; de<br />

ambas as coisas evidentemente, mas, sobretudo, <strong>da</strong> inteligência. (BORGES,<br />

1996, p.193). 10<br />

Contudo, a natureza do mistério é diferente nessas duas ficções. Na narrativa policial,<br />

o mistério é real, enquanto nos textos fantásticos o que prevalece é justamente o sentimento<br />

de mistério. Vemos no romance policial a ambigui<strong>da</strong>de ser dissolvi<strong>da</strong> no final, ele apenas<br />

serve-se do fantástico para instaurar um clima de sobrenatural. De fato, o romance policial<br />

dos primeiros tempos, constitui um gênero limítrofe do fantástico. TRITTER (2001, p. 23)<br />

nos alerta: Se o policial é o gênero do investigador, o fantástico é frequentemente o romance<br />

do criminoso. A criminali<strong>da</strong>de ali é explora<strong>da</strong> do interior”. A autora ilustra lembrando que “O<br />

Gato Preto” e “Coração denunciador” não são narrativas <strong>da</strong>s vítimas, mas do culpado.<br />

Para Vax (apud TRITTER, 2001, p. 23), “entramos no romance policial para ter uma<br />

explicação e no conto fantástico para não tê-la”. O que também confirmamos com a teoria de<br />

Todorov (1975) segundo a qual o fantástico é justamente o momento <strong>da</strong> incerteza, <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>.<br />

Da mesma maneira, ao refletir sobre a natureza de ca<strong>da</strong> gênero, poderíamos nos deter no grau<br />

de “fantastici<strong>da</strong>de” de ca<strong>da</strong> um: algumas narrativas seriam mais fantásticas que outras.<br />

Tanto a narrativa policial quanto a fantástica fun<strong>da</strong>mentam-se no princípio do<br />

enigma, entretanto, quando a narrativa policial apropria-se do sobrenatural, a ambigui<strong>da</strong>de<br />

será dissolvi<strong>da</strong>; por outro lado, como ilustram os contos analisados, a narrativa fantástica<br />

mantém o leitor na incerteza. Em “O segredo do patíbulo” e “O caso do Sr. Valdemar”,<br />

Villiers e Poe transcendem os limites <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de por meio <strong>da</strong>s teorias ocultistas e <strong>da</strong>s<br />

experiências do mesmerismo e colocam o leitor nos mistérios <strong>da</strong> existência. Ain<strong>da</strong>, é<br />

importante lembrar que “[o] temor diante do desconhecido, [o] assombro produzido pela<br />

9 To<strong>da</strong>s as traduções neste artigo são minhas, salvo indicado o contrário.<br />

10 “Poe no quería que el género policial fuera un género realista, quería que fuera un género intelectual, un<br />

género fantástico si ustedes quieren, pero un género fantástico de la inteligencia, no de la imaginación<br />

solamente; de ambas cosas desde luego, pero sobre todo de la inteligencia.” (BORGES, 1996, p.193).<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

resolução do enigma, eis os traços do romance policial. Todo arranjo <strong>da</strong>s coisas que produz<br />

uma situação perturbadora já é o anúncio – tão afastado quanto se queira – do romance<br />

policial” (Boileau-Narcejac, 1991, p.10).<br />

Para o trabalho aqui apresentado, utilizamos as obras traduzi<strong>da</strong>s em língua<br />

portuguesa: para o conto de Edgar Allan Poe (1981), o texto publicado em Contos de terror,<br />

de mistério e de morte, com tradução de Oscar Mendes e Milton Amado, e, para o conto de<br />

Villiers de l’Isle-A<strong>da</strong>m (1985), a tradução de José Paulo Paes, publica<strong>da</strong> em Os buracos <strong>da</strong><br />

máscara: antologia de contos fantásticos.<br />

Várias obras de Villiers de l’Isle-A<strong>da</strong>m (1838-1889) carregam traços significativos<br />

<strong>da</strong> influência do contista americano Edgar Allan Poe (1809-1849), assim, a partir <strong>da</strong> análise<br />

do contos “O segredo do patíbulo” («Le secret de l’échafaud»), do autor francês, e de “O caso<br />

do Sr. Valdemar (“The Facts in the Case of M. Valdemar”), de Poe, este estudo quer ressaltar<br />

as intertextuali<strong>da</strong>des poeanas presentes no texto villieriano e refletir sobre a natureza do<br />

mistério nas narrativas fantásticas e nos romances policiais.<br />

É a partir <strong>da</strong> obra de Edgar Poe que Villiers se coloca delibera<strong>da</strong>mente a imitar Poe.<br />

É o momento em que o escritor se encontra maduro e no qual tomará o caminho que deverá<br />

seguir, ou seja, Poe o conduz ao exercício do conto e é dele que o autor extrai a ideia de<br />

empregar o medo como um dos principais efeitos para o gênero. Villiers abandona a tradição<br />

romântica do gênero e constrói seus contos associando insolitamente o bizarro e o<br />

extraordinário, o humor e o medo.<br />

Tocado pela originali<strong>da</strong>de e estranheza de Poe, Villiers o seguirá buscando o novo e<br />

o singular. Raitt (1986) ressalta que até então Villliers empregara temas românticos como a<br />

melancolia, a tristeza, a admiração, a agitação e a cólera, ao passo que em Claire Lenoir, o<br />

efeito procurado é outro, é o do terror. Preocupa-se agora com a evocação do medo, o qual<br />

utiliza com o intuito de abalar os leitores e convencê-los <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de que narra. Na obra de<br />

Villiers o tema do medo é trabalhado de forma extraordinária, pois em seu desenvolvimento<br />

emprega o aparato científico, grandes considerações filosóficas, movimentos como o<br />

Espiritismo e o Magnetismo, entre outros; meios que conduzem o medo a fins metafísicos,<br />

filosóficos e literários: ele nunca é usado de forma gratuita.<br />

Cortazar (1993) lembra-nos que o conto afirmou-se como gênero literário autônomo<br />

no período entre 1829 e 1832, e que seus maiores representantes na França são Mérimée e<br />

Balzac e, nos Estados Unidos, Hawthorne e Poe. Ressalta também que é Edgar Allan Poe<br />

quem impulsiona a forma que ganharia então força futura em todo o mundo. Em sua invenção<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

e criativi<strong>da</strong>de, Poe “compreendeu que a eficácia de um conto depende <strong>da</strong> sua intensi<strong>da</strong>de<br />

como acontecimento puro” (CORTAZAR,1993, p. 122, grifo do autor).<br />

O conto é uma forma literária na qual os comentários devem ser suprimidos e as<br />

palavras são escolhi<strong>da</strong>s para convergir em direção ao acontecimento que deve ser forte,<br />

porque trata de uma questão humana essencial e profun<strong>da</strong>. Em sua estrutura funcional, o<br />

conto possuiu um critério de economia que contribuirá para que o fato a ocorrer seja intenso.<br />

Não há rodeios ou digressões, as palavras desde o início preparam para o impacto do<br />

acontecimento. Entre outros grandes mestres do gênero, Cortazar (1993, p. 124) destaca<br />

também Villiers de l’Isle-A<strong>da</strong>m, incluindo-o entre aqueles que têm uma capaci<strong>da</strong>de de<br />

elaboração “magnética dos grandes contos”.<br />

“O segredo do patíbulo” foi publicado pela primeira vez em Le Figaro, em 23 de<br />

outubro de 1883 e obteve um sucesso imenso. Houve mais duas publicações posteriores em<br />

1884 e em 1885 que não apresentam grande variação. Em 1886, ele foi reunido na coletânea<br />

L’Amour suprême composta por mais doze textos. As narrativas que compõem essa obra são<br />

inspira<strong>da</strong>s em acontecimentos <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de do autor que instigavam a opinião pública. São<br />

contos que<br />

[...] atestam ain<strong>da</strong> quali<strong>da</strong>des de estilo ou de humor irônico e que mostram,<br />

cá e lá, aquela feroci<strong>da</strong>de que é um dos aspectos permanentes <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de<br />

de Villiers. O escritor, mais uma vez, exprimiu-se inteiramente: Villiers<br />

coloca-se como um comentarista desiludido e zombador <strong>da</strong>s loucuras de seu<br />

século, um poeta apaixonado pelas visões magníficas, um pensador<br />

obcecado pelos problemas <strong>da</strong> morte e <strong>da</strong> salvação. (RAITT ET AL.,1986, p.<br />

1025) 11 .<br />

Em Contes cruels, Villiers já manifestava uma curiosi<strong>da</strong>de pelo ca<strong>da</strong>falso no conto<br />

“Le Convive des dernières fêtes” (“O Conviva <strong>da</strong>s últimas festas”). Em 1883, falava-se muito<br />

sobre a pena de morte e três novos man<strong>da</strong>tos de execução tinham sido autorizados.<br />

Aproveitando <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de dos fatos, Villiers apressou-se a redigir o conto. A história<br />

fun<strong>da</strong>menta-se em um fundo de ver<strong>da</strong>de. Vários detalhes fornecidos pelo autor fazem parte<br />

dos processos históricos dessas execuções, com exceção é claro <strong>da</strong> piscadela póstuma do<br />

condenado.<br />

11 «[...] attestent encore des qualités de style ou d’humour ironique et montrent, par endroits, cette férocité <strong>da</strong>ns<br />

la satire qui est l’un des aspects permanents de la cruauté de Villiers. L’écrivain s’y est de nouveau exprimé<br />

tout entier: Villiers demeure un commentateur désabusé et railleur des folies de son siècle, un poète épris des<br />

visions magnifiques , un penseur obsédé par les problèmes de la mort et du salut. (RAITT ET AL., 1986, p.<br />

1025).<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A grande questão que se coloca no conto, e mesmo naquela época, é o enigma <strong>da</strong><br />

perduração possível <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de cerebral após a seção <strong>da</strong> cabeça. “O segredo do patíbulo”<br />

tem como argumento essa questão suscita<strong>da</strong> pela condenação à pena de morte pela guilhotina<br />

e que se desenrola no diálogo entre as duas personagens cuja existência histórica é<br />

confirma<strong>da</strong>: La Pommerais, médico condenado e Velpeau, um ilustre cirurgião <strong>da</strong> época. As<br />

conversar cheias de enunciados científicos ligados ao momento <strong>da</strong> morte conduzem à<br />

proposta de tornar La Pommerais o sujeito de uma experiência que tem o objetivo de verificar<br />

a existência, pós-decapitação, de sobrevi<strong>da</strong> <strong>da</strong> vontade na cabeça.<br />

A última parte do conto narra o episódio <strong>da</strong> execução, a rapidez do fato é marca<strong>da</strong><br />

por uma aceleração repentina <strong>da</strong> narrativa e contrasta com a impressão de suspensão temporal<br />

que caracteriza o início <strong>da</strong> cena:<br />

Os cinco personagens destacavam-se em silhueta dobre o ca<strong>da</strong>falso. O<br />

silêncio, naquele instante, se fez tão profundo que o ruído de um galho<br />

quebrado ao longe, sob o peso de um curioso, chegou com o grito e alguns<br />

risos vagos e odiosos, até o grupo trágico. Então quando soou a hora cuja<br />

última bati<strong>da</strong> ele não ouviria, o Sr. de la Pommerais percebeu à sua frente,<br />

do outro lado, seu estranho experimentador, o qual com uma mão sobre a<br />

plataforma o olhava com atenção!... Ele se recolheu por um segundo e<br />

fechou os olhos.<br />

Bruscamente, o contrapeso moveu-se, a golilha baixou, o botão cedeu, o<br />

brilho do cutelo passou. Um choque terrível sacudiu a plataforma; os cavalos<br />

se empinaram ao odor magnético do sangue e o eco do ruído ain<strong>da</strong> vibrava<br />

quando já a cabeça sangrenta <strong>da</strong> vítima palpitava entre as mãos impassíveis<br />

do cirurgião <strong>da</strong> Pie<strong>da</strong>de, manchando-lhe de vermelho, às golfa<strong>da</strong>s, os dedos,<br />

as mangas e as vestes. (VILLIERS DE L”ISLE-ADAM, 1985, p. 120).<br />

À veloci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> decapitação corresponde a precipitação de Velpeau que se lança<br />

para questionar a cabeça corta<strong>da</strong>, em vão:<br />

Velpeau se debruçou rapi<strong>da</strong>mente sobre a cabeça e articulou, na orelha<br />

direita, a pergunta combina<strong>da</strong>. Por endurecido que fosse aquele homem, o<br />

resultado o fez estremecer, numa espécie de gélido terror: a pálpebra do<br />

olho direito se abaixava, o olho esquerdo, dilatado, o olhava.<br />

- Em nome de Deus e de nosso ser, mais duas vezes esse sinal! – exclamou,<br />

algo desvairado. (VILLIERS DE L”ISLE-ADAM, 1985, p. 120-121, grifo<br />

do autor).<br />

“O segredo do patíbulo” apresenta o relato de uma experiência póstuma semelhante a<br />

que Poe ilustra em O Caso do Sr Valdemar: um sábio conta o que aconteceu na ocasião de<br />

uma perturbadora experiência de mesmerismo. Com a intenção de fazer um experimento com<br />

101


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

um humano no momento <strong>da</strong> morte, ele entra em contato com um amigo que está doente,<br />

prestes a morrer. Ele queria saber se em tal estado o paciente podia receber o influxo<br />

magnético. O Sr Ernesto Valdemar tinha um temperamento nervoso e isso o tornara um bom<br />

instrumento para suas experiências mesméricas. Ele é mesmerizado e permanece vivo<br />

enquanto dura o transe.<br />

Percebemos que o recurso empregado por Villiers na construção do conto é<br />

semelhante ao de Poe, a narrativa estende-se, caminha lentamente: mais <strong>da</strong> metade do conto<br />

se concentra sobre a possível perduração <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no processo de hipnose:<br />

Quando terminei isso era já meia-noite em ponto e pedi aos cavalheiros<br />

presentes que examinassem o estado do Sr. Valdemar. Depois de alguns<br />

exames, admitiram eles que se achava num estado perfeitamente<br />

extraordinário de sono mesmérico.<br />

[...]<br />

Desde aquele dia até o final <strong>da</strong> última semana – intervalo de quase sete<br />

meses continuamos a fazer visitas diárias à casa do Sr. Valdemar,<br />

acompanhados de vez em quando por médicos e outros amigos. Durante este<br />

tempo, o magnetizado permanecia exatamente como já deixei descrito. Os<br />

cui<strong>da</strong>dos dos enfermeiros eram contínuos. (POE, 1981, p. 143).<br />

Passado mais tempo, decidem despertá-lo e, como no conto de Villiers, a narrativa<br />

acelera-se e em quatro parágrafos está concluí<strong>da</strong>:<br />

– Pelo amor de Deus!... Depressa!... faça-me dormir... ou então depressa.<br />

Acorde-me... depressa! Afirmo que estou morto!<br />

Eu estava completamente enervado e por um instante fiquei indeciso sobre o<br />

que fazer. A princípio fiz uma tentativa de acalmar o paciente; mas<br />

fracassando, pela total suspensão <strong>da</strong> vontade, fiz o contrário e lutei<br />

energicamente para despertá-lo.<br />

Nessa tentativa vi logo que teria êxito, ou, pelo menos, logo imaginei que<br />

meu êxito seria completo. E estou certo de que todos no quarto se achavam<br />

preparados para ver o paciente despertar. Para o que realmente ocorreu,<br />

porém, é completamente impossível que qualquer ser humano pudesse estar<br />

preparado.<br />

Enquanto eu fazia rapi<strong>da</strong>mente os passes magnéticos, entre ejaculações de<br />

“Morto!”, “Morto!”, irrompendo inteiramente <strong>da</strong> língua e não dos lábios do<br />

paciente, todo seu corpo, de pronto, no espaço de um único minuto ou<br />

mesmo menos, contraiu-se... desintegrou-se, absolutamente podre, sob<br />

minhas mãos. Sobre a cama, diante de to<strong>da</strong> aquela gente, jazia uma quase<br />

líqui<strong>da</strong> massa de nojenta e detestável putrescência. (POE, 1981, p. 146)<br />

Se pensarmos em uma <strong>da</strong>s explicações do fantástico nesses dois contos e, em<br />

particular, nos contos fantásticos de Villiers, a explicação seria alegoria, a obra se coloca a<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

serviço de uma moral defendi<strong>da</strong> pelo autor: O discurso onírico e metafórico, característico <strong>da</strong>s<br />

narrativas fantásticas, constitui um instrumento estilístico do qual Villiers faz uso a fim de<br />

exprimir suas críticas à socie<strong>da</strong>de, expressar seus ideais de esperança. e sugerir o projeto<br />

sagrado do poeta: a evasão para um mundo ideal.<br />

Raitt (1986) lembra que Guy Michaud caracterizou o ocultismo como “a chave e o<br />

nervo motor” do Simbolismo. De fato, além de fornecer a base do movimento, ele satisfaz o<br />

gosto pelo mistério e pelo misticismo que se opõem ao racionalismo e o materialismo dos<br />

Naturalistas. É, então, esse aspecto de mistério nas obras de Poe que mais seduz Villiers: para<br />

ele, Edgar Poe será o criador de contos de terror.<br />

Raitt (1986, p. 187, tradução nossa) também nos afirma que:<br />

É certo que Villiers participou de sessões de espiritismo e talvez, também, de<br />

experiências de hipnose. Suas leituras em matéria ocultista, sem serem<br />

vastas, lhe permitiram na ocasião, <strong>da</strong>r ares de especialista e até mesmo de se<br />

impor àqueles que tinham mais conhecimentos que ele próprio. 12<br />

De qualquer maneira, sua imaginação supria qualquer falta de conhecimentos reais.<br />

Durante vários anos, o ocultismo desaparece de seus escritos e ele se interessa mais ao<br />

problema <strong>da</strong> persistência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em uma cabeça corta<strong>da</strong> depois de uma execução, como<br />

vimos em “O Segredo do patíbulo”. O desejo de ultrapassar as portas <strong>da</strong> morte parece se calar<br />

na pretensa objetivi<strong>da</strong>de científica. Mas sempre, para ele, o principal é de se colocar diante do<br />

mundo do além morte. Lembremos aqui que Villiers é denominado o “Exorcista do real,<br />

porteiro do ideal”.<br />

Podemos observar em uma série de contos que há essa obsessão pela guilhotina e<br />

certo mal-estar com relação às experiências com as cabeças corta<strong>da</strong>s. Em “O segredo do<br />

patíbulo”, por exemplo, o resultado <strong>da</strong> experiência não se conclui, fracassando assim a<br />

tentativa de violar o mistério <strong>da</strong> morte. Talvez esse fracasso queira deixar entrever que de<br />

na<strong>da</strong> vale invadir os domínios <strong>da</strong> morte.<br />

Em uma série de contos ele parece querer colocar o problema <strong>da</strong> sobrevivência <strong>da</strong><br />

alma em um apoio científico e mesmo que não se mostre contra as conclusões dos cientistas,<br />

12 «Il est certain que Villiers avait participé à des séances de spiritisme et peut-être aussi à des expériences<br />

d’hypnotisme. Ses lectures en matière d’occultisme, sans être très vastes, lui permettaient à l’occasion de se<br />

donner des airs d’expert et même d’imposer à ceux qui s’y connaissaient beaucoup mieux que lui.» (RAITT,<br />

1986, p. 187).<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

ele se mostra sempre revoltado com o caráter de sacrilégio <strong>da</strong>s experiências por eles<br />

realiza<strong>da</strong>s e dessa forma iniciará, no final <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, um afastamento progressivo do ocultismo.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

ARAÚJO, Ricardo. Edgar Allan Poe: um homem em sua sombra. Cotia: Ateliê Editorial,<br />

2002.<br />

BOILEAU-NARCEJAC. O romance policial. Trad. Valter Kehdi. São Paulo: Ática, 1991.<br />

(Fun<strong>da</strong>mentos, nº 86).<br />

BORGES, Jorge Luis. El cuento policial. In: ______ Obras completas. Barcelona: Emecé,<br />

1996. Vol. <strong>IV</strong>.<br />

CORTAZAR, Júlio. Valise de Cronópio. Tradução Davi Arrigucci Júnior. São Paulo:<br />

Perspectiva, 1993.<br />

POE, Edgar Allan. O caso do Sr. Valdemar. In.: ______. Contos de terror, de mistério e de<br />

morte. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. São Paulo: Nova Fronteira, 1981. p. 141-146.<br />

RAITT, Alan W. Villiers de l’Isle-A<strong>da</strong>m et le mouvement Symboliste. Paris: Librairie J. Corti,<br />

1986.<br />

RAITT, Alan W. et al. (Ed.) Préface, notes, variantes. In: VILLIERS DE L’ISLE-ADAM,<br />

Auguste, comte de. Œuvres Complètes. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Éditions Gallimard,<br />

1986.<br />

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução Maria Clara C. Castello.<br />

São Paulo: Perspectiva, 1975.<br />

TRITTER, Valérie. Le fantastique. Paris: Ellipses Édition, 2001. (Thèmes et études).<br />

VILLIERS DE L’ISLE-ADAM, Auguste, comte de. O segredo do patíbulo. In.: PAES, José<br />

Paulo (Seleção, tradução e introdução). Os buracos <strong>da</strong> máscara: Antologia de contos<br />

fantásticos. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 110-121.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O fascínio do jovem leitor por histórias de detetives: uma análise do romance folhetinesco O<br />

mistério do quarto amarelo, de Gaston Leroux<br />

FERREIRA, Eliane Apareci<strong>da</strong> Galvão Ribeiro (FEMA/<strong>UNESP</strong>/ <strong>Assis</strong>)<br />

VALENTE, Thiago Alves (UENP/ Cornélio Procópio)<br />

RESUMO: O romance policial O mistério do quarto amarelo, do célebre escritor francês<br />

Gaston Louis Alfred Leroux (1868-1927), apresenta Joseph Rouletabille, repórter do L’<br />

Époque, envolvido com o mistério de uma tentativa de assassinato a uma jovem tranca<strong>da</strong> em<br />

um quarto aparentemente inviolável. Publicado no suplemento literário de L’ Illustration, de<br />

setembro de 1907 a novembro de 1907 e, parcialmente, na revista Vi<strong>da</strong> Policial, este livro foi<br />

considerado uma referência dos escritos policiais franceses <strong>da</strong> primeira metade do século XX.<br />

Justifica-se, então, que se objetive neste texto apresentar, por meio de uma análise <strong>da</strong> obra de<br />

Leroux, uma reflexão acerca do que a torna atraente para o jovem leitor do século XXI. Além<br />

disso, quais elementos dispostos em sua narrativa levaram-no a ser apropriado por esse<br />

público. Para a consecução do objetivo, pretende-se, partindo dos pressupostos <strong>da</strong> estética <strong>da</strong><br />

recepção, analisar as disposições do narrador sobre o leitor implícito, bem como sobre o<br />

discurso <strong>da</strong>s personagens. Visando detectar os elementos atraentes na narrativa, buscar-se-á<br />

observar como o enredo, bem como as estratégias de relato do autor, permeado de lacunas,<br />

instauram o suspense e o mistério, prendendo o leitor até o final <strong>da</strong> trama e o convocando, por<br />

meio <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de, a antecipar o desfecho <strong>da</strong>s investigações.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Romance policial; leitura; mistério e fascínio; jovem leitor.<br />

ABSTRACT: The detective story The mystery of the yellow room, the famous French writer<br />

Gaston Louis Alfred Leroux (1868-1927), presents Joseph Rouletabille, a reporter for L’<br />

Époque, involved with the mystery of an assassination attempt on a young woman locked in a<br />

room apparently inviolable. Published in the literary supplement of L’ Illustration, September<br />

1907 to November 1907 and, partly, in the magazine Police Life, this book was written as a<br />

reference to the written French police in the first half of the twentieth century. That justifies<br />

the aim of the present text, through an analysis of the work of Leroux, a reflection on what<br />

makes it attractive to the young reader of the century. Also, what elements arranged in his<br />

narrative led him to be appropriate for this audience. To achieve the goal, we intend, based on<br />

the assumptions of the aesthetics of reception, to review the provisions of the narrator on the<br />

implied reader as well as on the speech of the characters. In order to detect the attractive<br />

elements in the narrative, we will see how the plot as well as the strategies of the report<br />

author, riddled with gaps, set up the suspense and mystery, holding the reader until the end of<br />

the plot and calling through productivity, to anticipate the outcome of investigations.<br />

KEYWORDS: Detective novel; reading; mystery and fascination; young reader.<br />

INTRODUÇÃO<br />

O livro O mistério do quarto amarelo, de Gaston Leroux, foi publicado em Paris,<br />

local de origem do escritor, sob a forma de folhetim no suplemento literário de L’ Illustration<br />

105


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

de setembro a novembro de 1907. Essa publicação foi uma <strong>da</strong>s responsáveis pela projeção do<br />

suplemento literário.<br />

Leroux, embora tenha cursado Direito, optou pela profissão de jornalista. Sua<br />

carreira teve início no L´Echo de Paris como crítico literário e repórter especializado na<br />

cobertura de julgamentos. O sucesso obtido, graças aos conhecimentos dos meandros dos<br />

tribunais, levou-o a ser contratado pelo jornal Le Matin (FERRAZ, 1999, p.274). Para obter<br />

uma de suas reportagens mais famosas, entrou em uma prisão de Paris disfarçado de médico,<br />

a fim de entrevistar um condenado. A partir dos <strong>da</strong>dos levantados, conseguiu provar que ele<br />

era inocente. Em sua atuação como repórter itinerante, viajou pelo mundo cobrindo os<br />

maiores fatos de sua época que, por sua vez, projetaram-no como uma celebri<strong>da</strong>de e<br />

aumentaram as ven<strong>da</strong>s de jornal.<br />

Seu primeiro livro, A busca dos tesouros <strong>da</strong> manhã, foi publicado com os capítulos<br />

em série no Le Matin em 1903. Em 1907, optou por dedicar-se somente à literatura,<br />

publicando O mistério do quarto amarelo. No mesmo ano, publicou ain<strong>da</strong> O rei do mistério e<br />

A poltrona assombra<strong>da</strong>. Entre outubro de 1908 e julho de 1911, produziu cinco romances e<br />

várias peças de teatro. Muitos de seus livros foram a<strong>da</strong>ptados para o cinema e/ou para o<br />

teatro, entre estes, o mais conhecido é O fantasma <strong>da</strong> ópera, de 1911. A última a<strong>da</strong>ptação<br />

deste livro foi realiza<strong>da</strong> pela Warner Brothers nos Estados Unidos em 2004, sob a forma de<br />

comédia musical, com título de Andrew Lloyd Webber's the phantom of the opera, sob direção<br />

de Joel Schumacher (ADORO CINEMA, 2012). Sua produção estendeu-se até 1927. Leroux<br />

deixou, ain<strong>da</strong>, um romance póstumo, intitulado A mansar<strong>da</strong> de ouro.<br />

AS VIRTUDES DO TEXTO DE LEROUX<br />

Entre as virtudes do texto de Gaston Leroux, está a do encaixe de enigmas na<br />

narrativa, o que o torna, pelas intrigas e novos rumos na trama, atraente para o leitor e<br />

adequado à a<strong>da</strong>ptação cinematográfica. Assim, sua narrativa estrutura-se sob a forma de<br />

bonecas russas; dentro de um enigma situa-se outro e, assim, sucessivamente. Esses encaixes<br />

narrativos, por sua vez, advêm <strong>da</strong>s dissimulações <strong>da</strong>s personagens, de seus temores,<br />

superstições e mentiras.<br />

O sucesso de seus textos, quando transpostos para o cinema, provém <strong>da</strong> própria<br />

serialização, pois um romance continua em outro, além <strong>da</strong> estrutura de enigmas encaixados.<br />

Assim, seus livros abrem a possibili<strong>da</strong>de de migração para outras formas culturais, como<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

filmes, peças, musicais, entre outras. Esse fenômeno deve-se aos padrões tecnológicos de<br />

produção e relação com os usuários que surgiram de forma incipiente no início do século XX<br />

na Europa, mas foram se sofisticando até o presente. Para Borelli, o livro, por si só já é um<br />

suporte midiático com forma e conteúdo em estreita relação, e serve de base para varia<strong>da</strong>s<br />

estratégias de migração digital (2007, p.3). De certo modo, isto explica a atual a<strong>da</strong>ptação de O<br />

fantasma <strong>da</strong> ópera, além <strong>da</strong> permanência do interesse do leitor pela trama.<br />

Muitos livros de Leroux foram filmados ain<strong>da</strong> na época do cinema mudo. Talvez,<br />

deva-se a isto seu interesse em formar a empresa cinematográfica Cinéromans em Nice, em<br />

1919, com René Navarre, na época, ator do famoso seriado intitulado “Fantomas”. Embora a<br />

empresa tenha durado apenas três anos, Leroux, como produtor cultural, obteve visibili<strong>da</strong>de,<br />

isto pode ser comprovado pelas a<strong>da</strong>ptações de seus textos e pela expressão “quinta coluna”<br />

que cunhou em 1918, com a publicação de seu romance A coluna infernal. Mundialmente<br />

conheci<strong>da</strong>, tornou-se sinônimo de ativi<strong>da</strong>des de espionagem (FERRAZ, 1999, p.276).<br />

O mistério do quarto amarelo chegou ao Brasil sob a forma de folhetim, sendo<br />

publicado parcialmente na revista Vi<strong>da</strong> Policial, em 1925, com tradução de Carlo Blanco.<br />

Cabe destacar que, nesta época, havia elevado índice de analfabetismo no país, cerca de 75%<br />

<strong>da</strong> população, conforme Ortiz (2001, p.26). Isso leva-nos a compreender os anseios,<br />

manifestos pelos periódicos, de formação de um público leitor. A revista Vi<strong>da</strong> Policial, cria<strong>da</strong><br />

na ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro, foi edita<strong>da</strong> entre os anos de 1925 e 1927, com o subtítulo<br />

hebdomadário noticioso, crítico e doutrinário. Seu subtítulo já indica seus objetos eleitos para<br />

publicação: crônica policial, conto, folhetim, criminologia, textos do mundo jurídico, bem<br />

como a notícia jornalística. Embora essa obra de Leroux tenha sido uma referência dos<br />

escritos policiais franceses <strong>da</strong> primeira metade do século XX, somente quatro episódios<br />

apareceram na revista, os outros capítulos não foram publicados (SHIZUNO, 2011, p.121).<br />

Segundo Shizuno (2011, p. 20), nessa revista, a publicação de contos ou folhetim<br />

policiais foi recorrente desde os primeiros números. A pesquisadora analisou 82 revistas, nas<br />

quais encontrou 173 contos ou folhetins policiais, cuja autoria remete a escritores conhecidos,<br />

como: Arthur Antunes Maciel, Arthur Conan Doyle, Gaston Leroux, Edgard Allan Poe,<br />

Maurice Level e Nick Doile, entre outros. Leroux teve quatro textos detetivescos publicados<br />

pela Vi<strong>da</strong> Policial, entre eles O mistério do quarto amarelo. Atualmente, esta narrativa<br />

destina-se ao público juvenil e insere-se na coleção “Eu leio”, <strong>da</strong> editora Ática, como texto<br />

integral, traduzido por Du<strong>da</strong> Machado, com ilustrações em branco e preto de Marcelo Lelis.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

TRANCADOS NO QUARTO<br />

A narrativa de Leroux apresenta ao leitor o mistério de uma tentativa de homicídio,<br />

<strong>da</strong> qual a Senhorita Mathilde Stangerson, de 35 anos, noiva do professor Darzac, fora vítima.<br />

Este atentado ocorreu em um quarto inviolável, no castelo em que Mathilde habita com seu<br />

pai, um famoso cientista pesquisador <strong>da</strong> radiografia. Esse professor possuía uma teoria<br />

chama<strong>da</strong> A dissociação <strong>da</strong> matéria que estava destina<strong>da</strong> a abalar os alicerces de to<strong>da</strong> a ciência<br />

oficial. Tanto o pai, quanto a filha afirmam que desconhecem a razão do atentado e que não<br />

houvera roubo algum na proprie<strong>da</strong>de.<br />

O quarto, intitulado amarelo, pela cor de suas paredes, situa-se em uma ala do<br />

segundo an<strong>da</strong>r do castelo. No momento em que a vítima fora agredi<strong>da</strong>, sua porta estava<br />

tranca<strong>da</strong> por dentro, bem como a única janela do quarto. Ninguém viu o criminoso entrar no<br />

quarto, nem sair após a agressão. Durante o ataque, a vítima gritou e seu pai, com a aju<strong>da</strong> do<br />

mordomo, arrombou a porta. Contudo, já era tarde, pois a mulher estava inconsciente, caí<strong>da</strong><br />

no chão com um ferimento na testa e marcas de estrangulamento no pescoço. O quarto fora<br />

vasculhado, mas não encontraram o agressor, somente um osso de carneiro, usado<br />

supostamente para agredi-la e uma marca de sangue na parede, no formato de uma mão. Pela<br />

cena, deduziu-se que, que a vítima disparara dois tiros contra seu agressor; um o atingira na<br />

mão, o outro, como pôde ser visto no local, alojara-se no teto. O vilão, inicialmente, não<br />

descoberto, diziam ser o diabo, já que o quarto estava trancado por dentro e deste não havia<br />

meio de sair se não pela porta. Entretanto, quando esta fora arromba<strong>da</strong>, o pai <strong>da</strong> vítima e o<br />

mordomo a ocuparam, impedindo qualquer pessoa de sair <strong>da</strong>li.<br />

O relato tem início em primeira pessoa, no ano de 1907, na voz do advogado Sinclair<br />

que afirma narrar após 15 anos, com certa emoção, uma <strong>da</strong>s “[...] aventuras extraordinárias de<br />

Joseph Rouletabille” (LEROUX, 1999, p.11), a qual acontecera em outubro de 1892. Trata-se<br />

de um relato ulterior, feito por um profundo admirador de um jovem repórter-detetive de<br />

apenas 18 anos. O mistério do quarto amarelo é apresentado como o de uma “[...] chara<strong>da</strong><br />

dramática sobre a qual se empenharam a velha Europa e a jovem América” (LEROUX, 1999,<br />

p.11). Para ampliar o suspense e prender a atenção do leitor <strong>da</strong> época, Leroux situa a<br />

enunciação de seu narrador no mesmo ano que publicou o livro. Deste modo, fornece àquele a<br />

ilusão de ler sobre acontecimentos pertencentes à sua reali<strong>da</strong>de imediata.<br />

A tentativa de assassinato é enuncia<strong>da</strong> de forma híbri<strong>da</strong>, por meio dos relatos<br />

sensacionalistas dos principais jornais de Paris, Temps e Le Matin, que a apresentaram como<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

intrinca<strong>da</strong>, de muito interesse público, geradora de mistérios cruéis, problemas<br />

enlouquecedores e sensacionais dramas. A intertextuali<strong>da</strong>de, bem como a metalinguagem,<br />

permeiam o discurso do narrador que pede permissão para narrar afirmando que apenas<br />

transcreve os fatos, pois o caso, graças à documentação excepcional, recebeu esclarecimentos<br />

recentes. Mesmo assim, ele não conhece na<strong>da</strong> que, no domínio <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de ou <strong>da</strong> imaginação,<br />

possa conter algo de comparável ao mistério do quarto amarelo, nem nos textos de “[...] Os<br />

crimes <strong>da</strong> rua Morgue, [ou] mesmo nas invenções dos sub-Edgard Poe e dos Conan Doyle<br />

truculentos [...]” (LEROUX , 1999, p.12).<br />

Sinclair conhecera Rouletabille quando este, com apenas 17 anos, realizara um<br />

grande feito investigativo, sendo contratado pelo jornal L’ Époque que assumiu a sua<br />

descoberta, pois, segundo o re<strong>da</strong>tor-chefe, dirigindo-se ao jovem, “[...] o indivíduo não é<br />

na<strong>da</strong>; o jornal é tudo!” (LEROUX, 1999, p.22).<br />

Justifica-se o enaltecimento do jornal, pois o texto de Leroux fora publicado,<br />

inicialmente, sob a forma de folhetim. De acordo com Marlyse Meyer, remetendo-se ao<br />

gênero na França, o romance folhetinesco, a partir <strong>da</strong> Terceira República, passa a ser<br />

essencialmente popular, um gênero desvalorizado, concebido como de classe popular, “[...]<br />

inventando fatias de vi<strong>da</strong> servi<strong>da</strong>s em fatias de jornal” (1996, p.224). Esse suplemento, que<br />

poderia ser vendido avulso ou entremeando o jornal, adquiria espetacularização já na<br />

ilustração de capa, destina<strong>da</strong> a provocar curiosi<strong>da</strong>de. Nesses escritos, os seus autores eram,<br />

por vezes, oriundos <strong>da</strong> classe média baixa. Os leitores sentiam-se atraídos pelos mistérios<br />

transcorridos em cenários exóticos, requintados, envolvendo classes sociais eleva<strong>da</strong>s, as quais<br />

admiravam. Os folhetins traziam um tipo de produção destinado à ven<strong>da</strong> com certo valor<br />

mercadológico, agregava-se a isto também a existência <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong>. O leitor implícito<br />

desta literatura ansiava pela espetacularização do crime, usa<strong>da</strong> pelo jornal, como técnica de<br />

persuasão afetiva. Assim, a narrativa detetivesca deve ser compreendi<strong>da</strong> como literatura de<br />

entretenimento, contudo menos liga<strong>da</strong> à evasão e aos sonhos românticos, e mais ao medo, à<br />

repugnância e ao erótico, no sentido do prazer na dor (SHIZUNO, 2011, p. 24).<br />

O romance de Leroux, como folhetim, instaura inúmeros vazios em sua narrativa<br />

atendendo a fins comerciais. Seu livro introduz, por sua forma de publicação, vazios<br />

suplementares, porque aspira empregar a sugestão que desperta para fins de publici<strong>da</strong>de<br />

(ISER, 1999, p.143-4). Desse modo, difere do romance literário, com projeto estético, pois<br />

não absolutiza os vazios para que o leitor descubra as suas próprias projeções, antes para<br />

obcecá-lo e, assim, assegurar o consumo do jornal.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

ELEMENTOS ATRAENTES PARA O JOVEM LEITOR<br />

Entre os elementos que cativam o jovem leitor, merece relevo o mistério do quarto<br />

inviolável e o enigma causado pelas precauções excessivas <strong>da</strong> Senhorita Mathilde em se<br />

proteger na noite do atentado, pois subtrai em segredo uma arma do quarto do mordomo e<br />

tranca-se no próprio quarto. Diante dos fatos, Rouletabille constrói a hipótese de que a vítima<br />

temia alguma coisa ou alguém. Vale destacar que o espaço em que transcorrem os fatos,<br />

constituído por um castelo imenso, situado em local afastado <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, cercado por uma<br />

floresta, confere cenário lúgubre adequado ao suspense.<br />

Outro mistério que avulta na narrativa é a obsessão do repórter em saber se a vítima<br />

usava franja no dia do atentado, o que parece incoerente no relato. Ele mente a princípio a este<br />

respeito, dizendo que o cabelo amorteceria o golpe na cabeça. Só, ao final <strong>da</strong> narrativa, o<br />

leitor compreende o porquê <strong>da</strong> insistente pergunta, pois o jovem detetive desconfiava dos<br />

relatos <strong>da</strong> vítima, supondo inclusive que esta omitia informações e escondia provas, inclusive<br />

marcas de violência no próprio corpo.<br />

A presença de um velho mordomo supersticioso, tio Jacques, que afirma ver, na<br />

madruga<strong>da</strong>, em volta do castelo, vultos de um fantasma negro e ouvir miados agudos e<br />

sinistros de um imenso gato, denominado Bicho do Bom Deus, instaura falsas pistas<br />

sobrenaturais na trama que atribuem a esses seres a culpa pelo atentado. O fato de o gato<br />

existir e pertencer a uma mulher estranha, denomina<strong>da</strong> mãe Agenoux, toma<strong>da</strong> pelos<br />

habitantes como feiticeira, pois mora sozinha na floresta nas imediações do castelo, enfatizam<br />

esse caráter sobrenatural. Vale destacar que, na noite em questão, as testemunhas alegaram ter<br />

ouvido miados altos e sinistros.<br />

O humor que realiza a contenção do drama aparece no comportamento de algumas<br />

personagens. Entre elas, está o juiz de instrução responsável pelo caso. Este, paradoxalmente,<br />

torna-se cômico. Como é autor de peças de teatro, usa os casos para escrever seus textos,<br />

esquecendo-se do fun<strong>da</strong>mental: desven<strong>da</strong>r o mistério. Vaidoso, é vítima dos elogios de<br />

Rouletabille que o faz “falar” sobre elementos supostamente secretos envolvidos no caso. Por<br />

sua vez, o narrador, embora afirme que é fiel ao que relata, não consegue omitir suas opiniões,<br />

nem sua admiração pelo detetive Rouletabille, o que resulta em exageros no relato. Sua<br />

capaci<strong>da</strong>de restrita de dedução e seus julgamentos ingênuos conferem ao leitor sentimento de<br />

superiori<strong>da</strong>de, pois este antevê <strong>da</strong>dos que o narrador supostamente não compreende. Seu<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

relato, como é incompleto, produz desconfiança no leitor que passa a relativizá-lo. Neste<br />

sentido, esse relato amplia o horizonte de expectativas do jovem acostumado ao discurso<br />

soberano e, muitas vezes, judicativo, de narradores observadores presentes em textos<br />

classificados com o epíteto de juvenil. Esse narrador assemelha-se a Watson em sua<br />

admiração pelo amigo detetive e crença na capaci<strong>da</strong>de deste de raciocínio.<br />

Também se revela atraente para o leitor o discurso metalinguístico que a ele se dirige<br />

na forma de convite à leitura, pois o considera no relato: “Não hesitei em listar todos estes<br />

detalhes retrospectivos, que eu conhecia [...], para que o leitor, ao transpor a soleira do Quarto<br />

Amarelo, estivesse tão bem informado quanto eu” (LEROUX , 1999, p.43).<br />

O hibridismo, resultante <strong>da</strong> associação entre discurso jurídico e jornalístico, confere<br />

veloci<strong>da</strong>de à narrativa, apresentando uma linguagem próxima à de videoclipe. Além disso,<br />

justifica o pressuposto do narrador de que: “Os advogados criminais e os jornalistas não são<br />

exatamente inimigos, já que uns precisam de publici<strong>da</strong>de e os outros de informação”<br />

(LEROUX, 1999, p.22). Esse hibridismo também aparece permeado por testemunhos, plantas<br />

do castelo, anotações de Rouletabille, textos epistolares e frases retira<strong>da</strong>s <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de que<br />

ampliam o interesse do jovem leitor pelos detalhes <strong>da</strong> narrativa. Além disso, a obra apresenta<br />

ao leitor ilustrações em preto e branco <strong>da</strong>s principais cenas que atuam como esclarecedoras do<br />

que se relata.<br />

O detetive-repórter, assim como o de Conan Doyle, os de Agatha Christie, Poe, entre<br />

outros, é interessante para o leitor, pois excêntrico, bipolar, revela-se uma excelente máquina<br />

de calcular. Seu comportamento, muitas vezes, é cômico, tanto pela ingenui<strong>da</strong>de na máxima<br />

expressão <strong>da</strong> sinceri<strong>da</strong>de, quanto pelos delírios que apresenta em momentos de profun<strong>da</strong><br />

reflexão e cálculo. Sua aparência contribui para sua caracterização como personagem-tipo:<br />

muito jovem, com o rosto muito redondo e vermelho que lhe confere o apelido Rouletabille.<br />

No local do crime, há ain<strong>da</strong> nova problematização, pois atua outro detetive, vaidoso<br />

e arrogante, Frédéric Larsan, policial experiente, famoso por resolver casos complexos. No<br />

desenvolver <strong>da</strong> trama, para delícia do jovem, seu discurso de homem maduro será<br />

desautorizado pelo imberbe Rouletabille, gerando identificação com esse leitor. Larsan<br />

aparece como uma personagem que relativiza, pelo seu comportamento, os binômios “lei x<br />

crime” e “vítima x culpado”, pois prende vários inocentes acusados do atentado e/ou de serem<br />

cúmplices. Rouletabille, no entanto, afirma que não houve cúmplices desde o início e, por<br />

meio de raciocínios e comprovações, salva os inocentes.<br />

111


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

No decorrer <strong>da</strong> narrativa, prevalece a relativização do maniqueísmo, sobretudo, do<br />

conceito de “inocente x culpado”. Sobre os comportamentos <strong>da</strong>s personagens envolvi<strong>da</strong>s no<br />

atentado ou toma<strong>da</strong>s como suspeitas dele, não cabe ao detetive-repórter julgá-las, antes, ele<br />

busca entender o que as move em direção à mentira e/ou à criminali<strong>da</strong>de. As razões revelam o<br />

caráter de denúncia social dos costumes <strong>da</strong> época, algumas agem por questões financeiras;<br />

outras, afetivas; e/ou por medo do julgamento público.<br />

A instauração dos enigmas também aparece pela enunciação de Rouletabille que<br />

consegue se impor no cenário do atentado ao mencionar a seguinte frase ao noivo de<br />

Mathilde, Robert Darzac, professor <strong>da</strong> Sobornne: “– O presbitério na<strong>da</strong> perdeu de seu<br />

encanto, nem o jardim de seu brilho.” (LEROUX , 1999, p. 47). Somente, durante a narrativa,<br />

o jovem revela ao amigo advogado que encontrara essa frase parcialmente escrita em um<br />

pequeno papel queimado no laboratório e deduzira que faria sentido a Darzac. Além disso, o<br />

repórter a ouvira quando, em período anterior ao atentado, Mathilde lera uma carta para<br />

Darzac no jardim do Elysée. Neste local, acontecia uma recepção de homenagem a cientistas<br />

em que estiveram presentes, além do casal, o pai de Mathilde e Rouletabille, responsável pela<br />

cobertura para o jornal. Ao informar o advogado do que ouvira de forma sorrateira, e se<br />

utilizar disto para obter permissão para investigar o caso no castelo, o jovem repórter<br />

distancia-se do conceito de herói. Como não possui força física e costuma ter devaneios<br />

quando sente certo perfume, denominado por ele como o <strong>da</strong> “<strong>da</strong>ma de preto”, seu<br />

comportamento é cômico. Este perfume remete o repórter a uma mulher que, sempre vesti<strong>da</strong><br />

com roupas desta cor, ele amara muito porque lhe dera “[...] ternura maternal na primeira<br />

juventude” (LEROUX, 1999, p.127). Ele seguiu a mulher do perfume e, curiosamente, era<br />

Mathilde que, no entanto, estava vesti<strong>da</strong> de branco e levava Darzan pelo braço. O protagonista<br />

de Leroux, justamente porque mais humano e passível de erros, cativa o jovem leitor que,<br />

com ele, se identifica.<br />

AS ATRAENTES INVESTIGAÇÕES<br />

No quarto amarelo, Rouletabille verifica que, realmente, o assassino adentrara aquele<br />

espaço e se escondera embaixo <strong>da</strong> cama <strong>da</strong> vítima, pela marca de seu corpo na poeira. Mas<br />

afirma, de forma intertextual, que não havia como ele sair, nem mesmo “[...] no domínio <strong>da</strong><br />

imaginação. No crime <strong>da</strong> rua Morgue, Edgar Poe não inventou na<strong>da</strong> semelhante” (LEROUX,<br />

1999, p.68). Nota-se que seu relato também é metalinguístico, pois relativiza o próprio<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

conceito de ficção, insinuando que seu discurso é real, mas o de Poe pertence ao imaginário.<br />

Assim, a narrativa também assume a forma de um jogo com leitor. No quarto, o repórter<br />

encontra um fio de cabelo <strong>da</strong> vítima recoberto de sangue e preso na quina do criado-mudo.<br />

Advém desta pista sua hipótese central; a de que ela se ferira sozinha, batendo a cabeça neste<br />

móvel quando acor<strong>da</strong>ra de um pesadelo terrível. Este sonho a levara a pegar a arma e disparar<br />

por acidente um tiro que se alojara no teto. Contudo, restavam as marcas de estrangulamento<br />

no pescoço e a de sangue na parede, com o formato de uma mão.<br />

Como no local do crime, há pega<strong>da</strong>s com cinzas, embora no quarto amarelo não<br />

tenha lareira, o repórter deduz que o criminoso veio pela floresta, onde há pequena<br />

aglomeração de carvoeiros, por isso investiga as imediações do castelo. Nessas, há uma<br />

hospe<strong>da</strong>ria em que Rouletabille almoça ao mencionar a frase: “[...] eu sei que agora vai ser<br />

preciso comer cru” (LEROUX,1999, p.88), embora tenha sido, a princípio, barrado pelo seu<br />

proprietário. Ele descobre que o dono, embora reumático e velho, possui uma bela esposa que<br />

desperta a paixão do guar<strong>da</strong> responsável pelas ron<strong>da</strong>s noturnas do castelo. Este galanteador<br />

apresenta-se na trama como amante de várias mulheres. Como suas ações acontecem na<br />

cala<strong>da</strong> <strong>da</strong> noite, torna-se suspeito para Larsan. Também suspeita para ele é a atitude de<br />

Mathilde que, dois dias antes do atentado, desiste de se casar com Darzac. Este, to<strong>da</strong>via,<br />

permanece fiel ao seu amor, mas infiel em seus relatos, pois revela menos do que sabe, graças<br />

a uma promessa que fizera à ama<strong>da</strong>.<br />

No castelo, há ain<strong>da</strong> um casal que, responsável pelos cui<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, se<br />

torna suspeito. Em testemunho, marido e mulher alegaram que, na noite fatídica, estavam<br />

dormindo. Contudo, chama a atenção do detetive Larsan o fato de que vieram rápido demais<br />

para o local do atentado e completamente vestidos, por isso são os primeiros a serem presos.<br />

Rouletabille salva o casal, ao pedir para o Dr. Stangerson que assine um termo de que não os<br />

demitiria independente do que relatassem. Com o termo assinado, eles confessam ao repórter<br />

que caçavam coelhos na proprie<strong>da</strong>de à noite e os vendiam ao dono <strong>da</strong> hospe<strong>da</strong>ria. Quando<br />

este soube <strong>da</strong> prisão dos caseiros, verbalizou a frase que Rouletabille usou para forçar sua<br />

entra<strong>da</strong> na hospe<strong>da</strong>ria, significando que não haveria mais fornecimento de carne.<br />

Rouletabille descobre que, ao contrário do que pai e filha afirmam, houve sim um<br />

roubo no castelo, pelas marcas de sapato deixa<strong>da</strong>s na fina poeira do vestíbulo e do laboratório.<br />

Ele supõe que foram subtraídos do laboratório documentos sobre as pesquisas do cientista,<br />

pois ali havia uma espécie de cofre que estava com a chave na fechadura. O jovem detetive<br />

imagina que Mathilde sabia do roubo e o escondera do pai, por isso fora chantagea<strong>da</strong>,<br />

113


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

chegando a facilitar a entra<strong>da</strong> do criminoso no castelo, acreditando que ele devolveria os<br />

documentos. Ao sair com o noivo para fazer compras, ela esquecera sua carteira com a chave<br />

do cofre dentro em algum estabelecimento. Para reavê-la, três dias antes do atentado, publicou<br />

uma nota só com as iniciais de seu nome M.A.T.H.S.N. (LEROUX, 1999, p.110) no jornal L’<br />

Époche, prometendo uma recompensa a quem a devolvesse em uma caixa postal. A nota foi<br />

descoberta por Rouletabille que, também, soube que somente uma carta fora posta nessa<br />

caixa: a do criminoso e chantagista que, quando chegou ao castelo, já estava de posse <strong>da</strong><br />

chave.<br />

Embora Rouletabille, Larsan e Sinclair hospedem-se no castelo a fim de proteger<br />

Mathilde, há um novo atentado. O criminoso adentra a antesala do quarto dela e lá escreve<br />

uma carta. A mulher, to<strong>da</strong>via, está tranca<strong>da</strong> em outro quarto com suas enfermeiras.<br />

Rouletabille encabeça uma perseguição, mas o suspeito some misteriosamente no ar, assim<br />

como a carta, subtraí<strong>da</strong> por Mathilde. O jovem repórter, aliás, percebe que Mathilde fica<br />

alivia<strong>da</strong> quando descobre que o suspeito conseguira fugir. Ele decide, então, que deve salvá-la<br />

dela mesma, pois percebe que a mulher conhecia o criminoso.<br />

Finalmente, acontece o terceiro atentado e Mathilde contribui para isto, pois coloca<br />

sonífero na bebi<strong>da</strong> do próprio pai e o repórter vê. Ela prepara a vin<strong>da</strong> do assassino que<br />

prometera devolver os relatos <strong>da</strong> pesquisa. Rouletabille também é enganado e vítima de<br />

sonífero em sua bebi<strong>da</strong>. Somente Sinclair fica desperto durante o novo ataque em que a<br />

mulher recebe três faca<strong>da</strong>s e o guar<strong>da</strong> do castelo é morto, pois como estava no local do crime,<br />

fora confundido com o suspeito. Sinclair imagina que o alvejara, contudo, no exame do<br />

cadáver, Rouletabille notou que ele não levara tiro algum, antes uma faca<strong>da</strong> no coração. O<br />

repórter deduziu, então, que ele cruzara com o assassino quando ouvira o miado sinistro.<br />

Assim, ele descobre que o miado ouvido com frequência no castelo era o sinal de sua amante,<br />

a mulher do dono <strong>da</strong> hospe<strong>da</strong>ria. O que justifica as afirmações do mordomo a respeito de um<br />

fantasma que ron<strong>da</strong>va o lugar.<br />

Enquanto isto, Larsan, graças a várias pistas que incriminam Darzac, consegue<br />

prendê-lo. Como Rouletabille não concor<strong>da</strong> com as acusações, durante três meses, vai para a<br />

América buscar provas que inocentem o professor. Lá, descobre que Mathilde quando jovem<br />

fugira <strong>da</strong> casa de sua tia e se casara secretamente com um homem, Jean Roussel, o qual o pai<br />

dela desaprovava. O casamento durou apenas três dias, pois a polícia apareceu e prendeu o<br />

noivo, conhecido como o criminoso Ballmeyer, perseguido na França e refugiado na América.<br />

Ela se arrependeu, voltou aos braços <strong>da</strong> tia e ambas esconderam o fato do cientista. Tempos<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

depois, a jovem soube que o marido morrera e foi viver com o pai na França, sendo sua<br />

dedica<strong>da</strong> assistente. Neste país, conhecera Darzac, ambos se amavam, mas Ballmeyer voltou e<br />

passou a chantageá-la, ameaçando contar tudo ao seu pai. Justifica-se, então, o término do seu<br />

noivado com Darzac.<br />

Como Mathilde se recusou a ficar com o ex-marido, os ataques tiveram início.<br />

Rouletabille descobre que Ballmeyer, novamente disfarçado e irreconhecível, era Frederic<br />

Larsan. Ele roubara essa identi<strong>da</strong>de de um comerciante que matara em Nova Orleans, por isso<br />

o criminoso sumira no ar durante as perseguições no castelo e, em seu lugar, aparecera<br />

Larsan. A frase sobre o presbitério na carta que o ex-marido man<strong>da</strong>ra à Mathilde, referia-se ao<br />

local nas proximi<strong>da</strong>des deste em que moraram durante o breve casamento.<br />

O jovem repórter volta <strong>da</strong> América no meio do julgamento de Darzac, mas afirma<br />

que só relevará quem é o criminoso às 18h30. Assim, enquanto passa o horário, explica a<br />

todos os pormenores dos atentados. Dando tempo para que Larsan escape de trem durante o<br />

intervalo <strong>da</strong> sessão do júri. Rouletabille informa que Mathilde fora vítima de Larsan à tarde,<br />

antes do atentado conhecido por todos. Nesse primeiro encontro, ele tentara estrangular a exmulher,<br />

mas ela de posse <strong>da</strong> arma do mordomo disparara um tiro que o ferira na mão. Ele<br />

fugiu, mas ninguém ouviu na<strong>da</strong>. A mulher trancou o quarto, escondendo a marca na parede e<br />

o osso de carneiro que ele levara para feri-la. No pescoço usou um lenço ou algo parecido<br />

para encobrir as marcas <strong>da</strong> tentativa de estrangulamento. Assim, quando Mathilde fora<br />

dormir, tivera um pesadelo e ferira-se como na hipótese do jovem detetive.<br />

Ao término do relato, o leitor percebe que restam, ain<strong>da</strong>, dois mistérios. Mathilde<br />

teve um filho com Larsan, sobre ele não se sabe na<strong>da</strong>. Assim, como na<strong>da</strong> se sabe sobre os pais<br />

de Rouletabille. Ela usa o mesmo perfume <strong>da</strong> mulher de preto que vive no imaginário do<br />

jovem detetive. Não se sabe na<strong>da</strong> sobre esta mulher. Desse modo, Gaston Leroux prepara seu<br />

leitor para o próximo romance, intitulado O perfume <strong>da</strong> <strong>da</strong>ma de negro, publicado em 1909,<br />

que tem as mesmas personagens, como detetive, narrador e antagonista.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

O romance detetivesco pode auxiliar na formação de jovens leitores, pois faculta a<br />

ampliação de seus horizontes de expectativa em relação a performances enunciativas do<br />

narrador tradiconal e do herói-protagonista. Além disso, permite-lhe a revisão de seus préconceitos<br />

no que concerne à concepção de leitura, muitas vezes, associa<strong>da</strong> a aborrecimento e<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

tédio. Segundo Sissa Jacoby, enquanto Harold Bloom está preocupado com a inexistência de<br />

leitores em 20 ou 30 anos para livros complexos; no Brasil, estamos preocupados com a<br />

existência de leitores. O leitor só pode descobrir que “[...] ler é um ato de desven<strong>da</strong>mento de<br />

si e do mundo, de autoconhecimento e de aquisição de sabedoria, como quer o crítico norteamericano<br />

[...]” (JACOBY, 2002, p.193) se, primeiro, descobrir que ler é prazeroso. Deve-se<br />

destacar que ele pode descobrir que ler também é entretenimento, às vezes, semelhante ou até<br />

mais gratificante que assistir a um filme ou a um desenho na TV.<br />

O mistério do quarto amarelo, como obra detetivesca, obceca, pela curiosi<strong>da</strong>de, o<br />

jovem leitor e o mantém preso à trama até o final <strong>da</strong> leitura. Posteriormente, esse leitor sentese<br />

motivado a buscar outras narrativas com os mesmos personagens ou de mesmo gênero que<br />

dialoguem com aquela que já lera.<br />

Por meio do caráter lúdico, o romance de Leroux atrai o jovem leitor e, pelo jogo de<br />

enigmas que apresenta, convoca-o a buscar soluções para os mistérios. Assim, sua leitura<br />

desenvolve competências hipotético-dedutivas. Para o jovem, a descoberta de enigmas,<br />

instaurados na narrativa sob a forma de vazios, confere prazer que, por consequência, reforça<br />

o pacto de leitura. Assim como o protagonista realiza performances de raciocínio lógico em<br />

busca de resolução dos mistérios, o leitor, visando efetuar a concretude, ativa sua memória,<br />

capaci<strong>da</strong>de de dedução e de síntese. Justifica-se, então, a proximi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> narrativa a um jogo,<br />

a um quebra-cabeça e ao enredo fílmico aventuresco.<br />

A atração que a narrativa O mistério do quarto amarelo representa advém do risco de<br />

morte que impõem a Rouletabille e à Mathilde. Conforme José Paulo Paes (1990, p.19),<br />

retomando Jankélévitch, esse risco confere à narrativa uma paradoxal carga de atração e de<br />

repulsão, tanto para a personagem quanto para o leitor. Para o autor, o par antitético “atração<br />

x repulsão” tem raízes fun<strong>da</strong>s na psique humana, já que o homem anseia por fazer o que mais<br />

teme. Mas, como não pode, na vi<strong>da</strong> real, satisfazer seus anseios, o protagonista enfrenta a um<br />

passo <strong>da</strong> morte por ele e para ele as situações mais arrisca<strong>da</strong>s. Ora, testemunhar a personagem<br />

enfrentar a morte produz tanto prazer no leitor, quanto vê-lo escapar dela no último momento.<br />

Em síntese, a maior revelação que a narrativa detetivesca pode fornecer para o jovem<br />

leitor é justamente a de que a leitura de uma obra pode ser instigante e prazerosa.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

ADORO CINEMA. O fantasma <strong>da</strong> ópera. Disponível em:<br />

. Acesso em: 9 maio 2012.<br />

BORELLLI, Sílvia Helena Simões. Harry Potter: produção, consumo e estratégias de<br />

entretenimento. In: XVI ENCONTRO DA COMPÓS. 2007, Curitiba-PR. Anais do XVI<br />

Encontro <strong>da</strong> Compós. Curitiba – PR: Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação<br />

em Comunicação <strong>da</strong> UTP, junho 2007, p.1-14.<br />

FERRAZ, Geraldo Galvão. Fantástico e Bom Vivant. In: LEROUX, Gaston. O mistério do<br />

quarto amarelo. Ilustr. Lelis. Trad. Du<strong>da</strong> Machado. São Paulo: Ática, 1999, p. 273-277.<br />

ISER, Wolfgang. O ato <strong>da</strong> leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschmer.<br />

São Paulo: Ed. 34, 1999. vol.2.<br />

JACOBY, Sissa. Prazer de ler: a mágica de Harry Potter. In: Letras de hoje. Porto Alegre:<br />

PUCRS, n.2, v.37, p.183-194, jun. 2002.<br />

LEROUX, Gaston. O mistério do quarto amarelo. Ilustr. Lelis. Trad. Du<strong>da</strong> Machado. São<br />

Paulo: Ática, 1999.<br />

MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1996.<br />

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. 5. ed. 4.<br />

reimpr. São Paulo: Brasiliense, 2001. 222p.<br />

PAES, José Paulo. A aventura literária. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1990.<br />

SHIZUNO, Elena Camargo. A Revista Vi<strong>da</strong> Policial (1925-1927). Mistérios e Dramas em<br />

Contos e Folhetins. 2011. 248 p. Tese (Doutorado em História) – Universi<strong>da</strong>de Federal do<br />

Paraná, Curitiba, 2011.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O estranho caso <strong>da</strong> mulher desconheci<strong>da</strong> (sobre Todos os nomes, de José Saramago)<br />

FERREIRA, Sandra (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Um auxiliar de escrita <strong>da</strong> Conservatória Geral, de nome Sr. José, após encontrar<br />

casualmente a ficha de uma mulher anônima – em que constam duas informações: casamento<br />

e divórcio –, decide investigar a vi<strong>da</strong> dessa mulher. O romance de Saramago convoca os<br />

expedientes investigativos a partir de um lugar insólito: o investigador busca alguém que não<br />

cometeu transgressão alguma. Na ver<strong>da</strong>de, essa busca inaugura o percurso transgressivo <strong>da</strong><br />

personagem detetivesca. Saramago cria uma personagem singular, em cujos métodos é<br />

possível perceber uma relação paródica com o mundialmente famoso detetive Sherlock<br />

Holmes. O talento investigativo do Sr. José é o de um iniciante, devotado a uma causa cuja<br />

deman<strong>da</strong> é estabeleci<strong>da</strong> por ele mesmo, sem que seja capaz de enunciar claramente razões<br />

para isso. Com o decorrer <strong>da</strong> narrativa, seus procedimentos investigativos vão se<br />

aperfeiçoando, embora ao cabo constituam reflexos tortos do extraordinário senso de<br />

observação e capaci<strong>da</strong>de de dedução atribuídos a Sherlock Holmes. O Sr. José permite refletir<br />

sobre o quanto a precisão e o rigor holmesianos podem ser abalados pelo absurdo de certas<br />

situações a que são submeti<strong>da</strong>s as personagens em Todos os nomes. O propósito dessa<br />

comunicação, portanto, é refletir sobre o perfil investigativo <strong>da</strong> personagem Sr. José, pela via<br />

<strong>da</strong> relação paródica manti<strong>da</strong> entre os expedientes por ele adotados em sua investigação e<br />

aqueles exercidos pelo mais consagrado protótipo de detetive literário, Sherlock Holmes.<br />

PALAVRAS-CHAVE: José Saramago; Todos os Nomes; paródia.<br />

ABSTRACT: A low-level clerk in the Central Registry, named José, found the record card of<br />

a nameless woman in which there were only two pieces of information: marriage and divorce.<br />

After that, he decides to investigate the life of this woman. Saramago's novel summons the<br />

investigative devices through an unusual place: the investigator looks for someone who has<br />

not committed any transgression. Actually, this quest opens the transgressive path of the<br />

detective-like character. Saramago creates a unique character in whose methods a parodistic<br />

relationship with the world-famous detective Sherlock Holmes can be identified. Senhor<br />

José’s investigative talent resembles a beginner´s one, who is devoted to a cause whose<br />

demand is established by himself without being able to clearly state the reasons for that. In the<br />

course of the narrative, his investigative procedures will be improved, although they’ll remain<br />

in reality as distorted reflexes of the extraordinary sense of observation and power of<br />

deduction attributed to Holmes. Senhor José allows us to consider about how much<br />

Holmesian rigor and precision can be shaken by the absurdity of some situations as the ones<br />

All the Names characters are subjected. This communication’s aim is to contemplate the<br />

character Senhor José's investigative profile through the parodistic relationship maintained<br />

between the means adopted by him in his investigation and those exercised by the most<br />

acclaimed prototype of literary detective, Sherlock Holmes.<br />

KEYWORDS: José Saramago, All the Names, parody.<br />

Em A narrativa policial como exorcismo, Joan Ramon Resina (2007) localiza em<br />

Zadig, de Voltaire, uma genealogia para o detetive literário, uma vez que aquele híbrido de<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

funcionário e aventureiro compõe uma personagem que se ocupa de "desentranhar a ver<strong>da</strong>de,<br />

que todos os homens procuram obscurecer" (p. 43) e introduz o princípio <strong>da</strong> inocência<br />

presumi<strong>da</strong> do acusado. Para Resina, a vontade esclarecedora de Zadig e sua conversão em<br />

acusado e encarcerado, apesar de ou justamente por sua inocência, institui o papel de vítima<br />

expiatória. Em decorrência disso, o mistério, que nomeia nas origens a narrativa policial,<br />

remete menos a um jogo especulativo que a um ritual de contenção do impulso violento, de<br />

modo que o gênero se apoiaria no fato de representar um ritual destinado a expulsar a<br />

violência.<br />

O ritual de desmascaramento relaciona-se, conforme Resina (2007), com uma morte<br />

em efígie e o detetive, termo circunscritor dos valores constitutivos do gênero, encarna a<br />

norma social. É a ele que compete ajuizar entre a ver<strong>da</strong>de e o erro, princípio básico <strong>da</strong><br />

narrativa policial, convertendo-se no herói que aplica o método hermenêutico para reduzir<br />

uma confusão de sígnos à simplici<strong>da</strong>de de um veredicto transparente.<br />

Ao discorrer sobre a tipologia do romance policial, Todorov (1979) observou que<br />

todo grande livro estabelece a existência de dois gêneros: a do gênero que ele transgride e a<br />

do gênero que ele cria. Essa contradição dialética entre a obra e seu gênero, porém, é aboli<strong>da</strong><br />

quando se trata <strong>da</strong> literatura de massa, domínio em que a obra-prima se define por inscreverse<br />

rigorosamente no gênero a que se filia. A título de fun<strong>da</strong>mentação para essa ideia,<br />

apresenta o romance policial como sendo aquele que melhor adere às prescrições do gênero.<br />

SEM FRONTEIRAS<br />

Todos os nomes (1997) é um romance, autorreferido como "relato", marcado pelo<br />

diálogo transgressivo com as convenções de gêneros literários: é simultaneamente um<br />

romance de aventura, um romance de enigma, um romance de amor e um romance filosófico,<br />

centrado em reflexões acerca do nome e <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de, do tempo e <strong>da</strong> finitude humana, <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> mentira, por meio de uma contínua tensão entre aparência e essência. Diz Ana<br />

Monner Sans (1999) acerca do romance em foco:<br />

En la novela, de manera simultánea y contradictoria, el protagonista es y no<br />

es un héroe de aventuras, es y no es un detetive, es y no es un criminal, es y<br />

no es un amante, es y no es un filósofo. Pero si es, indu<strong>da</strong>blemente, un<br />

personaje de ficción que muestra to<strong>da</strong>s las compleji<strong>da</strong>des características de<br />

los seres humanos, sus du<strong>da</strong>s, sus interrogantes. (p.442)<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O protagonista, Sr. José, é apresentado no início <strong>da</strong> narrativa como um homem<br />

comum, um mero auxiliar de escrita, um escrivão <strong>da</strong> Conservatória Geral do Registro Civil,<br />

apropria<strong>da</strong>mente irmanado por Leyla Perrone-Moisés (1999) a Bartleby, protagonista <strong>da</strong> obra<br />

homônima de Melville, em virtude de a personagem saramaguiana possuir extração<br />

semelhante à de Bartleby: “um escrivão insignificante que se eleva à categoria de pessoa<br />

soberana por pequenos atos de subversão tranquila” (p.433).<br />

Na Conservatória, impera uma ordem hierárquica cujas funções parecem <strong>da</strong><strong>da</strong>s desde<br />

o início dos tempos, tamanha sua rigidez. O Sr. José é descrito como possuidor de um<br />

"espírito metódico" (SARAMAGO, 1997, p. 22), cumpridor diligente de seus deveres. Cabelhe<br />

um único prazer na vi<strong>da</strong>: sua coleção de notícias de compatriotas famosos, por boas ou<br />

más razões. O trabalho do auxiliar de escrita consiste em realizar com desenvoltura os<br />

averbamentos de nascimentos e mortes, de modo a garantir a ordem dos arquivos<br />

monumentais <strong>da</strong> Conservatória. Na situação de equilíbrio inicial, o Sr. José executa suas<br />

tarefas meticulosamente e dedica-se à sua coleção de igual modo. O narrador, porém,<br />

incumbe-se de lançar uma luz mortiça sobre o conceito de ordem, mero arranjo que,<br />

provisoriamente, impede o caos de instalar-se:<br />

Pessoas assim, como este Sr. José, em to<strong>da</strong> a parte as encontramos, ocupam<br />

o seu tempo ou o tempo que crêem sobejar-lhes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> a juntar selos,<br />

moe<strong>da</strong>s, me<strong>da</strong>lhas, jarrões, bilhetes-postais, caixas de fósforos, livros,<br />

relógios, camisolas desportivas, autógrafos, pedras, bonecos de barro, latas<br />

vazias de refrescos, anjinhos, cactos, programas de óperas, isqueiros,<br />

canetas, mochos, caixinhas-de-música, garrafas, bonsais, pinturas, canecas,<br />

cachimbos, obeliscos de cristal, patos de porcelana, brinquedos antigos,<br />

máscaras de carnaval, provavelmente fazem-no por algo a que poderíamos<br />

chamar angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a ideia do<br />

caos como regedor único do universo, por isso, com as suas fracas forças e<br />

sem aju<strong>da</strong> divina, vão tentando pôr alguma ordem no mundo, por um pouco<br />

de tempo ain<strong>da</strong> o conseguem, mas só enquanto puderem defender a sua<br />

colecção, porque quando chega o dia de ela se dispersar, e sempre chega esse<br />

dia, ou seja por morte ou seja por fadiga do coleccionador, tudo volta ao<br />

princípio, tudo torna a confundir-se. (SARAMAGO, 1997, p. 23).<br />

Essa citação permite identificar uma uni<strong>da</strong>de mínima, um motivo que,<br />

metaforicamente, contém a proposição integral <strong>da</strong> narrativa, centra<strong>da</strong> no embate entre ordem<br />

e desordem, em que o elemento estável, a ordem, é abalado pelo dinâmico, a desordem,<br />

determinante <strong>da</strong> busca e do estabelecimento de uma nova ordem.<br />

A narrativa ideal, afirma Todorov (1978), começa por uma situação estável, que uma<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

força qualquer vem perturbar, resultando disso um estado de desequilíbrio: "pela ação de uma<br />

força dirigi<strong>da</strong> em sentido inverso, o equilíbrio se restabelece; o segundo equilíbrio é muito<br />

semelhante ao primeiro, mas os dois jamais são idênticos" (p. 93). Na narrativa de Todos os<br />

nomes, o acaso permeia o motivo dinâmico: uma ficha de mulher desconheci<strong>da</strong><br />

indevi<strong>da</strong>mente presa à de uma celebri<strong>da</strong>de pertencente à coleção. Após a ocorrência desse<br />

acaso, o Sr. José vive uma sequência de aventuras que reorienta os motivos estáticos<br />

(atributos positivadores de uma vi<strong>da</strong> regra<strong>da</strong>, porém insula<strong>da</strong>, no limite <strong>da</strong><br />

incomunicabili<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> inexistência de afeto), sobrepondo-os com motivos dinâmicos:<br />

preparação para a investigação acerca <strong>da</strong> mulher desconheci<strong>da</strong>; visita à casa em que ela<br />

nascera; falsificação de uma credencial; diálogo com a madrinha; roubo <strong>da</strong> fotografia na<br />

escola; expedição ao confins do arquivo; visita ao cemitério; visita aos pais <strong>da</strong> mulher<br />

desconheci<strong>da</strong> e, finalmente, experiência sensorial-sensual junto aos objetos que a ela<br />

pertenceram.<br />

Esses são ingredientes que revelam a feliz utilização feita por Saramago <strong>da</strong>s<br />

convenções do romance policial. Segundo Sans (1999, p. 444), o sintagma "o caso <strong>da</strong> mulher<br />

desconheci<strong>da</strong>", amplamente reiterado na narrativa, coaduna-se com enigmas a resolver,<br />

inscritos na existência de uma investigação e de um investigador, cujas ações ambientam-se<br />

em cenários fechados compatíveis com o gênero. Conforme Sans, três são os enigmas que<br />

movem o Sr. José: 1. Encontrar a mulher desconheci<strong>da</strong>; 2. Conhecer tudo sobre ela e as<br />

razões, após sabê-la morta, determinantes de seu suicídio; 3. Encontrar seu túmulo no<br />

cemitério. Aparentemente, prosaicos enigmas.<br />

ÀS AVESSAS<br />

As convenções de gênero <strong>da</strong> narrativa policial convoca<strong>da</strong>s em Todos os nomes<br />

apresentam subversões fun<strong>da</strong>mentais, que modulam a clave investigativa em tom paródico.<br />

Lembremos a síntese em número de oito, feita por Todorov (1979), <strong>da</strong>s vinte regras a que,<br />

segundo o escritor S. S. Van Dine, devem conformar-se os romances policiais respeitáveis:<br />

1. O romance deve ter no máximo um detetive e um culpado, e no mínimo<br />

uma vítima (um cadáver);<br />

2. O culpado não deve ser um criminoso profissional; não deve ser o<br />

detetive; deve matar por razões pessoais;<br />

3. O amor não tem lugar no romance policial;<br />

4. O culpado deve gozar de certa importância: a. na vi<strong>da</strong>: não ser um<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

empregado ou uma camareira; b. no livro; ser uma <strong>da</strong>s personagens<br />

principais.<br />

5. Tudo deve explicar-se de modo racional; o fantástico não é admitido;<br />

6. Não há lugar para descrições nem para análises psicológicas;<br />

7. É preciso conformar-se à seguinte homologia, quanto às informações<br />

sobre a história: "autor : leitor = culpado : detetive";<br />

8. É preciso evitar as situações e as soluções banais. (p. 100)<br />

Com exceção <strong>da</strong> oitava regra, o romance de Saramago subverte as demais. À<br />

exigência de duas personagens – o detetive e o culpado –, opõe uma única personagem a<br />

cumprir as duas funções, já que, na investigação detetivesca a que se propõe, o Sr. José atua<br />

criminosamente, envolvendo-se em ações delituosas, a exemplo de roubo de formulários; <strong>da</strong>s<br />

mentiras e falsificações para obter informações e <strong>da</strong> invasão noturna do colégio em que<br />

estudou e, depois, lecionou a mulher desconheci<strong>da</strong>. O investigador é também o delinquente:<br />

delinque para poder investigar. Não há assassinato, mas suicídio; o amor pela desconheci<strong>da</strong><br />

move a investigação; o investigador-culpado é pessoa <strong>da</strong>s mais desimportantes na pirâmide<br />

social; o fantástico é continuamente cortejado, sobretudo na configuração dos espaços <strong>da</strong><br />

narrativa; as digressões, de fundo não só psicológico como também filosófico, são<br />

recorrentes. A homologia recomen<strong>da</strong><strong>da</strong> fica manca, <strong>da</strong><strong>da</strong> a inexistência de um culpado tout<br />

court.<br />

O esforço físico e intelectual do Sr. José evoca a intensi<strong>da</strong>de de raciocínio de uma<br />

personagem como o ágil e observador Sherlock Holmes, mas o escopo deste e dos demais<br />

detetives exemplares <strong>da</strong> tradição ocidental – fixar a responsabili<strong>da</strong>de de maneira conclusiva –<br />

não é possível no caso do Sr. José.<br />

A ca<strong>da</strong> etapa de sua investigação, o objeto que a determinou mais e mais se distancia.<br />

Para isso, a narrativa compõe com traços mínimos a personagem <strong>da</strong> mulher desconheci<strong>da</strong>, que<br />

funcionam mais como ocultadores do que reveladores. Monta-se assim o álibi para a busca de<br />

esclarecimento empreendi<strong>da</strong> pelo Sr. José, pauta<strong>da</strong> pela necessi<strong>da</strong>de de desenre<strong>da</strong>r, explicar e<br />

desenvolver a história desconheci<strong>da</strong>. Curiosamente, é em virtude de sua exclusão dos<br />

parâmetros orientadores <strong>da</strong> coleção – uma anônima ao invés de célebre personagem – que a<br />

ficha <strong>da</strong> desconheci<strong>da</strong> ganha inclusão como objeto de interesse máximo:<br />

Tinha o armário cheio de homens e mulheres de quem quase todos os dias se<br />

falava nos jornais, em cima <strong>da</strong> mesa o registo de nascimento de uma pessoa<br />

desconheci<strong>da</strong>, e era como se os tivesse acabado de colocar nos pratos duma<br />

balança, cem neste lado, um no outro, e depois, surpreendido, descobrisse<br />

que todos aqueles juntos não pesavam mais do que este, que cem eram iguais<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

a um, que um valia tanto como cem. Se alguém lhe entrasse em casa neste<br />

momento e de chofre perguntasse, Acredita, realmente, que o um que você<br />

também é vale o mesmo que cem, que os cem do seu armário, para não<br />

irmos mais longe, valem tanto como você, responderia sem hesitar, Meu<br />

caro senhor, eu sou um simples auxiliar de escrita, na<strong>da</strong> mais que um<br />

simples auxiliar de escrita de cinquenta anos que não foi promovido a<br />

oficial, se eu achasse que valia tanto como um só dos que ali tenho<br />

guar<strong>da</strong>dos, ou como qualquer destes cinco de menos fama, não teria<br />

começado a fazer a minha colecção, Então por que é que não pára de olhar<br />

para o verbete dessa mulher desconheci<strong>da</strong>, como se de repente ela tivesse<br />

mais importância que todos os outros, Precisamente por isso, meu caro<br />

senhor, porque é desconheci<strong>da</strong>, Ora, ora, o ficheiro <strong>da</strong> Conservatória está<br />

cheio de desconhecidos, Estão no ficheiro, não estão aqui, Que quer dizer,<br />

Não sei bem. (SARAMAGO, 1997, p.38).<br />

A desconheci<strong>da</strong> e o Sr. José, frente aos nomes <strong>da</strong> coleção de celebri<strong>da</strong>des,<br />

estabelecem uma forma extrema de relação, como algo que se inclui devido justamente à sua<br />

exclusão. Ambas as personagens estão excluí<strong>da</strong>s do mundo do reconhecimento e com ele se<br />

relacionam pela via <strong>da</strong> exteriori<strong>da</strong>de. Na condição de detetive do que teria sucedido à<br />

desconheci<strong>da</strong>, José coloca-se fora <strong>da</strong> norma (infringe os limites de seu contrato social) para,<br />

assim, tornar-se capaz de criar um outro núcleo de valores e, em segui<strong>da</strong>, transfigurá-los<br />

igualmente em norma, de modo a reinventar as relações de pertencimento e exclusão,<br />

embaralhando o dentro e o fora, a vi<strong>da</strong> e a morte. É preciso salientar que tal transfiguração e<br />

embaralhamento só se tornam possíveis graças ao Conservador, que, ao invés de punir as<br />

transgressões de José, concede-lhes comovido acolhimento. Cabe aqui lembrar o que disse<br />

Leyla Perrone-Moisés (1999) acerca <strong>da</strong> rebelião de Bartleby que, ao desmontar o<br />

funcionamento do escritório, provoca uma perplexi<strong>da</strong>de humanizadora no chefe, a qual<br />

permite à ensaísta adensar o paralelismo entre as narrativas de Saramago e Melville, por ela<br />

considera<strong>da</strong>s “apólogos maiores <strong>da</strong>s relações entre chefes e subordinados e <strong>da</strong> subversão do<br />

poder pela digni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pessoa” (p.433).<br />

Embora a mulher desconheci<strong>da</strong> seja vítima apenas do interesse vital do Sr. José, a<br />

insuficiência de informações a seu respeito reificam-na em um caso, legitimado no decorrer<br />

<strong>da</strong> narrativa pela violência caótica e inexplica<strong>da</strong> de seu suicídio, ponto cego que, parecendo<br />

encerrar o caso, amplia-o irremediavelmente, graças ao interesse continuamente renovável do<br />

funcionário <strong>da</strong> Conservatória:<br />

O caso resolve-se mais facilmente do que isso, aliás ficou arrumado por<br />

natureza, a mulher está morta, não há mais na<strong>da</strong> a fazer, guar<strong>da</strong>rei o<br />

processo e o verbete se quiser ficar com uma recor<strong>da</strong>ção palpável desta<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

aventura, para a Conservatória Geral será como se a pessoa não tivesse<br />

chegado a nascer, provavelmente ninguém virá a precisar destes papéis,<br />

também posso ir deixá-los em qualquer parte do arquivo dos mortos, logo à<br />

entra<strong>da</strong>, junto com os mais antigos, aqui ou além dá no mesmo, a história é<br />

igual para todos, nasceu, morreu, a quem vai agora interessar quem tenha<br />

sido (...) não há ninguém no mundo a quem interesse o estranho caso <strong>da</strong><br />

mulher desconheci<strong>da</strong>. (1997, p. 180) [grifo nosso].<br />

A opaci<strong>da</strong>de do acesso à desconheci<strong>da</strong> e a fatali<strong>da</strong>de de um desaparecimento sem<br />

interesse maior levarão o funcionário a agir de modo heteróclito, revelando assim o idealismo<br />

que o caracteriza. Sua infração funcional, porém, revela-se necessária, benéfica. E por ser<br />

assim, dialoga parodicamente com o discurso racional do detetive, recria o ritual <strong>da</strong> busca e <strong>da</strong><br />

descoberta, estabelecendo uma presença empenha<strong>da</strong> no rastreamento <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong>de dos<br />

seres e <strong>da</strong>s coisas, mas apreendidos de modo truncado, com lacunas que antes são sublinha<strong>da</strong>s<br />

que preenchi<strong>da</strong>s pelo narrador, a quem cabe disciplinar a dispersão dos elementos narrativos.<br />

A narrativa enfatiza os ensaios frustrados do Sr. José, por meio do amplo lastro<br />

concedido a suas divagações, em que se pode perceber uma clara desconfinça em relação ao<br />

pensamento dedutivo:<br />

Não creio que seja uma boa regra de vi<strong>da</strong> deixar-se alguém guiar pelo acaso,<br />

Boa regra ou não, conveniente ou não, foi o acaso que lhe pôs nas mãos<br />

aquele verbete, E se a mulher for a mesma, Se a mulher for a mesma, então o<br />

acaso foi esse, Sem outras consequências, Quem somos nós para falar de<br />

consequências, se <strong>da</strong> fila interminável delas que incessantemente vêm<br />

caminhando na nossa direcção apenas podemos ver a primeira, Significa isso<br />

que algo pode acontecer ain<strong>da</strong>, Algo, não, tudo, Não compreendo, Só porque<br />

vivemos absortos é que não reparamos que o que nos vai acontecendo deixa<br />

intacto, em ca<strong>da</strong> momento, o que nos pode acontecer, Quer isso dizer que o<br />

que pode acontecer se vai regenerando constantemente, Não só se regenera<br />

como se multiplica, basta que comparemos dois dias seguidos, Nunca pensei<br />

que fosse assim, São coisas que só os angustiados conhecem bem.<br />

(SARAMAGO, 1997, p.48).<br />

A investigação <strong>da</strong>s pistas, sinais e indícios é simultaneamente proposta e refuta<strong>da</strong>, à<br />

medi<strong>da</strong> que a busca do Sr. José apoia-se em um método indiciário que frequentemente chega<br />

perto do alvo, sem atingi-lo jamais, sendo suficiente para ilustrar tal afirmação o fato de que,<br />

ao alcançar enfim ao túmulo <strong>da</strong> desconheci<strong>da</strong>, será para saber que o número dos túmulos são<br />

continuamente trocados, de modo que as aparências continuem sem reali<strong>da</strong>de que lhes<br />

correspon<strong>da</strong>. Essa falta de correspondência, ao mesmo tempo em que frustra a investigação,<br />

permite que ela se mantenha em an<strong>da</strong>mento, pois não há conclusão.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

No primeiro livro de Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle (2003) apresenta o<br />

método de dedução a partir do qual o detetive desven<strong>da</strong> os casos em que se envolveu. Parece,<br />

a princípio, um método muito simples, já que consiste em olhar e ver o que está evidente,<br />

como se as coisas por si só fossem evidências:<br />

A partir de uma gota de água um lógico poderia inferir a possibili<strong>da</strong>de de um<br />

Atlântico ou uma Niágara sem jamais tê-los visto ou ouvido falar que<br />

existem. Analogamente, to<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> é uma grande corrente cuja natureza<br />

torna-se conheci<strong>da</strong> desde que nos apresentem um único elo. Como to<strong>da</strong>s as<br />

outras artes, a Ciência <strong>da</strong> Dedução e <strong>da</strong> Análise só pode ser adquiri<strong>da</strong> através<br />

de estudos prolongados e pacientes; a vi<strong>da</strong> não é suficientemente longa para<br />

permitir que um mortal qualquer seja capaz de atingir o ápice <strong>da</strong> perfeição<br />

em seu ofício. Antes de enfrentar os aspectos morais e mentais que<br />

apresentem maior grau de dificul<strong>da</strong>de em determina<strong>da</strong> questão, convém que<br />

aquele que in<strong>da</strong>ga comece por dominar os problemas mais elementares. Que,<br />

ao encontrar outro mortal, apren<strong>da</strong> a perceber através de um mero olhar a<br />

história de um homem e o ofício ou profissão a que se dedica. Por mais<br />

pueril que esse exercício possa parecer, ele aguça as facul<strong>da</strong>des de<br />

observação e ensina para onde olhar e o que tentar ver. As unhas de um<br />

homem, a manga de seu paletó, sua botina, os joelhos <strong>da</strong>s suas calças, as<br />

calosi<strong>da</strong>des de seu indicador e seu polegar, sua expressão, os punhos de sua<br />

camisa – eis diversos elementos que permitem discernir claramente a<br />

ocupação de um homem [...]. Em mim a observação é uma segun<strong>da</strong> natureza<br />

[...]. Quando um fato parece se opor a uma longa série de dedução,<br />

invariavelmente se verifica que esse fato comporta alguma outra<br />

interpretação. No momento de solucionar um problema desse tipo, o<br />

essencial é saber refletir para trás. (CONAN DOYLE, 2003, p.30).<br />

Ao longo <strong>da</strong> narrativa, Watson, seu parceiro, constata o quão difícil é, para as pessoas<br />

comuns, perceber a extensão do óbvio. No rol dos comuns certamente não se inscreve o<br />

enfermeiro, enviado pelo Conservador para cui<strong>da</strong>r de uma gripe do Sr. José, apanha<strong>da</strong> na<br />

noite chuvosa em que invadira a escola. O enfermeiro porta-se como outra personagemdetetive,<br />

a quem nenhuma minúcia escapa. Sendo capaz de intuir prontamente um enigma no<br />

ar, mostra-se, porém, suficientemente desprendido para deixá-lo intocado:<br />

Se o mandou vir cá foi para me <strong>da</strong>r uma injecção, Essa é a aparência, Que<br />

foi que viu neste caso, além <strong>da</strong> aparência que tem, Você não é capaz de<br />

imaginar a quanti<strong>da</strong>de de coisas que se descobrem olhando para umas<br />

feri<strong>da</strong>s, Ter visto estas foi uma pura casuali<strong>da</strong>de, Há que contar sempre com<br />

as puras casuali<strong>da</strong>des, aju<strong>da</strong>m muito, Que coisas descobriu então nas minhas<br />

feri<strong>da</strong>s, Que andou a raspar uma parede com os joelhos, Caí, Já mo havia<br />

dito, Uma informação como essa, supondo que fosse exacta, não iria<br />

aproveitar muito ao chefe, Que lhe aproveite ou que não lhe aproveite, não é<br />

<strong>da</strong> minha conta, eu limito-me a fornecer os relatórios, Da gripe que apanhei<br />

já ele estava informado, Mas não <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s nos joelhos, Daquela mancha<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

de humi<strong>da</strong>de no chão, também, Mas não do arripio, Se não lhe resta mais<br />

que fazer aqui, rogo-lhe que se vá embora, estou cansado, preciso de dormir.<br />

[...] Ferimentos nos joelhos, um súbito e inexplicado estremecimento,<br />

uma velha num rés-do-chão, Direito, Este seria o relatório mais<br />

importante <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong>, se eu o escrevesse, Não vai escrevê-lo, afinal,<br />

Sim, vou escrevê-lo, mas só para informar que lhe dei uma injecção no<br />

glúteo esquerdo. (SARAMAGO, 1997, p.134) [grifo nosso]<br />

DUPLICAÇÃO COM DIFERENCIAÇÃO<br />

O método indiciário preconizado por Holmes é amplamente compartilhado pelas<br />

personagens e pelo narrador, com bons resultados parciais, mas sem as sínteses reveladoras<br />

que permitem decifrar uma reali<strong>da</strong>de opaca. Personagens e narrador revelam-se fascinados<br />

pelo método dedutivo, mas sem sucesso, já que a reali<strong>da</strong>de son<strong>da</strong><strong>da</strong> não se mostra passível de<br />

ser remonta<strong>da</strong>, embora sugestões <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de remontagem conjetural detetivesca<br />

sejam continuamente apresenta<strong>da</strong>s:<br />

Sou funcionário <strong>da</strong> Conservatória Geral do Registo Civil, Ah, o senhor é<br />

funcionário <strong>da</strong> Conservatória, disse a emprega<strong>da</strong> <strong>da</strong> lavan<strong>da</strong>ria com uma<br />

modulação nova de respeito na voz que o Sr.José achou melhor deixar passar<br />

por alto, arrependido de se ter descaído a dizer pela primeira vez onde<br />

trabalhava, um profissional de assaltos nocturnos a sério não an<strong>da</strong>ria por<br />

aí a semear pistas, imaginemos que esta emprega<strong>da</strong> de lavan<strong>da</strong>ria é<br />

casa<strong>da</strong> com o empregado <strong>da</strong> loja de ferragens onde o Sr. José foi<br />

comprar o corta-vidros ou do talho onde comprou a banha, e que logo à<br />

noite, numa dessas conversas banais com que os maridos e as mulheres<br />

entretêm o serão, vêm à baila estes pequenos episódios do quotidiano<br />

comercial, por muito menos têm ido outros criminosos parar à cadeia<br />

quando julgavam estar a salvo de qualquer suspeita. (SARAMAGO,<br />

1997, p.134) [grifo nosso]<br />

As interpretações que reduziriam as particulari<strong>da</strong>des dos eventos ao esquematismo<br />

de relações formais, to<strong>da</strong>via, vão se impossibilitando e, em razão disso, são diluí<strong>da</strong>s na<br />

indissociação <strong>da</strong>s fronteiras entre ficção e reali<strong>da</strong>de (diálogos imaginários com o chefe, com o<br />

teto, com abstrações), o que permite ao Sr. José dramatizar, encenando simultaneamente seu<br />

papel e o do interlocutor imaginário. Além <strong>da</strong>s altercações imaginárias, passa a dirigir uma<br />

atenção agu<strong>da</strong> sobre si mesmo, em que ganha lugar um movimento auto-irônico:<br />

Sou definitivamente absurdo, repreendia-se o Sr. José, o dia já tinha vinte e<br />

quatro horas quando foi decidido que as tivesse, a hora tem e sempre teve<br />

sessenta minutos, os sessenta segundos do minuto vêm desde a eterni<strong>da</strong>de, se<br />

um relógio começa a atrasar-se ou a adiantar-se não é por defeito do tempo,<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

mas <strong>da</strong> máquina, o que eu devo ter, portanto, é a cor<strong>da</strong> avaria<strong>da</strong>. A ideia fêlo<br />

sorrir frouxamente, Não sendo o desarranjo, pelo menos que eu saiba, na<br />

máquina do tempo real, mas na mecânica psicológica que o mede, o que eu<br />

deveria fazer era procurar um psicólogo que me reparasse a ro<strong>da</strong> de escape.<br />

Sorriu outra vez, depois ficou sério. (SARAMAGO, 1997, p. 180).<br />

Antes que o Sr. José lançasse sobre si o véu do desequilíbrio, o narrador já o<br />

envolvera com o manto <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de, no episódio <strong>da</strong> falsificação <strong>da</strong> credencial para<br />

acesso às personagens relaciona<strong>da</strong>s à mulher desconheci<strong>da</strong>. Nesse episódio, o auxiliar de<br />

escrita emula o estilo autoritário do Conservador, compondo um registro verbal que Todorov<br />

(1979, p. 111) denomina “palavra fingi<strong>da</strong>”, referindo-se às mentiras conta<strong>da</strong>s pelas<br />

personagens. Como a mentira vincula-se à inadequação <strong>da</strong> palavra, sendo constituí<strong>da</strong> por um<br />

desacordo visível entre a referência e o referente, Todorov conclui que mentir equivale a falar<br />

não para constatar, mas para agir, resultando disso ser a mentira necessariamente<br />

performativa: “a palavra fingi<strong>da</strong> é ao mesmo tempo narrativa e ação” (TODOROV, 1979, p.<br />

112). A performance autoritária na re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> credencial dá oportuni<strong>da</strong>de a que o narrador,<br />

surpreso com a momentânea metamorfose <strong>da</strong> personagem, pondere: “chega<strong>da</strong> a ocasião, até<br />

os bons podem tornar-se duros e prepotentes [...] É que esse não era eu, estava só a escrever, a<br />

agir em nome doutra pessoa, e no melhor dos casos o que querem é iludir-se a si mesmos”<br />

(SARAMAGO, 1997, p. 58).<br />

A credencial assume dimensão constativa, ao afirmar e autorizar uma função,<br />

inventa<strong>da</strong>, que permite ao Sr. José agir em prol <strong>da</strong> busca. A palavra fingi<strong>da</strong>, lembra Todorov<br />

(1979), é costumeiramente assinala<strong>da</strong> pela invocação <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, transmu<strong>da</strong><strong>da</strong> em mentira,<br />

como se constata no encontro com a senhora do rés-do-chão: “Mas quem é o senhor, Sou<br />

funcionário autorizado <strong>da</strong> Conservatória Geral do Registo Civil, já lhe tinha dito, E como<br />

posso saber eu que isso é ver<strong>da</strong>de, Tenho uma credencial passa<strong>da</strong> pelo meu<br />

conservador” (SARAMAGO, 1997, p. 59, grifo nosso). A referência à ver<strong>da</strong>de é uma marca<br />

<strong>da</strong> mentira, por meio <strong>da</strong> qual o Sr. José converte-se em personagem de si mesmo, bifurcandose<br />

em duas personagens: o Sr. José que vive a aventura e aquele que as narra, no caderno de<br />

apontamentos (cf. SARAMAGO, 1997, p. 197-201), Ocorrências desse tipo indiciam o<br />

profundo parentesco <strong>da</strong> narrativa com a palavra fingi<strong>da</strong>, referido por Todorov (1979, p. 112).<br />

Tais considerações apontam para diferentes planos de construção <strong>da</strong> narrativa: um,<br />

em que uma busca é empreendi<strong>da</strong>, e outro, mais pleno, em que a centrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> busca é<br />

desloca<strong>da</strong> para aquele que a realiza e seus coadjuvantes. Monta-se, assim, o nível paródico em<br />

relação à narrativa policial, já que Saramago evoca dispositivos dessa narrativa, mas com<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

distanciamento crítico: o caso <strong>da</strong> mulher desconheci<strong>da</strong> não é eluci<strong>da</strong><strong>da</strong>do, antes obscurece-se<br />

mais intensivamente. Segundo Lin<strong>da</strong> Hutcheon (1989), a paródia, no século XX, representa<br />

um dos modos mais efetivos <strong>da</strong> construção formal e temática dos textos, porque constitui um<br />

acordo artístico acerca de que a mu<strong>da</strong>nça implica continui<strong>da</strong>de. Os paralelismos literários<br />

modernos, contudo, investem na diferença irônica. A paródia define-se, então, pela “repetição<br />

com distância crítica, que marca a diferença em vez <strong>da</strong> semelhança” (HUTCHEON, 1989, p.<br />

17).<br />

Frise-se que embora os expedientes detetivescos à Sherlock Holmes sejam<br />

formalmente parodiados ou estabelecidos como pano de fundo em Todos os nomes, eles não<br />

são alvo de escárnio ou zombaria, sendo antes realocados em um território cujas vias levam a<br />

lugar nenhum e são povoa<strong>da</strong>s por uma espécie de temor <strong>da</strong> saturação, que ameaça<br />

continuamente a memória humana. Se os desejos de totali<strong>da</strong>de parecem vãos, isso, to<strong>da</strong>via,<br />

não impede que sejam acalentados e conduzidos por uma lógica que sinaliza apenas a entra<strong>da</strong><br />

do labirinto. No dizer de Leyla Perrone-Moisés (1999):<br />

Os romancistas não podem dizer o todo, o homem não pode saber tudo. Mas<br />

a busca é a sua forma de resistência e a marca <strong>da</strong> sua digni<strong>da</strong>de. O homem<br />

procura no escuro, mas desafia os deuses roubando-lhes o fogo” (p. 439).<br />

O Sr. José, paródico em relação ao protótipo de Sherlock Holmes e sua suficiência<br />

elementar, é protagonista de uma narrativa que propõe, nos termos de Resina, o exorcismo de<br />

uma violência peculiar: a do esquecimento. Saramago dá vi<strong>da</strong> a essa matéria compondo uma<br />

narrativa em que claramente não somos conduzidos pelo que Northrop Frye considera o<br />

núcleo semântico <strong>da</strong> narrativa policial – caracterizado como “escritura de feno de burro”<br />

(apud RESINA, 2007, p. 11), cuja leitura é motiva<strong>da</strong> pelo desejo de descobrir o que será dito<br />

na última página –, mas pelo prazer <strong>da</strong> urdidura de ca<strong>da</strong> página, pela força poética que a<br />

anima e captura-nos. Chegamos à última página do romance com pesar, porque a leitura<br />

termina.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

CONAN DOYLE, A. O Estudo em Vermelho. Trad. Heloisa Jahn. 7ª ed., São Paulo: Ática,<br />

2003.<br />

HUTCHEON, L. Uma Teoria <strong>da</strong> Paródia. Trad. Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70,<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

1989.<br />

PERRONE-MOISÉS, L. A Ficção como Desafio ao Registo Civil. In: COLÓQUIO/Letras:<br />

José Saramago: o ano de 1998. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1999.<br />

RESINA, J. R. A narrativa policial como exorcismo. In: Floema: Caderno de Teoria e<br />

História Literária. Vitória <strong>da</strong> Conquista: UESB, n. 3, p.43-61, 2007.<br />

SANS, A. M. De aventuras, azares, amores y taumaturgias: la subversión genérica como<br />

estrategia narrativa em Todos los Nombres. In: COLÓQUIO/Letras: José Saramago: o ano de<br />

1998. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1999.<br />

SARAMAGO, J. Todos os Nomes. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1997.<br />

TODOROV, T. As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:<br />

Perspectiva, 1979.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Desven<strong>da</strong>ndo o gênero policial no rastro de Umberto Eco e Ricardo Piglia<br />

FIORUCI, Wellington R. (UTFPR/Pato Branco)<br />

RESUMO: Os escritores Umberto Eco (1932- ) e Ricardo Piglia (1940- ) mantêm em<br />

comum, além <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong>de, uma linguagem que desafia as categorias narrativas<br />

tradicionais. Nos romances mais recentes publicados por Eco e Piglia, respectivamente O<br />

cemitério de Praga (2011) e Blanco Nocturno (2010), a categoria posta em questão é o<br />

tradicional, e aparentemente imortal, gênero policial, de cuja linhagem deriva o romance de<br />

detetive ou de mistério. Os escritores em ambos os textos lançam mão de diferentes<br />

estratégias literárias para explorar as fronteiras deste gênero, de tal forma que trazem para o<br />

centro <strong>da</strong> narrativa não mais a trama policial, o mistério a ser desven<strong>da</strong>do, mas sim a própria<br />

escritura, o autor, portanto, como Axis Mundi. Tal abor<strong>da</strong>gem permite que se analisem essas<br />

obras à luz dos estudos concernentes à pós-moderni<strong>da</strong>de, <strong>da</strong><strong>da</strong> a perspectiva autorreferencial<br />

do relato sobre a qual a teoria pós-moderna se dedica. Com efeito, a crítica pós-moderna<br />

investe no estudo <strong>da</strong>s categorias literárias, como a narrativa, tomando como corpus analítico<br />

textos ficcionais que de forma mais ou menos explícita diluem as margens demarcatórias<br />

destas categorias. Os romances ora em questão são exemplos de narrativas que superam a<br />

mera problemática <strong>da</strong> trama de mistério e se arriscam na complexa, mas salutar tarefa de<br />

reconstruírem os espaços ficcionais.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Romance policial; Pós-moderni<strong>da</strong>de; Umberto Eco; Ricardo Piglia;<br />

Gênero literário.<br />

RESUMEN: Los escritores Umberto Eco (1932- ) y Ricardo Piglia (1940- ) mantienen en<br />

común, allende la contemporanei<strong>da</strong>d, un lenguaje que desafía las categorías narrativas<br />

tradicionales. En las novelas más recientes publica<strong>da</strong>s por Eco y Piglia, respectivamente O<br />

cemitério de Praga (2011) y Blanco Nocturno (2010), la categoría puesta de relieve es el<br />

tradicional, y al parecer inmortal, género policial, de cuya estirpe deriva la novela criminal o<br />

de misterio. Los escritores en ambos textos echan mano de diferentes estrategias literarias<br />

para explotar las fronteras de este género, de tal forma que traen para el centro de la narrativa<br />

no más la trama policial, el misterio a ser desven<strong>da</strong>do, sino la propia escritura, el autor, por lo<br />

tanto, como Axis Mundi. Tal abor<strong>da</strong>je permite que se analicen esas obras a la luz de los<br />

estudios concernientes a la posmoderni<strong>da</strong>d, <strong>da</strong><strong>da</strong> la perspectiva autorreferencial del relato<br />

sobre la que la teoría posmoderna se dedica. En efecto, la crítica posmoderna invierte en el<br />

estudio de las categorías literarias, como la narrativa, tomando como corpus analítico textos<br />

ficcionales que de forma más o menos explícita diluyen los márgenes limítrofes de estas<br />

categorías. Dichas novelas son ejemplos de narrativas que superan la mera problemática de la<br />

trama de misterio y se arriesgan en la compleja, pero edificante tarea de reconstruir los<br />

espacios ficcionales.<br />

PALABRAS-CLAVE: Novela policial; Posmoderni<strong>da</strong>d; Umberto Eco; Ricardo Piglia;<br />

Género literario.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A leitura, dizia Ezra Pound, é uma arte <strong>da</strong> réplica. Às vezes os leitores vivem<br />

num mundo paralelo e às vezes imaginam que este mundo entra na reali<strong>da</strong>de.<br />

Ricardo Piglia<br />

MODELOS DE LEITORES: PREÂMBULO TEÓRICO<br />

As literaturas produzi<strong>da</strong>s por Eco e Piglia, contemporâneos entre si, mantêm elos<br />

temáticos e conceituais que exploram, de forma ampla e profun<strong>da</strong>, as relações entre leitura e<br />

escritura, ou, em outras palavras, as imbricações entre produção e recepção do texto literário.<br />

Com efeito, Eco e Piglia, na busca por uma teoria-síntese de um leitor ideal, atento às pistas<br />

deixa<strong>da</strong>s pelo autor, entendido como o deus ex machina, cunham as categorias de leitormodelo<br />

e leitor-detetive.<br />

Com base nestas categorias, pode-se inferir que, se há um leitor ideal, este será<br />

produzido, em grande parte, pelo próprio texto. É a obra literária que produz seus leitores, que<br />

os prevê, afinal: “todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte<br />

de seu trabalho” (ECO, 2004, p.09). O texto literário é um organismo vivo, constantemente<br />

passível de ter seus sentidos atualizados pela participação ativa e coerente do leitor “escrever<br />

é construir, através do texto, seu próprio modelo de leitor” (ECO, 1985, p.). Esta possibili<strong>da</strong>de<br />

de trabalho em conjunto só é possível graças à abertura interpretativa do texto, aos seus<br />

interstícios potenciais, o que poderíamos nomear de sentidos latentes. Iser, ao seu modo,<br />

preferiu chamá-los de lugares vazios:<br />

Os lugares vazios indicam que não há a necessi<strong>da</strong>de de complemento, mas<br />

sim a necessi<strong>da</strong>de de combinação. Pois só quando os esquemas do texto são<br />

relacionados entre si, o objeto imaginário começa a se formar; esta operação<br />

deve ser realiza<strong>da</strong> pelo leitor e possui nos lugares vazios um importante<br />

estímulo. (ISER, 1999, p. 126).<br />

Para Eco, o leitor ideal de um texto, ou ain<strong>da</strong> o leitor implícito, virtual, pode ser<br />

compreendido como um: “conjunto de instruções textuais, apresenta<strong>da</strong>s pela manifestação<br />

linear do texto” (ECO, 2004, p.22). Assim, como já havia destacado Iser em seus estudos<br />

sobre a Estética <strong>da</strong> Recepção, cabe ao leitor a tarefa de explicitar o que não está na superfície<br />

<strong>da</strong> linguagem literária:<br />

[...] o sentido do texto deve ser reunido pelo leitor, e o sentido se torna<br />

sentido dependendo <strong>da</strong> precisão que o leitor alcança no ato de leitura.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Portanto, os leitores são seletivos no que se refere à reunião de sentido e tal<br />

seletivi<strong>da</strong>de constitui uma necessi<strong>da</strong>de inerente à possibili<strong>da</strong>de do<br />

fechamento (ISER apud ROCHA, 1999, p.06).<br />

Este papel que cabe ao leitor assemelha-se, simbolicamente, ao de um detetive que<br />

percorre inversamente o caminho trilhado pelo assassino, neste caso, o escritor “Uma <strong>da</strong>s<br />

maiores representações modernas <strong>da</strong> figura do leitor é a do detetive privado [...] do gênero<br />

policial” (PIGLIA, 2006, p.74). O argumento criminal, próprio ao gênero policial, funciona<br />

como uma alegoria profícua para as relações entre leitor e texto. Nesse sentido, para Piglia, o<br />

gênero policial é: “o grande gênero moderno [...] Hoje encaramos o mundo com base nesse<br />

gênero, hoje vemos a reali<strong>da</strong>de sob a forma do crime [...] o enigma como centro secreto <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong>de, como um aleph cego” (PIGLIA, 2004, p.57-8, grifo do autor).<br />

A menção indireta a Borges não é fortuita, já que tanto para Piglia, quanto para Eco,<br />

conforme demonstram suas fortunas críticas, a influência do bruxo portenho é marcante.<br />

Borges foi ele mesmo um grande ficcionista policial, como provam seus contos, os quais, ao<br />

mesmo tempo, podem ser lidos como ensaios sobre o papel do leitor.<br />

Aquí tenemos otra tradición del cuento policial: el hecho de un misterio<br />

descubierto por obra de la inteligencia, por una operación intelectual. Este<br />

hecho está ejecutado por un hombre muy inteligente que se llama Dupin,<br />

que se llamará después Sherlock Holmes, que se llamará más tarde Padre<br />

Brown, que tendrá otros nombres, otros nombres famosos sin du<strong>da</strong>. El<br />

primero de todos ellos, el modelo, el arquetipo podemos decir, es el<br />

caballero Charles Auguste Dupin. (BORGES, 1969, p.72)<br />

Ao inspirar-se no detetive de Poe, Borges cria um discurso policial metapoético que<br />

inspirará, mais tarde, Eco e Piglia na criação de seus modelos de leitor ideal. Seus<br />

personagens, dessa forma, configuram-se em representações de papel do que se espera do<br />

leitor de carne e osso, pois são, em sua essência, leitores do mundo, decifradores de uma<br />

reali<strong>da</strong>de sempre cifra<strong>da</strong> para o olhar do ci<strong>da</strong>dão ingênuo “To<strong>da</strong>s as histórias do mundo são<br />

teci<strong>da</strong>s com a trama de nossa própria vi<strong>da</strong>. Remotas, obscuras, são mundos paralelos,<br />

laboratórios onde se experimenta com as paixões pessoais” (PIGLIA, 2004, p.104).<br />

A estratégia de Piglia, em particular, na confecção de seus textos, está centra<strong>da</strong>, em<br />

grande medi<strong>da</strong>, na figura do jornalista e escritor neófito Emilio Renzi, seu alterego e, também,<br />

um leitor-detetive exemplar. Renzi percorre as obras de Piglia cumprindo a função de nos<br />

conduzir, nós, seus leitores, espectadores de suas “investigações”. Renzi é o duplo de Piglia,<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

mas também é nosso duplo, como um Virgílio pós-moderno a nos orientar pelos labirintos<br />

textuais de Piglia.<br />

Emilio Renzi se presenta posicionado en el universo intelectual, su foco será<br />

el de una mira<strong>da</strong> reflexiva, atento a las experiencias pero distante, con una<br />

postura analítica. Será testigo, observador o partícipe hasta ocupar el<br />

espacio definido y reservado por su creador que es el lugar de quien tiene la<br />

propie<strong>da</strong>d, el monopolio del relato. (GONZÁLEZ, 2002)<br />

Renzi vai se tornando ao longo <strong>da</strong> poética de Piglia uma instância à parte dentro <strong>da</strong><br />

trama narrativa. Ele não tem o tempo todo o controle do relato, mas a focalização emana dele,<br />

mesmo quando não é ele quem narra.<br />

No caso de Eco, permanece a estratégia <strong>da</strong> inserção de um fio narrador que nos<br />

orienta (ou desorienta), mas não emoldurado por um personagem único. Assim,<br />

diversamente ao inescapável Renzi, Eco vai construindo personagens que mu<strong>da</strong>m a ca<strong>da</strong><br />

romance: de Adso de Melk, em O nome <strong>da</strong> rosa, para os três amigos do Pêndulo de Foucault;<br />

de Baudolino, protagonista do romance homônimo a Simone Simonini, personagem principal<br />

do mais recente.<br />

Entre eles e os demais, o elo narratológico consiste em que suas aventuras e<br />

desventuras servem como fios de Ariadne a nos livrarem <strong>da</strong>s armadilhas do mise en abyme. É<br />

bastante singular a análise que Eco faz <strong>da</strong>s estratégias narrativas de Poe em A narrativa de<br />

Arthur Gordon Pym. Nela, mostra a seus leitores como Poe aprisiona o leitor incauto em sua<br />

teia:<br />

Os leitores estariam corretos se começassem a suspeitar que o autor empírico<br />

era Poe, o qual inventou uma pessoa real fictícia, o Sr. X, que fala de uma<br />

falsa pessoa real, o Sr. Pym, que por sua vez atua como o narrador de uma<br />

história de ficção. A única coisa embaraçosa é que essas pessoas fictícias<br />

falam do Sr. Poe real como se ele fosse um habitante de seu universo<br />

fictício. (ECO, 2004, p.26)<br />

A esta estratégia de Poe, Eco chamará de “truque catóptrico”, isto é, referindo-se ao<br />

conceito <strong>da</strong> Física que trata <strong>da</strong> reflexão <strong>da</strong> luz que tende a ampliar a imagem do objeto<br />

refletido, ou seja, literariamente falando, um sortilégio narrativo que procura criar efeitos<br />

distorcidos na imaginação do leitor de forma a desviar-lhe a atenção do foco do discurso.<br />

Nesse caso, interessa compreender que o leitor preparado não deve cair na armadilha destes<br />

truques para não correr o risco de perder de vista os diferentes níveis de fabulação do texto e,<br />

portanto, a origem de seus diferentes efeitos e os sentidos resultantes destes.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Assim como ocorre com Piglia e o próprio Poe, os ensaios de Eco espelham muito<br />

suas posições literárias, como não poderia deixar de ser “escritos teóricos e textos literários<br />

mesclam-se de maneira perpétua no interior do que é a re<strong>da</strong>ção e uma mesma e única obra”<br />

(SCHIFFER, 2000, p.25).<br />

Os ensaios de Piglia e Eco apontam para o interesse em suas poéticas de pensar o<br />

papel do leitor na construção do tecido literário. Seja o leitor-modelo de Eco ou o leitordetetive<br />

de Piglia, em quaisquer dos casos se estabelece uma relação de cooperação entre<br />

escritor e leitor, vistos como autori<strong>da</strong>des reguladoras dos sentidos do texto.<br />

Admite-se comumente que ler é decodificar: letras, palavras, sentidos e<br />

estruturas, e isso é incontestável; mas acumulando as decodificações, já que<br />

a leitura é, de direito infinita, tirando a trava do sentido, pondo a leitura em<br />

ro<strong>da</strong> livre (o que é sua vocação estrutural), o leitor é tomado por uma<br />

intervenção dialética: finalmente ele não decodifica, ele sobrecodifica; não<br />

decifra, produz, amontoa linguagens, deixa-se infinita e incansavelmente<br />

atravessar por elas: ele é essa travessia. (BARTHES, 1988, p. 41, grifo do<br />

autor).<br />

Nos romances em questão, Blanco Nocturno e O cemitério de Praga, verifica-se a<br />

relevância <strong>da</strong> figura do leitor implícito, imerso em cama<strong>da</strong>s discursivas de caráter<br />

metanarrativo. Embora lançando mão de diferentes escolhas estilísticas, os textos de Eco e<br />

Piglia refletem suas incursões ensaísticas pelas teorias <strong>da</strong> Estética <strong>da</strong> Recepção, em busca de<br />

um leitor ideal com uma insônia ideal.<br />

DIÁLOGO POLICIALESCO ENTRE ECO E PIGLIA<br />

O gênero policial tem se mostrado desde seu nascedouro, no século XIX, como um<br />

fértil território para autores de varia<strong>da</strong>s tendências estilísticas e ideologias políticas. Em<br />

comum entre o romance de enigmas, forma primária deste gênero (ALBUQUERQUE, 1979),<br />

e suas variações já nos séculos XX e XXI, tais como o noir, o suspense, o psicológico e as<br />

formas contemporâneas, há a presença inescapável de um nível de significação extratextual,<br />

cuja leitura se faz intrínseca à trama narrativa. Seguindo esta linha de raciocínio,<br />

compreender-se-á que o leitor está infiltrado na trama novelesca e nela estará inevitavelmente<br />

implicado, como uma espécie de cúmplice não do detetive ou do criminoso, mas do autor.<br />

Na narrativa <strong>da</strong>s três últimas déca<strong>da</strong>s, de viés pós-moderno, o leitor tende a se<br />

metamorfosear em um grande decifrador de signos, poéticos e não-poéticos, afinal, desde<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Dupin, o leitor não lê apenas as palavras dos jornais, lê também aquilo que está nas<br />

entrelinhas. Contudo, à diferença do que acontecia em Poe e outros clássicos, o leitor pósmoderno<br />

é convi<strong>da</strong>do pelos escritores contemporâneos a trilharem juntamente com ele as<br />

várias instâncias <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de interna <strong>da</strong> ficção. Essas instâncias são os diferentes relatos,<br />

vozes discursivas, que compõem o espaço ficcional e o tornam um simulacro do tempo<br />

histórico. O leitor passa a ser, no policial contemporâneo, a peça de articulação não mais<br />

apenas entre a ficção e a reali<strong>da</strong>de social, mas entre os vários níveis discursivos que<br />

configuram o texto ficcional: “[...] um texto é feito de escrituras múltiplas, oriun<strong>da</strong>s de várias<br />

culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há<br />

um lugar onde essa multiplici<strong>da</strong>de se reúne, e esse lugar não é o autor, como se disse até o<br />

presente, é o leitor” (BARTHES, 2004, p.70).<br />

Tanto em O cemitério de Praga quanto em Blanco Nocturno estão presentes relatos<br />

históricos extraídos com a pinça estilística do autor e arquitetados no plano poético com as<br />

filigranas <strong>da</strong> tessitura metafórica. Com efeito, é fácil perceber esse desfile de vozes históricas<br />

no texto de Eco, a tal ponto que o próprio romance registra, em um posfácio autodidático,<br />

que: “O único personagem inventado nesta história é o protagonista, Simoni Simonini [...]<br />

Todos os outros personagens existiram realmente, e fizeram e disseram as coisas que fazem e<br />

dizem neste romance” (ECO, 2011, p.473).<br />

Obviamente cabe neste capítulo a consideração de que se trata de uma instância<br />

desorientadora para o leitor mais desavisado, estratégia metanarrativa que para o leitor atento<br />

e calejado já ressoa no título irônico: “Inúteis esclarecimentos eruditos”. Contudo, é possível<br />

detectar rostos, discursos e eventos que são de proveniência histórica e, apesar do tratamento<br />

estético, mantêm um forte vínculo com as tintas mais exigentes de Clio. Assim, Garibaldi e a<br />

sua revolução e o oficial Dreyfuss e seus perseguidores soam bastante verossímeis, pois suas<br />

falas e ações estão cerca<strong>da</strong>s de eventos extraídos dos relatos historiográficos, afinal, reflete o<br />

protagonista com boa dose de ironia e cinismo: “As pessoas só creem naquilo que sabem”<br />

(ECO, 2011, p.90).<br />

A narrativa está contamina<strong>da</strong> desde o começo pela perspectiva falsificadora de<br />

Simonini, um aprendiz de tabelião que se torna, de fato, um falsificador de textos e, mais<br />

tarde, de discursos. Mas mesmo o camaleônico protagonista não pode fugir às contingências<br />

do tempo histórico. Ele falseia um mundo que existe, subverte-o, distorce-o, mas não o<br />

inventa totalmente. Sua pena corre sobre as águas <strong>da</strong> história, mergulha em suas profundezas<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

e sai delas revivifica<strong>da</strong> pela imaginação criadora que é característica <strong>da</strong> metaficção<br />

historiográfica.<br />

Quando a certa altura <strong>da</strong> narrativa Simonini declara ser: “melhor não possuir nenhum<br />

segredo, mas aparentar possuí-los” (ECO, 2011, p.310), temos aí a piscadela de Eco a nos<br />

apontar para a natureza perigosa dos discursos, sobretudo pelo fato de que: “A principal<br />

característica <strong>da</strong>s pessoas é que elas se dispõem a acreditar em tudo” (ECO, 2011, p.315). O<br />

principal argumento do romance está posto, isto é, os muitos complôs <strong>da</strong> história que foram<br />

sendo alimentados de interesses na<strong>da</strong> afeitos à veraci<strong>da</strong>de. Os Protocolos dos Sábios de Sião<br />

seriam um bom exemplo, cuja suprema ironia sai <strong>da</strong>s mãos do próprio Simonini: é ele o<br />

responsável no romance pela criação deste documento que instigou ao longo dos tempos,<br />

conforme registros historiográficos, turbas de antissemitas. Inspirado pelo romance de Dumas,<br />

Joseph Balsamo, escritor que para Simonini: “era de fato um profundo conhecedor do espírito<br />

humano” (ECO, 2011, p.89), eis que o protagonista começa a formular o que seria seu grande<br />

texto, uma espécie de Forma Universal do Complô:<br />

Sempre conheci pessoas que temiam o complô de algum inimigo oculto – os<br />

judeus para vovô, os maçons para os jesuítas, os jesuítas para meu pai<br />

garibaldino, os carbonários para os reis de meia Europa [...] - e, pronto,<br />

quem sabe quanta gente existe por aí que pensa estar ameaça<strong>da</strong> por uma<br />

conspiração... Aí está uma forma a preencher à vontade, a ca<strong>da</strong> um o seu<br />

complô. (ECO, 2011, p.89).<br />

A construção deste documento pelas mãos do personagem de papel, e a consequente<br />

“tentação de vender uma ficção como reali<strong>da</strong>de” (ECO, 2011, p.245), pode ser vista como um<br />

gesto simbólico de como a literatura infiltra-se nas malhas <strong>da</strong>s letras históricas. Sua<br />

contraparti<strong>da</strong> espacial será o “cemitério” emplacado no título do romance. Assim, se o<br />

documento funciona como uma metáfora dos grandes documentos que se forjam com<br />

imaginação, ignorância e preconceito de to<strong>da</strong>s as classes, o cemitério é o espaço cênico por<br />

excelência onde, na imaginação do protagonista, se <strong>da</strong>riam os encontros <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de secreta,<br />

“governo oculto do mundo” (ECO, 2011, p.366), que teria construído o documento.<br />

Nesse espaço para o qual a imaginação do personagem sempre retorna como uma<br />

folha de papel à espera <strong>da</strong> construção ficcional, muitos autores são evocados como modelos<br />

inspiradores: “Dumas, Sue, Joly, Toussenel” (ECO, 2011, p.221). E à medi<strong>da</strong> que mu<strong>da</strong> a<br />

fonte pagadora e o interesse do contratante de Simonini, este a<strong>da</strong>pta o texto ao ódio a ser<br />

contemplado: jesuítas, judeus, católicos, maçons, comunistas. No espaço do cemitério cabem<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

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to<strong>da</strong>s as teorias conspiratórias, como na Abulafia em O Pêndulo de Foucault. Nesse passo,<br />

Simonini aproxima-se, então, à composição de sua obra prima, os “protocolos múltiplos”<br />

(ECO, 2011, p.371), uma espécie de grande manual do ódio, afinal, segundo o narrador: “É<br />

necessário um inimigo para <strong>da</strong>r ao povo uma esperança. [...] o senso de identi<strong>da</strong>de se baseia<br />

no ódio, no ódio por quem não é idêntico. É preciso cultivar o ódio como paixão civil. O<br />

inimigo é amigo dos povos. [...] O ódio aquece o coração” (ECO, 2011, p.370).<br />

É possível, dessa forma, entender a leitura histórica e política que Eco nos lega,<br />

leitores modelos, isto é, ironicamente, nas palavras do narrador: “rezemos sempre para que<br />

haja um judeu a temer e a odiar” (ECO, 2011, p.370). O ódio tão fértil para os bolsos do<br />

espião e falsificador Simonini é o motor de eventos históricos, de discursos religiosos, de<br />

guerras e ideologias que movimentaram e ain<strong>da</strong> impulsionam a humani<strong>da</strong>de em sua trajetória<br />

destruidora contra si mesma. Apesar do di<strong>da</strong>tismo de algumas passagens, <strong>da</strong>s excessivas<br />

descrições (aonde nos levam to<strong>da</strong>s as receitas desfia<strong>da</strong>s ao longo do romance) e <strong>da</strong><br />

superficiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong>s inúmeras personagens, é improvável não <strong>da</strong>rmos crédito à<br />

inteligência de Eco, e sobretudo, à profun<strong>da</strong> ironia amarga <strong>da</strong> qual emana todo o texto.<br />

Em Blanco Nocturno, o reconhecimento <strong>da</strong> história não se faz de forma tão explícita,<br />

mas o trabalho com o gênero policial se mantém. Assim, na superfície do enredo, o foco recai<br />

sobre a investigação <strong>da</strong> morte do porto-riquenho Tony Durán, possivelmente assassinado,<br />

segundo depreende-se do relato. Entretanto, a história <strong>da</strong> família Belladona, diretamente<br />

implica<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong> (e na morte) <strong>da</strong> vítima, pode também ser vista como a trajetória de famílias<br />

derroca<strong>da</strong>s no interior <strong>da</strong> Argentina: “La historia política argentina se movia a ras de tierra,<br />

mientras los acontecimientos pasaban por arriba como una ban<strong>da</strong><strong>da</strong> de golondrinas que<br />

emigran en invierno, y los habitantes del pueblo representaban y repetían sin saberlo viejas<br />

historias” (PIGLIA, 2011, p.189).<br />

Com efeito, se o cemitério no romance de Eco é o espaço por excelência do enigma,<br />

no romance de Piglia ele será o <strong>da</strong> fábrica, construção decadente na qual se isola Luca<br />

Belladona, primogênito de uma aristocrática família de terratenentes falidos. A fábrica não é<br />

apenas um edifício misterioso, quase fantasmagórico, é também a quintessência <strong>da</strong> decadência<br />

interiorana, reveladora <strong>da</strong> crise capitalista que atinge o terceiro mundo. Luca resume <strong>da</strong><br />

seguinte forma a fórmula <strong>da</strong> rapina: “Los bancos te sacan el paraguas cuando llueve”<br />

(PIGLIA, 2011, p.101).<br />

Pouco a pouco, a trama que havia iniciado com o processo de investigação do<br />

assassinato, cruza-se com uma espécie de segun<strong>da</strong> trama paralela, simultânea, que trata <strong>da</strong><br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

vi<strong>da</strong> de Luca Belladona. Unindo estas duas narrativas, encontram-se o jornalista Renzi e o<br />

delegado Croce, desmembramentos <strong>da</strong> figura do detetive em duas facetas: o clássico, racional,<br />

no caso deste segundo, e o compilador de relatos, de versões, que acaba se envolvendo com os<br />

investigados, no tocante ao primeiro.<br />

Croce, assim, parece realmente remeter ao seu xará filosófico, Benedetto Croce, e<br />

representaria, deste modo, uma instância arquetípica do detetive, algo próximo <strong>da</strong> ideia de um<br />

supradetetive. Não é em vão que rastreamos em sua focalização ecos de outros personagens<br />

literários detetivescos: “Soy un dinosaurio, un sobreviviente, pensaba. Treviranus, Leoni,<br />

Laurenzi, Croce, a veces se juntaban en La Plata y se ponían a recor<strong>da</strong>r los viejos tiempos.<br />

[…] Iba a resolver otro caso al viejo estilo” (PIGLIA, 2011, p.96).<br />

Já Renzi prefere a tarefa de transitar pelos diferentes depoimentos, mas sem o<br />

purismo dedutivo de Croce. De alguma forma, pode-se afirmar que a macroestrutura do<br />

romance são as anotações do jornalista Renzi transcodifica<strong>da</strong>s por um narrador extradiegético.<br />

O personagem aparece sem aviso prévio ou introdução ao final do capítulo três, em um<br />

destacado fragmento em itálico que claramente marca divisões narrativas constantes ao longo<br />

do romance. Em princípio, estes relatos em itálico, assim como as notas de ro<strong>da</strong>pé, parecem<br />

textos deslocados, subrelatos. Entretanto, ambos funcionam, a exemplo dos dois personagens<br />

investigadores, Croce e Renzi, como elo entre as várias cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s narrativas que acabam<br />

por perfazer os dois níveis macronarrativos mencionados: o do assassinato de Duran e o <strong>da</strong><br />

história <strong>da</strong> crise econômica <strong>da</strong> família Belladona:<br />

Abor<strong>da</strong><strong>da</strong> desde distintas voces: La de un narrador omnisciente, la de<br />

algunos personajes que en su declaración de los hechos se apropian del<br />

relato, y la de Emilio Renzi […], la obra parece en ocasiones tomar de<br />

pretexto y marco el relato del crimen para contar una historia más antigua y<br />

oscura, la historia del campo y su desarrollo económico […] (ARTEAGA,<br />

2011, p.64).<br />

Com base no trecho citado, fica patente a construção polifônica do texto, gesto de<br />

fragmentação discursiva que denuncia a poética pigliana. A presente obra de Piglia é um<br />

arquitetado e ousado projeto que se erige no instável terreno do pós-moderno e, se não<br />

bastasse, do espinhoso gênero policial, a um só tempo. Há uma passagem do romance que nos<br />

conduz a uma chave simbólica de sua pretensão:<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

La historia sigue, puede seguir, hay varias conjeturas posibles, que<strong>da</strong><br />

abierta, sólo se interrumpe. La investigación no tiene fin, no puede terminar.<br />

Habría que inventar un nuevo género policial, la ficción paranoica. Todos<br />

son sospechosos, todos se sienten perseguidos. El criminal ya no es un<br />

individuo aislado, sino una gavilla que tiene el poder absoluto. (PIGLIA,<br />

2011, p.284).<br />

Esta reflexão nos chega pela voz de Renzi, para quem todo relato permanece<br />

inevitavelmente em suspenso, <strong>da</strong><strong>da</strong> a complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s múltiplas perspectivas que compõem<br />

a história e a fragili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele que se dispõe a ordená-las. Sua ponderação se encaixa na<br />

lógica centrípeta que provoca uma abertura do romance e que culmina na não-resolução do<br />

assassinato. Não há a dissolução do enigma, do crime, mas sim a sobreprojeção de eventos<br />

sobre a lente investigativa do leitor, a quem resta solucionar de forma solitária a trama<br />

romanesca. Ou, caso prefira, pode optar, como Croce o fez em sua cena de despedi<strong>da</strong>:<br />

“sentarse, pesa<strong>da</strong>mente, y se inclino sobre sus notas y sus diagramas, abstraído, como<br />

ausente” (PIGLIA, 2011, p.284).<br />

À GUISA DE CONCLUSÃO<br />

Talvez seja ain<strong>da</strong> precipitado (ou demasiado arriscado) fazer uma avaliação dos dois<br />

romances em questão, afinal, ambos são propostas bastante contemporâneas de releituras do<br />

gênero policial, o qual por si só já é um território bastante arenoso. Assim, é possível que as<br />

lentes deste nosso momento histórico se alterem com a perspectiva do tempo e tal<br />

distanciamento se reflita na recepção futura <strong>da</strong>s obras.<br />

Por outro lado, é tarefa instigante enfrentar as indeterminações do presente e<br />

construir uma crítica que se faz no calor dos fatos, corroborando, deste modo, a opinião do<br />

professor Flávio Carneiro, segundo o qual o texto e seu intérprete são seres vivos e, portanto,<br />

mutáveis: “Nem o texto vai estar à disposição do crítico, como um animal morto a ser<br />

dissecado em laboratório, nem o crítico vai estar usando luvas estereliza<strong>da</strong>s (sic) ao tocar seu<br />

objeto. O crítico é, antes de mais na<strong>da</strong>, um leitor. E o leitor é sempre parcial” (CARNEIRO,<br />

2012, p.03).<br />

Diante deste desafio, parece, de fato, positiva a abor<strong>da</strong>gem crítico-valorativa dos<br />

romances em pauta. Depreende-se <strong>da</strong> leitura cruza<strong>da</strong> de ambos que, embora um e outro sejam<br />

propostas de atualização do gênero policial no terreno <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong>de, Blanco<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Nocturno afasta-se do tom jocoso e lúdico predominante em O cemitério de Praga na medi<strong>da</strong><br />

em que se reveste de uma tessitura articula<strong>da</strong> em torno de múltiplos relatos.<br />

Em outras palavras, o romance de Eco convi<strong>da</strong> o leitor a um passeio pela história do<br />

século XIX, desfi(l)ando complôs, socie<strong>da</strong>des secretas (e outras não mais tão secretas), ritos,<br />

acordos políticos. Este imenso painel histórico, contudo, soará provavelmente ao leitor mais<br />

exigente um enfadonho exercício culto de gnosiologia. A ca<strong>da</strong> novo capítulo, os incontáveis<br />

personagens e tramas históricos aparecem e desaparecem sem que nos envolvamos com suas<br />

trajetórias pessoais, pois parecem estar ali apenas como índices de reconhecimento do<br />

passado. A máscara ficcional que os cobre não os torna humanos, necessariamente, mas sim<br />

peças de um jogo que leva inevitavelmente ao esperado desfecho: Simonini e Dalla Piccola<br />

são um só.<br />

No mais, a perspectiva de que documentos e socie<strong>da</strong>des são forjados com boas doses<br />

de imaginação e ignorância, como é o caso dos Protocolos dos Sábios de Sião, não representa<br />

nenhuma novi<strong>da</strong>de para quem já leu O Pêndulo de Foucault (1989). Além disso, até mesmo<br />

os risos são escassos durante a leitura, o que torna menos saborosa a aventura de suas quase<br />

quinhentas páginas. As prolixas descrições de pratos, lugares e situações históricas, como em<br />

uma didática entra<strong>da</strong> de enciclopédia, poderia ceder lugar a discussões mais interessantes<br />

entre os personagens ou participações mais inspirados do narrador heterodiegético.<br />

Uma <strong>da</strong>s conclusões menos gentis a que poderíamos chegar é a de que Eco encantouse<br />

com o mercado e os eventos <strong>da</strong>s mega-livrarias e teria se entregado ao mecanismo<br />

vendável dos best-sellers. A mais nobre, é de que o autor estaria brincando com alguns<br />

conceitos paradigmáticos <strong>da</strong> literatura: de polícia e ladrão, com o leitor de primeiro nível,<br />

teoricamente ávido por conhecer o destino do protagonista; de esconde-esconde com o leitor<br />

de segundo nível, alimentado pela busca de marcas intertextuais, ironias retira<strong>da</strong>s de lições<br />

históricas, mensagens metatextuais implícitas.<br />

No caso de Piglia, reforça-se o viés do mise en abyme que sustenta a sua poética<br />

desde o primeiro romance. Se no autor italiano as versões <strong>da</strong> história proliferam, no texto do<br />

argentino destaca-se a profusão de vozes, de diferentes perspectivas de relatos. Blanco<br />

Nocturno é um romance certamente mais cerebral em termos narrativos e estilísticos e, por<br />

isso mesmo, mais desafiador para o leitor detetivesco. Há desde o início muito mais em jogo<br />

do que um assassinato: estamos diante de um mistério de muitas vi<strong>da</strong>s entrelaça<strong>da</strong>s, mistérios<br />

plurais que não são facilmente devassáveis pelos próprios personagens, pelos narradores<br />

múltiplos, muito menos por nós os invasores deste cenário poliédrico.<br />

140


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Este último romance de Piglia não contém os desafios de Respiración artificial<br />

(1980) e La ciu<strong>da</strong>d ausente (1992), peças literárias mais complexas e agu<strong>da</strong>s em sua<br />

elaboração. Tampouco carrega a vertiginosa verve de Plata Quema<strong>da</strong> (1997), que nos lança a<br />

um só tempo ao encontro e de encontro aos seus personagens e à enovela<strong>da</strong> trama. Mas ain<strong>da</strong><br />

assim se percebe a mesma filigrana irrequieta e problematizadora nos diálogos, nos<br />

comentários dos narradores. O romance perde um pouco de vigor e originali<strong>da</strong>de, mas<br />

mantém viva a estetização narratológica, misturando em uma mesma massa amorfa tempo<br />

histórico e tempo ficcional.<br />

À reboque <strong>da</strong>s idiossincráticas leituras do gênero policial realiza<strong>da</strong>s pelos dois<br />

romances, o leitor crítico transitará entre duas formas bastante diferentes de recepção, e sairá<br />

deste périplo com mais amargura ou mais doçura, a depender <strong>da</strong>s lentes que estiver usando,<br />

mas certamente não escapará ileso dessa experiência.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

ARTEAGA, Alejandro. “Una ficción paranoica: notas sobre Blanco Nocturno, de Ricardo<br />

Piglia”, In: Casa del tiempo. Universi<strong>da</strong>d Autónoma Metropolitana. Junho de 2011, p.63-66.<br />

Disponível em:<br />

. Acesso em: 25 maio 2012.<br />

BARTHES, R. O rumor <strong>da</strong> língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.<br />

BORGES, Jorge Luis. Elogio de la sombra. Buenos Aires: Emecé, 1996.<br />

CARNEIRO, Flávio. Crítica & ficção no Brasil: o risco do presente. Disponível em:<br />

.<br />

Acesso em: 21 maio 2012.<br />

ECO, Umberto. O cemitério de Praga. Trad. Joana Angélica D'Ávila Melo. Rio de Janeiro:<br />

Record, 2011.<br />

______. Pós-escrito a O nome <strong>da</strong> Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.<br />

______. Seis passeios pelos bosques <strong>da</strong> ficção. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia<br />

<strong>da</strong>s Letras, 2004.<br />

GONZÁLEZ, Susana Inés. “Piglia y Renzi: el autor y un personaje de ficción”, In: Anais do<br />

II Congresso Brasileiro de Hispanistas. São Paulo, Outubro de 2002. Disponível em:<br />

. Acesso em: 05 maio 2012.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

ISER, Wolfgang. O ato <strong>da</strong> leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução: Johannes<br />

Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1999.<br />

PIGLIA, Ricardo. Blanco Nocturno. Barcelona: Anagrama, 2010.<br />

______. Formas breves. Trad. De José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia<br />

<strong>da</strong>s Letras, 2004.<br />

ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Teoria <strong>da</strong> ficção: in<strong>da</strong>gações à obra de Wolfgang Iser.<br />

Trad. Bluma Waddington Vilar e João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: EdUERJ,<br />

1999.<br />

SCHIFFER, D. S. Umberto Eco – O labirinto do mundo. Rio de Janeiro: Ed.Globo, 2000.<br />

142


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Narrativa hibri<strong>da</strong>: o policial e o histórico em relatos de Maria Rosa Lojo<br />

FRANCO, Gabriele (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong> - IC - FAPESP)<br />

PANDOLFI, Maira Angélica (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Este artigo tem como objetivo apresentar a narrativa histórica policial de Maria<br />

Rosa Lojo por meio de uma análise do conto “Doña Felisa y los caballeros de la noche”,<br />

presente no livro de contos Historias ocultas en la Recoleta. Esta leitura está fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong><br />

nos elementos apresentados por Todorov e que formam a base <strong>da</strong> estrutura do gênero policial,<br />

além <strong>da</strong>s contribuições teóricas de Hutcheon, Aínsa e Esteves sobre a metaficção<br />

historiográfica. A narrativa sobre a vi<strong>da</strong> de personagens célebres e anônimas <strong>da</strong> história<br />

argentina é o elemento principal que Maria Rosa Lojo trabalha em seu relato e que permite<br />

que a autora nos apresente sempre um ponto de vista inovador do passado sem esquecer o<br />

presente. O conjunto de textos que formam a obra Historias ocultas en la Recoleta surge a<br />

partir <strong>da</strong> investigação histórica de Roberto L. Elissalde. O conto apresentado baseia-se na<br />

história do sequestro do cadáver <strong>da</strong> senhora Inés In<strong>da</strong>rt de Dorrego (1800-1881), ocorrido em<br />

agosto de 1881. Tomando-se por base esse episódio, Maria Rosa Lojo constrói uma ficção<br />

policial que propõe uma leitura crítica <strong>da</strong> história social argentina ilumina<strong>da</strong> por uma<br />

metafísica que desconstrói os maniqueísmos e confere voz aos marginalizados, além de<br />

dialogar com a tradição literária policial, reorganizando seus elementos de uma forma<br />

inovadora.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Narrativa Histórica Policial; Maria Rosa Lojo; Literatura Argentina.<br />

RESUMEN: Este artículo tiene el objetivo de presentar el relato histórico policial de María<br />

Rosa Lojo por medio de un análisis del cuento “Doña Felisa y los caballeros de la noche”, que<br />

forma parte del conjunto de cuentos de la obra Historias ocultas en la Recoleta. En esta<br />

lectura se ha llevado en cuenta los elementos que según Todorov están en la estructura del<br />

género policial, además de los aportes teóricos de Hutcheon, Aínsa e Esteves sobre la<br />

metaficción historiográfica. El relato histórico sobre la vi<strong>da</strong> de personajes célebres y<br />

anónimas de la historia argentina es el elemento clave con el que trabaja María Rosa Lojo en<br />

su ficción que logra presentarnos siempre un punto de vista novedoso del pasado sin olvi<strong>da</strong>r<br />

el presente. El conjunto de textos que forman la obra Historias ocultas en la Recoleta tiene<br />

como punto de parti<strong>da</strong> la investigación histórica lleva<strong>da</strong> a cabo por el historiador Roberto L.<br />

Elissalde. El cuento rescata la historia del secuestro del cadáver de doña Inés In<strong>da</strong>rt de<br />

Dorrego (1800-1881), hecho que tuvo lugar en agosto de 1881. Basándose en ese episodio,<br />

Maria Rosa Lojo construye un relato policial que plantea una lectura crítica de la historia<br />

social argentina ilumina<strong>da</strong> por una metafísica que desconstruye los maniqueismos y confiere<br />

voz a los marginalizados, además de dialogar con la tradición literaria policial, reemplazando<br />

sus seus elementos de una forma novedosa.<br />

PALABRAS-CLAVE: Relato Histórico Policial; Maria Rosa Lojo; Literatura Argentina.<br />

Ao tratar <strong>da</strong> estrutura narrativa do romance policial e normas que regem o gênero,<br />

sobretudo o clássico romance de enigma, Tzvetan Todorov (1970) apresenta, em linhas gerais,<br />

143


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

oito aspectos que constituem o seu alicerce. Esses aspectos podem ser identificados pelo leitor<br />

no conto “Felisa y los caballeros de la noche”, <strong>da</strong> escritora argentina Maria Rosa Lojo<br />

(2007), cujo relato pode ser caracterizado como conto histórico policial, vertente bastante<br />

explora<strong>da</strong> nos gêneros híbridos <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. Dentre os aspectos assinalados por Todorov<br />

e que estão presentes no conto de Lojo ressaltamos: a presença de um detetive que ganha<br />

imuni<strong>da</strong>de (o mordomo Evaristo); um criminoso que goza de certa importância social (o<br />

jovem belga Alfonso Kerchowen de Peñara<strong>da</strong>, chefe do bando “Caballeros de la noche”);<br />

ausência de elementos fantásticos e de relações afetivas.<br />

É importante destacar que na<strong>da</strong> parece mais propício ao gênero policial do que a<br />

narrativa histórica ou metaficção historiográfica. De acordo com Hutcheon (1991, p.141),<br />

tanto a ficção como a história podem ser vistas como “construtos linguísticos”.Um dos<br />

célebres autores de romance negro policial, Raymond Chandler (1992, p.41) registrou suas<br />

recomen<strong>da</strong>ções aos que porventura se arriscassem no gênero e enfocou a questão <strong>da</strong><br />

verossimilhança do relato. Para ele, essa narrativa deve ser realista no tocante às personagens,<br />

ambientação e atmosfera. Quanto à composição <strong>da</strong>s personagens, assinala três métodos mais<br />

comuns: o método subjetivo, ou seja, aquele em que o narrador se insere nos pensamentos e<br />

nas emoções <strong>da</strong> personagem; o método objetivo ou dramático, que fala por meio <strong>da</strong>s condutas<br />

<strong>da</strong>s personagens, de sua linguagem e ações; e o método histórico, concebido como<br />

documental e menos emotivo.<br />

O conto de Maria Rosa Lojo está fun<strong>da</strong>mentado em um episódio, historicamente<br />

documentado, que povoa o imaginário portenho sobre um dos lugares no qual se encontram<br />

enterrados os principais protagonistas que contribuíram para assentar as bases <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong><br />

nacionali<strong>da</strong>de argentina: o Cemitério <strong>da</strong> Recoleta em Buenos Aires. Este episódio ocorreu em<br />

agosto de 1881 e se refere ao sequestro do cadáver <strong>da</strong> senhora Inés In<strong>da</strong>rt de Dorrego (1800-<br />

1881). Esta nobre senhora era irmã de Manuel Dorrego, governador constitucional de Buenos<br />

Aires que morreu fuzilado por seu adversário Juan de Lavalle em 1829. Documentos<br />

recolhidos pelo historiador Roberto L. Elissalde atestam que Felisa, filha de Inés e sobrinha<br />

de Manuel Dorrego, teria recebido uma carta de chantagistas que sequestraram o cadáver de<br />

sua mãe e que assinavam com o pseudônimo de “Caballeros de la Noche”.<br />

No Posfácio <strong>da</strong> obra de Maria Rosa Lojo (2007, p.315), a autora menciona que a<br />

história conta o sequestro e o intento de chantagem dessa quadrilha capitanea<strong>da</strong> por um belga<br />

conhecido como Alfonso Kerchowen de Peñara<strong>da</strong>.<br />

144


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Tomando-se como base o relato histórico desse episódio, a escritora argentina recria<br />

uma ficção que, dentro de uma moldura digna <strong>da</strong>s narrativas policias, confronta o chantagista<br />

e sua vítima num franco diálogo revelador. É nesse momento peculiar <strong>da</strong> narrativa que<br />

podemos visualizar uma <strong>da</strong>s características aponta<strong>da</strong>s por Aínsa (apud ESTEVES, 2010,<br />

p.36), ou seja, a de que a narrativa histórica “visa suprir as deficiências <strong>da</strong> historiografia<br />

tradicional, conservadora e preconceituosa, <strong>da</strong>ndo voz a todos os que foram negados,<br />

silenciados ou perseguidos”, já que Maria Rosa Lojo, por meio de sua criação literária<br />

histórica policial, concede voz e direito de defesa ao “vilão”.<br />

Com elementos <strong>da</strong> literatura clássica de enigma, Maria Rosa Lojo suprime a história<br />

do crime e enfoca a segun<strong>da</strong> história, a do inquérito. Chama-nos a atenção no conto que a<br />

personagem que age como um ver<strong>da</strong>deiro “Dupin” de Poe é o mordomo que, por meio de<br />

deduções lógicas, desven<strong>da</strong> o crime como se desven<strong>da</strong> uma “chara<strong>da</strong>”. Assim, após avivar a<br />

memória de todos descrevendo o pesado caixão de madeira que necessitou de oito homens<br />

para carregá-lo, o mordomo responde em tom quase sarcástico, parecendo rir <strong>da</strong> ingenui<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s filhas <strong>da</strong> nobre defunta: “-¿Y ustedes creen, mis señoras, que semejante ataúd pudo ser<br />

sacado sin dificultad por encima de los muros del cementerio ¿O que pasó por la puerta sin<br />

ser advertido por el sereno, que podrá ser algo tonto, pero que no es sordo, ni ciego”<br />

(LOJO, 2007, p.186). Seu “Dupin” mordomo configura um deslocamento com relação a um<br />

dos grandes clichês do gênero policial que consiste na receita do mordomo como culpado.<br />

A propósito, vale lembrar a referência a esse clichê em um ensaio de José Paulo Paes<br />

(1990) cujo título é “Por uma literatura brasileira de entretenimento (ou: o mordomo não é o<br />

único culpado)”. Nesse ensaio, Paes defende o ponto de vista de que a literatura conheci<strong>da</strong><br />

como “entretenimento” não se alimenta apenas de “clichês”, apesar de buscar soluções menos<br />

artificiosas para o seu leitor, mas também se constrói em diferentes níveis segundo o grau de<br />

problematização que apresenta. É justamente nesse grau de problematização que a “literatura<br />

de entretenimento” pode chegar a ser considera<strong>da</strong> como uma “literatura de proposta”, visto<br />

que esta última exigiria do leitor maior esforço de interpretação, deslocando-o dos “lugares<br />

comuns” para alargar a sua compreensão <strong>da</strong>s coisas do mundo e estimular-lhe a facul<strong>da</strong>de<br />

crítica.<br />

Em virtude <strong>da</strong>s facili<strong>da</strong>des ofereci<strong>da</strong>s pela literatura de entretenimento, mais<br />

preocupa<strong>da</strong> com o pitoresco, o sentimental, o emocionante ou divertido, Paes (1990, p.35)<br />

enquadra o romance policial no âmbito dessa literatura ao aludir ao “clássico crime de<br />

mistério cujo culpado é sempre o mordomo”. Essa premissa é considera<strong>da</strong> por muitos leitores<br />

145


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

como um “lugar comum” no romance policial e amplamente difundi<strong>da</strong> por Agatha Christie.<br />

Há, contudo, que repensar essa questão visto que Christie parece nunca ter feito de um<br />

mordomo o ver<strong>da</strong>deiro assassino em suas narrativas. Em uma de suas obras mais conheci<strong>da</strong>s e<br />

que também ganhou versão cinematográfica, O caso dos dez negrinhos, o mordomo é, como<br />

todos os personagens <strong>da</strong> ilha, considerado um assassino, mas ele não é o assassino nesse livro.<br />

Em outras obras de Christie, o assassino se disfarça de mordomo.<br />

Para Todorov (1970, p.96), a narrativa de enigma tende a uma arquitetura<br />

geométrica, assim como ocorre em Assassinato no Expresso do Oriente, de Agatha Christie,<br />

que trabalha um lento aprendizado desde a descoberta do crime até a revelação do culpado,<br />

analisando todos os indícios com uma estrutura numérica fixa<strong>da</strong> no número doze, já que<br />

contempla doze faca<strong>da</strong>s, doze personagens suspeitas e doze interrogatórios. O conto de Maria<br />

Rosa Lojo alude a essa popular narrativa policial de Christie, visto que em ambas há uma<br />

perseguição ao criminoso no interior de um trem. Além disso, a inserção do criminoso belga<br />

na narrativa argentina se contrapõe ao famoso detetive belga de Agatha Christie, Hercule<br />

Poirot.<br />

No conto em análise, não se visualiza uma estrutura geométrica composta como um<br />

grande quebra-cabeça como costuma ocorrer nos romances de Agatha, mas uma estrutura que<br />

se organiza arquitetonicamente em duplos, como um jogo de espelhos. Em razão disso, temos<br />

as irmãs Felisa e Teresa, que além de portarem nomes foneticamente semelhantes também<br />

compartilham uma personali<strong>da</strong>de de índole racionalista, ao passo que a outra irmã de Felisa e<br />

Teresa, Mag<strong>da</strong>lena, cujo nome é foneticamente semelhante ao <strong>da</strong> cria<strong>da</strong> francesa Madeleine,<br />

compartilha com esta uma personali<strong>da</strong>de de índole emotiva: “Doña Teresa, que es<br />

racionalista, ve con muy buenos ojos la participación de Evaristo. Doña Mag<strong>da</strong>lena no es<br />

racionalista en absoluto, pero la presencia de Evaristo, aunque le cae muy antipático por su<br />

frial<strong>da</strong>d y aparente desapego, la tranqüiliza” (LOJO, 2007, p.184).<br />

Há na narrativa de Maria Rosa Lojo um jogo de antinomias que contrapõem distintas<br />

personali<strong>da</strong>des. É o caso também do contraponto que o narrador estabelece entre o advogado<br />

de Felisa, o doutor Juárez, e o bon vivant Peñara<strong>da</strong> quando o primeiro se mostra indignado<br />

com o nome romântico <strong>da</strong> quadrilha de chantagistas chefia<strong>da</strong> pelo belga que, na ver<strong>da</strong>de,<br />

pertence a uma família abasta<strong>da</strong>: “Como todos los hombres que se han hecho a sí mismos y a<br />

su mediana fortuna a lo largo de varias déca<strong>da</strong>s laboriosas, el doctor Juarez odia a los<br />

improvisados y reniega de las locas ambiciones, quizá con un cierto resentimiento<br />

melancólico (LOJO, 2007, p. 185) Estratégia semelhante ocorre na construção <strong>da</strong><br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

protagonista e seu antagonista, ao confrontar a orgulhosa personali<strong>da</strong>de de Felisa, cuja honra<br />

está acima de tudo e de todos, com o cinismo e o descaramento do belga Peñara<strong>da</strong>.<br />

A propósito do que nos apontou Chandler (1992) sobre o método documental <strong>da</strong>s<br />

narrativas policiais, é válido assinalar a verossimilhança que a personali<strong>da</strong>de de Felisa<br />

“fictícia” estabelece com a Felisa dos relatos documentais.<br />

No Posfácio de Maria Rosa Lojo em Historias ocultas en la Recoleta (2007, p.315) a<br />

autora menciona que Felisa, mulher de caráter, mandou fechar para sempre as janelas de seu<br />

palácio que ficavam enfrente à praça cujas autori<strong>da</strong>des deram o nome do assassino de seu tio.<br />

Esse foi um acontecimento real, mas o encontro entre ela e o chantagista nunca saberemos se<br />

ocorreu um dia, ain<strong>da</strong> que, de acordo com o que atestam os documentos históricos sobre o<br />

temperamento de Felisa, esse acontecimento fosse perfeitamente verossímil e, por isso,<br />

imaginado e descrito por Maria Rosa Lojo em sua narrativa histórica policial.<br />

No conto, portanto, sua construção parece seguir essa mesma linha verossímil de sua<br />

psicologia real quando somos apresentados a uma Felisa que se dispõe a enfrentar “cara a<br />

cara” o chantagista Peñara<strong>da</strong> para, em grande estilo, ou seja, simulando uma “conversa entre<br />

cavalheiros”, desferir-lhe golpes verborrágicos com base em sua moral burguesa de nobre<br />

senhora ultraja<strong>da</strong>, tal como atesta o seu fiel criado, o mordomo Evaristo, quando Felisa lhe<br />

pergunta, ao final, o que ele tinha achado de sua conversa franca com Peñara<strong>da</strong> e à qual<br />

contesta: “Que no le falta chispa en las frasecitas” (LOJO, 2007, p.196).<br />

O conto em questão, assim como os demais contos <strong>da</strong> Recoleta, está construído com<br />

base em antagonismos que marcam o imaginário romântico <strong>da</strong>s bases <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de<br />

argentina do século XIX, representados tanto pelas personali<strong>da</strong>des históricas célebres quanto<br />

anônimas que povoam as histórias e o espaço mítico onde habitam. Este espaço é apresentado<br />

como metonímia <strong>da</strong> história <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de argentina: o cemitério <strong>da</strong> Recoleta.<br />

Apesar dessa representação que não escapa aos maniqueísmos típicos dos relatos do<br />

século XIX, a metaficção histórica de Maria Rosa Lojo consiste, paradoxalmente, em sua<br />

desconstrução na medi<strong>da</strong> em que os apresenta mediante a forma de espelhamento, ou seja,<br />

“frente a frente” e não “lado a lado”.<br />

Em outras palavras, podemos dizer que seu método de apresentação <strong>da</strong>s personagens<br />

consiste em deslocá-los do centro e <strong>da</strong>r-lhes a oportuni<strong>da</strong>de de vivenciar a experiência de<br />

serem, ao mesmo tempo, anjo e demônio, réu e vítima, vilão e mocinho.<br />

Esse intento se comprova desde o início do conto, com o auxílio <strong>da</strong> epígrafe, que traz<br />

uma citação bíblica: “Hay vani<strong>da</strong>d que se hace sobre la tierra: que hay justos a quienes<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

sucede como se hicieran obras de ímpios, y hay ímpios a quienes acontece como si hicieran<br />

obras de justos. Digo que esto también es vani<strong>da</strong>d”. (Eclesiastes, 8:14 apud LOJO,<br />

2007:177). Por meio do jogo ou inversão de significados realizados com os termos “justos” e<br />

“ímpios”, a autora indica a inversão de valores no conto.<br />

A protagonista, que inicialmente é uma senhora frágil, a “justa” <strong>da</strong>ma <strong>da</strong> alta<br />

socie<strong>da</strong>de que aparece nos jornais pelas obras de cari<strong>da</strong>de que realiza, revela-se uma mulher<br />

burguesa preocupa<strong>da</strong> com sua imagem perante a socie<strong>da</strong>de. Aquilo que dona Felisa não diz é<br />

o que revela seus ver<strong>da</strong>deiros sentimentos e intenções, pois em momento algum lamenta e<br />

preocupa-se com o roubo do corpo <strong>da</strong> mãe, mas com a repercussão que isso pode ocasionar.<br />

Já o jovem Alfonso Kerchoew de Peñara<strong>da</strong>, que inicialmente parece como um<br />

“ímpio” ou marginal aos olhos do leitor, age como uma espécie de justiceiro, pois vive <strong>da</strong><br />

vai<strong>da</strong>de burguesa por meio de suas chantagens e estelionatos, uma vez que não tem uma<br />

imagem social para proteger e não se incomo<strong>da</strong> em relação a isso.<br />

Acima de tudo isso está a vai<strong>da</strong>de, obstina<strong>da</strong>mente combati<strong>da</strong> no livro Eclesiastes,<br />

cujo discurso sagrado encontra-se profanado na voz do “suposto” ladrão de cadáveres que<br />

sequer pode ser condenado porque sua façanha de ter mu<strong>da</strong>do o caixão de lugar para enganar<br />

a família de Felisa ain<strong>da</strong> não estava prevista no Código de Leis <strong>da</strong> época como crime.<br />

Ao dizer “Ya se verá que algún día, cuando todos seamos un montoncito de huesos,<br />

alguien volverá a contar esta historia” (LOJO, 2007:196), Peñara<strong>da</strong> reconcilia-se com sua<br />

antagonista e dialoga com o intertexto bíblico. Sabe-se que o livro Eclesiastes revela uma<br />

perspectiva duvidosa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> após a morte e, por isso, sua mensagem volta-se para a<br />

experiência terrena do homem temente a Deus. Este homem deve, segundo o texto bíblico, ter<br />

a virtude <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de, pois somente esta é capaz de modificar a severi<strong>da</strong>de de seus atos. Assim,<br />

uma leitura mais ampla do intertexto nos adverte sobre a necessi<strong>da</strong>de do homem sensato<br />

ponderar sobre seus julgamentos, visto que a vi<strong>da</strong> é feita de simulacros e mesmo ao homem<br />

mais sábio não lhe é <strong>da</strong>do o dom <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de absoluta, prevalecendo, sempre, o mistério sobre<br />

as coisas.<br />

Nesse sentido, o conto não deixa de ser uma paródia intertextual pós-moderna que<br />

Maria Rosa Lojo estabelece com o enfoque racionalista característico <strong>da</strong> tradição do gênero<br />

policial com o qual dialoga a todo o momento. Todos os contos de Historias Ocultas en la<br />

Recoleta fazem referência ao cemitério, porém este o utiliza, especialmente, como espaço<br />

central do conto. Os personagens se deslocam até ele, como é o caso do mordomo Evaristo, de<br />

alguns familiares, dos policiais e dos Cavalheiros <strong>da</strong> Noite.<br />

148


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Utilizar um lugar que existe em nosso universo define a fixação realista do conto,<br />

sustentado pela descrição e utilização de outros elementos e detalhes reais como, por<br />

exemplo, o túmulo de Don Francisco Requijo, onde se encontrava escondido o caixão de<br />

Dona Inês. Mesmo assim, há sempre um mistério a ser desven<strong>da</strong>do em razão <strong>da</strong> visão<br />

metafísica ilumina<strong>da</strong> pela intertextuali<strong>da</strong>de bíblica que a autora confere a este conto,<br />

provocando fissuras na tradição racionalista do gênero policial.<br />

A respeito do conjunto <strong>da</strong> obra de Maria Rosa Lojo, os críticos têm apontado as mais<br />

diversas facetas que a tornam uma literatura para ser li<strong>da</strong> em diferentes níveis. Mesmo assim,<br />

quando estabelece a intertextuali<strong>da</strong>de com o gênero policial, tradicionalmente considerado<br />

como uma literatura de entretenimento, Maria Rosa Lojo nos apresenta uma “literatura de<br />

proposta”, tal como define José Paulo Paes, deslocando o leitor mais “acomo<strong>da</strong>do” de sua<br />

zona de conforto para aplicar uma estratégia que, segundo Esteves (2011, p.63), está presente<br />

em to<strong>da</strong> a obra <strong>da</strong> autora, ou seja, “a inversão do ponto de vista”. As epígrafes bíblicas que<br />

acompanham a maioria dos contos presentes em Historias ocultas en la Recoleta assinalam o<br />

questionamento <strong>da</strong> condição humana e sua imutabili<strong>da</strong>de através do tempo, contribuindo para<br />

a armação fictícia que nos oferece novas perspectivas de revisitar o passado conturbado e<br />

traumático <strong>da</strong> história de guerras pela independência que marcaram a formação <strong>da</strong> nação<br />

argentina no século XIX, além de oferecerem uma releitura dessa história, enterra<strong>da</strong> na<br />

memória coletiva dos argentinos, sob um ponto de vista mais humanizado.<br />

O jogo de espelhos revelado pela trama permite que a orgulhosa Doña Felisa se<br />

reconheça em seu antagonista já que foi por meio do infortúnio que este lhe causara que ela<br />

conseguiu enxergar-se a si mesma e deparar-se com seu maior defeito: a vai<strong>da</strong>de. Esta, por<br />

sua vez, é enfaticamente combati<strong>da</strong> no livro Eclesiastes que ilumina a epígrafe do conto. Este<br />

intento de compreensão de si mesmo e <strong>da</strong> história <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de argentina do século XIX é<br />

apontado no prólogo <strong>da</strong> obra utilizando-se de uma imagem que marca uma visão<br />

apaziguadora, ou seja, a do grande intelectual e político Domingo Faustino Sarmiento que em<br />

uma primavera de 1885, no “dia dos mortos”, visita o túmulo de seu maior antagonista, Juan<br />

Facundo Quiroga, não mais para julgá-lo, “[...] sino más bien comprenderlo. Se reconoce a si<br />

mismo en el otro, con quien incluso ha emparentado por enlaces familiares [...]” (LOJO,<br />

2007, p.27). Ironia ou não do destino, Maria Rosa Lojo alude a um acontecimento real e<br />

surpreendente, ou seja, o de que esses famosos antagonistas <strong>da</strong> história argentina pertencem a<br />

um mesmo tronco familiar. Em outras palavras, a autora se refere ao fato de que Baltasar de<br />

Quiroga y Lemos casou-se com a senhora Luciana de Mallea. Eles foram pais de Rodrigo de<br />

149


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Quiroga y Mallea (que tem entre seus descendentes a figura de Juan Facundo Quiroga) e<br />

também de Jacinto de Quiroga y Mallea (tataravô de Domingo Faustino Sarmiento). É,<br />

portanto, com esse espírito compreensivo que Maria Rosa Lojo manipula to<strong>da</strong>s as tramas<br />

desse emblemático livro sobre as histórias ocultas sob as tumbas <strong>da</strong> Recoleta.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

AÍNSA, F. La nueva novela latinoamericana. In: ESTEVES, A. R. O romance histórico<br />

brasileiro contemporâneo (1975-2000). São Paulo: Editora <strong>UNESP</strong>, 2010, p.36.<br />

CHANDLER, R. Verosimilitud y género. In: LINK, D. (org.) El juego de los cautos. La<br />

literatura policial: de Poe al Caso Giubileo. Buenos Aires: La Marca, 1992, p.41-45.<br />

ESTEVES, A. R. O romance histórico brasileiro contemporâneo (1975-2000). São Paulo:<br />

Editora <strong>UNESP</strong>, 2010.<br />

______. Outras caras do poder: uma leitura de “Amar a um hombre feo”, de María Rosa Lojo.<br />

In: CARLOS, A. M.; RAPUCCI, C. A. (Orgs.) Cultura e representação: ensaios. <strong>Assis</strong>:<br />

Triunfal, 2011, p.49-64.<br />

HUTCHEON, L. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria, ficção. Tradução de Ricardo<br />

Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.<br />

LOJO, M. R. Doña Felisa y los Caballeros de la Noche. Historias ocultas en la Recoleta. 2<br />

ed. Buenos Aires: Alfaguara, 2007.<br />

PAES, J. P. Por uma literatura brasileira (ou: O mordomo não é o culpado). In: A aventura<br />

literária – ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1990, p.25-38.<br />

TODOROV, T. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1970.<br />

150


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A narrativa detetivesca em Assassinato em Gosford Park, de Robert Altman<br />

GROSSI, Solange (FFLCH/ USP)<br />

RESUMO: Ambientado na Inglaterra do período entre-guerras (mais precisamente em<br />

novembro de 1932) o filme Assassinato em Gosford Park, apesar de seu sugestivo título, e de<br />

certas convenções narrativas adota<strong>da</strong>s, não é uma história de detetives no sentido tradicional<br />

do termo. Nesta comunicação, pretendemos apontar os elementos dos quais o diretor norteamericano<br />

Robert Altman se apropriou para realizar uma paródia do gênero detetivesco – seja<br />

à la Conan Doyle ou Agatha Christie. Aqui, como nas narrativas detetivescas, a ordem social<br />

se vê ameaça<strong>da</strong>, mas não pelo ato homici<strong>da</strong>. Apontando para o aspecto altamente ideológico<br />

do preceito-clichê “o mordomo é o culpado”, o filme nos permite desven<strong>da</strong>r – mais do que um<br />

mero assassinato – as relações conflituosas e profun<strong>da</strong>mente desiguais entre duas classes<br />

sociais historicamente antagônicas. Ao nos mostrar os “bastidores” do luxo, Altman permite<br />

ao espectador estabelecer certas relações entre a aparente polidez <strong>da</strong> “alta cultura” e a barbárie<br />

que é a base do sistema de produção capitalista – barbárie esta que se explicitaria ain<strong>da</strong> mais e<br />

teria seu auge não muito tempo depois, no que viria a ser o maior combate internacional até<br />

então: a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial. O assassinato – seja ele individual ou em massa – vem à<br />

tona quando há falha no processo “civilizador”, de sublimação dos impulsos agressivos; esses<br />

impulsos passam a não serem mais inibidos por meio de ativi<strong>da</strong>des produtivas. Em certos<br />

momentos históricos isso ocorre em maior escala do que em outros.<br />

PALAVRAS-CHAVE: assassinato; luta de classes; sublimação<br />

ABSTRACT: Set in the inter-war period England (in November 1932, to be more precise)<br />

the film Gosford Park – in spite of its suggestive title when translated into Portuguese, and<br />

despite the adoption of certain narrative conventions – is not a detective story in the<br />

traditional sense of the term. In this paper, we intend to point out the elements which North-<br />

American director Robert Altman has used in order to produce a parody of detective fiction,<br />

be it à la Conan Doyle or Agatha Christie. In Altman’s film, as in detective stories, the social<br />

order finds itself threatened, but not because of the homici<strong>da</strong>l act. By pointing out to the<br />

highly ideological aspect of the “the butler did it” cliché, the movie allows us to discover –<br />

more than the mere author of the crime – the conflictuous and deeply unequal relationships<br />

between two historically antagonic social classes. By showing us the “backstage”of luxury,<br />

Altman allows the spectator to establish certain relationships between the apparent politeness<br />

of “high culture” and the barbarism that is the very basis of the capitalist system of production<br />

– such barbarism would become even more explicit and would reach its zenith not much later<br />

on, in what would come to be the largest international combat up until that time: World War<br />

II. Murder – be it individual or en masse – resurfaces when the “civilizatory” process fails,<br />

when the sublimation of aggressive impulses fails to happen; such impulses are no longer<br />

inhibited by productive activities. At certain moments in History this occurs in a larger scale<br />

than at others.<br />

KEYWORDS: muder; social struggle; sublimation<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

É significativo que o título do filme do diretor Robert Altman em português<br />

(Assassinato em Gosford Park), ao contrário do original (Gosford Park), não enfatize a<br />

proprie<strong>da</strong>de, o local em que a narrativa se desenrola, e sim outro aspecto: o assassinato.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, isso não parece completamente descabido. As entrevistas concedi<strong>da</strong>s<br />

pelo produtor Bob Balaban e pelo próprio Altman acerca <strong>da</strong> gênese do filme corroborariam, a<br />

princípio, a ênfase no assassinato. Nas entrevistas, ambos declaram a intenção inicial de<br />

realizar um filme no estilo “Whodunit” (“Quem matou”). Numa delas Altman declarou:<br />

“Falei para o Bob Balaban: ‘Nunca fiz um mistério de assassinato, sabe Um quem-matou<br />

numa grande casa, um mistério tipo Agatha Christie. Gostaria de me embrenhar nesse gênero<br />

se pudéssemos achar algo’” (THOMPSON, 2006, p.195). Acreditamos que o fator<br />

preponderante na escolha do título em português seja mesmo uma questão de estratégia de<br />

marketing adota<strong>da</strong> pela indústria cinematográfica; afinal, a tagline de divulgação mundial do<br />

filme era: “Chá às quatro. Jantar às oito. Assassinato à meia-noite”.<br />

A história de detetive é um gênero relativamente recente, surgido com a vi<strong>da</strong> urbana<br />

moderna. Segundo o crítico britânico Raymond Williams (1990), “o detetive começa a<br />

emergir como figura significativa e ratificadora: o homem capaz de orientar-se em meio à<br />

neblina, capaz de penetrar os labirintos <strong>da</strong>s ruas. A complexi<strong>da</strong>de opaca <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> urbana<br />

moderna é representa<strong>da</strong> pelo crime” (WILLIAMS, 1990, p.306).<br />

A populari<strong>da</strong>de deste gênero pode ser explica<strong>da</strong> (além <strong>da</strong> questão mercadológica,<br />

obviamente) por certos fatores intrínsecos e extrínsecos a ele. De acordo com Ernest Mandel<br />

(1984), a história de detetive clássica (do período entre-guerras) segue as convenções<br />

aristotélicas do drama, ou seja, procura obedecer determina<strong>da</strong>s regras, tais como uni<strong>da</strong>de de<br />

tempo, de espaço e de ação, e engloba um número pequeno de personagens – sendo que todos<br />

eles normalmente se encontram presentes na cena do crime (todos se tornam suspeitos), e ali<br />

devem permanecer até o final. Além disso, o assassinato geralmente ocorre no início <strong>da</strong><br />

narrativa, ou até num período precedente, e o criminoso é um único indivíduo, cuja motivação<br />

é pessoal (amor, ódio, herança a ser recebi<strong>da</strong>...). Neste tipo de narrativa, o crime não é<br />

retratado enquanto tal: a violência homici<strong>da</strong> não tem o papel de estimular indignação ou<br />

sentimento de vingança no leitor/espectador; o delito é reificado, visto como um quebracabeças<br />

a ser resolvido, mistério a ser desvelado, em suma, um mero problema analítico, e<br />

não social. Há, portanto, uma espécie de “batalha” analítica trava<strong>da</strong> simultaneamente em dois<br />

níveis: entre detetive e criminoso, e entre o autor e o leitor <strong>da</strong> história. Apesar <strong>da</strong>s “pistas”, o<br />

leitor, ao contrário do detetive, nunca deve conseguir desven<strong>da</strong>r o caso, pois este tipo de<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

narrativa, amarra<strong>da</strong> aos princípios dramáticos, deve se desenvolver de modo a criar suspense,<br />

deve gerar tensão e, ao final, ter uma solução surpreendente e catártica. O final, com raras<br />

exceções, é feliz, sempre: o detetive desven<strong>da</strong> o caso, captura o criminoso e o entrega às<br />

autori<strong>da</strong>des competentes para ser devi<strong>da</strong>mente julgado e punido. A justiça é feita, a ordem é<br />

restaura<strong>da</strong> e a proprie<strong>da</strong>de em questão é devi<strong>da</strong>mente salvaguar<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

Inicialmente o palco <strong>da</strong> história de detetive eram as ruas metropolitanas que, segundo<br />

Raymond Williams, adquiriram com o passar do tempo uma atmosfera romântica:<br />

A Londres de Conan Doyle adquiriu, com o tempo, uma atmosfera que<br />

desperta em alguns leitores sentimentos de nostalgia [...]: a neblina, os<br />

lampiões de gás, os fiacres, os moleques de rua e, passando por tudo isso,<br />

aquela mente aguça<strong>da</strong> e excêntrica, aquela inteligência [...] capaz de<br />

desemaranhar a complexi<strong>da</strong>de, determinar agentes locais e em segui<strong>da</strong><br />

entregar a questão à justiça” (WILLIAMS, 1990, p.306-307).<br />

Para conformar-se mais às regras dramáticas, o gênero passou a ter como cenário<br />

predileto justamente a mansão senhorial inglesa, como é o caso em Gosford Park:<br />

O ver<strong>da</strong>deiro destino <strong>da</strong> mansão senhorial foi transformar-se na história de<br />

detetive pequeno-burguesa. Foi justamente por ser uma abstração e, ao<br />

mesmo tempo, uma sobrevivente superficialmente importante do passado<br />

que a mansão senhorial pôde ser transforma<strong>da</strong> no lugar onde era reunido e<br />

isolado um grupo de pessoas cujas relações imediatas e transitórias podiam<br />

ser decifra<strong>da</strong>s através de um método abstrato de detecção, sem necessi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> análise plena e encadea<strong>da</strong> de uma forma de compreensão mais geral [...].<br />

A mansão senhorial era mesmo o cenário adequado para uma opaci<strong>da</strong>de que<br />

pode ser penetra<strong>da</strong> numa dimensão única: to<strong>da</strong>s as questões concretas de<br />

relacionamentos sociais e pessoais são deixa<strong>da</strong>s de lado, a não ser por sua<br />

capaci<strong>da</strong>de de instigar uma decifração instrumental [...]. A mansão senhorial,<br />

no século XX, possui esta quali<strong>da</strong>de de disponibili<strong>da</strong>de abstrata e indiferença<br />

de função [...]. Essas casas podem ser centros de um poder isolado, de<br />

suborno ou intriga, ou dos chamados “símbolos de status” – isto é, as<br />

abstrações – do sucesso, do poder e do dinheiro adquiridos em outro lugar,<br />

que, de modo conveniente, não são enfocados (WILLIAMS, 1990, p.336).<br />

Esta mu<strong>da</strong>nça de cenário (<strong>da</strong>s ruas para a mansão senhorial), segundo Mandel,<br />

ocorreu no período entre-guerras (déca<strong>da</strong> de 20/30) e é decorrente do sentimento nostálgico<br />

surgido após a I Guerra Mundial. Para o crítico, o fim <strong>da</strong> estabili<strong>da</strong>de, a destruição em massa<br />

<strong>da</strong> guerra, as revoluções (sobretudo a <strong>da</strong> Rússia) e crises econômicas que se seguiram<br />

abalaram a “joie de vivre” e a crença num futuro de “progresso” – a guerra havia terminado,<br />

mas a estabili<strong>da</strong>de não retornou. Por isso, através do cenário <strong>da</strong> mansão senhorial <strong>da</strong>s histórias<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

de detetive, “the good life of antebellum <strong>da</strong>ys was relived – in imagination if not in reality”<br />

(MANDEL, 1984, p. 30).<br />

Outra razão aponta<strong>da</strong> para justificar a populari<strong>da</strong>de do gênero detetivesco é a<br />

escapista – a necessi<strong>da</strong>de de distrações/passatempos como antídoto contra a tensão e contra a<br />

monotonia <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> numa socie<strong>da</strong>de competitiva e estan<strong>da</strong>rdiza<strong>da</strong>. Mas Mandel considera o<br />

escapismo uma explicação incompleta, e aponta ain<strong>da</strong> duas outras justificativas para a<br />

populari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele tipo de narrativa: a sublimação <strong>da</strong> agressivi<strong>da</strong>de gera<strong>da</strong> pela civilização<br />

burguesa e o fetiche <strong>da</strong> produção de mercadorias. Karl Marx afirma n’O Capital:<br />

O valor transforma ca<strong>da</strong> produto de trabalho em um hieróglifo social. Mais<br />

tarde, os homens tentam decifrar o sentido do hieróglifo, chegar ao segredo<br />

de seu próprio produto social [...]. O que interessa na prática a quem troca<br />

produtos é a questão de quantos produtos estranhos ele vai adquirir com seu<br />

próprio produto, ou seja, em quais proporções os produtos se trocam [...]. O<br />

caráter de valor dos produtos de trabalho só se firma com sua efetuação<br />

como grandezas de valor. Estas últimas mu<strong>da</strong>m constantemente,<br />

independente <strong>da</strong> vontade, <strong>da</strong> previsão e do agir dos permutadores. Seu<br />

movimento social próprio possui para eles a forma de um movimento de<br />

coisas, sob cujo controle eles estão, em vez de o controlar [...]. [Porém] Todo<br />

o misticismo do mundo <strong>da</strong>s mercadorias, to<strong>da</strong> a magia e o fantasmagórico<br />

que enevoam os produtos do trabalho sobre a base <strong>da</strong> produção de<br />

mercadorias [...] desaparece prontamente assim que nos refugiamos em<br />

outras formas de produção” (MARX, apud GRESPAN, 2006, p. 72-73 e 75).<br />

Em Gosford Park, o assassinato não acontece no início <strong>da</strong> narrativa, e sim<br />

tardiamente (pouco depois <strong>da</strong> metade do filme). Só por esta razão já não poderíamos<br />

considerá-lo uma história de detetive, pois o crime não é o mote principal, não é o que<br />

desencadeia to<strong>da</strong> a “ação”, e muito menos cria tensão no espectador. A câmera focaliza, em<br />

planos de detalhe, garrafas de veneno diversas vezes, como “dica” do que vai ocorrer.<br />

Também há bastante ênfase no (cômico) tiro de raspão na orelha de Sir William McCordle<br />

durante a caça<strong>da</strong>; no copo de bloody mary violentamente quebrado durante o almoço pós-caça<br />

(que sugere, quase literalmente, derramamento de sangue); e na faca de prata desapareci<strong>da</strong>, o<br />

que prenuncia igualmente o homicídio – de modo que, quando este de fato acontece, não há<br />

surpresa alguma. Com exceção do grito de Lady Louisa (que descobre o cadáver na<br />

biblioteca), e o desmaio de Lady Lavinia (o qual, entretanto, podemos inferir ter sido causado<br />

mais pela suspeita dela de que o marido, Commander Anthony Meredith, tenha sido o<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

responsável pelo crime), as personagens reagem com desdém geral. A “surpresa” provém, na<br />

ver<strong>da</strong>de, do fato de Sir William ter sido “assassinado duas vezes”.<br />

O inspetor Thompson, encarregado de investigar o caso, é desenvolvido enquanto<br />

personagem cômico-paródica: o clichê começa desde o trench-coat que veste e o cachimbo<br />

que fuma, até o fato de que ele não tem interesse em interrogar os empregados <strong>da</strong> casa, “only<br />

people with a real connection to the dead man” (os únicos empregados interrogados - sem<br />

quaisquer resultados palpáveis para a investigação, diga-se – o foram por determinação de<br />

Lady Sylvia, e não pela iniciativa do detetive encarregado do caso); o inspetor é tão<br />

incompetente que sequer consegue se apresentar às pessoas (é interrompido to<strong>da</strong>s as vezes<br />

que está prestes a falar seu nome). Tampouco parece conhecer os procedimentos de detecção:<br />

interroga uma emprega<strong>da</strong> na presença de sua patroa (ignorando o fato de que caso ela tivesse<br />

conhecimento – como de fato tinha – a respeito de alguma informação importante a respeito<br />

<strong>da</strong> pensão vitalícia recebi<strong>da</strong> pela patroa – agora assegura<strong>da</strong> com a morte de Sir William – não<br />

ousaria se pronunciar, sob risco de demissão); toca em copos que ain<strong>da</strong> não foram<br />

examinados para saber se há impressões digitais; e se aborrece com o Constable Dexter<br />

quando este aponta uma passagem secreta na biblioteca onde o crime foi cometido, e traços de<br />

lama e detritos de uma xícara no chão: “Agora não, Dexter!”; “Eles têm pessoas para limpar<br />

essa sujeira, Dexter!”).<br />

As atitudes de dois dos convi<strong>da</strong>dos (Freddie Nesbitt e Coman<strong>da</strong>nte Meredith) que,<br />

durante a apresentação musical de Ivor Novello, se ausentam <strong>da</strong> sala por alguns minutos e a<br />

ela retornam com ar suspeito, sem justificar tal ausência (quando questionados por suas<br />

esposas, respondem: “Não te interessa” e “Está tudo bem, está tudo bem”, respectivamente,<br />

em tom irritado e ressabiado/ansioso) nos levam a crer que talvez um deles (ou ambos) tenha<br />

praticado o crime – Lord Stockbridge havia acusado Meredith pelo tiro “acidental” que<br />

atingiu Sir William durante a caça, e sabíamos <strong>da</strong> situação financeira desesperadora tanto de<br />

Meredith (ameaçado pela retira<strong>da</strong> de investimento de Sir William no negócio de provimento<br />

de botas para o exército su<strong>da</strong>nês) quanto de Nesbitt (que, ao se ver desempregado, passara,<br />

sem sucesso, a chantagear Isobel para que ela pressionasse o pai a conseguir-lhe um<br />

emprego).<br />

Ao mesmo tempo, observamos, ain<strong>da</strong> durante a performance de Novello, Robert<br />

Parks aproveitando-se <strong>da</strong> distração de Mary para sair <strong>da</strong> sala de bilhar sorrateiramente, em<br />

atitude suspeita (como justificativa plausível para sua ausência, retorna momentos depois,<br />

com duas bolsas d’água quente); George, o footman, sai <strong>da</strong> sala com o pretexto de abastecer o<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

bule com leite. Vemos, ain<strong>da</strong>, a Sra. Wilson adentrando a biblioteca com uma xícara de café,<br />

sendo que Sir William na<strong>da</strong> havia solicitado (ela, como “perfect servant”, não ousaria<br />

interromper seu patrão).<br />

Apesar de o expectador via de regra chegar à conclusão de que, antes que Parks<br />

executasse o próprio pai (o que acarretaria em pena de morte na Inglaterra <strong>da</strong>quela época), sua<br />

mãe biológica, a Sra. Wilson, utilizando-se de seu poder de observação acurado, de seu “dom<br />

<strong>da</strong> previsão” de “perfeita serviçal”, tivesse se antecipado ao crime e o houvesse cometido com<br />

suas próprias mãos, como uma espécie de sacrifício materno, a câmera de Altman desmente –<br />

ain<strong>da</strong> que de forma parcial – tal conclusão apressa<strong>da</strong> e simplista ao não garantir ao espectador<br />

o que Freddie, George e Meredith fizeram durante o intervalo de suas respectivas ausências.<br />

A câmera errante de Altman, insistindo em focalizar garrafas de veneno, ao mesmo<br />

tempo que parece preparar as expectativas e aumentar o suspense, parece também debochar<br />

dessa convenção do cinema detetivesco, pois: a) como já dissemos, o crime demora<br />

longamente a ocorrer e b) tais incursões pelas garrafas de veneno e objetos cortantes são<br />

esparsos e não levam a lugar algum, no sentido dramático <strong>da</strong> narrativa. São como que “pistas<br />

falsas” ou ironias.<br />

Isso se reforça pela boca de Constable Dexter, quando ele afirma ao mordomo<br />

Jennings que garrafas de veneno foram encontra<strong>da</strong>s em praticamente todos os cômodos <strong>da</strong><br />

casa. Ele sublinhar a convenção <strong>da</strong>s histórias de detetive: “Perhaps the butler did it”. Nessa<br />

frase, existe também a explicitação do aspecto altamente ideológico <strong>da</strong>s histórias de detetive<br />

“clássicas”, que tendenciosamente criminalizam o mordomo, ou seja, alguém pertencente a<br />

uma classe subalterna. Apesar <strong>da</strong> clara falta de motivação econômica (nenhum empregado<br />

lucra com a morte do patrão – alguns até perdem o emprego, pois se não há patrão para quem<br />

trabalhar, não há emprego...), a motivação é mostra<strong>da</strong> como mera rixa pessoal, e não de<br />

classe. O próprio Parks parece ter “comprado” tal ideologia, pois sua ação parece estar<br />

pauta<strong>da</strong> pelo sentido de vingança de cunho pessoal, já dentro <strong>da</strong> lógica <strong>da</strong> indústria cultural.<br />

Neste sentido, o detetive Thompson tem parcialmente razão ao afirmar que deseja<br />

interrogar “apenas aqueles com uma conexão real ao morto”. Afinal, aquela convenção (do<br />

mordomo como assassino) <strong>da</strong>s histórias de detetives não faz sentido, a não ser como<br />

instrumento ideológico, de distorção <strong>da</strong>s relações de classe. Enquanto tal expediente<br />

criminaliza as classes subalternas, vitimiza o falecido e apresenta a classe social do falecido<br />

sob luz favorável. O pensamento implícito é: apesar <strong>da</strong>s tentações e inúmeros motivos em<br />

potencial (eliminação <strong>da</strong> concorrência, maior lucro, garantia de negócios, garantia de herança,<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

garantia de pensão vitalícia...),ninguém <strong>da</strong>quela classe jamais recorre ao assassinato, pois seus<br />

membros são modelos exemplares de ética, justiça, bons modos, educação e cultura. Tal<br />

classe lucra com os desdobramentos do assassinato e ain<strong>da</strong> vê a estrutura social, que em<br />

decorrência dos crimes dos mais abastados, ficaria perigosamente abala<strong>da</strong> – continuar intacta.<br />

Quem faz o “serviço sujo”, mais uma vez, é o “de baixo”, enquanto a aparência de calmaria,<br />

polidez e puro luxo “de cima”, permanece sustenta<strong>da</strong>.<br />

Se o filme nos apresenta a “clássica” situação em que basicamente to<strong>da</strong>s as<br />

personagens teriam motivações para cometer o crime, não segue a tradição <strong>da</strong>s histórias de<br />

detetive no sentido de brin<strong>da</strong>r o espectador (ou leitor, no caso dos romances de detetive) com<br />

a resolução inequívoca do assassinato. Tudo apontaria, a princípio, para o par Sra.<br />

Wilson/Parks, pelos relatos que ambos fazem a Mary; entretanto, não se pode eliminar Nesbitt<br />

ou Meredith, já que o primeiro altera (de maneira suspeita) sua rota (entrevemos Freddie após<br />

sair <strong>da</strong> sala, à meia-luz e pelas folhagens de uma planta, começando a subir as esca<strong>da</strong>s, mas<br />

subitamente mu<strong>da</strong>ndo de ideia e se dirigindo à sua esquer<strong>da</strong>), e a esposa do segundo, ao<br />

descobrir a morte de Sir William, chega a desmaiar, possivelmente devido à conclusão de que<br />

Meredith fora o responsável.<br />

Em compensação, ao espectador de Gosford Park é revela<strong>da</strong>, graças à “<br />

investigação” empreendi<strong>da</strong> por Mary (ou melhor, pela câmera de Altman), não apenas o<br />

segredo do passado <strong>da</strong>queles indivíduos (Sra. Croft, Sra. Wilson, Sir William, Robert Parks e<br />

outros filhos “ilegítimos” de Sir William), mas to<strong>da</strong> uma situação histórica e social, a saber: a<br />

exploração sistêmica <strong>da</strong> classe trabalhadora, inclusive em termos sexuais, e o acobertamento<br />

oficial de tal exploração (expresso pelas frases <strong>da</strong> Sra. Croft: “Reclamar Com quem<br />

exatamente” e de Parks: “They took his babies, and they took his money”).<br />

***<br />

A temátíca dos filmes de Altman é, via de regra, o trabalho, e em Gosford Park não é<br />

diferente. Ao analisar o trabalho (como fez Marx, de forma teórica, n’O Capital), desven<strong>da</strong>-se<br />

o fetiche <strong>da</strong>s relações sociais na socie<strong>da</strong>de capitalista: desmistifica-se o mecanismo<br />

aparentemente equitativo <strong>da</strong>s relações entre proprietários e trabalhadores, mostrando que é, na<br />

ver<strong>da</strong>de, exploratório.<br />

O sistema de classes britânico, a luta entre essas classes e as relações de produção<br />

são a questão central deste filme, e estão mimetiza<strong>da</strong>s na própria divisão <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de dos<br />

McCordle em aposentos “above stairs” (os ambientes <strong>da</strong> casa frequentados pela classe<br />

157


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

dominante) em contraponto aos situados “below stairs” (a área de trabalho dos criados), sendo<br />

que há segregação de ambas as partes. A socie<strong>da</strong>de “luxo” é mostra<strong>da</strong> enquanto “lixo”. Os<br />

empregados domésticos constituem a classe de sustentação (até literal, já que a casa, como<br />

dissemos, é dividi<strong>da</strong> fisicamente entre a área de trabalho, situa<strong>da</strong> na base, e a parte “elegante”,<br />

no an<strong>da</strong>r superior) do sistema econômico ali vigente. O processo produtivo acontece<br />

underground – ou seja, o trabalho de sustentação é invisível – para que, quando emerja na<br />

superfície brilhante (above stairs), não apareça enquanto trabalho nem exploração, e sim<br />

como mero consumo e fruição. O filme enfatiza que a real face do sistema produtivo está nos<br />

“bastidores”, por trás <strong>da</strong> máscara pláci<strong>da</strong> e ostensiva <strong>da</strong>s mercadorias. No filme, o excesso<br />

aristocrata-burguês é criticado nas dimensões <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de, e também no consumo<br />

conspícuo de bens que conferem status: além de carros, vestidos, acessórios, jóias, armas,<br />

comi<strong>da</strong> e bebi<strong>da</strong>, vêem-se, no filme, retratos e pinturas ricamente emoldurados, tapeçarias,<br />

candelabros, mesas com pratarias, porcelanas finas, diversos tipos de copos de cristal<br />

(dispostos segundo as normas de etiqueta, de modo literalmente calculado – numa <strong>da</strong>s cenas,<br />

o footman George faz a arrumação <strong>da</strong> mesa de jantar munido de uma régua), lustres e vasos<br />

elegantes, papéis de parede diversos decorando ca<strong>da</strong> ambiente, móveis em estilo rococó,<br />

estátuas e outros objetos decorativos.<br />

***<br />

Se, por um lado, nossos impulsos agressivos são sublimados por diversos<br />

mecanismos (como o trabalho, ou mesmo a leitura de histórias de detetive), por outro lado<br />

fica bastante claro que nem sempre tal sublimação ocorre de fato – ao menos não<br />

completamente, visto que a violência em nossa socie<strong>da</strong>de ocorre sempre e nas mais diversas<br />

esferas – a começar pela obrigação do trabalhador de vender sua força de trabalho (a maisvalia<br />

é uma violência na<strong>da</strong> simbólica, já que significa o desgaste físico e mental do<br />

trabalhador, horas de vi<strong>da</strong> despendi<strong>da</strong>s na fatura de mercadorias que, muitas vezes, ele<br />

próprio não poderá consumir, e na escassez de recursos de to<strong>da</strong> sorte, desde comi<strong>da</strong> e<br />

habitação, passando pela falta de acesso a serviços de saneamento, saúde e educação, até<br />

prazeres supérfluos aos quais todos deveriam ter direito) e, em sua mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de mais explícita,<br />

nos homicídios que assolam nossas socie<strong>da</strong>des, mesmo em tempos de presumível “paz”.<br />

Em Gosford Park, tanto a sublimação quanto o extravasamento dos impulsos<br />

destrutivos estão expostos em ambas as classes sociais retrata<strong>da</strong>s. Sir William é quase a<br />

corporificação de tais impulsos, pois se ele, filho de uma “reles” professora, conseguiu<br />

158


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

“subir” na vi<strong>da</strong> acreditando piamente na ideologia do trabalho e do esforço pessoal (“He said<br />

I can be anything I want to be, as long as I want it enough”, diz Elsie, sua amante e<br />

emprega<strong>da</strong>), por outro lado sua própria trajetória desmente isso e escancara de modo pleno as<br />

violências cometi<strong>da</strong>s para atingir seu atual patamar elevado – desde a mais-valia pratica<strong>da</strong><br />

contra trabalhadores, passando por uma mais-valia “extra” (considerando-se que suas quatro<br />

fábricas empregavam mulheres, mão-de-obra ain<strong>da</strong> mais barata), e ain<strong>da</strong> pela exploração<br />

sexual de suas funcionárias. Ou seja, trata-se de uma exploração tripla – quádrupla, se<br />

considerarmos o lucro obtido com a ven<strong>da</strong> dos produtos sobre seus consumidores.<br />

McCordle não matou ninguém literalmente (não foi à guerra – apenas lucrou com ela<br />

– e não matou nenhum patrão, até onde sabemos). Em termos: o “simples” ato de abuso<br />

sexual <strong>da</strong>s emprega<strong>da</strong>s, a ameaça de demiti-las caso queiram manter o bebê, e o subsequente<br />

abandono de seus filhos ilegítimos, muitas vezes significava a morte destes, ou <strong>da</strong>s próprias<br />

trabalhadoras (se no caso de Robert Parks – filho que teve com a Sra. Wilson – a escassez<br />

material e o abandono num orfanato foi relativamente supera<strong>da</strong>, no caso do filho que teve<br />

com a Sra. Croft significou literalmente a morte por escarlatina).<br />

A Sra. Wilson, antes mera operária em uma de suas fábricas, e agora “perfeita<br />

serviçal” doméstica, encarna também tanto a sublimação quanto o extravasamento dos<br />

impulsos agressivos. Também ela acredita nas ideologias do trabalho, esforço pessoal, autocontrole,<br />

rigidez moral e sentimental, e na ética trabalhista. Porém, decidiu igualmente<br />

cometer assassinato – se isso ocorreu de fato (o telespectador não sabe ao certo), não altera<br />

em na<strong>da</strong>. O mesmo ocorre com todos os outros personagens de Gosford, em maior ou menor<br />

grau, e conosco também. Neste sentido, o fetiche <strong>da</strong>s histórias de detetive – o desven<strong>da</strong>r do<br />

criminoso – deixa de ser importante: quem matou passa a não ser tão interessante quanto o<br />

próprio fato de que o crime ocorreu; e o fato de ter ocorrido não altera em na<strong>da</strong> a ordem social<br />

(tudo continua basicamente intacto – aliás, o status quo é reforçado, já que os interesses<br />

financeiros dos membros <strong>da</strong> classe upstairs continuará garantido em tempos de crise, ao<br />

menos momentaneamente, enquanto os membros <strong>da</strong> classe downstairs continuam numa<br />

situação subalterna tão exploratória que não possuem sequer tempo para viver suas vi<strong>da</strong>s). O<br />

fato de o assassinato ter sido cometido é mostrado não como exceção, mas como regra, já que<br />

se trata de uma socie<strong>da</strong>de de raízes violentas: a violência do capital engendra uma corrente de<br />

atos violentos, e na<strong>da</strong> indica que haverá mu<strong>da</strong>nças nesse sentido, especialmente considerandose<br />

a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha em janeiro de 1933 (apenas dois meses após a<br />

<strong>da</strong>ta em que o filme está contextualizado) e a subsequente carnificina <strong>da</strong> II Guerra Mundial.<br />

159


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

REFERÊNCIAS:<br />

GRESPAN, J. Karl Marx: a mercadoria. São Paulo: Editora Ática, 2006.<br />

MANDEL, E. Delightful murder: a social history of the crime story. Minneapolis: University<br />

of Minnesota Press, 1984.<br />

THOMPSON, D. (org) Altman on Altman. New York: Faber& Faber, 2006.<br />

WILLIAMS, R. O campo e a ci<strong>da</strong>de na história e na literatura. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s<br />

Letras, 1990.<br />

160


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Maupassant e Sherlock Holmes na Córsega<br />

HERVOT, Brigitte Monique (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Em 2004, o jornalista Jean Pandolfi-Crozier publica o texto integral de quatro<br />

cadernos redigidos entre 1889 e 1895 por seu tio-bisavô, o engenheiro Ugo Pandolfi (1852-<br />

1927), sob o título La vendetta de Sherlock Holmes. Nesses diários, o geólogo de origem<br />

corsa revela ter sido durante dez anos o amigo e guia do escritor francês Guy de Maupassant<br />

(1850-1893). Afirma ain<strong>da</strong> que, por ocasião <strong>da</strong> morte de Maupassant, seu tio-bisavô torna-se<br />

o guia do famoso detetive Sherlock Holmes na ilha de Córsega. Para o jornalista, a descoberta<br />

dos textos originais contribui muito para a holmésologie, pois os diários constituem “a prova<br />

material <strong>da</strong> existência de Sherlock Holmes”. De fato, é provável que um leitor desavisado<br />

feche o livro com a certeza de que o detetive existiu de ver<strong>da</strong>de. Porém, ao se debruçar sobre<br />

a obra com menos inocência, pode perceber que estamos diante de uma metaficção<br />

historiográfica, uma forma de escrita que desvela seus próprios mecanismos, com referências<br />

explícitas, por um lado, à obra e à correspondência de Maupassant e, por outro, ao cânone <strong>da</strong>s<br />

aventuras de Sherlock Holmes. Ao reler os quatro cadernos redigidos por seu tio-bisavô e ao<br />

apresentar uma edição comenta<strong>da</strong> dos mesmos, Jean Pandolfi-Crozier modifica a história, ou<br />

melhor, dá uma nova versão de fatos reais e ficcionais. Trata-se aqui de apresentar algumas<br />

considerações sobre esse livro que ficcionaliza um escritor universal para comprovar a<br />

existência “ver<strong>da</strong>deira” de um detetive de ficção e, assim, apontar algumas técnicas narrativas<br />

que expõem a fronteira sensível entre reali<strong>da</strong>de e ficção, história e ver<strong>da</strong>de.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Holmes; Maupassant; metaficção historiográfica.<br />

ABSTRACT: In 2004, the journalist Jean-Crozier Pandolfi published the full text of four<br />

notebooks written between 1889 and 1895 by his great-great-uncle, the engineer Ugo Pandolfi<br />

(1852-1927), under the title La vendetta de Sherlock Holmes. In these journals, the Corsican<br />

geologist reveals that during the last ten years he has been a friend and a guide to the writer<br />

Guy de Maupassant (1850-1893). He also states that, upon the death of Maupassant, his greatgreat-uncle<br />

became the guide to the famous detective Sherlock Holmes on the Corsican<br />

Island. For the journalist, the discovery of the original texts greatly contributes to the<br />

holmésologie as these journals are the “concrete proof of Sherlock Holmes existence”. In fact,<br />

it is likely that an unsuspecting reader may finish the book reading with the assurance that the<br />

detective really existed. However, when we look at this book with less innocent eyes we can<br />

see that we are facing a historiographical meta-fiction, a composition form which reveals its<br />

own devices with explicit references to both work and correspondences by Maupassant and<br />

the canon of Sherlock Holmes adventures. When re-reading these four notebooks written by<br />

his great-great-uncle, and presenting an annotated edition of them, Jean-Crozier Pandolfi<br />

modifies the story, or rather presents a new version of the real and fictional events. It will be<br />

presented here some considerations about this kind of writing, which fictionalizes a universal<br />

writer in order to prove the “real” existence of a fictional detective, and, therefore, it will be<br />

pointed out some narrative devices which explore the sensitive border between reality and<br />

fiction, history and truth.<br />

KEYWORDS: Holmes, Maupassant, historiographical meta-fiction.<br />

161


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

INTRODUÇÃO<br />

Estudiosa de Maupassant há mais de 20 anos, nunca imaginei ver o seu nome ligado,<br />

de alguma forma que seja, ao do famoso detetive inglês, Sherlock Holmes. Na ver<strong>da</strong>de, não<br />

pensei nessa possibili<strong>da</strong>de porque também nunca cruzei com essa personagem de romance<br />

policial. O meu interesse foi mais motivado pelos dois filmes a que assisti recentemente sobre<br />

Sherlock Holmes e pela escolha do tema <strong>da</strong> narrativa policial para este simpósio. Para minha<br />

sorte, após algumas pesquisas sobre o tema em questão relacionado ao nome de Maupassant,<br />

deparei-me com o livro La vendetta de Sherlock Holmes (2004) de um escritor chamado Ugo<br />

Pandolfi. Assim, na<strong>da</strong> sabendo do autor e quase na<strong>da</strong> de Sherlock Holmes, empreendi a<br />

leitura <strong>da</strong> obra publica<strong>da</strong> em 2004, apenas com o título de um conto de Maupassant à mente,<br />

“Une vendetta” (1883).<br />

A HISTÓRIA DO L<strong>IV</strong>RO<br />

“Tudo começa na Riviera Francesa, a Cannes em 1999” (PANDOLFI-CROZIER,<br />

2004, p.10)13, quando o jornalista Jean Pandolfi-Crozier abre uma mala a pedido de seu pai e<br />

descobre seu conteúdo: “alguns objetos, um estojo para violino, duas pedras curiosas e um<br />

livro empoeirado”(PANDOLFI-CROZIER, 2004, p.10). No estojo, apenas “uma chave com<br />

uma etiqueta de papelão amarelado na qual a palavra ‘Serra’ tinha sido escrita com tinta <strong>da</strong><br />

China” (PANDOLFI-CROZIER, 2004, p.10). O livro empoeirado é um “tipo de manual e de<br />

guia <strong>da</strong>tado do fim do século XIX e consagrado às riquezas minerais <strong>da</strong> Córsega e a sua<br />

exploração Richesses géologiques et minières de l’île de Corse” (PANDOLFI-CROZIER,<br />

2004, p.11), redigido pelo engenheiro e geólogo Ugo Pandolfi (1852-1927), um tio-bisavô de<br />

quem o autor nunca tinha ouvido falar. Além desse livro, a mala contém “igualmente três<br />

exemplares <strong>da</strong> estranha novela de Guy de Maupassant, Le Horla”, bem como algumas revistas<br />

com aventuras de Sherlock Holmes, em especial, “um número do Strand Magazine de julho<br />

de 1891, que continha uma aventura de Sherlock Holmes intitula<strong>da</strong> A scan<strong>da</strong>l in Bohemia”<br />

(PANDOLFI-CROZIER, 2004, p.13). Enfim, para completar a microbiblioteca, um livro<br />

intitulado L’Homme criminel, Étude anthropologique et psychiatrique de Cesare Lombroso,<br />

13 A tradução <strong>da</strong>s citações desta obra são de minha autoria.<br />

162


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

criminologista e professor catedrático italiano, famoso por suas teorias de anatomia patológica<br />

e antropologia criminal.<br />

Poucos meses depois dessa descoberta, o pai de Jean Pandolfi-Crozier morre e o<br />

jornalista her<strong>da</strong> a mala, assim como uma casa no sul <strong>da</strong> Córsega. Em 2001, o empreiteiro<br />

encarregado <strong>da</strong> reforma encontra “um tipo de cofre de metal” (PANDOLFI-CROZIER, 2004,<br />

p.14) incrustado em uma parede, “um cilindro de sessenta centímetros de comprimento e de<br />

um diâmetro que não ultrapassa trinta centímetros, com uma fechadura estreita em uma de<br />

suas extremi<strong>da</strong>des” (PANDOLFI-CROZIER, 2004, p.15). Dentro dele, o jornalista descobre,<br />

“na noite de domingo, 10 de fevereiro de 2002”, quatro manuscritos escritos por seu tiobisavô<br />

contando uma aventura sua em companhia de Sherlock Holmes. Dois anos depois, em<br />

2004, publica La Vendetta de Sherlock Holmes, a versão edita<strong>da</strong> e comenta<strong>da</strong> dos<br />

manuscritos de seu tio-bisavô, encontrados alega<strong>da</strong>mente por sorte e perdidos para sempre,<br />

por causa de uma imprudência do jornalista. O leitor de hoje toma conhecimento de todos<br />

esses fatos no prólogo redigido por “Jean Pandolfi-Crozier. Fevereiro de 2004. Frescolaccio,<br />

Córsega” que serve para introduzir a “edição estabeleci<strong>da</strong> e apresenta<strong>da</strong> por Jean Pandolfi-<br />

Crozier” do “texto integral dos diários de Ugo Pandolfi”, conforme mostra os elementos <strong>da</strong><br />

folha de rosto.<br />

A HISTÓRIA DOS MANUSCRITOS<br />

Em novembro de 1893, o geólogo Ugo Pandolfi dirige-se a Montpellier após ter<br />

recebido um telegrama misterioso: “Preciso de vossa aju<strong>da</strong> como GDM no caso Saverini.<br />

Encontremo-nos no Hotel du Midi em Montpellier a partir de 16 de dezembro. Na memória<br />

de Longosardo. Assinado: Sigerson” (PANDOLFI, 2004, p.25). Embora Pandolfi não<br />

conheça ninguém assim chamado – ao contrário de quem conhece as aventuras de Sherlock<br />

Holmes, pois Sigerson é o nome que o detetive usa para se esconder atrás <strong>da</strong> falsa identi<strong>da</strong>de<br />

de um explorador norueguês –, o engenheiro fica intrigado com o teor <strong>da</strong> mensagem que se<br />

refere vela<strong>da</strong>mente a Guy de Maupassant, seu amigo morto há poucos meses, e a seu papel<br />

em Longosardo, a aldeia palco do crime relatado no conto “Une Vendetta”, dez anos antes.<br />

Assim vai ao encontro com um desconhecido, movido pela curiosi<strong>da</strong>de que logo será<br />

satisfeita. Ugo Pandolfi não demora em descobrir que Maupassant é um amigo comum, uma<br />

pessoa muito queri<strong>da</strong>, a ponto de ambos estarem presentes em seu enterro:<br />

163


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Esse desconhecido que se lembrava <strong>da</strong>s palavras que Émile Zola, tão<br />

emocionado, pronunciara diante <strong>da</strong> cova com uma voz estrangula<strong>da</strong>, esse<br />

Sigerson, de repente, parecia-me próximo. Ia esquecendo a sua segurança<br />

voluntária, o seu perfil de águia, a insolência de sua mensagem. Ele<br />

admirava Maupassant, e isso bastava. Havíamos partilhado a dor de um 8 de<br />

julho, a <strong>da</strong> per<strong>da</strong> de um ser que era querido por nós dois. (PANDOLFI,<br />

2004, p.28).<br />

Além desse sentimento sincero por Maupassant, a origem de Ugo Pandolfi é também<br />

outra razão que motiva o detetive a procurá-lo. Este lhe revela o que o escritor disse a seu<br />

respeito: “O Senhor de Maupassant me garantiu que o senhor era, além de um excelente<br />

geólogo, o guia ideal para quem quisesse seguir em vossa ilha as marcas de personagens<br />

muito preocupados em não deixar nenhuma” (PANDOLFI, 2004, p.29). Mais do que<br />

conhecer a ilha, acompanhou o escritor em uma investigação do crime que serve de enredo<br />

em “Une Vendetta”, o conto publicado em 1883 ao qual aludi na introdução. É justamente<br />

isso que, de início, vai unir ain<strong>da</strong> mais ambas as personagens, o real e o ficcional: o mistério e<br />

a investigação em torno de um crime. Maupassant é mais do que um escritor para Holmes: é<br />

um escritor investigador.<br />

A leitura de suas novelas é rica de ensinamentos, mas eu queria conhecer seu<br />

trabalho de campo relativo a esses crimes, seus métodos de abor<strong>da</strong>gem<br />

nesses meios hostis, sua técnica para obter informações. Foi assim que<br />

trocamos uma correspondência abun<strong>da</strong>nte e apaixonante, até 1891<br />

precisamente. Logo ele me falou do senhor, sem o qual, como dizia ele,<br />

nunca teria escrito na<strong>da</strong> sobre a Córsega e os costumes de seus habitantes.<br />

(PANDOLFI, 2004, p.30).<br />

Enfim, nesse primeiro encontro, revelador tanto para o geólogo quanto para o leitor<br />

do romance, Ugo Pandolfi descobre que, sob o pseudônimo de Sigerson, esconde-se o famoso<br />

detetive Sherlock Holmes − “Sigerson é apenas um nome para eu viajar incógnito”<br />

(PANDOLFI, 2004, p.28) e, alguns momentos depois, anuncia<strong>da</strong> por uma réplica<br />

estereotipa<strong>da</strong> “Elementar, Pandolfi, elementar”, a revelação final é feita sem rodeio: “O<br />

senhor aceita ser meu companheiro na Córsega Meu nome é Sherlock Holmes”<br />

(PANDOLFI, 2004, p.31). Está assim revela<strong>da</strong> a relação entre os membros do trio Pandolfi-<br />

Maupassant-Holmes, no qual o escritor francês ocupa o lugar central.<br />

ALGUMAS REFLEXÕES, ENTRE OUTRAS...<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

As <strong>da</strong>tas que delimitam a história relata<strong>da</strong> por Ugo Pandolfi em seus diários – de<br />

novembro de 1893 até abril de 1895 – evocam para qualquer pesquisador holmesiano a<br />

questão do Grande Hiato. Onde estava Sherlock Holmes e o que ele fez entre 1891 e 1894<br />

Convém lembrar, sobretudo para quem não sabe, que 1893 é o ano em que Conan Doyle<br />

decide matar o seu herói, bem como seu arquiinimigo, o célebre e maldoso professor James<br />

Moriarty, o Napoleão do crime, na aventura intitula<strong>da</strong> O problema final (1893). Ambos<br />

acabam caindo do alto <strong>da</strong>s cataratas de Reichenbach, na Suíça, conforme as declarações do<br />

doutor Watson:<br />

O exame dos peritos deixou poucas dúvi<strong>da</strong>s de que houvera uma luta entre os dois<br />

homens e que o desfecho fora, como não podia deixar de ser em tal situação, a que<strong>da</strong> de<br />

ambos no abismo, nos braços um do outro. Qualquer tentativa para a recuperação dos corpos<br />

seria vã; no fundo <strong>da</strong>quele caldeirão de águas redemoinhantes e de ferventes escumas<br />

repousarão, para todo o sempre, os corpos do mais temível criminoso e do maior campeão <strong>da</strong><br />

lei de sua geração. (DOYLE, 1893).<br />

Alguns anos depois, pressionado pelos leitores, Conan Doyle devolve a vi<strong>da</strong> a seu<br />

detetive em A casa Vazia, e é durante o primeiro encontro entre Holmes e Watson que este<br />

revela os lugares onde ficara durante o tempo em que estava supostamente morto:<br />

[...] consegui chegar à vere<strong>da</strong>, ensangüentado e rasgado. Tratei de fugir.<br />

Caminhei dezesseis quilômetros pelas montanhas, no escuro, e uma semana<br />

mais tarde estava em Florença, certo de que ninguém no mundo poderia<br />

saber qual fora o meu fim. [...] Viajei durante dois anos pelo Tibete, divertime<br />

visitando Lassa e passando uns dias com o <strong>da</strong>lai-lama. Você deve ter<br />

ouvido falar <strong>da</strong>s notáveis explorações de um norueguês chamado Sigerson,<br />

mas aposto que nunca lhe ocorreu que estava tendo notícias deste seu amigo.<br />

Passei depois pela Pérsia, dei uma olha<strong>da</strong> em Meca, fiz uma visita<br />

interessante ao califa de Cartum, e comuniquei os resultados ao Ministério<br />

do Exterior. Ao voltar para a França, empreguei alguns meses na busca de<br />

derivados do alcatrão, num laboratório de Montpellier, no sul <strong>da</strong> França.<br />

Tendo concluído satisfatoriamente o meu trabalho e sabendo que somente<br />

um dos meus inimigos ficara em Londres, dispus-me a voltar [...]”(DOYLE,<br />

1903).<br />

Essa versão canônica dos fatos não é a única. Na ver<strong>da</strong>de, as possibili<strong>da</strong>des são<br />

infinitas e a quanti<strong>da</strong>de de livros que revelam o que aconteceu com o detetive nesse intervalo<br />

de três anos comprova essa dimensão. La vendetta de Sherlock Holmes é uma dessas versões<br />

que, em termos gerais, faz bastante sentido dentro do universo canônico de Conan Doyle. A<br />

idéia de fazer Sherlock Holmes perseguir Moriarty na Córsega, com o apoio e a logística de<br />

165


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

uma ver<strong>da</strong>deira operação anticriminalista é plausível e boa, embora talvez seja a parte <strong>da</strong><br />

intriga policial e do suspense a menos empolgante desse romance pós-moderno. É muito<br />

tempo de espreita, demasiado tempo.<br />

Tempo suficiente para o leitor e Pandolfi descobrirem um Sherlock Holmes<br />

gourmand, e até mesmo gourmet, interessado na gastronomia local e no trabalho dos<br />

apicultores. Um homem mais sensível e mais humano que o clichê do detetive lúcido e frio,<br />

insensível, incapaz de demonstrar qualquer emoção e, em particular, qualquer sentimento de<br />

amor. Assim, no primeiro encontro entre Pandolfi e Holmes, o narrador descreve o detetive<br />

com as seguintes palavras: “Uma leve e rápi<strong>da</strong> emoção pareceu passar no rosto impassível de<br />

Sherlock Holmes” (PANDOLFI, 2004, p.33). O mesmo lado sensível reaparece em vários<br />

momentos <strong>da</strong> convivência entre o geólogo e Holmes: um aperto de mão “firme, enérgico,<br />

caloroso” (PANDOLFI, 2004, p.62).<br />

A espreita possibilita também ao jornalista e a seu tio-bisavô homenagear a ilha <strong>da</strong><br />

Córsega, em suas tradições culinárias e turísticas. E Sherlock Holmes, curiosamente, presta-se<br />

muito bem ao papel de turista guloso. A narrativa está repleta desses desvios que, em certos<br />

momentos, estendem-se demais, afastando-se do thriller para se aproximar do guia turístico e<br />

gastronômico.<br />

Mas isso pouco importa: a idéia de base de Jean Pandolfi é interessante e bem<br />

construí<strong>da</strong>. Falar de construção remete-me ao paratexto do romance que transforma esse<br />

romance em um exemplo agradável de metaficção. Vejamos, por exemplo, que o prólogo<br />

redigido pelo jornalista Jean Pandolfi-Crozier tem como objetivo principalmente informar o<br />

leitor de que os diários de seu tio-bisavô (a primeira narrativa do livro) foram redigidos por<br />

uma pessoa que viveu “de ver<strong>da</strong>de” e que conheceu o detetive Sherlock Holmes. Apresenta a<br />

gênese de sua obra e o seu próprio papel de editor. Declara que sua simples vontade é a de<br />

“<strong>da</strong>r seu testemunho quanto à singular descoberta de peças manuscritas” (PANDOLFI-<br />

CROZIER, 2004, p. 10), reivindicando a “veraci<strong>da</strong>de” dos diários de seu tio-bisavô. Como ele<br />

não é o primeiro autor, seu trabalho consiste, portanto, em aju<strong>da</strong>r o leitor moderno no<br />

entendimento <strong>da</strong> história, com suas explicações em notas de ro<strong>da</strong>pé. Descreve e comenta todo<br />

o trabalho que a edição dos diários lhe deu, entre outras coisas, o relativo a seus contatos com<br />

os estudiosos de Maupassant e com os especialistas em Holmes – contatos que conferem<br />

“plena cientifici<strong>da</strong>de” a suas análises – e chega, com pouca humil<strong>da</strong>de e muita ironia, a<br />

declarar:<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A descoberta desse diário manuscrito é tão importante para os estudos e as<br />

socie<strong>da</strong>des holmesianas <strong>da</strong> América, <strong>da</strong> Europa e <strong>da</strong> Ásia, quanto seria, para<br />

os exegetas dos dois Testamentos, a revelação, no topo do Monte Cinto, de<br />

pe<strong>da</strong>ço de madeira pertencendo à Arca de Noé ou à cruz de Jesus.<br />

(PANDOLFI-CROZIER, 2004, p.16)<br />

Após negar a ficção romanesca, o autor deixa bem claro que resolveu editar a história<br />

de um ancestral primeiramente, por vai<strong>da</strong>de, para se “inscrever, fosse apenas por um instante,<br />

na linhagem prestigiosa dos escritores devotados ao mestre de Baker Street, o detetive<br />

Sherlock Holmes” (p.10), e depois, por uma questão de obrigação moral: “por mais longínqua<br />

que for, a ligação de parentela que me une ao autor desses escritos inéditos impõe-me a seu<br />

respeito um tipo de obrigação moral e como um dever de memória para com seu autor, meu<br />

tio-bisavô o engenheiro Ugo Pandolfi (1852-1927)” (PANDOLFI-CROZIER, 2004, p.10),<br />

sendo este o mesmo motivo evocado por Maupassant quando aceitou escrever o prefácio às<br />

cartas de seu mestre e amigo Flaubert. Enfim, fecha essa introdução com uma reafirmação <strong>da</strong><br />

“veraci<strong>da</strong>de” dos fatos: “Será preciso sublinhar, em nome de meu ancestral, Ugo Pandolfi, e<br />

seguindo o exemplo do grande holmesólogo William S. Baring Gould, que nenhuma<br />

personagem deste livro é imaginária Seu autor ficaria, contudo, muito feliz em conhecer<br />

aquelas que pretendem sê-lo” (PANDOLFI-CROZIER, 2004, p.17).<br />

Esse prólogo, sabemos, faz parte <strong>da</strong> estratégia usa<strong>da</strong> pelo autor para brincar com o<br />

leitor. Outra estratégia que faz parte do jogo e que torna a narrativa uma metaficção são as<br />

notas de ro<strong>da</strong>pé do jornalista. Dizem Roland Bourneuf e Real Ouellet que “um parêntese de<br />

algumas linhas a respeito do destino de uma personagem secundária, uma digressão<br />

explicativa já constituem uma narrativa na narrativa, presente nas obras narrativas mais<br />

antigas” (1972, p.71). A esse respeito, o jornalista Pandolfi-Crozier usa e abusa <strong>da</strong>s notas de<br />

ro<strong>da</strong>pé explicativas – na ver<strong>da</strong>de, essas constituem o relato de sua própria “investigação” –<br />

para interligar personagens e episódios concretos, referências literárias, geográficas ou<br />

históricas, com explicações tira<strong>da</strong>s do relato original do tio-bisavô Ugo Pandolfi.<br />

Não vamos, contudo, nos esquecer de que esse narrador é uma criação literária,<br />

apesar de seu nome estar impresso na capa do livro como sendo o autor de La Vendetta de<br />

Sherlock Holmes. Com esse recurso narrativo, Jean Pandolfi-Crozier procura apagar as<br />

fronteiras entre reali<strong>da</strong>de e ficção, fazendo com que Maupassant, seu doméstico Tassart, ou<br />

ain<strong>da</strong> nomes de criminalistas famosos do século XIX – a reunião dos iniciadores <strong>da</strong> moderna<br />

criminologia (Bertillon, Lacassagne, Lombroso etc.) é um momento particularmente<br />

interessante <strong>da</strong> narrativa –, <strong>da</strong>tas e locais históricos verídicos, entrem na ficção enquanto<br />

167


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Sherlock Holmes, Moriarty e outros personagens de ficção se tornam “quase reais”. Cabe ao<br />

leitor decidir como vai entrar na aventura para a qual é convi<strong>da</strong>do pelo jornalista no prólogo.<br />

Para um leitor mais ingênuo, basta se deixar levar pelos acontecimentos e seguir a<br />

narrativa de Ugo Pandolfi. Mas vale lembrar que a investigação de Holmes desta vez não se<br />

parece com aquelas que o Dr. Watson e Conan Doyle, descrevem normalmente em suas<br />

aventuras – é a vingança que o motiva e, nesse caso, o raciocínio, o método dedutivo fica<br />

obrigatoriamente em segundo plano. Na ver<strong>da</strong>de, mais do que uma investigação, é uma<br />

viagem pela Córsega que possibilita ao jornalista descrever as belezas de sua ilha e lembrar<br />

alguns elementos históricos vangloriosos, ultrapassando assim certa visão estereotipa<strong>da</strong> de<br />

Maupassant que, em vários contos, contribui para reforçar um imaginário sobre a ilha onde os<br />

bandidos e a vendetta estão em primeiro plano.<br />

Um leitor mais informado, por sua vez, estará diante de um "thriller histórico"<br />

particularmente bem documentado. Para o especialista em Maupassant ou o fanático pelas<br />

aventuras de Holmes, o romance traz, de fato, uma infini<strong>da</strong>de de detalhes que uma simples<br />

apresentação em 20 minutos não pode restituir e que a leitura transforma em uma teia de<br />

referências intertextuais. Como sou leitora de Maupassant, quero citar rapi<strong>da</strong>mente, antes de<br />

concluir aqui minha fala, alguns exemplos dessas referências.<br />

Na segun<strong>da</strong>-feira, 2 de setembro de 1889, Ugo Pandolfi começa seu diário com uma<br />

passagem de um texto de Maupassant muito famoso, “Le Horla”, jóia <strong>da</strong> literatura fantástica<br />

universal.<br />

Que dia admirável! Passei a manhã to<strong>da</strong> deitado na grama, na frente de<br />

minha casa, debaixo de enorme plátano que a cobre, a abriga e dá sombra a<br />

ela inteira. Eu amo esse país, e amo viver nele pois tenho ali minhas raízes,<br />

essas profun<strong>da</strong>s e delica<strong>da</strong>s raízes, que prendem um homem à terra onde<br />

nasceram e morreram seus ancestrais, que o prendem àquilo que se pensa e<br />

se come, tanto aos costumes quanto às comi<strong>da</strong>s, às locuções locais, às<br />

entoações dos camponeses, aos cheiros do chão, dos povoados e do próprio<br />

ar. (PANDOLFI, 2004, p.20).<br />

A citação, acompanha<strong>da</strong> de uma nota de ro<strong>da</strong>pé que esclarece o leitor<br />

“desinformado” (aquele que não conhece a obra de Maupassant) e que institui um tipo de jogo<br />

com o especialista no escritor, tem uma grande força narrativa. Em primeiro lugar, instaura a<br />

importância de Maupassant nas duas narrativas, a de Ugo Pandolfi e a de Jean Pandolfi-<br />

Crozier. Aproxima as palavras do texto de Maupassant e seu amor pelas raízes, de uma<br />

imagem repeti<strong>da</strong> dos habitantes <strong>da</strong> Córsega e seu amor por sua ilha. Além disso, introduz a<br />

168


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

novela “Le Horla” que reaparecerá várias vezes ao longo do romance e que, segundo o<br />

jornalista Jean Pandolfi-Crozier, estava presente na obra e na vi<strong>da</strong> de Sherlock Holmes. Diz<br />

ele em uma entrevista que concede a Elisabeth Milleliri, romancista e jornalista, que se presta<br />

a participar do paratexto:<br />

No fundo, o criminoso Moriarty, seja qual for a sua ver<strong>da</strong>deira identi<strong>da</strong>de,<br />

não é “O Horla” de Sherlock Holmes É preciso lembrar que Conan Doyle,<br />

ele mesmo, literariamente, tinha tentado eliminar Sherlock Holmes e afirmou<br />

a jornalistas americanos: “se eu não o matar, ele é que me matará”. Em 1887,<br />

Guy de Maupassant termina sua novela “Le Horla” com esta frase: “Ele não<br />

morreu... Então... então... vai ser preciso que ele me mate! ” (PANDOLFI-<br />

CROZIER, 2007).<br />

A citação empresta<strong>da</strong> a Maupassant serve de introdução para Ugo Pandolfi declarar<br />

sua amizade com o escritor francês e o incentivo inicial para a re<strong>da</strong>ção de seu diário.<br />

“Maupassant sempre me incitou a escrever. – Couchez chaque jour vos pensées, de même<br />

que tout ce qui vous arrive, <strong>da</strong>ns un journal, Ugo, m’a-t-il souvente répété” (2004, p.20).<br />

Assim, logo nas primeiras páginas do diário, descubro que o geólogo foi um grande amigo de<br />

Maupassant a ponto de esse último incitá-lo a escrever seu diário – como o narrador de Le<br />

Horla redige seu diário – e a ponto de Ugo viajar no veleiro Bel-Ami, entre a Córsega e a<br />

Itália, e ver o veleiro brasileiro de três mastros que aparece no texto “Le Horla”.<br />

De repente, surge um vácuo no diário de Ugo. Quatro anos se passam antes de, no<br />

dia 15 de novembro de 1893, a história recomeçar “Após quatro anos de trabalho árduo<br />

passados em meio ao turbilhão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> parisiense, retomo a escrita de meu diário” (2004,<br />

p.25). As causas do silêncio são revela<strong>da</strong>s. A morte de Maupassant em julho de 1893, a<br />

tristeza do amigo e as pesquisas geológicas realiza<strong>da</strong>s em Paris justificam facilmente o<br />

silêncio de Ugo Pandolfi e o seu abandono <strong>da</strong> escrita. Podem também remeter indiretamente<br />

para o próprio hiato na vi<strong>da</strong> de Sherlock Holmes. Mas, se Maupassant morre antes de começar<br />

a outra aventura com outro protagonista famoso, nem por isso deixa de aparecer no decorrer<br />

<strong>da</strong> obra, pois como foi dito é justamente a sua pessoa que estabelece o elo entre todos os<br />

elementos <strong>da</strong> narrativa. Evoco enfim um outro aceno para os leitores do escritor: a questão do<br />

duplo, que pode ser vista na presença cruza<strong>da</strong> de Ugo Pandolfi e Jean Pandolfi-Crozier, como<br />

também na retoma<strong>da</strong> de elementos-chave de “Le Horla” no relato de Ugo. Ao ler no diário<br />

“Eu mandei vir ao meu quarto uma garrafa de água e um pouco de leite, e me pus a escrever”<br />

(PANDOLFI, 2004, p. 184), qualquer estudioso ou leitor assíduo de Maupassant reencontra, a<br />

169


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

enti<strong>da</strong>de invisível que se alimenta de água e leite e que teria chegado a bordo de um navio<br />

brasileiro, o mesmo veleiro que Ugo descreve em 6 de setembro de 1889: “Após dois navios<br />

ingleses cuja bandeira vermelha ondulava no céu, apareceu um soberbo veleiro de trêsmastros<br />

brasileiro, todo branco, admiravelmente limpo e reluzente. Imitando Maupassant,<br />

cumprimento-o, não por sei que razão, de tanta alegria que eu senti, ao ver esse navio”<br />

(PANDOLFI, 2004, p.24).<br />

Por to<strong>da</strong>s essas razões, por esses movimentos de vai e vem constantes entre a ficção,<br />

a reali<strong>da</strong>de, a obra, e a vi<strong>da</strong>, o leitor interessado na construção do romance deverá, ao longo<br />

de sua leitura, manter-se consciente <strong>da</strong> história propriamente dita e <strong>da</strong> “história <strong>da</strong> história”, e<br />

procurará assim entender o sistema metaficcional de La Vendetta de Sherlock Holmes como o<br />

resultado de uma mise-en-abyme de várias histórias. Na intenção de brincar com o leitor e<br />

com a versão dos fatos, o jornalista Jean Pandolfi retoma ora elementos presentes na obra de<br />

Conan Doyle – personagens (Sigerson, Moriarty, o irmão de Holmes, Miss Bell, etc.); <strong>da</strong>tas<br />

importantes (aniversário de Holmes); ci<strong>da</strong>des e lugares por onde o detetive já passou – ora<br />

evoca acontecimentos ligados à vi<strong>da</strong> e à obra de Guy de Maupassant e de sua época,<br />

procurando sempre envolver o leitor na sua busca quase obceca<strong>da</strong> de tudo explicar. Em outras<br />

palavras e é o próprio jornalista que fala na entrevista acima cita<strong>da</strong>,<br />

Fiz minha investigação. Mas com os meios <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. A informática e<br />

as bases de <strong>da</strong>dos substituíram a lupa e os reagentes químicos. Eu fiz como<br />

os policiais de hoje que manejam a descriptografia automática e a lingüística<br />

quantitativa para identificar os autores de uma mensagem anônima ou de<br />

uma reivindicação terrorista. É somente após essas investigações que podia<br />

apresentar La Vendetta de Sherlock Holmes ao leitor. (PANDOLFI-<br />

CROZIER, 2007).<br />

Leitor esse que é convi<strong>da</strong>do por sua vez a reunir seus próprios conhecimentos e<br />

ordená-los de acordo com a narrativa aqui proposta para criar sua própria história.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BOURNEUF, Roland & OUELLET, Réal. L'Univers du roman. Paris: Presses Universitaires<br />

de France, 1981 ( 1re éd. 1972), 696 p.<br />

DOYLE, CONAN. O problema final. In: As aventuras de Sherlock Holmes, Volume III, editado pelo<br />

Círculo do Livro, s/d. Tradução de Hamilcar de Garcia. Disponível em: <<br />

http://sherlockholmesbr.vilabol.uol.com.br/oproblemafinal.htm> Acesso em: 12 abr. 2012.<br />

170


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

______. A casa vazia In: As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume <strong>IV</strong>, editado pelo Círculo<br />

do Livro, Tradução de Ligia Junqueiro. Disponível em:<br />

. Acesso em: 12 abr. 2012.<br />

PANDOLFI, Ugo. La vendetta de Sherlock Holmes. Paris: Little Big Man, 2004, 300 p.<br />

PANDOLFI-CROZIER, Jean. In: «Entretien avec Elisabeth Milleliri». Fiches en stock. Le<br />

fichier em friches de Corsicapolar. Disponivel em:<br />

. Acesso em:<br />

20 abr. 2012.<br />

171


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Dos sets de filmagens para literatura policial contemporânea: Considerações sobre o conto “O<br />

Peixinho dourado”, de Braz Chediak<br />

KOBAYASHI, Teresa Cristina (UNINCOR/FAPEMIG)<br />

RESUMO: De acordo com Sandra Lúcia Reimão, os autores clássicos do romance policial<br />

pretendiam promover, a partir <strong>da</strong> descrição de cenas de violência exacerba<strong>da</strong> e <strong>da</strong><br />

apresentação de investigadores contraventores, o reencontro <strong>da</strong> literatura policial com a<br />

reali<strong>da</strong>de do mundo do crime, <strong>da</strong> qual, eles acreditavam, o romance de enigma estava<br />

separado. Dialogando com essa vertente narrativa este texto pretende apresentar a narrativa<br />

policial de Braz Chediak, por meio <strong>da</strong> análise do conto “O peixinho dourado”, publicado na<br />

coletânea “Crime feito em casa”, organiza<strong>da</strong> por Flávio Moreira <strong>da</strong> Costa, em 2005. Este<br />

estudo é o início de uma pesquisa sobre narrativa policial que tem por objetivo principal a<br />

análise do romance “Cortina de Sangue”, publicado em 2010, por Braz Chediak. Em sua<br />

trajetória no cinema, o roteirista e cineasta causou polêmica levando para as telas do cinema<br />

importantes a<strong>da</strong>ptações de peças do dramaturgo Plínio Marcos e de textos de Nelson<br />

Rodrigues, já evidenciando seu gosto por personagens marginais e desencontrados. Fora dos<br />

sets de filmagem, a paixão e o conhecimento a respeito <strong>da</strong> literatura policial fizeram com que<br />

este mineiro, de Três Corações (Minas Gerais), excursionasse pela narrativa policial. O conto<br />

“O peixinho dourado”, primeiro ensaio no gênero policial, pode ser associado à vertente noir<br />

pelo uso de uma linguagem fria e seca ao descrever, em meio ao frio do inverno sul-mineiro, a<br />

trajetória de um homem misterioso (suposto detetive) em busca <strong>da</strong> solução de um crime e de<br />

uma vingança particular.<br />

PALAVRAS-CHAVE: narrativa policial; conto brasileiro; literatura contemporânea; Braz<br />

Chediak.<br />

ABSTRACT: According to Sandra Lúcia Reimão, classic authors of detective novel named<br />

Noir intended to organize, using scenes of extreme violence's description and presentation of<br />

lawbreaker investigators, the reunion of detective literature and gangland's reality, which they<br />

believed the Whodunit was separated from. Considering this fiction side, the present project<br />

intends to show Braz Chediak's detective fiction, through analysis of "O peixinho dourado",<br />

published in "Crime feito em casa" collection, which was organized by Flávio Moreira <strong>da</strong><br />

Costa, in 2005. This study is the beginning of a research about detective fiction that aims<br />

mainly the analysis of "Cortina de Sangue" novel, published in 2010, by Braz Chediak.<br />

During his cinema career, this screenwriter and filmmaker caused controversy when he<br />

brought important a<strong>da</strong>ptations of Plínio Marcos' plays and Nelson Rodrigues' texts to the<br />

screen, proving this way his taste in delinquent and lost characters. Outside film sets, his<br />

passion and knowledge about detective literature made this "mineiro", from Três Corações<br />

(Minas Gerais), travel around detective fiction. The tale "O peixinho dourado", first detective<br />

genre's essay, can be associated with Noir because of the use of an unfeeling and dry language<br />

when it describes a mysterious man's career (maybe a detective) in search of a crime solution<br />

and of a private revenge, in the cold of South Minas' winter.<br />

KEYWORDS: detective fiction; tradition; brazilian tale; contemporary literature; Braz<br />

Chediak.<br />

172


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

HISTORIOGRAFIA CÊNICA DO ESCRITOR<br />

A coleção Aplauso, Série Cinema Brasil, concebi<strong>da</strong> pela imprensa oficial de São<br />

Paulo, tem como atributo principal reabilitar e resgatar a memória <strong>da</strong> cultura nacional<br />

biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas do cinema,<br />

teatro e televisão. O livro-depoimento intitulado “Braz Chediak: fragmentos de uma vi<strong>da</strong>”,<br />

organizado por Sérgio Rodrigues Reis, em 2005, conta as histórias <strong>da</strong> infância e o dia-diaagitado<br />

nos sets de filmagens desse cineasta dedicado à literatura. Nas entrevistas de<br />

aproximação Reis nos conta que ao contrário de personali<strong>da</strong>des do meio artístico que se<br />

enchem de vai<strong>da</strong>de e auto-elogios o biografado é sincero, não esconde erros, faltas, tampouco<br />

os problemas que enfrentou ao longo <strong>da</strong> carreira dedica<strong>da</strong> ao cinema no Rio de Janeiro, entre<br />

os anos 60 e 70, ele aprendeu, parafraseando um de seus amigos, o escritor Nelson Rodrigues<br />

a enfrentar ‘a vi<strong>da</strong> como ela é’. (REIS, 2005).<br />

Braz Chediak nasceu em primeiro de junho de 1942, quando criança vendia nas<br />

janelas dos trens os pastéis que sua mãe fazia para aju<strong>da</strong>r na ren<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa. A condição pobre<br />

<strong>da</strong> família não impediu o apreço pelas artes, herdou o gosto por cinema e literatura de seu pai,<br />

um agente ferroviário <strong>da</strong> Rede Mineira de Viação que costumava descansar após o dia de<br />

trabalho percorrido nas linhas férreas, lendo sentado ao pé do fogão a lenha sob a luz de<br />

lamparina livros como “Taras Bulba” de Nicolau Gógol. As constantes mu<strong>da</strong>nças de endereço<br />

<strong>da</strong> família seguindo as estações <strong>da</strong> ferrovia Mineira fez com que muito cedo Chediak<br />

afastasse <strong>da</strong> família. Para a casa dos avós paternos, onde foi estu<strong>da</strong>r, levou as boas lembranças<br />

<strong>da</strong>s conversas familiares em volta <strong>da</strong> mesa onde comentavam sonhos de mil e uma noites de<br />

muitas guerras literárias. O que talvez o menino ain<strong>da</strong> não soubesse é que a emoção desses<br />

momentos em família o influenciaria a desejar estar num outro plano <strong>da</strong>s histórias, o de trás<br />

<strong>da</strong>s câmeras.<br />

Na sua trajetória no cinema dirigiu e roteirizou em parceria com Emiliano Queiroz e<br />

Fernando Ferreira, em 1969 a a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong> peça homônima “Navalha na Carne” de Plínio<br />

Marcos escrita, em 1967. A a<strong>da</strong>ptação resultou em um filme de longa-metragem com duração<br />

original de noventa minutos que foram reduzidos devido aos cortes <strong>da</strong> censura militar. O<br />

filme foi um sucesso de público e de critica; estando no Brasil, Vicent Canby o principal<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

crítico de cinema e teatro americano do jornal The New York Times elogiou a atuação <strong>da</strong>s<br />

personagens Neusa Suely e Vado (REIS, 2005).<br />

Incisivo e brutal encenado em tom realista (REIS, 2005) o filme “Navalha na Carne”<br />

percorre o submundo <strong>da</strong> lapa carioca contando a história <strong>da</strong> prostituta “Neusa Suely”,<br />

personagem constantemente oprimi<strong>da</strong> pelo objeto de sua paixão o cafetão “Vado”<br />

personagem opressor que controla tanto Neusa Suely como “Veludo” um homossexual que<br />

incita a agressivi<strong>da</strong>de de Vado com o estereótipo irônico <strong>da</strong> "bicha” extroverti<strong>da</strong>/submissa. Os<br />

três personagens vivenciam a opressão de viverem à margem <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e se digladiam<br />

numa constante violência moral.<br />

No processo de criação, os detalhes <strong>da</strong> filmagem de “Navalha na Carne” buscam<br />

alcançar o efeito realista do filme com o real submundo <strong>da</strong> prostituição. Segue um relato de<br />

Braz Chediak retirado do livro-depoimento “Braz Chediak Fragmentos de uma vi<strong>da</strong>”:<br />

Como morei na Lapa, coração <strong>da</strong> prostituição carioca conhecia bem o<br />

comportamento <strong>da</strong>s prostitutas e dos gigolôs, conhecia a luz o cheiro e os<br />

sons do ambiente. Mesmo assim, voltei a frequentá-la anotando detalhes<br />

como roupas penteados e gestos. Nas noites de chuva, com a luz se<br />

refletindo no asfalto, a zona era deserta, solitária, <strong>da</strong>va a sensação de tristeza<br />

e abandono. Foi assim que eu a incorporei. Ali, no passeio público, rodei a<br />

sequencia <strong>da</strong> prostituta Neusa Suely fazendo o trottoir, com o chão molhado<br />

e as grades brilhando. (REIS, 2005, p. 165)<br />

O olhar técnico agora lançado sobre os frequentadores do submundo <strong>da</strong> Lapa incita o<br />

roteirista a detalhar as características do ambiente e dos frequentadores que mais parecem<br />

personagens de um mundo à parte. No processo de criação do trottoir, o passeio exibicionista<br />

<strong>da</strong> prostituta em uma noite chuvosa encenaria melhor a proposta de mulher desvaloriza<strong>da</strong> e<br />

perdi<strong>da</strong>. Outra estratégia do efeito realista é a atenção volta<strong>da</strong> para as ações e diálogos <strong>da</strong>s<br />

personagens a partir <strong>da</strong>s filmagens serem ro<strong>da</strong><strong>da</strong>s em preto e branco. Todo o filme é realizado<br />

sem cor em tom dramático melancólico. Com essa técnica o telespectador não se distrai com<br />

as cores que podem dispersar a atenção, o foco se mantém nos gestos dos personagens com<br />

expressões duvidosas e nos diálogos esmerados de afeto que chama atenção para o discurso<br />

<strong>da</strong> ausência imbrica<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong> noturna dos que padecem uma reali<strong>da</strong>de escarneci<strong>da</strong>, onde<br />

aquele que mais corromper os limites <strong>da</strong> reciproci<strong>da</strong>de social melhor assegurará a satisfação<br />

pessoal.<br />

Um discurso aparentemente pobre que “não almeja além do que a mão pode<br />

alcançar”, mas que também metaforiza através do micro sistema <strong>da</strong> vanguar<strong>da</strong><br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

cinematográfica brasileira a opressão vivencia<strong>da</strong> por produtores culturais e artistas mais<br />

expressivos <strong>da</strong> época durante o período <strong>da</strong> ditadura militar (1964-1985). Em “Dois perdidos<br />

numa noite suja”, peça de Plínio Marcos escrita, em 1966 e a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong> em 1969 dois excluídos<br />

sonham em conseguir um emprego e acabam se destruindo.<br />

Em 1980 e 1981 as a<strong>da</strong>ptações dirigi<strong>da</strong>s e roteiriza<strong>da</strong>s por Chediak do escritor<br />

Nelson Rodrigues “Bonitinha, mas ordinária” e “Perdoa-me por me traíres”, seguem a mesma<br />

linha concebendo histórias de uma socie<strong>da</strong>de degra<strong>da</strong><strong>da</strong> que expõe os sórdidos desejos<br />

humanos banidos de uma socie<strong>da</strong>de organiza<strong>da</strong> e moralmente concebível. Afirmando nessas<br />

obras e em outros longas-metragens seu particular gosto em representar o tema <strong>da</strong><br />

marginali<strong>da</strong>de social. (REIS, 2005).<br />

Em 2005, a coletânea “Crime Feito em Casa: Contos Policiais Brasileiros”,<br />

organiza<strong>da</strong> por Flávio Moreira <strong>da</strong> Costa, propõe a apresentação de narrativas policiais curtas<br />

escritas por vários autores brasileiros dentre eles Braz Chediak. O conto apresentado por Braz<br />

chama-se “O peixinho dourado”, nome também de uma narrativa assina<strong>da</strong> por Dalton<br />

Trevisan, importante contista <strong>da</strong> literatura brasileira, que se encontra na coletânea Desastres<br />

do amor.<br />

Moreira <strong>da</strong> Costa nos conta que Chediak “ensaiou a mão num primeiro romance<br />

policial, ain<strong>da</strong> inédito. É por ter lido esses originais que resolvi pedir a ele que escrevesse um<br />

conto para esta antologia” (MOREIRA DA COSTA, 2005, p.332). O romance ao qual<br />

Moreira <strong>da</strong> Costa se refere é Cortina de Sangue, publicado em 2010, narrativa policial que<br />

conta as aventuras de Popeye um detetive alcoólatra e amoral. Em sua orelha o livro traz a<br />

seguinte apresentação:<br />

Num ritmo alucinante o detetive Popeye, alcoólatra e amoral, procura uma<br />

atriz desapareci<strong>da</strong> durante a gravação de uma novela. O tempo corre, e<br />

pouco a pouco, ele vai se deparando com personagens que parecem ter saído<br />

de um pesadelo: Um travesti que só transa com mulher, um velho ator que<br />

tem fixação em Hamlet, uma bela jovem vicia<strong>da</strong> em cocaína, médicos<br />

corruptos e artistas marginalizados. Todos convivendo entre si num<br />

emaranhado de mentiras e falsi<strong>da</strong>des, como se vivessem num grande palco<br />

cuja cortina não esconde as misérias reais de ca<strong>da</strong> um. Popeye, em sua<br />

busca, despreza evidências e, seguindo uma pista frágil – uma simples<br />

fotografia – se preocupa mais em descobrir as causas do desaparecimento e<br />

dos crimes que vão ocorrendo durante a história do que suas circunstâncias,<br />

neste que é o primeiro romance policial a penetrar no submundo <strong>da</strong><br />

glamorosa Ipanema. (CHEDIAK, 2010)<br />

175


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O romance é enriquecido pelo tom excêntrico em que as personagens artistas de<br />

teatro, cinema e novela são construídos. Os detalhes dos camarins e a vi<strong>da</strong> por trás <strong>da</strong> cortina<br />

que o detetive vai desvelando incitam a curiosi<strong>da</strong>de do leitor que é levado ao submundo do<br />

glamour. Curiosamente um jogo intertextual, próprio à tradição do romance policial, leva a<br />

personagem Norma Jean, que desempenha papel importante em O peixinho dourado, para o<br />

romance Cortina de Sangue, contudo, no romance a personagem não desempenha papel<br />

sobressalente, mas ficamos sabendo que se casou com um engraxate e está grávi<strong>da</strong>. Para este<br />

trabalho apresentaremos uma breve análise do conto O peixinho dourado perfilando suas<br />

características ao gênero noir sob o qual foi construído.<br />

ANÁLISE DE “O PEIXINHO DOURADO”<br />

O conto “O peixinho dourado” será analisado a partir do seu diálogo com o gênero<br />

policial, sobretudo, com a “narrativa noir”. Sandra Lúcia Reimão nos aponta que “ao invés de<br />

abor<strong>da</strong>r crimes e contravenções em determina<strong>da</strong>s classes sociais, o noir enfocará o crime em<br />

seu meio mais frequente – a marginali<strong>da</strong>de, o bas-fond social” (REIMÃO, 2005, p. 12).<br />

Num clima de mistério e mentiras, um homem amoral e drogado inicia uma trajetória<br />

de vingança pela morte <strong>da</strong> filha. No submundo <strong>da</strong>s drogas todos os personagens exalam<br />

falsi<strong>da</strong>de, inclusive o homem de terno cinzento que não revela sua ver<strong>da</strong>deira identi<strong>da</strong>de de<br />

delegado. A trama envolve um menino engraxate de olhos coloridos, morador de uma<br />

rodoviária; uma garota apeli<strong>da</strong><strong>da</strong> de Norma Jean (referência clara a Marylin Monroe) e dois<br />

perigosos traficantes de drogas, Tuxaviu e Chico do Ó. O peixinho dourado referido no título<br />

do conto é objeto-símbolo que perpassa to<strong>da</strong> a trama, ligando os personagens.<br />

O conto é narrado em terceira pessoa, aspecto pouco comum às narrativas <strong>da</strong> “série<br />

noir”; normalmente, o narrador é o próprio protagonista <strong>da</strong> história. Contudo, quer seja<br />

realiza<strong>da</strong> por um narrador impessoal ou pelo detetive, a narrativa de “O peixinho doutorado”<br />

ocorre ao mesmo tempo em que a ação.<br />

O homem de terno cinzento parecia doente, quando entrou no banheiro <strong>da</strong><br />

rodoviária. Sua pele estava amarela<strong>da</strong>, os cabelos desalinhados.<br />

Tirou o paletó, arregaçou as mangas e molhou o rosto na pia permanecendo<br />

muito tempo com a água escorrendo na concha <strong>da</strong>s mãos. [...]. O homem<br />

olhou-se no espelho e passou as mãos trêmulas sobre a barba por fazer. Do<br />

outro lado o menino observava e o homem notou que ele tinha os olhos<br />

diferentes, ca<strong>da</strong> um de uma cor.<br />

176


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Tirou <strong>da</strong> sacola uma pequena borracha transparente. Usando o isqueiro e<br />

uma colher preparou uma dose de droga. Fez um garrote, massageou a veia,<br />

entrou no cubículo do vaso sanitário e fechou a porta. O menino ouviu um<br />

som rouco seguido de respiração alta. E quando o homem saiu, suas mãos<br />

estavam firmes, os olhos brilhavam e ele parecia estar numa viagem de barco<br />

que não precisava de remos, rio abaixo.<br />

O menino permaneceu sentado, encolhido de frio. Guardou sua caixa de<br />

engraxate numa velha mochila amarela e, quando o homem lhe ofereceu um<br />

papelote ele apertou a mochila entre os braços, como se se protegendo.<br />

- Não. Só vou de cola, ou de fumo.<br />

O homem deu-lhe uma nota:<br />

- Toma. Compra seu fumo. É bom pra espantar o frio<br />

- Vou para o festival de inverno, em São Tomé. A que horas sai o ônibus –<br />

o homem perguntou, articulando as palavras sem abrir a boca.<br />

- Não tem mais ônibus. O festival tá terminando! (CHEDIAK apud<br />

MOREIRA DA COSTA, 2005, p.333).<br />

A narrativa detalha com riqueza as ações e características exteriores <strong>da</strong>s personagens<br />

(cabelo desalinhado, pele amarela<strong>da</strong>, som rouco seguido de respiração alta, mochila amarela,<br />

caixa de engraxate), informando ao máximo seu leitor sobre aspectos importantes a serem<br />

observados. A partir de descrições bem realistas, o narrador sugere a participação<br />

interpretativa do leitor que deve, ele mesmo, intuir sobre a interiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s personagens.<br />

Esse aspecto é próprio <strong>da</strong>s narrativas <strong>da</strong> série negra, pois, conforme aponta Sandra Lúcia<br />

Reimão, o narrador relata aspectos exteriores <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s reações dos personagens,<br />

raramente nos oferecendo algum índice <strong>da</strong> psicologia destes (REIMÃO, 1983, p.58).<br />

A referência ao festival de inverno, ocorrido nas imediações <strong>da</strong> cena inicial do conto,<br />

sugere a movimentação <strong>da</strong> história e o deslocamento <strong>da</strong> personagem principal que está à<br />

procura de uma moça, ao que tudo indica <strong>da</strong><strong>da</strong> como desapareci<strong>da</strong>. Até então, a descrição<br />

inicial do narrador nos apresenta um homem misterioso que se associa à imagem do detetive<br />

amoral <strong>da</strong>s narrativas negras. Tudo isso é construído de maneira fragmenta<strong>da</strong> a partir,<br />

sobretudo, de diálogos e de descrições dota<strong>da</strong>s de frieza.<br />

Boileau e Narcejac, em O romance policial (199, p.61), apontam que este estilo nu e<br />

voluntariamente pobre deixa de lado a retórica existente na narrativa de enigma, sendo<br />

construído através de diálogos, como se fosse uma espécie de relatório policial. Mesmo em<br />

cenas de violência exacerba<strong>da</strong>, o autor nunca se comove ou toma partido. Seu detetive não é<br />

pago para isso; mas não é desumano, ele apenas permanece “estranho” ao que se passa em<br />

torno dele. Sandra Lúcia Reimão ressalta que essa característica do detetive <strong>da</strong> “Série Negra”<br />

177


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

o faz realmente humano, pois, como uma pessoa de carne e osso, pode ser corruptível e<br />

passível de, a princípio, cometer infrações – tanto quanto o contraventor que procura. Do<br />

ponto de vista ético-moral, o que temos é um nivelamento entre detetive, criminoso e leitor:<br />

todos são colocados no mesmo patamar, atuando e impregnados pela corrupção do mundo<br />

negro (REIMÃO, 1983. p.81).<br />

A partir do diálogo com Cleonice, nome real de Norma Jean, o ver<strong>da</strong>deiro interesse<br />

do “homem de terno cinza” começa a ser revelado ao leitor. To<strong>da</strong> a cena é construí<strong>da</strong> com<br />

muita violência.<br />

- Eu não quero me hospe<strong>da</strong>r. Estou procurando o Chico do Ó.<br />

A jovem demorou segundos antes de responder. [...].<br />

- Eu só quero uma informação. Fiz um serviço pra ele. Ele matou um menino<br />

em Três Corações. Ele fez uma ven<strong>da</strong> de droga e não pagou ao Chico. Um<br />

menino engraçado. Tinha os olhos diferentes, ca<strong>da</strong> um de uma cor. Guar<strong>da</strong>va<br />

a caixa de engraxate numa mochila amarela. Fui eu quem dei sumiço no<br />

corpo. O Chico ain<strong>da</strong> não me pagou o serviço. [...].<br />

Um grito fino saiu de sua garganta no mesmo instante em que se arremessou<br />

contra o homem. Ele puxou seus punhos e ela caiu sobre ele, na poltrona.<br />

Havia recuperado a força <strong>da</strong> juventude, suas unhas eram afia<strong>da</strong>s. O homem<br />

virou-se com um movimento brusco e deu-lhe um tapa de mão aberta. [...].<br />

- Assassino filho <strong>da</strong> puta. O menino é meu irmão. Fui eu quem fiz a mochila.<br />

Ele é meu irmão. Ele não é traficante.<br />

O homem deu-lhe um violento murro no peito e ela caiu, derrubando o<br />

aquário. Tentou pegar o peixinho dourado, mas o homem levantou-a pelos<br />

cabelos e deu-lhe outro murro. Ela rolou pelo chão de pedras, engatinhou em<br />

círculo, sem rumo, até que encontrou a poltrona.<br />

- Filho-<strong>da</strong>-puta-. Filho-<strong>da</strong>-puta!<br />

Ela disse, tentando se erguer, e viu o revolver. Um revolver niquelado, cabo<br />

de madrepérola.<br />

Seus olhos custaram a caminhar <strong>da</strong> arma até o rosto do homem. Sua voz<br />

demorou a sair.<br />

- Ele fica na Casa de Pedra. É no topo <strong>da</strong> pedreira, uma casa grande...<br />

O homem pegou o peixinho dourado do chão e saiu.<br />

(CHEDIAK apud MOREIRA DA COSTA, 2005, p.334 - 336).<br />

O detetive não hesita em surrar Norma Jean para atestar sua falsa história,<br />

aproximando-se, assim, <strong>da</strong> imagem do detetive <strong>da</strong> “serie noire” que pode ser tão amoral<br />

quanto o criminoso perseguido. A linguagem do diálogo é vulgar, seca, sem floreios, tal qual<br />

ostenta a regra do “romance negro” que abusa do coloquialismo, particularmente <strong>da</strong>s gírias e<br />

dos palavrões.<br />

O narrador acompanha, assim como o leitor, os passos do personagem principal em<br />

to<strong>da</strong> a sua trajetória de vingança (sem que saibamos, ain<strong>da</strong>, que se trata de uma vingança).<br />

178


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Desse modo, o narrador não parece possuir informações prévias ao leitor, diminuindo a<br />

distância existente entre ambos. Como a narrativa não é retrospectiva, narrador e receptor<br />

estão sempre passo a passo, os dois passíveis de serem enganados.<br />

De acordo com as convenções do gênero (e as subvertendo em certo sentido), o<br />

detetive, aqui, é substituído por um delegado de polícia que, a despeito de ser<br />

institucionalizado, comporta-se tal qual o protagonista de qualquer “romance noir”, pois flerta<br />

com o mundo do crime ao criar a cenografia de um assassinato, falseando a reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

morte de Chico do Ó.<br />

Quando chegou à delegacia o jovem detetive de plantão foi a seu encontro:<br />

- O senhor parece cansado, doutor. Não dormiu:<br />

- Passei a noite lendo.<br />

- Romance<br />

- A bíblia!<br />

- Eu sei. Aquele negócio de tomar porra<strong>da</strong> e virar a outra face.<br />

- Ou dente por dente, olho por olho.<br />

O delegado foi até o arquivo, tirou um álbum de fotografias, arrancou uma<br />

em que dois homens sorriam para as pedras de São Tomé. Abriu uma caixa<br />

de lápis de cor e desenhou um peixinho dourado na testa de ca<strong>da</strong> um.<br />

(CHEDIAK apud MOREIRA DA COSTA, 2005, p.339).<br />

A imagem do peixinho dourado ganha significados diferentes no decorrer <strong>da</strong> história,<br />

primeiro ela surge como pingente na orelha esquer<strong>da</strong> de Laurinha que é reconheci<strong>da</strong> na foto<br />

pelo menino engraxate; nesse contexto, é símbolo de beleza, juventude e <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />

associa<strong>da</strong> ao mistério que se apresenta na imagem de sua amiga Norma Jean. Em um segundo<br />

momento, a imagem em formato de peixe de plástico em um aquário sugere mentira,<br />

falsi<strong>da</strong>de, um peixe morto falseando a vi<strong>da</strong>, assim como Norma Jean aos poucos se mata ao<br />

viver nas drogas. Nas mãos do homem de terno cinzento, o peixinho dourado de plástico é um<br />

passaporte para sua entra<strong>da</strong> na casa do assassino de sua filha e também uma espécie de<br />

lembrete a si mesmo: a razão <strong>da</strong> procura por Chico do Ó. Nas lembranças de Cleonice, é<br />

símbolo de amizade, de união com a amiga e esperança pelo trabalho artesanal que suas mãos<br />

realizam. Desenhado em uma foto, na testa de Tuxaviu e Chico do Ó ao final <strong>da</strong> narrativa,<br />

representa a consumação <strong>da</strong> vingança do delegado-detetive.<br />

A temática do mundo do crime ganha destaque na narrativa de Braz a partir <strong>da</strong><br />

configuração de seus personagens, todos, de alguma maneira, associados ao submundo <strong>da</strong><br />

droga. A expressão mais trágica desse mundo é representa<strong>da</strong> por Laura, a filha desapareci<strong>da</strong><br />

do “homem de terno cinza”, vítima do vício e, posteriormente, morta por uma overdose.<br />

179


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Atribuir à Laura características singelas e doces (gostar de música indiana, de ver o<br />

por do sol e se soli<strong>da</strong>rizar com as pessoas) aju<strong>da</strong> a construir uma imagem de inocência que<br />

justifica, dentro <strong>da</strong> estratégia narrativa do noir, a simpatia do leitor pelo “homem de terno<br />

cinza”.<br />

A narrativa do conto, assim como assegura a regra do gênero, se constrói a partir de<br />

imagens realistas e frias, levando o leitor para dentro <strong>da</strong> ação. Todo o conto parece um<br />

mosaico de informações e situações, compondo um enredo que apreende o leitor pelo impacto<br />

e vivaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> trama. O tema, apesar de duro, não é alheio ao leitor que compreende a força<br />

<strong>da</strong> narrativa policial negra.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BOILEAU, Pierre; NARCEJAC, Thomas. O romance policial. Trad. Valter Kehdi. São<br />

Paulo: Ática, 1991. Série, Fun<strong>da</strong>mentos. (86).<br />

CHEDIAK, Braz. Cortina de sangue: uma aventura de Popeye. Rio de Janeiro, Mirabolante,<br />

2010.<br />

MOREIRA COSTA, Flávio. (Org). Crime feito em casa: contos policiais brasileiros. São<br />

Paulo, Record, 2005.<br />

REIMÃO, Sandra Lúcia. O que é romance policial. São Paulo, Brasiliense S.A, 1983.<br />

Coleção, Primeiros Passos (109).<br />

REIMÃO, Sandra Lúcia. Literatura policial brasileira. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Lt<strong>da</strong>,<br />

2005. Coleção, Descobrindo o Brasil.<br />

REIS, Rodrigo. Braz Chediak: fragmentos de uma vi<strong>da</strong>. São Paulo, Imprensa Oficial do<br />

Estado de São Paulo, 2005. Coleção Aplauso Serie Cinema Brasil.<br />

180


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O nome <strong>da</strong> rosa: fluidez e erudição por trás <strong>da</strong> narrativa policial contemporânea<br />

LANDUCCI, Camila Apareci<strong>da</strong> (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Considerando a posição intelectual, acadêmica e crítica do escritor italiano<br />

Umberto Eco, que retrata os espaços contemporâneos dos mais variados ângulos, e<br />

reconhecendo a importância de sua abun<strong>da</strong>nte produção literária como um instrumento<br />

absolutamente necessário para a compreensão dos nós produzidos na complexa socie<strong>da</strong>de<br />

pós-moderna, este trabalho pretende identificar, na postura desse escritor a partir <strong>da</strong> análise<br />

do romance O nome <strong>da</strong> rosa (1980), seu olhar crítico sobre o mundo, <strong>da</strong> arte à cultura; <strong>da</strong><br />

política à filosofia. Consciente <strong>da</strong>s intempéries culturais do seu tempo, Umberto Eco sabe ler<br />

e recolher com agu<strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de os signos construídos pela pós-moderni<strong>da</strong>de, sempre<br />

atento ao debate <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des humanas que regem a nossa socie<strong>da</strong>de, apropriando-se<br />

criativamente <strong>da</strong> estrutura narrativa do gênero policial, enquanto abor<strong>da</strong> filosofia, semiótica,<br />

estética, literatura, e simultaneamente observa e desmonta os mecanismos culturais que o<br />

envolvem ou simplesmente lhes são contemporâneos. Desse modo, constituí<strong>da</strong> sobre os<br />

pilares <strong>da</strong> intertextuali<strong>da</strong>de, a obra echiana, lança luzes à análise crítica do mundo<br />

contemporâneo, e fornece <strong>da</strong>dos para a verificação dos novos postulados estabelecidos pela<br />

pós-moderni<strong>da</strong>de, bem como traz a tona a importância e a influência desse escritor no<br />

panorama mundial, que possibilitando o diálogo com outros textos abre espaço a discussão<br />

sobre a cultura e sua representação.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Umberto Eco; narrativa policial contemporânea; literatura italiana;<br />

pós-modernismo<br />

ABSTRACT: Considering the intellectual, academic and critical position of the Italian writer<br />

Umberto Eco, who depicts the contemporary spaces of various angles, and recognizing the<br />

importance of his abun<strong>da</strong>nt literary production as an instrument necessary for the<br />

understanding of the knots produced in complex post-modern society, this work intends to<br />

identify, in the posture of this writer from the analysis of the novel The name of the rose<br />

(1980), his critical view of the world, from art to culture; from politics to philosophy. Aware<br />

of the cultural elements of his time, Umberto Eco knows how to read and collect with acute<br />

sensitivity signs built by post-modernity, always attentive to the debate of the human<br />

activities that govern our society, appropriating the genre structure of the crime fiction, while<br />

discusses philosophy, semiotics, aesthetics, literature, and simultaneously observes and<br />

dismantles the cultural mechanisms that involve him or are simply his contemporary. In this<br />

way, constituted on the pillars of intertextuality, Eco's productions shed light on critical<br />

analysis of the contemporary world, and provide <strong>da</strong>ta for verification of new principles<br />

established by post-modernity, and also bring out the importance and influence of this writer<br />

in the world panorama, allowing the dialogue with other texts and opening space for<br />

discussions about culture and its representation.<br />

KEYWORDS: Umberto Eco; contemporary crime fiction; Italian literature; Postmodernism<br />

Considerando a posição intelectual, acadêmica e crítica do escritor italiano Umberto<br />

Eco, que retrata os espaços contemporâneos dos mais variados ângulos, e reconhecendo a<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

importância de sua abun<strong>da</strong>nte produção literária como um instrumento absolutamente<br />

necessário para a compreensão dos nós produzidos na complexa socie<strong>da</strong>de pós-moderna,<br />

neste trabalho eu proponho uma leitura do romance O Nome <strong>da</strong> Rosa (1980), com a intenção<br />

de observar os mecanismos e as escolhas estéticas que conferem a este inocente romance<br />

policial o caráter transcendente <strong>da</strong>s obras de arte.<br />

Umberto Eco dispensa apresentação, pois se trata de um intelectual completo que não<br />

se atém a uma única área do conhecimento, mas transita com extrema facili<strong>da</strong>de por<br />

diferentes campos disciplinares que se encontram no centro <strong>da</strong> cultura contemporânea e<br />

enquanto faz literatura, dialoga com a filosofia, a política, a cultura e a arte de maneira geral<br />

participando assiduamente do debate de ideias e polêmicas que giram em torno <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

pós-moderna.<br />

Nascido em Alessandria, na região de Piemonte, Itália, em 5 de janeiro de 1932,<br />

Umberto Eco obteve o título de Doutor em Filosofia pela Universi<strong>da</strong>de de Turim, aos 22<br />

anos, com uma tese sobre a Estética em Santo Tomás de Aquino. Sempre assíduo em sua<br />

produção bibliográfica, o escritor italiano publicou, e continua publicando, inúmeras obras,<br />

que compreendem desde tratados e pesquisas científicas sobre linguagem e semiótica, ensaios<br />

e estudos sobre arte e estéticas <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de até romances conhecidos mundialmente.<br />

Celebrado dentro do universo acadêmico por seus estudos sobre a cultura, a<br />

literatura, sobre o texto, entre outros assuntos, é em 1980, em um projeto au<strong>da</strong>cioso,<br />

utilizando-se de suas formulações teóricas, que Umberto Eco transforma-se em um<br />

romancista conhecido mundialmente, com a publicação <strong>da</strong> obra Il nome della rosa, objeto<br />

deste estudo.<br />

Sabe-se que o romance foi publicado na Itália em 1980, e teve sua primeira<br />

publicação no Brasil em 1983, sendo traduzi<strong>da</strong> para diversos idiomas, tendo inclusive sido<br />

a<strong>da</strong>ptado para o cinema em filme homônimo em 1992.<br />

Para compor o romance, que a princípio receberia o nome de A abadia do crime,<br />

Umberto Eco escolheu os meandros do gênero policial para abrigar a forma e o conteúdo<br />

estético <strong>da</strong> narrativa histórica que se propôs a escrever, como ele próprio afirmou, a partir de<br />

uma ideia seminal de envenenar um monge:<br />

E como eu queria que fosse considera<strong>da</strong> agradável a única coisa que faz<br />

alguém tremer, isto é, calafrio metafísico, só me restava escolher (entre os<br />

modelos de trama) a mais metafísica e filosófica, o romance policial”. (ECO,<br />

1984, p.18)<br />

182


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Desse modo, apropriando-se criativamente <strong>da</strong> narrativa policial enquanto gênero<br />

literário, o escritor italiano trabalha o gênero estético ao seu favor ampliando o sentido do<br />

texto inicial, que se atualiza a ca<strong>da</strong> leitura.<br />

O Nome <strong>da</strong> Rosa pode ser defendido como uma obra que pertence à estética do<br />

gênero policial porque incorpora elementos característicos dessa esfera narrativa. Em uma<br />

primeira leitura é possível entrever os elementos essenciais que caracterizam a forma em que<br />

se apresentam os romances policiais tradicionais: presença do crime; enigma gerado pelas<br />

condições desse crime; a figura do detetive e, como nos grandes clássicos do gênero, há<br />

também o discípulo, o auxiliar que acompanha o detetive; a identi<strong>da</strong>de secreta do criminoso,<br />

tão inteligente quanto o detetive-filósofo e não apenas um simples bandido, mas um<br />

intelectual a altura do sujeito investigador.<br />

O romance policial pode ser definido como um tipo de narrativa que expõe uma<br />

investigação criminal, na qual estão inseridos aspectos vinculados ao crime, e a relação<br />

enigmática cria<strong>da</strong> pela tensão confluente do confronto de intelectos estabelecido entre o<br />

detetive e o criminoso.<br />

No romance policial, o crime serve de impulso para que haja outro desenlace na<br />

narrativa e o fazer do detetive não centra apenas na descoberta <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de do criminoso,<br />

mas reflete, a ca<strong>da</strong> pista, sobre as consequências <strong>da</strong> morte <strong>da</strong> vitima, abor<strong>da</strong>ndo e discutindo<br />

temas paralelos que ultrapassam a banali<strong>da</strong>de do crime e conferem nova resignificação ao<br />

conteúdo narrativo.<br />

É o próprio autor que elege o gênero policial como porta-voz estético para seu fazer<br />

literário:<br />

Não é por acaso que o livro se inicia como se fosse um romance policial (e<br />

continua a iludir o leitor ingênuo até o fim, de tal modo que o leitor ingênuo<br />

pode até não perceber que se trata de um romance policial onde se descobre<br />

muito pouco, e o detetive acaba derrotado). Creio que as pessoas gostam de<br />

livros policiais não porque eles contêm assassinatos, tampouco porque neles<br />

se celebra o triunfo <strong>da</strong> ordem final (intelectual, social, legal e moral) sobre a<br />

desordem <strong>da</strong> culpa. É que o romance policial representa uma história de<br />

conjetura, em estado puro. Mas um diagnóstico médico, uma pesquisa<br />

científica, ou mesmo uma in<strong>da</strong>gação metafísica também são casos de<br />

conjetura. No fundo, a pergunta básica <strong>da</strong> filosofia (como a <strong>da</strong> psicanálise) é<br />

a mesma do romance policial: de quem é a culpa Para saber isso (para achar<br />

que se sabe) é preciso supor que todos os fatos têm uma lógica, a lógica que<br />

o culpado lhes impôs. To<strong>da</strong> história de investigação e de conjetura fala de<br />

algo junto ao qual sempre vivemos [...]. A esta altura fica claro por que<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

minha história básica (quem é o assassino) ramifica-se em muitas outras<br />

histórias, to<strong>da</strong>s elas histórias de outras conjeturas, to<strong>da</strong>s girando em torno <strong>da</strong><br />

estrutura <strong>da</strong> conjetura enquanto tal. (ECO, 1985, 45-6)<br />

Eco desconstrói a narrativa policial tradicional e por meio dela, com um repertório<br />

erudito altamente rico, que contempla o romance com uma gama muito significante de<br />

intertextos que percorrem séculos de cultura, apresenta uma obra que eclode suas barreiras de<br />

sentido, e na representação (voz) de seus personagens, son<strong>da</strong> o mundo com um olhar<br />

simbólico, no qual ca<strong>da</strong> palavra sustenta uma pista ou, nas palavras de um semiólogo, um<br />

signo que ultrapassa as barreiras de seu significante e se abre para inúmeros significados,<br />

resultando na ambigui<strong>da</strong>de de hipóteses (conjeturas), que confluem de sua obra.<br />

Foi o próprio Umberto Eco que apontava, na fervilhante déca<strong>da</strong> de 1960, a<br />

ambigui<strong>da</strong>de de hipóteses que permeia a obra literária:<br />

[...] a estrutura narrativa torna-se campo de possibili<strong>da</strong>des justamente<br />

porque, no momento em que penetramos uma situação contraditória para<br />

entendê-la, as tendências dessa situação, atualmente, não podem mais adotar<br />

uma linha única de desenvolvimento determinável a priori, mas to<strong>da</strong>s elas se<br />

oferecem como possíveis, umas positivas e outras negativas, algumas, linhas<br />

de liber<strong>da</strong>de, outras de alienação na própria crise.<br />

A obra propõe-se como estrutura aberta, que reproduz a ambigui<strong>da</strong>de do<br />

nosso próprio ser-no-mundo [...] (ECO, 1976, p.270)<br />

Dessa forma, pode-se assentir que a estrutura do gênero policial, escolhido por<br />

Umberto Eco como moldura estética para sua obra de experimentação literária, repleta de<br />

conjeturas que se abrem como um leque de significações, caracteriza-se como uma obra<br />

aberta, que possibilita o diálogo com outros textos e permite a ressemantização do sentido,<br />

contribuindo na construção de um outro texto, que vai além do simples plano de ação<br />

detetivesca.<br />

É a arte que, para dominar o mundo, nele penetra a fim de absorver, em seu<br />

interior, as condições de crise, usando para descrevê-lo a mesma linguagem<br />

aliena<strong>da</strong> com que esse mundo se exprime; levando-o porém a uma condição<br />

de clareza, ostentando-o como forma de discurso, ela o despoja de sua<br />

quali<strong>da</strong>de de condição alienante, e nos torna capazes de desmitificá-lo. [...] a<br />

operação prática que terá origem no ato de consciência impulsionado pela<br />

arte, estimula<strong>da</strong> pela arte a procurar uma nova forma de sentir as coisas e de<br />

coordená-las em relações [...] (ECO, 1976, p. 266)<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A partir <strong>da</strong>s exposições que Umberto Eco faz no livro Obra Aberta, ele propõe um<br />

novo modo de formar, valendo-se de formas gastas, já consagra<strong>da</strong>s, que no caso de O nome<br />

<strong>da</strong> rosa seria o romance policial, que são revisita<strong>da</strong>s e recoordena<strong>da</strong>s, permitindo a<br />

reconstrução do sentido como atitude responsiva diante <strong>da</strong> inevitável contenção de ideias<br />

cria<strong>da</strong>s pela implosão do moderno, pois:<br />

[...] chega a um momento em que a vanguar<strong>da</strong> (o moderno) não pode ir mais<br />

além, porque já produziu uma metalinguagem que fala de seus textos<br />

impossíveis (a arte conceptual). A resposta pós-moderna ao moderno<br />

consiste em reconhecer que o passado, já que não pode ser destruído porque<br />

sua destruição leva ao silêncio, deve ser revisitado: com ironia, de maneira<br />

não inocente. (ECO, 1985, p. 56)<br />

Desse modo, brincando com os gêneros literários, Eco recupera o gênero policial<br />

revisitando a I<strong>da</strong>de Média e cria um labirinto intertextual, no qual, como uma metáfora do fio<br />

de Ariadne, está a linha condutora <strong>da</strong> narrativa policial, mas que comporta dentro de si<br />

diferentes categorias romanescas, como o romance histórico, o romance filosófico, o romance<br />

autobiográfico de formação, etc.<br />

A partir de uma leitura atenta, é possível verificar, já nas páginas iniciais <strong>da</strong><br />

narrativa, indícios <strong>da</strong>s diferentes vertentes do romance que estão afila<strong>da</strong>s dentro de O nome<br />

<strong>da</strong> rosa. A escolha do período medieval para alocar o enredo policialesco imaginado pelo<br />

autor fornece o material histórico a ser recuperado e reordenado pelo autor; a consciência<br />

reflexiva de Guilherme de Baskerville, que emerge constantemente no relato de Adso, dá o<br />

tom filosófico ao romance, que instaura um inquérito pela busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de; e a voz do<br />

narrador/ personagem Adso de Melk revisitando o passado de suas memórias juvenis, confere<br />

o teor autobiográfico <strong>da</strong> obra narra<strong>da</strong> em primeira pessoa.<br />

No tecido tramado por Eco, o recurso intertextual é a força motriz <strong>da</strong> narrativa que<br />

perpassa to<strong>da</strong> a estrutura formal <strong>da</strong> obra, e está também implícito nos campos semânticos do<br />

texto, desde suas primeiras linhas em jogos de palavras e metáforas – como se nota em<br />

Baskerville, o nome que acompanha frei Guilherme e faz referência implícita a obra de Conan<br />

Doyle – ou mesmo citações explícitas, como se verifica no primeiro parágrafo do prólogo <strong>da</strong><br />

obra:<br />

No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto a Deus, e o Verbo era<br />

Deus. Ele estava no princípio junto a Deus e o dever do monge fiel seria<br />

repetir ca<strong>da</strong> dia com salmodiante humil<strong>da</strong>de o único evento imodificável do<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

qual se pode confirmar a incontrovertível ver<strong>da</strong>de. (ECO, 2011, p. 49, grifo<br />

nosso)<br />

No texto citado as frases grifa<strong>da</strong>s correspondem aos dois primeiros versículos<br />

bíblicos do primeiro capítulo e também prólogo do Evangelho de João, nos quais Verbo se<br />

refere à palavra substancial e eterna de Deus e que indica a pessoa de Jesus Cristo, mas que<br />

criativamente o escritor italiano ousou subverter, trabalhando nas entrelinhas do texto para lhe<br />

conferir um sentido outro, aju<strong>da</strong>do pelo emprego fluido <strong>da</strong> ironia, sempre presente no discurso<br />

echiano.<br />

Irônica e paródica, a narrativa cria<strong>da</strong> por Eco não deixa de pontuar questões<br />

importantes, dentro de um discurso dialógico e polifônico e discute detalhes históricos<br />

polêmicos, de alto teor crítico, como foi o domínio eclesiástico na I<strong>da</strong>de Média e as disputas<br />

de poder dentro <strong>da</strong> igreja e abre a discussão sobre filosofia e teologia de forma natural, mas<br />

nunca ingênua.<br />

Consciente <strong>da</strong>s intempéries culturais do seu tempo, Umberto Eco sabe ler e recolher<br />

com agu<strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de os signos construídos pela pós-moderni<strong>da</strong>de, sempre atento ao<br />

debate <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des humanas que regem a nossa socie<strong>da</strong>de, apropriando-se criativamente <strong>da</strong><br />

estrutura narrativa do gênero policial, enquanto abor<strong>da</strong> filosofia, semiótica, estética, literatura,<br />

e simultaneamente observa e desmonta os mecanismos culturais que o envolvem ou<br />

simplesmente lhes são contemporâneos. Desse modo, constituí<strong>da</strong> sobre os pilares <strong>da</strong><br />

intertextuali<strong>da</strong>de, a obra echiana, lança luzes à análise crítica do mundo contemporâneo, e<br />

fornece <strong>da</strong>dos para a verificação dos novos postulados estabelecidos pela pós-moderni<strong>da</strong>de,<br />

bem como traz a tona a importância e a influência desse escritor no panorama mundial, que<br />

possibilitando o diálogo com outros textos abre espaço a discussão sobre a cultura e sua<br />

representação.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia <strong>da</strong> linguagem. 2a ed São Paulo: HUCITEC, 1981.<br />

______. Estética <strong>da</strong> Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.<br />

ECO, Umberto. Pós-escrito a O nome <strong>da</strong> Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.<br />

______. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo:<br />

Perspectiva, 2005.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

______. Il nome della rosa. Milano: Bompiani, 1980.<br />

______. O nome <strong>da</strong> rosa. 3 ed. Trad. Aurora F. Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio<br />

de Janeiro: Record, 2011.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Sherlock Holmes enfeitiçado por um músico brasileiro em uma aventura tropical<br />

LOPES, Jorge Augusto <strong>da</strong> Silva (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Um pastiche <strong>da</strong>s aventuras de Sherlock Holmes nos trópicos, ou um recurso<br />

narrativo para entremear ficção e reali<strong>da</strong>de, jornalismo e relato de viagem, em uma busca por<br />

um misterioso músico Watson e Sherlock Holmes estão no bairro do Leblon, no Rio de<br />

Janeiro, próximos ao hotel onde morava João Gilberto, mas o músico tinha se mu<strong>da</strong>do e o<br />

recepcionista não sabia informar para onde. Assim começa a história de Ho-ba-la-lá à<br />

procura de João Gilberto do jornalista alemão Marc Fischer. Encantado por uma voz suave e<br />

calorosa, esse Sherlock do século XXI sai de sua terra natal em busca de uma resposta para<br />

esclarecer um enigma personificado nesse excêntrico cantor e violonista. A vi<strong>da</strong> urbana no<br />

Rio de Janeiro constitui o universo por onde Sherlock Holmes, com o auxílio de Watson,<br />

apresentado como uma judia líbano-brasileira desencadeia suas investigações. Sherlock quer<br />

encontrar o músico para pedir a ele algo inestimável: cantar para Sherlock a canção Ho-ba-lalá.<br />

Esta busca não poderia ser narra<strong>da</strong> de maneira como a fez Fischer se a personagem desse<br />

genial detetive não fizesse parte <strong>da</strong> história. E, para responder nossa pergunta inicial,<br />

propomos buscar no final do século XIX, nas aventuras do Sherlock Holmes de Arthur Conan<br />

Doyle, os principais elementos que tornaram a narrativa detetivesca uma matriz para a criação<br />

de um universo ficcional em que se conjugam mistérios, enigmas e o fantástico. Nessa volta<br />

às origens, podemos esclarecer o como e o quanto a narrativa investigativa de Marc Fischer<br />

corresponde ao modelo de narrativa de aventuras detetivescas.<br />

PALAVRAS CHAVES: Holmes; pastiche; bossa nova.<br />

ABSTRACT: A pastiche of the adventures of Sherlock Holmes in the tropics, or a narrative<br />

device to interweave fact and fiction, journalism and travelogue, in a quest for a mysterious<br />

musician Sherlock Holmes and Watson are in the neighborhood of Leblon, in Rio de Janeiro,<br />

near the hotel where Joao Gilberto lived, but the musician had moved and the receptionist was<br />

not certain where. That is the story of Ho-Ba-la-la a procura de for Joao Gilberto by the<br />

German journalist Marc Fischer. Enchanted by a soft ad warm voice, this twenty-first century<br />

Sherlock leaves his homeland in search of an enigma in the person of this eccentric singer and<br />

guitarist. The urban life in Rio de Janeiro is the universe where Sherlock Holmes, with the<br />

help of Watson, presented as a Jewish Lebanese-Brazilian girl, unleashes his investigations.<br />

Sherlock wants to find the musician to ask him something priceless: sing to Sherlock the song<br />

Ho-ba-la-la. This search could not be told as Fischer did if the detective character were not<br />

part of the story. And, to answer our original question, we propose to go to the end of the<br />

nineteenth century, and search in the adventures of Sherlock Holmes by Arthur Conan Doyle,<br />

the main elements that made the detective story the framework for a fictional universe that<br />

combines mystery, puzzles and the fantastic. In this return to origins, we can explain how and<br />

how much the narrative by Marc Fischer represents the model of detective adventures.<br />

KEYWORDS: Holmes; pastiche; bossa nova.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O jornalista alemão Marc Fischer veio ao Rio de Janeiro para fazer uma reportagem<br />

a respeito do músico João Gilberto e, quem sabe, uma possível entrevista com este arredio<br />

cantor. O resultado deste trabalho jornalístico veio a público, em 2011, na Alemanha, na<br />

forma de um livro Auf der Suche nach João Gilberto, imediatamente traduzido para o<br />

português como Ho-ba-la-lá; à procura de João Gilberto.<br />

Na ficha de catalogação do livro, publicado no Brasil pela Companhia <strong>da</strong>s Letras,<br />

traduzido por Sergio Tellaroli, constam as palavras 1.Bossa Nova (Música) – Brasil 2.<br />

Gilberto, João,1931-3. Música popular - Brasil. Mas, para nossa surpresa, o conteúdo tema<br />

dessa reportagem/narrativa é apresentado na forma de uma investigação realiza<strong>da</strong> por<br />

Sherlock Holmes e seu assistente Watson. Encantado, ou melhor, enfeitiçado por “uma voz<br />

suave e calorosa que soa como um sorvete”, esse Sherlock do século XXI, protagonizado por<br />

Fischer, sai de sua terra natal em busca de uma resposta para esclarecer um enigma<br />

personificado nesse excêntrico cantor e violonista. O cotidiano <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> urbana no Rio de<br />

Janeiro, indissociável <strong>da</strong> boêmia, dos bares e restaurantes, <strong>da</strong> presença imprescindível <strong>da</strong><br />

música e de seus compositores e interpretes, constitui o universo por onde Sherlock Holmes,<br />

com o auxílio de Watson, apresentado como “uma judia líbano-brasileira com o diabo tatuado<br />

na panturrilha”, desencadeia suas investigações para encontrar João Gilberto, uma figura<br />

mítica, considera<strong>da</strong> um louco, um excêntrico, um fantasma, um homem invisível, um monge<br />

budista, um iogue, ou um vampiro alérgico ao sol. Sherlock quer um encontro pessoal com o<br />

músico para pedir a ele algo inestimável: tocar, no violão que Sherlock traz consigo, a canção<br />

Ho-ba-la-lá.<br />

A leitura desta reportagem que se transmuta em uma narrativa de aventuras, ou de<br />

um caso, de cunho investigativo detetivesco instiga inúmeras perguntas, pois como todos<br />

sabemos, o gênero policial/detetivesco está sempre envolto por enigmas e mistérios.<br />

Aproveitando-nos <strong>da</strong> oportuni<strong>da</strong>de ofereci<strong>da</strong> nesse simpósio, propomos discorrer acerca <strong>da</strong>s<br />

aventuras narra<strong>da</strong>s por Fischer a partir <strong>da</strong> seguinte pergunta: Ho-ba-la-lá; ; à procura de João<br />

Gilberto pode ser considerado um pastiche <strong>da</strong>s aventuras de Sherlock Holmes, ambienta<strong>da</strong><br />

nos trópicos, ou trata-se apenas de um recurso narrativo para entremear ficção e reali<strong>da</strong>de,<br />

jornalismo e relato de viagem, em uma busca incansável por um imprevisível e misterioso<br />

músico<br />

É fun<strong>da</strong>mental deixar bem claro que a maneira como Fischer desenvolve sua<br />

narrativa/reportagem não seria possível se a personagem desse genial detetive não fosse uma<br />

figura já consagra<strong>da</strong> na história <strong>da</strong> literatura e modelo/matriz para inúmeros outros detetives-<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

investigadores sempre envoltos em casos misteriosos e sombrios, sempre em busca de<br />

soluções para enigmas e intrigas, envolvendo crimes e assassinatos e pessoas excêntricas que<br />

transitam entre a geniali<strong>da</strong>de e a loucura ou a obsessão desenfrea<strong>da</strong>.<br />

E, sendo assim, para responder a pergunta acima, podemos iniciar nossa busca no<br />

final do século XIX, nas primeiras aventuras do Sherlock Holmes, identificando os principais<br />

elementos que tornaram a narrativa detetivesca uma matriz para a criação de um universo<br />

ficcional em que se conjugam mistérios, enigmas e o fantástico, com um apelo público até<br />

então inimaginável. Nessa volta às origens, por assim dizer, podemos esclarecer o como e o<br />

quanto a narrativa investigativa de Marc Fischer corresponde ao modelo de narrativa de<br />

aventuras detetivescas, delineado naquele período de transição entre o mundo vitoriano e o<br />

mundo espetacularmente moderno e em que medi<strong>da</strong> a narrativa Ho-ba-la-lá: á procura de<br />

João Gilberto pode ser considerado um pastiche de Holmes, conforme tema desse simpósio.<br />

Vamos então para o contexto histórico em que vivem Sir Arthur Conan Doyle e seu<br />

excêntrico detetive, na conturba<strong>da</strong> urbes do final do século XIX e início do século XX.<br />

A relação entre Sir Arthur Conan Doyle e Sherlock Holmes poderia ser retrata<strong>da</strong><br />

como mais um <strong>da</strong>queles casos em que a criatura torna-se maior que o criador. Conan Doyle,<br />

entretanto, tem uma história pessoal quase majestosa que Holmes consegue apenas não mais<br />

que ofuscar. Nascido em 1859, em Edimburgo, na Escócia, em uma família católica, educado<br />

por Jesuítas, bacharel em medicina, com mestrado em cirurgia, Conan Doyle viveu<br />

intensamente os anos últimos <strong>da</strong> era vitoriana e o início do conturbado mundo moderno e, nas<br />

aventuras de Sherlock Holmes procurou registrar algumas <strong>da</strong>s experiências, inquietações e<br />

dúvi<strong>da</strong>s que compartilhou com seus contemporâneos.<br />

As incertezas de uma socie<strong>da</strong>de pós-Darwin, em que a segurança <strong>da</strong>s crenças<br />

religiosas não mais constitui a base de apoio para as ações humanas e o materialismo<br />

científico e racionalista, que gra<strong>da</strong>tivamente começa substituir essas crenças, irão compor um<br />

plano de fundo para as aventuras de Holmes, em que o racional e o fantástico, o científico e o<br />

sobrenatural, as manipulações dos mágicos e os mecanismos <strong>da</strong>s máquinas convivem<br />

harmoniosamente em um mundo em permanente mutação, sempre envolto em enigmas,<br />

mistérios, intrigas e crimes surpreendentes, onde a honesti<strong>da</strong>de, a retidão, a respeitabili<strong>da</strong>de<br />

moral, a ortodoxia religiosa, o recato sexual, a inabalável convicção no progresso e na<br />

civilização, os pilares dos valores vitorianos, estão abertos a questionamentos.<br />

No contexto do mundo <strong>da</strong>s letras, Arthur Conan Doyle (1859-1930) é<br />

contemporâneo de um expressivo grupo de brilhantes escritores, dramaturgos e poetas. Conan<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Doyle compartilhou de um período do qual fazem parte Bram Stoker (1847-1912), Robert<br />

Louis Stevenson (1850-1894), Rudyard Kipling (1865-1936), Joseph Conrad (1857-1924)<br />

Oscar Wilde (1854-1900), Bernard Shaw (1856-1950), Willian Butler Yeats (1865-1939),<br />

H.G. Wells (1866-1946), Thomas Hardy (1840-1928), G. K. Chesterton (1874-1936). No<br />

ápice do poderio britânico e na consoli<strong>da</strong>ção de mundo urbano e industrial, no auge <strong>da</strong><br />

expansão <strong>da</strong> civilização européia e no limiar de uma revelação de um mundo de<br />

possibili<strong>da</strong>des e complexi<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong> não categoriza<strong>da</strong>s, o universo <strong>da</strong> narrativa e <strong>da</strong> ficção<br />

transitava entre o conservadorismo e a exploração de inúmeras outras possibili<strong>da</strong>des, <strong>da</strong><br />

exposição <strong>da</strong> hipocrisia <strong>da</strong> civilização e do comportamento social às narrativas fantasiosas de<br />

mundos futuros, <strong>da</strong> exploração e agruras do cotidiano <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> urbana aos mistérios e<br />

profundezas sombrias <strong>da</strong> alma humana, <strong>da</strong>s explicações fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s na crença cristã à<br />

exposição <strong>da</strong> complexa maquinaria do mundo mecanizado. Ou seja, o mundo narrado<br />

convivia entre a aceitação inquestionável dos valores <strong>da</strong> civilização tal como concebi<strong>da</strong> até<br />

então e o questionamento desses valores, a partir de um tênue vislumbre de outras<br />

possibili<strong>da</strong>des de perceber, entender e categorizar o mundo.<br />

Nesse contexto, podemos adiantar que, a agu<strong>da</strong> percepção de Sherlock Holmes, que<br />

não deixa escapar nenhum detalhe na busca de solução para os enigmas que tem pela frente<br />

faz dele um ser humano pronto a perceber, entender, categorizar e delimitar os mistérios que<br />

estão presentes nesse novo mundo que os ci<strong>da</strong>dãos, moradores <strong>da</strong> urbes pré-moderna no final<br />

do século XIX, precisam enfrentar.<br />

Precisamos in<strong>da</strong>gar agora quais os motivos que fizeram do detetive Sherlock Holmes<br />

esta figura tão popularmente conheci<strong>da</strong>, admira<strong>da</strong> e respeita<strong>da</strong>, tornando Conan Doyle um<br />

escritor mundialmente mais conhecido dentre todos os outros brilhantes escritores seus<br />

contemporâneos.<br />

Em The short Oxford history of English Literature, Andrew Sanders agrupa Kipling e<br />

Conrad como escritores que retratam, sob pontos de vista distintos, o expansionismo colonial<br />

do período; Stoker, Conan Doyle e Stevenson são tratados como escritores que abor<strong>da</strong>ram os<br />

mistérios, o lado sombrio do ser humano, o sobrenatural e o inexplicável.<br />

O naufrágio de um navio nas costas <strong>da</strong> ilha que traz para a Inglaterra o poder<br />

malevolente e um desconforto espiritual desconcertante personificado pelo vampiro Drácula,<br />

em uma narrativa, marca<strong>da</strong> por uma sexuali<strong>da</strong>de perversa, que entremeia diários, cartas,<br />

periódicos e recortes de jornal e avança para além de dilemas morais, é a história fantástica e<br />

sobrenatural, a obra prima, que nos deixou o dublinense Stoker. À solta na ci<strong>da</strong>de está o ser<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

<strong>da</strong> noite, alérgico à luz solar, tenebroso sombrio e solitário, pronto a infectar os puros com seu<br />

sangue imortal; a mal<strong>da</strong>de, a perversão, o maligno, a infecção, momentaneamente afastados<br />

por símbolos de um cristianismo em sobressalto. A herança de Bram Stoker é também tão<br />

duradoura como a de Conan Doyle. Desde quando apareceu em 1897, na ci<strong>da</strong>de de Londres, o<br />

vampiro não mais deixou de fazer parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> urbana; dos cinemas às livrarias, dos<br />

subterrâneos aos condomínios de luxo.<br />

A herança que nos deixa Stevenson é a fantástica história de uma possessão maligna<br />

desencadea<strong>da</strong> por uma droga que libera instintos e comportamentos animalescos de uma<br />

perversi<strong>da</strong>de obscura, em surtos de dupla personali<strong>da</strong>de – surtos esquizofrênicos -<br />

gra<strong>da</strong>tivamente impossíveis ao controle <strong>da</strong> razão. Em The Strange Case of Dr Jekil and Mr<br />

Hyde (1886) o médico e o monstro, Robert Louis Stevenson, também escocês assim como<br />

Doyle, retoma o tema do duplo – o doppelganger – para retratar os temores e os segredos<br />

obscuros <strong>da</strong> metrópole vitoriana. A história de possessão maligna já anteriormente narra<strong>da</strong> em<br />

Confessions of a Justified Sinner (1824) pelo também escocês James Hogg, também como um<br />

caso de doppelganger, em que um calvinista justificado comete inúmeros crimes sob o<br />

comando de seu duplo demoníaco, é aponta<strong>da</strong> como uma <strong>da</strong>s inspirações para o médico e o<br />

monstro. Enquanto que para Hogg a possessão pelo outro/duplo era um caso envolto por<br />

questões teológicas/religiosas, para Stevenson a possessão era um caso decorrente dos<br />

avanços <strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong>s incertezas de uma fascinação pós-<strong>da</strong>rwiniana pela regressão do ser<br />

humano ao um estágio animalesco.<br />

Tanto o vampiro de Bram Stoker quanto a presença do duplo no médico e o monstro<br />

de Stevenson, fazem parte do nosso imaginário e representam possibili<strong>da</strong>des de caracterização<br />

de comportamentos excêntricos, desvios sociais, atos ilícitos, patologias e ativi<strong>da</strong>des<br />

criminosas. Os enigmas e mistérios, mesmo que continuem sobrenaturais, têm possíveis<br />

explicações.<br />

Retornando ao Ho-ba-la-lá é importante e pertinente destacar aqui que a figura do<br />

vampiro, explicitamente presente na entrevista com o aprendiz de vampiro e em a <strong>da</strong>nça dos<br />

vampiros” e a presença furtiva de um doppelganger não necessariamente malignos, em os<br />

dois joões e na figura de Alselmo, que canta para Sherlock uma pequena ária atribuí<strong>da</strong> a<br />

Johann Sebastian Bach, fazem parte do relato de Eric Fischer em sua busca por possibili<strong>da</strong>des<br />

de explicação para o comportamento excêntrico do músico com quem ele quer encontrar-se.<br />

Talvez a presença mais marcante de um doppelganger esteja no episódio em que o narrador<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

registra o suicídio de um americano com quem dividia seu apartamento juntamente com um<br />

grupo de outros estrangeiros que, por algum motivo, estavam no Rio de Janeiro.<br />

Os mistérios e suas possíveis explicações são, portanto, temas caros e inquietantes e<br />

de grande apelo popular aos contemporâneos de Conan Doyle, e assim permanecem até os<br />

dias de hoje. A criminali<strong>da</strong>de e o lado sombrio e noturno <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> na ci<strong>da</strong>de também eram<br />

temas fascinantes e de forte apelo popular: histórias de mulheres assassina<strong>da</strong>s e retalha<strong>da</strong>s,<br />

velhos massacrados por ladrões, pessoas arremessa<strong>da</strong>s dos trens, amantes alvejados e<br />

queimados com ácido, tudo isso era parte de uma narrativa policial corrente nos anos <strong>da</strong><br />

segun<strong>da</strong> metade do século XIX. O fascínio do imaginário popular pelo lado obscuro do ser e<br />

pela explicação e esclarecimento de crimes e assassinatos misteriosos irá encontrar em<br />

Sherlock Holmes uma aliado capaz de apaziguar os medos e temores de uma imaginação<br />

ain<strong>da</strong> perplexa perante a vi<strong>da</strong> em um aglomerado urbano que no final do século XIX já<br />

contava com uma população de mais de cinco milhões de pessoas em um convívio<br />

compulsório, “naturalmente atraí<strong>da</strong>s por Londres, essa grande fossa a que irresistivelmente<br />

vão ter todos os vadios e desocupados do império”, conforme palavras de Watson, ain<strong>da</strong> antes<br />

de ter conhecido Sherlock.<br />

Na história A study in Scarlet, Arthur Conan Doyle apresenta Sherlock Holmes ao<br />

público leitor em 1887. Mas é a partir de 1891, com a publicação <strong>da</strong> história A scan<strong>da</strong>l in<br />

Bohemia na revista The Strand, que o sucesso e a populari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s aventuras de Sherlock<br />

Holmes começam a se firmar entre os leitores. Quando em dezembro de 1893, a morte de<br />

Sherlock Holmes foi anuncia<strong>da</strong> em The Final Problem, a revista perdeu cerca de vinte mil<br />

assinantes; Holmes já era parte do imaginário coletivo e Conan Doyle se vê obrigado a trazêlo<br />

de volta para decifrar inúmeros outros mistérios. As histórias de Sherlock Holmes vão<br />

continuar sendo publica<strong>da</strong>s na revista The Strand até 1927, ou seja, durante um quarto de<br />

século as aventuras de um detetive com um poder de observação super aguçado, capaz de<br />

solucionar os casos mais misteriosos e enigmáticos alcançam um número expressivo de<br />

leitores no mundo. A parceria entre The Strand e Sherlock Holmes tornaria Conan Doyle um<br />

dos escritores mais populares de sua época.<br />

O ambiente sombrio, nebuloso e caótico <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Londres, os assassinatos e<br />

desaparecimentos, a presença constante do mistério a ser decifrado pela perseverança e<br />

sagaci<strong>da</strong>de de Sherlock Holmes irão sempre ofuscar as outras obras de Conan Doyle e to<strong>da</strong><br />

sua história pessoal. Conan Doyle também se destaca na socie<strong>da</strong>de inglesa como um defensor<br />

e praticante convicto do espiritismo, o que certamente é visto com muita reserva por seus<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

contemporâneos. Independente disso, As aventuras de Sherlock Holmes, hoje, compõem um<br />

“Canon” que agrupa 56 histórias e 4 romances, embora vez ou outra apareçam histórias ti<strong>da</strong>s<br />

como casos inéditos solucionados por Sherlock. As aventuras protagoniza<strong>da</strong>s por Sherlock<br />

Holmes passam a constituir um modelo/matriz para outras aventuras protagoniza<strong>da</strong>s por<br />

outros detetives igualmente perspicazes, excêntricos e espirituosos. Além de matriz/modelo<br />

para inúmeros outros detetives envoltos em misteriosos crimes e intrigas, em lugares tão<br />

distintos quanto o vagão de um luxuoso trem e ruas sombrias de uma grande ci<strong>da</strong>de, Sherlock<br />

Holmes irá igualmente protagonizar outras aventuras classifica<strong>da</strong>s como pastiches.<br />

Considerando pastiche como a imitação de um estilo, é surpreendente a número de<br />

histórias que delibera<strong>da</strong>mente retomam o estilo e as personagens <strong>da</strong>s aventuras de Sherlock e<br />

recriam outras narrativas. Uma breve pesquisa no Google irá comprovar a presença do<br />

universo sherlockiano em centenas de histórias publica<strong>da</strong>s nos últimos anos, histórias que não<br />

seriam possíveis sem a originali<strong>da</strong>de criativa de Conan Doyle. O detetive e seu aju<strong>da</strong>nte<br />

Watson já não pertencem mais ao seu criador original, tal é sua populari<strong>da</strong>de. Fazem parte de<br />

um imaginário que torna possível e obrigatória a presença desses atores em qualquer situação<br />

que envolva um enigma, um mistério ou algo de sobrenatural que exige diferentes maneiras<br />

de perceber, entender e explicar o mundo.<br />

Portanto é em Sherlock Holmes que Eric Fischer vai se transvestir para, com aju<strong>da</strong><br />

de um Watson na figura de uma mulher, tentar entender e explicar a energia criativa e a<br />

reclusão excêntrica de um músico cuja voz foi lhe apresenta<strong>da</strong> por um amigo no Japão. E na<br />

busca por esse entendimento, Eric/Holmes vive sua aventura nos trópicos e retrata, em uma<br />

perspectiva leve, mas ao mesmo tempo, angustiante, suas impressões sobre quem poderia ser<br />

esse artista perfeito que ele tanto quer ouvir pessoalmente e quais os motivos que o tornam<br />

inalcançável.<br />

No início de sua narrativa, em primeira pessoa, logo depois de ter se apresentado<br />

como Sherlock, acompanhado de seu assistente Watson, Eric Fischer expõe os motivos que o<br />

levam a buscar um encontro pessoal com João Gilberto; em primeiro lugar, porque o músico é<br />

a personificação de um enigma, a respeito de quem circula histórias estranhas, ver<strong>da</strong>deiras e<br />

estapafúrdias, fantasiosas e inventa<strong>da</strong>s; em segundo lugar, porque ao ouvir a canção Ho-bala-lá,<br />

na casa de um jornalista japonês, Fischer sentiu-se como que contaminado por um vírus,<br />

sentiu-se como alguém perante uma revelação de um “Bu<strong>da</strong> com um violão”, sentiu-se como<br />

alguém que tivesse ouvido “a essência de alguma coisa [...] um conto de Hemingway, depois<br />

de ele ter cortado todos os adjetivos”.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Holmes/Fischer alerta que o caráter enigmático de João o perturba, e desde o início<br />

de sua narrativa, nos comentários que ele ouve a respeito do comportamento do músico<br />

sempre aparecem palavras como doido, maluco, que conversa com os gatos, uiva para a lua e<br />

fala com os mortos. Movido pelo enigma e pelo mistério, esse detetive jornalista quer,<br />

portanto, encontrá-lo “porque não está claro se se trata de um louco, de um excêntrico, de um<br />

fantasma, de um homem invisível, de um monge ou de alguém alérgico ao sol”. E cheio de<br />

perguntas que o acor<strong>da</strong>m durante a noite, Sherlock pega seu instrumento musical, aqui no<br />

caso, seu violão e sai em busca de respostas.<br />

Envolto nesse clima quase que sobrenatural alheio à razão e propenso às explicações<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s na anormali<strong>da</strong>de e no excêntrico, a história de Ho-ba-la-lá se desenrola no meio de<br />

um agitado Rio de Janeiro onde as tropas e os blin<strong>da</strong>dos do Bope começam a ocupar o<br />

morros, e as pessoas formam fila na entra<strong>da</strong> do cinema para ver o filme Tropa de Elite 2; onde<br />

um ex-juiz alemão <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Hamburgo está próximo a um palácio do sexo, observando as<br />

meninas, sobretudo as negras, o ex-juiz que ficou famoso por ter sido flagrado cheirando<br />

cocaína; onde um morador <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de se joga do 11º an<strong>da</strong>r de um edifício A violência, a<br />

droga, o turismo sexual, a solidão e o desespero <strong>da</strong> grande ci<strong>da</strong>de também compõem o quadro<br />

em que esse perturbado Sherlock Holmes está a procura de esclarecimentos.<br />

Perturbado, inquietamente ansioso em busca de respostas que possam minimizar uma<br />

espécie de ansie<strong>da</strong>de permanente e constante, o obstinado Holmes/Fischer acredita fielmente<br />

nas palavras <strong>da</strong> canção “é o amor o ho-ba-la-lá [...] quem ouvir o ho-ba-la-lá/ terá feliz o<br />

coração”. No fundo a busca pelo enigmático cantor na<strong>da</strong> mais é mais do que a busca por uma<br />

possível cura para essa ansie<strong>da</strong>de, a busca por uma revelação somente possível através do som<br />

<strong>da</strong> voz <strong>da</strong>quele cantor e do seu violão.<br />

No decorrer de suas investigações sobre o paradeiro do inventor <strong>da</strong> bossa-nova,<br />

Holmes decide entrar em contato com os contemporâneos, com os conhecidos, com os<br />

amigos, as namora<strong>da</strong>s e as mulheres, enfim com to<strong>da</strong>s aquelas pessoas que de alguma maneira<br />

conviveram ou ain<strong>da</strong> convivem ou têm acesso ao músico, para assim poder aproximar-se o<br />

máximo possível de quem ele estava procurando. Nesse trajeto conhecemos um pouco <strong>da</strong><br />

história <strong>da</strong> bossa nova, aquele jeito diferente de tocar samba que alia as harmonias jazzísticas<br />

com a clave rítmica de uma habanera com suingue <strong>da</strong> Bahia, que surge na ci<strong>da</strong>de do Rio de<br />

Janeiro, ain<strong>da</strong> a Capital do Brasil, no final dos anos de 1950 – os anos dourados. Nesse roteiro<br />

pela história <strong>da</strong> bossa nova, ficamos sabendo dos nomes dos músicos, poetas letristas, artistas,<br />

donos de loja de discos, jornalistas, produtores musicais, de alguma forma, contemporâneos<br />

195


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

do músico. Conhecemos os bares e restaurantes freqüentados por esse grupo, conhecemos um<br />

garçom e o prato preferido de João. Nesse roteiro também vai sendo desven<strong>da</strong><strong>da</strong> a história de<br />

João Gilberto e de suas i<strong>da</strong>s e vin<strong>da</strong>s entre a Bahia, o Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e<br />

Minas Gerais, antes de tornar-se o inventor <strong>da</strong> arte, <strong>da</strong> nova bati<strong>da</strong>, <strong>da</strong> voz que iria<br />

revolucionar o jeito de fazer música no Brasil.<br />

O narrador prossegue em sua busca pelos contemporâneos de João Gilberto e<br />

desloca-se do Rio de Janeiro para Diamantina para visitar o banheiro <strong>da</strong> casa dos tios do<br />

cantor, onde ele teria descoberto o som, a fórmula, a receita, o arranjo a partir dos quais o<br />

Brasil iria deixar a marca de sua arte na paisagem sonora do mundo, na segun<strong>da</strong> metade do<br />

século XX. Nesta ci<strong>da</strong>de de Minas Gerais, conhece pessoas que conheceram pessoalmente o<br />

músico, vai à casa onde ele morou, vai ao banheiro <strong>da</strong> casa - sabe que foi lá que o músico<br />

inventou/descobriu sua fórmula por causa <strong>da</strong> acústica do espaço, mas sua<br />

ansie<strong>da</strong>de/necessi<strong>da</strong>de de encontrar-se com João ain<strong>da</strong> é mais forte. Ele volta para o Rio e tem<br />

um encontro com Claudia, uma recente namora<strong>da</strong>, com quem João tem uma filha.<br />

Ao longo de todos esses encontros e conversas, Holmes/Fischer/narrador vai<br />

construindo uma colagem de quem seria João Gilberto a partir <strong>da</strong>s imagens delinea<strong>da</strong>s pelas<br />

palavras de seus interlocutores. Um doido, louco, um caso de internamento, um músico<br />

perfeccionista, obstinado e intratável. De excêntrico e estranho, João vai se revelando como<br />

um homem com uma percepção auditiva aguça<strong>da</strong>, que identifica os tons no canto dos pássaros<br />

e que prefere a noite para viver; um praticante de meditação; um vampiro que contamina<br />

todos que o encontram. “Alguém que canta como se um mantra envolvesse todo o seu ser [...]<br />

eletrizante, estranho”. E em meio a essas revelações, o narrador vai tecendo comentários<br />

sobre a arte, sobre sua ansie<strong>da</strong>de, sobre sua busca pelo amor expresso na canção.<br />

Holmes, então hospe<strong>da</strong>do no hotel Copacabana Palace, sente ca<strong>da</strong> vez mais a<br />

presença de vampiros, desorientado em relação a quais histórias sobre João são ver<strong>da</strong>deiras e<br />

quais não; encontra-se com Miúcha ex-mulher de João; vai a um bar com Anselmo, onde este<br />

duplo do músico toca e canta como João; visita um mirante que João tem por hábito visitar, de<br />

onde se avista a ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro; pensa em comprar um gato para presentear o<br />

cantor, tenta a todo custo de libertar-se de sua ansie<strong>da</strong>de. Alguns dias antes de voltar para a<br />

Alemanha, Holmes recebe um telefone às quatro <strong>da</strong> manhã, quem está do outro lado <strong>da</strong> linha<br />

não diz uma palavra, ele quer ouvir a respiração de alguém e ouve então, a canção Ho-ba-lalá<br />

e depois o silêncio. “E ali permanece a pergunta não respondi<strong>da</strong>, para todo o sempre”. De<br />

196


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

volta à Alemanha, o jornalista Eric Fischer morre em circunstâncias misteriosas, antes <strong>da</strong><br />

publicação de sua história à procura de João Gilberto.<br />

Retomando nossa pergunta inicial, nossa reposta não pode deixar de ser ambígua.<br />

Ho-ba-la-lá, à procura de João Gilberto é uma narrativa detetivesca. Certamente um pastiche<br />

de Sherlock Holmes ain<strong>da</strong> não catalogado entre as centenas de outras aventuras de detetive;<br />

certamente um recurso estilístico/narrativo para entremear ficção e reali<strong>da</strong>de, jornalismo e<br />

relato de viagem, em uma busca incansável por um imprevisível e misterioso músico.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

DOYLE, A. C. Um estudo em vermelho. Disponível em:<br />

.<br />

FISCHER, M. Ho-ba-la-lá: à procura de João Gilberto. (tradução de Sergio Tellaroli). São<br />

Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2011.<br />

HOGG, J. The Private Memoirs and Confessions of a Justified Sinner. London: Penguin,<br />

1987.<br />

SANDERS, A. The Short Oxford History of English Literature. Oxford: Oxford University<br />

Press, 1994.<br />

STEVENSON, R. L. O Médico e o Monstro.(tradução de Rodrigo Lacer<strong>da</strong>). Rio de Janeiro:<br />

Editora Nova Fronteira, 1992.<br />

______ . The Strange of Doctor Jekill and Mr Hyde. Oxford: Oxford University Press, 1989.<br />

STOKER, B. Dracula. (tradução de Adriana Lisboa). Rio De Janeiro: Ediouro Publicações,<br />

1998.<br />

197


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O pós-modernismo em La ver<strong>da</strong>d sobre el caso Savolta<br />

MARCARI, Maria de Fátima Alves de Oliveira (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: La ver<strong>da</strong>d sobre el caso Savolta (1975), primeira obra do escritor barcelonês<br />

Eduardo Mendoza, inaugura uma fase de transição na literatura espanhola, ao combinar<br />

aspectos <strong>da</strong> narrativa tradicional com elementos pós-modernos como o hibridismo, a<br />

fragmentação discursiva, a paródia e o pastiche. A história se passa principalmente na<br />

segun<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> do século passado, em uma Barcelona marca<strong>da</strong> pela ascensão dos<br />

movimentos anarquistas, manifestações grevistas e violenta repressão policial. A narrativa<br />

apresenta uma rica galeria de personagens, dentre os quais se destaca Javier Miran<strong>da</strong>, um<br />

jovem ingênuo que, ao participar de um processo de investigação policial, rememora sua vi<strong>da</strong><br />

ao lado de um de seus patrões, Lepprince. Assim, o romance narra também a ascensão e<br />

que<strong>da</strong> de Paul Lepprince, um homem misterioso que se associa ao empresário Savolta, dono<br />

de uma fábrica de armas que prospera ao manter negócios com os aliados durante a Primeira<br />

Guerra Mundial. Nosso trabalho objetiva analisar os procedimentos narrativos presentes no<br />

romance, tais como a combinação de vários registros discursivos e o hibridismo de gêneros<br />

como o relato folhetinesco, o romance histórico e o relato detetivesco. Os gêneros são alvos<br />

<strong>da</strong> trangressão paródica e do pastiche, que subvertem as expectativas do romance detetivesco<br />

e do folhetim, assim como problematizam a legitimi<strong>da</strong>de dos discursos históricos.<br />

PALAVRAS-CHAVE: pós-modernismo; romance histórico; hibridismo; Eduardo Mendoza<br />

(1943), La ver<strong>da</strong>d sobre el caso Savolta.<br />

RESUMEN: La ver<strong>da</strong>d sobre el caso Savolta (1975), la primera obra del escritor barcelonés<br />

Eduardo Mendoza, inaugura una fase de transición en la literatura espanhola, al combinar<br />

aspectos de la narrativa tradicional con elementos postmodernos como el hibridismo, la<br />

fragmentación discursiva, la parodia y el pastiche. La historia transcurre principalmente en la<br />

segun<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> del siglo pasado, en una Barcelona marca<strong>da</strong> por la ascensión del<br />

movimiento anarquista, manifestaciones huelguistas y violenta represión policial. La narrativa<br />

presenta una rica galería de personajes, entre los cuales se destaca Javier Miran<strong>da</strong>, un joven<br />

ingenuo que, al participar en un proceso de investigación policial, rememora su vi<strong>da</strong> al lado<br />

de su antiguo jefe, Lepprince. Así, la novela narra también el ascenso y caí<strong>da</strong> de Paul<br />

Lepprince, un hombre misterioso que se asocia con Savolta, dueño de una fábrica de armas<br />

que prospera al mantener negocios con los aliados durante la Primera Guerra Mundial. El<br />

objetivo del trabajo es analizar los procedimientos narrativos presentes en la novela, tales<br />

como la combinación de varios registros discursivos - declaraciones policiales, cartas, notícias<br />

de periódicos, panfletos políticos -, y la mezcla de géneros como el relato folletinesco, la<br />

novela histórica y el relato detectivesco. Los gêneros son blanco de trangresión paródica y de<br />

pastiche, que subvierten las expectativas de la novela detectivesca y del folletín, asi como<br />

problematizan la legitimi<strong>da</strong>d de los discursos históricos.<br />

PALABRAS CLAVE: postmodernismo; novela histórica; hibridismo; Eduardo Mendoza<br />

(1943), La ver<strong>da</strong>d sobre el caso Savolta.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Mais de trinta anos após a primeira edição de La ver<strong>da</strong>d sobre el caso Savolta,<br />

observamos um consenso crítico que considera o primeiro romance do barcelonês Eduardo<br />

Mendoza um dos marcos do retorno <strong>da</strong> trama argumental à produção literária espanhola, após<br />

o primado do experimentalismo narrativo <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> Geração de 68. Considerado pela<br />

maioria dos críticos como uma narrativa pós-moderna, o romance também pode ser<br />

classificado como uma narrativa de extração histórica (TROUCHE, 2006) ou novo romance<br />

histórico (AÍNSA, 1991; MENTON, 1993), uma vez que apresenta um revisionismo crítico<br />

<strong>da</strong> história, ao lado <strong>da</strong> exploração de diversos gêneros narrativos, entre outros elementos que<br />

caracterizam o subgênero. Caracterizado pela fragmentação narrativa e pelo hibridismo tanto<br />

formal como discursivo, o romance de Mendoza contrapõe tempos e espaços, múltiplas vozes<br />

narrativas, além do pastiche de registros discursivos, tais como: panfletos políticos,<br />

depoimentos jurídicos, cartas, e a incorporação paródica de gêneros narrativos como o<br />

folhetim e o relato detetivesco.<br />

A obra, dividi<strong>da</strong> em duas partes e subdividi<strong>da</strong> em quinze capítulos (dez na primeira<br />

parte e cinco na segun<strong>da</strong>), apresenta uma plurali<strong>da</strong>de de vozes narrativas que vão reduzindose<br />

na segun<strong>da</strong> parte. A trama centra-se na figura de Javier Miran<strong>da</strong>, um jovem e ingênuo<br />

advogado nascido em Valladolid, que tenta ascender profissionalmente na Barcelona de 1917.<br />

Dez anos mais tarde, Javier Miran<strong>da</strong> participa de um processo jurídico em Nova York e, a<br />

partir desse processo, passa a rememorar os acontecimentos de sua vi<strong>da</strong>. Assim, os<br />

depoimentos jurídicos de Miran<strong>da</strong> deflagram o argumento do romance, que é sobretudo<br />

analéptico, dedicado ao período de 1917 a 1919. O jovem advogado rememora sua vi<strong>da</strong> e<br />

também a ascensão e que<strong>da</strong> de seu patrão, Paul André Lepprince, um belo estrangeiro,<br />

visionário e de origem misteriosa, empenhado em fazer fortuna em Barcelona. Lepprince se<br />

aproveita <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des militares <strong>da</strong> 1 a Guerra Mundial (1914-1918) para relacionar-se<br />

com o proprietário de uma fábrica de armas, Savolta. Em pouco tempo, Lepprince ganha a<br />

confiança do empresário, passa a dirigir a fábrica, casa-se com a filha de Savolta e enriquece<br />

rapi<strong>da</strong>mente ao montar um próspero esquema de contrabando de armas para os aliados, às<br />

escondi<strong>da</strong>s de seu sogro. Savolta e outros dois diretores <strong>da</strong> fábrica, são assasinados e<br />

Lepprince, falido após o término <strong>da</strong> guerra, morre no final do romance, em circunstâncias<br />

misteriosas, durante um incêndio na fábrica.<br />

Jacques Soubeyroux (1994, p. 371), eluci<strong>da</strong> algumas fontes históricas utiliza<strong>da</strong>s pelo<br />

autor, ao demonstrar que o personagem Savolta inspira-se na figura real de José Alberto<br />

Barret (1865-1918), proprietário de uma fábrica de armas em Barcelona, que morreu<br />

199


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

assasinado em 1918, assim como o personagem do livro de Mendoza. Na época, as<br />

autori<strong>da</strong>des atribuíram sua morte aos grupos anarquistas, mas estes responsabilizaram un<br />

grupo de espiões alemães que atuava em Barcelona com a finali<strong>da</strong>de de impedir as ativi<strong>da</strong>des<br />

dos empresários que trabalhavam para os aliados, mais especificamente para os franceses.<br />

A obra recria o ambiente <strong>da</strong> Barcelona <strong>da</strong>s primeiras déca<strong>da</strong>s do século XX,<br />

caracterizado pelo contraste entre o luxo <strong>da</strong> burguesía e a miséria do proletariado industrial,<br />

origem principal dos conflitos sociais. Assim, o romance retrata uma Barcelona marca<strong>da</strong><br />

pelos movimentos anarquistas, pelo terrorismo do proletariado e o chamado "terrorismo<br />

branco" dos agentes de grupos paramilitares e de espionagem internacional. O revisionismo<br />

histórico surge através <strong>da</strong> tematização <strong>da</strong> opressão social, do relato <strong>da</strong>s represálias e atentados<br />

em que se envolvem tanto os anarquistas e operários como os empresários. As manifestações<br />

grevistas dos operários <strong>da</strong> fábrica de Savolta são sufoca<strong>da</strong>s e os líderes são agredidos<br />

violentamente a mando de Lepprince. Os nomes dos grevistas agredidos, por sua vez,<br />

inspiram-se nos nomes de vários trabalhadores mortos durante as rebeliões deflagra<strong>da</strong>s em<br />

Barcelona e outras ci<strong>da</strong>des <strong>da</strong> região <strong>da</strong> Catalunha contra o recrutamento compulsório para a<br />

Guerra de Melilla (1909), no norte <strong>da</strong> África. Os acontecimentos ficaram conhecidos como<br />

Semana Trágica (1909), e foram duramente reprimidos pelo governo conservador de Antonio<br />

Maura. Desse modo, o autor joga com os referenciais históricos, recriando-os mediante<br />

anacronismos, que conferem status histórico ao relato. Os textos históricos e jornalísticos são<br />

alvo do pastiche e <strong>da</strong> paródia, os quais problematizam a ideia <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de dos discursos<br />

históricos, com o fim de denunciar a extensão do poder dos dirigentes sociais no âmbito<br />

histórico.<br />

Conforme observa Tosaus (2005), Eduardo Mendoza rememora o passado espanhol<br />

para tentar interpretar fatos do presente. Assim, a intriga do romance, situa<strong>da</strong> em 1917,<br />

refletiria, de certo modo, os dramáticos acontecimentos que o país estava vivendo desde<br />

meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de sessenta até o início dos anos setenta, época <strong>da</strong> publicação do romance:<br />

o ressurgimento do anarco-terrorismo, os assassinatos e sequestros de políticos, a gradual<br />

instauração <strong>da</strong> democracia, o ressurgimento <strong>da</strong>s centrais sindicais e <strong>da</strong> repressão social contra<br />

sindicalistas, a execução <strong>da</strong>s últimas sentenças de morte no país, etc. Neste sentido, o<br />

romance busca expressar uma concepção cíclica <strong>da</strong> história, característica comum aos<br />

romances históricos contemporâneos.<br />

O anarquismo é um dos grandes protagonistas do livro de Mendoza. Em 1917, ano<br />

em que se passa grande parte <strong>da</strong> ação, a Confederação Nacional do Trabalho (CNT), que<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

reunia sindicatos de ideologia anarcossindicalista, contava com 700.000 afiliados, sendo<br />

100.000 deles somente em Barcelona. Em La ver<strong>da</strong>d sobre el caso Savolta, o anarquista<br />

utópico Domingo Pajarito de Soto, com seus panfletos inflamados, incita os trabalhadores a<br />

praticarem ações reivindicativas na fábrica de Savolta, as quais são reprimi<strong>da</strong>s pelos<br />

pistoleiros, entrando todos em uma espiral de violência que irá permear to<strong>da</strong> a narrativa. Cabe<br />

enfatizar que o romance, ao trazer à tona esse cíclico passado espanhol, elabora uma revisão<br />

ideológica do movimento anarquista, manifestando simpatia com relação aos ideais utópicos<br />

do anarquismo, mas sem deixar de lado um tom determinista: o final do anarquismo em<br />

Barcelona não poderia ser diferente, pois as classes em conflito mantinham posições radicais<br />

e violentas, sem demonstrarem nenhuma perspectiva de conciliação. O protagonista Javier<br />

Miran<strong>da</strong> interpreta e resume a situação histórica retrata<strong>da</strong> no romance de modo definitivo:<br />

Tras años y años de lucha constante y cruel, todos los combatientes (obreros<br />

y patronos, políticos, terroristas y conspiradores) habían perdido el sentido<br />

de la proporción, olvi<strong>da</strong>do los motivos y renunciado a los logros. Más<br />

unidos por el antagonismo y la angustia que separados por las diferencias<br />

ideológicas, los españoles descendíamos en confusa turbamulta una escala<br />

de Jacob inverti<strong>da</strong>, cuyos pel<strong>da</strong>ños eran venganzas de venganzas y su trama<br />

un ovillo confuso de alianzas, denuncias, represalias y traiciones que<br />

conducían al infierno de la intransigencia fun<strong>da</strong><strong>da</strong> en el miedo y el crimen<br />

engendrado por la desesperación. (MENDOZA, 2009, p. 295)<br />

A recriação <strong>da</strong> micro-história de personagens marginalizados pelo discurso histórico<br />

hegemônico, como os anarquistas e terroristas, é um importante elemento pós-moderno<br />

presente na narrativa. A imagem dos anarquistas é humaniza<strong>da</strong> por meio <strong>da</strong> criação do<br />

personagem Pajarito de Soto, que inspira-se em um anarquista histórico. O personagem<br />

representa o anarquismo utópico; uma figura quixotesca que denuncia a opressão dos<br />

trabalhadores no histórico jornal La voz de la justicia, cujos manifestos políticos são objeto de<br />

pastiche no romance. O idealismo radical e ingênuo de Pajarito leva-o a indispor-se contra<br />

seus companheiros e cair numa embosca<strong>da</strong> de Lepprince. A carta deixa<strong>da</strong> por Pajarito, que<br />

aparece apenas nas últimas páginas do romance, é peça fun<strong>da</strong>mental para a resolução dos<br />

crimes cometidos por Lepprince, o genro de Savolta.<br />

Outro personagem marginal que ganha protagonismo na segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> história é<br />

Nemesio Cabra Gomez, um pobre-diabo que representa os obscuros informantes <strong>da</strong> polícia,<br />

uma figura típica <strong>da</strong> época. Como um pícaro, pratica a mendicância e trabalha para diversos<br />

amos: Parells, diretor <strong>da</strong> fábrica que descobre os negócios ilicitos de Lepprince, e até mesmo<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

para os anarquistas. Nemesio passa a maior parte do romance tentando revelar a sua ver<strong>da</strong>de<br />

sobre o caso Savolta, mas ninguém o escuta, devido à sua condição social. Ele é o único que<br />

tenta denunciar a inocência dos anarquistas e a culpabili<strong>da</strong>de de Lepprince pelas mortes de<br />

Savolta e Pajarito. Mas a polícia o segue e consegue prender os anarquistas, e Nemésio<br />

enlouquece ao presenciar o fuzilamento dos antigos colegas. A atuação dos dois personagens,<br />

o idealista Pajarito e o obscuro Nemésio fornece as pistas ao leitor para a solução dos crimes.<br />

Até mesmo a figura dos anarco-terroristas é humaniza<strong>da</strong> na narrativa. No início <strong>da</strong><br />

narrativa, Javier Miran<strong>da</strong> comenta que sempre teve uma visão pitoresca dos anarquistas:<br />

“hombres barbados, cejijuntos y graves, ataviados con faja, blusón y gorra, [...] en los<br />

rincones oscuros de las calles tortuosas, en los tugurios, en espera de que llegase su<br />

momento para bien o para mal” (MENDOZA, 2009, p. 113). No final, os anarquistas surgem<br />

humanizados na descrição de Julián e seus companheiros, a caminho do fuzilamento pelas<br />

autori<strong>da</strong>des, que lhes atribuem injustamente a culpa pelo assassinato de Savolta: “Julián [...]<br />

muy pálido, con los ojos hundidos y el an<strong>da</strong>r vacilante, como si sus guardianes [...] no<br />

hubieran cui<strong>da</strong>do de sanar su heri<strong>da</strong>” (MENDOZA, 2009, p. 269).<br />

Na segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> obra, o referencial histórico cede lugar a uma narrativa linear,<br />

mais centra<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong> e percalços por que passa o jovem Javier Miran<strong>da</strong>, o aju<strong>da</strong>nte de<br />

Lepprince, que fica fascinado pela jovem Maria Coral, uma personagem que encarna o<br />

estereótipo romântico <strong>da</strong> cigana misteriosa e sensual, capaz de levar os homens a cometer atos<br />

insanos. Ela é uma <strong>da</strong>s protagonistas <strong>da</strong> recriação paródica do romance rosa e do folhetim<br />

nessa segun<strong>da</strong> parte do livro, que narra o caso de amor idealizado de Javier Miran<strong>da</strong> por<br />

María Coral. Miran<strong>da</strong> resgata a cigana de um cabaré, acreditando que ela é apenas uma<br />

bailarina, mas na ver<strong>da</strong>de, a bela cigana é uma prostituta desvali<strong>da</strong>, que foi amante de<br />

Lepprince, que agora é um homem casado e com uma posição social respeitável. Ele então<br />

propõe a Miran<strong>da</strong> um emprego e sugere seu casamento com Maria Coral. Miran<strong>da</strong> aceita a<br />

proposta de Lepprince, pois ingenuamente acredita que irá conquistar o amor <strong>da</strong> cigana. Os<br />

dois se casam e vão para um balneário passar a lua de mel, onde a imagem de María Coral<br />

aparece reabilita<strong>da</strong>, pois ela se comporta como uma donzela que não aceita nenhum tipo de<br />

contato corporal, e o casal passa os dias em passeios bucólicos pelo jardim do hotel. A<br />

subversão paródica do romance rosa fica evidente, já que o casamento e a lua de mel são<br />

subvencionados por Lepprince, que continua sendo o amante de Maria Coral, sem que<br />

Miran<strong>da</strong> sequer desconfie. A imagem folhetinesca de Miran<strong>da</strong> como um amante romântico<br />

que coloca a sua mulher, prostituta redimi<strong>da</strong>, num pedestal, logo cede lugar a do esposo<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

enganado mais famoso de Barcelona, objeto de escárnio público, imagem esta admiti<strong>da</strong><br />

posteriormente pelo personagem.<br />

A narrativa segue parodiando o gênero folhetinesco ao relatar as peripécias<br />

enfrenta<strong>da</strong>s por Miran<strong>da</strong> para resgatar a esposa Maria Coral, que decide fugir com o pistoleiro<br />

Max, guar<strong>da</strong>-costas de Lepprince. A subversão do folhetim aparece através <strong>da</strong> paródia do<br />

herói justiceiro encarna<strong>da</strong> por Miran<strong>da</strong>, que na ver<strong>da</strong>de é convencido por Lepprince a<br />

empreender uma missão suici<strong>da</strong> de resgate <strong>da</strong> cigana, já que seu patrão imagina que ele será<br />

assassinado por Max, numa providencial queima de arquivo. Miran<strong>da</strong> se prepara para<br />

confrontar o pistoleiro, mas é desarmado rapi<strong>da</strong>mente por Max que não o mata e obriga-lhe a<br />

ceder seu carro para a fuga. Max é morto pela Guar<strong>da</strong> Civil e Maria Coral desaparece,<br />

frustrando, assim, as expectativas do folhetim.<br />

Ao lado do folhetim, vemos a transgressão paródica do relato detetivesco tradicional,<br />

por meio <strong>da</strong> subversão dos conceitos de justiça e ver<strong>da</strong>de, comprometidos com as questões do<br />

poder. As expectativas do relato detetivesco são frustra<strong>da</strong>s quando percebemos que os<br />

depoimentos de Miran<strong>da</strong> diante do juiz na primeira parte <strong>da</strong> história não se referem ao caso<br />

Savolta, mas a uma ação movi<strong>da</strong> dez anos depois <strong>da</strong> morte de Lepprince, para promover o<br />

pagamento de um seguro deixado por ele à sua viuva. A morte de Savolta é logo<br />

erroneamente atribuí<strong>da</strong> aos anarquistas, e o comissário Vázquez, o detetive <strong>da</strong> história, é<br />

afastado do caso e enviado para assumir um posto na África. Ao contrário do relato policial<br />

clássico, o comissário Vázquez é um personagem secundário no romance. Sua ativi<strong>da</strong>de<br />

investigativa passa quase despercebi<strong>da</strong> entre as múltiplas histórias que se entrecruzam ao<br />

longo do romance, cabendo ao leitor a tarefa de investigar as mortes, por meio <strong>da</strong>s pistas<br />

deixa<strong>da</strong>s sobretudo pelos personagens secundários.<br />

Conforme observa Colmeiro (1994, p. 198), em La ver<strong>da</strong>d sobre el caso Savolta não<br />

existe uma ver<strong>da</strong>de singular e nem apenas um caso. Vários personagens atuam como<br />

investigadores que tentam descobrir a sua ver<strong>da</strong>de. Além do caso judicial e dos misteriosos<br />

crimes, destaca-se o relato autobiográfico, confessional, de Miran<strong>da</strong>, que, ao investigar por<br />

sua conta o assassinato de seu amigo Pajarito de Soto, acaba descobrindo sua vergonhosa<br />

situação conjugal. Ele passa, então, a tentar explicar seu “caso” pessoal e os duvidosos<br />

serviços que prestou a Lepprince em sua tentativa de ascensão social. No final do livro, sua<br />

esposa Maria Coral reaparece e Miran<strong>da</strong> a aceita de volta, parodiando, de certa forma, os<br />

relatos de “casos” <strong>da</strong> narrativa picaresca.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Entretanto, o romance tambem segue outras convenções do gênero policial clássico,<br />

ao eluci<strong>da</strong>r alguns dos crimes apenas nas últimas páginas do livro. O comissário Vazquez<br />

volta à Barcelona e revela a Miran<strong>da</strong> a solução de vários mistérios. A morte do anarquista<br />

Pajarito de Soto, Savolta e Parells foram encomen<strong>da</strong><strong>da</strong>s por Lepprince, como qualquer leitor<br />

mediano já esperaria; Claudedeu, o outro diretor <strong>da</strong> fábrica, no entanto, é morto pelos<br />

anarquistas. Contudo, ao contrário do que promete o título do livro, que parodia a pretensa<br />

objetivi<strong>da</strong>de dos romances policiais, a narrativa problematiza a capaci<strong>da</strong>de de se conhecer<br />

objetivamente a reali<strong>da</strong>de, já que outros fatos mais importantes permanecem sem solução:<br />

quem era Lepprince, quem o matou, quem o respal<strong>da</strong>va economicamente e, finalmente, quem<br />

mata o comissário Vázquez para impedir que siga desven<strong>da</strong>ndo essas questões.<br />

Além <strong>da</strong> falta de esclarecimento de questões importantes, a justiça social também<br />

não se restaura. Assim, os responsáveis pela exploração <strong>da</strong> fabricação clandestina de armas<br />

não saem <strong>da</strong>s sombras. O próprio Lepprince é assassino e também vítima de ocultos poderes<br />

superiores. O proletariado, os anarquistas, Miran<strong>da</strong> e Lepprince, todos fracassam em seus<br />

projetos de ascensão social. Neste sentido, pode-se concluir que “as indeterminações<br />

axiológicas, a ironia, a paródia, a mescla de estilos e gêneros constituiriam as ‘ver<strong>da</strong>des’<br />

edifica<strong>da</strong>s sobre as questões sociais recalca<strong>da</strong>s em La ver<strong>da</strong>d sobre el caso Savolta.”<br />

(HOLLOWAY, 1999, p. 111, trad. nossa).<br />

REFERÊNCIAS:<br />

AÍNSA, Fernando. La nueva novela histórica latinoamericana. Plural, nº 240, 1991, p. 82-85.<br />

COLMEIRO, José F. La novela policiaca española: teoría e historia crítica. Barcelona:<br />

Anthropos, 1994.<br />

HOLLOWAY, Vance R. El postmodernismo y otras tendencias de la novela española.<br />

Madrid: Fun<strong>da</strong>mentos, 1999.<br />

MENDOZA. Eduardo. La ver<strong>da</strong>d sobre el caso Savolta (1975). Barcelona: Seix Barral, 2009.<br />

MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la América Latina. México: Fondo de<br />

Cultura Económica, 1993.<br />

SOUBEYROUX, Jacques. De la historia al texto: génesis de La ver<strong>da</strong>d sobre el caso Savolta<br />

de Eduardo Mendoza. Actas del XI Congreso de la Asociación Internacional de Hispanistas.<br />

Irvine, 1994, p 370-378.<br />

204


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

TOSAUS, Eduardo R. El caso Savolta de Eduardo Mendoza, treinta años después. Espéculo:<br />

Revista de estudios literarios. Universi<strong>da</strong>d Complutense de Madrid, nº 29, 2005. Disponível<br />

em: http://www.ucm.es/info/especulo/numero29/<br />

TROUCHE, André L. G. América: história e ficção. Niterói: Ed UFF, 2006.<br />

205


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Vítima ou assassino A ficcionalização de Jorge Luis Borges em El simulador (1990)<br />

MILREU, Isis (UFCG/PG - <strong>UNESP</strong>/ <strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Jorge Luis Borges é o protagonista de El simulador (1990), do autor argentino<br />

Jorge Manzur. Nesta ficção, Adolfo Melián, conhecido também por Julio Paredes ou “El<br />

Oriental”, assalta um banco e rouba o manuscrito de um romance supostamente escrito por<br />

Borges. Após ler o texto, o assaltante resolve entregá-lo ao professor Tomás Blake,<br />

especialista na obra do escritor argentino, para que faça uma avaliação <strong>da</strong> narrativa. Por sua<br />

vez, o professor pede a opinião de Ítalo Calvino sobre o manuscrito, pois planejava vendê-lo<br />

para uma universi<strong>da</strong>de norte-americana. Sentindo-se traído, “El Oriental” resolve vingar-se de<br />

Blake e Borges será o seu instrumento de punição. Melián também pensa que como roubou o<br />

segredo do escritor argentino deve proporcionar-lhe outro mistério. Paralelamente a esse eixo<br />

narrativo, o inspetor Rinaldi busca desven<strong>da</strong>r a enigmática identi<strong>da</strong>de do assaltante. Como<br />

vimos, através dessa breve apresentação, a narrativa de Manzur pode ser incluí<strong>da</strong> no gênero<br />

policial. Entretanto, acreditamos que também é possível ler essa obra como um romance<br />

histórico, tanto pelo fato de ficcionalizar Jorge Luis Borges quanto por reconstruir um<br />

significativo período <strong>da</strong> história <strong>da</strong> Argentina. A partir dessas considerações, nos propomos<br />

neste trabalho a analisar a ficcionalização de Jorge Luis Borges em El simulador (1990),<br />

explorando as duas possibili<strong>da</strong>des de leitura indica<strong>da</strong>s anteriormente.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Borges personagem; Jorge Luis Borges; romance policial; romance<br />

histórico.<br />

RESUMEN: Jorge Luis Borges es el protagonista de El simulador (1990), del autor argentino<br />

Jorge Manzur. En esta ficción, Adolfo Melián, conocido también por Julio Paredes o “El<br />

Oriental”, asalta a un banco y roba el manuscrito de una novela supuestamente escrita por<br />

Borges. Después de leer el texto, el asaltante resuelve entregarlo al profesor Tomás Blake,<br />

especialista en la obra del escritor argentino, para que analice la narrativa. Por su turno, el<br />

profesor pide la opinión de Ítalo Calvino sobre el manuscrito pues planeaba venderlo para una<br />

universi<strong>da</strong>d norteamericana. “El Oriental” se siente traicionado y resuelve vengarse de Blake<br />

usando Borges como su instrumento de punición. Melián también piensa que como robó el<br />

secreto del escritor argentino debe proporcionarle otro misterio. Paralelamente a este eje<br />

narrativo, el inspector Rinaldi busca desven<strong>da</strong>r la enigmática identi<strong>da</strong>d del asaltante. Como<br />

vimos, al través de esta breve presentación, la narrativa de Manzur puede ser inseri<strong>da</strong> en el<br />

género policial. Pero, creemos que también es posible leerla como una novela histórica, tanto<br />

por ficcionalizar un personaje histórico como por reconstruir un significativo periodo de la<br />

historia argentina. A partir de esas consideraciones, nos proponemos a analizar en este trabajo<br />

la ficcionalización de Jorge Luis Borges en El simulador (1990), explorando las dos<br />

posibili<strong>da</strong>des de lectura, indica<strong>da</strong>s anteriormente.<br />

PALABRAS-CLAVE: Borges personaje; Jorge Luis Borges; novela policial; novela<br />

histórica.<br />

A FICCIONALIZAÇÃO DE JORGE LUIS BORGES E O GÊNERO POLICIAL<br />

206


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Além de um renomado escritor e de ser alvo de vários estudos críticos, Jorge Luis<br />

Borges é um assíduo frequentador de ficções alheias. Sabemos que esse processo começou<br />

com o próprio Borges que se autoficcionalizou em alguns de seus contos. Segundo Pablo<br />

Brescia (2008) a transformação do autor argentino em personagem tornou-se uma “doença”<br />

que tem contagiado muitos escritores e leitores, demonstrando que, atualmente, há uma<br />

tendência em “literaturizar” Borges, ou seja, convertê-lo em objeto literário. Ao analisar essas<br />

narrativas, notamos que a maior parte dos romances que ficcionalizaram o escritor argentino<br />

podem ser inseridos no gênero policial.<br />

Pensamos que a escolha desse gênero para construir uma obra que literaturiza Borges<br />

não é casual. Basta lembrar que o autor argentino não foi somente um assíduo leitor e crítico<br />

de textos policiais, mas também escreveu, junto com Adolfo Bioy Casares, sob o pseudônimo<br />

de H. Bustos Domecq, Seis problemas para Don Isidro Parodi (1942), entre outros relatos<br />

policialescos. Além disso, os dois escritores organizaram uma coletânea intitula<strong>da</strong> Los<br />

mejores cuentos policiales, dividi<strong>da</strong> em dois volumes (1943 e 1951). Sobre sua experiência<br />

com este gênero, Borges declara:<br />

Tentei o gênero policial, certa vez. Não me sinto muito orgulhoso do que fiz.<br />

Eu o levei para o terreno simbólico, que não sei se agra<strong>da</strong>. Escrevi “A morte<br />

e a bússola”, além de um ou outro texto policial com Bioy Casares, cujos<br />

contos são muito superiores aos meus. Os contos de Isidro Parodi, um preso<br />

que do cárcere soluciona os crimes (BORGES, 1999, p.229).<br />

Contrariando essa modesta avaliação do escritor argentino, Ricardo Piglia (2001)<br />

afirma que a criação de Isidro Parodi, um detetive que resolve enigmas sem sair <strong>da</strong> prisão, é a<br />

representação exemplar e paródica do romance policial clássico, baseado no fetiche <strong>da</strong><br />

inteligência pura. O crítico assinala que nesse tipo de texto se valoriza a onipotência do<br />

pensamento e a lógica e o investigador é representado como o racionalista puro que defende a<br />

lei e decifra os enigmas. Em sua opinião, Borges ao divulgar a narrativa policial clássica na<br />

Argentina<br />

[...] por un lado buscaba crear una recepción adecua<strong>da</strong> para sus propios<br />

textos y trataba de hacer conocer un tipo de relato y de manejo de la intriga<br />

que estaba en el centro de su propia poética y que por otro lado hizo un uso<br />

excelente del género: La muerte y la brújula es el Ulysses del relato policial.<br />

La forma como llega a su culminación y se desintegra (PIGLIA, 2001, p.60).<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Desse modo, o autor explicita que o escritor argentino utilizou o gênero policial para<br />

construir um espaço de leitura para suas próprias obras, ao mesmo tempo em que contribuía<br />

para o aperfeiçoamento desse tipo de relato. Nesse sentido, La muerte y la brújula tornou-se<br />

paradigmática para a narrativa policial, já que ao mesmo tempo em que aperfeiçoa o gênero,<br />

também subverte suas regras. Ao compará-lo com uma <strong>da</strong>s obras mais inovadoras <strong>da</strong><br />

literatura ocidental, o estudioso revaloriza a contribuição de Borges para o gênero policial,<br />

distanciando-se de sua despretensiosa autoavaliação, apresenta<strong>da</strong> anteriormente.<br />

Em outro estudo, Piglia (1994) aponta que a estrutura dos contos do escritor<br />

argentino é basea<strong>da</strong> no modelo <strong>da</strong> narrativa policial clássica, forma<strong>da</strong> por duas histórias (uma<br />

visível, construí<strong>da</strong> em primeiro plano, e outra, secreta) que se cruzam. Porém, “Para Borges a<br />

história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a monotonia<br />

essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que os gêneros lhe<br />

oferecem. Todos os contos de Borges são construídos com esse procedimento.” (PIGLIA,<br />

1994,p.40). Segundo o autor “A variante fun<strong>da</strong>mental que Borges introduziu na história do<br />

conto consistiu em fazer <strong>da</strong> construção cifra<strong>da</strong> <strong>da</strong> história 2 o tema principal” (PIGLIA, 1994,<br />

p.41). Assim, o escritor argentino usa a estrutura do gênero policial para compor suas ficções<br />

e, concomitantemente, modifica-o.<br />

Como vimos, Borges constituiu sua poética a partir <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> narrativa policial<br />

clássica, criando um espaço para a recepção de suas obras e estabelecendo um marco para<br />

interpretá-las. Por isso, defendemos que o fato de a maioria dos escritores adotarem a<br />

estrutura <strong>da</strong> narrativa policial em relatos que ficcionalizam o autor argentino é uma forma de<br />

dialogar com sua poética. Nesse sentido, é preciso mencionar que Borges, em diversas<br />

oportuni<strong>da</strong>des, declarou sua aversão ao romance, com algumas exceções, entre as quais se<br />

encontram os policiais. Ele afirmava que não defendia o romance policial, uma vez que este<br />

“[...] não precisa de defesa; lido, agora, com certo desdém, está, contudo, salvando a ordem<br />

em uma época de desordem. Esta é uma prova de que devemos ser-lhe gratos e de que tem<br />

méritos” (BORGES, 1999, p.230). Dessa maneira, literaturizar o escritor argentino em uma<br />

narrativa policial pode ser visto como um convite para refletir sobre um elemento importante<br />

de sua poética.<br />

Também é preciso assinalar que as obras que literaturizam um escritor, dialogam não<br />

apenas com a obra do autor ficcionalizado, mas também com a história <strong>da</strong> literatura, conforme<br />

indica Marilene Weinhardt (1998). Acreditamos, ain<strong>da</strong>, que a ficcionalização de um escritor é<br />

uma forma de relê-lo, bem como de discutir “[...] importantes questões literárias, como a<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

construção do cânone literário ou o papel do leitor e <strong>da</strong> crítica na construção e manutenção<br />

desse cânone” (ESTEVES, 2010, p.123). Por isso, nos propomos neste trabalho a investigar, a<br />

partir <strong>da</strong> literaturização de Jorge Luis Borges em El simulador (1990), como o escritor<br />

argentino foi representado na narrativa, de que maneira ocorreu o diálogo com a poética<br />

borgeana e com a história <strong>da</strong> literatura, além <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des de leitura do referido<br />

romance.<br />

VÍTIMA OU ASSASSINO<br />

El simulador foi publicado em 1990 e reeditado em 2009. Seu autor, Jorge Manzur,<br />

natural de Luján, vive desde os dezoito anos em Buenos Aires onde estudou Direito, curso<br />

que não concluiu. É autor de poemas, contos, crônicas e romances. Desde jovem atua como<br />

jornalista, mas já incursionou pela música e trabalhou no rádio e na televisão, além de ter<br />

escrito roteiros para documentários. El simulador (1990) é o seu oitavo livro. Trata-se de uma<br />

narrativa que tem como protagonista Jorge Luis Borges, Tomás Blake, um professor<br />

universitário e crítico literário, e um misterioso assaltante, conhecido por Adolfo Melián, Julio<br />

Paredes ou “El Oriental”. O elo entre eles é um romance inédito do escritor argentino roubado<br />

em um assalto a um banco de Buenos Aires em 1976.<br />

No romance de Manzur, o relato é construído por um narrador onisciente, anônimo e<br />

em terceira pessoa. Ele não só narra os acontecimentos, mas também analisa os personagens<br />

e, até, ironiza suas atitudes, como ocorre com Blake. O narrador chama a atenção do leitor,<br />

várias vezes, para a distração do professor e, por isso, justifica a construção de seu texto “[...]<br />

de atrás hacia adelante, obviando los esfuerzos narrativos y la memoria de Blake, en<br />

beneficio de evitar una crónica fragmenta<strong>da</strong>, oprobiosa y mezquina de los sucesos que se<br />

revelarían veinticuatro horas después.” (MANZUR, 2009, p.13-14). Dessa maneira, o leitor<br />

se depara com um exemplo de metaficção e percebe que a proposta do narrador é construir o<br />

seu relato de trás para frente, de maneira linear. Porém, durante a leitura, evidencia-se que sua<br />

intenção não é consuma<strong>da</strong>, devido à antecipação de alguns acontecimentos e vários<br />

flashbacks.<br />

A estrutura do romance é dividi<strong>da</strong> em três partes, subdividi<strong>da</strong>s em 30 capítulos. Na<br />

primeira, intitula<strong>da</strong> “19 de septiembre” Blake está em Turin no leito de morte de Ítalo<br />

Calvino para recuperar a cópia do manuscrito de Borges que entregou para o escritor italiano<br />

um mês antes. Logo depois, o professor volta para Barcelona e esconde o texto no<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

apartamento de suas vizinhas. Neste percurso, ele não reparou que havia sido seguido e o<br />

narrador considera esta distração “[...] un inestimable aporte al an<strong>da</strong>miaje ficcional de esta<br />

historia.” (MANZUR, 2009, p.17). Novamente, a metaficcção marca sua presença no<br />

romance, bem como a ironia. “Racconto y víspera” é o título <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> parte, forma<strong>da</strong> por<br />

26 capítulos, em que se narra o assalto ao banco, o percurso do manuscrito borgeano, a<br />

investigação do roubo e as conferências de Borges. Embora a ação narrativa esteja localiza<strong>da</strong><br />

em 1985 há constantes mu<strong>da</strong>nças temporais, principalmente no que se refere a 1976. Também<br />

há frequentes alterações espaciais, visto que o assalto é cometido em Buenos Aires, mas os<br />

personagens principais transitam pela Europa e, particularmente, pela Espanha. Na terceira<br />

parte do relato, “20 de septiembre”, dividi<strong>da</strong> em três capítulos, Blake volta ao apartamento de<br />

suas vizinhas para pegar o manuscrito e relaciona-se sexualmente com elas. Depois, o<br />

professor recebe um telefonema em que o Oriental marca um encontro com ele e Borges em<br />

Madri que culminará em um duelo entre os dois.<br />

Paralelamente a esse eixo central <strong>da</strong> narrativa nos deparamos com a investigação<br />

efetua<strong>da</strong> pelo inspetor argentino Rinaldi que está obcecado em desven<strong>da</strong>r o assalto ao banco.<br />

O detetive consegue prender a quadrilha que realizou o roubo, menos o seu chefe, “El<br />

Oriental”. Entretanto, ele não desejava apenas decifrar o mistério, mas “[...] buscaba un caso<br />

que lo catapultara, con honores, a La División Defrau<strong>da</strong>ciones y Estafas. Era un camino<br />

corto y seguro para hacer mucho dinero. El negocio en el Departamento de Toxicomanía ya<br />

estaba demasiado acotado […]” (MANZUR, 2009, p.79). Assim, denuncia-se a corrupção<br />

policial e a fronteira entre os mundos <strong>da</strong> lei e do crime torna-se tênue.<br />

Em busca de seu objetivo, o inspetor resolve continuar procurando o chefe dos<br />

assaltantes e após nove anos de busca segue uma pista que o leva para Barcelona.<br />

Casualmente, encontra-se com Blake na delegacia, pois sua casa havia sido invadi<strong>da</strong> e ele<br />

tinha sido intimado a depor. Durante o depoimento, descobrimos que Rinaldi “[…] también<br />

solía concurrir a la facultad para hacer controles de documentos en la entra<strong>da</strong> a comienzos<br />

de la déca<strong>da</strong> del setenta, el punto más alto de las luchas estudiantiles y guerrilleras en la<br />

Argentina que se preparaba para el retorno definitivo de Perón” (MANZUR, 2009, p.122).<br />

Essa citação, além de demonstrar que o inspetor é um agente <strong>da</strong> repressão argentina também<br />

sintetiza os turbulentos anos <strong>da</strong> história desse país em que se lutava pelo retorno de Perón,<br />

desejo que só se concretizou em 1973. Vale a pena recor<strong>da</strong>r que o líder peronista governou a<br />

Argentina por pouco tempo, uma vez que faleceu em julho de 1974. Sua mulher, María Estela<br />

Martínez, assumiu o poder, mas em 1976 foi deposta por uma Junta Militar.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Esse período histórico é reconstruído na narrativa de Manzur através <strong>da</strong> biografia de<br />

Tomas Blake que deixou o país devido a uma ameaça de morte que recebeu por ter escondido<br />

três estu<strong>da</strong>ntes “[...] quienes seguramente pudieron evitar la detención – que seguramente<br />

horas después se convirtiría en otro misterioso secuestro [...]” (MANZUR, 2009, p.29). Esse<br />

fragmento denuncia os abusos cometidos no período ditatorial argentino, principalmente, as<br />

arbitrárias prisões dos opositores ao regime militar que resultaram no “desaparecimento” de<br />

milhares de pessoas.<br />

Também não podemos deixar de mencionar que Jorge Luis Borges foi um dos<br />

apoiadores <strong>da</strong> Junta Militar que tomou o poder em 1976. Embora alguns anos depois tenha<br />

feito uma autocrítica declarando que o seu apoio foi um ato de desagravo ao regime político<br />

anterior, o peronismo, essa atitude marcou sua trajetória. Inclusive alguns críticos apontam<br />

que foi o principal motivo para o escritor argentino não ter obtido o Prêmio Nobel. Por isso,<br />

se justificam as diversas referências a esse período em El simulador (1990), presente em<br />

momentos importantes do relato. Afinal, o assalto ao banco foi realizado em 1976 e foi nesse<br />

ano que Blake deixou a Argentina e leu, no avião, a notícia do roubo e as declarações de<br />

Borges.<br />

Tendo em vista essas considerações, percebemos que o elo entre os dois eixos<br />

narrativos é Jorge Luis Borges, recriado no seu último ano de vi<strong>da</strong>, já que a ação narrativa<br />

está localiza<strong>da</strong>, principalmente, em 1985. Antes disso, o escritor já havia se materializado na<br />

ficção em 1976 por meio de uma declaração sobre o assalto ao banco. Nesse ano, em um<br />

restaurante de Paris Blake vê surgir “[…] una sombra desgarba<strong>da</strong>, adusta pero señorial;<br />

ensegui<strong>da</strong> se hizo visible el bastón de cerezo, con empuñadura de raíz de cerezo, y junto a la<br />

sombra, otra, más estiliza<strong>da</strong>, tomándolo del brazo” (MANZUR, 2009, p.38). Eis a imagem<br />

cristaliza<strong>da</strong> de Borges: um ancião com sua bengala, guiado por María Ko<strong>da</strong>ma. Pensamos que<br />

essa comparação com uma sombra é extremamente significativa, pois o escritor argentino<br />

ocupará a maior parte do romance seja como personagem, através de citações de seus textos<br />

ou de discussões sobre sua obra.<br />

Cabe assinalar que o comportamento de Borges é bastante suspeito em relação ao<br />

assalto ao banco. Afinal, apesar de ter o seu romance roubado, sustenta que os ladrões devem<br />

ter aberto o seu cofre por engano pensando “[...] que un escritor gana mucho dinero. Creo<br />

que en el mundo aún que<strong>da</strong>n algunos delincuentes ingenuos. No tanto como los escritores,<br />

pero ingenuos al fin [...]” (MANZUR, 2009, p.30). Com essa declaração, o escritor deixa a<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

polícia confusa e evita participar <strong>da</strong> investigação, explicitando sua intenção de ocultar a<br />

existência do seu manuscrito e aproximando o mundo do crime ao <strong>da</strong> escrita.<br />

Seu depoimento consegue despistar a polícia, mas o mesmo não acontece com o<br />

assaltante que não deixa Borges esquecer o seu romance desaparecido. Assim, além de pedir a<br />

avaliação crítica <strong>da</strong> narrativa para Blake, o Oriental participa, ou man<strong>da</strong> um representante, <strong>da</strong>s<br />

conferências do escritor argentino e nessas ocasiões, ao invés de elaborar uma pergunta para a<br />

mesa, envia trechos do romance que somente Borges conhece. O escritor reage violentamente<br />

e recusa-se a comentar o assunto. Dessa maneira, o manuscrito roubado passa a ser o centro<br />

do relato.<br />

Pensamos que o interesse pelo texto borgeano justifica-se também pelo fato de o<br />

autor argentino ter declarado sua aversão ao gênero romanesco em diversas ocasiões, o que é<br />

corroborado pelo Borges personagem que afirma que o romance é um “[...] género<br />

abarrotado de palabras inútiles, de acumulación de gestos y lugares, de nombres y de<br />

personajes desconocidos entre ellos [...]” (MANZUR, 2009, p.41). Nesse sentido, a incursão<br />

do escritor argentino na escrita de um romance pode ser vista como uma ver<strong>da</strong>deira<br />

transgressão de seus princípios literários. Piglia (1999, p.8) explica que Borges nunca<br />

escreveu um romance porque consideraba que “[…] la novela no es narrativa, porque está<br />

demasiado aleja<strong>da</strong> de las formas orales, es decir, ha perdido los rastros de un interlocutor<br />

presente que hace posible el sobreentendido y la elipsis, y por lo tanto la rapidez y la<br />

concisión de los relatos breves y de los cuentos orales.”. Assim, para manter a<br />

verossimilhança <strong>da</strong> narrativa é necessário que o manuscrito não venha a público.<br />

Entretanto, ain<strong>da</strong> que não tenhamos acesso ao texto completo, na ficção de Manzur,<br />

além de reitera<strong>da</strong>s menções ao romance de Borges no decorrer do relato, entramos em contato<br />

com alguns trechos dessa obra por meio de fragmentos e comentários. Desse modo, sabemos<br />

que a ficção borgeana intitula-se El simulador, tal como a narrativa de Manzur e um conto<br />

escrito por Blake, tem 702 páginas, é dedica<strong>da</strong> ao escritor argentino Adolfo Bioy Casares e foi<br />

<strong>da</strong>ta<strong>da</strong> em 21 de dezembro de 1961. Em sua dedicatória a Bioy, o escritor sustenta que o seu<br />

romance é artificial, visto que “La novela, se hace para llenar un libro, y no hay forma de<br />

llenarlo sino con trechos innecesarios. Y si en algo se salvó la novela, esto se debe a la<br />

novela policial, que ha venido a redimir algunas reglas clásicas de la literatura.”<br />

(MANZUR, 2009, p.51). O subtítulo, “El simulador, novela inútil de Jorge Luis Borges”,<br />

enfatiza a insatisfação do personagem com esse gênero literário e, consequentemente, com<br />

sua própria ficção. Por meio dessa citação percebemos o diálogo entre o texto de Manzur e a<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

poética borgeana, já que o autor retoma as ideias do escritor argentino sobre o gênero<br />

romanesco e a narrativa policial.<br />

Ao contrário de seu autor, os leitores <strong>da</strong> obra apreciam o romance. Para Blake, a<br />

ficção é “[…] una mezcla extraña entre una novela de caballería, una novela policial al<br />

estilo inglés, como podía y solía escribir Chesterton y, por otro lado, aparece una escritura<br />

universal más vincula<strong>da</strong> a la cuentística breve y profun<strong>da</strong>, cercana a lo metafísico, y muy<br />

lejos, le diría lejísimo, de la concepción burguesa de la novela” (MANZUR, 2009, p.96).<br />

Essa avaliação do personagem alude a elementos <strong>da</strong> poética borgeana, tais como a<br />

universali<strong>da</strong>de dos temas, a indefinição de gêneros e a presença de discussões metafísicas. El<br />

simulador de Borges também é comparado ao Don Quijote de la Mancha, de Miguel de<br />

Cervantes, por Adolfo Melián e María Ko<strong>da</strong>ma, o que nos remete ao conto do escritor<br />

argentino “Pierre Menard, autor del Quijote”. Nesse sentido, o romance de Borges pode ser<br />

visto como uma reescrita <strong>da</strong> narrativa cervantina. Além disso, na narrativa aparecem<br />

personagens do universo borgeano e, <strong>da</strong> mesma forma que no texto homônimo de Manzur, o<br />

tema do romance é a traição e a vingança, elemento comum a vários escritos do autor<br />

argentino.<br />

Como já dissemos, Blake trai a confiança do Oriental. O professor entra em contato<br />

com uma universi<strong>da</strong>de norte-americana para vender o manuscrito, tratando a arte como<br />

mercadoria e rompendo o contrato de fideli<strong>da</strong>de com Melián que se apresentou como o autor<br />

do romance de Borges, problematizando a relação entre escritor e crítico. Além disso, ele<br />

envia o manuscrito a Ítalo Calvino que sugere tratar-se de um ardil borgeano. Ironicamente, o<br />

único que não consegue descobrir a autoria do relato é, justamente, o professor encarregado<br />

de avaliar a narrativa, mesmo sendo especialista na obra do escritor argentino. O máximo que<br />

consegue perceber é que os fragmentos lidos nas conferências pertencem ao texto que seu<br />

cliente entregou-lhe. Caberá ao assaltante revelar-lhe o segredo do escritor argentino, mas ele<br />

reage com increduli<strong>da</strong>de “No, imposible, Borges no escribe novelas. Jamás escribió una, ni<br />

siquiera intentó hacerlo. Borges desprecia la novela” (MANZUR, 2009, p.163). Assim, esse<br />

trecho demonstra a incapaci<strong>da</strong>de crítica de Blake, ao mesmo tempo em que retoma um dos<br />

princípios <strong>da</strong> poética borgeana: a superiori<strong>da</strong>de dos relatos breves.<br />

“El Oriental” acredita que já que roubou do escritor argentino o seu maior segredo,<br />

guar<strong>da</strong>do na caixa forte de um banco, deve proporcionar-lhe outro. Desse modo, uma vez que<br />

descobre a traição do professor resolve matá-lo, para que o romance não seja publicado e<br />

convence Borges a construir “[…] otro secreto. Y ese secreto, con dolor, será la muerte del<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

profesor Blake” (MANZUR, 2009, p.229). Então, o assaltante organiza um duelo entre os<br />

dois e esclarece que será uma luta limpa, com facas, já que o escritor não pode se esquecer <strong>da</strong><br />

literatura. Antes de <strong>da</strong>r início ao combate elenca os erros cometidos por Blake e este,<br />

finalmente, compreende que havia caído em uma armadilha. Percebe o quanto foi manipulado<br />

ao descobrir que até mesmo o seu relacionamento com suas vizinhas é obra de Melián.<br />

Quando “El Oriental” termina sua exposição, Borges pergunta ao professor “¿Qué le<br />

sugiere un hombre al que le fue permitido el mando, el amor y el triunfo” (MANZUR, 2009,<br />

p.236). Imediatamente, Blake lembra-se do conto borgeano “El muerto” e responde que falta<br />

a mulher chorando. O escritor declara que nem sempre é possível respeitar o início e o fim e<br />

anuncia “Sepa, querido amigo, que por una traición, por una infamia, he decidido <strong>da</strong>rle<br />

muerte [...]” (MANZUR, 2009, p.237). O professor protesta “Yo no quiero matar a Borges.<br />

Yo no quiero matar a nadie […]” (MANZUR, 2009, p.238). Porém, o assaltante esclarece<br />

“No se trata de lo que usted quiere, Blake; se trata de lo que necesita él para siguir viviendo<br />

[…]” (MANZUR, 2009, p.238). Em segui<strong>da</strong> inicia-se o duelo. Borges empunha um canivete<br />

que foi de Leopoldo Lugones também roubado por Melián. Já a arma do professor é uma<br />

navalha prepara<strong>da</strong> para retrair-se quando tocar em algo firme. Após algumas investi<strong>da</strong>s do<br />

escritor e recuos de Blake, “El Oriental” esfaqueia o peito do professor e Borges acredita que<br />

matou um homem, o qual, na ver<strong>da</strong>de, nem roçou. Então, “Borges lo mira a los ojos [a<br />

Blake], como si lo viera, y siente en su sangre el coraje que tantas palabras le llevó; hunde el<br />

recuerdo de Lugones, apenas debajo del corazón, ignorando que acaba de matar a un<br />

hombre muerto” (MANZUR, 2009, p.246).<br />

Como vimos, o desfecho do romance de Manzur é uma paródia do conto borgeano<br />

“El muerto”. Nesse relato um argentino vai para o Uruguai trabalhar em uma fazen<strong>da</strong>. Com o<br />

passar do tempo, conquista a mulher do patrão e usurpa o seu poder. Quando está prestes a<br />

morrer descobre que tudo foi obra do fazendeiro que o deixou agir assim porque já o<br />

considerava um homem morto. Desse modo, os elementos comuns aos dois textos seriam a<br />

traição, a vingança e a manipulação. Em El simulador (1990) tanto Borges quanto Blake<br />

foram vítimas do misterioso Oriental. Um foi morto e o outro acredita ser um assassino. Entre<br />

as variantes dos dois relatos, nos chama a atenção que o escritor argentino simule ver o<br />

professor, apesar de sua cegueira. Pensamos que isso pode ser uma alusão à miopia de Borges<br />

em relação ao período ditatorial argentino, pois este ignorou as ações desse regime por muito<br />

tempo, <strong>da</strong> mesma forma que o Borges personagem não percebeu a trapaça do assaltante.<br />

214


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

POSSIBILIDADES DE LEITURA<br />

Ao contrário dos romances policiais clássicos, os detetives <strong>da</strong> narrativa de Manzur<br />

não conseguem eluci<strong>da</strong>r o principal enigma do relato: a identi<strong>da</strong>de do assaltante. Quando<br />

conhece Borges ele se apresenta como Adolfo Melián. Imediatamente, o escritor supõe que os<br />

dois têm familiares e amigos em comum, visto que o seu nome alude a Adolfo Bioy Casares e<br />

o sobrenome a Luis Melián Lafinur, parente de Borges que residia em Montevideo e, por isso,<br />

conclui que o seu apelido deve ser “Oriental”, como eram conhecidos os uruguaios. Sabemos<br />

que o assaltante também atende por Paredes, um personagem borgeano. Desse modo, sua<br />

identi<strong>da</strong>de está relaciona<strong>da</strong> com o universo ficcional e biográfico do escritor argentino.<br />

Outro ponto que diferencia El simulador (1990) do romance de enigma é o fato de<br />

que os detetives perdem sua imuni<strong>da</strong>de. Rinaldi é morto por atrapalhar os planos do assaltante<br />

perseguindo Blake. Cabe lembrar que o investigador é corrupto e violento, já que não só foi<br />

membro do regime ditatorial argentino, mas usava a tortura para conseguir informações em<br />

seu trabalho. Nesse sentido, sua representação pode ser vista como uma crítica à instituição<br />

policial. Com sua morte, o inspetor espanhol Montalbán assume, provisoriamente, o caso e<br />

descobre o corpo do professor. Tal como os outros personagens é enganado pelo Oriental e<br />

pensa que o assassinato de Blake deve-se ao seu envolvimento com drogas. A seguir<br />

abandona a investigação, declarando que isso será tarefa dos detetives argentinos, já que o<br />

banco encontra-se em Buenos Aires. Portanto, a identi<strong>da</strong>de do assaltante permanece em<br />

segredo. Ironicamente, além de não ser descoberto, ele volta a invadir o mesmo banco e<br />

devolve o romance de Borges que havia levado, o qual não havia denunciado o roubo e<br />

também não comunica a devolução do manuscrito.<br />

Por sua vez, Blake demonstrou ser um investigador ingênuo, distraído e desonesto.<br />

Quando inquiriu sobre a escrita do romance foi advertido pelo assaltante “[...] Yo contraté un<br />

servicio de orientación literaria y no un detective privado. [...]” (MANZUR, 2009, p. 95).<br />

Entretanto, o professor não levou a sério o aviso e continuou suas investigações, embora não<br />

tenha sido capaz de descobrir o ver<strong>da</strong>deiro autor do relato. Assim, a função do crítico como<br />

detetive é ironiza<strong>da</strong>, pois ele não conseguiu ler as pistas deixa<strong>da</strong>s pelo assaltante e foi<br />

manipulado por ele. O narrador escarnece sua ingenui<strong>da</strong>de afirmando que “Melián entró en su<br />

vi<strong>da</strong> con una inocencia que ya no existía en las novelas inglesas de enigma del siglo XIX.”<br />

(MANZUR, 2009, p. 167). Esse fragmento, além de reforçar a incapaci<strong>da</strong>de investigativa do<br />

215


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

personagem, também sugere que El simulador (1990) não pode ser interpretado como uma<br />

narrativa policial clássica.<br />

De acordo com Todorov (2006), o romance policial clássico, conhecido também por<br />

romance de enigma, é formado por duas histórias: a do crime e a <strong>da</strong> investigação, cujo<br />

objetivo principal é o desven<strong>da</strong>mento do mistério. O estudioso também aponta que uma de<br />

suas regras principais é a imuni<strong>da</strong>de do detetive. Entretanto, na ficção de Manzur, os<br />

investigadores são mortos e o enigma não é esclarecido. Por isso, pensamos que essa narrativa<br />

pode ser inseri<strong>da</strong> na categoria de romance negro, caracterizado por subverter as normas do<br />

modelo anterior. O crítico esclarece que nesse tipo de texto o mistério tem uma função<br />

secundária e o detetive arrisca sua saúde e sua vi<strong>da</strong>, tornando-se um homem de ação.<br />

Sandra Reimão (1983) acrescenta que esse gênero constrói uma narrativa passível de<br />

ser encara<strong>da</strong> em outros níveis de leitura, como o político e o social. A partir dessa perspectiva,<br />

defendemos ser possível ler El simulador (1990) como um romance negro, já que o relato<br />

apresenta não só as características formais que assinalamos anteriormente, mas pode ser visto<br />

como uma crítica à polícia e à própria socie<strong>da</strong>de argentina, bem como a Borges, devido à sua<br />

complacência com o regime militar implantado em 1976 em seu país.<br />

Seguindo essa pista, também podemos incluir a ficção de Manzur na categoria de<br />

novo romance histórico, sistematiza<strong>da</strong> por Menton (1993), entre outros. Como vimos, El<br />

simulador (1990) ficcionaliza um personagem histórico bem conhecido, apresenta vários<br />

exemplos de metaficção, explora a intertextuali<strong>da</strong>de em variados graus, além de reconstruir<br />

um importante período <strong>da</strong> história argentina e parodiar o estilo e a poética de Borges. Desse<br />

modo, apresenta características do novo romance histórico.<br />

Jorge Luis Borges é representado na narrativa de Manzur como um ancião que, com<br />

sua bengala e com María Ko<strong>da</strong>ma, percorre a Europa <strong>da</strong>ndo palestras sobre literatura. Enfim,<br />

trata-se <strong>da</strong> imagem canônica do escritor argentino. Porém, ao ser convertido em um<br />

personagem que é manipulado por um misterioso assaltante sua figura histórica, mistifica<strong>da</strong><br />

pela crítica, é humaniza<strong>da</strong>. Assim, o leitor pode sentir-se estimulado a penetrar no universo<br />

borgeano.<br />

Nesse romance, o diálogo com a poética borgeana é construído de diversas maneiras.<br />

Encontramos citações de poemas, contos e textos críticos do escritor argentino, bem como<br />

alguns de seus temas e personagens. Além disso, há várias referências a autores que o<br />

influenciaram e menções a críticos que examinaram sua obra. Borges, inclusive, chega a<br />

refutar algumas opiniões sobre seus escritos. Assim, a narrativa estabelece um diálogo com a<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

história <strong>da</strong> literatura, permitindo que o leitor entre em contato com várias análises <strong>da</strong> poética<br />

borgeana. Isso pode instigá-lo a construir sua própria visão de Borges e de sua obra.<br />

Mas, para isso, o leitor precisará comportar-se como um detetive e seguir as pistas<br />

deixa<strong>da</strong>s no relato de Manzur. Deverá abandonar a leitura ingênua de Blake, vítima de um<br />

narrador que teceu um relato que ele não conseguiu decifrar, e construir sua própria<br />

interpretação do romance. Dessa maneira, perceberá que a escritura e a leitura são<br />

ficcionaliza<strong>da</strong>s nessa narrativa e, inevitavelmente, associará o poder do assaltante com o do<br />

narrador de El simulador (1990), pois os dois são onipotentes e oniscientes. Isso nos remete<br />

ao próprio exercício ficcional, assinalado desde o início <strong>da</strong> narrativa por meio de uma epígrafe<br />

retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> obra do escritor espanhol Antonio Machado. Nela se afirma que se mente muito<br />

por falta de fantasia e que também a ver<strong>da</strong>de se inventa, problematizando a relação entre<br />

reali<strong>da</strong>de e ficção.<br />

Continuando sua investigação, o leitor notará que várias questões literárias foram<br />

trazi<strong>da</strong>s a tona na narrativa de Manzur. Entre elas, destaca-se a discussão sobre autoria que<br />

está relaciona<strong>da</strong> com a identi<strong>da</strong>de do assaltante, o qual, por mu<strong>da</strong>r de nome com frequência,<br />

pode tratar-se também do autor empírico. Assim, retoma-se a concepção borgeana de<br />

literatura como obra única, já que em El simulador (1990) Borges e Blake também são<br />

autores de uma obra homônima, tal como Manzur. Além disso, o leitor também pode ser visto<br />

como autor do texto se considerarmos o conceito borgeano de leitura. Monegal (1980) afirma<br />

que para Borges ler é uma ativi<strong>da</strong>de mais intelectual que a de escrever, uma vez que o leitor<br />

participa <strong>da</strong> própria criação através do diálogo com o texto.<br />

Talvez este seja o ponto crucial do romance de Manzur e a sua história secreta.<br />

Afinal caberá ao leitor escolher como agir no jogo de xadrez proposto na capa de El<br />

simulador (1990). Nesse sentido, poderá optar em ler a narrativa como um romance policial<br />

ou um novo romance histórico. Como já dizia Borges “[...] os gêneros literários dependem,<br />

talvez, menos dos textos que do modo como estes são lidos. O fato estético requer a<br />

conjunção do leitor com o texto, para só então existir” (1999, p.231).<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BORGES, J. L. Obras completas. São Paulo: Globo, 1999.<br />

BRESCIA, P. “Borges deviene objeto: algunos ecos.” In: Variaciones Borges nº 26, 2008.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

ESTEVES, A. R. O romance histórico brasileiro contemporâneo. (1975-2000). São Paulo:<br />

Ed. <strong>UNESP</strong>, 2010.<br />

MANZUR, J. El simulador. Buenos Aires: Galerna, 2009.<br />

MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina (1979-1992). México: FCE,<br />

1993.<br />

MONEGAL, E. R. Borges: uma poética <strong>da</strong> leitura. São Paulo, Perspectiva, 1980.<br />

PIGLIA, R. O laboratório do escritor. São Paulo: Iluminuras, 1994.<br />

______. Borges: El arte de narrar. São Paulo: Humanitas, 1999.<br />

______. Crítica y ficción. Buenos Aires: Anagrama, 2001.<br />

REIMÃO, S. O que é romance policial. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983.<br />

TODOROV, T. Tipologia do romance policial. In: __________. As estruturas narrativas. São<br />

Paulo: Perspectiva, 2006.<br />

WEINHARDT, M. “Quando a história literária vira ficção”. In: ANTELO, R. et. al. (Org.).<br />

Declínio <strong>da</strong> arte, ascensão <strong>da</strong> cultura. Florianópolis: Letras Contemporâneas, Abralic, 1998.<br />

218


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Da casa de Poe a de Cortázar: entre o policial e o fantástico<br />

MORAES, Carla D. (UTFPR – Universi<strong>da</strong>de Tecnológica Federal do Paraná)<br />

FIORUCI, Wellington R. (UTFPR – Universi<strong>da</strong>de Tecnológica Federal do Paraná)<br />

RESUMO: É clara a presença de Edgar Allan Poe (1809-1849) em Julio Cortázar (1914-<br />

1984), principalmente quando fazemos menção ao conto “Casa Toma<strong>da</strong>” (1951), texto este<br />

que bebe na fonte de Poe para compor sua própria linguagem. Nesse sentido, o presente<br />

trabalho irá se valer <strong>da</strong>s concepções próprias aos estudos comparativistas, já que o estudo<br />

busca aproximar as produções de ambos os autores. Cabe, desse modo, verificarmos em que<br />

medi<strong>da</strong> Cortázar se utiliza de elementos presentes na poética do escritor norte-americano,<br />

especialmente no conto “A Que<strong>da</strong> <strong>da</strong> Casa de Usher” (1839), e os explora e desenvolve em<br />

consonância com as concepções <strong>da</strong> narrativa contemporânea à qual pertence sua produção<br />

literária. Da mesma forma, é pertinente sublinhar que, ao resgatar os mecanismos narrativos<br />

que dão ambigui<strong>da</strong>de ao discurso poético de Poe e, por conseguinte, auxiliam na construção<br />

do espaço do fantástico em seus contos, o escritor argentino traz à luz elementos relevantes na<br />

composição <strong>da</strong> narrativa de enigma, legando, deste modo, ao gênero narrativo policial, uma<br />

nova roupagem, sob a ótica <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong>de. A abor<strong>da</strong>gem comparativista proposta<br />

neste trabalho demonstra também o quanto as obras de Poe e Cortázar dialogam rumo a uma<br />

poética de alargamento <strong>da</strong>s fronteiras e consequente hibridização entre os gêneos clássicos<br />

literários.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Poe; Cortázar; gênero policial; gênero fantástico<br />

ABSTRACT: It is clear the presence of Edgar Allan Poe (1809-1849) in Julio Cortázar<br />

(1914-1984), especially when we refer to the short story Casa Toma<strong>da</strong> (1951), a text that<br />

draws on the source of Poe to write his own language. Accordingly, this study will rely on<br />

conceptions inherent comparativist studies, since the study seeks to approximate the works of<br />

both authors. It thus verifies the extent to which Cortázar uses elements in the poetics of the<br />

American writer, especially in the short story The fall of the house of Usher (1839), and<br />

explores and develops in line with the views of the contemporary narrative to which belongs<br />

his literary production. Likewise, it is pertinent to note that, while rescuing the narrative<br />

mechanisms that give ambiguity to Poe’s poetic discourse and therefore assist in the<br />

construction of space in his fantastic tales, the Argentine writer shows important elements in<br />

the composition of the mystery narrative, leaving to the crime narrative genre a new look<br />

from the perspective of contemporaneity. The comparativist approach proposed in this paper<br />

also demonstrates how much the works of Poe and Cortázar dialogue towards a poetic of<br />

extension of boun<strong>da</strong>ries and consequent hybridization between literary classic genders.<br />

KEYWORDS: Poe; Cortázar; crime genre, fantastic gender<br />

INTRODUÇÃO<br />

219


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O enigma que toma conta <strong>da</strong> imaginação do leitor e o prende na busca pelo desfecho<br />

do enredo nos contos policiais é mais antigo do que o próprio gênero e, uma vez incorporado<br />

à narrativa, constitui-se como uma estratégia eficaz para apreensão <strong>da</strong> sua atenção e<br />

curiosi<strong>da</strong>de. Nessa medi<strong>da</strong>, Julio Cortázar (apud KIEFER, 2011) afirma que para que se<br />

consiga um bom conto é necessário equilibrar três elementos fun<strong>da</strong>mentais, os quais fazem<br />

parte de sua base poética: significação, intensi<strong>da</strong>de e tensão.<br />

O conto, como um recorte temporal e espacial de um fragmento de reali<strong>da</strong>de, não<br />

pode ter elementos gratuitos, haja vista o pouco espaço de que dispõe para desenvolver seu<br />

enredo. Ao mesmo tempo, esse fragmento deve vir carregado de significação tal a ponto de<br />

abrir-se para uma significação maior, que fuja ao espaço limitado <strong>da</strong>quele pequeno recorte de<br />

reali<strong>da</strong>de. Cortázar utiliza-se de uma analogia oriun<strong>da</strong> de definições de grandes fotógrafos, os<br />

quais explicam:<br />

[...] sua arte como um aparente paradoxo: o de recortar um fragmento <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong>de, fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo que esse<br />

recorte atue como uma explosão que abra de par em par uma reali<strong>da</strong>de muito<br />

mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende espiritualmente o<br />

campo abrangido pela câmara. (CORTÁZAR, apud KIEFER, 2011, p.182).<br />

Ao provocar esse transbor<strong>da</strong>mento de significação, torna-se mais fácil garantir a<br />

tensão, que consiste na teia que prende o leitor, o qual se vê diante de forças que o envolvem e<br />

atraem do início ao fim do conto. Para completar a “receita” basta apenas acrescentar o<br />

ingrediente <strong>da</strong> intensi<strong>da</strong>de, que pode ser obtido através <strong>da</strong> articulação do tempo e do ritmo <strong>da</strong><br />

narrativa, os quais, sem aviso prévio, saltam aos olhos do leitor quando ele menos espera,<br />

garantindo que ele mergulhe no conto e somente volte ao plano de sua reali<strong>da</strong>de ao terminar<br />

de lê-lo.<br />

Bem o sabia o renomado escritor Edgar Allan Poe, que se valeu dessa ferramenta na<br />

escritura <strong>da</strong> maioria de seus contos, convi<strong>da</strong>ndo o leitor a participar <strong>da</strong> análise do enigma,<br />

causando nele um desconforto atraente, impulsionando-o adiante, na busca incessante de<br />

dissolver a ambigui<strong>da</strong>de que permeia o conto, enfim, levando-o à hesitação constante: “A<br />

narrativa fantástica é, assim, alcança<strong>da</strong> através <strong>da</strong> ambigui<strong>da</strong>de, e o leitor é obrigado a<br />

considerar o mundo dos personagens como o mundo <strong>da</strong>s pessoas [...]” (JOZEF, 2006, p.198).<br />

Já dizia D’Onofrio (2007, p.126), em sua análise do conto “Os Crimes <strong>da</strong> Rua<br />

Morgue”, que “a arte de manter ‘em suspenso’ o leitor ou o espectador, quer pelo enigma <strong>da</strong><br />

realização de um crime, quer pela investigação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de do assassino, não foi cria<strong>da</strong> pelo<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

escritor americano, mas é antiga como o mundo.” To<strong>da</strong>via, o suspense não é artifício<br />

exclusivo do gênero policial, pois também está presente no universo <strong>da</strong> narrativa fantástica e<br />

pode-se afirmar que aquele, de algum modo, se apropria <strong>da</strong> estratégia desta para compor sua<br />

estrutura ficcional.<br />

Poe é um dos grandes nomes <strong>da</strong> literatura fantástica e com seus enredos misteriosos e<br />

ambíguos, que transitam entre o real e o imaginário, entre o físico e o sobrenatural, envolve<br />

frequentemente seu leitor num ambiente onírico e permeado de simbologia. Segundo Cortázar<br />

(apud KIEFER, 2011, p. 172) “Poe escreverá seus contos para dominar, para submeter o leitor<br />

no plano imaginativo e espiritual”. Ambientes que põem em dúvi<strong>da</strong> a capaci<strong>da</strong>de perceptiva<br />

do próprio leitor, que, juntamente com o narrador, em “A que<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa de Usher”, vê-se<br />

tomado pela sensação incômo<strong>da</strong> diante de uma casa que parece guar<strong>da</strong>r consigo to<strong>da</strong> energia<br />

sombria dos habitantes que lá viveram e atua como um elemento opressor e aterrorizante dos<br />

que ali vivem, refletindo-se na figura de seu proprietário, cujo semblante é ca<strong>da</strong>vérico e<br />

assustador. Mais do que escrever contos de horror, Poe revela ao leitor as várias faces do<br />

homem em luta contra si mesmo, contra seus próprios fantasmas, alimentados por seus<br />

impulsos mais inconscientes.<br />

Essa atmosfera envolvente de mistério serviu de inspiração para vários escritores que<br />

o sucederam, possivelmente pelo fascínio com que sua estratégia literária provocava, e ain<strong>da</strong><br />

provoca, em quem o lê. Um deles, brilhante escritor <strong>da</strong> literatura contemporânea e objeto<br />

deste estudo comparado, é Julio Cortázar, escritor portenho, nacionalizado francês, o qual por<br />

meio de seu atrevimento estético conseguia subverter a linguagem com o propósito de nos<br />

fazer descobrir universos que o homem é incapaz de ver.<br />

Segundo Cortázar, o homem, instintivamente, não se contenta com o lado aparente<br />

<strong>da</strong>s coisas e busca, então, o outro lado. “O outro lado” sob o prisma cortazariano é um mundo<br />

de criativi<strong>da</strong>de não estrutura<strong>da</strong>. Pode-se dizer grosso modo que Cortázar possuía o segredo<br />

literário de conceber uma segun<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, na qual as casas são toma<strong>da</strong>s pacientemente,<br />

cômodo após cômodo, por forças desconheci<strong>da</strong>s que aterrorizam seus habitantes, como vemos<br />

em seu conto “Casa toma<strong>da</strong>”. Em seus textos a palavra é dota<strong>da</strong> de grande força simbólica, o<br />

que promove a realização de um texto no qual já não há discernimento entre o que seja real e<br />

imaginário, e sim uma grande interpenetração entre a ver<strong>da</strong>de e a ficção, que deve ser li<strong>da</strong><br />

pelo leitor com muita atenção.<br />

Tanto “A que<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa de Usher” quanto “Casa toma<strong>da</strong>” são um mundo à parte, ou<br />

pelo menos de ordem desestrutura<strong>da</strong>, envoltos por um clima mágico, fantástico. Essa ordem<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

desestrutura<strong>da</strong> estabelece-se através <strong>da</strong> presença de um conflito que oscila entre o mundo real<br />

e o extraordinário, de tal forma que redimensiona a reali<strong>da</strong>de através de uma ótica nova, o<br />

perfeito caos que leva novamente a ordem antes desfeita.<br />

Nos contos de Cortázar se evidenciam as rupturas com a tradição <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de<br />

criativa. Ele consegue com êxito subverter a ordem tradicional <strong>da</strong> narrativa, em que a<br />

reali<strong>da</strong>de tem seu foco no sujeito, relegando ao tempo e ao espaço a quali<strong>da</strong>de de figurantes.<br />

Assim sendo, ele consegue relativizar tais conceitos e, dessa forma, o tempo e o espaço<br />

passam a não mais existirem em si mesmos, mas sim nas coisas. Ao realizar esta inversão,<br />

Cortázar conduz o leitor para outra instância do real, menos palpável, mais perceptiva, o que<br />

causa inquietação aos pragmáticos, que se vêem diante do desafio de mergulhar no conto na<br />

tentativa de extrair dele respostas.<br />

O PAPEL DO LEITOR<br />

Mais do que uma leitura que prende a atenção do leitor, temos o magnetismo de um<br />

texto bem construído e sumariamente provido de to<strong>da</strong> a carga fantástica que já evidenciamos<br />

em “A que<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa de Usher” e que tornaremos a presenciar em “Casa toma<strong>da</strong>”. Ambos os<br />

autores realizam uma simbiose entre o real e o absurdo. Essa interpenetração entre espaços<br />

jamais aproximáveis joga, no final <strong>da</strong>s contas, o leitor desavisado para dentro do texto e o faz<br />

interagir com a obra. Tal aproximação provocativa e instigadora consegue criar um absurdo<br />

lógico que, de certa maneira, explica questões inexplicáveis através <strong>da</strong> lógica tradicional e nos<br />

faz compreender porque ao terminar a leitura do conto nos sentimos à vontade diante <strong>da</strong><br />

fórmula tão absur<strong>da</strong> que circun<strong>da</strong> o texto. Dessa premissa surgem, então, dois<br />

questionamentos: seria realmente tão inverossímil tal raciocínio Ou apenas uma possível<br />

versão para a desordem <strong>da</strong>s coisas que nos soam inquestionáveis<br />

Neste contexto se recoloca a posição indissolúvel, inexorável, deste narrador que<br />

manipula todo o relato, além de manipular a nós mesmos leitores. Ao terminar seu relato –<br />

“Antes de nos afastar tive pena, fechei bem a porta <strong>da</strong> entra<strong>da</strong> e joguei a chave no bueiro” –,<br />

(CORTÁZAR, 1971, p. 18) o narrador factualmente realiza o que discursa seu personagem,<br />

ou seja, ele joga fora a chave que decifraria o enigma do conto. Claro que este gesto, na<strong>da</strong><br />

equivocado ou fortuito, se apresenta como importante apelativo simbólico, que deve ser lido<br />

em sua minudência.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Este gesto aparentemente inconseqüente do narrador-personagem tem um sentido<br />

preciso: o de fechar o acesso à interpretação como processo ideológico exterior ao texto. Mas,<br />

ao mesmo tempo em que propõe isto, acaba de consagrar o hermetismo <strong>da</strong> obra, cujo relato é<br />

garantido como fonte única de significação. O preço deste procedimento é a liber<strong>da</strong>de do<br />

leitor, que é, sem dúvi<strong>da</strong>, o principal destinatário <strong>da</strong> narrativa, uma narrativa que convi<strong>da</strong><br />

quem a lê a entrar e ficar à vontade para esmiuçar os sentidos de ca<strong>da</strong> evidência, ca<strong>da</strong> “pista”,<br />

como se fosse um detetive.<br />

Os corredores <strong>da</strong> casa, que é grande e possui vários cômodos, vão sendo descritos<br />

detalha<strong>da</strong>mente por Cortázar e, se bem observado, percebe-se que sua estrutura lembra um<br />

ver<strong>da</strong>deiro labirinto, possível analogia com os caminhos labirínticos os quais o nosso<br />

“detetive virtual” é instigado a percorrer. Os irmãos parecem fazer de tudo para manter a<br />

ordem que impera na casa, contra to<strong>da</strong> e qualquer força externa a eles.<br />

É o primeiro obstáculo a ser superado pelo leitor, uma metáfora <strong>da</strong> condição<br />

simbólica que adquire o texto na proporção em que este pede o seu deciframento. Contudo,<br />

esse obstáculo está meticulosamente arquitetado pelo narrador, e para alcançar o “outro lado”<br />

o leitor precisa transpô-lo. Seu mérito consiste, sobretudo, nos rodeios e digressões <strong>da</strong><br />

descrição e do relato aparentemente desintencionado que atuam no despistamento <strong>da</strong> atenção<br />

do leitor, fazendo-o ir de um cômodo ao outro, em perpétuo vaivém. Quiçá seja exatamente<br />

esse labirinto que exerce a fascinação irremediável no leitor.<br />

O natural e o sobrenatural convivem no mesmo tempo e espaço, deixando os<br />

questionamentos a cargo do leitor, que atua como um detetive na busca por alguma pista que<br />

leve à explicação do fenômeno. Dessa forma se dá a instauração do mistério do conto<br />

neofantástico de Cortázar, uma vez que os textos dessa natureza: “[...] mantêm os dois níveis<br />

de reali<strong>da</strong>de sempre sobre o mesmo plano e com a mesma carga de verossimilhança [...]”<br />

(CESERANI, 2006, p.125) Dessa maneira, o foco <strong>da</strong> narrativa remete à dúvi<strong>da</strong> quanto ao<br />

fenômeno ser lógico ou ilógico, real ou sobrenatural, e é este mistério que é lançado ao leitor,<br />

é o caso a ser desven<strong>da</strong>do.<br />

Ao compor o cenário <strong>da</strong> casa, nos dois contos, ambos os autores conduzem a<br />

narrativa de maneira a fazer com que o leitor percorra com ele o cenário, analisando os<br />

elementos que o compõem e reconstruindo mentalmente as evidências que ele dá sobre a<br />

trama <strong>da</strong> narrativa. O leitor nesse caso é o detetive, e vai construindo o sentido <strong>da</strong> narrativa ao<br />

mesmo tempo em que a lê, fazendo analogia com a lógica do conto policial, quando o<br />

detetive, por meio <strong>da</strong> análise minuciosa <strong>da</strong> cena do crime, tenta desven<strong>da</strong>r o mistério suspenso<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

na densi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> energia do local. Nisso o fantástico contribui para a narrativa policial. O<br />

escritor se apropria <strong>da</strong> técnica <strong>da</strong> narrativa fantástica para compor o ambiente que dá<br />

evidências <strong>da</strong>s experiências ali vivi<strong>da</strong>s.<br />

Mais fortemente em “A que<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa de Usher’ evidencia-se um conflito<br />

psicológico do personagem vivido por Roderick Usher, que gra<strong>da</strong>tivamente vai se deixando<br />

influenciar pela energia <strong>da</strong> casa e consequentemente passa a ter sua percepção afeta<strong>da</strong>,<br />

oscilando entre o sano e o insano, o tema <strong>da</strong> loucura, instaura<strong>da</strong> no conto como elemento<br />

gerador de ambigui<strong>da</strong>de:<br />

Acima de tudo, ele está ligado aos problemas mentais <strong>da</strong> percepção. Não há<br />

mais um salto entre o louco e o homem normal. Os limites entre o louco e o<br />

homem de gênio [...] tornam-se muito flexíveis. A loucura se transforma em<br />

uma experiência a seu modo cognoscitiva e tem o valor pessimista e trágico<br />

<strong>da</strong> desci<strong>da</strong> às profundezas do ser. (CESERANI, 2006, p.83).<br />

Essa viagem às profundezas do ser coloca-nos em contato com o “outro lado”, janela<br />

do inconsciente que dá acesso aos sentimentos mais obscuros do ser humano. Por fim, em<br />

“Casa toma<strong>da</strong>” este outro lado se liberta dos limites que o separa <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e se transforma<br />

em um só lado, unindo o lógico e o perturbador ilógico. Neste momento, o narrador, a própria<br />

ponte entre os dois mundos (reali<strong>da</strong>de/ficção), nos desafia a decifrar o enigma do conto, que<br />

é, afinal, o deciframento de nós mesmos.<br />

O PROTAGONISMO DO ESPAÇO<br />

Presença constante nos contos de Poe é a ambientação, que se constrói não apenas<br />

como meio de situar o leitor no espaço: ela é muito mais que isso. O espaço, em certos<br />

momentos, passa a atuar como um personagem e, ao mesmo tempo, age com certo grau de<br />

expressionismo, provocando mal-estar e contribuindo para criar a atmosfera de mistério. Ao<br />

entrar em contato com a primeira parte do conto “A que<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa de Usher”, a descrição do<br />

ambiente é capaz de causar desconforto a quem o está lendo, como se fosse possível sentir a<br />

atmosfera géli<strong>da</strong> e mórbi<strong>da</strong> que a casa traz consigo: “a casa, a paisagem peculiar <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong>de, os frios muros, as janelas que lembravam olhos vazios, algumas fileiras de<br />

carriços e alguns troncos apodrecidos...” (POE, 2007, p.137).<br />

224


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O escritor norte-americano conseguia proporcionar ao leitor a sensação de angústia<br />

provoca<strong>da</strong> pela atmosfera depressiva do lugar onde se passava a história:<br />

A “proprie<strong>da</strong>de magnética dos grandes contos” – o ambiente – é trabalha<strong>da</strong><br />

por Edgar Allan Poe com perfeição, pois ele tem a aptidão de “nos introduzir<br />

num conto como se entra numa casa, sentindo imediatamente as múltiplas<br />

influências de suas formas, cores, móveis, janelas, objetos, sons e cheiros”.<br />

(CORTÁZAR apud KIEFER, 2011, p. 174)<br />

Esta característica pode ser verifica<strong>da</strong> tanto em “A que<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa de Usher”, quanto<br />

em “Casa toma<strong>da</strong>”. Ambos os autores, ao iniciar o conto, descrevem o ambiente antes de<br />

qualquer adentramento no enredo em si:<br />

Seguia sozinho a cavalo, através de uma região extraordinariamente<br />

monótona, por todo um dia de outono – escuro, sombrio, silencioso, em que<br />

as nuvens pairavam baixas e opressoras – quando, então, finalmente, ao<br />

caírem as sombras <strong>da</strong> noite, cheguei à melancólica Casa de Usher. Tão logo<br />

avistei aquela construção, não sei por que fui invadido por insuportável<br />

tristeza. (POE, 2007, p. 137).<br />

Tanto a casa <strong>da</strong> família Usher, quanto a casa de Cortázar, são depositários de<br />

lembranças de várias gerações que lá viveram e carregam consigo a energia desses finados<br />

que perduravam geração após geração:<br />

Enquanto repassava na imaginação a perfeita conformi<strong>da</strong>de que havia entre<br />

o caráter <strong>da</strong>quelas premissas e o temperamento atribuído àquela família, e<br />

refletia acerca <strong>da</strong> possível influência que, no decorrer dos séculos, um dos<br />

ramos poderia ter exercido sobre o outro, ponderei que era talvez aquela<br />

deficiência de linhagem colateral, e por consequência, a transmissão direta,<br />

de pai para filho, do patrimônio e do nome, o que tinha, afinal, identificado<br />

os dois, terminando por unir o título original <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de à arcaica e<br />

equívoca denominação de Casa de Usher, denominação essa que, no espírito<br />

dos que a empregava, parecia incluir tanto a família quanto a mansão. (POE,<br />

2007,p.138-9).<br />

Essa carga de recor<strong>da</strong>ções influencia no comportamento <strong>da</strong>s personagens, envolvidos<br />

pelas lembranças do passado e a reclusão do momento presente.<br />

Em “Casa toma<strong>da</strong>” ressurge to<strong>da</strong> esta problemática que se manifesta através de uma<br />

casa carrega<strong>da</strong> <strong>da</strong> energia de gerações passa<strong>da</strong>s e, gradualmente, vai se fechando para seus<br />

habitantes, até expulsá-los para a rua. Novamente, nos vemos diante <strong>da</strong> categorização do<br />

espaço, ou seja, este figura como parte indispensável ao conto, roubando a cena e deixando os<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

personagens humanos em segundo plano, se tornando ele mesmo o elemento possuidor de<br />

grande carga semântica. Assim como no conto de Poe, em Cortázar ele vem disposto em dois<br />

segmentos representados pelo espaço concreto e pelo espaço mítico:<br />

Tanto num quanto noutro, há uma progressiva antropomorfização <strong>da</strong> casa, de<br />

tal forma que se pode dizer que esta é a protagonista e seus inquilinos,<br />

coadjuvantes. O fantástico penetra na reali<strong>da</strong>de cotidiana aos poucos,<br />

instaurando uma nova ordem, sem ruptura lógica. Ao sairmos do circulo <strong>da</strong><br />

leitura, no final do conto, sentimo-nos aliviados. (KIEFER, 2011, p.216).<br />

Essa coexistência entre os dois espaços se dá de forma natural, sem chamar a atenção<br />

para o extraordinário. No fragmento inicial o narrador engenhosamente compõe um cenário<br />

de naturali<strong>da</strong>de, próprio de um diálogo:<br />

Gostávamos <strong>da</strong> casa porque, além de espaçosa e antiga (hoje que as casas<br />

antigas sucumbem à mais vantajosa liqui<strong>da</strong>ção de seus materiais), guar<strong>da</strong>va<br />

as recor<strong>da</strong>ções de nossos bisavós, o avô paterno, nossos pais e to<strong>da</strong> a<br />

infância.<br />

Habituamo-nos, Irene e eu, a permanecer nela sozinhos, o que era uma<br />

loucura, pois nessa casa podiam viver oito pessoas sem se estorvar.<br />

(CORTÁZAR, 1971, p. 11).<br />

Em “Casa toma<strong>da</strong>” não é percebido nenhum estranhamento dos personagens diante<br />

<strong>da</strong> força misteriosa que pouco a pouco vai tomando conta dos aposentos <strong>da</strong> casa. A força<br />

misteriosa invade a primeira parte <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de sem causar espanto ou hesitação nos<br />

personagens, os quais apenas comentam sobre objetos que foram deixados “do outro lado” e<br />

que agora não podem mai ser recuperados. Resignam-se a viver do lado <strong>da</strong> casa que lhes<br />

restou sem questionar ou hesitar.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Ao estabelecer a relação intertextual entre Edgar Allan Poe e Júlio Cortázar, chega-se<br />

não somente à simples delimitação de diferenças e semelhanças, mas também, e<br />

principalmente, consegue-se constatar em que medi<strong>da</strong> o escritor portenho absorveu as<br />

influências de seu antecessor norte-americano, e no que isso contribuiu, em via contrária, para<br />

valorizar o clássico conto de Poe. Somado a isso, pode-se dizer que essa relação de influência<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

mútua proporcionou à técnica <strong>da</strong> literatura fantástica desembocar diretamente nos meandros<br />

<strong>da</strong> literatura policial.<br />

Tal entrosamento contribui para a realização <strong>da</strong> técnica policial contemporânea, que<br />

procura se concentrar no enigma, em sua resolução, no processo de busca por respostas, por<br />

mais que se termine a leitura sem obtê-las. É a ficção jogando com o leitor, envolvendo-o,<br />

surpreendendo-o e desorientando-o.<br />

Em Cortázar, o leitor termina o conto sem conseguir decifrar o enigma presente no<br />

enredo. Da mesma forma, e por analogia, a própria narrativa fecha seu significado ao leitor.<br />

Somado a isso, a narrativa policial moderna deixa a dúvi<strong>da</strong> no ar, ou seja, normalmente seus<br />

crimes não têm solução, o foco está na trajetória percorri<strong>da</strong> pela investigação, portanto, está<br />

mais interessa<strong>da</strong> no detetive do que no desfecho do mistério.<br />

Da mesma maneira, do conto policial clássico ao contemporâneo há uma mu<strong>da</strong>nça de<br />

ênfase, que passa do ato criminoso em si, para o processo de desven<strong>da</strong>mento do crime, cujo<br />

protagonista passa a ser o detetive. Desta forma, a confissão do crime é substituí<strong>da</strong> pela<br />

narrativa do processo de busca por uma solução, o percurso percorrido pelo investigador.<br />

Este investigador não precisa, necessariamente, atuar como personagem <strong>da</strong> história.<br />

Quando a trama convi<strong>da</strong> a mergulhar no texto e percorrer seus caminhos misteriosos, o<br />

detetive passa a ser o próprio leitor, caminhando junto com a narrativa na reconstituição dos<br />

fatos. O enigma, portanto, é o leitmotiv dos grandes contos, sejam eles fantásticos ou<br />

policiais.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução: Nilton Cezar Tri<strong>da</strong>palli. Curitiba: UFPR, 2006.<br />

CORTÁZAR, Julio. Casa Toma<strong>da</strong>. In: ______. Bestiário. Tradução: Remy Gorga Filho. 2 ed.<br />

Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1971. p. 11-18<br />

D’ONOFRIO, Salvatore. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática, 2007.<br />

JOZEF, Bella. A Máscara e o Enigma: A moderni<strong>da</strong>de: <strong>da</strong> repesentação à transgressão. Rio<br />

de Janeiro: Francisco Alves, 2006.<br />

KIEFER, Charles. A poética do conto: de Poe a Borges – um passeio pelo gênero. São Paulo:<br />

Leya, 2011.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

POE, Edgar A. A que<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa de Usher. In: ______. Histórias Extraordinárias.Tradução de<br />

Pietro Nassetti. 2 ed. São Paulo: Martin Claret, 2007. p. 137-154<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Keigo Higashino e seu diálogo com a escrita do eu japonesa –<br />

Além dos casos de assassinatos: o sufoco do escritor de suspenses.<br />

NAGAE, Neide Hissae (FFLCH/ USP)<br />

RESUMO: Keigo Higashino (1958-) é um dos escritores de destaque no cenário <strong>da</strong> narrativa<br />

policial japonesa <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de juntamente com outros autores de sucesso como, Akagawa<br />

Jiro (1948-), Uchi<strong>da</strong> Yasuo (1934-) e Miyabe Miyuki (1960-). Sob a inevitável influência <strong>da</strong>s<br />

obras de grandes nomes ocidentais que lhes serviram de modelo desde Edgar Allan Poe e<br />

Conan Doyle, a projeção desse gênero literário começou na déca<strong>da</strong> de 1920 pelas mãos do<br />

escritor Edogawa Ranpo (1894-1965), criador do Clube dos Escritores de Policiais Japoneses<br />

em 1947 e que deu nome a um dos mais importantes prêmios literários criado em 1954. Desde<br />

então, os leitores têm o privilégio de escolher entre os vários autores japoneses que cativam<br />

um público fiel e numeroso com criativi<strong>da</strong>de e originali<strong>da</strong>de. A obra de 2001 de Higashino<br />

que pretendemos apresentar brinca com a própria condição dos autores consagrados às voltas<br />

com problemas de imposto de ren<strong>da</strong> numa trama de burlar o fisco por meio <strong>da</strong> criação<br />

literária. Com isso, o autor traz à baila um problema cotidiano do presente com muito humor e<br />

fingindo relegar o gênero que produz a um segundo plano, num diálogo com a antiga questão<br />

<strong>da</strong> autoficção japonesa e tão presente no cenário do Japão e do mundo na atuali<strong>da</strong>de.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Narrativa Policial Japonesa; Keigo Higashino; escrita do eu.<br />

ABSTRACT: Keigo Higashino is one of the most famous policial writers in Japan,<br />

nowa<strong>da</strong>ys, with other authors such as Akagawa Jiro (1948-), Uchi<strong>da</strong> Yasuo (1934-) and<br />

Miyabe Miyuki (1960-). Above a strong influence of European and American works created<br />

since Edgar Allan Poe and Conan Doyle, this literary genre was developeded by Edogawa<br />

Ranpo (1894-1965) who founded The Japanese Policial Writers Club in 1947 and gave his<br />

name to an important literary prize instituted in 1954. Since then, Japanese people have the<br />

privilege to select their favorite writer among a great number of creative and original authors<br />

that have numerous and faithful readers. The work of Higashino produced in 2001 that we<br />

intend to study here plays with his own condition of laureate author that has to pay higher<br />

taxes and tries to subvert the government using his novel. Doing this, Higashino brings up to<br />

us a <strong>da</strong>ily problem with humor. He simulates that the policial genre is less important, and<br />

talks with the Japanese I Novel, a narrative of the self that is very familiar with the japanese<br />

literature, and is also increasing these <strong>da</strong>ys in other literatures of the world.<br />

KEYWORDS: Japanese Policial Narrative; Keigo Higashino; I Novel.<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL NO JAPÃO<br />

No Japão, existe uma mistura de nomes para designar o gênero que vai desde o<br />

policial, detetivesco, mistério e suspense, e Keigo Higashino é um autor contemporâneo que<br />

segue essa tradição já longa que vem desde o início do século XIX, antes mesmo <strong>da</strong> abertura<br />

do Japão para o ocidente pelo contato com os holandeses. Segundo a Enciclopédia de<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Romances Policiais (1975), a primeira tradução no gênero foi Yongeru Ki<strong>da</strong>n de 1820 do<br />

holandês Chrstmeijer, transmiti<strong>da</strong> como histórias holandesas na tradução de Kôhei Kan<strong>da</strong>. A<br />

divulgação do gênero começou pelas traduções do escritor e jornalista Kuroiwa Shûroku<br />

(1862-1920). Mais conhecido como Ruikô, foi editor de diversos jornais como Nihon<br />

Taimusu (Japan Times) e Miyako Shinbun (posterior Konnichi Shinbun). Em 1892 fundou o<br />

jornal Yorozu Chôhô no qual publicou seus romances detetivescos em séries.<br />

Quem, contudo, formou as bases do romance policial no Japão foi Edogawa Ranpo<br />

(1894-1965), que deu nome ao prestigiado prêmio literário instituído em 1954. Pseudônimo<br />

de Tarô Hirai, adotado em clara alusão a Edgar Allan Poe, obteve reconhecimento com a obra<br />

Nisen Dôka, de 1923 (Uma Moe<strong>da</strong> de Dois Centavos). Autor de várias obras sobre o gênero,<br />

foi o fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> antiga Associação dos Escritores de Romances Policiais em 1947, e editor<br />

<strong>da</strong> revista de romances policiais Hôseki (Pedra Preciosa) de 1946 até 1964. É na esteira<br />

desses e de outros escritores que desenvolveram o gênero no Japão que hoje, figuram Uchi<strong>da</strong><br />

Yasuo (1934-) e Miyabe Miyuki (1960-) e outros, contemporâneos de Higashino, e que com<br />

ele dividem o próspero mundo <strong>da</strong> narrativa policial japonesa. O público infanto-juvenil<br />

também é atendido nesse gênero por Hayamine Kaoru com a coleção Aoitori Bunko <strong>da</strong><br />

Editora Ko<strong>da</strong>nsha.<br />

KEIGO HIGASHINO<br />

Nascido em 1958 em Osaka, Keigo Higashino conseguiu reconhecimento com a obra<br />

Hôkago (Depois <strong>da</strong> última aula) em 1985 ao ser laureado com o 31º. Prêmio Edogawa Ranpo.<br />

Graduado em Engenharia Elétrica pela Universi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Província de Osaka, exerceu a<br />

profissão entre 1981 e 1986 na empresa Denso, mas após a premiação passou a viver como<br />

escritor. Perdeu 15 prêmios literários nos quais se inscreveu até que conseguiu o 3º. Lugar do<br />

Prêmio Kono mistery wa sugoi (Esse Mistery é incrível) versão de 1997, com Meitantei no<br />

okite (As regras para um detetive famoso) de 1996. Desde então, começou a receber a atenção<br />

do público, alcançando notorie<strong>da</strong>de com o Prêmio <strong>da</strong> Associação dos Escritores de Romance<br />

Policial do Japão em 1999 com Himitsu (Segredo/Naoko, 1998) que recebeu a<strong>da</strong>ptação para o<br />

cinema e para a TV. Em 2006, Yōgisha X no Kenshin (A devoção do suspeito X), recebe o<br />

134º. Prêmio Naoki, instituído em 1935 com duas premiações por ano, Depois, foi uma<br />

sucessão de prêmios.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O autor escreve sobre temas variados que vão desde crimes sociais, mistérios<br />

envoltos por ficção científica, até de teor humorístico e uma de suas características é a<br />

utilização recorrente de <strong>da</strong>dos de suas experiências, a exemplo de Byakuyakô (Viagem<br />

noturna durante o dia), publica<strong>da</strong> em 1999, que tem sua ci<strong>da</strong>de natal como cenário. Sucesso<br />

de crítica, Higashino ingressou para o meio dos escritores populares, ocupando os primeiros<br />

lugares dos maiores pagadores de impostos entre os romancistas, vindo a ocupar a diretoria <strong>da</strong><br />

Associação Japonesa de Escritores de Suspense a partir de 1º. de junho de 2009. Várias obras<br />

suas foram a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>s para novelas e seriados de TV, chegou a participar de única cena nos<br />

filmes Himitsu, Segredo e g@me. Por ocasião do grande terremoto <strong>da</strong> região oeste do Japão<br />

de 2011, doou o imposto dos cem mil exemplares extras impressos de Kirin no tsubasa, (As<br />

asas do lendário kirin) publica<strong>da</strong> naquele ano e que se tornou a sua 12ª. obra a receber versão<br />

cinematográfica, estreando em todo o Japão nos dias 28 e 29 de janeiro de 2012 com uma<br />

arreca<strong>da</strong>ção e público fabulosos.<br />

A OBRA<br />

A obra aqui analisa<strong>da</strong> é a primeira de uma série de oito capítulos-contos reunidos sob<br />

o título Chô satsujin jiken – suirisakka no kunô: Além dos casos de assassinatos – o sufoco<br />

dos escritores de suspenses, ain<strong>da</strong> sem tradução em português, publicado pela Editora<br />

Shinchô em 2001 no Japão. Traduzir o título desse livro e os de seus capítulos-contos já<br />

acabaria com a brincadeira do autor, pois o prefixo chô presente em todos eles também<br />

compõe parte do enigma a ser desven<strong>da</strong>do. O leitor que vê o título na capa do livro vai<br />

imaginar em primeira instância que se trata de um “super caso de assassinato”, mesmo com o<br />

subtítulo, “o sufoco dos escritores de suspenses”. Só poderá entender que o seu propósito é<br />

apresentar histórias que vão “além dos casos de assassinatos” quando começar a ler os<br />

primeiros capítulos-contos. O sumário também não é suficiente para eluci<strong>da</strong>r a ambigui<strong>da</strong>de<br />

ou a duplici<strong>da</strong>de do mesmo prefixo, pois ele adjetiva a expressão “caso de assassinato” que<br />

faz parte do título dos contos, mas também pode adjetivar a palavra ou expressão que o<br />

precede. A diferença entre os títulos é o conteúdo, ou o detalhamento: o segundo capítulo é<br />

“<strong>da</strong> área de exatas”; o terceiro, “do romance para adivinhar o assassino” (Parte: problema e<br />

Parte: resposta); o quarto, “<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de idosa”; o quinto, “do romance divinatório”; o sexto,<br />

“do romance longo”; o oitavo, “<strong>da</strong> máquina de leitura”, compondo exceção nesse conjunto, o<br />

sétimo que leva o prefixo no (último capítulo – 5 últimas lau<strong>da</strong>s), uma explicativa, que vem<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

após o título: Caso de Assassinato do Edifício Vento Diabólico. A obra to<strong>da</strong> é uma sátira para<br />

com o leitor e a socie<strong>da</strong>de contemporânea e com o mundo editorial. Este último, de modo<br />

mais direto no último capítulo-conto, mas a obra como um todo satiriza-o na medi<strong>da</strong> em que<br />

utiliza a mesma dinâmica na publicação de livros japoneses que compõem uma coletânea de<br />

obras de um mesmo autor, mas que levam o nome de um dos mais famosos ou conhecidos.<br />

No caso deste livro de Higashino, o título é efetivamente <strong>da</strong> obra to<strong>da</strong>, mas os<br />

capítulos são contos com histórias independentes que convergem para a temática do livro, e os<br />

títulos dos capítulos-contos em seu conjunto são enigmáticos e satíricos. A segun<strong>da</strong> história,<br />

por exemplo, traz logo abaixo de seu título, configurado em uma única página, os dizeres “as<br />

pessoas às quais esse conto não agra<strong>da</strong>, queiram pulá-lo” dentro de um enquadramento. O que<br />

significa não agra<strong>da</strong>r O autor está brincando com o leitor, partindo de um pressuposto<br />

estereotipado de que os que gostam de literatura não se interessam por temas ligados à área de<br />

exatas Ou a intenção é exatamente instigar o leitor a ler E a sátira ao mundo editorial<br />

instaura-se na in<strong>da</strong>gação: Por que publicar uma história que não precisa ser li<strong>da</strong> se o leitor<br />

assim desejar<br />

Desse modo, o livro traz surpresas próprias <strong>da</strong>s narrativas policiais, mas também<br />

segue pela linha <strong>da</strong> subversão criativa e humorística, como é o caso do primeiro capítuloconto,<br />

Chô zeikin taisaku satsujin jiken, que aponta para uma multiplici<strong>da</strong>de de sentidos do<br />

prefixo chô, <strong>da</strong><strong>da</strong> as possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> língua japonesa e do arranjo feito pelo autor. Só<br />

poderemos chegar a um título em português depois de sua leitura concluindo que o conteúdo<br />

trata de uma história que não foca um assassinato em si, embora ele exista, mas numa medi<strong>da</strong><br />

inusita<strong>da</strong> contra os superimpostos, temas esses que seriam mais importantes que o caso de<br />

homicídio, mas, que ao mesmo tempo, apontaria para um caso de assassinato no sentido<br />

metafórico, já que o resultado é o fim <strong>da</strong> carreira literária de um escritor de sucesso.<br />

Como se pode perceber há uma sobreposição de sentidos e de histórias. O primeiro<br />

capítulo-conto tem um narrador-protagonista escritor de narrativas policiais que está<br />

começando a escrever o décimo capítulo de uma série que vinha sendo publica<strong>da</strong> em uma<br />

revista e é nela que começamos a leitura desse capítulo-conto.<br />

Assim, o primeiro capítulo-conto começa com o número 1 seguido por um título: O<br />

assassinato <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de gelo – 10º. episódio.<br />

Por um momento, estranhamos e voltamos à página anterior para ver se não houve<br />

algum descuido e pulamos algumas páginas, mas logo <strong>da</strong>mo-nos conta de aquele é de fato o<br />

início. Começamos a leitura acompanhando o desenrolar dos fatos narrados em terceira<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

pessoa em que o detetive Haga, o protagonista, desce na estação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Asahikawa, em<br />

busca de seu amigo Yasumasa Isumi que havia desaparecido deixando uma pista de que<br />

estaria naquela ci<strong>da</strong>de. Haga segue para lá com Shizuka, noiva desse amigo e que espera um<br />

filho dele. O detetive preocupa-se com a moça que quase sofre uma que<strong>da</strong> por estar de saltos<br />

altos an<strong>da</strong>ndo na neve escorregadia. Cobrando-se para não criar expectativas que nutre em<br />

relação à moça, tomam o táxi e a história se interrompe. Tratava-se de uma narrativa policial<br />

que o narrador protagonista do capítulo-conto estava escrevendo.<br />

Depois de um espaçamento maior entre linhas, a nossa leitura passa para o capítuloconto<br />

propriamente dito com uma onomatopeia que expressa o cair de algo pesado até o<br />

cessar do movimento e do barulho. Vem a explicação do narrador-protagonista dizendo que<br />

parou de digitar naquele ponto. “Ao tomarem o taxi” e saiu do quarto. A narração prossegue<br />

em primeira pessoa. As frases ficam curtas. Ele grita do an<strong>da</strong>r superior perguntando o que<br />

aconteceu. Sem resposta, desce as esca<strong>da</strong>s. Cria-se um suspense, mas mesmo assim, ele<br />

introduz um pouco de comici<strong>da</strong>de. Encontra a esposa desfaleci<strong>da</strong> no chão. Acudi<strong>da</strong>, ela<br />

recobra a consciência e mostra-lhe o documento vindo do escritório de contabili<strong>da</strong>de. Era o<br />

valor do imposto de ren<strong>da</strong> que deveria pagar. A cifra de zeros deixa-o incrédulo e atônito e<br />

pede à esposa que chame o contador.<br />

O fato é que era preciso arrumar mais recibos. Os entregues resultavam naquelas<br />

contas e alguns, como o de viagem ao Havaí, apresentavam problemas, pois, nos trabalhos<br />

<strong>da</strong>quele ano, ou seja, quatro contos e outras obras seria<strong>da</strong>s em revistas, não traziam Havaí<br />

como cenário e ultimamente, os investigadores do Ministério <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong> especializados em<br />

imposto de ren<strong>da</strong> dos escritores liam to<strong>da</strong>s as obras para conferir <strong>da</strong>dos.<br />

A obra policial em que o episódio ficara parado no início do episódio final seria o<br />

último trabalho <strong>da</strong>quele ano e deveria ser publicado na revista no próximo mês. O penúltimo<br />

episódio já publicado anunciara o nome <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, mostrando que há três dias Haga<br />

conseguira montar a palavra Asahikawa. Agora era preciso que Havai figurasse como cenário<br />

<strong>da</strong> obra. Era praticamente impossível mu<strong>da</strong>r subitamente de um cenário para outro. Havia,<br />

ain<strong>da</strong>, um maço de notas fiscais difíceis de serem justifica<strong>da</strong>s como despesas. Entre eles, um<br />

sobretudo de ¥195.000 ienes comprado para a esposa; um terno Armani e calçado no valor de<br />

¥338.700 ienes, usados na festa <strong>da</strong> Associação dos Escritores Japoneses de Mistérios e para a<br />

sessão de fotos. Segundo Hamasaki, objetos particulares não eram justificáveis. Eram<br />

admitidos somente os materiais de consumo profissional, comprovados como de uso único e<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

exclusivo para essa finali<strong>da</strong>de. As interpretações <strong>da</strong> receita federal eram bem aleatórias e as<br />

regras, inúmeras e cheias de detalhes.<br />

Depois <strong>da</strong>s vertigens do narrador-protagonista diante <strong>da</strong>s explicações do amigo e as<br />

crises emocionais <strong>da</strong> esposa, nos deparamos com a sua plena aceitação em fazer o que for<br />

preciso e escrever qualquer tipo de coisa para se livrar do fisco.<br />

Assim estabelece-se o diálogo de Keigo Higashino com a escrita do eu japonesa.<br />

Nela, a obra literária escrita como ficção é basea<strong>da</strong> em fatos reais ligados à vi<strong>da</strong> do autor,<br />

podendo ser escrita tanto em primeira pessoa quanto em terceira sem, contudo, identificar<br />

textualmente o nome do autor ou de pessoas liga<strong>da</strong>s a ele. O autor aproveita-se, entretanto, de<br />

uma atitude que se popularizou na socie<strong>da</strong>de japonesa que é a de se acreditar que a obra<br />

revela fiel e integralmente os fatos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do autor. E assim, acompanhamos por páginas e<br />

páginas a cômica situação em que o narrador-protagonista e o amigo contador empenham-se<br />

em inserir na obra em criação desde os gastos mais exorbitantes até os mais irrelevantes como<br />

materiais de consumo profissional, a fim de convencer os investigadores <strong>da</strong> receita federal.<br />

Obviamente, o narrador-protagonista não é um escritor que cria suas obras prevendo<br />

os efeitos dessa linha <strong>da</strong> escrita do eu, mas é convencido pelo amigo contador a mu<strong>da</strong>r o<br />

estilo. O escritor consegue mu<strong>da</strong>r o espaço <strong>da</strong> obra que está no 10º. e último episódio, de um<br />

lugar extremamente frio como a ci<strong>da</strong>de de Asahikawa na Província de Hokkaido, no extermo<br />

norte do Japão, para uma ci<strong>da</strong>de quente como o Havaí, utilizando códigos cifrados.<br />

Vejamos como: recapitulando, na noite anterior, Haga havia conseguido decifrar os<br />

números e letras do alfabeto romano que estavam no bilhete deixado por Itsumi e por isso<br />

estava em ASAHIKAWA com Shizuka. Ao tomarem o taxi, chegaram a um local com um<br />

quarto totalmente vazio, mas a moça encontra escrito no canto de uma parede: KASAGANAI<br />

ITSUMIYORI. (Não tem guar<strong>da</strong>-chuva, de Itsumi). A primeira pista que consistia nas letras<br />

romanas no bilhete de Itsumi, ASAHIKAWA, leva o detetive para essa ci<strong>da</strong>de onde<br />

encontrará a segun<strong>da</strong> pista, a inscrição KASAGANAI deixa<strong>da</strong> pelo desaparecido. Tirando<br />

guar<strong>da</strong>-chuva = KASA <strong>da</strong> palavra ASAHIKAWA sobram as letras AHIWA que tornam<br />

possível a composição de HAWAI.<br />

Estamos, então, no episódio 10 intitulado “O assassinato <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de gelo” que<br />

deveria ter acontecido na gela<strong>da</strong> Asahikava. O que estava escrito foi totalmente substituído e<br />

o cenário é o aeroporto de Honolulu. Nessa manobra, sua habili<strong>da</strong>de de escritor fica evidente<br />

e cria-se a expectativa de que os outros gastos continuarão a ser inseridos de modo inteligente<br />

e cheios de raciocínio lógico. Evidentemente, não é o que acontece e vamos de um absurdo a<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

outro, de uma situação tragicômica a outra. O salto alto de Shizuka quebra, ela rasga o<br />

sobretudo de pele dizendo que o calor está insuportável.<br />

A partir <strong>da</strong>qui, as intercalações <strong>da</strong>s cenas de ficção e reali<strong>da</strong>de dentro do capítuloconto<br />

se intensificam com o conteúdo <strong>da</strong> ficção sendo interrompido com perguntas do escritor<br />

ao contador e comentários deste ao que o escritor escreve, cobrando que ele seja mais criativo,<br />

por exemplo. O escritor vai inserindo as provas de suas notas fiscais anexa<strong>da</strong>s à declaração de<br />

imposto de ren<strong>da</strong>, descrevendo o detetive Haga a tirar as roupas, e incendiá-las com um<br />

isqueiro; ouvir músicas havaianas com o aparelho de karaokê; fazer compras aos montes com<br />

Shizuka no Shopping Center de Honolulu; ir à loja de utensílios de golfe para a compra de<br />

equipamentos utilizados nessa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de esportiva, mas acabam não encontrando Itsumi no<br />

Havaí. Enquanto Hamasaki faz contas alucina<strong>da</strong>s na calculadora, a esposa traz notas fiscais<br />

até de uma banheira compra<strong>da</strong> pelos pais que colecionavam antigui<strong>da</strong>des e de compras de<br />

mercado.<br />

A preocupação seguinte é com o número de páginas que restam para concluir o<br />

romance cuja estória já estava arruina<strong>da</strong>. Depois do Havaí, o cenário volta ao Japão, no<br />

aeroporto internacional de Narita, e <strong>da</strong>li para as termas de Kusatsu, reigião próxima de<br />

Quioto, onde, é óbvio, o narrador-protagonista e sua esposa, haviam passado o outono<br />

anterior. A uns vinte minutos de carro <strong>da</strong>s termas de Kusatsu eles entram numa estra<strong>da</strong> de<br />

terra e se deparam com um prédio branco totalmente isolado, sem porta, com uma única<br />

janela pequena que dá para ver que há alguém em seu interior e resolvem aju<strong>da</strong>r. Jogam o<br />

carro contra a parede a to<strong>da</strong> a veloci<strong>da</strong>de, destruindo totalmente a dianteira do carro, mas<br />

conseguindo derrubar a parede, que por coincidência era onde ficava o banheiro. Ali,<br />

encontram Itsumi caído, e Haga constata que está morto. Shizuka chora. Há um sangramento<br />

na cabeça, como se ele tivesse sido golpeado nisso repara num vaso Koimari, com fundo<br />

branco e desenhos bem chamativos. A maquiagem dos olhos de Shizuka escorre com as<br />

lágrimas, e deduz-se que aquele último episódio <strong>da</strong> obra foi concluído.<br />

To<strong>da</strong>s as descrições que justificam as despesas aparecem textualmente em negrito,<br />

naturalmente, numa coincidência entre a obra policial e o capítulo conto que narra a vi<strong>da</strong> de<br />

seu escritor às voltas com a sua obra de ficção e a reali<strong>da</strong>de dos impostos.<br />

Voltando ao capítulo-conto, a declaração de imposto de ren<strong>da</strong> foi entregue com<br />

sucesso, conseguindo, inclusive, uma restituição. Eles comemoram com um brinde<br />

entusiasmado. Mas, exatamente um mês depois, o escritor é chamado na receita federal, para<br />

entregar o detalhamento <strong>da</strong>s despesas. Entregou o documento com uma cópia do 10º.<br />

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episódio, mas com exceção de algumas, a maioria não foi aceita como justificativa e ele foi<br />

obrigado a pagar um imposto de ren<strong>da</strong> altíssimo. As editoras não o procuraram mais depois de<br />

ter escrito aquele final totalmente inverossímil e o capítulo-conto termina com a pergunta: O<br />

que eu faço!<br />

Assim, nesse capítulo-conto, temos como narrador-protagonista um escritor bem<br />

sucedido de policiais e que está para concluir mais uma obra. Os personagens Haga e Shizuka<br />

são perfeitos para compor o papel do escritor e de sua esposa. Não são necessários outros<br />

personagens, pois isso complicaria a ruptura que se instaura na identificação do espaço do<br />

episódio com o espaço <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> real do escritor que produz aquele episódio e a centralização<br />

nas ações dos personagens movi<strong>da</strong>s pelas necessi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> real desse escritor. Enquanto o<br />

episódio final é narrado em terceira pessoa, o foco narrativo do capítulo-conto sobre a vi<strong>da</strong><br />

real do autor do episódio do romance policial é a primeira pessoa masculina ore que por meio<br />

desse recurso narrativo vai imprimir um tom de vítima, tanto do Estado quanto do amigo, por<br />

não ter obtido êxito nem com a obra, nem com a declaração do imposto de ren<strong>da</strong>.<br />

Cria-se uma identi<strong>da</strong>de entre a obra policial escrita pelo narrador protagonista e a sua<br />

própria vi<strong>da</strong>, desenvolvi<strong>da</strong>s com uma história dentro <strong>da</strong> outra e que leva ao insucesso de<br />

ambas.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

O desaparecimento de um amigo é o enigma a ser desven<strong>da</strong>do na obra policial que<br />

está sendo escrita pelo narrador-protagonista do primeiro capítulo-conto, aqui estu<strong>da</strong>do.<br />

Encontrado no final, ele jaz no chão, sem que, contudo, aconteça o desven<strong>da</strong>mento, pois, essa<br />

obra policial assume o que é primordial no capítulo-conto: como justificar os gastos<br />

exorbitantes do escritor. A inserção de <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> real na sua obra de ficção, ou seja, as<br />

notas fiscais que precisam ser anexa<strong>da</strong>s à declaração de imposto de ren<strong>da</strong> vão aparecer como<br />

provas dos gastos no romance policial, deixando totalmente de lado o mistério sobre o<br />

desaparecimento e a morte de Itsumi, comprovando a incompetência do detetive Haga no<br />

âmbito <strong>da</strong> ficção e levando o escritor à bancarrota no âmbito <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> real. Essa forma de<br />

escrita é uma alusão clara às narrativas do eu japonesa, em que a obra é basea<strong>da</strong> em fatos<br />

reais, mas com uma forte crença de que tudo nela são ver<strong>da</strong>des irrefutáveis sobre a vi<strong>da</strong> de<br />

seu autor.<br />

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A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A crítica ao mundo capitalista pode ser vista na ironia em que o preço <strong>da</strong> fama e do<br />

sucesso são os altos impostos e que os escritores não têm escolha, devem viver no sufoco,<br />

conforme o título do livro: escrevendo sem parar ou tentando burlar o fisco. É uma incógnita,<br />

ou um beco-sem-saí<strong>da</strong>. Se o narrador protagonista tivesse escrito o 10º. e último episódio<br />

conforme havia se proposto, talvez tivesse alcançado novo sucesso de ven<strong>da</strong>s e conseguido<br />

pagar os impostos. No entanto, na ideia fixa de burlar o fisco, ele aceita a aju<strong>da</strong> do amigo<br />

contador e não obtém êxito em nenhum dos dois.<br />

Ao mesmo tempo, é possível traçar um paralelo com a ficção e a reali<strong>da</strong>de que<br />

Higashino quer brincar. Enquanto no âmbito <strong>da</strong> ficção o capítulo-conto narra o insucesso do<br />

escritor de policiais sem dinheiro para pagar impostos porque não conseguiu burlar o fisco e<br />

nem vender o romance além de ter ficado sem trabalho porque as editoras não o procuram<br />

mais, na vi<strong>da</strong> real, presenciamos o sucesso do autor Keigo Higashino que é um dos maiores<br />

pagadores de impostos do Japão, com sucessivos best-sellers e que tem seus livros publicados<br />

por várias editoras, com versões em filmes de cinema, novelas e seriados de TV.<br />

Na ficção, o romance é concluído, mas não é bem sucedido, ao contrário do que<br />

ocorre na vi<strong>da</strong> real, pois essa coletânea de Higashino ficou em 5º lugar no Guia e em 6º. no<br />

Prêmio de Romances Policiais.<br />

Podemos observar que nessa obra, Keigo Higashino parte do pressuposto de que os<br />

romances policiais já são bem conhecidos com seus crimes e homicídios, e não abor<strong>da</strong> esses<br />

casos diretamente, de modo convencional. Escreve sobre as circunstâncias que envolvem a<br />

escrita do gênero detetivesco, que possui um público cativo e faz muito sucesso desde o seus<br />

primeiros escritores, e há várias déca<strong>da</strong>s, tem lançados novos autores e obras em grande<br />

quanti<strong>da</strong>de.<br />

Seu foco nessa coletânea é o universo editorial do romance policial, que envolve<br />

leitores, romancistas, críticos, editores e a mídia e, em ca<strong>da</strong> conto, centra-se em um ou mais<br />

elementos para mostrar um de seus temas muito abor<strong>da</strong>dos que é a questão social.<br />

O escritor que romanceia crimes vira o próprio criminoso e recebe a sua punição. Por<br />

outro lado, também soa a uma denúncia dos abusos sobre as altas taxas de impostos.<br />

O enigma ou o mistério sustentado pelo medo seja ele <strong>da</strong> morte, <strong>da</strong> violência, <strong>da</strong><br />

loucura, <strong>da</strong> doença, <strong>da</strong>s calami<strong>da</strong>des naturais ou dos fantasmas, como diz o estudioso Tsuide<br />

Ikuteru (1977, p.81), nesse capítulo-conto é o medo de se pagar os altos impostos, ficar menos<br />

rico. Em função desse medo, contudo, no plano <strong>da</strong> ficção, o enigma inicial é posto em<br />

segundo plano, e o resultado, como vimos, foi uma obra desastrosa e totalmente inverossímil.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

No plano real, contudo, o livro como um todo constitui um enigma que superam os<br />

tradicionais, apresentados por Edogawa (1966, pp.134-144), a começar por seu título e pelos<br />

seus oito capítulos-contos ligados, como vimos, pelo prefixo chô.<br />

O que esses contos trazem em comum são elementos que desafiam a inteligência do<br />

escritor de narrativas policiais, de suspenses, de mistérios, e que coloca em risco a existência<br />

dos mesmos, em função <strong>da</strong>s próprias exigências e <strong>da</strong> situação extrema em que vivem.<br />

Isso é reforçado pelo prefixo chô constante nos títulos tanto <strong>da</strong> obra quanto dos<br />

capítulos-contos que ao adjetivar os casos de assassinatos aponta para o crime cometido<br />

contra os próprios escritores que precisam, literalmente, passar por sufocos para se manterem<br />

no disputado mercado editorial.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

HIGASHINO, Keigo. Chô satsujin jiken – suirisakka no kunô (Além dos casos de<br />

assassinatos – o sufoco do escritor de mistérios). Tóquio: Editora Shinchôsha, 2001. 301p.<br />

TSUIDE, Ikuteru. Tantei shôsetsuron. (Teoria do romance policial). Tóquio: Editora<br />

Gen’eijô, 1977. 290p.<br />

KUKI, Shirô. Tantei shôsetsu Hyakka. (Enciclopédia de romance policial). Tóquio:<br />

Kin’eisha, 1975. 516p.<br />

EDOGAWA, Ranpo. Tantei shôsetsu no nazo. (O enigma do romance policial). Tóquio:<br />

Shakai shisôsha, 1966. 202p.<br />

Disponível em: .<br />

Acesso em: 29 abr. 2012.<br />

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A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Dois atentados contra o gênero policial: estudo comparado de “Le crime au père Boniface”,<br />

de Guy de Maupassant, e de “Um crime”, de Medeiros e Albuquerque<br />

NEVES, Angela <strong>da</strong>s (USP)<br />

RESUMO: A narrativa policial tradicional é marca<strong>da</strong> pela presença de um detetive, motivado<br />

a realizar uma investigação a partir de um crime, para o qual vai buscar a solução, com<br />

engenho e arte. É comum que os primeiros indícios apontem erra<strong>da</strong>mente para um desfecho<br />

nessa investigação, o que faz durar o suspense <strong>da</strong> narrativa. Apesar de ser recorrente o engano<br />

sobre os suspeitos, já que parece ser <strong>da</strong> natureza dos detetives ficcionais certa confusão, o que<br />

raramente acontece é o equívoco sobre se o que têm diante de si é um crime ou não. Isso é o<br />

que ocorre nos dois contos que estu<strong>da</strong>remos neste trabalho, “Le crime au père Boniface”, de<br />

Guy de Maupassant, e “Um crime”, de Medeiros e Albuquerque, hoje considerado o fun<strong>da</strong>dor<br />

do gênero policial no Brasil. Tanto a personagem de Maupassant, o carteiro Boniface, quanto<br />

o investigador Castro, de Medeiros e Albuquerque, são alimentados pela leitura de faits<br />

divers, o que os instiga a ver crimes onde não há. Considerando que “os gêneros literários<br />

dependem, talvez, menos dos textos que do modo como são lidos”, conforme Jorge Luís<br />

Borges, em “O conto policial” (1978, p. 220), os dois contos serão aqui interpretados como<br />

narrativas policiais de humor, tendência hoje em voga, que põe em xeque a serie<strong>da</strong>de do<br />

detetive ficcional – bem como os limites do gênero policial. Essa vertente foi observa<strong>da</strong> por<br />

Raimundo Magalhães Júnior, ao final de seu capítulo “O conto policial”, em A arte do conto<br />

(1972): “Quando se esgotarem to<strong>da</strong>s as fórmulas e os poncifs do conto policial, ain<strong>da</strong> haverá,<br />

sem dúvi<strong>da</strong>, humoristas espirituosos, capazes de tirar novos efeitos cômicos, com a<br />

desopilante caricatura dos sherlocks trapalhões...” (p. 226). Este trabalho se insere em meus<br />

estudos sobre a recepção criativa de Guy de Maupassant no Brasil, para isso conto atualmente<br />

com bolsa de pesquisa <strong>da</strong> Fapesp.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Literatura compara<strong>da</strong>; Guy de Maupassant; Medeiros e Albuquerque;<br />

sátira; narrativa policial.<br />

RESUMEN: La narrativa policial tradicional es marca<strong>da</strong> por la presencia de un detective,<br />

motivado a realizar una investigación a partir de un crimen, para lo cual va a buscar la<br />

solución, con ingenio y arte. Es común que los primeros indicios apunten a una conclusión<br />

equivoca<strong>da</strong> en la investigación, lo que hace durar el suspense de la narrativa. Aunque sea<br />

recurrente el engaño sobre los sospechosos, como parece ser cierta confusión de la naturaleza<br />

de los detectives ficcionales, lo que raramente ocurre es el equívoco sobre si lo que tienen<br />

delante es un crimen o no. Esto es lo que ocurre en los dos cuentos que estudiaremos en este<br />

trabajo, “Le crime au père Boniface”, de Guy de Maupassant, y “Um crime”, de Medeiros e<br />

Albuquerque, hoy considerado el creador del género policial en Brasil. Tanto el personaje de<br />

Maupassant, el cartero Boniface, como el investigador Castro, de Medeiros e Albuquerque,<br />

son alimentados por la lectura de faits divers, lo que los incita a ver crímenes donde no<br />

existen. Considerando que “los géneros literarios dependen, quizás, menos de los textos que<br />

del modo en que éstos son leídos”, según Jorge Luis Borges, en “El cuento policial” (1978, p.<br />

220), los dos cuentos van a ser interpretados como narrativas policíacas de humor, tendencia<br />

hoy en boga, que pone en jaque la serie<strong>da</strong>d del detective ficcional – así como los límites del<br />

género policial. Esa vertiente fue observa<strong>da</strong> por Raimundo Magalhães Júnior, al final de su<br />

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A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

capítulo, “O conto policial”, en A arte do conto (1972): “Cuando se agotaren to<strong>da</strong>s las<br />

fórmulas y los poncifs del cuento policial, aún habrá, sin du<strong>da</strong>, ingeniosos humoristas,<br />

capaces de traer nuevos efectos cómicos, con la diverti<strong>da</strong> caricatura de los sherlocks<br />

atolondrado...” (p. 226). Este trabajo es parte de mis estudios sobre la recepción creativa de<br />

Guy de Maupassant en Brasil, para esto cuento actualmente con beca de investigación de<br />

Fapesp.<br />

PALABRAS-CLAVE: literatura compara<strong>da</strong>; Guy de Maupassant; Medeiros e Albuquerque;<br />

sátira; narrativa policial.<br />

Seria esperado, neste colóquio, uma comunicação sobre Medeiros e Albuquerque<br />

(1867-1934), hoje considerado o pai do gênero policial no Brasil. Como ele é autor, entre<br />

outros, de uma coletânea de contos intitula<strong>da</strong> Se eu fosse Sherlock Holmes... (de 1932), a<br />

primeira ideia que ocorre ao comparativista é a de aproximá-lo do escritor inglês Conan<br />

Doyle, criador de Sherlock Holmes. Esse não é, no entanto, meu objetivo aqui. Por essa razão,<br />

tentarei inicialmente justificar o paralelo que estabeleço entre Medeiros de Albuquerque e<br />

Guy de Maupassant, escritor muito conhecido por seus contos parisienses, normandos e<br />

fantásticos, mas creio que pouco abor<strong>da</strong>do pelo viés <strong>da</strong> narrativa policial.<br />

Para isso, faz-se necessário contar rapi<strong>da</strong>mente como cheguei ao pernambucano José<br />

Joaquim de Campos Costa de Medeiros e Albuquerque, em minhas pesquisas sobre a<br />

recepção de Guy de Maupassant no Brasil. Ain<strong>da</strong> que hoje só e raramente mencionado por<br />

sua poesia decadentista, Medeiros e Albuquerque foi uma personali<strong>da</strong>de importante na vi<strong>da</strong><br />

literária no Brasil, na vira<strong>da</strong> do século XIX para o XX. Tendo se estabelecido no Rio de<br />

Janeiro, atuou como jornalista, professor, político, conferencista e, na literatura, escreveu em<br />

quase todos os gêneros: poesia, teatro, conto, romance, ensaio, memórias, nem sempre com<br />

maestria. Assim como grande parte dos intelectuais de sua época, Medeiros lia autores<br />

franceses e chegou a residir na França, entre 1912 e 1916, quando colaborou com O Estado de<br />

S. Paulo, numa coluna intitula<strong>da</strong> “Cartas Parisienses”.<br />

Além do interesse comum pela França, o que me despertou para a leitura de sua obra<br />

foi uma entrevista que Medeiros concedeu a João do Rio para o inquérito O momento<br />

literário. Nessa entrevista, Medeiros e Albuquerque comenta que foi a leitura de um romance<br />

de Maupassant, intitulado Pierre et Jean, que o despertou para o ideal estético <strong>da</strong> clareza e <strong>da</strong><br />

simplici<strong>da</strong>de. Muito provavelmente, mais que o romance em si, Medeiros faça alusão ao<br />

prefácio a esse romance do escritor francês, intitulado “Le roman”, que repercutiu muito por<br />

aqui, em textos críticos de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e na obra, entre outros, de<br />

Monteiro Lobato.<br />

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Intriga<strong>da</strong> com esse comentário de Medeiros, busquei sua obra de ficção, que<br />

compreende (além dos outros gêneros mencionados) cinco volumes de contos e mais uma<br />

antologia, organiza<strong>da</strong> pelo próprio autor. Logo no seu primeiro desses livros, Um homem<br />

prático, publicado em 1898, localizei o conto “Um crime”, objeto desta comunicação.<br />

Procurarei fazer ver aqui o quanto esse texto dialoga com o conto de Maupassant, publicado<br />

pela primeira vez no jornal parisiense Gil Blas, em 1884, e depois recolhido pelo autor no<br />

volume Contes du jour et de la nuit, de 1885.<br />

Os dois contos são narrados em terceira pessoa onisciente. O conto de Maupassant,<br />

que é mais curto que o de Medeiros, apresenta ao leitor algumas horas do trabalho diário do<br />

carteiro Boniface. Funcionário de província, que cumprimenta os moradores pelo nome, ele<br />

seguia por uma ci<strong>da</strong>dezinha fictícia <strong>da</strong> Normandia, para as últimas entregas do dia. Tudo<br />

aparentemente normal. Enquanto an<strong>da</strong>va, o tio Boniface lia o jornal parisiense que ia entregar<br />

na casa do coletor chamado Chapatis, um novo morador recém-casado. O carteiro era<br />

apaixonado pelos faits divers, um gênero de notícias tipicamente francês, e por isso sua leitura<br />

se detém na notícia de um triplo assassinato, descoberto por um lenhador que passava pela<br />

casa <strong>da</strong> família. O excerto a seguir ilustra essa leitura de Boniface:<br />

[O carteiro Bonifácio] abriu a sacola, apanhou o jornal, puxou-o para fora <strong>da</strong><br />

cinta que amarrava os papéis, desdobrou-o e pôs-se a ler enquanto<br />

caminhava. A primeira página não o interessava muito; a política o deixava<br />

indiferente; passava sempre a economia; mas a seção policial o apaixonava.<br />

E ela estava muito farta naquele dia. Ele se comoveu tão intensamente com o<br />

relato de um crime cometido no alojamento de um guar<strong>da</strong>-florestal, que<br />

parou no meio de um campo de trevos para reler com calma. Os detalhes<br />

eram medonhos. Um lenhador, ao passar de manhã perto <strong>da</strong> casa do guar<strong>da</strong>florestal,<br />

notara um pouco de sangue na soleira <strong>da</strong> porta, como se alguém<br />

tivesse sangrado do nariz. “O guar<strong>da</strong> matou algum coelho esta noite”,<br />

pensou o lenhador; mas ao se aproximar percebeu que a porta estava<br />

entreaberta e que a fechadura tinha sido força<strong>da</strong>. Então, tomado pelo medo,<br />

correu ao vilarejo para avisar o prefeito; este pegou como reforço o guar<strong>da</strong><br />

rural e o professor: e os quatro foram juntos até a casa. Encontraram o<br />

guar<strong>da</strong>-florestal degolado diante <strong>da</strong> lareira, sua mulher estrangula<strong>da</strong> embaixo<br />

<strong>da</strong> cama, e a filha de seis anos asfixia<strong>da</strong> entre dois colchões.<br />

O carteiro Bonifácio ficou tão atordoado ao imaginar aquele assassinato em<br />

que to<strong>da</strong>s as horríveis circunstâncias lhe eram apresenta<strong>da</strong>s uma após a<br />

outra, que sentiu uma fraqueza nas pernas, e disse em voz alta:<br />

“Caramba, como tem canalha nesse mundo!”<br />

Depois recolocou o jornal na cinta de papel e retomou o caminho, a cabeça<br />

cheia de imagens do crime. Em pouco tempo alcançou o domicílio do sr.<br />

Chapatis [...] (MAUPASSANT, 2009, p. 445-6)<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Impressionado pelo que leu, Boniface chega à casa de M. Chapatis para a entrega<br />

habitual. Logo encontra algo diferente do de costume, que chama sua atenção: a porta está<br />

tranca<strong>da</strong> e as janelas, fecha<strong>da</strong>s, indicando que ninguém saiu de casa. Na<strong>da</strong> de anormal haveria<br />

nisso, se a imaginação do carteiro não tivesse sido alimenta<strong>da</strong> pela leitura do fait divers.<br />

Como Boniface sabia que M. Chapatis acor<strong>da</strong>va cedo, ficou preocupado, ignorando o fato de<br />

que havia chegado à casa do destinatário mais cedo que de hábito. Boniface toma a precaução<br />

de <strong>da</strong>r uma volta ao redor <strong>da</strong> casa, para ver se encontrava algo suspeito, assim como fez o<br />

lenhador <strong>da</strong> notícia. Ao passar por uma janela, o carteiro ouve gemidos e depois gritos; então<br />

ele corre até a delegacia, a fim de buscar aju<strong>da</strong>.<br />

A descrição <strong>da</strong> delegacia ilustra a pasmaceira do local. Dois policiais, sem far<strong>da</strong>s,<br />

consertam uma cadeira, quando Boniface chega com a notícia do “crime” na casa de M.<br />

Chapatis. Surpresos, mas não apressados, os policiais observam Boniface e fazem-lhe<br />

perguntas, a fim de avaliarem a necessi<strong>da</strong>de de ir à casa do coletor. Um deles, o de maior<br />

patente, pergunta a Boniface como soube do caso e, depois, por que não prestou socorro ele<br />

mesmo. Boniface mistura o que ouviu na casa de M. Chapatis com o que leu na notícia do<br />

jornal parisiense. No entanto, os policiais são convencidos por ele e o seguem. Quando<br />

chegam lá, o movimento do policial mais experiente reproduz o de Boniface. O suspense <strong>da</strong><br />

narrativa está todo traçado na mu<strong>da</strong>nça de expressão facial do policial, descrita pelo narrador.<br />

Compreendendo logo que os ruídos eram produzidos pelo casal, numa manhã amorosa, o<br />

policial se retira, man<strong>da</strong> Boniface deixar a entrega no local e todos vão embora. Na<strong>da</strong><br />

compreendendo, o desconfiado carteiro passa logo ao ingênuo <strong>da</strong> história. Ao afastarem-se, o<br />

policial acaba caindo na gargalha<strong>da</strong> e, mal conseguindo falar, tenta explicar, por gestos, aos<br />

outros dois, o que se passava na casa de M. Chapatis. O colega compreende, mas Boniface<br />

não de imediato. O caráter farsesco do conto está principalmente nessa transição, <strong>da</strong><br />

incompreensão ao entendimento de Boniface. O segundo policial precisa explicar-lhe ao pé do<br />

ouvido o que se passava. O carteiro tenta então se justificar e convencer os policiais de que<br />

ele realmente acreditava que um crime era cometido ali. Confuso e envergonhado, Boniface<br />

segue seu caminho e deixa os dois policiais rindo e brincando com sua ingenui<strong>da</strong>de.<br />

Assim acaba o conto de Maupassant. Segundo Louis Forestier, que é o principal<br />

organizador <strong>da</strong> obra de Maupassant, o assunto desse conto foi tomado pelo autor de uma<br />

aventura norman<strong>da</strong> aconteci<strong>da</strong> e conta<strong>da</strong> por um amigo dele (cf. notas Contes et nouvelles, t.<br />

II, p. 1368). Isto é, também a ficção provém de um fait divers, como era muito do gosto de<br />

Maupassant: histórias curiosas, tira<strong>da</strong>s <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, do cotidiano. Neste texto, ele trabalha<br />

242


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

principalmente com o contraste entre a ingenui<strong>da</strong>de do carteiro e sua desconfiança; a malícia<br />

e a puerili<strong>da</strong>de do homem interiorano. A leitura que Boniface faz <strong>da</strong>s notícias policiais o<br />

levam além <strong>da</strong> observação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, de modo a julgar fatos naturais como anormais.<br />

Esse é exatamente o efeito produzido junto ao leitor desse tipo de notícia. Segundo<br />

Roland Barthes, em “Structure du fait divers” (1964), esse é um tipo de notícia excepcional,<br />

que leva o leitor a concatenar uma explicação complexa para algo cuja causali<strong>da</strong>de é<br />

extremamente simples. O fait divers, que em francês significa “acontecimento diferente”<br />

(envolvendo crime ou não), é um texto de curta extensão, escrito para seduzir o leitor, por<br />

meio de um título convi<strong>da</strong>tivo; ele tem pequena duração na memória do leitor, pois seu<br />

interesse dura enquanto existe o suspense entre os fatos <strong>da</strong>dos e o conhecimento <strong>da</strong><br />

causali<strong>da</strong>de do evento, que geralmente decepciona por sua gratui<strong>da</strong>de. Muitas vezes fruto <strong>da</strong><br />

coincidência e do acaso (ou do cúmulo de uma situação de má sorte, conforme a expressão de<br />

Barthes – p. 195-6), os fatos não possuem uma causali<strong>da</strong>de verossímil (“Causalité aléatoire” e<br />

“coïncidence ordonnée”, <strong>da</strong>í se constitui o fait divers, para Barthes – p. 196). Ocorre aí o que o<br />

crítico francês denominou o “espetáculo de uma decepção” (p. 192).<br />

Para Barthes, esse é também um recurso comum ao romance policial, que se baseia<br />

em indícios, que não podem ser ignorados pelo detetive (p. 193). Se o carteiro Boniface não<br />

tivesse ignorado que havia chegado mais cedo que o normal à casa de M. Chapatis e que este<br />

era recém-casado, talvez não tivesse sido enre<strong>da</strong>do nesse espetáculo <strong>da</strong> decepção, iludido pela<br />

extrema coincidência de ouvir gemidos quando seu estado de espírito estava alerta para fatos<br />

aberrantes. Podemos dizer que Boniface era bom leitor de faits divers, mas tinha mau faro<br />

para detetive.<br />

O título <strong>da</strong> narrativa de Maupassant já induz o leitor a perceber que o crime não<br />

existe senão na cabeça de Boniface ou, ain<strong>da</strong> pior, que o crime foi cometido por ele. É<br />

possível ain<strong>da</strong> irmos além, considerando que o crime de Boniface foi cometido contra ele<br />

mesmo, uma vez que as maiores consequências quem sofreu foi ele, demonstrando sua<br />

extrema ingenui<strong>da</strong>de e sua vergonha.<br />

Como se pôde observar pela síntese que fiz do conto de Maupassant, ele não é<br />

propriamente um conto policial no sentido estrito, mas podemos fazer uma leitura <strong>da</strong> sátira a<br />

esse gênero, principalmente quando o confrontamos com a releitura do conto maupassantiano<br />

opera<strong>da</strong> por Medeiros e Albuquerque. Para isso, nos valeremos do que disse Jorge Luís<br />

Borges, na conferência “O conto policial”: “os gêneros literários dependem, talvez, menos dos<br />

textos que do modo como são lidos” (1978, p. 220).<br />

243


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Algo bastante semelhante ao “crime do tio Boniface” (mas com consequências mais<br />

graves) ocorre com a personagem Castro, de Medeiros e Albuquerque. O paralelismo do texto<br />

de Medeiros, que tem por princípio a diminuição <strong>da</strong>s pistas desde o título (que é simplesmente<br />

“Um crime”), segue em diversos momentos no encalço do texto francês. O artigo indefinido<br />

generaliza o caso, como algo banal. Mas o que lemos a seguir é um caso surpreendente, em<br />

que quem se torna o criminoso é, ironicamente, o investigador Castro, por querer ser muito<br />

prestativo.<br />

O conto é narrado em terceira pessoa, mas o narrador de Medeiros é muito mais<br />

intruso que o maupassantiano, opinando bastante sobre o que relata. O texto começa com a<br />

nomeação de Castro, que até então era apenas um oficial <strong>da</strong> Secretaria <strong>da</strong> Agricultura, para<br />

um posto numa subdelegacia no Rio de Janeiro. A narração desse fato, embora um tanto<br />

prolonga<strong>da</strong> no conto, é bastante importante, pois mostra de imediato a inexperiência do novo<br />

investigador – assim como vimos o total amadorismo de Boniface. Castro visionava uma<br />

grande carreira a partir <strong>da</strong>í:<br />

Seria uma autori<strong>da</strong>de modelo, perspicaz, intelligente, velando pela segurança<br />

de todos, captando sympathias geraes, arregimentando o batalhão dos votos<br />

para a campanha eleitoral; dispondo tudo para ser o homem necessário do<br />

districto. Nem liberaes, nem conservadores poderiam passar sem seu apoio.<br />

E, <strong>da</strong>ndo que isto se realizasse, elle subiria. Era segundo official: passaria a<br />

primeiro... a chefe de seção... (MEDEIROS E ALBUQUERQUE, 1898, p.<br />

211)<br />

No pequeno mundo de Castro, sua conquista é ínfima se contrasta<strong>da</strong> com sua enorme<br />

ambição. Enquanto tem esses pensamentos, logo ao despertar, vestido de robe e calçando<br />

chinelos, seu fluxo é cortado pela esposa que o chama para almoçar. A ridicularização do<br />

subdelegado, por ser feita por parte do narrador (e não por personagens iguais a Boniface na<br />

hierarquia ficcional de Maupassant) é mais incisiva, uma vez que põe em jogo diante do leitor<br />

a verossimilhança do que é narrado.<br />

Bem examina<strong>da</strong>s as cousas, o Castro tinha razão para esperar tudo aquillo.<br />

Era burro (muito burro mesmo!) sabia apenas redigir mechanicamente<br />

oficios e avisos. Era servil: bajulava os chefes. Era impostor: arrotava as<br />

mais pifias vulgari<strong>da</strong>des com o entono de um sábio, dissertando sobre<br />

problemas transcendentes.<br />

[...]<br />

Ora, com um temperamento destes, claro estava que a vocação do Castro só<br />

podia ser a política e que para ella o filão de subdelegado podia servir-lhe de<br />

muito. (MEDEIROS E ALBUQUERQUE, 1898, p. 212-4)<br />

244


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Castro tem espírito imaginativo. E, assim como Boniface, também gostava de ler<br />

jornais. Mas lia tudo, anotava os processos e brigas políticas, para mais tarde mencioná-las<br />

aos colegas, defendendo sempre a situação, contra a oposição. Além dos jornais, admirava<br />

romances de folhetim franceses, todos bastante secundários e muito na mo<strong>da</strong> na época. Castro<br />

pensa descobrir em suas leituras um manancial rico de experiências que o preparariam para<br />

assumir um cargo de responsabili<strong>da</strong>de pública.<br />

O Castro cultivava a litteratura de folhetim: conhecia Ponson du Terrail,<br />

Georges Ohnet, Gaboriau, Montépin e admirava os personagens dos seus<br />

romances. Mas, como ha quem prefira contos de amor e aventuras<br />

cavalheirescas, o Castro <strong>da</strong>va-se aos romances de sensação á moderna, onde<br />

um grande crime, commettido nas mais seguras condições de segredo, com<br />

mil e uma precauções, é afinal – por um cumulo de pericia de um agente,<br />

quasi genial como psychologo – descoberto inteiramente, graças a vestigios<br />

minimos, insignificantes, completamente despercebidos para olhos faltos de<br />

perspicacia tão insigne. Mas, ao menos nisto, o Castro tinha um ideal<br />

alevantado. Elle lia minuciosamente a noticia de todos os crimes que se<br />

praticavam. Lia e – si o criminoso era desconhecido – entrava a imaginar a<br />

scena, a reconstituir o quadro, a architectar hypotheses, acabando sempre por<br />

escrever em carta anonyma á policia o resultado de suas conjecturas.<br />

Conjecturas complica<strong>da</strong>s as suas! Tão complica<strong>da</strong>s, que nunca acertara. Mas<br />

que culpa tinha – dizia elle e dizia com razão – que os factos fossem tão<br />

estupidos; elle não podia suppôr que as cousas fossem tão tolamente<br />

prosaicas... (MEDEIROS E ALBUQUERQUE, 1898, p. 215-6)<br />

Nesse trecho, quando o narrador de Medeiros elogia sua personagem, é preciso<br />

desconfiar. Como se vê, Castro é também mais uma vítima do fait divers. O narrador dá aqui<br />

todos os indícios de que sua vítima cairá, como Boniface, na armadilha de sua própria<br />

imaginação fértil. Castro queria ser um investigador brilhante, que usasse “talento e<br />

habili<strong>da</strong>de” para descobrir criminosos, apontar culpados, servir à socie<strong>da</strong>de. Mas esse desejo<br />

advindo tão somente de sua vai<strong>da</strong>de, não de uma vontade sincera e despretensiosa, só<br />

contribuirá para torná-lo um criminoso e perder seu cargo. É o narrador que dá como<br />

consequência dessa ambição o acontecimento que desencadeia o “crime” de Castro:<br />

E foi por isto quase com jubilo que elle ouviu naquella noite, voltando do<br />

theatro, o lamento angustioso e supplice de uma voz: – Ai!... Ai! Não me<br />

matem. [...]<br />

O Castro sentiu bem que era um crime que se consummava a dous passos<br />

delle, um crime certamente espantoso, o assassinato de alguma pobre<br />

mulher. Sentiu – e o imbecil teve a coragem de sorrir de satisfação,<br />

lembrando que chegara enfim a occasião aza<strong>da</strong> para mostrar a sua<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

habili<strong>da</strong>de, o seu faro policial. (MEDEIROS E ALBUQUERQUE, 1898, p.<br />

217)<br />

Imaginando um “ver<strong>da</strong>deiro e monstruoso crime”, Castro invade a casa de onde<br />

vinham os gritos, corre pelo jardim, arromba a janela e encontra uma mulher ensanguenta<strong>da</strong>,<br />

em trabalho de parto. Castro percebe o equívoco, mas ele é quem passa por um criminoso,<br />

invasor de domicílio: ain<strong>da</strong> sobre a janela, do lado de fora, sua perna é mordi<strong>da</strong> por um<br />

cachorro e, pelo lado de dentro, um homem o espanca e tenta derrubá-lo. O narrador finaliza a<br />

narrativa <strong>da</strong> seguinte maneira: “Por cúmulo, dous dias depois, quando ain<strong>da</strong> estava de cama,<br />

moído <strong>da</strong>s bordoa<strong>da</strong>s do sujeito e <strong>da</strong>s denta<strong>da</strong>s do cão, foi demittido <strong>da</strong> subdelegacia ‘a bem<br />

do serviço publico’...” (p. 220).<br />

Em primeiro lugar, uma afini<strong>da</strong>de de temperamento aproxima os anti-heróis dos dois<br />

contos. Boniface era carteiro e não tinha a responsabili<strong>da</strong>de de desven<strong>da</strong>r crimes. Sua estranha<br />

admiração por notícias trágicas o levou a vislumbrar um crime onde havia uma cena de amor.<br />

Seu maior erro foi compartilhar seu equívoco. Castro, por sua vez, acabava de ser nomeado<br />

para a função de subdelegado e queria mostrar serviço. Também gostava de desven<strong>da</strong>r os<br />

crimes anunciados nos jornais ou contados nos romances, o que o levou a imaginar um crime<br />

quando havia um parto. Alimentados por leituras populares – Barthes diz que o fait divers é<br />

literatura, ain<strong>da</strong> que reputa<strong>da</strong> como má literatura, pois é uma arte de massas (1964, p. 197) –,<br />

os dois leitores são absorvidos pela trama do fait divers, com a diferença que a aplicam a fatos<br />

reais e que lhes acarretam consequências inespera<strong>da</strong>s.<br />

Em segundo lugar, ambos partem de evidências sonoras e detêm-se apenas nelas,<br />

ignorando qualquer outro indício que poderia apontar para uma situação cotidiana. Eles<br />

conduzem por alguns poucos instantes um ver<strong>da</strong>deiro inquérito detetivesco, que se constrói<br />

por meio de in<strong>da</strong>gações típicas e que beiram aqui o cômico, pois são marca<strong>da</strong>mente<br />

principiantes. Ambos elevam uma cena cotidiana a um cenário trágico romanesco. O<br />

movimento de leitura que fazem <strong>da</strong> cena até o desfecho é farsesco, pois envolve o espetáculo<br />

de uma decepção, conforme a definição de Barthes.<br />

Por esses motivos, a disposição de espírito dos dois protagonistas para a<br />

desconfiança revela uma imensa inocência dos dois, que são pegos nas armadilhas que eles<br />

mesmos criaram, por meio de sua imaginação habilidosa. Nenhum dos dois separa a ativi<strong>da</strong>de<br />

investigativa de seu cotidiano banal. No caso de Maupassant, o camponês tem um olhar<br />

desvirtuado pela leitura vin<strong>da</strong> de Paris, projetando suas expectativas sobre o ambiente que tem<br />

246


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

diante de si. No caso de Castro, ambicionando uma grande estreia na carreira de detetive, é<br />

submerso por sua ambição num caso vergonhoso e que lhe tira a patente.<br />

Assim, dois atentados são cometidos à tradição do gênero policial, nos dois contos<br />

em estudo: primeiro, não existe propriamente crime em nenhum deles; segundo, o papel do<br />

investigador é diminuído em Maupassant (na figura dos dois policiais que não faziam na<strong>da</strong> e<br />

continuam sem na<strong>da</strong> para fazer) e questionado no conto de Medeiros e Albuquerque. Por meio<br />

do desvio operado por uma leitura do gênero – desvio esse proposto internamente nos textos –<br />

, os dois contos podem ser lidos aqui como narrativas policiais de humor, com investigadores<br />

que, na ânsia por descobrir, encobrem a reali<strong>da</strong>de, fazendo dela uma leitura equívoca e<br />

cômica, conforme definiu Raimundo Magalhães Júnior, “uma caricatura de sherlocks<br />

trapalhões” (1972, p. 226).<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BARTHES, Roland. Structure du fait divers. Essais critiques. Paris: Editions du Seuil, 1964.<br />

p. 188-97.<br />

BORGES, Jorge Luis. O conto policial. Obras completas. São Paulo: Globo, 1999. v. <strong>IV</strong>. p.<br />

220-30.<br />

MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. O conto policial. A arte do conto. Rio de Janeiro:<br />

Bloch, 1972. p. 207-26.<br />

MAUPASSANT, Guy de. Le crime au père Boniface. Contes et nouvelles. (Dir. de Louis Forestier).<br />

Paris: Gallimard, 1974. (Bibliothèque de la Pléiade). t. II. p. 168-73.<br />

______. O crime do tio Bonifácio. 125 contos de Guy de Maupassant. Trad. Amilcar Bettega.<br />

São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2009. p. 444-9.<br />

MEDEIROS E ALBUQUERQUE. Um crime. Um homem prático. Rio de Janeiro: Imprensa<br />

Nacional, 1898. p. 209-20.<br />

______. Se eu fosse Sherlock Holmes. Rio de Janeiro: Guanabara, [1932].<br />

RIO, João do. (Paulo Barreto). Medeiros e Albuquerque. O momento literário. Rio de Janeiro:<br />

Fun<strong>da</strong>ção Biblioteca Nacional, 1994. p. 61-76.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A questão do gênero policial em “Mistério no Vale Boscombe”, de Conan Doyle<br />

PAGLIONE, Marcela Barchi (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: A partir <strong>da</strong> criação do detetive Dupin por Poe, foram abertos os caminhos para o<br />

desenvolvimento do romance policial. Conan Doyle obteve grande reconhecimento nesse<br />

gênero, sendo seu personagem Sherlock Holmes o detetive mais conhecido. No conto<br />

“Mistério no vale do Boscombe”, Holmes tem mais um enigma a resolver: ocorre que um<br />

fazendeiro foi morto e as pistas levanta<strong>da</strong>s pela Scotland Yard levam a pensar que o autor do<br />

crime é o seu próprio filho. Assim como o enigma é investigado por Holmes, também<br />

investigaremos este elemento, mas com ênfase na sua construção dentro do conto, para, a<br />

partir de então, ser visto como elemento caracterizador do gênero policial, ou roman policier,<br />

mais especificamente o de enigma ou de pura detecção como é chamado o romance policial<br />

clássico por Todorov e Boileau-Narcejac. Para subsidiar as proposições feitas a respeito do<br />

gênero roman policier serão utilizados os conceitos dos dois autores já citados, os quais são<br />

abor<strong>da</strong>dos, respectivamente, em Tipologia do romance policial e O romance policial. A<br />

questão do gênero será vista de acordo com o que Bakhtin discorre em Estética <strong>da</strong> criação<br />

verbal. A partir <strong>da</strong> existência do enigma no conto de Doyle e dos elementos tema (conteúdo),<br />

figura (forma) e estilo, considerados por Bakhtin como caracterizadores do gênero discursivo,<br />

chegaremos à caracterização do roman policier enquanto gênero.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Enigma; Gênero; Bakhtin; Doyle; Todorov; Boileau- Narcejac.<br />

ABSTRACT: Ever since the creation of the detective Dupin by Poe, paths were open for the<br />

development of the detective novel. Conan Doyle has obtained big acceptance in this genre<br />

and his character Sherlock Holmes is the most popular detective of all time. In the short story<br />

The Boscombe Valley Mystery¸ Holmes has one more riddle to solve: a farmer had been killed<br />

and the clues taken by Scotland Yard indicate his son as guilty of the crime. Just like the<br />

riddle is investigated by Holmes, we are also going to investigate this element –the riddle-,<br />

emphasizing its construction in the short story, to reach its consideration as the characterizing<br />

element of the genre detective novel (roman policier), specifically the riddle or the pure<br />

detection one, as the classic type is called by Todorov and Boileau-Narcejac. To support the<br />

propositions about the genre roman policier we are going to use the concepts of the two<br />

authors who have already been mentioned. The concepts were resorted, respectively, in The<br />

typology of detective fiction and Le roman policier. The genre is going to be studied according<br />

to what Bakhtin discusses in Esthetics of Creative Discourse. From the existence of the riddle<br />

in Doyle’s short story and the elements theme (subject), figure (form) and style, considered by<br />

Bakhtin as characterizers of the discursive genre, we are going to reach the characterization of<br />

the detective novel as a (discursive) genre.<br />

KEYWORDS: Riddle; Genre; Bakhtin; Doyle; Todorov; Boileau-Narcejac.<br />

Na seguinte análise do conto de Doyle, começaremos pelas questões teóricas a<br />

respeito do gênero policial levanta<strong>da</strong>s pelos textos de Todorov, Tipologia do romance policial<br />

e de Boileau e Narcejac, O romance policial, para depois partirmos para a discussão a respeito<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

do gênero segundo os conceitos utilizados por Bakhtin em sua obra Estética <strong>da</strong> criação<br />

verbal.<br />

No conto de Conan Doyle, o mistério se constrói com o assassinato de Charles<br />

McCarthy na beira <strong>da</strong> lagoa Boscombe. To<strong>da</strong>s as circunstâncias apontam que o assassino do<br />

fazendeiro McCarthy foi o filho deste, James, pois ele foi visto indo atrás do pai até a lagoa<br />

Boscombe com uma espingar<strong>da</strong> embaixo do braço por um empregado. Também foi visto<br />

brigando com o pai na beira <strong>da</strong> lagoa pela filha do caseiro que mora ali perto e, segundo ela,<br />

os dois quase se bateram. Logo depois de terem brigado, ele correu para avisar o caseiro que<br />

encontrara o pai morto, sendo que estava com sangue na mão e manga direitas. Holmes é o<br />

único que acredita na inocência de James, pois para ele havia um mistério na aparente<br />

simplici<strong>da</strong>de do caso, de acordo com o que foi julgado pelos policiais.<br />

Conforme o que é dito por Boileau-Narcejac em O romance policial (1991), o<br />

mistério envolve, encerra o problema e há uma operação que o desembaraça, o torna<br />

inteligível. Esta operação deve ser feita por um analista, no caso, o detetive. O mistério é,<br />

então, a massa de dúvi<strong>da</strong>s a respeito do que se passou de fato, mas Holmes a deve transformar<br />

em enigma (problema) para depois poder resolvê-lo. A acusação de James McCarthy parecia<br />

estranha aos seus olhos, ele quis ir a fundo e desemaranhou o mistério.<br />

Eis que, no começo <strong>da</strong> narrativa, quando Holmes conta a Watson o que já sabe a<br />

respeito do mistério pelos jornais, também há uma breve caracterização <strong>da</strong>s personagens.<br />

Charles McCarthy vivia numa terra que lhe fora arren<strong>da</strong><strong>da</strong> de graça por seu companheiro John<br />

Turner, fazendeiro que fizera sua fortuna na Austrália e que o conhecera lá. Holmes diz que,<br />

visto que eram amigos de outros tempos, ao virem para Inglaterra, se instalaram próximos uns<br />

dos outros e viviam isola<strong>da</strong>mente no vale Boscombe. No entanto, esta caracterização de<br />

Holmes é tendenciosa, pois leva o leitor a tomar concepções errôneas a respeito <strong>da</strong> relação<br />

entre as personagens. Tanto é assim que a dúvi<strong>da</strong> se os dois eram realmente amigos só se<br />

instaura com a in<strong>da</strong>gação de Holmes, mais adiante, a respeito deste referido arren<strong>da</strong>mento<br />

gratuito e do desejo de McCarthy para casar seu filho James de 18 anos com a filha de Turner,<br />

<strong>da</strong> mesma i<strong>da</strong>de, sendo ela herdeira deste rico homem que se encontrava doente. A<br />

desconfiança de Holmes se dá porque a filha de Turner, Alice, conversa com ele assim que<br />

chegam e confessa que ela deveria ser o motivo <strong>da</strong> briga entre pai e filho por conta deste<br />

casamento forçosamente desejado por Charles. Diz também que seu pai não gostava <strong>da</strong> ideia.<br />

O modo de análise de Holmes é preciso: são vistos os depoimentos <strong>da</strong>s testemunhas<br />

(filha do caseiro <strong>da</strong> lagoa e um criado dos McCarthy) e do suspeito transcritos pelos jornais,<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

depois ele e Lestrade (<strong>da</strong> Scotland Yard) vão conversar com James McCarthy e, no dia<br />

seguinte, Holmes, Lestrade e Watson vão à cena do crime em busca de pistas. Por estas –as<br />

quais são analisa<strong>da</strong>s cientificamente- ele descobre várias características do assassino, as quais,<br />

junto com suas deduções, o permitem identificar o ver<strong>da</strong>deiro assassino e provar a inocência<br />

de James.<br />

Esta análise científica de Sherlock, chama<strong>da</strong> por ele mesmo de dedutiva, advém <strong>da</strong><br />

instauração <strong>da</strong> ciência positivista a qual “visa descobrir as leis que regem os fenômenos”<br />

(BOILEAU-NARCEJAC, 1991, p.16). Para esta ciência, tudo pode ser explicado por leis<br />

gerais, inclusive o homem. “Na concepção desta ciência o mundo e o homem são máquinas,<br />

seus raciocínios são associações de ideias” (BOILEAU-NARCEJAC, 1991, p.17).<br />

Estes mesmos procedimentos científicos de análise detetivesca não são exclusivos de<br />

Doyle, mas de um grupo de autores que escrevem histórias policiais caracteriza<strong>da</strong>s, pelos<br />

autores supracitados, como romances policiais de pura detecção (citam Poe e Doyle como<br />

característicos desta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de particular de narrativa policial). Segue-se uma descrição a<br />

respeito do trabalho desde “detetive-cientista”:<br />

Um assunto criminal poderá ser estu<strong>da</strong>do pelos mesmos processos que os do<br />

laboratório. [...] O cientista, transformado em detetive, não se deixará mais<br />

prender pelas aparências, mas armado <strong>da</strong> lógica a serviço <strong>da</strong> observação,<br />

remontará dos efeitos às causas, deduzirá <strong>da</strong>s causas novos efeitos e, pouco a<br />

pouco, prenderá o culpado em uma rede de provas. (BOILEAU-<br />

NARCEJAC, 1991, p.18).<br />

A respeito desta última imagem, rede de indícios que prende o culpado, verificamos<br />

sua presença ao final do conto “Mistério no Vale Boscombe”, quando Holmes termina de<br />

expor a Watson tudo o que descobriu a respeito <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de do assassino, este lhe diz:<br />

“Holmes, você lançou em volta desse homem uma rede de que ele não poderá se desvencilhar<br />

[...]”. (DOYLE, 2011, p.134)<br />

Dentro deste ambiente de análise e investigação com recorrência à ciência, temos o<br />

destaque de Holmes, que “[...] é, portanto, o primeiro detetive ver<strong>da</strong>deiramente científico”. (p.<br />

32) Locard apud Boileau- Narcejac o identificam como o primeiro a ter conti<strong>da</strong> em seu<br />

cérebro “[...] a primeira síntese <strong>da</strong> técnica policial”. (BOILEAU-NARCEJAC, 1991, p. 32)<br />

Dentro <strong>da</strong> caracterização do romance de pura detecção, os autores também explicam<br />

elementos <strong>da</strong> narrativa policial em sentido geral, como a presença <strong>da</strong>s “peças mestras”: o<br />

crime misterioso, o detetive e a investigação - as quais permitirão combinações diferentes ao<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

longo do tempo, possibilitando variados tipos de narrativa policial - assim como <strong>da</strong><br />

importância <strong>da</strong> estrutura desta narrativa, a qual não pode ser supera<strong>da</strong>, pois se não destruímos<br />

a própria narrativa policial. Veremos mais adiante que Todorov também utiliza a ideia de uma<br />

estrutura intransponível.<br />

Os autores utilizam como exemplo as regras de François Fosca e a maioria delas se<br />

aplica muito bem a este conto especificamente. Cabe ressaltar que a própria existência de<br />

regras e a insistência sobre elas- e sobre uma estrutura- denuncia o que os autores chamam de<br />

caráter de “objeto” <strong>da</strong> narrativa policial. Seguem-se as regras de Fosca e sua correlação com o<br />

conto “Mistério no Vale Boscombe”:<br />

1) O caso que constitui o assunto é um mistério aparentemente inexplicável.<br />

Há um mistério a respeito <strong>da</strong> morte de Charles McCarthy.<br />

2) Uma personagem (ou mais) – simultânea ou sucessivamente- é considera<strong>da</strong>,<br />

sem razão, culpa<strong>da</strong>, porque índices superficiais parecem designá-la.<br />

Aqui, os índices superficiais são os circunstanciais, os quais, sozinhos tornam um<br />

julgamento precário. James McCarthy é julgado suspeito de ter cometido parricídio por conta<br />

<strong>da</strong>s provas circunstanciais.<br />

3) Uma minuciosa observação dos fatos, materiais e psicológicos, que segue a<br />

discussão dos testemunhos, e acima de tudo um rigoroso método de raciocínio triunfam sobre<br />

as teorias apressa<strong>da</strong>s. O analista nunca adivinha. Ele observa e raciocina.<br />

Esta análise feita por observação minuciosa já foi descrita anteriormente.<br />

4) A solução, que concor<strong>da</strong> perfeitamente com os fatos, é totalmente imprevista.<br />

A imprevisibili<strong>da</strong>de, a surpresa causa<strong>da</strong> no leitor ao final do conto se dá por conta <strong>da</strong><br />

falsa amizade descrita por Holmes (lê dos jornais) logo no início e que direciona a leitura.<br />

5) Quanto mais extraordinário parece um caso, tanto mais fácil é resolvê-lo.<br />

Holmes ele mesmo relata o oposto, mas que vale para a mesma ideia, pois diz que<br />

quanto mais simples parecer um caso, mais difícil será resolvê-lo.<br />

6) Quando se eliminaram to<strong>da</strong>s as impossibili<strong>da</strong>des, o que permanece, embora<br />

inacreditável à primeira vista, é a solução correta.<br />

Até então vimos as considerações de Boileau-Narcejac a respeito <strong>da</strong> narrativa<br />

policial. Vejamos agora as de Todorov em Tipologia do romance policial, capítulo do livro<br />

Poética <strong>da</strong> prosa (2003). Ele insere o romance policial na literatura de massa e considera a<br />

mesma estrutura de Boileau-Narcejac. Todorov define que “a obra-prima <strong>da</strong> literatura de<br />

massa é precisamente o livro que melhor se inscreve em seu gênero [...] O romance policial<br />

251


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

por excelência não é aquele que transgride as regras do gênero, mas aquele que a elas se<br />

conforma” (TODOROV, 2003, p.65). Esta visão se corresponde com a de Boileau-Narcejac,<br />

há aqui a ideia de regras que não podem ser supera<strong>da</strong>s. Todorov diz que, se “enfeitarmos” a<br />

literatura de massa, e, portanto, a narrativa policial, ela deixará de ser o que é e passará a ser<br />

literatura.<br />

Deste texto de Todorov, há uma consideração nova que julgamos interessante para a<br />

análise. O autor utiliza a concepção de George Burton de que existem duas histórias na<br />

narrativa policial, uma que trata <strong>da</strong> história do crime, a qual é a mais importante, mas está<br />

ausente na obra e a outra que trata <strong>da</strong> investigação, a qual está presente, mas é<br />

“insignificante”. A ele a palavra:<br />

A primeira, a do crime, é na ver<strong>da</strong>de a história de uma ausência: sua característica<br />

mais precisa é a de não poder estar imediatamente presente no livro. Em outras palavras, o<br />

narrador não pode nos transmitir diretamente as réplicas dos personagens envolvidos nela,<br />

nem nos descrever seus gestos: para fazer isso, tem necessariamente de passar pela<br />

intermediação de um outro (ou do mesmo) personagem que relatará, na segun<strong>da</strong> história, as<br />

palavras escuta<strong>da</strong>s ou os atos observados (TODOROV, 2003, p. 68).<br />

A primeira história é, então, resgata<strong>da</strong> por relatos. Isto pode ser visto também no<br />

conto de Doyle, pois Holmes e Watson ficam sabendo de pontos importantes a cerca <strong>da</strong><br />

história do crime por relatos <strong>da</strong>s personagens que lhes falam diretamente ou pelo jornal. A<br />

primeira história é o tema <strong>da</strong> segun<strong>da</strong>, a retrata<strong>da</strong>, pois o crime é o tema.<br />

Para contrapor esta visão <strong>da</strong> narrativa policial, utilizaremos agora os conceitos de<br />

Bakhtin a respeito de gênero em sua obra Estética <strong>da</strong> criação verbal (1979) para analisar o<br />

conto, mas antes é preciso explicitá-los.<br />

Os trabalhos de Bakhtin se direcionam por uma visão dialógica e discursiva.<br />

Dialógica porque para ele na<strong>da</strong> no mundo é isolado, tudo – de livros a alguma conversa<br />

coloquial – é influenciado por algo que já foi dito ou feito. Discursiva porque não entende<br />

uma obra por somente seu texto, mas pelo discurso, o qual vai além do que está escrito,<br />

englobando as condições sócio-históricas de produção, referências a outras obras (do mesmo<br />

autor ou de outros). No que concerne os gêneros, seguindo esta linha de pensamento, o autor<br />

os diferencia em dois tipos, textuais e discursivos. Os textuais correspondem com a linha<br />

formalista estruturalista, como é o caso de Boileau e Narcejac - Todorov se diferencia por ser<br />

formalista leitor de Bakhtin. De acordo com esta linha, os gêneros são os tipos textuais, por<br />

exemplo, epístolas, contos, dissertações. Bakhtin os contrapõe com os gêneros discursivos.<br />

252


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Primeiramente, esses gêneros são concebidos como construções relativamente<br />

estáveis de enunciados, os quais podem ser entendidos como formas de utilização, ou melhor,<br />

efetuação <strong>da</strong> língua – língua em uso social.<br />

Quando se produz um discurso, esse circula em partes <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, ou na socie<strong>da</strong>de<br />

como um todo, e é objeto de uma <strong>da</strong><strong>da</strong> recepção. Mesmo quando circula e é objeto de<br />

recepção na socie<strong>da</strong>de como um todo, o discurso apresenta um <strong>da</strong>do modo de ver o mundo, a<br />

socie<strong>da</strong>de etc., que reflete a posição relativa dos que estão nele envolvidos- um <strong>da</strong>do locutor e<br />

um <strong>da</strong>do interlocutor típico, seja ele mais geral ou específico. Essa posição relativa, podemos<br />

entender a esta altura, estabelece formas ou tipos de enunciados que são os gêneros. E<br />

estabelece a partir de um <strong>da</strong>do espaço social (SOBRAL, 2009, p. 120).<br />

Esse real uso <strong>da</strong> língua nasce em esferas de ativi<strong>da</strong>des específicas, como a esfera de<br />

ativi<strong>da</strong>de jornalística e acadêmica, as quais deman<strong>da</strong>m certos tipos de textos para atender às<br />

suas especifici<strong>da</strong>des. Por exemplo, na ativi<strong>da</strong>de acadêmica, então, as produções devem ser<br />

redigi<strong>da</strong>s de modo mais aprofun<strong>da</strong>do e elaborado do que as dissertações feitas no ensino<br />

médio, além de que o próprio “formato” do texto (construção composicional) é diferente, ou<br />

também na ativi<strong>da</strong>de jornalística, a qual deman<strong>da</strong> uma construção típica, o noticiário. A<br />

maneira de tratar o assunto e o próprio assunto são específicos destas ativi<strong>da</strong>des e mu<strong>da</strong>m<br />

conforme a época em que são feitas - é impossível que as reportagens de 30 anos atrás sejam<br />

iguais as de hoje.<br />

Outro aspecto imprescindível é o estilo. Este não pode ser visto separa<strong>da</strong>mente <strong>da</strong><br />

forma e conteúdo – os quais correspondem, respectivamente, ao modo de tratar o assunto e ao<br />

assunto – notícia e noticiário, por exemplo. Na reali<strong>da</strong>de, todos estes aspectos só são<br />

separados para serem explicados di<strong>da</strong>ticamente, na prática são todos interligados de modo que<br />

não é possível explicar um sem tocar no outro. Estilo se caracteriza por ser a maneira<br />

específica, o jeito característico de tratar um assunto, o qual influi tanto no modo de dizer<br />

quanto na própria escolha do conteúdo, ou seja, está intrinsecamente ligado ao conteúdo e a<br />

forma, mas também à época, pois esta irá influir na escolha do assunto e na maneira de tratálo<br />

de uma pessoa específica, já que outros construtores de enunciados de um mesmo local<br />

ou/e de uma mesma época se influenciam, dialogam, concor<strong>da</strong>ndo ou discor<strong>da</strong>ndo entre si.<br />

Ora, tema (conteúdo, assunto), forma (construção composicional) e estilo (maneira<br />

específica de tratar o assunto) são os conceitos usados por Bakhtin em Estética <strong>da</strong> criação<br />

verbal para definir os gêneros discursivos, os quais não podem ser visto separa<strong>da</strong>mente de<br />

suas esferas de ativi<strong>da</strong>de, já que eles são formas relativamente estáveis de enunciados de um<br />

253


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

<strong>da</strong>do campo de uso real <strong>da</strong> língua. A época – contexto sócio-histórico – está inclusa nas<br />

esferas de ativi<strong>da</strong>de e, finalmente, os conceitos de gênero e esfera de ativi<strong>da</strong>de compõe o que<br />

Bakhtin denomina por arquitetônica.<br />

Para concluir a nossa breve explicação teórica a respeito dos gêneros, falta<br />

diferenciar os gêneros discursivos primários e secundários. Os primários são os do cotidiano,<br />

e os secundários, os “letrados”, mais elaborados.<br />

A partir de então, utilizando-nos dos conceitos acima explicitados, partiremos à<br />

análise. A época em que Doyle escreve é o século XIX, época na qual a ciência,<br />

principalmente o positivismo e determinismo, rege o pensamento e o modo de viver. Esta<br />

ideologia permeia to<strong>da</strong> a literatura <strong>da</strong> época e Doyle não é a ela indiferente. O próprio<br />

surgimento <strong>da</strong> literatura policial com seus detetives munidos de métodos científico-analíticos<br />

é decorrência deste pensamento segundo o qual tudo é possível de ser explicado pela ciência<br />

(inclusive o homem), como já discutimos anteriormente.<br />

Ao analisarmos o conto segundo a obra de Boileau-Narcejac, obra esta que é<br />

estruturalista, vimos que o conto “Mistério no Vale Boscombe” é inteiramente condizente<br />

com as regras e a estrutura as quais são as características que definem o gênero policial –<br />

como também é visto no texto de Todorov –, definem seu conteúdo e forma, mas de maneira<br />

rígi<strong>da</strong>, pré-determina<strong>da</strong>, padroniza<strong>da</strong>. A existência de regras e a insistência em uma estrutura<br />

constituinte deste gênero por parte destes autores demonstra sua linha teórica, estruturalista, a<br />

qual também surge em decorrência <strong>da</strong> ideologia <strong>da</strong> época. O conto e o detetive Holmes são,<br />

de fato, construções que decorrem <strong>da</strong> ideologia <strong>da</strong> época, a “regra narra<strong>da</strong>” desta visão de<br />

mundo, a qual influi, como já indicamos, em to<strong>da</strong> a construção de um enunciado.<br />

Dissemos também que há outros autores que escrevem narrativas policiais e que os<br />

consagrados são Poe e Doyle. Nosso autor escreve, como se sabe, influenciado por Poe,<br />

assim, suas obras e o seu detetive são respostas a essa influência que é não só de Poe, mas<br />

também <strong>da</strong> época, pois assim era feito a narrativa policial no século XIX. Há um estilo<br />

característico do século permeando to<strong>da</strong> a produção destes autores. Estilo é o jeito típico<br />

pessoal de um determinado autor, cantor, diretor etc, porém, neste caso, o estilo pessoal, “a<br />

individuali<strong>da</strong>de do falante (a sua ideia discursivo-emocional)” (BAKHTIN, 2003, p. 284), em<br />

outras palavras a expressão se subjuga em decorrência <strong>da</strong> força do estilo <strong>da</strong> época. É por esta<br />

razão que Todorov relata haver um “estilo neutro” nestas produções, para que o texto se<br />

mantivesse racional.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Na concepção de Bakhtin, no entanto, não há estilos ver<strong>da</strong>deiramente neutros, o que<br />

há é uma pretensão de neutrali<strong>da</strong>de do discurso por meio <strong>da</strong> tentativa de afastamento<br />

“pessoal”, pois a neutrali<strong>da</strong>de completa é impossível. Segundo Bakhtin, “a própria escolha de<br />

uma determina<strong>da</strong> forma gramatical pelo falante é um ato estilístico” (BAKHTIN, 2003, p.<br />

269). E, em outra passagem: “a relação valorativa do falante com o objeto de seu discurso<br />

também determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do<br />

enunciado”. (BAKHTIN, 2003, p. 289).<br />

As regras tão preza<strong>da</strong>s por Todorov e Boileau-Narcejac tem a função, segundo eles,<br />

de manutenção do gênero policial. No entanto, para Bakhtin, os gêneros são formados de<br />

enunciados relativamente estáveis, não há como permanecerem o mesmo durante déca<strong>da</strong>s, até<br />

porque, como vimos, ele é ligado a uma construção e temas vigentes em uma determina<strong>da</strong><br />

época, em outros tempos a maneira de fazer narrativas policiais mu<strong>da</strong> – como, na atuali<strong>da</strong>de,<br />

na qual o gênero policial está ligado, por exemplo, à metalinguagem.<br />

A manutenção dos gêneros se dá por meio de traços construtivos, os quais são<br />

estáveis, porém não fixos (SOBRAL, 2009).<br />

São estáveis porque necessitam de uma identificação, como característicos de tal<br />

gênero, segundo Sobral, “o ambiente socioistórico requer a cristalização de formas (e mesmo<br />

de fórmulas!) para que não se tenha de ‘reinventar’ a ca<strong>da</strong> vez que se fala os modos de falar”<br />

(SOBRAL, 2009, p.116). Então, com o passar do tempo, certos tipos de enunciados para<br />

determinados campos, esferas, são cristalizados, mas há a possibili<strong>da</strong>de de mu<strong>da</strong>nça, já que<br />

“[...] ca<strong>da</strong> esfera de ativi<strong>da</strong>de [...] desenvolve continuamente suas próprias mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de<br />

uso <strong>da</strong> língua, sujeitas a permanentes alterações, apropriações, justaposições etc” (SOBRAL,<br />

2009, p.122). Há, para Bakhtin, a cristalização de alguns tipos de enunciados para ca<strong>da</strong><br />

gênero, uma forma textual tipicamente concebi<strong>da</strong> como parte deste, ou, nas próprias palavras<br />

do autor, “certa expressão típica a ele inerente” (BAKHTIN, 2003, p. 293), mas não há uma<br />

imposição de normas as quais devem ser segui<strong>da</strong>s para fazer este gênero.<br />

Um último aspecto a ser observado em contraponto às teorias de Boileau-Narcejac e<br />

Todorov é o papel do leitor. Boileau-Narcejac discorrem que Doyle e Poe não consideram o<br />

leitor ao escreverem seus contos policiais, o leitor era passivo. Porém, todo enunciado visa<br />

uma resposta e é feito em resposta de algo – no caso de Doyle podemos entender que ele<br />

escreve em resposta à Poe (pois é influenciado por este) e para os leitores de narrativa<br />

policial, de modo a provocar sensações como a surpresa, por exemplo, ao solucionar um<br />

mistério. Um exemplo maior disso é quando este ressuscita Holmes por insistência de seus<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

leitores. Além disto, a própria tentativa de supressão já é significativa, pois denuncia uma<br />

atitude do autor em relação ao público leitor, uma vez que, mesmo para suprimir considera-se<br />

a existência deste.<br />

Finalizamos com a palavra de Bakhtin a respeito <strong>da</strong> relação dialógica entre as obras:<br />

A obra, como a réplica do diálogo, está disposta para a resposta do outro<br />

(dos outros), para a sua ativa compreensão responsiva, que pode assumir<br />

diferentes formas: influência educativa sobre os leitores, sobre suas<br />

convicções, respostas críticas, influência sobre seus seguidores e<br />

continuadores; ela determina as posições responsivas dos outros nas<br />

complexas condições de comunicação discursiva de um ca<strong>da</strong> campo <strong>da</strong><br />

cultura. A obra é um elo na cadeia <strong>da</strong> comunicação discursiva; como a<br />

réplica do diálogo, está vincula<strong>da</strong> a outras obras – enunciados: com aquelas<br />

às quais ela responde, e com aquelas que lhe respondem; ao mesmo tempo, à<br />

semelhança <strong>da</strong> réplica do diálogo, ela está separa<strong>da</strong> <strong>da</strong>quelas pelos limites<br />

absolutos <strong>da</strong> alternância dos sujeitos do discurso (BAKHTIN, 2003, p. 279).<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BAKHTIN, Mikhail. Estética <strong>da</strong> criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.<br />

BOILEAU-NARCEJAC. O romance policial. São Paulo: Ática, 1991.<br />

DOYLE, Arthur Conan. As aventuras de Sherlock Holmes. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.<br />

SOBRAL, A<strong>da</strong>il. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin.<br />

Campinas: Mercado de Letras, 2009.<br />

TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: _____. Poética <strong>da</strong> prosa. São Paulo:<br />

Martins Fontes, 2003.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A intimi<strong>da</strong>de dos espaços na Barcelona gótica de Carlos Ruiz Zafón: uma trama<br />

detetivesca<br />

PANDOLFI, Maira (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Ao considerarmos o conceito de espaço em obras literárias, sobretudo naquelas<br />

circunscritas à narrativa policial contemporânea, levamos em conta as experiências <strong>da</strong>s<br />

personagens na relação com esses espaços, sobretudo o urbano. As obras do escritor Carlos<br />

Ruiz Zafón caracterizam-se pela mescla de elementos policiais e de aventura, terror,<br />

sentimentalismo folhetinesco, mitos e outros. Zafón escreveu um conjunto de obras que<br />

apresentam a mistura desses elementos e que têm sido consagra<strong>da</strong>s como best-sellers. Na A<br />

sombra do vento, a ci<strong>da</strong>de de Barcelona não representa apenas o espaço geográfico onde<br />

ocorrem as ações, ou seja, com cenários góticos e misteriosos, ideais à narrativa de Zafón,<br />

mas ganha uma dimensão mais ampla, desempenhando diversas funções. Dentre elas,<br />

consideramos fun<strong>da</strong>mental não apenas a análise <strong>da</strong> relação entre o enredo e o encadeamento<br />

dos espaços, constituindo o percurso espacial, mas também <strong>da</strong>s relações desses espaços com a<br />

psicologia <strong>da</strong>s personagens, ou seja, de sua cartografia simbólica, <strong>da</strong> memória e <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s personagens com os espaços <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Dentre os críticos que tratam <strong>da</strong> relação entre<br />

espaço e personagens ou espaço e narrativa policial, utilizados em nossa análise, destacamos<br />

as contribuições de Bachelard sobre topoanálise, assim como as contribuições de Todorov<br />

sobre o fantástico e tipologia <strong>da</strong> narrativa policial e de Mieke Bal sobre teoria <strong>da</strong> narrativa.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Carlos Ruiz Zafón; espaço narrativo; romance policial<br />

RESUMEN: En cuanto al concepto de espacio en obras literarias, sobre todo en las novelas<br />

policiales contemporáneas, se ha considerado en este análisis la experiencia de los personajes<br />

en lo que concierne al espacio urbano. Las obras del escritor Carlos Ruiz Zafón se<br />

caracterizan por la mezcla de elementos policiales y de aventura, así como el terror, el<br />

sentimentalismo, los mitos y otros. Zafón ha escrito una gama de obras considera<strong>da</strong>s bestsellers.<br />

En La sombra del viento, la ciu<strong>da</strong>d de Barcelona no representa sólo el espacio<br />

geográfico donde ocurren las acciones, es decir, los escenarios góticos y misteriosos muy al<br />

gusto de Zafón, sino que ganan además una dimensión amplia que sirve para llevar a cabo una<br />

infini<strong>da</strong>d de funciones. Según las funciones presentes, señalamos no sólo el análisis de la<br />

relación entre el hilo narrativo y el encadenamiento de los espacios que forma el trayecto<br />

espacial, sino también las relaciones entre los espacios con la psicología de los personajes, es<br />

decir, de su cartografia simbólica, de su memoria y de la intimi<strong>da</strong>d de los personajes con los<br />

espacios de la ciu<strong>da</strong>d. De acuerdo con los autores que han trabajado las relaciones entre<br />

espacio y personajes o espacio y narrativa policial, hemos tenido en cuenta las aportaciones de<br />

Bachelard sobre topoanálisis, así como los aportes de Todorov sobre el fantástico y la novela<br />

policial o de Mieke Bal sobre la teoría narrativa.<br />

PALABRAS-CLAVE: Carlos Ruiz Zafón, espacio narrativo; novela policial<br />

A narrativa do best seller A sombra do vento (2007), do catalão Carlos Ruiz Zafón,<br />

caracteriza-se pelo hibridismo contemporâneo que se alimenta <strong>da</strong>s formas literárias populares<br />

257


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

como o romance policial, de aventuras, folhetim, narrativa audiovisual, romance gótico e até<br />

mesmo dos mitos e <strong>da</strong> tragédia grega. Por essa razão, os deslocamentos em relação ao gênero<br />

policial clássico evidenciam-se desde as primeiras páginas. Sabemos que no romance policial<br />

clássico, segundo Todorov (2006), não há possibili<strong>da</strong>de de contato entre as duas histórias que<br />

o compõem, ou seja, a do crime e a <strong>da</strong> investigação, o que garante total imuni<strong>da</strong>de ao detetive.<br />

Em contraparti<strong>da</strong>, na narrativa de Zafón o detetive encontra-se constantemente em risco após<br />

ter se tornado o guardião de um livro maldito, bem como as personagens com as quais ele se<br />

relaciona. Apesar de jovem e inexperiente na arte policial, o protagonista demonstra<br />

familiari<strong>da</strong>de com a literatura do gênero e, por isso, ao sentir vontade de contar ao seu melhor<br />

amigo um segredo que tinha sido revelado por seu pai ele se lembra <strong>da</strong> promessa que havia<br />

feito a este, afirmando que “as circunstâncias aconselhavam o que, nos romances de intriga<br />

policial, denomina-se outro modus operandi” (ZAFÓN, 2007, p.14). Assim, sua vi<strong>da</strong> passa a<br />

se entrelaçar constantemente com a de Julián Carax, autor do livro maldito e elemento<br />

principal <strong>da</strong> história do crime que o protagonista deseja desven<strong>da</strong>r.<br />

A trama ocorre na ci<strong>da</strong>de de Barcelona e o tempo cronológico <strong>da</strong> história recobre o<br />

período do pós guerra (1945 a 1966), em plena ditadura franquista. A narrativa, em primeira<br />

pessoa, exibe as memórias do narrador protagonista Daniel Sempere, desde sua adolescência<br />

até a maturi<strong>da</strong>de. Após se tornar o guardião do livro de Julián Carax o garoto decide<br />

investigar, por conta própria, a vi<strong>da</strong> desse misterioso escritor cujas obras haviam sido<br />

queima<strong>da</strong>s por um desconhecido que, no final, descobre ser o próprio Carax. No decorrer <strong>da</strong><br />

história, o garoto conhece personagens exóticas como o livreiro Dom Gustavo Barceló e sua<br />

sobrinha Clara, uma cega por quem Daniel se apaixona e que lhe informa as primeiras notas<br />

sobre a vi<strong>da</strong> e a obra de Julián Carax. Quando se decepciona com Clara o garoto conhece<br />

aquele que se tornaria seu grande amigo, Fermín Romero de Torres. Em sua investigação,<br />

Daniel descobre que Julián manteve uma história de amor com aquela que, mais tarde, <strong>da</strong>ria a<br />

luz a um filho deste e que ele viria a descobrir depois que se tratava de sua própria irmã. Ao<br />

mesmo tempo em que tenta desven<strong>da</strong>r essa história labiríntica, Daniel apaixona-se pela irmã<br />

de seu melhor amigo, Beatriz Aguilar. Também conhece Nuria Monfort, a filha de Isaac,<br />

guardião do Cemitério dos livros esquecidos e, por meio dela, consegue reunir mais peças que<br />

faltavam para a montagem do intrincado quebra-cabeças que envolvia seu escritor predileto.<br />

É importante ressaltar, também, que o título do livro de Julián Carax é o mesmo<br />

título <strong>da</strong> obra em análise, mantendo entre ambas acentua<strong>da</strong>s identificações, como se fosse o<br />

espelho uma <strong>da</strong> outra. A propósito, esse procedimento confirma o que Lin<strong>da</strong> Hutcheon (2010)<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

aponta a respeito <strong>da</strong> metaficção, que é uma <strong>da</strong>s formas predominantes do romance atual,<br />

como uma narrativa que se caracteriza pela intertextuali<strong>da</strong>de irônica ou paródica,<br />

acrescentando que:<br />

To<strong>da</strong>s as nossas formas artísticas – não apenas a ficção – parecem obceca<strong>da</strong>s<br />

pela “autocrítica”, desconfiando <strong>da</strong> crítica externa o suficiente para<br />

internalizar seus primeiros comentários críticos como uma maneira de<br />

provocar curto-circuitos na relação com a crítica. To<strong>da</strong>s questionam<br />

abertamente a separação entre arte e reali<strong>da</strong>de, trazendo o<br />

leitor/espectador/ouvinte para dentro e através do espelho <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />

estética que apresentam. A metaficção moderna existe nesta fronteira<br />

consciente entre literatura e vi<strong>da</strong>, fazendo pouca distinção formal entre o<br />

leitor cocriador e o autor (HUTCHEON, 2010, p.58)<br />

É, portanto, visando o envolvimento do leitor com o texto que a narrativa<br />

contemporânea se utiliza abun<strong>da</strong>ntemente de recursos como aqueles empregados por Carlos<br />

Ruiz Zafón em A sombra do vento e que conferem à sua obra uma tonali<strong>da</strong>de singular. São os<br />

elementos que o autor retoma, sobretudo do romance gótico, que vão conferir a essa narrativa<br />

uma sequência espacial capaz de proporcionar um acentuado clima de mistério, além de<br />

ambientá-la no passado, despertando no leitor a curiosi<strong>da</strong>de de penetrar nessa turística<br />

fantasia e de refazer o roteiro literário barcelonês na vi<strong>da</strong> real. Recorrer ao gótico e ao tom<br />

nebuloso como princípio estético norteador <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de em seu romance parece traduzir o que<br />

Robert Moses Pechman (2002) assinala sobre a dimensão enigmática <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de no romance<br />

policial, a complicação de seu plano e a dificul<strong>da</strong>de do percurso que “fazem reverberar na<br />

metrópole moderna as conotações do labirinto mítico” (PECHMAN, 2002, p.281).<br />

A fixação realista em retratar diversas ruas e prédios históricos <strong>da</strong> “ci<strong>da</strong>de con<strong>da</strong>l”<br />

foi uma fórmula tão exitosa que a misteriosa e gótica Barcelona de Zafón saltou <strong>da</strong>s páginas<br />

de ficção para o Guia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Barcelona de Carlos Ruiz Zafón, de Sergi Doria (2008),<br />

que disponibiliza a cartografia de oito rotas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de retrata<strong>da</strong>s pelo escritor em suas obras.<br />

A análise em questão tem como fun<strong>da</strong>mento teórico a distinção que Mieke Bal<br />

(2009) apresenta sobre lugar e espaço. O lugar, elemento fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> trama, diz respeito à<br />

localização geográfica onde se situam as personagens e onde ocorrem os acontecimentos. É<br />

nele que se manifesta a forma física do espaço e suas dimensões. Por outro lado, quando esses<br />

lugares estão relacionados a diferentes formas de percepção na trama, ou seja, quando se trata<br />

<strong>da</strong> percepção de uma personagem sobre um determinado lugar, bem como sua observação e<br />

reação diante dele, nos referimos ao espaço (BAL, 2009, p.101).<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Desse modo, pode-se dizer que essa categoria analítica, o espaço, deve ser enfoca<strong>da</strong><br />

desde a intimi<strong>da</strong>de de quem os percebe para que se descubram as peculiari<strong>da</strong>des <strong>da</strong> narrativa e<br />

estratégias do autor na composição <strong>da</strong> trama detetivesca. Nesse contexto, é válido considerar<br />

o espaço como detentor do tempo comprimido, como repositório <strong>da</strong>s lembranças, pois<br />

Bachelard (1988, p.29) nos adverte que o inconsciente permanece nos locais e, portanto, as<br />

lembranças são imóveis e se tornam mais sóli<strong>da</strong>s na medi<strong>da</strong> em que são mais espacializa<strong>da</strong>s.<br />

O percurso espacial do protagonista de A sombra do vento tem como ponto de<br />

parti<strong>da</strong> as lembranças <strong>da</strong> infância, <strong>da</strong> mãe que morreu de cólera e do dia em que seu pai lhe<br />

apresentou o mítico Cemitério dos livros esquecidos, ou seja, uma biblioteca em forma de<br />

labirinto. O cemitério é ficção, mas a sua localização existe, ou melhor, a Rua do Arco do<br />

Teatro, que faz uma referência ao Teatro Principal, construído no século XVIII, um dos mais<br />

antigos <strong>da</strong> Espanha. No conto, esse recanto ou “mora<strong>da</strong> dos mortos” guar<strong>da</strong> livros esquecidos,<br />

ver<strong>da</strong>deiras “almas pena<strong>da</strong>s” que ali encontram guari<strong>da</strong>. Dessa forma, o cemitério, o labirinto<br />

e os livros esquecidos formam um complexo simbólico fantástico que envolve a ci<strong>da</strong>de de<br />

Barcelona e a personagem principal. Essa atmosfera mágica coloca-o no lugar de uma presa<br />

semelhante ao herói Teseu no labirinto; um labirinto de ruas e de histórias que se entrecruzam<br />

e <strong>da</strong>s quais ele necessita compreender para não ser devorado pelo Minotauro. O encantamento<br />

despertado pelo livro é tão grande que o protagonista passa a viver em um mundo paralelo ao<br />

<strong>da</strong> ficção, contaminando a reali<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong>s as pessoas com as quais se relaciona. É o caso,<br />

por exemplo, de uma <strong>da</strong>s personagens <strong>da</strong> obra de Carax, denomina<strong>da</strong> Laín Coubert, que surge<br />

diante do herói para persuadi-lo a entregar-lhe o livro, oferecendo-lhe qualquer quantia por<br />

este. Coubert tem o rosto desfigurado e cheira queimado, assim como Clara Barceló havia<br />

relatado a Daniel. Da mesma forma com que a ficção se converte em reali<strong>da</strong>de também o<br />

mundo dos mortos “espia” o mundo dos vivos e esse impulso inicial ou imagem que desponta<br />

no início <strong>da</strong> obra é ofereci<strong>da</strong> por meio <strong>da</strong>s descrições espaciais. É na penumbra do quarto que<br />

Daniel Sempere, filho de um livreiro, conversa com a mãe morta sobre os acontecimentos do<br />

dia:<br />

Não podia ouvir a sua voz ou sentir o seu tato, mas a sua luz e o seu calor<br />

inflamavam ca<strong>da</strong> canto <strong>da</strong>quela casa e eu, com aquela fé dos que ain<strong>da</strong><br />

podem contar os anos nos dedos <strong>da</strong>s mãos, achava que, se fechasse os olhos<br />

e falasse com ela, ela poderia me escutar onde quer que estivesse (ZAFÓN,<br />

2007, p.07).<br />

260


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Assustado, Daniel desperta de seu devaneio queixando-se por não se lembrar do<br />

rosto de sua mãe ain<strong>da</strong> que pudesse sentir sua cáli<strong>da</strong> presença nos cantos <strong>da</strong> casa. Em sua obra<br />

A Poética do Espaço (1988, p.26), Bachelard confere à casa a função materna, uterina,<br />

protetora, considerando-a como o primeiro mundo do ser humano e afirmando que antes de<br />

ser, de fato, “jogado no mundo” o homem é colocado no “berço <strong>da</strong> casa”.<br />

A segun<strong>da</strong> imagem espacial que surge na obra conecta o espaço <strong>da</strong> casa (interno,<br />

materno e protetor) com o espaço externo, ou seja, o cemitério dos livros esquecidos, para<br />

onde Sempere pai leva Sempere filho e lhe conta um segredo. Esse cemitério de livros tem a<br />

forma de um labirinto em espiral e está relacionado aos rituais de iniciação à vi<strong>da</strong> adulta, visto<br />

que Daniel se encontra com apenas onze anos de i<strong>da</strong>de em sua primeira visita e que se torna<br />

inteiramente responsável por um segredo que lhe aporta inúmeros desafios e aprendizado<br />

desde que esteve nesse lugar. A imagem de uma biblioteca labirinto, que é onde a trama<br />

detetivesca terá início, alude ao ocultamento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, pois o labirinto é, paradoxalmente,<br />

aberto e fechado. Dito de outro modo, o labirinto funciona tanto como uma alegoria <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

humana, que com seus intrincados caminhos encerra o homem em um universo pleno de<br />

desafios e de mistérios apenas superados e desven<strong>da</strong>dos com a aju<strong>da</strong> do outro; assim como<br />

Teseu, que com a aju<strong>da</strong> de Ariadne conseguiu vencer o Minotauro, mas também alude à rede<br />

de significados encerrados em um texto que, de acordo com a concepção borgeana, é ao<br />

mesmo tempo múltiplo por guar<strong>da</strong>r todos os outros textos, portanto, aberto e sempre passível<br />

de construção e desconstrução pelos sujeitos leitores. É a representação de um espaço de<br />

disputa pelo poder, não apenas contra as forças <strong>da</strong> natureza, simboliza<strong>da</strong>s pelo Minotauro,<br />

mas também pelo domínio <strong>da</strong> autoria, visto que, como dito anteriormente, já não existe mais<br />

fronteiras entre o leitor e o autor. Como um feixe de imagens, a biblioteca labirinto de Zafón<br />

é, ao mesmo tempo, a representação do mito bíblico de Babel, do mito de Teseu e do<br />

Minotauro e <strong>da</strong> “Biblioteca de Babel” de Borges. A problemática <strong>da</strong> autoria é a mesma <strong>da</strong><br />

memória e, assim como a infinita biblioteca de Borges, guardiã de todo conhecimento<br />

humano, Zafón reconstrói o Cemitério dos livros esquecidos, símbolo <strong>da</strong> aspiração do homem<br />

de equiparar-se à divin<strong>da</strong>de que detém todo o conhecimento:<br />

Quando uma biblioteca desaparece, quando uma livraria fecha as suas<br />

portas, quando um livro se perde no esquecimento, nós, guardiões, os que<br />

conhecemos este lugar, garantimos que ele venha para cá. Neste lugar, os<br />

livros dos quais já ninguém se lembra, os livros que se perderam no tempo,<br />

viverão para sempre, esperando chegar algum dia às mãos de um novo leitor,<br />

de um novo espírito. Na loja, nós os vendemos e compramos, mas na<br />

261


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

ver<strong>da</strong>de os livros não têm dono. Ca<strong>da</strong> livro que você vê aqui foi o melhor<br />

amigo de um homem. Agora só tem a nós Daniel. Você acha que poderá<br />

guar<strong>da</strong>r este segredo (ZAFÓN, 2007, p.9)<br />

A configuração espacial dessa gigantesca e mística biblioteca, com corredores e<br />

galerias em espiral, traduz essa pretensão babélica demiúrgica, onde os livros escolhem seus<br />

guardiões e não o contrário. Caminhando nesse espaço iluminado apenas pela luz <strong>da</strong> cúpula<br />

que vinha do alto para, segundo a recomen<strong>da</strong>ção de seu pai, adotar um livro, Daniel teve a<br />

sensação de ter sido escolhido por uma <strong>da</strong>quelas almas que habitavam as prateleiras: era o<br />

livro de Julián Carax, A sombra do vento.<br />

Uma vez guardião desse objeto sagrado, o livro, o garoto passa a ocupar uma posição<br />

de centro gravitacional em torno do qual giram os satélites, ou seja, empreende-se uma<br />

gra<strong>da</strong>tiva e dissimula<strong>da</strong> perseguição ao herói. Um dos primeiros a cobiçar esse objeto sagrado<br />

que está sob sua custódia será Barceló, uma espécie de “Holmes à la Byron”, que se veste<br />

como um dândi do século XIX, usa monóculo, cachimbo e tem pose de detetive: “Barceló<br />

saboreou seu cachimbo apagado, o olhar aquilino examinando com interesse o livro que eu<br />

trazia nas mãos. Apesar de sua facha<strong>da</strong> cômica e de tanto falatório, Barceló sabia cheirar uma<br />

boa presa como um lobo cheira sangue” (ZAFÓN, 2007, p.16). Essa ação ocorre no espaço do<br />

café Els Quatre Gats, um edifício neogótico localizado na Rua Montsió, que foi inaugurado<br />

no final do século XIX, em 1897, como um cabaré. Esse ambiente tornou-se famoso pelas<br />

tertúlias literárias e exposições de arte, como as de Pablo Picasso em 1900, e se converteu em<br />

um dos lugares de referência do modernismo catalão. A propósito de Picasso, evocado na<br />

narrativa de Zafón em razão <strong>da</strong> lembrança suscita<strong>da</strong> pelo espaço do antigo cabaré Els Quatre<br />

Gats, não se pode esquecer o seu apego ao mito do labirinto e ao Minotauro (alegoria<br />

privilegia<strong>da</strong> na obra em análise) como revelação <strong>da</strong> motivação íntima de um homem ou de<br />

uma época que consiste em nos fazer admitir que somos duplos: “é a inevitável e necessária<br />

presença <strong>da</strong> bestiali<strong>da</strong>de em nós, mesmo se ela nos choca, e a transgressão picassiana consiste<br />

em exprimir e em viver, mais ou menos serenamente, aquilo que nos assusta mas que palpita<br />

dentro de nós, em particular no domínio sexual” (DUPUIS-LABBÉ, 2004). Essa<br />

representação simbólica do duplo contribui com uma compreensão mais consistente <strong>da</strong><br />

caracterização <strong>da</strong> personagem Barceló e <strong>da</strong> função dos espaços em que se encontra com o<br />

protagonista Daniel na obra.<br />

O duplo surge como uma alusão implícita ao mito fáustico na medi<strong>da</strong> em que<br />

Barceló passa a despertar a ganância do garoto com tentadoras propostas financeiras para<br />

262


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

tomar-lhe o livro de Carax. Como essas propostas não surtem o efeito desejado, Barceló lhe<br />

propõe um novo encontro na tentativa de estabelecer o desejado pacto. Assim, marca um novo<br />

encontro com Daniel na Biblioteca do Ateneo e promete-lhe informações <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de Carax em<br />

troca de desfrutar de alguns momentos a sós com o livro. Como não conseguiu despertar a<br />

ganância do garoto, Barceló leva a sua bela sobrinha, de feições páli<strong>da</strong>s como as donzelas<br />

românticas do século XIX, para conseguir a obra por meio <strong>da</strong> sedução. O menino de fato se<br />

impressiona com Clara, a sobrinha de Barceló, que apesar de lhe brin<strong>da</strong>r com importantes<br />

informações sobre Carax confessa estar mentindo que é especialista nesse autor e que o fez<br />

para que seu tio pudesse ficar um tempo a sós com o livro que tanto desejava. Essa foi a<br />

primeira lição que o mestre Barceló deu ao seu aprendiz de detetive: aplicar uma mentira para<br />

conseguir o que se quer. Essa estratégia foi utiliza<strong>da</strong> por Daniel diversas vezes em suas<br />

investigações posteriores e, com ela, obteve muitos êxitos e também contratempos.<br />

A referência ao mito fáustico envolvendo a figura de Barceló é explicita<strong>da</strong> somente<br />

no quinto capítulo, “Ci<strong>da</strong>de de sombras”, quando Daniel leva seu amigo Fermín à casa de<br />

Barceló e este “[...] pegou seu cachimbo e recostou-se na poltrona do escritório, muito à<br />

vontade em sua pose mefistofélica” (ZAFÓN, 2007, p.241). Assim, Barceló incorpora a<br />

vestimenta de Byron, a astúcia de Mefistófeles e a capaci<strong>da</strong>de de deduções lógicas de um<br />

Holmes ou Dupin.<br />

A figura de Byron também é projeta<strong>da</strong> em Laín Coubert, ou seja, na personagem de<br />

Carax que se descobre, ao final, ser ele próprio desejando queimar suas obras. Assim como no<br />

mito byroniano, a imagem do autor mistura-se com a de sua len<strong>da</strong> e reali<strong>da</strong>de e ficção tornamse<br />

indissociáveis. Tanto no retrato dessa personagem na obra de Zafón como nos retratos de<br />

Byron descreve-se um indivíduo coxo. Além disso, tanto Byron como Carax tiveram sua<br />

imagem demoníaca reforça<strong>da</strong> por uma relação incestuosa com a irmã. Em Byron, sua<br />

deformi<strong>da</strong>de no pé se estendeu, devido a esse escân<strong>da</strong>lo, a uma deformi<strong>da</strong>de de seu caráter.<br />

Contudo, na narrativa de Zafón, a história de Carax está associa<strong>da</strong> a um mistério sobre sua<br />

real paterni<strong>da</strong>de que fatalmente levou ao incesto e <strong>da</strong>í à tragédia, assim como em Édipo.<br />

Dessa forma, o mito byroniano encarna-se tanto em Carax quanto em Barceló, reduplicandolhes<br />

a imagem. Por outro lado, Daniel é o homem fáustico, que estabelece pactos; homem de<br />

ação e sedento de conhecimento, cuja história está, assim como a de Fausto, associa<strong>da</strong> à<br />

magia. A <strong>da</strong>nação, se interpreta<strong>da</strong> como condenação à curiosi<strong>da</strong>de intelectual de Fausto,<br />

remonta, na história <strong>da</strong> magia, ao mito de um dos mais antigos livros <strong>da</strong> civilização, ao qual<br />

se denominou Livro de Toth e que já foi curiosamente queimado várias vezes ao longo <strong>da</strong><br />

263


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

história, mas sempre reaparece em algum lugar. Segundo a len<strong>da</strong> de Nefer-Ka-Ptah, que<br />

Bergier (1971) menciona ter lido em The wisdom of the Egyptians (1928), de Brian Brown, o<br />

Livro de Toth foi encontrado por Nefer-Ka-Ptah com a aju<strong>da</strong> de um mágico. O livro estava no<br />

fundo de um rio, em um lugar protegido por escorpiões e por uma serpente imortal. Após ler a<br />

primeira página, Nefer-Ka-Ptah compreendeu todo o mistério <strong>da</strong> criação e decidiu registrar<br />

tudo o que lera em um papiro, lavá-lo com cerveja e beber a cerveja para que, assim, todo o<br />

saber do grande mágico ficasse nele. Contudo Toth voltou do reino dos mortos e vingou-se<br />

terrivelmente de Nefer-Ka-Ptah exterminando-o e a to<strong>da</strong> sua família. De forma semelhante a<br />

essa len<strong>da</strong>, a personagem Laín Coubert, de Carax, que persegue a todos que adquirem os<br />

livros do autor para queimá-los, já que é a representação do próprio duplo de Carax que volta<br />

para se vingar de seu trágico destino de herói byroniano, acreditava que eliminando todos os<br />

seus livros ele também desapareceria e, com ele, to<strong>da</strong> a tragédia e maldição que pairou sobre<br />

si, visto que não poderia existir senão em sua própria ficção.<br />

O protagonista Daniel se difere muito dos detetives <strong>da</strong> estirpe de Dupin que sequer<br />

cruzavam os umbrais de seus aposentos para desven<strong>da</strong>r um crime. Daniel é um detetive de<br />

ação e <strong>da</strong> emoção e não emprega exclusivamente estratégias intelectualizantes. Ele lê o<br />

espaço <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de de seus suspeitos para <strong>da</strong>li poder inferir alguma coisa; era um<br />

ver<strong>da</strong>deiro leitor de casas.<br />

Na obscuri<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Barcelona labiríntica, o poeta funde-se ao detetive para desven<strong>da</strong>r<br />

o grande enigma que se esconde por trás <strong>da</strong> teia urbana. A trama detetivesca se encaixa nesse<br />

contexto que persegue a ordem <strong>da</strong> descoberta dos mistérios (cuja atmosfera mistura tempos<br />

cronológicos distintos, ou seja, os anos cinzentos do pós-guerra e o clima oitocentista que fez<br />

eclodir as grandes ci<strong>da</strong>des e o nascimento do romance policial). Assim, a imagem do labirinto<br />

e a penumbra gótica teriam a função, dentre outras coisas, de encobrir os sujeitos dessas<br />

grandes ci<strong>da</strong>des, tornando-os opacos. Nesse contexto, ao seguir os indícios e pensar de forma<br />

dedutiva “o detetive, dentro do romance policial, por um momento consegue penetrar a<br />

opaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e eluci<strong>da</strong>r o mistério” (PECHMAN, 2002, p.281).<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BACHELARD, G. A poética do espaço. Tradução de Antonio de Pádua Danesi e revisão de<br />

Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.<br />

264


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

BAL, M. Teoría de la narrativa (una introducción a la narratología). Madrid: Cátedra, 2009.<br />

BERGIER, J. Os livros malditos. Tradução de Raquel de Andrade. São Paulo: Hemus, 1971.<br />

DORIA, Sergi. Guia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Barcelona de Carlos Ruiz Zafón. Barcelona: Planeta, 2008.<br />

DUPUIS-LABBÉ, D. Texto do catálogo <strong>da</strong> exposição Picasso na Oca: uma retrospectiva.<br />

Disponível: em<br />

.<br />

Acesso em: 08 jul. 2012.<br />

HUTCHEON, L. O carnavalesco e a narrativa contemporânea: cultura popular e erotismo. In:<br />

RIBEIRO, A. P. G; SACRAMENTO, I. (Orgs.) Mikhail Bakhtin: Linguagem, Cultura e<br />

Mídia. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.<br />

PECHMAN, R. M. Ci<strong>da</strong>des estreitamente vigia<strong>da</strong>s: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro:<br />

Casa <strong>da</strong> Palavra, 2002.<br />

TODOROV, T. As estruturas narrativas. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:<br />

Perspectiva, 2006.<br />

ZAFÓN, C. R. A sombra do vento. Tradução de Márcia Ribas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.<br />

265


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Quando o detetive volta para casa<br />

PARRINE, Raquel (USP/Fapesp)<br />

RESUMO: A literatura policial é um gênero caracterizado por uma busca incessante,<br />

motiva<strong>da</strong> por um enigma que o detetive, personagem que define o gênero, precisa solucionar.<br />

Tradicionalmente, esta deman<strong>da</strong> é bem sucedi<strong>da</strong>: nas últimas páginas do romance, o detetive<br />

apresenta um solilóquio em que amarra to<strong>da</strong>s as pistas, resolve as ambigui<strong>da</strong>des e constrói<br />

uma narrativa incontestável. Entretanto, nunca vemos o detetive, satisfeito por mais um<br />

trabalho resolvido, voltar para casa. O segredo, portanto, exige uma dedicação infinita. De<br />

alguma forma, o personagem modelar do detetive reflete, como sugerem alguns autores, o<br />

trabalho do crítico literário. A busca incessante, o solilóquio que esconde o enigma, a<br />

necessi<strong>da</strong>de de autori<strong>da</strong>de narrativa são questões importantes do nosso trabalho. Qual seria a<br />

responsabili<strong>da</strong>de, portanto, do crítico Estaria disposto a sacrificar a própria autori<strong>da</strong>de pela<br />

ver<strong>da</strong>de<br />

PALAVRAS-CHAVE: Literatura policial, Juan José Saer, Emmanuel Lévinas, Bernardo<br />

Carvalho Teoria Literária.<br />

ABSTRACT: Crime fiction is a gender marked by an endless search, motivated by an<br />

enigma that the detective, the character that defines the gender, has to solve. Traditionally,<br />

this demand is successful: in the novel’s last pages, the detective presents a monologue in<br />

which he ties all the clues together, solves all the ambiguities and builds an incontestable<br />

narrative. But we never see the detective, satisfied after another job well done, going back<br />

home. The secret, thus, demands an endless dedication. In a way, the model character of the<br />

detective reflects, as some authors suggest, the work of the literary critic. The endless search,<br />

the monologue that hides the enigma, the necessity of narrative authority – all these elements<br />

are important to our work. Thus, which is the responsibility of the critic Would he be willing<br />

to sacrifice his authority for the truth<br />

KEYWORDS: Crime fiction, Juan José Saer, Emmanuel Lévinas, Bernardo Carvalho,<br />

Theory of Literature.<br />

“En secreto ocurre algo insólito: la literatura continúa.<br />

Es una tumba sin sosiego”<br />

Damián Tabarovsky, Literatura de izquier<strong>da</strong><br />

É esperado que um romance policial termine com um final triunfante, em que todos<br />

os fios <strong>da</strong> investigação se liguem e o detetive possa, finalmente, dispor de seu solilóquio, a<br />

solução do enigma, e depois voltar para casa. Mas nunca acompanhamos este trajeto de<br />

retorno. Por quê Será que o detetive se perde no caminho, como quando nos perdemos nos<br />

nossos próprios pensamentos Será que este caminho se apaga, no percurso <strong>da</strong> investigação<br />

Será que o detetive, na ver<strong>da</strong>de, não tem uma casa, que aquele endereço, Baker Street 221-B,<br />

266


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

por exemplo, simplesmente não existe Seria só um número, um endereço necessário para o<br />

registro civil do detetive, ou somente uma sede do seu trabalho Será que, na ver<strong>da</strong>de, os<br />

detetives moram na rua, do outro lado <strong>da</strong> calça<strong>da</strong> do local do crime, neuróticos pela ideia de<br />

encontrar o culpado (como parece sugerir Paul Auster) Será que o detetive é uma espécie<br />

glamourosa de indigente – de tão fora <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, outlawed, mais ao extremo do que o<br />

crítico argentino Ricardo Piglia imagina quando afirma que<br />

Há um elemento alheio a to<strong>da</strong> a instituição no sistema interpretativo que o<br />

detetive encarna: ele está fora, e muitos de seus traços marcam essa distância<br />

(a vi<strong>da</strong> noturna e algo perversa de Dupin, a cocaína de Sherlock Holmes, o<br />

álcool e a solidão de Marlowe), suas manias são formas de sublinhar a<br />

diferença (PIGLIA, 2004, p. 58)<br />

Será que o detetive não merece um lar, como um jogo de tabuleiro sem ponto de<br />

parti<strong>da</strong> Será que é isso o que é deman<strong>da</strong>do do detetive, que sirva à ver<strong>da</strong>de, acima <strong>da</strong> sua<br />

própria intimi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> pessoal Isso parece ser sugerido pelo Marlowe, de Chandler,<br />

e suas parti<strong>da</strong>s solitárias de xadrez, sua pilha de louça suja e seu apartamento fedendo a<br />

cigarro. E Marlowe será um dos poucos a conseguirem voltar para casa – ao contrário de<br />

Maigret, Holmes, Poirot e Dupin, sempre arrastados, de um mistério a outro, para países<br />

estrangeiros, casas assombra<strong>da</strong>s, pântanos, ci<strong>da</strong>des-fantasma.<br />

Diremos, então, que o detetive nunca volta para casa. Ele não pode retornar,<br />

inclusive, porque ninguém garante que seu ponto de parti<strong>da</strong> foi a casa: muitas vezes é a<br />

resolução do mistério anterior. Isso porque há sempre algo de insuficiente em seu trabalho,<br />

algo que sempre o compele a voltar ao crime, a buscar novamente o segredo. Se pensarmos<br />

em termos de gênero, esta insuficiência pode ser um dos traços de identificação que compõem<br />

o que temos chamado de literatura policial. Esta insuficiência, por sua vez, provoca uma<br />

ansie<strong>da</strong>de, uma ansie<strong>da</strong>de particular, que é parte do trabalho do detetive, mas, pelos meandros<br />

místicos <strong>da</strong> ficção, também é a do leitor (e pode estar casa<strong>da</strong> com a “desconfiança especial”<br />

que tem o leitor de policial, conforme identificado por Jorge Luis Borges (1979). Por que,<br />

então, a insuficiência, se o que o detetive oferece é sempre a solução completa, ver<strong>da</strong>deira e<br />

irrefutável do enigma proposto Por que o detetive não é capaz de se satisfazer com seu<br />

trabalho, com sua própria explicação totalizadora<br />

Para o detetive, sua ativi<strong>da</strong>de é uma espécie de jogo. Isso existe mais claramente no<br />

policial analítico que no duro, em que a detecção se transforma em profissão. Mas a ideia<br />

parece constar nas fun<strong>da</strong>ções <strong>da</strong> própria literatura policial, nas primeiras linhas de “Crimes na<br />

267


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Rua Morgue”. Este jogo, a busca pela ver<strong>da</strong>de, a necessi<strong>da</strong>de do solilóquio totalizante do<br />

detetive suplanta, inclusive, o luto em torno <strong>da</strong> vítima, o que faz sugerir uma leitura <strong>da</strong><br />

postura do detetive como anti-ética.<br />

Essa questão é antiga na literatura policial e tem talvez como marco o texto de<br />

Thomas De Quincey, “Do assassinato como uma <strong>da</strong>s belas artes”, de 1827, inaugural para<br />

uma discussão muito revisita<strong>da</strong> no gênero. Nesta espécie de ensaio, De Quincey,<br />

ironicamente, critica as posições de um suposto grupo de connoisseurs do crime, que<br />

professam ideias exagera<strong>da</strong>s, declarando coisas como “A morali<strong>da</strong>de já foi trata<strong>da</strong> o<br />

suficiente; agora é a vez do Bom Gosto e <strong>da</strong>s Belas Artes” 14 (DE QUINCEY, 2011, p. 11), o<br />

bom gosto e as belas artes sendo, pejorativamente, a arte do crime. Ao detratar este clube, o<br />

autor, que assina com as iniciais X. Y. Z., os descreve:<br />

professam ser curiosos em homicídio, amadores e diletantes nas várias<br />

formas de derramamento de sangue e, em suma, Admiradores de<br />

Assassinato. A ca<strong>da</strong> um deste tipo de atroci<strong>da</strong>de carnal que os anais de<br />

polícia <strong>da</strong> Europa trazem, eles se reúnem e o criticam como fariam com uma<br />

imagem, uma estátua, ou outra obra de arte. (DE QUINCEY, 2011, p. 6)<br />

Não conseguimos evitar o paralelo com “A causa secreta” e a famosa cena do rato,<br />

em que Fortunato sente ao torturar o animal uma sensação compara<strong>da</strong> à “audição de uma bela<br />

sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma cousa pareci<strong>da</strong> com a pura sensação estética.”<br />

(ASSIS, 2008, p. 167). A chave está, exatamente, na forma com que se vê a “cousa”. Ambos<br />

estão tratando o sofrimento com a neutrali<strong>da</strong>de, a contemplativi<strong>da</strong>de necessária para se<br />

apreciar uma obra de arte. O contemplar o sofrimento exige falta de compaixão.<br />

O padre Brown, de Chesterton, coloca a questão em seus próprios termos: “Um<br />

crime é como qualquer obra de arte (…). Não se assombre, crimes não são de jeito nenhum as<br />

únicas obras de arte que saem de oficinas infernais.” (CHESTERTON, 2012, p. 63). De<br />

Quincey, portanto, pode ter sido o primeiro a chamar o assassinato de arte, mas o movimento<br />

comparativo, envolto em ironia em seu texto, ganha a partir de então uma força crítica<br />

expressiva. Chesterton é somente um de seus debatedores 15 . Outro poderia ser, por exemplo, o<br />

14 To<strong>da</strong>s as traduções neste artigo são minhas, salvo indicado o contrário.<br />

15 A ideia do crime como obra de arte é recorrente na literatura policial. Há, para citar alguns exemplos,<br />

subgêneros baseados neste paralelismo, como os nursery rhyme crimes, romances cujos crimes são<br />

inspirados por cantigas de ninar (como O caso dos dez negrinhos), ou os japoneses crimes de haiku (ver<br />

Kawana).<br />

268


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

compositor alemão Karlheinz Stockhausen, em sua afirmação polêmica sobre o atentado ao<br />

World Trade Center<br />

O que aconteceu ali foi – vocês todos precisam reajustar seus cérebros agora<br />

– a maior obra de arte de todos os tempos. Que espíritos consigam realizar<br />

em um ato algo que, na música, não poderíamos nem sonhar; que pessoas<br />

ensaiassem como loucas por dez anos, totalmente fanáticas por um concerto<br />

e depois morrer. Esta é a maior obra de arte de todo o cosmo. Imagine o que<br />

aconteceu ali. Pessoas que estavam completamente concentra<strong>da</strong>s em uma<br />

apresentação, e então 5000 pessoas são persegui<strong>da</strong>s até que ressuscitam, em<br />

um momento. Eu não conseguiria fazer isso. Em comparação a isso, nós,<br />

compositores, não somos na<strong>da</strong>. Imagine que eu pudesse agora criar uma obra<br />

de arte e vocês todos não só ficassem maravilhados, mas caíssem na hora,<br />

vocês estariam mortos e renascidos, simplesmente porque é insano demais.<br />

Isto é o que muitos artistas também tentam fazer, ir além do limite do que é<br />

pensável e possível, para que possamos acor<strong>da</strong>r, para que possamos abrirnos<br />

para outro mundo. (STOCKHAUSEN, 2012)<br />

Neste caso, é importante observar, não estamos mais tratando <strong>da</strong> morte como um<br />

componente filosófico e ficcional, mas de uma tragédia real. O luto em torno <strong>da</strong>s vítimas fez<br />

que o compositor fosse execrado, suas apresentações cancela<strong>da</strong>s e transformou esta afirmação<br />

em baluarte do mau gosto. Entretanto, é ver<strong>da</strong>de que, se a arte pode ser compara<strong>da</strong> a um<br />

desastre como este, ela não pode, de forma nenhuma, como afirma o filósofo lituano<br />

Emmanuel Lévinas (2001), ser o valor supremo <strong>da</strong> civilização.<br />

De forma mais geral, a ideia <strong>da</strong> obra de arte divina ou diabólica é uma questão antiga<br />

e complexa na teoria <strong>da</strong> literatura. Tornou-se especialmente produtiva durante o Romantismo,<br />

do qual De Quincey é uma grande referência, como sabemos. Kant, Nietzsche, Goethe e<br />

Lessing discutiram o assunto, confundindo, muitas vezes, a fronteira do belo e do ético. Para a<br />

filósofa francesa Danièle Cohn (2008), ao contrário, esta distinção entre o grotesco e o<br />

sublime é superficial e esconde o fato de que a ligação entre a arte e a estética pressupõe uma<br />

base forma<strong>da</strong> pela pena, a repulsa, confiança e sinceri<strong>da</strong>de. “Não se trata de transformar a<br />

repulsa em beleza através <strong>da</strong> pena, mas de afastar os fantasmas que trazemos em nós, graças à<br />

reali<strong>da</strong>de que a obra de arte une.” (COHN, 2008, p. 269). Para a autora, a obra de arte não<br />

engana e sua tônica é a compaixão. Em suma, o que a arte busca não seria o belo, mas a<br />

ver<strong>da</strong>de, e o detetive poderia ser, então, o personagem modelar desta busca incessante pela<br />

ver<strong>da</strong>de.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Essa deman<strong>da</strong> é perigosa, porque o detetive a persegue a ferro e fogo, custe o que<br />

custar, no extremo <strong>da</strong> sua própria vi<strong>da</strong>. O escritor argentino contemporâneo Juan José Saer,<br />

em seu romance La pesquisa, de 1994, dá um destino lânguido a Morvan, seu detetive:<br />

Até para ele mesmo, sua possível inocência era tão incomunicável e remota<br />

como uma recor<strong>da</strong>ção ou como um sonho. Fragmentos vastos de sua vi<strong>da</strong> lhe<br />

escapavam e a ver<strong>da</strong>de íntima de seu próprio ser era para ele mais<br />

inapreensível e obscura do que o reverso negro <strong>da</strong>s estrelas. (SAER, 1999, p.<br />

134)<br />

Neste romance de final ambíguo, Saer coloca Morvan diante de dois desfechos: ou<br />

ele é o assassino, abatido por algum tipo de esquizofrenia que não o permite enxergar sua<br />

própria culpa; ou o culpado é seu colega no departamento de polícia, o inspetor Lautret, que,<br />

não satisfeito em fazer o amigo levar a culpa por seus atos vis, também se casa com sua exmulher<br />

e surrupia tudo o que ele chama de “lar”. Em ambas alternativas, portanto, o que ele<br />

perde é seu direito de voltar para casa, sua identi<strong>da</strong>de, sua autori<strong>da</strong>de.<br />

Assim, o detetive está a serviço <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de de tal maneira que tomará partido dela,<br />

ain<strong>da</strong> que tenha que admitir que ele mesmo é o assassino. Ele deve ser a favor <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />

ain<strong>da</strong> que ela seja contra si mesmo, ain<strong>da</strong> que ela o destitua do lugar de detetive. O sacerdote<br />

<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de deve se sacrificar em seu altar.<br />

O detetive sacrificado também perde sua autori<strong>da</strong>de, inclusive de ser dono <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de. Perde direito ao seu solilóquio. Perde direito a ser o narrador <strong>da</strong> primeira história, a<br />

história do crime. Em última análise, perde seu lugar de autor. Em nome <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, não pode<br />

falar mais desde o lugar <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />

Isso porque neste mesmo momento em que o detetive se descobre assassino, ele não<br />

pode ser o foco narrativo (ou mesmo o narrador) <strong>da</strong> história, porque deixa de ser o detetive.<br />

Como vimos, o assassino é o personagem que deve sempre estar na sombra, e seu rival, o<br />

detetive, sempre na luz, conduzindo o foco narrativo (ain<strong>da</strong> que pelos olhos de outra<br />

personagem, como Watson). Assim, quando o detetive é o assassino e a luz vai à sombra,<br />

deve se instaurar um novo acordo narrativo e um novo narrador deve ocupar o lugar do<br />

detetive sacrificado. Assim, dentro <strong>da</strong> mesma história, uma nova história começa – na obra de<br />

Saer, por exemplo, o relato passa a ser contado por laudos médicos, por parentes e,<br />

finalmente, pelo colega do inspetor que talvez seja o ver<strong>da</strong>deiro criminoso. Outra pessoa tem<br />

que seguir os passos deste antigo detetive: reunir as pistas, construir uma nova leitura, até<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

descobrir que ela também é a assassina. O ciclo nunca vai estar completo – como o labirinto –<br />

como uma ativi<strong>da</strong>de de leitura que pretende sempre se denunciar.<br />

A ideia <strong>da</strong> busca, ou o inquérito, como fim em si mesma vai ao extremo nos livros do<br />

escritor brasileiro contemporâneo Bernardo Carvalho. Neles, os personagens de paradigma<br />

detetivesco – especialmente o diplomata, em Mongólia (2002), e o romancista, em Nove<br />

Noites (2006-b) – têm em comum a dúvi<strong>da</strong>. Segundo o próprio autor, em entrevista,<br />

São personagens que não entendem por que nasceram. E a única coisa que<br />

eles sabem é que vão morrer. Eu também queria saber o que é que eles<br />

buscam. Mas o mais intrigante e comovente é o que os mantém vivos, em<br />

busca de alguma coisa, não importa o quê. Acho que é disso que são feitos<br />

os romances. (CARVALHO, 2006-a, p. 25)<br />

São movidos, portanto, por uma pergunta que ain<strong>da</strong> nem foi formula<strong>da</strong> – talvez<br />

estejam em busca dessa pergunta, que, não obstante, os faz moverem-se e existirem (e não o<br />

contrário, como o detetive clássico). Não há a formulação do mistério, só uma inquietação<br />

gera<strong>da</strong> pelo corpo morto, ou pelo desaparecimento de alguém. Estas inquietações são<br />

geradoras de narrativas nas quais é soberano o estado do enigma.<br />

O detetive, então, como esses personagens de Bernardo Carvalho, pode ser pensado<br />

como uma espécie de anti-Ulisses. Não só não volta para casa, como o seu percurso sempre<br />

aponta para fora, para a inquietação, para a pergunta, mesmo que essa pergunta não esteja<br />

ain<strong>da</strong> formula<strong>da</strong>. Segundo Lévinas, "O itinerário <strong>da</strong> filosofia permanece sendo aquele de<br />

Ulisses cuja aventura pelo mundo na<strong>da</strong> mais foi que um retorno a sua ilha natal - uma<br />

complacência no Mesmo, um desconhecimento do Outro" (1993, p. 50). Extrapolando a ideia<br />

de Lévinas, o itinerário do detetive seria o oposto, portanto, ao <strong>da</strong> filosofia (e talvez o mesmo<br />

<strong>da</strong> Antropologia): um estranhamento do Mesmo, uma tentativa de conhecimento do Outro.<br />

Essa busca do Outro, <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira Elei<strong>da</strong>de, como vimos, tem sempre algo de frustrante, de<br />

incompleto, <strong>da</strong>í a insatisfação irremovível do detetive. Mas também por<br />

Desejo do Outro como necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele que não tem mais necessi<strong>da</strong>des,<br />

que se reconhece na necessi<strong>da</strong>de de um Outro que é outrem, que não é nem<br />

meu inimigo (como em Hobbes e Hegel), nem meu complemento, como<br />

ain<strong>da</strong> o é na Republica de Platão, que é constituí<strong>da</strong> porque faltaria alguma<br />

coisa à subsistência de ca<strong>da</strong> individuo. O desejo do Outro - a sociabili<strong>da</strong>de -<br />

nasce num ser que não carece de na<strong>da</strong> ou, mais exatamente, nasce para além<br />

de tudo o que lhe pode faltar ou satisfazê-lo. (LÉVINAS, 1993, p. 56)<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Ou seja, a busca do Outro não vem de uma necessi<strong>da</strong>de, mas de um desejo. Está além<br />

<strong>da</strong> satisfação e, se posso completar Lévinas, se alimenta <strong>da</strong> insatisfação. É, como ele próprio<br />

diz, um itinerário. O outro não é inimigo, nem complemento, é um desejo <strong>da</strong>quele para quem<br />

não falta na<strong>da</strong>. É uma busca incessante para um além de si.<br />

A figura do detetive modelar, assim, é aquele que caminha sozinho na noite escura,<br />

narrando os próprios passos, tentando descobrir para onde vai. Tentando perder-se, sentado no<br />

seu escritório, ou no seu apartamento, esperando o próximo enigma que vai retirá-lo dele<br />

mesmo.<br />

De muitas formas, portanto, a literatura policial, como gênero, se parece com o<br />

gênero dissertação. Para nós, pesquisadores, afirmarmos nosso compromisso com a ver<strong>da</strong>de,<br />

para sermos dignos do nosso juramento, para sermos dignos de nossa autori<strong>da</strong>de como<br />

especialistas em algum tema (e professores, membros de bancas de defesa, orientadores, etc),<br />

temos de estar sempre dispostos a sacrificar nosso próprio lugar de autori<strong>da</strong>de, de nos<br />

retirarmos dele. Para podermos ver<strong>da</strong>deiramente servir à ver<strong>da</strong>de, sempre temos que poder<br />

estar errados. O espaço do sacerdote é sempre vulnerável. Faz parte do nosso ofício convi<strong>da</strong>r<br />

à refutação e ser cicerones do fracasso. Em outras palavras, para continuar com o paralelo do<br />

detetive, temos sempre que poder ser também o criminoso, tanto no sentido figurado, como<br />

também, de alguma forma, no sentido literal. Se vamos atrás <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, talvez não<br />

cumpriremos os prazos. Talvez não entregaremos à agência financiadora o que tínhamos<br />

prometido no projeto. Talvez não estaremos à altura do nosso próprio título. Talvez, em suma,<br />

nunca voltaremos para casa.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

AUSTER, Paul. City of Glass. Nova York: Penguin, 1987.<br />

BORGES, Jorge Luis. “O conto policial”. In: Cinco visões pessoais. Brasília: Editora UnB,<br />

1979, pp. 31-40.<br />

CARVALHO, Bernardo. “Eu queria saber o que meus personagens buscam”. Entrevista<br />

concedi<strong>da</strong> a Michel Laub. Revista EntreLivros. São Paulo: Duetto Editorial, ano 2, nº 13, pp.<br />

20-25, mai/2006-a.<br />

______. Mongólia. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2003.<br />

______. Nove Noites. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2006-b.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

CHESTERTON, Gilbert Keith. The Innocence of Father Brown. Disponível em:<br />

. Acesso em: 17 maio 2012.<br />

COHN, Danièle. “The Arts, the Truthful and the Fair”. In: RIBEIRO, Antonio Pinto (ed.).<br />

The Urgency of Theory. Manchester: Carcanet Press, 2008.<br />

DE QUINCEY, Thomas. “On Murder Considered as One of the Fine Arts”. In: Miscellaneous<br />

Essays. Disponível em: . Acesso em: 20 jun.2011.<br />

LÉVINAS, Emmanuel. O humanismo de outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993.<br />

______. La reali<strong>da</strong>d y su sombra. Madri: Editorial Trotta, 2001.<br />

PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo:<br />

Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2004.<br />

SAER, Juan José. A Pesquisa. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1999.<br />

STOCKHAUSEN, Karlheinz. “The demolition of the World Trade Center - Reviews”.<br />

Disponível em: .<br />

Acesso em: 20 maio 2012.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A narrativa policial contemporânea e a insubordinação às regras do gênero: o exemplo de O<br />

perfume<br />

P<strong>IV</strong>A, Paula Cristina (<strong>UNESP</strong>/Araraquara)<br />

RESUMO: O primeiro romance do escritor Patrick Süskind, O perfume, não oferece algo<br />

particularmente novo na ficção policial se considerarmos exclusivamente a superfície do<br />

gênero. Ao examinarmos a profundeza, vemos que a motivação do crime e seu caráter<br />

sobrenatural, aliados à temática do cheiro, transfiguram o romance em uma obra inovadora.<br />

Sua forma também é responsável por essa novi<strong>da</strong>de, ao passo que revisita to<strong>da</strong> uma tradição e<br />

deixa explícita sua apropriação, funde varia<strong>da</strong>s vertentes e, com isso, suscita questionamentos<br />

por parte dos leitores e <strong>da</strong> crítica. Assim como seu protagonista Grenouille, o romance<br />

também possui uma existência anfíbia: transita pelos gêneros antecessores do romance<br />

policial, como a literatura picaresca, o romance gótico, a narrativa fantástica, e também<br />

divaga pelas duas principais correntes do romance policial, o enigma e o negro. A obra de<br />

estreia do autor alemão recontextualiza as regras do romance policial, determina<strong>da</strong>s em sua<br />

maioria pelos próprios autores do gênero. Contudo, eles prescreveram o gênero – não o<br />

descreveram. Em outras palavras, as regras não abarcam os romances contemporâneos. O<br />

gênero policial se a<strong>da</strong>ptou desde sua aparição, se moldou de acordo com a possibili<strong>da</strong>de, sem,<br />

contudo, prejudicar sua estrutura que o caracteriza. O perfume, ao se configurar como<br />

romance policial, faz o mesmo.<br />

PALAVRAS-CHAVE: narrativa policial contemporânea; Patrick Süskind; O perfume.<br />

ABSTRACT: Patrick Süskind’s first novel, Perfume, hasn’t offered anything particularly<br />

new in mystery fiction if we consider exclusively the surface of the gender. When we analyze<br />

its depth, we realize that the motive for the crime, and its supernatural feature, allied to the<br />

theme of smell, transfigures the novel into a groundbreaking work.<br />

The shape is also responsible for the novelty, whereas the novel recalls a whole tradition and<br />

makes explicit its appropriation, mixes different strands, and therefore raises questions both<br />

from readers and critics. Just as the protagonist Grenouille, the novel also has an amphibious<br />

existence: moves by predecessor genders of police fiction, such as the picaresque literature,<br />

the gothic novel, the fantastic narrative and wanders through two main streams: the detective<br />

stories and the roman noir. The starting work of the German writer recontextualizes the<br />

mystery novel rules, mostly determined by the authors of the gender. However, they<br />

prescribed the genre – and didn’t describe it. In other words, the rules don’t cover<br />

contemporary novels. The police fiction has been a<strong>da</strong>pted since its appearance, and has been<br />

sculpted according to the possibility, without <strong>da</strong>maging the structure that characterizes it.<br />

Perfume, set as a police fiction novel, does the same.<br />

KEYWORDS: contemporary police fiction; Patrick Süskind; Perfume.<br />

Das Parfum. Die Geschichte eines Mörders, o primeiro trabalho de prosa de ficção<br />

de Patrick Süskind (1949-), foi publicado em série no Frankfurter Allgemeine Zeitung no<br />

outono de 1984, e, na primavera de 1985, em forma de livro. O perfume rapi<strong>da</strong>mente se<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

tornou best seller e permaneceu na lista do Der Spiegel por mais de dez anos e nunca mais<br />

deixou de ser reeditado desde então, totalizando 4 milhões de exemplares vendidos na<br />

Alemanha, seu país de origem, e 15 milhões em países estrangeiros, tendo sido traduzido em<br />

42 línguas.<br />

O romance, até pouco tempo considerado ina<strong>da</strong>ptável para a linguagem<br />

cinematográfica, por tratar de um sentido que o cinema não pode reproduzir, o olfato, foi<br />

transformado em filme pelo diretor alemão Tom Tykwer, em 2006. Todos os cineastas que<br />

estiveram anteriormente ligados ao projeto, como Tim Burton, Kubrick, Scorsese, julgaram<br />

que ele era infilmável. Como o autor relutou bastante tempo para vender os direitos autorais e<br />

só aceitou em 2001 por 10 milhões de euros, o filme tornou-se um dos mais caros já feitos na<br />

Alemanha, com um orçamento de 50 milhões.<br />

O perfume foi considerado um dos mais importantes romances <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 80 do<br />

século passado e quando ain<strong>da</strong> não haviam se esgotado os elogios, assomou-se um informe,<br />

sério e documentado, publicado no diário mexicano La Jorna<strong>da</strong>, denunciando que a obra era,<br />

na reali<strong>da</strong>de, um plágio.<br />

De acordo com o periódico, em 1983 Süskind trabalhava para a editora suíça<br />

Diogenes selecionando materiais dignos de serem publicados e assim chegou a suas mãos um<br />

relato chamado Le miasme et la jonquille, de Alain Corbin, publicado na França no ano<br />

anterior. O periódico assinalou que Süskind, na quali<strong>da</strong>de de assessor editorial, escreveu um<br />

parecer negativo desaconselhando a tradução alemã, e que dois anos mais tarde aparecia O<br />

perfume.<br />

Numa entrevista, Corbin disse: “Se esse livro teve tanta repercussão, é – eu não me<br />

iludo – por causa do romance de Patrick Süskind, O perfume. Süskind inspirou-se no meu<br />

livro [Saberes e odores, título <strong>da</strong> tradução brasileira de Le miasme et la jonquille] para<br />

escrever seu romance”. O atípico historiador, cuja originali<strong>da</strong>de se manifesta pela escolha de<br />

objetos de estudos inusitados (a história do olfato, <strong>da</strong> miséria sexual masculina, <strong>da</strong> paisagem<br />

sonora), prossegue na reflexão:<br />

Parece-me que eu mostrei que “o imaginário social” – é o subtítulo do livro<br />

–, isto é, as maneiras pelas quais se representa o outro, deve muito à olfação.<br />

[...] As elites esforçam-se em desodorizar, em não deixar a perspiração, isto<br />

é, o odor do eu, transparecer – era o assunto de Süskind. [...] Esse processo<br />

de distinção social pela desodorização me pareceu essencial para entender a<br />

socie<strong>da</strong>de do século XIX. (CORBIN, 2005, p. 18)<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Essa tentativa de desodorização é manifesta<strong>da</strong>, por exemplo, no romance Germinal<br />

de Émile Zola (1895) e em Quincas Borba de Machado de <strong>Assis</strong> (1891). No primeiro, a<br />

mulher do grande patrão quer abrir as janelas depois <strong>da</strong> visita de uma delegação de operários<br />

para esvaziar a sala dos odores <strong>da</strong> classe operária. No segundo, o cui<strong>da</strong>do <strong>da</strong> personagem<br />

Cristiano Palha com sua aparência é descrito com detalhes: ele ensaboa e esfrega o rosto, lava<br />

o colo e a cabeça em uma fina bacia de prata para depois enxugar-se, escovar-se e perfumarse<br />

(MARIUZZO, 2007).<br />

A história de O perfume transcorre numa época em que “reinava nas ci<strong>da</strong>des um<br />

fedor dificilmente concebível por nós, hoje”. Assim como Edgar Allan Poe na “trilogia<br />

Dupin” (expressão inventa<strong>da</strong> pelo poeta Baudelaire para designar os únicos três contos em<br />

que o detetive aparece), Patrick Süskind também escolheu Paris para emoldurar a obra em<br />

pauta.<br />

Em Paris vivia mais gente do que em qualquer outra ci<strong>da</strong>de do mundo.<br />

Seiscentas, setecentas mil pessoas moravam em Paris. As ruas e praças<br />

pululavam de gente, e as casas eram atopeta<strong>da</strong>s, do porão até o telhado. Não<br />

havia um canto em Paris que não estivesse cheio de gente, nenhuma pedra,<br />

nenhum pe<strong>da</strong>cinho de terra que não cheirasse a coisa humana. (SÜSKIND,<br />

2008, p. 103-104)<br />

Em Paris nasce então o maior perfumista de todos os tempos e o narrador explica que<br />

“o seu nome caiu hoje no esquecimento [...] porque o seu gênio e a sua única ambição se<br />

concentravam numa área que não deixa rastros na história: o fugaz reino dos perfumes”<br />

(SÜSKIND, 2008, p. 11). A ci<strong>da</strong>de de Paris era carrega<strong>da</strong> de odores, no entanto, Grenouille<br />

não tinha odor algum, o que caracteriza uma oposição em relação ao espaço que o rodeia:<br />

Dos seus dedos não cheirou na<strong>da</strong>. Virou a mão para o outro lado e farejou a<br />

palma. Sentiu o calor <strong>da</strong> mão, mas não cheirou na<strong>da</strong>. Arregaçou então as<br />

puí<strong>da</strong>s mangas <strong>da</strong> camisa, enterrou o nariz na dobra do cotovelo. Sabia que<br />

este era o lugar em que todos os homens se cheiram. Ele, no entanto, na<strong>da</strong><br />

cheirou. Também não cheirou na<strong>da</strong> na axila, nos pés, nem no sexo, em cuja<br />

direção se curvou tanto quanto possível. Era grotesco: ele, Grenouille, capaz<br />

de farejar qualquer outro ser humano a milhas de distância, não era capaz de<br />

cheirar o seu próprio sexo, a menos de um palmo! (SÜSKIND, 2008, p. 119-<br />

120)<br />

O protagonista era inodoro, contudo tinha o sentido do olfato apuradíssimo, que lhe<br />

permitia decifrar todos os cheiros do mundo. O desejo do perfumista de imitar todos os<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

aromas existentes fica em paralelo com as amplas apropriações que o autor faz de textos já<br />

existentes, e o método pelo qual Grenouille se utiliza levanta as mesmas questões, estéticas e<br />

éticas, que são feitas ao método de Süskind ao criar seu romance. Segundo Judith Ryan (1990,<br />

p. 397), O perfume nos força a rever a concepção de como um texto funciona, tanto em<br />

relação a outros textos como também em relação a seus próprios mecanismos internos.<br />

A extraordinária alusivi<strong>da</strong>de de O perfume foi reconheci<strong>da</strong> por um grande número de<br />

críticos desde sua aparição; menos óbvio, porém, foi o fato de suas referências intertextuais<br />

estarem centra<strong>da</strong>s principalmente em dois períodos literários: o Romantismo e o Simbolismo.<br />

Considerando que as partes iniciais do romance baseiam-se amplamente em subtextos de<br />

poemas simbolistas franceses – como “Le Flacon” e “Parfum Exotique” de Baudelaire – ou<br />

em autores alemães <strong>da</strong> vira<strong>da</strong> do século – “Der Alchimist” de Rilke – a influência romântica<br />

torna-se mais aparente quando Grenouille escala o topo de sua montanha isola<strong>da</strong> (RYAN,<br />

1990, p. 399).<br />

Como disse Umberto Eco (1985, p. 66), “um título, infelizmente, é uma chave<br />

interpretativa” e sabemos que é a história de um assassino que será conta<strong>da</strong> em O perfume,<br />

denuncia<strong>da</strong> pelo subtítulo no idioma original. Isso não representa, no entanto, ausência de<br />

suspense. Pelo fato de ter sido publicado em série, assim como tantos autores de romances<br />

policiais fizeram, o modo como Grenouille faria suas vítimas continuava a ser intrigante para<br />

o leitor que deveria esperar um outro dia para ler a continuação <strong>da</strong> história. Inclusive, além de<br />

saber se o criminoso conseguirá levar a cabo sua ação e se será descoberto, no caso particular<br />

desse romance o mistério também está na busca do leitor em reconhecer tantas referências<br />

literárias forem possíveis. Isso significa que o papel do leitor é alterado. Ao invés de recolher<br />

as pistas de um crime já ocorrido na narrativa, torna-se cúmplice do criminoso,<br />

acompanhando suas ações e seus pensamentos.<br />

Evidente que Süskind não inventou o ramo <strong>da</strong> narrativa policial às avessas. A título<br />

de exemplo, temos um romance, Jumping Jenny (A festa <strong>da</strong> enforca<strong>da</strong>, 1933), de Anthony<br />

Berkeley, em que ocorre o crime somente no capítulo quatro, cujo homicídio é descrito com<br />

to<strong>da</strong>s as minúcias e desde logo se sabe quem é o criminoso. Autores como Austin Freeman,<br />

Roy Vickers e Francis Iles, transpondo as normas, iniciaram seus relatos contando quem era o<br />

criminoso. Essa quebra <strong>da</strong> norma, no entanto, não afeta a estrutura mas a posição do leitor<br />

com respeito a ela. Com a “inversão”, técnica que esses autores introduziram, a sequência<br />

básica continua, posto que o que o leitor sabe é desconhecido pelo detetive. Ain<strong>da</strong> no caso em<br />

que o detetive conhece o culpado, a estrutura ain<strong>da</strong> se mantém, já que a investigação deve<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

continuar para que se encontre a prova que demonstrará explicitamente a culpabili<strong>da</strong>de<br />

(CEREZO, 2006, p. 108).<br />

Flávio Kothe (1994, p. 130) identifica um “efeito de retar<strong>da</strong>mento” em to<strong>da</strong> história<br />

policial, que se constitui em artimanhas do autor “para impedir que o crime, contado no<br />

início, seja logo decifrado”. Importante notar que quando Grenouille inicia a série de<br />

assassinatos já se passaram mais de dois terços <strong>da</strong> obra. Então, se em O perfume o mistério<br />

está em saber se o assassino terá êxito, esse retar<strong>da</strong>mento se realiza na medi<strong>da</strong> em que o leitor<br />

segue passo a passo o protagonista “afiando suas armas, limando suas técnicas, aperfeiçoando<br />

os seus métodos” (SÜSKIND, 2008, p. 160). Também por esse motivo, consideramos que O<br />

perfume é uma vertente do romance policial no qual os crimes e, por conseguinte, a<br />

investigação importam menos do que a experiência e a elaboração <strong>da</strong> técnica.<br />

A crítica literária não costumava aceitar nos seus domínios o romance policial e, de<br />

acordo com Álvaro Lins, em um ensaio <strong>da</strong>tado de 1953, não há propriamente injustiça nessa<br />

exclusão, pois o romance policial não é literatura no conceito estético desta palavra. Mais<br />

adiante explica melhor:<br />

O certo é que a ficção do romance policial e a ficção do romance literário<br />

são reali<strong>da</strong>des diversas. Não se julgue, porém, que o romance policial seja<br />

uma degra<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> literatura, como a história romancea<strong>da</strong> em face <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>deira história, ou seja, uma desprezível subliteratura. Ele tem a sua<br />

existência autônoma, com a sua técnica, com os seus processos, com as suas<br />

regras próprias. Recursos que no romance literário seriam erros ou golpes<br />

falhados são nele instrumentos legítimos e adequados de realização. (LINS,<br />

1953, p. 11)<br />

To<strong>da</strong>s as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de romance policial pressupõem a obediência a certas normas,<br />

porém, “alguns dos mais proeminentes autores de ficção policial <strong>da</strong> Inglaterra e dos EUA<br />

chegaram ao ponto de criar regras estritas, rígi<strong>da</strong>s, que eles mesmos deviam seguir em sua<br />

produção literária” (PONTES, 2007, p. 33).<br />

Em 1928, o escritor Willard Huntington Wright, mais conhecido pelo seu<br />

pseudônimo S. S. Van Dine, publicou vinte regras (“Twenty rules for writing detective<br />

stories”) para se escrever um bom romance policial, no entanto o próprio romancista as<br />

infringiu uma série de vezes.<br />

Tzvetan Todorov (2006, p. 100-101), ao propor sua tipologia do romance policial, se<br />

detém nas menciona<strong>da</strong>s regras de Van Dine, julgando-as redun<strong>da</strong>ntes, e assim acredita ser<br />

possível resumi-las em oito pontos seguintes:<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

1) O romance deve ter no máximo um detetive e um culpado, e no mínimo uma<br />

vítima (um cadáver).<br />

2) O culpado não deve ser um criminoso profissional; não deve ser o detetive; deve<br />

matar por razões pessoais.<br />

3) O amor não tem lugar no romance policial.<br />

4) O culpado deve gozar de certa importância:<br />

a) na vi<strong>da</strong>: não ser um empregado ou uma camareira;<br />

b) no livro: ser uma <strong>da</strong>s personagens principais.<br />

5) Tudo deve explicar-se de modo racional; o fantástico não é admitido.<br />

6) Não há lugar para descrições nem para análises psicológicas.<br />

7) É preciso conformar-se à seguinte homologia, quanto às informações sobre a<br />

história: “autor:leitor = culpado:detetive”.<br />

8) É preciso evitar as situações e as soluções banais.<br />

Raymond Chandler, outro escritor de romance policial que se deteve também<br />

teoricamente sobre o gênero, refletiu mais sobre a essência que sobre suas características<br />

formais. Lacassin (apud BOILEAU;NARCEJAC, 1991, p. 62) extrai nove proposições de<br />

dois textos importantes de Chandler e assim formula:<br />

1) A situação original e o desfecho devem ter motivos plausíveis.<br />

2) Os erros técnicos sobre os métodos do assassinato ou <strong>da</strong> investigação não são mais<br />

admissíveis.<br />

3) Personagens, ambiências e atmosfera devem ser realistas.<br />

4) A intriga deve ser soli<strong>da</strong>mente escrita e ter um interesse enquanto história.<br />

5) A estrutura deve ser bastante simples para que a explicação final seja a mais breve<br />

possível e acessível a todos.<br />

6) A solução deve parecer inevitável, possível e não trunca<strong>da</strong>.<br />

7) É preciso escolher entre duas óticas inconciliáveis: história de enigma ou aventura<br />

violenta.<br />

8) O criminoso sempre deve ser punido; não forçosamente por um tribunal.<br />

9) É preciso ser honesto com relação ao leitor e não lhe ocultar nenhum <strong>da</strong>do.<br />

Na Inglaterra, onde o romance policial prosperou mais do que em outros países, há<br />

um clube de detetives, o British Detection Club, “o Parnaso dos escritores ingleses de<br />

mistério. Sua lista de associados inclui praticamente todos os escritores importantes <strong>da</strong> ficção<br />

detetivesca desde Conan Doyle” (CHANDLER, 1997, p. 405). Na época de sua fun<strong>da</strong>ção,<br />

279


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

1930, todos os membros eram obrigados a fazer um juramento de seguir normas rígi<strong>da</strong>s para<br />

construir suas histórias policiais, embora nem todos as tivessem seguido.<br />

Uma <strong>da</strong>s razões alega<strong>da</strong>s pelos críticos para rotular livros policiais como leitura de<br />

entretenimento seria o fato de o romance estar engessado nessas regras e fórmulas préestabeleci<strong>da</strong>s.<br />

Seria uma explicação, na opinião de Denise Góes (2005, p. 33), se isso se<br />

aplicasse apenas aos clássicos. “Contudo, hoje, a busca de uma linguagem mais elabora<strong>da</strong>,<br />

acrescentando novos elementos, às vezes históricos, outras vezes políticos, e até tentando<br />

trabalhar mais os sentimentos <strong>da</strong>s personagens, enfraquece esse argumento”.<br />

Segundo as regras de Van Dine, o fantástico não deve ser admitido na ficção policial,<br />

sobretudo na investigação, que deve se pautar pelo racional. Entretanto, em O perfume o<br />

caráter sobrenatural está presente nas feições do criminoso, mas essa presença não acarreta, de<br />

modo algum, uma composição romanesca inferior. Pois o processo de investigação do<br />

detetive manteve-se no limite <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de, e o sobrenatural não agiu como uma solução<br />

fácil, ao contrário, dificultou ain<strong>da</strong> mais a captura do assassino.<br />

Aquele que assume o papel de detetive, Richis, embora tenha sido despertado para a<br />

investigação por causa de uma premonição, descarta qualquer possível interpretação<br />

sobrenatural dos crimes e por isso falha. Era impossível fugir do assassino, detentor de um<br />

olfato sobre-humano que possibilitava seguir o aroma de suas vítimas aonde quer que fossem,<br />

além <strong>da</strong> sua falta de cheiro que, como uma capa de invisibili<strong>da</strong>de, proporcionava cometer os<br />

crimes sem ser visto.<br />

Algumas <strong>da</strong>s melhores narrativas policiais são aquelas que se filiam com pouca<br />

leal<strong>da</strong>de ao gênero ou então o subvertem. Justamente pela necessi<strong>da</strong>de que tem o gênero de<br />

surpreender, as regras têm sido sistematicamente ignora<strong>da</strong>s e transgredi<strong>da</strong>s – contrariando o<br />

que postulava Todorov. Segundo o linguista búlgaro, “a obra-prima <strong>da</strong> literatura de massa é<br />

precisamente o livro que melhor se inscreve no seu gênero. [...] O romance policial por<br />

excelência não é aquele que transgride as regras do gênero, mas o que a elas se a<strong>da</strong>pta”<br />

(TODOROV, 2006, p. 94).<br />

O gênero policial tem se a<strong>da</strong>ptado, ao longo de sua evolução, até atingir sua forma<br />

mais atual, o seriado televisivo. Este na<strong>da</strong> mais é do que a versão audiovisual do folhetim<br />

onde o gênero começou a ser publicado. E, tal qual o romance, o seriado também recorre à<br />

tática de ajustar-se para garantir sua longevi<strong>da</strong>de. Os seriados contêm uma fórmula bem<br />

sucedi<strong>da</strong> que os permitem alcançar dezenas de tempora<strong>da</strong>s. Sempre começando com um<br />

corpo que, no final do episódio, delata o culpado.<br />

280


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O telespectador fica envolvido nas minúcias <strong>da</strong> investigação, composta de análise<br />

balística, um imenso banco de <strong>da</strong>dos de impressões digitais, reagente e análise de padrão de<br />

sangue, quimiluminescência por meio de luminol, exame de DNA, entre outras técnicas. Em<br />

sua maioria, não existiam no tempo de Sherlock Holmes, mas satisfazem a exigência do leitor<br />

que se cansou de soluções força<strong>da</strong>s usa<strong>da</strong>s na tentativa de surpreendê-lo e que se convertiam<br />

em inverossimilhança, devido ao excesso de engenhosi<strong>da</strong>de.<br />

Acima de tudo é importante perceber que a narrativa policial está mu<strong>da</strong>ndo, e não se<br />

preocupar em julgar quem escreve melhor. “Todorov vincula o romance policial à cultura de<br />

massa pelas suas características formais. Porém, será ele mesmo que, preocupado com as<br />

‘estruturas narrativas’, fornecerá as linhas básicas para o estudo <strong>da</strong> narrativa policial”<br />

(KHÉDE, 1987, p. 47). O perfume, ao se configurar como romance policial, não altera a<br />

forma do gênero, apenas o amplia, possibilitando que outros romances sejam também vistos<br />

como romances policiais, bons romances policiais.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BOILEAU, Pierre; NARCEJAC, Thomas. O romance policial. Trad. Valter Kehdi. São<br />

Paulo: Ática, 1991 (Fun<strong>da</strong>mentos, 86).<br />

CEREZO, Iván Martín. Poética del relato policiaco (de Edgar Allan Poe a Raymond<br />

Chandler). Murcia: Universi<strong>da</strong>d de Murcia, 2006.<br />

CHANDLER, Raymond. A simples arte de matar. Um ensaio. Trad. Beatriz Viegas Faria.<br />

Porto Alegre: L&PM, 1997.<br />

CORBIN, Alain. O prazer do historiador. Entrevista concedi<strong>da</strong> a Laurent Vi<strong>da</strong>l. Trad.<br />

Christian Pierre Kasper. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 25, n. 49, 2005.<br />

Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2009.<br />

ECO, Umberto. Pós-escrito a O nome <strong>da</strong> rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.<br />

GÓES, Denise. O sucesso, sem mistério, do romance policial (Dossiê). Entrelivros, ano I, n.<br />

6, out 2005.<br />

KHÉDE, Sônia Salomão. A quem interessa o crime Ou: O romance policial à procura de sua<br />

identi<strong>da</strong>de. In: ZILBERMAN, Regina (Org). Os preferidos do público: Os gêneros <strong>da</strong><br />

literatura de massa. Petrópolis: Vozes, 1987 (Debates Culturais, 4).<br />

KOTHE, Flávio. A narrativa trivial. Brasília: Editora <strong>da</strong> UnB, 1994.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

LINS, Álvaro. No mundo do romance policial. Rio de Janeiro: Ministério <strong>da</strong> Educação e<br />

Cultura (MEC); Serviço de Documentação, 1953.<br />

MARIUZZO, Patrícia. O sonho de um mundo sem cheiros ruins. Com Ciência – Revista<br />

eletrônica de jornalismo científico – Perfume, n. 91, set. 2007. Disponível em:<br />

. Acesso em:<br />

12<br />

jun. 2009.<br />

PONTES, Mario. Elementares: notas sobre a história <strong>da</strong> literatura policial. Rio de Janeiro:<br />

Odisseia Editorial, 2007.<br />

RYAN, Judith. The Problem of Pastiche: Patrick Süskind’s Das Parfum. German Quarterly,<br />

vol. 63, n. 3/4, 1990, p. 396-403.<br />

SÜSKIND, Patrick. O perfume. Trad. Flavio R. Kothe. 28. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.<br />

TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: As estruturas narrativas. Trad.<br />

Leyla Perrone Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2006 (Debates, 14).<br />

282


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Akutagawa Ryûnosuke. “Dentro <strong>da</strong> floresta”: A culpa foi <strong>da</strong> brisa<br />

PORTO, Teresa Augusta Marques (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Akutagawa Ryûnosuke (1892-1927), célebre escritor japonês, essencialmente<br />

contista, tem sua criação literária marca<strong>da</strong> em termos temáticos pelo ancestral dilema moral<br />

que angustia a humani<strong>da</strong>de, quando premi<strong>da</strong> por ambições e precarie<strong>da</strong>des: respeitar a posse<br />

alheia ou aviltar o próprio desejo Roubar para sobreviver ou perecer de fome Mentir para<br />

proteger-se <strong>da</strong> lei e do escárnio público ou imolar-se diante do comissário de polícia<br />

Estudioso do chinês, do inglês, influenciado pela literatura estrangeira que desde 1868 o<br />

Japão, após duzentos anos de recolhimento nacional, recebe com a Restauração Imperial<br />

Meiji, Akutagawa também voltou-se para as narrativas tradicionais japonesas, recontando-as e<br />

ampliando-as, perscrutando em seus personagens razões labirínticas para os ilícitos e os<br />

conflitos. No conto “Dentro <strong>da</strong> floresta”, ou “Dentro do bosque” (original “Yabu-no naka”),<br />

de 1922, Akutagawa transforma em conto psicológico-policial uma breve narrativa japonesa,<br />

compila<strong>da</strong> em período medieval, pouco mais que descritiva, aprofun<strong>da</strong>ndo suas entrelinhas,<br />

introduzindo a multiplici<strong>da</strong>de de foco narrativo que dispersa e relativiza a autoria de um<br />

assassinato. A chave do mistério torna-se escorregadia como a espa<strong>da</strong> que, na narrativa dos<br />

tempos passados despertou desejo de posse e abriu caminho para o perigo; é também faiscante<br />

e enganadora como um punhal que desaparece (no bosque) para a perplexi<strong>da</strong>de ou distração<br />

dos “jurados” e que cravará seu gume provocativo no cerne <strong>da</strong> “ver<strong>da</strong>de” oficial e <strong>da</strong>s<br />

evidências, que ca<strong>da</strong> vez menos apontarão para um culpado.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Japonesa; foco narrativo; narrativa psicológica; narrativa<br />

policial; literatura do período Taishô (1912-1926).<br />

ABSTRACT: Ryunosuke Akutagawa (1892-1927), famous Japanese writer, in essence author<br />

of short stories, has his literary creation marked by an ancient moral doubt which anguishes<br />

mankind, when touched by precariousness and ambitions: respect the possession of others or<br />

demeaning own desire Steal or starve Lying to protect themselves from law and public<br />

scorn or immolate themselves before the police commissioner He studied Chinese and<br />

English and had been influenced by foreign literature since 1868 when Japan, after two<br />

hundred years of national isolation, receives with the Imperial Meiji Restoration, Akutagawa<br />

also turned to the traditional Japanese stories, retelling them and expanding them, peering into<br />

their characters labyrinthine reasons for illicit and conflict. In the short story "In the Forest"<br />

(original japanese "Yabu no naka"), 1922, Akutagawa story turns into a psychological police<br />

story a brief Japanese narrative (compiled in the medieval period), little more than descriptive,<br />

deepening the implied meanings, introducing a multitude of narrative focus that disperses and<br />

relativize the authorship of murder. The key to the mystery becomes slippery as the sword,<br />

which in the narrative of the past awakened desire for possession and opened the way to<br />

<strong>da</strong>nger; it is also misleading and sparkling like a <strong>da</strong>gger which disappears (in the woods)<br />

confusion or distraction for the "jurors" and plunged his provocative edge at the heart of<br />

official truth and evidence, that hardly will point to a culprit.<br />

KEYWORDS: Japanese literature; narrative focuses; psychological narrative; detective<br />

fiction; Taishô literature (1912-1926).<br />

283


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Os contos de Akutagawa Ryûnosuke (1892-1927), ou Akutagawa “Filho do Dragão”,<br />

começam a ser publicados entre 1914 e 1916 nos terceiros e quartos números <strong>da</strong> revista<br />

literária “Shinshichô”, ou “Tendências do Novo Pensamento”, colocando-se em oposição ao<br />

movimento naturalista, no Japão “shizenshûgi”, em que o escrito autobiográfico, ”o<br />

“shishôsetsu”, ou “watakushishôsetsu”, o “romance do eu” (NAGAE, 2009); ou “escritura do<br />

eu” – e aqui “shôsetsu” poderia também englobar o conto – legitimaria a narração literária.<br />

Akutagawa sofre influência <strong>da</strong> literatura ocidental, propicia<strong>da</strong> pela abertura do Japão em 1868<br />

depois de duzentos anos de isolamento, em especial a dos norte-americanos Edgar Allan Poe<br />

(1809-1849), de cunho fantástico e considera<strong>da</strong>s precursoras ou fun<strong>da</strong>doras <strong>da</strong> narrativa<br />

policial ocidental; e a satírica, de terror e de fantasmas de Ambrose Gwinnett Bierce (1842-<br />

1913).<br />

Akutagawa pesquisou a literatura inglesa, assim como muitos outros escritores<br />

japoneses então o fizeram e, ao lado de valorizar fortemente a tradição japonesa, mostrou-se<br />

também aberto a associar determinados estados de espírito do povo japonês aos estados de<br />

espírito característicos de movimentos literários europeus, como a melancolia no cenário do<br />

romantismo. De formação clássica, lia chinês e inglês.<br />

Considerado o mais expressivo escritor do período Taishô (1912-1926), Akutagawa,<br />

de família de Tóquio, região em que se cultiva marca<strong>da</strong>mente a cultura tradicional japonesa,<br />

valorizou em sua literatura o passado nacional, através <strong>da</strong> retoma<strong>da</strong> de narrativas setsuwa,<br />

relatos curtos <strong>da</strong> tradição oral compilados a partir do final do período Heian, no século XII.<br />

A criação literária de Akutagawa, que floresce em especial na déca<strong>da</strong> 1917-1927,<br />

compõe-se, segundo informa Kato (1983), de contos, ensaios, aforismos ou peças um pouco<br />

mais longas do que aforismos. Seu suicídio, ocorrido em 1927, é considerado um marco<br />

simbólico para o final do período Taishô, cujo início fora marcado pelo suicídio do General<br />

Nogi em 1912, em louvor pela morte do Imperador, e que na ficção inspira o suicídio do<br />

personagem-protagonista do romance Kokoro, Coração, de Natsume Sôseki, conforme<br />

Cor<strong>da</strong>ro (2008). Akutagawa participa de reuniões literárias com Sôseki (1867-1916), que o<br />

estimula e influencia no conto “Hana”, “Nariz”, de 1916, que também advém de uma<br />

narrativa setsuwa que ridiculariza um monge budista de nariz surpreendentemente comprido:<br />

“Sobre o nariz do monge palaciano Zenchi, de Ikenoo”, narrativa 20 do Tomo XXVIII <strong>da</strong><br />

antologia literária (de compilações) do século XII Konjaku Monogatarishû, ou “Narrativas de<br />

hoje e antigamente” (YOSHIDA, 1994, p.70).<br />

284


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O conto “Dentro <strong>da</strong> floresta” (CORDARO e OTA, 2008), também traduzido como<br />

“Dentro do bosque” (NOJIRI, s/d) é uma retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong> narrativa setsuwa “Sobre o homem que<br />

vai à província de Tanba levando a esposa e é amarrado a uma árvore na montanha Ôe”,<br />

número 23 do Tomo XXIX do Konjaku Monogatarishû.<br />

Nessa narrativa original, vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> tradição oral, um homem viaja plácido com a<br />

esposa; ele vai a pé, munido de arco e flechas, ela, ao lado, a cavalo. Perto de uma floresta<br />

encontram um simpático viajante, que propõe uma barganha: uma espa<strong>da</strong> reluzente, que<br />

enche os olhos do homem de entusiasmo e cobiça, pelo seu arco e algumas flechas. Ao<br />

entrarem na floresta, inespera<strong>da</strong>mente o viajante ataca-o, revelando-se um vil salteador,<br />

amarrando-o e estuprando sua mulher. A narrativa tem um fecho moral de reprimen<strong>da</strong> por<br />

parte <strong>da</strong> mulher em relação à ingenui<strong>da</strong>de ou cobiça do esposo, que, por ter ficado fascinado<br />

pela espa<strong>da</strong> alheia, não a teria protegido como devia. Nessa narrativa original não há<br />

assassinato.<br />

No conto de Akutagawa “Dentro <strong>da</strong> floresta”, a discussão moral continua sendo o<br />

cerne <strong>da</strong> narrativa, agora amplia<strong>da</strong> psicologicamente pela multiplici<strong>da</strong>de de foco narrativo.<br />

Diferentes depoimentos ao comissário de polícia serão oferecidos: pela sogra do morto, por<br />

prováveis envolvidos, por meros transeuntes e pelo próprio morto em comunicação<br />

mediúnica. Quem teria matado o jovem viajante, agora no conto nomeado Kanazawa-no<br />

Takehiro, e por que razão Isso importaria menos do que saborear a multidão de motivos<br />

psicológicos que ca<strong>da</strong> personagem parece abrigar; e, nesse sentido, a investigação “policial”<br />

cruza indícios com o olhar perscrutador do psiquismo humano para sugerir labirintos em que<br />

os personagens são jogados por suas paixões e todos podem ser “culpados” e ao mesmo<br />

tempo inocentes e vítimas. Como assinala Cabezas (1990), Akutagawa é um esteta e um<br />

filósofo, a quem interessa inquietar e em cuja narrativa as conclusões não são fun<strong>da</strong>mentais.<br />

Lançar dúvi<strong>da</strong>s parece ser o escopo do autor. Akutagawa usa a lupa e o binóculo para<br />

perseguir nos personagens de “Dentro <strong>da</strong> floresta” vestígios de varia<strong>da</strong>s motivações e<br />

prováveis inclinações para o crime, chegando a parecer inverossímil existir um único<br />

responsável em um cenário de tanta autoria “socializa<strong>da</strong>” e deseja<strong>da</strong>, uma vez que ca<strong>da</strong> um<br />

confessa e solicita para si a autoria do assassinato.<br />

Para a mãe <strong>da</strong> mulher violenta<strong>da</strong>, o falecido genro era um homem gentil e sua filha<br />

Masago nunca o teria traído. Segundo sua descrição, Masago era doce e ao mesmo tempo<br />

dona de personali<strong>da</strong>de forte como a de um homem. Justamente este traço, talvez inusitado,<br />

teria atraído sentimentalmente o salteador (aqui também nomeado) Tajômaru, despertando<br />

285


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

nele o forte desejo de possuir e até de desposar aquela mulher brava. Mas a motivação ou<br />

culpa do estupro (ou conjunção carnal consenti<strong>da</strong>), segundo depoimento do salteador, teria<br />

sido o inocente sopro <strong>da</strong> brisa, que de repente levantou o véu do chapéu dessa mulher que<br />

caminhava a cavalo, acompanha<strong>da</strong> do marido que seguia a pé, munido de arco e aljava com<br />

flechas impotentes para lutarem contra o vento sereno ou para deterem a força que acordou no<br />

salteador o desejo de posse a qualquer preço: “Pode ter sido por causa <strong>da</strong> brevi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> visão<br />

[...]. Foi naquele instante que decidi possuí-la, mesmo que tivesse de matar-lhe o marido.”<br />

(CORDARO e OTA, 2008, p.41).<br />

Irônico, debochado e arrogante, o salteador Tajômaru confessa-se culpado do<br />

assassinato de Kanazawa-no Takehiro, relativizando sua culpa e legitimando seu ato, ao<br />

apontar e revi<strong>da</strong>r, em laivos revoltados, a ver<strong>da</strong>deira culpa dos poderosos por seus crimes<br />

oficiais, como posse exagera<strong>da</strong> de dinheiro, desmando, opressão, maus tratos aos menos<br />

favorecidos.<br />

O espírito do homem assassinado falará pela boca de uma xamã. Revelará que,<br />

enlouquecido de ciúme, amarrado e impotente, teria vislumbrado, para seu horror, a beleza<br />

inflama<strong>da</strong> e o infame desejo nos olhos de sua mulher, acesos e realçados pelo assédio do<br />

salteador. Takehiro teria em vão feito sinais com os olhos, tentando alertá-la, para logo<br />

constatar que ela não desejava ser salva. O espírito de Takehiro confessa também que o<br />

próprio bandido teria questionado a conduta <strong>da</strong> mulher, quando esta os teria desafiado para<br />

um duelo sangrento, com cujo vencedor ficaria e, finalmente, tendo instado o bandido a matálo,<br />

o próprio bandido teria abandonado o cenário <strong>da</strong> floresta, assustado com sua levian<strong>da</strong>de.<br />

Takehiro, traído e desiludido, teria cometido o suicídio com um punhal que a mulher deixara<br />

cair ao fugir de seu plano malogrado. Por sua vez, Masago relata que lera algo<br />

insuportavelmente frio e cheio de desprezo no olhar de seu marido; e confessa ao comissário<br />

de polícia tê-lo matado porque não conseguiria sobreviver ao constrangimento de tê-lo tido<br />

como testemunha ocular <strong>da</strong> cena do estupro.<br />

Um monge budista e um lenhador, transeuntes, teriam visto o casal a caminho do<br />

bosque e posteriormente o cadáver de Takehiro; seus depoimentos oferecem um pano de<br />

fundo para reflexões filosóficas sobre a efemeri<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e a desolação do cenário natural<br />

do bosque. O tema budista do desapego (<strong>da</strong>s ambições, dos desejos) transpareceria como<br />

inquietação de Akutagawa, segundo recor<strong>da</strong>m Dykstra e Dykstra (1996). Curiosamente, será<br />

um policial quem levantará no conto o tema <strong>da</strong> questão moral e religiosa do carma – ou efeito<br />

ação-reação de ações meritórias e não meritórias de acordo com o budismo – interpretado<br />

286


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

aqui como castigo divino, que com razão teria derrubado o temido salteador Tajômaru do<br />

cavalo.<br />

Recontando temas de devastação do período Heian (794-1192), Akutagawa volta-se<br />

para suas criaturas, tentando entendê-las, perscrutá-las, interpretá-las, ao mesmo tempo<br />

atualizando a inquietação de seus conflitos. Isto é igualmente claro no conto “Rashômon”, de<br />

1915, também trazido por Akutagawa de uma narrativa setsuwa, “Sobre o ladrão que vê<br />

cadáveres no portal Raseimon” (Yoshi<strong>da</strong>, 1994, p.130), compila<strong>da</strong> nos finais de Heian, e que<br />

foi relido no cinema por Akira Kurasawa em 1950. Sob o Rashômon, célebre pórtico de<br />

entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Quioto no período Heian, os dois contos, “Rashômon” e “Dentro <strong>da</strong><br />

floresta” entrelaçam-se tematicamente e também parecem oferecer cenário para o Japão<br />

interrogar-se a si mesmo após a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial.<br />

O filme mostra um tempo de penúria e desolação, homens encharcados por uma<br />

chuva torrencial conversam sob o Rashômon e comentam um assassinato recente. Qual seria a<br />

<strong>da</strong>ta Heian, Taishô ou Shôwa 25 (1950) Akutagawa, que se despedira do mundo em 1927,<br />

ampliou as narrativas compila<strong>da</strong>s no século XII; Kurosawa, tratando a chaga <strong>da</strong> guerra e do<br />

desvario atômico, alarga o conto e, encarando a imprecisão muitas vezes encontra<strong>da</strong> nas vozes<br />

medievais <strong>da</strong>s narrativas setsuwa, o entrelaçamento de “Rashômon” e “Dentro <strong>da</strong> floresta”,<br />

além de universalizar os temas, também será uma ferramenta dramática para a historicização<br />

dos conflitos. A vi<strong>da</strong> do homem japonês nos anos <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial era de<br />

cerceamento de pensamento, expressão e associação (NAGAE, 2009, p.467). O artista alçará<br />

vôo e no filme “Rashômon” uma saí<strong>da</strong> para a opressão do presente poderá ser extraí<strong>da</strong> do<br />

drama passado.<br />

Na narrativa setsuwa, a Quioto do “Rashômon” do período Heian encontrava-se<br />

despe<strong>da</strong>ça<strong>da</strong> em conseqüência de uma série de calami<strong>da</strong>des recentes como terremotos,<br />

redemoinhos, incêndios, fome (desamparo que também chamará a atenção do escritor recluso<br />

Kamo-no Chômei, do início do período Kamakura, século XIII, na obra Hôjôki). O servo<br />

desempregado que se senta nos degraus, desolado à espera de na<strong>da</strong>, estaria apavorado por<br />

temer o encontro com um demônio, mais do que estar entre cadáveres que ali passaram a ser<br />

colocados (YOSHIDA, 1997, p.67). E haveria <strong>da</strong>nação maior do que o que o espírito do<br />

assassinado recor<strong>da</strong>va em sua escuridão no conto de Akutagawa “Dentro <strong>da</strong> floresta”, a<br />

intenção manifesta <strong>da</strong> mulher de assassiná-lo para estar livre e viver maritalmente com o<br />

ladrão Qual o maior terror dos deser<strong>da</strong>dos em situação de intempéries naturais ou morais<br />

Os seres <strong>da</strong>s sombras ou os amados/contemporâneos subitamente virados do avesso e<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

transformados em inimigos mortais Em “Rashômon” o grilo que está pousado sobre o portal<br />

e cujo simbolismo escapa ao <strong>da</strong> sombra, dos ardis, <strong>da</strong>s traições sugeridos pelos outros<br />

animais, desponta talvez como uma possibili<strong>da</strong>de de harmonia efêmera, que pousa sobre o<br />

cenário e logo abandona o protagonista às intempéries de sua própria consciência: como<br />

sobreviver Morrer de fome ou tornar-se ladrão também, como a idosa que ele presencia estar<br />

arrancando cabelos de um cadáver de mulher para tentar fazer uma peruca e vender Em<br />

“Dentro <strong>da</strong> floresta” quem teria matado Kanazawa-no Takehiro e por que razão Os<br />

depoimentos ao comissariado de polícia parecem mais sugerir que não importa demarcar esta<br />

direção ou esmiuçar pistas, uma vez que as “justificativas” ou “razões” dos depoentes<br />

convi<strong>da</strong>m a se levantar máscaras sociais sob as quais se ocultam motivações psicológicas e<br />

paixões arrebatadoras e de outra forma inconfessas. Sim, isso importa mais. Não se sabe se o<br />

assassinado viu o assassino e se pelo menos desconfiou de suas motivações pre<strong>da</strong>doras.<br />

De acordo com a proposta do narrador-protagonista de Edgar Allan Poe de “O Barril<br />

de Amontillado”, o tratamento do tema <strong>da</strong> culpa e <strong>da</strong> vingança dá-se pela necessária revelação<br />

<strong>da</strong> autoria e impuni<strong>da</strong>de do autor, o que confere um matiz de perversa ironia aos assaltos<br />

criminosos: “Um insulto não é vingado quando alguma espécie de castigo recai sobre aquele<br />

que se vinga” ou “Tampouco é vingado quando o vingador não se dá a conhecer como tal<br />

àquele que lhe fez mal” (POE, 2003, p.162).<br />

No caso de “Dentro <strong>da</strong> floresta”, os vários depoentes ou focos narrativos dispersam a<br />

culpa em depoimentos de “defesa”, “testemunho”, “envolvimento”, sugestões de autoria, atos<br />

falhos. Em “Rashômon”, Akutawa mu<strong>da</strong> o personagem originalmente <strong>da</strong>do como ladrão por<br />

um pobre e perdido samurai dispensado pelo patrão, e também entrelaça <strong>da</strong>dos de uma outra<br />

narrativa do Konjaku Monogatarishû para a caracterização <strong>da</strong> mulher morta e saquea<strong>da</strong> e de<br />

sua serva (XXXI/31), como observa Murakami (1996). Fundindo em sua lente de cineasta os<br />

contos “Rashômon” e “Yabu-no naka” (“Dentro <strong>da</strong> floresta”), Akira Kurosawa aprofun<strong>da</strong>rá<br />

ain<strong>da</strong> mais o tratamento psicológico dos personagens para tentar entender o que se passaria de<br />

fato na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>quele que a orali<strong>da</strong>de tratou como ladrão; e nas vi<strong>da</strong>s dos que podem ter<br />

motivos para enganar, mentir, trapacear, assassinar.<br />

Nos contos de fa<strong>da</strong>, aos quais também as narrativas setsuwa chegam a ser<br />

aproxima<strong>da</strong>s em tratamento teórico, no início do século XX, o narrador, único, onisciente<br />

pode, como assinala Von Franz (2000), aparecer no início e no fim do relato; nas narrativas<br />

setsuwa esse narrador dá o tom ou fecho fatalista (no caso de narrativas laicas) ou moralizante<br />

(no caso <strong>da</strong>s budistas de cunho heroico ou maravilhoso) e o “imawa mukashi” , equivalente ao<br />

288


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

“era uma vez”, ou “ agora é passado” <strong>da</strong> abertura pode fazer com que o leitor se mire no<br />

espelho do presente (“o passado é agora!).<br />

Conforme Ue<strong>da</strong> (1981), Akutagawa, dotado de extremo senso crítico, nunca deixou<br />

de criticar sem pie<strong>da</strong>de o artista dentro de si mesmo, refletindo sobre a ardorosa conten<strong>da</strong><br />

entre vi<strong>da</strong> e arte, através do enfoque de personagens e protagonistas artistas. Seus contos<br />

giram em torno de dilemas morais que podem caracterizar épocas, conforme assinala Cor<strong>da</strong>ro<br />

(2008); e também lançam um fio que costura misérias de to<strong>da</strong>s as épocas, atualizando-as e<br />

eternizando-as.<br />

O escritor e amigo de Akutagawa, Kan Kikuchi (1888-1948), estabeleceu o Prêmio<br />

Akutagawa de Literatura em 1935 que é concedido até hoje a escritores japoneses. O primeiro<br />

prêmio foi concedido ao escritor e jornalista Tatsuzô Ishikawa pelo romance Sôbô, no qual<br />

relata a saga de imigrantes japoneses em lavouras no Brasil, por ele testemunha<strong>da</strong>s ao vivo,<br />

após ter sido profun<strong>da</strong>mente tocado no Japão pela observação <strong>da</strong>s agruras de seu povo em<br />

hospe<strong>da</strong>ria para imigrantes na ci<strong>da</strong>de portuária de Kobe.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

AKUTAGAWA. Rashômon e outros contos. Trad. Ma<strong>da</strong>lena Hashimoto Cor<strong>da</strong>ro e Junko<br />

Ota. São Paulo: Hedra, 2008.<br />

CABEZAS, Antonio. La Literatura Japonesa. Madrid, Hiperión 128, 1990.<br />

DYKSTRA, Yoshiko e Andrew. Kirishitan Stories by Akutagawa Ryûnosuke. Japanese<br />

Religions, Vol. 31 (1): 23-65. Disponível em: .<br />

KATO, Shuichi. A History of Japanese Literature. Vol.3. The Modern Years. Tóquio, Nova<br />

Iorque e San Francisco: Ko<strong>da</strong>nsha International Ltd, 1983.<br />

MURAKAMI, Fuminobu. Ideology and Narrative in Modern Japanese Literature. The<br />

Netherlands: Van Gorcum, 1996, pp.33-49.<br />

NAGAE, Neide Hissae. Os protagonistas <strong>da</strong>s primeiras obras de Takai Tayama e Tôson<br />

Shimazaki. Anais do XX Encontro Nacional de Professores Universitários de Língua,<br />

Literatura e Cultura Japonesa. VII Congresso Internacional de Estudos Japoneses no Brasil.<br />

Para Além do Japão: Brasil, Canadá e França. USP, 2009.<br />

POE, Edgar Allan. A Carta Rouba<strong>da</strong> e outras histórias de crime & mistério. Trad. William<br />

Lagos. Porto Alegre: L&PM, 2011.<br />

289


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Rashômon. Torokko. Japão, Junia Ban Nihongaku, s/d, Vol.6.<br />

MONOGATARISHÛ, Konjaku “Sobre o homem que vai à província de Tanba levando a<br />

esposa e é amarrado a uma árvore na montanha Ôe”. Narrativa 23 do Tomo XXIX do<br />

Konjaku Monogatarishû. Trad. Luiza Nana YOSHIDA. Narrativas Setsuwa de Konjaku<br />

Monogatarishû. A ruptura com o refinamento estético <strong>da</strong>s narrativas clássicas <strong>da</strong> época Heian.<br />

Tese de doutorado. FFLCH-USP, 1994.<br />

UEDA, Makoto. Modern Japanese Writers and The Nature of Literature. Califórnia:<br />

Standford University Press, 1981.<br />

VON FRANZ, Marie-Louise. O Gato. Um conto <strong>da</strong> redenção feminina. Trad. Euclides Luiz<br />

Calloni. São Paulo: Paulus, 2000.<br />

YOSHIDA, Luiza Nana. Histórias Extraordinárias <strong>da</strong>s Narrativas Setsuwa do Século XII.<br />

Revista Estudos Orientais I. DLO/FFLCH/USP-Departamento de Letras Orientais <strong>da</strong><br />

Facul<strong>da</strong>de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo, 1997.<br />

______. Narrativas Setsuwa de Konjaku Monogatarishû. A ruptura com o refinamento<br />

estético <strong>da</strong>s narrativas clássicas <strong>da</strong> época Heian. Tese de doutorado. FFLCH-USP, 1994.<br />

290


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A incorporação do thriller em Io non ho paura (Eu não tenho medo), de Ammaniti e<br />

Salvatores<br />

REMIGIO, Cristiane Aguiar (Graduan<strong>da</strong> - <strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo mostrar a força dos enredos com crianças<br />

protagonistas através <strong>da</strong> investigação dos momentos decisivos de suas vi<strong>da</strong>s, pela situação do<br />

amadurecimento pessoal. A trama que se desenvolve no presente elege o raciocínio <strong>da</strong> criança<br />

como condutor <strong>da</strong> narrativa, como se captasse o calor <strong>da</strong> hora. É esta última vertente que<br />

Salvatores escolhe para sua a<strong>da</strong>ptação, alterando o foco do romance de Niccolò Ammaniti<br />

(2001; 2005). No final dos anos de 1970, crianças se aventuram nas brincadeiras pelo campo<br />

de trigo e arredores mantendo-se à parte do caos social que reinava pelo país naquele final de<br />

déca<strong>da</strong>, especialmente como resultado do embate entre as forças de direita e de esquer<strong>da</strong> no<br />

período pós 1968. Desse modo, a violência direta do filme aparece à medi<strong>da</strong> que Michele vai<br />

desven<strong>da</strong>ndo o mistério do menino preso no buraco na área rural <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, marcando o<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> trama com o ponto de vista que não é maduro o suficiente para<br />

estabelecer relações com o mundo além do universo particular de Acqua Traverse. Portanto, a<br />

época aflitiva do país é mostra<strong>da</strong> por Salvatores através do olhar de uma criança diante do<br />

absurdo do cárcere de outra, sem entender tamanha cruel<strong>da</strong>de (o que lhe faz esconder a<br />

situação), porém disposto a desven<strong>da</strong>r o enigma.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Literatura e cinema, suspense, Io non ho paura, Niccolò Ammaniti,<br />

Gabriele Salvatores.<br />

ABSTRACT: This paper aims to show the strength of the plots with children as protagonists,<br />

through research of the defining moments of their lives, the situation of personal maturity.<br />

The plot that unfolds in the present elects the reasoning of the child to lead the narrative, as if<br />

it would capture the heat of the moment. It is this latter aspect that Salvatores chooses to his<br />

a<strong>da</strong>ptation, by changing the focus of the novel by Niccolò Ammaniti. In the late 1970s,<br />

children venture in their play in a wheat field and surrounding, remaining out of the social<br />

chaos that reigned in that country by the end of the decade, especially as a result of the clash<br />

between the forces of right and left in the period post 1968. Thus, the direct violence of the<br />

film appears as Michele unravels the mystery of the boy stuck in the hole in the rural area of<br />

the city, marking the development of the plot with the point of view that is not mature enough<br />

to establish relations with the world beyond the particular universe of Acqua Traverse.<br />

Therefore, the afflicted time of the country is shown by Salvatores through the eyes of a child<br />

at the absurdity of imprisonment of another, without understanding the cruelty (which makes<br />

him hide the situation), but willing to unravel the puzzle.<br />

KEYWORDS: Literature and cinema, suspense, Io non ho paura, Niccolò Ammaniti,<br />

Gabriele Salvatores<br />

INTRODUÇÃO<br />

Os objetivos desta pesquisa prendem-se diretamente à análise <strong>da</strong> relação entre o<br />

romance e o filme como obras de releitura de uma época determinante na história<br />

291


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

contemporânea <strong>da</strong> Itália. A representação desse período, intensamente pratica<strong>da</strong> pela ficção<br />

narrativa e fílmica do país, dispõe-se a recriar e analisar, estética e politicamente, as principais<br />

ansie<strong>da</strong>des, traumas, ver<strong>da</strong>des e incongruências, o que é passível de análise para uma<br />

interpretação que dê conta ao menos dos limites <strong>da</strong> representação. Neste momento de<br />

pesquisa em nível de iniciação científica, romance e filme são confrontados em diálogo, para<br />

poderem ser comparados, em projetos futuros, a outras obras, especialmente <strong>da</strong> filmografia<br />

dedica<strong>da</strong> a retratar o mesmo período crítico <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> sócio-política italiana.<br />

O trabalho parte <strong>da</strong> leitura detalha<strong>da</strong> do livro de Niccolò Ammaniti (2001; 2005) em<br />

italiano, tomando a tradução em português como auxílio para as citações nos trabalhos que<br />

serão produzidos. Tendo esta etapa sido cumpri<strong>da</strong>, bem como várias exibições do filme, as<br />

leituras sobre o contexto italiano dos anos de 1960 a 1980 vêm sendo feitas de modo a<br />

observar as intensas modificações e, sobretudo, as nuances políticas que levaram às situações<br />

que sensibilizaram a vi<strong>da</strong> social no país, com destaque para os fenômenos dos sequestros que<br />

pontuaram o período.<br />

Quando assistimos a Eu não tenho medo (Gabriele Salvatores, 2003) é quase<br />

inevitável pensar no filme como parte de uma espécie de tradição do audiovisual cujas<br />

intenções assimilam críticas à socie<strong>da</strong>de e à cultura contemporâneas através <strong>da</strong> trajetória de<br />

crianças ou adolescentes como fio condutor <strong>da</strong> trama que, por vezes, elabora justamente o<br />

momento decisivo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, o rito de passagem do jovem que pode servir, para o espectador,<br />

como motivo de reflexão sobre a denúncia de aflições individuais e mazelas sociais. Num<br />

elenco aleatório, o ponto de parti<strong>da</strong> estaria em filmes de Vittorio de Sica (1901-1974), como A<br />

culpa dos pais (I bambini ci guar<strong>da</strong>no), de 1944 e Vítimas <strong>da</strong> tormenta (Sciuscià), de 1946.<br />

Ain<strong>da</strong> na Itália, deveríamos citar a contribuição de Luigi Comencini (1916-2007) com<br />

Bambini in città, de 1946, e o sempre lembrado Giuseppe Tornatore (1956) que, pelo menos<br />

desde 1988 com Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso) explora o filão. Sem se<br />

preocupar com relações de tramas ou procedimentos estruturais, os exemplos, poderiam<br />

passar por obras de cineastas de mesma geração como Louis Malle (1932-1995), François<br />

Truffaut (1932-1984) e Theo Angelopoulos (1936-2012), como também por representantes<br />

pouco mais novos, como Abbas Kiarostami (1940). Abrindo ain<strong>da</strong> mais o leque de<br />

possibili<strong>da</strong>des de comparação, poderíamos citar a produção brasileira O ano em que meus<br />

pais saíram de férias (Cao Hamburger, 2006) para um paralelo contemporâneo ao filme de<br />

Salvatores.<br />

292


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Realizadores tão diferentes em épocas distintas teriam em comum, portanto, certos<br />

filmes em que a localização de uma problemática social e cultural vem exposta através de um<br />

foco sobre uma existência em pleno amadurecimento, ou uma existência que cabe numa<br />

infância, muitas vezes cerca<strong>da</strong> de simbologias coletivas e individuais que representam desde o<br />

retrato metafórico de um período <strong>da</strong> história até os problemas <strong>da</strong>s transformações para a vi<strong>da</strong><br />

adulta propriamente ditos. Algumas produções são capazes de exibir um alcance narrativo<br />

bastante sensível, exaltando em imagens condensa<strong>da</strong>s sensações físicas e psíquicas que<br />

reconstituem o sabor de uma determina<strong>da</strong> época.<br />

A força dos enredos com crianças protagonistas é potencializa<strong>da</strong> através <strong>da</strong><br />

investigação dos momentos decisivos de suas vi<strong>da</strong>s, seja pela situação fronteiriça do<br />

amadurecimento pessoal, pela fragili<strong>da</strong>de do contexto ou por ambos. Ao espectador cabe<br />

acompanhar o rito de passagem, cabe refletir sobre os significados do fenômeno em si ou<br />

sobre os limites impostos ao indivíduo em seu meio, prestando atenção à forma através <strong>da</strong><br />

qual a história é narra<strong>da</strong>. O relato de memória estabelece como ponto de vista a visão a<br />

posteriori do adulto, enquanto a trama que se desenvolve “no presente” elege o raciocínio <strong>da</strong><br />

criança como condutor <strong>da</strong> narrativa, como se captasse o calor <strong>da</strong> hora.<br />

É esta última vertente que Salvatores leva a cabo em sua a<strong>da</strong>ptação, com uma<br />

alteração significativa de foco a partir do romance publicado em 2001 por Niccolò Ammaniti<br />

(1966), escritor que já havia tido a<strong>da</strong>ptação para o cinema e que dividiu a responsabili<strong>da</strong>de do<br />

roteiro de Eu não tenho medo com Francesca Marciano. O resultado <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação preferiu<br />

deixar de lado a primeira pessoa do romance, mantendo o desenvolvimento em showing, sem<br />

uma voz narrativa.<br />

Gabriele Salvatores pertence a uma geração de cineastas (cujas estreias são dos anos<br />

de 1980) com certo estigma de minimalismo, que colocava em dúvi<strong>da</strong> o alcance <strong>da</strong><br />

abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong>s histórias individuais e apontava o risco <strong>da</strong> repetição de situações que<br />

suscitariam cansaço, neurose, vulgari<strong>da</strong>de e tédio existencial (FABRIS, 2008, p. 92).<br />

Contudo, sua filmografia procura responder ao pedido de representação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

contemporânea, sobretudo se temos em conta a crise de valores de nossos tempos.<br />

A CONSCIÊNCIA DE UMA CRIANÇA E O PREPARO PARA A VIDA ADULTA<br />

Eu não tenho medo é uma história com crianças atravessando a fase de descobertas,<br />

num lugarejo italiano fictício <strong>da</strong> Apúlia (Acqua Traverse) no final dos anos de 1970. Estão em<br />

293


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

jogo os sentimentos familiares, <strong>da</strong> amizade, <strong>da</strong> confiança, a falta de perspectivas para jovens<br />

num povoado minúsculo, a dimensão de abandono e de solidão <strong>da</strong> jovem existência. Por outro<br />

lado, também comparecem na trama os prazeres <strong>da</strong> diversão através <strong>da</strong>s explorações pelo<br />

território, as provas de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, as especulações sobre os sentidos dos fatos e sobre o<br />

desconhecido, a vitória sobre os medos. O filme mantém uma atmosfera semelhante à de<br />

Stand by me (Rob Reiner, 1986) e, de maneira bastante fiel à narrativa de Ammaniti, retrata o<br />

grupo que se aventura nas brincadeiras pelo extenso campo de trigo.<br />

Michele Amitrano é uma <strong>da</strong>s crianças. Ele vai à escola e tem amigos, pais e irmã<br />

caçula. Vive num lugar sem muita distração além <strong>da</strong> televisão. Num dia de férias de verão a<br />

pequena turma (Michele, a irmã Maria, Salvatore, Remo, Barbara e Antonio) aposta corri<strong>da</strong><br />

pelo campo de trigo, e Michele perde a liderança para aju<strong>da</strong>r a irmãzinha. Durante a<br />

exploração de uma casa abandona<strong>da</strong>, o perverso Antonio (o “Caveira”) decide que o castigo<br />

caberá a Barbara, que ficaria em último lugar se Michele completasse a prova. Michele tira a<br />

amiga do embaraço, decidindo cumprir ele mesmo o castigo, que será atravessar as ruínas <strong>da</strong><br />

casa abandona<strong>da</strong>.<br />

Após a aventura, todos voltam para casa e Michele volta para pegar os óculos <strong>da</strong><br />

irmã perto dos escombros. Ali, ele descobre uma chapa que encobre um buraco no chão.<br />

Debruçando-se no buraco, Michele visualiza o fundo com um cobertor e um pé que sai do<br />

tecido de lã. O susto é grande, mas nos dias que seguem o protagonista descobre que o<br />

menino loiro e delicado era prisioneiro há bastante tempo no buraco, reduzido a um estado<br />

deplorável. Michele leva comi<strong>da</strong>, faz companhia, faz o menino reaver a consciência de si e<br />

alguma esperança.<br />

O pai de Michele retorna de uma viagem e avisa que a família hospe<strong>da</strong>rá o amigo<br />

milanês Sérgio, que não conquista a simpatia de Michele. Numa noite, o telejornal dá a<br />

notícia sobre o desaparecimento de Filippo Carducci, sequestrado em Milão, e Michele assiste<br />

escondido dos adultos, entendendo o que aconteceu ao novo amigo prisioneiro. Logo o<br />

espectador compreende que Sérgio é o chefe do plano que promoveu o sequestro, com a<br />

cumplici<strong>da</strong>de e aju<strong>da</strong> de todos na minúscula vila, incluindo os pais de Michele. Com o tempo,<br />

as investigações oficiais prosseguem e helicópteros passam a sobrevoar o lugar e arredores, o<br />

que diverte as crianças, mas apavora os sequestradores a ponto de os fazer terminar o plano<br />

com o assassinato de Filippo.<br />

Michele foge na madruga<strong>da</strong> para libertar o amigo do segundo cativeiro, consegue<br />

ajudá-lo a escapar, porém enquanto Filippo foge Michele não consegue sair do depósito ao<br />

294


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

qual se dirige Pino, escolhido para eliminar Filippo. Pino atira em Michele, sem perceber que<br />

o filho estava no lugar de Filippo. Michele ao levar o tiro perde os sentidos, e essa per<strong>da</strong> de<br />

sentidos simboliza<strong>da</strong> no clarão <strong>da</strong> cena do filme, e nos momentos em que Michele recupera a<br />

consciência também, tem um forte apelo de choque emocional, pois é nesse momento que o<br />

garoto percebe que o seu próprio pai mataria alguém. Michele perde também o sentido de sua<br />

origem, o sentido de sua existência.<br />

No descampado sobrevoado por helicópteros, Pino corre desesperado com Michele<br />

nos braços, Sérgio é preso e Filippo já salvo volta para segurar a mão de Michele, que sorri,<br />

tem-se o fim, quando percebemos que a única coisa que parece sobreviver é a amizade entre<br />

os dois meninos. A imagem se apaga e a frase que dá título ao filme aparece escrita em letras<br />

de forma, como numa lousa escolar.<br />

O EMBATE DE VISÕES EM ANOS DE CHUMBO<br />

A história de Michele, ou sua prova de resistência, ou rito de passagem para a vi<strong>da</strong><br />

adulta tem como pano de fundo um sequestro. Esse tipo de crime, vale dizer, foi bastante<br />

comum na Itália durante os anos 70 e 80. Segundo Giovanni Maria Bellu (1989), de 1972 a<br />

1989 foram quase 600 sequestros, e na maior parte dos casos (cerca de 400) identificaram-se<br />

os sequestradores, com um total de mais de duas mil pessoas presas. Ao longo dos anos, o<br />

fenômeno se modifica e se moderniza, diminuindo em quanti<strong>da</strong>de, mas afinando a quali<strong>da</strong>de,<br />

assim como se ampliam na distribuição geográfica. Os delitos se espalham pelo centro e norte<br />

do país na metade dos anos de 1970, ao mesmo tempo em que atingem recordes qualitativos<br />

assustadores: 1977, o ano mais negro, registrou 75 sequestros.<br />

A história vivi<strong>da</strong> por Michele se passa em 1978: o ano que teve três papas e havia<br />

registrado as mais altas temperaturas no verão. Somente em 1984 o número de sequestros caiu<br />

graças a uma ação decisiva e à indignação popular, especialmente por causa de dois<br />

sequestros: o <strong>da</strong> menina Elena Luisi, de 17 meses de i<strong>da</strong>de e o de Giorgio Calissoni e sua mãe<br />

(BELLU, 1989).<br />

Para Gian Piero Brunetta (2008, p. 447), a força dramática e visual do filme é capaz<br />

de “reforçar a confiança na possibili<strong>da</strong>de de o cinema italiano sair do escuro no qual parecia<br />

prisioneiro por tempo indeterminado”. O filme de Salvatores revisita uma época sem<br />

mencionar diretamente os fatos que a marcaram, como os atentados terroristas, os sequestros,<br />

os assassinatos e o recrudescimento <strong>da</strong> violência nas ci<strong>da</strong>des. Contudo, o período tenebroso<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

não deixa de ser representado pela sensível e instável visão de Michele em seus dez anos de<br />

i<strong>da</strong>de (a i<strong>da</strong>de do protagonista é ligeiramente aumenta<strong>da</strong> no filme de Salvatores, visto que no<br />

romance ele tem nove anos).<br />

Recorre-se à fórmula do thriller policial ou suspense. São evidencia<strong>da</strong>s as<br />

capaci<strong>da</strong>des investigativas e as deduções mirabolantes do personagem sobre um fato<br />

aparentemente ligado apenas à vi<strong>da</strong> do povoado. Além disso, o filme mantém a tensão do<br />

livro, como se algo grave estivesse prestes a acontecer, como se a situação aflitiva pudesse<br />

piorar ain<strong>da</strong> mais.<br />

Dado que suspense é um sentimento de incerteza, angústia, medo e ansie<strong>da</strong>de, e<br />

acontece geralmente quando há falta de conhecimento sobre o desenvolvimento de uma <strong>da</strong><strong>da</strong><br />

situação, sendo a junção de antecipação com a incerteza e a obscuri<strong>da</strong>de do que há de vir<br />

(futuro), para haver suspense é preciso uma ordem cronológica <strong>da</strong> narrativa (ou fatos), com a<br />

carga dramática sobre todos esses acontecimentos, exatamente como a história cria<strong>da</strong> por<br />

Ammaniti a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong> por Salvatores.<br />

O gênero thriller é o gênero em que a perspicácia, a crença e a ingenui<strong>da</strong>de ou<br />

afetivi<strong>da</strong>de do espectador mais são postos à prova, no qual a tensão dramática se torna mais<br />

forte e as expectativas narrativas mais são desafia<strong>da</strong>s. O thriller no gênero policial acontece à<br />

mesma forma precisamente nos casos em que o medo se transforma em uma tensão tão grande<br />

que causa um elevado nervosismo no espectador.<br />

O fato de o drama vivido por Michele aparentar ser um caso isolado (e menor) <strong>da</strong><br />

história tem muito a ver com o modo narrativo e com a estrutura escolhi<strong>da</strong>, pois o ponto de<br />

vista é de uma criança no filme, cujo presente diegético vai se desenvolvendo diante dos olhos<br />

do espectador, o que tende a isolar um acontecimento sem as devi<strong>da</strong>s ligações externas, muito<br />

por falta de capaci<strong>da</strong>de de estabelecer relações históricas. Assim, se o protagonista julga<br />

particular o acontecimento através do qual sua infância termina, cabe ao espectador interpretar<br />

a trama de modo a multiplicar os sentidos do fechamento de perspectivas e a frágil esperança<br />

que encerram o filme.<br />

No romance (AMMANITI, 2001, 2005), a narrativa em primeira pessoa brota <strong>da</strong><br />

memória do adulto, o que faz o leitor deduzir que a experiência relata<strong>da</strong> foi assimila<strong>da</strong> e<br />

filtra<strong>da</strong> pelo ponto de vista que, muito provavelmente, se afastou dos acontecimentos para<br />

melhor avaliá-los e depurar o seu parecer, especialmente no que diz respeito ao tom do final<br />

<strong>da</strong> história, cuja esperança no resgate <strong>da</strong> relação entre o protagonista e o pai é sintomática.<br />

296


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

LITERATURA, CINEMA, MEMÓRIA<br />

A época aflitiva do país vem mostra<strong>da</strong> pela trama através do absurdo de uma<br />

situação de cárcere injustificado de uma criança e do olhar de outra criança diante disso, sem<br />

entender os motivos de tamanha cruel<strong>da</strong>de, o que lhe faz o protagonista Michele esconder a<br />

situação, como se o mistério e o novo amigo fossem só dele. Com conjecturas simples, porém<br />

precisas, o olhar de Michele no trabalho de Salvatores não se contamina pela narrativa de<br />

memória que deu origem ao filme, isto é, os acontecimentos não aparecem capitaneados por<br />

uma ótica adulta como se o ponto de vista emprestasse a vivência <strong>da</strong>queles tempos à narrativa<br />

de um episódio de violência.<br />

Tudo isso normalmente acontece na narrativa de memória quando o objetivo é relatar<br />

a aflição e o absurdo vivido pelas personagens através do sentimento apegado à experiência<br />

real. É preciso lembrar-se de um sentido diferente oferecido à “experiência” por um ponto de<br />

vista que se baseia na coragem e no espírito livre, sem o peso <strong>da</strong> “experiência” do adulto<br />

(BENJAMIN, 2009). To<strong>da</strong>via, a abstenção <strong>da</strong> memória e <strong>da</strong> experiência direta dos fatos deve<br />

ser leva<strong>da</strong> em conta sobretudo quando lembramos que Eu não tenho medo surge em meio a<br />

produções dispostas a desmascarar pormenores <strong>da</strong> ordem vigente pela ótica <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de de<br />

pessoas comuns naqueles anos de chumbo na Itália.<br />

O filme parece bastante coerente com uma memória que pode oferecer às pessoas<br />

não só o que elas viveram, mas que é preciso que elas se lembrem de que viveram<br />

(FOUCAULT, 2006), através de uma narrativa que desconstrói os grandes fatos e redistribui<br />

temas polêmicos como o acontecimento central de Eu não tenho medo: uma criança rica do<br />

norte do país é sequestra<strong>da</strong> por um grupo de pessoas comuns que, lidera<strong>da</strong>s por um<br />

mercenário interessado em sair do país e viver no Brasil com sua amante, compactuam com o<br />

horror dentro do povoado, do qual não pôde ser poupa<strong>da</strong> a ingenui<strong>da</strong>de de Michele.<br />

O filme parece dizer que os aparentes fatos menores (diante dos atentados assumidos<br />

por organizações terroristas, sequestros promovidos por organizações criminosas como a<br />

‘ndrangheta calabresa ou a anonima sequestri sar<strong>da</strong>, entre outros) nos quais estão envolvi<strong>da</strong>s<br />

famílias, amizades e a passagem <strong>da</strong> infância para a i<strong>da</strong>de adulta compõem quadros muito mais<br />

complexos quando se analisam os fatos e seus resultados, porque o mal pode estar em<br />

qualquer parte, assim como a submissão a ele.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

AMMANITI, Niccolò. Eu não tenho medo. Trad. Roberta Barni. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s<br />

Letras, 2005.<br />

_____. Io non ho paura. Torino: Einaudi, 2001.<br />

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1989. Sezione Una donna una sfi<strong>da</strong>, p. 6. Disponível em<br />

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educação. 2. ed. Trad. Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: 34, 2009, p. 21-25.<br />

BRUNETTA, Gian Piero. Cent’anni di cinema italiano: <strong>da</strong>l 1945 ai nostri giorni. 3. ed. Bari:<br />

Laterza, 2008.<br />

Eu não tenho medo (Io non ho paura). Direção: Gabriele Salvatores. Roteiro: Niccolò<br />

Ammaniti e Francesca Marciano, baseado no romance de Niccolò Ammaniti. Itália, 2003,<br />

DVD (108 min).<br />

FABRIS, Mariarosaria. O cinema italiano contemporâneo. In: BAPTISTA, M. e<br />

MASCARELLO, F. (Orgs.). Cinema mundial contemporâneo. Campinas: Papirus, 2008, p.<br />

91-106.<br />

FOUCAULT, Michel. Anti-retro. In: _____. Estética: literatura e pintura, música e cinema.<br />

2. ed. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. São Paulo: Forense Universitária, 2006, p. 330-<br />

345. (Col. Ditos & Escritos).<br />

298


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Livros que falam entre si:<br />

a narrativa policial de Borges e os orangotangos eternos (2000), de Luis Fernando Veríssimo<br />

RIBEIRO, Fernan<strong>da</strong> Apareci<strong>da</strong> (UNIFAL-MG)<br />

MIRANDA, Kátia Rodrigues Mello (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: O prazer <strong>da</strong> leitura do livro Borges e os orangotangos eternos (2000), de Luis<br />

Fernando Veríssimo (1936), está no elemento que Flavio Carneiro já declarava em No país do<br />

presente (2006): no desven<strong>da</strong>mento, não do enigma que se instaura no enredo, mas sim <strong>da</strong>s<br />

hipóteses, <strong>da</strong>s pistas literárias que o narrador semeia ao longo <strong>da</strong> história. Como já indica o<br />

título do romance, os textos escritos pelo autor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) e<br />

pelo norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849) são as peças fun<strong>da</strong>mentais para a<br />

interpretação, ou melhor, para se aventurar pela narrativa policial. Há uma razão para que Poe<br />

e Borges sejam as figuras principais do texto de Veríssimo: o primeiro foi o criador <strong>da</strong><br />

narrativa policial e o segundo transformou o gênero, tirando o seu caráter analista e inserindo<br />

o acaso como aspecto importante para o desenvolvimento do enredo. Assim, o romance em<br />

pauta não oferece ao leitor apenas uma intriga policial, a história de um crime, mas sim um<br />

histórico <strong>da</strong> narrativa policial. Conforme Eco (1985), o narrador repete histórias, ou seja, ele<br />

monta o enredo a partir de outros livros, de outras histórias que já existem, criando um<br />

entrecruzamento de autores, personagens e enredos <strong>da</strong> literatura policial. Assim, esse trabalho<br />

pretende demonstrar como Luis Fernando Veríssimo relê as narrativas policiais de Poe e<br />

Borges, apresentando uma rede de intertextuali<strong>da</strong>de, que é a base do desven<strong>da</strong>mento do<br />

mistério instaurado.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Narrativa policial; Luis Fernando Veríssimo; Borges e os<br />

Orangotangos Eternos; Jorge Luis Borges; Edgar Allan Poe.<br />

RESUMEN: El placer de la lectura del libro Borges e os orangotangos eternos (2000), de<br />

Luis Fernando Veríssimo (1936), se encuentra en el elemento que Flavio Carneiro describe en<br />

No país do presente (2006): es decir, no en la revelación del misterio presente en el enredo,<br />

pero en las hipótesis, de las señales literarias que el narrador sembra a lo largo de la historia.<br />

Como indica el título de la novela, los textos escritos por el autor argentino Jorge Luis Borges<br />

(1899-1986) y por el norteamericano Edgar Allan Poe (1809-1849) son las piezas<br />

fun<strong>da</strong>mentales para la interpretación, o sea, para aventurarse por la narrativa policiaca. Hay<br />

un motivo para que Poe y Borges sean las principales figuras del texto de Veríssimo: el<br />

primero fue el creador de la narrativa policiaca y el segundo transformó el género, quitando su<br />

carácter analista e incluyendo el acaso como aspecto importante para el desarrollo del enredo.<br />

Así, la novela en estudio no ofrece al lector solamente una intriga policiaca, la historia de un<br />

crimen, pero un historial de la narrativa policiaca. Según Eco (1985), el narrador repite<br />

historias, o sea, estructura el enredo partiendo de otros libros, de historias ya existentes,<br />

creando un encadenamiento de autores, personajes y enredos de la literatura policiaca. De tal<br />

modo, este artículo pretende demostrar cómo hace Luis Fernando Veríssimo la lectura de las<br />

narrativas policiacas de Poe y Borges, presentando una red de intertextuali<strong>da</strong>d, que es la base<br />

del desvelamiento del misterio establecido.<br />

PALABRAS CLAVE: Narrativa policiaca; Luis Fernando Veríssimo; Borges e os<br />

Orangotangos Eternos; Jorge Luis Borges; Edgar Allan Poe.<br />

299


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

“os livros falam sempre de outros livros<br />

e to<strong>da</strong> história conta uma história já conta<strong>da</strong>”<br />

Umberto Eco. Pós-escrito a O nome <strong>da</strong> rosa.<br />

1.<br />

O prazer <strong>da</strong> leitura de Borges e os orangotangos eternos (2000), de Luis Fernando<br />

Veríssimo (1936- ), está no elemento que Flavio Carneiro já declarava em seu livro No país<br />

do presente (2006): no desven<strong>da</strong>mento, não do enigma que se instaura no enredo, mas sim <strong>da</strong>s<br />

hipóteses, <strong>da</strong>s pistas literárias que o narrador semeia ao longo <strong>da</strong> história. Como já indica o<br />

título do livro, os textos escritos pelo argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) e pelo norteamericano<br />

Edgar Allan Poe (1809-1849) são as peças fun<strong>da</strong>mentais para decifrar o romance,<br />

ou melhor, para se aventurar pela narrativa policial.<br />

O narrador é Vogelstein, que vivia em Porto Alegre e que já traduzira um texto de<br />

Borges publicado em uma revista em língua inglesa. Em 1985 – um ano antes <strong>da</strong> morte do<br />

escritor argentino – o grupo Israfel Society, que estu<strong>da</strong>va as obras de Edgar Allan Poe, se<br />

reuniu em Buenos Aires para realizar um congresso.<br />

No hotel em que Vogelstein foi hospe<strong>da</strong>do, estavam grandes personali<strong>da</strong>des que<br />

também haviam ido para o congresso. Uma delas era o alemão Rotkopf, que morava no<br />

México e que acreditava que o ver<strong>da</strong>deiro Poe não podia ser traduzido por autores do Novo<br />

Mundo. Outra personali<strong>da</strong>de era o argentino Xavier Urquiza, que atacava a tese do alemão e<br />

já havia polemizado com ele em artigos <strong>da</strong> revista <strong>da</strong> Israfel Society. Também estava o<br />

americano Oliver Johnson, que tinha uma tese sobre o livro dos mortos, uma invenção de<br />

Lovecraft, e que tivera sua exposição, em um congresso anterior, interrompi<strong>da</strong> pela briga de<br />

Rotkopf e Urquiza.<br />

O enredo gira em torno desses hóspedes, já que o alemão Rotkopf é assassinado na<br />

primeira noite do congresso, em seu quarto, que estava trancado por dentro e que precisou ser<br />

arrombado por Vogelstein. Enquanto a polícia investiga o crime analisando o quarto e<br />

interrogando os suspeitos, Jorge Luis Borges convi<strong>da</strong> Vogelstein, por meio do criminalista<br />

Cuervo, para ir à sua casa, contar-lhe o que viu e ouviu naquela noite, enquanto ambos tentam<br />

desven<strong>da</strong>r o crime a partir de textos literários.<br />

A narrativa é dividi<strong>da</strong> em sete capítulos, um número “fatídico”, segundo o próprio<br />

narrador, ao se referir que a vítima e os dois suspeitos, Johnson e Urquiza, estavam no sétimo<br />

an<strong>da</strong>r do hotel. O número sete corresponde à totali<strong>da</strong>de, à perfeição do homem e do universo;<br />

é a soma do número três, que representa o Céu, com o número quatro, associado à Terra.<br />

300


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Segundo o Dicionário de Símbolos (2002, p. 828), “indica a passagem do conhecido ao<br />

desconhecido: um ciclo concluído”. Conforme se poderá verificar, os números três e quatro<br />

estarão presentes ao longo <strong>da</strong> narrativa.<br />

O narrador Volgelstein escreve seu texto para um destinatário específico – Jorge Luis<br />

Borges –, relembrando tudo o que ocorreu em Buenos Aires durante o congresso e recor<strong>da</strong>ndo<br />

suas conversas com o escritor argentino. Os seis primeiros capítulos são escritos por<br />

Vogelstein e o último, por Borges.<br />

No primeiro capítulo, o narrador relata alguns detalhes de sua vi<strong>da</strong>, que passam<br />

quase despercebidos por um leitor ávido de aventuras e crimes, mas que a Borges não são<br />

dispensáveis já que Vogelstein insistia, o tempo todo, que a solução para o crime estaria no<br />

conto de Poe “O escaravelho de ouro” (2008). Nesse conto, o importante não era a descoberta<br />

do escaravelho, mas sim a mensagem cifra<strong>da</strong> no pergaminho que estava junto ao animal. Ou<br />

seja, o narrador alerta seu interlocutor imediato que a solução não estava no quarto onde havia<br />

ocorrido o crime, mas sim no relato que ele estava enviando ao escritor.<br />

Vogelstein foi a primeira pessoa que entrou no quarto de Rotkopf após o crime e<br />

descreveu à polícia que o corpo estava em uma posição estranha: com as nádegas encosta<strong>da</strong>s<br />

ao espelho, formando a letra V. Em suas conversas com Borges, eles chegaram à conclusão<br />

preliminar de que o alemão quis deixar uma mensagem sobre quem o havia assassinado, e,<br />

assim, seu corpo ao espelho formaria a letra X, o que suporia que Xavier Urquiza o teria<br />

matado. Ao relembrarem as várias significações que tal letra possui, se recor<strong>da</strong>ram que em<br />

um conto de Poe, o X substituía a letra O, que indicaria, então, que fora Oliver Johnson o<br />

assassino.<br />

No dia seguinte, alegando que na noite do crime estivera embriagado, o narrador diz<br />

a Borges que a posição do corpo lembrava a letra W, o que levou Cuervo a suspeitar do<br />

japonês Miro Ikisara, que fora derrubado pelo alemão durante o coquetel do congresso. To<strong>da</strong>s<br />

as letras que foram aparecendo – X, O, W e M – faziam com que Vogelstein e Borges<br />

levantassem e discutissem a simbologia de ca<strong>da</strong> uma.<br />

No último capítulo, “La cola” (que pode significar o rabo, ou algo que se prolonga de<br />

uma parte posterior), Borges é quem desven<strong>da</strong> o crime, não a partir <strong>da</strong>s evidências que<br />

apareceram na cena e durante as investigações <strong>da</strong> polícia, mas sim a partir <strong>da</strong>s pistas que seu<br />

interlocutor plantou ao longo <strong>da</strong> narrativa, em meio às diversas referências aos textos de Poe,<br />

Borges e outros escritores que se aventuraram pela narrativa policial.<br />

301


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

2.<br />

São dois os escritores principais cujas obras são evoca<strong>da</strong>s no romance de Luis<br />

Fernando Veríssimo e cuja referência se encontra já no título <strong>da</strong> obra: Borges, cujo nome está<br />

explícito, e o escritor norte-americano Edgar Allan Poe, na alusão ao conto “Os crimes <strong>da</strong> rua<br />

Morgue”(2008), no qual o assassino é um orangotango. Mais do que uma referência, Jorge<br />

Luis Borges será um personagem do romance, o destinatário direto do relato de Vogelstein e<br />

autor do sétimo capítulo, decifrando o crime.<br />

São várias as referências diretas na narrativa aos textos de Jorge Luis Borges, a<br />

começar pela epígrafe, retira<strong>da</strong> do conto “Abenjacán el Bojarí, muerto en su laberinto”(1994),<br />

cujo trecho é traduzido dentro do livro, quando Cuervo e o narrador estão levantando as várias<br />

significações <strong>da</strong> letra X. Esse conto também é uma narrativa policial, em que se pensa que o<br />

crime foi cometido por um espírito e o narrador comenta que o personagem desse conto,<br />

“Dunraven, versado en obras policiales, pensó que la solución del misterio siempre es<br />

inferior al misterio. El misterio participa de lo sobrenatural y aun de lo divino; la solución,<br />

del juego de manos” (BORGES, 1985, p. 134). Assim será também em Borges e os<br />

orangotangos eternos: o crime parece pertencer ao universo do sobrenatural, mas a sua<br />

solução é um jogo forjado por mãos humanas.<br />

No início <strong>da</strong> narrativa, Vogelstein comenta que tinha uma “vi<strong>da</strong> entre livros,<br />

protegi<strong>da</strong>, em que raramente o inesperado entrou como um tigre” (VERÍSSIMO, 2000, p. 14).<br />

Borges foi uma pessoa que “vivia entre livros” e nem a cegueira o impediu de continuar a se<br />

envere<strong>da</strong>r pela literatura, já que havia pessoas que liam oralmente para ele. Em muitos de seus<br />

textos, o acaso, ou inesperado, aparece como um <strong>da</strong>do determinante para o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> história; o tigre é outra figura recorrente, associa<strong>da</strong> ao acaso, como no poema “El oro de<br />

los tigres”:<br />

Hasta la hora del ocaso amarillo<br />

cuántas veces habré mirado<br />

al poderoso tigre de Bengala<br />

ir y venir por el predestinado camino (BORGES, 1994, p. 487).<br />

Para o narrador, o fato de o congresso <strong>da</strong> Israfel Society ser realizado em Buenos<br />

Aires foi um acaso feliz, pois assim teria uma oportuni<strong>da</strong>de de poder conhecer o escritor<br />

Borges, e, principalmente, concretizar sua vingança. Um dos empecilhos à sua i<strong>da</strong> para o<br />

congresso era o gato Alef (nome de um dos contos de Borges), que não teria com quem<br />

302


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

deixar, mas que faleceu pouco antes <strong>da</strong> viagem, permitindo que o narrador participasse do<br />

encontro.<br />

Como se afirmou anteriormente, o número três é recorrente na narrativa de<br />

Veríssimo: são três as viagens de Vogelstein a Buenos Aires; são três as punhala<strong>da</strong>s que<br />

Rotkopf levou e foram encontrados três punhais nos poços do hotel. Suspeitou-se de três<br />

pessoas que poderiam ter matado o alemão: o argentino Urquiza, o norte-americano Johnson e<br />

o japonês Ikisara. Vogelstein afirma também ter enviado a Borges “três histórias ‘borgianas’,<br />

mistura de plágio e homenagem” (VERÍSSIMO, 2000, p. 22). Eram três as ci<strong>da</strong>des em que<br />

sempre se realizavam os congressos <strong>da</strong> Israfel Society: Estocolmo, Baltimore e Praga.<br />

Também eram três as cartas de baralho que o narrador diz ter visto na mesa do quarto onde a<br />

vítima foi encontra<strong>da</strong>: o 10, o valete de olhos furados e o rei.<br />

Ao longo <strong>da</strong> narrativa vai se descobrindo que alguns desses trios são na reali<strong>da</strong>de<br />

quádruplos, a começar pelas histórias que Vogelstein escreveu. Ele realmente havia enviado<br />

três contos a Borges, mas há uma quarta narrativa, que é o relato dos fatos ocorridos em<br />

Buenos Aires, que ele envia a seu ídolo, pedindo-lhe que termine a história. Nenhum dos três<br />

suspeitos citados pelo narrador é o assassino, mas sim uma quarta pessoa que, no início do<br />

romance, confessa sua culpa ao dizer “o criminoso era eu”, referindo-se ao fato de ter<br />

modificado a história de Borges na revista de mistérios. O congresso <strong>da</strong> Israfel Society<br />

sempre ocorria em três ci<strong>da</strong>des e, por acaso ou por destino, ela foi transferi<strong>da</strong> para uma quarta<br />

ci<strong>da</strong>de, Buenos Aires, que permitiu que o assassinato se realizasse. E a falta <strong>da</strong> quarta carta de<br />

baralho – a <strong>da</strong>ma – é uma <strong>da</strong>s peças principais que proporcionam a Borges a chave <strong>da</strong> solução<br />

do mistério. Essa passagem do número três para o número quatro recor<strong>da</strong> o conto de Borges<br />

“La muerte y la brújula”(1994), no qual o narrador semeia vários elementos triplos, para<br />

depois mostrar que havia um quarto elemento, e um quarto crime, desven<strong>da</strong>do pela quarta e<br />

última vítima.<br />

A referência a outros elementos <strong>da</strong> obra de Borges pode ser encontra<strong>da</strong> no romance,<br />

como é o caso do espelho. O narrador comenta que o quarto do hotel era repleto de espelhos,<br />

o que multiplicava visualmente o tamanho do cômodo. Borges queria escrever um tratado<br />

final sobre os espelhos – e não o teria feito porque precisou escrever o final <strong>da</strong> narrativa de<br />

Vogelstein. Em um momento <strong>da</strong> narrativa, os personagens se lembram do livro Alice do outro<br />

lado do espelho (1996), de Lewis Carroll. Há também a alusão ao speculum de John Dee<br />

exposto no Museu Britânico e o fato de Rotkopf ter sido encontrado junto ao espelho. O<br />

espelho é, ao mesmo tempo, símbolo do conhecimento, o reflexo <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, e também<br />

303


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

“comporta um certo aspecto de ilusão” (CHEVALIER, 2002. p. 394); ele revela, mas pode<br />

esconder a reali<strong>da</strong>de.<br />

Outro elemento importante é a biblioteca. Borges recebe Vogelstein em sua<br />

biblioteca particular na capital argentina e lhe sugere “...que a solução esteja aqui. As<br />

soluções estão sempre nas bibliotecas” (VERÍSSIMO, 2000, p. 66). Não é investigando<br />

pessoas, procurando pistas no lugar do assassinato que se encontrará a solução do crime, mas<br />

sim pesquisando a biblioteca, ou seja, procurando a solução nos livros, nas histórias escritas e<br />

na experiência vivi<strong>da</strong> e registra<strong>da</strong> por ca<strong>da</strong> um.<br />

Assim, em uma “mistura de plágio e homenagem”, Veríssimo dá nova vi<strong>da</strong> à obra de<br />

Jorge Luis Borges, criando uma narrativa policial intrigante, não pelo crime em si, mas pelas<br />

pistas literárias, retira<strong>da</strong>s <strong>da</strong> obra borgiana, que conseguiu diluir em meio ao enredo.<br />

3.<br />

A obra de Edgar Allan Poe também é evoca<strong>da</strong> em Borges e os orangotangos eternos.<br />

Já se comentou a referência do “orangotango” do título, que recor<strong>da</strong> o assassino <strong>da</strong> narrativa<br />

policial de Poe “Os crimes <strong>da</strong> rua Morgue”(2008). Assim como ocorreu neste conto, o alemão<br />

Rotkopf foi encontrado morto, trancado em seu quarto, sem que houvesse nenhum indício de<br />

arrombamento ou alguma passagem secreta por onde o assassino pudesse ter fugido.<br />

Apesar de o crime aludir a esse primeiro conto de Poe, o narrador insiste em citar o<br />

conto “O Escaravelho de ouro”(2008), declarando que esse texto é mais pertinente ao caso.<br />

Na reali<strong>da</strong>de, Vogelstein está sugerindo a Borges que a solução está no pergaminho, ou seja,<br />

na mensagem que seu texto traz, ao informar detalhes aparentemente insignificantes, mas que<br />

na reali<strong>da</strong>de são as peças fun<strong>da</strong>mentais para a solução do crime.<br />

O nome do criminalista Cuervo já lembra o célebre poema de Poe “O corvo”, ou “El<br />

cuervo” em espanhol. Sua tática de investigação é analítica, tal como era a do detetive August<br />

Dupin, o detetive dos contos de Poe, ou mesmo dos detetives Hercule Poirot, de Agatha<br />

Christie, ou Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle.<br />

A letra X, que os personagens no início supunham que formava a posição do corpo<br />

de Rotkopf com o espelho, logo os leva a lembrar de um conto do autor norte-americano que<br />

representava a letra O.<br />

A briga entre Rotkopf e Urquiza provinha <strong>da</strong> tese do alemão sobre um livro de<br />

Lovecraft que, acreditava ele, “era na ver<strong>da</strong>de um código esotérico vindo do começo dos<br />

tempos ao qual Poe já fizera referências cifra<strong>da</strong>s” (VERÍSSIMO, 2000, p. 25), relacionando<br />

304


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Poe com o ocultismo. Isso, para o personagem Borges, estaria provado na palavra Israfel,<br />

nome de um dos poemas de Poe: ao lê-lo de trás para diante, retirando-se as vogais, formaria<br />

o chamado “tretragrammaton neozoroástrico”. Aqui há, na reali<strong>da</strong>de, uma intertextuali<strong>da</strong>de<br />

com o conto borgiano “La muerte y la brújula”(1994), no qual aparece também o<br />

“tretragrámaton” ou o Nome de Deus. Outro poema lembrado na narrativa é “Os sinos”<br />

(2008), quando o alemão repete várias vezes: “Israfel, Israfel, does it ring a bell”<br />

Até se poderia dizer que o conto “A carta rouba<strong>da</strong>” (2008) pode ser lembrado na<br />

leitura do romance, quando na mesa do quarto do hotel estão algumas cartas de baralho e falta<br />

uma delas, uma carta “furta<strong>da</strong>”, que serviu de pista para Borges solucionar o crime.<br />

Apesar de ter sido o escritor Jorge Luis Borges a figura principal <strong>da</strong> narrativa, Edgar<br />

Allan Poe é relembrado também por ter sido o pai <strong>da</strong> narrativa policial, um dos gêneros<br />

cultivados pelo escritor argentino.<br />

4.<br />

Enfim, em Borges e os orangotangos eternos Luis Fernando Veríssimo fez uma<br />

homenagem não somente aos escritores Jorge Luis Borges e Edgar Allan Poe, como também a<br />

outros que se consagraram na narrativa policial, como Howard Phillips Lovecraft e Arthur<br />

Conan Doyle. Quanto ao primeiro, sua obra é cita<strong>da</strong> pelos personagens quando falam <strong>da</strong> tese<br />

de Rotkopf sobre o “livro proibido” Necronomicon. Nas vezes em que os personagens citam o<br />

rei <strong>da</strong> Boêmia, fazem referência a um texto de Conan Doyle, “Um escân<strong>da</strong>lo em<br />

Boêmia”(1998).<br />

No entanto, Poe e Borges são as figuras principais <strong>da</strong> narrativa de Veríssimo; o<br />

primeiro porque foi o criador <strong>da</strong> narrativa policial e o segundo porque transformou o gênero,<br />

tirando o seu caráter puramente analista e inserindo o acaso como elemento importante para o<br />

desenvolvimento do enredo.<br />

Assim, o romance não oferece ao leitor apenas uma intriga policial, a história de um<br />

crime, mas sim uma espécie de retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong> história <strong>da</strong> narrativa policial. O narrador “conta<br />

uma história já conta<strong>da</strong>” (ECO, 1985, p. 20), ou seja, ele monta o enredo a partir de outros<br />

livros, outras histórias que já existem, criando uma rede de intertextuali<strong>da</strong>de entre autores,<br />

personagens e enredos <strong>da</strong> literatura policial.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BORGES, Jorge Luis. El Aleph. 12. ed. Buenos Aires, Emecé, 1985.<br />

305


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

______. La muerte y la brújula. In: Obras completas. 1923-1949. 20. ed. Buenos Aires,<br />

Emecé, 1994.<br />

______. El oro de los tigres. In: Obras completas. 1952-1972. 20. ed. Buenos Aires, Emecé,<br />

1994.<br />

CARNEIRO, Flávio. No país do presente. Rio de Janeiro, Rocco, 2006.<br />

CHEVALIER, Jean, GREERBRANT, Alain. Dicionário dos símbolos: mitos, sonhos,<br />

costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Colaboração de André Barbault et al.<br />

Coordenação de Carlos Sussekind. trad. Vera <strong>da</strong> Costa e Silva et al. 17. ed. Rio de Janeiro,<br />

José Olympio, 2002.<br />

ECO, Umberto. Pós-escrito a O nome <strong>da</strong> rosa. Trad. Letizia Zini Antunes e Álvaro<br />

Lorencini. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.<br />

POE, Edgar Allan. Poesia e prosa. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro,<br />

Ediouro, s.d.<br />

VERÍSSIMO, Luis Fernando. Borges e os orangotangos eternos. São Paulo, Companhia <strong>da</strong>s<br />

Letras, 2000.<br />

306


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> praia dos cães (1982), de José Cardoso Pires:<br />

Uma ruptura <strong>da</strong> narrativa policial clássica.<br />

ROCHA, Denise (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Depois <strong>da</strong> instauração do regime democrático, em Portugal (1974), o já<br />

consagrado escritor José Cardoso Pires (1925-1998) faz uma radiografia estético-literária <strong>da</strong><br />

opressão política lusa, baseado em um fato verídico: o assassinato do capitão de exército,<br />

Almei<strong>da</strong> Santos (1960), um dos líderes de um golpe de estado abortado contra o governo de<br />

Salazar (1959). No romance Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> praia dos cães (1982) surge a metrópole Lisboa,<br />

estagna<strong>da</strong> e impotente, imersa na ditadura, que é abala<strong>da</strong> pela descoberta do cadáver do Major<br />

Dantas Castro, envolvido em uma frustra<strong>da</strong> “tentativa de sedição militar”. Por meio <strong>da</strong><br />

construção do inquérito textual pela perspectiva do narrador e do investigador Elias Santana,<br />

bem como <strong>da</strong> apresentação do processo <strong>da</strong> escrita <strong>da</strong> narrativa, são apresentados: o crime, a<br />

investigação, e a revelação dos criminosos, com mecanismos que parodiam a narrativa<br />

policial clássica. Para a análise <strong>da</strong> obra polifônica, cujo narrador não está, somente, em busca<br />

do assassino, mas sim <strong>da</strong> situação sociopolítica e econômica, que motivou o crime, serão<br />

utiliza<strong>da</strong>s as teorias de Todorov (estrutura e tipologia do romance policial, 1970), e Hutcheon<br />

(paródia, 1989).<br />

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Portuguesa; José Cardoso Pires; ditadura; narrativa<br />

policial; paródia.<br />

ABSTRACT: After the instauration of the democratic regime, in Portugal (1974), the already<br />

acclaimed writer José Cardoso Pires (1925-1998) makes an esthetic-literary radiography of<br />

the Portuguese political oppression, based on a true life story: the murder of the army captain,<br />

Almei<strong>da</strong> Santos (1960), one of the leaders of the aborted coup d’ état against Salazar’s<br />

government. In the novel Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> praia dos cães (1982) the metropolis Lisbon springs<br />

stagnated and impotent, stuck in the dictatorship, which is struck by the discovery of the<br />

corpse of Major Dantas Castro, involved in the frustrated “attempt of military sedition”. By<br />

undertaking the text inquiry according to the narrator’s and the inquisitor Elias Santana’s<br />

points-of-view, as well as to the presentation of the writing process of the narrative, the<br />

following features are pointed out: the murder, the investigation, and the disclosure of the<br />

murderers, by using devices which parodied the classical crime narrative. For the analysis of<br />

the polyphonic work, whose narrator is not only pursuing the murderer, but rather in search<br />

for the sociopolitical and economical situation which brought about the crime, we will use the<br />

theories developed by Todorov (structure and typology of crime novels, 1970), and by<br />

Hutcheon (parody, 1989).<br />

KEYWORDS: Portuguese Literature; José Cardoso Pires; dictatorship; crime narrative;<br />

parody.<br />

INTRODUÇÃO<br />

307


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

No dia 2 de abril de 1960, época de aguerri<strong>da</strong> perseguição a dissidentes, que se<br />

colocavam diametralmente opostos à ditadura civil de Antonio de Oliveira Salazar (1889-<br />

1970), fragiliza<strong>da</strong> pelas primeiras inquietações nas suas colônias africanas, em prol <strong>da</strong>s lutas<br />

pela independência, jornais lisboetas publicaram o seguinte telegrama expedido pelo órgão<br />

oficial de comunicação, e distribuído à impressa pela AFP (Agence France Presse):<br />

[...] as investigações para identificação de um cadáver descoberto anteontem<br />

na praia do Guincho, perto de Lisboa, permite suspeitar de que se trata do<br />

capitão Almei<strong>da</strong> Santos, um dos evadidos <strong>da</strong> prisão militar de Elvas, em<br />

Dezembro último, onde estava encarcerado por activi<strong>da</strong>des políticas contra o<br />

regime. (AFP apud SENA, 1998, p. 1).<br />

O capitão José Joaquim Almei<strong>da</strong> Santos, que foi um dos principais líderes de uma<br />

conspiração frustra<strong>da</strong> contra o governo de Salazar (“Golpe <strong>da</strong> Sé”, 1959), aguar<strong>da</strong>va<br />

julgamento no presídio militar de Elvas, de onde fugiu com dois cúmplices, que o<br />

assassinaram, de forma traiçoeira e indigna, no esconderijo próximo a Lisboa.<br />

A respeito <strong>da</strong>s informações acima cita<strong>da</strong>s, o escritor e jornalista Jorge de Sena,<br />

também, participante do episódio político falho, escreveu o editorial Os Dois Cadáveres, do<br />

jornal Portugal Democrático. Publicado na edição de abril de 1960, o texto-manifesto de Sena<br />

estabelece uma analogia entre o corpo de Portugal e o do capitão Almei<strong>da</strong> Santos, ci<strong>da</strong>dão<br />

patriota e militar, ao mesmo tempo, que, ataca o chefe de estado:<br />

Tu, Salazar, [...] serás um cadáver, hás-de ser um cadáver, terás de ser um<br />

cadáver. Não um cadáver hipotético – como o <strong>da</strong> Pátria ensanguenta<strong>da</strong> –<br />

abandonado, tão ocasionalmente, numa praia deserta. Mas um cadáver –<br />

consola-te que não terá tempo de apodrecer, como o <strong>da</strong> Pátria em trinta anos<br />

de governo teu. Um cadáver que a terra portuguesa se recusará a comer. Um<br />

cadáver que os mares de Portugal – e todos são – se recusarão a engolir.<br />

(SENA, 1998, p. 1).<br />

Escrito depois <strong>da</strong> Revolução dos Cravos (1974), que libertou Portugal <strong>da</strong> tirania<br />

instala<strong>da</strong> por Salazar, falecido em 1970, e sucedido por Marcello Caetano, o romance Bala<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, ficcionaliza o bárbaro homicídio verídico<br />

mencionado, e, por meio dele faz um balanço literário sobre as diversas formas <strong>da</strong> violência -<br />

a física, a verbal, a ideológica, a política e a social. Por ocasião do lançamento <strong>da</strong> obra, o<br />

escritor concedeu uma entrevista a Antonio Mega Pereira, publica<strong>da</strong> no Jornal <strong>da</strong>s Letras, em<br />

7 de dezembro de 1982, com o título O meu romance é uma valsa de conspiradores, na qual<br />

308


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

acusa o marasmo existente na paisagem política lusa, com dissidentes frouxos em tentativas<br />

de oposição mentirosas, participantes de um grande baile-farsa:<br />

[...] o que é ver<strong>da</strong>de e que, durante déca<strong>da</strong>s, houve neste país uma oposição<br />

<strong>da</strong> conspirata profissional, republicanóide e mitómana, cuja fantasia<br />

megalómana constituía o melhor campo de treino dos métodos policiais do<br />

fascismo. O que se passa naquela casa, onde coabitam aqueles quatro seres é<br />

a caricatura (no entanto real) do que foi uma parte <strong>da</strong> conspiração<br />

antifascista neste país durante muito tempo. O que era essencial era manterse<br />

o moral, e para isso mentia-se, mentia-se sempre. Mas era o país inteiro<br />

que valsava: mentiam os polícias uns aos outros, e os conspiradores, e os<br />

jornais, e a propagan<strong>da</strong>, e os políticos. E todos alegremente se desculpavam<br />

<strong>da</strong> sua realíssima impotência para mu<strong>da</strong>r as coisas. (PIRES, 1982, p. 3)<br />

Na Casa <strong>da</strong> Vere<strong>da</strong>, o esconderijo dos fugitivos, em aspecto ficcional, José Cardoso<br />

Pires reproduz, em forma de cartum com palavras, o engodo subterrâneo <strong>da</strong> oposição, perdi<strong>da</strong><br />

em guerrinhas pessoais, desvia<strong>da</strong>s totalmente dos planos iniciais de derruba<strong>da</strong> <strong>da</strong> ditadura.<br />

A dimensão do assassinato de José Joaquim Almei<strong>da</strong> Santos, cometido por três<br />

cúmplices, que de admiradores do capitão se tornaram seus algozes, em uma explosão fatal de<br />

violência, como reflexo de uma socie<strong>da</strong>de imersa em opressão e medo, tornou-se o cerne de<br />

Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> Praia dos Cães, uma narrativa fragmenta<strong>da</strong>, que mescla o discurso histórico e o<br />

discurso literário, publica<strong>da</strong> em 1982. Para a interpretação do romance, serão utiliza<strong>da</strong>s as<br />

teorias de Todorov, e as reflexões de Hutcheon.<br />

O FATO HISTÓRICO COMO GÊNESE DO ROMANCE<br />

Os jornais portugueses <strong>da</strong> época - Diário de Notícias, O Século, Diário Popular e<br />

Diário <strong>da</strong> Manhã - noticiaram que o corpo de José Joaquim Almei<strong>da</strong> Santos, ex-capitão do<br />

Exército, tinha sido encontrado na Praia do Guincho, no dia 31 de março de 1960.<br />

O capitão José Joaquim Almei<strong>da</strong> Santos foi um dos principais artífices <strong>da</strong> tentativa<br />

civil e militar pela redemocratização de Portugal, que ficou conheci<strong>da</strong> como o “Golpe <strong>da</strong> Sé”,<br />

de 12 de março de 1959. Na noite de 11 de março, membros <strong>da</strong> cúpula organizadora<br />

conspiradora se reuniram no claustro <strong>da</strong> Sé Patriarcal de Lisboa, com a permissão do pároco<br />

João Augusto <strong>da</strong> Costa Perestrello de Vasconcelos, que era militante <strong>da</strong> causa. Outras<br />

uni<strong>da</strong>des estavam agrupa<strong>da</strong>s em locais estratégicos <strong>da</strong> capital, quando receberam um<br />

alarmante sinal de retira<strong>da</strong>, pois a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) tinha<br />

recebido notícias sobre a sedição (PIMENTEL, 2010, on-line). Entre os vários aprisionados<br />

309


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

encontrava-se Almei<strong>da</strong> Santos, que aguar<strong>da</strong>va julgamento no presídio militar de Elvas, onde<br />

conseguiu persuadir à fuga outros seguidores - Jean Jacques Marques Valente, oficial médico,<br />

e António Marques Gil, cabo-, os quais depois o assassinaram.<br />

Esse crime, inicialmente, foi interpretado como político: a eliminação, por forças<br />

repressoras <strong>da</strong> Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), do dissidente de far<strong>da</strong>,<br />

Santos, que não somente ousou criticar a ditadura salazarista, mas também tentar tirá-la do<br />

poder, e ain<strong>da</strong> mais, conseguiu arregimentar parceiros dentro <strong>da</strong> carceragem, com os quais<br />

conseguiu escapar, desnu<strong>da</strong>ndo as falhas do sistema prisional militar.<br />

No decorrer <strong>da</strong> investigação, feita pela Polícia Judiciária (PJ), e pela PIDE, foi<br />

constatado, que o homicídio não foi cometido por forças salazaristas, mas sim por pessoas<br />

próximas <strong>da</strong> vítima: Maria José Maldonado Sequeira, a sua amante, e os dois cúmplices o<br />

médico Marques Valente, e o cabo Gil. Esse fato histórico (1960) vai constituir o<br />

embasamento do romance Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> Praia dos Cães (1982), de José Cardoso Pires.<br />

No outono de 1961, conforme consta na nota final <strong>da</strong> obra, o escritor Pires confirmou<br />

o recebimento de um relato de 22 páginas, escrito por um condenado [o médico Jean Jacques<br />

Marques Valente] 16i pela co-participação em um homicídio [o de José Joaquim Almei<strong>da</strong><br />

Santos]. Esse texto memorialístico, o qual foi enviado a José Cardoso Pires, por L. V., que se<br />

encontrava na embaixa<strong>da</strong> do Brasil, em Lisboa, na condição de asilado político, ficou<br />

hibernando até 1975, quando o escritor o trabalhou com licença poética: “para <strong>da</strong>r forma à<br />

ideia de usar a história, uma vez que poderia servir-se de maiores detalhes nas fichas policiais.<br />

[...]. Contudo o que mais me interessava era demonstrar como [aquela situação] era o<br />

microcosmo do medo instalado à escala nacional” (PIRES, 1997, p. 1).<br />

Nessa mesma nota final, dividi<strong>da</strong> em três partes, José Cardoso Pires esclarece, ain<strong>da</strong>:<br />

1- que ele fez uma leitura posterior dos dois processos-crimes - o <strong>da</strong> Polícia Judiciária (PJ), e<br />

o <strong>da</strong> Polícia Política, a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado)- a respeito do<br />

inquérito policial, bem como entrou, posteriormente, em contato direto com o autor do relato<br />

[o médico Valente], depois que ele cumpriu a pena por homicídio; 2- que a confissão do autor<br />

do relato revela a permanência de sua “solidão vertical” depois <strong>da</strong> “experiência de terror”, 20<br />

anos depois o crime; e 3- e a sua conclusão [do escritor] sobre o trágico evento:<br />

16 José Cardoso Pires não cita nominalmente o autor do relato memorialístico sobre o homicídio, na NOTA<br />

FINAL do romance, mas sabe-se, conforme as notícias veicula<strong>da</strong>s na imprensa sonora e escrita, e nos autos <strong>da</strong><br />

investigação e do julgamento, que se trata do oficial médico, Jean Jacques Marques Valente.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Em certas vi<strong>da</strong>s (eu acrescentaria, em to<strong>da</strong>s) há circunstâncias que projectam<br />

o indivíduo para significações do domínio geral. Um acaso pode transformálo<br />

em matéria universal – matéria histórica para uns, matéria de ficção para<br />

outros, mas sempre justificativa de abor<strong>da</strong>gem. Interrogamo-la, essa matéria,<br />

porque ele nos interroga no fundo de ca<strong>da</strong> um de nós – foi assim que pensei<br />

esse livro, um romance. [...]. O Major Castro, o arquiteto Fontenova, o cabo<br />

Barroca e Mena são personagens literárias, disserta<strong>da</strong>s de figuras reais<br />

(PIRES, 1984, p. 246).<br />

Com reformulação <strong>da</strong> matéria histórica – o assassinato do capitão José Joaquim<br />

Almei<strong>da</strong> Santos, cujo cadáver foi encontrado no dia 31 de março de 1960, na praia do<br />

Guincho, em Lisboa –, Pires elabora o seguinte fato literário: o corpo de Luís Dantas Castro,<br />

ex-major do Exército, foi encontrado na Praia do Mastro, em 3 de abril de 1960. Os autores<br />

verídicos do crime – a estu<strong>da</strong>nte universitária Maria José Maldonado Sequeira, amante de<br />

Santos, o oficial médico Jean Jacques Marques Valente, e o cabo António Marques Gil, foram<br />

renomeados, como: Filomena Joana Van Niel Athaíde (Mena); o arquiteto Renato Manuel<br />

Fontenova Sarmento; e o cabo Bernardino Barroca, respectivamente.<br />

A preocupação, com a ver<strong>da</strong>de histórica do crime passional de 1960 (antecedentes e<br />

repercussão, e os bastidores <strong>da</strong> investigação), reflete-se no nome e nas atitudes <strong>da</strong>s<br />

personagens verídicas envolvi<strong>da</strong>s, conforme eluci<strong>da</strong> José Cardoso Pires no apêndice do<br />

romance: o próprio detetive Elias Cabral Santana, e Silvino Roque, seu auxiliar com o qual<br />

Pires conversou em maio de 1979; bem como o inspector-adjunto José Aurélio Boim Falcão,<br />

e Silvio <strong>da</strong> Costa Mortágua, <strong>da</strong> PIDE; entre outros. Pires cita obras consulta<strong>da</strong>s para a escrita<br />

do romance, vincula<strong>da</strong>s aos temas – medo, preço e denúncia, e corrupção <strong>da</strong>s altas patentes<br />

militares: Portugal oprimido (1974), de Fernando Queiroga; Memórias do Capitão, de<br />

Sarmento Pimentel (1962); Documentos secretos <strong>da</strong> PIDE (1976), etc. (PIRES, 1984, p. 239 a<br />

242). Portanto, Pires atua como detetive, tal como seu protagonista Elias, e pesquisador dos<br />

fatos, com entrevista-conversa manti<strong>da</strong> com um condenado (o médico Jean), e consulta de<br />

obras historiográficas.<br />

José Cardoso Pires humaniza personagens históricas, como o detetive Elias Cabral<br />

Santana, chefe <strong>da</strong> briga<strong>da</strong> <strong>da</strong> Polícia Judiciária (PJ), e os assassinos – dois homens e uma<br />

mulher –, apresentando as várias facetas de suas personali<strong>da</strong>des, com destaque para as<br />

fragili<strong>da</strong>des emocionais, que culminaram no homicídio premeditado do militar, considerado<br />

um modelo de retidão e liderança política, que se metamorfoseou em um tirano frente aos<br />

seus cúmplices, ao instalar um microcosmo ditatorial no esconderijo, a Casa <strong>da</strong> Vere<strong>da</strong>.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Em relação à classificação do romance Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> Praia dos Cães, que é híbrido –<br />

história; reportagem; investigação policial e reconstituição do crime; e bala<strong>da</strong> contemporânea<br />

–, recorre-se à leitura <strong>da</strong> teoria do romance policial, segundo Todorov, para tecer reflexões<br />

sobre sua aplicabili<strong>da</strong>de na obra de José Cardoso Pires.<br />

A BALADA DA PRAIA DOS CÃES: UMA RUPTURA DA NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

CLÁSSICA.<br />

Pela publicação do romance histórico-policial Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> Praia dos Cães (1982), oito<br />

anos depois <strong>da</strong> que<strong>da</strong> do regime ditatorial de Portugal (1974), José Cardoso Pires foi<br />

agraciado com o Grande Prémio do Romance e <strong>da</strong> Novela, outorgado pela Associação dos<br />

Escritores Portugueses (1982). Essa narrativa, na qual Pires denúncia as arbitrarie<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

ditadura salazarista, que amor<strong>da</strong>çou dissidentes, perseguiu, prendeu, torturou e matou, teve<br />

uma versão cinematográfica (1987).<br />

Na obra A palavra do romance: Ensaios de genologia e análise (1986), a crítica<br />

literária Maria Alzira Aleixo comenta sobre as distintas configurações <strong>da</strong> narrativa portuguesa<br />

pós-1974:<br />

Se as tendências regionalistas e universalistas se distribuíra na literatura<br />

moderna por vultos [...] e movimentos de grande impacto [...] a partir de<br />

1974 é possível verificar uma reorganização destas várias tendências. [...]<br />

Esta escrita marca<strong>da</strong> de tempo procura abrir um espaço de descoberta ou<br />

pelo menos de compreensão: compreensão do sentido <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de enfim<br />

reencontra<strong>da</strong> (liber<strong>da</strong>de de ser, de existir, e por conseguinte também de<br />

escrever), compreensão do que essa reali<strong>da</strong>de quer dizer e para onde ela vai<br />

(SEIXO, 1986, p. 73).<br />

José Cardoso Pires (1925-1998) lançou seu primeiro romance, em 1958, O Anjo<br />

Ancorado, com críticas sociais e aspectos alegóricos. No ano de 1960, publica a peça teatral O<br />

Render dos Heróis, baseado em um fato histórico, com denúncias de opressão no início do<br />

século XIX, bem como o ensaio Cartilha de Marialva. Outras obras seguem: O hóspede de<br />

Job (1963); O Delfim (1968), romance policial; O Dinossauro Excelentíssimo (1972), com<br />

alusões a Salazar (morto em 1970); E agora, José (1977), textos reflexivos sobre o passado<br />

recente de Portugal; e Corpo de Delito na Sala <strong>da</strong> Espera (1979), peça teatral sobre a atuação<br />

<strong>da</strong> PIDE.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A obra Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> Praia dos Cães, publica<strong>da</strong> em 1982, inicia<strong>da</strong> com um relato<br />

policial sobre a descrição do cadáver de um desconhecido (quinze itens com jargão<br />

criminalístico e de medicina legal), divide-se em: INVESTIGAÇÃO 7 de Maio de 1960; A<br />

RECONSTITUIÇÃO 8 de Agosto de 1960; APÊNDICE; e NOTA FINAL.<br />

Preso por conspiração contra o estado de Salazar, o Major Dantas Castro, casado, e<br />

pai de família, planeja a sua fuga do cárcere militar de Elvas, com o oficial e arquiteto<br />

miliciano Renato Manuel Fontenova; ambos cooptam o simplório cabo Barroca, de origem<br />

rural, que acreditava que todos iriam para a França. A estu<strong>da</strong>nte universitária Filomena, a<br />

Mena, amante do major, organizou a evasão, ocorri<strong>da</strong> na noite do dia 31 de dezembro para o 1<br />

de janeiro. Os quatro passam a viver na Casa <strong>da</strong> Vere<strong>da</strong>, na povoação de Fornos, perto de<br />

Lisboa, na vã e angustiante espera por recebimento de aju<strong>da</strong> externa, como documentos<br />

falsos, dinheiro, e rota de fuga planeja<strong>da</strong> para fora do país. No romance, o elo exterior do<br />

grupo era o Comodoro, o advogado Gama e Sá, personagem histórica, que iria atuar na defesa<br />

de Almei<strong>da</strong> Santos, morto antes do início do julgamento.<br />

Os simpatizantes do movimento para derruba<strong>da</strong> de Salazar, como o advogado Sá,<br />

entretanto, não querem se envolver com Dantas, cuja vi<strong>da</strong> tinha se complicado ain<strong>da</strong> mais<br />

com a fuga treslouca<strong>da</strong>. Desesperado, o Major reconhece a causa perdi<strong>da</strong>, e começa a escrever<br />

uma lista negra, com os nomes dos traidores <strong>da</strong> mobilização em prol <strong>da</strong> redemocratização de<br />

Portugal, bem como os dos generais corruptos, e passa a atormentar a todos (Mena,<br />

Fontenova e Barroca), de arma em punho.<br />

O confinamento planejamento por ele extrai de sua personali<strong>da</strong>de o pior de si: a<br />

faceta de algoz impiedoso e debochador, que inferniza a todos. Dantas reproduz no<br />

esconderijo dois tipos de desmandos vigentes na socie<strong>da</strong>de portuguesa <strong>da</strong> época: a violência<br />

machista contra a mulher (a amante), e a político-militar em relação aos dois companheiros.<br />

Faz sessões de tortura com sua amante, por meio de ferimentos nas costas com cigarro aceso,<br />

e até queimaduras no rosto com lâmpa<strong>da</strong> liga<strong>da</strong>. Humilha o cabo Barroca, por deixar a barba<br />

crescer e por estu<strong>da</strong>r francês. Comenta com Fontenova, que tem planos para assassinar a<br />

jovem. Dantas sai, disfarçado de padre, e simula encontros com colegas militantes. Seu<br />

sentimento de abandono é tamanho, que ele intensifica o terrorismo na vi<strong>da</strong> de todos, mas os<br />

militares já desesperançados por mu<strong>da</strong>nças, e acuados pelas ameaças mortais, premeditam o<br />

crime, e o matam sorrateiramente. Filomena, que não sabia dos planos de assassinato, mas ao<br />

ouvir os gritos, e aparecer, totalmente perplexa e horroriza<strong>da</strong>, foi coagi<strong>da</strong> a atingir Dantas já<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

caído e agonizante, com um tiro, quando notam que ele ain<strong>da</strong> poderia estar vivo. O corpo do<br />

decaído líder foi enterrado em uma praia e descoberto por cães.<br />

A informação sobre um crime, transmiti<strong>da</strong> ao leitor, na primeira página do romance,<br />

foi basea<strong>da</strong> em uma notícia de jornal, com o título “cadáver de um desconhecido encontrado<br />

na Praia do Mastro em 3-4-1960”, que explica sobre achamento do corpo de um indivíduo do<br />

sexo masculino, com 1,72 de altura, cerca de cinquenta anos, sapatos trocados: “2. não<br />

apresenta rigidez ca<strong>da</strong>vérica, mas tem livores ... 3. Na calota craniana, ao nível <strong>da</strong> sutura dta.,<br />

occipito-parieta, há uma perfuração circular de 4 mm de diâmetro provoca<strong>da</strong> por projétil [...].<br />

15. [...] algumas peça do vestuário apresentavam-se rasga<strong>da</strong>s pelos cães” (PIRES, 1984, p. 5 e<br />

6).<br />

Estrutura<strong>da</strong> em dois planos: o <strong>da</strong> investigação do homicídio e o <strong>da</strong> eluci<strong>da</strong>ção dos<br />

fatos entre a fuga de Dantas Castro e o achamento de seu corpo, realizado pelo detetive Elias,<br />

e equipe, o romance Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> Praia dos Cães mescla diferentes registros: o científicopolicial,<br />

o literário, o musical, o jornalístico (Diário de Notícias, O Século, Diário Popular e<br />

Diário <strong>da</strong> Manhã, de Lisboa; e Tribuna Popular, do Rio de Janeiro); bem como outros tipos<br />

de textos: o panfleto <strong>da</strong> Frente Arma<strong>da</strong> Independente (F.A.I.), de anônimos Oficiais <strong>da</strong>s<br />

Forças Arma<strong>da</strong>s, em apoio a Dantas; um postal à PJ, com acusações à PIDE, etc.<br />

Como chefe <strong>da</strong> briga<strong>da</strong> <strong>da</strong> Polícia Judiciária (PJ), Elias, que se faz acompanhar pelo<br />

agente Silvino Roque nas diligências, não investigou o homicídio sozinho, pois pelo fato do<br />

crime ter sido considerado político, inicialmente, houve o inquérito realizado pelo Dr. Otero,<br />

inspetor <strong>da</strong> PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), paralelamente.<br />

Elias Cabral Santana (personagem histórico), protagonista do romance, filho de juiz,<br />

cantor lírico amador em academias de bairro, é um “indivíduo de fraca compleição física,<br />

palidez acentua<strong>da</strong>, 1 metro e 73 de altura; olhos salientes [...]”. Exibe a “unha do dedo<br />

mínimo, que é cresci<strong>da</strong> e enverniza<strong>da</strong>, unha de guitarrista ou de mágico vidente, e que faz<br />

realçar o anel de brasão exposto no mesmo dedo”, e usa habitualmente um casaco xadrez,<br />

calça lisa, e gravata de luto guarneci<strong>da</strong> com alfinete de pérola. Conhecido por Covas ou Chefe<br />

Covas, Elias tem esse apelido por causa de sua prestação de serviços na Seção de Homicídios,<br />

e por ter passado: “a vi<strong>da</strong> a desenterrar mortes trabalha<strong>da</strong>s e a distribuir assassinos pelos<br />

vários jazigos gradeados que são as penitenciárias do país”. Utiliza o termo De Cujus, ao<br />

invés <strong>da</strong>s palavras: defunto, finado ou falecido (PIRES, 1984, p. 11 e 12).<br />

No início do romance Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> Praia dos Cães, o narrador já acaba com o suspense<br />

do crime, no momento em que Elias, o detetive responsável pela investigação do homicídio,<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

analisa as fotos dos acusados, impressa em um jornal: “E estes são os três suspeitos, os que<br />

mataram e levaram o segredo com eles” (PIRES, 1984, p. 15).<br />

Solitário, órfão de pais, com uma única irmã, já faleci<strong>da</strong>, Elias, que tem como bicho<br />

de estimação, o lagarto Lizardo, apaixona-se pela suspeita Filomena, desde que viu as fotos<br />

dela encontra<strong>da</strong>s em seu apartamento, quando foi vistoriado em busca de indícios que<br />

poderiam eluci<strong>da</strong>r seu envolvimento com o major Dantas e o seu assassinato:<br />

Elias advinha esse corpo. Um corpo sumptuoso; todo no concreto, ca<strong>da</strong> coisa<br />

no seu lugar. Admira-o em particular numa foto em que ela aparece em<br />

bikini num relvado de piscina com um friso de pavões ao fundo – e era uma<br />

ver<strong>da</strong>de, aquele corpo. Coxas serenas e poderosas, o altear do púbis, era isso,<br />

era essa ver<strong>da</strong>de saudável e repousa<strong>da</strong> que [...] contemplava apoiado num<br />

cotovelo. (PIRES, 1984, p 25 e 26)<br />

No princípio do inquérito, quando foi aprisiona<strong>da</strong>, depois de uma denúncia,<br />

Filomena Joana Van Niel Athaíde, a Mena, a estu<strong>da</strong>nte universitária sem razão de viver,<br />

amasia<strong>da</strong> com o major Dantas, mais velho, violento e controlador, narra a Elias sobre a tirania<br />

exerci<strong>da</strong> pelo militar no esconderijo, e sem pestanejar, confessa o crime: “Elias acompanha a<br />

cena para lá do esmaecer <strong>da</strong>s lentes mas o seu ouvido de polícia regista-a na versão definitiva:<br />

“Impossibilita<strong>da</strong> de se libertar, a acusa<strong>da</strong> fez ali mesmo a confissão circunstancia<strong>da</strong> dos<br />

acontecimentos” (PIRES, 1984, p. 188).<br />

Durante o tenso e repetitivo interrogatório, Mena conta a Elias sobre seu temor de ser<br />

assassina<strong>da</strong> pelo amante, revelando indícios assustadores a respeito do tipo de tortura que<br />

estava sofrendo nas mãos dele, desde os encontros no apartamento por ele alugado, até as<br />

sessões intensifica<strong>da</strong>s na Casa <strong>da</strong> Vere<strong>da</strong>, onde se revelou um ver<strong>da</strong>deiro psicopata:<br />

Então põe-se de pé, e olhe, volta-se levantando as traseiras do pull-over<br />

acima do elástico do soutien. E Elias vê. Vê e não acredita. Desde a cintura<br />

ao pescoço tinhas as costas lavra<strong>da</strong>s por queimaduras de cigarro, cinzentas e<br />

eriça<strong>da</strong>s. Repeti<strong>da</strong>s. Meticulosas. Pareciam uma espinha de escamas a todo<br />

o correr do dorso.<br />

Ele tinha-se tornado impotente, diz Mena, baixando o pull-over. (PIRES,<br />

1984, p. 25 e 26)<br />

O elo de amor-ódio entre Filomena e seu amante Dantas Castro, um conhecido de<br />

seu pai, tinha sido sempre pautado pela violência física e verbal, conforme testemunhos de<br />

vizinhos do apartamento, que ele tinha montado para encontros amorosos. Filha única de um<br />

engenheiro e de mãe alcoólatra faleci<strong>da</strong>, Mena era vicia<strong>da</strong> em tabaco e Valium. A moça sabia<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

dos planos de golpe de estado, que provocaram a expulsão de Dantas do Exército, e o seu<br />

aprisionamento. Fiel e dedica<strong>da</strong>, o acompanhou de perto em seu confinamento no presídio<br />

militar de Elvas; e foi cúmplice no plano de fuga: alugou a residência para esconderijo;<br />

comprou um traje de padre para ser usado como disfarce por Dantas; buscou os fugitivos com<br />

um carro, na noite chuvosa; fazia o serviço doméstico na casa; comprava mantimentos e<br />

outros objetos; visitou o advogado Sá; e tentava animar o depressivo e embriagado amante.<br />

Submissa a ele, desde o início do relacionamento complicado, sofreu diversos tipos de maus<br />

tratos, contínuos, dolorosos e ritualísticos, próprios de uma relação sado-masoquista, como os<br />

ocasionados com pontas de cigarro aceso, que atingiram o ápice quando ele queima seu rosto<br />

com a luz flamejante de um abajur, no esconderijo. Mas durante o interrogatório,<br />

envergonha<strong>da</strong>, ela tenta explicar a Elias, que Dantas era impotente, fato inverídico, conforme<br />

alguns testemunhos e indícios. Mena, como muitas mulheres agredi<strong>da</strong>s fisicamente e<br />

emocionalmente, absolvem o companheiro e suas atroci<strong>da</strong>des e, nesse caso, com a desculpa<br />

de uma falha sexual, como justificativa simplista sobre o papel de carrasco que ele<br />

desempenhava em sua existência sem significado pessoal: uma vi<strong>da</strong> à sombra do major.<br />

Na Casa <strong>da</strong> Vere<strong>da</strong>, local de refúgio dos quatro – Dantas Castro, o arquiteto<br />

Fontenova, o cabo Barroca e Filomena –, a ambiência assume a dimensão de desespero e de<br />

terror, quando percebem que estão esquecidos, e encurralados. O líder bebe,<br />

desenfrea<strong>da</strong>mente, e como um desvairado, aterroriza os demais. Debocha de Barroca, que<br />

tenta estabelecer uma rotina normal no cotidiano tenso, e estu<strong>da</strong> francês com Fontenova, na<br />

crença ingênua que iriam para a França, país de seu sonho de emigração. Dantas atormenta o<br />

arquiteto para romper o vinculo com o cabo, conforme a narrativa de Mena para Elias:<br />

“Posso Dantas” E disse-as. E lembrou que não tinha sido ele, Fontenova,<br />

quem aliciara o cabo com promessas de o por no lado de lá <strong>da</strong> fronteira e que<br />

isso é que é em seu entender representava um logro para o rapaz, intencional<br />

ou não. Que não tendo havido até aquela <strong>da</strong>ta quaisquer sinais de activi<strong>da</strong>de<br />

também não seria a melhor altura para o convencerem a integrar-se na luta<br />

revolucionária. Pelo contrário Fontenova receava que o cabo se sentisse<br />

traído e então, sim, desaparecesse ou fizesse alguma imprudência. (PIRES,<br />

1984, p 184)<br />

Nesse momento de amarga constatação de sentimento de per<strong>da</strong> total dos sonhos de<br />

democracia, de liber<strong>da</strong>de, de igual<strong>da</strong>de e de fraterni<strong>da</strong>de, bem como <strong>da</strong> falta de dinheiro, e <strong>da</strong><br />

não aju<strong>da</strong> com documentos falsos para a fuga, a união entre eles começa a ruir<br />

completamente. Fora compreendido, que Dantas, disfarçado de padre, quando afirmava visitar<br />

316


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

o Comodoro, o advogado Sá, que era o vínculo de ligação com a reali<strong>da</strong>de, de fato, se<br />

escondia nas imediações <strong>da</strong> casa-esconderijo. Diante do arrependimento pela participação no<br />

funesto plano de fuga de Elvas, arquitetado pelo major, e apoiado pela desequilibra<strong>da</strong> Mena,<br />

ficou evidente somente uma ver<strong>da</strong>de para Fontenova e por Barroca: a saí<strong>da</strong> individual do<br />

esconderijo, e/ou a eliminação do mentiroso tirano, que eram planos complicados, que<br />

provocaram tragédia, na noite de ameaças protagoniza<strong>da</strong> por Dantas.<br />

No fatídico dia, o major Dantas organizou um tribunal militar, no qual atuou como<br />

juiz e promotor: na chama<strong>da</strong> Noite dos Generais, ele fez revelações verbais sobre a corrupção<br />

encalacra<strong>da</strong> nos altos escalões do Exército, já escritas em uma brochura (Dantas C. Caderno)<br />

que foi acha<strong>da</strong> pela polícia. No quarto, ele começou, com a lâmpa<strong>da</strong> acesa, a torturar Mena<br />

que logrou escapar. Cientes do plano divulgado por ele, anteriormente, sobre o assassinato <strong>da</strong><br />

moça, cujo local <strong>da</strong> cova tinha sido mostrado, bem como sobre o risco de suas próprias vi<strong>da</strong>s,<br />

conforme ficou muito claro naquele momento, pelas atitudes e ameaças do “juiz” implacável,<br />

os dois jovem planejam o assassinato, executado com tiros e goles de pá.<br />

No romance Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> Praia dos Cães, José Cardoso Pires dá voz a várias pessoas,<br />

que narram as várias versões para a reconstrução do crime, que fazem parte dos autos do<br />

processo e do dossiê organizado pelo inspetor Otero (PIDE), e por Elias, <strong>da</strong> Polícia Judiciária.<br />

A pluralização discursiva soa na bala<strong>da</strong> política, como vozes anônimas e nomea<strong>da</strong>s que<br />

condenam, indiretamente, a opressão <strong>da</strong> ditadura portuguesa, capaz não somente de<br />

amor<strong>da</strong>çar seus críticos, escutar clandestinamente, encarcerar, condenar, e matar, mas de<br />

contribuir para que pessoas normais, que anteriormente não tinham exibido traços de<br />

violência, em suas atitudes, possam se tornar assassinas frias.<br />

No início de Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> Praia dos Cães, o narrador acaba com o mistério <strong>da</strong> autoria<br />

do crime, característica principal <strong>da</strong> narrativa policial clássica, denomina<strong>da</strong> de romance de<br />

enigma, por Todorov, ao anunciar o nome dos assassinos, no momento <strong>da</strong> narração inicial<br />

sobre Elias que via as fotos dos acusados no jornal. Portanto, a revelação do nome dos<br />

criminosos ao leitor, antes <strong>da</strong> apresentação do inquérito policial, caracteriza a obra de Pires<br />

como uma paródia (uma repetição dos fatos escrita de forma irônica, segundo Lin<strong>da</strong><br />

Hutcheon) ao romance policial tradicional.<br />

A seguir, no primeiro interrogatório, a acusa<strong>da</strong> Filomena assume a autoria do crime,<br />

praticado em parceria com Fontenova e Barroca. Para o detetive Elias, somente resta<br />

comprovar a confissão pelos métodos policiais: inquérito mais aprofun<strong>da</strong>do com a inclusão<br />

dos dois cúmplices; reconstituição do crime, entre outros aspectos. No desenrolar do processo<br />

317


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

de investigação, Elias atua como um detetive invulnerável, que não corre perigo, situação<br />

vivencia<strong>da</strong>, de forma oposta, por seus pares, em obras que têm componentes do romance<br />

negro. Mas a atuação dele rompe com outras características do romance de enigma, como a <strong>da</strong><br />

não existência de amor no desenrolar <strong>da</strong> narrativa, pois ele se apaixona por Mena, assassina<br />

confessa. Outro <strong>da</strong>do, que descaracteriza a obra, como romance de enigma (Todorov), é a<br />

informação sobre a profissão <strong>da</strong> moça, antiga estu<strong>da</strong>nte, mas que na época do aprisionamento<br />

do amante era ociosa, depois se tornou uma emprega<strong>da</strong> doméstica e objeto sexual de<br />

agressões cometi<strong>da</strong>s por Dantas, no esconderijo: situação, que a coloca como pessoa sem<br />

qualificação ou status importante, na escala social, ou seja, indigna de ser protagonista na<br />

vertente do tipo de romance acima mencionado.<br />

Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> Praia dos Cães tem características de romance negro, como a<br />

apresentação do meio social, no qual as personagens estão inseri<strong>da</strong>s, e a racionali<strong>da</strong>de e frieza<br />

em certas descrições. Outras de romance de suspense, como informações futuras, ocorri<strong>da</strong>s<br />

depois dos fatos narrados na obra, sobre algumas personagens, como no caso do detetive<br />

Elias, a respeito do qual, o leitor vai saber que morreu em Angola.<br />

O romance histórico-policial de José Cardoso Pires tem peculiari<strong>da</strong>des próprias, pois<br />

se baseou em um fato ver<strong>da</strong>deiro. O autor faz descrições detalha<strong>da</strong>s <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Lisboa,<br />

como forma de registro <strong>da</strong> morosi<strong>da</strong>de e homogenei<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de pessoas em um sistema<br />

ditatorial, que tem vários modos de controle e de punição. A presença simbólica de Salazar,<br />

como encarnação <strong>da</strong> ditadura, está presente em retratos pendurados nas repartições públicas, e<br />

nas ramificações visíveis e subterrâneas <strong>da</strong> Polícia Judiciária e <strong>da</strong> PIDE. Pires tece inúmeras<br />

e profun<strong>da</strong>s descrições psicológicas a respeito <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de dos envolvidos no crime, <strong>da</strong><br />

vítima e de Elias, para melhor compreensão de suas atitudes. O narrador destaca, em especial,<br />

o perfil do detetive, que guardou, para si, em um “baú de sobrantes”, fotos <strong>da</strong> homici<strong>da</strong>,<br />

notícias sobre o crime, etc. (fato verídico).<br />

CONCLUSÃO<br />

Na bala<strong>da</strong> canta<strong>da</strong>/narra<strong>da</strong> por José Cardoso Pires é apresenta<strong>da</strong> a construção do<br />

inquérito textual-policial pela perspectiva do narrador e do detetive Elias, bem como o<br />

processo de escrita <strong>da</strong> narrativa. Tal obra pode ser classifica<strong>da</strong> como pertencente ao gênero<br />

romance policial, com atualizações, revitalizações e ressemantizações. Ela é polifônica e<br />

subversiva em relação ao romance policial tradicional (romance de enigma, conforme<br />

318


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Todorov), com a apresentação detalha<strong>da</strong> de jargões e técnicas de inquérito e de medicina legal<br />

forenses; textos e intertextos (notas de ro<strong>da</strong>pé explicativas sobre <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> biografia de<br />

personagens e eventos históricos; notícias de jornais; etc.). Ao leitor cabe a compreensão <strong>da</strong>s<br />

diversas intertextuali<strong>da</strong>des.<br />

José Cardoso Pires atua como um investigador para a escrita de sua obra: recorre a<br />

fontes históricas, e complementa informações, menciona<strong>da</strong>s no Apêndice, o qual inclui<br />

resultados de suas entrevistas com o arquiteto Fontenova (o médico Jean Jacques Marques<br />

Valente), no verão de 1980, acerca de detalhes de planos de fuga, etc.; e de outros fatos do<br />

processo-crime, como as conversas realiza<strong>da</strong>s em maio de 1979, com Silvino Roque, coinvestigador,<br />

subordinado a Elias Santana, que o informa sobre a vi<strong>da</strong> final do detetive-chefe<br />

<strong>da</strong> Polícia Judiciária, e sua estranha morte, em Angola (1974), como subinspetor <strong>da</strong><br />

Companhia de Diamantes (PIRES, 1984, p. 239-242). O romance Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> Praia dos Cães,<br />

portanto, configura como uma narrativa sobre diversas outras narrativas (versões ficcionais e<br />

históricas) a respeito <strong>da</strong>(s) ver<strong>da</strong>de(s) do homicídio <strong>da</strong> Praia do Guincho (1960).<br />

O crime de afetos, impulsionado pela desesperança e pavor impregnados nos três<br />

jovens acuados – Mena, Fontenova e Barroca – diante do comportamento tirânico do líder,<br />

que foi eluci<strong>da</strong>do pelo detetive Elias Santana (personagem histórico) e equipe, é o tema<br />

nuclear <strong>da</strong> narrativa, cujos bastidores revelam os mecanismos de poder em uma socie<strong>da</strong>de<br />

patriarcal e machista, domina<strong>da</strong> por mecanismos coercitivos, desde a instauração do Estado<br />

Novo (1933).<br />

A profun<strong>da</strong> decepção senti<strong>da</strong> por Dantas Castro, ao notar que os companheiros<br />

graúdos de luta contra o governo salazarista o abandonaram à própria sorte, com dois rapazes<br />

amedrontados e uma moça complica<strong>da</strong>, o leva à condição de tirano, e acelera a tragédia.<br />

Os <strong>da</strong>dos do relato policial sobre o corpo e o crime fazem parte <strong>da</strong> “primeira<br />

história”, a “história do crime”, e a sua continuação/aprofun<strong>da</strong>mento caracterizam a “história<br />

do inquérito”. (romance de enigma (Todorov)). Nesse caso, pode-se falar de uma investigação<br />

realiza<strong>da</strong> pelo detetive Elias, e pelo leitor através do próprio relato do narrador:<br />

esclarecimentos dos fatos, que levaram ao homicídio, com várias “ver<strong>da</strong>des”, conforme as<br />

diferentes perspectivas <strong>da</strong>s pessoas, que conheciam os acusados, e a dos próprios, de um lado;<br />

e de outro, a compreensão <strong>da</strong> equipe <strong>da</strong> Polícia Judicial e <strong>da</strong> Polícia Internacional de Defesa<br />

do Estado, e a <strong>da</strong> imprensa. Trata-se de diversas narrativas sobre o homicídio, que são<br />

componentes <strong>da</strong> resolução do “enigma”, e <strong>da</strong> elaboração <strong>da</strong> grande narrativa: a maneira <strong>da</strong><br />

construção-tessitura <strong>da</strong> narrativa sobre a história do crime.<br />

319


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Conforme os relatos escritos e verbais do co-autor do crime (o médico Valente) ao<br />

escritor José Cardoso Pires, a violência política e pessoal de Almei<strong>da</strong> Santos (a vítima na<br />

reali<strong>da</strong>de), com ameaças de divulgar a lista negra, e a presença permanente de uma arma na<br />

mão, desencadeou a violência extrema, causou a morte premedita<strong>da</strong> de um pai de família e o<br />

encarceramento de três jovens ingênuos na seara política, que foram também vítimas do<br />

sistema opressor:<br />

Então como hoje ele [o médico Valente] sabia que na sua tragédia individual<br />

existiu uma parte maior de erro colectivo; que as socie<strong>da</strong>des de terror se<br />

servem dos crimes avulsos para justificarem o crime social que elas<br />

representam por si mesmas e que em todos esses crimes a sua mão está<br />

presente, em todos. (PIRES, 1984, p. 243)<br />

A respeito <strong>da</strong> escolha do título de sua narrativa, Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> Praia dos Cães, Pires, em<br />

entrevista concedi<strong>da</strong> ao Jornal de Letras, n. 47, edição de 7 a 20 dez. 1982, explicou: “Bala<strong>da</strong><br />

porque à maneira <strong>da</strong>s bala<strong>da</strong>s inglesas, o que eu pretendi foi escrever sobre um acontecimento<br />

real já tocado pela len<strong>da</strong>” (PIRES, 1982, p. 2 e 3).<br />

Por esse romance polifônico, mesclado com fatos históricos e ficcionais, José<br />

Cardoso Pires, que exterioriza nele sua crítica sociopolítica sobre regimes ditatoriais e espirais<br />

de violências por eles provoca<strong>da</strong>s, recebeu o Grande Prémio do Romance e <strong>da</strong> Novela (1982),<br />

como forma de reconhecimento literário <strong>da</strong> academia para um escritor, que por meio <strong>da</strong><br />

literatura, escrita como forma de denúncia, evoca um momento de terrorismo político – o <strong>da</strong><br />

ditadura de Salazar, perpetrado por quase quatro déca<strong>da</strong>s, que não deve cair jamais no<br />

esquecimento.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

PIMENTEL, Irene. O Golpe <strong>da</strong> Sé. Blog, 19 de abril de 2010. Disponível em:<br />

. Acesso em: 7 abril 2012.<br />

PIRES, José Cardoso. Entrevista. Expresso, Lisboa, p. 1 e 2, 20 dez. 1997.<br />

______. O meu romance é uma valsa de conspiradores. Entrevista a Antonio Mega Pereira.<br />

Jornal <strong>da</strong>s Letras, Lisboa, ano II, n. 47, p. 2 - 4, 7 dez. 1982.<br />

______. Bala<strong>da</strong> <strong>da</strong> Praia dos Cães. Lisboa: Círculo de Leitores, 1984.<br />

SENA, Jorge de. Editorial: Dois cadáveres, Portugal Democrático, Lisboa, p. 1, abril 1960.<br />

Disponível em: .<br />

Acesso em: 7 abril 2012.<br />

320


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

SEIXO, Maria Alzira. A palavra do romance: Ensaios de genologia e análise. Lisboa: Livros<br />

Horizonte, 1986.<br />

TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: ______. As estruturas narrativas.<br />

Tradução s.n. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1970. (Coleção Debates; 14). p. 93-104.<br />

321


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Presença <strong>da</strong> narrativa policial na literatura brasileira contemporânea: O Xangô de Baker Street<br />

(1995)<br />

ROCHA, Renato Oliveira (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong> - IC-FAPESP)<br />

RESUMO: O Xangô de Baker Street (1995) é um exemplo de romance policial que se baseia<br />

em acontecimentos e personagens históricos e se configura como uma releitura <strong>da</strong>s aventuras<br />

do detetive mais famoso <strong>da</strong> literatura, Sherlock Holmes, ultrapassando os procedimentos do<br />

pastiche. O enredo desperta a curiosi<strong>da</strong>de no leitor para saber mais sobre a reali<strong>da</strong>de brasileira<br />

conta<strong>da</strong> através <strong>da</strong> leitura ficcional do Segundo Império. Guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as proporções, Jô Soares<br />

conseguiu fazer algo semelhante ao que fez Umberto Eco com O nome <strong>da</strong> rosa (1980).<br />

Reconheci<strong>da</strong>mente um best-seller, O Xangô de Baker Street, além de entreter o leitor com a<br />

trama (seguindo as características do romance policial), consegue chamar a atenção para<br />

personali<strong>da</strong>des como, por exemplo, Dom Pedro II, Sarah Bernhardt e Jack, o Estripador. Este<br />

assassino cuja história real é pontua<strong>da</strong> de incógnitas e tem paradeiro desconhecido até hoje,<br />

permitiu a manipulação espaço-temporal que o deslocou para o Brasil do século XIX, com a<br />

versão de seus primeiros crimes bem arquiteta<strong>da</strong> por Jô Soares. Além disso, o romance traz<br />

críticas aos costumes <strong>da</strong> época que se refletem em mor<strong>da</strong>zes comentários sobre hábitos do<br />

nosso presente. Neste trabalho, apresentaremos o percurso <strong>da</strong> pesquisa de iniciação científica<br />

e seus resultados finais que, no âmbito dos estudos em literatura brasileira contemporânea,<br />

passam pelo estudo de aspectos <strong>da</strong> indústria cultural e de seu impacto na obra de arte literária<br />

– relação íntima na contemporanei<strong>da</strong>de.<br />

PALAVRAS-CHAVE: romance policial; literatura contemporânea; indústria cultural.<br />

ABSTRACT: O Xangô de Baker Street (1995) is an example of a detective novel based on<br />

historical events and characters and is configured as a rereading of the adventures of<br />

literature's most famous detective, Sherlock Holmes, surpassing the procedures of pastiche.<br />

The plot intrigues the reader to learn more about the Brazilian reality told through fictional<br />

reading of the Second Empire. Taking everything in context, Jô Soares could do something<br />

similar to what Umberto Eco did with O nome <strong>da</strong> rosa (1980). Admittedly a best-seller, O<br />

Xangô de Baker Street, besides entertaining the reader with the plot (following the<br />

characteristics of the detective story), can draw attention to figures such as Dom Pedro II,<br />

Sarah Bernhardt and Jack the Ripper. This killer whose real story is unknown even to<strong>da</strong>y,<br />

allowed to manipulate space-time, coming to Brazil in the nineteenth century, with the story<br />

of his first crimes well developed by Jô Soares. Furthermore, the novel criticizes the customs<br />

of the time, as reflected in scathing comments on the habits of our present. In this paper, we<br />

present the development of our undergraduate research and its final results, in the context of<br />

studies in contemporary Brazilian literature, including the study of aspects of the cultural<br />

industry and its impact on the literary work of art - an intimate relationship in the<br />

contemporary world.<br />

KEYWORDS: detective story; contemporary literature; cultural industry.<br />

INTRODUÇÃO<br />

322


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

José Eugênio Soares (1938) é humorista, ator, artista plástico, diretor teatral e<br />

escritor, conhecido no cenário dramatúrgico brasileiro desde o final dos anos de 1950, graças<br />

à participação e, mais tarde, ao comando de programas humorísticos e de um talk show.<br />

Escreveu crônicas para revistas semanais e teve uma formação que contou com o legado dos<br />

escritores que faziam parte de O Pasquim – editado entre 1969 e 1991, famoso pela<br />

contestação à ditadura militar no Brasil. A influência dos humoristas <strong>da</strong> geração anterior é<br />

notória, especialmente através <strong>da</strong> presença de Max Nunes, re<strong>da</strong>tor dos programas de humor de<br />

Jô Soares na déca<strong>da</strong> de 1980 e consultor do atual Programa do Jô.<br />

O romance O Xangô de Baker Street foi o primeiro sucesso literário de Jô Soares. O<br />

livro permaneceu muitas semanas nas listas de livros mais vendidos, com mais de 620 mil<br />

exemplares no Brasil. Publicado em mais de dez países, seus números podem ser explicados<br />

pela fama do autor como humorista e apresentador e pelo fato de ter escrito uma obra<br />

ficcional utilizando-se do humor inteligente pela associação com personagens reais. O<br />

romance teve a<strong>da</strong>ptação para o cinema, dirigi<strong>da</strong> por Miguel Faria Jr., em 2001, e tem na base<br />

do enredo uma trama policial, cujo histórico no Brasil remete a 1920, com a publicação de O<br />

Mistério, novela de folhetim escrita por Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Viriato Corrêa e<br />

Medeiros e Albuquerque, com a marca <strong>da</strong> autoria múltipla, prática comum no gênero. Nos<br />

anos de 1990, Jô Soares contou com a aju<strong>da</strong> <strong>da</strong> historiadora Ângela Marques <strong>da</strong> Costa, <strong>da</strong><br />

antropóloga Lilia Moritz Schwarcz e do escritor Rubem Fonseca, além do Dedoc<br />

(Departamento de Documentação <strong>da</strong> Editora Abril) e de cui<strong>da</strong>dosa pesquisa.<br />

Após o sucesso do primeiro romance, o autor publicou ain<strong>da</strong> O homem que matou<br />

Getúlio Vargas (1998), Assassinatos na Academia Brasileira de Letras (2005) e As<br />

esgana<strong>da</strong>s (2011). Seus livros permaneceram por várias semanas nas listas dos mais<br />

vendidos, foram traduzidos para várias línguas e afirmaram Jô Soares no contexto <strong>da</strong>s letras<br />

brasileiras.<br />

O Xangô de Baker Street é um romance que ilustra o gosto de alguns escritores<br />

brasileiros pelo romance policial e pelas narrativas de extração histórica, como, por exemplo,<br />

Boca do Inferno (1989), de Ana Miran<strong>da</strong>, Agosto (1990), de Rubem Fonseca, Memorial do<br />

fim: a morte de Machado de <strong>Assis</strong> (1991), de Haroldo Maranhão, Galantes memórias e<br />

admiráveis aventuras do Conselheiro Gomes, o Chalaça (1994), de José Roberto Torero e<br />

Terra Papagalli (1997), de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, Capitu:<br />

memórias póstumas (1998), de Domício Proença Filho, Amor de Capitu (1999), de<br />

Fernando Sabino, O Menino e o Bruxo (2007), de Moacyr Scliar, Era no tempo do rei: um<br />

323


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

romance <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> corte (2007), de Ruy Castro e O Dom do Crime (2010), de Marco<br />

Lucchesi – para citar alguns tipos de releitura de personagens e fatos que fazem parte <strong>da</strong><br />

história e <strong>da</strong> cultura brasileiras.<br />

É para o Rio de Janeiro de 1886, após o roubo de um precioso violino Stradivarius,<br />

que pertencia a Maria Luísa Catarina de Albuquerque, baronesa de Avaré, que Jô Soares<br />

transporta Sherlock Holmes, o detetive consagrado na literatura policial para uma aventura<br />

tropical que nem mesmo seu criador, Arthur Conan Doyle, seria capaz de imaginar. Junto com<br />

o doutor Watson, Holmes vem ao Brasil após a indicação de Sarah Bernhardt ao imperador<br />

Pedro II, que presenteara a baronesa com o violino e não queria que a Corte soubesse dessa<br />

aventura extraconjugal do monarca.<br />

Chegando a terras brasileiras, Sherlock Holmes recebe um telegrama do delegado<br />

Mello Pimenta, escrito em inglês precário, no qual era solicita<strong>da</strong> aju<strong>da</strong> para desven<strong>da</strong>r os<br />

misteriosos assassinatos de jovens moças, o que obrigou Holmes e Watson a acumular as duas<br />

investigações. Sherlock Holmes concilia o trabalho com as belezas tropicais e, durante sua<br />

passagem pelo Brasil, experimenta o sabor <strong>da</strong> feijoa<strong>da</strong> e <strong>da</strong> água-de-coco, os poderes <strong>da</strong><br />

cannabis e o amargo gosto de não poder desven<strong>da</strong>r os mistérios ocorridos em terras<br />

brasileiras.<br />

A composição <strong>da</strong>s personagens revela uma releitura do autor sobre personali<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

época, como de Olavo Bilac, perseguido pela censura e elevado quase a símbolo dessa<br />

perseguição cujos amargos desdobramentos foram vistos no século XX; de Sarah Bernhardt,<br />

que arrastava multidões por onde passava e, para os padrões <strong>da</strong> época, era uma celebri<strong>da</strong>de<br />

quase à maneira como conhecemos hoje. Chamam a atenção também as descrições – em sua<br />

maioria em tom jocoso – de Dom Pedro II. O monarca, muito ilustrado pela imprensa no<br />

século XIX, foi assim retratado no romance, em passagens nas quais os personagens dirigiamse<br />

ao imperador em tom de brincadeira, como, por exemplo, quando Pedro II surpreende-se<br />

com uma dedução de Sherlock Holmes e é advertido por Watson: “– Elementar, meu caro<br />

Pedro...” (SOARES, 2006, p. 329).<br />

O escritor manipula duas figuras que ultrapassam os limites <strong>da</strong> ficção e <strong>da</strong> história<br />

para escrever o romance. Uma delas é o próprio Sherlock Holmes, que alguns acreditam ter<br />

existido, e o mítico assassino Jack, o Estripador. Este último, cujo paradeiro é desconhecido e<br />

cujas histórias fazem parte do imaginário popular, teve a versão <strong>da</strong> origem de seus crimes<br />

conta<strong>da</strong> de maneira inovadora por Jô Soares: sua ativi<strong>da</strong>de como serial killer teria começado<br />

no Brasil.<br />

324


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Não podemos deixar de observar que o romance de maior sucesso de Jô Soares<br />

contribui para uma revisão do gênero policial e do romance histórico. Na trama brasileira, o<br />

personagem do detetive inglês contraria algumas regras do tradicional romance policial, pois<br />

vai aos poucos deixando a racionali<strong>da</strong>de de lado para assumir determinados comportamentos<br />

e hábitos tropicais, entre os quais o figurino mais leve, o aperitivo, a amante. Obviamente tais<br />

comportamentos não são encontrados nas histórias originais de Sherlock Holmes e fogem do<br />

gênero romance policial. Recompondo a figura do detetive, o autor demonstra o valor <strong>da</strong><br />

assimilação <strong>da</strong> influência <strong>da</strong> personagem inglesa, porém responde adequa<strong>da</strong>mente com o<br />

resultado <strong>da</strong> recepção.<br />

JÔ SOARES: O UMBERTO ECO BRASILEIRO<br />

A comparação entre Jô Soares e Umberto Eco, evidentemente guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as<br />

proporções, é pertinente, sobretudo pelo estilo de ambos os autores, pelo gosto em<br />

ficcionalizar a História e também pelas altas ven<strong>da</strong>gens de seus romances. O italiano,<br />

professor aposentado <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Bolonha, começou a fazer sucesso como escritor<br />

com O nome <strong>da</strong> rosa (1980) e lançou recentemente O Cemitério de Praga (2011); Jô Soares,<br />

famoso por seus programas humorísticos e nas últimas déca<strong>da</strong>s por seu programa de<br />

entrevistas, adquiriu fama através <strong>da</strong> televisão e pela proposta de criticar o momento pelo qual<br />

o Brasil passava, sobretudo na déca<strong>da</strong> de 1980 através do humor. Jô Soares consegue fazer<br />

aqui no Brasil algo semelhante ao que fazem Umberto Eco na Itália e James Ellroy nos<br />

Estados Unidos, por exemplo.<br />

Acompanhando uma espécie de tradição, a literatura brasileira ain<strong>da</strong> mantém suas<br />

fontes de influência em modelos estrangeiros. Antonio Candido, em “Literatura e<br />

subdesenvolvimento” sintetiza a dependência cultural na América Latina <strong>da</strong> seguinte maneira:<br />

As nossas literaturas latino-americanas, como também as <strong>da</strong> América do<br />

Norte, são basicamente galhos <strong>da</strong>s metropolitanas. E se afastarmos os<br />

melindres do orgulho nacional, veremos que, apesar <strong>da</strong> autonomia que foram<br />

adquirindo em relação a estas, ain<strong>da</strong> são em parte, reflexas. No caso dos<br />

países de fala espanhola e portuguesa, o processo de autonomia constitui,<br />

numa boa parte, em transferir a dependência, de modo que outras literaturas<br />

europeias não metropolitanas, sobretudo a francesa, foram se tornando<br />

modelo a partir do século XIX, o que aliás ocorreu também nas antigas<br />

metrópoles, intensamente afrancesa<strong>da</strong>s. Atualmente é preciso levar em conta<br />

a literatura norte-americana, que constitui um novo foco de atração. Esta é a<br />

que se poderia chamar de influência inevitável, sociologicamente vincula<strong>da</strong><br />

325


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

à nossa dependência, desde a própria colonização e do transplante por vezes<br />

brutalmente forçado <strong>da</strong>s culturas. (CANDIDO, 2006, p. 182).<br />

Evidentemente, o processo ao qual se refere Antonio Candido é bastante amplo e<br />

relativo à historiografia literária. Contudo, é possível visualizar as marcas <strong>da</strong> trajetória,<br />

especialmente na última fase aponta<strong>da</strong> pelo crítico, na literatura contemporânea.<br />

Acrescentamos que a mídia, o poder do best-seller, a divulgação de seus números e os<br />

fenômenos interartes (como as a<strong>da</strong>ptações de obras literárias para o audiovisual, seja cinema<br />

ou televisão) acrescentaram imensa contribuição para as “influências inevitáveis”, ao mesmo<br />

tempo em que se justificam. Assim, se o romance tem sucesso de ven<strong>da</strong> normalmente a<br />

ven<strong>da</strong>gem “pede” uma a<strong>da</strong>ptação que, posteriormente, poderá contribuir para novos leitores<br />

se interessarem pelo livro e pelo autor.<br />

No contexto brasileiro, Jô Soares é normalmente considerado um intelectual, ou ao<br />

menos um exemplo de personali<strong>da</strong>de inteligente <strong>da</strong> televisão. De qualquer forma, está há<br />

muito tempo integrado na área <strong>da</strong>s artes e <strong>da</strong> cultura, especialmente pelo apego a essas esferas<br />

manifestado pelo escritor que, não obstante as polêmicas sobre seu exibicionismo e<br />

capaci<strong>da</strong>de de falar mais que seus entrevistados em seu talk-show, não esconde a satisfação<br />

com a empatia que exerce sobre o público, graças à versatili<strong>da</strong>de manti<strong>da</strong> durante pelo menos<br />

cinquenta anos de veículos de mídia. As boas relações com estes últimos, as afini<strong>da</strong>des com<br />

diversas áreas <strong>da</strong> cultura e o diálogo com elas proporcionaram uma organização tremen<strong>da</strong><br />

para a atuação como escritor. De re<strong>da</strong>tor de programas de humor e dramaturgo a autor de<br />

romances carregados de pesquisa como O Xangô de Baker Street, o percurso a se considerar<br />

sofreu uma gama varia<strong>da</strong> de influências sobre os procedimentos literários e conteúdos, com<br />

pouca intervenção acadêmica.<br />

A propósito, de um modo geral os estudos acadêmicos mostraram receio com a obra<br />

literária de Jô Soares justificando-se com os temas preferidos do escritor, ligados à recriação<br />

<strong>da</strong> história cultural e política através <strong>da</strong> trama policial e do arcabouço intertextual. Assim,<br />

temas que se repetem, notoriamente influenciados pelas práticas <strong>da</strong> literatura de massa<br />

estrangeiras, a representação falsea<strong>da</strong> de um universo brasileiro, com pouca análise social e<br />

muitos estereótipos teriam afastado a pesquisa acadêmica, que pouco se deteve sobre os<br />

fenômenos envolvidos na construção de um escritor de best-seller brasileiro. Os fatos ligados<br />

a esta condição são inúmeros, e sem dúvi<strong>da</strong> passam pela transformação envolvendo a<br />

propagan<strong>da</strong>, porém é preciso destacar a criação de um universo para o qual o público<br />

326


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

brasileiro estava preparado quando O Xangô de Baker Street é publicado. Mais que<br />

conhecedor de Arthur Conan Doyle, o leitor em potencial conhecia o Jô e os enredos policiais,<br />

o que facilitou a penetração de todos os elementos importados (um violino, um personagem<br />

literário e um assassino inglês etc.) e <strong>da</strong> releitura de um período significativo atravessado pela<br />

ci<strong>da</strong>de mais famosa do Brasil. Com esse efeito, aliado à forma de construção do romance, as<br />

academias não poderiam ter outra reação, de acordo com o costume de não se debruçar sobre<br />

variações de prestígio e fenômenos de populari<strong>da</strong>de.<br />

Na Itália, o octogenário Umberto Eco pode hoje em dia afirmar que conseguiu<br />

demonstrar a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> convivência entre erudição acadêmica e literatura de<br />

entretenimento capaz de levar o leitor à reflexão sobre os êxitos e desastres humanos. Na<br />

ver<strong>da</strong>de, o escritor italiano é o resultado de dois profissionais diferentes: o professor de<br />

semiótica <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Bolonha formado em filosofia medieval e literatura na<br />

Universi<strong>da</strong>de de Turim com muitos títulos honoris causa e o romancista de sucesso, cujo<br />

primeiro livro vendeu mais de nove milhões de cópias até hoje. Na carreira do jovem Eco<br />

também há jornalismo e mídia: uma passagem pela emissora de televisão RAI e a editoria de<br />

prestigia<strong>da</strong> casa milanesa. Nos últimos anos, foi crítico contumaz dos procedimentos do então<br />

primeiro ministro Silvio Berlusconi através de artigos na imprensa. Contudo, seus ensaios e<br />

colunas sobre cultura de massa, semiótica, estética e crítica literária parecem unir a destreza<br />

de prosador à erudição do acadêmico. Prova disso é uma de suas formulações mais<br />

conheci<strong>da</strong>s, a noção de “obra aberta”, segundo a qual os textos literários formam campos de<br />

sentido que, por sua vez, permitem diversas possibili<strong>da</strong>des de interpretação.<br />

Quando escreveu O nome <strong>da</strong> rosa (assim como Jô Soares, Umberto Eco também se<br />

tornou um escritor de ficção na i<strong>da</strong>de madura), o ficcionista utilizou estudos, esquemas de<br />

personagens, imagens e uma infini<strong>da</strong>de de informações históricas medievais para compor um<br />

dos enredos mais famosos <strong>da</strong> literatura contemporânea. Não se esqueceu de dialogar com<br />

referências literárias do século XX, como Jorge Luis Borges (símbolo <strong>da</strong> “angústia <strong>da</strong><br />

influência” para Eco) e o protagonista de Conan Doyle. Na<strong>da</strong> mais lógico que o escritor<br />

italiano declare que escreve sobre livros. Não por acaso, trinta anos depois <strong>da</strong> primeira<br />

experiência, Eco publica O cemitério de Praga, que segue o modelo dos folhetins de<br />

Alexandre Dumas e Eugène Sue. A trama, localiza<strong>da</strong> no século XIX, enfoca um inventado<br />

falsário preconceituoso que convive com personali<strong>da</strong>des reais, e vem ilustra<strong>da</strong> à maneira dos<br />

folhetins, deixando transparecer o gosto popular <strong>da</strong> época. Anos depois de formular em<br />

Apocalípticos e integrados (1964) a possibili<strong>da</strong>de de relação dialética, ativa e consciente entre<br />

327


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

arte e condicionamentos <strong>da</strong> indústria cultural, com a possibili<strong>da</strong>de de veiculação de valores<br />

culturais, Umberto Eco reúne extração histórica, textos polêmicos (Os protocolos dos sábios<br />

de Sião), mistério, formas híbri<strong>da</strong>s de narrativa (o entrecho é o diário do protagonista), entre<br />

outros intertextos, com disposição para provar novas concepções “integra<strong>da</strong>s”.<br />

Com Jô Soares, a mistura de romance histórico e policial foi revitaliza<strong>da</strong> no Brasil.<br />

Sátira social, romance de costumes, cenas de humor e trama detetivesca são as tônicas que<br />

permanecem, guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as variações de trama e intertextos, em to<strong>da</strong> a obra do escritor.<br />

Contudo, a imagem reforça<strong>da</strong> pela presença constante na televisão ressalta o prestígio do<br />

ícone e influencia o leitor, o que pode ser benéfico ou não para os resultados <strong>da</strong> leitura, que<br />

pode levar a uma reflexão sobre as matrizes <strong>da</strong> ficção e sua composição. A título de<br />

comentário, vale lembrar que Jô Soares ain<strong>da</strong> representa uma <strong>da</strong>s personali<strong>da</strong>des autorais<br />

importantes em sua editora paulistana. Um bom exemplo disso está na ocasião <strong>da</strong> divulgação<br />

de As esgana<strong>da</strong>s (2011), quando a editora organizou sessões de autógrafos e divulgou<br />

amplamente o romance em seu website. O próprio editor publicou em seu blog um artigo<br />

ressaltando a alta ven<strong>da</strong>gem do romance de Jô Soares ao lado dos números <strong>da</strong> biografia de<br />

Steve Jobs 17 . Não é necessário comentar que o apelo comercial não sabe utilizar a dialética<br />

entre literatura de massas e valores culturais.<br />

INDÚSTRIA CULTURAL E LITERATURA CONTEMPORÂNEA<br />

Atualmente, a imposição do mercado sobre a obra de arte faz com que seus produtos<br />

estejam atrelados ao caráter comercial e de produção em grande escala, o que não é regra.<br />

Além do entretenimento <strong>da</strong> produção massifica<strong>da</strong>, é possível obter conhecimento com a<br />

leitura de um best-seller. Na definição de Walnice Galvão,<br />

O leitor de best-seller sabe que pode esperar duas coisas. A primeira é uma<br />

área do saber bem explora<strong>da</strong>, através de enciclopédias, dicionários e<br />

manuais. O objetivo é <strong>da</strong>r-lhe o simulacro <strong>da</strong> ampliação do conhecimento,<br />

pois na cultura do time is money, não pode haver ócio, um ínterim em que<br />

não estejamos fazendo uma aquisição. (GALVÃO, 2005, p. 46).<br />

O conceito de indústria cultural surge do pensamento dos filósofos alemães Theodor Adorno<br />

e Max Horkheimer que, fugindo <strong>da</strong> guerra, depararam-se com o conturbado momento sociopolítico<br />

pelo qual os Estados Unidos passavam. Para criticar a produção massifica<strong>da</strong> <strong>da</strong> música (sobretudo o<br />

17 V. Jô e Jobs. Disponível em: .<br />

328


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

jazz), do cinema e do rádio ambos escreveram o ensaio “A indústria cultural: o esclarecimento como<br />

mistificação <strong>da</strong>s massas”, na déca<strong>da</strong> de 1940.<br />

O domínio <strong>da</strong> indústria cultural sobre as artes deve-se ao avanço tecnológico – <strong>da</strong><br />

televisão à internet. Se pensarmos no caso de Jô Soares, veremos que o autor utiliza como<br />

meio de divulgação de seus romances o seu Programa do Jô, além do trabalho feito pela<br />

editora que o acompanha desde 1995, a Companhia <strong>da</strong>s Letras, que organiza sessões de<br />

autógrafos, como quando o autor lançou seu Assassinatos na Academia Brasileira de Letras<br />

na própria instituição, em 2005. Ou, ain<strong>da</strong>, no lançamento de As esgana<strong>da</strong>s, que recebeu<br />

especial atenção de vários programas de televisão e foi assunto em diversos jornais impressos<br />

e digitais.<br />

Podemos observar a partir <strong>da</strong> leitura de O Xangô de Baker Street que o leitor<br />

encontra no romance um retrato do Rio de Janeiro do século XIX, no qual pode ampliar seu<br />

conhecimento sobre parte do Segundo Império, junto com a descrição de hábitos e<br />

peculiari<strong>da</strong>des de personali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> época. Percebe-se que, ao instigar o receptor em seus<br />

conhecimentos sobre o passado histórico, político e social, a ficção oferece informações como<br />

uma espécie de desafio à completude (provocado, especialmente, pela utilização <strong>da</strong> ironia e<br />

<strong>da</strong>s inserções e misturas de personagens e situações imagina<strong>da</strong>s e reais na trama) e, portanto,<br />

estamos diante de um romance no qual nem tudo é somente entretenimento, ain<strong>da</strong> que este<br />

compareça através de figuras carismáticas cuja populari<strong>da</strong>de foi alcança<strong>da</strong> através de formas<br />

culturais seleciona<strong>da</strong>s e interpreta<strong>da</strong>s pelos meios de comunicação.<br />

Nesses tempos de indústria cultural, a interferência na literatura é perceptível. Não<br />

contamos mais com escritores como, por exemplo, Euclides <strong>da</strong> Cunha e Guimarães Rosa, cujo<br />

empreendimento criador passava pelo impulso de estabelecer uma literatura que representasse<br />

o país e, por outro lado, não se manifestavam a multiplici<strong>da</strong>de, a rapidez e a simultanei<strong>da</strong>de<br />

de informações. É preciso considerar que, devido ao avanço tecnológico, a produção literária<br />

sofreu alterações. Estamos em uma época na qual ain<strong>da</strong> é difícil incentivar o exercício <strong>da</strong><br />

leitura e, neste ponto, boa parte <strong>da</strong> literatura de massa pode ser vista com bons olhos, uma vez<br />

que os autores cumprem um papel social na formação de leitores.<br />

Atualmente, a ordem é ser lido, ain<strong>da</strong> que, para isso, seja preciso vender alguns<br />

milhares de exemplares; os escritores de hoje precisam vender seus livros e para isso contam<br />

com o auxílio <strong>da</strong> internet e de feiras literárias. Além disso, os prêmios financeiros que os<br />

escritores podem receber são atraentes e possibilitam dedicação exclusiva à carreira literária.<br />

329


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Com as facili<strong>da</strong>des de divulgação, o leitor tem mais opções e, conhecendo a<br />

produção clássica e a menos valoriza<strong>da</strong> literatura contemporânea, pode comparar e compor<br />

suas afini<strong>da</strong>des literárias. As críticas ao que é produzido recentemente reforçam a quali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s obras canônicas <strong>da</strong> literatura brasileira, como de fato são, porém afastam o leitor que<br />

ain<strong>da</strong> não tem intimi<strong>da</strong>de com grandes nomes <strong>da</strong> nossa literatura.<br />

Ao mencionar a distância que separa certos grupos <strong>da</strong> literatura erudita, Antonio<br />

Candido (2006, p. 175) considera a absorção <strong>da</strong>s mesmas pelos meios de comunicação de<br />

massa, e conclui que não só a alfabetização inclui esses leitores entre os homens cultos, pois o<br />

resultado dessa inserção sofre a “interferência maciça do que se poderia chamar o know-how<br />

cultural e dos próprios materiais já elaborados de cultura massifica<strong>da</strong>, provenientes dos países<br />

desenvolvidos” que difundem seus valores, porém em alguns casos reorientam as opiniões de<br />

acordo com interesses políticos (CANDIDO, 2006, p. 175). Assim,<br />

[...] numa civilização massifica<strong>da</strong>, onde predominem os meios não literários,<br />

paraliterários ou subliterários [...], tais públicos restritos e diferenciados<br />

tendem a se uniformizar até o ponto de se confundirem com a massa, que<br />

recebe a influência em escala imensa. E, o que é mais, por meio de veículos<br />

onde o elemento estético se reduz ao mínimo, podendo confundir-se de<br />

maneira indiscernível com desígnios éticos ou políticos [...]. (CANDIDO,<br />

2006, p. 175-176).<br />

Pensando em O Xangô de Baker Street, devemos considerar a inventivi<strong>da</strong>de de Jô<br />

Soares ao <strong>da</strong>r uma nova roupagem (talvez esta seja uma definição literal para a criação <strong>da</strong><br />

personagem) a Sherlock Holmes e, além disso, levar em conta a reflexão que essa personagem<br />

fictícia provoca no leitor. Neste aspecto, Edu Teruki Otsuka nos diz que<br />

[...] o uso de recursos tomados de empréstimo a outros meios ou à literatura<br />

de massa não constitui, por si só, critério seguro para o julgamento <strong>da</strong> obra.<br />

Seria, portanto mais apropriado tentar observar o rendimento literário dos<br />

procedimentos em obras específicas. O modo como ca<strong>da</strong> escritor trabalha<br />

seus materiais em ca<strong>da</strong> obra particular é que seria decisivo, e não o simples<br />

fato de usar ou não elementos explorados pela indústria cultural. (OTSUKA,<br />

2001, p. 54).<br />

Assim, é importante considerar o produto final, a obra em si e o que ela tem a nos<br />

dizer. Uma leitura atenta de O Xangô de Baker Street revela que, embuti<strong>da</strong> na figura do<br />

infalível detetive está a visão crítica do humorista e escritor sobre certas coisas (do âmbito<br />

social, especialmente) que estavam – e ain<strong>da</strong> continuam – fora de seus devidos lugares.<br />

330


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Conforme observa Edu Otsuka,<br />

A modernização social e a autonomização <strong>da</strong> esfera literária não ocorreram<br />

aqui <strong>da</strong> mesma maneira como na Europa. Assim, por exemplo, a oposição<br />

entre arte alta, de elite, e arte baixa, de massa, tendo por base o<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> cultura de massa, é complica<strong>da</strong> pela consoli<strong>da</strong>ção tardia<br />

<strong>da</strong> indústria cultural e pela sobrevivência <strong>da</strong> cultura genuinamente popular,<br />

de origem pré-capitalista, produzi<strong>da</strong> pelo próprio povo. (OTSUKA, 2001, p.<br />

52).<br />

O que talvez seja inadmissível é permitir que uma expressão literária passe “<strong>da</strong><br />

segregação aristocrática <strong>da</strong> era <strong>da</strong>s oligarquias para a manipulação dirigi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s massas, na era<br />

<strong>da</strong> propagan<strong>da</strong> e do imperialismo total” (CANDIDO, 2006, p. 176). Tais condições são<br />

apenas mais fatores de complicação para a utilização de teorias que tentam explicar os<br />

fenômenos relativos à indústria cultural na literatura brasileira contemporânea, embora o<br />

estudo desse período praticamente obrigue a pensar na socie<strong>da</strong>de de consumo, na cultura<br />

massifica<strong>da</strong>, no entretenimento. É necessário discutir os fatores socioeconômicos envolvidos<br />

no que tanto pode ser consumo indevido quanto democratização <strong>da</strong> leitura. Cabe também<br />

avaliar os interesses envolvidos na produção que representa a indústria cultural brasileira (<strong>da</strong><br />

qual O Xangô de Baker Street seria um baluarte), pois há que se considerar as regras de<br />

mercado e as intenções do autor em formar seus leitores inovando artisticamente, duas<br />

instâncias de complica<strong>da</strong> convivência.<br />

CONCLUSÃO<br />

A literatura produzi<strong>da</strong> atualmente no Brasil está intimamente liga<strong>da</strong> aos meios de<br />

comunicação em massa e isso muitas vezes afasta o leitor de determina<strong>da</strong>s obras justamente<br />

por causa <strong>da</strong>s avaliações feitas pela crítica e que tendem a ser superficiais, uma vez que o<br />

gênero policial é uma reali<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong> muito revisita<strong>da</strong> fora do Brasil e, aqui mesmo temos o<br />

patriarca desse tipo de escrita, Rubem Fonseca, muito influente sobre os autores que partilham<br />

desse estilo, inclusive o próprio Jô Soares que confessa a presença de Fonseca em seus<br />

romances, sobretudo em O Xangô de Baker Street 18 .<br />

Apesar de o que chamamos de literatura brasileira contemporânea ain<strong>da</strong> ser um<br />

pouco confusa, devido em muito ao conceito de pós-moderni<strong>da</strong>de – que dificulta e torna<br />

18 V. Espaço Aberto Literatura – entrevista com Jô Soares. Disponível em:<br />

.<br />

331


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

imprecisa a classificação de gêneros e autores, temos em José Paulo Paes e em seu ensaio<br />

“Por uma literatura brasileira de entretenimento (ou: O mordomo não é o único culpado)”,<br />

uma visão otimista e sensata sobre literatura de massa. Paes retoma o pensamento de Umberto<br />

Eco (em Apocalípticos e integrados), no qual é preciso diferenciar “cultura de<br />

entretenimento” de “cultura de proposta”. A primeira <strong>da</strong>ria menor importância à<br />

originali<strong>da</strong>de, enquanto a segun<strong>da</strong> representaria uma visão de mundo singular e inconfundível<br />

e estimularia a facul<strong>da</strong>de crítica. Acreditamos que o conceito de cultura de proposta é melhor<br />

aplicável no caso de O Xangô de Baker Street, uma vez que o romance conjuga críticas aos<br />

costumes do século XIX que se refletem aos hábitos atuais e a releitura de personagens<br />

consagrados <strong>da</strong> história – tudo isso organizado sob a ótica de humorista, ativi<strong>da</strong>de diretamente<br />

liga<strong>da</strong> a Jô Soares.<br />

José Paulo Paes fala ain<strong>da</strong> em “miopia” <strong>da</strong> crítica para questões que fogem ao quadro<br />

<strong>da</strong> literatura erudita. Por esse motivo, seria preciso fazer um levantamento <strong>da</strong> literatura de<br />

entretenimento para tirar conclusões mais precisas. Essa miopia ou visão distorci<strong>da</strong> talvez seja<br />

uma tentativa de tirar de cena escritores e seus livros, porém não é possível ignorar que os<br />

altos números de ven<strong>da</strong>gem atingem igualmente uma massa de leitores e isso não deve ser<br />

ignorado em um país onde a leitura ain<strong>da</strong> é para poucos. Paes encerra seu pensamento com a<br />

ideia de que “nenhuma cultura realmente integra<strong>da</strong> pode se dispensar de ter, ao lado de uma<br />

vigorosa literatura de proposta, uma não menos vigorosa literatura de entretenimento.”<br />

(PAES, 2001, p. 37).<br />

O romance policial parece ser um ótimo “funcionário” <strong>da</strong> indústria cultural à medi<strong>da</strong><br />

que os crimes chamam muito a atenção do grande público, devido em muito à ampla<br />

divulgação nas mídias fala<strong>da</strong> e escrita. Os crimes na literatura são reflexo <strong>da</strong> violência do<br />

cotidiano e, relatados em forma de romance, são muito mais rentáveis.<br />

A teoria de Adorno e Horkheimer dos anos 1940 suscitou estudos críticos sobre a<br />

nova maneira de produzir e de veicular cultura; é preciso considerar o contexto histórico de<br />

ambos os pensadores e tentar imaginar o quão impressionante era o início <strong>da</strong> cultura de massa<br />

nos Estados Unidos, que viria a se espalhar pelo mundo, configurando, grosso modo, o que<br />

conhecemos por globalização. É possível perceber nos escritos recentes uma visão menos<br />

contundente às artimanhas <strong>da</strong> indústria cultural. Ca<strong>da</strong> estudo sobre essa reali<strong>da</strong>de à qual a<br />

obra de arte em vários sentidos não escapa é uma constatação <strong>da</strong> importância do pensamento<br />

de Adorno e Horkheimer e uma atualização <strong>da</strong> configuração que a indústria cultural adquire<br />

com o passar do tempo. Tomando o contexto brasileiro, temos os estudos de Edu Otsuka,<br />

332


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Walnice Galvão, Fabio Durão e Waldenyr Cal<strong>da</strong>s, para citar alguns nomes que se dispõem a<br />

[re]pensar o conceito formulado por Adorno e Horkheimer e como ele se aplica atualmente<br />

por aqui.<br />

Podemos concluir que o romance policial seja capaz de suprir, além <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de<br />

de ficção, a necessi<strong>da</strong>de de histórias fictícias sobre crimes com as quais o brasileiro está ca<strong>da</strong><br />

vez mais acostumado, seja na forma de notícia de jornal, de reportagem de televisão ou de<br />

romance policial. Basta pensar na visibili<strong>da</strong>de ca<strong>da</strong> vez maior que júris sobre crimes de<br />

mobilização e comoção nacionais têm, <strong>da</strong>ndo ao julgamento ares de “microssérie” transmiti<strong>da</strong><br />

pela televisão.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. A indústria cultural: o esclarecimento como<br />

mistificação <strong>da</strong>s massas. In: ______. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos.<br />

Trad. Guido Antonio de Almei<strong>da</strong>. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 113-156.<br />

CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: ______. A educação pela noite. 5.<br />

ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. p. 169-196.<br />

ECO, Umberto. Cultura de massa e “níveis” de cultura. In: ______. Apocalípticos e<br />

integrados. Tradução de Pérola de Carvalho. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. p. 33-67.<br />

ESPAÇO Aberto Literatura – entrevista com Jô Soares. You Tube. Disponível em:<br />

. Acesso em: 9 maio 2012.<br />

GALVÃO, Walnice Nogueira. As musas sob assédio: literatura e indústria cultural no Brasil.<br />

São Paulo: Editora Senac, 2005.<br />

OTSUKA, Edu Teruki. Marcas <strong>da</strong> catástrofe: experiência urbana e indústria cultural em<br />

Rubem Fonseca, João Gilberto Noll e Chico Buarque. São Paulo: Nankin Editorial, 2001.<br />

PAES, José Paulo. Por uma literatura brasileira de entretenimento (ou: O mordomo não é o<br />

único culpado). In: ______. A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo:<br />

Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1990. p. 25-38.<br />

SOARES, Jô. O Xangô de Baker Street. 1. ed. 1995. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 37ª.<br />

reimpressão, 2006.<br />

333


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O cão perdido: reflexões sobre o conto de Henry Slesar<br />

RODRIGUES, Tchiago Inague (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de estu<strong>da</strong>r, através <strong>da</strong> perspectiva <strong>da</strong>s teorias que<br />

abor<strong>da</strong>m as narrativas policiais, o conto "O cão perdido", do escritor e roteirista norteamericano<br />

Henry Slesar, que foi publicado no Brasil na coletânea organiza<strong>da</strong> pelo cineasta<br />

Alfred Hitchcock, Um pouco de seu sangue e outras histórias, no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1960. O<br />

conto em questão apresenta a atmosfera de mistério que tanto fascinou os espectadores nas<br />

películas de Hitchcock, diretor de consagrados filmes como Psicose, Festim diabólico, Um<br />

corpo que cai, entre tantos outros. Podemos caracterizar o texto em análise como uma obra<br />

que contêm elementos <strong>da</strong> narrativa policial marca<strong>da</strong> pelo suspense e pelo enigma.<br />

Buscaremos primeiramente expor de modo breve as origens do gênero policial, os aspectos<br />

mais importantes <strong>da</strong> biografia do escritor, que não é muito conhecido no Brasil.<br />

Posteriormente realizaremos a análise crítico-interpretativa do conto selecionado, em que<br />

abor<strong>da</strong>remos o modo como os personagens estão configurados, o medo <strong>da</strong> Sra. Julia Smollett<br />

por cães, o espaço onde a história se passa e por fim, os aspectos temporais, sobretudo a<br />

questão <strong>da</strong>s anacronias, que se configura como forma <strong>da</strong> manutenção do suspense até o fim <strong>da</strong><br />

narrativa.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Conto; Narrativa Policial; Henry Slesar; Suspense.<br />

ABSTRACT: This paper aims to study the short story "O cão perdido" by U.S. writer and<br />

screenwriter Henry Slesar, published in Brazil in the collection organized by filmmaker<br />

Alfred Hitchcock, Um pouco de seu sangue e outras histórias in the late 1960s, through the<br />

perspective of theories that address the police narratives, such as the classic study of the<br />

philosopher and linguist Tzvetan Todorov. The story "O cão perdido" embarks on this same<br />

atmosphere of mystery that fascinated viewers in the films of Hitchcock, director of devoted<br />

films like Psycho, Rope, Vertigo and others. The text can be characterized as a work that<br />

contains elements of police narrative marked by suspense and the enigma. We will seek first<br />

to expose briefly the origins of the crime genre, the most important aspects of the biography<br />

of the writer, because it is not well known in Brazil. Later we will have the criticalinterpretive<br />

analysis of the selected story, in which we discuss how the characters are set,<br />

Mrs. Julia Smollett’s fear of dog, the space where the story takes place and finally, the<br />

temporal aspects, especially the issue of anachronies, which is configured as a way of<br />

maintaining the suspense until the end of the narrative.<br />

KEYWORDS: Story; Police Narrative; Henry Slesar; Suspense.<br />

NARRAT<strong>IV</strong>AS POLICIAIS<br />

O cineasta Alfred Hitchcock, mestre do suspense, selecionou, na déca<strong>da</strong> de 1960,<br />

alguns contos que versam sobre o inusitado, o suspense e o sobrenatural, de diversos<br />

escritores, reunindo-os na coletânea Stories my mother never told me (1964). No Brasil, foi<br />

334


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

lançado primeiramente o título Histórias que mamãe nunca me contou. Logo em segui<strong>da</strong>, foi<br />

publica<strong>da</strong> outra coletânea de contos, intitula<strong>da</strong> Um pouco de seu sangue e outras histórias<br />

(1969), que contém entre os textos, “Um pulo em casa”, escrito por F. Scott Fitzgerald, “Um<br />

pouco de seu sangue”, de Theodore Sturgeon e o “Cão Perdido”, conto que investigaremos<br />

nesse artigo.<br />

Devemos expor, mesmo que de modo sucinto, algumas referências sobre esse<br />

escritor, pois é pouco conhecido pelos brasileiros. Henry Slesar é norte-americano, nasceu em<br />

1927 em Nova Iorque e faleceu em 2002, deixando escrito mais de 500 textos do gênero conto<br />

que envolviam vários temas como narrativas policiais, suspense e ficção científica, que foram<br />

publicados em diversas revistas americanas. Em 1958, escreveu um romance The Gray<br />

Flannel Shroud, sendo vencedor do prêmio Edgar Allan Poe na categoria, Best first novel by<br />

an american author, em 1960.<br />

Também escreveu seriados para a televisão, ganhando o Emmy no ano de 1974 como<br />

o escritor principal <strong>da</strong> série televisiva The edge of night. Atuou ain<strong>da</strong> na área cinematográfica,<br />

pois no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1950 Hitchcock o contratou como roteirista, o que resultou em<br />

alguns filmes em parceria. Além de Hitchcock, escreveu roteiros para diversos diretores.<br />

O conto “O cão perdido” foi escrito a partir de uma atmosfera de mistério, que tanto<br />

fascinava os espectadores nas películas de Hitchcock. Podemos caracterizar o texto como uma<br />

obra que contêm os elementos <strong>da</strong> narrativa policial que se caracteriza pelo suspense e pelo<br />

enigma. Antes de analisar a texto em questão, convém apontar sucintamente as origens deste<br />

gênero.<br />

As narrativas policiais estão presentes em nossa cultura há muitos séculos, não é algo<br />

novo, mas uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de textual que foi se modificando no decorrer dos tempos. Suas<br />

origens mais antigas podem ser encontra<strong>da</strong>s na Bíblia (MAGALHÃES JR., 1972),<br />

considerando o profeta Daniel como o primeiro detetive que inocentou Susana e também<br />

revelou a farsa que os sacerdotes do rei <strong>da</strong> Babilônia promoviam em relação ao deus Bel.<br />

Séculos mais tarde, encontramos traços desse gênero na novela de Voltaire, Zadig<br />

(1747), em romances de Alexandre Dumas, como O Visconde de Bragelonne (1847-1850) e<br />

de Fenimore Cooper, The Last of The Mohicans (1826). No entanto, é Edgar Allan Poe o<br />

autor considerado como o “pai” do conto policial moderno, com a publicação de “Os<br />

assassinatos <strong>da</strong> Rua Morgue”(1841). Convém ressaltar que o detetive mais conhecido ao<br />

longo <strong>da</strong>s gerações, Sherlock Holmes, só aparece tempos depois, em Um estudo em Escarlate<br />

(1887), do escritor e médico britânico Arthur Conan Doyle.<br />

335


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Posteriormente, no decorrer do século XX, surge uma infini<strong>da</strong>de de escritores que<br />

procuraram "<strong>da</strong>r feição nova a um gênero que ameaça exaurir-se e tornar-se fatigante, por<br />

força <strong>da</strong>s repetições” (MAGALHÃES JR., 1972, p. 224). Alguns escritores sobrepujaram o<br />

senso comum e criaram obras significativas para esse gênero de narrativa, como por exemplo,<br />

a escritora inglesa Agatha Christie que escreveu dezenas de livros e criou personagens<br />

famosos como o detetive Hercule Poirot e Miss Marple, presentes em diversos romances<br />

policiais. Podemos ain<strong>da</strong> citar a dupla francesa Boileau-Narcejac, escritores que tiveram<br />

diversas obras transforma<strong>da</strong>s em filmes, entre elas destacamos Vertigo filmado por Alfred<br />

Hitchcock e Les Diabolique, pelo diretor francês Henri-Georges Clouzot, ambos produzidos<br />

na déca<strong>da</strong> de 1950. Em solo brasileiro, destacamos o escritor mineiro Rubem Fonseca, autor<br />

de diversas obras do gênero, entre elas, a coletânea de contos Feliz Ano Novo publicado em<br />

1975 e o romance policial Agosto, lançado em 1990.<br />

O CÃO PERDIDO<br />

Se comparado às outras narrativas que compõem o livro em questão, o conto não é<br />

extenso, pois to<strong>da</strong> a história é conta<strong>da</strong> em poucas páginas. O texto, em linhas gerais, narra a<br />

história de uma mulher norte-americana que sofre de cinofobia, ou seja, medo de cães e<br />

procura um tratamento para saná-lo. Primeiramente vai a um médico, o Dr. Ellison, que após<br />

a consulta recomen<strong>da</strong> que procure aju<strong>da</strong> com o Dr. Frohlich, psicanalista, para melhor tratar o<br />

seu problema.<br />

A paciente em questão é Júlia Smollett. Ao iniciar as sessões de análise, aceita a<br />

sugestão de seu médico para ser submeti<strong>da</strong> a uma sessão de hipnose, no intuito de acelerar o<br />

processo de descoberta <strong>da</strong> origem do trauma. Uma vez realiza<strong>da</strong> essa operação, há uma<br />

reviravolta na história, pois a personagem descobre o motivo de sua fobia e, além disso,<br />

descortina uma faceta de sua personali<strong>da</strong>de que estava oculta no seu subconsciente.<br />

O enredo é construído de modo que o leitor fique preso à história e tenha interesse<br />

em resolver o caso. No texto, notamos a presença de duas histórias imbrica<strong>da</strong>s, uma no<br />

passado, pontua<strong>da</strong> pela infância de Júlia, e outra no presente, momento em que está casa<strong>da</strong>,<br />

numa crise de fobia na clínica médica, pronta para ser hipnotiza<strong>da</strong>. Uma não tira a<br />

importância <strong>da</strong> outra, pois como foi dito anteriormente, o conto é recheado de mistério e<br />

anacronias que aju<strong>da</strong>m o narrador a construir o enredo. Assim, convém destacar o pensamento<br />

de Todorov quando afirma que o leitor “está interessado não só no que aconteceu, mas<br />

336


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

também no que acontecerá mais tarde, interroga-se tanto sobre o futuro quanto o passado.”<br />

(2006, p. 102). Portanto, concede a quem lê também o direito de investigar, exercendo o papel<br />

de detetive no intuito de desven<strong>da</strong>r o enigma presente no texto.<br />

Sabemos que nas narrativas policiais não é necessário haver propriamente a figura de<br />

um detetive policial, um membro <strong>da</strong> corporação instituí<strong>da</strong> pela socie<strong>da</strong>de de direito. Às vezes,<br />

quem desenvolve essa função são outras personagens que não estão investi<strong>da</strong>s neste cargo. No<br />

caso do conto, é o Dr. Frohlich quem exerce essa função, pois através <strong>da</strong> hipnose tenta<br />

recolher as pistas para desven<strong>da</strong>r os mistérios de um passado sombrio, oculto. Esse método<br />

aplicado é descrito por ele de maneira científica, com o intuito de conceder um ar técnico e<br />

apurado na investigação, fornecendo assim subsídios para o leitor continuar a participar na<br />

solução do caso. Por exemplo, em uma de suas falas, explica ao Sr. e Sra. Smollett a prática<br />

<strong>da</strong> hipnose: “Em psicanálise, o hipnotismo é considerado uma forma valiosa de terapia, que se<br />

mostra útil em muitos casos especiais. [...] proporciona uma espécie de transferência imediata<br />

entre o médico e o paciente” (SLESAR, 1969, p. 183).<br />

A história se passa nos Estados Unidos, mais precisamente nos arredores de Nova<br />

Iorque. Sabemos disso, pelas indicações sobre o Sr. Smollett, que é um contabilista com<br />

escritório situado na Lexington Avenue, localizado na ilha de Manhattan. Ele tem o intuito de<br />

adquirir um cão dinamarquês que encontrou à ven<strong>da</strong> em um canil perto de Hawthorne Lake,<br />

local próximo à referi<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Essas e outras características expostas pelo narrador como o<br />

uso de um pregador de ouro, a presença <strong>da</strong> emprega<strong>da</strong> doméstica <strong>da</strong> família chama<strong>da</strong> Alice,<br />

as esca<strong>da</strong>s <strong>da</strong> residência revesti<strong>da</strong>s por carpete, são elementos que demonstram serem pessoas<br />

que além de viverem próximas a um centro cosmopolita, possuem um elevado padrão de vi<strong>da</strong>.<br />

No conto, ao observarmos a linha temporal em que a história é narra<strong>da</strong>, percebemos<br />

algumas anacronias, que são as diferentes formas entre a organização <strong>da</strong> história e ordem <strong>da</strong><br />

narrativa. De acordo com Genette (1977, p. 38) os fatos narrados podem ser antecipados<br />

(prolepse), ou apresentados de modo retrospectivo (analepse). Este último é empregado no<br />

momento em que o Dr. Frohlich executa a hipnose na Sra. Smollett, fazendo com que ela<br />

relembre desde os seus primeiros anos de vi<strong>da</strong>, até o momento em que atinge dez anos, i<strong>da</strong>de<br />

em que desenvolveu o medo de cães devido aos atos praticados pelo seu vizinho e também a<br />

atitude que tomou contra ele. “Bobby mora na casa ao lado. Tem doze anos. Vive me<br />

enquizilando. Puxa meus cabelos, e uma vez me rasgou o vestido. Pôs lama nos meus sapatos<br />

e deu uma pedra<strong>da</strong> em Topper” (SLESAR, 1969, p. 186).<br />

337


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

O narrador atua sem muitas intervenções, constrói basicamente todo o enredo com o<br />

foco nos diálogos entre as personagens. Não é intrometido, vai descrevendo e conduzindo a<br />

narrativa de modo a proporcionar o suspense e o espanto, uma característica peculiar <strong>da</strong>s<br />

narrativas policiais. Limita-se basicamente na descrição <strong>da</strong>s personagens e dos ambientes<br />

onde eles se encontram. “O médico estava sentado à sua escrivaninha, num aprazível gabinete<br />

de paredes forra<strong>da</strong>s de madeira. Era um homem gorducho e amável, de cabelo grisalho e<br />

macio, aparado curto” (SLESAR, 1969, p. 181).<br />

Mesmo com uma descrição sucinta dos seres e dos objetos, consegue estabelecer<br />

claramente a duali<strong>da</strong>de entre o casal Smollett. Enquanto Júlia é descrita fisicamente como<br />

possuidora de “um ar jovem, frágil e docemente patético” (SLESAR, 1969, p. 181), George, o<br />

marido, é retratado como “um homem troncudo de braços curtos” (SLESAR, 1969, p. 181),<br />

estabelecendo a duali<strong>da</strong>de entre dois termos antagônicos, entre oposições semânticas às quais<br />

definimos como fraqueza versus força.<br />

O narrador informa que o casal está junto há quatorze anos e que possuí dois filhos.<br />

No diálogo entre ambos, notamos que o marido coman<strong>da</strong> a cena, adotando uma postura ativa,<br />

e a esposa, posta de lado, adota o comportamento submisso e passivo. O narrador afirma que<br />

anos antes eles já haviam sido apaixonados, pois “George dedicara outrora um soneto”<br />

(SLESAR, 1969, p. 181) à Júlia.<br />

Por meio do diálogo entre o médico e o marido, tomamos conhecimento <strong>da</strong> evolução<br />

do quadro <strong>da</strong> patologia mental de Júlia. Os motivos agravantes <strong>da</strong> fobia são identificados pela<br />

perspectiva do marido. Há, nesse caso, uma visão parcial dos fatos, pois a mulher apenas<br />

observa tudo que a rodeia, não tendo coragem de manifestar discordância diante do marido.<br />

George eluci<strong>da</strong> ao Dr. Frohlich, em ordem cronológica, que no início do casamento a fobia<br />

não era muito agu<strong>da</strong> mas que se agravou com o nascimento do primogênito, George Júnior,<br />

hoje com 11 anos de i<strong>da</strong>de, motivo <strong>da</strong> piora do seu estado mental, ou seja, há mais de uma<br />

déca<strong>da</strong> ela estava doente mentalmente. Posteriormente, o cônjuge explica outro motivo que<br />

agravou ain<strong>da</strong> mais o caso: a mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> família para o campo em Wister Country,<br />

comuni<strong>da</strong>de que abriga muitos cães. Assim, podemos perceber que, no decorrer do tempo, à<br />

medi<strong>da</strong> que o amor ao marido se acabava, algo inversamente proporcional se intensificava, a<br />

cinofobia.<br />

Ain<strong>da</strong> sobre essa conversa, notamos logo no início, que o Dr. Frohlich responde às<br />

in<strong>da</strong>gações e asserções do Sr. Smollett de modo curto, sucinto, não prolonga o assunto a<br />

respeito <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de ter um cachorro. Atua como um detetive, buscando enxergar não<br />

338


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

apenas a perspectiva do homem com quem dialoga e que “representa” o pensamento <strong>da</strong><br />

esposa, mas sim como uma visão multifaceta<strong>da</strong> dos fatos, ponderando e tentando entender<br />

também a sua frágil paciente.<br />

Mas, se quer saber a minha opinião, a melhor maneira de curar alguém de<br />

uma coisa dessas é obrigá-lo a enfrentar a situação...<br />

- Concordo consigo – disse o doutor. – Com certas reservas.<br />

[...] O senhor sabe como são os meninos. Sempre tive um cão quando era<br />

garoto. É uma lástima privar o garoto, não acha<br />

- Eles podem ser bons companheiros – disse o doutor precata<strong>da</strong>mente.<br />

[...] no campo, entende, cheio de vagabundos e tal e coisa an<strong>da</strong>ndo por lá –<br />

ora, um cão é uma necessi<strong>da</strong>de num lugar assim. O senhor não acha<br />

- Talvez. (SLESAR, 1969, p. 182-183, grifo nosso).<br />

A presença do marido na sessão de hipnose é justifica<strong>da</strong> como uma recomen<strong>da</strong>ção<br />

feita pelo médico, uma vez que gostaria de saber a sua opinião a respeito do método e julgava<br />

ser útil a presença para eventualmente esclarecer algumas informações <strong>da</strong><strong>da</strong>s pela paciente.<br />

Como podemos ver, quem deveria falar ficou quieto e a quem cabia auxiliar foi quem<br />

comandou o diálogo.<br />

Durante a sessão é descoberto o fato que gerou o trauma na Sra. Smollett, decorrente<br />

de uma ação que ocorreu quando ela ain<strong>da</strong> era criança, momento em que o seu cachorro<br />

Topper morreu, pouco depois de a menina incitar o cão a atacar um menino que morava<br />

próximo a sua casa, Bobby. Além dessa revelação, é esclarecido algo mais profundo e<br />

assustador, uma vez que se descobre uma outra face <strong>da</strong>quela mulher de feição e corpo frágeis:<br />

o seu instinto assassino, despertado a partir <strong>da</strong>quela sessão.<br />

Mas a ver<strong>da</strong>deira transformação foi a que se operou nos seus olhos: a<br />

metamorfose em algo sem i<strong>da</strong>de e to<strong>da</strong>via muito antigo – uma astúcia<br />

primeva e terrificante.<br />

- Isca! – sussurrou a voz de menina. – Isca, Topper! Mata-o! Mata-o!<br />

(SLESAR, 1969, p. 186-187, grifo nosso).<br />

O médico, após o procedimento, concluiu que existia nela o remorso por ter<br />

machucado Bobby. No entanto, podemos interpretar esse pesar não pelo viés <strong>da</strong> agressão feita<br />

ao menino, mas, sim, pela per<strong>da</strong> do cão: “Só feriu Bobby, não o matou [...] Mas eles mataram<br />

Topper. Mataram o meu cachorro. E foi por minha culpa, minha culpa...” (SLESAR, 1969, p.<br />

187, grifos nossos).<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Relembrar o fato ajudou a esclarecer algumas dúvi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> própria Sra. Smollett. O<br />

narrador demonstra isso por meio do clima. No começo ele se apresenta fechado, estava<br />

nublado: “Começou a baixar as persianas, ocultando o céu cinzento e a chuva miú<strong>da</strong> que se<br />

podia ver pela janela” (SLESAR, 1969, p. 184). Após a sessão, o sol volta a aparecer “- Veja,<br />

o sol já apareceu” (SLESAR, 1969, p. 187).<br />

Após uma elipse, “Três semanas mais tarde [...]” (SLESAR, 1969, p. 187), a cena<br />

mu<strong>da</strong> para fora do consultório. Júlia agora se encontra em casa, conversa por telefone com o<br />

Dr. Frohlich e comenta que a família tem um novo membro, um cão chamado Átila. A<br />

presença do cachorro transmite a ideia de que a hipnose foi benéfica e váli<strong>da</strong>, pois conseguiu<br />

curar o medo de cães.<br />

O nome atribuído ao animal, por escolha de George, remete ao último grande rei dos<br />

hunos, lembrado no mundo ocidental como sinônimo de cruel<strong>da</strong>de e barbárie. A emprega<strong>da</strong><br />

Alice, desconfia do cachorro e já anunciou o que poderia acontecer futuramente; no entanto,<br />

sua patroa ignora tal percepção:<br />

- Não sei não, Dona Júlia. Não confio nem um pouco nesse bicho. Tem todo<br />

o jeito de ser um cachorro perigoso.<br />

- Ora, Alice!<br />

- Tou falando sério, Dona Júlia. Lembra do que eu lhe disse Um dia esse<br />

cachorro mata alguém. (SLESAR, 1969, p. 188)<br />

Como nas narrativas policiais tradicionais, o mistério do conto é revelado apenas no<br />

final. No último parágrafo evidenciamos que cabe ao leitor concluir o que poderia vir a seguir,<br />

antecipando os próximos planos de Júlia. Assim, após encerrar a conversa com o seu<br />

psicanalista por telefone, desce até o jardim para brincar com Átila e nessa última cena nos<br />

deparamos com a seguinte situação:<br />

Júlia afagou-lhe a enorme cabeça e fez surgir a jaqueta que trouxera<br />

escondi<strong>da</strong> atrás <strong>da</strong>s costas.<br />

- Isca! – disse ferozmente, chegando-lhe a jaqueta ao focinho, metendo-lhe<br />

o cheiro de George pelas ventas a dentro. – Isca, Átila! (SLESAR, 1969,<br />

p. 188, grifo nosso).<br />

Este último parágrafo descortina a face oculta <strong>da</strong> Sra. Smollett. No decorrer do texto,<br />

ela nos é apresenta<strong>da</strong> como fraca, patética, rosto pequeno, quieta, ou então “praticamente, as<br />

únicas ocasiões em que se ouve Júlia piar: quando é contraria<strong>da</strong>” (SLESAR, 1969, p. 183,<br />

340


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

grifos nossos). Se antes piava, agora, a sós com o animal feroz, se transforma em um ser<br />

agressivo, animalesco que “diz ferozmente” e “mete o cheiro pelas ventas a dentro” na<br />

intenção de assassinar o seu marido. Como havíamos dito anteriormente, o conto obriga o<br />

leitor a concluir um final não explícito, algo escamoteado, implícito nas palavras, cabe a ele<br />

deduzir a conclusão.<br />

Se atentarmos aos conceitos de texto O laboratório do escritor, de Ricardo Piglia,<br />

percebemos que o texto em análise não foge à regra, pois apresenta duas histórias, como foi<br />

evidenciado nas primeiras páginas desse trabalho: a primeira seria sobre o relato do trauma<br />

com cães gerado na infância somado com a tentativa frustra<strong>da</strong> de matar o seu vizinho; a<br />

segun<strong>da</strong> o relato do despertar ex tunc de uma assassina anos depois. Uma mulher que prefere<br />

dirimir seus problemas sentimentais e amorosos pelo modo mais extremo, eliminando o<br />

agente causador.<br />

Júlia entende que é necessário empregar um animal como instrumento para satisfazer<br />

suas pretensões, pois além de ser fisicamente frágil, o é também mentalmente, pois não tem<br />

forças para matar com as suas próprias mãos e assumir a culpa por tal ato. Mas isso não a<br />

exime de ter uma enorme fúria interna, ódio armazenado no subconsciente, em “algo<br />

primevo” que através <strong>da</strong> hipnose abriu essa caixa de Pandora promovendo metaforicamente e<br />

literalmente o retorno do cão. “O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo<br />

que estava oculto. Reproduz a busca sempre renova<strong>da</strong> de uma experiência única que nos<br />

permita ver, sob a superfície opaca <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, uma a ver<strong>da</strong>de secreta” (PIGLIA, 1994, p. 41).<br />

REFERÊNCIAS:<br />

ALFRED HITCHCOCK WIKI. Henry Slesar. Disponível em:<br />

. Acesso em 03 jun. 2011.<br />

BIOGRAPHY. Henry Slesar. Disponível em:<br />

. Acesso em 03 jun. 2011.<br />

GENETTE, Gerard. Discurso <strong>da</strong> narrativa. (Trad. Fernando Cabral Martins). Lisboa: Editora<br />

Vega, 1977.<br />

MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. O conto policial. In: A arte do conto: sua história, seus<br />

gêneros, sua técnica, seus mestres. Rio de Janeiro: Bloch, 1972, p. 207-226.<br />

PIGLIA, Ricardo. O laboratório do escritor. São Paulo: Iluminuras Lt<strong>da</strong>, 1994.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

SLESAR, Henry. O cão perdido. In: HITCHCOCK, Alfred. Um pouco de seu sangue e outras<br />

histórias. (Trad. Leonel Vallandro), Porto Alegre, Rio Grande do Sul: Editora Globo, 1969.<br />

TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: As estruturas narrativas. 4. ed., São<br />

Paulo: Perspectiva, 2006, p. 93-104.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A Professora Detetive e a Colega Tatua<strong>da</strong><br />

SANTOS, César Palma (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: La Collega Tatuata (2002) é primeiro de uma série de histórias escritas pela<br />

italiana Margherita Oggero. A protagonista é uma professora de literatura no ensino médio de<br />

Turim, leitora de romances e fã de filmes policiais, que se vê envolvi<strong>da</strong> na investigação do<br />

assassinato de uma colega de trabalho não particularmente simpática. A investigação serve de<br />

válvula de escape para uma mulher que deve conciliar o trabalho estressante com adolescentes<br />

pouco motivados e o cui<strong>da</strong>do com uma família exigente, além de colocá-la em contato com<br />

um atraente comissário de polícia que lhe desperta sensações abafa<strong>da</strong>s pela rotina. O universo<br />

feminino é retratado com maestria por Oggero, nele a detetive se vale de suas amizades com<br />

outras mulheres para formar uma rede de informações úteis para sua investigação. Assim, é<br />

graças à relação de “sisterhood” estabeleci<strong>da</strong> que ela chega à resolução do assassinato quase<br />

ao mesmo tempo que a polícia. A autora também usa sua personagem para desnu<strong>da</strong>r o<br />

microcosmo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de onde acontece a trama, com suas divisões sociais, seus segredos e seu<br />

clima mais próximo <strong>da</strong> Europa central do que <strong>da</strong> Itália mediterrânea. O sucesso de La Collega<br />

Tatuata rendeu uma versão cinematográfica em 2003 com o título Se devo essere sincera e,<br />

posteriormente, a série televisiva Provaci ancora Prof com roteiros de Oggero que alcançou<br />

relativa audiência.<br />

PALAVRAS-CHAVE: literatura italiana; detetive; sorori<strong>da</strong>de.<br />

ABSTRACT: La Collega Tatuata (2002) is the first of four stories written by the Italian<br />

Margherita Oggero. The protagonist is a literature female teacher in high school in Turin,<br />

reader of novels and fan of thrillers, who finds herself involved in the murder investigation of<br />

a coworker not particularly friendly. The investigation serves as the outlet for a woman who<br />

must reconcile the stressful work with poorly motivated adolescents and care with a<br />

demanding family, and puts her in contact with an attractive police commissioner that will<br />

awaken feelings suppressed by the routine. The female universe is portrayed superbly by<br />

Oggero: the detective relies on friendship with other women to form a network of useful<br />

information for her investigation. Thus, it is thanks to the relation of "sisterhood" established<br />

that she comes to solving the murder almost at the same time as the police. Oggero also uses<br />

her character to unveil the microcosm of the city where the plot happens, with its social<br />

divisions, its secrets and its climate closer to Northern Europe than Italy's central<br />

Mediterranean. The success of La colleague Tatuata yielded a film version in 2003 titled Se<br />

devo essere sincera, and later the television series Provaci ancora Prof. with screenplays<br />

written by Oggero herself.<br />

KEYWORDS: Italian literature; detective; sisterhood.<br />

Desde sua origem, nos meados do século XIX, o romance policial tem se destacado<br />

pela criação de personagens marcantes, em sua maioria homens. Do Dupin de Poe, passando<br />

por Sherlock Holmes, Poirot, Maigret, Marlowe e outros tantos, o gênero literário tem<br />

repetido o estereótipo do homem com intelecto privilegiado, capaz de descobrir assassinos e<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

ladrões por processo de dedução ou usando a ciência, a mulher aparece como vítima ou, em<br />

muitos casos, como autora de crimes. Mesmo a mais célebre escritora de policiais, Agatha<br />

Christie, optou muitas vezes por essa estética, apesar de ter sido a criadora <strong>da</strong> primeira<br />

detetive, Miss Marple.<br />

Inseri<strong>da</strong> em seu tempo e em sua cultura, Miss Marple é apresenta<strong>da</strong> como uma velha<br />

solteirona inglesa que passa os dias fazendo suas ativi<strong>da</strong>des domésticas em sua aldeia, cujo<br />

maior atributo é seu conhecimento <strong>da</strong> alma humana, que lhe auxiliam na eluci<strong>da</strong>ção dos<br />

crimes. Um talento sempre menosprezado pelo sobrinho Raymond West. Vale recor<strong>da</strong>r que a<br />

personagem aparece em quatorze narrativas de Christie, enquanto Hercule Poirot, sua criação<br />

principal é protagonista de trinta e nove romances e contos.<br />

Os tempos mu<strong>da</strong>ram, as mulheres mu<strong>da</strong>ram e, de certa forma, essa mu<strong>da</strong>nça se<br />

refletiu também nos policiais, Miss Marple foi sucedi<strong>da</strong> por detetives tão astutas e tenazes<br />

quanto os Sherlocks, Poirots e Marlowes do passado. A socie<strong>da</strong>de mudou, o cenário não é<br />

mais aquele <strong>da</strong> aldeia inglesa, mas grande ci<strong>da</strong>de, cheia de estresse e conflitos como mostram<br />

os romance de Tess Gerritsen, por exemplo, criadora <strong>da</strong> dupla Rizzoli e Isles. Ou como<br />

aparece no romance que escolhemos para apresentar no <strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong><br />

Moderni<strong>da</strong>de: A Narrativa Policial.<br />

Trata-se de La Collega Tatuata (2003) primeiro dos quatro romances policiais<br />

escritos pela italiana Margherita Oggero publicados entre 2003 e 2008. Foi o ponto de parti<strong>da</strong><br />

para o desenvolvimento <strong>da</strong> professora detetive que se tornaria famosa depois <strong>da</strong> transposição<br />

para as telas do cinema e <strong>da</strong> tevê com o filme Se devo essere sincera (2003) e a série Provaci<br />

Ancora Prof transmiti<strong>da</strong> pela Raiuno a partir de 2005. Nesse primeiro romance a protagonista<br />

ain<strong>da</strong> não tem nome, posteriormente ganhará um: Camilla Baudino, uma professora de<br />

literatura italiana do ensino médio, apaixona<strong>da</strong> por romances e filmes policiais que<br />

freqüentemente se vê envolvi<strong>da</strong> em crimes, apesar <strong>da</strong> oposição do marido e <strong>da</strong> resistência do<br />

Comissário Berardi, um belo policial com quem mantém uma relação conflituosa.<br />

Em diversas ocasiões Oggero foi questiona<strong>da</strong> se o fato de ter sido também ela<br />

professora de literatura por 33 anos significaria que sua personagem seria um possível alter<br />

ego. A escritora afirma que não, ressaltando que seu ambiente de trabalho anterior serve<br />

apenas na composição de personagens e cenários, para Oggero a professora detetive nasce <strong>da</strong><br />

necessi<strong>da</strong>de de contar sobre esse ambiente conhecido e do desejo de inventar uma mulher<br />

curiosa, inteligente, irônica e, muitas vezes, difícil.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A ação desse e dos outros romances se desenrola em Turim, uma <strong>da</strong>s maiores ci<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> Itália. A ci<strong>da</strong>de é vista pela perspectiva <strong>da</strong> protagonista a partir <strong>da</strong>s divisões sociais<br />

evidencia<strong>da</strong>s pela geografia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de cujo território é formado pelo centro histórico na região<br />

plana e bairros residenciais <strong>da</strong>s classes mais abasta<strong>da</strong>s localizados na região de colinas. Essa<br />

divisão é coloca<strong>da</strong> em destaque quando ocorre o assassinato investigado pela professora que<br />

se envolve numa trama de dinheiro, sexo e segredos de famílias ricas.<br />

Em sua estréia essa professora sem nome é apresenta<strong>da</strong> como uma mulher às<br />

vésperas de completar quarenta anos em meio a uma crise, em uma luta para conciliar seus<br />

conflitos com o desgastante dia-a-dia de profissional, mãe, esposa e dona de casa. Em seu<br />

colégio, o Liceu Fibonacci, ela deve enfrentar a burocracia, a mediocri<strong>da</strong>de dos colegas e o<br />

desinteresse dos alunos; em casa tem de satisfazer as exigências do marido Enzo, um crítico<br />

de seus dotes culinários, e <strong>da</strong> filha Livieta, que exige a máxima atenção. Suas válvulas de<br />

escape são as doses diárias de vermute e as conversas com Potti, o cãozinho <strong>da</strong> família, além<br />

de longos passeios pelas ruas do centro histórico <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

A insatisfação <strong>da</strong> protagonista se agrava quando chega à escola a nova professora de<br />

inglês, alta, loira, de modos refinados e roupas de grife, além disso, com um nome<br />

aristocrático: Bianca de Lenchantin. A antipatia é imediata, mesmo sem dirigir uma palavra à<br />

nova colega, a professora de literatura passa a observá-la atentamente, perguntando-se sempre<br />

o que uma mulher como aquela estava fazendo em uma escola pública. Ca<strong>da</strong> detalhe de<br />

Bianca não passa despercebido, fazendo com que ela se torne o centro <strong>da</strong>s atenções <strong>da</strong><br />

protagonista, que cria hipóteses, inventa possíveis histórias para explicar aquela presença. É o<br />

que acontece quando percebe uma tatuagem no braço esquerdo de Bianca que faz pensar em<br />

um passado de aventuras, nem um pouco aristocrático.<br />

A antipatia pela colega aumenta quando a “prof” descobre que Bianca é vizinha de<br />

sua amiga Gina em uma área nobre de Turim. Gina suspeita que a bela professora de inglês<br />

seja a responsável pelo envenenamento de um de seus cães e, decidi<strong>da</strong> a tirar satisfações<br />

promete uma visita na<strong>da</strong> amistosa à vizinha. A “prof” testemunha to<strong>da</strong> a ira <strong>da</strong> amiga<br />

convencendo-se que seu juízo sobre a colega de trabalho era justo, sem se <strong>da</strong>r conta, no<br />

entanto, que sua proximi<strong>da</strong>de com Bianca estava aumentando.<br />

Os três capítulos iniciais preparam o cenário para trama do romance, nos quais são<br />

apresenta<strong>da</strong>s as personagens principais: a detetive e a vítima, além de uma possível suspeita.<br />

Um dia após uma falta ao trabalho, que a protagonista imagina como uma escapa<strong>da</strong> para um<br />

fim de semana de diversões, Bianca de Lenchantin é encontra<strong>da</strong> morta em um lixão, a causa<br />

345


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

mortis seria estrangulamento, o fato choca a socie<strong>da</strong>de turinesa e, obviamente, o microcosmo<br />

do Liceo Fibonacci. A prof também se choca, mas recor<strong>da</strong>-se imediatamente <strong>da</strong> amiga Gina e<br />

suas promessas de vingança, teria a amiga levado a discussão com Bianca a ponto de matá-la<br />

Sem querer a detetive se vê envolvi<strong>da</strong> na investigação <strong>da</strong> morte <strong>da</strong> colega. Gina a usa<br />

como álibi, aumentando suas suspeitas, obrigando-a a mentir para polícia e a confrontar a<br />

amiga que esclarece to<strong>da</strong> situação: não havia conseguido ver a vizinha e sua vingança se<br />

limitou em furar os pneus de um dos carros <strong>da</strong> família. Durante o interrogatório aparece o<br />

terceiro personagem importante do romance, o comissário Berardi, com quem a professoradetetive<br />

irá estabelecer um relacionamento com uma forte tensão sexual. É o comissário que a<br />

faz perceber o quanto ela e Bianca estavam próximas, pela escola e por Gina; é ele também<br />

quem aumenta seu interesse pela investigação ao falar de uma agen<strong>da</strong> desapareci<strong>da</strong> que<br />

poderia aju<strong>da</strong>r a entender os últimos dias <strong>da</strong> vítima.<br />

A agen<strong>da</strong> é encontra<strong>da</strong> pela “detetive”, fato que acende sua antiga paixão pelo<br />

romance policial critica<strong>da</strong> pelo marido, mas que a impulsiona na própria investigação. Antes<br />

de devolver a agen<strong>da</strong>, sempre mais curiosa a respeito <strong>da</strong> colega assassina<strong>da</strong>, preocupa-se em<br />

fazer uma fotocópia, envolvendo-se definitivamente no caso. No entanto, a agen<strong>da</strong> apresenta<br />

poucos <strong>da</strong>dos relevantes, era preciso saber quem realmente era Bianca de Lenchantin para<br />

saber como ela foi acabar estrangula<strong>da</strong> em um lixão.<br />

É nesse momento que aparece o elemento que julgamos distintivo no romance de<br />

Oggero em relação às questões de gênero. Para realizar suas investigações a detetive se utiliza<br />

de uma singular rede de informantes: suas amigas. É através dessa rede de fontes seguras que<br />

ela consegue traçar um perfil <strong>da</strong> vítima, estabelecer as relações dessa com os suspeitos e,<br />

finalmente, descobrir o assassino e o motivo do crime.<br />

Não podemos afirmar com segurança se há algum fun<strong>da</strong>mento ideológico <strong>da</strong> autora<br />

ou se é somente um elemento narrativo que se utiliza <strong>da</strong> ideia de que as mulheres são<br />

“fofoqueiras” por natureza, uma ideia que vai de encontro com a perspectiva de nossa leitura.<br />

Implicitamente podemos ver nas relações <strong>da</strong> protagonista o princípio <strong>da</strong> “sisterhood”.<br />

Esse termo, que se pode traduzir em português por sorori<strong>da</strong>de (do latim soror irmã),<br />

explicitando a relação de irman<strong>da</strong>de entre as mulheres começou a ser usado nesse sentido<br />

pelas feministas norte-americanas mais radicais a partir dos anos 70. A ideia era ressaltar uma<br />

conexão <strong>da</strong>s mulheres, sem relações biológicas, mas liga<strong>da</strong>s pela soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de. A expressão<br />

“sisterhood is powerful” utiliza<strong>da</strong> por essas feministas se tornou o título de uma coleção de<br />

ensaios organiza<strong>da</strong> por Robin Morgan e publica<strong>da</strong> em 1970, obra composta por textos que,<br />

346


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

segundo os críticos, foram importantes para o desenvolvimento <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> on<strong>da</strong> do<br />

feminismo nos Estados Unidos.<br />

O conceito de sorori<strong>da</strong>de (ou sisterhood) refere-se a princípio à participação no<br />

movimento <strong>da</strong>s mulheres, ao apoio dessas entre si ou ao reconhecimento de quali<strong>da</strong>des que<br />

lhes seriam únicas. Implica também na forma de ver o relacionamento entre elas e com os<br />

homens impulsionando a criação de redes de colaboração em diversas frentes: a saúde, a<br />

violência doméstica, a luta pela igual<strong>da</strong>de de direitos.<br />

No romance de Oggero essas relações são relevantes porque é através delas que a<br />

protagonista desenvolve sua investigação. A rede de informação vai sendo mostra<strong>da</strong> ao longo<br />

<strong>da</strong> narrativa, à medi<strong>da</strong> que a detetive (e o leitor) vai se aprofun<strong>da</strong>ndo na vi<strong>da</strong> de Bianca e em<br />

suas relações; as informantes são três mulheres de i<strong>da</strong>des e classes sociais diferentes: Elisa,<br />

Floriana e Sara.<br />

Elisa é uma senhora de 80 anos, a memória viva <strong>da</strong> Turim per bene, conhecedora <strong>da</strong>s<br />

histórias <strong>da</strong> alta socie<strong>da</strong>de, sempre disposta a uma boa conversa desde que o interlocutor<br />

aceite beber seu café que, segundo a protagonista, seria o pior café <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Elisa o<br />

considerava bom e nenhum hóspede a contradizia, por educação e respeito; beber esse café é<br />

moe<strong>da</strong> de troca <strong>da</strong> professora em busca de informações sobre o passado <strong>da</strong> vítima.<br />

19 Elisa tinha oitenta e seis anos e mesmo podendo ser tranquilamente sua avó<br />

a tinha sempre tratado como uma coetânea. Ela não se ressentia, nem<br />

protestava, mesmo se algumas vezes é toma<strong>da</strong> por uma leve inquietação pela<br />

ideia que uma amiga – porque se tratava de uma amiga – pudesse considerála<br />

assim. Elisa era muito lúci<strong>da</strong>, generosa, sóli<strong>da</strong> como o K2, alegremente<br />

imperiosa e dogmática. E, sobretudo, era a memória histórica de certa Turim,<br />

<strong>da</strong>quela que contava e conta pela cultura, empenho político, arte, bizarrice e<br />

mun<strong>da</strong>ni<strong>da</strong>de. [...](OGGERO, 2003, p. 72).<br />

Através de Elisa a professora descobre que Bianca vinha de uma conturba<strong>da</strong> família<br />

aristocrática, com uma mãe fugitiva e um pai viciado em jogatina, responsável por dilapi<strong>da</strong>r o<br />

patrimônio. Sobre a mãe não se sabia muita coisa, somente que havia deixado a filha e o<br />

marido partindo para lugar desconhecido, corriam vozes de uma suposta relação com um<br />

cunhado que a teria encontrado no Brasil e com quem teria tido um filho: Marco Vaglietti, a<br />

última pessoa que teria visto Bianca com vi<strong>da</strong>.<br />

Para obter mais informações sobre Vaglietti, considerado oficialmente como primo<br />

de Bianca, a detetive se vale de novo de sua rede de informações. Vaglietti está ligado ao<br />

19 As traduções de La Collega Tatua<strong>da</strong> são nossas.<br />

347


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

mercado de arte, ninguém melhor que uma dona de galeria para saber sobre a vi<strong>da</strong> do<br />

marchand e assim é aciona<strong>da</strong> Floriana.<br />

Floriana era proprietária de uma galeria por vinte anos, por suas mãos passaram as<br />

obras de arte que enfeitavam os salões <strong>da</strong> alta socie<strong>da</strong>de, conhecia o mercado de arte em todos<br />

os seus aspectos, dos grandes colecionadores aos intermediários e falsários. O envolvimento<br />

de Floriana se deve também pelo fato <strong>da</strong> professora e seu marido Enzo desconfiarem <strong>da</strong><br />

autentici<strong>da</strong>de de algumas obras vista em uma rápi<strong>da</strong> visita ao viúvo de Bianca; seria esse o<br />

motivo do crime Bianca teria descoberto que o primo havia trocado os originais<br />

Para eluci<strong>da</strong>r essas questões é necessário se inserir no mundo de marchands e<br />

galeristas, falsários e intermediários; saber sobre o mercado negro e sobre a relação do<br />

suspeito com tudo isso. A detetive vai além, resolve conhecer Marco Vaglietti e convence<br />

Floriana a convidá-la para um vernissage no qual o primo de Bianca estaria presente. Durante<br />

o vernissage, depois de conhecer o suspeito a professora é atraí<strong>da</strong> por um perfume, o mesmo<br />

usado por Vaglietti e interessa-se em saber quem era a pessoa e novamente pede aju<strong>da</strong> a<br />

Floriana.<br />

Nesse momento aparece o terceiro personagem que completará a trama que resultou<br />

no assassinato de Bianca: Ugo Arnuffi. Floriana informa também que Vaglietti era bissexual,<br />

Arnuffi seria um de seus partners habituais, trabalhava em uma rádio e dividia o tempo entre<br />

Turim e Roma.<br />

A missão de Floriana se cumpre nesse momento, graças às suas informações se passa<br />

a outra fase <strong>da</strong> investigação. Como no caso de Elisa com quem tomava o café mesmo não<br />

gostando, para Floriana a moe<strong>da</strong> de troca é simplesmente um bolo especial feito pela<br />

professora.<br />

No passo seguinte <strong>da</strong> investigação é preciso saber quem é Ugo Arnuffi e qual é sua<br />

ligação com Bianca e, principalmente, com Marco Vaglietti. Novamente será uma amiga a<br />

fonte segura <strong>da</strong>s informações que precisava, assim entra em cena Sara:<br />

[...] Havia conhecido Sara na universi<strong>da</strong>de, uma escolhi<strong>da</strong> pelo infortúnio,<br />

alguém que havia se livrado dos campos de concentração por razões de<br />

registro, mas que tinha encontrado igualmente em seu caminho uma<br />

indecifrável divin<strong>da</strong>de anti-semita, alguém que, como Jó, entre uma desgraça<br />

e outra não tinha nem mesmo tempo de engolir a saliva. [...] (OGGERO,<br />

2003, p. 112).<br />

348


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Na continuação do trecho acima a protagonista descreve a vi<strong>da</strong> difícil <strong>da</strong> amiga, uma<br />

mulher complica<strong>da</strong>, vítima de seguidos infortúnios sejam de ordem física sejam de ordem<br />

emocional. Sara trabalha em uma grande emissora de rádio, apesar de seus dotes nunca<br />

conseguiu chegar a um alto posto se contentando com a função de re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s listas <strong>da</strong>s<br />

músicas e vinhetas utiliza<strong>da</strong>s em diferentes programas.<br />

Sara é uma mulher carente, solitária, vive com uma cachorrinha doente depois de ter<br />

sido abandona<strong>da</strong> pelo último marido que lhe roubou tudo. Sua vi<strong>da</strong> se resume ao trabalho em<br />

um cantinho <strong>da</strong> rádio onde fica sabendo sobre tudo e todos, suas informações colocam a<br />

professora na pista que eluci<strong>da</strong>rá definitivamente o assassinato de Bianca. Sara fornece<br />

informações sobre os horários do suspeito, seus períodos de estadia na ci<strong>da</strong>de e possibilita que<br />

a detetive estabeleça relações levando-a a descobrir o assassino.<br />

Como nos casos anteriores Sara também recebe uma recompensa pelas informações.<br />

A professora se oferece para cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> cachorrinha <strong>da</strong> amiga enquanto a funcionária <strong>da</strong> rádio<br />

parte para um passeio romântico. As recompensas às amigas são uma forma de<br />

agradecimento, to<strong>da</strong>s expressam afeição e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, reforçando elos já existentes entre a<br />

protagonista e suas informantes, fortalecendo a rede já cria<strong>da</strong> entre essas mulheres. O<br />

resultado dessa relação é motivo de orgulho para a detetive que, em certo momento, deixa isso<br />

claro:<br />

Como que a CIA e o FBI conseguem ser pegos de surpresa por seitas<br />

fanáticas, homens-bomba visionários e serial killers paranóicos com todos os<br />

infiltrados, espiões, satélites e computadores que têm Bastariam poucas<br />

pessoas coloca<strong>da</strong>s nos ambientes justos – melhor se fossem mulheres. Elas<br />

são mais atentas, receptivas e consegue fazer passar segredos nucleares<br />

como se fossem receitas culinárias. E se saberia tudo de todos. Gaetano -<br />

pausas galantes e negócios de família à parte – quebra a cabeça verificando<br />

particulares tentando enquadrar os detalhes e eu, no meu pequeno mundo,<br />

junto montes de notícias, porque minhas informantes Elisa, Floriana e Sara<br />

são elementos de primeira e não traficantes e receptadores de rádios. [...]<br />

(OGGERO, 2003, p. 117).<br />

Com as informações obti<strong>da</strong>s a detetive pode se confrontar com o Comissário Berardi<br />

porque quer completar e confirmar algumas informações obti<strong>da</strong>s. O policial se espanta pelo<br />

fato <strong>da</strong> professora saber tanto sobre o caso, assim como se espanta por descobrir que a simples<br />

professora sabe de detalhes referente à vi<strong>da</strong> de vítima que a polícia desconhecia. Esse<br />

confronto de <strong>da</strong>dos serve para a detetive finalizar sua linha de raciocínio e descobrir o que<br />

houve com a colega assassina<strong>da</strong>.<br />

349


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Finalmente, quando o comissário comunica que já encontrou o assassino de Bianca, a<br />

professora não se mostra surpresa porque já havia chegado à conclusão que a colega<br />

havia sido morta por se envolver em uma relação conturba<strong>da</strong> com o primo Marco Vaglietti e o<br />

amante dele, Ugo Arnuffi.<br />

Na investigação do assassinato <strong>da</strong> colega, a professora se aprofun<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong> de<br />

alguém que, apesar <strong>da</strong> proximi<strong>da</strong>de, era-lhe uma completa desconheci<strong>da</strong>. Suas implicâncias<br />

iniciais com Bianca se baseavam em aparência elegante e forma de se vestir, no fato de<br />

parecer esnobe diante de um grupo de pessoas simples. Ao aprofun<strong>da</strong>r-se na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> colega, a<br />

professora detetive vai descobrindo que aquela aparência que tanto lhe desagra<strong>da</strong>va era uma<br />

forma de esconder uma vi<strong>da</strong> de privações emocionais e materiais, Bianca era uma jovem bela<br />

que viu no casamento com um homem rico a maneira de sobreviver às per<strong>da</strong>s sofri<strong>da</strong>s: o<br />

abandono <strong>da</strong> mãe, a falência do pai, etc.<br />

De maneira sensível o romance termina com um texto <strong>da</strong> protagonista endereçado a<br />

Bianca, na ver<strong>da</strong>de um resumo de to<strong>da</strong>s as informações obti<strong>da</strong>s ao longo <strong>da</strong> investigação e<br />

que apresentam a história <strong>da</strong> vítima. Ou seja, finalmente a professora detetive (e o leitor) tem<br />

uma imagem inteira <strong>da</strong> personagem que fala pouquíssimo e é mais cita<strong>da</strong> no romance.<br />

Como já afirmamos não temos certeza <strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> autora ao retratar essa<br />

rede de informantes femininas e essa ligação com o feminino que aparecem em La Collega<br />

Tatuata. No entanto, vale ressaltar que os romances posteriores com a professora detetive, já<br />

com o nome de Camilla Baudino, mantêm em suas tramas uma relação muito estreita com o<br />

universo feminino. Por exemplo, em Una Piccola Bestia Ferita Camilla precisa aju<strong>da</strong>r a<br />

solucionar o seqüestro de uma jovem; em L’ Amica Americana deve descobrir o assassino de<br />

uma senhora com quem faz amizade; em Qualcosa <strong>da</strong> tenere per sé a professora se envolve<br />

na investigação do assassinato de uma prostituta. Do mesmo modo, os episódios escritos por<br />

Margherita Oggero para a série televisiva apresentam essa característica.<br />

O sucesso <strong>da</strong> personagem de Oggero, segundo alguns críticos, deve-se ao fato <strong>da</strong><br />

professora detetive ser uma mulher comum, com problemas comuns <strong>da</strong>s mulheres modernas:<br />

a casa, o trabalho, as frustrações, etc. tudo temperado com uma grande dose de ironia. É o<br />

oposto de Miss Marple, a velhinha simpática e solitária cria<strong>da</strong> por Christie, as investigações<br />

<strong>da</strong> professora têm se adequar aos horários <strong>da</strong>s aulas, de buscar a filha no colégio e de preparar<br />

o jantar para o marido, além de ter de corrigir os trabalhos dos alunos, preparar as aulas e li<strong>da</strong>r<br />

com a burocracia <strong>da</strong> escola. Em La Collega Tatuata já é apresenta<strong>da</strong> essa rotina estressante,<br />

abrindo a possibili<strong>da</strong>de de se pensar que o interesse <strong>da</strong> professora pelo assassinato <strong>da</strong> colega é<br />

350


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

um subterfúgio para escapar de uma reali<strong>da</strong>de opressora, uma maneira de assumir outros<br />

papéis.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

DANI, Claudia. Magherita Oggero 16 maio 2010. Disponível em:<br />

. Acesso em: 25 jul.<br />

2012)<br />

INGRASSIA, Walter Quantità, generi e tendenze dell’ a<strong>da</strong>ttamento letterario per la<br />

televisione março 2010. Disponível em: < http://www.quadernidisymbolon.eu/wordpress/wp<br />

content/uploads/2012/03/Ingrassia.pdf>.Acesso em: 26 jul. 2012)<br />

OGGERO, Margherita. La Collega Tatuata. Milano: Mon<strong>da</strong>dori, 2003.<br />

______. Una Piccola Bestia Ferita. Milano: Mon<strong>da</strong>dori, 2004.<br />

______. L’Amica Americana. Milano: Mon<strong>da</strong>dori, 2006.<br />

______. Qualcosa <strong>da</strong> tenere per se.Milano: Mon<strong>da</strong>dori, 2008.<br />

351


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Mas de onde vem esse perfume Literatura e cinema policial no contemporâneo ou a difícil<br />

procura por uma identi<strong>da</strong>de pessoal em tempos pós-modernos<br />

SANTOS, Héder Junior dos (<strong>UNESP</strong>/ <strong>Assis</strong> – CNPq)<br />

RESUMO: Pretendemos verificar como ocorre a releitura do texto literário ao fílmico na<br />

narração <strong>da</strong> trajetória de Jean-Baptiste Grenouille, personagem central de duas ficções: do<br />

romance O perfume, de 1985, do escritor alemão Patrick Süskund, e do filme homônimo, do<br />

diretor também germânico Tom Tykwer, de 2006. Pode-se considerar que Grenouille encarna,<br />

em certos sentidos, o espírito desnorteador de sua temporali<strong>da</strong>de, e sua busca hedonista por<br />

um perfume catártico (de onde se marca os limites e as fronteiras dos participantes <strong>da</strong> ação<br />

encena<strong>da</strong>, quer dizer, o sujeito central, seu objeto, os adjuvantes e oponentes que surgirão na<br />

empreita<strong>da</strong> de Grenouille) e como associado a isso, podemos entrever certa busca de sentido<br />

do mundo em que está alocado, a qual se dá em uma França em transição: de uma estrutura<br />

sócio-política basea<strong>da</strong> na monarquia à luta pela emancipação <strong>da</strong> burguesia. Os narradores,<br />

literário e fílmico, nos recolocam no contexto histórico, social, cultural, econômico e político<br />

<strong>da</strong> França <strong>da</strong> metade do século XVIII (1738-1767); e se é ver<strong>da</strong>deira a noção de que o<br />

passado retomado pelo olhar do presente (1985; 2006) encontra-se permeado pela lógica<br />

sócio-cultural deste, e não <strong>da</strong>quele, e sua reconfiguração se justifica por reminiscências que<br />

afetam o comportamento e a subjetivi<strong>da</strong>de dos indivíduos (literato e cineasta); tem-se que<br />

algumas questões permanecem vivas, ressoando por meio de efeitos dispersivos próprios <strong>da</strong>s<br />

relações sociais; muitas vezes irresolutas, as problemáticas presentes no interior de uma<br />

socie<strong>da</strong>de nos levam a sucessivos retornos a própria história, sempre amparados em novas (ou<br />

nem tanto) lógicas científicas e culturais, com a finali<strong>da</strong>de de se tentar compreender, a partir<br />

de um novo traçado, a ponte que liga o passado ao presente. E se interpreta<strong>da</strong>s posteriormente<br />

pelo romance e pelo filme, bem nos ocorre questionar: de onde então emanaria esse perfume<br />

PALAVRAS-CHAVE: O perfume; Relações entre literatura, cinema e história;<br />

Reficcionalização; Contemporanei<strong>da</strong>de.<br />

ABSTRACT: We intend to verify how it is established the film reading of the literary text,<br />

focusing on the story of Jean-Baptiste Grenouille, the central figure in two works of fiction:<br />

the novel Perfume, 1985, by the German writer Patrick Süskund and the homonymous film,<br />

directed by Tom Tykwer in 2006. We can consider that Grenouille embodies, in some ways,<br />

the bewildering spirit of his time, and his hedonist search for a cathartic perfume (where the<br />

film marks the boun<strong>da</strong>ries and frontiers of the participants of the performed action, the central<br />

subject, his object, supporting characters and opponents that arise in Grenouille’s trajectory)<br />

and associated with this, we can glimpse some search for comprehension in the space where<br />

he is allocated: a France in transition: from a socio-political structure based on monarchy to<br />

the struggle for the bourgeoisie emancipation. The storytellers, in literature and film, reset us<br />

to the historical, social, cultural, economic and political context of France in the mideighteenth<br />

century (1738-1767); and if it is true the notion that the past taken up by the look<br />

of present (1985 , 2006) is permeated by this socio-cultural logic, not that one, and the<br />

reconfiguration is justified by reminiscences that affect the behavior of individuals and<br />

subjectivity (writer and director). It means that some issues are still alive, resonating by<br />

dispersive effects of social relationships; often irresolute, the problems present in a society<br />

352


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

lead us to successive returns to our own history, always backed by new (or not) scientific and<br />

cultural logics of organizations, for the purpose of trying to understand, from a new route, the<br />

bridge that connects the past to the present. And if it is later interpreted by the novel and film,<br />

we have a question: where could the perfume emanate from<br />

KEYWORDS: Perfume; Relations among literature, cinema and history; Contemporary<br />

productions.<br />

“A sutileza inapreensível e, apesar disso real, do perfume, o<br />

assemelha simbolicamente a uma presença espiritual e à natureza <strong>da</strong><br />

alma. A persistência do perfume de uma pessoa, depois <strong>da</strong> parti<strong>da</strong><br />

dela, evoca uma idéia de duração e de lembrança. O perfume<br />

simbolizaria assim a memória e talvez tenha sido esse um dos sentidos<br />

do seu emprego nos ritos funerários.”<br />

Jean Chevalier & Alain Gheerbrant<br />

ROMANCE E FILME: UMA RECRIAÇÃO PROPRIAMENTE DITA OU NO EXERCÍCIO<br />

DA LINGUAGEM CONFIGURA-SE A MORTE DA INFLUÊCIA<br />

Ao nos depararmos com uma obra cinematográfica que toma por base um texto<br />

literário, múltiplas questões se apresentam nesse entrecruzamento de formas e conteúdos. A<br />

primeira vista, somos levados a considerar o caráter de fidedigni<strong>da</strong>de empregado pelo cineasta<br />

em relação ao texto de origem, isto é, somos instigados a observar em que medi<strong>da</strong> o filme se<br />

vale de certos elementos próprios <strong>da</strong> literatura e quais as mediações utiliza<strong>da</strong>s/ necessárias<br />

para trazer às telas uma releitura peculiar <strong>da</strong> diegése literária, que por sua vez, se apresenta<br />

com códigos dispares de manifestação. Um exame de tal entrelaçamento, já nos apresentaria<br />

pontos conflitantes, principalmente, pelo fato de nos colocarmos em face de duas obras<br />

confecciona<strong>da</strong>s em solos históricos distintos e autores municiados de sensibili<strong>da</strong>des,<br />

perspectivas e intenções particulares, ou seja, ca<strong>da</strong> qual tem por objetivo “contar uma<br />

história”, mas é claro, “ca<strong>da</strong> um a sua forma”.<br />

Estreitar as inclinações conteudísticas dos produtos literários naqueles<br />

cinematográficos foi o caminho percorrido até recentemente pela crítica especializa<strong>da</strong>, quando<br />

se debruçou sobre a película que se propunha transcodificar uma obra literária. Municia<strong>da</strong> de<br />

juízos ansiosos por traçarem um paralelo sumarizante dos conteúdos conjugados entre livro e<br />

filme, deixou-se para o segundo plano o aspecto <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de dos meios, pelos quais,<br />

ca<strong>da</strong> narrativa se realizou enquanto objeto artístico-cultural. Além de se esquecer de que a<br />

narrativa audiovisual não apenas dialoga com seu texto-fonte, observa Ismail Xavier (2003, p.<br />

62) no ensaio “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”, que as<br />

353


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

mesmas travam conexões “com o seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro,<br />

mesmo quando o objetivo é a identificação com os valores nele expressos”. No caso do<br />

romance O perfume e sua releitura cinematográfica, os apontamentos do crítico (XAVIER,<br />

2003) comporiam, pois, os óculos mais fecundos para analisarmos duas ficções que<br />

pretendem revisitar a história <strong>da</strong> França oitocentista por meio <strong>da</strong> trajetória de um sociopata,<br />

em crise com sua condição existencial e o meio circun<strong>da</strong>nte, diga-se de passagem, apto a<br />

conferir-lhe um estado de incompletude.<br />

Em As formas do conteúdo, Umberto Eco (1974, p. 123) assim se expressa sobre as<br />

dispari<strong>da</strong>des estéticas atingi<strong>da</strong>s quando <strong>da</strong> tentativa de se realizar uma releitura do mesmo<br />

conteúdo, a contradição do código e a inventivi<strong>da</strong>de de quem se propõe a retomar um<br />

conteúdo outrora trabalhado. Afirma o estudioso:<br />

A menos que Deus não tivesse consciência do fato e houvesse baixado o<br />

interdito exatamente para fazer nascer a ocorrência histórica. Ou ao menos<br />

que Deus não existisse e o interdito tivesse sido inventado por Adão e Eva<br />

justamente para introduzirem no código uma contradição e começarem a<br />

falar de modo inventivo. Ou ain<strong>da</strong>, que o código tivesse essa contradição<br />

desde as origens e o mito do interdito tivesse sido inventado pelos<br />

progenitores para explicarem um fato tão escan<strong>da</strong>loso. [...] Como se vê,<br />

to<strong>da</strong>s essas investigações nos levam para fora do nosso campo de<br />

investigações, que se limita à criativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem, ao seu uso poético,<br />

e à interação entre forma do mundo e formas significantes. É inútil dizer que<br />

a linguagem, assim livre <strong>da</strong> hipoteca <strong>da</strong> ordem e <strong>da</strong> univoci<strong>da</strong>de, é entregue<br />

por Adão a seus descendentes como uma forma bastante mais rica, mas<br />

novamente com pretensões de completude e definitivi<strong>da</strong>de. Daí por que<br />

Caim e Abel, quando descobrem justamente através do exercício <strong>da</strong><br />

linguagem, que existem outras ordens, matam Adão. Esta última<br />

particulari<strong>da</strong>de nos afasta ain<strong>da</strong> mais <strong>da</strong> tradição exegética consueta e nos<br />

coloca a igual distância entre o mito de Saturno e o mito de Sigmund. Mas<br />

existe método nessa loucura, e Adão nos ensinou que, para reestruturarmos<br />

os códigos, é preciso, antes de mais na<strong>da</strong>, experimentarmos reescrever as<br />

mensagens.<br />

DOIS<br />

FRASCOS E UMA ESSÊNCIA: NOTAS PRELIMINARES SOBRE AS<br />

REESCRITURAS DOS CONTEÚDOS NO ROMANCE E NO FILME<br />

O perfume (2006) carrega consigo inúmeros resquícios de fideli<strong>da</strong>de à obra literária<br />

(1985) no que se refere ao plano conteudístico. A fábula romanesca aparece fartamente na<br />

película. Não ocorre nenhuma espécie de transgressão espaço-temporal, quer dizer, não há<br />

deslocamento do tempo diegético do romance (anacronismo ou atualização). O narrador<br />

cinematográfico nos coloca novamente no contexto histórico <strong>da</strong> França <strong>da</strong> metade do século<br />

354


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

XVIII (1738 – 1767). É importante destacar que esses são os anos que antecedem à revolução<br />

francesa (1789), um período marcado pelo espírito de apatia e massacre monárquico frente<br />

aos ideais burgueses de emancipação econômica, social e cultural. Como já é possível notar, o<br />

filme margeia as crises oriun<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças político-estruturais <strong>da</strong> França, que iria do<br />

esfacelamento do regime nobiliárquico à pretensa consoli<strong>da</strong>ção de um país regido pela<br />

democracia burguesa e moderna.<br />

Dessa forma, ao confrontarmos livro e filme, observamos também que os diálogos<br />

passam por um farto processo de aproveitamento. Nesse horizonte, as personagens e seus<br />

destinos são recorrentes do romance de Süskind. Guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as devi<strong>da</strong>s proporções, no filme,<br />

suas vicissitudes condizem em inúmeros aspectos àquelas fomenta<strong>da</strong>s pelo narrador<br />

romanesco. Além de receberem um tratamento tipificado, são figuras verificáveis<br />

(verossímeis) na reali<strong>da</strong>de recorta<strong>da</strong> pela economia <strong>da</strong> obra, salvo o protagonista, Jean-<br />

Baptiste Grenouille, carregado de profundi<strong>da</strong>de psicológica em ambas as ficções. Em outras<br />

palavras, estamos em face <strong>da</strong>quilo que Doc Comparato (1996) em Da criação ao roteiro<br />

denominou uma “a<strong>da</strong>ptação propriamente dita”, quando “não há alteração <strong>da</strong> história, nem de<br />

tempo, nem de localizações, nem de personagens. Os diálogos refletem apenas as emoções e<br />

os conflitos presentes no original” (p. 331).<br />

Vale frisar ain<strong>da</strong>, que esse trabalho analisa o filme Perfume: a história de um<br />

assassino, tomando por base a trajetória do anti-herói Jean-Baptiste Grenouille, um homem<br />

pobre, branco e citadino, e também as condições histórico-sociais emoldura<strong>da</strong>s pelo narrador<br />

cinematográfico que propiciaram sua condição humana de sóciopata, to<strong>da</strong>via, nos atentando<br />

aos recados <strong>da</strong>dos a contemporanei<strong>da</strong>de em que foi realizado.<br />

A OBRA DE ARTE, SUA SINGULARIDADE E A BUSCA MALOGRADA PELO<br />

SENTIDO DA VIDA NO REDEMOINDO DE CAMINHOS MOVEDIÇOS<br />

A crítica literária e cinematográfica, assim como o julgamento de outros objetos<br />

artísticos, implica determina<strong>da</strong>s especifici<strong>da</strong>des categoriais. De acordo com o teórico húngaro<br />

Georg Lukács (1978), em Introdução a uma estética marxista, a análise de obras de arte<br />

exige, segundo ele (1978), atenção especial volta<strong>da</strong> para a distinção essencial entre o<br />

pensamento científico e o estético. Nas palavras do autor (1978): “O reflexo científico<br />

transforma em algo para nós, com a máxima aproximação possível, o que é em si na<br />

reali<strong>da</strong>de, na sua objetivi<strong>da</strong>de, na sua essência, nas suas leis” (p. 296). Visto sob esta<br />

355


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

perspectiva, o reflexo científico <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, sem que se façam notar as desarmonias entre as<br />

correntes teóricas, sempre ambiciona a representação “teórico-abstrata” dos processos sociais<br />

por trás dos fatos empíricos imediatos. Na leitura de Lukács (1978), no bojo <strong>da</strong> intelecção<br />

estética – uma música, uma escultura, um filme, uma obra literária, uma pintura, etc. –, a<br />

perspectiva a ser construí<strong>da</strong> é outra, como bem frisou o autor (1978): “cria-se, por um lado,<br />

reproduções <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de nas quais o ser em si <strong>da</strong> objetivi<strong>da</strong>de é transformado em um ser para<br />

nós do mundo representado na individuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> obra de arte” (p. 296). To<strong>da</strong>via nos lembra<br />

o estudioso (1978): “não separa<strong>da</strong> de maneira hostil do mundo exterior” (p. 296, grifo<br />

nosso). Isso quer dizer que a atitude analítica deve necessariamente ser modifica<strong>da</strong> quando<br />

estamos colocados defronte a uma obra de arte, pois o objeto não se explica necessariamente,<br />

como no discurso científico, pela manifestação <strong>da</strong> essência refrea<strong>da</strong> no poder universal de leis<br />

gerais. De forma particular, a obra de arte, para o autor (1978), se resolve pela sua potencial<br />

particulari<strong>da</strong>de, quer dizer, livre dos filtros e mediações próprias <strong>da</strong> ciência, resume em si a<br />

representação de um momento histórico particular, não, a priori, desbravador <strong>da</strong> essência do<br />

real, mas em hipótese alguma descolado <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, já que to<strong>da</strong> obra é, segundo Lukács<br />

(1978), um produto social e humano.<br />

Grosso modo, podemos considerar que a Moderni<strong>da</strong>de tem nas diversas formas de<br />

intelecção artística sua manifestação por excelência. Com o despe<strong>da</strong>çamento de uma<br />

mentali<strong>da</strong>de feu<strong>da</strong>l e o advento de uma ideologia burguesa imperante, resulta<strong>da</strong> de uma<br />

profun<strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça na trajetória <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, a obra de arte materializa a luta (no campo<br />

estético) <strong>da</strong> cultura burguesa contra a cultura medieval; em outras palavras, os produtos<br />

artísticos encarnam a expressão <strong>da</strong> consciência e consoli<strong>da</strong>ção de um modo de ser e estar<br />

burguês. Então, decorreria <strong>da</strong>í a necessi<strong>da</strong>de de se atentar às contradições do desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de capitalista para notarmos como o romance e o filme O perfume (1985; 2006) se<br />

arranjam, nos planos <strong>da</strong> forma e do conteúdo, ain<strong>da</strong> mais que produzidos em seu período<br />

avançado.<br />

Na interpretação de Fredric Jameson (2000), em Pós-Modernismo, no momento em<br />

que são confecciona<strong>da</strong>s as narrativas em análise neste trabalho, ain<strong>da</strong> subsistem algumas<br />

zonas residuais <strong>da</strong> “natureza”, ou do “ser”, do velho, do mais velho, do arcaico; a cultura<br />

ain<strong>da</strong> pode fazer alguma coisa com tal natureza e trabalhar para reformar esse “referente”. O<br />

pós-modernismo, na leitura de Jameson (2000 ) é o que se tem quando o processo de<br />

modernização está completo e a natureza se foi para sempre. É um mundo mais<br />

completamente humano que o anterior, mas é um mundo no qual a “cultura” se tornou uma<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

ver<strong>da</strong>deira “segun<strong>da</strong> natureza”. De fato, o que aconteceu com a cultura pode muito bem ser<br />

uma <strong>da</strong>s pistas mais importantes para se detectar o pós-moderno: uma dilatação imensa de sua<br />

esfera (a <strong>da</strong> mercadoria), uma aculturação do real imensa e historicamente original; dito de<br />

outra maneira: um salto quântico no que Benjamim ain<strong>da</strong> denominava a “estetização” <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong>de – e isso porque acreditava que isso <strong>da</strong>va no fascismo; mas nós sabemos que é<br />

apenas divertido: uma prodigiosa alegria diante <strong>da</strong> nova ordem, uma corri<strong>da</strong> às compras:<br />

nossas “representações” tendendo a gerar um entusiasmo e uma mu<strong>da</strong>nça de humor não<br />

necessariamente inspirados pelos próprios objetos representados. Assim, na cultura pósmoderna,<br />

a própria “cultura” se tornou um produto, o mercado tornou-se seu próprio<br />

substituto, um produto exatamente igual a qualquer um dos itens que o constituem: o<br />

modernismo era, ain<strong>da</strong> que minimamente e de forma tendencial, uma crítica à mercadoria e<br />

uma tentativa de forçá-la a se auto transcender, caso o termo seja permitido. O pósmodernismo<br />

é o consumo <strong>da</strong> própria produção de mercadorias como processo. O “estilo de<br />

vi<strong>da</strong>” <strong>da</strong> superpotência tem, então, com o “fetichismo” <strong>da</strong> mercadoria de Marx, a mesma<br />

relação que os mais adiantados monoteísmos têm com os animismos primitivos ou com as<br />

formas mais rudimentares de idolatria.<br />

O pós-moderno como crise <strong>da</strong> historici<strong>da</strong>de: surdez histórica. A teoria do pósmodernismo<br />

é uma dessas tentativas: o esforço de medir a temperatura de uma época sem os<br />

instrumentos e em uma situação em que nem mesmo estamos certos de que exista algo como<br />

a coerência de uma “época”, ou Zeitgeist. Apesar do delírio de alguns de seus celebrantes e<br />

apologistas (cuja euforia é em si mesma um interessante sintoma histórico), uma cultura<br />

ver<strong>da</strong>deiramente nova somente poderia surgir através <strong>da</strong> luta coletiva para se criar um novo<br />

sistema social. A impureza constitutiva de to<strong>da</strong> teoria do pós-modernismo (assim como o<br />

capital, ela tem que manter uma certa distância interna de si mesma, tem que incluir o corpo<br />

estranho de um conteúdo alheio) confirma, então, um dos achados <strong>da</strong> periodização que precisa<br />

ser sempre reiterado: o pós-modernismo não é a dominante cultural de uma ordem social<br />

totalmente nova (sob o nome de socie<strong>da</strong>de pós-industrial), mas é apenas reflexo e aspecto<br />

concomitante de mais uma modificação sistêmica do próprio capitalismo. Não é de espantar,<br />

então, que vestígios e velhos avatares – tanto do modernismo como até do próprio realismo –<br />

continuem vivos, prontos para serem (re)embalados com os enfeites luxuosos de seu suposto<br />

sucessor. O delírio de apelar para qualquer elemento virtual do presente com o intuito de<br />

provar que este é um tempo singular, radicalmente distinto de todos os momentos anteriores<br />

do tempo humano, parece-nos por vezes, abrigar uma patologia distintamente auto referencial,<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

como se nosso completo esquecimento do passado se exaurisse na contemplação vazia, mas<br />

hipnótica, de um presente esquizofrênico, incomparável por definição. Entretanto, como se<br />

demonstrará mais adiante, decidir se o que se encontra diante de nós é uma ruptura ou uma<br />

continui<strong>da</strong>de – se o presente deve ser visto como historicamente original ou como repetição<br />

do mesmo em nova embalagem – não é algo que possa ser justificado empiricamente, ou<br />

defendido em termos filosóficos, posto que essa decisão é, em si mesma, um ato narrativo<br />

inaugural que embasa a percepção e a interpretação dos eventos a serem narrados.<br />

O(S) PERFUME(S): NARRAT<strong>IV</strong>AS POLICIAIS OU A NECESSIDADE DA BUSCA POR<br />

UMA IDENTIDADE PESSOAL SE RECOLOCA NA CONTEMPORÂNEIDADE<br />

Desde o início do filme Perfume: a história de um assassino, somos informados de<br />

importantes elementos que efetuam sua costura discursiva. Já na cena inicial, somos<br />

colocados em face de um sujeito – que o narrador ain<strong>da</strong> não informou, mas que logo o leitor<br />

<strong>da</strong> sentença nos deixará claro ser Jean-Baptiste Grenouille, um aprendiz de perfumista –, que<br />

é achatado pela câmera numa parede rugosa e escura, colocando-o numa posição de oprimido.<br />

Ain<strong>da</strong> como expectadores, não sabemos os reais motivos que levaram aquele indivíduo ao<br />

julgamento do tribunal, enquanto somos avisados <strong>da</strong> brutali<strong>da</strong>de com que será morto em<br />

alguns dias. Esse acontecimento pertence ao desfecho <strong>da</strong> narrativa, e ao ser colocado já na<br />

abertura do filme, nos faz ficar curiosos acerca dos episódios que levaram Jean-Baptiste<br />

àquela situação. Isso é bastante recorrente em narrativas de suspense, já que toma o leitor pela<br />

bisbilhotice. Não obstante, nos perguntamos qual seria a trajetória degra<strong>da</strong>nte desse sujeito<br />

Como é possível entrever, o enredo fílmico se apresenta in ultima res, ou seja, o discurso<br />

narrativo se inicia com a apresentação de um acontecimento que pertence ao desfecho <strong>da</strong><br />

diegése.<br />

Em meio a acalorados gritos <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de em êxtase, a câmera vai se aproximando<br />

do protagonista até adentrar no seu nariz do, e dissolver o plano em preto e os letreiros em<br />

branco deixarem claro que conheceremos a história de um assassino, como nos subtítulos do<br />

livro e do próprio filme em questão. Cinematograficamente, é comum que essa sobreposição<br />

do branco no preto anuncie que não teremos uma narrativa pacífica, mas sim marca<strong>da</strong> por<br />

crises e conflitos, ou melhor, que algo de ruim está para acontecer. Assim, o percurso <strong>da</strong><br />

câmera até o nariz de Jean-Baptiste Grenouille pode ser interpretado como se o narrador<br />

fílmico já antecipasse que será através dessa quali<strong>da</strong>de sensível (olfato) que o protagonista<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

captou e assimilou o mundo circun<strong>da</strong>nte e os dilemas de lá provindos, e, aparentemente, de<br />

onde o narrador construirá seu relato.<br />

Importa comentar que a “questão dupla do narrador” também é coloca<strong>da</strong> pelo filme,<br />

isso se estabelece pelo recurso <strong>da</strong> voz over, que nos faz conhecer mais detalhes do que aqueles<br />

fomentados pelas imagens. Em certos sentidos, essa voz olímpica tem uma função pe<strong>da</strong>gógica<br />

dentro <strong>da</strong> trama, de ir tecendo e amarrando os sentidos do filme. Importa destacar que<br />

chamamos de “questão dupla do narrador” o fato de haverem duas instâncias narradoras já<br />

conheci<strong>da</strong>s <strong>da</strong>queles que se debruçam sobre a sétima arte. Tanto a voz sobreposta às imagens,<br />

que ordena o que vai contar, quanto a própria câmera, que vai nos mostrando esse “cosmos<br />

possível”, à luz de suas vontades.<br />

Há um corte e somos levados para um mercado de peixes, local onde Jean-Baptiste<br />

nasce. Esse inicio já demonstra certa autonomia do enredo fílmico em relação ao literário. No<br />

romance de Patrick Süskind, a história de Jean-Baptiste é arranja<strong>da</strong> em chave causal, ou seja,<br />

respeitando a lineari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> cadeia ab ovo, isto é quando não há anacronias no<br />

desenvolvimento do enredo: os fatos são apresentados a partir <strong>da</strong> lógica cartesiana de causa e<br />

efeito; assim, a fábula é narra<strong>da</strong> com início, meio e fim, nesta ordem.<br />

Podemos considerar que o filme trás à baila uma França decadente, pobre, suja e<br />

bastante propícia para o aflorar de uma subjetivi<strong>da</strong>de em crise. Não temos uma<br />

“glamourização” do espaço, pelo contrário, o filme utiliza-se do modo de representação<br />

realista como fio condutor. Somos colocados em contato com a plebe, não com a monarquia<br />

do período. Nesse sentido, há um aproveitamento <strong>da</strong> perspectiva proposta pelo romance, que<br />

logo nas primeiras páginas nos expressa:<br />

Na época em que falamos, reinava nas ci<strong>da</strong>des um fedor dificilmente<br />

concebível por nós, hoje. As ruas fediam a mer<strong>da</strong>, os pátios fediam a mijo,<br />

as esca<strong>da</strong>rias fediam a madeira podre e bosta de rato; as cozinhas, a couve<br />

estraga<strong>da</strong> e gordura de ovelha; sem ventilação, salas fediam a poeira, mofo;<br />

os quartos, a lençóis sebosos, a úmidos colchões de pena, impregnados do<br />

odor azedo dos penicos. Das chaminés fedia enxofre; dos curtumes, as<br />

lixívias corrosivas; dos matadouros fedia sangue coagulado. Os homens<br />

fediam a suor e roupa não lava<strong>da</strong>s; <strong>da</strong> boca eles fediam a dentes estragados,<br />

dos estômagos fediam a cebola e, nos corpos, quando já não eram bem<br />

novos, a queijo velho, a leite azedo e as doenças infecciosas. Fediam os rios,<br />

fediam as praças, fediam as igrejas, fedia sobre as pontes e dentro dos<br />

palácios. Fediam os camponeses e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre,<br />

fedia a nobreza to<strong>da</strong>, até o rei fedia como um animal de rapina, e a rainha<br />

como uma cabra velha, tanto no verão quanto no inverno. Pois à ação<br />

desagregadora <strong>da</strong>s bactérias, no século XVIII, não havia sido ain<strong>da</strong><br />

colocado nenhum limite e, assim, não havia ativi<strong>da</strong>de humana,<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

construtiva e destrutiva, manifestação de alguma vi<strong>da</strong>, a vicejar ou a<br />

fenecar, que não fosse acompanha<strong>da</strong> de fedor. (SÜSKIND, 1985, p. 5-6,<br />

grifo nosso).<br />

Como podemos entrever, o caráter degra<strong>da</strong>nte do odor é utilizado para marcar o<br />

espírito decadente que perpassa os espaços privados e públicos. Plebe, clero e monarquia<br />

estão na mesma condição. As relações humanas são marca<strong>da</strong>s por uma pobreza exacerbante.<br />

Evidentemente, romance e filme buscam um efeito sinestésico ao provocarem a aglutinação<br />

de diferentes sentidos, mas, ao nosso ver, o fedor abre espaço para falar de uma outra<br />

condição decadente que transcende aos limites de classes sociais; segundo o trecho transcrito,<br />

to<strong>da</strong>s as enti<strong>da</strong>des padeciam de um mesmo mal: o espírito decadente e desnorteador de seu<br />

tempo, corporifica<strong>da</strong>s ao cheiro ruim que pairava pelas ci<strong>da</strong>des francesas, em especial, por<br />

Paris, a mais populosa ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Europa no período enquadrado pela diegése fílmica. Assim,<br />

o odor é utilizado alegoricamente como sintoma sutil de um tempo em crise, e que logo<br />

fomentaria a luta burguesa por sua emancipação.<br />

É nesse solo-histórico que nasce Jean-Baptiste Grenouille no filme. Rejeitado pela<br />

mãe como acontecera com seus outros cinco irmãos, o protagonista morreria, se não fosse<br />

dotado de uma capaci<strong>da</strong>de “única e fenomenal”, para utilizar os termos do narrador; de captar<br />

o mundo fétido que o cercava desde então. No campo expressivo, a câmera torna-se subjetiva<br />

à Grenouille; por meio do campo-contra-campo, vai nos descortinando a podridão do<br />

mercado, seus sujeitos e seus produtos. É curioso que ele nasça em um mercado, o espaço do<br />

capital por excelência, pois como buscaremos evidenciar, há um processo de coisificação do<br />

protagonista. Ele será marcado por um contexto de exploração por quase to<strong>da</strong> a película, é<br />

mais um acessório <strong>da</strong>s coisas inertes. Isso é até verossímil para a economia <strong>da</strong> obra, pois<br />

resulta no nó-gordio <strong>da</strong> mesma: um sujeito que buscará sentido para sua existência, o qual<br />

consegue pensar sua própria condição de explorado, de se ver como mais um produto na<br />

prateleira mercantilista. Importa lembrar que para o pensamento burguês, “a mercadoria é<br />

uma coisa natural, sóli<strong>da</strong>, cuja causa é relativamente sem importância, secundária: sua relação<br />

com tal objeto é de puro consumo” (JAMESON, 1985, p. 147). Assim sendo, somente por<br />

meio do conflito entre homem e destino, natureza ou reali<strong>da</strong>de empírica, o mundo “pode ser<br />

narrado através de categorias puramente humanas e sociais” (JAMESON, 1985, p. 149).<br />

Nesse tempo do “salve-se quem puder”, Jean-Baptiste toma consciência de que a<br />

socie<strong>da</strong>de o tornou um homem abstrato, sem qualquer particulari<strong>da</strong>de social, e será utilizando<br />

de sua potenciali<strong>da</strong>de olfativa, que Grenouille marcará seu lugar no mundo, pois como nos<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

fala o narrador fílmico, Jean-Baptiste se levantou como um dos mais “talentosos e conhecidos<br />

personagens de seu tempo [...] e se o nome dele foi hoje esquecido é apenas porque to<strong>da</strong> sua<br />

ambição se restringia a um domínio que não deixa vestígios na história. O fugaz domínio do<br />

aroma”. É importante destacarmos que não tomamos a personagem como existente no tempo<br />

conformado pela obra em análise; mas que entendemos a reiteração proposta acima pelo<br />

narrador como uma forma de legitimar o discurso que narra, isto é, de elaborar um anti-herói<br />

verossímil, em consonância com os fatos ficcionais.<br />

Ao ser enviado para o orfanato <strong>da</strong> Sra. Gaillard, Jean-Baptiste torna-se, “uma fonte<br />

de ren<strong>da</strong> como os outros”, como nos dá a conhecer o narrador. Não é tratado como um<br />

indivíduo munido de particulari<strong>da</strong>de, mas como mais um número a acrescentar benefícios nas<br />

ren<strong>da</strong>s de Gaillard. Não tem regalias, nem atenção devi<strong>da</strong> quando recém-nascido. É nesse<br />

espaço cheio de crianças fragiliza<strong>da</strong>s, regi<strong>da</strong>s pela lógica <strong>da</strong> agressão física como forma<br />

punitiva para qualquer deslize às normas pessoais <strong>da</strong> mantenedora, que o protagonista passa<br />

sua infância. Nessa microestrutura social em que se vigia e se pune, os direitos básicos são<br />

deixados de lado, e as cenas de violência são constantes; carinho e afeto são vocábulos<br />

inexistentes. Dessa forma, o filme nos faz perceber que essa ordenação social forma um<br />

indivíduo frio e calculista, desapegado a sentimentalismos, por nunca os ter tido. Portanto,<br />

Jean-Baptiste reflete quando adulto, muito dessa (de) formação.<br />

Seu desenvolvimento é peculiar. Aos cinco anos, apenas balbuciava palavras, por<br />

outro lado, se acentua o olfato como fonte de informações acerca <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de circun<strong>da</strong>nte e<br />

de si mesmo, isto é, as quali<strong>da</strong>des olfativas como instrumento de intelecção do real. O<br />

narrador mostra-se bastante apegado à Grenouille, ele não desautoriza essa forma peculiar de<br />

leitura de mundo, não confere um olhar estranhado a essa situação, como acontece com as<br />

crianças do orfanato, que se inquietam com sua presença, agredindo, menosprezando e<br />

colocando de lado; pelo contrário, o narrador mostra-se bastante empenhado em transcrever<br />

em imagens e sons aquilo que só é captável por Grenouille; para o protagonista, não havia<br />

uma correspondência exata entre a linguagem e a essência <strong>da</strong>s coisas, questão bastante<br />

persegui<strong>da</strong> pelos filósofos ao longo <strong>da</strong> trajetória humana, principalmente os nominalistas do<br />

período medieval. A título de exemplificação, podemos evocar a cena em que o pequeno<br />

Jean-Baptiste está deitado de olhos fechados, tentando nomear os elementos do real.<br />

A câmera se deleita no percurso estabelecido pela curiosi<strong>da</strong>de de Grenouille e ao<br />

chegar numa rã, não consegue inteligir o que seriam os girinos que a acompanham. Essa falta<br />

de identificação objetiva esconde pistas interessantes acerca <strong>da</strong> condição existencial de Jean-<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Baptiste. Municiado de um meio peculiar de compreensão do real, bastante potente, o antiherói<br />

corporifica um sujeito em metamorfose, assim, ele recebe <strong>da</strong> narrativa uma<br />

ornamentação em chave de grotesco; sua característica destoante ao meio em que está alocado<br />

imputa em Grenouille uma posição de vantagem frente ao mundo, mas sua condição social o<br />

rebaixa. Uma interpretação sobre esse caráter fantástico seria interessante, mas a nosso ver, o<br />

filme dá uma forma sintética a um sujeito sensível que assimila as crises de seu tempo<br />

histórico (1738 – 1767); ou melhor, desprovido de pai e mãe, Jean-Baptiste é filho de seu<br />

tempo e semente de seu terreno social. O fato de “Grenouille” significar girino, em francês,<br />

identifica-o a essa condição de homem em processo de transformação. É chamado pela voz<br />

over de “bactéria resistente”, aquela que se a<strong>da</strong>pta às situações de seu meio, com a finali<strong>da</strong>de<br />

de se manter viva, para então corporificar um novo indivíduo. Se a revolução burguesa<br />

provoca uma mu<strong>da</strong>nça sócio estrutural, Jean-Baptiste anuncia nos anos antecedentes, um<br />

sujeito que não se enquadra às mu<strong>da</strong>nças, ou seja, que não as compreende racionalmente.<br />

Mais do que propor uma metamorfose particular, o narrador fílmico parece mostrar<br />

sensivelmente que a transformação se deu de forma problemática para a classe dos menos<br />

favorecidos. Em outras palavras, estamos em face de uma personagem desnortea<strong>da</strong>, que não<br />

consegue se enquadrar em seu solo-histórico, que por sua vez, se apresenta pre<strong>da</strong>tório e<br />

pretensamente unificador, que lhe furta a individuali<strong>da</strong>de e o coloca na condição de<br />

mercadoria. Daí podermos inferir que é a sagaci<strong>da</strong>de desse homem, forma<strong>da</strong> longe dos<br />

modelos clássicos, vai garantir e permitir que ele busque compreensão de si em um mundo<br />

caótico.<br />

Os outros dois contextos em que o protagonista é explorado recaem na sua<br />

adolescência e na fase adulta. Se o estado pagou à Sra. Gaillard para mantê-lo em um<br />

orfanato, a mantenedora <strong>da</strong> instituição se vê no direito de vendê-lo ao curtumeiro Grimal por<br />

sete francos. Nessa sua nova vi<strong>da</strong>, o protagonista trabalha “duro quinze, dezesseis horas por<br />

dia, no verão e no inverno”, informa o narrador. Estamos em face de um contexto de<br />

exploração e alienação por meio do trabalho escravo, já que Jean-Baptiste não parece receber<br />

nenhuma forma de recompensa que não seja comi<strong>da</strong> e moradia. A outra forma de exploração<br />

se estabelece com uma segun<strong>da</strong> compra de Jean-Baptiste, desta vez, pelo perfumista falido<br />

Baldini. Este vê no protagonista a possibili<strong>da</strong>de de fazer fortuna utilizando de suas<br />

capaci<strong>da</strong>des olfativas. Como se nota, na ci<strong>da</strong>de, a opressão se materializa por meio <strong>da</strong><br />

utilização exacerba<strong>da</strong> <strong>da</strong>s capaci<strong>da</strong>des elaborativas de Grenouille com as fragrâncias, isto é,<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

sua inventivi<strong>da</strong>de é furta<strong>da</strong> em nome <strong>da</strong> busca por rendimentos para Baldini e sua satisfação<br />

moral em ser conhecido e respeitado.<br />

É a partir desse momento que se intensificam as crises de Jean-Baptiste.<br />

Primeiramente, ele intenta captar e reproduzir os aromas do mundo. Com Baldini, aprende a<br />

lógica racional de formulação de perfumes, com seu método dos treze elementos e acordes.<br />

Isso se refletirá na morte <strong>da</strong>s treze mulheres, que terão suas fragrâncias apreendi<strong>da</strong>s e<br />

preserva<strong>da</strong>s com a finali<strong>da</strong>de de elaborar um perfume catártico. É imperioso mencionar que, a<br />

existência de tal possibili<strong>da</strong>de é fomenta<strong>da</strong> no filme através uma len<strong>da</strong> egípcia que Baldini<br />

conta à Jean-Baptiste. Portanto, o caráter verossímil do plano do protagonista se dá em duas<br />

linhas que se entrelaçam, a científica e a lendária. Tudo isso, pautado pelo hedonismo<br />

característico do sóciopata, tendo em vista que Jean-Baptiste acredita que, com tal formulação<br />

seria lembrado no mundo, ou então, não passaria despercebido, como sempre aconteceu aos<br />

membros de sua cama<strong>da</strong> social. Ao que parece, temos uma personagem em crise de<br />

identi<strong>da</strong>de buscando solucioná-la. Isso se torna mais palpável através <strong>da</strong> cena em que Jean-<br />

Baptiste vai para Grasse. Ao adentrar numa caverna, no alto de uma montanha, percebe que é<br />

o único elemento orgânico carente de fragrância. Nesse momento, é nítido o caráter sagrado<br />

<strong>da</strong> montanha, enquanto símbolo de revelação. Como verbaliza a voz over, “pela primeira vez<br />

na vi<strong>da</strong>, ele percebeu não ter odor próprio. E que a vi<strong>da</strong> to<strong>da</strong> ele havia sido insignificante para<br />

todos. O que ele sentia agora era o medo do próprio esquecimento. Era como se ele não<br />

existisse”.<br />

É nesse contexto que Grenouille deflagra seu plano, mata treze mulheres típicas,<br />

como a camponesa, a prostituta, as gêmeas e a freira. Ele capta suas essências. Para ele, “o<br />

perfume é a alma <strong>da</strong>s pessoas”. É preso e levado à condenação. Realiza-se a costura<br />

discursiva, já que voltamos à primeira cena do filme, mas agora já conhecedores <strong>da</strong> trajetória<br />

de Jean-Baptiste.<br />

PISTAS FINAIS<br />

O que o filme Perfume: a história de um assassino propõe é revisitarmos a história<br />

oficial <strong>da</strong> França seguindo os passos de Grenouille, tomando por base uma pretensa fideli<strong>da</strong>de<br />

conteudística com o romance homônimo de Patrick Süskind. Em ambas as ficções, fica clara a<br />

intenção de narrar uma história em um viés diferente <strong>da</strong>quele que conhecemos nos livros. Há<br />

uma espécie de questionamento sobre a veraci<strong>da</strong>de de tais relatos, ou ao menos, uma proposta<br />

363


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

de reconfiguração <strong>da</strong> mesma levando em consideração a perspectiva de uma personagem<br />

marginaliza<strong>da</strong> em seu meio e, fartamente, explora<strong>da</strong>. Em um percurso marcado por violência<br />

nas relações humanas, Grenouille corporifica e reflete as crises, tensões e angustias do tempo<br />

em que está conformado. É filho de seu tempo, como demarcamos em nossa análise.<br />

Guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as devi<strong>da</strong>s proporções, é como se o mesmo representasse o espírito desnorteador<br />

de seu tempo, e sua busca hedonista por um perfume catártico se relacionasse à falta de<br />

sentido do mundo moderno, fomentados por uma França em transição, de uma estrutura<br />

sócio-política basea<strong>da</strong> na monarquia à luta pela emancipação <strong>da</strong> burguesia. Ao que tudo<br />

indica, o fato de Jean-Baptiste ser carente de aroma (logo, de uma existência substancial)<br />

indica, em chave crítica, o lugar <strong>da</strong> plebe no redemoinho do processo de democratização<br />

francesa.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de.<br />

Tradução de Carlos Felipe Moisés & Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras,<br />

1986.<br />

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos,<br />

costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Trad. Vera <strong>da</strong> Costa e Silva [et alli.]. 4.<br />

ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.<br />

COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.<br />

ECO, Umberto. As formas do conteúdo. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: EDUSP,<br />

1974.<br />

FREIRE, Rafael; SILVA, Marcel V.B. Sobre uma sociologia <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação fílmica: um ensaio<br />

de método. Revista Crítica cultural, v. 2, nº 2, 2007.<br />

JAMESON, Fredric. Marxismo e forma: teorias dialéticas <strong>da</strong> literatura no século XX.<br />

Tradução de Iumna Maria Simon [et alli.]. São Paulo: Editora Hucitec, 1985.<br />

______. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Tradução de Maria Elisa<br />

Cevasco. São Paulo: Ática, 2000.<br />

LUKÁCS, Georg. Introdução a uma estética marxista. Tradução de Carlos Nelson Coutinho<br />

& Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.<br />

SÜSKIND, Patrick. O perfume. Rio de Janeiro: Record/Altaya, 1985. (Coleção Mestres <strong>da</strong><br />

literatura contemporânea).<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In:<br />

PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac. São<br />

Paulo: Instituto Cultural, 2003.<br />

FILMOGRAFIA:<br />

Perfume: the story of a murderer. Alemanha, França e Espanha. 2006 (Título no Brasil:<br />

Perfume: a história de um assassino). Direção: Tom Tykwer. Produção: Bernd Eichinger.<br />

Elenco: Ben Whishaw, Dustin Hoffman, Alan Rickman, Rachel Hurd-Wood, Andrés Herrera,<br />

Simon Chandler, David Calder, Richard Felix, John Hurt e outros. Roteiro: Andrew Birkin,<br />

Bernd Eichinger, Tom Tykwer. Fotografia: Frank Griebe. Trilha Sonora: Reinhold Heil,<br />

Johnny Klimek, Tom Tykwer. 2006 (147 min), son., color.<br />

365


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A resistência <strong>da</strong> infância e a reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> repressão em O ano em que meus pais saíram de<br />

férias (Cao Hamburger, 2006).<br />

SANTOS, Juliana Oliveira Macedo dos (Graduan<strong>da</strong> - <strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: O filme, cujo argumento veio de Minha vi<strong>da</strong> de goleiro, de Luiz Shwarcz, retrata<br />

um período difícil na vi<strong>da</strong> de Mauro, um garoto de doze anos cujos pais são obrigados a fugir<br />

por atuarem como militantes de esquer<strong>da</strong>. Obrigado a ficar na casa do avô durante essas<br />

“férias” dos pais, Mauro mantém a visão presa a fatos à margem do terror policial que está<br />

acontecendo no naquele momento. No entanto, o filme tem momentos que expõem as<br />

consequências desse terror, como nas cenas iniciais, quando os pais sequer têm tempo de se<br />

despedir do filho, ou durante as aparições do personagem Ítalo, uma espécie de guia<br />

cui<strong>da</strong>doso pela reali<strong>da</strong>de ameaçadora, bem como no sacrifico do personagem Shlomo e a<br />

ausência do pai de Mauro ao final do filme. Esses índices de suspense, perigo e<br />

constrangimento estão dispostos de maneira a fazer o espectador lembrar que existe uma<br />

perseguição policial violenta e uma luta de resistência acontecendo. A leitura pode se deter<br />

nesses momentos como história real provavelmente deduzi<strong>da</strong> pelo menino somente quando<br />

adulto.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Ditadura militar; Infância; Cao Hamburger; O ano em que meus pais<br />

saíram de férias.<br />

ABSTRACT: The plot of the movie comes from Minha vi<strong>da</strong> de goleiro, by Luiz Schwarcz,<br />

and portrays a hard period in Mauro’s life, a twelve year-old boy whose parents are made to<br />

flee because they act as left-wing militants. Obligated to stay in his grandfather’s house<br />

during these “vacations” from parents, Mauro’s vision is related to facts in the margins of<br />

police terror that is happening at the moment. However, the movie has moments that expose<br />

the consequences of this terror, as in the opening scenes, when his parents don´t even have<br />

time to say goodbye to the boy, or during the apparitions of the character Ítalo, a kind of<br />

careful guide by the threatening reality, as well as in Shlomo’s sacrifice and Mauro’s father<br />

absence in the end of the film. These indicators of suspense, <strong>da</strong>nger and embarrassment are<br />

arranged in order to remind the viewer that there is a violent police chase and a resistance<br />

struggle. The reading can focus on those moments as a real history probably deduced by the<br />

boy when he becomes an adult.<br />

KEYWORDS: military dictatorship; childhood; Cao Hamburger; O ano em que meus pais<br />

sairam de férias.<br />

INTRODUÇÃO<br />

O ano em que meus pais saíram de férias (Cao Hamburger, 2006) é uma obra<br />

narra<strong>da</strong> sob a perspectiva de Mauro (interpretado por Michel Joelsas), um garoto de 12 anos,<br />

apaixonado por futebol e jogo de botão. A trama se passa em 1970, em plena ditadura militar<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

brasileira, início do governo do general Emílio Garrastazu Médici e durante a Copa do Mundo<br />

de futebol.<br />

O filme é dirigido por Cao Hamburger, cineasta que se tornou conhecido por suas<br />

obras volta<strong>da</strong>s ao público infanto-juvenil, conceitua<strong>da</strong>s por terem um perfil educativo e ao<br />

mesmo tempo serem diverti<strong>da</strong>s e de ótimo acabamento em todos os níveis <strong>da</strong> produção.<br />

Premiado tanto pelos trabalhos para a televisão quanto para o cinema, os seus trabalhos mais<br />

divulgados são as séries de televisão Os Urbanoides (1991), o premiadíssimo Castelo Rá-<br />

Tim-Bum (1995) e Disney club (1997); no cinema, Castelo Rá-Tim-Bum, o filme (Cao<br />

Hamburger, 1999) recebeu criticas calorosas e grande aprovação do público, tanto infantil<br />

quanto adulto. Hamburger comandou a série Ci<strong>da</strong>de dos homens (2004) e o seu projeto mais<br />

recente para o cinema é Xingu (Cao Hamburger, 2012).<br />

Um dos objetivos de Hamburger ao realizar O ano em que meus pais saíram de<br />

férias era fazer uma história bem conta<strong>da</strong> – não tinha muitas expectativas. Esta é a quali<strong>da</strong>de<br />

do filme, não ser muito pretensioso. A História é multifaceta<strong>da</strong>, com diversas maneiras de se<br />

ver o filme, de se entender e acompanhar o enredo. Pode-se entrar por diferentes portas: o<br />

contexto <strong>da</strong> ditadura militar, a recor<strong>da</strong>ção de infância, a recor<strong>da</strong>ção de uma Copa do Mundo<br />

memorável, com vitória (e tricampeonato) <strong>da</strong> seleção brasileira, os hábitos <strong>da</strong> cultura ju<strong>da</strong>ica,<br />

as lembranças do modo de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> colônia no bairro do Bom Retiro, na ci<strong>da</strong>de de São Paulo.<br />

Outro objetivo era fazer um filme que desse tempo ao espectador, para que ca<strong>da</strong> um<br />

sentisse a história à sua maneira, com espaços e emoções.·Esse procedimento, no resultado<br />

final, acompanha o ritmo de observação do protagonista que, embora pareça perdido em<br />

várias situações, aprende a tomar atitudes e coman<strong>da</strong> várias decisões importantes no decorrer<br />

<strong>da</strong> história. No fundo, o espectador também se posiciona diante dos constrangimentos ou<br />

alegrias vividos por Mauro.<br />

A confecção do roteiro de O ano em que meus pais saíram de férias não foi<br />

costura<strong>da</strong> apenas por Hamburger, mas também por Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani e<br />

Anna Muylaert, experientes no ofício e no trabalho em conjunto. O argumento surgiu a partir<br />

<strong>da</strong> leitura do livro autobiográfico Minha vi<strong>da</strong> de goleiro, de Luiz Schwarcz (1999), que conta<br />

passagens <strong>da</strong> história dos avós e dos pais do autor. Como tantas famílias judias, eles vieram<br />

para a América fugindo do nazismo.<br />

O garoto Luiz, assim como Mauro e o próprio diretor Cao Hamburger, é apaixonado<br />

por futebol, jogo de botão e sonha um dia se tornar goleiro. A narrativa, embora volta<strong>da</strong> para<br />

público infantil, acompanha de perto o estilo apresentado em contos de Schwarcz cujo objeto<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

também é a infância. Para Beatriz Resende (2008, p. 119), a expressão do autor é sua<br />

profissão de fé, pois os contos de Discurso sobre o capim (2006) têm como marca a “opção<br />

pelo despojamento” e a “recusa à grandiloquência”, para aproximar o tom <strong>da</strong> prosa à<br />

simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s memórias de infância. Assim, após a experiência na literatura infantojuvenil,<br />

Schwarcz mantém a simplici<strong>da</strong>de na composição de ficção adulta.<br />

Cao Hamburger aproveita a emoção conti<strong>da</strong> e a expressão decupa<strong>da</strong> de Minha vi<strong>da</strong><br />

de goleiro, além de assimilar a atmosfera perturbadora do holocausto, <strong>da</strong> imigração, mantendo<br />

a perspectiva de um menino, com poucas racionalizações. Por outro lado, conserva algo do<br />

significado do futebol, que já foi definido como ativi<strong>da</strong>de (e afini<strong>da</strong>de) que funciona como<br />

uma “metáfora de ca<strong>da</strong> um dos planos essenciais do viver humano nas condições históricas e<br />

existenciais <strong>da</strong>s últimas déca<strong>da</strong>s” (FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 166).<br />

O contexto do filme é outro, porque o livro de Schwarcz conta a saga de uma família<br />

e o núcleo de Mauro construído por Hamburger é mais reduzido. Prevalece, contudo, a<br />

gravi<strong>da</strong>de histórica embuti<strong>da</strong> na ingenui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> expressão, assumi<strong>da</strong> em cenas muito<br />

significativas. O traçado do panorama do ambiente não deixa de ter, na perspectiva de Mauro,<br />

uma orientação benjaminiana, pois o detalhe menor passa a ser importante, e o relato cheio de<br />

explicações prejudica o ponto de vista original, que oferece a ver<strong>da</strong>deira dimensão do<br />

sentimento – seja a sau<strong>da</strong>de ou a amargura.<br />

ABRINDO VÁRIAS PORTAS<br />

O filme tem início com a fuga dos pais de Mauro. Eles foram obrigados a fugir de<br />

Belo Horizonte (MG) por serem militantes de esquer<strong>da</strong>, perseguidos pela ditadura militar, e<br />

por essa razão decidiram deixá-lo com seu avô paterno, no bairro do Bom Retiro, na ci<strong>da</strong>de de<br />

São Paulo (conheci<strong>da</strong> por abrigar diversos imigrantes). A explicação <strong>da</strong><strong>da</strong> ao filho é a de que<br />

“sairiam de férias”. A breve aparição dos personagens e sua ausência durante todo o filme<br />

contribuem para dimensionar a falta senti<strong>da</strong> pelo menino.<br />

Por trágica coincidência, o avô Mótel (interpretado por Paulo Autran) morre quase<br />

no mesmo instante em que o neto chega para ficar com ele, o que faz com que Mauro tenha<br />

que ficar com Shlomo (papel de Germano Haiut), um velho judeu solitário que é vizinho de<br />

porta do avô falecido. Essa convivência inespera<strong>da</strong> resulta, para ambos, num mergulho em<br />

mundos desconhecidos do qual emergem, ca<strong>da</strong> um a sua maneira.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Enquanto aguar<strong>da</strong> notícias dos pais, o menino precisa li<strong>da</strong>r com essa nova reali<strong>da</strong>de,<br />

que tem momentos de tristeza pela situação em que vive (a ausência dos pais, morte do avô, o<br />

desconhecido, o incerto) e também de alegrias, como ao acompanhar o desempenho <strong>da</strong><br />

seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo e ao fazer novas descobertas. Nesse sentido, a<br />

presença do futebol é oportuna e novamente preserva qualquer coisa <strong>da</strong>s definições do esporte<br />

mais praticado e assistido no Brasil, já que pode ser um esquema “genérico o bastante para<br />

não representar nenhum conteúdo previamente determinado”, “deixando-se investir por<br />

conotações ora mais difusas ora mais direciona<strong>da</strong>s, em que se engancham modos de relação<br />

entre indivíduos e grupos” (WISNIK, 2008, p. 46-47). A instabili<strong>da</strong>de, a indeterminação e até<br />

a perplexi<strong>da</strong>de centralizam o momento vivido pelo protagonista.<br />

Mauro vai aos poucos tendo consciência <strong>da</strong> real situação em vive, mesmo com todos<br />

tentando protegê-lo. Sendo ele uma criança, não consegue entender o real motivo de aquilo<br />

tudo estar acontecendo, não sabe o que é ditadura, comunismo nem tampouco repressão, mas<br />

já tem consciência de que a polícia está contra seus amigos e seus pais. Também sabe que é<br />

por causa dela que ele está distante de sua família. O conflito entre a vivência pessoal deste<br />

garoto e a reali<strong>da</strong>de histórica com a qual ele é confrontado resume to<strong>da</strong> história, sob a ótica <strong>da</strong><br />

singulari<strong>da</strong>de de uma vivência e de uma percepção única diante de fatos de grande<br />

repercussão.<br />

A perspectiva <strong>da</strong> criança e seu olhar individual são marcados pelos recursos técnicos<br />

em várias cenas, tanto pelo enquadramento quanto pelos movimentos de câmera. Esta, assim<br />

como Mauro, enxerga por frestas, por reflexos, por molduras cria<strong>da</strong>s pelo próprio ambiente.<br />

As toma<strong>da</strong>s sintetizam o estado de espírito, muitas vezes marcado pela fragili<strong>da</strong>de, embora<br />

atravessado pela coragem de Mauro.<br />

O que há de mais encantador no filme é o raro e delicado equilíbrio entre o plano de<br />

fundo <strong>da</strong> ditadura militar, e o primeiro plano, a dramática ausência dos pais. Cao Hamburger<br />

une com extrema maestria e sensibili<strong>da</strong>de esses dois planos. O filme se torna uma obra<br />

reflexiva, representação diferencia<strong>da</strong> dos modelos <strong>da</strong> cultura de massa, e Hamburger faz com<br />

o espectador reflita sobre o que está sendo mostrado na tela.<br />

Assim como Mauro, percebemos detalhes ou quase metáforas ao nosso redor, mas<br />

esses detalhes trazem informações insuficientes, incompletas, ain<strong>da</strong> mais se levarmos em<br />

consideração que, apesar de ter a criança como personagem principal, não se trata<br />

propriamente de um filme infantil, e o espectador possui uma bagagem mais ampla do que os<br />

olhos infantis pelos quais somos guiados. Sentimos os efeitos dos acontecimentos, mesmo que<br />

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A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

eles só sejam vistos parcialmente. Segundo Ismail Xavier (2005, p. 39), “[...] esse é um<br />

cinema que faz pensar”.<br />

O ano em que meus pais saíram de férias se diferencia <strong>da</strong>s outras obras que retratam<br />

o universo infantil na ditadura militar, pois nele a infância é vitoriosa. Ao final, alguns desejos<br />

do garoto são atendidos, sua mãe retorna e o Brasil é tricampeão mundial na Copa do Mundo<br />

de Futebol de 1970. Nesse sentido, o filme tem um forte aspecto libertador. Contudo, nem<br />

to<strong>da</strong>s as aflições são aplaca<strong>da</strong>s.<br />

LIBERTANDO OS MEDOS<br />

Há pelo menos uma sequência no filme que pode ser bastante representativa e<br />

merece nossa análise para apresentar os aspectos técnicos mencionados (a perspectiva do<br />

menino), bem como se podem examinar algumas <strong>da</strong>s razões libertadoras do filme de<br />

Hamburger. A sequência se inicia na segun<strong>da</strong> parte do filme.<br />

Primeiro, a cena é uma festa de Bar-Mitzvá (festa para celebrar a maior i<strong>da</strong>de<br />

religiosa ju<strong>da</strong>ica para o menino aos 13 anos), quando o garoto Mauro quebra a sereni<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

festa e contagia todos com descontração e até certa alegria apesar de tudo, incluindo a morte<br />

recente de Mótel, a situação de Mauro e a serie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de. Afinal, era uma festa e<br />

festa é lugar de alegria, o que provavelmente deve ter pensado um menino como Mauro, que<br />

desafia a ordem (a letra <strong>da</strong> canção é sintomática: “eu sou terrível, e é bom parar com esse jeito<br />

de provocar/Você não sabe de onde venho, o que eu sou, nem o que tenho [...]”). O desafio é<br />

dirigido ao ambiente regrado – Mauro flertava com Hanna (Daniela Piepszyk), mas também<br />

estava desafiando os próprios medos e amarguras, e talvez a cena antecipe os futuros desafios<br />

e, ain<strong>da</strong>, a capaci<strong>da</strong>de de afrontar o sistema repressor como um todo.<br />

Pouco depois, a câmera desce, focalizando os pés <strong>da</strong>s crianças <strong>da</strong>nçando e, no recorte<br />

<strong>da</strong> cena, vamos para a rua com tropel de cavalos, surge a cavalaria <strong>da</strong> tropa de choque,<br />

segui<strong>da</strong> de um caminhão aberto, cheios de sol<strong>da</strong>dos com capacetes, escudos e cassetetes. Eles<br />

percorrem a rua e passam pelos garotos <strong>da</strong> festa, que se entreolham, sem dizer na<strong>da</strong>, e saem<br />

correndo curiosos atrás dos cavalos.<br />

Do ângulo <strong>da</strong> altura de Mauro, percebemos que se trata de uma invasão <strong>da</strong> polícia<br />

monta<strong>da</strong>. Ain<strong>da</strong> aqui, o enquadramento visualiza uma situação e incorpora um modo<br />

narrativo, um ponto de vista, ao mesmo tempo em que revela o conteúdo dramático <strong>da</strong><br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

situação em cena. Jovens estu<strong>da</strong>ntes conhecidos dos meninos são presos, jogados em<br />

camburões e a polícia ameaça os pedestres que se aproximam.<br />

Não se pode esquecer que a apreensão policial na cena é um ato de covardia, pois os<br />

supostos criminosos que são presos são estu<strong>da</strong>ntes, desarmados, sumariamente investigados,<br />

arbitrariamente presos. Invertem-se, portanto, os papéis tradicionais <strong>da</strong>s tramas policiais, na<br />

cena os mocinhos (no sentido literal, porque são jovens) são capturados como criminosos<br />

enquanto a ordem representa o mal, a bandi<strong>da</strong>gem.<br />

O caráter intimi<strong>da</strong>dor aumenta justamente pelo ângulo <strong>da</strong> câmera – o primeiro<br />

policial visto por Mauro é assombroso, pois ele é focalizado de baixo para cima, em contraplongée,<br />

montado no cavalo. Essa sequência é um dos raros momentos em que Mauro se<br />

depara com real situação do seu país naquele período. Com Mauro, ficamos apreensivos pelo<br />

perigo <strong>da</strong> situação. Como espectadores que conhecem o contexto histórico, sentimos o teor <strong>da</strong><br />

perseguição arbitrária.<br />

Resgatado por Edgar (um amigo do bairro, interpretado por Rodrigo dos Santos), o<br />

garoto é retirado do tumulto. Já em casa, Mauro acolhe Ítalo (jovem militante de esquer<strong>da</strong>,<br />

amigo de seus pais, interpretado por Caio Blat), que havia escapado <strong>da</strong> bati<strong>da</strong> policial que<br />

acontecera há pouco. O interessante é que, mesmo relutando, após se recuperar o jovem joga<br />

botão com Mauro. Nessa passagem, vemos que Cao Hamburger é capaz de desconstruir certos<br />

símbolos de alienação típicos dos anos de 1970, como já havia feito na cena anterior, com a<br />

música “Eu sou terrível” (1968) de Erasmo e Roberto Carlos durante a festa de Bar-Mitzvá,<br />

quando as crianças <strong>da</strong>nçavam anima<strong>da</strong>s. O futebol (no jogo de botão embalado pelo clima do<br />

campeonato mundial) e a Jovem Guar<strong>da</strong> são integrados ao universo de Mauro, que resiste aos<br />

tempos difíceis e não suprime aqueles itens de sua memória e, mais que isso, a narrativa<br />

utiliza os eventos normalmente vistos como distrações opera<strong>da</strong>s pelo regime como<br />

motivadores <strong>da</strong>s atitudes encorajadoras e libertadoras do protagonista.<br />

Logo após o golpe de Estado de 1964, a repressão se instalou no Brasil, mas a<br />

situação se agrava após dezembro de 1968, quando o Ato Institucional n. 5 é assinado,<br />

caçando to<strong>da</strong>s as liber<strong>da</strong>des de direito. Qualquer indivíduo contrário ao regime era preso e<br />

considerado inimigo nacional. Muitas instituições foram fecha<strong>da</strong>s, seus dirigentes presos e<br />

enquadrados, suas famílias tinham todos os passos vigiados. As manifestações de<br />

trabalhadores e estu<strong>da</strong>ntes foram proibi<strong>da</strong>s e passaram a ser considera<strong>da</strong>s crimes. Muitos<br />

ci<strong>da</strong>dãos que se manifestaram contra o novo regime foram indiciados em inquéritos policiais e<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

se fossem considerados culpados eram presos, espancados, exilados, torturados fisicamente e<br />

psicologicamente, tudo em nome <strong>da</strong> ordem nacional.<br />

É preciso lembrar que a entrega <strong>da</strong> repressão política ao Exército ocorre em meados<br />

de 1969 (GASPARI, 2002, p. 178), mas até então inúmeras ações repressivas foram dirigi<strong>da</strong>s<br />

por delegados e subordinados, que continuaram sob o comando <strong>da</strong> hierarquia instituí<strong>da</strong>. A<br />

censura, ver<strong>da</strong>deira mor<strong>da</strong>ça na vi<strong>da</strong> cultural e jornalística que só seria retira<strong>da</strong> em 1978,<br />

superou “a duração do controle <strong>da</strong> imprensa na ditadura de Vargas, transformando-se no mais<br />

prolongado período de censura <strong>da</strong> história do Brasil independente” (GASPARI, 2002, p. 218).<br />

Além do personagem Ítalo, agredido na bati<strong>da</strong> contra os estu<strong>da</strong>ntes, Mauro vê os<br />

efeitos dos tempos difíceis no amigo Shlomo. A cena é extremamente reveladora, tanto para o<br />

protagonista quanto para o espectador. O jogo de botão com Ítalo é interrompido pelas<br />

perguntas de Mauro, que quer saber dos pais. Ítalo garante que eles voltam e, de repente,<br />

Mauro vê Shlomo, acompanhado por dois homens, entrar num carro.<br />

O quadro se volta para a sala do apartamento, Ítalo se esconde e ao fundo aparece o<br />

menorah (candelabro de sete braços, um dos mais difundidos símbolos do ju<strong>da</strong>ísmo), como a<br />

assinalar a presença ju<strong>da</strong>ica – marca<strong>da</strong> pela repressão e pela resistência – para definir o teor<br />

amedrontador <strong>da</strong> suposta prisão de Shlomo. Desse momento em diante, Mauro parece ter<br />

adquirido a maturi<strong>da</strong>de que, acresci<strong>da</strong> à independência e decisão que já manifestava, o faz<br />

agir com mais rapidez.<br />

No filme as forças autoritárias e as de resistência aparecem apenas menciona<strong>da</strong>s em<br />

um plano secundário, no sentido de aparecerem de forma sutil e sem longas sequências,<br />

embora esse confronto seja de referencia histórica inequívoca que interfere na vi<strong>da</strong> de Mauro.<br />

A partir <strong>da</strong> sequência menciona<strong>da</strong>, Mauro perde um pouco <strong>da</strong> sua ingenui<strong>da</strong>de inicial, <strong>da</strong> qual<br />

pouco a pouco vai se desprendendo, ele está vivendo a transição <strong>da</strong> infância para<br />

adolescência, e mesmo com esse amadurecimento forçado não deixa de jogar uma pela<strong>da</strong>,<br />

colecionar figurinhas e correr com os colegas pelas ruas do bairro.<br />

Para a devi<strong>da</strong> marcação <strong>da</strong> opressão presente, os momentos alegres do garoto são<br />

sempre ofuscados por uma força repressora. Percebe-se que esta sensação é proposital,<br />

disposta a causar um contraste com os momentos felizes de uma infância. Em certos<br />

momentos, por exemplo, Mauro torce pelo Brasil e em outros torce para que seus pais<br />

retornem no fusca azul.<br />

Para conseguir a sua mínima felici<strong>da</strong>de – gostar de futebol, jogar botão, ser goleiro<br />

na pela<strong>da</strong> do bairro, assistir aos jogos <strong>da</strong> seleção brasileira, fazer amigos, ver novamente seus<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

pais –, Mauro precisa ser mais ágil ain<strong>da</strong> do que a sua posição preferi<strong>da</strong> no time exige. E sua<br />

evolução no desenrolar dos fatos não permite equipe técnica, pois ele tem de se virar sozinho,<br />

ain<strong>da</strong> que improvise, como quando adota as luvas do avô falecido, grandes em suas mãos<br />

infantis, como indumentária indispensável para o jogo entre judeus e italianos.<br />

O menino ain<strong>da</strong> precisa li<strong>da</strong>r com a melancolia consola<strong>da</strong> pela solidão cuja<br />

gravi<strong>da</strong>de é mais acentua<strong>da</strong> que a solidão do goleiro, embora esta possa servir de metáfora<br />

àquela, sintetiza<strong>da</strong> na espera de Mauro pelo avô, no início do filme, e pelos pais, ao longo <strong>da</strong><br />

história. Também precisa se integrar, voltando às origens para descobri-las e aceitando as<br />

novi<strong>da</strong>des, adotando novos hábitos e até ensinando-os aos outros, como quando cui<strong>da</strong> do café<br />

<strong>da</strong> manhã de Ítalo, com os alimentos ju<strong>da</strong>icos. Precisa pensar rápido, ao ver Shlomo ser<br />

levado por dois investigadores. Precisa saber deixar tudo para trás, ao relatar sua história.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos<br />

Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987. Obras escolhi<strong>da</strong>s, vol. II.<br />

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A <strong>da</strong>nça dos deuses: futebol, cultura, socie<strong>da</strong>de. São Paulo:<br />

Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2007.<br />

GASPARI, Elio. As ilusões arma<strong>da</strong>s: a ditadura escancara<strong>da</strong>. São Paulo, Companhia <strong>da</strong>s<br />

Letras, 2002.<br />

O ano em que meus pais saíram de férias. Direção: Cao Hamburger. Produção: Cao<br />

Hamburger. Roteiro: Cláudio Galperin, Cao Hamburger, Bráulio Mantovani e Anna Muylaert.<br />

Brasil, 2006. DVD (104 min).<br />

RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões <strong>da</strong> literatura brasileira no século XXI. Rio<br />

de Janeiro: Casa <strong>da</strong> Palavra, 2008.<br />

ROTH, Cecil (org.) Enciclopédia ju<strong>da</strong>ica. Rio de Janeiro: Tradição, 1967.<br />

SCHWARCZ, Luiz. Minha vi<strong>da</strong> de goleiro. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1999.<br />

______. Discurso sobre o capim. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2006.<br />

WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s<br />

Letras, 2008.<br />

XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opaci<strong>da</strong>de e a transparência. 3. ed. Rio de<br />

Janeiro: Paz e Terra, 2005.<br />

373


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Fé em Deus e pé na tábua: uma mostra dos procedimentos policiais e católicos durante a<br />

ditadura militar brasileira em Batismo de Sangue (Helvécio Ratton, 2007).<br />

SANTOS, Luana Ester Alves de Souza (Graduan<strong>da</strong> - <strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong>)<br />

RESUMO: A análise enfoca a perseguição por parte dos militares e a luta dos freis<br />

dominicanos contra o sistema durante a ditadura militar brasileira. Procedimentos de busca e<br />

de fuga, de tortura e de redenção aparecem na trama do livro de Frei Betto de 1983 a<strong>da</strong>ptado<br />

para o cinema sob direção de Helvécio Ratton. Em suas memórias, Frei Betto narra a luta<br />

clandestina contra a ditadura militar, vivi<strong>da</strong> por ele mesmo e seus colegas <strong>da</strong> Ordem<br />

Dominicana, bem como a relação que os freis tiveram com Carlos Marighella. Dedica, no<br />

decorrer <strong>da</strong> narrativa, dois capítulos biográficos que contam a história de Marighella e de Frei<br />

Tito, protagonista do filme de Ratton, que manifesta o compromisso de retratar no campo do<br />

audiovisual todo um ambiente delicado e detalha<strong>da</strong>mente fiel aos acontecimentos, uma vez<br />

que todos os lugares e ações citados realmente existiram. Desse modo, fatos históricos de um<br />

conturbado período <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de brasileira são contados e revisados por dois meios artísticos,<br />

o literário e o cinematográfico, sugerindo a possibili<strong>da</strong>de de se analisar as diferenças e<br />

semelhanças de abor<strong>da</strong>gem e desenvolvimento <strong>da</strong> narrativa de ca<strong>da</strong> um, através do exame do<br />

relato de memória e do roteiro a<strong>da</strong>ptado.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Ditadura militar brasileira; Batismo de Sangue; Frei Betto; Helvécio<br />

Ratton<br />

ABSTRACT: The analysis focuses on the persecution of the Brazilian Dominican friars by<br />

the military during the Brazilian military dictatorship. Search and escape procedures, torture<br />

and redemption appear in the plot of Frei Betto’s book “Batismo de Sangue” (Blood’s<br />

Baptism), 1983. This movie was a<strong>da</strong>pted to the 2007’s homonymous movie directed by<br />

Helvécio Ratton. In his memoires, Frei Betto narrates the clandestine struggle against the<br />

military dictatorship, performed by himself and his colleagues of the Dominican order. The<br />

relationship that the friars had with Carlos Marighella has a deep approach. In the course of<br />

the narrative, there are two biographical chapters that tell Marighella and Frei Tito’s story,<br />

protagonist of Ratton’s film, who expressed a commitment to portray in the audiovisual field<br />

the delicate context, being faithful to the events in detail, since all the places and actions cited<br />

really existed. Thus, the historical facts of a troubled period of the Brazilian reality are told<br />

and checked by two artistic media – literature and film -- suggesting the possibility of<br />

analyzing the differences and similarities of approach and development of the narrative of<br />

each one, by examining the report of memory and a<strong>da</strong>pted screenplay.<br />

KEYWORDS: Brazil's military dictatorship, Baptism of Blood, Frei Betto, Helvetius Ratton<br />

INTRODUÇÃO<br />

Um crescente número de produções cinematográficas brasileiras possuem enredos<br />

com referências à ditadura militar. Algumas imagens podem ser li<strong>da</strong>s de maneira a “pensar o<br />

castigo físico como o acontecimento mais marcante <strong>da</strong> negativi<strong>da</strong>de do regime militar”<br />

374


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

(GUTFREIND, STIGGER e BRENDLER, 2008, p. 271). Contudo, a opção <strong>da</strong> cinematografia<br />

recente passa pelos recursos estéticos de impacto, configurando um formato não reflexivo. No<br />

caso <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação que pretendemos analisar, há momentos do filme em que a trama é força<strong>da</strong><br />

a apresentar elementos que levam o espectador a compor o evento em questão, numa forma<br />

narrativa (e um ritmo de imagens, de jogo de cenas) muito próxima à narrativa policial.<br />

Batismo de sangue (1983) é a narrativa na qual Frei Betto (1944-) compartilha suas<br />

descobertas sobre as circunstâncias <strong>da</strong> morte de Carlos Marighella (1911-1969), líder <strong>da</strong> Ação<br />

Libertadora Nacional (ALN) assassinado em 1969. Da maneira como os fatos são narrados,<br />

expõe-se a tese de que a eliminação do inimigo do regime militar também tinha a intenção de<br />

colocar a esquer<strong>da</strong> contra os frades dominicanos, fazendo-os passar de colaboradores <strong>da</strong><br />

guerrilha a traidores, enfraquecendo a oposição à ditadura, graças à manobra do<br />

Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops).<br />

Além de denunciar os métodos de tortura utilizados pela polícia naquela época, o<br />

relato também possui como eixo o apoio logístico oferecido pelos dominicanos à ALN, o que<br />

instiga o debate sobre as condições ideológicas de uma época em que marxismo significava<br />

ateísmo e, portanto, como era possível conciliar fé cristã com ação política revolucionária.<br />

Os fatos essenciais <strong>da</strong> trama se passam na ci<strong>da</strong>de de São Paulo, no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de<br />

1960, quando o convento dos dominicanos torna-se uma <strong>da</strong>s mais fortes resistências à<br />

ditadura militar. Movidos por ideais cristãos, os frades Tito, Betto, Oswaldo, Fernando e Ivo<br />

colaboram com a guerrilha <strong>da</strong> ALN. O grupo dissocia-se após uma conversa com Frei Diogo,<br />

quando se decide pela necessi<strong>da</strong>de de dispersão. Frei Ivo e Frei Fernando partem para o Rio<br />

de Janeiro, onde são surpreendidos e torturados por oficiais que, acusando-os de traidores <strong>da</strong><br />

igreja e <strong>da</strong> pátria, pedem por informações sobre o local de reunião do grupo subversivo. A<br />

intenção era capturar e executar o líder Carlos Marighella. Após sofrerem tortura, os frades<br />

informam aos policiais o horário e o local de reunião do grupo, onde Marighella costumava<br />

receber recursos dos frades. O líder <strong>da</strong> ALN foi então surpreendido e executado por policiais<br />

do DOPS paulista, sob o comando do delegado Sérgio Paranhos Fleury.<br />

Frei Betto refugia-se no interior do Rio Grande do Sul onde é encontrado, preso, e se<br />

une ao restante do grupo no presídio de Tiradentes, em São Paulo, em 1971. Os frades são<br />

posteriormente julgados e sentenciados a quatro anos de reclusão em regime fechado. A única<br />

exceção é Frei Tito, que por um processo de negociação para a libertação do embaixador<br />

alemão Ehrefried von Holleben, em 11 de junho de 1970 é libertado e exila-se na França. Frei<br />

375


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Tito não conseguiu superar as sequelas psicológicas sofri<strong>da</strong>s após ser preso e torturado e<br />

acabou se suici<strong>da</strong>ndo, ain<strong>da</strong> na França.<br />

Se o cinema é a arte de representação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, por mais fictícia que seja uma<br />

história conta<strong>da</strong> na tela, ela sempre terá um ponto verossímil com a condição humana.<br />

Representando a reali<strong>da</strong>de, o cinema acaba por representar a socie<strong>da</strong>de, recebendo assim,<br />

influências de ca<strong>da</strong> época de sua produção e atuando como crítica contundente dessa<br />

socie<strong>da</strong>de. Em que pese épocas de produção artística limita<strong>da</strong> e/ou censura<strong>da</strong>, as artes e a<br />

socie<strong>da</strong>de contemporâneas caminham ca<strong>da</strong> vez mais para a independência.<br />

A indústria cinematográfica, por sua vez, cria estratégias para conquistar público e<br />

manter o compromisso com a reali<strong>da</strong>de, em muitos casos. Roteiros surgem a<strong>da</strong>ptados de<br />

romances há muito tempo. A relação entre cinema e literatura, aliás, é tão antiga quanto o<br />

próprio cinema. O que vale assinalar é a independência instaura<strong>da</strong> a partir do roteiro que,<br />

mesmo a<strong>da</strong>ptado, consiste em outra obra, outra leitura que, no caso de estar de algum modo<br />

relaciona<strong>da</strong> a fatos reais, promove uma reflexão sobre o passado histórico. Batismo de Sangue<br />

cumpre essa trajetória.<br />

Frei Betto, ou Carlos Alberto Libânio Christo, nasceu em Belo Horizonte em 1944,<br />

filho de escritores, com grande apreço pela leitura, principalmente política, filosófica e<br />

teológica. Em 1966 professou na Ordem Dominicana e durante a ditadura militar foi contra o<br />

sistema de governo, o que resultou em algumas prisões, a primeira em 1964, por quinze dias,<br />

e um longo período entre 1969 e 1973. Frei Betto é adepto <strong>da</strong> Teologia <strong>da</strong> Libertação, além de<br />

ter sido militante de movimentos pastorais e sociais, para os quais ain<strong>da</strong> contribui. Como<br />

figura pública, também foi assessor de Luiz Inácio Lula <strong>da</strong> Silva, Presidente <strong>da</strong> República,<br />

entre 2003 e 2010, tendo também coordenado a Mobilização Social do programa Fome Zero.<br />

A experiência <strong>da</strong> prisão durante a ditadura militar está relata<strong>da</strong> de modo direto, além<br />

de Batismo de sangue, em Cartas <strong>da</strong> prisão e Diário de Fernando: nos cárceres <strong>da</strong> ditadura<br />

militar brasileira (2009). Cartas é o resultado <strong>da</strong> união de dois volumes publicados nos anos<br />

de 1970 que traziam as cartas envia<strong>da</strong>s por Frei Betto a familiares, freis dominicanos e outros<br />

amigos, durante os quatro anos de prisão. O último livro é o diário do frei Fernando de Brito,<br />

publicado mais de trinta anos após o final do cárcere, reorganizado por Frei Betto numa<br />

interessante posse <strong>da</strong> narrativa, preservando o caráter de fragili<strong>da</strong>de e impotência que não<br />

permeia as Cartas. Além dessas obras, Frei Betto escreveu livros de outros gêneros, como<br />

literatura juvenil.<br />

376


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Batismo de sangue é a<strong>da</strong>ptado pelo cineasta mineiro Helvécio Ratton em 2007 com o<br />

propósito de captar o medo e o alívio, a angústia e a esperança, o ódio e o amor, entre outros<br />

sentimentos díspares cuja incongruência pode ser uma medi<strong>da</strong> para aqueles tempos aflitivos, a<br />

dimensão que a a<strong>da</strong>ptação pretende alcançar. A escolha estética de Ratton opta por um<br />

formato não reflexivo, com enquadramento clássico, contribuindo para o melhor<br />

entendimento.<br />

Seguindo a trilha de obras significativamente didáticas para a decodificação pelo<br />

espectador de períodos intensamente marcados pela repressão, Batismo de Sangue reconstrói<br />

e reproduz eventos violentos, e sua repercussão prova que algumas questões relativas ao<br />

passado ditatorial brasileiro, como a tortura, ain<strong>da</strong> se encontram em aberto, ou podem suscitar<br />

hoje novas discussões, como o fato de a tortura ter sido “o instrumento extremo de coerção e<br />

o extermínio, o último recurso que o Ato Institucional no. 5 libertou <strong>da</strong>s amarras <strong>da</strong><br />

legali<strong>da</strong>de” (GASPARI, 2002, p. 14).<br />

APROXIMAÇÕES<br />

Levando-se em conta que o período retratado pelas obras em análise possui uma rica<br />

abor<strong>da</strong>gem pelos levantamentos jornalísticos e historiográficos, sobretudo no que diz respeito<br />

aos mecanismos e figuras de poder, não se pretende estu<strong>da</strong>r a fundo, no âmbito deste projeto<br />

de iniciação científica, os fatos envolvidos nas perseguições, prisões e mortes promovi<strong>da</strong>s<br />

pela ditadura militar brasileira. Contudo, como um dos objetivos do trabalho é estu<strong>da</strong>r a<br />

representação do período traumático por ambas as narrativas, muitos pormenores podem ser<br />

desven<strong>da</strong>dos através de um levantamento sucinto na bibliografia que abor<strong>da</strong> o assunto.<br />

Analisar o tratamento presente no livro e no filme é o objetivo maior desta pesquisa.<br />

O trabalho pretende entender as formas de discurso, as alterações no foco de atenção e ponto<br />

de vista promovi<strong>da</strong>s pelo filme de Ratton e as possibili<strong>da</strong>des que as duas leituras oferecem<br />

como formas de encarar episódios de nossa história recente e, mais que isso, maneiras de<br />

tratar assuntos espinhosos para a historiografia e de assumir um papel de conscientização<br />

histórica e especialmente política, num momento cujas necessi<strong>da</strong>des de esclarecimento se<br />

multiplicam. Nesse sentido, vale a pena investigar quanto a narrativa de Frei Betto e a<br />

a<strong>da</strong>ptação de Helvécio Ratton dialogam com o nosso presente, que abomina o passado <strong>da</strong><br />

tortura e <strong>da</strong> perseguição política recobertas por um estado confusa e abominavelmente legal<br />

(leia-se o AI-5, por exemplo), porém não pune a corrupção e outros abusos.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Numa espécie de recriação do próprio realismo, tanto o livro de Frei Betto quanto o<br />

filme de Ratton remexem os fatos através de construções estéticas muito inspira<strong>da</strong>s, porém<br />

calca<strong>da</strong>s no terreno <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, por mais mutante e subjetivo que tenha se tornado devido à<br />

distância no tempo, por mais criativa que a forma final aparente ser, devido à incorporação <strong>da</strong><br />

subjetivi<strong>da</strong>de (como as cenas que retratam a destruição psicológica de Frei Tito). Desven<strong>da</strong>r<br />

essas instâncias também é objetivo <strong>da</strong> análise proposta, que pretende examinar os discursos<br />

como reelaboração de parte dos eventos envolvidos na ditadura militar brasileira, preservando<br />

temas delicados na socie<strong>da</strong>de e política brasileira, especialmente se temos em conta as<br />

discussões em pauta sempre recente sobre a punição dos crimes de tortura e de<br />

desaparecimento de presos políticos.<br />

O trabalho parte <strong>da</strong> leitura detalha<strong>da</strong> do livro de Frei Betto e <strong>da</strong>s atentas observações<br />

realiza<strong>da</strong>s durante algumas exibições do filme de Helvécio Ratton, levando-se em conta<br />

leituras muito eluci<strong>da</strong>tivas sobre o período de 1964 a 1985, especialmente volta<strong>da</strong>s para o<br />

contexto sócio-político brasileiro e os aspectos <strong>da</strong> ditadura militar em nosso país, com<br />

destaque para as perseguições empreendi<strong>da</strong>s sobre os contestadores do regime.<br />

Embora o diálogo entre literatura, cinema e história centralize a pesquisa, o estudo de<br />

texto e imagem dentro dos parâmetros <strong>da</strong> Literatura Compara<strong>da</strong> moderna integram o método<br />

de trabalho. Ca<strong>da</strong> obra é vista em sua dimensão estética, razão pela qual serão mobilizados<br />

modelos <strong>da</strong> teoria literária e dos estudos sobre cinema. Portanto, ain<strong>da</strong> que o trabalho<br />

atravesse etapas técnicas como a decupagem <strong>da</strong>s cenas e cotejamento com as passagens do<br />

livro, é de suma importância a evidenciação <strong>da</strong>s diferenças como procedimentos estéticos que<br />

indicam um aspecto de leitura, de interpretação histórica.<br />

MEMÓRIA, HISTÓRIA, ADAPTAÇÃO<br />

Pelo fato de já ter estado com os freis e outras pessoas cita<strong>da</strong>s durante o livro,<br />

Helvécio Ratton pôde retratar, no campo do audiovisual, to<strong>da</strong> atmosfera necessária para<br />

deixar o filme realista. Em um depoimento cedido ao site destinado às memórias de Frei Tito<br />

(que acaba por ser o protagonista do filme), Helvécio diz assim:<br />

Anos mais tarde, depois de ter retomado minha carreira de cineasta no Brasil<br />

e após a redemocratização, Frei Betto me mandou uma nova edição do<br />

“Batismo de Sangue” com uma dedicatória-desafio: “Helvécio, coragem, a<br />

reali<strong>da</strong>de extrapola a ficção”.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Quando li o livro, decidi a<strong>da</strong>ptá-lo para o cinema. Apesar de to<strong>da</strong>s as<br />

dificul<strong>da</strong>des para se fazer um filme como esse, achei que era uma história a<br />

ser conheci<strong>da</strong> por todos, em especial pelas gerações mais jovens. Assim<br />

nasceu o filme “Batismo de Sangue”, que conta a participação dos frades<br />

dominicanos na luta arma<strong>da</strong> contra a ditadura militar. E conta, em especial, a<br />

história de Frei Tito, um jovem cearense que pagou com a própria vi<strong>da</strong> a<br />

ousadia de sonhar com um Brasil mais justo e fraterno (BETTO, 2001, p.<br />

12).<br />

O filme começa com uma cena forte, que mostra Frei Tito cometendo o suicídio. A<br />

cena se passa no presente e logo após isso o filme segue, em flashback, a cronologia de<br />

acontecimentos que chegarão ao presente mostrado nessa primeira cena.<br />

A sensação de assistir a um suicídio incomo<strong>da</strong> qualquer um, logo na primeira cena<br />

do filme chega a ser quase chocante, até pela aparência do homem desesperado que se mata.<br />

Com a antecipação, sabemos que no fim de tudo, algo ruim acontecerá. Na continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

história nos encontramos com cenas que despertam tensão, como a que será exibi<strong>da</strong> aqui, em<br />

que um colega de Frei Betto chega correndo na re<strong>da</strong>ção do jornal em que trabalhava, e o avisa<br />

que estava voltando do DOPS e que vários jornalistas seriam presos, inclusive um amigo<br />

deles. Sem tempo, Betto pede para sair do serviço e corre para casa desse amigo, o chama e<br />

explica que eles precisam sair de lá naquele momento, o amigo pensa em pegar algumas<br />

coisas mas Betto diz que não há tempo, então os dois saem <strong>da</strong> casa sem trancar nem a porta e<br />

assim que passam pelo portão a polícia chega arrombando a casa.<br />

O roteiro do filme descreve a cena assim:<br />

BETTO NO JORNAL<br />

INT. REDAÇÃO – DIA<br />

BETTO está em frente à mesa repleta de jornais<br />

abertos, há um telefone e a máquina de escrever.<br />

Ele lê suas anotações em um bloquinho, <strong>da</strong>tilografa<br />

em uma lau<strong>da</strong> e risca do bloquinho o quê<br />

escreve na máquina.<br />

REPÓRTER chega esbaforido, aproxima-se de<br />

BETTO, que olha para ele preocupado.<br />

REPÓRTER (BAIXO)<br />

Tô vindo do Dops, vão prender vários jornalistas,<br />

inclusive o Paulo, seu amigo...<br />

BETTO agradece, pega a carteira na gaveta e<br />

an<strong>da</strong> rápido até a grande mesa, no fundo <strong>da</strong><br />

re<strong>da</strong>ção, do DIRETOR DO JORNAL.<br />

BETTO<br />

Preciso sair.<br />

DIRETOR DO JORNAL<br />

Algum problema<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

BETTO<br />

Parece que sim, mas espero chegar a<br />

tempo de resolver.<br />

DIRETOR DO JORNAL, sério, faz gesto para que<br />

BETTO saia logo.<br />

Quando BETTO vai sair <strong>da</strong> re<strong>da</strong>ção chega TAEKO,<br />

máquinas fotográficas pendura<strong>da</strong>s, sorrindo<br />

feliz ao vê-lo.<br />

TAEKO<br />

Estou precisando falar com você...<br />

BETTO<br />

Depois, estou com muita pressa.<br />

BETTO sai.<br />

BETTO AVISA AMIGO<br />

INT. PORTA DO APARTAMENTO – DIA<br />

PAULO abre a porta para BETTO, suado, entrar.<br />

PAULO<br />

Que surpresa boa, entra.<br />

BETTO não se mexe.<br />

BETTO (MEIO OFEGANTE)<br />

Você tem de sair já!<br />

PAULO se assusta.<br />

PAULO<br />

Então deixa eu só pegar umas coisinhas.<br />

BETTO (SÉRIO)<br />

Na<strong>da</strong> disso. Vamos embora imediatamente!<br />

BETTO E PAULO SAEM A TEMPO<br />

INT. / EXT. PORTARIA – DIA<br />

BETTO e PAULO acabam de sair quando a C-14<br />

do DOPS estaciona na frente do prédio. (PATARRA e RATTON, 2008, p.<br />

26-27)<br />

A cena descrita causa certa tensão, porém, no decorrer <strong>da</strong> história, haverá momentos<br />

em que a fuga não sairá de maneira correta e que tanto Frei Betto, quanto Frei Tito, Frei<br />

Fernando e outros acabam presos. A partir desse ponto <strong>da</strong> história, pode-se lembrar e fazer<br />

uma comparação com o começo do filme e perceber que aquela primeira cena, do suicídio,<br />

não é na<strong>da</strong> perto <strong>da</strong>s cenas de tensão, perseguição, prisão e torturas que seguirão nessa fase, e<br />

que são muito piores de se ver, contar, imaginar, presenciar, e principalmente, no caso de Frei<br />

Tito, de se viver.<br />

O mais interessante dessa cena, fato presente em todos os filmes que retratam o papel<br />

<strong>da</strong> polícia durante a ditadura militar no Brasil, é que não se trata de uma perseguição que é<br />

fruto de uma investigação legal – sabemos como muita coisa foi arbitrária. Há ain<strong>da</strong> o fato<br />

curioso de que, para uma narrativa “policial”, os papéis estão invertidos: no caso dessa<br />

história, sabemos quem eram os “bandidos” e “criminosos”, assim como torcemos para os<br />

ver<strong>da</strong>deiros “heróis” ou “mocinhos”... Disposto a ver o mistério revelado, o espectador está<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

pronto a constatar que os “jovens que foram torturados, presos e mortos, lutavam pela<br />

liber<strong>da</strong>de do povo, enquanto este vivia alienado do processo, sem qualquer noção do que<br />

acontecia realmente no país” (MATOS, 2008, p. 96).<br />

REFERÊNCIAS<br />

Anais do Seminário 1964-2004 - 40 anos do Golpe: Ditadura Militar e Resistência no Brasil.<br />

Rio de Janeiro, 7 Letras/FAPERJ, 2004.<br />

AUMONT, Jacques e MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas:<br />

Papirus, 2003.<br />

Batismo de sangue. Direção: Helvécio Ratton. Produção: Helvécio Ratton. Roteiro: Dani<br />

Patarra e Helvécio Ratton, baseado no livro Batismo de Sangue, de Frei Betto. Brasil, 2007.<br />

DVD (110min).<br />

BETTO, Frei. Batismo de sangue: os Dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de<br />

Janeiro, Rocco, 2001.<br />

D’ARAUJO, Maria Celina, SOARES, Ary Dillon e CASTRO, Celso (org.). Os Anos de<br />

Chumbo: A memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994.<br />

GASPARI, Elio. As ilusões arma<strong>da</strong>s: A ditadura escancara<strong>da</strong>. São Paulo, Companhia <strong>da</strong>s<br />

Letras, 2002.<br />

GUTFREIND, Cristiane Freitas, STIGGER, Helena e BRENDLER, Guilherme. A estética<br />

realista dos filmes sobre a ditadura militar no Brasil. Em Questão, Porto Alegre, v. 14, n. 2, p.<br />

261-274, jul./dez. 2008.<br />

MATOS, Júlia Silveira. O cinema e as interpretações do Brasil: de Machado a Frei Betto.<br />

Biblos, 22 (1): 83-100, 2008.<br />

PATARRA, Dani e RATTON, Helvécio. Batismo de Sangue. Baseado na obra de Frei Betto.<br />

Roteiro. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008.<br />

SOUZA, Maria Luiza Rodrigues Souza. Filmes sobre a ditadura como arquivos especiais do<br />

trauma: Batismo de sangue como filme-arquivo. ; ponto-e-vírgula, 6: 78-92, 2009.<br />

XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In:<br />

PELLEGRINI, Tânia et al. (org.). Literatura, cinema e televisão. São Paulo:Senac, 2003.<br />

381


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Sehnaz Tahir-Gürçağlar e o caso <strong>da</strong> escan<strong>da</strong>losa pseudotradução turca dos arquivos secretos<br />

de Sherlock Holmes, rei dos policiais<br />

SCHRAMM JR., Roberto Mário (PGET/ UFSC)<br />

RESUMO: Quando aludimos ao tema <strong>da</strong> ‘pseudotradução’, – i.e. textos apresentados como<br />

sendo traduções, mas que não tem qualquer contraparti<strong>da</strong> numa outra linguagem (uma<br />

tradução sem original, a tradução de um texto fonte que não existe); – não será , muito<br />

provavelmente, o nome de James S. Holmes a ser lembrado logo de início. A precedência<br />

caberá, sem dúvi<strong>da</strong>, a Gideon Toury; na medi<strong>da</strong> em que foi ele o primeiro a propor que o<br />

estudo sistemático desses enigmas tradutológicos fizesse parte do escopo e objeto dos DTS –<br />

(Descriptive Translation Studies) – os ‘estudos descritivos <strong>da</strong> tradução’: programa ao qual,<br />

Toury engajara-se sob a influência de Even-Zohar e do próprio Holmes – o tradutólogo, não o<br />

detetive. O Holmes <strong>da</strong> Rua Baker, to<strong>da</strong>via, se torna um item de particular interesse nesse<br />

paradigma descritivista, desde que – para além de reescrito em séries televisivas, filmes e<br />

jogos de tabuleiro – é pseudo traduzido durante o século XX, nos mais diversos contextos<br />

culturais. Dentre os fenômenos mais significativos dessa ativi<strong>da</strong>de está a singular<br />

movimentação (pseudo)tradutória na Turquia, que, durante a primeira metade do século XX,<br />

muito caracteristicamente, contemplou, antes, o personagem de Conan Doyle do que o autor<br />

de Sherlock Holmes. Tal fluxo pseudo tradutório se inicia com a publicação de uma série de<br />

novelas, intitula<strong>da</strong> “Os arquivos secretos do rei dos policiais, Sherlock Holmes”. Daí em<br />

diante, procuramos estabelecer um diálogo com ensaio de Sehnaz Tahir-Gürçağlar,– do qual<br />

procuraremos isolar alguns elementos que nos permitam (i) esclarecer o conceito de<br />

pseudotradução por meio dos casos estu<strong>da</strong>dos pela autora e (ii) discutir as diferenças entre tais<br />

pseudotraduções e outras formas de retextualização <strong>da</strong>s obras de Conan Doyle.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Sherlock Holmes; pseudotraduções; literatura policial; estudos <strong>da</strong><br />

tradução; história <strong>da</strong> tradução.<br />

ABSTRACT: Concerning the subject of pseudo translations, – i.e. texts presented as<br />

translations without counterparts in another source parlance (translations without the original,<br />

translations of a source text that does not exist) –, it would be unlikely to have James S.<br />

Holmes’ name as the first one to be remembered. Rather, the precedence should be attributed<br />

to Gideon Toury, since it was he who, arguably, originally proposed those most elusive<br />

phenomena as an important subject to his DTS (Descriptive Translation Studies) program.<br />

However, it is Holmes – the scholar, not the detective – as well as Itamar Even-Zohar, who<br />

have been the pioneers of the DTS; and, on the other hand, it would also be assigned to the<br />

Baker Street Holmes a crucial role in this field, by means of pseudo translations of his<br />

adventures. I shall discuss here aspects of the Turkish pseudo translation phenomena<br />

concerning rather Conan Doyle’s fictional character than the actual body of work of Sherlock<br />

Holmes’ author. I wish to establish here a close dialogue with Tahir-Gürçağlar’s essay on the<br />

history of Turkish Sherlock Holmes pseudo-translated serials; and also to (i) clarify the<br />

pseudo translation concept using the examples offered by Tahir-Gürçağlar – as well as (ii) to<br />

discuss the differences regarding pseudo translations and other examples of Holmes-related<br />

re-textualizations.<br />

382


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

KEYWORDS: Sherlock Holmes; pseudo translations; detective stories; translation studies;<br />

translation history.<br />

O conceito de pseudotradução se pode mostrar de tal modo elusivo, que parecerá<br />

haver sido mesmo concebido para os usos e abusos de algum Napoleão do crime. Terá sido,<br />

provavelmente, proposto por uma mente arquicriminosa. Traduzimos originais: esse contrato<br />

mesmo implicado no ato tradutório, já estabelece uma série de normas que a tradição chamou<br />

de fideli<strong>da</strong>de e que, hoje, tendemos a nos referir como equivalência. O pseudo tradutor será,<br />

no entanto, um ver<strong>da</strong>deiro transgressor, pois traduz sem se reportar a um original determinado<br />

e localizado. Mas como assim Traduzir sem um original Mas o que se traduz, nesse<br />

respeito Perceba-se a sutileza do ardil, de um gesto criminoso digno mesmo de um professor<br />

Moriarty: o pseudo tradutor furta, rouba, subtrai, o original, – e o faz bem debaixo de nossos<br />

narizes. Trata-se, no contexto dos estudos <strong>da</strong> tradução, de o crime do século, propriamente. O<br />

roubo <strong>da</strong>quilo que é mais caro à tradutologia, do tesouro mesmo <strong>da</strong> tradução: a presença de<br />

um original.<br />

A investigação dessa estranha e inquietante subtração tem sido empreendi<strong>da</strong> pelo<br />

menos desde a déca<strong>da</strong> de 1970, mas sua captura vem se mostrando dificultosa e polêmica. A<br />

bem <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, é muito provável que os poderes dedutivos de um único Holmes, por<br />

penetrantes e vastos que o sejam, se mostrem insuficientes para <strong>da</strong>r conta do insondável<br />

mistério do sumiço do original. De fato, aos esforços do Sherlock Holmes de Baker Street,<br />

haveríamos que adicionar todo um programa de investigação. Um ver<strong>da</strong>deiro Bureau de<br />

estudos tradutológicos capitaneado, talvez, por aquele muito menos celebrado homônimo do<br />

famoso detetive <strong>da</strong> rua Baker. Eu me refiro agora a James S. Holmes, que se notabilizou no<br />

interim dos ain<strong>da</strong> pouco notórios estudos descritivos <strong>da</strong> tradução. Em tempo: a agencia de<br />

detetives tradutológicos fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por esse novo Holmes, costuma ser também conheci<strong>da</strong> pela<br />

alcunha de uma abor<strong>da</strong>gem polissistêmica <strong>da</strong> tradutologia, nome que ganhou de sua adesão<br />

entusiástica a hipótese dos polissistemas literários, sugeri<strong>da</strong> por Itamar Even-Zohar.<br />

Esse programa de Even Zohar (2000 p. 192-197) será de grande importância no que se refere<br />

à nossa argumentação, de modo que eu gostaria de apresentar uma sucinta apreciação <strong>da</strong><br />

hipótese polissistêmica, no tocante a sua abor<strong>da</strong>gem algo revolucionária <strong>da</strong>s funções <strong>da</strong><br />

literatura traduzi<strong>da</strong>. Nesse sentido podemos estabelecer que:<br />

(i) Um sistema literário consiste numa plurali<strong>da</strong>de de sistemas, que não podem existir<br />

num vácuo, que se encontram em perene interação com os polissistemas estrangeiros, e<br />

também com os polissistemas domésticos que lhe são constituintes. Nenhum sistema literário<br />

383


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

é completo e absoluto: não há literatura nacional que guarde em si própria to<strong>da</strong>s as<br />

manifestações literárias possíveis: não há sistema literário sem lacunas.<br />

(ii) Há, contudo sistemas literários muito ricos e plurais, que possuem recursos<br />

amplos e dispõem de um conjunto de obras muito diverso, uma historiografia rica e plural,<br />

uma capaci<strong>da</strong>de editorial consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> e estabeleci<strong>da</strong>. Tais sistemas são considerados<br />

centrais, e podem ser exemplificados pelas grandes literaturas nacionais europeias, como os<br />

polissistemas ingleses e franceses.<br />

(iii) Existem por outro lado, e de maneira diametralmente oposta, sistemas literários<br />

que Zohar qualifica como periféricos, na medi<strong>da</strong> em que circunscrevam tradições literárias<br />

mais recentes, ou menos diversifica<strong>da</strong>s. Seriam periféricos também sistemas literários que se<br />

caracterizem por um pouco expressivo público leitor, ou, ain<strong>da</strong>, por uma manifesta limitação<br />

de suas capaci<strong>da</strong>des editoriais.<br />

(iv) Na hipótese de Zohar, o quanto mais periférico for um sistema literário, em um<br />

certo período, tanto mais dependente ele será <strong>da</strong> tradução para que se desenvolva e enriqueça.<br />

Sendo assim, o raciocínio inverso se mostra igualmente correto: um polissistema literário<br />

desenvolvido e central dependerá o tanto menos <strong>da</strong> literatura traduzi<strong>da</strong> para <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong>s<br />

deman<strong>da</strong>s de seu público leitor. Neste sentido, podemos dizer que os poli sistemas de<br />

literatura traduzi<strong>da</strong> serão ‘centrais’ pra uma literatura ‘periférica’ e ‘periféricos’ para uma<br />

literatura central.<br />

Uma tal exposição por demais ligeira desse programa de Even-Zohar, não <strong>da</strong>rá conta<br />

<strong>da</strong>s inúmeras objeções contra um tal programa de estudos <strong>da</strong> tradução, os quais –<br />

oportunamente – poderemos voltar a discutir. Um tópico interessante se desprende de uma<br />

rápi<strong>da</strong> aquiescência do fato de que, muito provavelmente, um sistema literário ‘desenvolvido’<br />

ou ‘central’ terá muito mais recursos e interesse para publicar e produzir traduções do que um<br />

sistema periférico. Na impossibili<strong>da</strong>de de discutir, à contento, a hipótese poli sistêmica,<br />

limitemo-nos a assinalar que os poli sistemas são categorias processuais e mutáveis: Zohar os<br />

concebe como um jogo de diferenciação, onde processos históricos determinam o<br />

desenvolvimento de um polissistema. Ou seja, um sistema literário que se tenha por periférico<br />

pode (como constantemente ocorre) vir a se tornar um sistema central – assim como uma<br />

determina<strong>da</strong> literatura ti<strong>da</strong> como indubitavelmente central em certo contexto histórico, pode<br />

se ver num movimento inexorável rumo a periferia.<br />

Eu não quero entrar em nenhuma polêmica desnecessária, mas não seria esse<br />

justamente o caso dos polissistemas nacionais constituídos pelas literaturas portuguesa e<br />

384


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

brasileira Se não me basta meramente assinalar o contraste entre esses dois sistemas, que me<br />

seja permito explicar-me: não estariam nossos colegas lusitanos experimentando no presente<br />

momento histórico uma inversão <strong>da</strong> lógica centro – periferia, que se estabelecera com o Brasil<br />

no período colonial Dito de outra maneira, não estaria o polissistema português assumindo<br />

um papel periférico, ou não estaria ele capturado por um movimento em direção a periferia do<br />

sistema lusófono, na medi<strong>da</strong> em que o polissistema brasileiro vai assumindo um papel<br />

preponderante (ou de movimento em direção à essa preponderância) tanto em termos de<br />

plurali<strong>da</strong>de de suas manifestações literárias quanto em termos <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de editorial<br />

instala<strong>da</strong> e <strong>da</strong> crescente ampliação do público leitor e do investimento desse público em<br />

termos de compra de livros<br />

Mas abandonemos, por hora, tais considerações, e retomemos a nossa questão <strong>da</strong>s<br />

pseudotraduções. Já apreendemos que esse conceito foi, ele, mesmo, apreendido <strong>da</strong>quela<br />

abor<strong>da</strong>gem descritiva, polissistêmica; – <strong>da</strong> tradução enquanto ‘fenômeno’. E já sabemos que<br />

este outro fenomenal bureau de investigação tradutológica emerge <strong>da</strong> obra pioneira de Even-<br />

Zohar e <strong>da</strong>quele James Holmes que – mesmo não sendo nenhum Sherlock, – soube, ain<strong>da</strong><br />

assim, determinar/mapear o campo dos estudos e <strong>da</strong> pesquisa tradução. Isso a partir de um<br />

pressuposto que seria antes descritivo (fun<strong>da</strong>do na pesquisa empírica), do que critico ou<br />

voltado para a especulação filosófica. Mas quem teria sido, neste programa muito geral de<br />

investigação, aquele nosso fun<strong>da</strong>dor desse departamento de investigação dos crimes pseudo<br />

tradutórios Desta delegacia de homicídios em que a vítima é sempre o ‘original’, a ‘fonte’<br />

E por que estamos preocupados com essas questões de tradutologia no contexto de<br />

investigação no qual ora nos demoramos Nominalmente, qual a relevância do tema <strong>da</strong><br />

pseudotradução no que se refere ao nosso contexto de investigação dos ditos gêneros híbridos<br />

<strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de e, especificamente, para esta nossa discussão dos pastiches e reescrituras do<br />

Holmes <strong>da</strong> rua Baker<br />

Tratarei, primeiramente, <strong>da</strong> última questão. Nosso propósito aqui será o de esclarecer<br />

o escân<strong>da</strong>lo <strong>da</strong> pseudotradução justamente no que se refere à obra de Conan Doyle no que diz<br />

respeito às pseudotraduções e a<strong>da</strong>ptações turcas de seu mais famoso e detetivesco<br />

personagem. Para tanto seguiremos de perto as considerações de Sehnaz Tahir-Gürçağlar, em<br />

seu influente artigo Pseudotradução e Anonimato na Literatura Turca (2008). Neste artigo, a<br />

pesquisadora traça de forma detalha<strong>da</strong> a singular movimentação (pseudo) tradutória na<br />

Turquia, que, durante a primeira metade do século XX, quis traduzir, antes, o personagem de<br />

385


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Conan Doyle do que o autor de Sherlock Holmes. Note-se que nesse deslocamento do autor<br />

para a personagem encontra-se o gesto fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> pseudotradução.<br />

Tratamos aqui de gêneros híbridos <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. Qual gênero, contudo, se<br />

apresenta mais híbrido do que a tradução ela mesma Eu cito (e traduzo) Jiří Levý, em The<br />

Art of Translation: “Uma tradução é um composto, uma configuração. Não se trata de um<br />

trabalho monolítico, mas de uma interpenetração, um conglomerado de duas estruturas”.<br />

(2011, p. 67)<br />

Decerto. Mas desse conglomerado híbrido o que restará se procedemos na análise <strong>da</strong><br />

pseudotradução, que não se reporta a um original localizável. Onde estará sua hibridez, na<br />

medi<strong>da</strong> em que se propõe reescritura de um texto alvo que não poderá ser apontado no<br />

contexto de parti<strong>da</strong>, justamente devido a ter sido, o próprio texto fonte, o alvo <strong>da</strong><br />

pseudotradução enquanto operação homici<strong>da</strong>. Devemos, entretanto ponderar que Levy se<br />

referiu a uma noção muito mais flui<strong>da</strong> de ‘texto fonte’ ao invés <strong>da</strong> monolítica e estacionária<br />

categoria tradicional de ‘texto original’. Estará aí uma <strong>da</strong>s chaves para o nosso enigma<br />

O conceito de pseudotradução emerge <strong>da</strong>s considerações de Gideon Toury (1995)<br />

acerca desse fenômeno, de todo modo, antiquíssimo, mas retomado por ele de uma forma<br />

mais criteriosa. Toury legitima o estudo descritivo dessas anomalias que, num contexto mais<br />

restrito <strong>da</strong> historiografia literária, sempre foram relegados ao domínio <strong>da</strong> fraude e do maucaratismo.<br />

Basta assinalarmos ao célebre caso dos poemas ‘ossiânicos’ que o escocês James<br />

Macpherson (1736-1796), no século XIX, codificara em uma epopeia nos moldes Homéricos,<br />

a partir de alguns fragmentos de poemas celtas. Tendo sido apresentados como obra do mítico<br />

poeta Ossian, Macpherson achou de enganar muita gente boa. Hegel inclusive: se quisermos<br />

poderemos vasculhar os trechos dedicados a literatura épica no curso de estética do filósofo<br />

alemão. Lá encontraremos diversas menções aos poemas ossiânicos elencados entre os textos<br />

genuínos e epopeias de primeira ordem – ou seja , aqueles textos que, segundo os românticos,<br />

tinham uma força ‘fun<strong>da</strong>cional’ no tocante a determina<strong>da</strong> nação – justamente por que<br />

emergiam de rapsódias que precediam a invenção <strong>da</strong> escrita. Eram textos que provinham de<br />

uma tradição oral e constituíam epopeias genuínas: (Odisseia; Ilía<strong>da</strong>; o Mahabharatha e o<br />

Ramayana, o Gigalmesh sumério; etc.) em oposição aos épicos de segun<strong>da</strong> ordem, artísticos e<br />

‘literários’, tais como a Enei<strong>da</strong> de Virgílio, a Jerusalém Liberta<strong>da</strong> de Tasso ou Os Lusía<strong>da</strong>s<br />

de Camões. Nesse sentido, no que depender do critério romântico/hegeliano, as literaturas<br />

irlandesas – na direção crepuscular proposta por Yeats, Lady Gregory e outros – teriam sido<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s por uma pseudotradução dos poemas Ossiânicos.<br />

386


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A originali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> concepção de Toury estaria justamente em tomar o fato <strong>da</strong><br />

pseudotradução como uma oportuni<strong>da</strong>de de conhecimento e investigação dos fenômenos<br />

tradutórios ao invés de, meramente, uma operação crítica ou policialesca <strong>da</strong> determinação de<br />

uma fraude. No caso do fluxo pseudo tradutório voltado para Sherlock Holmes, assim como<br />

demonstrado pela pesquisa de Tahir-Gürçağlar (2008, p. 133-151), as pseudotraduções de<br />

Holmes nos fornecem um testemunho concreto de um contexto intercultural de passagem do<br />

império otomano para a república turca. Essas retextualizações marcam o momento mesmo<br />

<strong>da</strong> passagem do antigo sistema de escrita árabe do império otomano para a adoção do alfabeto<br />

ocidental. Mais ain<strong>da</strong>: essas pseudotraduções revelam uma clara decadência do sistema de<br />

literatura popular marcado pela contação oral de estórias do folclore turco que era<br />

característico de uma população em grande parte iletra<strong>da</strong> ou analfabeta. Com o advento <strong>da</strong><br />

república e <strong>da</strong> transição opera<strong>da</strong> pela subsequente ‘reforma cultural’ ‘ocidentalizante’,<br />

implica<strong>da</strong> na ‘nova ordem’ <strong>da</strong> república turca, verificamos a eclosão de traduções ocidentais –<br />

como que para ilustrar e intrincar a hipótese polissistêmica, à qual já nos referimos. Pois o que<br />

aqui se verifica é um polissistema periférico operando no sentido de uma reconfiguração de<br />

sua literatura popular, uma ver<strong>da</strong>deira revolução cultural à turca. O velho sistema, baseado na<br />

orali<strong>da</strong>de e no folclore é o que se vai substituindo pela nova ordem do moderni<strong>da</strong>de turca,<br />

onde o déficit de literatura popular , o vácuo do folclore – vai sendo vencido e preenchido,<br />

por traduções. E ademais traduções de histórias de Sherlock Holmes! E ain<strong>da</strong> mais:<br />

pseudotraduções <strong>da</strong>s histórias detetivescas de Sherlock Holmes. Pois muito bem, a primeira<br />

leva dessas traduções se inicia – segundo Tahir-Gürçağlar (2008, p. 143), com a publicação de<br />

uma série de novelas, intitula<strong>da</strong> Os arquivos secretos do rei dos policiais, Sherlock Holmes,<br />

partindo de 1912. Ou seja, não teremos aqui, no que essas pseudotraduções propõem, a partir<br />

de sua caracterização de Holmes, o private investigator de Conan Doyle, agora reinterpretado<br />

como um policial, uma clara referência ao fato histórico <strong>da</strong> criação de uma força policial<br />

unifica<strong>da</strong> pela república turca que recém nascera <strong>da</strong>s cinzas do império Otomano Pseudo<br />

traduções são relevantes, para muito além de seu caráter ambíguo; apesar e por causa de seu<br />

estatuto elusivo; independentemente de sua má fama, de sua péssima reputação.<br />

Mas, novamente, o que é a pseudotradução Andrea Rizzi, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />

Melbourne , sumariza, polemiza e problematiza a posição clássica de Toury, no seu artigo<br />

provocadoramente intitulado: Quando um texto é ao mesmo tempo uma tradução e uma<br />

pseudotradução (2008). Nesse artigo Rizzi apresenta, para nosso gáudio, duas acepções do<br />

fenômeno pseudo tradutológico. Eis a primeira delas: “A Pseudo Tradução é uma Tradução<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

até que descoberta, flagra<strong>da</strong> em seu ato fraudulento. Depois disso não é mais uma tradução<br />

‘genuína’, mas uma composição original disfarça<strong>da</strong> de tradução” (2008, p.155).<br />

E a segun<strong>da</strong>: definição de Rizzi em minha própria tradução, que salvo engano, é<br />

bona fides:<br />

A Pseudo Tradução é uma ação em disfarce (act in disguise) e como tal<br />

permite aos pseudo tradutores desempenhar mu<strong>da</strong>nças culturais a partir de<br />

não apenas um mas de todo um grupo ou conjunto textos estrangeiros, ou<br />

mesmo do modelo abstrato que subjaz a esse conjunto, em oposição a um<br />

texto individual.” (2008, p. 155)<br />

Eu acredito que esta segun<strong>da</strong> definição remete aos casos que discutiremos. Mas<br />

apenas mencionemos, a síntese de Rizzi <strong>da</strong>s suas definições propostas, constituindo aquilo<br />

que o pesquisador define como sua “hipótese de trabalho”: marcar o estatuto de um texto<br />

traduzido ou pseudo traduzido a partir do confronto de seus peritextos (prefácios, índices,<br />

sumários, etc.) e epitextos (documentação exterior ao livro, tais como cartas, resenhas,<br />

arquivos).<br />

Os casos que Sȩhnaz Tahir-Gürçağlar apresenta, to<strong>da</strong>via, serão muito dificilmente<br />

contemplados pela hipótese de trabalho que Rizzi desenvolveu, na medi<strong>da</strong> em que as<br />

pseudotraduções que a autora discutia tendiam a apagar esses aspectos peritextuais, assim<br />

como os aspectos <strong>da</strong> recepção dessas pseudotraduções e de seu impacto nos meios literários<br />

foi desprezível até o advento de pesquisas específicas acerca <strong>da</strong> tradução. As aventuras<br />

pseudo traduzi<strong>da</strong>s desse Sherlock Holmes policialesco são, entretanto, decidi<strong>da</strong>mente<br />

marginais nessa dimensão epitextual. São muito provavelmente, ignora<strong>da</strong>s com soleni<strong>da</strong>de<br />

pelos agentes diversos <strong>da</strong> literatura erudita, já que Literatura popular e popularesca. To<strong>da</strong>via,<br />

se nos reportamos a uma concepção <strong>da</strong> pseudotradução como um amálgama ou abstração de<br />

um conjunto de textos, estaremos em condições de compreender o tema <strong>da</strong>s pseudotraduções<br />

de maneira mais positiva. Não estaremos, entretanto, livres do problema que Rizzi apontou: se<br />

a pseudotradução é um amálgama de uma série de textos, no que então ela se distinguirá de<br />

outros processos tradutivos, tais como a a<strong>da</strong>ptação – termo que carrega, diga-se de<br />

passagem, um estigma bem menos acentuado do que aquele <strong>da</strong> pseudotradução. Eu acredito<br />

que a resposta para essa questão estaria no contraste entre aquilo que Tahir-Gürçağlar entende<br />

como genuínas pseudotraduções de Sherlock Holmes com aqueles trabalhos que consistem,<br />

de outro modo, em a<strong>da</strong>ptações, e que – numa diverti<strong>da</strong> inversão de perspectivas, – podem ser<br />

reinterpreta<strong>da</strong>s como ‘pseudo’ pseudotraduções. A a<strong>da</strong>ptação como uma falsa fraude, assim<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

como uma genuína bijuteria é uma falsificação falsa. Porque falsa Porque nunca se quis<br />

ver<strong>da</strong>deira e, portanto, jamais se pretendeu, tão pouco, falsa.<br />

Eu gostaria de concluir essa argumentação refazendo esse itinerário de Sȩhnaz Tahir-<br />

Gürçağlar, no tocante a diferenciação <strong>da</strong>s pseudotraduções e a<strong>da</strong>ptações de Sherlock Holmes.<br />

Acredito, entretanto, que posso fazê-lo contrastando as “legítimas” pseudotraduções que a<br />

autora propôs com, ao invés dos exemplos turcos apresentados, um contra exemplo que nos<br />

será bastante familiar. Refiro-me aquela que será, muito provavelmente, a mais popular e<br />

best-seller <strong>da</strong>s retextualizações de Holmes em terras brasileiras: o Xangô de Baker Street<br />

(1995) de Jô Soares.<br />

Retomemos, antes disso, a descrição <strong>da</strong>s ‘genuínas’ pseudotraduções turcas. Já nos<br />

referimos às coleções pioneiras de 1912, aquelas que removeram a particulari<strong>da</strong>de do<br />

investigador de Holmes e o promoveram a inspetor de policia, o rei dos policiais. Esta<br />

primeira leva é ti<strong>da</strong> por Tahir-Gürçağlar como paradigmática na medi<strong>da</strong> em que antecipa uma<br />

série de elementos que serão, por sua vez, retomados nas pseudotraduções subsequentes.<br />

Dentre esses elementos podemos destacar a institucionalização de Holmes como<br />

inspetor/policial e, por outro lado, o elementar apagamento do bom e velho Dr. Watson –<br />

exceto, como aponta Tahir-Gürçağlar, para tratar de uma visita médica. Ao sumiço de Watson<br />

nosso pseudo tradutor (anônimo, a propósito) responde com um tal de Harry Taxon – o<br />

assistente desempoderado do inspetor, na medi<strong>da</strong> em que, ao contrário do Watson em Conan<br />

Doyle, não tem poderes narrativos. A narrativa é neutra, em terceira pessoa. To<strong>da</strong>via esse<br />

Harry será reencarnado nas pseudotraduções posteriores o que demonstra bem o estatuto e<br />

relevância dessas pseudo traduções originais, que acabam por se estabelecer, ironicamente,<br />

como os originais ou as fontes <strong>da</strong>s pseudotraduções seguintes.<br />

A propósito do anonimato <strong>da</strong>s pseudotraduções, talvez tenhamos aqui a chave para a<br />

distinção que queríamos fazer entre pseudotraduções e as outras formas de reescritura. A<br />

pseudotradução nunca se anuncia como tal, ela é a tradução que não ousa dizer seu nome.<br />

Entretanto, recitando o Anthony Pym citado por Tahir-Gürçağlar: “até mesmo as<br />

pseudotraduções projetam uma linha entre as culturas”. O Xangô, por outro lado, não esconde<br />

a sua condição de a<strong>da</strong>ptação, de releitura livre dos trabalhos de Conan Doyle. Seu autor, longe<br />

de ser anônimo, era <strong>da</strong>do, na ocasião do lançamento do livro, a arroubos de genuína<br />

autopromoção e pseudo modéstia (e.g. ‘eu tive essa idéia para um romance, eu quis <strong>da</strong>r para o<br />

Rubem Fonseca, mas ele disse: não Jô, escreve você! Tu és o cara!’) A publicação do livro se<br />

deu em uma <strong>da</strong>s maiores casas editoriais do Brasil. Tudo é superlativo no Xangô, (inclusive o<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

autor) mas ninguém em sã consciência acusaria o Jô de frau<strong>da</strong>r Conan Doyle ou de estar<br />

traduzindo um texto que o inglês nunca escrevera. Mas, de certa forma, não é exatamente isso<br />

o que o Xangô, como to<strong>da</strong> a a<strong>da</strong>ptação, opera<br />

A questão é que ao contrário <strong>da</strong> pseudotradução, a a<strong>da</strong>ptação mostra o pau que matou<br />

a cobra, – pseudo traduz, mas diz que (e ‘o que’) pseudo traduziu. A única distinção possível<br />

aqui parece ser mesmo aquela atitude pseudo tradutória que ou se fun<strong>da</strong> na má fé, como no<br />

Ossian de Macpherson, ou surge em um polissistema tal como descrito por Tahir-Gürçağlar<br />

<strong>da</strong>s retextualizações turcas de Sherlock Holmes, onde o público <strong>da</strong>s traduções – acostumado<br />

às noções difusas de autoria e pertença <strong>da</strong>s narrativas orais e folclóricas– simplesmente não se<br />

interessa por problemas teóricos e é indiferente a diferença entre original e tradução.<br />

Mas não era indiferente à ironia e a paródia, tanto que a segun<strong>da</strong> série relevante de<br />

pseudotraduções turcas, publica<strong>da</strong>s a partir de 1914 se intitulara “A amante de Sherlock<br />

Holmes”. Nessa série, Holmes é retratado como um inspetor de polícia um tanto inepto que<br />

depende dos talentos dedutivos <strong>da</strong> “ama<strong>da</strong>” para resolver seus casos. Já nos anos 20,<br />

publicou-se a primeira pseudotradução onde podemos peritextualmente determinar um autor,<br />

ou pseudo tradutor: Ve<strong>da</strong>t Örfi. O que se omite, to<strong>da</strong>via, é o nome do autor do texto original,<br />

até por que ele, o original, – lembremos – não existe. Mais difícil é de se acreditar em um<br />

Holmes policial que tem escritório em Bridge Street e é assistido pelo sub Watson Turco,<br />

Harry Taxon. To<strong>da</strong>s essas traduções foram edita<strong>da</strong>s pela Cemiyet Kitabhanesi, que, em<br />

edições subsequentes – sob a rubrica de M. Kemaleddin amalgamou dois originais de Doyle<br />

The Adventure of the Empty House e The Adventure of the Dancing Men, (ambos de Return of<br />

Sherlock Holmes) em uma única obra denomina<strong>da</strong> A Senha Secreta. Podemos especular que<br />

o resultado há de ter sido ain<strong>da</strong> mais ‘pseudo’ do que de hábito, incluindo o curioso recurso<br />

de introduzir um certo Harry Watson, que de Doutor não tinha na<strong>da</strong>: era meramente um<br />

aprendiz do Detetive. Em 1926, Selami Munir fecha esse ciclo com uma pseudotradução de<br />

Maurice LeBlanc, onde Arsene Lupin se contrapõe a Holmes. Holmes é derrotado nesse<br />

crossover de titãs.<br />

Tal panorama se verificaria bem mais interessante depois <strong>da</strong> adoção do alfabeto<br />

latino, a partir dos anos 40. Tahir-Gürçağlar atribui isso a uma mu<strong>da</strong>nça de foco nas<br />

reescrituras, onde Holmes deixa de figurar como herói de ação, como um Holmes-Chuck<br />

Norris à turca, e o passa, finalmente, para um modo dedutivo. Tahir destaca duas séries de<br />

narrativas como mais relevantes: a primeira delas é Mesḩur İngiliz Polis Hafiyesi Şerlok<br />

Holmes Serisi (O Famoso Policial Inglês, Inspetor Sherlock Holmes) consistindo de 83<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

novelas que misturavam quase-traduções (sistematicamente modifica<strong>da</strong>s) e pseudotraduções.<br />

Por fim, Tahir-Gürçağlar indica como o canto do cisne <strong>da</strong>s pseudotraduções de Holmes a série<br />

de 1955 intitula<strong>da</strong> as maravilhosas aventuras de Sherlock Holmes. A partir de então as<br />

pseudotraduções de Holmes teriam entrado em declínio – embora tenham sido substituí<strong>da</strong>s<br />

por outras pseudotraduções de detetives norte-americanos mais modernos.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

EVEN-ZOHAR, Itamar. The position of translated literature within
 the literary polysystem.<br />

In:__. The Translation Studies Reader. Londres/Nova Iorque: Routlege, 2000. P. 192-197.<br />

HOLMES, J.S. The Name and the nature of translation studies. In:__. The Translation Studies<br />

Reader. Londres/Nova Iorque: Routlege, 2000. P. 172-185.<br />

LEVÝ, J. The Art of Translation. Amsterdã/Filadelfia: Benjamin, 2011.<br />

RIZZI, A. When a text is both a pseudotranslation and a translation: the enlightening case of<br />

Matteo Maria Boiardo (1441–1494). In:__. Beyond Descriptive Translation Studies:<br />

Investigations in homage to Gideon Toury Amsterdã/Filadelfia: Benjamin, 2008. P. 152-<br />

162.TOURY, G. Descriptive translation studies – and beyond. Amsterdã/Filadelfia:<br />

Benjamin, 1995.<br />

SOARES, J. O Xangô de Baker Street. São Paulo: Cia <strong>da</strong>s Letras, 1995.<br />

TAHIR-GÜRÇAĞLAR, S. Pseudotranslation and anonymity in Turkish literature. In:__.<br />

Beyond Descriptive Translation Studies: Investigations in homage to Gideon Toury.<br />

Amsterdã/Filadelfia: Benjamin, 2008. P. 133 – 151<br />

391


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

SP: Altos e baixos na obra policial juvenil de Marcos Rey e Pedro Bandeira<br />

SENA, José Eduardo Botelho de (UPM/SP)<br />

RESUMO: A proposta desse artigo é mostrar como Marcos Rey (1925-1999) e Pedro<br />

Bandeira (1942) privilegiam o espaço urbano <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de São Paulo em seus primeiros<br />

romances policias juvenis, respectivamente O mistério do cinco estrelas (1981) e A droga <strong>da</strong><br />

obediência (1984). Rey exibe uma ci<strong>da</strong>de em que se contrastam as classes mais e menos<br />

privilegia<strong>da</strong>s, representa<strong>da</strong>s pelos moradores do bairro <strong>da</strong> Bela Vista, conhecido como<br />

Bexiga, e hóspedes do hotel cinco estrelas ao qual remete ao título. Bandeira, por sua vez,<br />

mostra o universo dos mais ricos paulistanos que estu<strong>da</strong>m num colégio cujo nome é Elite.<br />

Socialmente mais ou menos heterogênea, a ci<strong>da</strong>de revela-se propícia a crimes e enigmas. Em<br />

O mistério do cinco estrelas, a morte de um anão opõe as classes sociais num jogo de poder<br />

em que o dinheiro – aparentemente – dificulta a resolução do crime. Já em A droga <strong>da</strong><br />

obediência, alunos de escolas de elite de São Paulo são sequestrados como parte de um<br />

projeto mundial de dominação. Ambos os romances policiais fazem emergir a cartografia <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de, não apenas a demarca<strong>da</strong> por espaços geográficos, mas também por supostos limites<br />

sociais.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Literatura juvenil. Romance Policial. Marcos Rey. Pedro Bandeira.<br />

ABSTRACT: This article aims at showing how Marcos Rey (1925-1999) and Pedro Bandeira<br />

(1942) concede great importance to the urban space of São Paulo city on their first juvenile<br />

detective stories, namely O mistério do cinco estrelas (1981) and A droga <strong>da</strong> obediência<br />

(1984). Rey shows a city in which lower and upper classes contrast, the first being represented<br />

by people from Bela Vista neighborhood, to<strong>da</strong>y known as Bexiga, and the other group being<br />

represented by the guests of a fancy hotel, which the title concerns. Bandeira, on the other<br />

hand, shows the universe of the richest São Paulo city dwellers who study in a school named<br />

Elite. Partly heterogeneous in social issues, the city happens to be propitious to crimes and<br />

enigmas. In O mistério do cinco estrelas, the death of a dwarf opposes the social classes in a<br />

power game in which money seems to make the crime solving process more complicated. As<br />

for A droga <strong>da</strong> obediência, elite schools students are kidnapped as part of an international<br />

project for domination. Both detective stories make the city cartography emerge, not only the<br />

one limited by geographic spaces, but also by social boun<strong>da</strong>ries, as it seems.<br />

KEY WORDS: Literature for young readers. Detective Story. Marcos Rey. Pedro Bandeira.<br />

O final do século XVIII assistiu ao nascimento <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des industriais, que cresceram<br />

intensamente no século seguinte. O aumento, entre outros fatores, do espaço físico urbano,<br />

dos negócios e <strong>da</strong> população resultou também num maior número de crimes. Nesse contexto,<br />

aparece a narrativa policial, que passa a registrar ficcionalmente a nova reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> urbe.<br />

Para Boileau e Narcejac, começa então “a guerra de astúcia, o duelo entre o Bem e o Mal, que<br />

vai apaixonar um vasto público”:<br />

392


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

[...] há agora um público, graças ao rápido desenvolvimento dos jornais. É a<br />

grande imprensa que criou o “fato do dia”, e o fato do dia, se é em geral<br />

apenas um drama banal (incêndio, acidente, etc.), é também, bastante<br />

frequentemente, o relato de um crime misterioso (assassinato <strong>da</strong> duquesa de<br />

Praslin, Lacenaire, o caso Lafarge, etc.). E esse gênero de relato provoca um<br />

prazer intenso: encanto do mistério, emoção produzi<strong>da</strong> pelo espetáculo <strong>da</strong><br />

infelici<strong>da</strong>de, desejo de justiça, etc. É o momento em que nasce o folhetim,<br />

que põe ao alcance do maior número de pessoas as sombrias tragédias do<br />

teatro romântico. Desde então, o romance policial pertence à atmosfera <strong>da</strong><br />

época. (BOILEAU & NARCEJAC, 1991, p. 15/16)<br />

Nesse sentido, a paisagem urbana torna-se o cenário privilegiado <strong>da</strong>s ações<br />

detetivescas em meio à multidão que possibilita o anonimato do criminoso. Na análise <strong>da</strong><br />

professora Sandra Reimão, a ci<strong>da</strong>de, no entanto, mais do que cenário, torna-se personagem<br />

desse novo tipo de narrativa:<br />

O novo público criado pelos jornais de grande tiragem habita um novo<br />

espaço: as ci<strong>da</strong>des industriais. As ci<strong>da</strong>des industriais, produtos <strong>da</strong> Revolução<br />

Industrial, estarão bastante presentes no romance policial. Logo as primeiras<br />

narrativas policiais localizarão o crime no lugar onde ele aparecerá mais<br />

frequentemente: a ci<strong>da</strong>de. As facha<strong>da</strong>s, as multidões humanas, os labirintos<br />

de ruas serão, quase sempre, personagens mudos constantes nas narrativas<br />

policiais.” (REIMÃO, 1983, p. 13)<br />

Ain<strong>da</strong> hoje a urbe é o espaço característico <strong>da</strong> narrativa policial. Se o século XVIII<br />

assistiu ao seu nascimento em solo estrangeiro, foi no século XX que essa mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

encontrou espaço no catálogo <strong>da</strong>s editoras brasileiras para crescer e se desenvolver. O início<br />

<strong>da</strong> publicação nacional deu-se na déca<strong>da</strong> de 20, quando o jornal A Folha lançou “a primeira<br />

narrativa brasileira francamente policial”, como classificaria Sandra Reimão (REIMÃO,<br />

2005, p. 13). Trata-se de O Mistério, escrito a oito mãos, por Afrânio Peixoto, Coelho Neto,<br />

José Joaquim de Campos <strong>da</strong> Costa de Medeiros e Albuquerque e Viriato Corrêa.<br />

O Brasil esperaria ain<strong>da</strong> três déca<strong>da</strong>s para que a história detetivesca chegasse à<br />

literatura infanto-juvenil. O primeiro nome a dedicar-se ao gênero para o público mirim foi o<br />

de Lúcia Machado de Almei<strong>da</strong>, que, em 1951, lançou o livro Atíria, a borboleta, que, depois,<br />

ganharia o título de O Caso <strong>da</strong> borboleta Atíria. Esta narrativa em tom de fábula, unindo<br />

fantasia e ciência, tinha como tema a morte de Helicônia, noiva do Príncipe Grilo, o Senhor<br />

<strong>da</strong>s Florestas. A tarefa de investigar o caso cabia a Papílio, detetive do bosque, que, na<br />

empreita<strong>da</strong>, contava com a colaboração <strong>da</strong> borboleta.<br />

393


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Mais três déca<strong>da</strong>s e outros dois nomes se consoli<strong>da</strong>riam na narrativa policial infantojuvenil:<br />

Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Donato (1925-1999), e Pedro Bandeira<br />

(1942), que lançariam, respectivamente, O mistério do cinco estrelas (1981) e A droga <strong>da</strong><br />

obediência (1984) e, com os títulos, apresentariam ao público seus detetives mirins, os quais<br />

voltariam a aparecer em outras obras. Em O mistério do cinco estrelas, a turma é composta<br />

por Leonardo Fantini, Ângela e Gino. Já em A droga <strong>da</strong> obediência, o grupo tem cinco<br />

componentes: Miguel, Calu, Magrí, Crânio e Chumbinho, denominados os Karas.<br />

Mas, afinal, em que município brasileiro se passam as histórias Como esses jovens<br />

detetives se relacionam com a urbe Qual a representação de ci<strong>da</strong>de em ca<strong>da</strong> um desses<br />

romances<br />

Antes de responder a essas perguntas, é preciso, no entanto, conhecer o enredo <strong>da</strong>s<br />

narrativas.<br />

A HISTÓRIA DE AMBOS OS ROMANCES<br />

A história de O mistério do cinco estrelas ocorre num hotel (ao qual alude o título),<br />

no bairro <strong>da</strong> Bela Vista, região central <strong>da</strong> capital paulista. No Emperor Park Hotel, trabalha o<br />

bellboy Leo, que, por acaso, encontra o corpo de um homem assassinado em um dos<br />

apartamentos. O morto estava no quarto 222, ocupado por um hóspede rico e respeitado por<br />

suas contribuições a obras sociais, Oto Barcelos, mais conhecido como Barão. Leo avisa seus<br />

superiores sobre o crime, mas o corpo do anão desaparece do apartamento.<br />

Desacreditado e acusado de roubo pelo Barão, o bellboy perde o emprego e passa a<br />

ser procurado pela polícia. A partir desse momento, com a participação <strong>da</strong> amiga Ângela e -<br />

sobretudo - do primo Gino, Leo decide investigar o caso. Nessa empreita<strong>da</strong>, descobrem que o<br />

Barão contava com um aliado dentro do próprio hotel, o funcionário <strong>da</strong> lavanderia Hans Franz<br />

Müller.<br />

Ao tentar provar a ligação do funcionário com o Barão, o bellboy é atraído – por uma<br />

falsa jornalista - para um esconderijo. O garoto desconfia e foge <strong>da</strong>quela que seria uma<br />

tentativa de sequestrá-lo, mas não sem antes reunir informações que aju<strong>da</strong>m a desven<strong>da</strong>r o<br />

crime. Ao final, o Barão é desmascarado e preso por coman<strong>da</strong>r uma quadrilha de tráfico<br />

internacional de drogas.<br />

Já A droga <strong>da</strong> obediência é um romance em que os protagonistas, jovens estu<strong>da</strong>ntes<br />

do Colégio Elite, desven<strong>da</strong>m seu primeiro caso. A ci<strong>da</strong>de de São Paulo enfrenta uma on<strong>da</strong> de<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

sequestros de vários alunos de escolas particulares: em dois meses, 27 estu<strong>da</strong>ntes<br />

desapareceram. Do Colégio Elite sumiu a mais recente vítima. Os jovens detetives,<br />

conhecidos como Karas, decidem, então, fazer uma investigação paralela à <strong>da</strong> polícia e<br />

descobrir quem é o responsável pelos desaparecimentos e também o objetivo dos sequestros.<br />

Os Karas traçam, então, um plano de ação. Depois de uma série de investigações e<br />

deduções, chegam a uma organização criminosa: a empresa Pain Control, que, sob a proposta<br />

de produzir um mecanismo para controlar a dor - idealizado pelo bioquímico Márius<br />

Caspérides - criara a chama<strong>da</strong> droga <strong>da</strong> obediência. O responsável por essa organização é o<br />

Doutor. Q.I., homem ambicioso que deseja formar uma socie<strong>da</strong>de constituí<strong>da</strong> por pessoas<br />

servis e, assim, dominar to<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong>de.<br />

Em síntese, portanto, pode-se afirmar que ambas as histórias se passam em São<br />

Paulo, mas que o modo dos jovens detetives de Rey e Bandeira se relacionarem com a capital<br />

paulista altera e muito a representação de ci<strong>da</strong>de apresenta<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> romance. Mesmo<br />

assim, uma ressalva se faz necessária, nos dois títulos, não é apenas a disposição geográfica<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de que surge, mas sim uma cartografia social.<br />

A SÃO PAULO DE O MISTÉRIO DO CINCO ESTRELAS<br />

A São Paulo ficcional de O mistério do cinco estrelas revela-se como paisagem<br />

urbana muito próxima à ci<strong>da</strong>de real. Além do bairro <strong>da</strong> Bela Vista, também conhecido como<br />

Bexiga, há outras sete menções significativas à geografia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de:<br />

• Bela Vista (Bexiga) = casa <strong>da</strong> família de Leo, <strong>da</strong> tia Zula, do amigo Guima. O bairro<br />

serve como cenário <strong>da</strong> residência <strong>da</strong>s personagens e também como esconderijo do<br />

bellboy quando ameaçado;<br />

• Morro dos Ingleses = região mais nobre <strong>da</strong> Bela Vista e menos característica do bairro<br />

italiano em que mora a personagem Ângela e que, em <strong>da</strong>do momento do romance,<br />

torna-se esconderijo de Leo;<br />

• Praça <strong>da</strong> República = é o local de trabalho de pai de Leo, artesão na feirinha <strong>da</strong> região;<br />

• Proximi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Aveni<strong>da</strong> Paulista = trata-se <strong>da</strong> locali<strong>da</strong>de em que está o hotel;<br />

• rio Tietê = onde ocorre a desova do corpo do anão;<br />

• rua Vitória (centro) = endereço do Hotel Acapulco, esconderijo de um dos bandidos;<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

• Alame<strong>da</strong> Barão de Almei<strong>da</strong> = local na qual se encontra com a falsa jornalista que será<br />

responsável pela tentativa de sequestro do mensageiro;<br />

• represa Billings = lugar em que acontece a tentativa de sequestro de Leo.<br />

Vê-se, assim, que, com exceção <strong>da</strong> Praça <strong>da</strong> República, todos os demais locais <strong>da</strong><br />

urbe mencionados no romance se constituem cenário propício para a concretização do crime<br />

ou para as suas consequências. Do hotel à repressa, Marcos Rey faz uso de lugares reais para<br />

situar as ações <strong>da</strong>s personagens, estabelecendo uma interação entre a ci<strong>da</strong>de e seu romance<br />

policial. Contudo, deve-se destacar que as referências espaciais diluí<strong>da</strong>s na narração não se<br />

limitam ao papel de concentrar o movimento <strong>da</strong>s personagens. Na ver<strong>da</strong>de, em O mistério do<br />

cinco estrelas, o espaço tem ain<strong>da</strong> como função marcar uma leitura de mundo do autor,<br />

expressa pela tensão social entre ricos e pobres.<br />

Afinal, dois dos protagonistas de O mistério do cinco estrelas são de classe média<br />

baixa. Gino é morador do Bexiga. Com 20 anos de i<strong>da</strong>de, ele vive “numa <strong>da</strong>s menores e mais<br />

antigas casas” <strong>da</strong> região, apenas com a mãe Zula, cozinheira de uma cantina. Leo, o herói de<br />

Marcos Rey, também é um jovem de classe média baixa, com 16 anos de i<strong>da</strong>de e morador do<br />

mesmo bairro, numa “casa muito velha”. Sua rotina é trabalhar como bellboy, isto é,<br />

mensageiro no Emperor Park Hotel <strong>da</strong>s 8h às 18h, jantar em casa rapi<strong>da</strong>mente e, então, correr<br />

para a escola noturna. A família, de origem italiana, é composta pelos pais, Rafael e Iolan<strong>da</strong>, o<br />

irmão Diogo, de 12 anos, e o avô, o nono Pascoal. O pai é artesão, a mãe, ex-funcionária de<br />

cantina, trabalha como dona-de-casa, e o avô aju<strong>da</strong> Seu Rafael a esculpir peças em madeira<br />

para a feira “hippie” <strong>da</strong> Praça <strong>da</strong> República.<br />

Deve-se destacar que o autor associa o bandido à classe social a que pertence, não<br />

simplesmente por ser rico, mas por este motivo garantir regalias contra quem lutará, ou seja,<br />

um dos hóspedes mais ricos do hotel Emperor, poucas vezes identificado pelo nome (Oto<br />

Barcelos), sendo chamado, na maior parte <strong>da</strong> obra, por meio do título Barão.<br />

Num país republicano como o Brasil, cujas classes dominantes talvez alimentem<br />

ain<strong>da</strong> a herança aristocrática de sua gênese, à denominação “Barão” acrescenta-se um rosário<br />

de quali<strong>da</strong>des geralmente atribuídos à elite. Segundo o livro, o Barão é conhecido benemérito,<br />

pois “protetor de inúmeras instituições assistenciais”. O suspense <strong>da</strong> história repousa,<br />

inclusive, sobre a tradição brasileira de que sobre “barões” não pesam as acusações, sobretudo<br />

quando feitas por alguém socialmente desfavorecido como Leo.<br />

396


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A esta altura, é preciso mencionar a epígrafe constante <strong>da</strong>s primeiras 20 edições do<br />

livro, publica<strong>da</strong>s pela Editora Ática, que desapareceu quando a obra, a partir <strong>da</strong> 21ª edição,<br />

passou para a Editora Global, em 2005. Dizia a epígrafe:<br />

É a história de dum Davi contra um Golias. O pequeno Davi <strong>da</strong> Bíblia<br />

venceu o gigante Golias apenas com uma pedra e uma fun<strong>da</strong>. Mas há outros<br />

meios de se derrubar grandes obstáculos. A persistência não é o mais prático<br />

mas talvez seja de todos o mais eficiente. (REY, 1993, p. 5)<br />

O Barão de O mistério do cinco estrelas pode ser equiparado ao Golias bíblico sob<br />

três aspectos: o físico, o econômico e o social. Do ponto de vista físico, Barão é gordo,<br />

grande. No que se refere ao aspecto econômico, ele era um dos homens mais ricos do hotel.<br />

Para completar, em virtude de sua posição econômica, tinha ramificações pela socie<strong>da</strong>de que<br />

lhe garantiam prestígio e até mesmo poder.<br />

“- Sou o delegado Arru<strong>da</strong>, Barão”.<br />

O hóspede do 222 sorriu.<br />

“- Barão é apelido devido à minha gordura.<br />

- E à nobreza de seu coração – acrescentou o delegado.<br />

- Recebi seu recado, mas não precisava vir. Eu iria à delegacia com todo o<br />

prazer...” (REY, 2005, p. 46)<br />

Em linguagem política contemporânea, a blin<strong>da</strong>gem de uma figura como o Barão é<br />

de tal ordem que o delegado vai ao seu encontro e não o contrário. Antes, o amigo de Leo no<br />

hotel, Guima, ao saber <strong>da</strong>s investigações do protagonista sobre o ricaço, afirma: “O Barão é<br />

rico, forte como um encouraçado, afaste-se dele”.<br />

A única personagem <strong>da</strong> classe alta entre os protagonistas de O mistério do cinco<br />

estrelas é Ângela, amiga de Leo e alvo <strong>da</strong> paixão do rapaz. Mas a relação dos dois, na<br />

ver<strong>da</strong>de, reforça a já cita<strong>da</strong> tensão que havia entre Leo e o Barão. No caso do bellboy e de<br />

Ângela, a tensão ganha nítidos contornos de conflito social. A garota é moradora do Morro<br />

dos Ingleses, área mais nobre <strong>da</strong> região do Bexiga, por isso a família dela, de acordo com o<br />

narrador, dificilmente aceitará o namoro. Da mesma forma, a possível atração do herói por<br />

Ângela não é bem vista pela família dele.<br />

A família to<strong>da</strong> sabia <strong>da</strong> gamação de Leo por Ângela. Mas Rafa e Iolan<strong>da</strong>,<br />

Iolan<strong>da</strong> mais que Rafa, condenavam esse quase-namoro porque os<br />

moradores do Morro dos Ingleses pertenciam a outra classe social, eram<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

mais grã-finos, e quando há essa diferença entre namorados, nunca dá certo.<br />

(REY, 2005, p. 16)<br />

Na reali<strong>da</strong>de, as diferenças sociais que vão marcar a narrativa surgem logo no início<br />

do livro, quando o narrador não se furta a destacar a distância entre o bellboy e os hóspedes do<br />

Emperor, dizendo que Leo ficara deslumbrado, pois, “no seu mundo <strong>da</strong> Bela Vista (...) jamais<br />

pisara num ambiente tão bonito, moderno e fofo”. Logo depois, afirma:<br />

Não era no proletário subsolo que o rapaz <strong>da</strong> Bela Vista encontrava<br />

satisfações e interesses. Gostava de vagar pelo saguão, sempre cheio de<br />

hóspedes que chegavam ou partiam, numa confusão de malas, rótulos e<br />

idiomas, de espiar a piscina, no quarto an<strong>da</strong>r, com suas águas muito<br />

clora<strong>da</strong>s, dum verde para ricos, o restaurante, com seus odores caprichados,<br />

a luxuosa boate, o imponente salão de convenções, o tropical garden,<br />

pequena floresta onde serviam gelados e sanduíches, a sauna, que vendia<br />

calor e fumaça, a quadra de shopping, com suas lojas sofistica<strong>da</strong>s, e no alto,<br />

lá em cima, o belo terraço, coisa de cinema, com pista de <strong>da</strong>nça, solário e um<br />

mirante envidraçado para se ver São Paulo inteira, à luz do sul, elétrica ou de<br />

vela em jantares e ocasiões especiais. (REY, 2005, p. 8)<br />

Nota-se no trecho acima uma espetacular figurativização relaciona<strong>da</strong> a diferentes<br />

classes sociais, cujas diferenças parecem cifrar-se em diferentes planos do texto: nele,<br />

destacam-se termos como: “rótulos”, “ricos”, “luxuosa boate”, “odores caprichados”,<br />

“imponente salão”, “tropical garden” e “lojas sofistica<strong>da</strong>s”, que remetem à classe mais alta.<br />

Nota-se ain<strong>da</strong> que o parágrafo tem início ligando o mensageiro ao ”proletário subsolo” -<br />

literalmente em posição inferior - em oposição ao final do parágrafo que menciona o acesso<br />

dos mais ricos ao “alto, lá em cima, o belo terraço”.<br />

Nesta disposição geográfica do “alto” e do “baixo”, o leitor pode ler não apenas a<br />

cartografia do hotel, mas, talvez, uma cartografia social, que, aliás, já apareceria também em<br />

outro romance juvenil Bem-vindos ao Rio (1987), no qual Marcos Rey faz uma leitura similar<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de - embora de cunho mais pessimista - na epígrafe. Diz ele logo no início do livro:<br />

“Há dois mundos, o de cima e o de baixo. Quem vive no de cima pode, por curiosi<strong>da</strong>de ou<br />

acidente, conhecer o outro. Mas os que estão no de baixo só através do sonho viajam para o<br />

de cima”.<br />

Em O mistério do cinco estrelas, essa visão de mundo parece sanciona<strong>da</strong> pelo<br />

narrador quando ele diz também que a maioria dos hóspedes do Emperor, a exemplo do<br />

próprio hotel,“parecia ter cinco estrelas estampa<strong>da</strong>s na testa: gente importante...” Além disso,<br />

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A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

o próprio nome do hotel incorpora-se a esta cobertura figurativa, já que Emperor, em inglês,<br />

quer dizer Imperador.<br />

Sob essa perspectiva, o espaço do hotel não serve apenas como lugar físico <strong>da</strong>s ações<br />

<strong>da</strong> história. Na ver<strong>da</strong>de, em contraste à personagem principal do romance, ele serve para<br />

enfatizar a luta do bellboy contra uma locali<strong>da</strong>de que lhe é adversa por natureza. Primeiro,<br />

adversa porque não é seu mundo. Ele não pertence efetivamente àquele lugar, apenas serve<br />

lá, é um funcionário que faz parte <strong>da</strong> estrutura organizacional. Depois, porque o hotel passa a<br />

simbolizar o poder que não só desqualifica a credibili<strong>da</strong>de de sua acusação contra o Barão,<br />

como também mostra ser um império que impõe sua vontade, a ponto de man<strong>da</strong>r Leo embora<br />

e impedir a sua entra<strong>da</strong> local em virtude <strong>da</strong> denúncia de roubo feita por um morador poderoso,<br />

o próprio Barão. Ao final do romance, mesmo preso, é o Barão quem, dessa vez, não se<br />

intimi<strong>da</strong> e nega as acusações, atribuindo sua prisão “a um lamentável equívoco que um dia<br />

seria esclarecido. (REY, 2005, p. 124)<br />

SÃO PAULO EM A DROGA DA OBEDIÊNCIA<br />

Em A droga <strong>da</strong> obediência, São Paulo manifesta-se no romance, primeiro, pela<br />

citação de colégios reais <strong>da</strong> elite paulistana que existem ou já existiram como Dante Alighieri,<br />

Vera Cruz e Equipe. Mas há também a menção explícita de oito regiões <strong>da</strong> capital paulista ou<br />

de seu entorno, sem contar eventuais repetições:<br />

• Praça do Patriarca, ruas <strong>da</strong> Quitan<strong>da</strong> e XV de Novembro (centro) = local de fuga do<br />

personagem Márius Caspérides;<br />

• Taboão <strong>da</strong> Serra = ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Grande São Paulo, local de desova do corpo de um dos<br />

meninos sequestrados;<br />

• Jardins, Morumbi e Moema = três dos bairros citados nominalmente em que se<br />

localizam os colégios dos meninos sequestrados;<br />

• Vila Mariana = bairro em que se localiza a casa de um dos jovens sequestrados;<br />

• Aveni<strong>da</strong> São João, ruas Barão de Itapetininga, Dom José de Barros e Conselheiro<br />

Crispiniano (centro) = locais de dois encontros às escondi<strong>da</strong>s dos Karas;<br />

• Rua Teodoro Sampaio com Aveni<strong>da</strong> Doutor Arnaldo = sede do Instituto Médico<br />

Legal;<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

• Aveni<strong>da</strong> Rebouças = cita<strong>da</strong> apenas como rota de fuga <strong>da</strong> quadrilha durante um dos<br />

sequestros;<br />

• Itaquera = bairro <strong>da</strong> periferia de São Paulo citado como local de transferência como<br />

possível punição a um policial <strong>da</strong> narrativa;<br />

• Zoológico (zona sul) = local de passeio dos Karas ao final do livro, após a conclusão<br />

do caso.<br />

Apesar de número de menções em A droga <strong>da</strong> obediência se equiparar às ocorrências<br />

de O mistério do cinco estrelas, a São Paulo de Pedro Bandeira parece criar no leitor um<br />

efeito mais universalizante e menos particularizado em relação à obra de Marcos Rey. Duas<br />

interpretações podem explicar esse efeito.A primeira baseia-se na percepção de que o Bexiga<br />

de Rey é por si só um bairro muito característico <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de por abrigar a colônia de imigrantes<br />

italianos. A segun<strong>da</strong>, de caráter mais acentuado, decorre <strong>da</strong> primeira. Marcos Rey concentra a<br />

maior parte <strong>da</strong> narrativa no bairro e apresenta descrições <strong>da</strong> região e de sua gente. Bandeira,<br />

por outro lado, pouco descreve e, assim, sua São Paulo serve mais como cenário, ganhando<br />

contornos cosmopolitas e globalizantes, nem melhor nem pior, mais diferente de Rey.<br />

Além disso, se a principal personagem de O mistério do cinco estrelas pertence à<br />

classe média baixa e luta contra um integrante <strong>da</strong> classe alta, os Os Karas de A droga <strong>da</strong><br />

obediência são ricos, como evidencia o próprio nome do colégio em que estu<strong>da</strong>m, Elite, o que<br />

reafirma a identi<strong>da</strong>de social <strong>da</strong>s personagens, situando-as nas condições e no mundo em que<br />

vivem. Entretanto, nesse romance, ao contrário do que ocorre na narrativa de Marcos Rey,<br />

não há tensão social, conflito com outra classe ou qualquer crítica contudente à desigual<strong>da</strong>de<br />

do país. O discurso sobre o assunto, quando há, parece ser apenas de constatação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de:<br />

Era hora de saí<strong>da</strong> do trabalho, e o ônibus estava lotado de pessoas cansa<strong>da</strong>s,<br />

sua<strong>da</strong>s, ansiosas por chegar em casa a tempo de assistir à novela <strong>da</strong>s oito.<br />

Rapazinho rico, como todos do Colégio Elite, Miguel estava pouco<br />

acostumado a an<strong>da</strong>r de ônibus, mas, misturado àquela multidão de<br />

trabalhadores, bem podia passar por um office-boy voltando para casa. O<br />

ônibus era a melhor maneira de esconder-se <strong>da</strong> polícia. (BANDEIRA, 2005,<br />

p. 50)<br />

Ou pelo menos de um teor crítico mais sutil: “Lá, eles (os Karas) tinham certeza de<br />

não encontrar nenhum conhecido: a classe alta não frequenta a aveni<strong>da</strong> São João”<br />

(BANDEIRA, 2005, p. 107), diz o narrador em certa passagem.<br />

400


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Entretanto, assim como em O mistério do cinco estrelas, A droga <strong>da</strong> obediência faz<br />

do espaço urbano local privilegiado para que os bandidos cometam os seus crimes e os<br />

mocinhos sigam as pistas, se escon<strong>da</strong>m quando necessário e, ao final, desven<strong>da</strong>m o enigma,<br />

elemento central dos romances policiais.<br />

CONCLUSÃO<br />

Enquanto Marcos Rey exibe uma São Paulo em seus altos e baixos, em que se<br />

contrastam as classes mais e menos privilegia<strong>da</strong>s, Bandeira mostra privilegia o universo dos<br />

mais ricos paulistanos que estu<strong>da</strong>m num colégio cujo nome é Elite.<br />

No entanto, socialmente mais ou menos heterogênea, a ci<strong>da</strong>de revela-se propícia a<br />

crimes e enigmas, já que ambos os romances policiais fazem emergir a cartografia <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />

não apenas a demarca<strong>da</strong> por espaços geográficos, mas também por supostos limites sociais.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BANDEIRA, Pedro. A droga <strong>da</strong> obediência. 3ª edição/186ª impressão, São Paulo, Ática,<br />

2003.<br />

BOILEAU, Pierre & NARCEJAC, Thomas. O romance policial. São Paulo, Ática, 1991.<br />

REIMÃO, Sandra Lúcia. O que é romance policial. 2ª edição, São Paulo, Brasiliense, sem<br />

<strong>da</strong>ta.<br />

REY, Marcos. Bem-vindos ao Rio. 7ª edição/4ª impressão, São Paulo, Ática, 2003.<br />

_________. O mistério do cinco estrelas. São Paulo, Global, 2005.<br />

401


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Literatura no cinema: uma reflexão acerca <strong>da</strong><br />

a<strong>da</strong>ptação <strong>da</strong> obra O iluminado, de Stephen King<br />

SOUZA, Laís Brancalhão (FEMA)<br />

FERREIRA, Eliane Apareci<strong>da</strong> Galvão Ribeiro (<strong>UNESP</strong>/<strong>Assis</strong> - FEMA)<br />

RESUMO: Este texto tem por objetivo apresentar uma análise do processo de a<strong>da</strong>ptação<br />

para o cinema <strong>da</strong> obra O iluminado, do escritor americano Stephen King (1947-), escrita em<br />

1977. Durante a análise, buscamos verificar se a narrativa, uma vez transposta para o cinema,<br />

perdeu seu conteúdo. Mais especificamente, objetivamos descrever o processo de<br />

transposição <strong>da</strong> obra homônima para o cinema, com o filme lançado em 1980, pelas mãos do<br />

diretor Stanley Kulbrick. Justifica-se a eleição desta obra, pois seu enredo apresenta uma<br />

surpreendente história de mistério e terror em que a solução só será apresenta<strong>da</strong> ao desfecho<br />

<strong>da</strong> narrativa. Para a consecução do objetivo de apresentar uma análise comparativa entre<br />

narrativa textual e filmica, faremos uso dos pressupostos do estruturalismo, considerando os<br />

seguintes elementos <strong>da</strong>s narrativas, tanto de King quanto de Kulbrick: enredo, espaço, tempo,<br />

personagens, focalização, narrador.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Narrativa; a<strong>da</strong>ptação; cinema; trama.<br />

ABSTRACT: This paper aims to present an analysis of the process of the film a<strong>da</strong>ptation of<br />

the book The Shining, by American writer Stephen King (1947 -), written in 1977. During the<br />

analysis, we seek to verify if the story, once transposed into the cinema has lost its contents.<br />

More specifically, we describe the implementation process of the work for the eponymous<br />

film, with the film released in 1980, by director Stanley Kulbrick. We have chosen this work<br />

because its plot has an amazing story of mystery and terror and the only solution will be<br />

presented in the outcome of the narrative. To achieve the goal of presenting a comparative<br />

analysis of textual and filmic narrative, we will use the assumptions of structuralism,<br />

considering the following elements of both narratives: storyline, space, time, characters,<br />

focus, narrator.<br />

KEYWORDS: Narrative; a<strong>da</strong>ptation; cinema; plot.<br />

INTRODUÇÃO<br />

Escrito em 1977, o livro O iluminado, do escritor americano Stephen King, teve sua<br />

primeira a<strong>da</strong>ptação para o cinema em 1980.<br />

O enredo elaborado por King revelou-se atraente tanto para leitores <strong>da</strong> época, como<br />

para os contemporâneos, essa atração advém do risco de morte que o espaço pautado pelo<br />

sobrenatural impõe às personagens. Conforme José Paulo Paes (1990, p.19), retomando<br />

Jankélévitch, esse risco confere à narrativa uma paradoxal carga de atração e de repulsão,<br />

tanto para a personagem quanto para o leitor. Para o autor, o par antitético “atração x<br />

402


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

repulsão” tem raízes fun<strong>da</strong>s na psique humana, já que o homem anseia por fazer o que mais<br />

teme. Mas, como não pode, na vi<strong>da</strong> real, satisfazer seus anseios, o protagonista enfrenta a um<br />

passo <strong>da</strong> morte por ele e para ele as situações mais arrisca<strong>da</strong>s. Ora, testemunhar a personagem<br />

enfrentar a morte produz tanto prazer no leitor, quanto vê-lo escapar dela no último momento.<br />

A obra trata de temas perturbadores para a época em que foi escrita e para a<br />

contemporanei<strong>da</strong>de, como o alcoolismo, a violência contra o menor e a mulher. Insere-se no<br />

gênero detetivesco, pelo viés do terror, pois apresenta características advin<strong>da</strong>s deste gênero,<br />

como cenas de mistério, mortes e descrições que criam um ambiente assustador aos olhos do<br />

leitor. Já o filme apareceu pela primeira vez, sob direção de Stanley Kulbrick, em 1980.<br />

Objetiva-se, neste texto, apresentar uma análise comparativa entre a narrativa textual,<br />

presente na obra O iluminado, de King, e a fílmica, sob direção de Kulbrick. Para tanto,<br />

fizemos uso dos pressupostos do estruturalismo, conforme os apresenta Vitor Manuel de<br />

Aguiar e Silva (1993), considerando os seguintes elementos narrativos presentes em ambas:<br />

enredo, espaço, tempo, personagens, focalização, narrador. Trabalhamos, então, com o<br />

conjunto de operadores de leitura <strong>da</strong> narrativa e do texto fílmico.<br />

Durante esta análise, procuraremos observar se, na transposição <strong>da</strong> narrativa verbal<br />

para a audiovisual, houve per<strong>da</strong> de conteúdo.<br />

A eleição <strong>da</strong> obra de King deveu-se ao fato de seu enredo apresentar uma<br />

surpreendente história de mistério e terror em que a solução só aparece no desfecho <strong>da</strong><br />

narrativa. Constrói-se neste texto a hipótese de que a a<strong>da</strong>ptação realiza<strong>da</strong> por Kulbrick,<br />

embora tenha sido considera<strong>da</strong> um de seus grandes trabalhos, desconfigurou em parte o<br />

enredo. Essa desconfiguração deveu-se à esquematização <strong>da</strong> trama, com redução de<br />

personagens, redução dos caracteres a uma psicologia clara e per<strong>da</strong> <strong>da</strong> essência do caráter de<br />

enigma a ser desven<strong>da</strong>do, próprio <strong>da</strong> narrativa. Houve, então, uma vulgarização que resultou<br />

em um filme, cuja linguagem está volta<strong>da</strong> para o grande público, pois se apresenta<br />

simplifica<strong>da</strong>. Vale destacar que essa a<strong>da</strong>ptação teve como ideal atingir o maior número<br />

possível de espectadores, o que justifica a simplificação, pois, conforme Edgar Morin, esses<br />

processos eliminam o que poderia ser dificilmente inteligível para a massa dos espectadores<br />

(1977, p.54). Assim, polariza-se o antagonismo entre o bem e o mal; acentuam-se traços<br />

simpáticos e/ou antipáticos, “[...] a fim de aumentar a participação afetiva do espectador, tanto<br />

no seu apego pelos heróis, como na sua repulsa pelos maus.” (1977, p. 55). Esses elementos<br />

servem para “aclimatar” as obras à cultura de massa, ou seja, para torná-las mais facilmente<br />

consumíveis.<br />

403


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

COMPARAÇÃO ENTRE NARRAT<strong>IV</strong>A VERBAL E NÃO-VERBAL<br />

A a<strong>da</strong>ptação em questão foi dirigi<strong>da</strong> pelo cultuado diretor Stanley Kubrick e tornouse<br />

um ícone do cinema na déca<strong>da</strong> de 1980. Contudo, nesta a<strong>da</strong>ptação, muito se perdeu do teor<br />

detetivesco <strong>da</strong> história. Kubrick efetuou cortes que fizeram com que a obra de King perdesse<br />

certo sentido, tais como o acidente de Danny e a demissão de Jack Torrance. No que se refere<br />

aos elementos sobrenaturais e à investigação, logo que transposta para o cinema, a obra<br />

perdeu esse cunho.<br />

Em seu romance O Iluminado, Stephen King mais uma vez lança mão de ferramentas<br />

modernas do gênero de terror. Deixando para trás monstros do século XIX, como os vampiros<br />

e as criaturas frankensteinianas. Assim, apresenta ao leitor uma família americana moderna<br />

em um cenário que mistura a velha imagem do castelo na montanha, o imponente e lúgubre<br />

Overlook Hotel, com suas ilusões sangrentas.<br />

Em sua controversa a<strong>da</strong>ptação do romance de King para a grande tela, o cineasta<br />

Stanley Kubrick ignora os elementos psicológicos do texto original, tais como o conflito<br />

interno de Jack Torrance, a autonomia de Wendy e as capaci<strong>da</strong>des sensitivas de Danny.<br />

A seguir, apresentamos o confronto entre as duas narrativas, verbal e não-verbal,<br />

distribuído em categorias.<br />

ENREDO<br />

O protagonista Jack Torrance é um ex-professor que procura sossego, pois tem em<br />

mente uma ideia; escrever um livro. Ele, então, encontra um emprego que julga ser ideal, pois<br />

tranquilo, como zelador do Hotel Overlook no período de inverno. Neste espaço, ele e sua<br />

esposa e filho sabem que ficarão completamente isolados durante cinco meses.<br />

O filho de Jack, Danny, não é um garoto comum, pois consegue pressentir as coisas,<br />

entendê-las. É o que Dick Halloran, o cozinheiro do hotel, chama de Iluminado. Dick avisa a<br />

Danny que o hotel carrega algumas marcas não muito boas. Coisas ruins já aconteceram por<br />

ali e ele acredita que Danny pode vê-las, mas o conforta dizendo que elas não podem<br />

machucá-lo. Porém, ao ficar isolado, preso pela neve no grande hotel, Danny é levado a<br />

acreditar que Dick estava errado. O hotel pode sim machucá-lo e é capaz de tudo para fazê-lo,<br />

inclusive, usar o seu próprio pai para realizar o trabalho.<br />

404


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Contudo, o que vemos na a<strong>da</strong>ptação desta obra, é algo muito vago. A a<strong>da</strong>ptação de<br />

Stanley Kubrick sofreu cortes desnecessários de roteiro, o que fez com que a obra em questão<br />

perdesse sua essência, tal como seu conteúdo. O maior exemplo disso é o “acidente” com<br />

Danny que, de fato, fora um espancamento realizado pelo pai e aparece no texto verbal. Neste<br />

ato insano, Jack torna-se furioso ao notar que o filho, de apenas três anos, entornara cerveja<br />

em to<strong>da</strong>s as páginas que escrevera. O pai sente que uma nuvem vermelha de fúria tomou<br />

conta de sua razão. Em segui<strong>da</strong>, tudo se processa de forma vagarosa como se fosse um<br />

pesadelo. Ele se dirige à criança, agarra sua mão dobrado-a para fazê-lo largar a borracha <strong>da</strong><br />

máquina de escrever e a lapiseira. Após rodopiar o menino, ouve o estalar do osso quebrado.<br />

Esse episódio, embora seja enfatizado em diversos capítulos do livro, no filme não o<br />

vemos em momento algum, fazendo assim, com que os conflitos psicológicos dos<br />

personagens ficassem perdidos em meio ao enredo. O fato de quebrar o braço do filho<br />

enquanto estava bêbado demonstra a fraqueza e a confusão psicológica pela qual passa o<br />

personagem de Jack. Uma vez este episódio retirado do roteiro, a história perde uma de suas<br />

bases de sustentação: a vulnerabili<strong>da</strong>de de Jack Torrance.<br />

Outro ponto importantíssimo e erroneamente retirado do roteiro refere-se às<br />

características que revelam a maturi<strong>da</strong>de de Danny. No livro, o menino é descrito como sendo<br />

muito maduro para seus cinco anos, já no filme, vemos um garoto assustado e pouco<br />

expressivo. Uma passagem que descreve esta maturi<strong>da</strong>de de maturi<strong>da</strong>de maneira muito clara,<br />

se <strong>da</strong> quando o menino demonstra grande preocupação com a mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> família par ao<br />

Overlook Hotel, Danny tenta por diversas alertar a mãe sobre os perigos que o lugar oferece.<br />

Danny também apresenta um vocabulário altamente desenvolvido.<br />

ESPAÇOS<br />

A história tem a grande maioria de suas passagens no grande Hotel Overlook. Este<br />

hotel é apresentado no livro como algo imponente, porem sóbrio e cheio de segredos. Sua<br />

decoração é descrita como algo muito imponente e advin<strong>da</strong> de várias épocas. Vários<br />

assassinatos aconteceram durante sua história e esses crimes continuaram ecoando pelos<br />

corredores do hotel com a passar do tempo. No livro, o lugar é descrito de forma a levar o<br />

leitor a imaginar uma construção muito grande, porém aconchegante. Já o que vemos no filme<br />

é um prédio imenso, porém frio e sombrio.<br />

405


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

Kubrick, nas toma<strong>da</strong>s do espaço, fez uso de cores fortes e quentes que destoam<br />

totalmente <strong>da</strong> descrição <strong>da</strong> obra literária e <strong>da</strong>s tonali<strong>da</strong>des usa<strong>da</strong>s em filmes de terror. O uso<br />

constante de formas geométricas, de alguma forma, tira a atenção de espectador e em algumas<br />

cenas causa efeitos vertiginosos, tirando assim o foco <strong>da</strong> cena.<br />

TEMPO<br />

A história de Stephen King é narra<strong>da</strong> de forma linear e há predomínio do tempo<br />

cronológico. A história tem seu início justamente quando conhecemos um de seus<br />

personagens principais. Embora existam analepses, retoma<strong>da</strong>s, que explicam determinados<br />

eventos do passado, predomina a ordem cronológica.<br />

No filme não é diferente. Contudo, não há flashbacks no enredo para explicar ações<br />

passa<strong>da</strong>s. Logo, o espectador não tem uma noção muito clara de determinados diálogos ou<br />

ações, sendo assim, não há intensi<strong>da</strong>de nos acontecimentos.<br />

PERSONAGENS<br />

No livro em questão, o protagonista é Danny Torrance, descrito pelo narrador como<br />

um menino maduro para seus cinco anos. É ele quem prevê os acontecimentos e tenta poupar<br />

seus pais do que virá a acontecer. To<strong>da</strong> a história se desenrola em torno do menino, que está<br />

envolvido em praticamente todos os acontecimentos relacionados aos problemas <strong>da</strong> família,<br />

tanto antes, quanto durante a esta<strong>da</strong> no Hotel Overlook. Compreendemos todos os conflitos <strong>da</strong><br />

história através do olhar de Danny Torrance.<br />

Jack é um personagem secundário que ganha importância ao longo <strong>da</strong> trama,<br />

conforme são apresentados ao leitor seus dramas e conflitos internos, assim como Wendy que<br />

é ti<strong>da</strong> como o pilar de sustentação <strong>da</strong> família Torrance. Ela, embora não tenha grande brilho<br />

na trama, é de suma importância para o desenrolar dos fatos.<br />

Já na obra de Kubrick, o foco é voltado totalmente para Jack, que é apresentado<br />

desde o início <strong>da</strong> trama como um psicopata em potencial que pouco se importa com sua<br />

família. Danny passa a ser um coadjuvante, uma espécie de âncora para as ações de Jack.<br />

Quase não há falas de Danny e suas ações são extremamente infantis, até mesmo para um<br />

menino de cinco anos. Já Wendy é mostra<strong>da</strong> como uma mulher submissa e inexpressiva, sem<br />

importância alguma para o enredo.<br />

406


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

NARRADOR<br />

O livro de Stephen King é narrado em terceira pessoa. O acesso do leitor aos<br />

acontecimentos é feito de forma ampla, pois o narrador é onisciente e onipresente. Ele tudo<br />

sabe e vê, permitindo ao leitor obter uma visão de todos os atos dos personagens, bem como<br />

de seus conflitos tanto internos, quanto externos. No filme não é diferente, a câmera também é<br />

observadora, tudo mostra, detalha e comenta para o espectador.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Pelo exposto, pudemos notar que é váli<strong>da</strong> a hipótese que se constrói neste texto de<br />

que a obra de Stephen King perdeu seu cunho original. Não vemos em sua a<strong>da</strong>ptação fílmica a<br />

mesma riqueza de detalhes e personagens <strong>da</strong> obra literária.<br />

Os cortes efetuados em seu roteiro subtraíram dos personagens a personali<strong>da</strong>de e os<br />

conflitos psicológicos que seriam de grande importância para o entendimento <strong>da</strong> obra. Esses<br />

cortes fizeram falha a obra fílmica. Um filme que usa cores para distrair o espectador e sangue<br />

artificial para tapar lacunas psicológicas de personagens que deveriam ser complexos.<br />

Embora seja um ícone do cinema de horror, O Iluminado não é considerado um bom<br />

filme. Segundo o site oficial de Stephen King (www.stephenking.com), o filme recebeu<br />

prêmios de pior roteiro, pior direção e pior atriz pela interpretação de Sheley Duval (Wendy),<br />

o que desapontou King. Estes fatos levaram o escritor a custear a produção de uma minissérie<br />

em 1997 que, segundo King, contou sua história como ela realmente é.<br />

Sendo assim, concluímos que, embora precise de cortes, não seria necessário que<br />

Kubrick deixasse de lado as personali<strong>da</strong>des dos personagens, já que estas traziam conteúdo à<br />

história. Logo, Kubrick transformou uma obra rica em conflitos em um filme altamente vazio<br />

de conteúdo.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

KING, Stephen. O iluminado. Disponível em:<br />

. Acesso em: 12 jul. 2012.<br />

407


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 13-<br />

85.<br />

PAES, José Paulo. A aventura literária. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1990.<br />

The shining (filme). O iluminado. Dir. Stanley Kubrick. Estados Unidos <strong>da</strong> América, 1980.<br />

2h22min, color., son., v. o. inglês, leg. português.<br />

SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria <strong>da</strong> literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 1993. vol.1.<br />

408


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A Rosa rechea<strong>da</strong> de vermes: uma comparação entre Carlo Ginzburg e Umberto Eco, sobre a<br />

narrativa policial histórica.<br />

ZOCARATO, Clayton Alexandre (UNICEP/SP)<br />

RESUMO: Umberto Eco e Carlo Ginzburg estão intrinsecamente ligados à “micro-história”,<br />

principalmente em suas contribuições para uma compreensão <strong>da</strong>s ações do Tribunal do Santo<br />

Ofício, tendo como ambiente a Itália do período Medieval e Renascentista. Em O Queijo e os<br />

Vermes (1976), Ginzburg propõe uma ruptura entre o tradicionalismo dos “grandes temas”,<br />

enfocando uma análise historiográfica volta<strong>da</strong> para um espaço de ação dos “excluídos <strong>da</strong><br />

história”, abor<strong>da</strong>ndo as práticas <strong>da</strong> Inquisição centraliza<strong>da</strong>s na arregimentação de controle <strong>da</strong>s<br />

“classes sociais baixas do clero” e fazendo uma literatura de testemunho em torno <strong>da</strong> figura de<br />

Domenico Scandella (vulgo “Menocchio”, com a ativi<strong>da</strong>de trabalhista de “moleiro”), acusado<br />

de heresias e de blasfemar contra a “Igreja de Roma”. Já em O Nome <strong>da</strong> Rosa (1983), Eco<br />

son<strong>da</strong> o “inconsciente coletivo” de um catolicismo laureado pelo poder acalentador <strong>da</strong><br />

“doutrina beneditina”, em choque com uma contestação social “franciscana” dentro do corpo<br />

estrutural de formação ideológica clerical, agigantado de sortilégios de teofanias propagados<br />

pelos Inquisidores. Os dois livros são narrados em um espaço literário de mais de 250 anos de<br />

diferença (Eco, narra a história de Adso de Melk em 1327 e Ginzburg com o processo de<br />

Mennochio entre 1583 e 1601), to<strong>da</strong>via contêm pontos nevrálgicos de similari<strong>da</strong>des, com uma<br />

estética verbal pleitea<strong>da</strong> de contradições filosóficas que culmina num apetite de<br />

estabelecimento de um status quo propagandístico manipulativo através <strong>da</strong> avidez <strong>da</strong><br />

perplexi<strong>da</strong>de áspera <strong>da</strong> excomunhão e do terror de torturas físicas, fazendo uma extremi<strong>da</strong>de<br />

de inteligência persuasiva por parte de uma pequena gleba de eclesiásticos.<br />

PALAVRAS CHAVE: Inquisição; Tortura; Literatura Medieval; Medo; Saber.<br />

ABSTRACT: Umberto Eco and Carlo Ginzburg are intrinsically linked to “micro history”,<br />

mainly on their contributions to an understanding of the actions of the Court of the Holy<br />

Office, the environment of the medieval period and Renaissance Italy. In The cheese and The<br />

Worms (1976), Ginzburg proposes a rupture between the traditionalism of "major themes",<br />

focusing on a historiography analysis of the action of the "excluded from history” by<br />

addressing the practices of the Inquisition in regimentation of control of "low social classes<br />

of clergy", doing a literature of testimony surrounding the figure of Domenico Scandella (aka<br />

"Menocchio", with the labor activity of "Miller") accused of heresies and blaspheme against<br />

the "Church in Rome”. Already in The Name of the Rose (1983), Eco probes the collective<br />

unconscious of a Catholicism laureate with the lulling power of "Benedictine doctrine",<br />

clashed with a “Franciscan” social outcry within the body of ideological training, structural<br />

gigantic of incantations of clerical theophanies, propagated by Inquisitors. The two books are<br />

narrated in a literary space of more than 250 years of difference (Eco tells the story of Adso of<br />

Melk in 1327 and Ginzburg with Mennochio process between 1583 and 1601), however<br />

contain crucial points of similarity with a verbal aesthetic full of philosophical contradictions,<br />

culminating with an appetite for the establishment of a “status quo”of manipulative<br />

propagan<strong>da</strong> through the greed of the rough amazement of excommunication and the terror of<br />

physical torture, doing a persuasive intelligence of some ecclesiastics.<br />

KEYWORDS: Inquisition; Torture; Medieval Literature; Fear; Knowledge.<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

A Inquisição, como instituição repressiva, praticamente minou uma agudeza <strong>da</strong><br />

intelectuali<strong>da</strong>de orgânica, entre os séculos XIII e XV. Sua ação esteve prolonga<strong>da</strong> através de<br />

“Bulas e Éditos Papais”, outorgando cabidos de ação repressivos a bispos, cardeais e padres<br />

perante a grande maioria de seus fiéis. Durante essas ações, ficou exposta uma grande ruptura<br />

dentro <strong>da</strong>s frestas de poderio <strong>da</strong> Santa Sé e no transcurso de uma conduta diretória em<br />

conservação de paradigmas clericais massificantes, laureados pelo temor <strong>da</strong> tortura física<br />

embala<strong>da</strong> pelo assombreamento intolerante <strong>da</strong> excomunhão, umas <strong>da</strong>s mais graves punições a<br />

serem proscritas pelo papado.<br />

Houve uma assolação dos meios acadêmicos e culturais na I<strong>da</strong>de Média pelo<br />

Catolicismo, que percutiu uma estampagem pragmática de enclausuramento <strong>da</strong> erudição para<br />

as ilíqui<strong>da</strong>s estirpes de ordens cristãs, com um afrontamento combativo aos deleites do livre -<br />

pensar, tendo como oponentes a serem combati<strong>da</strong>s as heranças de rebeldia <strong>da</strong> cultura herética<br />

humanista Greco-romana. A preocupação de uma edificação de fé cega, colocando mixórdias<br />

de controles de ações subjetivistas, encontrava-se centraliza<strong>da</strong> tanto nas pessoas simples do<br />

campesinato, como nos bufarinheiros, rezadores, artesãos, ou dentro do próprio ciclo<br />

hierárquico cristocêntrico romano, perante os religiosos de condição de cargo de ordenação<br />

inferior.<br />

Em O Nome <strong>da</strong> Rosa (1983), Umberto Eco esgarça as atitudes do Santo Ofício em<br />

promover uma homogeneização de uma “psicogênese” do catolicismo, traçando um estilo de<br />

enredo de narrativa histórica, em uma engenharia de percalços de ações micros-espaciais-<br />

Literárias, centra<strong>da</strong>s em um comportamento esquivo de desenvolvimento acionário de<br />

menoscabos de proposições e introspecção existencial do sujeito histórico com teor diatribe.<br />

Essas ações estão orienta<strong>da</strong>s na figura do argonauta de Bernardo Guido, monge<br />

beneditino, auscultado por uma grandiloqüente gárgula de fanatismo e radicalismo em<br />

combater a difusão de processo reflexivo crítico astuto a todos os leigos.<br />

A essa fáustica aversão de formação sócio-intelectual <strong>da</strong> mente, Carlo Ginzburg<br />

descreve simetrias de um desejo <strong>da</strong>ntesco <strong>da</strong> alta cúpula dos clérigos, numa tentativa de barrar<br />

o advento de um classicismo lógico-inteligível <strong>da</strong>s estonteantes insídias teomaníacas do<br />

Renascimento, que tendo o progresso <strong>da</strong> imprensa, viabilizou uma orvalha<strong>da</strong> de produções<br />

escritas levando os livros para além dos muros dos mosteiros e <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong>des.<br />

A evocação de um maniqueísmo metafísico consoli<strong>da</strong> uma cambaleante remissa de<br />

cavi<strong>da</strong>de literário-histórica, crava<strong>da</strong> nos defeituosos adágios <strong>da</strong>s querelas dogmáticas<br />

410


<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

irrefutáveis <strong>da</strong> fé, fazendo alvorecer uma sociologia de doenças mentais aplana<strong>da</strong>s no<br />

paralogismo de per<strong>da</strong> <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de sublimação do prospecto de intelectualismo<br />

clarividente.<br />

O augúrio do Humanismo, orquestrado na sublevação do Teocentrismo, faz de<br />

Menocchio um mártir na busca do homem rude de compreensão de suas origens pseudopolíticas,<br />

intelectualmente fazendo uma escavação de rebeldia diante dos pilares de um<br />

embrutecimento <strong>da</strong> maiêutica, defronte o senso-comum do cotidiano despótico burguêscristão.<br />

To<strong>da</strong>via, com as devi<strong>da</strong>s ressalvas, tanto O Nome <strong>da</strong> Rosa como O Queijo e os<br />

Vermes possuem genes de classificações acadêmicas antagônicas, tanto nos seus períodos em<br />

que se passam suas tramas como na blin<strong>da</strong>gem social, intelectual e moral de seus<br />

protagonistas. Em seus vértices Guilherme de Baskerville, atrelado ao seu pupilo Adso de<br />

Melk, incrustam auspícios de uma educação escama<strong>da</strong> na conciliação entre a demoníaca<br />

impetuosi<strong>da</strong>de do racionalismo <strong>da</strong> ciência com o acatamento a uma servidão de seus votos de<br />

assidui<strong>da</strong>de-cristã, almejando uma consignação de conhecimento <strong>da</strong>s Ultras-Reali<strong>da</strong>des<br />

Sensoriais que o Plano Existencial Superior detém em um civismo pe<strong>da</strong>nte filosófico-literário<br />

mesclado nos planos materiais e espirituais, contando para tal procedimento com o auxílio<br />

teórico <strong>da</strong> retórica platônica e <strong>da</strong> veraci<strong>da</strong>de aristotélica. Contudo, Menocchio clarifica um<br />

clamor de incongruências de ascensão hermenêutica, em subsidiar uma construção do “Eu”,<br />

adoecendo uma historici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s mentali<strong>da</strong>des com clareza interpretativa, ajoujado de<br />

prescrições restritivas.<br />

Ginzsburg esmiúça uma micro-história com requintes de uma leitura ficcional,<br />

traçando as ações do Moleiro, desde a sua adentra<strong>da</strong> em um estilo de narrativa intradiegética<br />

passando para um cenário lingüístico extradiegético, confrontando as posições cognitivas de<br />

Mennochio, em relação às clausulas <strong>da</strong> Inquisição, com o compêndio de aniquilação de sua<br />

audácia questionadora em face aos Sacramentos Cristãos.<br />

Uma totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s espaciali<strong>da</strong>des transcorre no revés de busca de um empirismo<br />

Lúcido no processo inquisitorial contra Menocchio, apontando para uma<br />

consubstancial sumarização macabra de um catolicismo ostentado por temores especulativos<br />

em fabricar alarmas aos flagelos de austeri<strong>da</strong>de de entendimento exógeno de seus adeptos,<br />

expondo as máculas de uma comparação metodológica entre a História e o Romance-Policial-<br />

Histórico, exultado por turvos de um apaziguamento de compreensão popular, do universo<br />

vivente presente, eis a anedota de uma literatura de cânone espiritualista, encarcera<strong>da</strong> de<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

aglutinação psíquica exterminadora, a um escrúpulo mental consistente de divagação<br />

teleológica útil.<br />

Uma tautologia de enredos semânticos singulares, ofusca<strong>da</strong>s por lacunas do tempo<br />

Linear, uni<strong>da</strong> pelo esboço em conclamar paralelos de fatos históricos com lampejos<br />

ficcionais <strong>da</strong> arte literária, esses assomos de comparação entre Ginzburg e Eco, que<br />

narcisavam estilos de competências históricas e literárias, assimetricamente não deixam como<br />

negar que ambos, focalizam recortes de ações operatórias discursivas desatinas, tanto na<br />

“Friuli” de Menocchio, com sua população introverti<strong>da</strong> aos desígnios inquisitivos, como na<br />

abadia onde se desloca Guilherme de Baskerville, com um ríspido controle de acesso à sua<br />

mística biblioteca. Em uma envolvente tessitura de imolação <strong>da</strong> mente sã sucedem, tanto na<br />

cúria de gramática romanceira como na historiográfica, uma abertura de alas para um<br />

aprimoramento de conjecturas ontológicas de estudos de crítica de estilos lexicais prolixos em<br />

analisar as relações polifônicas entre o real e o imaginário, marcas exaspera<strong>da</strong>s dos dois<br />

autores comparados nesse texto.<br />

Em uma volubili<strong>da</strong>de psicanalítica, no período de 250 anos em que suprime o tempo<br />

narrativo de uma obra para outra está o ímpeto de uma fragmentação seqüencial <strong>da</strong> memória<br />

coletivista, sendo que o conhecimento científico e filosófico usurpa um ângulo de personagem<br />

oculto e seu campo de ação de desenlace são os livros proibidos e seu enfadonho perigo de<br />

despertar ilogismos de crendices, que criam uma atmosfera harmônica de “Opera Aperta”. O<br />

riso, o temor a Deus, a busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de (mas qual ver<strong>da</strong>de a ser encontra<strong>da</strong>) geram um<br />

pathos de apropriação de analepse, inclinados à degra<strong>da</strong>ção de uma positivi<strong>da</strong>de de união de<br />

entendimento entre a fé e a razão. É honrosa de louvor, uma carga de estabelecimento<br />

identificativo entre o esquálido institucional <strong>da</strong> Igreja Católica suplantado por seu aparelho<br />

repressivo inquisitorial com o alarde <strong>da</strong> censura na divulgação <strong>da</strong> informação com truísmos de<br />

significados concisos, em virtude de pulverizar um agnosticismo que viesse a crescer nas<br />

paradoxais cama<strong>da</strong>s de conglomerações do credo, onisciente e onipresente, as mais cintilantes<br />

dúvi<strong>da</strong>s à Doutrina, tendo em seu auxílio à produção do temor cruciante dos interrogatórios<br />

inquisitoriais, solidificando polari<strong>da</strong>des de loucuras de consciência intelectual. Isso deixa<br />

sinuosas evidências de uma castração de uma “vita activa” educacional no baixo âmbito de<br />

classificação econômica <strong>da</strong> cristan<strong>da</strong>de católica, arquejando legen<strong>da</strong>s de uma superestrutura<br />

enunciativa <strong>da</strong> alienação generalizante, seja pelo Índex ou pelo ardor paranóico de fabulações<br />

de terrores mirabolantes taciturnos eternos enquadrados na maligni<strong>da</strong>de do anticristo. A peleja<br />

entre a ciência e a religião estanca um oásis de uma respectiva separação de uma dialética<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

menta religiosa com a univoci<strong>da</strong>de do espírito científico, em benefício de nichos de<br />

alucinações binárias de excitação de um coeficiente de inteligência lúcido áureo, com<br />

análogos de obediências, habitando uma flamejante configuração institucional psicótica de<br />

conservação histórica lúdica com uma transvalorização em largos procedentes de uma<br />

gnosiologia incipiente de facul<strong>da</strong>des mentais fugazes.<br />

A plastici<strong>da</strong>de em converter trópicos de literarie<strong>da</strong>de com a dicção deísta do fato<br />

histórico expõe um indicativo gesto excelso de doravante desígnios de iluminação <strong>da</strong>s<br />

escuridões entre as temporali<strong>da</strong>des de execuções conceituais de identificações de épocas do<br />

historiador cultural junto a uma literatura do cotidiano enraiza<strong>da</strong>s nos protótipos de signos<br />

narrativos detidos nas acoplagens cardinais de pessoas comuns, com elementos<br />

psicoanalépticos na forma de relatar a história, durante a passagem do período Medieval para<br />

o Renascimento.<br />

Às ambivalências e sincronias entre o academicismo de ação imagística de Eco,<br />

contando com o advento de fontes históricas diatônicas e com a descrição dos costumes<br />

classicistas de Ginzburg feito como obra ficcional, compete uma gama de discussões de<br />

analise <strong>da</strong> obra literária e seus atributos, a um entrosamento de criticismo com jactâncias<br />

positivistas.<br />

Seria um exagero classificar a literatura com um cunho disciplinar cambaleante de<br />

vali<strong>da</strong>de de princípios particulares do escritor no obelisco de lapi<strong>da</strong>ção de execução técnicocientífica,<br />

gangrenando uma suposta volatilização <strong>da</strong> importância <strong>da</strong> ficção e <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong><br />

literatura como suporte de material de apoio ao historiador, permanecendo uma planificação<br />

de abertura de novas percepções estetas acerca <strong>da</strong> vivaci<strong>da</strong>de de uma anelante história <strong>da</strong><br />

cultura, não sendo ela uma vexatória colcha de retalhos de infâmias de pseudo-cientifici<strong>da</strong>des.<br />

A essa docili<strong>da</strong>de entre o verídico e o fantasioso coagula uma equi<strong>da</strong>de em encabeçar<br />

círculos de um cartesianismo satírico de evocações e manifestações ímpias ao clero secular,<br />

concomitantemente há uma sutileza de suji<strong>da</strong>de de voraci<strong>da</strong>de com <strong>da</strong>guerreótipos do livre -<br />

pensar, jogando feixes de luminosi<strong>da</strong>des em tragédias de sustentabili<strong>da</strong>des de uma história<br />

laica, aspergindo suas larvas doentias de criativi<strong>da</strong>de filológica. Isso tudo somado a uma boa<br />

parcela mimética de níveis de formação declinante de apreciação do saber saudável durante a<br />

derroca<strong>da</strong> <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de feu<strong>da</strong>l e o início de formação dos Estados Nacionais, com<br />

abran<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> moderna filosofia política de Maquiavel e Tommasio Campanella.<br />

O confronto entre a exaltação de ordens subalternas do catolicismo com o<br />

aperfeiçoamento técnico-científico, ungido de amparo parcimonioso papal, perfaz uma<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

extenuação a uma sangria de entraves de esferas catastróficas na vali<strong>da</strong>de de prognósticos de<br />

conscientização frutífera, livre de bojos discrepantes deterministas de empatia de creduli<strong>da</strong>de<br />

libertária, como a um invólucro duelo entre a literatura de testemunho com estruturas do<br />

romance policial, servindo de artefato para sincronizar uma história-cultural com a poética<br />

prosaica fictícia.<br />

A esse contraponto, uma literatura com espasmos de costumes populares proporciona<br />

uma detetivesca “glamorização” de debates em vorazes pavimentos <strong>da</strong>s premissas <strong>da</strong> arte<br />

pudica de Aristóteles com uma monumental glorificação <strong>da</strong> comédia como estrutura de<br />

construção do fato histórico, sendo exemplo de asseveração às boas maneiras, comensurável a<br />

uma esquematização de subterfúgios a uma vali<strong>da</strong>ção do saber clandestino aquém de<br />

professores e <strong>da</strong>s salas de aulas angulado nas universali<strong>da</strong>des católicas durante a I<strong>da</strong>de Média.<br />

A investigação, à qual se faz “jus” às ações de Guilherme de Bakerviile, oxalá ao<br />

representante do submundo criativo Menocchio, vulcaniza um aquecimento <strong>da</strong> dramatização<br />

de busca de uma história que não seja tendenciosa em relação ao seu tempo de disparate de<br />

protestação factual, combatendo uma proto-formação do ser, transportando células<br />

ecumênicas de laicização para os sombrios vácuos de uma caverna platoniana, agnóstica de<br />

hermetismos inventivos.<br />

A Escuridão! Eis o “feedback” entre o onirismo helênico, com os vaticinais dogmas<br />

do catolicismo e o ceticismo <strong>da</strong>s ideias do Período Clássico. A essa emulação de vangloriar<br />

uma cauterização do pensar, finaliza-se por auto determinar uma sedimentação de lisuras, em<br />

sancionar uma recepção de pessimistas ecléticos, no devaneio avanço de consumidores de<br />

livros pluralistas, dentro de uma linha esquemática, contendo uma aqueci<strong>da</strong> sinopse de busca<br />

escatológica <strong>da</strong> clareza <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de pensativa. Tanto que mesmo nos debates acadêmicos,<br />

respal<strong>da</strong>ndo-se de gracejos de ubérrimos pólos de vali<strong>da</strong>de dos estudos literários no quesito<br />

do romance policial, há um prolífico caminho estoicísta, de junção de várias épocas em um<br />

mesmo ponto de discussão, tangencialmente para um escrutínio de superabundância de<br />

classes, já que uma labare<strong>da</strong> de literatura- investigativo-filosófica com O Nome <strong>da</strong> Rosa<br />

justaposto a uma história arquivista de O Queijo e os Vermes, ganham compactos<br />

classificatórios bibliográficos de “Best-Sellers” voltando seus fragmentos sinópticos para<br />

todos os públicos e não somente ao espaço universitário.<br />

É satisfatório apresentar que ocorre uma desnaturação entre o coletivo e o cotidiano<br />

nas obras, pois enfatizam a busca dos menos favorecidos a um idealismo de existência perante<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

chalaças de arestas de fanatismo religioso, minando suas adentra<strong>da</strong>s aos meios <strong>da</strong> informação,<br />

ficando restritas somente a uma pequena parcela <strong>da</strong> clerocracia.<br />

Nesses adjacentes doutrinários, Peter Burke (2008) busca esquírolas para a<br />

construção de uma história cultural empirista com testilhas subjetivistas, centra<strong>da</strong> na<br />

contramão do discurso historiográfico tradicionalista, aclarando uma fustigação de divulgação<br />

para leitores não-acadêmicos, notificando uma conjugação de fatores metodológicos de uma<br />

descontinui<strong>da</strong>de temática em escrever relatos <strong>da</strong>s ações humanas no tempo, apraza<strong>da</strong>s<br />

somente aos grandes acontecimentos.<br />

A linguagem ao qual se escreve uma ciência do espírito passa por desconstruções que<br />

abor<strong>da</strong>m ao redor de uma mesma interpolação de vácuo de fatos, cinéticos aos cursos<br />

culturais <strong>da</strong>s ações humanas, obsequiando uma dilaceração de sujeitos <strong>da</strong> teoria histórica,<br />

flexionando um vigorado campo de possibili<strong>da</strong>des para formatação de uma filosofia-literária<br />

<strong>da</strong> história em consentimento com uma sociologia do romance.<br />

Vejamos que o romance policial, como uma história do crime, deixa afáveis seus<br />

perjúrios de aproximação, ao contrário do que pode se colocar uma noção de fato histórica em<br />

consonância de igual<strong>da</strong>de de se acrisolar com a ficção, aloja<strong>da</strong> em um determinado ponto do<br />

tempo contínuo e imparcial.<br />

Em se tratando de debates em torno de uma criminalização, procurando fazer um<br />

facetar do historiográfico tanto em Eco como Ginzburg, fazem uma semiótica de prosódia de<br />

factualização com um agnosticismo de fazer uma materialização dos componentes do<br />

inconsciente coletivo, como artefato histórico e literário.<br />

A esse inconsciente coletivo, uni-se um misticismo de consternação entre uma<br />

ideologia repugnante de maleabili<strong>da</strong>de institucionaliza<strong>da</strong> do Santo Ofício, seguindo uma<br />

doutrina com mecanismos alienantes, automatizados por uma indústria de estapafúrdia<br />

catequese eclesiástica, com uma carência de informação em todos os variados níveis de suas<br />

divisões sociais, desde o acesso à escola, que não detivesse uma administração católica, ao<br />

expurgo de um humanismo tripudiado de censura e de intrépi<strong>da</strong> vigilância comportamental.<br />

A esse jugo de ajuntamento dos espaços íntimos, em cari<strong>da</strong>de de uma exteriorização<br />

de um extermínio <strong>da</strong> critici<strong>da</strong>de, as bibliotecas ganham contornos oxi<strong>da</strong>ntes de<br />

distanciamento existencial entre religiosos, fiéis e leigos.<br />

Em O Nome <strong>da</strong> Rosa, é de interativa satisfação a famosa cena em que Guilherme,<br />

logo após desven<strong>da</strong>r a trama aleivosa de venerável Jorge, contempla em uma silvícola visão<br />

de melancolia e degenerativa falta de capaci<strong>da</strong>de de ação a destruição dos livros em um<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

incêndio causado pelo próprio Jorge, evidenciando um terror, com referencial de arquitetura<br />

intelectual cíclica, reconstituindo freneticamente uma psicologia de instrução que lembra a<br />

destruição dos livros proibidos contidos nas mãos dos hereges, durante a perseguição aos<br />

infiéis, porém, não sem deixar exemplares para as alcunhas dos clérigos responsáveis pela<br />

formação de novos pregadores <strong>da</strong> palavra cristã.<br />

A esse ponto, Menocchio tem sua sentença convergi<strong>da</strong> em excomunhão e depois em<br />

execução, tendo como culpa a perpetuação de atos de conduta de sua intelectuali<strong>da</strong>de em<br />

contraposição de efeito de agrado a sua perspicaz rebeldia, em procurar subterfúgios de<br />

consciência de esclarecimento de sua despojadora união entre o racionalismo com a fé.<br />

Dentro de suas envergaduras literárias e de material histórico, Ginzburg e Eco fazem<br />

um radiograma de uma “metablética” adorna<strong>da</strong> de psiquiatria social, fazendo uma<br />

traquinagem entre o lícito e o ilícito, auferindo uma fé com pressupostos de incongruentes<br />

preceitos de erudição, ideográfica e fonética, pois enquanto uns prezam por um catolicismo<br />

lúcido e fiel, com a compreensão de suas reali<strong>da</strong>des viventes, outros deterioram uma<br />

promíscua invocação do livre - pensar.<br />

A fala, como objeto de controle mental, o temor <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> eterna no paraíso e<br />

o combate ao ateísmo, fazem <strong>da</strong> história <strong>da</strong> cultura e do romance policial, com recalques <strong>da</strong><br />

I<strong>da</strong>de Média com o início do Renascimento, uma cópula de rotulações metodológicas em unir<br />

a escritura métrica <strong>da</strong> literatura com a imparciali<strong>da</strong>de e precisão de uma História mitiga em<br />

vali<strong>da</strong>r seus afluentes não somente com o teísmo de conceitos, inseridos na mentali<strong>da</strong>de<br />

criativa do escritor.<br />

Encontramos nas linhas de O Nome <strong>da</strong> Rosa como O Queijo e os Vermes,<br />

perfilhações de rizomas de afiliações entre o ficcional e o existente, ao qual tanto Guilherme e<br />

Menocchi planeiam raios de receptáculos de intelectuali<strong>da</strong>de em suas tramas, que no sabujo<br />

<strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> história e teoria <strong>da</strong> literatura propiciam uma demarcação epistemológica do<br />

tradicionalismo de temas <strong>da</strong>s ciências humanas e fazem uma balzaquiana história dos<br />

costumes com teor informativo assentados em uma cientifici<strong>da</strong>de empirista.<br />

A Nova História, com o advento <strong>da</strong> Escola dos Anales de Fernand Braudel, e depois<br />

com os trabalhos de historiadores assimilados em não somente escrever o que aconteceu e sim<br />

reviver, de forma integral, os escopos dos fatos verídicos, saindo do âmbito de entendimento<br />

de prosélitos antropológicos <strong>da</strong> economia e <strong>da</strong> política, vitalizou suas investigações em<br />

arquitetar uma recipiente descrição do dia-a-dia <strong>da</strong>s pessoas comuns, defronte a um<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

integralismo de consonâncias de repetição de escrita, objetivados em compreensões dos<br />

micros temas.<br />

A esse espectro de procurar “história dentro <strong>da</strong> história” estão entrincheira<strong>da</strong>s as<br />

gerações do “nouveau romance”, arrebatando as ligações com “modus vivendi” <strong>da</strong><br />

burguesia, lustrando raios infratores de novos pontos de panópticos de narrativas, tanto no<br />

realismo do concreto, falando <strong>da</strong>s bizarrices do cotidiano, como incesto, morte, infanticídio,<br />

sodomia, exorcismos (temas escrachos ao catolicismo), como em ovular o absenteísmo de<br />

uma nova forma de altruísmo entre fazer literatura embasa<strong>da</strong> em documentos históricos.<br />

Não seria leviano dizer que uma história <strong>da</strong> cultura <strong>da</strong>s idéias do cotidiano, (e porque<br />

não <strong>da</strong> leitura), saindo do empirismo exacerbado e envere<strong>da</strong>ndo-se em uma ação de usufruir<br />

de uma literatura com admoestação de fazer culturas variantes, introduziu análises de<br />

julgamento de leitores polissêmicos, lançados em confrarias de decodificação de fissuras<br />

poéticas com a manifestação histórica.<br />

Sendo a Inquisição uns dos focos “mores”, de progresso de repercussão nos dois<br />

livros comparados nesse trabalho, ela acaba adquirindo um hedonismo tonificante de tempo e<br />

espaço, como um espólio subordinado de encarceramento metonímico, dos enredos ficcionais<br />

e históricos, já que simetricamente possuem uma suposição de hipóteses de estudos a partir de<br />

membros nomotéticos encarnados nas transições de clichês narrativos acutilados nas figuras<br />

dos protagonistas principais de O Nome <strong>da</strong> Rosa e de O Queijo e os Vermes. Seja ela<br />

representante diáfana de conhecimento, com a retórica beirando a increduli<strong>da</strong>de espiritual em<br />

Guilherme, ou uma sacralização do desejo de liber<strong>da</strong>de de consciência retumbante<br />

independente de pré-formulações de tubulações pessoais concebi<strong>da</strong>s no seio de uma igreja,<br />

cercea<strong>da</strong> em atamanca<strong>da</strong>s posterga<strong>da</strong>s de condicionamentos mentais presentes em<br />

Menocchio.<br />

O Romance Policial em sua gala de desfecho comunicativo como um artefato de<br />

texto literário e como comprovante historiográfico, não pode se limitar a um vazio de carência<br />

de vali<strong>da</strong>de científica. Não seria tirar o consciente como ferramenta de percussão de aderência<br />

analítica, para uma leitura livre, em submergirem a ilusórias pendências de debates<br />

degra<strong>da</strong>ntes, e sem base de essencial teórica, mas um obstante do gênero romanesco, lançando<br />

constituintes para a uma exegese base de relacionamentos de construção de material-literáriohistoriográfico<br />

com perpendicular transmissão de longevi<strong>da</strong>de de avalias do subjetivo,<br />

fazendo um transcurso dos métodos sintáticos críticos, articulando uma blin<strong>da</strong>gem entre o<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

objeto de estudo com estereótipo de condução existencial livre em sua amplitude <strong>da</strong> opinião<br />

pessoal do pesquisador com as amálgamas vorazes de limpidez, <strong>da</strong> leitura à interpretação.<br />

O Romance Histórico conquista contornos de uma genética simbólica de estudo, com<br />

legali<strong>da</strong>de subsidia<strong>da</strong> na proliferação <strong>da</strong> história <strong>da</strong> cultura, como um divulgador de novas<br />

égides de composições e relações com a literatura de cunho investigativo e misterioso,<br />

fazendo tramas obscuras, cenas de crimes hediondos, investigação policial, naveguem e<br />

alcancem pontos de ancoradouros em sorti<strong>da</strong>s explanações do cotidiano de determina<strong>da</strong><br />

partitura do tempo linear, com o aprofun<strong>da</strong>mento de uma litofania narrativa impugna<strong>da</strong> de<br />

teores a despertarem seixos de curiosi<strong>da</strong>de indutiva a uma agregação de consciência<br />

filosófica.<br />

A essa singular meta de didática de orientação de batalha contra uma patofobia de<br />

arrancar o romance policial de sua característica de imagineis sem um coagulador de<br />

isonomias literárias com significação de diversificantes sintomatologias poéticas, há uma<br />

concentração em transparecer uma exarticulação entre a narrativa pessoal do autor e<br />

elaboração de novos minguados de lingüística teórica para prática <strong>da</strong> crítica literária e<br />

histórica.<br />

Tanto em uma transversal ação enfatizando a grafia detetivesca, O Nome <strong>da</strong> Rosa,<br />

como O Queijo e os Vermes, transluci<strong>da</strong><strong>da</strong> em um persecutório de vali<strong>da</strong>de em quais<br />

personagens se destinam a uma caracterização de mal<strong>da</strong>de, em uma polêmica eletrólise de<br />

consagração de valores morais, entre o desejo do saber e a obediência ao momento histórico e<br />

agoráfobo de um dinamismo de cumprimento dos anseios veementes teológicos.<br />

Indiretamente há um estatizante pândego em denunciar arquétipos de neuroses<br />

coletivas do catolicismo, tanto no revés hierárquico de seus títulos nobiliárquicos, como em<br />

salientar a grande inércia de solicitude em promover uma calcificação conclusiva <strong>da</strong>s riquezas<br />

intelectuais e materiais <strong>da</strong> Santa Sé, deixando uma exposição de cenário fabuloso, enrijecido<br />

na destruição de uma cultura popular que nos adentrasse mais elevados hemisférios de<br />

organização institucional do catolicismo.<br />

Ao barrar uma geminação sem nenhum precedente de subjetivi<strong>da</strong>de do manuseio e<br />

disseminação <strong>da</strong> palavra durante as ações do Santo ofício, controlando o acometimento a<br />

instrumentos de formação de uma filosofia do espírito, longe <strong>da</strong>s peias do fanatismo,<br />

agigantados em fatos históricos comprovados por arquivos documentais e pela imaginação de<br />

uma trama romanesca apoia<strong>da</strong> em bibliografias científicas, podemos salientar que o romance<br />

policial em O Nome <strong>da</strong> Rosa e a história-cultural de O Queijo e os Vermes possibilitam uma<br />

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<strong>IV</strong> Simpósio Gêneros Híbridos <strong>da</strong> Moderni<strong>da</strong>de<br />

A NARRAT<strong>IV</strong>A POLICIAL<br />

descoisificação <strong>da</strong> catarse de análises literárias e históricas, abrindo pacíficas frentes de<br />

coexistência entre ambas, subsidiando uma a outra, na busca de novas vedetes de rechaçar<br />

uma operação de intelecto entre as duas disciplinas de forma congênita e promissora, abrindo<br />

novas asserções de contestação e escritura para as ciências humanas.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BURKE, Peter. O que é história cultural Trad. de Sérgio Goés de Paula. RJ: Ed. Zahar,<br />

2008.<br />

ECO, Umberto. O Nome <strong>da</strong> Rosa. Trad. de Aurora Fornoni Bernadini & Homero Ereitas de<br />

Andrade. RJ: Ed. Record, 1983.<br />

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de moleiro perseguido pela<br />

inquisição. Trad. Maria Betânia Amoroso. SP: Cia <strong>da</strong>s Letras, 1987.<br />

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