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SILVA, Vilmar - Wiki do IF-SC

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1<br />

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM<br />

EDUCAÇÃO<br />

EDUCAÇÃO E PROCESSOS INCLUSIVOS<br />

A POLÍTICA DA D<strong>IF</strong>ERENÇA:<br />

EDUCADORES-INTELECTUAIS SURDOS<br />

EM PERSPECTIVA<br />

<strong>Vilmar</strong> Silva<br />

Florianópolis<br />

2009<br />

<strong>Vilmar</strong> Silva


2<br />

A POLÍTICA DA D<strong>IF</strong>ERENÇA:<br />

EDUCADORES-INTELECTUAIS SURDOS<br />

EM PERSPECTIVA<br />

Tese apresentada ao Programa de<br />

Pós-Graduação em Educação da<br />

Universidade Federal de Santa<br />

Catarina como requisito parcial para<br />

a obtenção <strong>do</strong> título de Doutor em<br />

Educação.<br />

Orienta<strong>do</strong>ra: Dra. Ronice Müller Quadros<br />

Co-Orienta<strong>do</strong>ra: Dra. Gladis Perlin<br />

Florianópolis<br />

2009


3<br />

COMISSÃO EXAMINADORA<br />

________________________________________________________<br />

Dra. Ronice Müller Quadros (CCE/UF<strong>SC</strong> – Orienta<strong>do</strong>ra) 1<br />

________________________________________________________<br />

Dra. Gladis Perlin (CED/UF<strong>SC</strong> – Co-orienta<strong>do</strong>ra)<br />

________________________________________________________<br />

Dra. Marianne Rossi Stumpf (CED/UF<strong>SC</strong> – Examina<strong>do</strong>ra)<br />

________________________________________________________<br />

Dra. Karin Lilian Strobel (FENEIS/<strong>SC</strong> – Examina<strong>do</strong>ra)<br />

________________________________________________________<br />

Dra. Vanda Leitão (CED/UFC – Examina<strong>do</strong>ra)<br />

________________________________________________________<br />

Dra. Cristiana de Azeve<strong>do</strong> Tramonte (CED/UF<strong>SC</strong>– Examina<strong>do</strong>ra)<br />

________________________________________________________<br />

Dra. Rose Cerny (UF<strong>SC</strong>/CED – Suplente)<br />

________________________________________________________<br />

Dr. Rodrigo Rosso Marques (UDE<strong>SC</strong> – Suplente)<br />

1 A Dra. Ronice Müller Quadros, por estar nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América, como<br />

professora visitante na Universidade de Gallaudet e na Universidade de Connecticut,<br />

participará da banca por meio de vídeo-conferência.


4<br />

Dedico esta tese a Gladis Perlin<br />

e a Ronice Müller Quadros.<br />

AGRADECIMENTOS<br />

A minha mãe, Miriam Mafra Silva, pela forma como enfrentou o mun<strong>do</strong><br />

para dar as melhores condições de vida aos seus cinco filhos, três


5<br />

sur<strong>do</strong>s (Elson, Tânia e Fábio) e <strong>do</strong>is ouvintes (Isaias e <strong>Vilmar</strong>), e soube<br />

como ninguém:<br />

“Debulhar o trigo<br />

Recolher cada bago <strong>do</strong> trigo<br />

Forjar no trigo o milagre <strong>do</strong> pão<br />

E se fartar de pão”. 2<br />

Aos educa<strong>do</strong>res-intelectuais sur<strong>do</strong>s que contribuíram com a construção<br />

desse trabalho e me mostraram a importância da desconstrução das<br />

representações colonialistas em relação aos sur<strong>do</strong>s, mesmo saben<strong>do</strong>:<br />

“que chega a roda-viva<br />

E carrega o destino pra lá [...]”.<br />

Aos meus incansáveis colegas de trabalho, Paulo e Mara, sinto que:<br />

“seguir a vida seja simplesmente<br />

conhecer a marcha, ir tocan<strong>do</strong> em frente<br />

cada um de nós compõe a sua história,<br />

e cada ser em si carrega o <strong>do</strong>m de ser capaz,<br />

de ser feliz”.<br />

A Ronice Müller Quadros e Gladis Perlin pela confiança no<br />

desenvolvimento da pesquisa, o meu eterno carinho, por saber que:<br />

“Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe [...]”.<br />

À intérprete Silvana Aguiar e a to<strong>do</strong>s os profissionais que vêm<br />

contribuin<strong>do</strong> com a educação de sur<strong>do</strong>s no Instituto Federal de Santa<br />

Catarina, gostaria de dizer que:<br />

“é preciso amor pra poder pulsar,<br />

é preciso paz pra poder seguir,<br />

é preciso a chuva para florir [...]”.<br />

2<br />

Os versos nas citações de agradecimentos são trechos de músicas de Chico Buarque<br />

de Holanda e Almir Sater.


6<br />

O andarilho – Quem chegou, ainda que apenas em certa medida, à<br />

liberdade da razão, não pode sentir-se sobre a Terra senão como<br />

andarilho – embora não como viajante em direção a um alvo último:<br />

pois este não há. Mas bem que ele quer ver e ter os olhos abertos para<br />

tu<strong>do</strong> que propriamente se passa no mun<strong>do</strong>; por isso não pode prender<br />

seu coração com demasiada firmeza a nada de singular; tem de haver<br />

nele próprio algo de errante, que encontra sua alegria na mudança e<br />

transitoriedade.<br />

Nietzche


7<br />

RESUMO<br />

O objetivo deste trabalho é o de investigar, a partir das narrativas de<br />

educa<strong>do</strong>res-intelectuais sur<strong>do</strong>s, de que forma a política da diferença<br />

subverte as relações de poder na educação de sur<strong>do</strong>s. O tema nasceu<br />

da insatisfação que tenho – e continuo ten<strong>do</strong> – quanto às<br />

representações colonialistas em relação aos sur<strong>do</strong>s, em que as<br />

diferenças culturais, linguísticas e identitárias, dentre outras, têm si<strong>do</strong>,<br />

histórica e concretamente, produzidas a partir de oposições binárias –<br />

sur<strong>do</strong>/ouvinte, visualidade/sonoridade, língua de sinais/língua oral etc. –,<br />

negan<strong>do</strong> a complexidade que transita entre elas. Para tanto, me<br />

aproximei da teoria pós-colonial e de suas articulações com o pósestruturalismo<br />

por se inscreverem em narrativas cujas fronteiras<br />

espaciais, temporais e discursivas se entrecruzam, mesclam sujeitos de<br />

diversos cantos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, sujeitos diaspóricos e que transitam entre o<br />

passa<strong>do</strong> e o presente, construin<strong>do</strong> pontes entre espaços assimétricos,<br />

(re)articulan<strong>do</strong> diferenças para alcançar outras margens, múltiplas e<br />

transitórias. Para realizar a análise das narrativas, recorri à estratégia<br />

de análise denominada por Hall (1996) e outros autores de articulação<br />

por desarticular e desestabilizar a fixidez das narrativas coloniza<strong>do</strong>ras<br />

que foram apreendidas como naturais.<br />

Palavras-chave: Política da Diferença, Educa<strong>do</strong>res-Intelectuais Sur<strong>do</strong>s,<br />

Diáspora Surda, Cultura e Identidade.


8<br />

ABSTRACT<br />

This thesis aims to investigate, taking into consideration the narratives<br />

of deaf intellectual-educators, in which way the politics of difference<br />

subverts the power relations in the area of deaf education. This theme<br />

arose from the lack of satisfaction that I have - and still have - regarding<br />

the colonial representations of deaf people, in which differences of<br />

culture, linguistics and identity, among others, have been historically<br />

produced from binary oppositions- deaf/hearing, visibility/sonority, sign<br />

language/oral language etc -, denying the complexity that lies between<br />

them. I have become closer to post-colonial theory, as well as to its<br />

articulations with post-structuralism, since both deal with narratives of<br />

spatial, temporal and discursive boundaries that cross one another,<br />

mixing subjects of many places in the world, subjects in diaspora, who<br />

transit between the past and the present, building bridges between<br />

asymmetric spaces, (re)articulating differences to reach other multiple<br />

and transitory margins. To analyze those narratives, I turned to the<br />

strategic analysis denominated by Hall (1996) and other authors as the<br />

articulation, for it disarticulates and unstables the colonizing narratives<br />

that have been learned as natural.<br />

Key words: Politics of Difference, Deaf Intellectual-Educators, Deaf Diaspora, Culture<br />

and Identity.


9<br />

RESUMEN<br />

El objetivo de este trabajo es investigar, a partir de las narrativas de<br />

educa<strong>do</strong>res-intelectuales sor<strong>do</strong>s, de qué forma la política de la<br />

diferencia subvierte las relaciones de poder en la educación de sor<strong>do</strong>s.<br />

El tema nació de la insatisfacción que tengo y – sigo tenien<strong>do</strong>- acerca de<br />

las representaciones coloniales en relación a los sor<strong>do</strong>s, en que las<br />

diferencias culturales, lingüísticas y de identidad, entre otras, han si<strong>do</strong><br />

histórica y concretamente producidas a partir de oposiciones binarias –<br />

sor<strong>do</strong>/oyente, visualidad/sonoridad, lengua de señales/lengua oral etc.<br />

–, negan<strong>do</strong> la complejidad que transita entre ellas. Para tanto, me<br />

aproximé de la teoría pos colonial y de sus articulaciones con el pos<br />

estructuralismo por subscribirse en narrativas cuyas fronteras<br />

espaciales, temporales y discursivas se entrecruzan, mezclan sujetos de<br />

diversos rincones del mun<strong>do</strong>, sujetos diaspóricos y que transitan entre<br />

el pasa<strong>do</strong> y el presente, construyen<strong>do</strong> puentes entre espacios<br />

asimétricos (re) articulan<strong>do</strong> diferencias para alcanzar otras orillas,<br />

múltiplas y transitorias. Para realizar el análisis de las narrativas, recurrí<br />

a la estrategia de análisis denominada por Hall (1996) y otros autores<br />

de articulación por desarticular y desestabilizar la inmovilidad de las<br />

narrativas coloniza<strong>do</strong>ras que fueron aprehendidas como naturales.<br />

Palabras clave: Política de la Diferencia, Educa<strong>do</strong>res–Intelectuales<br />

Sor<strong>do</strong>s, Diáspora Sorda, Cultura e Identidad.


11<br />

ÍNDICE DE FIGURAS<br />

Figura 1<br />

Figura 2<br />

Fragmento <strong>do</strong> Hino Nacional na escrita da língua de sinais<br />

Brasileira a partir <strong>do</strong> sistema sign writing<br />

O desenho da casa e sua representação gráfica na língua<br />

de sinais brasileira<br />

LISTA DE SIGLAS


12<br />

CONADE<br />

FENEIS<br />

FENEIDA<br />

GES/UF<strong>SC</strong><br />

IDISAM<br />

INES<br />

<strong>IF</strong>-<strong>SC</strong><br />

LIBRAS<br />

MEC<br />

NEPES<br />

NEPS<br />

NUPPES<br />

PUC/MG<br />

SETEC<br />

UFU<br />

UF<strong>SC</strong><br />

Conselho Nacional <strong>do</strong>s Direitos das Pessoas Porta<strong>do</strong>ras de<br />

Deficiência<br />

Federação Nacional de Educação e Integração de Sur<strong>do</strong>s<br />

Federação Nacional de Educação e Integração de<br />

Deficientes Auditivos<br />

Grupo de Estu<strong>do</strong>s Sur<strong>do</strong>s da Universidade Federal de<br />

Santa Catarina<br />

Instituto de Desenvolvimento Integra<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Sur<strong>do</strong>s da<br />

Amazônia<br />

Instituto Nacional de Educação de Sur<strong>do</strong>s<br />

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de<br />

Santa Catarina<br />

Língua Brasileira de Sinais<br />

Ministério da Educação<br />

Núcleo de Ensino e Pesquisa em Educação de Sur<strong>do</strong>s<br />

Núcleo de Educação Profissional para Sur<strong>do</strong>s<br />

Núcleo de Pesquisa em Políticas Educacionais para Sur<strong>do</strong>s<br />

Pontificia Universidade Católica de Minas Gerais<br />

Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica<br />

Universidade Federal de Uberlândia<br />

Universidade Federal de Santa Catarina


13<br />

S U M Á R I O<br />

APRESENTAÇÃO - DE ONDE FALO AO E<strong>SC</strong>REVER A<br />

TESE............................................<br />

CAPÍTULO I -<br />

PESQUISA: UM EXERCICÍCIO DE<br />

TRADUÇÃO DE SI E DO<br />

OUTRO.............................................................<br />

................................<br />

1. DELIMITAÇÃO DO TEMA E DO<br />

PROBLEMA...........................<br />

2. (RE)ARTICULANDO LEITURAS QUE TRANSITAM<br />

ENTRE O “DESEJO” E O<br />

“PERIGO”............................................................<br />

2.1. O Locus de<br />

Enunciação..................................................<br />

2.2. Identidade, Diferença e<br />

Cultura....................................<br />

3. CAMINHOS DE INVESTIGAÇÃO: RI<strong>SC</strong>OS E<br />

DESAFIOS..............................................................<br />

.....................<br />

3.1. Narrativas<br />

Surdas.............................................................<br />

3.2. Corpus de Análise e Planejamento <strong>do</strong>s<br />

Encontros........<br />

3.3. Análise das<br />

Narrativas...................................................<br />

CAPÍTULO II - “FRONTEIRAS DE CONTATO”: UM LUGAR<br />

(IM)POSSÍVEL DE SE<br />

HABITAR................................................................<br />

......................<br />

1. ESTEREÓTIPO: UMA ESTRATÉGIA DI<strong>SC</strong>URSIVA<br />

DO PODER<br />

COLONIAL............................................................<br />

....................<br />

2.”ENTRE-LUGARES”: UM ESTRANHO<br />

ESTRANGEIRO............<br />

4. SURDO: UM POVO ENTRE FRONTEIRAS<br />

FLUIDAS.................<br />

CAPÍTULO III - EMBARALHANDO FRONTEIRAS: OS<br />

INTELECTUAIS SURDOS NOS DIAS DE<br />

HOJE........................................................................<br />

1. MAN<strong>IF</strong>ESTO: UMA ESTRATÉGIA DE<br />

ENFRENTAMENTO................................................<br />

...................<br />

2. CIRCULAÇÃO DE SABERES: UMA ESTRATÉGIA<br />

13<br />

25<br />

27<br />

30<br />

33<br />

37<br />

43<br />

44<br />

47<br />

48<br />

52<br />

53<br />

62<br />

75<br />

84<br />

85


14<br />

DE DESAUTORIZAÇÃO DO DI<strong>SC</strong>URSO<br />

COLONIAL..........................<br />

3. ARTICULAÇÃO DAS D<strong>IF</strong>ERENÇAS: UMA<br />

ESTRATÉGIA DE EMPODERAMENTO<br />

SURDO.....................................................<br />

CAPÍTULO IV - SABERES LINGUÍSTICOS SURDOS: UMA<br />

FORMA DE<br />

RESISTÊNCIA PÓS-<br />

COLONIAL........................................................<br />

1. LÍNGUA DE SINAIS E DIREITOS<br />

LINGUÍSTICOS........................<br />

2. E<strong>SC</strong>RITA DE SINAIS: O DIREITO DE SIGN<strong>IF</strong>ICAR<br />

NA PRÓPRIA<br />

LÍNGUA..................................................................<br />

....................<br />

3. TRADUÇÃO: UM ATO DE VIVER EM<br />

FRONTEIRAS................<br />

CAPÍTULO V - O (ENTRE)LAÇAR DA<br />

CAMINHADA...............................................<br />

REFERÊNCIAS -<br />

......................................................................................................<br />

95<br />

110<br />

119<br />

120<br />

127<br />

136<br />

148<br />

153


15<br />

APRESENTAÇÃO<br />

DE ONDE FALO<br />

AO E<strong>SC</strong>REVER A TESE<br />

Laura Redden Clerc (1840 - 1923) primeira<br />

jornalista, biógrafa e poetisa surda americana.<br />

Durante a Guerra Civil escreveu de forma árdua,<br />

ten<strong>do</strong> sua atividade poética e jornalística<br />

reconhecida internacionalmente.<br />

A experiência da diferença cultural sentida e vivida por aqueles que têm<br />

a coragem de ser sur<strong>do</strong>s é mais que dinâmica. [...]<br />

O ato de definição de nossa cultura é um espaço contraditório<br />

ao ouvinte. A luta pelas diferenças não pode ser explicada<br />

por simples oposições binárias,<br />

ela é uma estratégia de sobrevivência.<br />

A cultura surda existe enquanto estratégia de<br />

contra <strong>do</strong>minação. As estratégias contem posições de diferença,<br />

de identidade, de cultura, de política que se negocia em diferentes<br />

tempos.<br />

Diferenças que unem enquanto posições de luta pela identificação<br />

cultural.


16<br />

Gladis Perlin<br />

Ao iniciar a escrita da tese não poderia deixar de falar <strong>do</strong><br />

privilégio que tenho de debater questões relacionadas à educação com<br />

pesquisa<strong>do</strong>res sur<strong>do</strong>s e ouvintes em uma universidade pública<br />

brasileira. Se no passa<strong>do</strong> isso foi um sonho posterga<strong>do</strong>, hoje é uma<br />

conquista de muitos, mas em especial <strong>do</strong>s movimentos sur<strong>do</strong>s. 3 Mas,<br />

antes de chegar a esse momento histórico, é necessário apresentar o<br />

lugar de onde falo, que ainda me permite acreditar que é possível<br />

fortalecer a causa surda de forma compartilhada. Digo isso por ter em<br />

mente que o “sujeito destituí<strong>do</strong> de toda a alteridade se afunda sobre si<br />

mesmo” (BAUDRILLARD, 2002, p. 36).<br />

Falar da política da diferença 4 é falar de movimentos de afirmação<br />

de culturas marginais, não mais estáveis, autênticas, puras, como se<br />

constituídas em um único território. Falar da política da diferença é falar<br />

de entrecruzamento, é falar de culturas que transitam entre territórios,<br />

porque, se existem territórios, existem fronteiras, mas ao mesmo tempo<br />

que as fronteiras dividem, elas “também servem para unir. Estão lá<br />

para serem atravessadas, em ambas as direções” (MACEDO, 2001, p.<br />

11).<br />

Ao afirmar que as culturas transitam entre territórios, estou<br />

dizen<strong>do</strong> que elas são híbridas, sem negar as lutas por sua<br />

sobrevivência. Os sur<strong>do</strong>s, 5 como qualquer grupo social organiza<strong>do</strong>,<br />

mobilizam-se para se contrapor à supremacia da cultura <strong>do</strong>minante e,<br />

dentre suas estratégias, destaca-se a sua forma de mobilização política,<br />

mediante a aproximação de seus pares para “descobrir coisas sobre si<br />

3<br />

Os movimentos sur<strong>do</strong>s podem ser defini<strong>do</strong>s como uma rede complexa formada por<br />

sur<strong>do</strong>s e ouvintes “alia<strong>do</strong>s” como sujeitos coletivos que se constituem num processo<br />

dialógico de identificações éticas, culturais e políticas e que se organizam física e<br />

virtualmente para combater todas as formas de representações colonialistas em<br />

relação aos sur<strong>do</strong>s.<br />

4<br />

Para Skliar (1998, p. 6), a “diferença, como significação política, é constituída<br />

histórica e socialmente; é um processo e um produto de conflitos e movimentos<br />

sociais, de resistências às assimetrias de poder e saber, de uma outra interpretação<br />

sobre a alteridade e sobre o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s outros no discurso <strong>do</strong>minante”.<br />

5<br />

Os sur<strong>do</strong>s a que me refiro nesta tese são sur<strong>do</strong>s de centros urbanos e filhos de pais<br />

ouvintes que não <strong>do</strong>minavam a língua de sinais quan<strong>do</strong> seus filhos nasceram.


17<br />

mesmos e sobre os outros". Nas palavras de Wrigley (1996, p. 159),<br />

“construir relações de solidariedade de grupo é um projeto político” e<br />

um passo crucial “para confrontar o imperialismo cultural e descobrir<br />

coisas sobre si mesmos e sobre os outros”. Entretanto, esse “descobrir<br />

coisas de si mesmo e sobre os outros” não é um movimento tautológico,<br />

fecha<strong>do</strong> nos próprios territórios sur<strong>do</strong>s. É um movimento que cruza<br />

fronteiras.<br />

Padden e Humphries (1996) 6 trazem um fragmento da história de<br />

Sam Supala que permite compreender a importância <strong>do</strong> cruzar<br />

fronteiras para descobrir coisas de si e <strong>do</strong>s outros. Sam, um sur<strong>do</strong> norteamericano,<br />

tinha pais e irmãos sur<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> criança, conhecera uma<br />

menina, sua vizinha. Após alguns encontros tornaram-se grandes<br />

amigos. Para Sam, a menina era especial, mas havia algo de estranho<br />

com ela. A comunicação não se dava da mesma forma como acontecia<br />

com seus pais e irmãos. Ela tinha uma dificuldade enorme para<br />

compreender os sinais mais simples que fazia. Para resolver o problema<br />

de comunicação, quan<strong>do</strong> Sam queria alguma coisa, apontava para o<br />

objeto ou segurava a mão de sua amiga e ia com ela pegar o objeto. Ele<br />

queria compreender o que afligia sua amiga, mas, como se tornaram<br />

bons amigos e interagiam entre si, ele estava contente em se adequar<br />

às suas necessidades. Até que um dia, brincan<strong>do</strong> na casa dela, a mãe<br />

de sua amiga movimenta os lábios e ela, como num passe de mágica,<br />

pega sua boneca e leva para outro local. Sam, nesse momento,<br />

percebeu que sua amiga realmente era estranha. Confuso, saiu<br />

corren<strong>do</strong> e foi para casa perguntar a sua mãe o que sua amiga tinha de<br />

diferente. Para sua surpresa, sua mãe explicou-lhe que sua amiga e<br />

seus pais eram ouvintes, por isso eles não movimentavam as mãos para<br />

sinalizar, eles moviam seus lábios para falar. Nas palavras de Padden e<br />

6<br />

O livro “Deaf in America: voice from a culture” de Carol Padden e Tom Humphries foi<br />

traduzi<strong>do</strong> pelo Núcleo de Pesquisa em Políticas Educacionais para Sur<strong>do</strong>s (NUPPES) e<br />

todas as outras traduções <strong>do</strong> inglês para o português, nessa tese, foram realizadas por<br />

Marina Egger Moellwald.


18<br />

Humphries (1996, p. 15), quan<strong>do</strong> Sam descobre que sua amiga é<br />

ouvinte<br />

ele aprende alguma coisa sobre os “outros”. Aqueles que<br />

vivem a sua volta e à volta de sua família agora devem<br />

ser chama<strong>do</strong>s de “ouvintes”. O mun<strong>do</strong> é maior <strong>do</strong> que ele<br />

havia imagina<strong>do</strong>, mas sua visão própria está intacta. Ele<br />

aprendeu que há “outros” viven<strong>do</strong> na sua vizinhança [...]<br />

Talvez os outros são agora mais importantes em seu<br />

mun<strong>do</strong>, e seus pensamentos a respeito <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> agora<br />

têm de reconhecer que eles existem e têm alguma<br />

relação com ele [...].<br />

No fragmento da história de Sam e de sua amiga, o ponto mais<br />

significativo não é o binômio sinais/fala, mas sim o cruzamento de<br />

fronteiras, o encontro entre eles, que permitiu a Sam e a sua amiga<br />

aprenderem coisas sobre si e “sobre os outros” e também perceberem<br />

que só foi possível conhecer aquilo que eram na relação a partir de suas<br />

diferenças.<br />

Para aprender coisas de si e <strong>do</strong>s outros, os educa<strong>do</strong>res e<br />

educan<strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Instituto Federal de Santa Catarina (<strong>IF</strong>-<strong>SC</strong>) 7<br />

7<br />

O <strong>IF</strong>-<strong>SC</strong> é vincula<strong>do</strong> à Secretaria de Educação e Profissional e Tecnológica (SETEC) <strong>do</strong><br />

Ministério da Educação (MEC). Atualmente o <strong>IF</strong>-<strong>SC</strong> está em fase de expansão. A<br />

proposta da SETEC é que até 2010 serão cria<strong>do</strong>s 214 novos Campi de Educação<br />

Profissional e Tecnológica em nosso país, sen<strong>do</strong> 11 destes em Santa Catarina. A<br />

implantação desses novos Campi objetiva formar e educar “cidadãos críticos e<br />

profissionais competentes, com autonomia ética, política, intelectual e tecnológica,<br />

pois a construção <strong>do</strong> conhecimento e sua socialização será resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho social<br />

e das relações que são empreendidas entre o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, da cultura e das<br />

ciências” (www.portal.mec.gov.br/setec, acessa<strong>do</strong> em 12/08/2007). A partir da<br />

expansão da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, o <strong>IF</strong>-<strong>SC</strong> até 2010<br />

será forma<strong>do</strong> pelos seguintes Campi: Florianópolis, São José, Continente, Jaraguá <strong>do</strong><br />

Sul, Joinvile, Chapecó, Lages, Itajaí, Gaspar, Araranguá, Criciúma, Canoinhas, São<br />

Miguel <strong>do</strong> Oeste, Xanxerê e o Campus Bilíngue em Palhoça. A construção <strong>do</strong> Campus<br />

Bilíngue em Santa Catarina é resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho de ensino, pesquisa e extensão<br />

que o <strong>IF</strong>-<strong>SC</strong> vem desenvolven<strong>do</strong> há dezessete anos na área da educação de sur<strong>do</strong>s. O<br />

Campus tem por objetivo formar profissionais bilíngues e desenvolver tecnologias<br />

educacionais visuais para a educação de sur<strong>do</strong>s. Os cursos desenvolvi<strong>do</strong>s serão de<br />

Formação Inicial e Continuada, Educação de Jovens e Adultos com Profissionalização,<br />

Ensino Técnico e Tecnológico, Licenciaturas e Pós-Graduação Lato Sensu e Stricto<br />

Sensu. Os cursos formarão profissionais – sur<strong>do</strong>s e ouvintes – na modalidade bilíngue,<br />

tanto no ensino presencial como a distância. A educação bilíngue no <strong>IF</strong>-<strong>SC</strong> é<br />

gerenciada pelo Núcleo de Ensino e Pesquisas em Educação de Sur<strong>do</strong>s (NEPES). Desde<br />

1991 o NEPES vem realizan<strong>do</strong> atividades de ensino, pesquisa e extensão. No ensino<br />

realiza Cursos de Formação Inicial e Continuada nas áreas profissionalizantes e de<br />

Libras; Educação de Jovens e Adultos com Profissionalização; Ensino Médio;<br />

Especialização (são <strong>do</strong>is cursos: Tradução e Interpretação – Libras/Português e


19<br />

transitam entre sur<strong>do</strong>s e entre ouvintes, em movimentos que<br />

potencializam as relações de poder em espaços de enunciações tensos<br />

e conflituosos frente à heterogeneidade <strong>do</strong>s sujeitos envolvi<strong>do</strong>s. Tratase<br />

de espaços de negociações em que os significantes deslizam em<br />

todas as direções. Silva (2003, p. 169) retrata um desses momentos de<br />

tensão entre sur<strong>do</strong>s e ouvintes:<br />

Eu ficava muito satisfeita quan<strong>do</strong> via os sur<strong>do</strong>s<br />

questionan<strong>do</strong> os professores sobre sua prática<br />

pedagógica. Nessas atividades coletivas os sur<strong>do</strong>s podiam<br />

discutir com os ouvintes, pois tinham intérpretes para<br />

traduzir o que estavam falan<strong>do</strong>. Porém, a grande<br />

relevância <strong>do</strong>s encontros foi o fato <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s perceberem<br />

a importância de reivindicarem seus direitos, entre eles o<br />

de aprenderem na sua própria língua.<br />

A fala acima traduz a relevância <strong>do</strong> encontro sur<strong>do</strong>/ouvinte, cujas<br />

diferenças surdas não se situam no campo das representações<br />

colonialistas, mas em espaços pós-coloniais, em que os significa<strong>do</strong>s<br />

produzi<strong>do</strong>s pela diferença não são rechaça<strong>do</strong>s, mas são politicamente<br />

negocia<strong>do</strong>s. Essas “lutas por significa<strong>do</strong> não se resolvem no campo<br />

epistemológico, mas no terreno político, no terreno das relações de<br />

poder” (<strong>SILVA</strong>, 2006, p. 24).<br />

A política da diferença na educação de sur<strong>do</strong>s tem por finalidade<br />

fazer reaparecer as narrativas, os saberes, as culturas surdas que, ao<br />

longo da história, foram amordaçadas, apagadas, silenciadas pelo<br />

discurso colonialista. 8 A política da diferença é “um empreendimento<br />

Educação de Sur<strong>do</strong>s: Aspectos Políticos, Culturais e Pedagógicos), e em construção o<br />

Curso Superior de Tecnologia em Produção de Multimídia volta<strong>do</strong> para a produção de<br />

material didático visual (DVDs, sites e objetos de aprendizagem). A pesquisa no NEPES<br />

se dá tanto no campo acadêmico (mestra<strong>do</strong> e <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>) como no ensino (situaçõesproblema<br />

que surgem no cotidiano escolar) e desenvolvimento de material didático<br />

(DVDs, softwares etc.). A extensão é realizada em parceria com diversas instituições,<br />

tais como: empresas públicas e privadas, prefeituras, associações de sur<strong>do</strong>s, escolas<br />

públicas da rede municipal, estadual e federal etc. Em 2009 as atividades <strong>do</strong> NEPES<br />

estão sen<strong>do</strong> desenvolvidas nos seguintes Campi <strong>do</strong> <strong>IF</strong>-<strong>SC</strong>: São José, Coqueiros, Jaraguá<br />

<strong>do</strong> Sul e Chapecó. Maiores informações: www.sj.cefetsc.edu.br/~nepes.<br />

8<br />

O discurso colonialista a que me refiro nesta tese transita em diferentes campos<br />

discursivos, tais como o clínico, o familiar, o religioso, o jurídico, o educacional, o<br />

linguístico, o histórico, o filosófico etc. Para Lopes (2007, p. 8), “a ciência, no desejo de<br />

produzir conhecimentos capazes de explicar o desconheci<strong>do</strong>, inventou a surdez


20<br />

para libertar da sujeição os saberes históricos, isto é, torná-los capazes<br />

de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário,<br />

formal e científico” (FOUCAULT, 1985, p. 172). Portanto, trata-se de um<br />

projeto político que, ao evidenciar as diferenças, traz “consigo a tensão<br />

entre os saberes historicamente constituí<strong>do</strong>s sobre eles e as narrativas<br />

e resistências surdas” (SKLIAR e SOUZA, S/D, p. 12 – grifo no original).<br />

Estruturar a educação de sur<strong>do</strong>s a partir da política da diferença é<br />

situar-se em meio à heterogeneidade cultural e, dentro dela, tentar<br />

compreender os antagonismos, as contingências, as ambivalências que<br />

são próprias <strong>do</strong>s entrecruzamentos culturais. É tentar compreender<br />

como as culturas se hibridizam; é ver os entrecruzamentos em sua<br />

complexidade; é compreender como a lógica da cultura <strong>do</strong>minante pode<br />

ser subvertida pelo hibridismo, em que os saberes <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong> se<br />

infiltram “no discurso <strong>do</strong>minante” e tornam “estranha a base de sua<br />

autoridade – suas regras de reconhecimento” (BHABHA, 2005, p. 165).<br />

É nesse espaço político de intersecção que as singularidades das<br />

culturas surdas podem ser enriquecidas e transformadas. Ao circularem,<br />

os saberes sur<strong>do</strong>s ao mesmo tempo que se entrecruzam com outros<br />

saberes sem aprisionar seus significa<strong>do</strong>s também contribuem na<br />

desconstrução de “saberes que justificam o controle, a regulação e o<br />

governo das pessoas que não habitam espaços culturais hegemônicos”<br />

através <strong>do</strong>s níveis de perdas auditivas, das lesões no tímpano, <strong>do</strong>s fatores hereditários<br />

e adquiri<strong>do</strong>s. Decorrentes da ciência e de padrões históricos estabeleci<strong>do</strong>s por<br />

diferentes grupos culturais, foram cria<strong>do</strong>s distintos mo<strong>do</strong>s de se trabalhar com sujeitos<br />

acometi<strong>do</strong>s pela surdez. Na clínica, terapias da fala, aparelhos auditivos, técnicas<br />

diversas de oralidade foram desenvolvidas com a finalidade de normalização. Na<br />

família, a busca por especialistas, a dedicação integral aos filhos com surdez e a<br />

inconformidade pela falta de audição, por muitos anos mobilizaram e mobilizam os<br />

pais e mães. Na igreja, confissões, sentimento de culpa, peca<strong>do</strong>, tolerância e<br />

solidariedade com aquele que sofre são cada vez mais alimenta<strong>do</strong>s pelas práticas<br />

religiosas. Na justiça, as mobilizações por salário e por direito a ser reconheci<strong>do</strong> – ora<br />

como diferente, ora como deficiente, ora como sujeito de risco e ora como sujeito<br />

“normal” – confundem os sujeitos. Na educação, [...] a surdez como deficiência que<br />

marca um corpo determina<strong>do</strong> sua aprendizagem é inventada através <strong>do</strong> referente<br />

ouvinte, das pedagogias corretivas, da normalização e <strong>do</strong>s especialistas que fundaram<br />

um campo de saber capaz de ‘dar conta’ de to<strong>do</strong>s aqueles que não se enquadram em<br />

um perfil idealiza<strong>do</strong> de normalidade”. Outras leituras sobre o discurso colonialista em<br />

relação aos sur<strong>do</strong>s podem ser encontra<strong>do</strong>s em Lane (1992); Sanchez (1990) e Skliar<br />

(1997).


21<br />

(COSTA, 2002, p. 93 e 94). Essa compreensão é reforçada por um<br />

educan<strong>do</strong> sur<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ensino Médio Bilíngue: 9<br />

É muito importante o contato entre sur<strong>do</strong>s, pois o que nos<br />

permite desenvolver é o fato de estarmos no meio de<br />

nossa cultura e de nossa língua. Entretanto, a relação<br />

sur<strong>do</strong>s/ouvintes, quan<strong>do</strong> feita no mesmo nível, permite a<br />

troca e possibilita outras experiências (<strong>SILVA</strong>, 2006, p.<br />

22).<br />

A educação de sur<strong>do</strong>s, por esse viés, aproxima-se <strong>do</strong>s debates<br />

que propõe a sua localização num espaço político. Para Skliar (1999, p.<br />

7), a educação de sur<strong>do</strong>s deve ser definida “como uma oposição aos<br />

discursos e às práticas clínicas hegemônicas [...] e como um<br />

reconhecimento político da surdez como diferença”, porém o político<br />

deve ser visto em sua dupla dimensão: como construção histórica,<br />

cultural e social e como relações de poder/saber que permeiam tanto a<br />

proposta quanto o ato de ensinar e aprender.<br />

Ao aproximar-me dessa concepção de educação de sur<strong>do</strong>s, passo<br />

a contestar o discurso colonialista que supõe representações 10 em que o<br />

sur<strong>do</strong> é visto como um sujeito incapaz, incompleto e anormal. Esse<br />

discurso coloca um eu ouvinte supostamente superior em relação a um<br />

outro não-ouvinte – o sur<strong>do</strong> – supostamente inferior. Segun<strong>do</strong> Skliar<br />

(1999, p. 7), essas práticas colonialistas criaram um “conjunto de<br />

políticas para a surdez, políticas de representações <strong>do</strong>minantes da<br />

normalidade, que exercem pressões sobre a linguagem, as identidades<br />

e, fundamentalmente, sobre o corpo <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s”.<br />

9<br />

No <strong>IF</strong>-<strong>SC</strong>, os educan<strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s estudam numa escola de ouvintes, mas com um<br />

projeto curricular volta<strong>do</strong> para a educação de sur<strong>do</strong>s. Por exemplo, os educan<strong>do</strong>s<br />

sur<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Ensino Médio Bilíngue estudam em uma turma só de educan<strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s, com<br />

educa<strong>do</strong>res sur<strong>do</strong>s, educa<strong>do</strong>res ouvintes bilíngues e educa<strong>do</strong>res ouvintes com<br />

intérprete; o ensino é foca<strong>do</strong> na língua brasileira de sinais; as estratégias de ensino<br />

têm como foco a experiência visual <strong>do</strong> aluno sur<strong>do</strong>; as avaliações são feitas<br />

prioritariamente em Libras etc. O projeto curricular está disponível no site<br />

www.sj.cefetsc.edu.br/~nepes.<br />

10<br />

A representação é um sistema de significação e, na análise cultural, o debate<br />

vincula<strong>do</strong> à representação está centra<strong>do</strong> nos aspectos de construção e de produção<br />

das práticas de significação (<strong>SILVA</strong>, 2006).


22<br />

De acor<strong>do</strong> com Strobel (2008), nas escolas com práticas<br />

colonialistas de significação os sur<strong>do</strong>s são classifica<strong>do</strong>s de acor<strong>do</strong> com o<br />

grau de surdez e passam por uma pedagogia corretiva, 11 que centraliza<br />

o ato de ensinar e aprender em exames audiométricos, uso de próteses<br />

auditivas e de exaustivas terapias fonoarticulatórias. O colonialismo,<br />

com seu poder disciplinar 12 que articula a prática <strong>do</strong> exame com a<br />

classificação <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s, é denuncia<strong>do</strong> por Lopes (2004, pp. 45 e 46):<br />

Com o exame, cada indivíduo sur<strong>do</strong> na escola passa a ser<br />

um caso que deve ser conheci<strong>do</strong> e des<strong>do</strong>bra<strong>do</strong> dentro <strong>do</strong>s<br />

limites das pedagogias corretivas. Sen<strong>do</strong> um instrumento<br />

disciplinar, o exame toma os indivíduos como seus<br />

objetos, objetivan<strong>do</strong>-os. Transforman<strong>do</strong> cada indivíduo em<br />

um caso, cada um deles se torna parte de um mecanismo<br />

estratégico que pode ser quantifica<strong>do</strong>, numera<strong>do</strong>,<br />

descrito. Ao tecer classificações através <strong>do</strong> exame, obtêmse<br />

subsídios para que os processos de normalização,<br />

exclusão e inclusão ocorram no interior da própria escola.<br />

Esse discurso e sua prática, referentes à educação de sur<strong>do</strong>s,<br />

passaram a ser contesta<strong>do</strong>s no Brasil quan<strong>do</strong> alguns educa<strong>do</strong>res sur<strong>do</strong>s<br />

e ouvintes (Perlin, 1998; Quadros, 1997; Skliar, 1999; Souza, 1998), no<br />

final <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, começaram a estruturar um movimento, no<br />

meio acadêmico, em oposição às representações colonialistas,<br />

a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> como estratégia política o reconhecimento da diferença.<br />

Skliar (1999), mesmo reconhecen<strong>do</strong> o sur<strong>do</strong> como sujeito<br />

inacaba<strong>do</strong> e ocupan<strong>do</strong> diferentes posições, passa a identificá-lo a partir<br />

de quatro níveis diferencia<strong>do</strong>s, mas politicamente interdependentes: a<br />

diferença política, a experiência visual, as múltiplas identidades e o<br />

discurso da deficiência.<br />

11<br />

Segun<strong>do</strong> Sánchez (1990, p. 49) na pedagogia corretiva “a preocupação <strong>do</strong>s mestres,<br />

a meta da educação, não será jamais a transmissão de conhecimentos e valores da<br />

cultura, para o qual se procurava que o sur<strong>do</strong> <strong>do</strong>minasse a língua, senão endireitar a<br />

quem são vistos como deforma<strong>do</strong>s. O ensino da fala ocupa o lugar de toda a<br />

educação, se converte em meio e fim da reabilitação, o resgate de sua surdez, para<br />

enclausurá-lo pelo caminho reto, o da gente normal”.<br />

12 O conceito de poder disciplinar será apresenta<strong>do</strong> no terceiro capítulo quan<strong>do</strong>,<br />

discutirei os significa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> papel <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s nos dias de hoje.


23<br />

O sujeito sur<strong>do</strong>, visto a partir da política da diferença, não se situa<br />

no discurso medicaliza<strong>do</strong> da surdez. A surdez como diferença política<br />

busca as narrativas pós-coloniais que emergem em momentos<br />

antagônicos e ambivalentes <strong>do</strong>s enfrentamentos entre coloniza<strong>do</strong>s e<br />

coloniza<strong>do</strong>res. Portanto, não se constitui no campo das<br />

homogeneidades, normalidades e certezas históricas da modernidade,<br />

mas sim em suas contingências, que possibilitam “os fundamentos da<br />

necessidade histórica de elaborar estratégias legitima<strong>do</strong>ras de<br />

emancipação” (BHABHA, 2005, p. 240).<br />

A política da diferença, para os sujeitos que estão à margem, não<br />

representa apenas uma estratégica de enfrentamento, mas de<br />

sobrevivência, tornan<strong>do</strong>-se inevitável a construção de outros territórios<br />

de significa<strong>do</strong>s não vincula<strong>do</strong>s às práticas e senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong>minantes. Ao<br />

contrário <strong>do</strong>s pressupostos colonialistas, os estu<strong>do</strong>s pós-coloniais se<br />

propõem a criar mecanismos que façam circular os saberes <strong>do</strong>s sujeitos<br />

que estão nas margens. O sur<strong>do</strong>, por essa perspectiva, ao narrar suas<br />

histórias, seus saberes, suas práticas culturais, abre um conjunto de<br />

enuncia<strong>do</strong>s que, para produzir senti<strong>do</strong>s, relaciona-se com uma série de<br />

outros enuncia<strong>do</strong>s que com ele coexistem em um espaço<br />

historicamente delimita<strong>do</strong>. Suas histórias, seus saberes, suas práticas<br />

culturais, constituí<strong>do</strong>s de múltiplos enuncia<strong>do</strong>s, ao circularem nesses<br />

espaços, ao mesmo tempo que rejeitam a lógica binária, infiltram-se no<br />

discurso <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r. Isto é, no pós-colonialismo o “hibridismo não<br />

tem uma [...] verdade para oferecer” e “não é um terceiro termo que<br />

resolve a tensão entre duas culturas” (Ibid., p. 166), mas pode ser visto<br />

como uma forma de subverter quan<strong>do</strong> os saberes <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong> se<br />

infiltram no discurso <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r.<br />

A experiência visual <strong>do</strong> sur<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> Skliar (1999, p. 11),<br />

constitui e caracteriza a diferença, não se restringin<strong>do</strong> apenas à<br />

capacidade de produção e compreensão “especificamente lingüística ou<br />

a uma modalidade de processamento cognitivo”. Para o autor, a<br />

experiência visual “envolve to<strong>do</strong> tipo de significações, representações


24<br />

e/ou produções, seja no campo intelectual, linguístico, ético, estético,<br />

artístico, cognitivo, cultural, etc”.<br />

O sujeito sur<strong>do</strong> também não possui uma identidade única e<br />

essencial a ser revelada a partir de alguns traços universais, porque<br />

as representações sobre as identidades mudam com o<br />

passar <strong>do</strong> tempo, nos diferentes grupos culturais, no<br />

espaço geográfico, nos momentos históricos, nos sujeitos.<br />

Neste senti<strong>do</strong> é necessário ver a comunidade surda de<br />

uma forma ostensivamente plural. O sujeito<br />

contemporâneo não possui uma identidade fixa, estática,<br />

centrada, essencial ou permanente. A identidade é móvel,<br />

descentrada, dinâmica, formatada continuamente em<br />

relação às formas através das quais é representada nos<br />

diferentes sistemas culturais. A possibilidade de entender<br />

as identidades a partir de uma perspectiva política coloca<br />

as relações de poder no centro da discussão. Relações de<br />

poder que sugerem, obrigam, condicionam um certo olhar<br />

sobre a alteridade, sobre os “outros”. As identidades<br />

surdas não se constroem no vazio, mas em locais<br />

determina<strong>do</strong>s que podem ser denomina<strong>do</strong>s como “locais<br />

de transição” (SKLIAR, 1999, p. 11 – grifos no original).<br />

Para Perlin (1998), o sur<strong>do</strong>, na representação colonialista, vive em<br />

condições de sujeição e parece estar viven<strong>do</strong> numa terra de exílio, isso<br />

porque noventa por cento (90%) <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s são filhos de pais ouvintes.<br />

Por viver no ambiente da cultura ouvinte, a maioria <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s precisa<br />

permanentemente reinventar suas histórias, narrativas, identidades e<br />

representações.<br />

A consciência de pertencer a uma comunidade diferente é<br />

uma possibilidade de articular resistências às imposições<br />

exercidas por outras comunidades ou grupos <strong>do</strong>minantes.<br />

Sem essa consciência “oposicional”, o sur<strong>do</strong> viverá no<br />

primeiro e único lugar possível, onde somente poderá<br />

desenvolver mecanismos de sobrevivência. A transição da<br />

identidade ocorre no encontro com o semelhante, em que<br />

se organizam novos ambientes discursivos (SKLIAR, 1999,<br />

p. 11 – grifo no original).<br />

Segun<strong>do</strong> Skliar (1999), a interação entre sur<strong>do</strong>s permite a<br />

construção de outras narrativas; outras representações; outras


25<br />

identidades que não se situam nos discursos colonialistas, mas da<br />

diferença. Entretanto, essa construção é permanentemente atravessada<br />

pelo discurso da deficiência, tentan<strong>do</strong> adequar o sur<strong>do</strong> ao modelo<br />

medicaliza<strong>do</strong> da surdez. Esse discurso oculta um aparente cientificismo<br />

e neutralidade em relação à identidade e alteridade. O discurso da<br />

deficiência mascara a complexidade política da diferença. A diferença<br />

no discurso da deficiência é definida como diversidade, que dentro <strong>do</strong><br />

projeto <strong>do</strong> multiculturalismo liberal se direciona para o campo da<br />

normalidade.<br />

Mesmo reconhecen<strong>do</strong> que o sujeito sur<strong>do</strong> é híbri<strong>do</strong>, inacaba<strong>do</strong> e<br />

ocupa diferentes posições e lugares, assumo em determina<strong>do</strong>s<br />

momentos um certo “essencialismo estratégico” (SPIVAK, 1990). As<br />

comunidades de resistência surda não possuem culturas, línguas e<br />

identidades fixas, mas em determina<strong>do</strong>s momentos elas precisam<br />

evidenciar uma dessas marcas como uma estratégia de<br />

empoderamento contra as exclusões a que estão submetidas.<br />

Trago esse conceito pelo desejo que tenho em analisar como os<br />

sur<strong>do</strong>s se empoderam a partir de suas diferenças. Esse desejo também<br />

permitiu-me navegar por caminhos até então desconheci<strong>do</strong>s,<br />

produzin<strong>do</strong> inquietações e até mesmo estranheza frente àquilo que sou<br />

capaz de ver <strong>do</strong> lugar de onde falo, principalmente por ser um lugar<br />

transitório, inacaba<strong>do</strong> e instável e que traz em si marcas de um<br />

permanente movimento.<br />

Além disso, não posso negar certa ternura com as histórias <strong>do</strong>s<br />

educa<strong>do</strong>res-intelectuais sur<strong>do</strong>s (<strong>do</strong>ravante nomea<strong>do</strong>s intelectuais<br />

sur<strong>do</strong>s) que generosamente compartilharam comigo suas experiências<br />

durante os encontros de pesquisa, cujas filmagens, traduções, leituras e<br />

releituras <strong>do</strong>s registros iam me conduzin<strong>do</strong> por memórias entrelaçadas,<br />

de vida, de rostos, de textos. A impressão que tenho é que essas<br />

memórias, como um advento, um retorno ao passa<strong>do</strong> que captura o<br />

presente, aos poucos foram se transforman<strong>do</strong> no texto de minha tese.


26<br />

Porém, a apresentação da escrita como uma possibilidade de<br />

representação dessas memórias entrelaçadas está dividida em capítulos<br />

e seções.<br />

No primeiro capítulo apresento a delimitação <strong>do</strong> tema e <strong>do</strong><br />

problema, rearticulan<strong>do</strong> leituras que transitam entre o “desejo” e o<br />

“perigo” (HALL, 2003) <strong>do</strong>s discursos pós-coloniais. As leituras carregam<br />

em si uma trama discursiva que possibilita analisar politicamente a<br />

insuficiência representacional <strong>do</strong> sujeito sur<strong>do</strong> no contexto educacional.<br />

Em seguida, estabeleço os riscos e os desafios enfrenta<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> se<br />

constrói uma investigação que desliza por caminhos híbri<strong>do</strong>s, instáveis<br />

e mutáveis, que recusam a a<strong>do</strong>ção de perspectivas relacionadas à<br />

<strong>do</strong>minação cultural, para poder, em seguida, apresentar o corpus de<br />

análise – as narrativas surdas. Por último, articulo um procedimento<br />

analítico que procura romper com os velhos dualismos da educação de<br />

sur<strong>do</strong>s. Isto é, uso uma estratégia de análise que, ao mesmo tempo em<br />

que aproxima termos aparentemente díspares e faz ligações<br />

contingentes, também desarticula e desestabiliza a fixidez das<br />

narrativas coloniza<strong>do</strong>ras.<br />

No segun<strong>do</strong> capítulo analiso as estratégias de sobrevivência <strong>do</strong>s<br />

sur<strong>do</strong>s que vivem nos grandes centros urbanos <strong>do</strong> país. Para tanto,<br />

trago, inicialmente, o significa<strong>do</strong> de estereotipia como estratégia <strong>do</strong><br />

discurso colonialista que tenta posicionar o sur<strong>do</strong> no campo da<br />

deficiência e não da diferença cultural. Por ser uma forma de<br />

conhecimento e identificação que oscila entre o conheci<strong>do</strong> e a<br />

necessidade de ser repeti<strong>do</strong>, o estereótipo pode ser analisa<strong>do</strong>, por um<br />

la<strong>do</strong>, a partir de sua própria ambivalência e, por outro, a partir <strong>do</strong><br />

fetichismo. O objetivo da análise é evidenciar que no próprio jogo da<br />

estereotipia reside a possibilidade de resistência daqueles que são<br />

nega<strong>do</strong>s pelo discurso colonial. Em seguida, a partir das palavras<br />

“estranho” e “estrangeiro”, analiso as estratégias de sobrevivência que<br />

os sur<strong>do</strong>s a<strong>do</strong>tam para criarem seus espaços de significação em centros<br />

urbanos. Por último, trago o discurso <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s em torno


27<br />

<strong>do</strong> conceito de “povo sur<strong>do</strong>” como estratégia de sobrevivência,<br />

empoderamento e luta. Ao construir esse campo discursivo, os<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s passam a construir uma rede de significa<strong>do</strong>s que se<br />

contrapõe ao discurso colonial que lhes nega o direito à alteridade e à<br />

diferença. Ao criarem a retórica de “povo sur<strong>do</strong>”, os sur<strong>do</strong>s, ao mesmo<br />

tempo que se empoderam, também correm o risco de apagar em seu<br />

próprio seio as diferenças surdas quan<strong>do</strong> narram a sua nação a partir <strong>do</strong><br />

“discurso pedagógico”. 13<br />

No terceiro capítulo trago as narrativas <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s<br />

quanto as suas formas de enfrentamento, de desautorização <strong>do</strong><br />

discurso colonial e de articulação das diferenças. Para tanto, pauto-me<br />

em diferentes intelectuais que, ao longo de suas vidas, correram o risco<br />

de falar em público sem ter a preocupação de provocar embaraço, de<br />

tornar-se desagradável e, principalmente, sem pretender ser um<br />

pacifica<strong>do</strong>r e cria<strong>do</strong>r de consensos. Entretanto, é importante salientar<br />

que nesse capítulo a<strong>do</strong>to uma estratégia de análise que não vigia<br />

fronteiras, por saber que não existe um único discurso sobre o papel <strong>do</strong>s<br />

intelectuais, mas sim múltiplos discursos que se entrecruzam em<br />

espaços ambivalentes e contingenciais.<br />

No quarto capítulo faço uma reflexão sobre os saberes linguísticos<br />

sur<strong>do</strong>s como uma forma de resistência pós-colonial, trazen<strong>do</strong> para o<br />

debate os direitos linguísticos sur<strong>do</strong>s, a escrita de sinais e algumas<br />

possibilidades de tradução da língua de sinais brasileira para a língua<br />

portuguesa. Em relação aos direitos linguísticos, evidencio a fragilidade<br />

<strong>do</strong> ensino centra<strong>do</strong> apenas no ouvir e no falar, bem como as estratégias<br />

que os intelectuais sur<strong>do</strong>s usam para libertar-se das amarras da língua<br />

portuguesa em seu desenvolvimento intelectual. Já em relação à escrita<br />

de sinais, procuro apresentá-la como uma forma de registro que pode<br />

contribuir para a ressignificação da história e da cultura surda, que<br />

historicamente têm si<strong>do</strong> negadas pelo discurso colonialista. Por último,<br />

13<br />

O conceito de “discurso pedagógico” será desenvolvi<strong>do</strong> na última seção <strong>do</strong> segun<strong>do</strong><br />

capítulo, quan<strong>do</strong> abordarei questões vinculadas às narrativas de “povo sur<strong>do</strong>”.


28<br />

faço uma discussão em que a atividade de tradução é vista como uma<br />

arma política pela qual o intelectual sur<strong>do</strong>, ao traduzir a partir de sua<br />

própria língua e cultura, traz para a língua portuguesa o “jeito sur<strong>do</strong>” de<br />

ser e escrever.<br />

Ao escrever o último capítulo, à guisa de conclusões, procurei<br />

entrelaçar os três eixos de análise: o intelectual sur<strong>do</strong> e sua<br />

estrangeiridade, o intelectual sur<strong>do</strong> e seus significa<strong>do</strong>s e o intelectual<br />

sur<strong>do</strong> e seus saberes linguísticos com as intervenções políticas que os<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s vêm a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> para subverter as relações de poder<br />

em espaços intersticiais, em que as trocas individuais e coletivas de<br />

valores culturais não podem ser nega<strong>do</strong>s, mas politicamente<br />

negocia<strong>do</strong>s.


29<br />

CAPÍTULO I<br />

PESQUISA: UM EXERCÍCIO<br />

DE TRADUÇÃO DE SI E DO OUTRO<br />

Ernest Huet (1822 – S/D) educa<strong>do</strong>r sur<strong>do</strong> francês<br />

responsável pela criação da primeira escola para sur<strong>do</strong>s<br />

no Brasil (Imperial Instituto de Sur<strong>do</strong>s Mu<strong>do</strong>s, funda<strong>do</strong><br />

em 1856 na cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro).<br />

A pesquisa é uma oportunidade de reunir os pensamentos esparsos,<br />

e formar um mosaico de olhares plurais,<br />

que possibilita, por sua vez,<br />

novas leituras<br />

e novas inscrições de senti<strong>do</strong>.<br />

Momento ímpar para construir [...] um<br />

imaginário capaz de armar constelações cotidianas que dinamizam<br />

circuitos políticos, poéticos e culturais.<br />

Mara Lúcia Masutti


30<br />

Durante o <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> as leituras permitiram-me transitar por<br />

teorizações que me levaram por múltiplos caminhos, geran<strong>do</strong> uma<br />

tentação quase irresistível de seguir cada um deles. Cada leitura era um<br />

convite, um lugar de onde olhar, um movimento diferente a se fazer.<br />

Sem a preocupação de definir o caminho fui leva<strong>do</strong> pelas paixões,<br />

inquietações e desafios. Entretanto, por ser habitante temporário de<br />

uma Instituição – Universidade Federal de Santa Catarina (UF<strong>SC</strong>) – que<br />

também possui seus regimes de verdade, 14 posteriormente fiz escolhas<br />

no intuito de articular um campo discursivo, saben<strong>do</strong> que “não existe o<br />

caminho, nem mesmo um lugar aonde chegar e que possa ser da<strong>do</strong><br />

antecipadamente. Isso não significa que não se chegue a muitos<br />

lugares; o problema é que tais lugares não estão lá [...] para serem<br />

alcança<strong>do</strong>s ou a nos esperar” (VEIGA-NETO, 2005, p. 18 – grifos no<br />

original).<br />

A leitura <strong>do</strong>s textos, os debates em sala de aula e a participação<br />

em eventos – congressos, seminários, palestras etc. – foi uma condição<br />

para a produção da pesquisa, em especial a essa forma de abordagem<br />

que pertence “a uma e, ao mesmo tempo, a várias ‘casas’ (e não a uma<br />

‘casa’ particular)” (HALL, 2005, p. 88). De acor<strong>do</strong> com Larrosa, a leitura<br />

é uma atividade que tem a ver com o que o leitor sabe e com o que ele<br />

é. Trata-se de pensar a leitura como algo que nos constitui ou revela<br />

aquilo que somos. A leitura não é apenas um meio de se conseguir<br />

conhecimento, de ver o mun<strong>do</strong> que passa à nossa volta, diante de<br />

nossos olhos, ao qual permanecemos exteriores, alheios, impassíveis. A<br />

leitura “não é outra coisa que aquilo que se dá a pensar para que seja<br />

pensa<strong>do</strong> de muitas maneiras” (LARROSA, 2003, p. 143). A leitura “que<br />

se dá pensar” transita e negocia senti<strong>do</strong>s, realiza escolhas e alarga o<br />

leque de possibilidades da pesquisa.<br />

14<br />

Segun<strong>do</strong> Foucault (1985, p. 12), “cada sociedade tem seu regime de verdade, sua<br />

política geral de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar<br />

como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os<br />

enuncia<strong>do</strong>s verdadeiros ou falsos; a maneira como se sanciona uns e outros; as<br />

técnicas e os procedimentos que são valoriza<strong>do</strong>s para a obtenção da verdade; o<br />

estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”.


31<br />

Durante o processo de leitura me aproximei das discussões <strong>do</strong>s<br />

estu<strong>do</strong>s pós-coloniais e de suas articulações com o pós-estruturalismo,<br />

frente a suas discussões em relação à língua, cultura e identidade.<br />

Entretanto, apesar de saber que o signo pós-colonial transita entre o<br />

“desejo” e o “perigo” (HALL, 2003), também sei que ele carrega em si<br />

um potencial explicativo acerca da insuficiência representacional <strong>do</strong><br />

sujeito sur<strong>do</strong>.<br />

A partir desses estu<strong>do</strong>s, comecei a imaginar os cenários que iriam<br />

compor a pesquisa, mas eles deslizavam, moviam-se de múltiplas<br />

formas, transitavam entre fronteiras discursivas, levan<strong>do</strong>-me a perceber<br />

que a pesquisa é um processo em permanente acabamento. Por isso,<br />

as teorizações aqui apresentadas não são instrumentos de análise que<br />

procuram desvendar sua verdade, mas visam colaborar de múltiplas<br />

maneiras, aproximan<strong>do</strong> e/ou afastan<strong>do</strong> formações discursivas,<br />

realizan<strong>do</strong> escolhas, desfian<strong>do</strong> e fian<strong>do</strong> múltiplos textos em seus<br />

contextos que se modificam permanentemente durante a pesquisa.<br />

Nas palavras de Veiga-Neto (2005, p. 31): “À medida que nos movemos<br />

para o horizonte, novos horizontes vão surgin<strong>do</strong>, num processo infinito”.<br />

1. DELIMITAÇÃO DO TEMA E DO PROBLEMA<br />

Num tempo em que as fronteiras de contato 15 entre o dentro e o<br />

fora colocam a situação para<strong>do</strong>xal de não ser possível pensar em si<br />

mesmo sem o outro, sem o híbri<strong>do</strong>, que produz instabilidade de<br />

senti<strong>do</strong>s, sinto-me desafia<strong>do</strong> a analisar, a partir da política da diferença,<br />

as relações de poder na educação de sur<strong>do</strong>s. O tema nasceu da<br />

insatisfação que tinha – e continuo ten<strong>do</strong> – quanto às representações<br />

colonialistas em relação aos sur<strong>do</strong>s, em que as diferenças culturais,<br />

linguísticas e identitárias, dentre outras, têm si<strong>do</strong>, históricamente,<br />

15 Utilizo o termo “fronteiras de contato” na mesma perspectiva de Pratty (1999, p.<br />

18), isto é, como sinônimo de fronteiras culturais, enfatizan<strong>do</strong> as dimensões<br />

interativas e improvisadas <strong>do</strong>s encontros coloniais, pon<strong>do</strong> em questão como os<br />

sujeitos coloniais são constituí<strong>do</strong>s nas e pelas relações entre coloniza<strong>do</strong>s e<br />

coloniza<strong>do</strong>res.


32<br />

produzidas a partir de oposições binárias – sur<strong>do</strong>/ouvinte, língua de<br />

sinais/língua oral, visualidade/sonoridade etc. –, negan<strong>do</strong> a<br />

complexidade que transita entre elas.<br />

Sinto-me instiga<strong>do</strong> a buscar outros discursos, assumir outras<br />

perspectivas, olhar por outros prismas, elaborar outras tramas textuais,<br />

que permitam outras tessituras que não se situam no campo das<br />

oposições binárias. É, portanto, em um campo híbri<strong>do</strong> que se insere a<br />

pesquisa, que tem como pano de fun<strong>do</strong> a localização política da<br />

diferença e cede o palco às tramas em que as relações de poder são<br />

engendradas. Os sujeitos da pesquisa, com suas performances,<br />

trouxeram para o palco, espaço de negociação, suas múltiplas<br />

perspectivas sobre a política da diferença. A idéia, a partir dessas<br />

performances, é trazer para o campo da visibilidade as relações<br />

assimétricas de poder que emergem de forma antagônica, contingencial<br />

e ambivalente na educação de sur<strong>do</strong>s.<br />

A pesquisa também se localiza num momento de transição da<br />

política de educação de sur<strong>do</strong>s no Brasil (Quadros, 1997; Souza, 1998;<br />

Skliar, 1999), em que algumas mudanças acarretam riscos, desafios e<br />

incertezas. Essas mudanças já começaram a ser percebidas no final da<br />

década de 80 <strong>do</strong> século XX, quan<strong>do</strong> os movimentos sur<strong>do</strong>s articulam-se<br />

em nível nacional e criam a Federação Nacional de Educação e<br />

Integração de Sur<strong>do</strong>s (FENEIS), colocan<strong>do</strong> no centro de suas<br />

reivindicações o reconhecimento político em ser sur<strong>do</strong>. Ao a<strong>do</strong>tar essa<br />

estratégia política, a FENEIS 16 trouxe para o contexto social o debate<br />

16 No primeiro seminário nacional realiza<strong>do</strong> em 2001 em Caxias <strong>do</strong> Sul intitula<strong>do</strong><br />

“Sur<strong>do</strong>s: um olhar sobre as práticas em educação”, a FENEIS – Regional <strong>do</strong> Rio Grande<br />

<strong>do</strong> Sul – discutiu um conjunto de ações para orientar as intervenções <strong>do</strong>s movimentos<br />

de resistência surda no contexto acadêmico. Durante o seminário, dentre outras<br />

coisas, definiu-se em linhas gerais a formação mínima <strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r sur<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> a<br />

FENEIS, o educa<strong>do</strong>r sur<strong>do</strong> deveria ter: “conhecimentos sobre aspectos legais e suas<br />

implicações na educação <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s; conhecimentos sobre as políticas de inclusão e<br />

exclusão sociais e educacionais; uma visão crítica da relação da educação <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s<br />

com a educação especial; um conhecimento da pedagogia da diferença e as<br />

formulações que esta traz para a identidade surda; conhecimentos de projetos<br />

políticos e projetos institucionais para a surdez; condições de distinguir modelos<br />

conceituais sobre os sur<strong>do</strong>s e a surdez: modelos clínicos, antropológicos e da<br />

diferença; distinguir os discursos e práticas sobre a ‘deficiência auditiva’ na educação,<br />

discursos e práticas clínicas; discursos e práticas sociais; conhecer as implicações <strong>do</strong>


33<br />

sobre as relações assimétricas de poder a partir da política da diferença.<br />

Em consonância com a política da FENEIS, algumas instituições<br />

emergiram como campos de resistência, caso da atual política da<br />

educação de sur<strong>do</strong>s no <strong>IF</strong>-<strong>SC</strong> 17 e UF<strong>SC</strong>. 18<br />

Durante o processo de definição da pesquisa fui perceben<strong>do</strong> que a<br />

análise desse tema é de extrema complexidade por envolver questões<br />

referentes às diferenças identitárias, culturais e linguísticas <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s.<br />

Desse mo<strong>do</strong>, tratar dessas diferenças exige entrar no cerne <strong>do</strong>s regimes<br />

de verdade que vêm, ao longo da história, produzin<strong>do</strong> representações<br />

coloniza<strong>do</strong>ras (Skliar, 1999; Wrigley, 1996) sobre o sur<strong>do</strong> no contexto<br />

educacional brasileiro.<br />

Uma possibilidade que se abriu para a discussão <strong>do</strong> tema foi<br />

justamente com os próprios intelectuais sur<strong>do</strong>s que atualmente<br />

trabalham no <strong>IF</strong>-<strong>SC</strong>, UF<strong>SC</strong> e UFU – Universidade Federal de Uberlândia –,<br />

onde permanentemente, denunciam com outros intelectuais ouvintes,<br />

as assimetrias de poder no contexto educacional brasileiro.<br />

É importante salientar que o sujeito sur<strong>do</strong>, nesta pesquisa,<br />

também é narra<strong>do</strong> como sujeito que se constitui em uma<br />

multiterritorialidade. Em seu senti<strong>do</strong> mais amplo, a multiterritorialidade<br />

está vinculada ao conceito de território em sua dupla dimensão:<br />

material e simbólica. A etimologia da palavra “território” aparece<br />

simultaneamente vinculada a territorium (terra) e a terreo, territor<br />

disability e <strong>do</strong> estereótipo na educação <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s; conhecer as abordagens<br />

tradicionais <strong>do</strong> currículo na escolarização <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s: práticas e discursos atuais; ter<br />

uma introdução à Teoria Crítica <strong>do</strong> Currículo; conhecer sobre currículo e ideologia,<br />

linguagem, poder, cultura, política cultural; capacidade para elaborar uma proposta<br />

pedagógica e um currículo para a diferença surda. Se possivelmente as escolas<br />

tenham conselho pedagógico sur<strong>do</strong>; estabelecer uma possível posição em relação ao<br />

poder e conhecimento nas escolas para sur<strong>do</strong>s (diretor, pedagogo...) para a atuação<br />

<strong>do</strong>s educa<strong>do</strong>res sur<strong>do</strong>s na educação e na escolarização <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s; propor um projeto:<br />

contato incondicional professor sur<strong>do</strong>/aluno sur<strong>do</strong>; conhecer as políticas de prevenção<br />

e acompanhamento da surdez”.<br />

17<br />

Maiores Informações acessar a tese de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> de Paulo Cesar Macha<strong>do</strong><br />

“Diferença Cultural e educação Bilíngüe: as narrativas <strong>do</strong>s professores sur<strong>do</strong>s sobre<br />

questões curriculares” em: http://www.ppgeufsc.com.br/lista_tese_di.php<br />

18<br />

A partir <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s em educação, a UF<strong>SC</strong>, desde 2003, vem desenvolven<strong>do</strong><br />

atividades de ensino, pesquisa e extensão. Dentre as atividades destaco os cursos de<br />

Licenciatura e Bacharela<strong>do</strong> em Letras Libras. Maiores informações: www.libras.ufsc.br.


34<br />

(terror, aterrorizar). Mesmo em seu senti<strong>do</strong> etimológico, o território tem<br />

uma dupla significação. O território pode ser visto como <strong>do</strong>minação da<br />

terra por aqueles que se apropriam pela força e como terror para<br />

aqueles que ficaram alija<strong>do</strong>s da terra ou impedi<strong>do</strong>s de entrar. Para<br />

Haesbaert (2004, p. 344) viver em vários territórios ao mesmo tempo é<br />

viver numa multiterritorialidade, “pelo simples fato de que, se o<br />

processo de territorialização parte <strong>do</strong> nível individual ou de pequenos<br />

grupos, toda relação social implica uma interação territorial, um<br />

entrecruzamento de diferentes territórios”. Seguin<strong>do</strong> a lógica de<br />

Haesbaert, podemos dizer que os sur<strong>do</strong>s e os ouvintes não vivem em<br />

um único território, estável, fixo e imutável, pois o que existe são<br />

múltiplos territórios, instáveis e mutáveis, cujas fronteiras têm múltiplas<br />

zonas de contato e estão em permanente movimento.<br />

A partir da multiterritorialidade surda busquei uma brecha, uma<br />

fissura para investigar: Como a política da diferença subverte as<br />

relações de poder na educação de sur<strong>do</strong>s Ao aceitar esse desafio me<br />

coloco em um labirinto no qual “inúmeras são as alternativas de escolha<br />

e as trilhas a serem percorridas, estan<strong>do</strong> assim todas as possibilidades<br />

em aberto, sen<strong>do</strong> viáveis todas as ousadias” (AZIBEIRO, 2002, p. 2).<br />

2. (RE)ARTICULANDO LEITURAS QUE TRANSITAM ENTRE O<br />

“DESEJO” E O “PERIGO”<br />

Quan<strong>do</strong> me aproximei <strong>do</strong>s discursos pós-coloniais percebi que os<br />

mesmos se inscreviam em narrativas cujas fronteiras espaciais,<br />

temporais e discursivas se entrecruzam, mesclam sujeitos de diversos<br />

cantos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, sujeitos diaspóricos e que transitam entre o passa<strong>do</strong><br />

e o presente, construin<strong>do</strong> pontes entre espaços assimétricos,<br />

(re)articulan<strong>do</strong> diferenças para alcançar outras margens, múltiplas e<br />

transitórias.<br />

Hall (2003) nos diz que o pós-colonialismo seria uma tentativa de<br />

posicionamento político dentro de um campo aberto e flexível que é a<br />

situação pós-colonial, sen<strong>do</strong> uma de suas contribuições a atenção que


35<br />

dá ao “fato de que a colonização nunca foi algo externo às sociedades<br />

das metrópoles imperiais" (Ibid., p. 108). Também defende que “os<br />

binarismos políticos não estabilizam o campo <strong>do</strong> antagonismo político<br />

(se é que já o fizeram)” e que “as posições políticas não são fixas”<br />

(Ibid., p. 104). Para o autor, o termo pós-colonial não se restringe a<br />

descrever uma dada sociedade ou época. A crítica pós-colonial “relê a<br />

colonização como parte de um processo global essencialmente<br />

transnacional e transcultural – e produz uma reescrita descentrada,<br />

diaspórica, ou global, das grandes narrativas imperiais <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>,<br />

centradas na nação” (Ibid., p. 109).<br />

O discurso pós-colonial 19 não é uma forma de narrar perío<strong>do</strong>s<br />

históricos. As lutas e os processos de descolonização seriam apenas um<br />

momento distinto que reverte fundamentalmente à configuração<br />

política <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>do</strong> poder. O pós-colonial seria um discurso que<br />

opera no limite de um saber em formação, não como um paradigma<br />

convencional, mas como um saber que transita entre uma lógica<br />

racional sucessiva e uma lógica desconstrutora. O discurso pós-colonial<br />

é uma resposta à necessidade de superar a crise de compreensão<br />

produzida pela incapacidade das velhas categorias de explicar o mun<strong>do</strong><br />

(HALL, 2003). Nas palavras de Souza (2004, p. 122), o discurso póscolonial<br />

combate a “instauração de um mito de origem – a supremacia<br />

absoluta da raça coloniza<strong>do</strong>ra –” e coloca-se numa formação discursiva<br />

19<br />

O debate <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s pós-coloniais, apresenta<strong>do</strong> neste capítulo, não tem a<br />

intencionalidade de vencer a complexidade desse campo discursivo. A idéia é<br />

apresentar de forma geral os principais conceitos que nortearão o trabalho de<br />

pesquisa. Porém, tem-se a noção das críticas de autores, como: a) Shohat, que crítica<br />

a ambigüidade teórica e política <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s pós-coloniais. Segun<strong>do</strong> a autora, o póscolonial<br />

obscurece as distinções nítidas entre coloniza<strong>do</strong>res e coloniza<strong>do</strong>; dissolve a<br />

política de resistência e funde histórias, temporalidades e formações raciais distintas<br />

em uma mesma categoria universalizante (HALL, 2003, p.102); b) McClintock<br />

questiona o conceito de pós-colonial “por sua linearidade e sua suspensão<br />

arrebata<strong>do</strong>ra da história” e ao tentar superar os binarismos coloniais, a teoria recoloca<br />

outra grande oposição binária: colonial/pós-colonial (Id.) e c) Dirlik nos diz que o<br />

conceito pós-colonial “é uma celebração <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> fim <strong>do</strong> colonialismo”; “é um<br />

discurso pós-estruturalista e pós-fundacionista emprega<strong>do</strong> principalmente por<br />

intelectuais desloca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Terceiro Mun<strong>do</strong>, que estão se dan<strong>do</strong> bem em universidades<br />

americanas prestigiosas” e menosprezam a estruturação capitalista <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

moderno (Ibid., p. 102 e 103).


36<br />

em que a alteridade e o hibridismo são determinantes na construção da<br />

identidade <strong>do</strong> sujeito.<br />

Para Bhabha (2005, p. 239), os discursos pós-coloniais surgem <strong>do</strong><br />

“testemunho colonial <strong>do</strong>s países <strong>do</strong> Terceiro Mun<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s discursos das<br />

‘minorias’ dentro de divisões geopolíticas de Leste e Oeste, Norte e<br />

Sul”, ten<strong>do</strong> por objetivo intervir nos “discursos ideológicos da<br />

modernidade que tentam dar ‘normalidade’ hegemônica ao<br />

desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas de nações, raças,<br />

comunidades, povos” (grifo no original).<br />

Os discursos pós-coloniais, segun<strong>do</strong> Bhabha, devem subverter a<br />

lógica da “normalidade hegemônica” – “a supremacia absoluta da raça<br />

coloniza<strong>do</strong>ra” –, e uma das estratégias possíveis está na circulação <strong>do</strong>s<br />

enuncia<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s próprios sujeitos que vivem a situação pós-colonial.<br />

Sujeitos <strong>do</strong> antigo Terceiro Mun<strong>do</strong>, principalmente aqueles das excolônias<br />

da Inglaterra, França e Portugal ou, ainda, sujeitos<br />

metropolitanos frutos de diásporas sociais, filhos das chamadas<br />

“minorias” – imigrantes, negros, índios, sur<strong>do</strong>s, homossexuais e famílias<br />

lideradas por mulheres.<br />

Um exemplo de combate à “normalidade hegemônica” são os<br />

escritos de Edward Said (1935 – 2002). Em 1978, ao publicar o livro<br />

“Orientalismo – O Oriente como Invenção <strong>do</strong> Ocidente”, Said passa a se<br />

contrapor às representações européias, até então pre<strong>do</strong>minantes em<br />

relação ao "Oriente". Ao retomar a história <strong>do</strong>s povos orientais e a<br />

forma como suas imagens foram construídas, Said mostra que a<br />

representação "ocidental" <strong>do</strong> que é o "Oriente" tem pouco a ver com as<br />

culturas e os povos que de fato viveram/vivem naqueles locais;<br />

eram/são mais uma busca de diferenciação e uma tentativa de<br />

justificação da supremacia <strong>do</strong> Ocidente sobre o Oriente. O discurso<br />

eurocêntrico é uma reprodução sistemática da distinção entre o centro<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> – o Primeiro Mun<strong>do</strong> – e o seu resto, a periferia – África, Ásia e<br />

América Latina. Assim, as narrativas de poder colonialistas significam o


37<br />

desprezo pela diferença, apresentan<strong>do</strong> “o coloniza<strong>do</strong> como uma<br />

população de tipos degenera<strong>do</strong>s com base na origem racial de mo<strong>do</strong> a<br />

justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e<br />

instrução” (BHABHA, 2005, p. 111).<br />

Bhabha (2005), em “A Outra Questão: O Estereótipo, a<br />

Discriminação e o Discurso Colonial”, amplia o debate sobre o discurso<br />

eurocêntrico/colonialista em relação ao “outro”. Para ele o discurso<br />

colonial depende “<strong>do</strong> conceito de ‘fixidez’ na construção ideológica da<br />

alteridade” (Ibid., p. 105) e é um aparato “que se apóia no<br />

reconhecimento e repúdio de diferenças raciais/culturais/históricas [...]<br />

Ele busca legitimação para suas estratégias através da produção de<br />

conhecimentos [...] que são estereotipa<strong>do</strong>s, mas avalia<strong>do</strong>s<br />

antiteticamente” (Ibid., p. 111).<br />

Ao se colocar como uma representação direta da realidade, o<br />

discurso colonial lembra uma forma de narrativa em que os indivíduos<br />

estão agrega<strong>do</strong>s a um sistema de representação, um regime de<br />

verdade cuja norma é estabelecida pelo coloniza<strong>do</strong>r. Para fixar os<br />

indivíduos e minorias sociais em um território simbólico, o discurso<br />

colonial cria estereótipos a partir de uma suposta normalidade<br />

totaliza<strong>do</strong>ra, repudian<strong>do</strong> as “diferenças raciais/culturais/históricas”.<br />

Quan<strong>do</strong> Bhabha (2005) diz que o discurso colonial “busca sua<br />

legitimação para suas estratégias” mediante a elaboração de<br />

conhecimentos estereotipa<strong>do</strong>s, “mas avalia<strong>do</strong>s antiteticamente”, ele<br />

está se referin<strong>do</strong> à lógica binária <strong>do</strong> discurso colonial, pela qual o<br />

mun<strong>do</strong> é visto em termos opostos – centro/margem;<br />

coloniza<strong>do</strong>r/coloniza<strong>do</strong>; oriente/ocidente – e nas questões específicas <strong>do</strong><br />

sur<strong>do</strong> eu incluiria – ouvinte/sur<strong>do</strong>; língua oral/língua de sinais; oral/visual<br />

–, estabelecen<strong>do</strong> uma relação de <strong>do</strong>minância em que o primeiro termo<br />

sempre representa a norma.<br />

As oposições binárias estão estruturalmente relacionadas uma à<br />

outra e, no discurso colonialista, há uma variação subjacente a partir de


38<br />

um binarismo que pode se rearticular em qualquer contexto, de várias<br />

formas, como por exemplo: a partir <strong>do</strong> binário coloniza<strong>do</strong>r/coloniza<strong>do</strong>,<br />

tem-se os seguintes binários subjacentes – branco/não branco;<br />

civiliza<strong>do</strong>/primitivo; avança<strong>do</strong>/retarda<strong>do</strong>; bom/diabólico; bonito/feio;<br />

humano/bestial – (ASHCROFT, 2005) que pela supremacia <strong>do</strong> discurso<br />

colonial faz circular enuncia<strong>do</strong>s que evidenciam o seu valor de verdade,<br />

isto é, o coloniza<strong>do</strong>r é branco, civiliza<strong>do</strong>, avança<strong>do</strong>, bom, bonito e<br />

humano e o seu “outro” – o coloniza<strong>do</strong> – é o seu oposto: preto,<br />

retarda<strong>do</strong>, diabólico, feio e bestial. Portanto, a estratégia <strong>do</strong> discurso<br />

colonial é a de fixar enuncia<strong>do</strong>s que impeçam o surgimento de espaços<br />

intersticiais entre esses extremos: coloniza<strong>do</strong>/coloniza<strong>do</strong>r. Porém, são<br />

esses espaços geralmente desconheci<strong>do</strong>s, invisíveis que podem<br />

propiciar o surgimento de algo novo, algo diferente.<br />

Segun<strong>do</strong> Bhabha (2005), a resistência à lógica binária emerge nos<br />

espaços intersticiais, pois o discurso colonial que aparentemente a tu<strong>do</strong><br />

ordena e regula simplesmente parece ter sucesso em sua <strong>do</strong>minação<br />

sobre o coloniza<strong>do</strong>. O sucesso aparente <strong>do</strong> discurso colonial está<br />

marca<strong>do</strong> pela resistência <strong>do</strong>s coloniza<strong>do</strong>s. A autoridade colonial sabe<br />

que a suposta diferença é uma ficção que pode ser minada pela<br />

resistência da população colonizada. Entretanto, essa resistência é<br />

simultaneamente reconhecida e negada pelo coloniza<strong>do</strong>r. De forma<br />

significativa, há uma tensão permanente entre a ilusão da diferença<br />

imposta pelo discurso colonial e a resistência <strong>do</strong>s povos coloniza<strong>do</strong>s. O<br />

poder colonial é ansioso, e não consegue plenamente o que quer. Não<br />

existe uma situação estável entre coloniza<strong>do</strong>s e coloniza<strong>do</strong>res. Essa<br />

ansiedade abre fissuras, brechas no discurso colonial, que pode ser<br />

explorada pelo coloniza<strong>do</strong>. Por isso, Bhabha dá ênfase à ação <strong>do</strong>s<br />

“sentencia<strong>do</strong>s da história”, evidencian<strong>do</strong> que o processo de significação<br />

“não se faz por si só num tempo e espaço abstratos; exige” a relação<br />

entre sujeitos que ocupam “um determina<strong>do</strong> tempo e um determina<strong>do</strong>


39<br />

espaço” e estão articula<strong>do</strong>s “com uma determinada dimensão social (o<br />

locus da enunciação)”. 20<br />

2.1. O Locus de Enunciação<br />

Para analisar a ação <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong> no contexto colonial, Bhabha<br />

a<strong>do</strong>tou a estratégia desconstrutivista de Derrida e a valorização <strong>do</strong><br />

hibridismo como elemento constituinte da linguagem. Ao a<strong>do</strong>tar essa<br />

direção, Bhabha se contrapõe à lógica binária tanto da literatura escrita<br />

<strong>do</strong>s coloniza<strong>do</strong>s (indianos) quanto <strong>do</strong>s coloniza<strong>do</strong>res (ingleses), que<br />

procuravam representar em seus textos o sujeito colonial – coloniza<strong>do</strong><br />

ou coloniza<strong>do</strong>r – mais autêntico “<strong>do</strong> que fora antes retrata<strong>do</strong>” (SOUZA,<br />

2004, p. 114).<br />

Para Bhabha, tal tendência de autenticidade é fruto de uma<br />

posição arraigada na visão linear, evolutiva e progressiva, que procura<br />

conectar fatos e eventos a partir de uma lógica de causa e efeito. Em<br />

termos de linguagem, essa perspectiva não capta “a descontinuidade e<br />

a diferença implícitas na lacuna entre o significante e o significa<strong>do</strong>”<br />

(Ibid., p. 115). Bhabha menciona que o “real”, o “autêntico” não é algo<br />

recuperável mediante um retorno a uma suposta origem. Essa prática<br />

analítica que elimina “o conceito de uma realidade transcendental e<br />

não-mediada, abre uma fenda entre o significante e o significa<strong>do</strong>”, não<br />

postulan<strong>do</strong> uma representação de algo exterior, “mas sim, como um<br />

processo produtivo de significa<strong>do</strong>s, através <strong>do</strong> qual várias posições de<br />

sujeitos ideológicas e historicamente situadas podem ser estabelecidas,<br />

posições a partir das quais o significa<strong>do</strong> é construí<strong>do</strong>” (Id.). A<br />

construção <strong>do</strong> significa<strong>do</strong>, nesse processo, se dá “numa dinâmica de<br />

referências e diferenças em relação a outros discursos ideológica e<br />

historicamente construí<strong>do</strong>s (isto é, os discursos <strong>do</strong>s coloniza<strong>do</strong>s se<br />

20<br />

Anotações <strong>do</strong> curso “Tradução Cultural e Identidades: Uma Leitura de Homi Bhabha”<br />

ministra<strong>do</strong> pelo professor Lynn Mario T. Menezes de Souza no segun<strong>do</strong> semestre de<br />

2007 no Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa<br />

Catarina.


40<br />

constroem no contexto <strong>do</strong>s discursos <strong>do</strong>s coloniza<strong>do</strong>res e vice-versa)”<br />

(Ibid., p. 117).<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, em termos de representação não existe uma<br />

imagem mais autêntica <strong>do</strong> sujeito, pois ela é construída tanto pelo<br />

coloniza<strong>do</strong> como pelo coloniza<strong>do</strong>r; o que existe é uma representação<br />

híbrida <strong>do</strong> sujeito. Essa representação contém traços “de outros<br />

discursos à sua volta num jogo de diferenças e referências que<br />

impossibilita a avaliação pura e simples de uma representação como<br />

sen<strong>do</strong> mais autêntica ou mais complexa que a outra” (Id.).<br />

Segun<strong>do</strong> Bhabha (2005), essa busca pelas origens é um processo<br />

inócuo e infrutífero típico <strong>do</strong> realismo e <strong>do</strong> historicismo 21 que procuram<br />

“identificar um começo, um ponto de origem a partir <strong>do</strong> qual to<strong>do</strong> o<br />

passa<strong>do</strong> de uma cultura pode ser visto como se fosse um processo<br />

linear” (Ibid., p. 118). Entretanto, ao a<strong>do</strong>tar a estratégia<br />

desconstrutivista, Bhabha evidencia que o sujeito não mais autêntico,<br />

mas híbri<strong>do</strong>, pode ser representa<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> seu próprio enuncia<strong>do</strong>. 22<br />

Bhabha se apóia no conceito sócio-histórico <strong>do</strong> signo bakhtiniano. Para<br />

ele, a conexão entre o significante e o significa<strong>do</strong> se dá:<br />

mediada por intérpretes ou usuários da linguagem sempre<br />

situa<strong>do</strong>s socialmente em determina<strong>do</strong>s contextos<br />

ideológicos, históricos e sociais, marca<strong>do</strong>s por todas<br />

variáveis existentes nesses contextos (classe social, sexo,<br />

faixa etária, origem geográfica etc.) [...] como tal, o signo<br />

21<br />

Segun<strong>do</strong> Souza (2004, p. 115), no conluio entre o historicismo e o realismo “o tempo<br />

é visto como um processo linear, evolutivo e progressivo, conectan<strong>do</strong> eventos numa<br />

lógica de causa e conseqüência, a realidade por sua vez passa a ser vista como uma<br />

totalidade coerente e ordenada [...] acredita-se que tanto esse tempo linear quanto<br />

essa totalidade real são representáveis de forma direta e não mediada [...] Em termos<br />

de linguagem [...] o signo é visto como unitário e da<strong>do</strong> (isto é, não construí<strong>do</strong>), e a<br />

descontinuidade e a diferença implícitas na lacuna entre o significante e o significa<strong>do</strong><br />

passam despercebidas, resultan<strong>do</strong> na aparente estabilidade e previsibilidade <strong>do</strong><br />

significa<strong>do</strong>”.<br />

22 “Enquanto a enunciação se refere ao contexto sócio-histórico e ideológico dentro <strong>do</strong><br />

qual um determina<strong>do</strong> locutor ou usuário da linguagem está sempre localiza<strong>do</strong>, o<br />

enuncia<strong>do</strong> se refere à fala ou ao texto produzi<strong>do</strong> por esse locutor nesse contexto.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, Bhabha compartilha uma visão sociodiscursiva da linguagem, em que,<br />

em vez de sistemas e falantes abstratos e idealiza<strong>do</strong>s, existem usuários e<br />

interlocutores sempre sócio-historicamente situa<strong>do</strong>s e contextualiza<strong>do</strong>s” (SOUZA,<br />

2004, p. 118).


41<br />

bakhtiniano é sempre material, produto de condições<br />

determinadas de produção e fruto <strong>do</strong> trabalho necessário<br />

da interpretação. Tal conceito de contexto e de condições<br />

sócio-históricas de produção e interpretação é chama<strong>do</strong><br />

por Bhabha de lócus de enunciação (SOUZA, 2004, p.<br />

119).<br />

Dessa forma, para compreender as diferenças surdas como<br />

sistemas de significação – arbitrários e instáveis –, torna-se<br />

indispensável compreender o locus de enunciação de quem está<br />

falan<strong>do</strong>, porque, diferentemente <strong>do</strong>s discursos colonialistas prontos,<br />

homogêneos e fecha<strong>do</strong>s, os enuncia<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong> locus de enunciação<br />

está atravessa<strong>do</strong> por contextos diversos que constituem qualquer<br />

sujeito – coloniza<strong>do</strong> ou coloniza<strong>do</strong>r –, isto é, o locus de enunciação é o<br />

que Bhabha chama de espaço intersticial em que “toda gama<br />

contraditória e conflitante de elementos lingüísticos e culturais<br />

interagem e constituem o hibridismo” (Id.).<br />

Por esse enfoque o enuncia<strong>do</strong> não pode ser considera<strong>do</strong> fora <strong>do</strong><br />

locus de enunciação, e para compreendê-lo é necessário entender que<br />

ele sempre acontece num processo dialógico. Segun<strong>do</strong> Bakhtin (1995),<br />

o enuncia<strong>do</strong> procede de alguém e se destina a alguém, ao mesmo<br />

tempo que propõe uma réplica. O enuncia<strong>do</strong>, por ser um ato de fala, é<br />

constituí<strong>do</strong> de significação e de senti<strong>do</strong> e sua compreensão também só<br />

é possível na interação.<br />

A significação é a parte geral e abstrata da palavra; são os<br />

conceitos que estão nos dicionários responsáveis pela<br />

compreensão entre os falantes. Os elementos da<br />

enunciação, reiteráveis e idênticos cada vez que são<br />

repeti<strong>do</strong>s, constituem a significação que integra o aspecto<br />

técnico da enunciação para a realização <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. O<br />

senti<strong>do</strong> ou tema é construí<strong>do</strong> na compreensão ativa e<br />

responsiva e estabelece a ligação entre os interlocutores.<br />

O senti<strong>do</strong> da enunciação não está no indivíduo, nem na<br />

palavra e nem nos interlocutores; é o efeito da interação<br />

entre o locutor e o receptor, produzi<strong>do</strong> por meio de signos<br />

lingüísticos (RECHDAN, 2003, p. 1).<br />

Sen<strong>do</strong> assim, a interação passa a ser o meio mais significativo na<br />

produção <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. Conforme Bakhtin (1995, p. 129), o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>


42<br />

enuncia<strong>do</strong> “é concreto, tão concreto como o instante histórico ao qual<br />

ele pertence. Somente o enuncia<strong>do</strong> toma<strong>do</strong> em toda a sua plenitude<br />

concreta, como fenômeno histórico, possui um senti<strong>do</strong>”. O senti<strong>do</strong> é<br />

único, não renovável, individual, e expressa a situação histórica, cultural<br />

e ideológica no momento <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong>. Portanto, o enuncia<strong>do</strong> expressa<br />

senti<strong>do</strong>s diferentes em cada momento de interlocução. Não depende<br />

apenas <strong>do</strong>s aspectos linguísticos, mas também <strong>do</strong> locus de enunciação.<br />

Assim, no enuncia<strong>do</strong> “o sur<strong>do</strong> é diferente <strong>do</strong> ouvinte” há tantos senti<strong>do</strong>s<br />

quanto os diversos contextos – locus de enunciação – em que eles<br />

aparecem.<br />

O enuncia<strong>do</strong> é produto da interação de sujeitos socialmente<br />

organiza<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> o diálogo a sua forma mais importante. O diálogo<br />

transcende a comunicação verbal, permitin<strong>do</strong> todas as formas de<br />

comunicação, cuja emissão se orienta em função <strong>do</strong> interlocutor. A<br />

palavra é o produto da interação entre locutor e interlocutor; ela serve<br />

de expressão em relação ao outro, em relação à coletividade. “A<br />

palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela<br />

se apóia sobre mim numa extremidade, na outra se apóia sobre o meu<br />

interlocutor. A palavra é o território comum <strong>do</strong> locutor e <strong>do</strong> interlocutor”<br />

(BAKHTIN, 1995, p.113). É na interação, no processo relacional locutor e<br />

interlocutor que a fala, como língua, vive e evolui historicamente. Dessa<br />

forma, os enuncia<strong>do</strong>s só podem ser ressignifica<strong>do</strong>s no processo<br />

relacional – locutor e interlocutor.<br />

No dizer de Bakhtin (1995, p. 121), o ato de fala “sempre cria algo<br />

que, antes dele, não existira, algo novo e irreproduzível [...] qualquer<br />

coisa criada se cria sempre a partir de uma coisa que é dada [...] O da<strong>do</strong><br />

se transfigura no cria<strong>do</strong>”. Ao criar algo novo origina<strong>do</strong> em alguma coisa<br />

dada, mesmo manten<strong>do</strong> o da<strong>do</strong>, o enuncia<strong>do</strong> visibiliza o locus de<br />

enunciação. É no discurso materializa<strong>do</strong> no enuncia<strong>do</strong> que se constroem<br />

as representações <strong>do</strong> sujeito – coloniza<strong>do</strong> ou coloniza<strong>do</strong>r. Cada sujeito é<br />

o resulta<strong>do</strong> da polifonia das muitas vozes sociais, mas, ao mesmo<br />

tempo, também é uma dessas vozes sociais, pois, como ensina Bakhtin


43<br />

(1995, p. 46), “o ser, refleti<strong>do</strong> no signo, não apenas nele se reflete, mas<br />

também se refrata”.<br />

2.2. Diferença, Identidade e Cultura<br />

O contexto pós-colonial é marca<strong>do</strong> pelo rompimento de barreiras<br />

simbólicas, tornan<strong>do</strong> indispensável a criação de espaços, nichos para<br />

que o coloniza<strong>do</strong> possa se articular e se fazer presente, utilizan<strong>do</strong> as<br />

brechas <strong>do</strong> discurso colonial para colocar em circulação os seus<br />

discursos, saben<strong>do</strong>, porém, das forças desiguais e irregulares de<br />

representação cultural e que o “outro” – o coloniza<strong>do</strong>r – não está morto,<br />

mas apenas “travesti<strong>do</strong>” em outras linguagens. O que está em jogo não<br />

é a necessidade de reconhecimento <strong>do</strong> “outro” coloniza<strong>do</strong> pelo<br />

coloniza<strong>do</strong>r, mas as relações de poder entre eles. Trata-se de uma<br />

relação política de criação de um espaço discursivo – de engajamento,<br />

de resistência ao poder colonial – para o “outro existir”. A intervenção, a<br />

partir desses espaços, propicia o constante embate entre coloniza<strong>do</strong> e<br />

coloniza<strong>do</strong>r, em que o coloniza<strong>do</strong> a partir principalmente de suas<br />

diferenças, elabora tanto estratégias políticas de ação no mun<strong>do</strong> quanto<br />

participa na definição <strong>do</strong>s limites éticos, culturais e sociais de sua<br />

relação com o coloniza<strong>do</strong>r. É atuan<strong>do</strong> sobre as brechas <strong>do</strong> discurso<br />

colonial que o coloniza<strong>do</strong> tenta elaborar seu projeto político de<br />

libertação.<br />

Bhabha faz uma releitura da diferença cultural com base na<br />

ressignificação <strong>do</strong> conceito de cultura, questionan<strong>do</strong> a tradição liberal<br />

que procura construir discursos aparentemente consensuais, cujo foco<br />

está nas semelhanças e não nas diferenças entre coloniza<strong>do</strong>s e<br />

coloniza<strong>do</strong>res. Para desconstruir esses discursos, Bhabha estabelece<br />

importantes distinções entre diferença e diversidade cultural:<br />

A diversidade cultural é um objeto epistemológico – a<br />

cultura como objeto de conhecimento empírico –,<br />

enquanto a diferença cultural é o processo da enunciação


44<br />

da cultura como “conhecível”, legítimo, adequa<strong>do</strong> à<br />

construção de sistemas de identificação cultural. Se a<br />

diversidade é uma categoria da ética, estética ou<br />

etnologias comparativas a diferença cultural é um<br />

processo de significação através <strong>do</strong> qual afirmações da<br />

cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e<br />

autorizam a produção de campos de força, referência,<br />

aplicabilidade e capacidade (BHABHA, 2005, p. 63 – grifos<br />

no original).<br />

Bhabha problematiza o conceito de diversidade cultural no limite<br />

quan<strong>do</strong> a reconhece como conteú<strong>do</strong>s e tradições colonialistas –<br />

“costumes culturais pré-da<strong>do</strong>s” – que, segun<strong>do</strong> ele, dão início, inclusive,<br />

às noções liberais de multiculturalismo. 23 Para Bhabha (Id.), a<br />

diversidade cultural também é a representação de um discurso que<br />

pressupõe “a separação de culturas totalizadas que existem intocadas<br />

pela intertextualidade de seus locais históricos”. A diversidade cultural,<br />

por esse viés, pressupõe uma identidade única e estável, em que o<br />

sujeito se constitui naturalmente pelas culturas. A diversidade, para ele,<br />

cristaliza, naturaliza e essencializa a identidade mediante discursos<br />

articula<strong>do</strong>s em uma memória coletiva e em mitos de origem. Esse<br />

processo, também ignora os conflitos e as relações assimétricas de<br />

poder e de produção de significa<strong>do</strong>s. O conceito de diversidade cultural,<br />

por ser um conceito da cultura <strong>do</strong>minante, ao mesmo tempo que<br />

conduz à unidade e ao reconhecimento de conteú<strong>do</strong>s pré-existentes,<br />

também legitima normas etnocêntricas, a partir das quais as diferenças<br />

culturais são narradas, isto é, a cultura <strong>do</strong>minante narra a diferença<br />

como algo marca<strong>do</strong> por sua materialidade. Enquanto a diversidade<br />

articula o discurso da unidade e <strong>do</strong> reconhecimento de conteú<strong>do</strong>s préexistentes<br />

e comuns, a diferença cultural é vista como uma forma de<br />

intervenção que<br />

23<br />

Homi Bhabha em uma entrevista ao jornal “Arte na América”, questiona “a tradição<br />

liberal de tentar negociar uma proximidade juntamente com as minorias sobre a base<br />

<strong>do</strong> que eles têm em comum e que é consensual. Em meus escritos, eu argumento<br />

contra a noção de multiculturalismo em que você pode colocar harmoniosamente<br />

todas as culturas em um mosaico de pessoas. Você não pode juntar tradições culturais<br />

diferentes para produzir alguma nova totalidade cultural. A frase corrente da história<br />

social e econômica torna você ciente da diferença cultural não no nível de celebração<br />

da diversidade, mas também no ponto de conflito ou crise” (HUDDART, 2006, p. 124).


45<br />

participa de uma lógica de subversão complementar<br />

semelhante às estratégias <strong>do</strong> discurso minoritário. A<br />

questão da diferença cultural nos confronta com uma<br />

disposição de saber ou com uma distribuição de práticas<br />

que existem la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>, abseits, designan<strong>do</strong> uma forma<br />

de contradição ou antagonismo social que tem que ser<br />

negocia<strong>do</strong> em vez de nega<strong>do</strong> (BHABHA, 2005, p. 228).<br />

A diferença expõe o desvio, o incomum, o indesejável como<br />

contraponto à norma estabelecida, forçan<strong>do</strong> a abertura de espaços de<br />

negociação entre coloniza<strong>do</strong> e coloniza<strong>do</strong>r. De acor<strong>do</strong> com Souza (2004,<br />

p. 128) Bhabha esclarece que essa forma de negociação permite o<br />

surgimento de espaços intersticiais que recusam as representações<br />

produzidas pela lógica binária. Nesse espaço de negociação, os<br />

coloniza<strong>do</strong>s “encontram suas vozes numa dialética que rejeita os<br />

valores de supremacia ou soberania culturais”. Ao resistir à supremacia<br />

cultural <strong>do</strong>minante, mediante a produção e circulação de significa<strong>do</strong>s<br />

que se engendram a partir da diferença, os coloniza<strong>do</strong>s passam a<br />

subverter as significações produzidas pelo coloniza<strong>do</strong>r, porque “é a<br />

própria autoridade da cultura como conhecimento da verdade<br />

referencial que está em questão no conceito e no momento da<br />

enunciação” (BHABHA, 2005, p. 64).<br />

Skliar (1999), ancora<strong>do</strong> em Bhabha, sugere que as diferenças vão<br />

para além de uma concepção de diversidade cultural, porque a<br />

“diferença sempre faz diferença” e, como tal, constitui-se<br />

fundamentalmente como um fato político. Por serem diferenças políticas<br />

não perdem tão facilmente suas fronteiras; daí, como no caso <strong>do</strong>s<br />

sur<strong>do</strong>s, as diferenças existem independentemente de serem aceitas ou<br />

não.<br />

A partir dessa perspectiva de diferença é que passo a enunciar a<br />

compreensão que tenho de identidade, pois diferença e identidade são<br />

<strong>do</strong>is conceitos que se ligam, apesar de sua aparente oposição. As duas<br />

são resulta<strong>do</strong>s de enuncia<strong>do</strong>s, portanto, são constituídas por meio de


46<br />

atos de fala, e como tais, estão sujeitas aos contextos em que são<br />

enunciadas. Ao dizer que diferença e identidade são resulta<strong>do</strong>s de atos<br />

de fala, estou dizen<strong>do</strong> que “somos nós que as fabricamos, no contexto<br />

de relações culturais e sociais” (<strong>SILVA</strong>, 2005, p. 76). A intenção, neste<br />

momento, é evidenciar que a identidade, por ser um processo de<br />

significação, está sujeita à instabilidade da linguagem e, portanto, <strong>do</strong><br />

próprio signo.<br />

O signo, como traço, está no lugar de um referente, que pode ser<br />

um objeto concreto ou um significa<strong>do</strong>, mas o signo nunca é a próprio<br />

objeto (o referente) ou o significa<strong>do</strong>. Apesar de o referente e o<br />

significa<strong>do</strong> não estarem presentes no signo, a linguagem nos leva a crer<br />

justamente o contrário, ou seja, tem-se a impressão de se encontrar no<br />

signo a presença <strong>do</strong> referente e <strong>do</strong> significa<strong>do</strong>.<br />

É a isso que Derrida chama de “metafísica da presença”.<br />

Essa “ilusão” é necessária para que o signo funcione como<br />

tal: afinal, o signo está no lugar de alguma outra coisa.<br />

Embora nunca plenamente realizada, a promessa da<br />

presença é parte integrante da idéia de signo. Em outras<br />

palavras, podemos dizer, com Derrida, que a plena<br />

presença (da “coisa”, <strong>do</strong> conceito) no signo é<br />

indefinidamente adiada. É também a impossibilidade<br />

dessa presença que obriga o signo a depender de um<br />

processo de diferenciação [...] (<strong>SILVA</strong>, 2005, pp. 78 e 79 –<br />

grifos no original).<br />

A identidade, como processo de significação – na medida em que<br />

é representada por meio da linguagem –, também está sujeita à<br />

instabilidade <strong>do</strong> signo. O processo de presença sempre adiada e de<br />

diferenciação, por meio <strong>do</strong> qual a identidade é construída, gera a<br />

impossibilidade de a mesma ser estável, fixa. Portanto, a identidade<br />

está sempre em movimento, deslizan<strong>do</strong>, atravessan<strong>do</strong> fronteiras, frente<br />

à impossibilidade de se fixar, de se estabilizar no signo. Ela se constrói e<br />

se desloca na medida em que somos interpela<strong>do</strong>s e, que, como sujeitos,<br />

assumimos diferentes posições e lugares.


47<br />

Para Bhabha, o locus de enunciação, com seus múltiplos<br />

enuncia<strong>do</strong>s, alimenta o processo de construção de identidades híbridas.<br />

Segun<strong>do</strong> Souza (2004), Bhabha, a partir de Fanon, apresenta três<br />

aspectos <strong>do</strong> processo de construção da identidade em contextos<br />

coloniais: a) a construção da identidade se dá na relação<br />

coloniza<strong>do</strong>/coloniza<strong>do</strong>r frente ao desejo <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong> em ocupar o<br />

lugar <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r e <strong>do</strong> temor que o coloniza<strong>do</strong>r tem de perder seu<br />

lugar de privilégio; b) o espaço relacional marca<strong>do</strong> pela alteridade – ao<br />

mesmo tempo que o coloniza<strong>do</strong> sonha em ocupar o lugar <strong>do</strong><br />

coloniza<strong>do</strong>r, ele também não quer abrir mão de ocupar seu lugar de<br />

coloniza<strong>do</strong>; c) o processo de identificação nunca se limita à afirmação<br />

de uma identidade preexistente e pressuposta.<br />

Souza (2004, p. 121) afirma que, para Bhabha, coloniza<strong>do</strong> e<br />

coloniza<strong>do</strong>r fazem uso de uma tática chamada mímica, a partir da qual<br />

se constrói uma imagem persuasiva de sujeito, com o objetivo de<br />

“apropriar-se e apoderar-se <strong>do</strong> Outro”. Dessa forma, a identidade, sob a<br />

perspectiva <strong>do</strong> hibridismo, não é estanque, sempre remete a uma<br />

imagem, uma espécie de máscara, um mito fundacional. Sob o ponto de<br />

vista psicanalítico, Bhabha trabalha essa questão a partir <strong>do</strong> conceito de<br />

fetiche, uma espécie de fantasia que afirma uma idéia de totalidade<br />

(em relação à identidade) e tenta camuflar a percepção da diferença, da<br />

ausência, crian<strong>do</strong> o estereótipo no intuito de negar a multiplicidade e<br />

assegurar a pureza cultural.<br />

Bhabha considera que a identidade é construída nas cisões,<br />

fissuras, travessias, negociações existentes e decorrentes <strong>do</strong> processo<br />

relacional. Portanto, para ele, a construção da identidade <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong><br />

e <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r se faz de forma inseparável. Ao enfatizar o processo<br />

relacional – mesmo que aconteça de forma agonística e antagonística –<br />

[...], Bhabha evidencia o “papel da alteridade e da relação (existir é<br />

existir para o Outro), como elementos constituintes da identidade”, [...]<br />

e “enfoca a questão da identidade híbrida nos <strong>do</strong>is tipos de sujeito<br />

dessa relação: coloniza<strong>do</strong> e coloniza<strong>do</strong>r” (SOUZA, 2004, p. 121). Dito de


48<br />

outra forma, para Bhabha a identidade sempre é híbrida, porque ela se<br />

constrói no espaço relacional, em que o sujeito é atravessa<strong>do</strong> por toda<br />

uma “gama contraditória e conflitante de elementos lingüísticos e<br />

culturais” (Ibid., p. 119).<br />

O autor, ao discutir a diferença cultural em tempos pós-coloniais<br />

ressignifica o conceito de cultura. No rastro das teorias críticas<br />

contemporâneas, Bhabha (2005, p. 240) sugere que é com os<br />

“sentencia<strong>do</strong>s da história” que “aprendemos nossas lições mais<br />

dura<strong>do</strong>uras de vida e pensamento”. É das margens que as culturas não<br />

canônicas emergem. Elas nos forçam a “a lidar com a cultura como<br />

produção irregular e incompleta de senti<strong>do</strong> e valor, freqüentemente<br />

composta de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato<br />

da sobrevivência social” (Id.).<br />

A cultura “produzida no ato de sobrevivência social” não pode ser<br />

considerada como um substantivo, estático e essencialista; mas como<br />

verbo, é ação, é movimento, e portanto, produtiva, dinâmica, aberta e<br />

em constante transformação. Segun<strong>do</strong> Bhabha, a cultura – como a<br />

identidade – sempre é híbrida, e por ser estratégia de sobrevivência<br />

social, é tanto transnacional como tradutória. É transnacional devi<strong>do</strong> às<br />

histórias de deslocamento de povos escraviza<strong>do</strong>s, da migração <strong>do</strong><br />

Terceiro Mun<strong>do</strong> para o Ocidente e <strong>do</strong> trânsito de refugia<strong>do</strong>s, e é<br />

tradutória porque essas histórias de deslocamento forçam uma<br />

ressignificação <strong>do</strong>s “símbolos culturais tradicionais – como literatura,<br />

arte, música, ritual etc.” (SOUZA, 2004, p. 125). A partir de pessoas que<br />

emigraram para sempre de seu país, Hall (2005, p. 88) mostra como se<br />

dá essa cultura tradutória:<br />

Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de<br />

origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno<br />

ao passa<strong>do</strong>. Elas são obrigadas a negociar com as novas<br />

culturas em que vivem, sem simplesmente serem<br />

assimiladas por elas e sem perder completamente suas<br />

identidades. Elas carregam os traços das culturas, das<br />

tradições, das linguagens e das histórias particulares


49<br />

pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não<br />

são e nunca serão unificadas no velho senti<strong>do</strong>, porque<br />

elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e<br />

culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo<br />

tempo, a várias “casas” (e não a uma “casa” particular).<br />

Para Bhabha, como toda cultura é híbrida, os “símbolos culturais<br />

tradicionais” também o são e precisam ser revisa<strong>do</strong>s. A idéia é<br />

desnudar os símbolos culturais tradicionais mostran<strong>do</strong> que esses<br />

símbolos não são nem transparentes e nem homogêneos, mas híbri<strong>do</strong>s<br />

quan<strong>do</strong> analisa<strong>do</strong>s em seu locus de enunciação. Tais símbolos precisam<br />

ser vistos como signos que se constituem de “formas diferentes na<br />

multiplicidade de contextos e sistemas de valores culturais que se<br />

acotovelam e se justapõem” (SOUZA, 2004, p. 125). A revisão, apesar<br />

de sua complexidade para revelar a natureza híbrida <strong>do</strong>s símbolos<br />

culturais tradicionais, torna-se indispensável para o processo libertário<br />

<strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>, pois “o hibridismo [...] reverte os efeitos da recusa<br />

colonialista, de mo<strong>do</strong> que outros saberes ‘nega<strong>do</strong>s’ se infiltrem no<br />

discurso <strong>do</strong>minante [...]” (BHABHA, 2005, p. 165). A cultura passa a ser<br />

um espaço de luta pelo direito histórico e ético de significar, permitin<strong>do</strong><br />

o surgimento de outras posições, portanto, passa a ser um espaço<br />

político que possibilita o surgimento de outras filiações culturais que<br />

não celebram a supremacia da cultura <strong>do</strong>minante.<br />

O ato de revisar símbolos culturais tradicionais, segun<strong>do</strong> Bhabha, é<br />

um ato de tradução cultural, é um ato de viver nas fronteiras. Segun<strong>do</strong><br />

Souza (2004, p.126), o ato de revisão cultural a partir das fronteiras<br />

“entre línguas, territórios, comunidades [...] leva ainda à construção de<br />

valores éticos e estéticos que não pertencem a nenhuma cultura<br />

específica; são valores que surgem a partir da experiência dessa<br />

‘travessia’ por entre os espaços culturais intersticiais”. Nas próprias<br />

palavras de Bhabha (apud SOUZA, p. 127 e 128):<br />

A tradução cultural não é simplesmente uma apropriação<br />

ou adaptação; trata-se de um processo pelo qual as<br />

culturas devem revisar seus próprios sistemas de


50<br />

referência, suas normas e seus valores, a partir de e<br />

aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> suas regras habituais e naturalizadas de<br />

transformação. A ambivalência e o antagonismo<br />

acompanham qualquer ato de tradução cultural porque<br />

negociar com a “diferença <strong>do</strong> outro” revela a insuficiência<br />

radical de sistemas sedimenta<strong>do</strong>s e cristaliza<strong>do</strong>s de<br />

significação e senti<strong>do</strong>s; demonstra também a<br />

inadequação das “estruturas de sentimento” (como diria<br />

Raymond Williams) pelas quais experimentamos as<br />

nossas autenticidades e autoridades culturais como se<br />

fossem de certa forma “naturais” para nós, parte de uma<br />

paisagem nacional (grifos no original).<br />

A tradução cultural, para Bhabha, por ser um processo de<br />

ressignificação em que os “sistemas de referência” – normas e valores –<br />

da cultura tradicional são revisa<strong>do</strong>s não mais pelas “regras habituais e<br />

naturalizadas”, mas a partir <strong>do</strong> locus de enunciação – onde se dá a<br />

produção irregular e assimétrica de significação entre coloniza<strong>do</strong>s e<br />

coloniza<strong>do</strong>res – implica o surgimento de uma filiação “intersticial que<br />

recusa o binarismo da representação costumeira <strong>do</strong> antagonismo<br />

social” (SOUZA, 2004, p. 128).<br />

3. (IM)PROVÁVEIS CAMINHOS DE INVESTIGAÇÃO: RI<strong>SC</strong>OS E<br />

DESAFIOS<br />

Durante a pesquisa dialoguei com alguns autores (Bhabha,<br />

Foucault, Bakhtin, Hall, Said, Quadros, Perlin, Skliar, Strobel entre<br />

outros) e suas teorizações como referências conceituais que me<br />

propiciaram lançar outros olhares, estabelecer outras relações, buscar<br />

outros aportes de análise a que antes não tinha acesso. Quan<strong>do</strong> lanceime<br />

à tarefa de definir os (im)prováveis caminhos de investigação senti<br />

uma inquietude em relação ao novo, ao desconheci<strong>do</strong>, frente aos riscos<br />

e desafios que corria em transitar por caminhos híbri<strong>do</strong>s, instáveis e<br />

mutáveis.<br />

No intuito de compreender como a política da diferença subverte<br />

as relações de poder na educação de sur<strong>do</strong>s, trouxe para o campo de<br />

análise as narrativas de intelectuais sur<strong>do</strong>s como falas sociais que se


51<br />

defrontassem, se entrechocassem e que pudessem manifestar<br />

diferentes pontos de vistas sobre o papel desses intelectuais nos dias<br />

de hoje.<br />

3.1. Narrativas Surdas<br />

O livro “O Sur<strong>do</strong> na América: Vozes de uma Cultura”, de Padden e<br />

Humphries (1996), narra histórias incomuns e inesperadas sobre a vida<br />

cultural <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s. As narrativas surdas contidas nesse livro transitam<br />

por temas complexos – aprenden<strong>do</strong> a ser sur<strong>do</strong>, imagens <strong>do</strong> ser,<br />

viven<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s outros, o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> som etc. –,<br />

problematizan<strong>do</strong> e tornan<strong>do</strong> visíveis principalmente as diferenças<br />

surdas. Entretanto, na minha compreensão, o fascínio <strong>do</strong> livro está na<br />

forma como os autores narram as histórias sobre si (os sur<strong>do</strong>s) e sobre<br />

os outros (os ouvintes). A abertura <strong>do</strong> livro já mostra o “jeito sur<strong>do</strong>” de<br />

dizer as coisas: Padden “nasceu surda numa família de Sur<strong>do</strong>s. Seus<br />

pais e seu irmão mais velhos são sur<strong>do</strong>s”. [...] Humphries, “em<br />

contraste, tornou-se sur<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> criança e não encontrou outras<br />

pessoas Surdas até entrar numa escola para estudantes Sur<strong>do</strong>s”<br />

(PADDEN e HUMPHRIES, 1996, p.1).<br />

Desde 1991, quan<strong>do</strong> comecei a trabalhar com a educação de<br />

sur<strong>do</strong>s no <strong>IF</strong>-<strong>SC</strong>, tenho percebi<strong>do</strong> esse jeito de ser sur<strong>do</strong> que se<br />

aproxima da forma como Padden e Humphries retratam em seu livro. Os<br />

sur<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> solicita<strong>do</strong>s a falar sobre algum tema, geralmente<br />

começam a falar a partir de sua história de vida – nostalgias, dramas<br />

pessoais, aflições, conquistas, alegrias etc. – para depois entrarem no<br />

tema propriamente dito. À primeira vista, parece que essas histórias<br />

não têm nada a ver com o assunto e muitas vezes parece que os sur<strong>do</strong>s<br />

estão se desvian<strong>do</strong> <strong>do</strong> tema. Entretanto, a compreensão que tenho é de<br />

que as narrativas são uma forte peculiaridade das culturas surdas.<br />

Quan<strong>do</strong> relatam longas e complexas histórias, os sur<strong>do</strong>s estão


52<br />

construin<strong>do</strong> sua identidade, à medida que se reconhecem nas histórias<br />

que contam. Segun<strong>do</strong> Larrosa (1996, p. 462), “o senti<strong>do</strong> de quem somos<br />

depende das histórias que contamos, as que nos contamos”. Ao narrar,<br />

o sur<strong>do</strong> se torna visível para si e para o outro e as suas experiências de<br />

vida passam a ser compartilhadas. Isto é, as narrativas não são apenas<br />

o produto de uma experiência individual, mas são construídas na<br />

interação com o outro. As histórias que contam sobre suas vidas<br />

representam a expressão de uma experiência que foi sen<strong>do</strong> construída<br />

nas interações sociais, nas análises compartilhadas sobre os<br />

acontecimentos vivi<strong>do</strong>s e nas versões reelaboradas desses<br />

acontecimentos.<br />

Ao a<strong>do</strong>tar as narrativas como processo relacional, os sur<strong>do</strong>s<br />

colocam em circulação um conjunto de enuncia<strong>do</strong>s sobre a sua vida que<br />

pode transformar o seu presente. As experiências que ouvimos e<br />

narramos têm o potencial de desestabilizar, atualizar e fazer emergir<br />

indagações sobre nós mesmos, tensionan<strong>do</strong> senti<strong>do</strong>s e certezas que<br />

guardamos. Portanto, as narrativas que ouvimos e narramos<br />

cotidianamente ressignificam as experiências passadas, a partir <strong>do</strong><br />

ponto de vista <strong>do</strong> presente. Ao narrar um acontecimento que aconteceu<br />

no passa<strong>do</strong>, o sujeito o faz à luz de novas vivências, de outros<br />

conhecimentos que adquiriu, de outros significa<strong>do</strong>s que foram<br />

posteriormente estabeleci<strong>do</strong>s. Isto é, ele narra o acontecimento a partir<br />

de novas reflexões sobre a experiência passada. As narrativas, por esse<br />

ponto de vista, são processos permanentes de ressignificação.<br />

Para McLaren (1997), as narrativas têm o papel de recusar a<br />

a<strong>do</strong>ção de uma única perspectiva relacionada à <strong>do</strong>minação cultural; o<br />

autor sugere aos educa<strong>do</strong>res aprenderem a representar-se através de<br />

zonas fronteiriças, “na qual as narrativas que construírem para si em<br />

relação ao outro sejam, com efeito, desterritorializadas política, cultural<br />

e lingüisticamente, de mo<strong>do</strong> que os senti<strong>do</strong>s metafóricos, através <strong>do</strong>s<br />

quais a subjetividade se torna construída, falhem em <strong>do</strong>minar o outro”<br />

(p. 197). Se McLaren traz a narrativa na perspectiva de recusar a


53<br />

<strong>do</strong>minação cultural, Arfuch (2005) nos brinda com uma concepção de<br />

narrativa que aban<strong>do</strong>na a noção de sujeito essencial e único para<br />

considerá-lo efeito de uma produção nunca acabada, aberta à<br />

temporalidade e à contingência. Para ela, o sujeito se constitui na e pela<br />

linguagem, no entrecruzamento de diferentes discursos e de forma<br />

relacional. Portanto, falar de narrativas é falar de atos de falas, é falar<br />

de discurso que produz, organiza e confere estabilidade às práticas<br />

culturais, bem como produz e governa sujeitos.<br />

Como gênero <strong>do</strong> discurso, as narrativas podem contribuir para o<br />

empoderamento <strong>do</strong>s sujeitos coloniza<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> o poder <strong>do</strong> qual nos<br />

queremos apoderar não é usa<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> de repressão, de lei, de<br />

caráter punitivo, mas como um poder produtivo e positivo. Para<br />

Foucault, onde existem relações de poder, não há apenas produção de<br />

saber, também há possibilidades de resistências. A resistência é tão<br />

criativa, tão dinâmica, tão produtiva quanto o poder, e assim como ele,<br />

vem de “baixo” e se espraia estrategicamente por to<strong>do</strong> o teci<strong>do</strong> social.<br />

O que estou dizen<strong>do</strong> é que o conceito de poder desenvolvi<strong>do</strong> por<br />

Foucault não se limita a sua forma de assujeitamento mediante o poder<br />

disciplinar e ao biopoder. 24 Há um núcleo comum entre essas duas<br />

categorias que permite identificar outros efeitos <strong>do</strong> poder – efeitos de<br />

lutas, de resistências. Segun<strong>do</strong> Pogresbinschi (2004, p. 2), “trata-se de<br />

um núcleo teórico-conceitual que, ao afastar o poder da idéia de<br />

repressão e de lei, o torna emancipatório, liberta<strong>do</strong>r. Trata-se, afinal, de<br />

um conceito de poder como produtividade, como positividade”.<br />

Segun<strong>do</strong> a autora, o núcleo comum entre os conceitos de poder<br />

disciplinar e de biopoder é a permanência em ambos <strong>do</strong> poder/saber, da<br />

idéia de poder como produtor de saber. A posição que se sustenta é que<br />

o poder “não pesa só como a força que diz não, mas que de fato ele<br />

permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso”<br />

(FOUCAULT, 1985, p. 8).<br />

24 O conceito de poder disciplinar e biopoder serão apresenta<strong>do</strong>s no segun<strong>do</strong> capítulo,<br />

quan<strong>do</strong> discutirei os significa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> intelectual nos dias de hoje.


54<br />

Segun<strong>do</strong> Foucault (1986, p. 56), os discursos são feitos de signos,<br />

mas não se reduzem a ele; os discursos não são um conjunto de signos<br />

que espelham o mun<strong>do</strong>; eles não imitam nem reduplicam as coisas.<br />

Portanto, não podemos tratar “os discursos como um conjunto de signos<br />

[...], mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de<br />

que falam [...] o que fazem é mais que utilizar esses signos para<br />

designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato<br />

de fala”. Nesse senti<strong>do</strong>, o discurso ultrapassa a simples referência a<br />

“coisas”, existe para além da mera utilização de letras, palavras e<br />

frases. É na linguagem que as “coisas” passam a existir de mo<strong>do</strong><br />

significativo, em contextos históricos e culturais específicos. Porém, isso<br />

não implica dizer que as “coisas” não têm materialidade, ou não<br />

existam fora da linguagem. Esse “mais”, para Foucault, supõe um<br />

discurso que não pode ser entendi<strong>do</strong> como um fenômeno desconecta<strong>do</strong><br />

de uma rede conceitual que lhe é própria. Portanto, to<strong>do</strong> e qualquer<br />

discurso não é um elemento neutro ou transparente, mas um <strong>do</strong>s<br />

lugares onde se exercem poderes. O discurso, como um conjunto de<br />

enuncia<strong>do</strong>s que se apóiam na mesma formação discursiva, não<br />

manifesta apenas a vontade ou o desejo de quem fala, mas é, em si,<br />

objeto desse desejo, pois ele constrói, define, situa, nomeia e assim<br />

concretiza uma vontade de poder. É por essa razão que o autor afirma<br />

que o discurso “não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os<br />

sistemas de <strong>do</strong>minação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder<br />

<strong>do</strong> qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 1986, p. 10).<br />

3.2. Corpus de Análise e Planejamento <strong>do</strong>s Encontros<br />

Ao trazer as narrativas surdas para constituírem o corpus de<br />

análise, trago o testemunho e os discursos de educa<strong>do</strong>res sur<strong>do</strong>s como<br />

intelectuais, além de convergir como o pensamento de Bhabha (2005,<br />

p. 240), quan<strong>do</strong> sugere que é com os “sentencia<strong>do</strong>s da história que<br />

aprendemos nossas lições mais dura<strong>do</strong>uras de vida e pensamento”. As


55<br />

narrativas surdas foram o suporte que me permitiu verificar como a<br />

política da diferença subverte as relações de poder na educação de<br />

sur<strong>do</strong>s.<br />

Para obter o corpus de análise criamos um grupo de reflexão<br />

envolven<strong>do</strong> o pesquisa<strong>do</strong>r e seis intelectuais sur<strong>do</strong>s, 25 sen<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s filhos<br />

de pais ouvintes. Ao a<strong>do</strong>tar uma orientação dialógica 26 durante as<br />

conversas entre pesquisa<strong>do</strong>r/pesquisa<strong>do</strong>s, tinha a intencionalidade de<br />

propiciar um espaço de interação entre os intelectuais sur<strong>do</strong>s no qual<br />

suas vivências pudessem ser narradas sem seguir a lógica de que “um<br />

fala e o outro escuta” (ARFUCH, 2005). Na realidade, to<strong>do</strong>s falam to<strong>do</strong> o<br />

tempo com suas vozes interiores – quan<strong>do</strong> alguém fala o outro fica<br />

pensan<strong>do</strong>, avalian<strong>do</strong>, recordan<strong>do</strong> etc. O ato de narrar é um exercício<br />

permanente de tradução de si e <strong>do</strong> outro.<br />

A pesquisa de campo com o grupo de reflexão foi dividida em três<br />

encontros. No primeiro encontro discutimos o tema, o problema, o<br />

objetivo, a concepção e os (im)prováveis caminhos investigativos da<br />

pesquisa. Nesse encontro ficou acerta<strong>do</strong> que todas as narrativas seriam<br />

filmadas e traduzidas para a língua portuguesa; após a tradução, cada<br />

sujeito <strong>do</strong> grupo leria o texto e faria as observações quanto à tradução<br />

e, se necessário, incluiria e/ou excluiria falas no intuito de garantir a<br />

coerência e a coesão textual. Além disso, após a elaboração da análise<br />

e escrita de cada capítulo, o pesquisa<strong>do</strong>r deveria enviá-lo aos sujeitos<br />

da pesquisa.<br />

25<br />

O grupo foi composto por uma <strong>do</strong>utora em educação, quatro mestres em educação<br />

(três mulheres e um homem) e um educa<strong>do</strong>r gradua<strong>do</strong> da área de geografia. Dos seis<br />

educa<strong>do</strong>res, cinco deles foram educa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>IF</strong>-<strong>SC</strong>.<br />

26<br />

Na esteira de Bakhtin, Fiorini (2006, pp. 18 e 19) nos diz que “a língua, em sua<br />

totalidade concreta, viva, em seu uso real, tem a propriedade de ser dialógica”, e as<br />

relações entre locutor e interlocutor “não se circunscrevem ao quadro estreito <strong>do</strong><br />

diálogo face a face, que é apenas uma forma composicional em que elas ocorrem. Ao<br />

contrário, to<strong>do</strong>s os enuncia<strong>do</strong>s no processo de comunicação, independentemente de<br />

sua dimensão, são dialógicos. Neles, existe uma dialogização interna da palavra, que é<br />

perpassada sempre pela palavra <strong>do</strong> outro, é sempre e inevitavelmente também a<br />

palavra <strong>do</strong> outro. Isso quer dizer que o enuncia<strong>do</strong>r, para constituir um discurso, leva<br />

em conta o discurso de outrem, que está presente no seu. Por isso, to<strong>do</strong> discurso é<br />

inevitavelmente ocupa<strong>do</strong>, atravessa<strong>do</strong>, pelo discurso alheio. O dialogismo são relações<br />

de senti<strong>do</strong> que se estabelecem entre os <strong>do</strong>is”.


56<br />

O segun<strong>do</strong> encontro teve por objetivo refletir sobre o papel <strong>do</strong><br />

educa<strong>do</strong>r sur<strong>do</strong> como intelectual. Para iniciar a conversa nesse encontro<br />

foi apresenta<strong>do</strong> um pequeno texto mostran<strong>do</strong> a complexidade em ser<br />

um intelectual sur<strong>do</strong> em um país, no caso o Brasil, cujas línguas e<br />

culturas são marcadas essencialmente pelo som e não pela visualidade,<br />

como é o caso <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s.<br />

O último encontro aprofun<strong>do</strong>u alguns temas aborda<strong>do</strong>s durante o<br />

segun<strong>do</strong> encontro, tais como o engajamento <strong>do</strong> intelectual sur<strong>do</strong>, a<br />

diferença surda, a importância da divulgação das produções surdas, os<br />

significa<strong>do</strong>s de povo e estrangeiro etc.<br />

3.3. Análise das Narrativas<br />

Para analisar as narrativas <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s recorri a uma<br />

estratégia que permitisse romper com os velhos dualismos da educação<br />

de sur<strong>do</strong>s. Das narrativas surdas foram surgin<strong>do</strong> linhas que se<br />

entrecruzavam, forman<strong>do</strong> nós e dan<strong>do</strong> sustentação aos enlaçamentos<br />

que iam ocorren<strong>do</strong> durante a pesquisa. Perceben<strong>do</strong> essas conexões em<br />

trânsito, essas tessituras contingenciais, essas negociações complexas<br />

em andamento me aproximei de uma ferramenta de análise,<br />

denominada por Bhabha, Hall e outros autores de articulação.<br />

A articulação, como estratégia de análise, produz uma energia<br />

capaz de problematizar as relações de poder entre sur<strong>do</strong>s e ouvintes<br />

sem se fixar em tipologias binárias. Na articulação o enuncia<strong>do</strong> não se<br />

fixa em um <strong>do</strong>s pólos. Segun<strong>do</strong> Bhabha (2005), a articulação se dá em<br />

espaços que superam as posições fixas de sistemas e critérios de<br />

valores antagônicos. Esses espaços são politicamente inova<strong>do</strong>res por<br />

passarem “além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais” e<br />

focalizarem “aqueles momentos e processos que são produzi<strong>do</strong>s na<br />

articulação de diferenças culturais” (BHABHA, 2005, p. 20). Assim, o que<br />

está em debate não é a inversão de posições entre coloniza<strong>do</strong> e<br />

coloniza<strong>do</strong>r, mas sim local de relacionamentos, de interações, em que o


57<br />

“além” é “um movimento exploratório incessante, que o termo francês<br />

au-delà capta tão bem – aqui e lá, de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s, fort/da, para lá e<br />

para cá, para frente e para trás” (Ibid., p.19). Os espaços de articulação<br />

são denomina<strong>do</strong>s por Bhabha de “entre-lugares”. Ao contrário de se<br />

afirmarem como terrenos fixa<strong>do</strong>s de meras absorções através de forças<br />

imperativas de uma cultura <strong>do</strong>minante em relação a outras ditas<br />

periféricas, com a clara intenção <strong>do</strong> alargamento de suas fronteiras de<br />

<strong>do</strong>minação e poder, são na realidade fluxos privilegia<strong>do</strong>s de interações.<br />

Assim, os “entre-lugares” se configuraram não como meros espaços de<br />

<strong>do</strong>minação, mas como terrenos de trocas, em que os signos de valores<br />

culturais podem ser negocia<strong>do</strong>s.<br />

Para Hall (1996), a articulação assume outros contornos. Por um<br />

la<strong>do</strong>, pode ser pensada como uma estratégia teórica e política que<br />

possibilita estabelecer conexões, criar redes que enlaçam narrativas de<br />

maneiras diferentes daquelas que seguem a lógica <strong>do</strong> discurso colonial.<br />

As articulações, ao mesmo tempo que podem aproximar termos<br />

aparentemente díspares, produzir ligações contingentes também<br />

desarticulam e desestabilizam a fixidez das narrativas coloniza<strong>do</strong>ras<br />

que foram apreendidas como naturais. Por outro la<strong>do</strong>, o uso da<br />

articulação “é uma união que não é necessária, determinada, absoluta e<br />

essencial para sempre jamais. Tem que se perguntar sob que<br />

circunstâncias pode ser produzida ou forjada uma relação” (Ibid., p.<br />

135). Wortmann (2005, p. 177), seguin<strong>do</strong> as trilhas de Hall, nos diz que<br />

o “uso da articulação traz um quadro de promessas e de perguntas sem<br />

garantias. [...] É preciso sempre perguntar em que circunstância a<br />

articulação pode ser forjada ou feita” (grifo no original).


58<br />

Para Dauder e Bachiler (2002), 27 a articulação pode ser<br />

pensada como “filtros<br />

ópticos marcadamente situa<strong>do</strong>s e conscientemente políticos cujas<br />

lentes” nos permitem ver coisas “que escapam à rigidez <strong>do</strong> olhar<br />

dualista”. Entretanto, é no des<strong>do</strong>bramento da complexidade que<br />

transita entre os pólos de uma conexão, como, por exemplo,<br />

sur<strong>do</strong>/ouvinte, que a articulação enfrenta de forma simultânea a sua<br />

maior virtude e a sua maior dificuldade. Nas palavras das autoras:<br />

Se por um la<strong>do</strong> as descentralizações que possibilitam a<br />

articulação podem tender a fazer versões rizomáticas de<br />

dispersão infinita, por outro, e nesse mesmo exercício de<br />

ampliação das conexões, se pode cair em uma certa<br />

tentação de totalidade que nos faz esquecer a<br />

parcialidade e a situação de que partimos (DAUDER e<br />

BACHILER, 2002, p. 18).<br />

Dauder e Bachiler (2002) também mencionam que a articulação<br />

procura estabelecer “geometrias possíveis”, em que falar de pólos –<br />

natureza/cultura, texto/contexto, forma/conteú<strong>do</strong>,<br />

discurso/materialidade – não tenha senti<strong>do</strong>.<br />

Wortmann (2005) apresenta a noção de articulação a partir de<br />

três níveis: o epistemológico, o político e o estratégico. Segun<strong>do</strong> a<br />

autora, no nível epistemológico a articulação está relacionada a uma<br />

forma de pensar o conhecimento que temos das coisas “como um jogo<br />

de correspondências e contradições, ou como fragmentos constituintes<br />

daquilo que nós consideramos serem as suas unidades” (Ibid., p. 178). A<br />

articulação no nível político coloca em foco as relações de poder<br />

advindas das interações entre coloniza<strong>do</strong> e coloniza<strong>do</strong>r. A partir de<br />

27<br />

Segun<strong>do</strong> as autoras, a noção de articulação surgiu na possibilidade de problematizar<br />

algumas questões vinculadas ao discurso marxista e <strong>do</strong> feminismo no início <strong>do</strong>s anos<br />

setenta <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>. No “caso de uma certa corrente <strong>do</strong> pensamento marxista<br />

se tratava de um esforço para escapar tanto <strong>do</strong>s reducionismos economicistas como<br />

<strong>do</strong>s essencialismos de classe”. No caso <strong>do</strong> feminismo foi justamente a incapacidade <strong>do</strong><br />

marxismo em abordar questões vinculadas à opressão das mulheres. As feministas<br />

“consideravam inaceitável deixar a opressão patriarcal a um segun<strong>do</strong> plano de luta”.<br />

Para elas, era “insuficiente considerar que uma vez derrota<strong>do</strong> o mo<strong>do</strong> de produção<br />

capitalista a opressão patriarcal desapareceria” (DAUDER e BACHILER, 2002, p. 2).


59<br />

Dauder e Bachiler, Wortmann (Id.) nos diz que as políticas de<br />

articulação “funcionam no senti<strong>do</strong> de problematizar silenciamentos e<br />

essencialismos que têm atua<strong>do</strong> na configuração de movimentos”<br />

sociais, assim como de “etnias, sexo, raças, etc.” (Ibid., p. 179). E, por<br />

último, a articulação em um nível estratégico: nele a articulação se<br />

configura como intervenção “no interior de uma particular formação,<br />

conjuntura ou contexto social” (p.179).<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, procurei realizar a análise, sempre que possível, a<br />

partir <strong>do</strong>s três níveis de articulação proposto por Wortmann (2005), mas<br />

priorizan<strong>do</strong> o político, de tal forma que as tessituras textuais<br />

entrelaçassem simultaneamente as proposições teóricas da crítica póscolonial<br />

e de suas ramificações com os discursos pós-estruturalistas<br />

com os fragmentos das narrativas surdas que defini em três eixos<br />

temáticos: o intelectual sur<strong>do</strong> e sua estrangeiridade, o intelectual sur<strong>do</strong><br />

e suas intervenções políticas e o intelectual sur<strong>do</strong> e seus saberes<br />

linguísticos.<br />

É importante salientar que a análise das narrativas surdas teve<br />

como foco condutor as estratégias políticas que os intelectuais sur<strong>do</strong>s<br />

a<strong>do</strong>tam para se posicionarem, a partir de suas diferenças, em<br />

determina<strong>do</strong>s loci de enunciações. Sen<strong>do</strong> assim, as narrativas surdas<br />

também são vistas como práticas sociais que constituem sujeitos em<br />

determina<strong>do</strong>s espaços e cujas relações de poder, de acor<strong>do</strong> com<br />

Foucault (1985, p. 231), devem servir “para criar uma história <strong>do</strong>s<br />

diferentes mo<strong>do</strong>s pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos<br />

tornam-se sujeitos”.


60<br />

CAPÍTULO II<br />

“FRONTEIRAS DE CONTATO”: UM LUGAR<br />

(IM)POSSÍVEL DE SE HABITAR<br />

Laurent Clerc (1787 - 1851) educa<strong>do</strong>r sur<strong>do</strong> francês<br />

responsável pela criação da primeira escola para<br />

sur<strong>do</strong>s no continente americano (American School for<br />

the Deaf, fundada em 15 de abril de 1817 em<br />

Hartford, Connecticut).<br />

Então teve início o tempo <strong>do</strong> exílio, a busca infindável<br />

de justificativas, a nostalgia difusa, as questões<br />

mais <strong>do</strong>lorosas, mais devasta<strong>do</strong>ras,<br />

as questões <strong>do</strong> coração que pergunta a si próprio: onde<br />

poderei sentir-me em casa<br />

Albert Camus


61<br />

1. ESTEREÓTIPO: UMA ESTRATÉGIA DI<strong>SC</strong>URSIVA DO PODER<br />

COLONIAL<br />

Em “A outra questão: o estereótipo, a discriminação e o discurso<br />

<strong>do</strong> colonialismo”, Bhabha (2005) explora as formas como o estereótipo<br />

dá sustentação ao discurso colonial, crian<strong>do</strong> representações<br />

supostamente estáveis e naturais em relação ao coloniza<strong>do</strong> para<br />

manter as relações assimétricas de poder. Contu<strong>do</strong>, essa estabilidade<br />

não é tão segura como parece, porque a estereotipia é uma<br />

representação simplificada de uma dada realidade. Para debater esse<br />

tema, apresento, inicialmente algumas narrativas surdas sobre as<br />

estereotipias em relação aos intelectuais sur<strong>do</strong>s.<br />

FRAGMENTOS<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: Nós temos a nossa auto-estima, o fato de<br />

sermos intelectuais sur<strong>do</strong>s nos deixa muito alegres [...]. Eu<br />

acho isso muito engraça<strong>do</strong>. Às vezes as pessoas falam: Gente!<br />

Olha só, ela conseguiu passar num concurso. Mas, ainda não<br />

sou vista como educa<strong>do</strong>ra. [...] Parece que eu, como surda,<br />

tenho que me superar permanentemente [...]. Isso me parece<br />

tão estranho. Será que por ser surda eu sempre tenho que<br />

fazer mais, mais, para provar para a sociedade que eu sou<br />

capaz [...] no fun<strong>do</strong> ainda existe o estereótipo de que nós não<br />

somos capazes. Isso é muito estranho.<br />

Narra<strong>do</strong>r 3: Quan<strong>do</strong> eu vou ao supermerca<strong>do</strong>, no banco, nas<br />

lojas, as pessoas olham e eu digo que quero fazer um<br />

cadastro. Então, a pessoa pergunta: Qual é a sua atividade<br />

profissional Eu repon<strong>do</strong>: Sou professor. Ela me diz: Não!<br />

Professor não. Como você ensina Você ensina ouvintes<br />

Então, eu repon<strong>do</strong>: Eu ensino os sur<strong>do</strong>s. E a outra pessoa fala:<br />

Nossa, que estranho, eu não sabia que sur<strong>do</strong> podia ser<br />

professor.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 4: Na hora <strong>do</strong> intervalo, no café, uma professora<br />

abriu a porta e eu estava junto com a intérprete conversan<strong>do</strong>,<br />

uma conversa informal. Teve uma mulher que perguntou para<br />

a intérprete: A [...] sabe ler E a intérprete interpretou para<br />

mim. E aí eu respondi: Se eu não soubesse português teria<br />

passa<strong>do</strong> no mestra<strong>do</strong> Os ouvintes ainda estranham em ver os<br />

sur<strong>do</strong>s dentro das universidades, é como se não pudéssemos<br />

estar nesse ambiente.


62<br />

Narra<strong>do</strong>ra 4: A professora [...] me informou sobre a<br />

possibilidade de ministrar um curso na [...] e eu fiquei muito<br />

alegre com essa possibilidade, mas tem uma coisa muito<br />

engraçada em relação a esse curso. [...] a professora man<strong>do</strong>u<br />

um e-mail comunican<strong>do</strong> que eu poderia ministrar o curso e em<br />

seguida eles me repassaram os objetivos, a ementa etc., todas<br />

as informações sobre o curso. A partir dessas informações<br />

organizei a proposta e no final dela eu coloquei que precisava<br />

de um intérprete por ser surda e o grupo que eu iria trabalhar<br />

era de ouvintes. Imediatamente eles ligaram para a professora<br />

[...]. Eles disseram: Você não avisou que a pessoa indicada<br />

para ministrar o curso era surda. Então a [...] falou: Sim, ela é<br />

surda, mas não há mal nenhum. A [...] é <strong>do</strong>utoranda na UF<strong>SC</strong>.<br />

Esse exemplo demonstra que, por ser surda, eu não tinha<br />

competência para ministrar o curso. As pessoas ainda estão<br />

presas à lógica da deficiência. A deficiência é um estereótipo<br />

que está preso nas pessoas. Mesmo que o profissional sur<strong>do</strong><br />

seja mestre ou <strong>do</strong>utor ele ainda é visto como incapaz. Ele não<br />

pode ser todas essas coisas porque ele está marca<strong>do</strong> pela<br />

estereotipia e essa estereotipia é deprimente.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 4: Esses estereótipos precisam ser apaga<strong>do</strong>s, nós<br />

temos que criar muitas estratégias para acabar com isso. Ao<br />

fazermos o mestra<strong>do</strong> e o <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> já estamos apagan<strong>do</strong><br />

esses estereótipos. Porém, vai levar décadas para que a nossa<br />

produção acadêmica seja respeitada. Nós estamos plantan<strong>do</strong><br />

coisas que não trazem uma mudança rápida. Isso demora<br />

muito tempo.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 4: Outra estratégia é pegar o próprio discurso<br />

daqueles ouvintes que enunciam: “você não pode”; “você é<br />

incapaz”. Quan<strong>do</strong> se pega esses enuncia<strong>do</strong>s e se intervém no<br />

discurso <strong>do</strong> ouvinte é muito interessante, porque a gente traz<br />

outros enuncia<strong>do</strong>s, como, por exemplo, o da diferença surda,<br />

que é um enuncia<strong>do</strong> pouco conheci<strong>do</strong> pelos ouvintes.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 5: Num outro dia eu estava em casa len<strong>do</strong> o livro<br />

“Estu<strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s II”, que tinha um artigo que eu escrevi. Então<br />

mostrei para minha família e minha mãe disse: Nossa minha<br />

filha escreveu um artigo num livro! Nesse momento uma outra<br />

pessoa fez o seguinte comentário: Que estranho, foi você<br />

mesmo que escreveu isso E eu respondi: Sim, eu escrevi,<br />

depois passou por uma revisão de português. E a pessoa me<br />

disse: Essas idéias que estão escritas nesse artigo são suas E<br />

aí eu perguntei: O que você está pensan<strong>do</strong> a respeito de mim<br />

Essa pessoa não respondeu, mas também nem precisou. A<br />

expressão <strong>do</strong> rosto disse tu<strong>do</strong>.


63<br />

Dentre os fragmentos os enuncia<strong>do</strong>s “Gente! Olha só, ela<br />

conseguiu passar num concurso”; “Que estranho, foi você mesmo que<br />

escreveu isso”; “A [...] sabe ler”; “Ela me diz: Não! Professor não.<br />

Como você ensina”; “Você não tinha nos comunica<strong>do</strong> que a pessoa<br />

indicada para ministrar o curso era surda” demonstram a fixidez e o<br />

poder de imobilização que o discurso colonial constrói em relação ao<br />

intelectual sur<strong>do</strong>.<br />

O discurso colonial descrito anteriormente fixa o intelectual sur<strong>do</strong><br />

em uma suposta incapacidade, definin<strong>do</strong> aquilo que eles podem ser.<br />

Esse discurso contribui para manter o controle, nomean<strong>do</strong>, descreven<strong>do</strong><br />

e localizan<strong>do</strong> o intelectual sur<strong>do</strong> em um espaço fixo, sob a mira <strong>do</strong> olhar<br />

panóptico. 28 Segun<strong>do</strong> Skliar (2003, p.17), o outro “é um outro que nós<br />

não queremos ser [...] mas que utilizamos para fazer a nossa identidade<br />

algo mais confiável, mais estável, mais seguro”. O discurso colonial, ao<br />

posicionar o sur<strong>do</strong> como um sujeito incapaz, nega-lhe o direito de<br />

significar, de produzir outros senti<strong>do</strong>s, que não sejam aqueles já fixa<strong>do</strong>s<br />

pelo discurso colonial.<br />

Em seus estu<strong>do</strong>s sobre os mestiços, no exercício de entrelaçar<br />

suas vozes, Martins (2006, p. 115) traz o estu<strong>do</strong> de Dufays (1994) que<br />

caracteriza o estereótipo, reafirman<strong>do</strong> a discussão em foco a partir de<br />

cinco traços distintos:<br />

a) A freqüência: um estereótipo é uma estrutura que se reitera,<br />

difundin<strong>do</strong>-se amplamente no discurso da sociedade;<br />

b) A fixidez: em virtude <strong>do</strong> seu caráter iterativo, a associação<br />

<strong>do</strong>s termos <strong>do</strong> estereótipo sofre um processo de fossilização,<br />

forman<strong>do</strong> um pensamento monolítico. A combinação<br />

sintagmática que o caracteriza na sua formação de origem<br />

torna-se um constituinte <strong>do</strong> eixo paradigmático;<br />

c) A ausência de origem identificável: a impossibilidade de<br />

conferir uma procedência enunciativa distingue o estereótipo<br />

da citação e é nesse senti<strong>do</strong> que Barthes lhe atribui o adjetivo<br />

de clandestino;<br />

28 O significa<strong>do</strong> de “olhar panóptico” será aborda<strong>do</strong> no terceiro capítulo, quanto<br />

discutirei a circulação <strong>do</strong>s saberes sur<strong>do</strong>s como estratégia de desautorização <strong>do</strong><br />

discurso colonial.


64<br />

d) A imposição na memória coletiva: ao inscrever-se por várias<br />

gerações ou até durante séculos na memória cultural, o<br />

estereótipo ganha caráter imutável e dura<strong>do</strong>uro;<br />

e) A condensação redutora: o estereótipo constitui a síntese<br />

simplificada de uma realidade complexa.<br />

Bhabha (2005, p. 117) exemplifica essa situação: “nós sempre<br />

sabemos de antemão que os negros são licenciosos e os asiáticos<br />

dissimula<strong>do</strong>s...”. Mas um mesmo estereótipo pode produzir tanto<br />

reconhecimento quanto estranhamento. Por exemplo, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

locus de enunciação, o enuncia<strong>do</strong>: “Gente! Olha só, ela conseguiu<br />

passar num concurso” pode significar uma conquista como resulta<strong>do</strong> de<br />

uma árdua luta de acesso ao conhecimento em um determina<strong>do</strong> campo<br />

profissional, mas também pode significar um estranhamento sobre a<br />

sua competência profissional, por exemplo, no seio familiar. Nas<br />

palavras da Narra<strong>do</strong>ra 1 “Parece que eu, como surda, tenho que me<br />

superar permanentemente [...]. Isso me parece tão estranho. Será que<br />

por ser surda eu sempre tenho que fazer mais, mais, para provar para a<br />

sociedade que eu sou capaz” O estranhamento demonstra a força <strong>do</strong><br />

estereótipo, contribuin<strong>do</strong> na definição acerca de que papéis o sur<strong>do</strong><br />

pode assumir no contexto social. Porém, o próprio estereótipo pode ser<br />

fonte de negociação de senti<strong>do</strong>s, porque ele mesmo não é algo tão<br />

imutável ou unilateral como se imagina.<br />

Bhabha (2005) propõe que se faça uma leitura criteriosa em<br />

relação aos mo<strong>do</strong>s de narrar e aos processos de subjetivação que se<br />

dão mediante estratégias discursivas como os estereótipos. Para ele, é<br />

necessário examinar os estereótipos em sua eficácia, justamente no<br />

repertório de senti<strong>do</strong>s que põem em funcionamento e nas posições de<br />

sujeito que produzem. O estereótipo “é uma forma de conhecimento e<br />

identificação que vacila entre o que está sempre ‘no lugar’, já<br />

conheci<strong>do</strong>, e algo que deve ser ansiosamente repeti<strong>do</strong>” (Ibid., p. 105).<br />

A leitura de Bhabha (2005) sobre o estereótipo se pauta na<br />

ambivalência e no fetichismo. A ambivalência refere-se ao caráter


65<br />

daquilo que apresenta <strong>do</strong>is aspectos ou <strong>do</strong>is valores, e que experimenta<br />

simultaneamente, por exemplo, o sentimento de atração e repulsão por<br />

um objeto, pessoa ou ação. O estereótipo se constitui ambivalente por<br />

ser uma forma de conhecimento e identificação que segue oscilante e<br />

que experimenta ao mesmo tempo, numa determinada situação,<br />

movimento ora para um la<strong>do</strong>, ora para outro.<br />

O negro é ao mesmo tempo selvagem (canibal) e ainda o<br />

mais obediente e digno <strong>do</strong>s servos (o que serve a<br />

comida); ele é a encarnação da sexualidade desenfreada<br />

e, todavia, inocente como uma criança; ele é místico,<br />

primitivo, simplório e, todavia, o mais escola<strong>do</strong> e acaba<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>s mentirosos e manipula<strong>do</strong>r de forças sociais (Ibid., p.<br />

126).<br />

O estereótipo é um mo<strong>do</strong> ambivalente de produção de saber e é<br />

essa ambivalência que lhe confere validade e assegura possibilidades<br />

de iteração em diferentes conjunturas históricas e discursivas, bem<br />

como produz estratégias de individuação e marginalização. A<br />

ambivalência <strong>do</strong> estereótipo, segun<strong>do</strong> Bhabha, deve-se ao movimento<br />

“que se estabelece entre a fascinação e a curiosidade que a presença<br />

<strong>do</strong> outro mobiliza e, ao mesmo tempo, a ansiedade e o me<strong>do</strong> que sua<br />

existência faz emergir” (<strong>SILVA</strong>, 2006, p. 51).<br />

O estereótipo também é um mo<strong>do</strong> de representação fetichista. O<br />

fetichismo, no campo <strong>do</strong> discurso, representa “o jogo simultâneo entre<br />

a metáfora como substituição (mascaran<strong>do</strong> a ausência e a diferença) e<br />

a metonímia (que registra contiguamente a falta percebida)” (BHABHA,<br />

2005, p. 116). A metáfora diz respeito ao emprego de uma palavra ou<br />

expressão no senti<strong>do</strong> figura<strong>do</strong>, uma transferência de uma palavra para<br />

um âmbito que não é o <strong>do</strong> objeto que ela designa. No fetichismo a<br />

metáfora é uma substituição que mascara tanto a ausência quanto a<br />

diferença. O fetiche metafórico provoca a negação <strong>do</strong> sujeito em prol da<br />

metáfora que dele é feita: por exemplo, o negro é tão “inocente quanto<br />

uma criança”. O estereótipo faz com que o outro seja visto<br />

metaforicamente. Enquanto isso, a metonímia consiste em nomear um


66<br />

objeto por palavra designativa de outro objeto que tem com o primeiro<br />

uma relação. O fetiche metonímico registra a falta: por exemplo, no<br />

caso <strong>do</strong> sur<strong>do</strong>, o ponto relevante não é o sur<strong>do</strong> como sujeito, mas sim a<br />

surdez.<br />

A noção de estereótipo, para a sociologia, está vinculada à<br />

fórmula simplificada como certos grupos culturais são descritos; para<br />

Bhabha (2005, p. 117), o estereótipo “não é uma simplificação porque é<br />

uma falsa representação de uma dada realidade. É uma simplificação<br />

porque é uma forma presa, fixa, de representação”.<br />

Ao confrontar, na literatura escrita <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong> e na <strong>do</strong><br />

coloniza<strong>do</strong>r, as formas de representação que buscam ser a mais fiel, a<br />

mais autêntica, a mais verdadeira descrição <strong>do</strong> sujeito colonial, Bhabha<br />

busca compreender porque esses escritos fixam, congelam e imobilizam<br />

as representações em relação aos sujeitos coloniais. Investigan<strong>do</strong> as<br />

relações de poder em jogo nesse confronto, Bhabha traz o “hibridismo<br />

como elemento constituinte da linguagem, e portanto da<br />

representação” (SOUZA, 2004, p. 114), rejeitan<strong>do</strong> assim o discurso de<br />

muitos escritores pós-coloniais que procuravam retratar o sujeito<br />

colonial de forma “mais autêntica <strong>do</strong> que fora antes retrata<strong>do</strong> na<br />

literatura da cultura coloniza<strong>do</strong>ra” (Id.). Para ele, essa forma de<br />

representação é oriunda da combinação <strong>do</strong> historicismo com o realismo.<br />

Mediante essa junção, o tempo é visto como um processo linear,<br />

evolutivo e progressivo, conectan<strong>do</strong> eventos numa lógica de causa e<br />

efeito, cuja realidade pode ser vista como uma totalidade coerente e<br />

ordenada. Além disso, tanto esse tempo linear quanto essa totalidade<br />

real são representáveis de forma direta e não mediada por contextos<br />

sociais e históricos.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, Silva (2006, p. 57) nos diz que o realismo procura<br />

refletir mimeticamente a realidade, isto é, a representação é<br />

supostamente uma forma transparente da realidade. Por ser uma forma<br />

direta e não mediada, o realismo nos força a ver a representação tão


67<br />

somente como produto fixo, acaba<strong>do</strong> e imóvel, isto é, “as convenções,<br />

os códigos, os artifícios de construção utiliza<strong>do</strong>s pelo realismo têm a<br />

função de cerrar o jogo da significação”. Por esse fechamento <strong>do</strong> signo,<br />

que em termos da linguagem é visto como unitário e da<strong>do</strong>, portanto<br />

independente <strong>do</strong> contexto social, histórico e cultural, o estereótipo<br />

enquanto uma representação da realidade funciona como um<br />

dispositivo de economia semiótica quan<strong>do</strong> busca conhecer o outro.<br />

No estereótipo a complexidade <strong>do</strong> outro é reduzida a um<br />

conjunto mínimo de signos: apenas o mínimo necessário<br />

para lidar com a presença <strong>do</strong> outro, sem ter de se<br />

envolver com o custoso e <strong>do</strong>loroso processo de lidar com<br />

as nuances, as sutilezas e as profundidades da alteridade.<br />

O estereótipo é, assim, o resulta<strong>do</strong> de um complica<strong>do</strong><br />

compromisso. De um la<strong>do</strong> a existência <strong>do</strong> outro me impõe<br />

colocar em ação alguma forma de conhecê-lo. De outro,<br />

esse conhecimento é restringi<strong>do</strong> por uma economia<br />

semiótica, na qual a lei é a minimização <strong>do</strong> investimento<br />

afetivo e epistemológico. Nessa economia, o outro, como<br />

objeto <strong>do</strong> conhecimento, é fixa<strong>do</strong>, congela<strong>do</strong>, imobiliza<strong>do</strong><br />

(Ibid., p. 51).<br />

Bhabha (2005) destaca o processo de subjetivação daqueles que<br />

narram e <strong>do</strong>s que são narra<strong>do</strong>s por estereótipos. Se examinássemos os<br />

discursos coloniais sobre um determina<strong>do</strong> sur<strong>do</strong>, mediante a análise <strong>do</strong><br />

autor, diríamos que o posicionamento possível para esse sur<strong>do</strong> é, por<br />

exemplo, admitir como verdadeiros os discursos estereotipa<strong>do</strong>s e se<br />

identificar com a suposta positividade <strong>do</strong> “ouvinte”. Nesse caso, o sur<strong>do</strong><br />

recusaria práticas de significação que o posicionassem como integrante<br />

de uma “identidade surda” e se aproximaria tanto, quanto possível,<br />

daquelas práticas que confirmam sua possível capacidade de ouvir. É<br />

esse modelo estereotipa<strong>do</strong> de sur<strong>do</strong> que ainda prevalece, segun<strong>do</strong> as<br />

narrativas <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s, na educação, na família e no<br />

trabalho. “As pessoas ainda estão presas à lógica da deficiência. A<br />

deficiência é um estereótipo que está preso nas pessoas. Mesmo que o<br />

profissional sur<strong>do</strong> seja mestre ou <strong>do</strong>utor, ele ainda é visto como<br />

incapaz” (Narra<strong>do</strong>ra 4) .


68<br />

A produção de estereótipos como estratégia <strong>do</strong> discurso colonial é<br />

central na representação da diferença ao posicionar os extremos: o<br />

normal ao desejável e o anormal ao indesejável. O estereótipo, desse<br />

mo<strong>do</strong>, participa da manutenção da ordem social quan<strong>do</strong> estabelece o<br />

que é e que não é normal. Como já mencionei no primeiro capítulo,<br />

nessa relação assimétrica de poder aqueles que ocupam a primeira<br />

posição definem as regras a partir das quais se governam as ações <strong>do</strong>s<br />

outros, produzin<strong>do</strong>-os como diferentes.<br />

Essa forma de fixar a diferença é apresentada por alguns autores<br />

(Kindel, 2003; Souza, 2006) que trabalham com os povos indígenas. O<br />

pensamento romântico que associou o indígena à natureza e ao<br />

primitivo congelou-o no tempo e no espaço, como se esses fossem os<br />

únicos traços possíveis de sua identidade. Os livros didáticos que<br />

circulam nas escolas geralmente mostram que há uma articulação entre<br />

os indígenas e a natureza, posicionan<strong>do</strong>-os dessa forma em comunhão<br />

com a natureza e como conhece<strong>do</strong>r e protetor naturais <strong>do</strong> meio<br />

ambiente. Em outros casos, mostra-os como primitivos, pelos valores a<br />

eles associa<strong>do</strong>s. A natureza é utilizada como um marca<strong>do</strong>r em oposição<br />

à forma de vida <strong>do</strong> homem branco. O homem branco, por viver em um<br />

“mun<strong>do</strong> urbano”, é civiliza<strong>do</strong>, enquanto o indígena, por viver na<br />

floresta, em um “mun<strong>do</strong> natural” seria ingênuo, espontâneo e primitivo<br />

(KINDEL, 2003).<br />

Por se ter essa imagem congelada em relação aos indígenas,<br />

qualquer notícia, principalmente nos meios televisivos, provoca-nos<br />

estranheza quan<strong>do</strong> um indígena participa de ações vinculadas aos<br />

desmatamentos, queimadas, venda de madeira e empréstimo de terra<br />

para o agronegócio. Essa estranheza está associada à imagem segun<strong>do</strong><br />

a qual os indígenas são os guardiões da floresta – uma imagem<br />

construída pelo pensamento romântico e que ainda faz parte <strong>do</strong> nosso<br />

cotidiano. Esse exemplo demonstra que a estereotipia também define<br />

que ações combinam com cada sujeito e quem está autoriza<strong>do</strong> a


69<br />

explorar a terra, projetan<strong>do</strong> suas identidades para um passa<strong>do</strong> que<br />

supostamente o indígena apenas caçava, pescava e cuidava da floresta.<br />

Outro caso que reafirma essa questão é a <strong>do</strong>s povos afrodescendentes.<br />

A cor da pele tem si<strong>do</strong> um forte marca<strong>do</strong>r social para<br />

posicionar o negro na sociedade brasileira. A cor da pele, mediante o<br />

discurso colonial, define os espaços que o negro pode ocupar, além de<br />

definir sua negatividade estética quan<strong>do</strong> comparada à cor branca. É<br />

evidente a supremacia e a imposição de uma estética branca nas<br />

telenovelas, em textos históricos e literários com seus grandes heróis,<br />

nos livros didáticos, no perfil das figuras públicas, na propaganda etc. A<br />

cor da pele, em nossa cultura, adquire significa<strong>do</strong>s que extrapolam o<br />

campo biológico, chegan<strong>do</strong> a ser um organiza<strong>do</strong>r social. A cor da pele<br />

produz e naturaliza hierarquias e relações assimétricas de poder entre<br />

negros e brancos. A não ser quan<strong>do</strong> a cor da pele é produto de<br />

exportação: nesse caso, o negro é visto como exótico e sexualmente<br />

viril, sen<strong>do</strong> um ótimo atrativo no merca<strong>do</strong> <strong>do</strong> turismo (<strong>SC</strong>HWARCZ,<br />

2000). Essa forma estereotipada em relação ao negro é fortemente<br />

combatida por intelectuais militantes <strong>do</strong>s movimentos afrodescendentes.<br />

Munanga (1996, p. 83 e 84) afirma que, durante os três<br />

séculos de escravidão no Brasil, as relações entre negros e brancos<br />

foram permanentemente tensas, chegan<strong>do</strong> a situações de fugas,<br />

suicídios, assassinatos, sublevações etc.:<br />

As fugas em ban<strong>do</strong>s organiza<strong>do</strong>s e a formação de<br />

“quilombos” constituem manifestações eloqüentes de<br />

resistência ativa e podem ser interpretadas como<br />

estratégia de ruptura, porque os quilombos não eram<br />

simples refúgios, mas sim tentativas de libertação e de<br />

construção de um novo modelo de sociedade inspira<strong>do</strong><br />

nos quilombos africanos.<br />

Segun<strong>do</strong> Bhabha (2005), a pele é o marca<strong>do</strong>r determinante da<br />

diferença cultural e racial, é o mais visível <strong>do</strong>s fetiches e, sen<strong>do</strong><br />

reconheci<strong>do</strong> como algo de <strong>do</strong>mínio e conhecimento geral, seu senti<strong>do</strong><br />

se fixa como saber. A pele, elemento de diferenciação entre os sujeitos,


70<br />

deve ter seu significante destaca<strong>do</strong>, não por seu caráter distintivo, mas<br />

por carregar em si os significa<strong>do</strong>s de inferioridade que o coloniza<strong>do</strong>r<br />

procura destacar. Por isso, o discurso colonial é reiterativo, de tal forma<br />

que esses significa<strong>do</strong>s se “colam” à pele <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>. Porque o<br />

objetivo <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r “é apresentar o coloniza<strong>do</strong> como uma população<br />

de tipos degenera<strong>do</strong>s com base na origem racial de mo<strong>do</strong> a justificar a<br />

conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução” (Ibid.,<br />

p. 111).<br />

O estereótipo, como sugere Bhabha, é essencialmente<br />

ambivalente, ao mesmo tempo que deseja conhecer o outro também<br />

tem o impulso para contê-lo. No estereótipo, “o outro é representa<strong>do</strong><br />

por meio de uma forma especial de condensação em que entram<br />

processos de simplificação, de generalização, de homogeneização”<br />

(<strong>SILVA</strong>, 2006, p. 51). O estereótipo, mesmo sen<strong>do</strong> construí<strong>do</strong> por uma<br />

economia semiótica, mobiliza um arsenal considerável de traços<br />

distintos – a freqüência, a fixidez, a ausência de origem identificável, a<br />

imposição na memória coletiva e a condensação redutora – e, portanto,<br />

de instrumentos semióticos. O estereótipo, por esse viés, não pode ser<br />

descrito como uma falsa representação da realidade. Nas palavras de<br />

Silva (2006, p. 52):<br />

Não se trata simplesmente <strong>do</strong> caso que exista “lá fora”<br />

um real que o estereótipo então projeta ou reflete de<br />

forma imprecisa ou distorcida. Não se trata de uma<br />

simples questão de fidelidade, de reprodução fiel entre o<br />

original e sua imagem. Se fosse assim tão simples, o<br />

estereótipo seria facilmente desmontável. É precisamente<br />

porque no estereótipo está envolvi<strong>do</strong> o investimento de<br />

uma sofisticada semiótica de transformações, de<br />

deslocamentos, de condensações que ele é eficaz (grifo<br />

no original).<br />

Talvez a força <strong>do</strong> estereótipo esteja no fato de que ele lida com<br />

um núcleo que podemos reconhecer como real. Por exemplo, se no caso<br />

<strong>do</strong> negro é a cor da pele que o posiciona na sociedade brasileira, no<br />

caso <strong>do</strong> sur<strong>do</strong> é a surdez. É a partir dessa evidência, cor de pele e


71<br />

surdez, que o discurso colonial, com sua economia semiótica, cria os<br />

seus estereótipos, posicionan<strong>do</strong> os negros e os sur<strong>do</strong>s à margem da<br />

sociedade brasileira.<br />

Se no discurso colonial a surdez é causa que marca e posiciona o<br />

sur<strong>do</strong> no discurso da deficiência, da incapacidade, no discurso póscolonial<br />

a surdez é causa que marca e posiciona o sur<strong>do</strong> no discurso da<br />

política da diferença. Isso se dá porque a estereotipia em relação a<br />

surdez é ambivalente: ao mesmo tempo que traz a ausência – a falta <strong>do</strong><br />

som –, também traz em si a marca da presença – a diferença cultural<br />

entre sur<strong>do</strong>s e ouvintes. É nesse jogo que reside a possibilidade de<br />

resistência daqueles que são estereotipa<strong>do</strong>s. O exemplo que Bhabha<br />

(2005, p. 126) traz <strong>do</strong> negro evidencia essa questão: “o negro é [...]<br />

obediente e digno <strong>do</strong>s servos [...] e, todavia, o mais escola<strong>do</strong> e acaba<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>s mentirosos e manipula<strong>do</strong>r da forças sociais”. Ao mesmo tempo que<br />

o negro é um servo obediente, ele também é uma ameaça ao poder<br />

colonial quan<strong>do</strong> manipula as forças sociais. Assim, a condição de<br />

resistência já está dada no próprio discurso estereotipa<strong>do</strong>.<br />

É nessas fissuras da ambivalência presente em to<strong>do</strong> discurso<br />

estereotipa<strong>do</strong> que os intelectuais sur<strong>do</strong>s também vêm plantan<strong>do</strong> suas<br />

estratégias de resistência. De acor<strong>do</strong> com a Narra<strong>do</strong>ra 4, o intelectual<br />

sur<strong>do</strong> deve intervir no “próprio discurso daqueles ouvintes que<br />

enunciam: ‘você não pode’; ‘você é incapaz”, porque, ao fazer a réplica,<br />

“a gente traz outros enuncia<strong>do</strong>s, como, por exemplo, o da diferença<br />

surda, que é um enuncia<strong>do</strong> pouco conheci<strong>do</strong> pelos ouvintes”.<br />

Para Lopes (2007), todas as interpretações sobre a surdez são<br />

sempre interpretações culturais. Porque a surdez, como qualquer outro<br />

conceito, é construída na relação com o outro mediante o uso da<br />

linguagem:<br />

É a linguagem que permite a criação de um sistema de<br />

significações para representar coisas e negociar senti<strong>do</strong>s<br />

sobre elas. É sobre os senti<strong>do</strong>s que damos às coisas que<br />

construímos nossas experiências cotidianas e nossas


72<br />

interpretações sobre nós e os outros. Se a linguagem nos<br />

permite entrar no campo social de produção de verdades<br />

e de representações, ela também nos permite inventar as<br />

próprias coisas; nesse caso específico, inventar a surdez<br />

de muitas formas, dependen<strong>do</strong> das relações em que<br />

estamos mergulha<strong>do</strong>s (Ibid., p. 16).<br />

A surdez, como invenção cultural, inscreve saberes que permitem<br />

significar o sujeito sur<strong>do</strong> a partir de narrativas que não estão localizadas<br />

e nem são produzidas mediante o poder unilateral <strong>do</strong> discurso colonial,<br />

mas em diferentes loci de enunciações atravessa<strong>do</strong>s tanto pelos<br />

discursos coloniais quanto pós-coloniais.<br />

2. “ENTRE LUGARES”: UM ESTRANHO ESTRANGEIRO<br />

Nas narrativas <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s, há o uso frequente das<br />

palavras “estranho” e “estrangeiro”. Nos enuncia<strong>do</strong>s, essas duas<br />

palavras, estão associadas ao uso da língua de sinais e ao discurso da<br />

deficiência e assumem um papel primordial em suas vidas, porque em<br />

muitas situações eles são narra<strong>do</strong>s a partir delas. Além disso, a maioria<br />

<strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s já nasce “fora de lugar” linguística e culturalmente. Como<br />

filhos de pais ouvintes que não <strong>do</strong>minam a língua de sinais, os sur<strong>do</strong>s<br />

são estranhos estrangeiros em seu próprio lar. Por isso, Wrigley (1996,<br />

p. 25) afirma que a surdez “é um país cuja história é reescrita de<br />

geração a geração” e que as “culturas de sinais, bem como o<br />

conhecimento social da surdez, são necessariamente ressuscitadas e<br />

refeitas dentro de cada geração”.<br />

Porém, o ato de nascer, na maioria das vezes, longe <strong>do</strong>s outros<br />

sur<strong>do</strong>s, pode ser visto como a mais antiga de todas as formas de exílio,<br />

quan<strong>do</strong> se exclui a versão da literatura cristã que apresenta Adão e Eva<br />

como os primeiros habitantes da terra, que ao pecarem tiveram que sair<br />

<strong>do</strong> paraíso. 29 Talvez a história <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s devesse ser reescrita a partir<br />

29<br />

De acor<strong>do</strong> com a literatura cristã, Adão e Eva tiveram que aban<strong>do</strong>nar seu lar, sua<br />

terra, passan<strong>do</strong> a ser os primeiros estrangeiros em outras terras, isto é, foram as<br />

primeiras pessoas condenadas ao exílio. Assim, dentro da lógica cristã, to<strong>do</strong> filho de<br />

Adão e Eva é um estrangeiro em qualquer país em que se encontre e até mesmo em


73<br />

<strong>do</strong>s seus deslocamentos. Porque desde o início da humanidade o sur<strong>do</strong>,<br />

ao mesmo tempo que tem vivi<strong>do</strong> um eterno recomeçar, como bem<br />

coloca Wrigley (1996, p. 3), também tem fugi<strong>do</strong> de espaços que o<br />

negam linguística e culturalmente. O sur<strong>do</strong> é aquele que não está<br />

incluí<strong>do</strong> no to<strong>do</strong> de que faz parte. O sur<strong>do</strong> é um excluí<strong>do</strong> mesmo<br />

estan<strong>do</strong> incluí<strong>do</strong>, isto é, não é o fato de viver em seu país que lhe<br />

garante o direito de ser aquilo que ele é. Os sur<strong>do</strong>s ao longo de sua vida<br />

fazem uma espécie de diáspora ao contrário. Oriun<strong>do</strong>s, em sua maioria,<br />

de famílias ouvintes, eles gradativamente se afastam delas para se<br />

realizarem enquanto sujeitos.<br />

Por isso, é tão importante compreender a maneira pela qual o<br />

sur<strong>do</strong> é narra<strong>do</strong> como um estranho estrangeiro em seu próprio país.<br />

Esse sentimento, que sempre suscita debates, é apresenta<strong>do</strong> nos<br />

fragmentos das narrativas <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s.<br />

FRAGMENTOS<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: Eu acho que o conceito de estrangeiro não se<br />

encaixa bem para o sur<strong>do</strong>. Eu não me sinto como estrangeira.<br />

Eu nasci no Brasil, mas eu sou surda. Esse conceito de<br />

estrangeiro eu não sei ...<br />

Narra<strong>do</strong>r 2: [...] eu vou te fazer uma pergunta: Por exemplo,<br />

quan<strong>do</strong> você tem que estudar numa sala de ouvinte....<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: Não, não ... Aí eu me sinto estranha. Aí é um<br />

mun<strong>do</strong> diferente.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: O que eu sei é que a sociedade nos aponta e<br />

nos marca como estrangeiros.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: Eu como surda, não me sinto estrangeira, eu<br />

me sinto estranha entran<strong>do</strong> em algum espaço.<br />

Narra<strong>do</strong>r 3: No passa<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> eu escrevia na língua<br />

portuguesa, eu seguia a estrutura da língua de sinais e quan<strong>do</strong><br />

sua suposta pátria. De acor<strong>do</strong> com Chevalier e Gheerbrant (1998, p. 403), “cada um<br />

de nós entrou neste universo como se entrasse numa cidade estrangeira, com a qual<br />

não tivesse nenhuma ligação antes de nascer; e uma vez aqui dentro, o homem jamais<br />

deixa de ser um hóspede de passagem, até ter percorri<strong>do</strong> de um extremo a outro a<br />

duração de sua vida que lhe houver si<strong>do</strong> atribuída [...] Rigorosamente falan<strong>do</strong>, só Deus<br />

tem cidadania [...] Se a pátria é o céu, os exila<strong>do</strong>s <strong>do</strong> céu serão estrangeiros durante<br />

toda a vida”.


74<br />

os ouvintes liam eles achavam estranho. Eles pensavam que<br />

eu era um inglês que tinha muda<strong>do</strong> para o Brasil há pouco<br />

tempo.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 4: Qualquer outra pessoa de uma cultura<br />

minoritária se sente como estrangeiro em seu próprio país.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 4: Há um vínculo entre língua de sinais e o sur<strong>do</strong>,<br />

ela faz parte <strong>do</strong> próprio sur<strong>do</strong>. Não tem como separar a língua<br />

de sinais <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 5: Eu me criei ten<strong>do</strong> esse sentimento de<br />

estrangeiro. As pessoas me olhavam como diferente. E diziam<br />

assim: Tu és surda Tu falas Como Isso me dava um<br />

sentimento de estrangeiridade. Quan<strong>do</strong> eu era criança eu não<br />

usava a língua de sinais, eu oralizava e aí eu falava algumas<br />

palavras erradas. As pessoas me perguntavam: Você nasceu<br />

na Argentina<br />

Narra<strong>do</strong>ra 5: Quan<strong>do</strong> outras famílias vão visitar a nossa casa,<br />

o meu filho procura uma pessoa da mesma idade para<br />

conversar. Ele tem essa necessidade. Isto faz parte dele. Ele<br />

quer alguém na mesma faixa etária para conversar. A minha<br />

vida também passou por esse tipo de experiência. Essa busca<br />

<strong>do</strong> outro, mas de um outro sur<strong>do</strong>.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: Os ouvintes sempre falam que os sur<strong>do</strong>s são<br />

estrangeiros, são estranhos. Por exemplo, quan<strong>do</strong> eu vou a<br />

um restaurante ou outro local e sinalizo, eu acabo chaman<strong>do</strong> a<br />

atenção das outras pessoas. Uma loja ou um hospital são os<br />

lugares em que eu me sinto pior. Os médicos olham com um<br />

olhar estranho. Quan<strong>do</strong> eu e meu companheiro temos que ir<br />

ao médico eles já vêm com o discurso marca<strong>do</strong> de que a gente<br />

precisa fazer um implante. Nesses espaços eu me posiciono a<br />

partir da língua de sinais. Parece que nós já temos um<br />

passaporte.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: A maioria das pessoas são muito curiosas em<br />

relação à língua de sinais, mas eu me sinto estranha frente à<br />

forma com que as pessoas me olham quan<strong>do</strong> estou<br />

sinalizan<strong>do</strong>. São olhares que me impactam, mas isso é<br />

questão de segun<strong>do</strong>s. Eu fico um pouco angustiada, mas isso<br />

acontece num intervalo de tempo muito curto.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: Se a língua de sinais não existisse, aí sim, nós<br />

seríamos sur<strong>do</strong>s-mu<strong>do</strong>s ou estaríamos naquele discurso da<br />

deficiência.<br />

Em princípio, os intelectuais sur<strong>do</strong>s vêm-se narran<strong>do</strong> como um<br />

sujeito estranho e estrangeiro em seu próprio país. No primeiro<br />

fragmento a Narra<strong>do</strong>ra 1 nos diz: “Eu não me sinto como estrangeira.


75<br />

Eu nasci no Brasil, mas eu sou surda”. Nesse fragmento o significa<strong>do</strong> de<br />

estrangeiro está vincula<strong>do</strong> ao de território como nação, 30 mas há uma<br />

diferença em relação aos outros brasileiros: a Narra<strong>do</strong>ra se posiciona<br />

como surda. Para a Narra<strong>do</strong>ra 1 o sur<strong>do</strong> não é um forasteiro, porque<br />

ele vive em seu próprio país. Mas a mesma narra<strong>do</strong>ra, quan<strong>do</strong><br />

questionada pelo Narra<strong>do</strong>r 2 de como se sente ao frequentar uma sala<br />

de aula com alunos ouvintes, responde: “Aí eu me sinto estranha”.<br />

Neste caso, a palavra “estranha” está associada a um local não familiar.<br />

No quarto fragmento a idéia de estrangeiridade está associada à<br />

diferença linguística: “Quan<strong>do</strong> eu vou a um restaurante ou outro local e<br />

sinalizo, eu acabo chaman<strong>do</strong> a atenção das outras pessoas”, mas no<br />

mesmo fragmento a noção de estranho está associada ao estereótipo<br />

de deficiência. Conforme a Narra<strong>do</strong>ra 6, para os médicos a surdez é<br />

uma falta que precisa ser corrigida e não uma diferença cultural:<br />

“Quan<strong>do</strong> eu e meu companheiro temos que ir ao médico eles já vêm<br />

com o discurso marca<strong>do</strong> de que a gente precisa fazer um implante”.<br />

A idéia de estrangeiridade assume diferentes contornos nas<br />

narrativas <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s. A Narra<strong>do</strong>ra 5 assume a sua<br />

estrangeiridade quan<strong>do</strong> menciona: “Quan<strong>do</strong> eu era criança eu não<br />

usava a língua de sinais, eu oralizava e aí eu falava algumas palavras<br />

erradas. As pessoas me perguntavam: Você nasceu na Argentina Neste<br />

caso a estrangeiridade está associada simultaneamente ao <strong>do</strong>mínio de<br />

uma língua que não é a língua nativa <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s – a língua portuguesa,<br />

e também a uma condição de vida – por serem filhos de pais ouvintes,<br />

os sur<strong>do</strong>s não se relacionam com outros sur<strong>do</strong>s até a a<strong>do</strong>lescência,<br />

geralmente por recomendações de profissionais da saúde e educa<strong>do</strong>res<br />

que trabalham a partir de pedagogias corretivas: “Quan<strong>do</strong> eu era<br />

criança eu não usava a língua de sinais, eu oralizava”. O Narra<strong>do</strong>r 3<br />

também evidencia a sua diferença linguística ao relatar que os ouvintes,<br />

quan<strong>do</strong> liam o seu texto, achavam estranho: “Eles pensavam que eu<br />

era um inglês que tinha muda<strong>do</strong> para o Brasil há pouco tempo”.<br />

30<br />

Este conceito será trabalha<strong>do</strong> na próxima seção deste capítulo.


76<br />

A Narra<strong>do</strong>ra 4 afirma que o sur<strong>do</strong> é um estrangeiro em seu<br />

próprio país: “Qualquer outra pessoa de uma cultura minoritária se<br />

sente como estrangeiro em seu próprio país”, mas desloca o significa<strong>do</strong><br />

de estrangeiridade <strong>do</strong> campo da língua para o cultural e relaciona a<br />

estrangeiridade surda a outras minorias culturais, aproximan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong><br />

debate de Memmi (1977, p. 97) 31 sobre o bilinguismo colonial, 32 quan<strong>do</strong><br />

menciona que o coloniza<strong>do</strong> muni<strong>do</strong> apenas de sua língua “é um<br />

estrangeiro dentro de seu próprio país”.<br />

O senti<strong>do</strong> de identidade proporciona<strong>do</strong> pelo pertencimento a um<br />

grupo é intensamente afeta<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> há um deslocamento, mesmo<br />

que compulsório, de um lugar conheci<strong>do</strong> para um desconheci<strong>do</strong>. Para a<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1,<br />

o sentimento de estranheza está diretamente<br />

relaciona<strong>do</strong> ao espaço escolar, por ser “um mun<strong>do</strong> diferente” daquele<br />

em que está habituada a viver.<br />

O deslocamento de sur<strong>do</strong>s para as escolas de ouvintes, como o<br />

menciona<strong>do</strong> pela Narra<strong>do</strong>ra 1, é frequente. Por ser um espaço que<br />

geralmente não agrega seus traços culturais e linguísticos, a escola de<br />

ouvintes torna-se um ambiente estranho aos olhos <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s. 33 Por não<br />

31<br />

Memmi (1977), em “O Retrato <strong>do</strong> Coloniza<strong>do</strong> Precedi<strong>do</strong> pelo Retrato <strong>do</strong><br />

Coloniza<strong>do</strong>r”, analisa as identidades e as relações entre coloniza<strong>do</strong>r e coloniza<strong>do</strong> como<br />

um conjunto de situações vividas. Se de um la<strong>do</strong> o coloniza<strong>do</strong>r constrói uma<br />

identidade ambivalente, em parte ancorada nos valores colonialistas, mas em outra<br />

parte na valorização da colônia, pois ao buscar nas colônias os meios de sua ascensão<br />

social, enraíza-se ao permanecer na colônia. O coloniza<strong>do</strong>r, seja o grande ou o<br />

pequeno, para Memmi, tem o apego ao lucro, às benesses institucionais, à usurpação,<br />

ao racismo e ao sentimento de superioridade cultural; to<strong>do</strong>s tendem a compartilhar<br />

esses valores mesmo que não tenham consciência de seu papel histórico. De outro<br />

la<strong>do</strong>, o coloniza<strong>do</strong> também é ambivalente: ao mesmo tempo que se indigna com a<br />

opressão colonial – o coloniza<strong>do</strong>r além de oprimir fisicamente também cria<br />

estereótipos em relação ao coloniza<strong>do</strong>: preguiçoso, não confiável, incapaz –, é amante,<br />

até certo grau, das benesses e da cultura <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r. Segun<strong>do</strong> Memmi, para<br />

enfrentar esse drama, os coloniza<strong>do</strong>s têm apenas duas alternativas: “mudar de pele”,<br />

mudar de cor, deixar de ser o outro desprezível, incapaz, ou revoltar-se em busca de<br />

sua auto-afirmação.<br />

32<br />

Segun<strong>do</strong> Memmi (1977, p. 98), o bilinguismo colonial “não é uma diglossia, onde<br />

coexistem um idioma popular e uma língua de purista, pertencentes ambos ao mesmo<br />

universo afetivo, nem uma simples riqueza poliglota, que se beneficia de um tecla<strong>do</strong><br />

suplementar porém relativamente neutro; é um drama lingüístico” (grifos no original).<br />

33<br />

De acor<strong>do</strong> com os da<strong>do</strong>s da Secretaria de Educação Especial <strong>do</strong> Ministério da<br />

Educação (SESSP/MEC – 2006), de 11.319 alunos sur<strong>do</strong>s que entram no ensino<br />

fundamental da Educação Básica apenas 2.312 concluem. Em percentuais, significa<br />

dizer que 79,57% <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s se evadem durante os oito anos <strong>do</strong> ensino fundamental.


77<br />

pertencer a esse ambiente, na maioria das vezes os sur<strong>do</strong>s a<strong>do</strong>tam a<br />

mesma estratégia que Laborit 34 (1994, p. 89) descreve em seu livro “O<br />

vôo da gaivota”, quan<strong>do</strong> frequentou uma escola de ouvintes em Paris<br />

na sua a<strong>do</strong>lescência:<br />

Não suportava mais aquelas aulas, não suportava mais ler<br />

os lábios, não suportava lutar para produzir ruí<strong>do</strong>s de<br />

minha voz [...] não suportava os professores<br />

desanima<strong>do</strong>s, que constantemente me repreendiam, me<br />

diminuíam diante <strong>do</strong>s outros [...] Tinha a impressão de<br />

que [...] Tu<strong>do</strong> aquilo não servia para nada [...] Tinha a<br />

sensação de ser manipulada, queriam apagar a minha<br />

identidade de surda. [...] Aos treze anos, explodi. Era<br />

contra tu<strong>do</strong>. Queria meu próprio mun<strong>do</strong>, minha própria<br />

língua [...].<br />

Said (2003), em seu ensaio “Entre mun<strong>do</strong>s”, brinda-nos com o<br />

relato de sua experiência em uma escola <strong>do</strong> Cairo, experiência que<br />

linguística e culturalmente se aproxima da vivida por Laborit e pelos<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s que frequentaram escolas de ouvintes. Segun<strong>do</strong><br />

Said, a escola tinha si<strong>do</strong> criada pelos britânicos para ensinar os árabes<br />

das classes, que num futuro próximo, quan<strong>do</strong> os britânicos fossem<br />

embora, seriam os governantes de seus países, mas à moda britânica.<br />

Ao ingressarem na escola to<strong>do</strong>s os alunos recebiam um regulamento<br />

estabelecen<strong>do</strong> o que podiam ou não fazer e a primeira regra escrita na<br />

primeira página <strong>do</strong> manual era: “O inglês é o idioma da escola; os<br />

alunos surpreendi<strong>do</strong>s falan<strong>do</strong> qualquer outra língua serão puni<strong>do</strong>s”. Se<br />

por um la<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os professores eram britânicos e impunham a língua<br />

inglesa, por outro to<strong>do</strong>s os alunos tinham o árabe como uma língua<br />

comum, mesmo que formassem um grupo heterogêneo de árabes.<br />

Dessa forma, mesmo que furtivamente, os alunos conseguiam se<br />

refugiar em sua língua, desafian<strong>do</strong> uma das restrições imposta pelo<br />

discurso colonial britânico.<br />

34<br />

Emmanuelle Laborit é francesa e participa ativamente <strong>do</strong>s movimentos sociais<br />

sur<strong>do</strong>s. É atriz com formação na Escola Morvan, e em 1993 recebeu o prêmio Molière<br />

de “Atriz Revelação” por seu desempenho na peça teatral “Os filhos <strong>do</strong> silêncio”.


78<br />

Nessa escola, a situação de Said era mais complexa: mesmo que<br />

seus pais fossem de origem palestina, o pai de Said vivera um perío<strong>do</strong><br />

de sua vida nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e tinha cidadania americana por ter<br />

participa<strong>do</strong> da Segunda Guerra Mundial na Força Expedicionária<br />

Americana. A sua situação na escola era estranha por uma série de<br />

questões: “um palestino que freqüentava a escola no Egito”; um<br />

primeiro nome em inglês – Edward –; um “passaporte americano e<br />

nenhuma identidade certa”. Segun<strong>do</strong> o autor, a sua situação se tornava<br />

ainda mais complexa, porque “o árabe, minha língua materna, e o<br />

inglês, meu idioma escolar estavam inextricavelmente mistura<strong>do</strong>s: eu<br />

nunca soube qual era minha primeira língua e nunca me senti<br />

plenamente à vontade nas duas [...]” (SAID, 2003, p. 304).<br />

Said, ao reviver estas cenas, nos diz que as piores situações de<br />

sua vida, que o tempo apenas exacerbou, foram decorrente da relação<br />

conflitante entre o inglês e o árabe e suas interações com os<br />

professores britânicos, que o faziam compreender que era um estranho,<br />

“um Outro Não-Europeu, educa<strong>do</strong> por meus superiores para conhecer<br />

meu lugar e não aspirar a ser um inglês” (Ibid., 305), mesmo que na<br />

escola fosse leva<strong>do</strong> a pensar e acreditar que era um inglês. Ao fechar a<br />

narrativa o autor nos diz que na primavera de 1951 foi expulso por ser a<br />

presa mais fácil e visível <strong>do</strong>s professores ingleses.<br />

Ao discutir o significa<strong>do</strong> de “estranho”, sentimento e vivência de<br />

pessoas que não estão em espaços culturais e linguísticos de seu povo,<br />

Bhabha (2005) introduz a palavra unhomely, que em português pode<br />

ser traduzi<strong>do</strong> por “sem lar” e “sem lugar”. Nesse caso, a idéia de<br />

estranho está associada, como sugere Bhabha, àquela pessoa que é<br />

desprovida de um lar, de um lugar. Entretanto, o significa<strong>do</strong> de estranho<br />

é mais complexo, e Bhabha faz questão de evidenciar essa<br />

complexidade quan<strong>do</strong> traz esse conceito para discutir o deslocamento<br />

de um ou muitos indivíduos de um local conheci<strong>do</strong> para outro<br />

desconheci<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> o autor, o deslocamento gera, no mínimo,<br />

estranheza tanto para quem se desloca como para as pessoas que


79<br />

passam a conviver com esse outro. Bhabha (2005, p. 198) traz a sua<br />

própria experiência de deslocamento como emigrante indiano para<br />

mostrar que o estranho, no próprio movimento de dispersão, acaba<br />

geran<strong>do</strong> outros encontros que não aqueles espera<strong>do</strong>s pelo coloniza<strong>do</strong>r:<br />

Vivi aquele momento de dispersão de povos que, em<br />

outros tempos e em outros lugares, nas nações de outros,<br />

transforma-se num tempo de reunião. Reunião de<br />

exila<strong>do</strong>s, émigrés e refugia<strong>do</strong>s, reunin<strong>do</strong>-se às margens<br />

de culturas “estrangeiras”, reunin<strong>do</strong>-se nas fronteiras;<br />

reuniões nos guetos ou cafés de centros de cidade;<br />

reunião na meia-vida, meia-luz de línguas estrangeiras, ou<br />

na estranha fluência da língua <strong>do</strong> outro; reunin<strong>do</strong> os<br />

signos de aprovação e aceitação, títulos, discursos,<br />

disciplinas; reunin<strong>do</strong> as memórias de<br />

subdesenvolvimento, de outros mun<strong>do</strong>s vivi<strong>do</strong>s<br />

retroativamente; reunin<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong> num ritual de<br />

revivescência; reunin<strong>do</strong> o presente (grifo no original).<br />

Bhabha busca a estranheza da experiência provocada por<br />

deslocamentos força<strong>do</strong>s (exila<strong>do</strong>s e refugia<strong>do</strong>s) e espontâneos<br />

(émigrés) em grandes centros cosmopolitas para apresentar outras<br />

formas de viver em casa mesmo estan<strong>do</strong> “fora de lugar”. Bhabha<br />

apresenta o encontro de exila<strong>do</strong>s, emigra<strong>do</strong>s e refugia<strong>do</strong>s como<br />

encontros que se dão “na margem das culturas estrangeiras”; “nas<br />

fronteiras”; “nos guetos ou cafés <strong>do</strong>s centros das cidades”, situações<br />

que se aproximam das experiências vividas pelos sur<strong>do</strong>s nos grandes<br />

centros urbanos. É frequente o encontro sur<strong>do</strong>-sur<strong>do</strong> em esquinas de<br />

ruas, merca<strong>do</strong>s públicos, praças públicas, terminais urbanos de ônibus<br />

etc. São encontros efêmeros que acontecem “à meia-luz de línguas<br />

estrangeiras”, mas criam “circuitos comunicativos” que possibilitam aos<br />

sur<strong>do</strong>s “dialogar, interagir e mesmo sincronizar elementos significativos<br />

de suas vidas sociais e culturais” (GILROY, 1994, p. 211). Os encontros<br />

“à meia-luz” constituem uma das diferentes formas que os sur<strong>do</strong>s têm<br />

para interagir, trocar suas experiências de vida e garantir a sua própria<br />

sobrevivência.<br />

A cidade como centro cosmopolita torna-se o espaço mais intimo<br />

e mais vasto para aqueles que não têm um lugar e vivem dispersos pelo


80<br />

mun<strong>do</strong>. 35 A cidade ao longo <strong>do</strong> tempo, converteu-se não só em lugar de<br />

refúgio para os dispersos da terra, mas também em espaço de trocas<br />

materiais e simbólicas. A cidade, desde a antiguidade, passou a ser um<br />

grande refúgio, abrigan<strong>do</strong> pessoas de diferentes lugares que precisam<br />

de um abrigo, de um lugar para ficar, mesmo que temporariamente.<br />

Porém, por ser um desloca<strong>do</strong> da terra, o estranho, ao mesmo<br />

tempo que é abriga<strong>do</strong> nas cidades, também é vigia<strong>do</strong>. Porque o<br />

desconheci<strong>do</strong> produz temor, produz uma suposta ameaça à ordem<br />

vigente. Por isso é tão comum para aquele que vive em refúgio se<br />

fechar em si mesmo ou em seu círculo familiar. Nesse senti<strong>do</strong>, a cidade<br />

que abriga o estranho também pode ser vista como o “não lugar”,<br />

território de desencanto e solidão, de admiração e repulsa.<br />

Said (2003) é um <strong>do</strong>s autores que evidencia a importância <strong>do</strong><br />

contato com o seu outro nos momentos de asilo político. Quan<strong>do</strong> estava<br />

em Beirute teve a felicidade de conviver por algum tempo com Faiz<br />

Ahamad Faiz que, segun<strong>do</strong> o autor, era o maior <strong>do</strong>s poetas urdus. 36 Faiz<br />

tinha si<strong>do</strong> exila<strong>do</strong> <strong>do</strong> Paquistão pelo regime militar de Zia 37 e encontrou<br />

uma espécie de acolhimento na cidade de Beirute, também dilacerada<br />

pela guerra civil. O seu círculo familiar em Beirute era forma<strong>do</strong> por<br />

palestinos, mas Said “percebia que embora houvesse uma afinidade de<br />

espírito entre eles, nada combinava muito bem – língua, convenção<br />

poética ou história de vida” (Ibid., p. 48). Até que um dia seu amigo<br />

Eqbal Ahmad, também paquistanês que falava urdu, foi a Beirute visitálo<br />

e, segun<strong>do</strong> Said, Faiz superou seu senti<strong>do</strong> de alienação constante:<br />

35<br />

Segun<strong>do</strong> Bhabha (2005, p. 237), “é para as cidades que os migrantes, as minorias e<br />

os diaspóricos vêm para mudar a história da nação. Se sugeri que o povo emerge na<br />

finitude da nação, marcan<strong>do</strong> a liminaridade da identidade cultural, produzin<strong>do</strong> o<br />

discurso de <strong>do</strong>is gumes de territórios e de temporalidades sociais, então no Ocidente,<br />

e de mo<strong>do</strong> crescente em outras partes, é a cidade que oferece o espaço no qual<br />

identificações emergentes e novos movimentos sociais <strong>do</strong> povo são encena<strong>do</strong>s”.<br />

36<br />

O urdu e o inglês são as línguas oficiais <strong>do</strong> Paquistão.<br />

37 O regime militar de Mohammad Zia-ul-Haq estendeu-se de 1977 a 1988, reprimin<strong>do</strong><br />

severamente os protestos da oposição civil. Zia também empreendeu de forma<br />

paulatina a islamização da sociedade paquistanesa, portanto se opon<strong>do</strong> ao laicismo<br />

implementa<strong>do</strong> por seu antecessor, Ali Bhutto. A língua árabe e os estu<strong>do</strong>s islâmicos<br />

passaram a ser matérias obrigatórias na maior parte <strong>do</strong>s estabelecimentos de ensino<br />

superior.


81<br />

Certo fim de noite, nós três nos instalamos num<br />

restaurante encardi<strong>do</strong> e Faiz recitou poemas. Depois de<br />

algum tempo, ele e Eqbal pararam de traduzir os versos<br />

para mim, mas, com o avançar da noite, isso deixou de ter<br />

importância. Não era preciso tradução para o que eu<br />

observava: era uma representação da volta para casa<br />

expressa por meio de desafio e perda, como se quisessem<br />

dizer: “Zia, aqui estamos”. Evidentemente, Zia era quem<br />

estava, de fato, em casa e não escutaria suas vozes<br />

exultantes (grifo no original).<br />

O relato apresenta<strong>do</strong> por Said me reporta aos primeiros registros<br />

de acolhimento de sur<strong>do</strong>s na cidade, que datam <strong>do</strong> século XVIII, mais<br />

precisamente em Paris, quan<strong>do</strong> em torno de 1761 o abade L’Epée (1712<br />

– 1789) cria a primeira Escola Residencial Pública para Sur<strong>do</strong>s. Segun<strong>do</strong><br />

Skliar, a concepção política dessa escola é uma referência até os dias<br />

de hoje, por ter permiti<strong>do</strong> aos sur<strong>do</strong>s participarem <strong>do</strong> debate cultural da<br />

época; por ter forma<strong>do</strong> professores sur<strong>do</strong>s para ensinar crianças surdas;<br />

por ter assumi<strong>do</strong> a língua de sinais como primeira língua e pela rica<br />

bagagem, naquela época, de produções artísticas e científicas <strong>do</strong>s<br />

sur<strong>do</strong>s.<br />

Sanchez (1990) relata que a experiência política e pedagógica da<br />

escola pública para sur<strong>do</strong>s de Paris espalhou-se, sob a orientação direta<br />

de ex-alunos, por vários países <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, como Escandinávia, Rússia,<br />

Itália, Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Esse deslocamento permitiu a criação de várias<br />

escolas que se tornaram o refúgio linguístico e cultural de sur<strong>do</strong>s que<br />

viviam espalha<strong>do</strong>s nas grandes cidades <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. 38<br />

Essas histórias são geralmente narradas pelas comunidades<br />

surdas como uma condição heróica, gloriosa e até mesmo romântica.<br />

Talvez porque as escolas residenciais para sur<strong>do</strong>s, ao mesmo tempo<br />

que se tornaram “refúgio” para milhares de sur<strong>do</strong>s que viviam nas<br />

cidades, também foram o espaço de resistência aos discursos religiosos<br />

– como o de John Bulwer, que em 1648, sugeriu que os sur<strong>do</strong>s eram<br />

filhos <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> e que deveriam ser trata<strong>do</strong>s um pouco melhor que<br />

38<br />

Ver Sanchez (1990); Lane (1992); Skliar (1997).


82<br />

“Animais Mu<strong>do</strong>s” – e de discursos legalistas, como o <strong>do</strong> Censo Federal<br />

Americano, que de 1830 a 1890 incluiu os sur<strong>do</strong>s na categoria de<br />

“defeituosos”. 39<br />

As escolas para sur<strong>do</strong>s na França e, posteriormente, nos Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s e outros países <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, 40 foram e são, “refúgios” políticos 41<br />

que permitem aos sur<strong>do</strong>s manterem vivos os seus saberes, suas<br />

línguas, suas culturas e sua forma de organização política. Mas o sur<strong>do</strong><br />

em “refúgio” vive uma dupla condição: é um excluí<strong>do</strong> incluí<strong>do</strong> nas<br />

escolas residenciais e um sujeito político, livre e aberto para cruzar<br />

oceanos, como foi o caso de Laurent Clerc e Ernest Huet. 42<br />

Porém, o “refúgio” é um espaço marca<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>r da separação.<br />

Os sur<strong>do</strong>s, como “refugia<strong>do</strong>s”, também viviam dividi<strong>do</strong>s entre a<br />

saudade de seus entes queri<strong>do</strong>s, a sua família, e o desejo de ficar com<br />

aqueles que tinham uma forma de viver semelhante à sua. O sur<strong>do</strong>,<br />

para sobreviver, vive permanentemente dividi<strong>do</strong> entre o mun<strong>do</strong> ouvinte<br />

e o mun<strong>do</strong> sur<strong>do</strong>, mesmo saben<strong>do</strong> que é uma condição de vida<br />

produzida “por seres humanos para outros seres humanos” (Said, 2003,<br />

p. 47).<br />

As escolas de sur<strong>do</strong>s, como “refúgio” político, trouxeram grandes<br />

avanços para a educação de sur<strong>do</strong>s. Atualmente, o próprio pensamento<br />

educacional brasileiro está atravessa<strong>do</strong> por seus saberes. A língua de<br />

39<br />

Ver Wrigley (1996, p. 2).<br />

40<br />

Segun<strong>do</strong> Padden e Humphries (1996), as escolas residenciais têm si<strong>do</strong> o coração da<br />

cultura surda nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e Canadá, principalmente entre os anos de 1817 a<br />

1980. Para os autores, o aspecto mais significante da vida nas escolas residenciais é o<br />

<strong>do</strong>rmitório. “Nos <strong>do</strong>rmitórios distantes <strong>do</strong> controle estrutura<strong>do</strong> da sala de aula, as<br />

crianças surdas são introduzidas à vida social das pessoas Surdas. No ambiente<br />

informal <strong>do</strong> <strong>do</strong>rmitório aprendem não somente a língua de sinais mas o conteú<strong>do</strong> da<br />

cultura. Desse mo<strong>do</strong>, as escolas tornam-se centros de atividade das comunidades que<br />

as cercam, preservan<strong>do</strong> a próxima geração a cultura das gerações anteriores” (Ibid.,<br />

p. 36).<br />

41<br />

Ver Sanchez (1990); Lane (1993); Skliar (1997) e Monttez (1992).<br />

42<br />

O deslocamento <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s não se deu apenas entre países, como o de Laurent<br />

Clerc e Ernest Huet, mas também dentro de cada país. Um exemplo local é o educa<strong>do</strong>r<br />

Francisco Lima Junior, que estu<strong>do</strong>u no Imperial Instituto de Sur<strong>do</strong>s Mu<strong>do</strong>s no Rio de<br />

Janeiro e no Instituto Paulista de Sur<strong>do</strong>s no perío<strong>do</strong> de 1937 a 1946. Ao retornar para<br />

Santa Catarina, em 1955, criou com outros sur<strong>do</strong>s da cidade de Florianópolis o Círculo<br />

de Sur<strong>do</strong>s Mu<strong>do</strong>s de Santa Catarina e, posteriormente, em 1959, passou a ser o<br />

primeiro educa<strong>do</strong>r sur<strong>do</strong> <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>.


83<br />

sinais, no inicio deste século, começa a ser reconhecida oficialmente<br />

nas universidades <strong>do</strong> país, inclusive com a criação de cursos de Língua<br />

de Sinais Brasileira na área de Letras e com o mesmo status que as<br />

línguas faladas, como, por exemplo, o Curso de Licenciatura e<br />

Bacharela<strong>do</strong> em Letras Libras na Universidade Federal de Santa<br />

Catarina. Afirmo isso sem esquecer que as conquistas surdas, como<br />

menciona Wrigley (1996), estão associadas a um eterno recomeçar.<br />

Em linhas gerais, o asilo que uma cidade ou país concede a<br />

exila<strong>do</strong>s políticos tem permiti<strong>do</strong>, desde a antiguidade até os dias de<br />

hoje, a sobrevivência de milhões de pessoas. 43 O exílio, geralmente é<br />

provoca<strong>do</strong> por colapsos econômicos, crises políticas, religiosas, étnicas<br />

que forçam pequenos ou grandes contingentes de pessoas a<br />

aban<strong>do</strong>narem seus lugares de origem. Às vezes, o exílio chega a<br />

deslocar populações inteiras dentro de um mesmo país ou de um país<br />

para outro, e até mesmo de um continente para outro. Como bem diz<br />

Said (2003), o exílio é o produto de seres humanos sobre outros seres<br />

humanos, separan<strong>do</strong> milhões de pessoas de suas fontes de tradição, de<br />

sua família e de sua geografia, fazen<strong>do</strong>-os perambular numa terra que<br />

não é a sua.<br />

Entretanto, o asilo vivi<strong>do</strong> pelos sur<strong>do</strong>s nas escolas de sur<strong>do</strong>s é um<br />

movimento que se desloca no senti<strong>do</strong> contrário <strong>do</strong>s exílios oriun<strong>do</strong>s de<br />

colapsos econômicos, políticos, religiosos e étnicos. O exílio sur<strong>do</strong> é um<br />

movimento de aproximação <strong>do</strong> seu outro sur<strong>do</strong> e não de afastamento. O<br />

exílio sur<strong>do</strong> cria sentimentos de pertencimento, de encontros<br />

permanentes, diferentes daqueles “à meia-luz”, como descreve Bhabha.<br />

Ao se deslocarem para as escolas de sur<strong>do</strong>s, estes criam espaços de<br />

interações que propiciam o surgimento de narrativas <strong>do</strong> povo sur<strong>do</strong>, um<br />

povo sem território, mas com língua e cultura.<br />

A cidade, como espaço político que permite a interação <strong>do</strong>s<br />

estranhos estrangeiros nos encontros “à meia-luz” e nos “refúgios” é<br />

43<br />

De acor<strong>do</strong> com o Alto Comissaria<strong>do</strong> das Nações Unidas para Refugia<strong>do</strong>s – ACNUR –,<br />

no inicio deste século, existem aproximadamente 20 milhões de refugia<strong>do</strong>s no mun<strong>do</strong>.


84<br />

um espaço determinante na constituição <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s. Porque nos<br />

primeiros meses ou anos de vida, logo depois que os pais percebem que<br />

seus filhos são sur<strong>do</strong>s, 44 estes sofrem o seu primeiro deslocamento,<br />

saem <strong>do</strong> seio familiar e vão tanto para o mun<strong>do</strong> das clínicas, onde<br />

otorrinos, fonoaudiólogos e outros profissionais buscam transformá-los<br />

incansavelmente em uma criança ouvinte, através de implante coclear,<br />

aparelhos auditivos e terapia da fala, quanto para as escolas de<br />

ouvintes com suas pedagogias corretivas. Macha<strong>do</strong> (2008, p. 110 e 111)<br />

relata uma dessas experiências.<br />

Quan<strong>do</strong> eu era pequeno fui só na escola de ouvinte: 1ª<br />

serie ouvinte, 2ª série ouvinte, 3ª série ouvinte: quan<strong>do</strong><br />

chegou na quarta série, minha mãe me levou no<br />

fonoaudiólogo, fica no centro de Florianópolis. O fono<br />

ensinou onde ficava a escola para sur<strong>do</strong>s, ele disse: é a<br />

Fundação [refere-se à Fundação Catarinense de Educação<br />

Especial – FCEE]. Aí eu estudei na Fundação um ano.<br />

Depois minha mãe conseguiu outra escola porque na FCEE<br />

era tu<strong>do</strong> mistura<strong>do</strong>, sur<strong>do</strong>, cego, mental, físico, então era<br />

muita confusão, difícil. Minha mãe depois me levou para o<br />

IATEL (Instituto de Audição e Terapia da Linguagem). Lá<br />

tinha terapia da fala, a LIBRAS não tinha. Minha primeira<br />

professora foi [...], ela ensinou frase, botava a mão aqui<br />

[apontan<strong>do</strong> para a garganta] pá, pá, pá, pá, [...] para<br />

sentir o movimento. [...] o sur<strong>do</strong> não aprende a LIBRAS,<br />

fica sozinho, por exemplo, na festa de família to<strong>do</strong>s falam<br />

e o sur<strong>do</strong> fica na solidão.<br />

No Brasil, são raros os casos em que os pais ouvintes com filhos<br />

sur<strong>do</strong>s resolvem criar um ambiente linguístico adequa<strong>do</strong> ao<br />

desenvolvimento da criança surda e, ainda mais raro, levá-los a uma<br />

escola de sur<strong>do</strong>s e associações de sur<strong>do</strong>s. Essa violência linguística no<br />

44<br />

Lane (1992, p. 144) descreve a forma súbita de como os pais descobrem a surdez de<br />

seus filhos. “Thomas e a sua mulher, Louise, tinham i<strong>do</strong> ver uma barulhenta parada<br />

com sua filha de três meses, Lynn: ‘Só alguns segun<strong>do</strong> mais tarde’, escreveu o pai, ‘é<br />

que me ocorreu que Lynn poderia assustar-se com a rui<strong>do</strong>sa dissonância que<br />

provocava uma onda de excitação entre a multidão. Quan<strong>do</strong> reparei que ela se<br />

mantinha acordada, quieta e imperturbável, olhan<strong>do</strong> para o olmeiro acima como se<br />

ninguém ali estivesse, senti-me alivia<strong>do</strong>. Foi então que o instinto me fez olhar para ela<br />

com mais exatidão. Não titubeava nem se virava; não havia nela qualquer movimento<br />

ou reação que sugerisse que estava a ouvir aqueles sons que vibravam no ar com<br />

tanta força... Senti algo de estranho no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> estômago, como que a pressentir que<br />

algo de terrível estava para acontecer, e não consegui evitá-lo. Pensei então que ela<br />

poderia ser surda’”.


85<br />

seio familiar pode produzir danos muitas vezes irreparáveis aos sur<strong>do</strong>s.<br />

Porque, não se pode “separar a língua de sinais <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s”<br />

(Narra<strong>do</strong>ra 4).<br />

O deslocamento <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s para as clínicas e para escolas de<br />

ouvintes pode ser visto como uma estratégia de distanciamento, de<br />

obstrução, de controle para normalizar o sur<strong>do</strong>, mas o poder colonial<br />

não é tão forte como parece: ao longo <strong>do</strong> tempo, para sobreviver, os<br />

sur<strong>do</strong>s criam seus encontros “à meia-luz” e seus “refúgios” políticos.<br />

Said (2003), ao descrever o seu ingresso em uma escola norteamericana<br />

em Massachusetts, após ter saí<strong>do</strong> da escola britânica <strong>do</strong><br />

Cairo, mostra, de certa forma, a <strong>do</strong>r que os sur<strong>do</strong>s sentem quan<strong>do</strong> são<br />

leva<strong>do</strong>s por seus pais para uma escola de ouvintes. Para Said, o dia em<br />

que ingressou na escola norte-americana foi o dia mais infeliz de sua<br />

vida não pelo fato de seus pais o deixarem no portão da escola e<br />

partirem imediatamente para o Oriente Médio, ou pela atmosfera rígida<br />

e moralista da escola, mas por ser o único menino que não era<br />

americano e, portanto, não falava como americano. Por estar priva<strong>do</strong> de<br />

seu ambiente linguístico, Said não pôde a<strong>do</strong>tar as mesmas estratégias<br />

de sobrevivência que a<strong>do</strong>tou na escola <strong>do</strong> Cairo:<br />

Pela primeira vez, eu estava priva<strong>do</strong> <strong>do</strong> ambiente<br />

lingüístico de que dependia para ter uma alternativa às<br />

atenções hostis <strong>do</strong>s anglo-saxões cujo idioma não era o<br />

meu e que não hesitavam em deixar claro que eu<br />

pertencia a uma raça inferior e, de algum mo<strong>do</strong>,<br />

condenada. Quem enfrentou os obstáculos cotidianos da<br />

rotina colonial saberá <strong>do</strong> que estou falan<strong>do</strong> (SAID, 2003, p.<br />

306).<br />

A rotina colonial que Said menciona é bastante conhecida pelos<br />

sur<strong>do</strong>s, principalmente quan<strong>do</strong> frequentam uma escola de ouvintes.<br />

Macha<strong>do</strong> (2008) apresenta a rotina colonial <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s em escolas de<br />

ouvintes quan<strong>do</strong> traz o olhar <strong>do</strong> egresso sur<strong>do</strong> para discutir a atual<br />

política de inclusão no sistema educacional brasileiro. O enuncia<strong>do</strong> “o<br />

processo de inclusão é aceitar o que o ouvinte quer, é pensar como o


86<br />

ouvinte” (Ibid., p. 152), dito por um egresso sur<strong>do</strong> que vivenciou a<br />

política de inclusão, evidencia a opressão da rotina colonial ainda<br />

vigente na educação de sur<strong>do</strong>s.<br />

Para tentar sobreviver em um território que não era o seu, Said foi<br />

à procura <strong>do</strong> seu outro, um professor de origem egípcia indica<strong>do</strong> por um<br />

amigo da família de seus pais que <strong>do</strong>minava o árabe e morava em<br />

Massachusetts. Num sába<strong>do</strong> à tarde, Said saiu ao encontro daquele que<br />

poderia fazê-lo se sentir em casa, mesmo que estivesse tão distante de<br />

sua família. Assim que o encontrou, Said passou a falar em árabe, mas<br />

ficou surpreso quan<strong>do</strong> o amigo de sua família levantou a mão para<br />

dizer: “Não, meu irmão, nada de árabe aqui. Eu deixei tu<strong>do</strong> isso para<br />

trás quan<strong>do</strong> vim para a América” (SAID, 2003, p. 306). O exemplo<br />

apresenta<strong>do</strong> por Said demonstra que a língua é um marca<strong>do</strong>r cultural<br />

que caracteriza um enraizamento ou desenraizamento, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

local em que a pessoa se encontra. Parafrasean<strong>do</strong> Said, pergunto-me<br />

quantas vezes, nas escolas de ouvintes, já foi dito aos sur<strong>do</strong>s: “Não,<br />

nada de Libras. Aqui você tem que aprender a falar o português”.<br />

Por viverem dispersos, os sur<strong>do</strong>s criam os seus encontros “à meialuz”<br />

e seus “refúgios” políticos como uma estratégia de sobrevivência<br />

frente ao discurso colonial que os posiciona como “estranhos<br />

estrangeiros” em seu próprio país, quan<strong>do</strong> as opções em relação ao uso<br />

da língua, segun<strong>do</strong> o discurso colonial, são aquelas “determinadas pelas<br />

culturas daqueles que ouvem” (WRIGLEY, 1996, p. 4).<br />

3. SURDO: UM POVO ENTRE FRONTEIRAS FLUIDAS<br />

As narrativas surdas durante os encontros com os intelectuais<br />

sur<strong>do</strong>s, independentemente <strong>do</strong> tema que estava sen<strong>do</strong> aborda<strong>do</strong>,<br />

evidenciavam a importância das línguas e das culturas surdas como


87<br />

instrumentos que colocam o “povo sur<strong>do</strong>” na posição de uma nação 45<br />

enquanto comunidade imaginada.<br />

As palavras da Narra<strong>do</strong>ra 5 são inquietantes nesse senti<strong>do</strong>: “Há<br />

pouco tempo participei de um Congresso Internacional na Irlanda,<br />

envolven<strong>do</strong> vários países – Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, Austrália, Canadá,<br />

Alemanha, França etc. – e eu em nenhum momento me senti uma<br />

estrangeira. Eram sur<strong>do</strong>s como eu. Eram diferentes línguas de sinais,<br />

mas se tinha um sentimento de proximidade. Então, o que é isso Que<br />

engraça<strong>do</strong>! Mesmo sen<strong>do</strong> outro país, outros sur<strong>do</strong>s com outras línguas<br />

de sinais eu não me sentia estrangeira”. Ao enunciarem-se dessa forma,<br />

os intelectuais sur<strong>do</strong>s se colocam como parte de um povo que possui<br />

uma nação sem território, mas com artefatos culturais 46 reconheci<strong>do</strong>s<br />

por to<strong>do</strong>s aqueles que são atravessa<strong>do</strong>s por suas línguas e culturas,<br />

independentemente <strong>do</strong> lugar em que vivem.<br />

Hall (2005, p. 48), ao apresentar seu ensaio sobre as culturas<br />

nacionais como comunidades imaginadas, cita o filósofo Roger Scruton<br />

para evidenciar que no mun<strong>do</strong> moderno as culturas nacionais passaram<br />

a ser uma das origens fundantes de identificação cultural. Scruton,<br />

segun<strong>do</strong> Hall (2005, p. 48), argumenta que a condição de homem exige<br />

que ele se identifique “a si mesmo como algo mais amplo – como<br />

membro de uma sociedade, grupo, classe, Esta<strong>do</strong> ou nação, de algum<br />

arranjo, ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece<br />

instintivamente como seu lar”.<br />

45<br />

A nação surda pode ser compreendida como uma rede de territórios físicos – escolas<br />

de sur<strong>do</strong>s, associações de sur<strong>do</strong>s, famílias de sur<strong>do</strong>s etc. – e virtuais – salas de batepapo,<br />

Blogs, correio eletrônico etc. São territórios com fronteiras fluidas que permitem<br />

a interação entre sur<strong>do</strong>s e entre sur<strong>do</strong>s e ouvintes que fazem parte da “rede de<br />

contatos”. Segun<strong>do</strong> Wrigley (1996), essa rede de territórios físicos aproxima-se de 15<br />

milhões de pessoas, o que significa dizer que a nação surda mundial é maior que<br />

vários países latino-americanos.<br />

46<br />

Strobel (2008), em seu livro “As imagens <strong>do</strong> outro sobre a cultura surda”, menciona<br />

que os artefatos culturais são “tu<strong>do</strong> o que se vê e se sente quan<strong>do</strong> se está em contato<br />

com a cultura de uma comunidade, tais como materiais, vestuários, maneira pela qual<br />

um sujeito se dirige a outro, tradições, valores, normas, etc”. Para a autora, artefato<br />

cultural é tu<strong>do</strong> aquilo que ilustra uma cultura. No caso <strong>do</strong> povo sur<strong>do</strong> seria a<br />

experiência visual, a língua, família, a literatura surda, a vida social e esportiva, as<br />

artes visuais, a política e materiais (o relógio desperta<strong>do</strong>r que vibra, o sinal luminoso<br />

que avisa o intervalo das aulas etc.).


88<br />

Ao a<strong>do</strong>tarem essa estratégia discursiva, os intelectuais sur<strong>do</strong>s<br />

estão buscan<strong>do</strong> outras práticas de significação que lhes permitam<br />

habitar em um mun<strong>do</strong> que não os posicione no campo da incapacidade,<br />

da deficiência, como demonstram as narrativas que seguem.<br />

FRAGMENTOS<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: O conceito de povo sur<strong>do</strong> é um conceito novo.<br />

Antes nós usávamos muito o conceito de comunidades surdas.<br />

Se formos pensar o conceito de povo pelo viés geográfico,<br />

esse conceito estaria liga<strong>do</strong> a um espaço, a um território. Eu<br />

penso que no nosso caso a gente tem que deixar de la<strong>do</strong> o<br />

conceito de povo pelo viés geográfico. O conceito de<br />

comunidades surdas também não traduzia tu<strong>do</strong> que nós<br />

sur<strong>do</strong>s tínhamos em comum: o esporte, a educação, a questão<br />

social, a questão das representações políticas. Esses e muitos<br />

outros elementos constituem o significa<strong>do</strong> de povo sur<strong>do</strong>. É<br />

um conceito novo, mas que a maioria das pessoas não aceita<br />

e ainda existem poucas publicações a esse respeito.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: Quan<strong>do</strong> vou à associação eu me sinto como se<br />

estivesse em casa, é um lugar em que eu me sinto bem, é um<br />

espaço de conforto. É lá que o meu sinal é ratifica<strong>do</strong>. Eu não<br />

preciso ficar soletran<strong>do</strong> que o meu nome é [...]. É esse espaço<br />

de conforto que me permite ser o que sou. Eu me sinto bem<br />

quan<strong>do</strong> uso a expressão povo sur<strong>do</strong>. Porque povo traduz um<br />

jeito de viver. Eu, enquanto surda e casada com um sur<strong>do</strong>, vou<br />

passar esse jeito de ser sur<strong>do</strong> para o meu filho, perpetuan<strong>do</strong><br />

dessa forma o jeito <strong>do</strong> povo sur<strong>do</strong>. Já o conceito de<br />

comunidade não tem essa amplitude. Comunidade surda, para<br />

mim, é um grupo que se reúne e que é usuário da língua de<br />

sinais, mas povo é um conceito mais amplo, e muito mais<br />

espraia<strong>do</strong> e muito mais profun<strong>do</strong> que o conceito de<br />

comunidade.<br />

Os sur<strong>do</strong>s, provavelmente por viverem dispersos, criam o conceito<br />

de “povo sur<strong>do</strong>” para poderem significar em sua própria língua, em sua<br />

própria cultura. Essa estratégia discursiva cria o sentimento de<br />

pertencimento a uma nação 47 que não é “apenas uma entidade política,<br />

47<br />

“Em 1850 um fazendeiro americano sur<strong>do</strong>, John James Flournoy, propôs a criação de<br />

um Esta<strong>do</strong> Sur<strong>do</strong>; segun<strong>do</strong> ele, ‘ nossas necessidades peculiares e tais organizações<br />

podem ser indispensáveis à nossa saúde mental...’ Essa proposta provocou debates, e


89<br />

mas algo que produz senti<strong>do</strong>s – um sistema de representação cultural”<br />

(ANDERSON, 1989, p. 14). A nação, mesmo sen<strong>do</strong> uma comunidade<br />

imaginada, gera um sentimento de identificação independentemente<br />

<strong>do</strong>s sujeitos se conhecerem ou não, porque em cada um deles está<br />

“viva a imagem de sua comunhão” (Id.).<br />

O sentimento de pertencimento, mas que senti<strong>do</strong>, é vivi<strong>do</strong> pelos<br />

sur<strong>do</strong>s como partícipes de “um povo”, e potencializa a presença <strong>do</strong> seu<br />

outro em suas vidas. Para a Narra<strong>do</strong>ra 6: “Quan<strong>do</strong> vou à associação<br />

eu me sinto como se estivesse em casa, é um lugar em que eu me sinto<br />

bem, é um espaço de conforto. [...]. É esse espaço de conforto que me<br />

permite ser o que sou”. O sentimento de conforto manifesta<strong>do</strong><br />

evidencia a importância de um discurso de nação, que possui uma<br />

língua e uma cultura “nacional” produtoras de senti<strong>do</strong>s que permitem a<br />

esse povo organizar tanto suas intervenções no mun<strong>do</strong> quanto a<br />

concepção que tem de si mesmo.<br />

Mas a idéia de nação e povo como estratégia de empoderamento<br />

e luta é ambivalente: ao mesmo tempo em que cria formas de<br />

representação cultural diferente daquelas <strong>do</strong> discurso colonial também<br />

traz, a fim de garantir uma visão totaliza<strong>do</strong>ra de nação, o apagamento<br />

das diferenças de gênero, sexualidade e etnia que estão presentes no<br />

próprio povo sur<strong>do</strong>. Mas, no interior de toda e qualquer nação há o<br />

enfrentamento entre as forças totaliza<strong>do</strong>ras que narram a<br />

homogeneidade da nação e as forças culturais que salientam as<br />

diferenças. Essa correlação de forças no âmbito da narração da nação<br />

foi conceituada por Bhabha (2005, p. 207) como temporalidades<br />

pedagógicas e performáticas:<br />

Na produção da narração como nação ocorre uma cisão<br />

entre a temporalidade continuísta, cumulativa, <strong>do</strong><br />

pedagógico e a estratégia repetitiva, recorrente, <strong>do</strong><br />

críticas ácidas foram dirigidas a Flournoy pelos próprios sur<strong>do</strong>s. afinal, como na época<br />

o inquiriram, o que deveriam fazer com seus filhos e pais ouvintes Mesmo assim, seu<br />

opositor mais ar<strong>do</strong>roso, o sur<strong>do</strong> Edmund Booth, confessou que ele próprio já havia<br />

pensa<strong>do</strong> na proposta (SOUZA, 1998, p. 93).


90<br />

performativo. É através deste processo de cisão que a<br />

ambivalência conceitual da sociedade moderna se torna o<br />

lugar de escrever a nação (grifo no original).<br />

Nessa perspectiva, as tradições, o mito de origem e outros<br />

artefatos culturais da nação estariam no âmbito <strong>do</strong> pedagógico. Os<br />

conceitos de povo e nação nessas narrativas são utiliza<strong>do</strong>s de forma<br />

historicista, em que a temporalidade é definida como um jogo de causa<br />

e efeito, buscan<strong>do</strong> permanentemente uma linha contínua que dê<br />

senti<strong>do</strong> de pertencimento a uma comunidade. Por outro la<strong>do</strong>, no caráter<br />

performático a nação é inscrita em uma temporalidade cultural, cuja<br />

realidade social é muito mais complexa. A nação, ao mesmo tempo que<br />

é construída, também vai sen<strong>do</strong> desconstruída por interpretações<br />

sucessivas, cujas contradições mútuas demonstram a ausência de uma<br />

origem. “A nação torna-se uma forma social liminar de representação,<br />

um espaço marca<strong>do</strong> internamente pela diferença cultural e pelas<br />

histórias heterogêneas de povos conflitantes, autoridades antagonistas<br />

e espaços culturais em constante tensão” (TORRES, 1997, p. 347).<br />

A narração da nação surda, por exemplo, cujas fronteiras não<br />

podem ser encaradas como linhas delimita<strong>do</strong>ras, mas como linhas<br />

fluidas de hibridização cultural, oscila permanentemente entre o<br />

discurso pedagógico e o performático. No campo <strong>do</strong> discurso<br />

pedagógico, as narrativas a<strong>do</strong>tam estratégias discursivas que conectam<br />

o presente com o passa<strong>do</strong> mediante a construção de histórias de um<br />

povo que, mesmo não ten<strong>do</strong> um território, possui a sua herança cultural<br />

como qualquer outra nação moderna, inclusive com “seus pais<br />

funda<strong>do</strong>res, seus textos básicos, quase religiosos, uma retórica <strong>do</strong><br />

pertencer, marcos históricos [...], inimigos e heróis oficiais” (SAID, 2003,<br />

p. 49).<br />

Ao a<strong>do</strong>tarem a idéia discursiva de que os sur<strong>do</strong>s formam “um<br />

povo” sem fronteiras, mas com seus artefatos culturais, essas<br />

narrativas inventam suas próprias tradições. Uma delas é o próprio mito<br />

fundacional da nação surda. Essa narrativa está fortemente arraigada,


91<br />

principalmente entre os sur<strong>do</strong>s europeus e estadunidenses. É um texto<br />

quase religioso em que os conta<strong>do</strong>res de histórias surdas perpetuam, ao<br />

longo <strong>do</strong>s tempos, o encontro <strong>do</strong> Abade L’Epée, por volta de 1760, com<br />

duas jovens mulheres surdas que viviam nos arre<strong>do</strong>res de Paris. 48<br />

Padden e Humphries (1996, p. 27) relatam que as narrativas sobre<br />

o surgimento da nação surda “são mitos, contos, parábolas que<br />

carregam uma série de idéias sobre o que torna possível ser uma<br />

pessoa surda. Ao recontarmos estas histórias o grupo pode falar de um<br />

conhecimento que considera ser essencial, sua força vital”.<br />

Segun<strong>do</strong> os autores, esse conto, ao ser narra<strong>do</strong> de geração em<br />

geração, passou a simbolizar o momento de transição de uma história<br />

de isolamento em que viviam os sur<strong>do</strong>s para uma vida em comunidade,<br />

além de criar a imagem de origem de um povo. As representações<br />

desse conto são tão forte no meio das comunidades surdas que Monttez<br />

(1992, p. 7) menciona o banquete organiza<strong>do</strong> pelos próprios sur<strong>do</strong>s<br />

para comemorar o aniversário <strong>do</strong> Abade L’Pée:<br />

Quero convidá-lo a registrar o ano de 1834 como uma das<br />

grandes datas da história <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s. Com o primeiro<br />

banquete comemoran<strong>do</strong> seu nascimento (1834) começa o<br />

culto <strong>do</strong> Abade L’Pée. Para mim é a data de nascimento<br />

da nação surda. É o ano em que pela primeira vez os<br />

48<br />

Padden e Humphries (1996, p. 27) narram a experiência que tiveram com um<br />

conta<strong>do</strong>r de histórias surdas em um Clube de Sur<strong>do</strong>s em Marseilles, na França, sobre o<br />

encontro <strong>do</strong> Abade L’Pée com as duas mulheres surdas. “O Abade L’Pée estava<br />

caminhan<strong>do</strong> por um longo tempo em uma noite escura. Ele queria parar e descansar à<br />

noite, mas não conseguia achar um lugar para ficar, até que em um determina<strong>do</strong><br />

momento ele avistou uma casa com uma luz. Ele parou e bateu na porta, mas<br />

ninguém respondeu. Ele viu que a porta estava aberta e, então, resolveu entrar e<br />

encontrou na casa duas mulheres sentadas próximas à lareira costuran<strong>do</strong>. Ele falou<br />

com elas, mas elas não respondiam. Ele se aproximou e falou com elas novamente,<br />

mas elas novamente não responderam. O Abade ficou perplexo, mas sentou-se ao<br />

la<strong>do</strong> delas. Elas olharam para ele e não falaram. Naquele momento, a mãe delas<br />

entrou na sala. O abade não sabia que suas filhas eram surdas Ele não sabia, mas<br />

passou a saber quan<strong>do</strong> elas não responderam. Enquanto contemplava as jovens<br />

mulheres, o Abade compreendeu sua vocação”. Os autores chamam atenção para<br />

<strong>do</strong>is pontos desse conto. O primeiro é que o Abade L’Pée “não encontrou as duas<br />

mulheres surdas como resulta<strong>do</strong> de uma permanência curta numa noite escura e<br />

chuvosa, mas as encontrou em suas incursões por uma rua empobrecida de Paris”. O<br />

segun<strong>do</strong> é que o Abade L’Pée “não inventou sua língua de sinais – nenhum indivíduo,<br />

ainda que talentoso, pode inventar uma língua humana”.


92<br />

sur<strong>do</strong>s-mu<strong>do</strong>s se outorgam uma espécie de governo. Isto<br />

nunca havia aconteci<strong>do</strong> (grifos <strong>do</strong> autor).<br />

O Abade L’Pée, nesse perío<strong>do</strong>, era chama<strong>do</strong> pelo sur<strong>do</strong>s europeus<br />

e estadunidenses de pai espiritual, pai intelectual – aquele que protege<br />

e alimenta os sur<strong>do</strong>s espiritual e intelectualmente. Essa narrativa surda<br />

divide a história <strong>do</strong> povo sur<strong>do</strong> antes e depois <strong>do</strong> Abade L’Pée. Segun<strong>do</strong><br />

Monttez (1992, p. 17), antes desse encontro, os sur<strong>do</strong>s eram invisíveis e<br />

dispersos; depois dele, passaram a construir sua nação, porque se<br />

“estávamos isola<strong>do</strong>s no meio <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, agora estamos reuni<strong>do</strong>s. Sem<br />

apoio [...] cada sur<strong>do</strong> vivia por si e para si como podia. Triste vida que<br />

era como um exílio no seio da sociedade [...] agora formamos entre<br />

to<strong>do</strong>s um [...] nós outros que éramos, somos”. Os sur<strong>do</strong>s, ao<br />

inventarem seu mito fundacional de nação, ao mesmo tempo que dão<br />

continuidade às suas histórias também criam representações de<br />

pertencimento a um povo que possui língua e cultura próprias.<br />

Mas esse discurso pedagógico de afirmação da nação surda não é<br />

o único discurso prove<strong>do</strong>r de significação e de identificação cultural.<br />

Não afirmo, contu<strong>do</strong>, que o conceito de nação surda, mediante o<br />

discurso pedagógico, não seja uma peça fundamental de referência<br />

política para se contrapor ao poder <strong>do</strong> discurso colonial. No entanto, não<br />

podemos colocar essa questão apenas dessa maneira. Porque as<br />

oposições binárias geralmente são falácias no campo da cultura. Nação<br />

surda e nação ouvinte são categorias interdependentes, assim como<br />

coloniza<strong>do</strong> e coloniza<strong>do</strong>r. Mas distinções como estas precisam ser<br />

ressaltadas para que as tensões “entre mun<strong>do</strong>s” não se limitem a<br />

meras oposições discursivas.<br />

A nação surda, mesmo sen<strong>do</strong> uma representação construída pelos<br />

próprios sur<strong>do</strong>s para resistir ao poder colonial, é uma nação sem<br />

fronteiras, onde os sur<strong>do</strong>s transitam tanto em seu mun<strong>do</strong> como no<br />

mun<strong>do</strong> ouvinte; são sujeitos que não se constituem isoladamente, mas<br />

na relação tensa e dinâmica com o outro – sur<strong>do</strong> e ouvinte. Portanto,


93<br />

são sujeitos híbri<strong>do</strong>s em que a própria estrutura da língua de sinais está<br />

atravessada pela língua <strong>do</strong> ouvinte. Por exemplo, das quarentas e seis<br />

configurações de mãos, 49 como sugere Britto (1995), vinte e seis estão<br />

diretamente relacionadas com representação visual <strong>do</strong> alfabeto da<br />

língua portuguesa. Esse exemplo evidencia que as fronteiras entre<br />

sur<strong>do</strong>s e ouvintes são fronteiras fluidas; mais <strong>do</strong> que isso, são fronteiras<br />

abertas que permitem processos contínuos de negociação de senti<strong>do</strong>s.<br />

A formulação de nação surda mediante o discurso pedagógico traz<br />

a idéia de uma identidade surda coletiva construída a partir de uma<br />

língua e de uma cultura comum a to<strong>do</strong>s os sur<strong>do</strong>s, legitiman<strong>do</strong> a<br />

utilização de conceitos genéricos como, por exemplo, “sur<strong>do</strong>”. O<br />

discurso pedagógico, com suas histórias lineares com início, meio e fim,<br />

acaba camuflan<strong>do</strong> e até mesmo negan<strong>do</strong> as alteridades e as diferenças<br />

incomensuráveis que também fazem parte da própria nação surda, e<br />

por fim construin<strong>do</strong> uma imagem de nação surda homogênea, sem<br />

diferenças em seu interior, cujo único jogo discursivo possível é aquele<br />

que se caracteriza a partir de oposições. Se assim for, os discursos<br />

49<br />

A estrutura da língua de sinais brasileira é constituída a partir de parâmetros<br />

primários e secundários que se combinam de forma seqüencial ou simultânea.<br />

Segun<strong>do</strong> Brito (1995, p. 36 a 41) os parâmetros primários são: a) as configurações<br />

de mãos, em que as mãos tomam as diversas formas de realizações <strong>do</strong>s sinais. De<br />

acor<strong>do</strong> com a autora são quarenta e seis configurações de mão na língua de sinais<br />

brasileira; b) “o ponto de articulação é o espaço em frente ao corpo ou uma região<br />

<strong>do</strong> próprio corpo, onde os sinais são articula<strong>do</strong>s. Esses sinais articula<strong>do</strong>s no espaço são<br />

de <strong>do</strong>is tipos, os que se articulam no espaço neutro diante <strong>do</strong> corpo e os que se<br />

aproximam de uma determinada região <strong>do</strong> corpo, como a cabeça, cintura e os ombros;<br />

c) o movimento é um parâmetro complexo que pode envolver uma vasta rede de<br />

formas e direções, desde o movimento interno da mão, os movimentos <strong>do</strong> pulso, os<br />

movimentos direcionais no espaço até conjuntos de movimentos no mesmo sinal. O<br />

movimento que as mãos descrevem no espaço ou sobre o corpo pode ser em linhas<br />

retas, curvas sinuosas ou circulares em várias direções e posições. Quanto aos<br />

parâmetros secundários temos: a) disposição das mãos, em que as articulações <strong>do</strong>s<br />

sinais podem ser feitas apenas pela mão <strong>do</strong>minante ou pelas duas mãos. Neste último<br />

caso, as duas mãos podem se movimentar para formar o sinal, ou então apenas a mão<br />

<strong>do</strong>minante se movimenta e a outra funciona como um ponto de articulação; b)<br />

orientação da(s) mão(s) é direção da palma da mão durante o sinal: voltada para<br />

cima, para baixo, para o corpo, para a frente, para a esquerda ou para a direita. Pode<br />

haver mudança na orientação durante a execução <strong>do</strong> movimento e c) região de<br />

contato refere-se à parte da mão que entra em contato com o corpo. Esse contato<br />

pode-se dar de maneiras diferentes: através de um toque, de um risco, de um<br />

deslizamento, etc.”


94<br />

pedagógicos passam a ser pontes estratégicas de esquecimento das<br />

alteridades e das diferenças surdas.<br />

Bhabha (2005, p. 226) sugere que o processo de construir as<br />

narrativas de uma nação é sustenta<strong>do</strong> por uma permanente lembrança<br />

<strong>do</strong> esquecimento:<br />

É através da sintaxe <strong>do</strong> esquecer – ou <strong>do</strong> ser obriga<strong>do</strong> a<br />

esquecer – que a identificação problemática de um povo<br />

[...] se torna visível. O sujeito [...] é produzi<strong>do</strong> naquele<br />

lugar onde o plebiscito diário – o número unitário – circula<br />

na grande narrativa. Entretanto, a equivalência entre<br />

vontade e plebiscito, a identidade da parte e <strong>do</strong> to<strong>do</strong>,<br />

passa<strong>do</strong> e presente, é atravessada pela “obrigação de<br />

esquecer”, ou esquecer para lembrar (grifo no original).<br />

O esquecimento funciona como um vácuo que possibilita e<br />

fundamenta a gênese da nação buscada pelo discurso pedagógico. A<br />

comunidade imaginada precisa de uma origem bem clara e estabelecida<br />

para construir uma identificação cultural. É quase como uma analogia à<br />

formação de um corpo, de algo sóli<strong>do</strong> que possa servir como argumento<br />

incontestável da narração de sua existência. Mas a lembrança <strong>do</strong><br />

esquecimento força outras leituras de nação, leituras complexas de<br />

dimensões múltiplas e híbridas que geram tensões permanentes,<br />

crian<strong>do</strong> espaços fronteiriços mais profícuos para a negociação de<br />

senti<strong>do</strong>s.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, o discurso performático, como sugere Bhabha, não<br />

atenua as fronteiras simbólicas, mas problematiza-as. Porque, quanto<br />

mais os sur<strong>do</strong>s reivindicarem seus direitos sociais, culturais e<br />

linguísticos, maior será o acirramento nas fronteiras. Não se trata,<br />

portanto, de analisar esse processo como um dilui<strong>do</strong>r de fronteiras, mas<br />

como um acirramento de tensões nas fronteiras, geran<strong>do</strong> não apenas o<br />

confronto de posições sem o processo de escuta, mas crian<strong>do</strong> espaços<br />

de negociação que propiciam o surgimento de uma “passagem<br />

intersticial” para “um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem<br />

uma hierarquia suposta ou imposta” (BHABHA, 2005, p. 22).


95<br />

Mas essa questão não é tão simples como possa parecer. Padden<br />

e Humphries (1996) relatam várias histórias de sur<strong>do</strong>s que não tiveram<br />

a possibilidade de viver “entre mun<strong>do</strong>s”, em fronteiras de contato, mas<br />

no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s outros, no mun<strong>do</strong> daqueles que ouvem. Por isso, segun<strong>do</strong><br />

os autores, esses sur<strong>do</strong>s têm a crença de que a língua de sinais e as<br />

comunidades surdas não são invenções de sur<strong>do</strong>s, mas de ouvintes.<br />

Esse exemplo, mediante o olhar sur<strong>do</strong>, evidencia como o discurso<br />

pedagógico <strong>do</strong>s ouvintes neutraliza as próprias criações surdas.<br />

O discurso pedagógico e o performático caminham sempre juntos,<br />

disputan<strong>do</strong> o direito de significar. É por isso que Bhabha (2005, p. 206)<br />

defende que o “conceito de povo emerge dentro de uma série de<br />

discursos como um movimento de narrativo duplo”: o pedagógico e o<br />

performático. A nação cindida em seu próprio interior “torna-se um<br />

espaço liminar de significação”. Abre-se um espaço de disputa entre o<br />

pedagógico e performático. O performático desestabiliza o significa<strong>do</strong><br />

totalizante de povo como conceito homogeneizante quan<strong>do</strong><br />

problematiza a questão da diferença cultural e da alteridade. Segun<strong>do</strong><br />

Bhabha (2005, p. 230), a nação, assim como a idéia de povo, é marcada<br />

“internamente pelos discursos de minorias, pelas histórias<br />

heterogêneas de povos em disputa, por autoridades antagônicas e por<br />

locais tensos de diferença cultural” (grifo no original).<br />

A nação, ao ser dividida em seu próprio interior pela ambivalência<br />

presente no confronto entre o discurso pedagógico e o performático,<br />

passa a ter dificuldade de se opor ao discurso da alteridade e da<br />

diferença. Porque o outro não é mais retrata<strong>do</strong> apenas pelo discurso<br />

pedagógico de nação. Segun<strong>do</strong> Bhabha (2005, p. 209):<br />

O pedagógico funda sua autoridade narrativa em uma<br />

tradição <strong>do</strong> povo [...] encapsula<strong>do</strong> numa sucessão de<br />

momentos históricos que representa uma eternidade<br />

produzida por auto-geração. O performático intervém na<br />

soberania da autogeração da nação ao lançar uma sombra<br />

entre o povo como “imagem” e sua significação como um<br />

signo diferencia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Eu, distinto <strong>do</strong> Outro ou <strong>do</strong> Exterior<br />

(grifos no original).


96<br />

O povo, ao ser “um signo diferencia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Eu, distinto <strong>do</strong> outro”,<br />

realiza um ato de deslocamento, marcan<strong>do</strong> as fronteiras simbólicas da<br />

nação como espaços flui<strong>do</strong>s que se alimentam <strong>do</strong> confronto entre o<br />

pedagógico e o performático. Dessa forma, o discurso performático<br />

desestabiliza a idéia de povo, como uma massa homogênea ou uma<br />

estratégia discursiva que tem como fim uma suposta unidade de nação.<br />

Mas, o conceito de povo, por esse “movimento narrativo duplo” dilui<br />

permanentemente a polaridade entre o pedagógico e o performático,<br />

esbatento a rigidez dessa linha limite: o pedagógico nunca é tão estável<br />

como gostaria de ser e o performativo torna-se, em si mesmo,<br />

pedagogicamente importante. Nas palavras de Bhabha (2005, pp. 206 e<br />

207) o termo povo “não se refere simplesmente a eventos históricos ou<br />

a componentes de um corpo político patriótico. Ele é também uma<br />

complexa estratégia retórica de referência social”.


97<br />

CAPÍTULO III<br />

EMBARALHANDO FRONTEIRAS: OS<br />

INTELECTUAIS SURDOS NOS DIAS DE HOJE<br />

Ferdinand Berthier (1803 – S/D) nasceu na cidade de<br />

Louhans, na França e foi um <strong>do</strong>s educa<strong>do</strong>res sur<strong>do</strong>s na<br />

Escola Pública de Paris, criada pelo abade L’Pée em<br />

1760.<br />

O que o intelectual menos deveria fazer é atuar para que seu público se<br />

sinta bem:<br />

o importante é causar embaraço, ser <strong>do</strong> contra e até mesmo<br />

desagradável. [...] O intelectual [...] não é nem<br />

pacifica<strong>do</strong>r, nem um cria<strong>do</strong>r<br />

de consensos, mas alguém<br />

que empenha to<strong>do</strong> o seu ser no senso<br />

crítico, na recusa em aceitar fórmulas fáceis<br />

ou clichês prontos, ou confirmações afáveis, sempre tão concilia<strong>do</strong>ras<br />

sobre o que os poderosos ou convencionais têm a dizer sobre o que<br />

fazem. Não apenas<br />

relutan<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> passivo, mas desejan<strong>do</strong> ativamente dizer em<br />

público.


98<br />

Edward Said<br />

1. MAN<strong>IF</strong>ESTO: UMA ESTRATÉGIA DE ENFRENTAMENTO<br />

Os fragmentos das narrativas surdas, descritas a seguir, sobre os<br />

significa<strong>do</strong>s de intelectual e a importância de sua intervenção em prol<br />

daqueles que estão à margem <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> social me reportam à frase de<br />

Marx em sua XI Tese sobre Feuerbach: “Os filósofos têm interpreta<strong>do</strong> o<br />

mun<strong>do</strong> de maneiras diferentes, a questão é transformá-lo”.<br />

FRAGMENTOS<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: A pergunta <strong>do</strong> [...] era apenas para saber se só<br />

os educa<strong>do</strong>res são intelectuais ou se outros profissionais<br />

também podem ser. Por exemplo, o engenheiro não é<br />

intelectual<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: Isso que a [...] estava explican<strong>do</strong> é um ponto<br />

fundamental em nossa política. Não é apenas se manifestar<br />

por se manifestar. A manifestação pública é uma forma de<br />

defesa <strong>do</strong> povo sur<strong>do</strong>, de embate político, mas de forma<br />

argumentada.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: A gente sempre tem que se colocar<br />

publicamente para garantir os nossos direitos, caso contrário o<br />

ouvinte sempre vai impor a sua forma de ser. É importante<br />

apresentar idéias bem fundamentadas em público. Essas<br />

posições são muito importantes, mas não no senti<strong>do</strong> de<br />

menosprezar o outro e sim de aprofundar os argumentos.<br />

Narra<strong>do</strong>r 2: É importante se manifestar publicamente. Por<br />

exemplo, se um ouvinte faz alguma coisa que prejudica o<br />

sur<strong>do</strong>, nós temos que nos posicionar claramente frente a isso.<br />

Quan<strong>do</strong> nós colocamos o debate na rua, outras pessoas<br />

também se manifestam. Parece que o manifesto faz as<br />

pessoas acordarem. Essa estratégia também ajuda a construir<br />

os movimentos sur<strong>do</strong>s. Hoje, as tecnologias de informação e<br />

comunicação, como o You tube, permitem ao sur<strong>do</strong> se<br />

manifestar em sua própria língua.<br />

Narra<strong>do</strong>r 3: Por exemplo, você, como pesquisa<strong>do</strong>r, escolheu<br />

esses cinco educa<strong>do</strong>res, mas os educa<strong>do</strong>res não são<br />

intelectuais


99<br />

Narra<strong>do</strong>ra 4: [...] eu fico me perguntan<strong>do</strong>: qual é o<br />

significa<strong>do</strong> de intelectual É alguém que realmente conhece<br />

profundamente ou não<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: O manifesto, quan<strong>do</strong> feito em Libras, alcança a<br />

maioria <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s e dá os subsídios para os sur<strong>do</strong>s se<br />

contraporem a colocações que tentam nos oprimir, que<br />

procuram de forma sutil tirar os nossos direitos. Sempre que<br />

alguém se coloca contra os sur<strong>do</strong>s nós temos que nos<br />

posicionar no mesmo nível de igualdade frente àquilo que foi<br />

coloca<strong>do</strong>. Se nós não respondermos, o que prevalece é a idéia<br />

daquele que nos oprime. Nós temos que responder até para<br />

desconstruir aquela falsa idéia de que os sur<strong>do</strong>s não<br />

conseguem se manifestar. Hoje nós temos muitos sur<strong>do</strong>s<br />

espalha<strong>do</strong>s pelo Brasil que podem se manifestar com<br />

propriedade, com qualidade, quan<strong>do</strong> alguém nos oprime.<br />

Temos que nos manifestar para mudar essa realidade que<br />

tanto nos oprime.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: Estrategicamente é mais interessante se<br />

afastar para dar as respostas, mas na hora, frente a frente, é<br />

diferente, porque o sangue ferve e a gente não sabe o que<br />

pode acontecer. Quan<strong>do</strong> você está fazen<strong>do</strong> um manifesto na<br />

forma escrita, é possível fazer esse distanciamento, mas<br />

frente a frente o caso é outro. Ao se afastar, a gente reflete<br />

melhor e pode se posicionar com mais clareza. Quan<strong>do</strong> o<br />

enfrentamento é direto as coisas acontecem muito rápi<strong>do</strong> e os<br />

posicionamentos geralmente não são reflexivos. Por exemplo,<br />

quan<strong>do</strong> há uma discussão sobre a política de educação de<br />

sur<strong>do</strong>s no MEC a gente tem que refletir bem para se posicionar<br />

politicamente.<br />

A XI tese sobre Feuerbach remete a duas questões vinculadas<br />

diretamente ao papel <strong>do</strong> intelectual: a reflexão e a ação. Ao assumir a<br />

postura de reflexão e ação, o intelectual se coloca na posição de<br />

engajamento, quan<strong>do</strong> sua fala é balizada geralmente pela contestação<br />

ao poder instituí<strong>do</strong>. Porém, o movimento entre reflexão e ação faz com<br />

que o intelectual oscile permanentemente “entre o recolhimento e a<br />

exposição pública, o silêncio e a intervenção em público”, movimento<br />

que também “decorre das circunstâncias nas quais a demanda de<br />

autonomia racional é respeitada ou ameaçada pelos poderes<br />

instituí<strong>do</strong>s” (CHAUÍ, 2006, p. 21).


100<br />

Sartre (1905 a 1980) é um bom exemplo para ilustrar essa figura<br />

de “intelectual engaja<strong>do</strong>” presente nas narrativas <strong>do</strong>s intelectuais<br />

sur<strong>do</strong>s. Ao longo de suas produções no campo literário e filosófico e<br />

também em suas intervenções públicas, Sartre demonstrou o seu<br />

compromisso com as causas <strong>do</strong>s coloniza<strong>do</strong>s. Entre suas intervenções,<br />

a mais conhecida no campo da crítica pós-colonial foi o seu<br />

engajamento na Guerra de Libertação da Argélia, quan<strong>do</strong> se aproximou<br />

<strong>do</strong> debate teórico que Franz Fanon vinha realizan<strong>do</strong> sobre a violência<br />

colonial francesa nesse país.<br />

Mas antes de tocar nesse ponto relembro que Fanon (1925 - 1961)<br />

associou seu trabalho psicanalítico à prática militante, e sobre essa<br />

experiência de vida construiu seu pensamento político. Ou seja, foi<br />

também um intelectual engaja<strong>do</strong>. Em “Os condena<strong>do</strong>s da terra”, aborda<br />

os efeitos <strong>do</strong> colonialismo nos coloniza<strong>do</strong>s, destacan<strong>do</strong> que os<br />

coloniza<strong>do</strong>s não foram excluí<strong>do</strong>s apenas <strong>do</strong> ponto de vista de direitos e<br />

privilégios, mas também <strong>do</strong> ponto de vista de seus pensamentos e<br />

valores. Segun<strong>do</strong> Fanon (1979, p. 30 e 31), “a sociedade colonizada não<br />

é apenas descrita” pelo coloniza<strong>do</strong>r “como uma sociedade sem<br />

valores”, mas um lugar onde o coloniza<strong>do</strong> existe “impermeável à ética”<br />

e à “ausência de valores”. Isto é, para o coloniza<strong>do</strong>r, o coloniza<strong>do</strong> “é o<br />

mal absoluto”. Nesse senti<strong>do</strong>, a <strong>do</strong>minação política e a exploração<br />

econômica <strong>do</strong> colonialismo europeu acompanharam uma subtração da<br />

condição de sujeito, como cultura e história. Fanon, em seus textos e<br />

em sua atuação, procurou desmistificar “o canto engana<strong>do</strong>r que procura<br />

elidir a força da desigualdade e da opressão na análise das trocas<br />

culturais realizadas sob o signo <strong>do</strong> sistema colonial” (Id.), produzin<strong>do</strong>,<br />

dessa forma, uma crítica radical da colonização através de um olhar<br />

minucioso sobre as estratégias de violência, subordinação e<br />

desumanização que produzem o coloniza<strong>do</strong> no contexto <strong>do</strong> discurso<br />

colonial. Fanon, no mesmo livro, faz um discurso em oposição ao <strong>do</strong><br />

coloniza<strong>do</strong>r. Para ele a descolonização implicaria em reinventar um<br />

sujeito colonial na sua verdadeira humanidade.


101<br />

A descolonização jamais passa despercebida porque<br />

atinge o ser, modifica fundamentalmente o ser,<br />

transforma especta<strong>do</strong>res sobrecarrega<strong>do</strong>s de<br />

inessencialidade em atores privilegia<strong>do</strong>s, colhi<strong>do</strong>s de<br />

mo<strong>do</strong> quase grandioso pela roda-viva da história. Introduz<br />

no ser um ritmo próprio, transmiti<strong>do</strong> por homens novos,<br />

uma nova linguagem, uma nova humanidade. A<br />

descolonização é, na verdade, criação de homens novos.<br />

Mas esta criação não recebe sua legitimidade de nenhum<br />

poder sobrenatural; a “coisa” colonizada se faz no<br />

processo mesmo pelo qual se liberta (Fanon, 1979, p. 26 e<br />

27 – grifo no original).<br />

Sartre, no prefácio <strong>do</strong> livro em questão, também faz um discurso<br />

de oposição ao <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r, mas centra sua discussão na violência<br />

colonial francesa que tinha por objetivo a subjugação <strong>do</strong>s sujeitos<br />

argelinos, a ponto de “desintegrar-lhe a personalidade”.<br />

Nada deve ser poupa<strong>do</strong> para liquidar suas tradições, para<br />

substituir a língua deles pela nossa, para destruir a sua<br />

cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los<br />

pela fadiga. Desnutri<strong>do</strong>s, enfermos, se ainda resistem, o<br />

me<strong>do</strong> concluirá o trabalho [...] Se resiste, os solda<strong>do</strong>s<br />

atiram, é um homem morto; se cede, degrada-se, não é<br />

mais um homem; a vergonha e o temor vão fender-lhe o<br />

caráter, desintegrar-lhe a personalidade (SARTRE, in<br />

FANON, 1979, p. 9).<br />

O autor evidencia as estratégias que a metrópole a<strong>do</strong>tava para<br />

mostrar suas verdades aos coloniza<strong>do</strong>s, chegan<strong>do</strong> ao ponto de tentar<br />

destruir as culturas da colônia. A elite francesa selecionava<br />

a<strong>do</strong>lescentes argelinos e os trazia para a metrópole e “gravava-lhes na<br />

testa, com ferro em brasa, os princípios da cultura ocidental”,<br />

colocan<strong>do</strong>-lhes “na boca mordaças sonoras, expressões bombásticas e<br />

pastosas” (Ibid., p. 3), para grudar nos dentes <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong> a cultura<br />

<strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r. Só depois de submeti<strong>do</strong>s culturalmente é que os<br />

coloniza<strong>do</strong>s retornavam ao seu país para cumprir as determinações da<br />

metrópole. Mas nem tu<strong>do</strong> ocorre como o coloniza<strong>do</strong>r deseja. Enquanto<br />

os a<strong>do</strong>lescentes eram violenta<strong>do</strong>s culturalmente na metrópole, os


102<br />

intelectuais – escritores e poetas – nativos buscavam alternativas para<br />

explicar ao seu povo e aos próprios europeus as estratégias e os mo<strong>do</strong>s<br />

através <strong>do</strong>s quais o coloniza<strong>do</strong>r operava, desvendan<strong>do</strong> a teia na qual a<br />

sua própria subordinação era produzida. Em seus textos, os intelectuais<br />

nativos traziam o que estava submerso no discurso humanista europeu.<br />

Nas palavras de Sartre (Ibid., p. 4), o que os intelectuais queriam dizer<br />

era: “de nós fizestes monstros, vosso humanismo nos supõe universais<br />

e vossas práticas racistas nos particularizam”, mostran<strong>do</strong> que a<br />

violência colonial que se dava na Argélia estava profundamente<br />

arraigada no teci<strong>do</strong> social francês. A violência colonial não se dava<br />

apenas nos países coloniza<strong>do</strong>s, mas também na própria metrópole. Ao<br />

terminar o prefácio <strong>do</strong> livro, Sartre (FANON, 1979, p. 21) faz a seguinte<br />

advertência:<br />

Hoje estamos agrilhoa<strong>do</strong>s, humilha<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>entes de me<strong>do</strong>,<br />

arruina<strong>do</strong>s. Isso ainda não é suficiente para a aristocracia<br />

colonialista; ela não pode concluir sua missão retarda<strong>do</strong>ra<br />

na Argélia enquanto não tiver primeiro acaba<strong>do</strong> de<br />

colonizar os franceses.<br />

O caso de Sartre como intelectual engaja<strong>do</strong> que não somente<br />

reflete, mas age, manifestan<strong>do</strong>-se publicamente, é um bom exemplo<br />

para compreender o questionamento da Narra<strong>do</strong>ra 4: “Qual é o<br />

significa<strong>do</strong> de intelectual” Mas Sartre é um filósofo; então, como ficaria<br />

o questionamento da Narra<strong>do</strong>ra 1: “Por exemplo, o engenheiro não é<br />

intelectual” Uma possibilidade de compreender esse fragmento está na<br />

reflexão que Sartre fez sobre o “saber prático” em seu livro “Em defesa<br />

<strong>do</strong>s intelectuais”. 50 Segun<strong>do</strong> o autor, quan<strong>do</strong> o cientista se dedica<br />

apenas ao saber prático, isto é, conhecer o objeto de suas indagações,<br />

ele é apenas um especialista desse saber. Dito de outra forma, o<br />

50<br />

Nesse livro, Sartre apresenta as três conferências que realizou no Japão em relação<br />

ao papel <strong>do</strong>s intelectuais, cujos títulos são: a) O que é um intelectual; b) Função <strong>do</strong><br />

intelectual e c) O escritor é um intelectual Ao fazer a apresentação <strong>do</strong> livro, Weffort<br />

(SARTRE, 1994, p. 6) relata que as “três conferências que compõem este livro<br />

apresentam, de mo<strong>do</strong> brilhante, as imagens de Sartre sobre os intelectuais. Mostram,<br />

sobretu<strong>do</strong>, o que ele gostaria que eles fossem”.


103<br />

cientista é “um particularista na submissão à ideologia <strong>do</strong>minante”<br />

(WEFFORT, in SARTRE, 1994, p. 7). Para Sartre, o cientista se transforma<br />

em intelectual quan<strong>do</strong> se posiciona politicamente em relação ao objeto<br />

de suas indagações. Para ele se um físico se dedica a construção de<br />

uma bomba atômica é um cientista, mas se contesta à construção da<br />

bomba torna-se um intelectual.<br />

A vida de Sartre foi permanentemente atravessada por<br />

manifestações públicas contra as diferentes formas de opressão. Sartre<br />

interveio publicamente na Revolução Cubana em 1959 ao defendê-la<br />

como uma porta revolucionária para toda a América Latina, porém mais<br />

tarde, quan<strong>do</strong> Fidel Castro forçou o poeta cubano Herberto Padilha a<br />

fazer uma auto-crítica como trai<strong>do</strong>r de Cuba, Sartre assinou o manifesto<br />

condenan<strong>do</strong> a atitude de Fidel; quan<strong>do</strong> redigiu as considerações <strong>do</strong><br />

Tribunal Russel – grupo que reunia intelectuais <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> inteiro com o<br />

objetivo de denunciar os crimes de guerra no Vietnã –, fez a seguinte<br />

declaração: “Os vietnamitas combatem por to<strong>do</strong>s os homens, e as<br />

forças norte-americanas, contra to<strong>do</strong>s”; quan<strong>do</strong> assumiu publicamente<br />

a sua posição em favor <strong>do</strong> movimento estudantil em 1968; quan<strong>do</strong> se<br />

negou a ir aos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s para realizar uma conferência, pois sua<br />

visita poderia ser interpretada como uma visita ao inimigo; ao recusar<br />

em 1964, no auge da carreira, o Prêmio Nobel de Literatura, por<br />

significar o reconhecimento da autoridade da Academia Real da Suécia<br />

(comissão julga<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> prêmio) consideran<strong>do</strong> ainda que, se assim o<br />

fizesse poderia estar perden<strong>do</strong> o instrumento principal de seu<br />

engajamento: a liberdade literária; ao defender seu amigo Paul Nizan<br />

que, após aban<strong>do</strong>nar a vida universitária para se engajar no Parti<strong>do</strong><br />

Comunista Francês durante a década de 30 <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>,<br />

assumin<strong>do</strong> cargos de direção partidária importantes, em 1940, com o<br />

Pacto Germano-Soviético, 51 desligou-se <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> e foi por ele<br />

considera<strong>do</strong> um trai<strong>do</strong>r da classe operária.<br />

51<br />

O Pacto Germano-Soviético, em 1940, foi um trata<strong>do</strong> de não agressão firma<strong>do</strong> entre<br />

a Alemanha Nazista e a União Soviética as vésperas da Segunda Guerra Mundial.


104<br />

O ato de intervir publicamente também é uma das estratégias que<br />

os intelectuais sur<strong>do</strong>s utilizam nos dias de hoje. Nas narrativas<br />

encontramos os seguintes enuncia<strong>do</strong>s: “A gente sempre tem que se<br />

colocar publicamente para garantir os nossos direitos, caso contrário o<br />

ouvinte sempre vai impor a sua forma de ser”; “É importante se<br />

manifestar publicamente. Por exemplo, se um ouvinte faz alguma coisa<br />

que prejudica o sur<strong>do</strong>, nós temos que nos posicionar claramente frente<br />

a isso. Quan<strong>do</strong> nós colocamos o debate na rua, outras pessoas também<br />

se manifestam. Parece que o manifesto faz as pessoas acordarem”;<br />

“Sempre que alguém se coloca contra os sur<strong>do</strong>s nós temos que nos<br />

posicionar no mesmo nível de igualdade frente àquilo que foi coloca<strong>do</strong>.<br />

Se nós não respondermos, o que prevalece é a idéia daquele que nos<br />

oprime”.<br />

A “Nota de Repúdio à Carta Aberta” é um exemplo quanto ao uso<br />

de manifesto como uma estratégia de intervenção pública <strong>do</strong>s<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s. Durante o vestibular de 2008 <strong>do</strong> curso de<br />

Licenciatura em Letras Libras da UF<strong>SC</strong>, foi impetrada uma ação no<br />

Ministério Público Federal contra a referida Universidade por ter,<br />

segun<strong>do</strong> a autora da ação, feri<strong>do</strong> o princípio da isonomia – a igualdade<br />

de to<strong>do</strong>s perante a lei – ao priorizar o ingresso <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s no curso. O<br />

texto dessa ação circulou na internet com o título “Carta Aberta”, o que<br />

provocou intensos debates nas comunidades surdas <strong>do</strong> País e no meio<br />

acadêmico. A tese levantada pelos sur<strong>do</strong>s era que a “Carta Aberta” não<br />

reconhecia a discriminação que os sur<strong>do</strong>s sofreram ao longo de sua<br />

história.


105<br />

Para se contrapor à “Carta Aberta”, <strong>do</strong>is intelectuais sur<strong>do</strong>s 52<br />

divulgaram na internet 53 o manifesto “Nota de Repúdio à Carta Aberta”,<br />

assina<strong>do</strong> por eles e por outros intelectuais. Os intelectuais sur<strong>do</strong>s, em<br />

seu manifesto, denunciam o princípio universalizante <strong>do</strong> conceito de<br />

isonomia a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> na “Carta Aberta”, que não reconhece a<br />

discriminação que os sur<strong>do</strong>s sofreram e continuam sofren<strong>do</strong>, negan<strong>do</strong> o<br />

próprio discurso jurídico de “igualdade material”. Uma leitura rápida e<br />

desatenta <strong>do</strong> artigo 5º da Constituição Federal, que preconiza a<br />

igualdade de to<strong>do</strong>s perante a lei, 54 segun<strong>do</strong> os intelectuais sur<strong>do</strong>s não<br />

consegue perceber o princípio que subjaz ao artigo e pode levar a<br />

compreensões precipitadas e inadequadas, como no caso da “Carta<br />

Aberta”, uma vez que o “princípio em questão deve ser considera<strong>do</strong> não<br />

como igualdade absoluta, mas sim proporcional, o que pode variar de<br />

acor<strong>do</strong> com as exigências <strong>do</strong> ser humano, levan<strong>do</strong> em conta as suas<br />

diferenças” (JUNIOR & REZENDE, 2008, p. 1).<br />

Ao a<strong>do</strong>tar o discurso jurídico como estratégia argumentativa, os<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s trazem à discussão <strong>do</strong>is conceitos: “igualdade<br />

52<br />

Patrícia Luiza Ferreira Rezende: surda, mineira de nascença, graduada em<br />

Pedagogia, com especialização em Psicopedagogia pela Pontíficia Universidade<br />

Católica (PUC/MG). Exerceu o cargo de Analista Educacional da Secretaria de Esta<strong>do</strong><br />

da Educação de Minas Gerais, onde foi responsável pela implantação e implementação<br />

<strong>do</strong> Centro de Capacitação <strong>do</strong>s Profissionais da Educação e Atendimento às Pessoas<br />

Surdas de Minas Gerais (CAS/MG). Foi professora de LIBRAS <strong>do</strong> curso de Pedagogia da<br />

PUC-MG e atualmente é <strong>do</strong>utoranda em Educação pela UF<strong>SC</strong>, além de ser professoraautora<br />

das disciplinas de Libras I a VI e Didática na Educação de Sur<strong>do</strong>s <strong>do</strong> curso de<br />

Licenciatura em Letras Libras da UF<strong>SC</strong>.<br />

Franklin Ferreira Rezende Júnior: sur<strong>do</strong>, amazonense, bacharel em Direito. Realizou<br />

palestras orientan<strong>do</strong> escolas, famílias e outras entidades nas questões relativas aos<br />

direitos <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s; fez parte da diretoria <strong>do</strong> extinto Instituto de Desenvolvimento<br />

Integra<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Sur<strong>do</strong>s da Amazônia (IDISAM) e da Associação <strong>do</strong>s Sur<strong>do</strong>s de Manaus no<br />

perío<strong>do</strong> de 1998 a 2002. É servi<strong>do</strong>r público federal, no cargo de Analista Judiciário.<br />

Área Judiciária, <strong>do</strong> Tribunal Regional <strong>do</strong> Trabalho da 11ª Região de Manaus/AM e, por<br />

indicação da FENEIS, é conselheiro titular <strong>do</strong> Conselho Nacional <strong>do</strong>s Direitos das<br />

Pessoas Porta<strong>do</strong>ras de Deficiência (CONADE), representan<strong>do</strong> os sur<strong>do</strong>s brasileiros.<br />

53<br />

De acor<strong>do</strong> com a Narra<strong>do</strong>ra 6: “Hoje nacionalmente, por meio das tecnologias de<br />

informação e comunicação, nós temos um grupo de discussão – sur<strong>do</strong>s BR – esse<br />

grupo permite diferentes debates com os sur<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong> o Brasil. A própria “Nota de<br />

repúdio à carta aberta” que o [...] e a [...] fizeram também circulou nessa sala de<br />

discussão”.<br />

54 De acor<strong>do</strong> com o artigo 5º da Constituição Federal, todas as pessoas são iguais<br />

perante a lei, “sem distinção de qualquer natureza, garantin<strong>do</strong>-se aos brasileiros e aos<br />

estrangeiros residentes no país a inviolabilidade <strong>do</strong> direito à vida, à liberdade, à<br />

igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos desta Constituição”.


106<br />

formal” e “igualdade material”. Para diferenciar a igualdade formal da<br />

igualdade material, faz-se necessário diferenciar as “situações jurídicas<br />

objetivamente iguais e subjetivamente distintas, em razão da posição<br />

<strong>do</strong>s sujeitos de direito na escala social” (Ibid., p. 2). Segun<strong>do</strong> os<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s, a igualdade formal é a igualdade na lei e perante a<br />

lei, mas enquanto igualdade de tratamento. A igualdade material é<br />

aquela que tem por princípio garantir a igualdade ou a redução da<br />

desigualdade no campo econômico e social. Tal ponto de vista se<br />

fortalece quan<strong>do</strong> o princípio da igualdade material tem si<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s<br />

principais argumentos para a construção de políticas afirmativas em<br />

nosso país frente à discriminação racial, linguística, física, de gênero,<br />

idade e origem nacional. As políticas afirmativas destacam os<br />

processos de discriminação ainda vigentes para “criar artefatos legais<br />

de reparação, de políticas públicas compensatórias de mo<strong>do</strong> a conferir<br />

oportunidades aos menos favoreci<strong>do</strong>s em decorrência de um processo<br />

histórico e cultural, no caso em tela” (Id.).<br />

Nessa linha de raciocínio, o manifesto “Nota de Repúdio à Carta<br />

Aberta” enfatiza a discriminação que os sur<strong>do</strong>s vêm sofren<strong>do</strong> ao longo<br />

de sua história no campo social, linguístico, cultural e educacional. E<br />

antes de fazer uma análise mais pormenorizada da “Carta Aberta”, os<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s apresentam alguns argumentos que suscitam o<br />

princípio jurídico de “igualdade material” em favor <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s. Para os<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s, os sur<strong>do</strong>s há muito tempo têm<br />

padeci<strong>do</strong> com o problema das desigualdades inerentes ao<br />

seu ser e à estrutura social que se insere. E é<br />

extremamente difícil ocultar a história <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s, em que<br />

foram mais de 100 anos de massacre de mãos<br />

escravizadas, e tal fato histórico é muito conheci<strong>do</strong> e,<br />

exaustivamente, sedimenta<strong>do</strong> na comunidade surda, onde<br />

relata-se que os sur<strong>do</strong>s foram os párias, os<br />

estereotipa<strong>do</strong>s, os estigmatiza<strong>do</strong>s, os de menos-valia na<br />

sociedade. E indispensáveis foram o surgimento e<br />

mobilização de vários líderes sur<strong>do</strong>s para que as suas<br />

lutas fossem reconhecidas tanto quanto as legislações<br />

favoráveis e, em alguns aspectos, condizentes com o ser


107<br />

sur<strong>do</strong>. A história <strong>do</strong> Congresso <strong>do</strong> Milão de 1880<br />

massacrou com a escravização de mãos surdas,<br />

obrigan<strong>do</strong>-nos a viver como “cópias” de ouvintes, como<br />

objetos de treinamento de falas, com o intuito de nos<br />

igualar aos ouvintes, quan<strong>do</strong> em verdade, fomos<br />

destituí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> nosso ser sur<strong>do</strong>, <strong>do</strong> nosso modus vivendi,<br />

de vivenciar a língua de sinais com nossos pares, e com<br />

as nossas particularidades culturais, além de serem<br />

aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s à margem <strong>do</strong> rio das oportunidades.<br />

Onde estavam os ouvintes nos 100 anos de massacre de<br />

mãos escravizadas Ministran<strong>do</strong> aula para alunos sur<strong>do</strong>s<br />

em substituição aos muitos professores sur<strong>do</strong>s, que foram<br />

destituí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> seu cargo, sen<strong>do</strong> rebaixa<strong>do</strong>s para os outros<br />

cargos, como serventes, cantineiros, faxineiros, e porque<br />

não dizer “limpan<strong>do</strong> o chão das escolas”.<br />

Foram mais de 100 anos de desigualdades! E será que<br />

vamos viver mais de 100 anos de “igualdade aparente”,<br />

igualdade discriminatória até mesmo no atual processo<br />

inclusivo da educação Será que os juristas vão dar razão<br />

para outros ocuparem nossos espaços por mais tempo e<br />

que, outrora, os sur<strong>do</strong>s construíram a passos pequenos e<br />

repudia<strong>do</strong>s Onde está a dita igualdade material e as<br />

ações afirmativas de combate à discriminação<br />

desigualan<strong>do</strong> os desiguais na medida da sua<br />

desigualdade (JUNIOR & REZENDE, 2008, p. 3).<br />

Essa forma de intervenção política de intelectuais engaja<strong>do</strong>s,<br />

mediante o uso de manifestos, aproxima-se <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> de intelectual<br />

de Sartre quanto à manutenção da crença no poder da ação mediante o<br />

uso da palavra. Entretanto, o manifesto, com toda a sua importância,<br />

também carrega em si a imagem de um intelectual que fala no lugar<br />

daqueles cuja voz supostamente não tem ressonância social.<br />

A Narra<strong>do</strong>ra 6 menciona que é mais interessante se afastar para<br />

intervir publicamente porque, quan<strong>do</strong> se está frente a frente com quem<br />

se contesta, fica difícil controlar as emoções. Noberto Bobbio (1997)<br />

aproxima-se dessa visão de intelectual que se afasta <strong>do</strong> problema para<br />

poder intervir com responsabilidade. Se para Sartre o enfrentamento<br />

era determinante na constituição <strong>do</strong> intelectual, já para Bobbio a<br />

responsabilidade deve falar mais alto, porque não é o ato de estar<br />

“frente a frente” que determina a qualidade de suas ações, mas a<br />

questão em que ele se engaja e o mo<strong>do</strong> como ele se engaja. O


108<br />

verdadeiro intelectual, segun<strong>do</strong> Bobbio, é aquele que assume todas as<br />

responsabilidades da sua escolha e as conseqüências que dela derivam.<br />

O engajamento não é o ponto determinante na ação <strong>do</strong> intelectual, mas<br />

sim a causa na qual o intelectual se engaja.<br />

Bobbio (1997, p. 68), ao mesmo tempo que apresenta o<br />

intelectual como “alguém que não faz coisas, mas reflete sobre as<br />

coisas, que não maneja objetos, mas símbolos, alguém cujos<br />

instrumentos de trabalho não são máquinas, mas idéias”, também faz<br />

algumas delimitações quanto ao uso <strong>do</strong> conceito de intelectual. A<br />

primeira delas é que os intelectuais não estão vincula<strong>do</strong>s ao que eles<br />

são e fazem, mas ao que deveriam ser ou fazer. “Nosso problema não é<br />

o de saber se os intelectuais são [...] independentes ou dependentes,<br />

mas de trocarmos algumas idéias sobre o que os intelectuais que se<br />

reconhecessem em uma determinada parte política fariam ou deveriam<br />

fazer” (Ibid., p. 69). Se na primeira delimitação Bobbio procura definir a<br />

forma, na segunda ele delimita o papel <strong>do</strong>s intelectuais na política. Para<br />

o autor, essa delimitação é apenas um recorte da grande discussão <strong>do</strong>s<br />

intelectuais: a relação entre o mun<strong>do</strong> das idéias e o mun<strong>do</strong> das ações. A<br />

terceira delimitação é a sua própria compreensão <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

termo “intelectual”. Para tanto, faz uma importante distinção entre <strong>do</strong>is<br />

tipos de intelectuais: os ideólogos e os expertos, o que não significa<br />

dizer que um intelectual não possa ser os <strong>do</strong>is simultaneamente. O<br />

critério que distingue um <strong>do</strong> outro “é precisamente a diversa tarefa que<br />

desempenham como cria<strong>do</strong>res ou transmissores de idéias ou<br />

conhecimentos politicamente relevantes” (Ibid., p. 72). Os ideólogos são<br />

aqueles que elaboram os princípios que dão sustentação teórica a uma<br />

determinada ação. Os expertos são aqueles que estabelecem os<br />

conhecimentos mais adequa<strong>do</strong>s para realizar uma determinada ação.<br />

Se os expertos são aqueles que fornecem conhecimentos (a forma como<br />

se realiza uma ação), os ideólogos são aqueles que apresentam os<br />

princípios (valores, ideais, concepções). Os ideólogos e expertos,<br />

diferentes em essência, devem obedecer a éticas também diversas.


109<br />

Enquanto os primeiros teriam por objetivo serem fiéis a certos<br />

princípios, seguin<strong>do</strong> a ética da convicção, os segun<strong>do</strong>s precisariam<br />

propor meios adequa<strong>do</strong>s ao fim e, portanto, teriam de levar em<br />

consideração as consequências que desses meios podem derivar. Nesse<br />

senti<strong>do</strong>, devem obedecer à ética da responsabilidade.<br />

Para o autor, a tarefa <strong>do</strong> intelectual, além de agitar idéias,<br />

levantar problemas, propor teorias gerais, também deve se pautar em<br />

uma responsabilidade política cuja conduta seja caracterizada “por uma<br />

forte vontade de participar das lutas políticas e sociais <strong>do</strong> seu tempo<br />

[...] mas, ao mesmo tempo, por aquela distância crítica que o impeça de<br />

se identificar completamente com uma parte até ficar liga<strong>do</strong> por inteiro<br />

a uma palavra de ordem” (Ibid., p. 79).<br />

Os significa<strong>do</strong>s de intelectual em Sartre e Bobbio permitem uma<br />

primeira leitura sobre a possibilidade de os educa<strong>do</strong>res serem ou não<br />

intelectuais. Nas palavras <strong>do</strong> Narra<strong>do</strong>r 3, tem-se o seguinte<br />

questionamento: “Você, como pesquisa<strong>do</strong>r, escolheu esses cinco<br />

educa<strong>do</strong>res, mas os educa<strong>do</strong>res não são intelectuais Tal<br />

questionamento pode ser respondi<strong>do</strong> de várias maneiras frente às<br />

discussões teóricas realizadas até o momento. Por exemplo, se se pensa<br />

o educa<strong>do</strong>r como intelectual a partir de Sartre, tem-se pelo menos três<br />

condições: o educa<strong>do</strong>r precisa conhecer profundamente seu objeto de<br />

trabalho; estar engaja<strong>do</strong> politicamente nas questões que interferem no<br />

seu papel de educa<strong>do</strong>r, e sua atuação deve estar vinculada a um bem<br />

comum. Para Bobbio, o educa<strong>do</strong>r seria um intelectual se refletisse e<br />

agisse com responsabilidade, mas o educa<strong>do</strong>r como intelectual teria<br />

que se distanciar criticamente das lutas para não se identificar com<br />

uma das partes envolvidas a ponto de perder sua capacidade crítica.<br />

Entretanto, é Giroux (1997) quem mais se aproxima da XI Tese<br />

sobre Feuerbach, quan<strong>do</strong> diz que, para o trabalho <strong>do</strong>cente ser<br />

repensa<strong>do</strong> e reestrutura<strong>do</strong>, é preciso ver os educa<strong>do</strong>res como<br />

intelectuais transforma<strong>do</strong>res. Segun<strong>do</strong> o autor, a categoria de


110<br />

intelectual pode ser importante de várias maneiras; por oferecer uma<br />

sustentação teórica para examinar a atividade <strong>do</strong>cente como uma<br />

forma de trabalho reflexiva e não meramente instrumental ou técnica;<br />

por esclarecer “os tipos de condições ideológicas e práticas necessárias<br />

para que os professores funcionem como intelectuais” (Ibid., p. 161); e<br />

por ajudar a esclarecer que as práticas pedagógicas a<strong>do</strong>tadas pelos<br />

educa<strong>do</strong>res legitimam determina<strong>do</strong>s interesses políticos, econômicos e<br />

sociais. Por isso, o educa<strong>do</strong>r como intelectual transforma<strong>do</strong>r interrogase<br />

permanentemente quanto ao seu papel social e cultural no fazer<br />

pedagógico, principalmente por saber que a escola, como um espaço<br />

político, está atrelada às relações de poder em suas práticas de<br />

significação.<br />

Ao trazer o ato pedagógico para o centro de suas discussões,<br />

Giroux politiza esse momento ímpar na relação educa<strong>do</strong>r/educan<strong>do</strong>:<br />

defende que o educa<strong>do</strong>r, como intelectual, deve tornar “o pedagógico<br />

mais político e o político mais pedagógico” (Ibid., p. 163). Ao tornar “o<br />

pedagógico mais político”, o educa<strong>do</strong>r, na prática, está tiran<strong>do</strong> o<br />

processo de ensinar e aprender da dimensão burocrática 55 e colocan<strong>do</strong>o<br />

na dimensão política. Giroux traz o ato pedagógico para o campo das<br />

interações pessoais e sociais, em que as diferenças históricas, culturais,<br />

sociais e linguísticas precisam ser negociadas politicamente. E ao tornar<br />

“o político mais pedagógico”, o educa<strong>do</strong>r como intelectual se utiliza de<br />

pedagogias que incorporam interesses políticos de natureza<br />

emancipa<strong>do</strong>ra. Ao a<strong>do</strong>tar essa concepção de ensino, Giroux coloca os<br />

educa<strong>do</strong>res na posição de agentes críticos que problematizam o<br />

conhecimento e usam o diálogo como estratégia política na construção<br />

de um mun<strong>do</strong> “qualitativamente melhor para todas as pessoas (Id.).<br />

55<br />

A dimensão burocrática da educação, segun<strong>do</strong> Giroux, está vinculada às teorias<br />

tecnocráticas e instrumentais que separam a conceitualização, planejamento e<br />

organização curricular <strong>do</strong>s processos de implementação e execução.


111<br />

2. CIRCULAÇÃO DE SABERES: UMA ESTRATÉGIA DE<br />

DESAUTORIZAÇÃO DO DI<strong>SC</strong>URSO COLONIAL<br />

Para a Narra<strong>do</strong>ra 4, o ingresso na universidade foi uma<br />

estratégia a<strong>do</strong>tada “para mostrar essa questão da produção surda, <strong>do</strong>s<br />

saberes, <strong>do</strong>s conhecimentos, das experiências práticas que até há<br />

pouco tempo não eram conhecidas”. Para a Narra<strong>do</strong>ra 6, os sur<strong>do</strong>s, ao<br />

organizarem e publicarem sua produção, “começam a desmontar as<br />

políticas que nos colocam em campo de inferioridade, de<br />

subalternidade”. É com esse olhar que passo a apresentar as narrativas<br />

<strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s como estratégia de desautorização <strong>do</strong> discurso<br />

colonial.<br />

FRAGMENTOS<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: No passa<strong>do</strong> os pesquisa<strong>do</strong>res ouvintes<br />

tratavam as questões surdas de forma muito superficial e não<br />

mantinham uma relação forte com as comunidades surdas.<br />

Foram os pesquisa<strong>do</strong>res sur<strong>do</strong>s que conseguiram valorizar os<br />

nossos saberes, o nosso jeito de ser e de ver o mun<strong>do</strong>, as<br />

nossas causas, colocan<strong>do</strong> em cena coisas que no passa<strong>do</strong> não<br />

faziam parte da academia.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: As redes de contatos entre sur<strong>do</strong>s já vêm há<br />

muito tempo. As associações de sur<strong>do</strong>s tiveram um papel<br />

importantíssimo na construção dessas redes. Pelas pesquisas<br />

que eu fiz há muito tempo atrás essas redes já tinham um<br />

papel importante na vida <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s. As redes de contato são<br />

uma marca <strong>do</strong>s movimentos sociais sur<strong>do</strong>s. Se hoje temos as<br />

redes de contato através da FENEIS e <strong>do</strong> Letras Libras, no<br />

passa<strong>do</strong> tínhamos os esportes como uma rede de contato. Era<br />

essa maneira informal de contato que aproximava os sur<strong>do</strong>s.<br />

Acho que essa foi uma das primeiras redes criadas pelos<br />

sur<strong>do</strong>s, que depois foi evoluin<strong>do</strong> para outras formas de<br />

contato. Acho que essas redes estão focadas na valorização<br />

das línguas de sinais, que vêm empoderan<strong>do</strong> os sur<strong>do</strong>s em<br />

nível nacional.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 4: Para mim, o intelectual sur<strong>do</strong> não se constituiu<br />

agora na universidade, ele já vem de to<strong>do</strong> um processo<br />

histórico, de conhecimento, de práticas, de histórias, também<br />

de sofrimento, de assujeitamento. Há muito tempo atrás as


112<br />

associações foram os espaços onde nós, sur<strong>do</strong>s, criávamos as<br />

nossas estratégias de luta.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 4: A minha saída da associação para entrar na<br />

universidade foi para mostrar essa questão da produção<br />

surda, <strong>do</strong>s saberes, <strong>do</strong>s conhecimentos, das experiências<br />

práticas que até há pouco tempo não eram conhecidas. Por<br />

isso a importância de trazer to<strong>do</strong> esse histórico de vida para a<br />

universidade.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 5: Eu acho que a questão <strong>do</strong> intelectual ouvinte<br />

como “alia<strong>do</strong>” é fundamental. Em alguns momentos os<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s e ouvintes precisam ser “alia<strong>do</strong>s”. [...] O<br />

exemplo que vou apresentar aconteceu comigo num<br />

congresso internacional, em que ministrava uma palestra<br />

sobre a educação de sur<strong>do</strong>s no Brasil [...] e as mudanças que<br />

estão acontecen<strong>do</strong>. As pessoas me perguntavam: Por que<br />

essas mudanças estão acontecen<strong>do</strong> tão rápi<strong>do</strong> E eu disse que<br />

a questão era muito simples: as mudanças estão acontecen<strong>do</strong><br />

porque os intelectuais sur<strong>do</strong>s e ouvintes estão se unin<strong>do</strong> em<br />

torno de um único objetivo, e os intelectuais sur<strong>do</strong>s,<br />

gradativamente, estão ocupan<strong>do</strong> espaços que no passa<strong>do</strong> só<br />

os ouvintes ocupavam. O foco não está mais nos intelectuais<br />

ouvintes, mas nos sur<strong>do</strong>s. Por isso, em alguns momentos, essa<br />

questão <strong>do</strong>s “alia<strong>do</strong>s” é muito importante.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: É muito importante que os sur<strong>do</strong>s publiquem<br />

seus trabalhos. Ao fazermos isso, aos poucos, estamos<br />

desconstruin<strong>do</strong> a visão que os ouvintes têm a nosso respeito.<br />

Eles ainda nos vêem como deficientes, subalternos, inferiores,<br />

como se não tivéssemos capacidade de fazer nossas<br />

pesquisas e publicar nossos trabalhos. Ao realizar as<br />

publicações, os sur<strong>do</strong>s começam a desmontar as políticas que<br />

nos colocam em campo de inferioridade, de subalternidade.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: A [...] sempre explica: se o sur<strong>do</strong> começa a<br />

publicar, a escrever, ele começa a mostrar a sua força, o seu<br />

poder. Se a gente como sur<strong>do</strong>, começa a produzir pesquisas<br />

em nível de mestra<strong>do</strong> e <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> as outras pessoas passam<br />

a nos ver de forma diferente, porque a gente passa a ter uma<br />

prova concreta de nossa competência. O sur<strong>do</strong>, dessa forma,<br />

passa a se fazer presente no debate acadêmico.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: Hoje nacionalmente, por meio das tecnologias<br />

de informação e comunicação nós temos um grupo de<br />

discussão – sur<strong>do</strong>s BR, esse grupo permite diferentes debates<br />

com os sur<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong> o Brasil. A própria “Nota de repúdio à<br />

carta aberta” [...] também circulou nessa sala de discussão.<br />

Esse grupo é muito eclético, porque tem muitos assuntos a<br />

serem debati<strong>do</strong>s que geram debates, discussões e às vezes


113<br />

brigas, mas essa forma de contato é muito importante entre<br />

nós.<br />

A Narra<strong>do</strong>ra 4 também nos diz que “o intelectual sur<strong>do</strong> não se<br />

constituiu agora na universidade”, mas ele já vem se forman<strong>do</strong> há<br />

muito tempo atrás nas próprias associações de sur<strong>do</strong>s. Esse enuncia<strong>do</strong><br />

e outros <strong>do</strong> fragmento, apesar das diferenças históricas e <strong>do</strong>s grupos<br />

sociais envolvi<strong>do</strong>s, podem ser compreendi<strong>do</strong>s a partir da clássica<br />

distinção de Gramsci entre intelectuais orgânicos e tradicionais.<br />

Segun<strong>do</strong> Gramsci (2006, p. 18), “to<strong>do</strong>s os homens são<br />

intelectuais, mas nem to<strong>do</strong>s os homens têm na sociedade a função de<br />

intelectuais”, e cada grupo social cria para si uma ou mais camadas de<br />

intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria<br />

função, por isso são chama<strong>do</strong>s de intelectuais orgânicos. Para Gramsci,<br />

o coloniza<strong>do</strong>r, – em suas análises, o burguês –, ao desenvolver-se no<br />

seio <strong>do</strong> antigo regime, não trouxe consigo apenas o capitalista, mas<br />

também uma série de intelectuais vincula<strong>do</strong>s a essa classe social: o<br />

técnico, o indústrial, o administra<strong>do</strong>r, o economista e to<strong>do</strong>s os outros<br />

intelectuais associa<strong>do</strong>s às esferas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, que são os responsáveis<br />

pela forma como o Esta<strong>do</strong> e a sociedade se organizam.<br />

Para se contrapor à lógica <strong>do</strong>minante, de acor<strong>do</strong> com Gramsci,<br />

havia a necessidade de se educar os operários para criarem os seus<br />

próprios intelectuais, porque “to<strong>do</strong> grupo social [...] cria para si, ao<br />

mesmo tempo, organicamente uma ou mais camadas de intelectuais<br />

[...] não apenas no campo econômico, mas também no social e político”<br />

(Ibid., p. 15). A expectativa <strong>do</strong> autor era que os operários comandariam<br />

a mudança social que, segun<strong>do</strong> ele, estava em andamento. Para tanto,<br />

deveriam ter os seus próprios quadros de intelectuais para administrar<br />

o Esta<strong>do</strong> e a sociedade com um novo tipo de condução mais<br />

democrática e responsável socialmente. Esses “novos intelectuais”<br />

deveriam aliar uma educação técnica e participação na vida prática à


114<br />

capacidade de organização política. Os “novos intelectuais” não podiam<br />

estar afasta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> produtivo e nem mergulha<strong>do</strong>s numa retórica<br />

abstrata; capazes, portanto, de ser simultaneamente especialistas e<br />

políticos.<br />

A concepção de intelectual orgânico passou a assumir novos<br />

contornos. De acor<strong>do</strong> com Hall (2003), os estu<strong>do</strong>s culturais no contexto<br />

britânico aprenderam com Gramsci um conjunto de questões: a<br />

natureza da própria cultura, a disciplina <strong>do</strong> conjuntural, a importância<br />

da especificidade histórica, a metáfora da hegemonia. Além dessas<br />

questões, o pensamento gramsciano também contribuiu quanto às<br />

práticas de seus intelectuais no campo institucional. Para Hall, as<br />

práticas institucionais <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s culturais buscavam produzir essa<br />

forma de intelectual orgânico.<br />

A partir da definição de “intelectual orgânico” de Gramsci, Hall<br />

apresenta <strong>do</strong>is aspectos <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> intelectual, num determina<strong>do</strong><br />

perío<strong>do</strong> <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s culturais. O primeiro deles era o de ser a<br />

vanguarda das discussões teóricas em suas áreas de conhecimento<br />

porque, de acor<strong>do</strong> com Gramsci, os intelectuais orgânicos deveriam ter<br />

“conhecimentos superiores aos <strong>do</strong>s intelectuais tradicionais:<br />

conhecimentos verdadeiros, não apenas fingir que se sabe, [...] mas<br />

conhecer bem e profundamente” (HALL, 2003, p. 207). O segun<strong>do</strong><br />

aspecto é que ele, o intelectual orgânico, tem a responsabilidade de<br />

socializar esses conhecimentos para as pessoas que não pertencem,<br />

profissionalmente, à categoria de intelectual. Hall inter-relaciona os <strong>do</strong>is<br />

aspectos, pois, “a não ser que essas duas frentes estejam operan<strong>do</strong><br />

simultaneamente, ou pelo menos a não ser que essas duas ambições<br />

façam parte <strong>do</strong> projeto <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s culturais, qualquer avanço teórico<br />

nunca será acompanha<strong>do</strong> por um envolvimento no nível <strong>do</strong> projeto<br />

político” (Id.).<br />

Os intelectuais sur<strong>do</strong>s, por serem fortemente marca<strong>do</strong>s pela<br />

episteme <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s culturais, trazem também em seu discurso um


115<br />

desejo (in)curável de formarem uma camada de intelectuais<br />

organicamente articula<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is aspectos descritos<br />

anteriormente por Hall.<br />

No intuito de ser a vanguarda no debate teórico sobre questões<br />

culturais vinculadas aos sur<strong>do</strong>s, os intelectuais sur<strong>do</strong>s, no inicio <strong>do</strong>s<br />

anos 90 <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, passam a ter como ponto central de<br />

articulação de suas lutas a política da diferença. Para tanto, filiam-se às<br />

discussões teóricas da política cultural, imprimin<strong>do</strong>, assim, uma<br />

aproximação aos estu<strong>do</strong>s feministas, afro-descendentes e indígenas.<br />

Ao assumirem o discurso da política da diferença, os intelectuais<br />

sur<strong>do</strong>s marcam uma posição política e estratégica em relação ao<br />

discurso colonialista. Lopes (2007, p. 24) aprofunda a discussão quan<strong>do</strong><br />

diz:<br />

Os estu<strong>do</strong>s que têm os sujeitos sur<strong>do</strong>s em seu centro<br />

partem da compreensão da surdez como uma diferença<br />

que agrega, gera e alimenta tanto as relações com outros<br />

sur<strong>do</strong>s quanto tensões e diferenciações inventadas no<br />

interior <strong>do</strong> próprio grupo. Trata-se de uma diferença que<br />

não procura dizer quem é o sur<strong>do</strong>, como ele deve fazer<br />

para desenvolver a identidade surda, como ele deve fazer<br />

para aprender, etc., mas que quer – na combinação entre<br />

as diferentes perspectivas teóricas que possibilitam<br />

pensar quaisquer relações a partir da centralidade da<br />

cultura – problematizar a surdez como uma marca que<br />

inclui alguns sujeitos e exclui outros, que determina<br />

algumas condições de vida e de comunicação e que,<br />

principalmente, determina formas de organização de vida<br />

em um da<strong>do</strong> grupo cujas formas de estar e de se<br />

relacionar com o outro são compartilhadas (grifo no<br />

original).<br />

Os intelectuais sur<strong>do</strong>s, ao realizarem esse movimento, afastam-se<br />

<strong>do</strong>s discursos colonialistas em relação ao sur<strong>do</strong> e à educação de sur<strong>do</strong>s<br />

e se entrelaçam aos debates acadêmicos da política cultural, talvez por<br />

conhecerem o “processo histórico, de conhecimento, de práticas, de<br />

histórias, também de sofrimento, de assujeitamento” (Narra<strong>do</strong>ra 4)<br />

daqueles que vivem à margem <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> social.


116<br />

Para se contraporem aos “intelectuais tradicionais”, os<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s vêm aprofundan<strong>do</strong> suas discussões teóricas,<br />

colocan<strong>do</strong> em pauta as tensões que as diferenças surdas geram no<br />

espaço educacional. Por exemplo, nos dia de hoje é comum a realização<br />

de pesquisas que definem a educação especial “como um subproduto<br />

da educação, cujos componentes ideológicos, políticos, teóricos, etc.<br />

são, no geral, de natureza discriminatória, descontínua e anacrônica,<br />

conduzin<strong>do</strong> a uma prática permanente de exclusão e inclusão” 56<br />

(SKLIAR, 1998, p. 11).<br />

A responsabilidade política <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s em socializar<br />

suas produções acadêmicas pode ser descrita de várias formas, entre as<br />

quais destaco a formação de educa<strong>do</strong>res sur<strong>do</strong>s, a divulgação de suas<br />

pesquisas e a construção de “redes de contato”. Frente à amplitude das<br />

produções acadêmicas na área da educação de sur<strong>do</strong>s em andamento<br />

no Brasil, limitar-me-ei apenas em apresentar os trabalhos realiza<strong>do</strong>s<br />

em 2008 pelo Grupo de Estu<strong>do</strong>s Sur<strong>do</strong>s (GES) da UF<strong>SC</strong>. 57<br />

Um <strong>do</strong>s focos <strong>do</strong> GES está na formação de um quadro de<br />

educa<strong>do</strong>res para atuar em to<strong>do</strong> o país a partir de cursos de graduação<br />

na modalidade presencial e a distância. 58 O que mais se destaca no<br />

processo de construção <strong>do</strong>s cursos é a marca das diferenças surdas. A<br />

maioria <strong>do</strong>s alunos é oriunda <strong>do</strong>s movimentos sociais sur<strong>do</strong>s; os cursos<br />

têm como primeira língua a língua de sinais brasileira; o material<br />

56<br />

Uma pesquisa que trata dessa questão de forma singular, realizada em Santa<br />

Catarina é a de Paulo Cesar Macha<strong>do</strong>, apresentada no livro “A política educacional de<br />

integração/inclusão: um olhar <strong>do</strong> egresso sur<strong>do</strong>”, publica<strong>do</strong> pela editora da UF<strong>SC</strong>, em<br />

2008.<br />

57<br />

Os trabalhos <strong>do</strong> Grupo de Estu<strong>do</strong>s Sur<strong>do</strong>s da UF<strong>SC</strong> “se estendem em diferentes<br />

campos teóricos” e “se constituem em pesquisas investigativas que tendem a acolher<br />

os aspectos culturais e políticos referentes aos sur<strong>do</strong>s [...]” . O GES foi cria<strong>do</strong> em 2004 pela Prof. Dra. Ronice Müller<br />

Quadros que, desde essa época, articula suas atividades em parceria com outros<br />

profissionais e com os movimentos sociais sur<strong>do</strong>s.<br />

58<br />

A UF<strong>SC</strong>, mediante a articulação <strong>do</strong> GES, tem <strong>do</strong>is cursos na modalidade a distância –<br />

Licenciatura e Bacharela<strong>do</strong> em Letras Libras – que atende (900) novecentos alunos<br />

sur<strong>do</strong>s e (450) quatrocentos e cinqüenta alunos ouvintes em (9) nove Esta<strong>do</strong>s<br />

brasileiros. Em nível de pós-graduação, na modalidade presencial, a UF<strong>SC</strong> tem (23)<br />

vinte e três alunos realizan<strong>do</strong> o mestra<strong>do</strong> e o <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> que, destes, nove são<br />

sur<strong>do</strong>s.


117<br />

didático é produzi<strong>do</strong> na língua de sinais brasileira; os saberes sur<strong>do</strong>s<br />

fazem parte <strong>do</strong> currículo; há uma parcela significativa de professores<br />

sur<strong>do</strong>s; a tradução <strong>do</strong> material para a língua de sinais brasileira é<br />

realizada por intelectuais sur<strong>do</strong>s etc. Ao a<strong>do</strong>tar essa estratégia na<br />

construção <strong>do</strong>s cursos, o GES coloca em dúvida se a produção e a<br />

socialização <strong>do</strong>s conhecimentos produzi<strong>do</strong>s na academia só são<br />

possíveis a partir <strong>do</strong> logofonocentrismo.<br />

Além disso, o GES vem produzin<strong>do</strong> um conjunto de saberes que é<br />

permanentemente socializa<strong>do</strong> mediante a organização de eventos;<br />

apresentação de trabalhos científicos em seminários e congressos;<br />

realização de palestras e orientações de pesquisas com professores


118<br />

visitantes; publicações em revistas e livros 59 de circulação nacional e<br />

internacional.<br />

Ao socializar os saberes que vem produzin<strong>do</strong>, o GES assume o<br />

compromisso político e social com as pessoas que não pertencem à<br />

categoria de intelectual e coloca em circulação outros significa<strong>do</strong>s,<br />

forçan<strong>do</strong> a abertura de espaços de negociações com outros discursos,<br />

dentre eles o discurso colonial. Atualmente o GES é um espaço de luta<br />

59 Frente ao número eleva<strong>do</strong> de produções realizadas pelo GES entre 2004 (data de<br />

criação <strong>do</strong> GES) e 2008, resolvi apresentar apenas as atividades desenvolvidas em<br />

2008: 1) Eventos: “I Congresso Nacional de Pesquisas em Tradução e Interpretação<br />

de Línguas de Sinais”. 2) Trabalhos científicos apresenta<strong>do</strong>s em Congressos e<br />

Seminários: a) VII Congresso Internacional e XIII Seminário Nacional <strong>do</strong> INES. A<br />

educação de sur<strong>do</strong>s na perspectiva da educação inclusiva no Brasil; b) VII Congresso<br />

Internacional e XIII Seminário Nacional <strong>do</strong> INES. Práticas de ensino: processo de<br />

avaliação das práticas de ensino em uma perspectiva bilíngüe; c) I Congresso Nacional<br />

de Tradução e Interpretação de Língua de Sinais. Aspectos da tradução da língua<br />

portuguesa para a língua de sinais brasileira; d) II Semana Acadêmica de Letras da<br />

UF<strong>SC</strong>. Língua de sinais brasileira: desde sua origem até os dias de hoje; e) II Semana<br />

acadêmica de Letras da UF<strong>SC</strong>. Projeto Prolibras-TRAD: motivações, desenho,<br />

composição, méto<strong>do</strong>s de trabalho, execução, resulta<strong>do</strong>s; Seminar The Languages of<br />

Signs as minority Languages: Social and Politic Perspectives.The Acquisition of the<br />

Sign Language of Signs; f) Seminário de Pesquisa em EaD. Mesa de debates e relatos<br />

de experiências em EaD; g) I Seminário Web Currículo. Formação de professores de<br />

Letras Libras: construin<strong>do</strong> um currículo e g) 8º Fórum em ILCAE - Inclusão Lingüística<br />

em Cenários de Atividades Educacionais.O impacto das políticas lingüísticas na<br />

formação de sur<strong>do</strong>s brasileiros. 3) Palestras e orientações de pesquisa: a) Dra.<br />

Diane Lillo-Martin (University of Connecticut – Orientações de pesquisas; b) Drª.<br />

Deborah Chen Pichler (Gallaudet University – Orientações de pesquisas); c) Dra. Trudy<br />

Shafer (Northeast University – Orientações de pesquisas e palestra); d) Dr. Josep Quer<br />

(Universidad Pompeu Fabra – Orientações de pesquisas); e) Dra. Ella Lentz (ASL<br />

Courses – Orientações de pesquisa e palestra) f) Dra. Judy Gogh (ASL Courses –<br />

Palestra) e g) Ms. Cristina Lacerda Feitosa (Universidade de Piracicaba – Palestra<br />

ministrada). 4) Publicações: a) Série Pesquisas Estu<strong>do</strong>s Sur<strong>do</strong>s III. Organização:<br />

Quadros, R.M. Editora Arara Azul; b) Questões teóricas sobre as línguas de sinais.<br />

TISLR9. Organização: Quadros, R. M. Editora Arara Azul; c) STROBEL, K. As imagens <strong>do</strong><br />

outro sobre a cultura Surda. Editora UF<strong>SC</strong>; d) MACHADO, Paulo. Ex(in)clusão de<br />

Sur<strong>do</strong>s: um olhar <strong>do</strong> egresso sur<strong>do</strong>. Editora UF<strong>SC</strong>; e) RAMIREZ, A. & MASUTTI, M. A<br />

educação de sur<strong>do</strong>s em uma perspectiva bilíngüe: uma experiência de elaboração de<br />

softwares e suas implicações pedagógicas. Editora da UF<strong>SC</strong>; f) QUADROS, Ronice<br />

Muller de . Sign Languages: spinning and unraveling the past, present and future.. 1.<br />

ed. Petrópolis: Editora Arara Azul; g) QUADROS, Ronice Muller de (Org.) ;<br />

VA<strong>SC</strong>ONCELLOS, M. L. B. de (Org.) . Questões teóricas das pesquisas em línguas de<br />

sinais. 1. ed. Petrópolis: Editora Arara Azul; h) FINGER, I. (Org.); QUADROS, Ronice<br />

Muller de (Org.). Teorias de aquisição da linguagem. 1. ed. Florianópolis: Editora da<br />

UF<strong>SC</strong>; i) QUADROS, Ronice Muller de. Políticas lingüísticas e bilingüismo na educação<br />

de sur<strong>do</strong>s brasileiros. In: CARVALHO, Ana M. (Org.). Lingüística luso-brasileira. 1 ed.<br />

Madrid: Iberoamericana Editorial Vervuert; j) QUADROS, Ronice Muller de; QUER, J. .<br />

Back to back(wards) and moving on: on agreement, auxiliaries and verb classes in sign<br />

languages. In: QUADROS, Ronice Müller. (Org.). Sign Languages: spinning and<br />

unraveling the past, present and future.. 1 ed. Petrópolis: Editora Arara Azul; k)<br />

QUADROS, Ronice Muller de . O paradigma gerativista e a aquisição da linguagem. In:


119<br />

pelo direito de significar, um espaço político que permite o surgimento<br />

de outras posições que não se filiam à supremacia <strong>do</strong> discurso<br />

<strong>do</strong>minante.<br />

Essas estratégias políticas para formar educa<strong>do</strong>res sur<strong>do</strong>s e<br />

ouvintes engaja<strong>do</strong>s nas causas surdas tanto na esfera local quanto<br />

nacional se aproximam da proposição de Gramsci sobre o intelectual<br />

orgânico, quan<strong>do</strong> defende a formação, pelo viés político, de intelectuais<br />

vincula<strong>do</strong>s a um grupo social.<br />

Talvez a estratégia <strong>do</strong> GES para formar os educa<strong>do</strong>res sur<strong>do</strong>s<br />

como intelectuais orgânicos oscile entre a compreensão de Hall e de<br />

Giroux. Para Hall (2003, p. 206 e 207), a frase “a produção de<br />

intelectuais orgânicos” é problemática por dar a idéia de que os<br />

intelectuais <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s culturais estariam aparentemente alinha<strong>do</strong>s a<br />

um movimento histórico emergente. “Éramos intelectuais orgânicos<br />

sem qualquer ponto orgânico de referência; [...] com uma nostalgia ou<br />

vontade ou esperança [...] que a dada altura o trabalho intelectual nos<br />

preparasse para esse tipo de relacionamento, se tal conjuntura alguma<br />

vez viesse a surgir”.<br />

Giroux (1997, p. 154) afirma, a partir de Gramsci, que “to<strong>do</strong>s os<br />

homens e mulheres são intelectuais [...] independentemente de sua<br />

função social e econômica, to<strong>do</strong>s os seres humanos atuam como<br />

intelectuais ao [...] interpretar e dar significa<strong>do</strong> a seu mun<strong>do</strong>”. Ou seja,<br />

os intelectuais não são membros externos que trazem a teoria para os<br />

coloniza<strong>do</strong>s, mas sim intelectuais que vivem organicamente com a<br />

cultura e atividades práticas <strong>do</strong>s coloniza<strong>do</strong>s.<br />

Outra estratégia a<strong>do</strong>tada pelos intelectuais sur<strong>do</strong>s são as “redes<br />

de contato”: “As redes de contatos entre sur<strong>do</strong>s já existem há muito<br />

tempo”; “Hoje nacionalmente, por meio das tecnologias de informação<br />

FINGER, Ingrid; QUADROS, Ronice Müller. (Org.). Teorias de aquisição da linguagem. 1<br />

ed. Petrópolis: Editora da UF<strong>SC</strong> e l) QUADROS, Ronice Muller de ; LILLO MARTIN, D.<br />

Clause Structure. In: BRENTARI, Diane. (Org.). Sign Languages: A Cambridge Language<br />

Survey. 1 ed. Cambridge: Cambridge Universtity Press.


120<br />

e comunicação, nós temos um grupo de discussão – sur<strong>do</strong>s BR, esse<br />

grupo permite diferentes debates com os sur<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong> o Brasil”.<br />

Ao estruturar as “redes de contato”, os sur<strong>do</strong>s brasileiros, além de<br />

compartilharem sua língua, suas culturas, suas diferenças, também<br />

desenvolvem uma complexa forma de divulgação <strong>do</strong>s seus saberes. Os<br />

sur<strong>do</strong>s, como agentes sociais, formam redes, fazen<strong>do</strong> e desfazen<strong>do</strong> os<br />

seus nós, tornan<strong>do</strong>-se impossível definir suas estratégias de<br />

organização como sistemas fecha<strong>do</strong>s. As “redes de contato” são<br />

formadas por diferentes grupos de sur<strong>do</strong>s imersos na vida cotidiana e<br />

na militância de maneira efêmera ou permanente, mas permitin<strong>do</strong> a<br />

difusão das causas surdas de forma rápida e ampla, conectan<strong>do</strong><br />

iniciativas locais com as globais, como, por exemplo, a rede de contato<br />

“sur<strong>do</strong>s BR”. Essa forma de conexão via internet, além de difundir os<br />

saberes sur<strong>do</strong>s, também busca articular estratégias conjuntas que<br />

podem oferecer novas leituras da realidade, atribuin<strong>do</strong> novos<br />

significa<strong>do</strong>s às transformações sociais e culturais em que estão<br />

envolvi<strong>do</strong>s.<br />

Gross e Prudêncio (2004) destacam a importância das redes,<br />

principalmente por seu papel na desfundamentalização – o fim da<br />

crença em uma única orientação para transformação social; no<br />

descentramento – agentes diversos reivindican<strong>do</strong> projetos distintos; no<br />

combate aos essencialismos – reconhecimento das diferenças sem<br />

totalitarismos; e no engajamento dialógico na rede – para superar a<br />

lógica dual entre teoria e prática, ou seja, entre produção intelectual,<br />

mediações e militâncias.<br />

Se no passa<strong>do</strong> as “redes de contato” já eram uma “marca <strong>do</strong>s<br />

movimentos sociais sur<strong>do</strong>s” a partir <strong>do</strong>s esportes, como bem retrata a<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1 (“Se hoje, temos as redes de contato através da FENEIS e<br />

<strong>do</strong> Letras Libras, no passa<strong>do</strong> tínhamos os esportes como uma rede de<br />

contato”), hoje, os sur<strong>do</strong>s construíram diferentes “redes de contato”:<br />

FENEIS, Letras Libras, You Tube, Sur<strong>do</strong>s BR, ooVoo e tantas outras que


121<br />

segun<strong>do</strong> o Narra<strong>do</strong>r 2, “permitem ao sur<strong>do</strong> se manifestar em sua<br />

própria língua”. Dessa forma, as “redes de contato” não hierarquizam<br />

os sujeitos a partir de suas diferenças, mas potencializam os espaços de<br />

negociação, mesmo quan<strong>do</strong> são divergentes e conflitantes, como relata<br />

a Narra<strong>do</strong>ra 6: a rede de contato “sur<strong>do</strong>s BR” é muito eclética, o que<br />

provoca “debates, discussões e às vezes brigas, mas essa forma de<br />

contato é muito importante entre nós”.<br />

Uma outra estratégia a<strong>do</strong>tada pelos intelectuais sur<strong>do</strong>s para<br />

garantir a expansão de suas ações é mencionada pela Narra<strong>do</strong>ra 5:<br />

“os intelectuais sur<strong>do</strong>s e ouvintes precisam ser alia<strong>do</strong>s” para que,<br />

gradativamente, os intelectuais sur<strong>do</strong>s passem a ocupar espaços que no<br />

passa<strong>do</strong> só os intelectuais ouvintes ocupavam. Essa estratégia de<br />

ocupação de espaços também tem ressonâncias no significa<strong>do</strong> de<br />

intelectual orgânico. Segun<strong>do</strong> Gramsci, ao se desenvolverem, os “novos<br />

intelectuais” – os intelectuais orgânicos – se deparam com os de tipo<br />

"tradicional", herda<strong>do</strong>s de formações histórico-sociais anteriores:<br />

clérigos, filósofos, juristas, escritores, professores e outros. Esses<br />

intelectuais tradicionais têm um forte sentimento de continuidade<br />

através <strong>do</strong> tempo e vêem-se como independentes das lutas sociais. De<br />

um certo mo<strong>do</strong>, para Gramsci, um <strong>do</strong>s papéis <strong>do</strong>s intelectuais orgânicos<br />

é o de tentar trazer para o movimento social esses intelectuais<br />

tradicionais no senti<strong>do</strong> de se contraporem à estrutura <strong>do</strong>minante.<br />

Porém, a relação entre as pessoas da massa (por exemplo, na época, o<br />

camponês) e o intelectual tradicional é ambivalente e contraditória. Nas<br />

palavras de Gramsci (2006, p. 23):<br />

O camponês acredita sempre que pelo menos um de seus<br />

filhos pode se tornar intelectual (sobretu<strong>do</strong> padre), isto é,<br />

tornar-se um senhor, elevan<strong>do</strong> o nível social da família e<br />

facilitan<strong>do</strong> sua vida econômica pelas ligações que não<br />

poderá deixar de estabelecer com outros senhores. A<br />

atitude <strong>do</strong> camponês diante <strong>do</strong> intelectual é dúplice e<br />

parece contraditória: ele admira a posição social <strong>do</strong><br />

intelectual e, em geral, <strong>do</strong> funcionário público, mas finge<br />

às vezes desprezá-la, isto é, sua admiração mistura-se


122<br />

institivamente com elementos de inveja e raiva<br />

apaixonada.<br />

Nessa fala Gramsci evidencia que o desenvolvimento orgânico das<br />

massas camponesas está diretamente liga<strong>do</strong> aos movimentos <strong>do</strong>s<br />

intelectuais tradicionais. Porém, os “novos intelectuais” precisam<br />

compreender os “germes e fermentos” em desenvolvimento na vida<br />

coletiva <strong>do</strong>s camponeses, apesar de suas ambiguidades em relação ao<br />

intelectual tradicional.<br />

As estratégias a<strong>do</strong>tadas pelos intelectuais sur<strong>do</strong>s evidenciam a<br />

força de sua luta. Entretanto, os intelectuais precisam atentar que<br />

existe um “sistema de poder” que procura invalidar esse saber que<br />

produz “estratégias de resistência”. Segun<strong>do</strong> Foucault (1985, p. 71), os<br />

intelectuais:<br />

descobriram recentemente que as massas não necessitam<br />

deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente,<br />

muito melhor <strong>do</strong> que eles; e elas o dizem muito bem. Mas<br />

existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida<br />

esse discurso e esse saber.<br />

As palavras de Foucault são inquietantes e perturba<strong>do</strong>ras, mas<br />

também transgressoras quan<strong>do</strong> evidenciam que as massas sabem e<br />

dizem muito bem o que querem, independentemente de seus<br />

intelectuais; ao mesmo tempo, porém, o autor deixa claro que existe<br />

“um sistema de poder” que “barra, proíbe, invalida” esse saber que<br />

vem das massas. Para Foucault, tal poder não emana apenas das<br />

instâncias superiores da censura, mas se distribui de forma capilar por<br />

to<strong>do</strong> o teci<strong>do</strong> social, o que implica dizer que tanto as massas quanto os<br />

próprios intelectuais fazem parte desse sistema de poder. Por isso,<br />

Foucault afirma que o papel <strong>do</strong> intelectual não pode ser o de agente da<br />

verdade, da consciência e <strong>do</strong> discurso, como se houvesse a<br />

possibilidade de falar fora <strong>do</strong> “sistema de poder”, mas o de “lutar contra<br />

as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto<br />

e o instrumento: na ordem <strong>do</strong> saber, da ‘verdade’, da ‘consciência’, <strong>do</strong><br />

discurso” (id.).


123<br />

O poder por circular em todas as direções em forma de rede sem<br />

se deter nas mãos de ninguém, precisa ser analisa<strong>do</strong> em suas formas<br />

mais locais, naquele exato momento em que se estabelece e produz<br />

efeitos. O poder se situa em algum lugar entre o direito e a verdade.<br />

Foucault em suas pesquisas, principalmente aquelas apresentadas nos<br />

livros “Vigiar e punir” e “História da sexualidade I: a vontade de saber”,<br />

focou as regras <strong>do</strong> direito de que se valem as relações de poder para<br />

produzir discursos de “verdade”. A extensão <strong>do</strong> que se passa entre esse<br />

<strong>do</strong>is conceitos, segun<strong>do</strong> Foucault (1999, p. 28), só pode ser<br />

compreendida a partir de uma perspectiva relacional: “somos<br />

submeti<strong>do</strong>s pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o<br />

poder mediante a produção da verdade”. A verdade passa a depender<br />

<strong>do</strong> poder (disciplinar e biopoder), por isso o intelectual não pode se<br />

colocar como agente da verdade.<br />

É sobre essas duas formas de poder que passo a comentar em<br />

linhas gerais no intuito de compreender como o poder se estabelece e<br />

produz suas verdades. Nas palavras de Foucault (1984, p. 172), o<br />

“poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e<br />

retirar, tem como função maior adestrar; ou sem dúvida adestrar para<br />

retirar e se apropriar ainda mais e melhor”. O poder disciplinar faz<br />

crescer as habilidades e aptidões <strong>do</strong>s indivíduos mediante suas<br />

tecnologias disciplinares, 60 torna mais forte todas as forças sociais, uma<br />

60<br />

Ao discutir, a partir de Foucault, a disciplina como estratégia política, Fonseca (2003,<br />

p. 51) nos diz que as disciplinas são méto<strong>do</strong>s que possibilitam um controle minucioso<br />

<strong>do</strong> corpo e de suas partes, das atividades, <strong>do</strong> tempo e das forças, mas destaca que a<br />

idéia de controle nesse nível se diferencia de outras formas de controle como a<br />

escravidão, a <strong>do</strong>mesticidade, a vassalagem e o ascetismo. Em suas próprias palavras:<br />

“as tecnologias disciplinares são diferentes da escravidão na medida em que não<br />

efetuam uma apropriação <strong>do</strong>s corpos, no senti<strong>do</strong> de subjugá-los e impor-lhes algo por<br />

meio de uma força exterior à sua própria vontade. O mecanismo das tecnologias<br />

disciplinares se traduz por uma apropriação daquilo que o indivíduo produz, <strong>do</strong>s<br />

saberes, sentimentos e hábitos a ele relaciona<strong>do</strong>s, sem retirá-los <strong>do</strong> meio que lhe é<br />

próprio ou em que se encontra. Tal apropriação incide sobre a constituição <strong>do</strong> sujeito,<br />

de forma a não necessitar subjugar e impor, mas apenas dar os meios para instigar a<br />

sua ação. Diferentes da <strong>do</strong>mesticidade porque não estabelecem uma <strong>do</strong>minação<br />

constante a partir de uma vontade singular. E realizam-se muito mais sobre as<br />

operações <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> que sobre as operações de trabalho e os ideais de obediência,<br />

como na vassalagem, e visam mais a uma incitação de atitudes <strong>do</strong> que a uma<br />

renúncia por obediência, como no ascetismo”.


124<br />

vez que leva ao aumento da produção, ao desenvolvimento da<br />

economia, à distribuição <strong>do</strong> ensino e à elevação da moral pública.<br />

Segun<strong>do</strong> Focault, não há um centro único de poder e nem mesmo<br />

uma pessoa que encarne o poder disciplinar. O poder se encontra nas<br />

periferias, distribuí<strong>do</strong> e multiplica<strong>do</strong> em toda parte e materializa<strong>do</strong> nos<br />

corpos <strong>do</strong>s indivíduos a ele sujeita<strong>do</strong>s. Porém, de forma invisível, para<br />

que sua eficácia seja constante e permanente. Mas, para compreender<br />

as funções <strong>do</strong> poder disciplinar faz-se necessário conhecer seus<br />

principais instrumentos: o olhar hierárquico ou panóptico, a sanção<br />

normaliza<strong>do</strong>ra e o exame.<br />

O olhar hierárquico traz a idéia de uma vigilância ampla que, a<br />

partir de um ponto central, irradia-se em todas as direções e tem por<br />

objetivos individualizar os sujeitos a ele submeti<strong>do</strong>s, produzir efeitos<br />

homogêneos de poder e generalizar a disciplina, a ponto de expandi-la<br />

para além das instituições fechadas, chegan<strong>do</strong> a uma distribuição<br />

infinitesimal <strong>do</strong> poder. A vigilância traz novas relações de poder para<br />

capacitar o olhar hierárquico de forma tal que passe a ter uma visão<br />

total e permanente. Talvez a descrição mais adequada a esse olhar total<br />

e permanente seja a arquitetura <strong>do</strong> Panóptico, 61 descrita por Jeremy<br />

Bentham, no século XIX. Essa arquitetura, como mecanismo de controle,<br />

tem a função de:<br />

Fazer com que a vigilância seja permanente em seus<br />

efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a<br />

perfeição <strong>do</strong> poder tenda a tornar inútil a atualidade de<br />

61<br />

“O modelo panóptico descrito por Bentham envolve duas construções básicas: uma<br />

em forma de anel, localizada na periferia <strong>do</strong> conjunto, e a outra, um torre situada<br />

estrategicamente no centro. O bloco em forma de anel é dividi<strong>do</strong> em celas individuais<br />

que atravessam toda a espessura da construção, conten<strong>do</strong> uma janela para o interior<br />

<strong>do</strong> conjunto, ou seja, de frente para a torre central, e outra para o exterior, permitin<strong>do</strong><br />

assim que toda a cela seja iluminada. A torre, por sua vez, possui amplas janelas<br />

voltadas de frente para as celas. Está monta<strong>do</strong> assim um sistema ao mesmo tempo<br />

simples e complexo de vigilância. Para que ele funcione, basta que seja habita<strong>do</strong><br />

corretamente. Isso significa colocar um vigia na torre e distribuir pelas celas os<br />

indivíduos sobre os quais essa vigilância deve incidir: condena<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>entes, loucos,<br />

alunos, operários. Pelo efeito da luminosidade nas celas, é possível vigiar, da torre, os<br />

indivíduos que nelas se encontram, em seus menores atos” (FONSECA, 2003, pp. 55 e<br />

56).


125<br />

seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma<br />

máquina de criar e sustentar uma relação de poder<br />

independente daquele que o exerce; enfim, que os<br />

detentos se encontrem presos numa situação de poder de<br />

que eles mesmos são porta<strong>do</strong>res (FOUCAULT, 1977, p.<br />

166).<br />

A arquitetura panóptica permite que o dispositivo disciplinar da<br />

vigilância torne-se uma marca invisível e inverificável. Para que esse<br />

dispositivo funcione em to<strong>do</strong>s os seus efeitos, basta que aqueles a ele<br />

submeti<strong>do</strong>s a ele saibam que são vigia<strong>do</strong>s ou, mais <strong>do</strong> que isso, que são<br />

potencialmente vigia<strong>do</strong>s. A potencialidade da vigilância decorre da<br />

certeza de que nenhuma atitude possa permanecer em segre<strong>do</strong> frente<br />

ao olhar hierárquico. Na prática, a invisibilidade <strong>do</strong> poder disciplinar faz<br />

com que os indivíduos se adestrem, ajustem-se e se “corrijam” sem o<br />

uso da violência e da força. Com a vigilância, o poder disciplinar tornase<br />

um sistema integra<strong>do</strong>, sem um centro, sem um rei a controlar, por<br />

isso Foucault menciona que o poder é relacional e se dá em forma de<br />

rede. De acor<strong>do</strong> com Fonseca a vigilância, por não usar a força física,<br />

leva o próprio indivíduo a aplicar sobre si o que tiver que ser aplica<strong>do</strong>.<br />

“Assim, o louco se força à calma, o operário ao trabalho, o aluno à<br />

aplicação, o criminoso à retidão e comportamento” (FONSECA, 2003, p.<br />

57).<br />

A sanção normaliza<strong>do</strong>ra está essencialmente vinculada à<br />

vigilância e pode ser compreendida “como um conjunto de<br />

procedimentos punitivos relaciona<strong>do</strong>s a uma infinidade de pequenas<br />

atitudes e comportamentos, que escapam ao controle <strong>do</strong>s grandes<br />

sistemas de punição” (Id.). Dessa forma, “permite conhecer os menores<br />

atos, as menores condutas e os comportamentos mais sutis que<br />

ocorrem em qualquer lugar de aplicação da tecnologia disciplinar” (Id.).<br />

Em outras palavras: a sanção normaliza<strong>do</strong>ra atua sobre as atitudes e<br />

comportamentos <strong>do</strong>s indivíduos que normalmente escapam aos olhos<br />

das leis, tais como os atrasos, as desatenções, os gestos considera<strong>do</strong>s


126<br />

indecentes, as interrupções de tarefas, as negligencias, a falta de zelo<br />

etc.<br />

Mas como esse instrumento <strong>do</strong> poder disciplinar funciona<br />

Segun<strong>do</strong> Foucault (1977, p. 163) a penalidade perpétua da sanção<br />

normaliza<strong>do</strong>ra “atravessa to<strong>do</strong>s os pontos e controla to<strong>do</strong>s os instantes<br />

das instituições disciplinares” – escolas, presídios, hospitais, etc. –,<br />

comparan<strong>do</strong>, diferencian<strong>do</strong>, hierarquizan<strong>do</strong>, homogeneizan<strong>do</strong>,<br />

excluin<strong>do</strong>. “Em uma palavra, ela normaliza”. Portanto, os<br />

comportamentos e atitudes são baliza<strong>do</strong>s pela norma institucional e<br />

quem não a segue é puni<strong>do</strong>, não como uma demonstração de força de<br />

um poder ou de uma legislação infringida, mas como um exercício que<br />

visa redirecionar o indivíduo à norma vigente. A sanção normaliza<strong>do</strong>ra<br />

não faz com que to<strong>do</strong>s sejam iguais, mas sim que to<strong>do</strong>s se pareçam, ao<br />

re<strong>do</strong>r de um padrão de normalidade.<br />

O exame pode ser visto como a combinação <strong>do</strong>s processos de<br />

vigilância com os de sanção normaliza<strong>do</strong>ra. O exame, em síntese,<br />

constitui o indivíduo como um objeto de análise para uma posterior<br />

comparação. Trata-se de um controle normalizante mediante uma<br />

vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Foucault destaca<br />

três procedimentos vincula<strong>do</strong>s ao exame: a invisibilidade no exercício<br />

<strong>do</strong> poder; a produção de um arquivo <strong>do</strong> indivíduo e a transformação de<br />

cada indivíduo em um caso.<br />

No poder disciplinar, as relações de poder devem permanecer<br />

ocultas, porém, sem deixar de atuar fortemente sobre o indivíduo. As<br />

relações de poder, no exame, ao mesmo tempo que se tornam<br />

invisíveis, também forçam a visibilidade daqueles que submete à sua<br />

ação no intuito de diferenciar e sancionar suas punições. É o olhar<br />

atento, hierarquiza<strong>do</strong> e permanente <strong>do</strong> poder disciplinar sobre os<br />

indivíduos que leva “à sujeição <strong>do</strong>s que são percebi<strong>do</strong>s como objetos e<br />

à objetivação <strong>do</strong>s que se sujeitam” (FOUCAULT, 1977, p. 165).


127<br />

O exame também produz um arquivo, cujas fontes são oriundas<br />

<strong>do</strong>s indivíduos sobre os quais atua. Dessa forma, a individualidade de<br />

cada sujeito, se assim pudesse ser chama<strong>do</strong>, é registrada da forma mais<br />

detalhada possível, a tal ponto que o indivíduo se sente vigia<strong>do</strong>. A idéia<br />

é registrar os atos mais sutis e transformar o registro em <strong>do</strong>cumento<br />

que possa ser usa<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> necessário.<br />

Dessa forma, pelo exame, a disciplina consegue constituir<br />

o indivíduo enquanto objeto <strong>do</strong>cumenta<strong>do</strong>, poden<strong>do</strong> ser<br />

descrito e analisa<strong>do</strong> na sua própria individualidade. O<br />

registro <strong>do</strong> exame permite manter a singularidade que<br />

aparece em cada individualidade, com seus desvios, seus<br />

traços particulares, suas aptidões e capacidades. Tal<br />

procedimento permite ao mecanismo disciplinar uma<br />

utilização praticamente personalizada de cada indivíduo<br />

[...] (FONSECA, 2003, p. 62).<br />

E, por último, o exame, em função <strong>do</strong>s arquivamentos, transforma<br />

cada indivíduo em um caso, pois, ao mesmo tempo que passa a ser<br />

“descrito, mensura<strong>do</strong>, medi<strong>do</strong>, compara<strong>do</strong> a outros” em sua própria<br />

individualidade, “é também o indivíduo que tem que ser treina<strong>do</strong> ou<br />

retreina<strong>do</strong>, tem de ser classifica<strong>do</strong>, normaliza<strong>do</strong>, excluí<strong>do</strong>, etc.”<br />

(FOUCAULT, 1977, p. 170). Dessa forma, a individualidade passa a ser<br />

um objeto de descrição e <strong>do</strong>cumentação e, ao receber esse tratamento,<br />

pode ser controlada e <strong>do</strong>minada a partir de um processo constante de<br />

objetivação e sujeição. A individualidade, ao ser descrita, mensurada,<br />

medida e comparada a outras individualidades, isto é, <strong>do</strong>cumentada,<br />

permite a vigilância individualizada.<br />

Porém, ao espraiar-se por to<strong>do</strong> o teci<strong>do</strong> social, o poder disciplinar<br />

passa a ser complementa<strong>do</strong> pelo biopoder. Nas palavras de Rabinow<br />

(1999, p. 41): “quan<strong>do</strong> o fomento da vida, o crescimento e o cuida<strong>do</strong> da<br />

população tornam-se uma preocupação central <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, articula<strong>do</strong>s<br />

na arte de governar, instala-se um novo regime de poder” que não<br />

exerce o seu poder sobre os corpos <strong>do</strong>s indivíduos, mas sobre os<br />

processos que se referem à própria vida a partir de um novo tipo de<br />

corpo: a população. O biopoder se faz sentir sempre em processos


128<br />

coletivos, processos esses que fazem parte da vida. Por isso, o objeto <strong>do</strong><br />

biopoder é a vida, porém uma vida que seja governável, na qual o poder<br />

possa agir não apenas sobre o corpo, mas também na própria alma <strong>do</strong><br />

ser humano. Para Foucault (1977, p. 31) “Esta alma real e incorpórea<br />

não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os<br />

efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a<br />

engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber<br />

possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder”.<br />

O biopoder, ao agir coletivamente sobre a vida das pessoas, passa<br />

a estabelecer uma política que se vale de medições, estatísticas e<br />

previsões para justificar um conjunto de medidas regulatórias que visam<br />

resolver, em tese, problemas que possam colocar em risco a segurança<br />

da população. Um bom exemplo são os mecanismos de previdência,<br />

que sinalizam uma preocupação com a vida: regulamenta-se para<br />

assegurar e garantir a vida, para prevenir e evitar a morte, mas<br />

regulamenta-se para controlar. A intenção é ter uma população dócil,<br />

saudável e lucrativa para o sistema <strong>do</strong>minante. Por isso, o Esta<strong>do</strong> e<br />

instituições particulares se unem para criar programas de saúde<br />

pública, caixas de auxílio e seguros.<br />

No campo <strong>do</strong> saber produzi<strong>do</strong> pelo entrecruzamento <strong>do</strong> poder<br />

disciplinar e <strong>do</strong> biopoder há um elemento comum que possibilita a<br />

manutenção <strong>do</strong> equilíbrio entre a ordem disciplinar <strong>do</strong> corpo e a ordem<br />

aleatória da população. Esse elemento comum é a norma, “que pode<br />

tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma<br />

população que se quer regulamentar” (FOUCAULT, 1999, p. 302). A<br />

norma da disciplina e a norma da regulamentação permitem o<br />

surgimento daquilo que Foucault chama de sociedade da normalização.<br />

Uma sociedade regida por uma norma que transita entre o indivíduo e a<br />

população, o corpo e a vida, a individualização e a massificação, a<br />

disciplina e a regulamentação. A sociedade, por esse viés, passou a ser<br />

regida por uma norma ambivalente e o poder, mediante esse olhar,<br />

“tomou posse da vida” e cobriu “toda a superfície que se estende <strong>do</strong>


129<br />

orgânico ao biológico, <strong>do</strong> corpo à população, mediante o jogo duplo das<br />

tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de<br />

regulamentação, de outra (Id.).<br />

O pensamento de Foucault evidencia a complexidade da atuação<br />

<strong>do</strong>s intelectuais, principalmente por não estarem fora <strong>do</strong> “sistema de<br />

poder”, um sistema que estabelece a verdade mediante a norma, e<br />

também porque a norma à qual Foucault se refere é ambivalente,<br />

coexistin<strong>do</strong> no indivíduo e na população, no corpo e na vida, na<br />

individualização e massificação, na disciplina e na regulamentação.<br />

3. ARTICULAÇÃO DAS D<strong>IF</strong>ERENÇAS: UMA ESTRATÉGIA DO<br />

INTELECTUAL AMADOR<br />

A figura <strong>do</strong> intelectual, tal como a criada pelo intelectual<br />

engaja<strong>do</strong>, entrou em declínio nas últimas décadas <strong>do</strong> século XX, mas<br />

algumas de suas funções continuam a ser reclamadas, como vimos<br />

anteriormente, mesmo que as relações sociais e as formas de<br />

organização política tenham-se modifica<strong>do</strong> abruptamente. Nos dias de<br />

hoje, são poucas as pessoas que reivindicam suas intervenções como<br />

intelectuais engaja<strong>do</strong>s, talvez pela visibilidade das grandes mobilizações<br />

das últimas décadas, que a<strong>do</strong>taram outras estratégias políticas para<br />

evidenciar outras formas de opressão que não aquelas vinculadas à luta<br />

de classes. Nesse caso, refiro-me aos movimentos de resistência<br />

vincula<strong>do</strong>s às mulheres, aos negros, aos sur<strong>do</strong>s, aos indígenas,<br />

movimentos que vieram das margens, das periferias e passaram a<br />

reivindicar o valor da diferença no estabelecimento de políticas que não<br />

percebam apenas as questões econômicas e sociais, mas também as<br />

questões de gênero, raça, língua e cultura.<br />

Para tratar <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> intelectual que navega por lugares<br />

incertos, trago alguns enuncia<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s que ressaltam<br />

a importância <strong>do</strong> entrelaçamento entre os diferentes movimentos


130<br />

sociais que têm a política da diferença como ponto articula<strong>do</strong>r de suas<br />

lutas.<br />

FRAGMENTOS<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: Quan<strong>do</strong> se conhece a luta <strong>do</strong>s negros, <strong>do</strong>s<br />

indígenas, percebe-se que os movimentos sur<strong>do</strong>s acabam<br />

ten<strong>do</strong> uma certa proximidade com essas lutas. Não é uma<br />

cópia, mas tem proximidades. Algumas diferenças desses<br />

grupos também fazem parte de nossas lutas. Por exemplo, os<br />

movimentos negros, os movimentos indígenas lutam por sua<br />

diferença cultural. Os indígenas lutam por sua diferença<br />

lingüística. Os movimentos sur<strong>do</strong>s lutam por suas diferenças<br />

culturais e lingüísticas. Eu percebo que as diferenças <strong>do</strong>s<br />

outros grupos acabam se misturan<strong>do</strong> às nossas causas. Essas<br />

diferenças que nos aproximam acabam contribuin<strong>do</strong> em uma<br />

enunciação de cultura que tem como sustentação a diferença.<br />

Além disso, esses grupos também foram oprimi<strong>do</strong>s por outros<br />

coloniza<strong>do</strong>res em outras épocas, talvez este seja outro ponto<br />

que nos aproxima.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: Eu lembro que já tinha comenta<strong>do</strong> na conversa<br />

de quarta-feira que a sociedade ainda nos vê com deficientes,<br />

como um grupo subalterno. Por isso, é importante que nós,<br />

como sur<strong>do</strong>s, nos entrelacemos a esses movimentos para<br />

compreendermos as suas estratégias de lutas. Por sofrerem o<br />

processo de colonização e se colocarem a partir de suas<br />

diferenças, talvez a gente consiga se aproximar cada vez mais<br />

desses grupos, mas ao mesmo tempo se afastan<strong>do</strong> para<br />

percebermos o nosso valor, a nossa importância e as nossas<br />

diferenças para que possamos desconstruir, por exemplo, o<br />

conceito de deficiência que ainda nos aprisiona.<br />

Em seu trabalho sobre “Representações <strong>do</strong> intelectual”, Said<br />

(2005) nos brinda com <strong>do</strong>is significa<strong>do</strong>s de intelectual: o profissional e o<br />

ama<strong>do</strong>r. Segun<strong>do</strong> ele, o maior problema <strong>do</strong>s intelectuais nos dias de<br />

hoje não é a academia, os subúrbios, o comercialismo <strong>do</strong>s jornais e<br />

editoras, mas sim uma atitude que ele denomina de profissionalismo.<br />

Por profissionalismo se entende aquele trabalho que o intelectual<br />

desenvolve para ganhar a vida, ten<strong>do</strong> o cuida<strong>do</strong> de “não sair <strong>do</strong>s<br />

paradigmas ou limites aceitos, tornan<strong>do</strong>-se, assim, comercializável e,


131<br />

acima de tu<strong>do</strong>, apresentável e, portanto, não controverso, apolítico e<br />

objetivo” (Ibid., p. 78).<br />

Para ser um intelectual profissional há a necessidade de se tornar<br />

um expertise em uma determinada área de conhecimento. Isto é, para<br />

ser uma especialista, o intelectual profissional tem que ser credencia<strong>do</strong><br />

por autoridades competentes, que “ensinam a falar a linguagem<br />

correta, a citar as autoridades certas, a sujeitar-se ao território correto”<br />

(Ibid., p. 81 e 82). Ao fazer essa ironia, o autor mostra que outros<br />

profissionais podem conhecer profundamente uma área de<br />

conhecimento, sem serem especialistas. Para tanto, traz o exemplo de<br />

Noam Chomsky que, apesar de ser um linguista mundialmente<br />

reconheci<strong>do</strong>, conta que tem si<strong>do</strong> critica<strong>do</strong> severamente quan<strong>do</strong> discute<br />

a política externa <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s sob um ponto de vista crítico. Os<br />

cientistas políticos se utilizam de estratégias burocráticas para impedilo<br />

de falar, argumentan<strong>do</strong> que ele não é um especialista em política<br />

externa, mesmo que sua leitura sobre essa temática seja irrefutável.<br />

Porém, quan<strong>do</strong> é convida<strong>do</strong> para falar de sua teoria, inclusive para<br />

matemáticos, geralmente é “ouvi<strong>do</strong> com interesse respeitoso, apesar de<br />

seu relativo desconhecimento <strong>do</strong> jargão matemático” (Ibid., p. 84).<br />

Para o intelectual manter sua autonomia política, talvez um<br />

caminho possível seja o de agir como intelectual ama<strong>do</strong>r e não<br />

profissional. Mas o que seria um intelectual ama<strong>do</strong>r Para Said (2005), é<br />

um agente que navega por lugares incertos, ten<strong>do</strong> por opção os riscos e<br />

não as supostas certezas <strong>do</strong>s intelectuais profissionais. O intelectual<br />

ama<strong>do</strong>r é movi<strong>do</strong> por idéias e causas que escolhe e nas quais, portanto,<br />

acredita. Insere-se no debate político, não se limitan<strong>do</strong> à sua atividade<br />

profissional só porque está autoriza<strong>do</strong> institucionalmente para falar.<br />

“Falo e escrevo sobre assuntos mais amplos porque, como ama<strong>do</strong>r, sou<br />

instiga<strong>do</strong> por compromissos que vão muito além da minha escrita e<br />

carreira profissional” (Ibid., p. 91). Porém, o aspecto mais difícil, para o<br />

intelectual ama<strong>do</strong>r, segun<strong>do</strong> o autor, “é representar o que se professa<br />

por meio <strong>do</strong> trabalho e de intervenções, sem se enrijecer numa


132<br />

instituição ou tornar-se uma espécie de autômato agin<strong>do</strong> a man<strong>do</strong> de<br />

um sistema ou méto<strong>do</strong>” (Ibid., p. 121).<br />

Said, ao navegar por lugares incertos longe de sua terra natal,<br />

optou em assumir riscos por suas escolhas, fazen<strong>do</strong> o que falava em<br />

seu próprio trabalho e em suas intervenções públicas. Porém, nessa<br />

seção, trago intelectuais ama<strong>do</strong>res que vivem no “exílio” em seu<br />

próprio país, articulan<strong>do</strong> espaços de resistência a partir das margens.<br />

Dentro <strong>do</strong> movimento afro-americano, Bell Hooks, intelectual<br />

negra estadunidense, tem privilegia<strong>do</strong> em suas produções acadêmicas<br />

as estratégias de lutas de grupos negros que vivem nas margens,<br />

demonstran<strong>do</strong> a importância da política da diferença na luta pelo ato de<br />

significar e de criar territórios de significação, isto é, criar outros<br />

espaços de resistências, diferentes daqueles que geram estereotipias<br />

em relação ao negro. Contu<strong>do</strong>, sua produção intelectual tem si<strong>do</strong><br />

marginalizada pelas linhas <strong>do</strong>minantes da vida política, intelectual e<br />

cotidiana nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. E ela escolheu envolver e desenvolver<br />

essa marginalidade como um espaço de abertura política no qual,<br />

segun<strong>do</strong> ela, é possível construir comunidades de lutas, de resistência e<br />

de renovação que atravessam fronteiras e realçam o poder<br />

emancipatório da negritude em tempos pós-coloniais. Segun<strong>do</strong> Bell<br />

Hooks (apud SOJA, 1996, p. 86):<br />

Para muitos de nós, aquele movimento requer ir contra as<br />

bordas opressivas instauradas pela <strong>do</strong>minação da raça,<br />

sexo e classe. Inicialmente, então, é um gesto político<br />

desafiante. Para muitos, este espaço de abertura radical é<br />

uma margem – uma borda profunda. É difícil localizar<br />

alguém lá, mas necessário. Não é um lugar “seguro”.<br />

Alguém está sempre em risco. Alguém precisa de uma<br />

comunidade de resistência.<br />

Para Bell Hooks essa política tem o papel de descolonizar o<br />

intelectual afro-americano, possibilitan<strong>do</strong> a sua inserção em espaços de<br />

participação e de ação social tanto no âmbito mais local – a política <strong>do</strong><br />

racismo – como no âmbito global – a política da diferença. Segun<strong>do</strong> Soja


133<br />

(1996, p. 86), para Hooks o discurso colonial, com sua lógica binária,<br />

persiste na separação entre o local e o global, isto é, na separação entre<br />

a “política <strong>do</strong> racismo” e a “política da diferença”, inviabilizan<strong>do</strong> “um<br />

campo fértil para a construção [...] de laços que promoveriam o<br />

reconhecimento de comprometimentos comuns, e que servem como<br />

base para a solidariedade e a coalizão” de forças.<br />

Os movimentos sur<strong>do</strong>s, como ressaltou a Narra<strong>do</strong>ra 1, também<br />

vêm construin<strong>do</strong> suas lutas a partir de suas diferenças e se<br />

entrelaçan<strong>do</strong> com outros grupos sociais. Segun<strong>do</strong> a Narra<strong>do</strong>ra:<br />

“Quan<strong>do</strong> se conhece a luta <strong>do</strong>s negros, <strong>do</strong>s indígenas percebe-se que<br />

os movimentos sur<strong>do</strong>s acabam ten<strong>do</strong> uma certa proximidade”; e, de<br />

acor<strong>do</strong> com a Narra<strong>do</strong>ra 6, “é importante que nós, como sur<strong>do</strong>s, nos<br />

entrelacemos a esses movimentos para compreendermos suas<br />

estratégias de luta”.<br />

Ao longo de sua história, os movimentos sur<strong>do</strong>s vêm contribuin<strong>do</strong><br />

para a formação de um conjunto de intelectuais que, além de romper<br />

com as estereotipias em relação ao sur<strong>do</strong>, também articulam a<br />

diferença surda à política da diferença. Dentre esses intelectuais, no<br />

momento, faço um destaque a Perlin (2003), devi<strong>do</strong> principalmente ao<br />

seu enfoque oposicional aos discursos colonialistas. Em seus escritos,<br />

Perlin movimenta-se, como sugere Bhabha (2005, p. 44), por caminhos<br />

de enfrentamentos, cujas “formas de rebelião e mobilização popular são<br />

freqüentemente mais subversivas quan<strong>do</strong> criadas através de práticas<br />

culturais oposicionais” (grifo no original).<br />

Em sua tese de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, 62 Perlin (2003) apresenta-se como<br />

mulher, surda e híbrida que molda a sua alteridade, identidade e<br />

diferença. Mesmo nascen<strong>do</strong> ouvinte, em tenra idade passou a trilhar por<br />

outras formas de significação até chegar ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s signos visuais.<br />

“Foi um encontro de significações profundas, um espaço maravilhoso<br />

62<br />

Em sua tese de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, Perlin aborda o tema “O ser e o estar sen<strong>do</strong> sur<strong>do</strong>” a<br />

partir das categorias de alteridade, diferença e identidade. No capitulo “Meu<br />

compromisso com a teoria”, a autora apresenta as diferentes linhas teóricas em que<br />

navega. Neste momento enfatizo apenas a sua leitura pós-colonial.


134<br />

onde a gente gostava de estar, porém condena<strong>do</strong> enfaticamente<br />

naquela temporalidade na qual só existiam olhos para o mun<strong>do</strong><br />

ouvinte” (Ibid., p. 19). A forma de ver o mun<strong>do</strong> não centra<strong>do</strong> no som,<br />

mas em signos visuais, vem orientan<strong>do</strong> os seus escritos em relação aos<br />

discursos colonialistas que procuram fixar o sur<strong>do</strong> em um mun<strong>do</strong> que<br />

não é o seu, isto é, o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> som. Para tanto, a autora vem a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong><br />

como estratégia discursiva a “diferença cultural sentida e vivida” pelos<br />

sur<strong>do</strong>s, levan<strong>do</strong>-a a definir a diferença surda como uma estratégia de<br />

sobrevivência. Em suas palavras (Ibid., p. 26):<br />

A experiência da diferença cultural sentida e vivida por<br />

aqueles que têm a coragem de ser sur<strong>do</strong>s é mais que<br />

dinâmica. [...] O ato de definição de nossa cultura é um<br />

espaço contraditório ao ouvinte. A luta pelas diferenças<br />

não pode ser explicada por simples oposições binárias, ela<br />

é uma estratégia de sobrevivência. A cultura surda existe<br />

enquanto estratégia de contra <strong>do</strong>minação. As estratégias<br />

contêm posições de diferença, de identidade, de cultura,<br />

de política que se negocia em diferentes tempos.<br />

Diferenças que unem enquanto posições de luta pela<br />

identificação cultural.<br />

Ao estabelecer a diferença surda como estratégia de<br />

sobrevivência, Perlin se afasta <strong>do</strong>s discursos estruturalistas que vêem a<br />

linguagem como um conjunto de estruturas formais e distantes das<br />

interações sociais, e aproxima-se <strong>do</strong>s discursos pós-estruturalistas e<br />

pós-coloniais que consideram a linguagem como ação social construída<br />

na relação com o outro. Para ela, a linguagem sinalizada, está<br />

diretamente imersa em redes permeadas por relações culturais, isto é,<br />

“abraço a idéia de cultura surda como sistemas partilha<strong>do</strong>s de<br />

significações constituí<strong>do</strong>s por sujeitos que utilizam experiência visual”<br />

(Ibid., p. 27). Por compreender a linguagem como forma de ação social,<br />

cujos significa<strong>do</strong>s não se fixam, muito pelo contrário, emergem a to<strong>do</strong> o<br />

momento em espaços de negociação, Perlin (2003) evidencia em seu<br />

texto que suas interpretações sobre “o ser e o estar sen<strong>do</strong> sur<strong>do</strong>s” são<br />

transitórias, efêmeras e contingenciais.


135<br />

Quan<strong>do</strong> apresenta seu compromisso com a teoria, Perlin (2003, p.<br />

35) nos diz que o pós-colonialismo representa um espaço no qual o<br />

sur<strong>do</strong> “faz parte de uma redescrição da contemporaneidade cultural”,<br />

cujas análises sobre a construção das alteridades surdas devem-se<br />

concentrar nas relações de poder frente às práticas coloniza<strong>do</strong>ras que<br />

procuram construir uma máscara para o sur<strong>do</strong> semelhante à <strong>do</strong> ouvinte.<br />

Dito de outra forma: para Perlin, o colonialismo tem leva<strong>do</strong> o sur<strong>do</strong> a<br />

narrar-se como ouvinte mediante práticas e teorias de controle.<br />

O sur<strong>do</strong>, como sobrevivente cultural, constrói-se “a partir de um<br />

deslocamento histórico-nostálgico fragmenta<strong>do</strong> na diáspora <strong>do</strong> exílio,<br />

em atividades secretas, na intimidade intersticial. Uma intimidade que<br />

questiona, mexe com as esferas de experiência social, mas que habita o<br />

interior, a quietude <strong>do</strong> produzir” (Ibid., p. 15). Ao mesmo tempo que<br />

a<strong>do</strong>ta a diferença surda como estratégia de sobrevivência, Perlin<br />

também apresenta os sur<strong>do</strong>s como sujeitos diaspóricos. Essa estratégia<br />

discursiva coloca os sur<strong>do</strong>s em uma posição diferente daquelas<br />

narradas pelas teorias de controle, isto é, os sur<strong>do</strong>s passam a ser<br />

narra<strong>do</strong>s como sujeitos pós-coloniais. Ao assumir essa outra posição,<br />

Perlin, além de desafiar a norma <strong>do</strong> poder instituí<strong>do</strong>, passa a<br />

estabelecer outras relações entre sur<strong>do</strong>s e ouvintes que não aquelas<br />

próprias <strong>do</strong> discurso colonial.<br />

O olhar de Perlin em relação ao diaspórico, atravessa<strong>do</strong> pelo viés<br />

da política da diferença, é fundante no papel <strong>do</strong> intelectual,<br />

principalmente por estabelecer relações intersticiais, cujas forças<br />

políticas são atravessadas pela lógica cultural em que o diaspórico<br />

passa a ser visto como processo de significação que nunca se completa.<br />

A diáspora tem permiti<strong>do</strong> aos intelectuais que vêm da margem<br />

desestabilizar a idéia de um suposto centro de conhecimento de onde<br />

emana a verdade. Não é possível se colocar em espaços de resistência<br />

como se existisse uma inscrição única, uma essência. To<strong>do</strong> e qualquer<br />

espaço é resulta<strong>do</strong> das interações de diferentes grupos culturais


136<br />

situa<strong>do</strong>s em diferentes espaços e tempos com interesses distintos.<br />

Portanto, as narrativas coloniza<strong>do</strong>ras que tentam essencializar o outro<br />

(o coloniza<strong>do</strong>) são permanentemente ressignificadas.<br />

Para os intelectuais diaspóricos que vivem em seu próprio país, a<br />

tradição é um repertório de significa<strong>do</strong>s marca<strong>do</strong> por rupturas e<br />

mutações; ela é constantemente reinventada e, nessa reinvenção, o<br />

passa<strong>do</strong> é outorga<strong>do</strong> apenas parcialmente, haven<strong>do</strong> a introdução de<br />

outras temporalidades. “O tempo pós-colonial questiona as tradições<br />

teleológicas de passa<strong>do</strong> e presente”, porque o ato de trabalhar em<br />

espaços intersticiais “exige um encontro com ‘o novo’ que não seja um<br />

continuum de passa<strong>do</strong> e presente. Ele cria uma idéia de novo como ato<br />

de insurgente de tradução cultural” (BHABHA, 2005, p. 27 – grifo no<br />

original). Para Bhabha, o ato de traduzir é um ato temporal que conecta<br />

passa<strong>do</strong>, presente e futuro. 63 Assim, há o reconhecimento de que o<br />

passa<strong>do</strong> está no contemporâneo, mas, no entanto, é reinscrito com<br />

vistas a “tocar o futuro em seu la<strong>do</strong> de cá” (Ibid., p. 27), pois a questão<br />

não é “o que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos<br />

das tradições” (HALL, 2003, p. 44). Com isso, o intelectual diaspórico<br />

potencializa as possibilidades de intervenção no contemporâneo, isto é,<br />

no presente, porque é no “aqui” que se toca o futuro.<br />

Strobel (2008), como intelectual surda, faz em sua tese de<br />

<strong>do</strong>utora<strong>do</strong> um exercício de reinscrição das narrativas surdas no<br />

contexto educacional. Para tanto, traz vestígios culturais de histórias,<br />

vivências, experiências não registradas nas narrativas colonialistas. A<br />

sua tese sobre as histórias surdas amordaçadas, silenciadas e apagadas<br />

63<br />

Segun<strong>do</strong> Tagata (2007, p. 155), o conceito de tempo para Bhabha é diferente da<br />

concepção linear. Bhabha se baseia em uma “noção de tempo cíclico, em que<br />

passa<strong>do</strong>, presente e futuro se sucedem como se estivessem numa espiral onde o<br />

passa<strong>do</strong> se encontra “dying to be reborn” (um trocadilho de difícil tradução). Se o<br />

passa<strong>do</strong> nunca está totalmente acaba<strong>do</strong>, mas se mantém sempre aberto a uma<br />

atualização ou reinterpretação por parte <strong>do</strong> agente, as próprias noções de tradição e<br />

de história sobre as quais a supremacia cultural <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r se assenta ficam<br />

comprometidas, pois o coloniza<strong>do</strong> pudesse valer de suas experiências pessoais para<br />

reescrever a história <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r, nela inserin<strong>do</strong> sua própria história, vivida a partir<br />

de seu ponto de vista contingente. No momento em que isso acontece, a história e o<br />

discurso <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r se modificam à medida que são traduzidas pelo coloniza<strong>do</strong><br />

[...]”.


137<br />

incide sobre o presente de forma singular. Ao narrar histórias<br />

silenciadas e marcadas pela violência colonial, a autora descortina “um<br />

conjunto de conhecimentos que foram desqualifica<strong>do</strong>s como<br />

inadequa<strong>do</strong>s ou insuficientemente elabora<strong>do</strong>s” e coloca<strong>do</strong>s “em uma<br />

posição inferior na hierarquia <strong>do</strong>s conhecimentos” (FOUCAULT, 1980, p.<br />

73). Strobel (2008) engendra uma análise em que o sur<strong>do</strong> não é um<br />

objeto de conhecimento, um informante nativo de suas histórias, mas<br />

um sujeito que conta histórias alternativas, histórias negadas pela<br />

historiografia oficial.<br />

A intencionalidade de Strobel não foi a de definir espaços mínimos<br />

de análise, mas sim de analisar a sobrevivência das forças culturais<br />

surdas amordaçadas ao longo da história da humanidade. Como disse<br />

Said (2005, p. 17), referin<strong>do</strong>-se a Foucault, é necessário “rastrear fontes<br />

alternativas, exumar <strong>do</strong>cumentos enterra<strong>do</strong>s, reviver histórias<br />

esquecidas (ou aban<strong>do</strong>nadas)”. Ao entrelaçar as histórias surdas com as<br />

histórias globais, Strobel potencializa os discursos que vêm das<br />

margens, subverten<strong>do</strong> a lógica de epistemologias que situam os sur<strong>do</strong>s<br />

em posições hierarquicamente inferiores aos ouvintes.<br />

Essa forma de escrita que entrelaça as histórias locais às globais<br />

também articula as diferenças surdas à política da diferença. É no<br />

entrelaçamento dessas políticas que transitam entre o local e o global<br />

que o intelectual sur<strong>do</strong> vem construin<strong>do</strong> suas narrativas, talvez por<br />

saber que “as culturas estão entrelaçadas demais, seus conteú<strong>do</strong>s e<br />

histórias demasiadamente interdependentes e híbri<strong>do</strong>s para que se faça<br />

uma separação cirúrgica em oposições vastas e sobretu<strong>do</strong> ideológicas<br />

como oriente e ocidente” (Ibid., p. 11) – ou como sur<strong>do</strong>s e ouvintes.<br />

Ao assumirem a condição de sujeitos que falam da margem e<br />

também como intelectuais diaspóricas, Perlin e Strobel aproximam-se<br />

<strong>do</strong> pensamento de Said (2003, p. 35), quan<strong>do</strong> este diz que a condição<br />

de sujeito marginal produz um modelo de intelectual inconforma<strong>do</strong> com<br />

o presente, mas alinha<strong>do</strong> aos fracos e aos que não têm representação.


138


139<br />

CAPITULO IV<br />

SABERES LINGUÍSTICOS SURDOS:<br />

UMA FORMA DE RESISTÊNCIA PÓS-COLONIAL<br />

Francisco Lima Junior, nasceu em 1928 em Florianópolis e estu<strong>do</strong>u no<br />

Imperial Instituto de Sur<strong>do</strong>s Mu<strong>do</strong>s no Rio de Janeiro e no Instituto<br />

Paulista de Sur<strong>do</strong>s, no perío<strong>do</strong> de 1937 a 1946. Ao retornar para Santa<br />

Catarina, em 1955, criou, com outros sur<strong>do</strong>s da cidade de Florianópolis,<br />

o Círculo de Sur<strong>do</strong>s Mu<strong>do</strong>s de Santa Catarina e, posteriormente, em<br />

1959, passou a ser o primeiro educa<strong>do</strong>r sur<strong>do</strong> <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>.<br />

Se hibridismo é heresia, blasfemar é sonhar. Sonhar não com o<br />

passa<strong>do</strong> ou o presente, e nem com o presente contínuo;<br />

não é o sonho nostálgico da tradição<br />

nem o sonho utópico <strong>do</strong> progresso moderno; é<br />

o sonho da tradução, como sur-vivre, como sobrevivência...<br />

Homi Bhabha


140<br />

1. LÍNGUA DE SINAIS E DIREITOS LINGUÍSTICOS<br />

Em um país plurilíngüe com uma política monolíngue 64 como o<br />

Brasil, em que a noção de cultura geralmente é vista como homogênea<br />

e a língua nacional como única; em que as línguas de grupos étnicos e<br />

de emigrantes são amordaçadas para garantir o discurso colonial de<br />

uma suposta pureza e unidade nacional, torna-se quase que impossível<br />

analisar as estratégias de sobrevivência linguística de grupos sociais<br />

que vivem “entre-lugares”, como é o caso <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s brasileiros.<br />

Mesmo sobre a égide <strong>do</strong> discurso pedagógico de nação que<br />

consoli<strong>do</strong>u a idéia de que o povo brasileiro só fala o português, começa<br />

a surgir, por parte de alguns intelectuais sur<strong>do</strong>s e seus “alia<strong>do</strong>s”, 65 um<br />

movimento, tanto no meio universitário como nos movimentos sur<strong>do</strong>s,<br />

em prol <strong>do</strong>s direitos linguísticos e culturais <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s. Quadros (2008)<br />

relata que esses direitos não estão sen<strong>do</strong> vistos apenas como direitos<br />

individuais que garantem a aquisição da linguagem por meio da língua<br />

de sinais, mas também como direito coletivo em que a língua de sinais<br />

ganha força e os des<strong>do</strong>bramentos das práticas lingüísticas<br />

passam a ser traduzi<strong>do</strong>s por meio das comunidades<br />

lingüísticas. Os sur<strong>do</strong>s brasileiros têm o direito à educação<br />

bilíngüe, enquanto grupo social e lingüístico, e não<br />

enquanto indivíduos. Assim, a língua de sinais ocupa outro<br />

espaço na sociedade – um espaço de grupo social e<br />

lingüístico, precisan<strong>do</strong> ser representa<strong>do</strong> nos diferentes<br />

espaços sociais independentemente de territórios –, mas<br />

atrelada às comunidades lingüísticas (QUADROS, 2008, p.<br />

69).<br />

A autora alerta para os direitos linguísticos sur<strong>do</strong>s que não se<br />

restringem apenas ao reconhecimento oficial da língua de sinais<br />

64<br />

Segun<strong>do</strong> Oliveira (2009, p. 2): “Das 1.078 línguas faladas no ano de 1500 ficamos<br />

com cerca de 170 no ano 2000, (somente 15% <strong>do</strong> total) e várias destas 170<br />

encontram-se já moribundas, faladas por populações diminutas e com poucas chances<br />

de resistir ao avanço da língua <strong>do</strong>minante”.<br />

65<br />

Dentre eles, destacam-se Quadros (1997); Skliar (1999); Souza (1998) e Fernandes<br />

(1990).


141<br />

brasileira. É uma luta política e cultural pelo direito sur<strong>do</strong> de significar<br />

em sua própria língua.<br />

A Declaração Universal <strong>do</strong>s Direitos Linguísticos traz esse debate<br />

quan<strong>do</strong> seu texto é elabora<strong>do</strong>, principalmente a partir das comunidades<br />

linguísticas dispersas e com baixa população. O objetivo principal <strong>do</strong>s<br />

direitos linguísticos, conti<strong>do</strong>s no <strong>do</strong>cumento cita<strong>do</strong>, é de reduzir o<br />

processo de glotocídio (assassinatos das línguas) mediante um<br />

planejamento linguístico que deve: considerar o espaço territorial<br />

dessas línguas, que pode ser compreendi<strong>do</strong> tanto como uma área<br />

geográfica onde uma determinada comunidade vive quanto um espaço<br />

social e funcional indispensável ao pleno desenvolvimento da língua;<br />

identificar a comunidade como povo e o uso de uma língua comum<br />

como meio de comunicação natural e de coesão cultural entre os seus<br />

membros. Ao fazer essas considerações, a Declaração aproxima-se da<br />

idéia de nação apresentada nas narrativas <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s,<br />

principalmente quan<strong>do</strong> considera a existência de comunidades<br />

linguísticas como povos, mesmo que vivam de forma dispersa e sem<br />

uma etnia única, como é caso <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s.<br />

A Declaração também se pauta no principio de que todas as<br />

comunidades têm os mesmos direitos linguísticos, independentemente<br />

de seu estatuto jurídico, e que to<strong>do</strong> e qualquer membro de uma<br />

comunidade linguística tem o direito inalienável de participar de sua<br />

comunidade e de aprender em sua própria língua e cultura. Para<br />

alcançar esse objetivo, a Declaração estabelece: “Todas as<br />

comunidades lingüísticas têm o direito a decidir qual deve ser o grau de<br />

presença da sua língua [...] em to<strong>do</strong>s os níveis de ensino [...]”; “todas as<br />

comunidades lingüísticas tem o direito a desenvolverem-se plenamente<br />

no seu próprio <strong>do</strong>mínio cultural [...]”; “a língua e a cultura de cada<br />

comunidade lingüística devem ser objeto de estu<strong>do</strong> e de investigação a<br />

nível universitário [...]”; “Todas as comunidades lingüísticas têm direito<br />

a obter, através <strong>do</strong>s meios de comunicação, um conhecimento profun<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> seu patrimônio cultural [...], assim como o máximo de informação


142<br />

possível sobre qualquer outra cultura que os seus membros desejem<br />

conhecer”, e finalmente: “Qualquer membro de uma comunidade<br />

lingüística tem o direito de dispor na sua língua de to<strong>do</strong>s os meios<br />

necessários ao exercício da atividade profissional” (OLIVEIRA, 2003, p.<br />

23 a 25).<br />

A oficialização <strong>do</strong>s direitos linguísticos é uma tendência que se<br />

inicia mas não garante a consolidação quanto ao uso da língua de sinais<br />

brasileira nos diferentes espaços sociais que os sur<strong>do</strong>s frequentam. A<br />

Narra<strong>do</strong>ra 5 retrata essa questão de forma singular: “Eu tive uma<br />

experiência horrível na universidade [...].Quan<strong>do</strong> eu falei que queria<br />

fazer a prova de proficiência em português, a mulher me disse: você<br />

nasceu no Brasil Se você nasceu aqui, você tem que fazer em outra<br />

língua: inglês ou espanhol. Eu respondi: não, o português para mim é<br />

como se fosse uma segunda língua. Para mim a língua brasileira de<br />

sinais é a primeira língua. A mulher respondeu: como Isso é<br />

impossível”. Tal fato, exemplifica a naturalização da língua portuguesa<br />

no meio universitário como sen<strong>do</strong> a única língua <strong>do</strong> povo brasileiro. Os<br />

próprios intelectuais sur<strong>do</strong>s, nos fragmentos que seguem, evidenciam a<br />

complexidade <strong>do</strong> reconhecimento das línguas de sinais e que seus<br />

suposto status entre comunidades linguísticas ainda está em uma zona<br />

de negociação/conflitos entre os usuários das línguas orais-auditivas e<br />

viso-espaciais.<br />

FRAGMENTOS<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: A língua de sinais ainda não tem o mesmo<br />

status da língua portuguesa. Afinal de contas nós temos uma<br />

língua reconhecida oficialmente ou não Eu acho que nós<br />

temos que continuar na luta pelo empoderamento da língua<br />

de sinais. A nossa língua ainda não está consolidada em nosso<br />

país.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: O sentimento de pertencimento, eu acho que<br />

está muito vincula<strong>do</strong> à língua de sinais, que nos puxa para<br />

dentro <strong>do</strong>s movimentos sur<strong>do</strong>s. Eu me sinto bem quan<strong>do</strong>


143<br />

estou com os sur<strong>do</strong>s por causa da língua de sinais, porque ela<br />

me permite interagir pela visualidade.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 4: Os sur<strong>do</strong>s geralmente pensam em estratégias<br />

que possibilitam o reconhecimento da língua de sinais. Nós<br />

precisamos de argumentos fortes para convencer as outras<br />

pessoas.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 4: Quan<strong>do</strong> assumimos a FENEIDA a nossa primeira<br />

atitude foi a de tirar o “DA” da sigla e mudar o nome da nossa<br />

Federação para FENEIS (Federação Nacional de Educação e<br />

Integração de Sur<strong>do</strong>s).<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: Nós temos que cuidar para não perder essas<br />

conquistas. Se a gente não se articular, a gente pode perder<br />

esses espaços. São situações de enfretamentos que a gente<br />

tem que encarar.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: A língua de sinais, sem dúvida, é o ponto mais<br />

relevante <strong>do</strong> povo sur<strong>do</strong>. Se a família não tem a língua de<br />

sinais nos falta a comunicação. Parece que sem a língua de<br />

sinais a gente não tem liberdade. As pessoas que estão no<br />

mesmo nível de igualdade na língua de sinais se identificam,<br />

elas têm pontos em comum, parece que elas pensam numa<br />

mesma direção. Isso nos permite discutir quais são nossos<br />

direitos na educação, na saúde, no trabalho. O fato de<br />

estarmos no meio de pessoas que visualizam nos permite esse<br />

tipo de discussão. Mas não posso afirmar que to<strong>do</strong>s os sur<strong>do</strong>s<br />

pensam assim.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: A língua de sinais nos desperta para uma nova<br />

vida. Parece que quanto a gente entra em contato com a<br />

língua de sinais a gente nasce de novo. A língua de sinais é<br />

igual à água, ao ar. Se a língua de sinais não existisse, nós não<br />

teríamos vida, não teríamos água, não teríamos ar. Ela nos<br />

permite ser o que somos. Ela nos desperta para a vida. Ela é<br />

prova de que estamos vivos. A importância da língua de sinais<br />

em nossas vidas é intraduzível. Ela estabelece a dinâmica <strong>do</strong>s<br />

movimentos sociais sur<strong>do</strong>s, ela é o próprio orgulho sur<strong>do</strong>. A<br />

língua de sinais nos permite continuar viven<strong>do</strong> como sur<strong>do</strong>s. A<br />

língua de sinais não tem como se diluir e desaparecer, porque<br />

ela está em nós.<br />

Os intelectuais sur<strong>do</strong>s, mesmo saben<strong>do</strong> da oficialidade da língua<br />

de sinais brasileira 66 como língua das comunidades surdas, estão<br />

66<br />

A língua de sinais brasileira foi oficializada no país mediante a Lei nº 10.436, de 24<br />

de abril de 2002, e foi regulamentada pelo Decreto nº 5.626, de 22 dezembro de 2005.<br />

O Decreto garante juridicamente a educação bilíngüe para os sur<strong>do</strong>s brasileiros, ten<strong>do</strong><br />

a língua brasileira de sinais como a língua de instrução e a língua portuguesa como


144<br />

vigilantes quanto ao status dessa língua em nosso país. De acor<strong>do</strong> com<br />

a Narra<strong>do</strong>ra 1: “A língua de sinais ainda não tem o mesmo status da<br />

língua portuguesa”. Talvez por isso esse seja um <strong>do</strong>s motivos <strong>do</strong>s<br />

sur<strong>do</strong>s continuarem “na luta pelo empoderamento da língua de sinais”.<br />

Na mesma linha de raciocínio a Narra<strong>do</strong>ra 6 nos diz: “temos que<br />

cuidar para não perder essas conquistas. Se a gente não se articular, a<br />

gente pode perder esses espaços”. Entretanto, faz a seguinte<br />

observação: “São situações de enfrentamentos que a gente tem que<br />

encarar”. A Narra<strong>do</strong>ra 4 traz uma dessas formas de enfrentamento<br />

quan<strong>do</strong> menciona que ao assumirem “a FENEIDA, a nossa primeira<br />

atitude foi a de tirar o ‘DA’ da sigla e mudar o nome da nossa<br />

Federação para FENEIS (Federação Nacional Educação e Integração de<br />

Sur<strong>do</strong>s)”. 67<br />

segunda língua; a inclusão da disciplina de Libras em to<strong>do</strong>s os cursos de licenciatura e<br />

de fonoaudiologia; cursos de Libras para a comunidade escolar; a formação de<br />

profissionais para trabalhar com Libras; a criação de cursos: Letras Libras, Pedagogia<br />

Bilíngüe, Formação de Intérpretes de Libras e da Língua Portuguesa como segunda<br />

língua para sur<strong>do</strong>s.<br />

67 A Narra<strong>do</strong>ra 4 descreve essa fase <strong>do</strong>s movimento sur<strong>do</strong>s de forma bem detalhada<br />

durante o segun<strong>do</strong> encontro. Frente à relevância desse fato para os movimentos<br />

sociais sur<strong>do</strong>s, resolvi trazer fragmentos de sua narrativa para a tese. Segun<strong>do</strong> a<br />

Narra<strong>do</strong>ra: “Em 1981 eu recebi uma carta para participar [...] de um congresso em<br />

Pernambuco [...] chegan<strong>do</strong> lá percebi que havia vários grupos de cadeirantes, alguns<br />

de deficientes mentais, outros com Síndrome de Down, e [...] percebi a seriedade <strong>do</strong><br />

movimento. [...] Em relação aos sur<strong>do</strong>s eu notei que tinha as associações de João<br />

Pessoa, Pernambuco, Maranhão, São Paulo, [...] Paraná e Porto Alegre. [...] No<br />

Congresso tinha um grupo de sur<strong>do</strong>s que estava levantan<strong>do</strong> algumas questões e eu<br />

tinha outras oriundas da discussão na Associação Alvorada. Nós a<strong>do</strong>tamos a estratégia<br />

de nos dividirmos para participar <strong>do</strong>s diversos grupos temáticos. Por exemplo, um<br />

sur<strong>do</strong> foi para o grupo <strong>do</strong> lazer, outro para o grupo da educação, etc. No trabalho em<br />

grupo percebemos que as outras associações de deficientes visuais, cadeirantes, etc.<br />

falavam muito e tinham uma proposta sistematizada. [...] Quan<strong>do</strong> eu voltei ao Rio de<br />

Janeiro me senti instigada por tu<strong>do</strong> aquilo que tinha aconteci<strong>do</strong> em Recife e percebi a<br />

importância de termos uma associação nacional que representasse as nossas<br />

reivindicações. De 1981 a 1983 criamos um movimento chama<strong>do</strong> de “Comissão de<br />

Luta pela Defesa <strong>do</strong>s Direitos <strong>do</strong>s Sur<strong>do</strong>s”. [...] Porém, durante esse perío<strong>do</strong> de<br />

mobilização, as pessoas nos questionavam permanentemente: E daí, quem é o<br />

representante <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s E nós respondíamos: Ah! É a Associação Alvorada. E eles<br />

diziam: mas a Associação Alvorada é uma associação pequena no cenário nacional.<br />

Então, resolvemos articular um movimento em nível nacional. Durante a construção<br />

desse movimento eu conheci várias pessoas. Na viagem que fiz a Minas Gerais conheci<br />

o [...], que após algumas conversas resolvemos ir para São Paulo. Lá conhecemos o<br />

[...]. Nesse perío<strong>do</strong> passamos a conhecer a Federação Nacional de Educação e<br />

Integração de Deficientes Auditivos – FENEIDA, cuja diretoria era formada apenas por<br />

pessoas ouvintes. [...] as propostas dessa Instituição eram bem diferentes daquilo que<br />

os sur<strong>do</strong>s queriam. A FENEIDA já existia aproximadamente há 10 anos e não tinha<br />

feito nada pelos sur<strong>do</strong>s, muito pelo contrário, só tinha divulga<strong>do</strong> suas concepções


145<br />

Os sur<strong>do</strong>s, autorizan<strong>do</strong>-se como sujeitos ao narrarem sua própria<br />

história, passam a usar a língua de sinais brasileira nos diferentes<br />

espaços sociais – vem à luz uma língua que no passa<strong>do</strong> só era usada no<br />

campo da clandestinidade. 68 Ao realizarem esse deslocamento cultural e<br />

linguístico, os sur<strong>do</strong>s unificam sua organização política em torno <strong>do</strong><br />

reconhecimento da língua sinais. 69 Essa situação, mesmo depois de<br />

vinte e <strong>do</strong>is anos de fundação da FENEIS e sete anos de oficialização da<br />

língua de sinais brasileira, ainda é tensa e provoca debates quanto ao<br />

uso da língua de sinais, principalmente com o ingresso de sur<strong>do</strong>s nas<br />

universidades brasileiras 70 com a criação de Cursos de Licenciatura e<br />

Bacharela<strong>do</strong> em Libras e a formação de pesquisa<strong>do</strong>res sur<strong>do</strong>s.<br />

Os sur<strong>do</strong>s, nesse novo contexto, ao trazerem para o debate<br />

acadêmico a relevância da língua de sinais brasileira, ao mesmo tempo<br />

que evidenciam a fragilidade <strong>do</strong> ensino centra<strong>do</strong> apenas no ouvir e no<br />

falar 71 também a<strong>do</strong>tam estratégias para libertar-se das amarras da língua<br />

clínicas em relação ao sur<strong>do</strong>. [...] O próprio nome da FENEIDA já denuncia a concepção<br />

clínica quan<strong>do</strong> usa o “DA” – deficiente auditivo – no final da sigla. Essa concepção era<br />

a marca <strong>do</strong>s projetos que realizavam. A nossa intenção era assumir a direção da<br />

FENEIDA e construir um trabalho na perspectiva <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s e para os sur<strong>do</strong>s, mas a<br />

nossa participação na diretoria era sempre negada. Apesar de ter si<strong>do</strong> convocada uma<br />

assembléia [...] apenas três instituições filiadas à FENEIDA com representantes<br />

ouvintes podiam votar. [...] O resulta<strong>do</strong> foi surpreendente, eu recebi <strong>do</strong>is votos e a [...]<br />

recebeu um voto. [...] Assim que ganhei a eleição marquei uma reunião com a<br />

Diretoria da FENEIDA e recebi [...] <strong>do</strong>cumentos oficiais e fotos. As nossas reuniões,<br />

inicialmente, aconteciam em minha residência e algumas vezes no INES. Quan<strong>do</strong><br />

assumimos a FENEIDA, a nossa primeira atitude foi a de tirar o ‘DA’ da sigla e<br />

mudamos o nome da nossa Federação para FENEIS (Federação Nacional Educação e<br />

Integração de Sur<strong>do</strong>s).<br />

68<br />

Ver Sanchez (1990) e Skliar (1997).<br />

69<br />

Uma das metas da FENEIS, em 1987, quan<strong>do</strong> de sua criação, era a oficialização da<br />

língua de sinais brasileira em to<strong>do</strong> o território nacional, o que veio a acontecer em 24<br />

de abril de 2002.<br />

70<br />

De acor<strong>do</strong> com a Narra<strong>do</strong>ra 4:“No final da década de 80 <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong> havia<br />

no Rio Janeiro apenas três sur<strong>do</strong>s com formação superior nas áreas de engenharia,<br />

advocacia e eu na área de biblioteconomia”. Mas, em 2006, 3.328 (INEP/2006) alunos<br />

sur<strong>do</strong>s cursavam as universidades brasileiras, sen<strong>do</strong> que, desses, 900 realizavam o<br />

curso a distância de Licenciatura em Letras Libras da UF<strong>SC</strong>.<br />

71 Afirma Masutti (2007, p. 15): “A partir de zonas de contato entre sur<strong>do</strong>s e ouvintes,<br />

surgem elementos que expõem uma dinâmica de relação opressiva constituída em<br />

dimensões históricas e sociais, a<strong>do</strong>tadas com base em um modelo de pensamento que<br />

elege a fala como o motor central de construção da subjetividade. A hegemonia e a<br />

absolutização das línguas orais como meios de construção de saberes geram, dentre<br />

exclusões de várias ordens, aquelas da ordem de uma lingüística cinésico-visual. Fato<br />

esse que corrobora para a construção de um processo hierárquico relaciona<strong>do</strong> às


146<br />

portuguesa em seu desenvolvimento intelectual. Para eles a língua de<br />

sinais não é um instrumento de comunicação para facilitar a<br />

aprendizagem da língua portuguesa, mas sim de transformação das<br />

relações sociais, culturais e institucionais entre sur<strong>do</strong>s e ouvintes. 72<br />

Ao exigirem o direito de significar em sua própria língua, os sur<strong>do</strong>s<br />

se aproximam das políticas pós-coloniais pelas quais as línguas de<br />

comunidades linguísticas passam a ocupar o mesmo status que a língua<br />

nacional e oficial 73 de um país. E, por isso, não convergem com as<br />

políticas monolíngues construídas pelos Esta<strong>do</strong>s nacionais, como é o<br />

caso <strong>do</strong> Brasil. 74<br />

Segun<strong>do</strong> Quadros (2005, p. 26), imagina-se que no Brasil todas as<br />

pessoas adquirem a língua portuguesa como primeira língua, ignoran<strong>do</strong><br />

que temos:<br />

os falantes de famílias imigrantes (japoneses, alemães,<br />

italianos, espanhóis, etc.), que temos as várias<br />

comunidades indígenas que falam várias línguas nativas<br />

(mais de 170 línguas indígenas de famílias totalmente<br />

diferentes) e que temos, também, falantes, digo<br />

“sinalizantes” da língua de sinais brasileira (os sur<strong>do</strong>s e<br />

representações culturais e lingüísticas entre sur<strong>do</strong>s e ouvintes. As línguas de sinais,<br />

imprescindíveis à diferença surda, passam pelos mesmos crivos discriminatórios que<br />

sofrem os sujeitos que a usam”.<br />

72<br />

Ver Sanchez (1990); Skliar (1997); Souza (1998) e Macha<strong>do</strong> (2008).<br />

73<br />

Para compreender o significa<strong>do</strong> de língua nacional e oficial, Calvet (2007, p. 80) nos<br />

traz o seguinte exemplo: “se, para um francês, os adjetivos ‘nacional’ e ‘oficial’<br />

aplica<strong>do</strong>s à língua podem parecer sinônimos, na África francófona eles têm senti<strong>do</strong>s<br />

muito diferentes: a língua ‘oficial’ é a língua <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, geralmente o francês (co-oficial<br />

com o inglês em Camarões e com o sango na república Centro-Africana), enquanto as<br />

outras línguas ‘nacionais’ são algumas línguas africanas ou todas as línguas africanas<br />

<strong>do</strong> país. Desse mo<strong>do</strong>, no Senegal, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Francês, língua ‘oficial’, a lei distingue<br />

seis línguas ‘nacionais’ (o wolof, o serere, o diola, o mandiga, o peul e o soninkê)<br />

dentre as cerca de vinte línguas faladas no país”.<br />

74<br />

O Brasil, apesar de ser constituí<strong>do</strong> por mais de duzentas comunidades linguísticas<br />

diferentes, a<strong>do</strong>ta um política linguística pautada no discurso pedagógico em que o uso<br />

da língua portuguesa como língua nacional e oficial <strong>do</strong> país é obrigatório. Ao a<strong>do</strong>tar<br />

essa política o país nega sua base linguística plurilíngue. Diz-nos Oliveira (2009, p. 1):<br />

“Se olharmos para nosso passa<strong>do</strong> veremos que fomos, durante a maior parte da nossa<br />

história, ainda muito mais <strong>do</strong> que hoje, um território plurilíngüe: quan<strong>do</strong> aqui<br />

aportaram os portugueses, há 500 anos, falavam-se no país, segun<strong>do</strong> estimativas de<br />

Rodrigues (1993: 23), cerca de 1.078 línguas indígenas, situação de plurilingüismo<br />

semelhante a que ocorre hoje nas Filipinas (com 160 línguas), no México (com 241), na<br />

Índia (com 391) ou, ainda, na In<strong>do</strong>nésia (com 663 línguas)”.


147<br />

familiares sur<strong>do</strong>s brasileiros). Todas essas línguas faladas<br />

no Brasil, também são línguas brasileiras, caracterizan<strong>do</strong><br />

o país que o Brasil realmente é, um país multilíngüe (grifo<br />

no original).<br />

No caso <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s, o governo brasileiro, mesmo reconhecen<strong>do</strong> o<br />

estatuto da língua de sinais brasileira − Lei 10.436/2002 −, impõe a<br />

língua portuguesa na modalidade escrita como a língua acadêmica. É<br />

relevante notar que, ao contrário <strong>do</strong> Brasil a política linguística em<br />

outros países, como o Canadá, por exemplo, é distinta: dependen<strong>do</strong> da<br />

região a língua de ensino é o inglês ou francês. A Espanha é um outro<br />

exemplo: a língua oficial <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> é o castelhano, mas a Constituição<br />

de 1978 também oficializou as línguas de comunidades autônomas,<br />

como o basco, o catalão e o galego. Os canadenses e os espanhóis, por<br />

terem mais de uma língua, ampliam as suas possibilidades de interação<br />

social. O fato de os sur<strong>do</strong>s poderem vir a ter uma língua de ensino<br />

diferente da maioria <strong>do</strong> povo brasileiro amplia os espaços de interação<br />

entre sur<strong>do</strong>s e ouvintes no contexto da nação brasileira. Para Quadros<br />

(2008, p. 68), a estratégia de reconhecimento da língua de sinais<br />

brasileira está na possibilidade de “romper com a ordem instituída e as<br />

formas coloniza<strong>do</strong>ras de imposição da língua portuguesa sobre os<br />

sur<strong>do</strong>s, como a língua da nação, imaginada como aquela que fala uma<br />

única língua. Assim, esta nação é sonhada pelo outro e não pelos<br />

sur<strong>do</strong>s”.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, Quadros (2008) propõe um movimento de<br />

desconstrução <strong>do</strong> conceito pedagógico de nação em relação à língua<br />

tanto por parte de sur<strong>do</strong>s quanto de ouvintes. Se a língua de sinais é o<br />

símbolo de identidade <strong>do</strong> povo sur<strong>do</strong>, a língua portuguesa também<br />

ocupa essa mesma posição para os ouvintes. Por serem duas<br />

comunidades linguísticas distintas, o sentimento de “nacionalidade” e<br />

“pertencimento” mediante o uso de uma única língua não pode ser<br />

naturaliza<strong>do</strong>. A concepção de uma única língua em um país é uma<br />

invenção da sociedade moderna para consolidar políticas monolíngues


148<br />

<strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s nacionais. 75 Entretanto, numa perspectiva de nação que<br />

reconhece o status linguístico de cada comunidade, como bem<br />

preconiza a Declaração Universal <strong>do</strong>s Direitos Linguísticos, tem-se a<br />

possibilidade tanto de sur<strong>do</strong>s quanto de ouvintes serem reconheci<strong>do</strong>s<br />

como sujeitos bilíngues. Por essa perspectiva, o sentimento de<br />

“nacionalidade e pertencimento não é viola<strong>do</strong>, pois ambos estão usan<strong>do</strong><br />

duas línguas brasileiras” (Ibid., p. 68).<br />

2. E<strong>SC</strong>RITA DE SINAIS: O DIREITO DE SIGN<strong>IF</strong>ICAR NA PRÓPRIA<br />

LÍNGUA<br />

A escrita da língua de sinais brasileira como objeto cultural e de<br />

conhecimento representa um grande potencial de ressignificação da<br />

própria história surda, uma vez que, nos dias de hoje, ao registrarem a<br />

história e a cultura de seu povo, os intelectuais sur<strong>do</strong>s o fazem em uma<br />

outra língua que não capta a visualidade e espacialidade das línguas de<br />

sinais. Segun<strong>do</strong> Bhabha (2005, p. 65), ao “[...] significar o presente,<br />

algo vem a ser repeti<strong>do</strong>, reloca<strong>do</strong> e traduzi<strong>do</strong> [...]”.<br />

Perlin (2003, p. 28) retrata esse conflito na vida <strong>do</strong> intelectual<br />

sur<strong>do</strong>: “Estou consciente de que terei de escrever nessa língua que não<br />

se presta para minha atual visão por imagens e se apresenta como um<br />

bloqueio, um estorvo para meu pensamento corrente em língua de<br />

sinais”. Pela necessidade de registrar e de acessar o conhecimento, a<br />

escrita da língua portuguesa, ao mesmo tempo em que é “um estorvo”<br />

para a forma como os sur<strong>do</strong>s estruturam o seu pensamento, também<br />

passa a ocupar um espaço primordial na divulgação das culturas surdas.<br />

Os intelectuais sur<strong>do</strong>s evidenciam em suas narrativas que a<br />

escrita em sua própria língua assume outros contornos. A escrita de<br />

sinais torna o registro <strong>do</strong> povo sur<strong>do</strong> estável e confiável, além de<br />

75<br />

O Esta<strong>do</strong> nacional é uma instituição organizada política, social e juridicamente,<br />

ocupan<strong>do</strong> um território defini<strong>do</strong>, onde normalmente a lei máxima é uma Constituição<br />

escrita, e dirigida por um governo que possui soberania reconhecida tanto interna<br />

como externamente. Disponível em .


149<br />

permitir que suas idéias se perpetuem ao longo de gerações futuras.<br />

Além de ser um poderoso instrumento de reflexão <strong>do</strong> povo sur<strong>do</strong><br />

mediante o registro de sua própria história, língua e cultura, como<br />

narram os intelectuais sur<strong>do</strong>s, a escrita de sinais já está começan<strong>do</strong> a<br />

mudar “a vida <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s, principalmente por nos permitir registrar<br />

acontecimentos pelo campo da visualidade”.<br />

FRAGMENTOS<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: Eu acho que o principal da escrita de sinais são<br />

os registros. A questão não é se a escrita em português é<br />

melhor ou pior que a escrita de sinais. Para mim são campos<br />

separa<strong>do</strong>s. A gente tem que ter a liberdade de escrever em<br />

escrita de sinais ou em português. É importante transitar entre<br />

as línguas e lembrar que a maioria <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s não sabe a<br />

escrita da língua de sinais. A língua portuguesa na modalidade<br />

escrita ainda é a língua <strong>do</strong>minante no meio sur<strong>do</strong>, talvez<br />

porque a experiência <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s na escrita de sinais ainda é<br />

muito recente.<br />

Narra<strong>do</strong>r 2: O Rio Grande <strong>do</strong> Sul foi pioneiro com esse<br />

trabalho. Eu lembro que, ao visitar o Curso de Pedagogia na<br />

ULBRA, percebi, por exemplo, que o sinal de pedagogia que o<br />

pessoal usava em Porto Alegre era diferente em Santa<br />

Catarina. Pela escrita de sinais era possível perceber essa<br />

variação lingüística. Eu achei isso muito interessante.<br />

Narra<strong>do</strong>r 2: No passa<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> ingressei no <strong>IF</strong>-<strong>SC</strong> como<br />

professor de Língua de Sinais, eu pensava em língua de sinais,<br />

mas tinha que escrever em português e também ensinava<br />

dessa forma. Eu percebi que os alunos tinham dificuldades,<br />

traumas em relação a sua escrita na língua portuguesa. Então,<br />

eu me perguntei: como professor, deveria obrigar os alunos a<br />

escrever em português Não. Alguns alunos tinham uma<br />

proficiência maravilhosa em língua de sinais, mas não<br />

conseguiam escrever nada em língua portuguesa. Quan<strong>do</strong><br />

conheci a escrita de sinais ela me pareceu estranha, mas a<br />

partir <strong>do</strong> momento em que fui me aprofundan<strong>do</strong> e começan<strong>do</strong><br />

a aplicar em sala de aula percebi que ela está bem mais<br />

próxima da forma como os sur<strong>do</strong>s estruturam o pensamento.<br />

Se eu sou sur<strong>do</strong> e escrevo o português na estrutura da língua


150<br />

de sinais, por que não utilizar a escrita da língua de sinais Por<br />

exemplo, numa aula de matemática, se o aluno não tem uma<br />

escrita cujos registros ele não compreende com clareza, como<br />

vai aprender essa ciência Quan<strong>do</strong> eu leio um texto em<br />

escrita de sinais eu penso em língua de sinais. Eu processo<br />

esse conhecimento em língua de sinais. É assim que acontece<br />

com os ouvintes quan<strong>do</strong> lêem na língua portuguesa. Para mim,<br />

se os textos fossem escritos em língua de sinais, os sur<strong>do</strong>s<br />

poderiam ler e se desenvolver com tranqüilidade. Mas é<br />

importante lembrar que a escrita de sinais é muito recente e o<br />

português já existi há muito tempo.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: A escrita de sinais, aos poucos, está mudan<strong>do</strong> a<br />

vida <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s, principalmente por nos permitir registrar<br />

acontecimentos pelo campo da visualidade. Dessa forma, os<br />

sur<strong>do</strong>s estão trazen<strong>do</strong> uma outra forma de escrita que passa a<br />

ser compartilhada por várias pessoas.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: A escrita de sinais é muito recente e tu<strong>do</strong> o<br />

que é novo parece que dá uma certa instabilidade. Acho que<br />

ela está passan<strong>do</strong> por um perío<strong>do</strong> de transição. A escrita de<br />

sinais deve ser ensinada principalmente para as crianças<br />

surdas que estão começan<strong>do</strong> a adquirir a língua de sinais. Se<br />

elas aprenderem a escrita de sinais poderão se desenvolver<br />

bem mais rápi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que acontece com as crianças surdas<br />

atualmente. Porém, acho que os sistemas de ensino de língua<br />

de sinais e português devem acontecer de forma separada,<br />

porque são duas línguas com estruturas distintas. Acho que é<br />

um problema sério essa confusão da escrita da língua<br />

portuguesa e da língua de sinais, talvez porque os sur<strong>do</strong>s<br />

começam a aprender a sua própria língua tardiamente. Nós,<br />

pesquisa<strong>do</strong>res sur<strong>do</strong>s, temos que aprofundar essa discussão<br />

para buscar outras possibilidades de ensino de primeira e<br />

segunda língua. Eu já estou com vinte e nove anos, mas a<br />

escrita de sinais já tem uma influência sobre a minha vida, ela<br />

já me ajuda a pensar, a ver, a refletir a partir da própria língua<br />

de sinais. A escrita de sinais me resgata, me puxa para esse<br />

pensamento mais reflexivo. Porém, se se desenvolver como<br />

qualquer outra língua escrita, ela nos trará as histórias surdas<br />

e outros registros magníficos <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s que até então não<br />

têm si<strong>do</strong> registra<strong>do</strong>s no papel. Isso vai contribuir com as<br />

futuras gerações surdas. Elas poderão ter registros que nós<br />

não tivemos. Isso é emocionante.<br />

A escrita da língua de sinais, segun<strong>do</strong> a Narra<strong>do</strong>ra 6, “já tem<br />

uma influência sobre a minha vida, ela já me ajuda a pensar, a ver, a


151<br />

refletir a partir da língua de sinais. A escrita de sinais me resgata, me<br />

puxa para esse pensamento mais reflexivo”. Como narram os<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s, essa modalidade de escrita ainda é recente no meio<br />

<strong>do</strong>s próprios sur<strong>do</strong>s: “a experiência <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s na escrita de sinais<br />

ainda é muito recente” (Narra<strong>do</strong>ra 1); “A escrita de sinais é muito<br />

recente e tu<strong>do</strong> o que é novo parece que dá uma certa instabilidade.<br />

Acho que ela está passan<strong>do</strong> por um perío<strong>do</strong> de transição” (Narra<strong>do</strong>ra<br />

6).<br />

Ao ler esses enuncia<strong>do</strong>s sobre a escrita de sinais, a impressão que<br />

se tem é que essa língua surgiu há pouco tempo. Tal impressão é<br />

correta quan<strong>do</strong> se faz uma comparação entre o surgimento da escrita<br />

das línguas de sinais com as escritas alfabéticas. 76 Se o primeiro<br />

sistema de escrita de sinais foi desenvolvi<strong>do</strong> por Roch Ambroise<br />

Auguste, 77 mais conheci<strong>do</strong> como Bébian, e publica<strong>do</strong> em 1822, 78 a préhistória<br />

da escrita alfabética já versa <strong>do</strong> século XV ou XIV a. C. 79 Porém,<br />

quan<strong>do</strong> comparamos a data <strong>do</strong>s primeiros registros sobre a escrita da<br />

língua de sinais com o surgimento <strong>do</strong>s “refúgios” políticos, ela não é tão<br />

nova como parece ser. Se os primeiros registros <strong>do</strong> surgimento <strong>do</strong>s<br />

76<br />

Segun<strong>do</strong> Higounet (2003, p. 59), “o alfabeto pode ser defini<strong>do</strong> como um sistema de<br />

sinais que exprimem os sons elementares da linguagem”.<br />

77 Bébian nasceu em 04 de agosto de 1789 em Pointe-à-Pitre, Guadalupe, e morreu<br />

em 24 de fevereiro de 1839. Seu pai o enviou para Paris aos cuida<strong>do</strong>s de seu<br />

padrinho, o Abade Sicard, que também era um educa<strong>do</strong>r de sur<strong>do</strong>s. Bébian também<br />

se dedicou à educação de sur<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r na Escola Residencial de Sur<strong>do</strong>s em<br />

Paris, onde seu padrinho foi diretor, dan<strong>do</strong> especial atenção aos trabalhos de Laurent<br />

Clerc. Como pesquisa<strong>do</strong>r da área publicou os seguintes trabalhos em forma de livros:<br />

"Essai sur les sourds-muets et sur glangage naturel" (1817); "Mimographie" (1822);<br />

“Manuel d'enseignement pratique des sourds-muets" (1822). Ao sair dessa escola ele<br />

publicou várias outras obras, sen<strong>do</strong> a mais importante "L'éducation des sourds-muets<br />

mise à la portée des instituteurs primaires et de tous les pais". Recusou a direção de<br />

escolas de sur<strong>do</strong>s em St. Petersburg e Nova Iorque e, mais tarde resolveu ser diretor<br />

da escola de Rouen; finalmente voltou a Guadalupe, onde fun<strong>do</strong>u uma escola para<br />

negros. Disponível em: .<br />

78<br />

O livro recebeu o nome de “Mimographie”. Silva (2009) menciona que a escrita de<br />

sinais proposta por Bébian era composta por quatro componentes principais: formas e<br />

orientação da mão; movimento; lugar e expressão facial e corporal.<br />

79<br />

De acor<strong>do</strong> com Higounet (2003, p. 61), o “elo mais seguro da pré-história <strong>do</strong> alfabeto<br />

é a escrita pseu<strong>do</strong>-hieroglífica das inscrições de Biblos, descoberta por M. Dunand e<br />

decifrada por E. Dhorme”. As inscrições foram “gravadas em pedra ou bronze, são dez<br />

ao to<strong>do</strong>. A primeira foi revelada em 1929” e sua publicação integral só ocorreu em<br />

1946.


152<br />

“refúgios” políticos para sur<strong>do</strong>s datam <strong>do</strong> século XVIII, em torno de<br />

1761, quan<strong>do</strong> da criação da Escola Residencial Pública para Sur<strong>do</strong>s em<br />

Paris, então, pode-se dizer que a escrita de sinais não é tão nova assim.<br />

Mas por que ela não se consoli<strong>do</strong>u ao longo destes 187 anos É a<br />

pergunta que emerge.<br />

Uma resposta possível, segun<strong>do</strong> alguns linguistas, está na<br />

violência linguística a<strong>do</strong>tada durante a construção <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s<br />

nacionais. Oliveira (2009, p. 2) evidencia essa realidade com a política<br />

linguística no Esta<strong>do</strong> nacional brasileiro. Segun<strong>do</strong> o autor, a história<br />

linguística <strong>do</strong> Brasil “poderia ser contada pela sequência de políticas<br />

linguísticas homogeneiza<strong>do</strong>ras e repressivas e pelos resulta<strong>do</strong>s que<br />

alcançaram: somente na primeira metade deste século, segun<strong>do</strong> Darcy<br />

Ribeiro, 67 línguas indígenas desapareceram no Brasil – mais de uma<br />

por ano [...]”.<br />

A influência da política linguística <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s nacionais foi e é tão<br />

forte que o próprio mito fundacional da nação surda, o abade L’pée,<br />

criou o sistema <strong>do</strong>s “signos metódicos” 80 para ensinar a escrita da<br />

língua francesa aos sur<strong>do</strong>s. Por um la<strong>do</strong> essa postura <strong>do</strong> abade pode ser<br />

vista em sua positividade frente à possibilidade de os sur<strong>do</strong>s franceses<br />

acessarem o conhecimento mediante o uso da língua <strong>do</strong>minante. Por<br />

outro la<strong>do</strong>, sua atitude também pode ser explicada pela violência<br />

linguística. O abade talvez tenha incorpora<strong>do</strong> a idéia homogeneizante<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nacional francês quan<strong>do</strong> usou a língua de sinais francesa<br />

como um instrumento para ensinar a escrita da língua francesa aos<br />

sur<strong>do</strong>s.<br />

80<br />

Relata Skliar (1997, p. 26): “El méto<strong>do</strong> era básicamente muy sencillo: enseñaba las<br />

señas correspondientes a los objetos o a los hechos concretos, mostran<strong>do</strong> la seña<br />

conjuntamente com el referente o con un dibujo del mesmo; despues asociaba la seña<br />

a la palavra escrita en francés. De este mo<strong>do</strong> dictava en señas a sus alumnos que<br />

escribían directamente en francés. Para las ideas abstratas, <strong>do</strong>nde no se podia asociar<br />

un refente concreto, comenzaba por la palavra escrita, mostraba la seña convencional<br />

correspondiente y, finalmenente, explicava con otras siñas el significa<strong>do</strong>”.


153<br />

Apesar de seus primeiros registros datarem <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século<br />

XIX, no Brasil a escrita de sinais é muito recente. O sign writing, um <strong>do</strong>s<br />

sistemas de escrita de sinais 81 e o mais conheci<strong>do</strong> no Brasil,<br />

foi inventa<strong>do</strong> há cerca de 30 anos por Valerie Sutton, que<br />

dirige o Deaf Action Commitee (DAC), uma organização<br />

sem fins lucrativos sediada em La Jolla, Califórnia, USA.<br />

Sua origem está associada a um sistema que a autora<br />

criou para notar os movimentos da dança. [...] o sistema<br />

pode representar línguas de sinais de um mo<strong>do</strong> gráfico<br />

esquemático que funciona como um sistema alfabético,<br />

em que as unidades gráficas fundamentais representam<br />

unidades gestuais fundamentais, suas propriedades e<br />

relações. O Sign Writing pode registrar qualquer língua de<br />

sinais <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sem passar pela tradução da língua<br />

falada. [...] O sistema comporta aproximadamente 900<br />

símbolos [...] (STUMPF, 2005, p. 51, 52 e 58).<br />

O Narra<strong>do</strong>r 2 apresenta a satisfação que teve ao conhecer o sign<br />

writing e ao perceber que esse sistema de escrita também registra as<br />

variações linguísticas da língua de sinais brasileira: “O Rio Grande <strong>do</strong><br />

Sul foi pioneiro com esse trabalho. 82 Eu lembro que, ao visitar o Curso<br />

de Pedagogia na ULBRA, percebi, por exemplo, que o sinal de<br />

pedagogia que o pessoal usava em Porto Alegre era diferente em Santa<br />

Catarina. Pela escrita de sinais era possível perceber essa variação<br />

linguística. Eu achei isso muito interessante, pois estava registra<strong>do</strong> na<br />

forma escrita”.<br />

81<br />

Stumpf (2005) apresenta os seguintes sistemas de escrita de sinais: Stokoe (1965);<br />

François Neve (1996); Hamnosys (1989) e D’Sign de Paul Jouison (1990). Em 2008, a<br />

linguista brasileira Mariângela Estelita Barros apresentou em sua tese de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> o<br />

ELiS – Escrita das Línguas de Sinais –, desenvolvi<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> trabalho de Stokoe<br />

(1919 – 2000) sobre a escrita das línguas de sinais.<br />

82<br />

Stumpf é uma das grandes responsáveis pela implantação <strong>do</strong> sign writing no Brasil.<br />

Em sua tese de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> a autora menciona que em 1996 participou, com outros<br />

pesquisa<strong>do</strong>res, de uma pesquisa na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre<br />

para adequar o sistema sign writing à língua de sinais brasileira. De acor<strong>do</strong> com<br />

Stumpf (2005, p. 17), “foi quan<strong>do</strong> me apaixonei pela escrita da língua de sinais. Do<br />

trabalho resultou a construção de um manual que explica como escrever os sinais da<br />

nossa Língua Brasileira de Sinais [...]”. Segun<strong>do</strong> Capovilla (2004, p. 260), o sign writing<br />

é “usa<strong>do</strong> em 28 países de to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> como um sistema de escrita visual prático<br />

para a comunicação escrita cotidiana entre sur<strong>do</strong>s, e entre sur<strong>do</strong>s e ouvintes, e como<br />

um sistema de notação lingüística para o estu<strong>do</strong> científico comparativo das línguas de<br />

sinais por parte de lingüistas”.


154<br />

Capovilla (2004), pesquisa<strong>do</strong>r das línguas de sinais, afirma que o<br />

sign writing é um sistema de escrita visual construí<strong>do</strong> a partir das<br />

línguas de sinais, da mesma forma que os sistemas alfabéticos foram<br />

construí<strong>do</strong>s a partir das línguas orais. O sign writing, segun<strong>do</strong> o autor,<br />

como sistema de escrita das línguas de sinais é forma<strong>do</strong> por quiremas,<br />

da mesma forma que os fonemas formam as palavras das línguas orais.<br />

O sign writing<br />

emprega diferentes símbolos visuais para representar as<br />

diferentes dimensões relevantes à composição sublexical<br />

<strong>do</strong>s sinais, tais como as configurações (i.e., articulações)<br />

de mão; sua localização no espaço de sinalização e sua<br />

orientação nos planos da sinalização; os tipos, formas,<br />

freqüências e direções <strong>do</strong>s movimentos envolvi<strong>do</strong>s; as<br />

expressões faciais associadas [...]” (Ibid., p. 261).<br />

Para a Narra<strong>do</strong>ra 6, o sistema sign writing “ajuda a pensar, a<br />

ver, a refletir a partir da própria língua de sinais”; para o Narra<strong>do</strong>r 2:<br />

“Quan<strong>do</strong> eu leio um texto em escrita de sinais eu penso em língua de<br />

sinais. Eu processo esse conhecimento em língua de sinais. É assim que<br />

acontece com os ouvintes quan<strong>do</strong> lêem na língua portuguesa”. A escrita<br />

de sinais, de acor<strong>do</strong> com os narra<strong>do</strong>res, além de permitir a<br />

comunicação faz parte da sua própria forma de pensar. Não é um<br />

simples instrumento de comunicação, mas sim um sistema simbólico<br />

que possui uma base linguística a partir das culturas surdas.<br />

Capovilla (2004, p. 256) corrobora com esse pensamento <strong>do</strong>s<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> não desvincula o ato de pensar e falar <strong>do</strong> ato<br />

da escrita tanto para crianças ouvintes quanto surdas. Para o autor, há<br />

uma descontinuidade na aprendizagem da escrita quan<strong>do</strong> as crianças<br />

surdas têm que aprender a escrita de uma língua oral:<br />

Na criança ouvinte e falante, há uma continuidade entre<br />

três contextos comunicativos básicos: a comunicação<br />

transitória consigo mesma (i.é., o pensar), a comunicação<br />

transitória com outrem na relação face a face (i.é., o<br />

falar), e a comunicação perene na relação remota e


155<br />

mediada (i.é., o escrever). Com isto to<strong>do</strong> o seu<br />

processamento lingüístico pode concentrar-se na palavra<br />

falada de uma mesma língua: para pensar, comunicar-se e<br />

escrever, ela pode fazer uso das mesmas palavras de sua<br />

própria língua falada primária. Para essa criança há uma<br />

compatibilidade entre sistemas de representação<br />

lingüística primária (i.é., a língua falada) e secundária (i.é,<br />

a língua escrita alfabética). [...] da criança surda, no<br />

entanto, espera-se muito mais. Ela pensa e se comunica<br />

em sua língua de sinais primária na modalidade visual e<br />

quiroarticulatória (i.é., quiro, <strong>do</strong> Grego, mão). Mas, frente<br />

à tarefa de escrever, espera-se que o faça por meio de<br />

palavras de uma língua falada estrangeira – a Língua<br />

Portuguesa (grifos no original).<br />

Para o ouvinte há uma continuidade entre os três contextos<br />

comunicativos básicos – pensar, falar e escrever. Entretanto, no caso <strong>do</strong><br />

sur<strong>do</strong> essa continuidade não ocorre. O sur<strong>do</strong> pensa e se comunica em<br />

língua de sinais, mas espera-se que ele escreva uma língua oral com a<br />

mesma proficiência <strong>do</strong>s ouvintes. Para resolver essa descontinuidade<br />

entre os três contextos comunicativos básicos da língua de sinais o<br />

autor propõe que os sur<strong>do</strong>s devem aprender, antes de qualquer outra<br />

escrita alfabética, o sistema de escrita das línguas de sinais. Segun<strong>do</strong><br />

Capovilla (2004, p. 259), da mesma forma que “a criança ouvinte pode<br />

beneficiar-se <strong>do</strong> uso de uma escrita alfabética para mapear os fonemas<br />

de sua língua falada, a surda poderia beneficiar-se sobremaneira de<br />

uma escrita visual capaz de mapear os quiremas de sua língua de<br />

sinais” (grifos no original).<br />

O pensamento de Capovilla sobre a importância da continuidade<br />

entre os três contextos comunicativos básicos é comprova<strong>do</strong> na<br />

pesquisa que Stumpf (2004) realizou com crianças surdas sobre a<br />

alfabetização em escrita de sinais mediante o uso <strong>do</strong> sistema sign<br />

writing em uma escola de sur<strong>do</strong>s em Porto Alegre. Segun<strong>do</strong> a<br />

pesquisa<strong>do</strong>ra, as crianças tinham fluência em língua de sinais e<br />

interagiam entre si e com a professora mediante o uso dessa língua,<br />

isto é, os sur<strong>do</strong>s pensavam e falavam em língua de sinais. Após ter<br />

conta<strong>do</strong> a história “A Raposa e a Cegonha” na língua de sinais


156<br />

brasileira, a pesquisa<strong>do</strong>ra solicitou que as crianças desenhassem a<br />

história. Para sua surpresa, as crianças tentaram representar<br />

graficamente tanto o desenho quanto o sinal correspondente em língua<br />

de sinais.<br />

O resulta<strong>do</strong> desse exercício demonstrou que a criança surda que<br />

interage socialmente em língua de sinais vislumbra espontaneamente a<br />

existência da relação entre os movimentos que compõem a língua de<br />

sinais e a sua representação gráfica. Dentre os vários exemplos que a<br />

autora traz em seu artigo, 83 destaco o desenho de uma das crianças que<br />

representou uma casa tanto na forma de desenho quanto a sua<br />

representação gráfica a partir da língua de sinais brasileira.<br />

Fig. 1: O desenho da casa e sua representação gráfica na língua de sinais<br />

brasileira<br />

Stumpf (2002, p. 67) apresenta um outro exemplo sui gêneris<br />

sobre a importância de pensar, ler e escrever na língua de sinais<br />

brasileira. Nesse caso, a autora relata a experiência que teve com duas<br />

alunas surdas na escola em que era educa<strong>do</strong>ra: as meninas “foram<br />

convidadas para interpretar o Hino Nacional na língua de sinais<br />

brasileira na abertura de um congresso”. O problema que se<br />

apresentava era que as alunas não conheciam o Hino Nacional e teriam<br />

que apresentá-lo daí a <strong>do</strong>is dias. Para memorizar a escrita <strong>do</strong> hino, o<br />

intervalo de tempo era muito curto e, mesmo assim, a escrita <strong>do</strong> hino<br />

em língua portuguesa não dava o seu real significa<strong>do</strong> às alunas surdas.<br />

“Elas não saberiam quais sinais fazer, elas poderiam saber ler, mas não<br />

conseguiriam interpretar” (id.). A solução encontrada por Stumpf foi a<br />

83<br />

Ver Stumpf (2004).


157<br />

de escrever o Hino Nacional na escrita da língua de sinais brasileira e,<br />

segun<strong>do</strong> a autora, foram necessários apenas <strong>do</strong>is ensaios. “Elas<br />

interpretaram o Hino Nacional len<strong>do</strong> os sinais e foi muito bonito” (id.).<br />

Fig. 2: Fragmento <strong>do</strong> Hino Nacional na escrita da língua de sinais brasileira<br />

a partir <strong>do</strong> sistema sign writing<br />

As pesquisas indicam a importância da escrita das línguas de<br />

sinais tanto no desenvolvimento linguístico da criança surda quanto no<br />

reconhecimento político <strong>do</strong> povo sur<strong>do</strong>. Porém a escrita de sinais, para<br />

criar suas raízes, precisa circular nos diferentes espaços sociais que os<br />

sur<strong>do</strong>s frequentam, caso contrário, frente à assimetria nas relações de<br />

poder entre as línguas de sinais e as línguas orais, ela pode tornar-se<br />

uma língua restrita <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s brasileiros.<br />

Segun<strong>do</strong> Barros (2008), algumas pesquisas com comunidades<br />

indígenas apontam que, após <strong>do</strong>minarem o sistema escrito de suas<br />

línguas, os indígenas continuam a usar apenas a escrita <strong>do</strong> português.<br />

Apesar das diferenças culturais e linguísticas entre sur<strong>do</strong>s e indígenas,<br />

essa questão sugere investigações com mais profundidade, uma vez<br />

que o sistema de escrita sign writing já existe há mais de trinta anos e<br />

ainda não se consoli<strong>do</strong>u no meio da própria comunidade surda. Para a<br />

autora, uma das hipóteses para essa questão, “ainda não confirmada”<br />

seria “uma questão cultural de <strong>do</strong>minação das línguas orais” (Ibid., p.<br />

79).


158<br />

Silva (2009, p. 99), pesquisa<strong>do</strong>r da escrita de sinais no Brasil, traz<br />

este debate para as políticas educacionais quan<strong>do</strong> menciona que os<br />

projetos bilíngues para sur<strong>do</strong>s<br />

preconizam o uso da Libras, de professores bilíngues,<br />

intérpretes em sala de aula, que são elementos<br />

importantíssimos; contu<strong>do</strong>, tem-se verifica<strong>do</strong> alunos<br />

sur<strong>do</strong>s senta<strong>do</strong>s em suas carteiras apenas olhan<strong>do</strong> o<br />

intérprete ou o professor, sem um meio acessível de<br />

registrar tais olhares.<br />

Ao trazer a importância da escrita de sinais no ato de ensinar e<br />

aprender, Silva (2009, p. 100) vai além, quan<strong>do</strong> traz o conceito de<br />

bilíngue não apenas para os sur<strong>do</strong>s, mas também para os ouvintes. Em<br />

suas palavras: “Com certeza, será um passo decisivo a efetivação da<br />

Libras como uma das línguas existentes no Brasil e não apenas como<br />

uma língua restrita aos sur<strong>do</strong>s”.<br />

3. TRADUÇÃO: UM ATO DE VIVER EM FRONTEIRAS<br />

Rajagopalan (2000, p. 123) aborda a importância da tradução nos<br />

movimentos de resistência <strong>do</strong>s coloniza<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> afirma que “a<br />

atividade de tradução [...] se revela como poderosa nas mãos <strong>do</strong>s<br />

oprimi<strong>do</strong>s em sua luta contra a opressão”. Por meio desse olhar póscolonial<br />

que vê a tradução como uma arma de luta política é que faço<br />

algumas reflexões sobre a atividade de tradução. Sem esquecer que os<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s utilizam a língua portuguesa para apresentar suas<br />

pesquisas realizadas na língua de sinais – nesse caso, a tradução tornase<br />

um meio de viabilizar sua própria autoria.<br />

O intelectual sur<strong>do</strong>, ao traduzir seus próprios textos para a língua<br />

portuguesa, sabe que não há uma relação biunívoca entre sinal e


159<br />

palavra, e ainda que, como autor e tradutor, não pode ser visto como<br />

um media<strong>do</strong>r transparente e neutro no momento da tradução. Ao<br />

escreverem na língua portuguesa, os intelectuais sur<strong>do</strong>s ficam em uma<br />

zona de conflito, pois ao mesmo tempo em que desejam fazer com que<br />

suas línguas sejam conhecidas e registradas, eles o fazem em outra<br />

língua, uma língua oral-auditiva e não em sua língua nativa, a língua de<br />

sinais.<br />

Esse conflito provoca o intelectual sur<strong>do</strong> de diferentes maneiras,<br />

que talvez possam ser traduzida pelos seguintes questionamentos: será<br />

que essa prática de tradução não está perpetuan<strong>do</strong> as estereotipias em<br />

relação ao sur<strong>do</strong> Essa prática de tradução reconhece as diferenças<br />

linguísticas e culturais <strong>do</strong> leitor sur<strong>do</strong> Que estratégias de tradução<br />

podem reconhecer essas diferenças Como as relações de poder se<br />

traduzem nessas práticas Essas reflexões são inspiradas nos<br />

fragmentos das narrativas <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s.<br />

FRAGMENTOS<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: Quan<strong>do</strong> criança eu chorava muito quanto tinha<br />

que ler. Mais tarde, quan<strong>do</strong> estava no Mestra<strong>do</strong>, percebi que a<br />

língua de sinais me dizia coisas impossíveis de traduzir para o<br />

português.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 6: De fato essa questão <strong>do</strong> português nunca terá<br />

fim, porque cada um de nós está permanentemente em<br />

contato com essa língua. Não é só uma relação de como se<br />

aprende. A gente precisa se sentir bem com o seu uso. [...]<br />

Narra<strong>do</strong>r 2: Acho que se deve evitar a escrita na língua<br />

portuguesa nessa forma da estrutura da língua de sinais.<br />

Porque, se não o fizermos, os ouvintes vão continuar com<br />

aqueles velhos discursos de que os sur<strong>do</strong>s são incapazes.<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1: Eu não me sinto bem escreven<strong>do</strong> <strong>do</strong> “jeito<br />

sur<strong>do</strong>”. Eu prefiro passar por um processo de revisão. Porque<br />

as pessoas que nos avaliam ainda não reconhecem essa forma<br />

de escrita. Se escrevermos dessa forma as pessoas vão<br />

continuar com aqueles velhos discursos sobre o sur<strong>do</strong>. Eu sei<br />

que a [...] optou em escrever <strong>do</strong> jeito sur<strong>do</strong>, mas é um<br />

processo de cada um.


160<br />

Narra<strong>do</strong>r 2: Eu estou concluin<strong>do</strong> o Mestra<strong>do</strong> e a minha<br />

dissertação vai passar por um revisor. Eu tenho que<br />

apresentar a dissertação para as pessoas da banca<br />

examina<strong>do</strong>ra. Se eles não conhecem a escrita surda, já<br />

imaginou o que pode acontecer comigo Esse controle<br />

institucional me força a fazer a revisão <strong>do</strong> texto.<br />

A problemática da tradução de uma língua viso-espacial para uma<br />

língua oral-auditiva é apresentada por Perlin (2006, p. 29) quan<strong>do</strong><br />

afirma: “Pensar em uma língua e produzir em outra é uma tarefa<br />

estafante. [...] o português que uso não é de fácil tramitação para mim”.<br />

A angústia presente na frase de Perlin é bastante compreensível,<br />

porque, além da exigência de ser bilíngue em línguas tão díspares –<br />

língua de sinais brasileira e língua portuguesa –, a autora e tradutora<br />

sabe <strong>do</strong> distanciamento entre o texto original que é produzi<strong>do</strong> em sua<br />

língua e a sua tradução para a língua portuguesa. A Narra<strong>do</strong>ra 1<br />

retrata essa problemática ao afirmar: “quan<strong>do</strong> estava no Mestra<strong>do</strong><br />

percebi que a língua de sinais me dizia coisas impossíveis de traduzir<br />

para o português”.<br />

O leitor distante das discussões teóricas sobre a tradução e a<br />

linguagem imagina que cada palavra tem o seu equivalente perfeito na<br />

outra língua, e que o tradutor, por ser bilíngue, substitui as palavras<br />

sem grandes dificuldades, como se a tradução fosse uma representação<br />

perfeita <strong>do</strong> texto original. Na prática, não existe uma relação de<br />

equivalência entre as línguas, o que existe são algumas formas de<br />

tradução que, no intuito de tornar a leitura mais fluente na língua de<br />

chegada, apagam a estrangeiridade – as diferenças culturais e<br />

linguísticas – <strong>do</strong> texto original. Venuti (2002) denomina essa estratégia<br />

de “tradução <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>ra”.<br />

Para sobreviver no meio acadêmico, a maioria <strong>do</strong>s intelectuais<br />

sur<strong>do</strong>s vem a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> essa estratégia de tradução. Segun<strong>do</strong> o Narra<strong>do</strong>r<br />

2: “Eu estou concluin<strong>do</strong> o Mestra<strong>do</strong> e a minha dissertação vai passar<br />

por um revisor. Eu tenho que apresentar a dissertação para as pessoas


161<br />

da banca examina<strong>do</strong>ra. Se eles não conhecem a escrita surda, já<br />

imaginou o que pode acontecer comigo” Ao escreverem em uma<br />

língua que não é a sua, os intelectuais sur<strong>do</strong>s sabem que estão sujeitos<br />

a apagar alguns traços de sua língua e cultura, mas também sabem que<br />

é uma forma de divulgar a produção de seus saberes.<br />

Essa política de tradução, que inscreve um texto em língua de<br />

sinais na língua portuguesa, não consegue trazer à tona todas as<br />

complexidades oriundas das diferenças culturais e linguísticas <strong>do</strong> povo<br />

sur<strong>do</strong>, por fixar-se em estratégias <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>ras. Como afirma o<br />

Narra<strong>do</strong>r 2: “Esse controle institucional me força a fazer a revisão <strong>do</strong><br />

texto”. Essa forma de controle é tão forte no meio acadêmico que a<br />

Narra<strong>do</strong>ra 1 faz a seguinte afirmação: “Eu não me sinto bem<br />

escreven<strong>do</strong> <strong>do</strong> ‘jeito sur<strong>do</strong>’. Eu prefiro passar por um processo de<br />

revisão. Porque as pessoas que nos avaliam ainda não reconhecem<br />

essa forma de escrita”. Na mesma linha de pensamento o Narra<strong>do</strong>r 2<br />

afirma: “Acho que se deve evitar a escrita na língua portuguesa nessa<br />

forma da estrutura da língua de sinais. Porque, se não o fizermos, os<br />

ouvintes vão continuar com aqueles velhos discursos de que os sur<strong>do</strong>s<br />

são incapazes”.<br />

O controle institucional mediante o discurso estereotipa<strong>do</strong> em<br />

relação ao sur<strong>do</strong> acaba inibin<strong>do</strong> a produção de traduções que forcem o<br />

contato entre as línguas e as culturas (surdas e ouvintes). Para Venuti<br />

(2002, p. 155) essa forma de tradução é de má qualidade por formar<br />

uma atitude <strong>do</strong>méstica e, portanto, etnocêntrica em relação à cultura<br />

estrangeira – e recorre a Berman, citan<strong>do</strong>-o, o que também destaco:<br />

“geralmente sob disfarce de transmissibilidade, ela realiza<br />

uma negação sistemática da estranheza da obra<br />

estrangeira” (BERMAN, 1992, p. 5). A tradução de boa<br />

qualidade visa a limitar essa negação etnocêntrica: ela<br />

representa “uma abertura, um diálogo, uma hibridação,<br />

uma descentralização” (Ibid., p. 4) e, dessa forma, força a<br />

língua e as culturas <strong>do</strong>mésticas a registrarem a<br />

estrangeiridade <strong>do</strong> texto estrangeiro.


162<br />

Se os intelectuais sur<strong>do</strong>s usam a tradução <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>ra para<br />

“enquadrarem-se” no controle institucional, os tradutores, de uma<br />

forma geral, utilizam-se dessa mesma forma de tradução para serem<br />

aceitos no merca<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r; ou seja, os tradutores vincula<strong>do</strong>s a<br />

essa estratégia de tradução a<strong>do</strong>tam a política da fluência na língua de<br />

chegada para cativar o público leitor e também por acreditarem que o<br />

papel <strong>do</strong> tradutor é o de facilitar a leitura <strong>do</strong> texto original, tornan<strong>do</strong> sua<br />

linguagem mais acessível, mesmo que seja necessário “maquiar” a sua<br />

estrangeiridade no texto de chegada. A idéia por trás dessa estratégia é<br />

a de garantir que o texto traduzi<strong>do</strong> seja transparente, soe como natural<br />

e seja fluente como se não fosse uma tradução.<br />

Para um país como o Brasil, que tenta se constituir como uma<br />

nação monolíngue, a prática de tradução segue essa tendência<br />

<strong>do</strong>minante. É uma prática em que o intelectual sur<strong>do</strong>, para sobreviver,<br />

tem que <strong>do</strong>mesticar o texto produzi<strong>do</strong> originariamente em língua de<br />

sinais, mas o faz de uma forma tal que o leitor não percebe a presença<br />

surda no texto de chegada.<br />

Entretanto, para Venuti (2002, p. 157), a tradução também pode<br />

ser um instrumento de resistência, quan<strong>do</strong> o tradutor opta em<br />

redirecionar o movimento etnocêntrico de tradução a fim<br />

de descentralizar os termos <strong>do</strong>mésticos que um projeto<br />

tradutório tem de, inevitavelmente, utilizar. Essa é uma<br />

ética da diferença que pode mudar a cultura <strong>do</strong>méstica.<br />

Segun<strong>do</strong> Venuti, por meio da tradução estrangeiriza<strong>do</strong>ra o leitor<br />

pode ver outras culturas, outros mun<strong>do</strong>s, pode ter acesso a outras<br />

realidades diferentes da sua, promoven<strong>do</strong> uma maior interação entre<br />

povos e culturas. Para o autor, a tradução estrangeiriza<strong>do</strong>ra deve ser<br />

lida como traduções – como textos que têm as suas diferenças, cujo<br />

tradutor deve trazer o leitor para perto <strong>do</strong> texto original e não<br />

<strong>do</strong>mesticar o original para que fique mais acessível ao leitor. Dessa<br />

forma, apresenta a estrangeirização como uma estratégia que permite


163<br />

que a diferença seja transmitida, que a alteridade seja preservada,<br />

mesmo que não o seja em sua totalidade. A idéia é que o leitor seja<br />

capaz de perceber certa estranheza e identificar que aquele texto tem<br />

outras fontes, diferentes de sua cultura e língua.<br />

A tradução estrangeiriza<strong>do</strong>ra também pode ser vista como uma<br />

forma de resistência ao discurso colonialista, quan<strong>do</strong> confronta as<br />

relações assimétricas de poder nas trocas culturais entre a cultura<br />

<strong>do</strong>minante e as outras culturas. O tradutor que assume essa agenda<br />

política, de acor<strong>do</strong> com Venuti (1995, p. 148), deve também ver a<br />

tradução como uma prática cultural dissidente que “faz associações<br />

com valores lingüísticos e literários marginais, e com culturas<br />

estrangeiras que tenham si<strong>do</strong> preteridas devi<strong>do</strong> a sua própria<br />

resistência a valores <strong>do</strong>minantes”.<br />

Apesar da relevância da prática de tradução desenvolvida por<br />

Venuti, que tem por princípio não ocultar a estrangeiridade <strong>do</strong> outro,<br />

dar visibilidade à mediação <strong>do</strong> tradutor e priorizar textos marginais em<br />

suas traduções, a sua proposta de tradução não se propõe a fazer uma<br />

reescrita <strong>do</strong> texto de origem a partir de uma leitura política, como<br />

fazem os tradutores pós-coloniais. O ato de traduzir em fronteiras, e os<br />

valores nele preserva<strong>do</strong>s,<br />

não pertencem a nenhuma cultura específica; são valores<br />

que surgem a partir da experiência dessa ‘travessia’ por<br />

entre os espaços culturais intersticiais [...] que recusa o<br />

binarismo da representação costumeira <strong>do</strong> antagonismo<br />

social (SOUZA, 2004, p. 125 e 128).<br />

Para Bhabha (2005), por meio da tradução as culturas são<br />

obrigadas a ressignificar suas próprias normas e valores, porque todas<br />

as culturas são híbridas e já nascem em movimento entre si numa<br />

dinâmica tensa, na qual nenhuma delas deixa de se reescrever em<br />

momentos de interação. É a partir dessa compreensão de tradução,<br />

sem negar os princípios da tradução estrangeiriza<strong>do</strong>ra de Venuti, que<br />

apresento algumas estratégias de tradução pós-colonial que se


164<br />

tornaram instrumentos de luta, principalmente, para os povos africanos<br />

que não possuem uma língua escrita.<br />

Porém, no caso <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s e ouvintes, as línguas são de<br />

modalidades diferentes uma é viso-espacial e a outra oral-auditiva.<br />

Nesse caso, surgem outras complexidades de tradução diferentes<br />

daquelas entre línguas orais. A língua de sinais constrói suas galáxias de<br />

significa<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong> corpo, <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> movimento e não a partir<br />

<strong>do</strong> som, como nas línguas orais. Masutti (2007, p. 90), ao discutir a<br />

“Dança sígnica da língua <strong>do</strong> corpo e no corpo”, 84 afirma:<br />

Embora a lingüística insista em princípios de equivalência,<br />

os movimentos, bem como as locações articulatórias de<br />

senti<strong>do</strong>s acresci<strong>do</strong>s de outros elementos, se revestem de<br />

uma idiomaticidade que transgridem a lógica de<br />

comunicação usual e entram na fronteira <strong>do</strong> intraduzível.<br />

Há sempre algo mais nas línguas de sinais que são<br />

irredutíveis à tradução. Língua de sinais é arte em<br />

movimento, é uma coreografia circular, é uma poesia cuja<br />

tensão corporal inscreve os ritmos que reaproximam os<br />

corpos das sensações da dança. Entretanto, para ver e<br />

sentir essa dança da língua de sinais é preciso libertar as<br />

travas <strong>do</strong>s olhos que estão engessadas pelo som e pelas<br />

estereotipias culturais. Por isso, desterritorializar a voz e<br />

capturar as línguas de sinais implica uma habilidade para<br />

calar o som e perceber o componente “espaço” e “tempo”<br />

marca<strong>do</strong>s em uma dinâmica refuncionalizada em universo<br />

visual de uma escritura que não se submete a uma<br />

suposta primazia da fala.<br />

Essa “habilidade para calar o som e perceber o componente<br />

‘espaço’ e ‘tempo’” durante a tradução entre línguas de modalidades<br />

sonoras e viso-espaciais é um elemento que atormenta a vida<br />

acadêmica de muitos educan<strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s. Marques (2008, p. 97) relata<br />

que alguns educa<strong>do</strong>res ouvintes não conseguem calar o som no<br />

momento em que ensinam em língua de sinais, provocan<strong>do</strong> uma<br />

justaposição de signos. Exemplifica com a experiência que teve em uma<br />

84<br />

Masutti, em sua tese de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, apresenta os parâmetros primários<br />

(configurações de mãos, pontos de articulações e movimentos) e secundários<br />

(disposição das mãos, orientações das mãos e região de contato) da língua de sinais,<br />

de forma poética.


165<br />

sala de aula com um educa<strong>do</strong>r ouvinte. Este, ao perguntar a idade de<br />

um aluno sur<strong>do</strong> – “Qual sua idade” –, oralizava e sinalizava ao mesmo<br />

tempo, mas suas mãos não produziam na língua de sinais essa mesma<br />

frase. Segun<strong>do</strong> Marques (2008, p. 98), “suas mãos reproduziam<br />

fragmentos desse pensamento tornan<strong>do</strong>-se uma tarefa de decifração<br />

quase impossível”. A questão parece ser simples, mas quan<strong>do</strong> se pensa<br />

no campo da tradução a complexidade se evidencia.<br />

Mas como acontece isso Obviamente pelas diferentes<br />

modalidades de língua. Se “Qual sua idade” está para o<br />

falante <strong>do</strong> português de forma consecutiva, ou seja,<br />

“qual” segui<strong>do</strong> de “sua” e acompanha<strong>do</strong> de “idade” e<br />

finaliza<strong>do</strong> com a “interrogação”. Porém na língua de<br />

sinais, o educa<strong>do</strong>r provavelmente fará o sinal com a<br />

configuração de mão em “Y” ao la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong> (ou direito)<br />

<strong>do</strong> peito. Este sinal significa “idade/aniversário”. Logo virá<br />

a indagação de onde encontraríamos a informação “qual”<br />

e “sua” e a “interrogação”. Eles estão expressos nas<br />

expressões não manuais, o “qual” está no aceno da<br />

cabeça para trás, o “seu” está no direcionamento <strong>do</strong><br />

olhar, e a “interrogativa” está no movimento da cabeça<br />

para trás e nas sobrancelhas levantadas. O interessante é<br />

que to<strong>do</strong>s estes aspectos são feitos simultaneamente<br />

(Id.).<br />

O próprio exemplo traz uma outra marca da tradução. Nesse caso,<br />

associada à forma como o sur<strong>do</strong> traduz a língua de sinais brasileira para<br />

a língua portuguesa. Marques não escreve: “Qual é a sua idade”, mas<br />

sim: “Qual sua idade”, o que pode ser visto como um traço da escrita<br />

surda na língua portuguesa. Essa forma de escrita, pela perspectiva de<br />

Venuti, pode ser compreendida como uma estratégia de dar visibilidade<br />

ao tradutor, nesse caso, um intelectual sur<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> não escreve o<br />

verbo “é” e o artigo defini<strong>do</strong> “a”. Entretanto, esse exemplo, pela<br />

tradução pós-colonial, pode ser interpreta<strong>do</strong> como uma estratégia<br />

política de reconhecimento <strong>do</strong> “jeito sur<strong>do</strong>” em escrever na língua<br />

portuguesa.


166<br />

Se durante a égide <strong>do</strong> “oralismo” 85 os sur<strong>do</strong>s não puderam se<br />

expressar em suas próprias línguas e tiveram que se submeter ao<br />

<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s ouvintes para sobreviver, agora, num perío<strong>do</strong> pós-colonial,<br />

é o momento de viabilizarem suas diferenças culturais e linguísticas.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, a tradução, por se constituir em “zonas de contato”, é<br />

um <strong>do</strong>s espaços que pode dar visibilidade a essas diferenças. A reflexão<br />

sobre uma prática de tradução frequente entre escritores africanos e<br />

uma outra – de uma intelectual indiana (Spivak) que, ao traduzir, a<strong>do</strong>ta<br />

estratégias que expõem as diferenças culturais entre coloniza<strong>do</strong> e<br />

coloniza<strong>do</strong>r – ilustra o presente debate.<br />

Os intelectuais africanos, segun<strong>do</strong> Adejunmobi (1998), vêm<br />

usan<strong>do</strong> a “tradução composicional” no intuito de problematizar o papel<br />

das línguas européias na literatura africana. A forma como Adejunmobi<br />

apresenta essa estratégia de tradução permite ao leitor compreender o<br />

posicionamento político desses intelectuais em relação a sua cultura e à<br />

cultura inglesa. Para compreender essa estratégia, trago o exemplo <strong>do</strong><br />

escritor nigeriano Gabriel Imomotimi Gbaingbain Okara, <strong>do</strong> grupo étnico<br />

ijaw, cuja obra mais conhecida, “A Voz”, traz como protagonista<br />

“Okolo”, 86 que, a exemplo de inúmeros africanos pós-coloniais, é<br />

assombra<strong>do</strong> por seus ideais, ao mesmo tempo em que se sente<br />

aprisiona<strong>do</strong> em sua própria comunidade.<br />

Essa obra é considerada um trabalho memorável da literatura<br />

africana, principalmente por ter sua origem na língua ijaw, 87 que só é<br />

usada na modalidade oral. Okara escreve diretamente em inglês aquilo<br />

que vê de sua comunidade. Apesar da ausência de um texto escrito a<br />

partir <strong>do</strong> qual realizaria sua tradução, Okara sente a necessidade de que<br />

85<br />

Ver Sanchez (1990), Lane (1992) e Skliar (1997)<br />

86<br />

Okolo, na língua ijaw, significa “a voz”.<br />

87<br />

A Nigéria tem 521 línguas distintas. Desse número, 510 são línguas vivas, duas<br />

segundas línguas sem falantes nativos e 9 línguas extintas. Em algumas regiões da<br />

Nigéria, grupos étnicos falam mais de uma língua. A língua oficial da Nigéria é o inglês,<br />

a antiga língua colonial, foi escolhida para “facilitar” a unidade cultural e linguística <strong>do</strong><br />

país. Entretanto, as principais línguas faladas na Nigéria são Hausa, Igbo, Yorubá, E<strong>do</strong>,<br />

Efik, Ibibio e Annang. A língua Ijaw ou Ijo, apesar de não ser uma das línguas principais<br />

da Nigéria, é falada em to<strong>do</strong> o Delta <strong>do</strong> Rio Niger.


167<br />

sua língua nativa apareça em uma língua européia, já que esta não<br />

basta para expressar as idéias e as histórias que tem a contar sobre o<br />

seu povo.<br />

Como um escritor que acredita na máxima utilização<br />

possível de idéias africanas, da filosofia africana e <strong>do</strong><br />

folclore e imagens africanos, sou da opinião de que a<br />

única maneira de usá-los de maneira eficaz é traduzi-los<br />

quase que literalmente da língua africana nativa <strong>do</strong><br />

escritor para qualquer língua européia que ele esteja<br />

utilizan<strong>do</strong> como meio de se expressar (OKARA apud<br />

ADEJUNMOBI, 1998, p. 64).<br />

As traduções de Okara da língua ijaw para o inglês, por serem<br />

“quase que literalmente da língua africana nativa <strong>do</strong> escritor para<br />

qualquer língua européia”, se aproximam-se da forma como o sur<strong>do</strong><br />

traduz a língua de sinais para a língua portuguesa. A tradução de Okara<br />

para o inglês é realizada a partir da estrutura gramatical da língua ijaw,<br />

trazen<strong>do</strong> fortes marcas no campo da sintaxe e da semântica da língua<br />

ijaw para o inglês. Segun<strong>do</strong> Adejunmobi (1998, p. 165), ao traduzir, o<br />

autor deliberadamente modifica a língua inglesa no intuito de<br />

indigenizá-la.<br />

[...] a modificação de línguas européias nesses textos<br />

geralmente resulta de uma intenção deliberada de<br />

indigenizar a língua européia. A real meto<strong>do</strong>logia desses<br />

projetos de indigenização, por sua vez, com freqüência se<br />

sustenta em referências à tradução.<br />

No romance “A Voz”, Okara, ao mesmo tempo em que retrata as<br />

incoerências <strong>do</strong> governo nigeriano depois que os britânicos foram<br />

expulsos da Nigéria, também subverte a escrita inglesa quan<strong>do</strong> traduz o<br />

seu romance para o inglês a partir da estrutura gramatical de sua língua<br />

nativa. Adejunmobi (1998, p. 167) evidencia essa prática de tradução a<br />

partir de uma frase <strong>do</strong> romance:<br />

“Você não pode uma coisa eu fiz não, colocar sobre minha<br />

cabeça” (OKARA, 1964, p. 71); significa “Você não pode


168<br />

me acusar de um ato <strong>do</strong> qual não sou culpa<strong>do</strong>”. A posição<br />

posterior <strong>do</strong> verbo [colocar] na frase de Okolo e em vários<br />

outros exemplos <strong>do</strong> romance reflete a ordem das palavras<br />

em Ijaw, a primeira língua de Okara, e assim pode ser<br />

considerada uma evidência de tradução a partir de uma<br />

língua nativa.<br />

Essa forma de traduzir a partir da língua nativa é o que alguns<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s chamam de “escrita surda” ou “o jeito sur<strong>do</strong> de<br />

escrever”. Miranda (2007), em sua tese de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>, assume em<br />

vários momentos esse “jeito sur<strong>do</strong> de escrever”.<br />

Aqui nesta escola, o currículo pertence aos mesmos<br />

sur<strong>do</strong>s, inclui-se poucos também as culturas <strong>do</strong>s ouvintes<br />

a conhecer importantes valores desses (p. 59).<br />

Essa forma de tradução que dá visibilidade ao tradutor, às línguas<br />

e às culturas marginais por um la<strong>do</strong> aproximam-se da tradução<br />

estrangeiriza<strong>do</strong>ra de Venuti, mas, por outro, se diferenciam quan<strong>do</strong><br />

assumem uma escrita que não segue a estrutura da língua de chegada,<br />

mas sim da língua nativa. Kourouma, outro escritor africano da Costa <strong>do</strong><br />

Marfim, corrobora essa idéia quan<strong>do</strong> afirma que há uma impossibilidade<br />

de traduzir um romance sem considerar a sua própria língua, nesse<br />

caso, o malinké. 88<br />

Escrever um romance em francês me atrapalha porque a<br />

língua francesa não me permite mostrar a mentalidade<br />

<strong>do</strong>s personagens. Esses personagens têm atitudes,<br />

padrões de raciocínio, cuja lógica só pode ser entendida<br />

em relação a sua própria língua (KOUROUMA apud<br />

ADEJUNMOBI, 1998, p. 167).<br />

Se Okara e Kourouma assumem a estrutura de sua língua nativa<br />

no momento da tradução, Spivak, com sua agenda feminista e póscolonial,<br />

trabalha no senti<strong>do</strong> de que a tradução deva expor ao máximo<br />

as formas de opressão em que vivem as mulheres, porém sem esquecer<br />

88<br />

O malinké é uma língua espalhada por toda a África Ocidental. Na Costa <strong>do</strong> Marfim,<br />

aproximadamente 3 milhões de pessoas falam o malinké. A língua malinké vem <strong>do</strong><br />

império Mali, que surgiu por volta <strong>do</strong> ano 1230 a. C.


169<br />

as diferenças culturais que existem entre elas. Para Spivak, as<br />

mulheres não podem ser retratadas como fazem algumas escritoras<br />

feministas estadunidenses, que reivindicam, em nome de todas as<br />

mulheres <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, os direitos da mulher a partir de suas próprias<br />

normas e valores, sem considerar as características específicas de cada<br />

cultura local, tornan<strong>do</strong>-se cúmplices de uma política colonialista como a<br />

estadunidense, que procura impor seus valores ao resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Ao<br />

a<strong>do</strong>tarem essa forma de tradução, essas feministas não percebem o<br />

risco de apagamento das culturas locais.<br />

A tradução por si só também pode funcionar em uma total<br />

cumplicidade com a lógica da expansão colonial, ao se<br />

tornar um instrumento que transpõe os valores<br />

<strong>do</strong>minantes à linguagem <strong>do</strong>s coloniza<strong>do</strong>s, fazen<strong>do</strong> com<br />

que estes corram o risco de compreendê-los como sen<strong>do</strong><br />

símbolos de liberação (BUTLER, 2000, p.35).<br />

O trabalho de tradução de Spivak não se limita à agenda<br />

feminista. A autora também traduziu parte da obra literária de Derrida<br />

para o inglês. Entretanto, nessa tese, procuro destacar as estratégias de<br />

tradução pós-colonial que a autora a<strong>do</strong>ta para traduzir, <strong>do</strong> bengali 89<br />

para o inglês, contos e romances da camponesa indiana Mahasweta<br />

Devi.<br />

Spivak, por defender as diferenças culturais entre as mulheres, ao<br />

traduzir os trabalhos de Mahasweta Devi tenta fazer com que os leitores<br />

imaginem uma realidade diferente da sua.<br />

Spivak utiliza seu conhecimento da cultura indiana e<br />

bengali para auxiliar os leitores ocidentais a “imaginar”<br />

[...] não um Outro abstrato, politicamente correto, mas a<br />

diferença cultural real em suas formas específicas. Spivak<br />

se recusa a apelar para qualquer construção metaficcional<br />

da vida <strong>do</strong>s indianos nativos. Ela faz isso proporcionan<strong>do</strong><br />

aos leitores, além da história traduzida, informações<br />

relativas ao contexto na forma de um prefácio <strong>do</strong> tradutor,<br />

uma entrevista com o autor e um posfácio. A entrevista<br />

89<br />

Os Bengalis formam um grupo étnico de Bengala, um território dividi<strong>do</strong> entre a Índia<br />

e Bangladesh. A língua dessa etnia é o bengali.


170<br />

não só permite que o autor fale, como também situa o<br />

tradutor como partícipe na mediação. Marcar sua posição<br />

como tradutor, como sujeito media<strong>do</strong>r, é um importante<br />

aspecto da tradução pós-colonial (GENTZLER, 2002, p.<br />

209).<br />

Ao traduzir, Spivak traz a presença <strong>do</strong> tradutor para o texto<br />

mediante a forma como constrói o prefácio, o posfácio e as entrevistas<br />

com o autor. O uso desses paratextos lhe permite uma contextualização<br />

histórica, política e cultural que vai além <strong>do</strong> texto original. Esses<br />

paratextos geralmente estão relaciona<strong>do</strong>s ao perío<strong>do</strong> em que se<br />

circunscreve o texto original, assim como práticas culturais e políticas<br />

específicas da comunidade em que o autor está inseri<strong>do</strong>. 90<br />

Em suas traduções, a autora também intervém no nível lexical,<br />

usan<strong>do</strong> expressões diferentes daquelas padronizadas na língua de<br />

chegada para gerar um efeito de estranhamento. Por exemplo, o uso de<br />

breast-giver (“a que dá o seio” ou “amamenta<strong>do</strong>ra”) em vez de wetnurse<br />

(ama-de-leite), que é a expressão mais comum. Spivak também<br />

assume o inglês norte-americano em suas traduções, em lugar <strong>do</strong><br />

britânico, “talvez para alienar o leitor indiano educa<strong>do</strong> em inglês<br />

britânico, e ela salpica sua prosa com termos de gíria americana,<br />

interrompen<strong>do</strong> ainda mais o pláci<strong>do</strong> fluxo <strong>do</strong> inglês” (Ibid., p. 212). A<br />

postura de Spivak se contrapõe àquela velha perspectiva em que os<br />

textos indianos, para terem qualidade, teriam que ser traduzi<strong>do</strong>s para o<br />

inglês britânico – a velha idéia de superioridade da língua e cultura<br />

inglesa em relação às outras línguas e culturas.<br />

Para Spivak, o tradutor, ao salientar a incomensurabilidade de<br />

cada cultura, reconhece as suas diferenças. Essa forma de traduzir,<br />

segun<strong>do</strong> Bhabha, pode formar laços de solidariedade entre as culturas,<br />

através da consciência das limitações, contradições e incoerências que<br />

90<br />

Ao traduzir os trabalhos da indiana Mahasweta Devi, Spivak evidencia “o fato de que<br />

a propriedade da terra é compartilhada pelos membros da tribo; os grupos tribais<br />

representam um sexto da população indiana; a tribo de Devi utiliza um sistema de<br />

castas no qual ainda prevalece a vontade <strong>do</strong>s ‘intocáveis’; muitos costumes tribais<br />

foram criminaliza<strong>do</strong>s pelo governo pós-colonial; muitas mulheres ainda são vendidas<br />

como merca<strong>do</strong>ria; o trabalho força<strong>do</strong> ainda existe e não existe uma palavra para<br />

‘órfão’, ou para ‘estupro’, na maioria das línguas tribais; dentre outros” (GENTZLER,<br />

2002, p. 210 – grifos no original).


171<br />

desenham nossa “humanidade”; e é compreendida por Bhabha como<br />

uma experiência de tradução entre <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s: o individual, movi<strong>do</strong><br />

por nossas “paixões e interesses”, situa<strong>do</strong> num momento histórico e<br />

espacial específico, e o coletivo, que aponta para além desse momento<br />

como um “horizonte ético ou moral além de nossa existência cotidiana”,<br />

proporcionan<strong>do</strong> “um meio de avaliar as condições de nossa vida e<br />

propor outros objetivos e valores”. 91<br />

91<br />

Durante o curso “Tradução Cultural e Identidades: Uma Leitura de Homi Bhabha”, o<br />

professor Lynn Mario T. Menezes de Souza repassou-me alguns textos, dentre eles o<br />

texto: “On Writing Rights”, de Homi Bhabha.


172<br />

CAPÍTULO V<br />

O (ENTRE)LAÇAR DA CAMINHADA<br />

David Battastini Filho (S/D - 1970) foi o primeiro<br />

educa<strong>do</strong>r sur<strong>do</strong> da Escola de Ensino Fundamental Helen<br />

Keller em Caxias <strong>do</strong> Sul, no Rio Grande <strong>do</strong> Sul.<br />

O outro é e não é ao mesmo tempo; o outro é o estranho,<br />

que desperta me<strong>do</strong>, mas também<br />

desperta curiosidade.<br />

Em sua diferença, o outro é<br />

aquele/aquilo que amamos e odiamos a um só tempo.<br />

Sílvio Gallo e Regina Maria de Souza


173<br />

Escrever esse capítulo, numa suposta perspectiva de fechamento,<br />

torna-se uma tarefa impossível de ser realizada, principalmente pelas<br />

múltiplas indagações que surgiram durante a caminhada e pelas<br />

diferentes trajetórias políticas que os intelectuais sur<strong>do</strong>s vêm<br />

articulan<strong>do</strong> em suas atividades no campo educacional, uma vez que<br />

essas articulações são contingenciais e não se fixam em um <strong>do</strong>s pólos –<br />

sur<strong>do</strong>/ouvinte, língua de sinais/língua oral, visualidade/sonoridade etc.<br />

Ao escrever a tese, procurei usar formulações mais abertas, tentan<strong>do</strong><br />

fazer da escrita algo transitório, sem pretensões generalizantes e nem<br />

afirmações universais.<br />

Ao articular as narrativas <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s no contexto <strong>do</strong><br />

discurso pós-colonial e de suas aproximações com o pós-estruturalismo,<br />

o fiz no intuito de investigar como a política da diferença subverte as<br />

relações de poder na educação de sur<strong>do</strong>s. Essa forma de investigar me<br />

levou por caminhos fronteiriços que imaginariamente dividem o mun<strong>do</strong><br />

sur<strong>do</strong> e o mun<strong>do</strong> ouvinte, porém não tive a preocupação de fixar ou<br />

harmonizar os espaços vazios entre essas fronteiras. O principal<br />

exercício foi compreender como os intelectuais vêm subverten<strong>do</strong> as<br />

relações de poder nesses espaços intersticiais, onde as trocas<br />

individuais e coletivas de valores culturais não podem ser negadas, mas<br />

politicamente negociadas.<br />

As questões formuladas a partir das leituras das narrativas <strong>do</strong>s<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s fizeram-me compreender que, mesmo viven<strong>do</strong><br />

nesses espaços intersticiais, onde a interação entre sur<strong>do</strong>s e ouvintes é<br />

permanente, os intelectuais sur<strong>do</strong>s continuam a reivindicar o direito de<br />

não perder suas raízes, seus artefatos culturais, principalmente aqueles<br />

associa<strong>do</strong>s à sua diferença cultural e linguística. Por isso, defini a<br />

“estrangeiridade surda” como o primeiro eixo de análise com o objetivo<br />

de analisar a complexidade <strong>do</strong>s loci de enunciação <strong>do</strong> povo sur<strong>do</strong> que,<br />

para sobreviver, permanentemente tem que criar formas de<br />

enfrentamento entre mun<strong>do</strong>s tão díspares, e ao mesmo tempo tão<br />

entrelaça<strong>do</strong>s entre si, como o <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>s ouvintes


174<br />

O sur<strong>do</strong>, por nascer “fora de lugar” linguística e culturalmente,<br />

tem que fazer uma diáspora ao contrário e reescrever a sua história de<br />

geração em geração. Said (2003, p. 46) mostra a fratura incurável das<br />

pessoas que vivem “entre mun<strong>do</strong>s”, como o caso <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong><br />

afirma que o exílio é uma forma de solidão vivida fora <strong>do</strong> grupo; mesmo<br />

quan<strong>do</strong> “nos compele a pensar sobre ele”, ainda assim “é terrível de<br />

vivenciar”, e as realizações no exílio “são permanentemente minadas<br />

pela perda de algo deixa<strong>do</strong> para trás para sempre”.<br />

As narrativas <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s evidenciam que a <strong>do</strong>r<br />

sentida e vivida no exílio é mais complexa que a descrita por Said,<br />

quan<strong>do</strong> pensada a partir da realidade <strong>do</strong> povo sur<strong>do</strong>. Linguística e<br />

culturalmente, os sur<strong>do</strong>s já nascem “sem lar” e “sem lugar”, isto é, os<br />

sur<strong>do</strong>s são “estranhos estrangeiros” em seu próprio lar, restan<strong>do</strong>-lhes,<br />

na maioria das vezes, apenas o exílio como alternativa de<br />

sobrevivência. Por isso, talvez a grande maioria deles opta em viver em<br />

centros cosmopolitas, principalmente por propiciar os encontros “à<br />

meia-luz” e suas interações mais dura<strong>do</strong>uras nos “refúgios políticos”<br />

(escolas e associações de sur<strong>do</strong>s).<br />

Os sur<strong>do</strong>s, por viverem dispersos, sonham eternamente com sua<br />

comunidade imaginada, provavelmente movi<strong>do</strong>s pelo desejo de<br />

significarem em sua própria língua e cultura. Ao criarem a narrativa de<br />

nação surda, os sur<strong>do</strong>s colocam-se como um povo que, como tantos<br />

outros, não possui um território, mas tem os seus artefatos culturais<br />

reconheci<strong>do</strong>s por to<strong>do</strong>s aqueles que se constituem a partir das línguas e<br />

das culturas surdas, independentemente <strong>do</strong> lugar em que vivem. Mas<br />

toda narrativa de nação se dá no enfrentamento entre forças<br />

totaliza<strong>do</strong>ras que enfatizam a homogeneidade da nação e as forças<br />

culturais que salientam suas diferenças. Nesse senti<strong>do</strong>, um <strong>do</strong>s grandes<br />

desafios <strong>do</strong> povo sur<strong>do</strong> é o de não permitir que a visão pedagógica de<br />

nação apague as diferenças presentes no próprio seio <strong>do</strong> povo sur<strong>do</strong>.<br />

Caso contrário, a nação surda será narrada como qualquer nação<br />

moderna, apenas com “seus pais funda<strong>do</strong>res, seus textos básicos,


175<br />

quase religiosos, uma retórica <strong>do</strong> pertencer, marcos históricos [...]<br />

inimigos e heróis oficiais” (SAID, 2003, p. 49), crian<strong>do</strong> uma falsa<br />

narrativa de nação.<br />

Os depoimentos <strong>do</strong>s intelectuais sur<strong>do</strong>s também me permitiram<br />

compreender algumas estratégias de sobrevivência de um povo que<br />

vive permanentemente em fronteiras. Ao narrarem suas intervenções<br />

políticas, os intelectuais sur<strong>do</strong>s evidenciam as estratégias que utilizam<br />

para combater as representações colonialistas em relação ao seu povo.<br />

Por isso, defini o segun<strong>do</strong> eixo de análise de “o intelectual sur<strong>do</strong> e suas<br />

intervenções políticas”.<br />

As estratégias de sobrevivência como intervenções políticas<br />

assumem diferentes contornos entre os intelectuais sur<strong>do</strong>s na<br />

desconstrução das narrativas colonialistas que simplificam,<br />

generalizam, fixam e essencializam o povo sur<strong>do</strong> em uma suposta<br />

realidade emoldurada pela estereotipia da deficiência. Para os<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s, as narrativas são sempre históricas, sempre<br />

posicionais, sempre um acontecimento, o que significa dizer que não<br />

possuem senti<strong>do</strong>s fixos, verdades absolutas e pontos finais. As<br />

narrativas são vistas como práticas que disputam significa<strong>do</strong>s diversos.<br />

Além disso, não há narrativa fora de regimes de verdade, ou que se<br />

produza sem a articulação de um conjunto de saberes ti<strong>do</strong>s como<br />

váli<strong>do</strong>s em certa cultura, em certo tempo histórico.<br />

Para subverter o discurso colonialista, os intelectuais sur<strong>do</strong>s<br />

problematizam as relações de poder entre sur<strong>do</strong>s e ouvintes, por<br />

saberem que o poder é visto como algo que se exerce. É efeito de<br />

relações que vão se estabelecen<strong>do</strong> e não se localizam em um ponto<br />

único; são móveis, espraia<strong>do</strong>s em todas as direções. O poder opera<br />

definin<strong>do</strong> inúmeros pontos de luta e focos de resistência. O poder não<br />

tem apenas posições restritivas, ele também produz saber. “Mas existe<br />

um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse [...] saber”<br />

(FOUCAULT, 1985, p. 71). Nesse senti<strong>do</strong>, os intelectuais sur<strong>do</strong>s não se


176<br />

colocam na posição de agentes da verdade, mas sim de “lutar contra as<br />

formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o<br />

instrumento: na ordem <strong>do</strong> saber, da ‘verdade’, da ‘consciência’, <strong>do</strong><br />

discurso” (id., – grifos no original).<br />

Os intelectuais sur<strong>do</strong>s, mesmo saben<strong>do</strong> que não podem falar fora<br />

<strong>do</strong> “sistema de poder”, vêm estruturan<strong>do</strong> suas estratégias de<br />

intervenção política, no senti<strong>do</strong> de colocar em circulação outros<br />

poderes/saberes, diferentes daqueles que circulam no discurso<br />

colonialista. Dentre as diferentes formas de intervenção política, o<br />

desejo de formarem uma camada de educa<strong>do</strong>res-intelectuais<br />

organicamente articula<strong>do</strong>s é a mais conhecida. Talvez por serem<br />

fortemente marca<strong>do</strong>s pelo debate <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s culturais, os intelectuais<br />

sur<strong>do</strong>s, para se contraporem aos discursos colonialistas, sentem a<br />

necessidade de criar os seus próprios intelectuais para serem um grupo<br />

de vanguarda e criarem o seu próprio projeto político no campo da<br />

educação de sur<strong>do</strong>s.<br />

A produção e a circulação <strong>do</strong>s saberes linguísticos sur<strong>do</strong>s têm si<strong>do</strong><br />

uma dessas formas de resistência pós-colonial na educação brasileira,<br />

por isso escolhi, como último eixo de análise, “o intelectual sur<strong>do</strong> e seus<br />

saberes linguísticos”. Porém, a questão não é tão simples. Em um país<br />

como o Brasil, com uma política monolíngüe, torna-se quase impossível<br />

a sobrevivência de povos em que há uma incomensurabilidade entre<br />

culturas tão distintas, como é caso das culturas surdas e ouvintes. Para<br />

poderem significar em sua própria língua, o povo sur<strong>do</strong> vem a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong><br />

estratégias de empoderamento de sua língua tanto na modalidade<br />

sinalizada como na modalidade escrita, além de a<strong>do</strong>tar estratégias de<br />

tradução para a língua portuguesa que permitam incorporar a sua<br />

“estranha estrangeiridade” linguística e cultural.<br />

Em síntese, a tese se debruçou, por um la<strong>do</strong>, sobre as estratégias<br />

que os intelectuais sur<strong>do</strong>s a<strong>do</strong>tam para problematizar a sua condição<br />

humana de viver em um país que, por ser monolíngue, tem dificuldades


177<br />

em reconhecer politicamente as suas diferenças. Por isso, suas ações<br />

políticas se centram na “negociação na prática” (Hall, 2003), porque em<br />

espaços intersticiais a negociação de senti<strong>do</strong> entre culturas sempre é<br />

relacional, mesmo que se dê de forma contingencial. E, por outro la<strong>do</strong>,<br />

pela sua condição de exílio, mesmo ten<strong>do</strong> uma língua e uma cultura, os<br />

sur<strong>do</strong>s não pertencem geograficamente a nenhum lugar. Desde o<br />

nascimento, já vivem em exílio e sonham, um dia, encontrarem o seu<br />

“refúgio” político.<br />

Na construção dessas reflexões, tive as mãos de diferentes<br />

intelectuais sur<strong>do</strong>s apoian<strong>do</strong>-me com suas paixões, dúvidas e certezas,<br />

principalmente nos momentos de travessias entre mun<strong>do</strong>s tão díspares<br />

como os <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>s ouvintes. Aprendi com eles que o “real não<br />

está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da<br />

travessia” (ROSA, 1979, p. 52). Palmilhamos algumas veredas,<br />

entrelaçan<strong>do</strong> fios de diferentes traços, espaços e texturas; permeamos<br />

“entre lugares”, “onde os pastos carecem de fechos” (Ibid., p. 9); para<br />

abrir caminhos, rastreamos teorias, áreas e campos que se tocam, se<br />

deslocam, se entrecruzam, mas somam-se ao narrar a experiência de<br />

vidas vividas em exílio.<br />

E encerro parafrasean<strong>do</strong> Guimarães Rosa: com essa narrativa,<br />

talvez você ache mais <strong>do</strong> que eu a minha verdade. Fim <strong>do</strong> que foi e<br />

início <strong>do</strong> que vai ser.


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