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O Desenho da Utopia – Rua Viva Volume I - DHnet

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o desenho <strong>da</strong> utopiaBetinho Duarte2004


PPJosé do Carmo RochaJosé Flávio Rodrigues PereiraJosé Júlio de AraújoJosé Matheus Pinto FilhoJosé Pereira Martins Filho - ZequinhaJosé Prímola FerreiraJosé Renato Campos do AmaralJosé Roberto Gonçalves RezendeJosé Rocha Filho - Frei MatheusJosé Toledo de OliveiraJuarez Guimarães de BritoJudith Vieira LisboaLenine Moreira <strong>da</strong> SilvaLucimar Brandão GuimarãesLúcio Petit <strong>da</strong> SilvaLuiz Pompeu de CamposMag<strong>da</strong> Magalhães AlvesMárcio José de AraújoMarcos Magalhães RubingerMaria Auxiliadora Lara BarcellosMaria <strong>da</strong>s Graças TeixeiraMaria Floripes Nascimento AlvesMaria Lúcia Petit <strong>da</strong> SilvaMário Alves de Souza VieiraMário Bento <strong>da</strong> SilvaMaurício de Rezende Pires AlcântaraMilton Freitas de CarvalhoMilton Soares de CastroMurilo Pinto <strong>da</strong> SilvaNelson José de Almei<strong>da</strong>Nestor VerasNey Jansen Ferreira JúniorOndina Pedrosa NahasOracílio Martins Gonçalves396400404413417421425428432437441445448451454457461464470474479481486490494499503506509518522524528531Orestes Timbaúva RodriguesOrlando <strong>da</strong> Silva Rosa Bonfim JúniorOsório <strong>da</strong> Rocha DinizOsvaldo Orlando <strong>da</strong> CostaOswaldo França JúniorOtaviano de CarvalhoPaschoal Souza LimaPaulo Costa Ribeiro BastosPaulo Roberto Pereira MarquesPedro Alcântara MoreiraPedro Alexandrino de Oliveira FilhoRaimundo CarlosRaimundo Eduardo <strong>da</strong> SilvaRaimundo Gil <strong>da</strong> SilvaRaimundo Gonçalves FigueiredoRaul Amaro Nin FerreiraRoberto Décio de Las CasasRodolfo de Carvalho TroianoRodolpho Fritsch FilhoRonaldo Mouth QueirozSami SirihalSinval de Oliveira BambirraSônia Maria de Moraes Angel JonesStuart Edgar Angel JonesSylvio de VasconcellosTherezinha Viana de AssisTito de Alencar Lima - Frei TitoVinícius José Nogueira Caldeira BrantVirgílio Faustino SalomãoWaldemar <strong>da</strong>s Dores - MamárioWalkíria Afonso CostaWalter de Souza RibeiroZilah Souza SpósitoZuleika Angel Jones - Zuzu Angel533536541543546549553555557560562567570575578580583587590593597600610613617621625629632636639647651653


PApêndiceUma palavraMemória Essencial, Helena GrecoNão Chegou para Todos, Nilmário Miran<strong>da</strong>Há Esperança!, Patrus AnaniasContra a Espoliação <strong>da</strong>s Lembranças, Ângela MariaCyrino de Andrade et al.Livros que apoiei ou escrevi657659661663666668671Prefácio<strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>9


Carta de esperançaPrefácio <strong>da</strong> primeira ediçãoCaros amigos,Há 30 anos, os nossos sonhos de construção de um Paísmelhor foram destruídos. Nossas vi<strong>da</strong>s foram marca<strong>da</strong>s, definitivamente,pelo impacto direto do Golpe Militar. Nossos planosforam mu<strong>da</strong>dos, a partir do momento que nos defrontamos coma censura, o afastamento <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong>des, a repressão violenta,a clandestini<strong>da</strong>de, a tortura e passamos a conviver, no dia-adia,com per<strong>da</strong>s e mortes.Quantos de nós passaram a resistir, heroicamente, de formase níveis diferentes, <strong>da</strong> luta arma<strong>da</strong> à soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de dos quese propunham a aju<strong>da</strong>r os companheiros.Continuamos defendendo a idéia que predominou e nosuniu durante vinte anos: a LIBERDADE.Predominavam entre todos - milhares de jovens deste País- a generosi<strong>da</strong>de e a abnegação dos que abriam mão de tudo: <strong>da</strong>família, dos amigos, <strong>da</strong> profissão, do lazer, de um futuro seguro etranqüilo.Hoje, passados 30 anos, lutei para resgatar a lembrançade companheiros que, para mim e para to<strong>da</strong> a minhageração, foram personali<strong>da</strong>des marcantes, corajosas,dignas, movi<strong>da</strong>s por um profundo sentimento de amor aonosso País. Por esse Brasil, muitos deles lutaram, sofreram,foram perseguidos, presos, exilados, banidos, torturados emortos.Dei nomes a logradouros públicos de Belo Horizonte, emhomenagem póstuma a todos os nossos Companheiros mineirosque acreditaram e lutaram por um Brasil mais justo, mais livre,mais democrático. Busquei perpetuar a memória deles em nos-sas ruas, praças e aveni<strong>da</strong>s para que possam continuar encantados,como já dizia o nosso grande Guimarães Rosa.Desta forma, tenho certeza, procurei remir parte <strong>da</strong>memória histórica brasileira <strong>da</strong> qual esses companheiros nãoforam meros espectadores, mas elementos ativos e participantes.Tiveram valor, coragem e patriotismo, tornando-se merecedoresde nossas lembranças e respeito, pela luta pelos oprimidos,em busca de um Brasil melhor.O Golpe de 64, que atingiu a todos nós, atingiu, também,um Brasil que acreditava em seu presente e que luta por alvosque não podem continuar inatingíveis: a liber<strong>da</strong>de, a participaçãodemocrática, a justiça social, a ética na política, a afirmação<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de reafirmando, sempre, adigni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pessoa humana.Passados 30 anos, voltamos a dizer: 64 NUNCA MAIS!Belo Horizonte, agosto de 1994.Betinho DuarteVereador pelo PT, Secretário-Geral <strong>da</strong> Câmara Municipal deBelo Horizonte14 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>15


Apresentação<strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>17


Valeu a pena!Eu iniciei minha militância política muito jovem: com 16anos de i<strong>da</strong>de, na resistência ao golpe de 64. Esse golpe que fez40 anos de repúdio nesse ano e agora parece tão distante. Quemé <strong>da</strong> minha geração encontrou, anos depois, aquilo que a gentesempre sonhou, que era a confluência <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> no Brasil, <strong>da</strong>esquer<strong>da</strong> que vinha de uma derrota muito grande, mas queconstruiu a retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong> democracia.Nós perdemos muitos companheiros, nós sofremos umimpacto muito grande naqueles anos de luta, <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 70,mas enfim continuamos a nossa militância com o mesmo objetivo,a confluência <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> revolucionária, com o movimentosindical, o movimento popular e os movimentos organizados.Isso tudo confluiu e aí cresceu a nossa esperança de, pela viademocrática, começar a transformar esse País. E nós conseguimosisso. Não conseguimos isso sozinhos. Conseguimosem uma caminha<strong>da</strong> junto com vários aliados, outros companheirosque estão em outros partidos, mas compartilham essamesma esperança. Enfim, é a caminha<strong>da</strong> do povo brasileiro.Quando eu olho para trás e vejo essa trajetória, eu vejo otempo heróico e aventureiro. Quando eu olho para trás vejo quetodos nós <strong>da</strong>quela geração podemos ter orgulho, olhar para tráse dizer assim: valeu a pena. Valeu a pena o nosso esforço, onosso sacrifício, a nossa luta, as nossas per<strong>da</strong>s, os nossos sofrimentose as nossas alegrias. As alegrias que ficaram nessa caminha<strong>da</strong>.Quando olho para trás vejo como o Brasil melhorou,como o Brasil mudou e mudou para melhor. Nós tivemos queconquistar nossa participação política com muito sacrifício, commuito empenho. Nos orgulhamos disso, mas nós não queremosque isso se repita e eu não quero que nenhuma outra geração<strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>19


vez mais amplia<strong>da</strong> cria as condições para a participação política,que, por sua vez, permite que o País avance na justiça e naigual<strong>da</strong>de social. Este é o nosso objetivo, esta é a nossa luta, eseguir neste caminho é manter viva a esperança <strong>da</strong>queles quecontribuíram para que chegássemos até aqui.Brasília, 28 de agosto de 2004José Dirceu de Oliveira e SilvaMinistro-chefe <strong>da</strong> Casa Civil <strong>da</strong> Presidência <strong>da</strong> RepúblicaAs <strong>Rua</strong>s <strong>Viva</strong>s22 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>23


Gerais, onde defendeu com veemência o restabelecimento <strong>da</strong>democracia no País.Sempre sonhando com um Brasil democrático, socialmentejusto, sem miséria e sem desigual<strong>da</strong>des, participou <strong>da</strong>Passeata dos 100 Mil, no Rio de Janeiro. A essa participaçãosomou-se sua presença na campanha presidencial do deputadoUlisses Guimarães. Mais tarde, participou do movimento <strong>da</strong>sDiretas Já e <strong>da</strong> campanha de Tancredo Neves à presidência <strong>da</strong>República, ocasião em que já se encontrava na condição deadvogado do MDB.Vítima de câncer, morreu no dia 2 de outubro de 1993, emBelo Horizonte. De sua vi<strong>da</strong>, to<strong>da</strong> ela um poema de amor àfamília, aos amigos, aos brasileiros e ao Brasil, ficaram muitoslembranças. E de sua alma sensível ficaram palavras cristaliza<strong>da</strong>ssob a forma de poemas, ver<strong>da</strong>deiros hinos aos sonhos deliber<strong>da</strong>de, como, por exemplo, o que neste breve relato se transcreve:Bala<strong>da</strong> para Dolores IbarruriSilêncio.La Pasionária está morrendo.Silêncio em Plaza de Torros,Silêncio em El Alcázar,Silêncio em La Hispani<strong>da</strong>d.Silêncio.Que já é morta Dolores IbarruriAs violetas de Madri se vestem de luto.E de crepe se cobrem também as buganvílias de Valência.Por isso Dolores viverá.Nas pedras <strong>da</strong>s barrica<strong>da</strong>s,No peito opresso dos pobres e,Para a insônia dos tiranos,Sua voz é posta a escuta: los fascistas no pasarán...Entre gen<strong>da</strong>rmes inermes,Em meio aos pátrias de Espanha,Ciganos e vagabundos, pelas calles madrilenhasDolores caminhará.Seu grito há de ecoar,Nos penedos de Toledo,No vento <strong>da</strong> Catalunha,Nas noites de An<strong>da</strong>luzia,No férreo bardo dos bascos:No passarán, no passarán...E quando romper a aurora,A aurora dos deser<strong>da</strong>dos,Dolores vai se encontrar.Na alma rubra <strong>da</strong> IbériaNo firmamento a exclamarSueña e fulgura,Suenã e fulgura,Como uma estrela em la altura.26 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>27


Adriano Fonseca FilhoADHERBAL TEIXEIRA ROCHAAdriano Fonseca Filho nasceu em PonteNova, Minas Gerais, no dia 18 de dezembro de1945, filho de Adriano Fonseca e de Zely EustáquioFonseca, pais zelosos, de crença presbiteriana.Era o segundo dos cinco filhos: nalinha familiar vinha depois de Ana Maria e eraseguido por Mônica, Luís Eduardo e Ricardo.Ao chegar à i<strong>da</strong>de do antigo curso ginasial,os pais o man<strong>da</strong>ram para o Colégio Batista,em Belo Horizonte, onde ele estudou nacondição de aluno interno. Posteriormente,mudou-se para Lavras, onde fez o curso científico, no InstitutoGammon, também em regime de internato. Aos 17 anos, terminouo curso científico em Lavras, transferindo-se, então, para oRio de JaneiroAluno brilhante desde o início de seus anos escolares,Adriano tirava sempre os primeiros lugares nas escolas por ondepassou. Muito ligado à música, estu<strong>da</strong>va e tocava piano desdeos 5 anos.No decorrer do tempo em que estudoufora, Adriano só passava em casa operíodo de férias. Depois que se mudoupara o Rio, suas i<strong>da</strong>s ficaram ain<strong>da</strong> maisescassas. Os telefonemas naquele tempoeram difíceis. E cartas eram raras, geralmentepara a mãe.Com o distanciamento, os irmãosacreditavam que Adriano desenvolvesse28 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>29


alguma ação política pois, apesar de serem mais novos, tinhamconhecimento <strong>da</strong> luta de oposição ao regime.E Adriano gostava de idéias, gostava de ler e estu<strong>da</strong>va Filosofia.Era uma festa aguar<strong>da</strong>r aquele irmão silencioso, atraente,fino, elegante, que sempre usava produtos de quali<strong>da</strong>de.Muito alto, medindo 1.96 metros, ele jogava basquete em PonteNova. E, na ci<strong>da</strong>de, estreitava sua amizade com o compositor ecantor João Bosco. Adriano era também muito ligado às artesplásticas, gostava de pintar e, principalmente, de fazer gravuras.E os irmãos ganhavam livros e incentivo para se dedicarem aostrabalhos de escola!Pouco depois <strong>da</strong> morte de Edson Luís de Lima Souto, noCalabouço, em 1968, Adriano foi para Ponte Nova e lá ficou duranteseis meses com a família, sem que ninguém soubesse o porquê.No final dos anos 60, quando foi para o Rio de Janeiro,Adriano morou num apartamento em Ipanema, a república deintelectuais, escritores e artistas. Na época, trabalhou no SuperiorTribunal Eleitoral e se dedicou ao teatro, encenando e escrevendopeças teatrais. Um <strong>da</strong>s peças de que participou como atorfoi encena<strong>da</strong> no Teatro Tereza Rachel, na PraçaCardeal Arcoverde, naquela ci<strong>da</strong>de.No Rio de Janeiro, Adriano fez o cursinhopré-vestibular no Centro Acadêmico EdsonLuís (CAEL), em 1968 e, nesse período, iniciousua participação no Movimento Estu<strong>da</strong>ntil(ME), na luta por aumento de vagasnas universi<strong>da</strong>des. É importante destacar queo CAEL foi fun<strong>da</strong>do em 1968 e criado por alunosligados ao ME por ocasião do desmembramento<strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de Nacional de Filosofia(FNFI) e <strong>da</strong> criação do Instituto de Filosofia eCiências Sociais (IFCS). Na primeira gestãodo CAEL, o presidente eleito foi Ronaldo deOliveira Rocha, aluno do curso de CiênciasSociais. O CAEL influiu muito no IFCS, cujasaulas eram ministra<strong>da</strong>s por alunos e professores do próprio Instituto,tendo por diretora a aluna Myriam Ribeiro Costa.No final do ano, Adriano foi aprovado no vestibular e, em1969, iniciou o curso de Filosofia.Ain<strong>da</strong> no primeiro semestre de 1969, começou sua militânciapolítica. Participando ativamente do ME, filiou-se ao PartidoComunista do Brasil (PC do B).Com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), intensifica<strong>da</strong>a repressão, Adriano foi obrigado a entrar para a clandestini<strong>da</strong>de.Nesse período, foi morar num sótão em um prédioantigo, no Leblon, que dividiu com Ronald de Oliveira Rocha,seu companheiro de organização. Lá ele viveu durante um anoe meio. O amigo Ronald, e também a Myriam, muito ligados aAdriano, informariam depois que ele era uma pessoa muitomeiga, educa<strong>da</strong> e amiga. Uma pessoa combativa, que se atiravapor inteiro no que acreditava. Um idealista, um profundohumanista. Segundo os amigos, a dedicação de Adriano ao partidovinha de um vínculo profundo com a luta popular e osideais revolucionários. E era um prazer conviver com aqueleamigo que gostava muito de música popular brasileira, jazz,música erudita e, principalmente, dos Beatles, aquele amigoque jogava xadrez, lia muito, gostando mais de literatura eteatro do que de livros teóricos - mesmo os de filosofia - queeram de sua área. Aquele amigo que, como bom mineiro, adoravauma goiaba<strong>da</strong>!No final de 1970, início de 1971, Adriano participou <strong>da</strong>Comissão Organizadora <strong>da</strong> Juventude Patriótica, movimento defrente única de jovens, criado sob a iniciativa do PC do B. Foinessa época que ele abandonou o emprego por questões desegurança e por já estar vivendo como clandestino. E, naseqüência, colocou-se então à disposição do Comitê Central doPC do B, para fazer um trabalho especial no campo.Adriano foi então destacado para ir para o Araguaia, ondeviveu na região do Gameleira, incorporando-se ao DestacamentoB, cujo coman<strong>da</strong>nte era Osvaldo Orlando <strong>da</strong> Costa - O Osvaldão.30 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>31


Usou os codinomes Chico, Queixa<strong>da</strong>, Alberto, Felipe e Lola.Tinha, nessa época, 23 anos de i<strong>da</strong>de.Ao se despedir de Ronald e Myriam, não só companheirosde clandestini<strong>da</strong>de, mas amigos por quem tinha muito afeto,Adriano separou algumas roupas de que mais gostava, buscandopresenteá-los carinhosamente: uma jaqueta Lee, de corareia, um pijama importado, uma camisa e lenços de se<strong>da</strong>.Adriano Fonseca Filho foi morto no dia 28 ou 29 de novembrode 1973 por um franco atirador que, suspeita-se, tenha sidorecrutado entre os índios Suruís.32 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>33


Afonso Maria <strong>da</strong> CruzAfonso Maria <strong>da</strong> Cruz nasceu em 28 de fevereirode 1942, em Santa Rosa, município de Coromandel,Minas Gerais, filho de Teodoro João <strong>da</strong> Cruz e deMaria <strong>da</strong> Conceição <strong>da</strong> Cruz. Tinha dez irmãos:José Maria, Ildeu, Teodoro, Tomaz, Maria <strong>da</strong>sGraças, Maria José, Dora, Marta, Geraldo e Manoel.Era casado com Olímpia Franco Marra <strong>da</strong> Cruz, comquem teve sua única filha, Jussara.Discreto, simples, admirador <strong>da</strong> música sertaneja,defensor incansável do direito e <strong>da</strong> justiça, Afonso gostavamuito de escrever, refletindo em seus belos trechos suas avaliaçõese sentimentos sobre a reali<strong>da</strong>de que o cercava:Dura lex, sed lexJustiça, clama o povo massacradoPor ti, que és irmã gêmea <strong>da</strong> RazãoE do Direito!...Tens em tuas mãosEspa<strong>da</strong> Nua e pratos equilibrados.Sabes tu onde estás? Creio que não;Tu não vês, os teus olhos ven<strong>da</strong>dosTe proíbem os possíveis olhadosE não te permitem enxergar a Razão.Tu estás aos caprichos submissaDe autori<strong>da</strong>des alheias de preguiçaTornando-se, hoje, uma força morta!Bem conheces o campo que exploras?Parece que não. És cega, tu ignorasteu caminho e trilhas linhas tortas!Advogado formado em 1969 pelaFacul<strong>da</strong>de de Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (UFMG), foipetroleiro e membro <strong>da</strong> 1ª diretoria doSINDIPETRO/MG, eleita em 1963. Com oGolpe Militar de 1964, a diretoria foi cassa<strong>da</strong>.Reeleito em 1967, foi tambémimpedido de assumir o cargo, devido àintervenção do Ministério do Trabalho.Através do Ato Institucional nº 5 (AI-5),Afonso e outros companheiros foramdemitidos <strong>da</strong> Petrobrás. Somente com aanistia em 1979 e depois de muita luta, éque Afonso, com seus companheiros, foramreintegrados aos quadros <strong>da</strong> empresaem fins de 1985.No período do regime militar, durante a déca<strong>da</strong> de 60 e iníciode 70, Afonso, exercendo a advocacia, ocupou-se <strong>da</strong> defesade inúmeros presos políticos em auditorias militares, em váriospontos do País. Certa vez, quando acabava de fazer uma defesa,chegou a ser preso em plena Auditoria Militar em Juiz de Fora,ocasião em que foi levado para o Departamento de Ordem Políticae Social (DOPS).Também atuando nas áreas sindical e trabalhista, assessorouvários sindicatos em Minas, como o SINDIPETRO, o dosMetalúrgicos de Betim, o dos Jornalistas, dos Radialistas, oSENALBA, o MEBATABASE de Congonhas e o Sindicato dosMédicos. Ajudou também a fun<strong>da</strong>r vários sindicatos pelo interiordo Estado. Trabalhou, intensamente, nas Juntas de Conciliaçãoe Julgamento de Belo Horizonte, Betim, Contagem e Ouro Preto,como também acompanhou inúmeras sustentações no TribunalRegional do Trabalho (TRT).Além disso, sempre procurou encaminhar profissionalmenteos jovens advogados, com os quais dividia seu conhecimento,sua prática, o espaço físico do seu escritório e, especial-34 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>35


mente, suas preocupações com o aspecto social, seu compromissocom os trabalhadores desprotegidos de direitos e garantias.Faleceu no dia 28 de novembro de 1990, em acidente automobilístico,quando ia de Belo Horizonte para Contagem, onderesidia.36 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>37


Agnaldo Galvão Leal -Padre AgnaldoAgnaldo Galvão Leal, o Padre Agnaldo, nasceu no dia 27 deabril de 1903, na ci<strong>da</strong>de de Itaporanga D' Aju<strong>da</strong>, Sergipe. Foi ordenadoSacerdote no dia 1º de maio de 1927 e, mesmo estando ligadoà Arquidiocese de Aracaju, veio logo a seguir para BeloHorizonte. Nessa Arquidiocese, trabalhou em vários setores, sempreprocurando valorizar a pessoa humana, promover vi<strong>da</strong> melhorpara os pobres, profissionalizar os jovens que precisassem e desejasseme ajudá-los a conseguir emprego.Entre suas realizações incluem-se: a criação <strong>da</strong> Escola deServiço Social na Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de Minas Gerais(PUC-Minas); a implementação <strong>da</strong> casa <strong>da</strong>s domésticas; a grandeobra para os menores que traz o seu nome e está, hoje, sob os cui<strong>da</strong>dos<strong>da</strong> Congregação Pavoniana; a aju<strong>da</strong> ao mosteiro Nossa Senhora<strong>da</strong>s Graças, inclusive a determinação do terreno; o trabalhodesenvolvido na Ação Católica; o trabalho desenvolvido na Paróquiade Santo Antônio, onde ficou por 25 anos; o impulso inicialpara a Paróquia do Menino Jesus, no Santo Antônio; o trabalhodesenvolvido como capelão dos colégios Santa Maria, <strong>da</strong>s IrmãsDominicanas, e Santa Dorotéia, no bairro Sion, onde passou os últimosanos de sua vi<strong>da</strong>.Em 1933, prevendo o iníciodo tempo frio em Belo Horizonte,foi para Aracaju, como costumavafazer: veio a falecer no dia 17de maio de 1993, sendo sepultadoem sua ci<strong>da</strong>de natal, ItaporangaD' Aju<strong>da</strong>.38 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>39


Alcides Salles FilhoAlcides Salles Filho nasceu em Vitória, Espírito Santo, nodia 2 de maio de 1945, filho de Alcides Salles e de MiriamMagalhães Salles. Sua naturali<strong>da</strong>de capixaba ocorreu por acaso,pois sua família morava em Aimorés, Vale do Rio Doce, onde seupai era comerciante e fazendeiro. Por problemas de saúde de suamãe, portadora de um sopro no coração, os médicos recomen<strong>da</strong>ramque o parto fosse realizado numa ci<strong>da</strong>de grande, commaiores recursos, e a mais próxima era Vitória. Na ver<strong>da</strong>de,Alcides era mineiro <strong>da</strong> gema, sua mãe nascera em Muriaé, zona<strong>da</strong> Mata, e seu pai era de Bonfim. Alcides tinha três irmãos:Francisco, Mag<strong>da</strong>la e Eduardo.Iniciou os estudos em Aimorés, transferindo-se, posteriormente,para Colatina, no Espírito Santo, onde foi cursar, juntocom seu irmão Francisco, a terceira série do Ensino Fun<strong>da</strong>mentalno colégio interno.Algum tempo depois, a mãe, D. Miriam, mudou-se comparte <strong>da</strong> família para Vitória e reuniu os filhos em uma casa napraia do Canto. O pai continuava morando em Aimorés, mas osfilhos, já fora do internato, puderam <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong>de a seusestudos na companhia <strong>da</strong> mãe e no recesso do ambiente familiar.A razão <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça de D. Miriam fora exatamente a defacilitar o acesso de seus filhos à escola, e também porque assau<strong>da</strong>des eram grandes, principalmente dos que estavam nointernato. Na praia do Canto, eles ficaram durante quatro anos.Em 1960, to<strong>da</strong> a família mudou-se novamente, agora paraBelo Horizonte, onde o pai assumiu a gerência de ven<strong>da</strong>s de umaagência autoriza<strong>da</strong> de automóveis Ford, <strong>da</strong> qual participava,também, como acionista.Já morando em Belo Horizonte, Alcides terminou o EnsinoFun<strong>da</strong>mental e o Médio no Colégio Estadual Central, hoje EscolaEstadual Governador Milton Campos. Pouco depois, prestou ovestibular para o curso de Engenharia Mecânica <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (UFMG). Aprovado, cursou até oterceiro ano, quando paralisou os estudos por estar envolvido nomovimento estu<strong>da</strong>ntil. Estudou também Ciências Sociais, masacabou abandonando os cursos universitários para se dedicarinteiramente à luta política nos anos 60.Segundo seu pai, Alcides era um aluno aplicado, muitoestudioso e inteligente.Nessa ocasião, 1964, já estava militando na Ação Popular(AP), foi vice-presidente do Diretório Acadêmico (DA) <strong>da</strong> Escolade Engenharia <strong>da</strong> UFMG, assumindo a presidência, por causa doafastamento do presidente, em decorrência de razões políticas.Alcides Salles Filho trabalhou como operário <strong>da</strong> CompanhiaSiderúrgica Mannesman, na Ci<strong>da</strong>de Industrial, em BeloHorizonte, onde foi preso, em 1968, dentro de um ônibus <strong>da</strong>própria Companhia, fazendo panfletagem e divulgando ummovimento grevista. Ficou preso no Centro de Preparação deOficiais <strong>da</strong> Reserva (CPOR), mas foi libertado em segui<strong>da</strong>. Maistarde, condenado à revelia, foi para São Paulo, onde viveu naclandestini<strong>da</strong>de. Nessa ocasião, vinculou-se à Ação PopularMarxista Leninista (APML) e militou no movimento de oposiçãosindical dos metalúrgicos, juntamente com Waldemar Rossi eVito Giannotti. Foi preso pelo delegado Sérgio Paranhos Fleuryem 1972. Condenado pela Justiça Militar de São Paulo, cumpriupena de um ano no Presídio do Hipódromo.Depois de cumprir pena, Alcides tornou-se representante<strong>da</strong> Dourex, fábrica de lustres e luminárias de São Paulo.Alcides havia se casado, em 1967, com Elizabeth Ribeirode Oliveira, sua companheira de militância e de vi<strong>da</strong>, com quemteve três filhos: Helena, Ênio e PauIa. O casal morou na Ci<strong>da</strong>deIndustrial, no Vale do Jatobá e no bairro Cachoeirinha. De seusegundo casamento teve mais dois filhos: Francisco e Tiago.40 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>41


Os que tiveram a alegria de conviver com Alcides dizemque ele era amável, afetuoso, paciente e de bom humor. Gostavade jazz e de música popular brasileira.Alcides Salles Filho foi atropelado no centro de Belo Horizonte,no dia 6 de fevereiro de 1979, vindo a falecer no Hospitaldo Pronto-Socorro, de traumatismo craniano. Está enterrado noCemitério Parque <strong>da</strong> Colina, em Belo Horizonte.42 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>43


Aldo de Sá Brito de Souza NetoAldo de Sá Brito de Souza Neto nasceuem 20 de janeiro de 1951, no Rio de Janeiro,filho de Aldo Leão de Souza e TherezinhaBarros Câmara de Souza. Concluiu oEnsino Fun<strong>da</strong>mental no Colégio SantoInácio e fez o Ensino Médio no ColégioMallet Soares, também no Rio.Militante <strong>da</strong> Ação Libertadora Nacional(ALN), participou do ComandoRegional <strong>da</strong> organização no Rio. Atendiapelos seguintes nomes falsos: FernandoAntônio de Aráujo Barcelos, Wagner Luiz Santaro Pereira,Lourival Bozzo, Antônio Santana de Freitas e Luiz Carlos RibeiroMendes.Posteriormente, veio para Belo Horizonte, Minas Gerais,onde foi preso pelo Destacamento de Operações de Informaçõesdo Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI) em MinasGerais, no dia 2 de janeiro de 1971. Era acusado de uma frustra<strong>da</strong>ação arma<strong>da</strong>. Mas a ver<strong>da</strong>de é que, como acabara de chegardo Rio de Janeiro, fora escolhido como suspeito de ter participadodo seqüestro do embaixador <strong>da</strong> Suíça no Brasil, motivo peloqual foi submetido a torturas bárbaras.Aldo, já muito torturado, passou a ser castigado com acoroa-de-cristo, uma fita de aço que vai sendo gra<strong>da</strong>tivamenteaperta<strong>da</strong> e esmaga, aos poucos, o crânio do torturado.No dia 6 de fevereiro <strong>da</strong>quele ano, não resistindo às torturas,Aldo morreu, apresentando 2 centímetros de afun<strong>da</strong>mentono crânio. A polícia negou a autoria do assassinato e noticiouque ele morrera em decorrência de uma que<strong>da</strong> que sofrera aotentar fugir, saltando do terceiro an<strong>da</strong>r de um prédio.A Certidão de Óbito atesta sua morte em 7 de janeiro de1971. Foi firma<strong>da</strong> pelo Dr. Djezza Gonçalves Leite, médico quenão participara <strong>da</strong> necropsia.Sua avó relata que viu o neto pela última vez em outubrode 1970: ele estava magro e dizia que ia viajar. Mas nunca dissepara onde.44 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>45


Amílcar Vianna MartinsNascido em Belo Horizonte, Minas Gerais,em 8 de setembro de 1907, desde cedoAmílcar Vianna Martins demonstrou grandeinteresse pela Medicina e pelas CiênciasBiológicas, área que viria a escolherpara o desenvolvimento de uma extensa efértil vi<strong>da</strong> profissional.A primeira opção nesse sentido viria em1924, quando o jovem Amílcar ingressou naFacul<strong>da</strong>de de Medicina <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federalde Minas Gerais (UFMG). E o primeiro sinalde que aquele não era um estu<strong>da</strong>nte comum veio nesse mesmoano, o primeiro de sua vi<strong>da</strong> universitária, quando ele, procurandodesde cedo aliar a prática à teoria, começou a trabalhar noInstituto Ezequiel Dias do Instituto Oswaldo Cruz. Formando-seem 1929, o jovem quis logo aperfeiçoar-se e, com esse objetivo,foi estagiar nos Estados Unidos, para onde embarcou em 1937 afim de pesquisar sobre a febre maculosa. Publicou, em 1940, umtrabalho sobre a doença de Chagas descrevendo 25 casos <strong>da</strong>doença no oeste de Minas Gerais, um número maior do que ototal de casos conhecidos até então. Essa pesquisa foi determinantepara a criação do Centro de Estudos de Doença de Chagasem Bambuí, Minas Gerais.Em 1943, com o objetivo de trabalhar no Hospital Militar,mudou-se para Belém do Pará. Logo depois, com a intenção decombater o nazifascismo na Europa, alistou-se voluntariamentena Força Expedicionária Brasileira (FEB). No ano seguinte, dirigiu-separa a Itália. Voltando ao Brasil em 1945, retornou também46 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>47


às suas ativi<strong>da</strong>des na UFMG e no InstitutoEzequiel Dias. Durante o man<strong>da</strong>to de JuscelinoKubitschek, exerceu três cargos importantessucessivamente: foi diretor do InstitutoNacional de Endemias Rurais (INERU), diretordo Instituto Oswaldo Cruz e diretor-geral doDepartamento Nacional de Endemias Rurais.Crescendo ininterruptamente em sua carreira,Amílcar Vianna Martins realizava importantesestudos sobre parasitologia em gerale, especificamente, sobre febre maculosa, esquistossomose,doença de Chagas, escorpionismo,filariose, etc. Sua atuação foi fun<strong>da</strong>mentalpara a criação, em Belo Horizonte, do Centrode Pesquisa René Rachou. E por estar presentenesse Centro e na UFMG ao mesmo tempo, coube-lhe importantepapel na criação do Curso de Pós-Graduação em Parasitologia<strong>da</strong>quela universi<strong>da</strong>de, que já produziu extenso número de teses demestrado e doutorado e contribuiu significativamente para o progressodo conhecimento dessa área <strong>da</strong> Medicina em Minas.A brilhante carreira do médico e do professor sofreriagrande abalo no período <strong>da</strong> ditadura militar, quando, com oadvento do Ato Institucional nº. 5 (AI-5), Amílcar Vianna Martinsfoi aposentado compulsoriamente de seu cargo de professor-catedrático<strong>da</strong> UFMG. A medi<strong>da</strong> causou-lhe grande amargura,mas não lhe tirou a energia. Nos anos seguintes, o professorAmílcar, impossibilitado de trabalhar no Brasil, atuou como consultor<strong>da</strong> Organização Mundial de Saúde em Genebra e participoude pesquisas no Peru e na Venezuela.Sua mais duradoura e última pesquisa foi sobre o flebótomo,o vetor <strong>da</strong> leishmaniose, vulgarmente conhecido como mosquito-palha.São de sua lavra 64 trabalhos, com a descrição de52 espécies de flebótomos. Editado pela Academia Brasileira deCiências, o trabalho sobre American Sand Flies é consideradoum clássico na área.Faleceu em 13 de abril de 1990, após ter terminado de orientaruma tese de doutorado. Deixava naquela <strong>da</strong>ta a esposaBeatriz Borges Martins, companheira de longos anos de umaunião feliz, e a dos nove filhos do casal, que viram partir, aos 82anos, o homem ereto que contraíra a doença de Chagas em1957, durante uma pesquisa de campo.48 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>49


Anélio Marques GuimarãesAnélio Marques Guimarães nasceu em Santa Bárbara,Minas Gerais, no dia 30 de abril de 1913, filho de CândidoMarques Guimarães e Maria Marques Guimarães. A infância, natranqüila ci<strong>da</strong>de, foi partilha<strong>da</strong> com os quatro irmãos Doreto,Marieta, Alcídia e Alfredo Marques Guimarães.O bom relacionamento vivido na casa paterna prolongousequando constituiu sua própria família. Anélio casou-se comMaria José Guimarães e viu chegarem para o casal os seguintessete filhos: Agildo, Adilson, Adilma, Adjalma, Adma, Anita eAnete. Junto <strong>da</strong> mulher, dos filhos, dos netos e dos bisnetos desfrutoupermanentemente de um convívio feliz.Na profissão, Anélio foi um homem <strong>da</strong>s minas, desde cedopreocupado com as condições difíceis <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> desses trabalhadores,que enfrentam a guerra contra a silicose, doença dotrabalho adquiri<strong>da</strong> em ambientes poluídos como as minas, ondese aspiram poeiras vin<strong>da</strong>s <strong>da</strong> extração <strong>da</strong> sílica.Somando a visão solidária à visão política, Anélio, militantedo Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde os 20 anos dei<strong>da</strong>de, denunciou, juntamente com outros companheiros, essasprecárias condições de trabalho, às quais ele próprio se submeterana Mina de Morro Velho, onde trabalhou de 1931 a 1949.A partir de 1933, participou de vários atos políticos.Considerado elemento nocivo, o Estado de Minas Gerais moveucontra ele um processo com base no Decreto-Lei nº 9.070, queacabou por concluir que ele e companheiros eram sabotadores<strong>da</strong> produção. Em conseqüência, o conjunto dos trabalhadores foidemitido e Anélio, especialmente, foi preso pelo Destacamentode Operações Internas do Centro de Operações de Defesa50 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>51


Interna (DOI/CODI) em Minas Gerais, em 1965, na ci<strong>da</strong>de deJuiz de Fora, quando se entregou. Seus direitos políticos foramcassados.Segundo Anélio, a demissão em massa ocorri<strong>da</strong> em 1949deveu-se a articulações meramente políticas, pois todos os demitidoseram membros atuantes no sindicato <strong>da</strong> classe. Comofun<strong>da</strong>dor e dirigente do Sindicato dos Trabalhadores de Mineradorase Metais Preciosos reivindicava médicos e peritos pararealizarem estudos sobre insalubri<strong>da</strong>de na mina e que reconsiderassema silicose como doença do trabalho adquiri<strong>da</strong> emambientes poluídos.Até se aposentar, Anélio trabalhou também como chefe deSecretaria <strong>da</strong> Federação dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativasdo Estado de Minas Gerais. Mais tarde, foi eleito vereadorem Nova Lima.Vítima de infarto, faleceu em Belo Horizonte, em 30 denovembro de 2000, aos 87 anos.NCenas antigas de trabalhadoresna Mina de Morro VelhoN52 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>53


Ângelo Pezzuti <strong>da</strong> SilvaANÉLIO MARQUES GUIMARÃESÂngelo Pezzuti <strong>da</strong> Silva nasceu emAraxá, Minas Gerais, no dia 27 de abril de1946, filho de Carmela Pezzuti e TheofredoPinto <strong>da</strong> Silva.Cursou as quatro primeiras séries doEnsino Fun<strong>da</strong>mental no Grupo Escolar DelfimMoreira e as restantes no Colégio DomBosco, ain<strong>da</strong> em sua ci<strong>da</strong>de natal. O EnsinoMédio foi feito já em Belo Horizonte, no ColégioPadre Machado. Ingressou na Facul<strong>da</strong>dede Medicina <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federalde Minas Gerais (UFMG), em 1964, onde permaneceuaté 1968, optando por se especializar em Psiquiatria.Ângelo tinha um temperamento alegre e extrovertido.Gostava de fazer amizades e cultivá-Ias. Desde criança desenvolveuo gosto pela leitura, pelos estudos e pela música, especialmentepelo piano, instrumento que aprendeu a tocar durantedois anos. Ain<strong>da</strong> menino, jogando bola de gude nas ruas deAraxá, Ângelo já demonstrava espírito de líder. Coman<strong>da</strong>va agarota<strong>da</strong> com inteligência, parecendo ter nascido para dirigir eorientar grupos. O pai de Ângelo, fazendeiro em Araxá, era pessoamuito bem relaciona<strong>da</strong>. O avô, Pedro Pezzuti, foi, durante 40anos, um dos médicos mais procurados em Araxá e nas ci<strong>da</strong>desvizinhas, pelo seu modo humano de tratar os doentes. A maiorpretensão de Ângelo era se formar em Medicina e voltar parasua terra natal, onde naturalmente, ocuparia o lugar do avô.O gosto pela música clássica, pela poesia, pelo teatro epela leitura, principalmente pelos autores regionais brasileiros54 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>55


mais intelectualizados e clássicos, acompanhou-o sempre.Possuía grande fluência verbal, o que facilitava a exposição desuas idéias. Vivia intensamente, como se o momento presentefosse o mais importante. Era senhor de uma ternura especial,mescla<strong>da</strong> de um certo ar irônico.Quando estu<strong>da</strong>nte no Colégio Padre Machado, onde participoudo curso de alfabetização de adultos, interessou-se eingressou na militância política. No mesmo Colégio sofreu osprimeiros cortes: eleito presidente <strong>da</strong> Associação de Alunos ediretor do curso de Alfabetização, teve seu nome vetado pelodiretor do Colégio, em razão de suas posições políticas deesquer<strong>da</strong> e de seus muitos questionamentos religiosos.Na Facul<strong>da</strong>de de Medicina, de imediato o jovem Ângelointegrou-se ao movimento dos estu<strong>da</strong>ntes pela ampliação donúmero de vagas na UFMG e pela absorção dos chamadosexcedentes. Sua participação prosseguiu no Centro de Estudosde Medicina (CEM), no Diretório Acadêmico, e no ShowMedicina. Em to<strong>da</strong>s as frentes, lá estava o Ângelo participando.Em busca de outras alternativas políticas, ingressou naorganização revolucionária marxista Política Operária (POLOP)e, em 1967, juntamente com outros companheiros, entre elesApolo Heringer e Carlos Alberto Soares de Freitas, constituiu aprimeira direção do Comando de Libertação Nacional (COLINA),que tinha como objetivo a luta arma<strong>da</strong> como instrumento detransformação social. Sempre esteve à frente dos grandes projetosdo COLINA. Era reconheci<strong>da</strong>mente uma liderança intelectual eparticipou <strong>da</strong>s primeiras ações arma<strong>da</strong>s desde 1968.Em 13 de janeiro de 1969, foi preso pelo Departamento deOrdem Política e Social (DOPS), em Belo Horizonte. Inaugurouse,então, um tempo de passagem em que ele percorreu váriasprisões em Belo Horizonte, no Rio de Janeiro e, depois, retornandoa Minas, em Linhares, em Juiz de Fora. Sofreu, nesta trajetória,vários tipos de tortura física e psicológica. Entretanto, oponto alto <strong>da</strong>s torturas foi marcado pela obrigação de assistir, naVila Militar do Rio de Janeiro, a uma aula de tortura ministra<strong>da</strong>pelo Exército a cerca de cem oficiais: nessa aula, alguns presosserviam de cobaia e, entre os presos-cobaias, estava seu próprioirmão, Murilo.Juntamente com outros companheiros de Linhares, elaborouo Documento de Linhares denunciando as torturas e suasconseqüências dentro <strong>da</strong>s prisões. Esse foi o primeiro documentodo gênero elaborado no Brasil e encaminhado às autori<strong>da</strong>desbrasileiras, que, no entanto, ignoraram o seu conteúdo. Na ausênciade manifestações <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des, o documento foi amplamentedivulgado no exterior.Em 1970, Ângelo foi banido do País, trocado juntamentecom outros 39 companheiros, inclusive seu irmão Murilo, por umembaixador alemão. Ficaram exilados na Argélia.No ano de 1971 foi para o Chile, onde se encontrou comsua mãe, Carmela, também bani<strong>da</strong> do Brasil por suas atuaçõespolíticas. Naquele País, casou-se com Maria do Carmo Brito,com quem teve seu único filho, Juarez.Por seus contatos com grupos chilenos que lutavam pelosocialismo, no ano de 1972, foi preso e torturado por policiaisbrasileiros que lá se encontravam, sendo libertado logo em56 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>57


segui<strong>da</strong>. Ain<strong>da</strong> no Chile, foi um dos que mais batalhou paraprovar a infiltração do Cabo Anselmo nos meios revolucionáriosbrasileiros, tentando convencer os companheiros de queAnselmo era um traidor e que era dele a responsabili<strong>da</strong>de porvárias que<strong>da</strong>s e mortes. Em segui<strong>da</strong>, veio o golpe chileno, o queo levou a pedir asilo na embaixa<strong>da</strong> do Panamá.Sua permanência no Panamá foi curta. Sua companheira,Maria Luíza Gaet, seguiu com ele para a França, onde ele logose integrou ao comitê cujo objetivo era obter asilo na Europapara os companheiros brasileiros, chilenos, uruguaios e outrosque estavam em situação irregular na América Latina. Com esseobjetivo, viajou pela Europa, fazendo contatos com enti<strong>da</strong>des <strong>da</strong>área de direitos humanos. Em Paris, participou de um grupo deestudos que analisava o movimento histórico <strong>da</strong> América Latinae de grupos de apoio aos presos no Brasil.Por duas vezes, a primeira no Chile e a segun<strong>da</strong> na França,Ângelo retornou aos seus estudos de Medicina, conseguindoformar-se em Paris, em meados de 1975, como psiquiatra.No dia 11 de setembro de 1975, Ângelo morreu em um acidentede motocicleta em Paris. Seu corpo foi cremado no CemitérioPère Lachese, onde estão sepultados os maiores heróisfranceses. Em 1976, suas cinzas, trazi<strong>da</strong>s para o Brasil, foramcoloca<strong>da</strong>s no Cemitério <strong>da</strong>s Paineiras, em Araxá, sua terra natal.Sobre sua morte, seu amigo Herbert Daniel escreveu: (...)não saberemos se foi seu gosto pela ironia que determinou aescolha <strong>da</strong> <strong>da</strong>ta, aniversário do golpe do Chile. Ângelo escapou<strong>da</strong> cadeia no Brasil, escapou do golpe no Chile; mas não escapou<strong>da</strong> sua ânsia de viver demais. Não viveu para ver nenhum resultado.Este é o resumo brutal de to<strong>da</strong>s as mortes provisórias (...)58 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>59


Anthero de Carvalho DrumondAnthero de Carvalho Drumond nasceu em Nova Era,Minas Gerais, em 25 de abril de 1918. Filho de Octávio deCarvalho Drumond, fazendeiro, e de Olímpia Guerra MartinsDrumond, dona-de-casa, tinha quatro irmãs: Maria Apareci<strong>da</strong>(Mariinha), Olímpia (Pimpinha), Magali Joanita e Irene. Sendo oúnico filho homem, aju<strong>da</strong>va o pai na direção <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong>.Apreciava muito a leitura e escrevia romances, crônicas, contose poesia. Fiel aos bons princípios, valorizava a reunião <strong>da</strong>srefeições, principalmente em <strong>da</strong>tas comemorativas, religiosas ede aniversários.Casou-se com Maria do Rosário de Andrade Drumond,com quem teve seis filhos: Otávio José, Leonel, Maria Olímpia(faleci<strong>da</strong> aos nove meses), Ascânio, Antônio e Ângelo deAndrade Drumond. Com os filhos ain<strong>da</strong> crianças, Anthero contava-lheshistórias e não saía do quarto sem antes abençoá-loscom o sinal <strong>da</strong> cruz e um beijo na testa de ca<strong>da</strong> um. Já quandoadultos, mantinha-os sempre unidos entre si e a ele, cativandooscom seu jeito amigo de orientar, participar, aconselhar eabençoar.Cursou as séries iniciais do Ensino Fun<strong>da</strong>mental em SantaMaria de Itabira e fez o antigo curso de madureza no ColégioNair Santana, em Belo Horizonte. Trabalhava como rábula, prestandoserviços na defesa do direito de seus clientes, em pequenascausas. Como despachante, fazia declarações de ren<strong>da</strong>,ca<strong>da</strong>stro de gado, imóveis e outros ativos, além de intermediarnegociações.Anthero era um rapaz muito informado sobre assuntosgerais, nunca aceitava as coisas prontas, do jeito que ordenavam,preocupava-se na conscientização <strong>da</strong> população sobre a60 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>61


necessi<strong>da</strong>de de um governo democrático e de governantes comprometidoscom o seu povo, que ouvissem a socie<strong>da</strong>de e estivessemdispostos a acabar com as injustiças sociais. Nunca pertenceua nenhum tipo de organização política, mas foi acusadopela polícia de pertencer ao Grupo dos Onze, de Leonel Brizola.No dia 11 de abril de 1964, foi preso por ter fortes ligaçõescom integrantes de grupos de militantes políticos de Nova Era,sendo acusado de participar de movimentos subversivos e decomunistas. Foi preso em sua casa quando colocava suas criançaspara dormir. Prisioneiro, foi levado para João Monlevade,onde sofreu torturas físicas e psicológicas. Levado, junto comseus companheiros, de João Monlevade até GovernadorVala<strong>da</strong>res, Anthero viajou de ônibus e, passando por to<strong>da</strong>s asci<strong>da</strong>des e lugarejos do trajeto, era mostrado às populações locaiscomo subversivo e comunista, de modo que todos vissem o queaconteceria a quem fosse contra a ordem. Posteriormente, foi julgadoe libertado, recuperando o direito de voltar para sua casa.Mesmo em liber<strong>da</strong>de, Anthero carregou para sempre emsua vi<strong>da</strong> seqüelas graves, tanto psicológicas como sociais, porter passado, juntamente com sua família, sofrimentos e humilhaçõesimerecidos.Faleceu em 25 de outubro de 1991, aos 73 anos, acometidode doença pulmonar e complicações cardíacas.RUA ANTHERO DE CARVALHO62 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>63


Antônio Carlos Bicalho LanaAntônio Carlos Bicalho Lana nasceu emOuro Preto, Minas Gerais, no dia 2 de marçode 1948, filho de Adolfo Bicalho Lana eA<strong>da</strong>lgisa Gomes de Lana numa família demuitos irmãos: Elídio, Eliana, Adolfo, Ângelo,Ana Maria, Luiz Cláudio, Júlio César,Mariângela e Helena Maria.Fez as quatro primeiras séries do EnsinoFun<strong>da</strong>mental no Grupo Escolar D. Pedro II,passando depois para a Escola MunicipalMarília de Dirceu, onde cursou até asprimeiras séries do Ensino Médio, quedeixou inconcluso.Ingressou no movimento estu<strong>da</strong>ntil na déca<strong>da</strong> de 60, participandoem Ouro Preto de um grupo de militantes formado porestu<strong>da</strong>ntes secun<strong>da</strong>ristas, universitários e operários. Filiado àCorrente Revolucionária de Minas Gerais (CORRENTE), transferiu-separa Belo Horizonte, onde morou de 1969 a 1970. Maistarde, passou a militar na Ação Libertadora Nacional (ALN), <strong>da</strong>qual foi um dos dirigentes, sempre lutando contra a ditadura militare por uma socie<strong>da</strong>de mais justa no Brasil.Também conhecido como Cristiano, Cal e Mateus, a opçãode Antônio Carlos foi pela luta arma<strong>da</strong>, método político que julgavanecessário e válido naquela época, devido às condições derepressão política e ao cerceamento <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des democráticasimpostos ao País pelo regime militar vigente.No início de 1969, diante <strong>da</strong>s prisões, torturas e assassinatosde seus companheiros, Antônio Carlos percebeu a durezado combate em que se engajara. Firme em suas convicções,deslocou-se para o Rio de Janeiro e São Paulo, através <strong>da</strong> ALN,cumprindo na clandestini<strong>da</strong>de várias tarefas importantes dentro<strong>da</strong> organização e em vários pontos do País.Segundo depoimento de antigos companheiros, a suacoragem e destemor diante <strong>da</strong> morte, aliados à generosi<strong>da</strong>de eafetivi<strong>da</strong>de, faziam com que ele encorajasse os companheirosdiante dos perigos e, mesmo nos momentos mais difíceis, partilhassecom eles o sonho de uma socie<strong>da</strong>de socialista. Acompanhava-o,nesses tempos de riscos e perigos, a esposa MoemaSan Tiago, com quem viveu clandestinamente.Ameaçado de morte pelos órgãos <strong>da</strong> repressão, recusava aidéia de exilar-se do Brasil, convicto <strong>da</strong> importância política demanter a resistência arma<strong>da</strong> contra a ditadura.No dia 30 de novembro de 1973, foi preso pelo Destacamentode Operações Internas do Centro de Defesa Interna(DOI/CODI) em São Paulo, quando viajava de Santos para SãoPaulo, com sua companheira e também militante <strong>da</strong> ALN, SôniaMaria Moraes Angel. Conforme depoimento de Marival DiasChaves do Canto, ex-Sargento do Exército, à revista Veja, ediçãode 18/11/92, Antônio Carlos e Sônia foram levados a um centroclandestino de tortura, localizado num sítio na zona sul de SãoPaulo, onde foram torturados barbaramente e assassinados comtiros no tórax, cabeça e ouvido. Depois, seus corpos foram colocadosno porta-malas de um carro e levados até o bairro deSanto Amaro, em São Paulo, onde foi encena<strong>da</strong> a farsa de umtiroteio para simular a morte deles.De fato, segundo nota oficial do 2º Exército, a morte domilitante ocorreu devido a um tiroteio em confronto com as forçasde segurança na av. de Pinedo, no bairro de Santo Amaro,em São Paulo. Enterrado clandestinamente pela repressão, AntônioCarlos foi considerado desaparecido até que, em 1991,foram descobertas várias ossa<strong>da</strong>s no Cemitério Dom Bosco, dePerus, em São Paulo. Entre as ossa<strong>da</strong>s, analisa<strong>da</strong>s cientificamentepor técnicos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Estadual de Campinas64 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>65


(UNICAMP) foram identifica<strong>da</strong>s as de vários opositores ao regimemilitar implantado no Brasil a partir de 1964, <strong>da</strong>dos atéentão, como desaparecidos.Os restos mortais de Antônio Carlos Bicalho Lana, mineirode Ouro Preto que sonhou, como os Inconfidentes de 1789, comum Brasil livre do jugo de seus opressores, independente edemocrático, foram enterrados, finalmente, por seus familiares,em sua ci<strong>da</strong>de natal, no dia 12 de agosto de 1991.66 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong> <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>67


Antônio Holandino de AraújoPrimeiro de abril de 1964. Quando o diaamanheceu naquela longínqua e fria quartafeira,a polícia política cercou o quarteirão einvadiu a casa de Antônio Holandino deAraújo. Os tiras, armados de fuzis e metralhadoras,prenderam-no, algemaram-no earrastaram-no para um jeep que saiu a to<strong>da</strong>veloci<strong>da</strong>de para algum lugar desconhecido,levando-o e à família para um futuro deincertezas e sofrimento.Eram os fatos confirmando a tese do filósofoalemão Hegel, que dizia que a História se repete pelo menosduas vezes, sendo a primeira vez como tragédia, a segundocomo farsa. No caso, a tragédia era a <strong>da</strong> ditadura Vargas; afarsa, a do Golpe Militar de 1964.Antônio Holandino nascera na ci<strong>da</strong>de de Serro, incrusta<strong>da</strong>no alto <strong>da</strong> serra do Espinhaço, próxima <strong>da</strong> nascente do rio Jequitinhonha,no dia 11 de agosto de 1919. Filho de Joaquim José deAraújo (o cabo Joaquim) e Laudelina Seixas de Araújo, teve umainfância feliz, brincando e correndo pelas ruas empoeira<strong>da</strong>s <strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de, apesar <strong>da</strong> educação rigorosa que seu pai lhe <strong>da</strong>va, a elee a seus cinco irmãos José, Florestano, Maria, Sebastiana e Lili,que morreria ain<strong>da</strong> criança.Aos 11 anos, sua infância começou a murchar com a mortede seu genitor. A vi<strong>da</strong> tornou-se áspera e, aos 17 anos, interrompeua adolescência, partindo para Belo Horizonte em buscade trabalho, para sustentar-se e aju<strong>da</strong>r sua pobre mãe viúva.Para um garoto que estu<strong>da</strong>ra até a quarta série do EnsinoFun<strong>da</strong>mental, recém-chegado do interior, não era fácil conseguiremprego. Por isso assentou praça na Polícia Militar e, durantealgum tempo, o sol<strong>da</strong>do Holandino percorreu várias ci<strong>da</strong>desmineiras.Seu destino e suas aspirações, to<strong>da</strong>via, não eram a vi<strong>da</strong> decaserna. Deixou o quartel e partiu para novas, emocionantes esofri<strong>da</strong>s aventuras. O vigor de sua juventude e a força de seus músculoslevaram-no por este imenso Brasil. Operário em São Paulo,lenhador no Paraná, caminhando pelas estra<strong>da</strong>s solitárias do sul,sentindo muitas vezes o vazio do estômago, mas sem nunca deixarde man<strong>da</strong>r algum dinheiro para sua queri<strong>da</strong> mãezinha.Finalmente voltou a Belo Horizonte. Foi pedreiro, condutorde bonde e carroceiro. Apaixonando-se pela prima ConceiçãoBatista de Almei<strong>da</strong>, morena bonita e faceira, professora educa<strong>da</strong>em colégio de freiras em Curvelo, com ela casou-se em fevereiro68 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>69


de 1945, a contragosto de sua sogra e tia, Maria Augusta Reis deAlmei<strong>da</strong>.Pouco depois, demitiu-se do antigo Departamento deBondes e Ônibus e, com muito sacrifício, comprou um caminhão.Em dez dias, tirou sua carteira de motorista. Em 1946, filiou-seao Partido Comunista Brasileiro (PCB), por influência de seuirmão caçula, Sebastião de Araújo, que era militante. Passou aestu<strong>da</strong>r marxismo, aprendendo nos livros de Marx, Engels eLênin que "os homens fazem sua própria história, mas não fazemcomo querem". Nesse ambiente, nasceram suas primeiras filhas,Nelma Helena e Norma Edna.Em 1949, quando sua mulher esperava o terceiro filho, queviria a se chamar Florestano Herbert, em homenagem ao irmãoFlorestano Araújo e ao cunhado Djalma Herbert de Almei<strong>da</strong>,vendeu o caminhão, sua ferramenta de trabalho, e entregou todoo dinheiro para o partido, na ânsia de ver triunfar a RevoluçãoSocialista. E foi trabalhar como gerente do Jornal do Povo, órgãodo PCB.Os anos foram passando e, na déca<strong>da</strong> de 50, nascerammais dois filhos: Luís Carlos, assim nominado em homenagem aPrestes, o Cavaleiro <strong>da</strong> Esperança, e William Márcio, em homenagema William Dias Gomes, operário <strong>da</strong> Mina de Morro Velho,que fora assassinado pela polícia em Nova Lima.Aos domingos, vendia o Jornal do Povo nas portas <strong>da</strong>sfábricas <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de Industrial, do Barreiro e de Sabará. Levavaconsigo seus três filhos varões, sanduíches para a meren<strong>da</strong> euma garrafa de café. Quando vinha a fome, sentavam-se os quatronos trilhos <strong>da</strong> ferrovia e comiam, ele talvez sonhando com umfuturo melhor e os filhos, quem sabe, com o ajantarado dedomingo.Os anos continuavam passando, inexoravelmente, transformandoo presente em passado saudoso e Antônio Holandinode Araújo seguia participando ativamente de to<strong>da</strong>s as campanhaspopulares realiza<strong>da</strong>s no País em defesa <strong>da</strong> classe trabalhadorae <strong>da</strong> nacionalização <strong>da</strong> economia brasileira. Participou<strong>da</strong>s campanhas O Petróleo é Nosso e Apelo de Estocolmo pelaPaz Mundial, batalhou pela criação <strong>da</strong> Eletrobrás, lutou pelo 13ºsalário, pelas férias de 30 dias, por uma jorna<strong>da</strong> de trabalho deoito horas e por muitas, muitas outras causas proletárias. Nessaépoca, déca<strong>da</strong> de 50, enquanto nascia seu sexto filho, VladimirMarco, em homenagem a Vladimir Ilich Lênin, foi preso novevezes, por sua militância política.A vi<strong>da</strong> tornava-se ca<strong>da</strong> vez mais difícil e, em 1957, AntônioHolandino deixou o Jornal do Povo, indo trabalhar como aju<strong>da</strong>ntede caminhão. Com muito esforço e trabalho árduo, conseguiucomprar outro caminhão, um velho Chevrolet 1946.Assim, ele e sua companheira Conceição iam educando osfilhos e, apesar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ser dificílima, encontravam os dois osmomentos de paz e ternura para cantar as músicas de AugustoCalheiros e Vicente Celestino, ouvir tangos e ensinar os filhos adeclamar poesia:Mulher escuta. Escuta!Ouves um rumor longínquo?São os paraguaios que se aproximam.Fujamos mulher, fujamospara defender a nossa filha.Estamos no abrigo <strong>da</strong> nossa pátriae a na<strong>da</strong> temos que temer.Aos domingos, ia ao Mercado Central para comprar florese as levava para a mulher enfeitar a casa.Nasceram nesse clima seus dois últimos filhos: AdelinaAugusta, em homenagem às avós, Laudelina e Maria Augusta,e Frederico Antônio, em homenagem a Frederico Engels.Com honra e digni<strong>da</strong>de, trabalhava muito para sustentar anumerosa família. E continuava militando no PCB até que veio oremoto e fatídico 1º de abril de 1964, apoiado pela burguesianacional, pelas medíocres e fervorosas <strong>da</strong>mas <strong>da</strong> classe média70 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>71


com sua Marcha <strong>da</strong> Família com Deus pela Liber<strong>da</strong>de, pelos reacionários<strong>da</strong> Tradição, Família e Prosperi<strong>da</strong>de (TFP), por membrosretrógrados e atrasados do clero e por políticos entreguistas.Assim, o Brasil mergulhou nas penumbras de um despotismoque se prolongaria por mais de três déca<strong>da</strong>s.Preso e incomunicável, sua família desconhecia seuparadeiro, até que um amigo, o Walter tintureiro, descobriu queele se encontrava no Departamento de Ordem Política e Social(DOPS). Contudo, não era possível visitá-lo. Nos porões <strong>da</strong>quelacasa de tortura, os presos políticos estavam sendo espancados.Antônio Holandino era um deles. Segundo relata o Dr.Antônio Ribeiro Romanelli em seu livro 1964 - Minhas Históriasdo Cárcere e do Exílio, constava na ficha política de Holandinono DOPS que ele era guar<strong>da</strong>-costas de Luís Carlos Prestes. ComoPrestes estava sendo procurado pelas polícias de todo o País,resolveram interrogar Holandino, na suposição de que ele teriapreciosas informações para levá-los até o líder. O detetive Lana,conhecido como O Gordo, foi encarregado de dirigir o interrogatório.Como não conseguissem extrair dele nenhuma informação,levaram-no aos empurrões e pontapés, com as mãosalgema<strong>da</strong>s nas costas, para a cela de espancamento.- Acaba com este comunista filho <strong>da</strong> puta, gritou um deles.- Filhos <strong>da</strong> puta são vocês, canalhas, respondeu AntônioHolandino com sua voz possante.E meteram-lhe o coro. Mas o Holandino era um homem modeladocom fibras de aço. Quanto mais apanhava, mais xingava egritava. E, segundo ele disse mais tarde, queria chamar aatenção <strong>da</strong> vizinhança, para que soubessem que estavamespancando os presos políticos.- Rebenta logo esse filho <strong>da</strong> puta, Frederico, ordenou Lana.- Vai pro caralho! gritou o Holandino, que estava meio caído,ofegante de dor e com a vista ofusca<strong>da</strong> pelas panca<strong>da</strong>s.De repente, Antônio Holandino percebeu um vulto enormevindo em cima dele. Afastou a cabeça para o lado e o animal deuum murro tão forte na parede que quebrou dois dedos e o braçoem três partes, caindo desmaiado aos pés de seu torturado.Disse o Dr. Romanelli em seu livro: "ouvimos um animalesco uivode dor, pois o Frederico havia fraturado o braço. Após o acidentede trabalho - como diziam os policiais - conduziram o Fredericopara o hospital. No dia seguinte, os jornais anunciavam que elefraturara o braço em motim de presos e, com isso, tornou-se umherói <strong>da</strong> revolução, exibindo, durante bastante tempo, seu gloriosobraço quebrado...". Holandino pensara que naquela horaseria assassinado. Não o fizeram, mas durante a madruga<strong>da</strong>deram-lhe um banho de água gela<strong>da</strong>, molhando sua roupa eencharcando sua cela para que ele não pudesse se deitar.No domingo, dia 5 de abril, pela manhã, foi transferidopara a colônia penal próxima de Neves, antes que sua famíliapudesse visitá-lo, exceto seu filho Florestano, de 14 anos, que,por um desses caprichos <strong>da</strong> fatali<strong>da</strong>de, conseguiu vê-lo no sábado.Ele havia saído <strong>da</strong> escola e dirigira-se ao DOPS para tentarver seu pai. Seus cadernos estavam encapados com capas <strong>da</strong>revista Union Sovietica e foram dele tomados quando lá chegou.Man<strong>da</strong>ram-no sentar-se em um banco do corredor e, depois doque lhe pareceram horas, o delegado Thacyr Menezes Sia o chamoue gritou com ele:- Seu pai já está complicado e você aparece aqui com estascapas de revista comunista?E falando para outro policial:- Bota esse moleque lá embaixo junto com o pai dele.Man<strong>da</strong>ram-no sentar-se novamente e, de vez em quando,vinha um policial fazer perguntas: "conhece aquele homem ali?E aquele outro ali? Aquele ali é seu professor no Colégio Anchieta?Ele também é comunista?". Passou-se mais algum tempoe parece que se esqueceram do fato. Man<strong>da</strong>ram buscar seu pai,que apareceu barbado e com a roupa suja de sangue. E foi entredois guar<strong>da</strong>s e um tira que puderam conversar alguns minutos.Antônio Holandino ficou preso oito meses na Colônia PenalMagalhães Pinto, em Neves, e foi libertado por força de umhabeas corpus no dia 23 de dezembro de 1964.72 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>73


Voltou imediatamente para o volante de seu caminhão,enquanto aguar<strong>da</strong>va seu julgamento. Era sua idéia pedir asiloem algum País socialista. Entretanto, como deixar uma famíliatão numerosa e que precisava muito dele?Nessas circunstâncias, passou-se o ano de 1965. No dia 2de fevereiro de 1966, Antônio Holandino foi novamente preso elevado para Juiz de Fora. Seu julgamento foi iniciado às 8 horasdo dia 7 de fevereiro de 1966, pelo Conselho Permanente deJustiça <strong>da</strong> Auditoria <strong>da</strong> IV Região Militar. Incurso na Lei deSegurança Nacional, acusado de práticas subversivas, foi condenadoa 11 anos de prisão.Em carta envia<strong>da</strong> à esposa, em 3 de maio de 1966,Holandino retratava a forma como eram tratados os presos políticosem Juiz de Fora: (...) "Nós tivemos notícia de que íamos serman<strong>da</strong>dos embora nesta semana, mas as coisas aqui se arrastam,quando é a nosso favor, porém quando é contra, é rápido.Ontem não tivemos banho de sol; isto para nós é uma grandecoisa, mas estamos à mercê de alguém que é nosso inimigo.Mesmo o que temos direito não nos proporcionam com regulari<strong>da</strong>de.Ficamos dependendo <strong>da</strong> boa vontade do oficial do diapara nos <strong>da</strong>r uma mísera meia hora de sol. Mas nos vingamosmostrando alegria, poiso prazer deles é nos vertristes. Este prazer nãolhes <strong>da</strong>mos. Estamossempre alegres e confiantes,temos certezano amanhã, mais cedoou mais tarde seremosvingados" (...).No dia 20 de maiode 1966, o Superior TribunalMilitar decidiureduzir a pena de Holandinopara dois anose quatro meses, tendo um dos ministros do Tribunal declarado àépoca que a pena que lhe havia sido imposta era monstruosa.Beneficiado com o indulto de Natal, Antônio Holandino foiliberado no dia 10 de fevereiro de 1967, depois de dois anos equatro meses de cativeiro.Novamente retornou para sua vi<strong>da</strong> de caminhoneiro e trabalhouarduamente para recuperar tanto tempo perdido. Naclandestini<strong>da</strong>de, foi representante do jornal Voz Operária e, nacabine de seu caminhão, trazia do Rio de Janeiro o jornal Voz <strong>da</strong>Uni<strong>da</strong>de para ser distribuído em Belo Horizonte.Aposentou-se em 1983, aos 64 anos, e continuou sua trajetóriade luta por um futuro mais digno e mais justo, rumo aoobjetivo que julgava o mais belo e nobre para a socie<strong>da</strong>dehumana: o socialismo. Nessa caminha<strong>da</strong>, candi<strong>da</strong>tou-se a deputadoestadual pelo PCB, seu eterno e amado partidão.No dia 16 de julho de 1989, ele partiu, vítima de um infarto,deixando um imenso vazio e uma sau<strong>da</strong>de enormes nocoração de sua esposa, de seus filhos, de seus netos, dos amigose dos companheiros.O caixão de Antônio Holandinode Araújo, o comunistahistórico do PCB, foicoberto com a bandeira vermelha,símbolo de sua lutacotidiana e de sua honrosa,fraterna e solidária vi<strong>da</strong> deHERÓI ANÔNIMO DAHISTÓRIA.(Texto de Florestano H.Araújo)74 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>75


Antônio Joaquim de SouzaMachadoAntônio Joaquim de Souza Machadonasceu na Fazen<strong>da</strong> São José <strong>da</strong> Vere<strong>da</strong>,em Papagaios, oeste de Minas Gerais,no dia 13 de setembro de 1939. Era ooitavo dos 13 filhos dos fazendeiros JoaquimMaria de Souza Machado e Mariade Oliveira Campos.Antônio Joaquim, o Quincas, maistarde o Bigode, saiu <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> criança,para estu<strong>da</strong>r em regime de internatono Ginásio São Francisco, em Pará deMinas, Minas Gerais, só voltando emcasa no período <strong>da</strong>s férias escolares. Aochegar à oitava série do Ensino Fun<strong>da</strong>mental,transferiu-se para o Colégio DomSilvério, em Sete Lagoas, Minas Gerais, onde fez também oEnsino Médio. Em 1960, entrou para a Facul<strong>da</strong>de de Direito <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (UFMG), onde se formariaem 1964. Porém, em função <strong>da</strong> ditadura militar, acabouinterrompendo seus estudos e indo para o Rio de Janeiro, deonde só retornou em 1965, quando concluiu sua graduação.Foi militante <strong>da</strong> Juventude Estu<strong>da</strong>ntil Católica (JEC) e <strong>da</strong>Juventude Universitária Católica (JUC) e, apesar de não ter ocupadonenhum cargo no Diretório Acadêmico, tornou-se um dosprincipais líderes e articuladores do movimento universitário.Com o Golpe Militar de 1964, Antônio Joaquim foi intensamenteprocurado pela polícia política e, durante um ano, teve que viver76 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>77


escondido no Rio de Janeiro. Foi um dos fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> organizaçãoAção Popular (AP), pouco depois de sua admissão na universi<strong>da</strong>de.Militou na AP por aproxima<strong>da</strong>mente seis anos.Começou a advogar em Belo Horizonte em 1966, inscritona OAB/MG sob o nº 12.229, embora não tivesse abandonado,totalmente, sua militância política. Nessa ocasião, engajou-sena campanha eleitoral do Prof. Edgar de Godói <strong>da</strong> Mata Machado,pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), e desenvolveuenorme esforço contra a pregação do voto nulo naseleições parlamentares <strong>da</strong>quele ano. Ain<strong>da</strong> em 1966, foi paraTeófilo Otoni, Minas Gerais, onde deu continui<strong>da</strong>de a suas ativi<strong>da</strong>desprofissionais.Em 1969, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhounum escritório de advocacia e passou a integrar a organizacãoVanguar<strong>da</strong> Arma<strong>da</strong> Revolucionária - Palmares (VAR-Palmares).Nessa época, Antônio Joaquim morou com Maria ClaraAbrantes Pêgo, amiga que conhecia desde menino. Maria Clara,mais tarde, seria presa na Polícia do Exército (PE), seriaseqüestra<strong>da</strong> e sevicia<strong>da</strong> e seria importante testemunha dosdesaparecimentos de Antônio Joaquim, Carlos Alberto Freitas eSérgio Emanuel Campos, o único que foi encontrado com vi<strong>da</strong>.Em dezembro de 1970, Antônio Joaquim, entendendo quenão havia mais condições de permanecer no Brasil, preparou-separa viajar para a França. Vários amigos de Belo Horizonte forampara o Rio despedir-se do companheiro. Surpreendentemente,Antônio Joaquim voltou atrás em sua decisão e resolveu nãomais viajar, alegando que tinha cirurgias a fazer e que não queriainterromper sua terapia.Em 15 de fevereiro de 1971, hospe<strong>da</strong>do na mesma pensãoque Carlos Alberto Soares de Freitas, na rua Farme de Amoedo,135, Ipanema, Rio de Janeiro, marcou um encontro com doiscompanheiros <strong>da</strong> VAR-Palmares por volta de 20 ou 21 horas, emfrente ao Bar Chaplin, em Ipanema. Mas não compareceu. O fatose explicaria pouco depois. Segundo o Jornal do Brasil de23/01/78, o advogado Antônio Joaquim fora preso no decorrer<strong>da</strong>quele dia 15 de fevereiro, em Copacabana, por um comando<strong>da</strong> Marinha, sendo mais tarde entregue às autori<strong>da</strong>des doExército.Foi impetrado o habeas corpus nº 30.405, no SuperiorTribunal Militar (STM), no dia 27 de maio de 1971, sendo relatordo processo o ministro Nelson Sampaio, buscando informaçõessobre os presos Antônio Joaquim, Carlos Alberto e Emanuel. Odelegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) doantigo Estado <strong>da</strong> Guanabara, Gastão Fernandes Barbosa, diziaque Antônio Joaquim e Carlos Alberto jamais estiveram presosou detidos naquele departamento.A última notícia que os pais deAntônio Joaquim tiveram dele foi <strong>da</strong><strong>da</strong> peloGeneral Elcino Lopes Bragança, em setembrode 1972. Segundo o General, AntônioJoaquim estava preso nas dependências doExército, no Rio de Janeiro. Estava indiciadono inquérito nº 20/71 e incurso na Lei deSegurança Nacional por usar, através defraude, meios para aquisição de passaportebrasileiro.O deputado emedebista TancredoNeves foi intermediário junto ao governo para verificar a participaçãode Antônio Joaquim no caso dos passaportes e constatou,em 1975, que ele não tinha qualquer envolvimento no problema.Quando de sua prisão, Antônio Joaquim tinha 32 anos, erasolteiro e um sujeito tranqüilo e divertido. Gostava muito demúsica popular brasileira, apesar de não cantar absolutamentena<strong>da</strong>. Era carinhoso, fiel às suas amizades, gostava de praia emantinha amigos que na<strong>da</strong> tinham a ver com sua militância.Bebia pouco, ficava até de madruga<strong>da</strong> com os amigos e adoravabrincar com crianças.Segundo depoimento de vários companheiros, Antônio Joaquimfoi torturado na Casa <strong>da</strong> Morte, local secreto do Des-78 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>79


tacamento de Operações de Informações do Centro deOperações de Defesa Interna (DOI/CODI) no Rio de Janeiro, paraonde eram levados os detentos por cuja prisão os órgãos de segurançanão pretendiam assumir a responsabili<strong>da</strong>de. A passagemde Antônio Joaquim de Souza Machado pelo centro clandestinode tortura foi confirma<strong>da</strong> pela presa política Inês EtienneRomeu, sobrevivente <strong>da</strong> Casa <strong>da</strong> Morte.80 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>81


Antônio Luiz PaixãoAntônio Luiz Paixão, o Professor Paixão, nasceu em BeloHorizonte, Minas Gerais, no dia 6 de maio de 1947, filho deOswaldo Paixão e Wan<strong>da</strong> de Freitas Paixão. Deixou um únicofilho, Luiz Andrés Ribeiro Paixão, de seu casamento com MaríliaAndrés Ribeiro. Eram suas irmãs Maria Lúcia e Helena HeloísaPaixão e sua única sobrinha Sílvia Helena Paixão Alencar.Fez os estudos iniciais no Grupo Escolar Barão do RioBranco, completando-os no Colégio Estadual Central, responsávelpela formação de várias gerações de intelectuais.Graduou-se em 1969 em Ciências Sociais pela Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (UFMG) e fez o Mestrado emCiências Políticas, também pela UFMG, em 1971. Logo em segui<strong>da</strong>foi para a Universi<strong>da</strong>de de Stony Brook, em Nova Iorqueonde fez pós-graduação em Sociologia, entre 1973 e 1975.Em 1976, prestou concurso para Professor do Departamentode Sociologia <strong>da</strong> UFMG. Na universi<strong>da</strong>de, destacou-secomo professor dos cursos de graduação e pós-graduação emCiências Sociais. Foi orientador de inúmeras dissertações deMestrado nessa área. Desenvolveu pesquisas sobre os temas <strong>da</strong>violência e <strong>da</strong> criminali<strong>da</strong>de. Publicou numerosos artigos emdiversas revistas de Ciências Sociais, além de vários livros, entreeles Vigiar e Punir, pela Editora Cortez. Foi professor visitante doIUPERJ, no Rio de Janeiro, e <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Notre Dame,nos Estados Unidos.O Professor Paixão gostava muito de ler jornais, revistas,livros ligados a Sociologia, política, literatura, biografia e romancespoliciais. Adorava conversar sobre os mais variados assuntoscom professores, estu<strong>da</strong>ntes e gente que não fazia partedo círculo acadêmico. Gostava de música popular e erudita e iafreqüentemente a shows de música popular brasileira. Gostava,também, de cinema, artes plásticas e futebol.O Professor Paixão faleceu no dia 23 de agosto de 1996,em Belo Horizonte, de infarto agudo, deixando uma enormesau<strong>da</strong>de não só entre seus familiares, mas entre seus inúmerosalunos, amigos, companheiros <strong>da</strong> UFMG e todos os que puderamcom ele conviver.A amizade e dedicação dos colegas de Paixão foramexpressas por sua colega Alba Zaluar, durante o Congresso <strong>da</strong>ANPOCS realizado em Caxambu em 1996, logo depois do seufalecimento. Foram as seguintes as suas palavras:82 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>83


Antônio Luiz Paixão, intelectual e amigoHoje não vou falar de violência. Vou falar de reciproci<strong>da</strong>de,<strong>da</strong> amizade, <strong>da</strong> interlocução que se deve maisao prazer de instigar o pensamento do que ao duelo defloretes <strong>da</strong>s vai<strong>da</strong>des acadêmicas. Vou falar do Paixão,interlocutor e amigo de tantos anos.Mas como dizer o que foi parte do nosso cotidianode tantos anos, que nem sabíamos direito como era?Como falar do que se fazia, se praticava sem se <strong>da</strong>r conta<strong>da</strong> sua importância, do seu sentido, dos seus resultados?Não que esse exercício de dizer o que não precisava dodito seja o <strong>da</strong> violência simbólica, conceito que Paixão eeu estamos longe de aceitar nos seus pressupostos e conseqüênciasteóricas, mas ele conduz a um estranhamentodo que já nos parecia com que um <strong>da</strong>do inabalável denossas trocas intelectuais, uma conquista de nossasparcerias, um ponto de encontro certo nos nossos circuitosde braceletes-idéias e colares-argumentos. A súbita faltadesse ponto, desse <strong>da</strong>do, desse fato, dessa conquista queera a pessoa do Paixão nos obriga a pensar sobre os significadose os sutis e singelos mecanismos <strong>da</strong> ação contínuade sua amizade sobre nós.A sutileza, irmã <strong>da</strong> inteligência, mas não tão arrogantequanto ela, era aquele jeito inimitável de dizercoisas inespera<strong>da</strong>s, inovadoras, surpreendentes, juntandope<strong>da</strong>ços de evidências, contornando ou minando (nuncadestruindo) meias, velhas, surra<strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des comoquem conta um causo muitas vezes engraçado, tecendoas mais elabora<strong>da</strong>s teorias sociológicas sobre o tema emquestão como quem bor<strong>da</strong> um simples pano, cuja utili<strong>da</strong>desó se enxerga muito depois. A singeleza vinhadessa capaci<strong>da</strong>de de reunir as mais recentes teorias dosmais diversos cientistas sociais num esquema aparentementesimples, porque compreensível por todos, que faziade Paixão o interlocutor privilegiado de todos aqueles queabor<strong>da</strong>ram os mesmos temas e perguntas que o deixavama devorar livros e varar dias e noites com seussolitários acompanhantes: o cigarro e o copo.Não que ele fosse um neurótico do trabalho, a humilhar-noscom sua incansável capaci<strong>da</strong>de de trabalharduro. Muito pelo contrário. Participante convicto <strong>da</strong> cultura<strong>da</strong> boemia, uma <strong>da</strong>s mais notáveis e criativas surgi<strong>da</strong>sentre nós, Paixão era imbatível nos papos de botequim,tão desprezados pelos sérios adeptos do pensamentoburocratizado, confundido com o moderno e o produtivo.Suas risa<strong>da</strong>s e suas tira<strong>da</strong>s ain<strong>da</strong> ecoam aqui,neste lugar, e dentro de nós. Certamente o clube <strong>da</strong> esbórnia,uma <strong>da</strong>s mais fascinantes organizações <strong>da</strong> ANPOCS,não será mais o mesmo. Está faltando um.Seus amigos sabem que ninguém estava livre desuas pia<strong>da</strong>s. Se ela era boa, não havia amizade nemreverência intelectual que privasse o Paixão e seu públicode uma grande risa<strong>da</strong> às custas do alheio. Ninguém ficavatampouco ao largo de suas agu<strong>da</strong>s críticas intelectuais.Só que não <strong>da</strong>va para ficar ofendido ou raivoso. Tudoera dito com tanto delicadeza e precisão ou com tantagraça que a crítica virava proveito. Amigos, amigos; resenhas,pareceres, avaliações e pia<strong>da</strong>s à parte. Estranho queuma pessoa que valoriza tanto a amizade e a troca, fossetão pouco corporativo e clientelista, segundo os velhospadrões brasileiros. Será que com suas atitudes Paixãonão estava apontando, na sua forma sutil, a necessi<strong>da</strong>dede rever as velhas, vicia<strong>da</strong>s e surra<strong>da</strong>s idéias sobre aamizade no Brasil?Brasileiro, mineiro, alemão, torcedor do Atlético,não necessariamente nessa ordem, dependendo muito<strong>da</strong>s circunstâncias e situação, Paixão era <strong>da</strong>quelesdescendentes dos europeus no Norte que se identificavacom os estigmatizados pela preguiça, pela mistura deraça, pelo perene compromisso com a alegria e a diversão.Isso com serie<strong>da</strong>de, a dedicação e a generosi<strong>da</strong>de que84 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>85


sempre marcaram tudo que ele fez. E como fez. Dizem asmás línguas que se metia a estu<strong>da</strong>r qualquer coisa.Dizem as boas línguas que era capaz de estu<strong>da</strong>r os maisvariados assuntos, descobrindo interesses inusitados nacriação de gado, na produção leiteira, na história <strong>da</strong>Inquisição de Minas, nos processos judiciais, nos B.ºs,nas estatísticas policiais, no cotidiano de uma delegacia,nos menores de rua, nos programas <strong>da</strong> nossa malfa<strong>da</strong><strong>da</strong>e sem rumo política social. Não é para qualquer um.Difícil selecionar o que se destaca mais entre tudoque escreveu. Aliás, para o grande e generoso conversadorque era, sempre disposto a discutir pontos difíceis,pesquisas enrola<strong>da</strong>s, teorias polêmicas com colegas eprofessores, alunos seus e alunos dos outros, Paixãomuito escreveu. São notas de aulas, inúmeros artigosque, reunidos, comporiam mais de um livro, e a tese finalmentetermina<strong>da</strong>, que ficaram a reclamar um pacientetrabalho de edição dos seus mais próximos colaboradoresna UFMG. Aguar<strong>da</strong>remos todos ansiosos, um modo defazer com que ele não nos deixe assim tão de repente,sem nem avisar que estava indo, deixando aquela conversapelo meio, aquela idéia troca<strong>da</strong> trunca<strong>da</strong>, a perguntano ar, a rede esgarça<strong>da</strong>, o circuito interrompido, oprojeto desfeito. Tão generoso, nem deixou o hiato entre oque <strong>da</strong>va e o que recebia diminuir mais um pouco. Nãodeu tempo de retribuir. Fica para a próxima, para essetrabalho de um exigir esforço de vários em tornar públicoo que foi largando em escritos esparsos.Eu destacaria, naquilo que mais me marcou, trêsabor<strong>da</strong>gens e uma postura política sobre a violência e acriminali<strong>da</strong>de no Brasil, temas dos quais surgiram nossaamizade e parceria intelectual.A primeira foi sua pesquisa basea<strong>da</strong> numa sériehistórica de estatísticas sobre a violência em Minas, umdos primeiros textos sociológicos sérios sobre um assuntoconsiderado então como menor. Paixão foi, sem dúvi<strong>da</strong>, opioneiro não só do tema, como <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem, ain<strong>da</strong> nadéca<strong>da</strong> de 70. Nela, pela primeira vez ouvi as dúvi<strong>da</strong>sacerca <strong>da</strong> associação entre pobreza e criminali<strong>da</strong>de violenta,associação essa inteligentemente interpreta<strong>da</strong> porele como mais uma profecia autocumpri<strong>da</strong>. Por causadesse texto, fui obriga<strong>da</strong> a relativizar a minha postura deantropóloga adepta do método qualitativo e me esforçarem trabalhar com os números.A segun<strong>da</strong> foi o seu estudo do cotidiano de uma delegaciade polícia que resultou num dos textos mais instigantessobre essa instituição no Brasil: o profundo hiatoentre as disposições escritas - a lei e as normas burocráticas- e a lógica em uso de seus agentes. Esse texto,muito usado e pouco citado, espalhou as técnicas <strong>da</strong> etnografiaentre os sociólogos brasileiros que estu<strong>da</strong>vamquase tudo através de números. E é uma <strong>da</strong>s etnografiasmais interessantes produzi<strong>da</strong>s entre nós porque nãoapela para a análise do discurso de algumas entrevistas,o que se tornou uma ver<strong>da</strong>deira praga ou vício entreantropólogos brasileiros fascinados pela teoria <strong>da</strong> representação.Paixão, embora não fosse admirador deBourdieu, conseguiu nesse texto articular a teoria dos significadoscom a teoria <strong>da</strong> ação, um dos maiores desafios<strong>da</strong> Sociologia na vira<strong>da</strong> do século XXI.A terceira foi sua inventa<strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem do fluxonos processos judiciais que iniciou pelos B.Os e R.Os, ouseja, os boletins de concorrência <strong>da</strong> Policia Militar e osregistros de ocorrência <strong>da</strong> Polícia Civil. Hoje usa<strong>da</strong> emquase todos os estudos sobre o sistema de Justiça noBrasil, essa abor<strong>da</strong>gem deve muito à contribuição dePaixão ao incorporar no fluxo os seus momentos iniciais,anteriores à fase do inquérito policial e do processo judicial,cujos ritualismo e lógica ficaram ain<strong>da</strong> mais claros.Por fim, Paixão sempre procurou nos persuadir, coma sua convincente argumentação que reunia <strong>da</strong>dos e teoriasrecém-saí<strong>da</strong>s do forno, <strong>da</strong> importância, do caráter86 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>87


imprescidível <strong>da</strong> Polícia numa socie<strong>da</strong>de democrática,com todos os paradoxos e desafios que essa presençatraz. Membro do conselho político do PT de Belo Horizonte,fato desconhecido de muitos colegas porque ele nuncaapregoou sua afiliação nem exibiu sua carteirinha deesquer<strong>da</strong>, ele não fazia concessões à demagogia ou aosícones do esquerdismo de plantão. Não fazia retóricaindigna<strong>da</strong>, mas <strong>da</strong>va aulas para os policiais mineiros,enquanto nos convencia de que tínhamos que vencer nossosmedos, vergonhas e preconceitos e fazer o mesmo emnossos respectivos Estados. Talvez pelo seu trabalhojunto à Fun<strong>da</strong>ção João Pinheiro, o Estado de MinasGerais possa exibir hoje, sem ser o mais rico <strong>da</strong> região, asmais baixas taxas de crimes violentos, especialmente dehomicídios, no Sudeste do Brasil.Bem, mais não digo. Já me expus demasia<strong>da</strong>menteao risco de ouvir a sua risa<strong>da</strong> inconfundível no lugar virtualou na reali<strong>da</strong>de imaginária onde se encontra, risa<strong>da</strong>provoca<strong>da</strong> pelo que acabei de dizer. Mas, Alba, um obituáriona ANPOCS! É, Paixão merecia mais uma ode à vi<strong>da</strong>.88 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>89


Antônio dos Três Reis OliveiraAntônio dos Três Reis Oliveira nasceu emTiros, Minas Gerais, no dia 19 de novembrode 1946, filho de Ageu de Oliveira e GláuciaMaria de Abadia de Oliveira.Com curso ginasial concluído no ColégioNilo Cairo, Antônio Reis foi estu<strong>da</strong>nte deEconomia na Facul<strong>da</strong>de de Apucarana, noParaná, época em que fazia parte, comomembro ativo, <strong>da</strong> União Paranaense deEstu<strong>da</strong>ntes (UPE).Como membro <strong>da</strong> UPE, Antônio abraçou,junto com outros colegas de Facul<strong>da</strong>de, abandeira <strong>da</strong>s lutas estu<strong>da</strong>ntis volta<strong>da</strong>s para questões específicasdo ensino e a <strong>da</strong> defesa <strong>da</strong> democracia, em soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de àslutas operárias, em favor dos direitos humanos. As duas bandeirasexigiam constantes manifestações e estas extrapolavam oambiente estu<strong>da</strong>ntil, chegando às ruas por meio de panfletagens,comícios, passeatas e até programas de rádio, a exemplode um que o próprio Antônio, junto com o José Idésio Brianesi,também assassinado pela ditadura, colocavam no ar na rádiolocal O movimento estu<strong>da</strong>ntil funcionava, assim, como o principalporta-voz dos descontentamentos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de frente aoregime militar.Antônio foi indiciado no Processo 15/68 por sua participaçãono XXX Congresso <strong>da</strong> União Nacional de Estu<strong>da</strong>ntes(UNE), em Ibiúna. Também foi indiciado no Inquérito Policial nº9/72, do qual foi excluído quando se constatou que ele já nãovivia: o estu<strong>da</strong>nte desapareceu misteriosamente, aos 26 anos dei<strong>da</strong>de, em 10 de maio de 1970, em São Paulo.Segundo denúncia de presos políticos, emdocumento <strong>da</strong>tado de março de 1976, Antônio foimetralhado, juntamente com outros companheiros,no dia 10 de maio de 1970, em sua residência,no Tatuapé, São Paulo, por agentes <strong>da</strong> OperaçãoBandeirantes (OBAN), chefia<strong>da</strong> pelo Capitão MaurícioLopes de Lima. De acordo com o laudo necroscópicooficial, assinado pelos médicos legistasJoão Pagenoto e Abeylard Queiroz Orsini, Antôniomorreu com um único tiro no olho direito. Os laudosnecroscópicos, em sua maioria, coincidiamexatamente com a versão oficial, pois os médicos,que freqüentemente forneciam laudos falsos acobertando ossinais evidentes de torturas, também ocultavam a real causamortis <strong>da</strong>queles que haviam sido barbaramente assassinados,como no caso de Antônio e seus companheiros. Um segundorelatório oficial, o do Ministério <strong>da</strong> Aeronáutica, <strong>da</strong>va conta dofalecimento de Antônio no dia 17 de maio de 1970, em Taubaté,São Paulo, ocorrido durante operação de uma equipe de segurançaque procurava averiguar a existência de um provável aparelho:também esse relatório insistia em desinformar à socie<strong>da</strong>dee aos familiares sobre as reais condições em que morreu.O enterro de Antônio como indigente no Cemitério de VilaFormosa, São Paulo, no dia 21 de maio de 1970, deu início à viacrúcisque passou a viver a família Oliveira. No dia 10 de dezembrode 1991, com a presença de seus familiares, a equipe detécnicos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Estadual de Campinas (UNICAMP), aComissão Especial de Investigação <strong>da</strong>s Ossa<strong>da</strong>s de Perus e aComissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos tentaram aexumação de restos mortais que se presumia serem os deAntônio. No entanto, a quadra onde ele e pelo menos outros doispresos políticos <strong>da</strong> época (Alceri Maria Gomes <strong>da</strong> Silva, assassina<strong>da</strong>em São Paulo na mesma ocasião, e Antônio RaymundoLucena, assassinado em Atibaia no dia 20 de fevereiro de 1970)deveriam estar enterrados sofrera profun<strong>da</strong>s alterações. Segun-90 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>91


do coveiros do cemitério, em 1976 algumas exumações haviamsido feitas para a reestruturação <strong>da</strong>quela quadra, ocasião em que"as ossa<strong>da</strong>s foram joga<strong>da</strong>s em algum canto do cemitério".Em 1991, conforme noticiado no jornal Folha de Londrina,em edição do dia 21 de julho, a família de Três Reis, depois deexaustivas buscas, conseguiu nova chance de localizar a suaossa<strong>da</strong>. Foi quando se tornou possível a abertura do arquivo doDepartamento de Ordem Política e Social do Paraná (DOPS/PR),chance para os familiares de desaparecidos políticos encontraremos restos mortais dos mesmos. No intervalo, a irmã deAntônio, a jornalista Maria do Socorro, que trabalhava no Diáriodo Paraná, recebeu <strong>da</strong> agência de notícias United Press umalista com nomes de pessoas mortas pela ditadura, segundodenúncias <strong>da</strong> Igreja Católica, e descobriu que seu irmão estavamorto desde 1973. Com a abertura dos arquivos do DOPS/PR ecom o apoio do governo do Estado, encontraram-se finalmente<strong>da</strong>dos reais sobre a morte de Antônio e sobre o local onde ele foienterrado.Assim, muitos anos depois de sua morte, providenciou-seo enterro de Antônio dos Três Reis Oliveira em sua ci<strong>da</strong>de natal.HomenagensEm editorial, o jornal Tribuna <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de, em Santos,São Paulo, afirmou: "Soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de humana. A ci<strong>da</strong>de deApucarana assistiu, na missa em homenagem a Antôniodos Três Reis Oliveira, a uma <strong>da</strong>s mais puras demonstraçõesde soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de humana, raramente vista. Muitaspessoas compareceram à cerimônia para compartilhar comos parentes de Antônio a dor de sua morte". A matéria afirmavaque (...) "independentemente de padrões ideológicos,as pessoas devem se preocupar com a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de".Ain<strong>da</strong> no mesmo jornal noticiou-se que "emedebistasesquecem-se <strong>da</strong> campanha para meditar". A cerimôniaem homenagem a Antônio contou com a presença demuitos políticos e candi<strong>da</strong>tos, que elogiaram o sermão docelebrante e reconfortaram os familiares. A presidente doMovimento Feminino <strong>da</strong> Anistia do Paraná disse, na ocasião,que a missa em homenagem a Antônio fora importantepara a conscientização <strong>da</strong> massa sobre a violênciapratica<strong>da</strong> pela ditadura, servindo assim para disseminar omovimento pela anistia, que na época estava no seunascedouro, não só entre as mulheres, mas também entreto<strong>da</strong>s as áreas organiza<strong>da</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira. "É precisounir esforços para que a idéia <strong>da</strong> anistia se fortaleçana socie<strong>da</strong>de", lembrou na época a presidente.92 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>93


Arildo ValadãoRUA ANTÔNIO DOS TRÊS RIOSArildo Valadão, filho de Altino Andra<strong>da</strong>Valadão e de Helena Andra<strong>da</strong> Valadão,nasceu no dia 28 de dezembro de 1948, emCachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo.Participou ativamente do movimentoestu<strong>da</strong>ntil no período de 1967 a 1970, no Riode Janeiro, onde cursava Física na Universi<strong>da</strong>deFederal do Rio de Janeiro (UFRJ). Odestaque que mereceu entre os estu<strong>da</strong>ntestornou-o presidente do Diretório Acadêmicodo Instituto de Física <strong>da</strong> mesma universi<strong>da</strong>deno ano de 1968. O mesmo destaque tornou-otambém alvo dos órgãos de repressão,que invadiram o apartamento onde morava e fizeram com quepassasse a viver na clandestini<strong>da</strong>de.Casou-se com Áurea Eliza Pereira, mineira de Areado, emum cartório do Rio de Janeiro, no dia 6 de fevereiro de 1970. Ocasamento religioso foi realizado no dia seguinte, na Basílica deApareci<strong>da</strong> do Norte.Militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B), partiupara o Araguaia no segundo semestre de 1970, com a mulher,Áurea Eliza, e Antônio de Pádua Costa, o Piauí - todos do Institutode Física. Viveu com sua esposa na região de Caianos e, maistarde, ingressou no Destacamento C <strong>da</strong>s Forças Guerrilheiras doAraguaia. Na região de Xambioá era conhecido por Ari.Segundo informações do Comitê Brasileiro pela Anistia(CBA), Arildo foi assassinado pelas Forças Arma<strong>da</strong>s, no dia 23 denovembro de 1973. Seu corpo, sem cabeça, foi visto no dia se-94 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>95


guinte pelos companheiros. Segundo o depoimento deles, o corpomostrava um ferimento à bala, que não parecia suficiente paramatar: <strong>da</strong>í se supôs que Arildo foi decapitado ain<strong>da</strong> com vi<strong>da</strong>.No relatório do Ministério <strong>da</strong> Marinha sobre sua morte, lêseque Arildo foi "morto em 24 de novembro 1974". Nota-se que,no relatório, o dia e o mês estão corretos; o ano, não: Arildoobtivera um ano antes seu passe para a liber<strong>da</strong>de, uma liber<strong>da</strong>deque lhe fora nega<strong>da</strong> em vi<strong>da</strong>.96 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>97


Ariosvaldo de Campos PiresAriosvaldo de Campos Pires nasceu em17 de maio de 1934, na ci<strong>da</strong>de de Abaeté,Minas Gerais. Era o segundo filho do médicooftalmologista Ari Álvares Pires e deCelma de Melo Campos Pires, completandosua família com os irmãos Arilma, Arilze eArilson. Casou-se com Acila Mara VelosoPires, empresária, natural de São João DelRei, Minas Gerais, com quem teve os trêsfilhos Ari, Carlos Frederico e MariaFernan<strong>da</strong>, que lhe <strong>da</strong>riam, mais tarde, osnetos Priscila, Ariosvaldo Neto, MariaLaura, Maria Helena e João Víctor.Estudou no Colégio Santo Antônio, emBelo Horizonte, e fez o Curso de Direito naFacul<strong>da</strong>de de Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais(UFMG), formando-se em 1959. Atuou, durante to<strong>da</strong> a sua carreira,na área de Direito Penal. Além de exercer a sua profissãode advogado, foi livre docente, professor titular e diretor naFacul<strong>da</strong>de de Direito <strong>da</strong> UFMG, sendo também dirigente devárias enti<strong>da</strong>des, entre elas a Ordem dos Advogados do Brasil -Seção Minas Gerais (OAB/MG).Extremamente sensível à liber<strong>da</strong>de garanti<strong>da</strong> pelos princípiosconstitucionais, empenhou-se, quando presidente <strong>da</strong> OAB/MG,em constantes buscas de desaparecidos. Sobre essa frente deseu trabalho, assim se manifestou o também advogado e professorSidney S. Safe Silveira, na edição nº 2 de Quorum - Informativo<strong>da</strong> Livravria e Editora Del Rey, em junho de 2004: (...) "Duranteos anos 70, sendo presidente <strong>da</strong> OAB/MG, envolveu-se emconstantes buscas por pessoas, estu<strong>da</strong>ntes, jornalistas, advogadose populares que eram arrastados às prisões por aparentesatentados à segurança do Estado, eufemisticamente então denomina<strong>da</strong>Segurança Nacional. Fui seu enviado em inúmeras missõesdesta natureza. Muitas vezes deixei aulas na UFMG paracorrer, por ordem do presidente, à procura de desconhecidos perseguidospelo poder e não localizados por seus familiares. A AnistiaInternacional se correspondia semanalmente com Ariosvaldocobrando, por meio <strong>da</strong> OAB/MG, aquelas medi<strong>da</strong>s, altamenteimpopulares na visão do sistema, mas por ele sempre atendi<strong>da</strong>s".Continua ain<strong>da</strong> o mesmo autor realçando que, diante deobservações horroriza<strong>da</strong>s de jurista internacional sobre os péssimosaspectos de nosso sistema prisional e <strong>da</strong> segurança nacional,aponta<strong>da</strong> como vulnera<strong>da</strong>, "Ariosvaldo, ferrenho defensor <strong>da</strong>sliber<strong>da</strong>des e do Estado, que<strong>da</strong>va-se silente. Silente por seu amorà brasili<strong>da</strong>de e por nossa impotência mecânica diante do sistema.Mas não se calou em juízo e, em notável defesa oral, produzi<strong>da</strong>em pedido de habeas corpus subscrito por vários intelectuaise por nós advogados" obteve a liberação do grupo teatral LivingTheater, suposto comprometedor <strong>da</strong> ordem, que havia sido presoem Ouro Preto. E conclui: "Nós,Ariosvaldo à frente, acompanhamos ocortejo de viaturas policiais que, doDOPS ao aeroporto, conduziu aquelegrupo de ´terríveis´ criminosos políticos".Defendidos estavam, pois, comseu ereto conduzir, tanto a liber<strong>da</strong>deindividual quanto a do Estado, os doisparadigmas de que Ariosvaldo jamaisse afastou.O trabalho intelectual na cátedra,na banca de advocacia e napresidência <strong>da</strong> OAB/MG levaram oprofícuo profissional do Direito à publicaçãode significativos títulos, entre98 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>99


eles A Coação Irresistível no Direito Penal Brasileiro (1965),Compêndio de Direito Penal (1992), Idéias e Vultos do Direito(1993), Prerrogativas do Advogado e sua Garantia (1980), Crimes deTrânsito na Lei n º 9.503/9, esse em parceria com a professoraSheila Jorge Selim de Sales (1998).Paralelamente a to<strong>da</strong> essa ativi<strong>da</strong>de, Ariosvaldo foi presidentee conselheiro federal <strong>da</strong> Ordem dos Advogados do Brasil(OAB), procurador-geral do Município de Belo Horizonte nos governosde Hélio Garcia e Ruy Lage, presidente do Conselho Nacionalde Política Criminal e Penitenciária, do Ministério <strong>da</strong> Justiça,e diretor <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Direito <strong>da</strong> UFMG. Foi membro <strong>da</strong>Academia de Letras de São João Del Rei, <strong>da</strong> Academia Mineirade Direito, <strong>da</strong> Academia Mineira de Letras, presidente do MinasTênis Clube. Recebeu homenagens e honrarias, como o título deCi<strong>da</strong>dão Honorário de Belo Horizonte, a Me<strong>da</strong>lha BenjamimColluci e a Me<strong>da</strong>lha <strong>da</strong> Inconfidência do Governo do Estado deMinas Gerais.Na soleni<strong>da</strong>de de sua posse na Academia Mineira deLetras, onde ocuparia, por votação unânime, a cadeira de número20, o acadêmico Murilo Ba<strong>da</strong>ró saudou-o com palavras vibrantes:"Vossa vi<strong>da</strong> é um suceder de triunfos, desde que, por vocação,resolveu ingressar na advocacia ... O sucesso alcançado, ajusta fama adquiri<strong>da</strong>, poderiam vos levar à comodi<strong>da</strong>de dosescolhidos pelos Deuses que administram a glória humana".100 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>101


Aristides LisboaAristides Lisboa, um dos filhos mais moços do casalAvelino Lisboa e Luíza Forret Lisboa, a mãe descendente defranceses, nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, no dia 15 deagosto de 1906.A forte personali<strong>da</strong>de de Avelino Lisboa marcou to<strong>da</strong> a suafamília. Inspetor do Banco do Brasil, educou os filhos comgrande austeri<strong>da</strong>de e intransigência quanto aos princípios dejustiça. Com exceção de um, que exerceu a profissão de dentista,todos os outros filhos de Avelino tornaram-se bancários.Contemporâneo de Olavo Bilac, Avelino escrevia para osjornais locais artigos de oposição aos coronéis <strong>da</strong> RepúblicaVelha. Passou, então, a ser perseguido, mu<strong>da</strong>ndo-se para o Riode Janeiro, quando o menino Aristides tinha apenas 1 ano.Aristides cresceu na rua do Bispo, no bairro do RioComprido, zona norte do Rio de Janeiro, em companhia dos paise de seus irmãos: Derval, Cordélia, Ademar, Sílvio, Vítor,Fernando.Estudou no Colégio Batista e depois formou-se emContabili<strong>da</strong>de. Durante to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> foi bancário e desdejovem participou <strong>da</strong>s lutas de sua categoria, liderando grevesantes mesmo <strong>da</strong> legalização dos sindicatos. Indignava-se com aexploração desenfrea<strong>da</strong> dos empregados, sem direito a férias,aposentadoria, licença-materni<strong>da</strong>de. Criado o Sindicato Nacionaldos Bancários, ele se tornou secretário executivo em 1932,conduzindo a vitoriosa campanha pela jorna<strong>da</strong> de seis horas e,mais tarde, como presidente, organizando a primeira grevenacional de bancários, que paralisou as praças do Rio deJaneiro, São Paulo, Santos e outras.102 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>103


Casou-se em São Paulo, em 27 de outubro de 1940, com aprofessora Judith Vieira Lisboa, uma moça de Alfenas que setornaria sua companheira por to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>.O casamento e o nascimento <strong>da</strong>s filhas, Célia e Marijane,não afastaram Aristides <strong>da</strong>s lutas trabalhistas. Sempre perseguidoe importunado pelos conservadores, fichado como comunista,o que não correspondia à ver<strong>da</strong>de, Aristides era freqüentementedemitido dos bancos em que trabalhava, mas sempre conseguiaum novo emprego por causa de sua reputação de austeri<strong>da</strong>de ecompetência. Homem corajoso, Aristides não se intimi<strong>da</strong>va.Dizia ter se dedicado às lutas trabalhistas "porque doíaquando chegava ao Banco e <strong>da</strong>va por falta de um colega velhinho.Bilhete azul, sem nenhum direito". O que mais o incomo<strong>da</strong>vaera a injustiça. Sua vi<strong>da</strong> foi uma luta permanente. Juntamentecom sua esposa, Judith, Aristides incorporou-se ao movimentopela anistia aos presos políticos, no qual atuou incansavelmente.Nesse período, lutou para proteger não só sua filha,que foi presa em setembro de 1969 e passou um ano e meio naprisão, mas também os companheiros de prisão e os exilados,buscando-lhes advogados, contatando suas famílias e prestandoa elas aju<strong>da</strong> moral e material. Foi um dos fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> Liga dosDireitos Humanos, que reunia familiares e advogados que atuarampela anistia e pelo fim <strong>da</strong> ditadura no País. Após a anistia ecom a volta dos exilados, Aristides voltou-se para a corrente trabalhista.Ele foi um marido sério, um pai amoroso, um grande companheiroe amigo. Sua casa vivia sempre cheia, porque tratavamuito bem os seus amigos e os amigos de sua família. Dedicavaàs filhas e aos netos muito amor, carinho e alegria. Teve quatronetos: Adriana e Thiago, de Célia; Bárbara e Carlos, de Marijane.A luta de Aristides teve continui<strong>da</strong>de no trabalho políticode sua filha Marijane. Vítima <strong>da</strong> ditadura, foi presa e exilou-se noChile e depois na Alemanha, só retornando ao Brasil após a Lei<strong>da</strong> Anistia, em 1979. Casou-se com Luís Travassos, e, mais tarde,viria a dirigir a seção <strong>da</strong> organização não-governamental deno-mina<strong>da</strong> Greenpeace em São Paulo. Aristides sentia o maior orgulhodo engajamento <strong>da</strong> filha nas lutas de sua geração. Suaviúva, Judith Vieira Lisboa, foi presidente do Comitê Femininopela Anistia, no Rio de Janeiro.Aristides faleceu em 8 de junho de 1988, aos 82 anos.104 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>105


Arlindo José RamosArlindo José Ramos nasceu em Itajubá, MinasGerais, no dia 26 de novembro de 1929, o quarto eúltimo filho de Miguel Ramos <strong>da</strong> Silva e Maria <strong>da</strong>Costa e Silva (D. Cocota). Teve infância simples ehumilde, mas tranqüila e alegre, com a casa cheiade primos e parentes que gostavam <strong>da</strong>s atenções,quitutes e guloseimas de D. Cocota.Seus estudos foram custeados pelo tio Joãozinho,irmão de sua mãe. Aos 15 anos, incentivado pelo primo IroMachado, ingressou no Banco de Itajubá, onde aprendeu o trabalhode praticamente todos os setores. Depois de prestar serviçomilitar, conseguiu por concurso, aos 19 anos, colocação profissionalno BANESPA, mu<strong>da</strong>ndo-se para São Paulo.Morou num pensionato onde também viviam outros itajubensesà procura de estudo e de colocação profissional. A quasetotali<strong>da</strong>de de seus rendimentos era destina<strong>da</strong> à família, em Itajubá,pois a constante enfermi<strong>da</strong>de de seu pai deixava a famíliasem o que contar para as despesas <strong>da</strong> casa. Para concluir seusestudos - colegial com formação em técnicas comerciais - trabalhava,ain<strong>da</strong>, em uma fábrica de estopas, próxima ao pensionatoonde morava. Em 1952, também por concurso, entrou parao Branco do Brasil, obtendo, em pouco tempo, transferência paraItajubá, onde pôde assistir de perto a família.Casou-se com Augusta Pereira Cintra, com quem teve setefilhos: Mário Augusto, Maria Regina, Ana Letícia, EugênioMiguel, Paulo Ludgero, José Arlindo e Márcia Helena.A par do interesse pela família e pelo trabalho, Arlindodesde cedo demonstrou interessar-se também pelos assuntos106 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>107


sociais. Desde os 15 anos participava <strong>da</strong>s reuniões <strong>da</strong> CongregaçãoMariana. Quando <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção do Sindicato dos Bancáriosde Itajubá, foi convi<strong>da</strong>do a secretariar as reuniões eparticipou <strong>da</strong> re<strong>da</strong>ção dos estatutos <strong>da</strong> enti<strong>da</strong>de. Em 1961, percebendoo esvaziamento dos movimentos sociais no âmbito <strong>da</strong>Igreja, colaborou ativamente para a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Associação dosAmigos de Itajubá, enti<strong>da</strong>de civil apartidária que atuava junto àscomuni<strong>da</strong>des e bairros <strong>da</strong>quela ci<strong>da</strong>de, fomentando o surgimentoe fortalecimento <strong>da</strong>s associações comunitárias. Em 1962,nove dos 15 vereadores eleitos para a Câmara Municipal deItajubá eram oriundos dessas associações e concorreram pordiferentes partidos políticos.A partir de então, foram viabilizados projetos de interesse<strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des representa<strong>da</strong>s em detrimento de projetos centralizadores,enviados por prefeitos que vinham se revezando nocomando <strong>da</strong> prefeitura. Escolas, postos de saúde, pavimentação,rede de esgoto, iluminação foram sendo, aos poucos, disponibilizadosnas regiões mais carentes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.Em 1965, Arlindo assumiu a Secretaria do Sindicato dosBancários de Itajubá e, em 1966, foi eleito presidente doSindicato, em meio ao aterrorizante processo de delações edenúncias fabrica<strong>da</strong>s pela ditadura que se implantava.Chamado a depor diversas vezes, sempre era defendido porvozes dos mais diferentes matizes políticos e religiosos <strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de.Mas o processo aterrorizante <strong>da</strong> ditadura gerou um esvaziamentodos quadros de militância nas enti<strong>da</strong>des liga<strong>da</strong>s aosmovimentos sociais. Arlindo, um dos resistentes, foi convi<strong>da</strong>do alançar chapa para a Federação dos Empregados em EstabelecimentosBancários (FEEB) de Minas Gerais, Goiás e Brasília,enti<strong>da</strong>de que ain<strong>da</strong> hoje mantém sede em Belo Horizonte. Aprincípio resistiu à idéia, pois sua mãe, muito idosa, só tinha aele. Mas, após seu falecimento e julgando poder oferecer melhoresperspectivas à família já numerosa - os dois filhos de sua irmãfaleci<strong>da</strong> também eram criados por ele e a esposa Augusta -,Arlindo mudou-se em 1970 para Belo Horizonte com a família, osdois sobrinhos e um afilhado.Embora ausente de Itajubá, <strong>da</strong>va constante suporte ao Sindicatodos Bancários <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e iniciou naquela primeira gestãocursos de formação para lideranças sindicais, nas áreas deatuação <strong>da</strong> FEEB - MG/GO/DF. Foi a alternativa encontra<strong>da</strong> paraminimizar os efeitos <strong>da</strong> degra<strong>da</strong>ção de quadros promovi<strong>da</strong> peladitadura. O objetivo era fortalecer estruturalmente os sindicatospara que fossem adquirindo poder de atuação, de aglutinação ede mobilização não só <strong>da</strong> classe bancária, mas também de liderançasde outras classes profissionais. Neste contexto, aConfederação Nacional dos Trabalhadores nas Empresas deCrédito (CONTEC), com sua diretoria quase to<strong>da</strong> composta depessoas <strong>da</strong> confiança <strong>da</strong> ditadura, quis promover alterações depercurso e convocou um encontro nacional, onde prevaleceu atese <strong>da</strong> FEEB-MG/GO/DF, que passou a ser divulga<strong>da</strong> em todo oPaís. O argumento utilizado para a difusão <strong>da</strong>s idéias era o deque os militares tinham assumido o compromisso com a redemocratizaçãodo País com base na ordem e que as instituiçõesdeveriam buscar seu fortalecimento e estar prepara<strong>da</strong>s paraquando esse momento chegasse.O procedimento propiciou que viessem os contatos comlideranças sindicais bancárias de todo o País e também de outrascategorias profissionais, que foram se aglutinando em torno<strong>da</strong> idéia de se construir uma corrente intersindical para que asenti<strong>da</strong>des pudessem se apoiar mutuamente. Categorias profissionaisde sindicatos menos estruturados utilizavam sede eequipamentos de outras classes mais bem estrutura<strong>da</strong>s, para<strong>da</strong>rem an<strong>da</strong>mento a suas campanhas salariais. A troca de experiênciae o convívio trouxeram o entendimento <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>dede se pensar em organizar aquela corrente de forma que nãopudesse ser quebra<strong>da</strong>, desmonta<strong>da</strong>.Com o recrudescimento <strong>da</strong> ditadura, Arlindo aceitou o convitepara concorrer ao cargo de presidente do Sindicato dos Bancários<strong>da</strong> Região Metropolitana de Belo Horizonte, que dirigiu por108 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>109


dois man<strong>da</strong>tos (1975/78 e 1978/83). Considerado um dos maioreslíderes sindicais brasileiros, "seu Arlindo", como era carinhosamentechamado no Sindicato, destacou-se como membro integrantedo grupo de resistência à ditadura militar e foi um dosprecursores do movimento que se chamou novo sindicalismosurgido na final dos anos 70 e início dos anos 80, tendo sido umdos interlocutores do então presidente do Sindicato dos Metalúrgicosdo ABC paulista, Luiz Inácio <strong>da</strong> Silva, o Lula. Foi tambémum dos fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> Central Única dos Trabalhadores (CUT), doPartido dos Trabalhadores (PT) e do Departamento Intersindicalde Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE). Com umaatuação firme e uma forte capaci<strong>da</strong>de de negociação, teve trânsitolivre entre to<strong>da</strong>s as correntes dos movimentos sociais."Arlindo fazia parte de um grupo intersindical e pode-sedizer, sem medo de errar, que foi um dos mais importanteslíderes sindicais que o Brasil já teve. Sua atuação e trajetóriapolíticas foram importantíssimas na condução <strong>da</strong> história sindicalbrasileira", afirma o jornalista e ex-presidente do Sindicatodos Jornalistas de Minas Gerais, Dídimo de Paiva. "Destacou-sepela coragem com que defendeu os direitos dos trabalhadores,numa época em que a ditadura militar espalhava o medo e o terror,matando e torturando muitos brasileiros", acentua FernandoNeiva, presidente do Sindicato dos Bancários <strong>da</strong> Região Metropolitanade Belo Horizonte.Com a aposentadoria, Arlindo retornou a Itajubá em 1983,mas, no início de 1984, voltou a Belo Horizonte, ci<strong>da</strong>de que ofereciaao velho guerreiro, a esta altura já infartado, maiores recursosmédicos. A vi<strong>da</strong> profissional e sindical, muito sedentária,também lhe acarretara problemas na coluna. Na<strong>da</strong> impedia,contudo, que Arlindo se ocupasse em manter aglutina<strong>da</strong> afamília e a dedicar-se aos trabalhos de organização e fortalecimentoinstitucional <strong>da</strong> Associação dos Bancários Aposentados<strong>da</strong> Grande BH, juntamente com seus companheiros de caminha<strong>da</strong>,ain<strong>da</strong> militantes nos movimentos sociais de defesa dosinteresses dos trabalhadores.Aos 74 anos, Arlindo morreu em sua casa, durante amadruga<strong>da</strong>, vítima de um ataque cardíaco. Foi sepultado na presençade dezenas de amigos e familiares no Cemitério Parque <strong>da</strong>Colina, em Belo Horizonte.110 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>111


ARLINDO JOSÉ RAMOS112 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>113


Armando ZillerArmando Ziller nasceu em 3 desetembro de 1906, na ci<strong>da</strong>de do Rio deJaneiro, filho mais velho de João TrentinoZiller e Luíza Ziller, que tiveramain<strong>da</strong> os seguintes filhos: Arman<strong>da</strong>,Abgail e Angelina. O pai, que contrairianovas núpcias com Rosa LeonelloZiller, <strong>da</strong>ria a Armando os seguintesnovos irmãos: A<strong>da</strong>lgisa, Adelchi,Amílcar, Anfrido, Albiluz, Albina eAlbileo.Armando fez seus primeiros estudosno famoso educandário Grambery,em Juiz de Fora, Minas Gerais. Desdeos 15 anos de i<strong>da</strong>de, lecionou em escolasdo interior de Minas e de São Paulo,junto com seu pai, que era professor.Em 1930, na ci<strong>da</strong>de de Itararé,interior de São Paulo, conheceu Filomena Melillo Ziller, comquem se casou e teve três filhos: Hélia, Armando e Arnaldo.Bancário, participou <strong>da</strong>s lutas e reivindicações <strong>da</strong> categoria,aju<strong>da</strong>ndo a fun<strong>da</strong>r o Sindicato dos Bancários do Paraná em1933 e, em 1935, o Sindicato dos Bancários de Santos, São Paulo.Despontou como uma <strong>da</strong>s mais expressivas lideranças <strong>da</strong> classe.Em 1947, já membro e dirigente nacional do Partido ComunistaBrasileiro (PCB), foi eleito deputado estadual Constituinteem Minas Gerais. Seu trabalho, registrado nos anais <strong>da</strong>Assembléia, ficou marcado por sua combativi<strong>da</strong>de, seu saber esua tolerância. Cassado por força <strong>da</strong> declaração de ilegali<strong>da</strong>dedo PCB antes que tivesse completado seu primeiro ano deman<strong>da</strong>to, Armando Ziller continuou sua luta no Sindicato dosBancários de Minas Gerais e, posteriormente, na Federação dosSindicatos de Minas, Espírito Santo e Goiás.Na <strong>da</strong>ta do Golpe Militar de 1964, Armando Zilller estavana Europa, mais exatamente em Paris, França, onde organizavao Congresso Mundial dos Trabalhadores. Viu-se impedido de retornarao Brasil e exilou-se na Tchecoslováquia, lá permanecendodurante 17 anos. No País estrangeiro, desenvolveu ativi<strong>da</strong>desintelectuais (lecionando e dirigindo periódico trabalhista) e ativi<strong>da</strong>dessindicais, trabalhando na Organização Internacional doTrabalho (OIT), organismo filiado à UNESCO.Com a Lei <strong>da</strong> Anistia promulga<strong>da</strong> em 1979, retornou aoBrasil em 1980, continuando sua luta pela legalização do PCB, oque conseguiu juntamente com seus companheiros, em marçode 1992, pouco antes de falecer. Fiel ao seu ideal marxista-leninista,morreu aos 84 anos de lutas, no dia 17 de maio de 1992,em Belo Horizonte.(A<strong>da</strong>ptado de texto de autoria de Arnaldo Ziller)114 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>115


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Arnaldo Cardoso RochaArnaldo Cardoso Rocha, filho deAnnette Cardoso Rocha e João de DeusRocha, nasceu em Belo Horizonte, MinasGerais, no dia 28 de março de 1949.Seu pai, também conhecido como o Rocha,era antigo militante comunista esua mãe, Annete, dona-de-casa,responsável pelos 10 filhos. Apesar <strong>da</strong>sdificul<strong>da</strong>des de uma família numerosa,sempre reinavam o respeito, o carinhoe, sobretudo, a alegria na casa cheia,com os almoços domingueiros regadosa discussão política e cerveja, reunindoamigos e todos os irmãos: Maria Luíza, Maria de Lourdes, Mariado Carmo, Maria Letícia, João Luiz, Eduardo Luiz, Joaquim eJosé Marcos.Arnaldo era um garoto alegre, carinhoso com os pais e osirmãos. Foi um menino como os demais, cursando os quatroprimeiros anos do Ensino Fun<strong>da</strong>mental no Grupo Escolar Barãodo Rio Branco e os seguintes no Colégio Padre Machado. Nãoconcluiu o Ensino Médio em razão dos rumos que o movimentoestu<strong>da</strong>ntil tomou, por conta <strong>da</strong> repressão <strong>da</strong> ditadura militar.Ex-sol<strong>da</strong>do do Exército, trabalhou no Colégio Militar, naPampulha, em Belo Horizonte. Lá, de forma muito reserva<strong>da</strong> ediscreta, segundo sua mãe, iniciou sua militância política noPartido Comunista Brasileiro (PCB). Ao deixar o PCB criou, juntamentecom outros jovens, o movimento denominado CorrenteRevolucionária de Minas Gerais (CORRENTE), também passan-do a integrar a Ação Libertadora Nacional (ALN), sob o comandode Carlos Marighella.A partir <strong>da</strong>í, caiu na clandestini<strong>da</strong>de e começaram asfugas, os paradeiros incertos. Apesar dos momentos difíceis <strong>da</strong>luta, Arnaldo, já casado com lara Xavier Pereira, não perdeu ojeito doce de viver o cotidiano: participou e dividiu com a esposaas tarefas e afazeres de casa, cultivou os hábitos familiares econservou o seu jeito mineiro de ser.Procurado e marcado para morrer, an<strong>da</strong>va pelas ruasarmado como um bom guerrilheiro, mas com a consciência dequem entrega a vi<strong>da</strong> por um ideal. Além <strong>da</strong>s armas, usava adefesa de alguns nomes falsos (José Carlos Líbano, Pedro LuísWitaker Vidigal e José Carmo Spinelli) e apelidos (Giba, Jibóia,Flávio e Roberto). Em 1972, foi para o exterior, onde permaneceupouco tempo, recusando-se a ficar longe do Brasil e <strong>da</strong> luta.Arnaldo foi brutalmente assassinado em São Paulo, no dia15 de março de 1973, na rua Caguito, no bairro <strong>da</strong> Penha, juntamentecom Francisco Emanoel Penteado e Francisco Seiko Okano,numa embosca<strong>da</strong> monta<strong>da</strong> pelos agentes do Destacamentode Operações de Informações do Centro de Operações de DefesaInterna (DOI/CODI) do Rio de Janeiro.Sua família soube <strong>da</strong> notícia pela televisão e viajou paraSão Paulo com a finali<strong>da</strong>de de exigir o seu corpo para que fosseenterrado em Belo Horizonte, no Cemitério Parque <strong>da</strong> Colina.Arnaldo tinha um sonho: ter filhos, muitos filhos. Teve tempode ter apenas um, Arnaldo Xavier Cardoso Rocha, nascido em5 de setembro de 1973, de sua união com lara. Segundo depoimentode sua mãe à época de sua morte, Arnaldo escrevia umlivro. Mas ela não sabia o que fora feito dele. Possivelmente tenhase perdido, assim como se perdera a vi<strong>da</strong> dos muitos filhosdo Brasil nas suas caminha<strong>da</strong>s pelo ideal de uma vi<strong>da</strong> justa paratodos. E foi esse ideal, exatamente, o que não se perdeu, passandoà posteri<strong>da</strong>de.118 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>119


Áurea Eliza Pereira ValadãoÁurea Eliza Pereira Valadão, filha de JoséPereira e Odila Mendes Pereira, nasceu emAreado, sul de Minas, no dia 6 de abril de 1950.Cria<strong>da</strong> numa família cristã, recebeu sóli<strong>da</strong> formaçãoreligiosa, compartilha<strong>da</strong> com os irmãosMaria Auxiliadora, lara e José Francisco.Afetiva e risonha, manteve sempre um bomrelacionamento com a família durante to<strong>da</strong> asua infância e adolescência.A família morava na Fazen<strong>da</strong> <strong>da</strong> Lagoa,município de Monte Belo, Minas Gerais, onde opai era administrador. Por residir longe de escolas,Áurea Eliza teve que ir, muito cedo, para ointernato. Aluna aplica<strong>da</strong>, estudou, dos 6 aos 14anos, no Colégio Nossa Senhora <strong>da</strong>s Graças, emAreado, onde concluiu o Ensino Fun<strong>da</strong>mental.Segundo depoimento de uma colega<strong>da</strong>quele tempo, Áurea Eliza exercia grande liderançano colégio, mantendo ótimas relaçõescom as companheiras, participando ativamente<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des escolares e brilhando nos resultados,principalmente em Matemática, disciplinade sua predileção. Sua liderança era tãogrande que ela conseguiu levar to<strong>da</strong>s as alunasdo colégio para um passeio na fazen<strong>da</strong> ondemoravam seus pais.Em 1964, mudou-se para o Rio de Janeiro,onde cursou o Ensino Médio no Colégio Brasi-120 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>121


leiro, bairro de São Cristóvão. Na ci<strong>da</strong>de, morou com sua irmãlara, com quem tinha laços de afeto muito estreitos. Em 1967,aos 17 anos, prestou vestibular para o Instituto de Física <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde pretendia estu<strong>da</strong>rFísica Nuclear. Por não ter ain<strong>da</strong> 18 anos, precisou de umaautorização especial de seu pai.Na universi<strong>da</strong>de no período de 1967 a 1970, participouintensamente do movimento estu<strong>da</strong>ntil, tendo sido membroatuante do Diretório Acadêmico de sua escola, juntamente comAntônio de Pádua Costa (Piauí) e Arildo Valadão (Ari). Foi comeste último que Áurea Eliza viria a casar-se, tendo sido o ato civilrealizado no dia 6 de fevereiro de 1970, num cartório do Rio deJaneiro, e o religioso no dia 7 de fevereiro de 1970, na Basílica deApareci<strong>da</strong> do Norte, em São Paulo.Militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B), viajoujunto com Arildo e Piauí para o Araguaia, no segundo semestrede 1970, indo viver na região de Caianos, onde passou a trabalharcomo professora. Posteriormente, ingressou no DestacamentoC <strong>da</strong>s Forças Guerrilheiras do Araguaia, sob o comandode Paulo Mendes Rodrigues. No Araguaia era conheci<strong>da</strong> tambémpor Eliza.O Cordel <strong>da</strong> Guerrilha do Araguaia, de autoria de D.Nonato <strong>da</strong> Rocha, assim se referiu a Áurea Eliza:Áurea era professoraE decidiu improvisarDuma tapera, uma escolaPra criança<strong>da</strong> estu<strong>da</strong>rEla na<strong>da</strong> cobravaEnsinava e brincavaCom as crianças do lugar.No período em que viveu no Rio de Janeiro, Áurea Elizacorrespondia-se regularmente com seus pais. Mas, depois,quando o medo e as perseguições tornaram-se constantes, seusfamiliares deixaram de receber notícias.Consta que Áurea Eliza Pereira Valadão teria sido presaem Marabá, em 1973, estando desapareci<strong>da</strong> desde 1974. Seuspais faleceram sem que nenhuma notícia Ihes fosse <strong>da</strong><strong>da</strong> sobreseu paradeiro.O Jornal de Brasília, edição de 16/4/92, publicou depoimentosde Criméia Schmidt de Almei<strong>da</strong> e Vitória Grabois emque ambas declaram que legistas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Estadual deCampinas (UNICAMP) estavam desenvolvendo trabalhos dereconhecimento <strong>da</strong> ossa<strong>da</strong> de uma jovem mulher encontra<strong>da</strong>enterra<strong>da</strong>, cujo corpo estava enrolado num pano sintético depára-que<strong>da</strong>s, com a numeração rasga<strong>da</strong>. Vitória Grabois julgavatratar-se dos restos mortais de Áurea Eliza Valadão ou MariaLúcia Petit, ambas militantes e considera<strong>da</strong>s desapareci<strong>da</strong>sdurante a Guerrilha do Araguaia, no início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 70. Olivro Xambioá, do Coronel <strong>da</strong> reserva Pedro Corrêa Cabral, sobrea Guerrilha do Araguaia, novela basea<strong>da</strong> em fatos reais, faz122 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>123


eferências a dois prisioneiros às páginas 129,130,131,132,135,136,137 e 150, chamando-os Áurea ou Maria Lúcia Silva e JoséLírio Prata, codinome Vitor Élcio, que teriam viajado* para Brasíliaou São Paulo, ou teriam sido mortos na própria selva, depoisde torturados física e psicologicamente por agentes que atuavamna área. Em entrevista à revista Veja, edição de 13/10/93,ele ain<strong>da</strong> afirma que "muitos corpos foram queimados, depois dedesenterrados, muitos transportados por ele próprio que os viuarder, sentindo o cheiro cru de carne humana queima<strong>da</strong>".Mas foi no livro de sua autoria que Cabral, afirmando quetodos aqueles personagens pertenciam ao Destacamento B, tempalavras de ternura para descrever a moça: ela era "uma mulherfranzina, cabelos escorridos, muito páli<strong>da</strong>, delica<strong>da</strong> e meiga". Elesó se esqueceu de registrar que à fragili<strong>da</strong>de física correspondiamuma imensurável fortaleza moral e uma inabalável esperançaem dias de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de e igual<strong>da</strong>de para o povo do Brasil.*Viajar - termo utilizado para designar execução sumária.124 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>125


Azarias Duarte Soares SouzaLimaAzarias Duarte Soares Souza Lima nasceu na ci<strong>da</strong>de deUbá, Minas Gerais, no dia 29 de novembro de 1917, filho de JoséSoares Souza Lima Sobrinho e de Maria Assunção DuarteSoares. Teve dois irmãos: Josias e Ari Duarte Soares Souza Lima.Casado com Maria Perpétua Martins Costa Soares, Azarias tevetrês filhos: Eudóxio Magela, Mag<strong>da</strong> Mara e Clóvis Soares.Fez o Ensino Fun<strong>da</strong>mental em Ubá e foi viajante-vendedorde laboratório, bancário e hoteleiro.Militou no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), uma organizaçãopartidária de esquer<strong>da</strong>, que tivera seu funcionamentoproibido pela legislação vigente já antes de abril de 1964 e queviria a ser duramente persegui<strong>da</strong> após a instalação do regimemilitar. Ligado diretamente ao Grupo dos Onze, liderado peloentão governador Leonel Brizola, Azarias foi um militante ativo,participou de manifestações de rua e seminários, trabalhou intensamente.Como era usual na época, acabou sendo colhido como maisuma <strong>da</strong>s vítimas <strong>da</strong>s atroci<strong>da</strong>des que, em completo desrespeitoaos direitos e garantias fun<strong>da</strong>mentais do ci<strong>da</strong>dão previstos naConstituição, foram pratica<strong>da</strong>s durante o regime militar. Perseguições,seqüestros, detenções, torturas físicas e psicológicascompunham o cotidiano <strong>da</strong>queles dias. Atingido duramente,Azarias conservou várias seqüelas, as quais, segundo seus familiares,fizeram dele um homem radical e explosivo, destemperado,que acabou abandonando a família.Vítima de um infarto agudo, faleceu em 13 de março de1983.126 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>127


Benedito GonçalvesBenedito Gonçalves era operário metalúrgico.Foi morto pela Polícia Militar em agosto de 1979, quandofazia um piquete de greve em frente à Companhia SiderúrgicaPains, em Divinópolis, Minas Gerais, onde trabalhou durante 11anos.A causa <strong>da</strong> morte foi um golpe de cassetete com que um policialmilitar atingiu-o na cabeça. Tendo sofrido traumatismo craniano,foi hospitalizado, mas, não resistindo, faleceu dias depois.A família ajuizou na 2ª Vara <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong> e Feitos Públicosuma ação ordinária de indenização contra o Estado. A ação, propostapelo advogado José Helvécio Ferreira <strong>da</strong> Silva, procuravaprovar a responsabili<strong>da</strong>de do crime. Requeria pagamento depensão mensal à família, pelo período de expectativa de vi<strong>da</strong> dooperário, que viera a falecer aos 48 anos. Segundo a viúva, Maria<strong>da</strong> Conceição Gonçalves, após a morte de seu marido, a famíliaenfrentou grandes dificul<strong>da</strong>des.128 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>129


Carlos Alberto Soares de FreitasCarlos Alberto Soares de Freitas, oBeto, nasceu em Belo Horizonte, MinasGerais, em 12 de agosto de 1939, filho deJayme Martins de Freitas e Alice Soaresde Freitas. Caçula de oito irmãos, Beto eraum homem reservado e discreto, solteiro,de uma insuspeita<strong>da</strong> timidez, o que lheconferia um certo charme, sempre despertandopaixões. Corpo atlético, perfeito,extremamente terno, cavalheiro, educado,arisco, jogador de basquete, prêmiosde natação. Filho amoroso, nunca deixoude se corresponder com os pais, mesmodurante a clandestini<strong>da</strong>de.As quatro primeiras séries doEnsino Fun<strong>da</strong>mental foram feitas noColégio São Francisco e no Grupo EscolarManoel Esteves, em Teófilo Otoni, Minas Gerais. As quatro sériesfinais e todo o Ensino Médio foram feitos nos Colégios Anchietae Tristão de Ataíde, em Belo Horizonte. Em 1961, ingressou naFacul<strong>da</strong>de de Ciências Econômicas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal deMinas Gerais (FACE/UFMG) para cursar Sociologia e Política.Nesse mesmo ano, iniciou sua trajetória de militânciapolítica, tendo sido recrutado pela organização Política Operária(POLOP). Inscreveu-se no Partido Socialista Brasileiro (PSB), tendose dedicado, desde o início, inteiramente à política.Em janeiro de 1962, viajou para Cuba, onde seria comemora<strong>da</strong>a Revolução Cubana. Escolhido pelos seus companheiros130 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>131


<strong>da</strong> POLOP, buscava obter maiores informações sobre a revoluçãosocialista.No período de 1961 a 1965, militou no movimento estu<strong>da</strong>ntil,participando também do trabalho de implantação <strong>da</strong>s LigasCamponesas em Minas Gerais, dentro <strong>da</strong> perspectiva política <strong>da</strong>aliança dos movimentos operário-camponês-estu<strong>da</strong>ntil.Logo após o Golpe Militar de 1964, recebeu determinações<strong>da</strong> direção nacional <strong>da</strong> POLOP para transferir-se para o Rio deJaneiro. No entanto, dois meses depois estava de volta, <strong>da</strong>ndointeira continui<strong>da</strong>de em Belo Horizonte a sua militância política.Foi preso em flagrante em Belo Horizonte, no dia 26 de julho de1964, quando pichava muros e gritava palavras de ordem contrao isolamento cubano imposto pela Organização dos EstadosAmericanos (OEA) e contra a ditadura militar. Levado para oDepartamento de Ordem Política e Social (DOPS), foi posteriormentetransferido para a Penitenciária Agrícola de Neves. Foisolto em novembro do mesmo ano.No ano seguinte, 1965, Beto participou <strong>da</strong> reorganização <strong>da</strong>seção regional do PSB, tornando-se um dos membros do ComitêExecutivo do partido, além de dirigente nacional <strong>da</strong> POLOP, emMinas Gerais. No período de 1965 a 1968, além de outras tarefas,escreveu semanalmente artigos para o jornal operário Piquete.Beto foi fun<strong>da</strong>mental na constituição <strong>da</strong> Comando deLibertação Nacional (COLINA), organização de Minas Geraissurgi<strong>da</strong> do racha na POLOP, durante congressonacional em São Paulo. Junto comele estavam os companheiros ÂngeloPezzuti <strong>da</strong> Silva e Apolo Heringer Lisboa.Mais tarde, Beto, codinome Breno, foi eleitopara a direção nacional <strong>da</strong> Vanguar<strong>da</strong>Arma<strong>da</strong> Revolucionária - Palmares (VAR-Palmares).Em 1968, foi eleito para a direçãonacional do COLINA e elaborou, junto comoutros companheiros, documentos de análisepolítica para discussões internas na organização, usando opseudônimo de Fernando Ferreira. Nesse período, foi um dos diretores<strong>da</strong> revista América Latina.Mas, para infortúnio do jovem socialista, paralelamente àhistória <strong>da</strong> militância, corria a história <strong>da</strong> perseguição. Em 1967,Beto foi julgado à revelia e condenado a dois anos de prisão pelaAuditoria do Exército <strong>da</strong> 4ª Região Militar, em Juiz de Fora, MinasGerais. Teve de entrar para a clandestini<strong>da</strong>de, mu<strong>da</strong>ndo-separa o Rio de Janeiro, no mês de janeiro de 1969. No entanto,nova prisão viria a encontrá-lo no novo endereço: em 15 defevereiro de 1971, junto com Antônio Joaquim de SouzaMachado e Sérgio Emanuel Dias, Beto foi preso na pensão ondemoravam, na rua Farme de Amoedo, nº 135, em lpanema.Acusados de serem militantes <strong>da</strong> VAR-Palmares, foram levadospara o quartel <strong>da</strong> Polícia do Exército (PE), na rua Barão deMesquita, onde ficavam as dependências do Destacamento deOperações de Informações do Centro de Operações de DefesaInterna (DOI/CODI) no Rio de Janeiro.132 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>133


Segundo Eduardo, seu irmão, quatro dias após sua prisão, afamília recebeu uma carta escrita pelo próprio Carlos Alberto, naqual ele comunicava que, quando o documento chegasse ao seudestino, era sinal de que teria sido detido pelos órgãos de repressãoe que, em decorrência disso, to<strong>da</strong>s as medi<strong>da</strong>s necessárias à sualocalização deveriam ser toma<strong>da</strong>s pela família. Informava que nãohavia ido para Cuba, participando de seqüestro de avião.Foram acionados vários advogados buscando a sua localização:Sobral Pinto, Oswaldo Mendonça e Antônio Modesto <strong>da</strong>Silveira. O habeas corpus, impetrado junto ao Supremo TribunalMilitar (STM), tomou o número 30.405, com entra<strong>da</strong> no dia 12 demarço de 1971 (menos de um mês após a prisão), atuando comorelator o ministro Nelson Sampaio.Inúmeros apelos em caráter dramático foram enviadospelos pais e familiares de Beto às mais altas autori<strong>da</strong>des do País,os generais Médici, Geisel e Figueiredo e o ministro do STM,Rodrigo Otávio Jordão Ramos. Várias buscas foram feitas naBase Aérea do Galeão, conhecido centro de tortura no ano de1971, na Ilha <strong>da</strong>s Flores, na Vila Militar, na 4ª Região Militar emJuiz de Fora e em Salvador. Foi muito procurado por pessoas conheci<strong>da</strong>sem outros Estados.Ocorreu então que, na delegacia de Itaguaí, em junho de1971, Eduardo Soares de Freitas viu um cartaz de terroristas procuradosexibindo a foto de Beto: a foto havia sido risca<strong>da</strong> com um xise indicava que o militante já não era mais procurado. Na ver<strong>da</strong>de,ele havia sido preso em São Paulo e conduzido, posteriormente, aum centro clandestino de tortura <strong>da</strong> repressão, situado no interiordo Estado do Rio, onde permaneceu por um período de cem dias.Eduardo ouviu dos seus torturadores que Beto fora preso, torturadoe assassinado a tiros de revólver naquela casa, identifica<strong>da</strong> depoiscomo a Casa <strong>da</strong> Morte, em Petrópolis, no Rio de Janeiro.Vários outros presos políticos denunciaram a prisão, torturae morte de Carlos Alberto Soares de Freitas, entre eles InêsEtienne Romeu. Inês, a única que escapou com vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> Casa <strong>da</strong>Morte, teve as suas declarações registra<strong>da</strong>s pela Ordem dosAdvogados do Brasil (OAB), pela imprensa e pelas instituiçõesque cui<strong>da</strong>m dos direitos humanos. Mais tarde, o Boletim dosFamiliares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, nº 2, edição denovembro de 1993, confirmou a morte de Carlos Alberto Soaresde Freitas, <strong>da</strong>ndo-a como ocorri<strong>da</strong> no ano de 1971, conformedocumentação do DOPS.O psicanalista Amílcar Lobo, integrante dos grupos de torturaque admitiu os crimes cometidos em dependências militares,reconheceu, através de fotos exibi<strong>da</strong>s pela revista Isto É,dez pessoas que haviam sido tortura<strong>da</strong>s no quartel <strong>da</strong> PE, duranteo período em que lá serviu (1970 a 1974). Entre elas estavamCarlos Alberto Soares de Freitas e Stuart Edgar AngelJones, ambos considerados desaparecidos.Evidente a morte, o corpo de Carlos Alberto Soares deFreitas nunca foi encontrado. Transcrevem-se a seguir trechosde duas cartas de Norma Disney Soares de Freitas, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong>s aprimeira de 30 de março de 2004 e a segun<strong>da</strong> de maio do mesmoano, a respeito <strong>da</strong> falta <strong>da</strong>quele que foi um irmão querido e quedesapareceu na noite densa <strong>da</strong> ditadura.134 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>135


Queridos amigos,A história de nossa vi<strong>da</strong> nem sempre é escritaem pergaminhos requintados com penas de ouro...Às vezes ela é rabisca<strong>da</strong> num machê com gotas desangue, com início sim, mas com um meio confuso eambíguo e um final surpreendentemente trágico. Masnão importa. O autor <strong>da</strong> história continua sendo Deuse ele, como sempre, escreve certo por linhas certas,ain<strong>da</strong> que nossa miopia nos impeça de enxergá-ladessa forma. A exemplo de Cristo, diante de ummomento de paixão, muitos precisaram e ain<strong>da</strong>precisam ser mártires. Temo estar vivendo dias emque ideais de justiça e ver<strong>da</strong>de não mais comovam emovam os ci<strong>da</strong>dãos a <strong>da</strong>rem suas vi<strong>da</strong>s por algorealmente nobre. Apesar do tempo passado e <strong>da</strong> dor<strong>da</strong> per<strong>da</strong>, do desconhecido, <strong>da</strong> história sem fim, meucoração ain<strong>da</strong> grita: Onde está você, meu irmão?Quantas sau<strong>da</strong>des!... Sau<strong>da</strong>des que adoecem a alma,que maculam os sonhos... sau<strong>da</strong>des que matam! Ah,se não fosse Deus em minha vi<strong>da</strong>! O que fizeram comvocê? O que fizeram por você? Reconheceram o erro.Pediram perdão. Indenizaram. Escreveram até umlivro, mas não o trouxeram de volta. Se bem que suavi<strong>da</strong>, meu irmão, não lhe pertencia mesmo, mas à suacausa...(...)Queri<strong>da</strong> amiga,(...)Quando estive em São Paulo, em meados de1989, no Instituto de Medicina Legal, onde pesquiseialguns documentos, pela abertura <strong>da</strong><strong>da</strong> às famíliasdos presos políticos desaparecidos, deparei-me comdois processos, um em nome de Carlos Alberto Freitas,que não era meu irmão, pois quando houve umaameaça de um seqüestro de avião em 70, Betodissera-me que deixaria que as pessoas pensassemque fosse ele. No arquivo, a descrição era a de umhomem moreno, alto, magro e olhos escuros. Não erao Beto!Continuando a pesquisa, descobri um outropreso político desaparecido, de nome Carlos AlbertoSoares, de estatura pequena e sem dentes. Do nossoCarlos Alberto Soares de Freitas na<strong>da</strong> encontrei.Depois, fui entrevista<strong>da</strong> na Câmara deVereadores de São Paulo e disse as mesmas coisasque estou lhe relatando aqui. Requeri, naquelaocasião, a ossa<strong>da</strong> de nosso irmão para serenterra<strong>da</strong> no jazido <strong>da</strong> família em BH. O jornalEstado de São Paulo publicou na primeira página:"Evangélica pede ossa<strong>da</strong> de irmão".Aqueles dias de investigar e remontar opassado foram muito difíceis para mim! Beto era umirmão muito amado e, quando não nos visitavapessoalmente em Brasília, passava telegramastruncados e em códigos, <strong>da</strong>ndo-nos notícias de suasobrevivência.Lembro-me de que ele usava pelo menos duascarteiras de identi<strong>da</strong>de: Breno e Fernando Ferreira.Talvez isso possa aju<strong>da</strong>r em algo.136 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>137


Carlos SchirmerCarlos Schirmer, filho de Leopoldo Schirmer e de MariaBenedita <strong>da</strong> Costa Schirmer, nasceu em Além Paraíba, MinasGerais, no dia 30 de março de 1896. O pai era austríaco, nascidoem Viena, e veio para o Brasil a convite do Imperador D. Pedro II,como engenheiro de estra<strong>da</strong>s de ferro, para trabalhar na construção<strong>da</strong> primeira estra<strong>da</strong> de ferro brasileira - a Estra<strong>da</strong> de FerroBaturité.Parte de sua infância e adolescência, Carlos Schirmer viveuno interior de São Paulo, onde o seu pai possuía uma fazen<strong>da</strong>de café. Terminado o Ciclo do Café, a família perdeu todos osbens que possuía e se transferiu para o Rio de Janeiro. Poucotempo depois, Leopoldo Schirmer faleceu na ci<strong>da</strong>de mineira deParacatu, trabalhando na construção de outra estra<strong>da</strong> de ferro.A per<strong>da</strong> do pai fez com que Carlos Schirmer, em 1912, com16 anos de i<strong>da</strong>de, fosse obrigado a trabalhar para aju<strong>da</strong>r namanutenção <strong>da</strong> família: era o único homem, tinha mais trêsirmãs e uma família para aju<strong>da</strong>r a criar.Nessa época, já morando no Rio de Janeiro, trabalhou naCasa Mayrinck Veiga: de dia, era eletricista e, à noite, ascensorista.Foi, então, que se iniciou na carreira de técnico em eletrici<strong>da</strong>de,tornando-se, mais tarde, grande autori<strong>da</strong>de em montagemde usinas hidrelétricas. Algumas delas funcionam atéhoje, como a Usina de Cajuru do Camarão, em Itapecerica, e aque existe em Teófilo Otoni, ambas em Minas Gerais. A maioriadessas usinas foi encampa<strong>da</strong> pela Companhia Energética deMinas Gerais (CEMIG).Quando tinha 18 ou 19 anos, por volta de 1920, ain<strong>da</strong>solteiro, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), per-138 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>139


manecendo fiel ao partido e à sua ideologia até à morte. Mudouse,em 1921, para Divinópolis, Minas Gerais, onde viveu até 1º demaio de 1964, quando foi assassinado pelas forças <strong>da</strong> repressão.Carlos Schirmer casou-se em 1928 com Maria de Lourdes Guimarães,com quem teve um filho, Luiz Carlos, em homenagem aLuís Carlos Prestes. Viúvo, pois sua esposa falecera em 1932,casou-se, novamente, em 1933, com Mariana de CarvalhoSchirmer, com quem teve uma filha, Sílvia Schirmer. Sílviacresceu convivendo com o pai, absorvendo seus ideais e freqüentandocomícios e reuniões do partido.Mariana foi sempre a companheira de militância no PCB,participando de seu trabalho político, servindo de pombo-correiomuitas vezes e acolhendo, com carinho, todos os militantes ecompanheiros do partido, mesmo durante o período em que esteesteve na ilegali<strong>da</strong>de. Muitos líderes - comunistas importantes -encontraram refúgio e segurança na casa de Carlos e MarianaSchirmer, quando passavam por Divinópolis: Armando Ziller,Maria José de Las Casas e outros. A casa deles esteve sempreaberta para receber pessoas, não só do PCB, mas progressistasde um modo geral.Homem correto, íntegro, fino, educado e de gênio forte,amava, sobretudo, a família, as crianças e os animais. Muitosensível, apreciava, pela própria descendência austríaca, músicasclássicas, valsas vienenses, música brasileira. Gostavamuito de cantar, o que deixou de herança para Sílvia.Por sua militância, Carlos Schirmer foi preso em sua casana rua Serra do Cristal, nº 388, em Divinópolis, no dia 1º de maiode 1964 - Dia do Trabalho -, <strong>da</strong>ta reconheci<strong>da</strong> internacionalmentepela Organização Internacional do Trabalho (OIT).Quando foram prendê-lo, ele resistiu e buscaram reforços -um destacamento inteiro. Refugiou-se dentro <strong>da</strong> própria casa,que era muito grande. Descoberto, atirou em um policial e cortoua orelha de um detetive, através de uma janelinha. Foi ferido,preso e trazido para o Hospital Felício Rocho, onde faleceu nomesmo dia - 1º de maio de 1964 - às 21horas.Enquanto isso, sua casa foi devassa<strong>da</strong> e vistoria<strong>da</strong> pelospoliciais que tinham ido prendê-Io. Alegaram que havia umarsenal guar<strong>da</strong>do na casa, mas só foram encontrados uma espingar<strong>da</strong>Flaubert e um facão usado para trabalhar no quintal.Em 5 de maio de 1964, a versão oficial indicou que CarlosSchirmer cometera suicídio em Belo Horizonte, para onde foratransportado após resistir à prisão e ferir dois policiais.Partindo aos 68 anos, Carlos Schirmer deixou, além dos filhos,os netos Carlos, Hideraldo e Leonardo. Aos brasileiros deixouimperecíveis lições de coragem e de esperança.140 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>141


Cecílio Emigdio SaturninoCecílio Emigdio Saturnino nasceuem Ribeirão Vermelho, Minas Gerais, em 12de agosto de 1940, filho de EmigdioSaturnino e de Ercília Maria <strong>da</strong> Conceição.Ao falecer, deixou os irmãos Elza Sueli,Célia, Dejanira, Izaías e Zélia. Deixou, também,um filho, o Marcos, que todoschamavam Neguinho.Cecílio, companheiro na luta contra aditadura, no Comitê Brasileiro de Anistia(CBA), na fé, na Anistia. Cecílio, que nuncafoi anistiado. Ele passou pela Penitenciária de Linhares, em Juizde Fora, tempo de prisão, de tortura, quase à morte. Era um combatenteque acreditava num Brasil melhor, no sonho de construção,tijolo por tijolo, de uma socie<strong>da</strong>de mais fraterna, maissolidária, mais justa.Cecílio, que era um militante, que soube tomar partido,não conseguiu ser indiferente, fez a sua história, cumpriu a tarefaque a vi<strong>da</strong> lhe impôs e na qual acreditava. Sempre.Entrou para a Polícia Militar de Minas Gerais, foi cabo, foiexcluído <strong>da</strong> corporação por indisciplina e não por suas ativi<strong>da</strong>despolíticas, foi um dos únicos, senão o único combatente,que não foi anistiado. A Lei <strong>da</strong> Anistia nunca chegou para oCecílio, como chegou para os outros.Cecílio não conseguiu mais trabalhar, ficou perdido, olhardistante num Brasil que se dizia democrático! Carregava consigoo estigma do brasileiro <strong>da</strong> discriminação, era negro e pobre.Buscava sempre a discrição, era breve, tinha olhar desconfiado,142 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>143


sorriso tímido sem incomo<strong>da</strong>r. Ele chegava lentamente, falavamanso, medindo as palavras. Chegava porta adentro na CâmaraMunicipal de Belo Horizonte, tentando prosseguir no combatecontra a opressão, o eterno combate por uma pátria libertária.Sua maior convivência com parentes e amigos foi quandopermaneceu em Volta Redon<strong>da</strong>. Ao sair <strong>da</strong> prisão passou adedicar-se à política com mais efervescência. Porém as marcase lembranças <strong>da</strong> prisão fizeram com que aquele grande homemperdesse suas forças, se debilitasse e não encontrasse resistênciapara enfrentar os males que afligiam sua saúde. Entre i<strong>da</strong>s evin<strong>da</strong>s a hospitais, seu estado ficava ca<strong>da</strong> vez mais crítico. Emdeterminados momentos, não tinha forças sequer para ir ao banheiro.Num momento de luz, decidiu voltar para Belo Horizonte,onde já sem forças, partiu.Cecílio, que foi embora de repente, sem avisar que ia, semdeixar recado, nem endereço. Partiu sozinho, no dia 29 dedezembro de 1996, aos 56 anos, de insuficiência cardíaca e respiratória.O coração não agüentou mais a dor. Viver se tornarapesado. Cecílio não tinha mais força para continuar lutando!Nem vivendo!Ficou a lembrança em todos os parentes e amigos de VoltaRedon<strong>da</strong>. Ficou, em alto relevo, a imagem <strong>da</strong>quele ser calmo, dehábitos simples, de reconheci<strong>da</strong> inteligência, pois, se atualizavanas questões do País, sabendo responder a qualquer questionamentoque se fazia sobre qualquer assunto. Mas, percebia-seque, apesar de to<strong>da</strong> consciência e experiência de vi<strong>da</strong> adquiri<strong>da</strong>,ficava sempre com o olhar para o horizonte, como se procurassealguma resposta que nunca lhe foi dita.Cecílio, o símbolo <strong>da</strong> injustiça e do sofrimento em nossoPaís, <strong>da</strong> busca pela liber<strong>da</strong>de. Cecílio, símbolo <strong>da</strong> crença na construçãode um Brasil novo, sem discriminação, sem miséria, ético,solidário, democrático, justo e ci<strong>da</strong>dão.Cecílio quase um poema; faltou a canção.144 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>145


Celso Aquino RibeiroCelso Aquino Ribeiro, filho de Narciso Ribeiro e GuiomarAquino Ribeiro, nasceu no dia 23 de dezembro de 1938, naci<strong>da</strong>de de Santo Tomás de Aquino, Minas Gerais. Casou-se em1982 com Eloísa Helena Santos, com teve os quatro seguintesfilhos: Olga Inah-Inarê, Wladimir Caamano, Patrícia Valentina eCarlos Tiago Cunha Ribeiro. A descendência prolongou-se comnove netos e uma bisneta.Em 1959, Celso mudou-se para Divinópolis. Vinha transferidode Belo Horizonte, onde assumira o cargo de Fiscal deRen<strong>da</strong> <strong>da</strong> Secretaria de Estado <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong>, o qual exerceu até1973, quando abandonou o serviço público.No decorrer de to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong>, Celso mostrou-se um homemimprescindível ao seu povo e à sua época. O seu compromissoprimeiro era o de construir uma socie<strong>da</strong>de mais justa e maisigualitária, para o que ele compreendia ser necessário participar,estar engajado permanentemente: afinal, ele avaliava, criar umnovo mundo deman<strong>da</strong> tempo e impõe restrições e desafios.Sua militância política teve início na déca<strong>da</strong> de 60, quandofiliou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Entre 1960 e 1965,em Divinópolis, organizou o Grupo dos Onze e teve participaçãoativa na greve dos canavieiros de Lagoa <strong>da</strong> Prata, aju<strong>da</strong>ndo ain<strong>da</strong>na construção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais <strong>da</strong>quelaci<strong>da</strong>de. Poucos dias após o Golpe Militar de 1964, Celso sofreu asua primeira prisão política, por defender o governo João Goulartcontra os ataques de elementos favoráveis ao Golpe.No ano de 1969, desligando-se do PCB, aderiu à luta arma<strong>da</strong>contra a ditadura. Tornou-se membro <strong>da</strong> facção denomina<strong>da</strong>CORRENTE, liga<strong>da</strong> à Ação Libertadora Nacional (ALN), dirigi<strong>da</strong>146 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>147


por Carlos Marighella. Entre 1969 e 1971, devido à sua militânciapolítica, foi indiciado, preso e condenado. Ficou preso poraproxima<strong>da</strong>mente três anos no presídio de Linhares, em Juiz deFora. Ao ser libertado, em 1972, não abandonou suas convicçõese militou junto aos ferroviários de Divinópolis, participando doConselho Diretor do Ferroviário Atlético Clube.Em 1974, ativo na política, ingressou na Facul<strong>da</strong>de de Direitodo Oeste de Minas. Apoiou os candi<strong>da</strong>tos de esquer<strong>da</strong> filiadosao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), contribuindo para avitória <strong>da</strong> oposição ao regime militar nas eleições <strong>da</strong>quele ano.Entre 1975 e 1979, continuou a sua militância, organizandoos trabalhadores em seus sindicatos e os estu<strong>da</strong>ntes em seusmovimentos. Participou, ain<strong>da</strong>, do movimento pela Anistia Ampla,Geral e Irrestrita juntamente com destacados companheiros,como Helena Greco, Nilmário Miran<strong>da</strong>, Betinho Duarte, entreoutros.Em 1979, enquanto participando ativamente <strong>da</strong> greve dostrabalhadores metalúrgicos de Divinópolis, uma <strong>da</strong>s maiores paralisaçõesdo País após 1968, Celso foi preso pela terceira vez. Agreve, que alcançara repercussão nacional, aproximou o militan-te de outro importante lídersindical na época, Luiz InácioLula <strong>da</strong> Silva. Em 14 de julhode 1979, a convite de Celso,Lula veio a Divinópolis paradebater com os sindicalistas aformação do Partido dos Trabalhadores(PT). E em 10 defevereiro de 1980, junto comoutros companheiros, lá estavaCelso participando do EncontroNacional que criou oPT e que aprovou seus estatutose programas.De 1980 a 1986, o sindicalistatrabalhou intensamentena divulgação do partidoem to<strong>da</strong> a região. Ajudou acriar os diretórios municipais de Divinópolis, de Carmo doCajuru, de Lagoa <strong>da</strong> Prata, Arcos, Carmo <strong>da</strong> Mata, Itapecerica,Pium-í. Nas eleições de 1982, foi candi<strong>da</strong>to a deputado estadual,garantindo assim a estruturação definitiva do PT no Estado. Em1984, participou ativamente <strong>da</strong>s Diretas Já. Em 1986, foi candi<strong>da</strong>toa deputado federal, levando questões do mais fun<strong>da</strong>mentalinteresse <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de para a elaboração <strong>da</strong> Constituição de1988.Ain<strong>da</strong> em 1988, Celso participou ativamente <strong>da</strong> eleição <strong>da</strong>chapa cutista para o Sindicato dos Metalúrgicos de Divinópolis.Nesse mesmo ano, foi eleito vereador pelo PT com expressivavotação. Como vereador, contribuiu decisivamente na elaboração<strong>da</strong> Lei Orgânica do Município de Divinópolis. Entre marçode 1995 e dezembro de 1996, voltou a exercer man<strong>da</strong>to devereador.Com a bandeira <strong>da</strong> luta permanente nas mãos, Celso faleceuem 31 de maio de 2002.148 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>149


Ciro Flávio Salazar e OliveiraRUA CELSO AQUINO RIBEIROCiro Flávio Salazar e Oliveira nasceu emAraguari, Triângulo Mineiro, no dia 26 dedezembro de 1943, filho de Aredio Oliveira eMaria de Lourdes Salazar Oliveira e irmão deCaio Márcio. Pessoa alegre, cordial, dota<strong>da</strong> deprofundo humanismo e grande senso dejustiça, Ciro tinha grande talento para a pintura,tendo deixado um belíssimo acervo parasua família.Da ci<strong>da</strong>de natal, Araguari, a família,sendo Ciro ain<strong>da</strong> uma criança, transferiu-se para o Rio deJaneiro, onde o pai abriu uma farmácia na zona norte. CiroFlávio cursou o Ensino Fun<strong>da</strong>mental no Colégio Santo AntônioMaria Zacharias e o Ensino Médio no Colégio Franco-Brasileiro.No final dos anos 60, entrou para a Facul<strong>da</strong>de Nacional deArquitetura <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),na Ilha do Governador.Participou ativamente do movimento estu<strong>da</strong>ntil e <strong>da</strong>slutas contra o regime militar por ocasião <strong>da</strong> morte de Edson Luísde Lima Souto, no Calabouço, em 1968. Foi fotografado incendiandouma viatura policial e sua foto, publica<strong>da</strong> na revistaManchete, valeu-lhe intensa perseguição policial.Ciro Flávio Salazar e Oliveira, de codinomes Flávio eCarlos, foi preso pelo Departamento de Ordem Política e Socialdo Rio de Janeiro (DOPS/RJ) quando distribuía panfletos no dia<strong>da</strong> Passeata dos Cem Mil. A partir de então, começou a serseguido e vigiado, o que o obrigou a entrar para a clandestini<strong>da</strong>de.Clandestino, veio para Belo Horizonte.150 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>151


A esta altura já militante do Partido Comunista do Brasil(PC do B), encontrou-se com seus familiares pela última vez nofinal de 1969, depois de julgado e condenado à revelia. Em 1970,foi para o Araguaia, indo viver na região do rio Gameleira. Maistarde, fez parte do Destacamento B <strong>da</strong>s Forças Guerrilheiras doAraguaia. Considerava-se, essencialmente, um revolucionário.Morou em Palestina, município de São João do Araguaia,sul do Pará, onde, junto com Paulo Roberto Marques, instalouuma farmácia para a distribuição de medicamentos, buscandoatender a população local.Ciro Flávio Salazar e Oliveira morreu metralhado no dia 30de setembro de 1972, aos 30 anos, juntamente com João CarlosHaas Sobrinho e outros companheiros. Segundo o relatório <strong>da</strong>Anistia Internacional, o slide de um cadáver deformado, quediziam ser de Ciro Flávio, foi apresentado a Criméia AliceSchmidt de Almei<strong>da</strong>, em abril de 1973, pelo Major Oto, emBrasília, junto com um álbum de guerrilheiros do Araguaia.Ciro acreditava sinceramente na luta revolucionária e,apesar <strong>da</strong>s grandes dificul<strong>da</strong>des que enfrentou, dizia que "setivesse que começar tudo de novo, sem hesitar, começaria comgosto, alegria e vontade inabaláveis". Em carta de 31/01/72, doAraguaia para sua família no Rio de Janeiro, entregue a seu paipor um senhor de i<strong>da</strong>de conhecido como O Velho, afirmava que"aqui não se morre em vi<strong>da</strong>: vive-se a vi<strong>da</strong> plenamente e emtodos os minutos".D. Lourdes, sua mãe, escreveu para Ciro Flávio o seguintetexto:"O que se pode dizer, como externar a imensidão do sentimentodiante de tamanha per<strong>da</strong> num massacre que atéhoje não assumem nem se responsabilizam? Consegui,no entanto, separar dois grandes sentimentos: a sau<strong>da</strong>deimorredoura de um convívio insubstituível, cujacoragem suplantou separações, distâncias, na luta poruma Pátria mais justa e honra<strong>da</strong> em favor dos irmãosoprimidos. Obriga<strong>da</strong>, meu filho, por sua vi<strong>da</strong>!".152 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>153


Custódio Rezende Evangelistade PaulaCustódio Rezende Evangelista de Paula, filho de OvídioEvangelista de Paula e Maria <strong>da</strong> Glória Rezende de Paula,nasceu no dia 30 de abril de 1926, em Juiz de Fora, na zona <strong>da</strong>Mata, em Minas Gerais.Viveu boa parte de sua vi<strong>da</strong> na terra natal, onde se formoutécnico em Contabili<strong>da</strong>de. Mudou-se para Belo Horizonte comsua esposa Celme Monferrari de Paula, com quem teve sete filhos:Maria <strong>da</strong>s Graças, Fernando Augusto, Ricardo, CarlosHenrique, Ana Lúcia, Pedro Luís e Maria Cecília.Trabalhou no antigo Banco <strong>da</strong> Lavoura, no Banco Mineiro<strong>da</strong> Produção, hoje ex-Banco do Estado de Minas Gerais, onde erachefe <strong>da</strong> Tesouraria. Funcionário dedicado, austero e comgrande espírito de liderança, participou ativamente <strong>da</strong>s lutas desua categoria, a dos bancários.Foi diretor social de eventos do Sindicato dos Bancários e,com seu temperamento forte, detalhista e intransigente, nuncase calou, nem se curvou diante <strong>da</strong>s injustiças.O Golpe Militar de 1964 obrigou-o a fugir de BeloHorizonte. Como outros tantos militantes, Custódio foi envolvidopelo labirinto do sistema repressivo montado pelo regime militarbrasileiro, o qual tinha como ponta do novelo-de-lã o modo peloqual eram presos os suspeitos de ativi<strong>da</strong>des políticas contráriasao governo. Num completo desrespeito a to<strong>da</strong>s as garantias individuaisdos ci<strong>da</strong>dãos, previstas na Constituição que os generaisalegavam respeitar, ocorreu uma prática sistemática de detençãona forma de seqüestro, invasão de residências sem qualquerman<strong>da</strong>to judicial, nem observância de qualquer lei.A filha mais velha de Custódio Rezende, Maria <strong>da</strong>s GraçasMonferrari de Paula Mateus, conta como sua casa foi invadi<strong>da</strong>,deixando todos traumatizados, inclusive sua mãe, que estavagrávi<strong>da</strong>:"Na época em que estourou a ditadura militar (1964), euestava com 14 anos de i<strong>da</strong>de. Sou a filha mais velha e me lembrocomo se fosse hoje.Meu pai, Custódio Rezende, se encontrava no Rio deJaneiro com alguns companheiros do Sindicato dos Bancários,com o objetivo de trazer um método novo de ensino, a fim deaplicá-lo no Colégio do Sindicato, que funcionava no bairro SantaTereza, em Belo Horizonte, cuja inauguração se <strong>da</strong>ria naqueleano.Nós morávamos na rua Alvinópolis, no último quarteirão.Só não me lembro <strong>da</strong> <strong>da</strong>ta certa. Minha mãe estava grávi<strong>da</strong> domeu irmão mais novo, que nasceu em 12 de junho de 1964. Oclima foi de terror. Chegaram três camburões <strong>da</strong> polícia emfrente a nossa casa e vários policiais invadiram a nossa casa,inclusive subindo em cima do telhado.Todos de metralhadora em punho, perguntaram pelo meupai, como se ele fosse um criminoso. Minha mãe, que estava nobanho, levou um grande susto. Eles não respeitaram o estado emque ela se encontrava.Invadiram to<strong>da</strong> a casa, esperando encontrá-lo: debaixo <strong>da</strong>scamas, dentro dos guar<strong>da</strong>-roupas. Eles revistaram tudo. Meusirmãos pequenos ficaram bem assustados. Nós éramos cinco.Não sabíamos o que estava acontecendo. A minha mãe disse queo meu pai estava viajando a serviço.Quando eles foram embora, continuamos apavorados ebastante traumatizados. Meu pai, quando ficou sabendo do ocorrido,manteve-se afastado, praticamente escondido, pois, naquelaaltura, não podia aparecer.Tivemos que mu<strong>da</strong>r para os fundos <strong>da</strong> casa de uns tiospara nos livrarmos do aluguel. Passamos por dificul<strong>da</strong>des financeiras,faltaram até alimentos. Quando meu pai apareceu, ele154 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>155


próprio se apresentou e foi preso. Inclusive quando o meu irmãonasceu, ele já se encontrava preso.Desse tempo para cá, nunca mais a minha família foi amesma. Meus irmãos foram crescendo e tiveram sérios problemaspsicológicos. A minha mãe ficou doente e teve o mal deParkinson. Meu pai também ficou muito doente até falecer".Custódio Rezende Evangelista de Paula acabou sendopreso ao se apresentar à polícia, ain<strong>da</strong> em 1964, em Juiz de Fora,depois de haver-se escondido no Rio de Janeiro. Esteve preso emNeves e, mais tarde, em Juiz de Fora.Em razão <strong>da</strong>s perseguições políticas e por sua declara<strong>da</strong>oposição ao regime militar, acabou sendo demitido do Banco.Mas nem isso o fez desistir: morando no bairro Santa Inês, emBelo Horizonte, participou ativamente <strong>da</strong> associação demoradores do referido bairro, sempre defendendo os interessescoletivos. Mostrou-se a todo o tempo um sindicalista convicto eum grande lutador.Custódio Rezende Evangelista de Paula faleceu em BeloHorizonte no dia 27 de fevereiro de 1994, aos 68 anos.156 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>157


Daniel José de CarvalhoDaniel José de Carvalho, filho deEly José de Carvalho e de EstherCampos de Carvalho, nasceu emMuriaé, Minas Gerais, no dia 13 deoutubro de 1945. Era motorista etorneiro mecânico.Foi militante do Partido ComunistaBrasileiro (PCB) e depois <strong>da</strong> Vanguar<strong>da</strong>Popular Revolucionária (VPR),sob o codinome de Josué. Preso pelaOperação Bandeirante (OBAN) no dia 5 de outubro de 1970, foibarbaramente torturado.Banido do Brasil em 13 de janeiro de 1971, por ocasião doseqüestro do embaixador Giovanni Enrico Bucher, <strong>da</strong> Suíça, partiupara o Chile, junto com outros 69 presos políticos. Permaneceuno Chile até o golpe de Estado que derrubou o presidenteSalvador Allende, em setembro de 1973, ocasião em que fugiupara a Argentina, desaparecendo em dezembro de 1973, quandotentava entrar clandestinamente no Brasil.Segundo denúncias do ex-Sargento Marival Chaves publica<strong>da</strong>sno Jornal do Brasil, edição de 20/11/92, Daniel José deCarvalho teria sido atraído para uma viagem até Medianeira, noParaná, caindo numa armadilha que o levou à morte.De acordo com o Correio Braziliense, edição de 20/11/92, aviagem ocorreu no dia 11 de julho de 1974. Da empreita<strong>da</strong>, alémde Daniel, participavam seu irmão Joel José de Carvalho, OnofrePinto, José Lavecchia e Vítor Carlos <strong>da</strong> Silva.158 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>159


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David Rodrigues DinizDavid Rodrigues Diniz nasceu em Itapecerica, MinasGerais, no dia 30 de maio de 1908, filho do lavrador JoséVenâncio Rodrigues e de Belizária Diniz. Sete irmãos compartilharam-lhea infância. Adulto, casou-se com Maria Geral<strong>da</strong>Gomes Diniz, com quem teve os seis seguintes filhos: Adler,Madson, Carlos, Farley, Deivison e Mary Le<strong>da</strong>.Tendo concluído apenas o curso primário, trabalhava comodentista prático. A par do trabalho e <strong>da</strong> dedicação à família, alimentavaem seu coração um grande sonho desde jovem: o detransformar o Brasil num País livre e socialmente justo. Foi porisso que, desde a juventude, David militou no Partido ComunistaBrasileiro (PCB). E foi por isso que, durante quase to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong>adulta, ele foi vítima de perseguição política.De acordo com certidão <strong>da</strong> Agência Brasileira deInteligência (ABIN), David foi detido por dois dias em 1955,durante a campanha do ex-presidente Juscelino Kubitscheck,por terem sido apreendidos em sua residência exemplares doJornal do Povo e <strong>da</strong> Imprensa Popular. Com o estabelecimento doregime militar em 1964, ele foi preso e acusado de ser comunista,respondendo a inquérito no Departamento de OrdemPolítica e Social de Minas Gerais (DOPS/MG).Começou aí a sucessão de prejuízos a David e sua família.Ao ser libertado, após seis meses de prisão e ain<strong>da</strong> sob vigilância,ele teve que sair de Montes Claros, onde residia. Sua esposa,professora <strong>da</strong> Escola Municipal de Montes Claros, foi sumariamentedemiti<strong>da</strong>.Em 21 de abril de 1969, David, voltando a Montes Claros,foi preso novamente e permaneceu 80 dias na Colônia PenalMagalhães Pinto, onde sofreu bárbaras torturas. As seqüelas,alia<strong>da</strong>s à i<strong>da</strong>de avança<strong>da</strong>, acabaram por impedir-lhe a volta aotrabalho na profissão que exercia há tantos anos.A via-crúcis de David foi longa e penosa. Em 27 de maiode 1969, foi citado em Inquérito Policial Militar (IPM) que apuravaas ativi<strong>da</strong>des de um grupo subversivo denominado CorrenteRevolucionária de Minas Gerais (CORRENTE). Em setembro de1969, foi indiciado em IPM que apurava as ativi<strong>da</strong>des do PartidoOperário Comunista (POC). Incurso na Lei de Segurança Nacional,teve sua prisão preventiva decreta<strong>da</strong> novamente. Em1971, integrou a relação de indiciados que respondiam a processosna Auditoria <strong>da</strong> 4ª Região Militar e que tinham prisão preventivadecreta<strong>da</strong> e se encontravam foragidos, em lugar incertoe não sabido.Assim, David Rodrigues Diniz passou o resto de seus diasna condição de perseguido político, processado e torturado. Aviúva Maria Geral<strong>da</strong> Gomes Diniz descreveu em um poema osmomentos difíceis por que passaram. É o poema que se transcrevea seguir, ao qual não faltam o sentimento forte de umcoração ferido e a compreensão de que to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> fora umlibelo à liber<strong>da</strong>de.162 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>163


"Em uma <strong>da</strong>ta"Em uma <strong>da</strong>ta / Não muito remota / Alguém bateu,empurrou / Invadiu e foi entrando pela porta! / Era umamadruga<strong>da</strong> fria e chuvosa! / Surpresa! / Deante<strong>da</strong>quele quadro desolador, / Não sabendo a causa <strong>da</strong>fúria / E dos rancores / Que já eram / Os retrocessos /Que a vi<strong>da</strong> / Iria com ameaças / Nos oferecer, / Nocálice / Das amargurasNos leitos, / Estavam os inocentes / Acor<strong>da</strong>ram / Unschoravam / Outros, / Ficaram calados / Assistindo /Aquele horrível drama / Malfa<strong>da</strong>do, / No comando <strong>da</strong>svozes / Exalta<strong>da</strong>s / Amor<strong>da</strong>çaram / Fisicamente / Ásmãos / Foram algema<strong>da</strong>s / Sem o direito / Depronunciar / Uma só palavra.Agiram / Como leões famintos / Agarraram a presa /Para ser devora<strong>da</strong> / Por aqueles / E outros que / Osesperavam / Levaram / Como assassino / Um ladrão /Um bandido / Um corrupto / E agressor / O pai <strong>da</strong>quelafamília honrado / Trabalhador / Era sim, / Umassassino / Das mentiras / Do ódio / E corrupções /Que não queria ver / Uma criança / Abandona<strong>da</strong> /Cruelmente estupra<strong>da</strong> / Um povo / Analfabeto / Semabrigo, sem teto / Sem o pão / Atirados ao relento /Sem saúde / E proteção. / Queria sim / Corromper / Afome / A miséria / A exploração / De quem trabalha /Os abusos / E covardias / Contra os pobres, / Asviolências provoca<strong>da</strong>s / Pelo uso de bebi<strong>da</strong>s / E drogas,/ E queria / Ain<strong>da</strong> mais / Com a corrupção / Zelar pelahonra / E sabedoria <strong>da</strong> nação.Lutava / Pela ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia / Que nunca foi / Um direito <strong>da</strong>maioria / Por serem ralés / E trabalhadores / Não sãoreconhecidos / Como ci<strong>da</strong>dãos / Ele também não era /E ate foi julgado / Entroso / E não um filho / Destaterra.Para a ditadura / E seus comparsas / Da traição /Exploradores / E inimigos <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de / Não era ladrãoPorque / incomo<strong>da</strong>va / A hipócrita socie<strong>da</strong>de / Foi preso/ Incomunicável / Dormindo / Nas celas frias / Comoum irracional / Dentro / Das estrebarias / Nos lugarespodres / E insalubres / Para calar a ver<strong>da</strong>de /Satisfazendo / As elites gananciosas / Pelo luxo eostentação / Sendo ameaçado / E interrogação / Comterrores, ameaças / Atroci<strong>da</strong>des / E hipocondria / Nashoras cala<strong>da</strong>s / Das noites / E as sombras / Da agonia,Porque, / O terrorismo age / Na escuridão / Das noites/ Com ela / Estão vincula<strong>da</strong>s / Sua ações / Atransparência / Do dia / Que a tocha / Da justiça /Provoca cegueira / Nas suas visões / porque são/comoanimais /<strong>da</strong> selva / com a escuridão / melhor enxergam/seus atos / e compreensões / incomo<strong>da</strong>vam / osdesonestos / negociadores e agentes / <strong>da</strong>s perdições /aqueles / que burlam as leis / com ameaças /prostituí<strong>da</strong>s / para aplicar / as injustiças / agredindo /os direitos e razões / e defezas <strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s.Com ele / Tantos outros / Que sonhavam / Com ahonra / E a digni<strong>da</strong>de / Da pátria / Que esta fali<strong>da</strong> / Esofreram / Nas garras / Dos seus algozes / Da viltirania / Foram também / Chutados / Amor<strong>da</strong>çados /Mortos e sacrificados / Antes de perderem / As vi<strong>da</strong>s, /E os que conseguiram / Viver / São torturados / Naslembranças / Que não se / Apagaram / São pungilos /Das nossas almas / Lamentos e padeceres.164 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>165


Mataram sim / E são esquecidos / Por eles; / Mas /Para nós, / São imagens / Projetantes / Que não seapagam / Jamais / Estão presentes / Nas nossas /Consciências e retinas / Fertilizando / Nossos ideais.Ca<strong>da</strong> um <strong>da</strong>queles / Que foram tombados / Edesapareceram / Sofreram torturas / Diferentes /Faziam escavar / A própria sepultura / Dizendo: / "Éaqui que vamos / te enterrar".Ca<strong>da</strong> um <strong>da</strong>queles que foram / Tombados edesapareceram / Sofreram torturas / Diferentes /Faziam escavar a própria sepultura dizendo / "É aquique vamos enterrar" / que horror meu Deus! / quantacruel<strong>da</strong>de / quanto egoísmo / impera a humani<strong>da</strong>de!Será / que não pensavam no futuro <strong>da</strong>s nossas famíliase até deles e que outros poderão fazer / com eles e osfilhos? / As mesmas covardias? / Não; / O dinheiro fezesquecer / Ás vezes ele mesmo / Não poderá os socorrerMeu filho perdeu a vi<strong>da</strong> inocente / No desabrochar suaadolescência / No colégio onde estu<strong>da</strong>va prepararam /As colegas contra ele / Dizendo ser satanás filho decomunista / Tinha que morrer ordens de Ademar deBarros / O atacavam e humilhavam dentro e fora <strong>da</strong>sala de aulas / Na hora do recreio o derrubavammachucando a espinha dorsal / Que imediatamentecausou infecção subiu e localizou-se / Na meninge meufilho morreu vitimado <strong>da</strong> violência / Preparado nasrebeldes consciências foi dormir o sono <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de /Dentro de um caixão com ele foi metade <strong>da</strong> minhaexistência / Dele, ficou o amor e compreensão quedevemos lutar / Empenhando as próprias vi<strong>da</strong>s mostrasaos jovens / O que pratica a ditadura / Fermentam oódio nos cárceres espancam e matam com cruel<strong>da</strong>des /E o gosto <strong>da</strong>s amarguras.Não podemos frementar o ódio / Mesmo que sejamosassistidos pela razão aqueles que lutam pela justiça /São alvos de perseguições / Eu e meus filhos / Ficamosá margem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> / Na beira dos caminhos torpedeadosCom os insultos; as feri<strong>da</strong>s ficaram incuráveis / Sãoelas que fortalecem nossas convicções na defesa / Dasfuturas gerações não deixando para eles / A herançafunesta que é sustenta<strong>da</strong> / Com nosso mais valia noostracismo <strong>da</strong>s covardias; do Imperialismo orgulhoso / Eas monarquias nos restos do ventre do Feu<strong>da</strong>lismolatifundiários e o coronelismo / Que transformaram o serhumano em outros robôs que, para sobreviver sãoaqueles / que com bandeiras desfral<strong>da</strong><strong>da</strong>s agita<strong>da</strong>stingindo os horizontes de vermelho que / simbolizasangue não para derramar e sim como defesa <strong>da</strong>s suase nossas vi<strong>da</strong>s / gritando com vontade de trabalhar / Enessa luta fratrici<strong>da</strong> perdem esposa, filhos e as própriasvi<strong>da</strong>s, pelas mãos e na / frente <strong>da</strong>queles vestidos defar<strong>da</strong>s que também agridem suas próprias razões <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> / aqueles que fizeram tombar não mais irão plantarpara trazer fortunas para as mesas / os alimentos levarPara os reis os presidentes, senadores e deputados e ovalente sol<strong>da</strong>do aqueles que / obedecem as emen<strong>da</strong>sprostituí<strong>da</strong>s dos comandos <strong>da</strong>s injustiças e que tambémagridem as belezas naturais que protegem nossas vi<strong>da</strong>s.Os direitos humanos no relatório internacional revelampara o mundo os maus tratos / e assassinatosexecutados pelos agentes <strong>da</strong> polícia esquadrões <strong>da</strong>morete vinculados / Com as forças de seguranças doBrasil e Minas Gerais registros que foram para osjornais <strong>da</strong> época. / E que estão no livro "torturas nuncamais" mostrando os sinais <strong>da</strong>s manchas / profun<strong>da</strong>sque não podem apagar as dores <strong>da</strong>s recor<strong>da</strong>çõesfunestas com ressono dos gritos / De quem ain<strong>da</strong> está166 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>167


no sufoco <strong>da</strong>queles que fizeram calor que estão nocemitério de / Perus plantados os restos mortais em umavala comum dentro dos sacos azuis de lixo mil equatrocentos e oito ossos. / Dos jovens inteligentes eoutros competentes que tombaram com a fortaleza doideal ligado ao amor e justiça social meu esposo ficoudoente em conseqüência / dos maus tratos que foivitimado quando fui recebê-lo no DOPS a roupa queantes vestia não segurou no corpo de tão magro eabatido muito descorado não pronunciava uma palavrasua voz havia desaparecido era quase um cadáverporque estava frio e gelado, estava trêmulo e angustiadoa noite não dormia tinha que me levantar para socorrê-loa tosse que não parava sempre o levando para osmédicos e o uso constante dos remédios. Ele morreu naconseqüência desses martírios enfadonhos que passou aviver!Mas, está vivo porque deixou a semente que plantou elemorreu com ressono do hino <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de que escreveuno pensamento não a liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s guerras, corrupçõesfomes, tormentos e misérias plantou entre as rochas doseu coração a árvore <strong>da</strong> justiça social que está com asraízes crava<strong>da</strong>s para resistir ás fúrias dos ven<strong>da</strong>vaisdos caudilhos.Os frutos desse amor serão fortes e sadios irão paraserem distribuídos para sustentar até aqueles que aingratidão praticaram. / Quem os entregarão são asmão dos netos e dos filhos <strong>da</strong>queles que tombaram poramor no labirinto <strong>da</strong> dor...Autora: Maria Geral<strong>da</strong> Gomes Diniz viúva deDavid Rodrigues Diniz168 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>169


Décio Geraldo de Oliveira SalesDAVID RODRIGUES DINIZDécio Geraldo de Oliveira Sales foi o primeiro estu<strong>da</strong>nte aser julgado e condenado na Auditoria <strong>da</strong> 4 ª Circunscrição <strong>da</strong>Justiça Militar em Juiz de Fora. O julgamento aconteceu em 19de agosto de 1969 e Décio Geraldo, continuando recluso,cumpriu sua pena até 16 de janeiro de 1971.Sua prisão ocorreu durante uma passeata estu<strong>da</strong>ntil nodia 24 de junho de 1968, numa época conturba<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> políticabrasileira. Desta <strong>da</strong>ta em diante, o estu<strong>da</strong>nte Décio Geraldosofreu humilhações, torturas e injustiças, uma delas a de ter sidoenquadrado no artigo 477 do Ato Institucional n º 5 (AI-5) que,em razão de sua condenação em Juiz de Fora, desligou-o automaticamente,sem processo e sem defesa, do curso universitárioque ele fazia na Facul<strong>da</strong>de de Ciências Econômicas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (FACE/UFMG).Logo que ele foi condenado em Juiz de Fora, seu padrasto,Celestino Gil Torres, obteve <strong>da</strong> Maçonaria a aju<strong>da</strong> para trazê-lopara Belo Horizonte, supondo que nessa ci<strong>da</strong>de ele viesse a sofrermenos torturas. Em Belo Horizonte, ele foi alojado em celano Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).Mas a esperança do padrasto logo se mostrou vã. Numamadruga<strong>da</strong> trágica de janeiro de 1970, Décio foi acor<strong>da</strong>do comespancamentos e não teve como impedir que lhe tirassem asroupas. Pescoções, queimaduras, gritos. Duas figuras conheci<strong>da</strong>s,o Tenente Marcelo, do Exército, e o delegado Thacyr deMenezes Sia, à frente dos trabalhos, gritavam-lhe:- Confesse, traidor!Décio não poderia imaginar o que confessar, pois sequersabia de que é que estava sendo acusado. Sob intensa pressão e170 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>171


sob o peso <strong>da</strong>s torturas, ca<strong>da</strong> vez mais intensas, ele, segundorelataria mais tarde a seus familiares, ficou anestesiado e já nãosentia mais na<strong>da</strong>. Depois, enrolaram-no num lençol e colocaram-nonuma viatura. Tempos mais tarde, relembrando aquelanoite negra, Décio avaliaria:- Tinha a certeza de que eles estavam me levando parasumir comigo e eu não sabia por quê.Levado para a Penitenciária de Neves, a ele foi destina<strong>da</strong>uma solitária, onde ele permaneceu incomunicável por 51 dias,tomando água do vaso e sofrendo tudo que é característico deuma cela desse tipo. Numa determina<strong>da</strong> noite, tão altos eram,ouviu os gritos de outro preso que estava sendo torturado:- Confesse que ele é o autor!Como isso não acontecia, sobrevinham mais torturas. Etodo o negrume <strong>da</strong>quele terror foi se enovelando, com torturas emortes, até que o Décio foi compreendendo a história: uma organizaçãochama<strong>da</strong> Vanguar<strong>da</strong> Arma<strong>da</strong> Revolucionária - Palmares,a VAR-Palmares, tinha sido sido descoberta, tendo sidodescoberto também que um de seus planos era explodir o DOPS.E no bolso de um dos líderes <strong>da</strong> organização, tinha sido encontradoum pequeno papel e dele constavam um mapa, o nome doDécio e o telefone do DOPS.Na ver<strong>da</strong>de, o líder preso era um estu<strong>da</strong>nte afiliado aoDiretório Central dos Estu<strong>da</strong>ntes (DCE) que estava estu<strong>da</strong>ndo apossibili<strong>da</strong>de de providenciar alimentos e remédios para o Décio.Mas o mapa, o nome e o telefone levaram os agentes a concluirque Décio era o chefe do grupo, sendo que ele nem sabia dena<strong>da</strong>, até porque já estava preso há muitos dias.Todos os sofrimentos físicos e psicológicos sofridos peloDécio deixaram nele marcas profun<strong>da</strong>s, como as de um neuróticode guerra. Com ele não foi diferente. Depois de cumprir pena,tentou reconstruir sua vi<strong>da</strong> pessoal, constituindo uma família,mas os problemas naturais com os filhos deixaram-no ain<strong>da</strong>mais abalado. Tentou reconstruir sua vi<strong>da</strong> profissional, retomandoseu emprego na MinasCaixa: no entanto, ao denunciar cor-rupções na instituição, foi aposentado aos 40 anos por umainvalidez psiquiátrica que, inexistente, tinha justificativaaparente em sua situação de fragili<strong>da</strong>de emocional.Faleceu prematuramente, aos 50 anos, em 28 de janeiro de1993.(A<strong>da</strong>ptado de texto de autoria de Maria <strong>da</strong>s Graças Gomes Cunha)172 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>173


Devanir José de CarvalhoDevanir José de Carvalho, filho de ElyJosé de Carvalho e de Esther Campos deCarvalho, nasceu em Muriaé, Minas Gerais,no dia 15 de julho de 1943.Foi operário metalúrgico, fun<strong>da</strong>dor edirigente do Movimento Revolucionário Tiradentes(MRT). Usava os codinomes Henrique,Rui, Antônio e Justino.Devanir José de Carvalho foi preso porvolta de 11 horas <strong>da</strong> manhã, no dia 5 de abrilde 1971, quando chegava à casa <strong>da</strong> rua Cruzeiro,nº 1111, no bairro do Tremembé, em São Paulo. Foi recebidopor uma raja<strong>da</strong> de metralhadora, ficando gravemente ferido.Levado para o Departamento de Ordem Política e Social deSão Paulo (DOPS/SP), passou a ser violentamente torturado pelodelegado Sérgio Paranhos Fleury e sua equipe. Por volta <strong>da</strong>s 18horas do dia 7 de abril de 1971, não resistindo à cruel<strong>da</strong>de e àviolência <strong>da</strong>s torturas, Devanir morreu.A versão oficial dos órgãos <strong>da</strong> segurança publica<strong>da</strong> naépoca foi desmenti<strong>da</strong> pelos depoimentos de presos políticos quese encontravam detidos no mesmo período. O delegado SérgioFleury, por várias vezes, man<strong>da</strong>ra avisar Devanir de que faziaquestão de prendê-lo vivo e torturá-lo até a morte. Nesses avisos,que eram enviados através dos irmãos de Devanir, Daniel e Joel,que também se encontravam presos, Fleury Ihes dizia: "Avisemao Henrique (nome de guerra de Devanir) que encomendei, nosEstados Unidos, um bastão tranqüilizante para poder pegá-lo vivoe, que serei eu, pessoalmente, que o matarei no pau".174 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>175


No processo em que os companheiros de Devanir estavamarrolados e em que ele também estaria, se vivo fosse, constauma fotografia de seu corpo. Nessa foto, Devanir José deCarvalho apresenta uma marca de perfuração de bala na alturado coração e muitas marcas de ferimentos em várias partes docorpo, principalmente na cabeça: eram os sinais <strong>da</strong>s torturassofri<strong>da</strong>s.Fato significativo que desmente igualmente, e por completo,a versão <strong>da</strong> nota oficial e que confirma o assassinato sobtortura é a afirmação de vários carcereiros do DOPS a presospolíticos: "Devanir durante dois dias levou um pau <strong>da</strong>nado. Sófalava seu nome e o <strong>da</strong> organização, e xingava muito o Fleury.Todo mundo ouvia de longe. Devanir cuspiu muito sangue nacara do Fleury".O laudo de necropsia, assinado pelos legistas João Pagemottoe A. de Queiroz Orsini, não responde à pergunta sobre asubmissão do preso a práticas de tortura. Nesse item, encontraseapenas a palavra prejudicado.Devanir José de Carvalho foi enterrado no Cemitério <strong>da</strong> VilaFormosa, em São Paulo.176 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>177


Dimas <strong>da</strong> Anunciação PerrinDimas <strong>da</strong> Anunciação Perrinnasceu em Conselheiro Lafaiete,Minas Gerais, em 1924, filho do ferroviárioDomingos de Deus Perrin ede Luíza de Deus Perrin. Dividiu acasa paterna com quatro irmãs:Aracy, Maria, Terezinha e Efigênia.Do lar amoroso trouxe os fun<strong>da</strong>mentosque lhe permitiram constituirfamília de igual valor: dela ele foichefe exemplar e, mesmo dedicando muito de seu tempo àscausas populares, nunca faltou com os seus deveres em relaçãoa seus filhos Dimas Jr, Luíza Regina, Lídice e Lecy e, especialmente,à esposa Zizinha, a quem ele muito amou.Dimas foi operário, gráfico, jornalista e advogado, tendoconcluído seu curso de Direito na Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católicade Minas Gerais (PUC-Minas). Exerceu também os cargosde superintendente <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de do Trabalho de Minas Gerais(UTRAMIG), superintendente de Ação Social <strong>da</strong> Secretariado Trabalho de Minas Gerais, conselheiro <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Estadualdo Bem-Estar do Menor (FEBEM) e assessor de várias associaçõescomunitárias e sindicatos de Belo Horizonte.Coerente com os ideais que sempre defendeu desde ajuventude, participou de todos os movimentos sociais e políticosa partir de 1940, o que lhe rendeu inúmeras prisões com torturase injustiças.Publicou vários livros, entre eles Inconfidência Mineira -Causas e Conseqüências, enfocando as lutas de nosso povo pelaliber<strong>da</strong>de e a democracia, o progresso e a justiça; Depoimento deum Torturado, enfocando as cruel<strong>da</strong>des e humilhações sofri<strong>da</strong>snas prisões por aqueles que defenderam esses mesmos ideais;Pensamento e Ação a Serviço do Povo, enfocando os projetos quefez como deputado federal e a sua luta para transformar seusideais em reali<strong>da</strong>de.Foi homenageado pelo povo de Belo Horizonte, quandorecebeu o título de Ci<strong>da</strong>dão Honorário <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de; foi agraciadopelo presidente Tancredo Neves com a Me<strong>da</strong>lha <strong>da</strong> InconfidênciaMineira e, no dia 31 de março de 2004, na passagem dos40 anos do Golpe Militar, foi homenageado com a Me<strong>da</strong>lhaTributo à <strong>Utopia</strong>.Faleceu no dia 10 de julho de 2002, deixando lições admiráveiscomo ci<strong>da</strong>dão e ser humano. Foi um patriota digno. Defendeupermanentemente a justiça social e os direitos humanos erespeitou profun<strong>da</strong>mente a cultura e os anseios do povo brasileiro.Seus sentimentos extravasaram-se muitas vezes sob aforma de poemas, como o que a seguir se transcreve, por ele dedicadoa to<strong>da</strong>s as mães do Brasil.178 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>179


Minha MãeMãe, não sei por que a genteSó dá valor às pessoas amigas e a muitas coisasImportantes somente depois que as perdemos.Você me criou com tanto sacrifício, trabalhando dia adia para uns e outrosEm troca de migalhas.Você cuidou de mim quando criança.Me aqueceu nas noites frias.E protegeu-me <strong>da</strong>s mal<strong>da</strong>des deste mundo.E quando comecei a defender a liber<strong>da</strong>de e o pão deca<strong>da</strong> dia para os pobres,Você sofreu ain<strong>da</strong> mais, mas nunca me disse não.Quando me via em dificul<strong>da</strong>des, havia lágrimas emseus olhos e dor em seu coração.Depois, você foi embora desta vi<strong>da</strong>Com a mesma simplici<strong>da</strong>deE a mesma resignação com que viveu dizendoconfiante "amanhã é um novo dia".Mãe, somente agora que sou pai e avô é que seiquanto você me amavaE era importante para mim.Você merecia tantas coisas boas, mas se contentavaapenas em saber que eu estava bem.Você não me ensinou a cantar porque sua vi<strong>da</strong> erapobre e triste.Mas, com sua garra e seu exemplo, me ensinou aresistir e a lutar.E é pensando em tudo de bom e puro que você mecontava e ensinava,Que reverencio hoje as Mães de meu País.As Mães que passam noites indormi<strong>da</strong>s à beira doleito de seus filhos, desejando sofrer por eles asfebres e dores que os afligem.As Mães trabalhadoras que tentam alimentar os filhoscom o mísero salário que recebem.As Mães solteiras e desemprega<strong>da</strong>s que às vezes sehumilham e se entregam pelo pão ou o remédio paraos filhos.As Mães que sofrem com os filhos na prisão porque,mesmo não apoiando o que fizeram, não querem queos matem ou torturem.As Mães que ain<strong>da</strong> procuram seus companheirosqueridos ou seus filhos desaparecidos dentro <strong>da</strong> longae terrível noite de que estamos saindo finalmente.As Mães, esposas e avós dos desaparecidos sãofortes e a sua persistência é maior do que a mal<strong>da</strong>dedos que mataram seus entes queridos e heróis denosso povo, a sangue frio, cruelmente.Mãe, minha Mãe queri<strong>da</strong>, onde quer que você esteja,saiba que não me esqueço de você e que, emboratardiamente, digo-lheAgora, o que por certo você queria ouvir, quando seencontrava perto de mim:Mãe, você sempre teve o meu amor e mereceu a minhagratidão. É que eu também não sabia que o amor deMãe não tem limites.É imenso, profundo, maior do que a Terra e o Mar,infinito como o Céu.180 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>181


Domingos Ribeiro ViottiDomingos Ribeiro Viotti nasceu no dia1º. de setembro de 1909, na ci<strong>da</strong>de de Limeira,São Paulo, filho de Antônio Viotti e Alcide AndradeViotti. Os irmãos Aradi, Antônio, Mariae Isabel fizeram-lhe companhia na infância,fazendo-lhe também companhia os inúmeroshóspedes <strong>da</strong> pensão de proprie<strong>da</strong>de de suamãe, D. Alcide, a quem ela tratava com dedicação,humani<strong>da</strong>de, discernimento e consideração.Foi nesse ambiente amigo e fraternoque Domingos cresceu.Em 1932, casou-se em São Paulo com Nicolina VictóriaVitale e com ela teve dois filhos: Therezinha Viotti Bastos e CyranoVitale Viotti.Domingos fez o curso primário em São Paulo e, aos 13 anos,ingressou no Banco Hipotecário e Agrícola de Minas Gerais, emBelo Horizonte. Em 1929, com 20 anos de i<strong>da</strong>de e seis de ativi<strong>da</strong>dedentro <strong>da</strong> instituição, ele foi indicado para o cargo de PeritoContador, sendo inscrito na Superintendência do Ensino Comercial.No Banco, ele aprendera por conta própria a matéria comercial quelhe deu sustentação na nova função e o tornou famoso entre oscolegas como um exímio conhecedor <strong>da</strong> contabili<strong>da</strong>de bancária.Como bancário, participou de lutas e reivindicações <strong>da</strong> categoria,despontando como uma <strong>da</strong>s lideranças do Sindicato dosBancários de São Paulo, enti<strong>da</strong>de <strong>da</strong> qual foi presidente em 1939.À época, ele já havia sido preso várias vezes, acusado de pertencerao Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde 1929. Eraintransigente nas suas convicções, acreditava na doutrina mar-182 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>183


xista-leninista recebi<strong>da</strong> por intermédio do PCB. O ponto comumera a busca de uma socie<strong>da</strong>de socialista, com a conquista dopoder pelos trabalhadores.Foi fun<strong>da</strong>dor do Instituto de Aposentadorias e Pensões dosBancários (IAPB), sendo seu dirigente de 1940 a 1942 e posteriormenteseu primeiro delegado, época em que construiu casaspróprias para os bancários. Foram cerca de 240 uni<strong>da</strong>des levanta<strong>da</strong>spróximo do Parque Ibirapuera. Em 1947, o PCB foi declaradoilegal, o que provocou uma diáspora entre lideranças sindicais.De São Paulo, Domingos Viottirumou para Belo Horizonte em 1948,onde trabalhou como funcionário doIAPB. Presidente <strong>da</strong> União Nacionaldos Servidores Públicos (UNSP) de1957 a 1977, atuou de maneira marcantenuma <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong>des de classemais conceitua<strong>da</strong>s na época. Viria aSindicalistas comemoram orenunciar ao cargo mais tarde, na10º aniversário do IAPBiminência do fechamento <strong>da</strong> enti<strong>da</strong>de.Com o Golpe Militar de 1964, foi preso cinco vezes. Levadopara o Destacamento de Operações de Informações do Centro deOperações de Defesa Interna (DOI/CODI) em São Paulo, sofreutorturas na chama<strong>da</strong> cadeira-do-dragão. Essa cadeira, extremamentepesa<strong>da</strong>, tem assento de zinco e, na parte posterior, umaproeminência onde se introduz um dos terminais <strong>da</strong> máquina dechoque chamado magneto; além disso, ela conta com uma travessade madeira que empurra as pernas do torturado para trás,de modo que, a ca<strong>da</strong> descarga, as pernas batem na travessa,provocando ferimentos profundos. Foi nesse equipamento queDomingos sofreu suas piores torturas físicas.Por injunção de seu filho Cyrano, Domingos foi salvo de serjogado em alto mar. Alertado de que seu pai fora seqüestrado, ofilho telefonou para o Estado Maior do Exército em Brasília e faloudiretamente com um coronel, membro próximo <strong>da</strong> família. Aresposta retornou imediatamente: "Receba-o de volta em BeloHorizonte, na Polícia Federal, e tome conta dele, pois, nem sempreme encontrarás para salvá-lo".Em 1980, depois de ter sido absolvido em 11 processos ede providenciar o retorno de dezenas de exilados políticos, Domingosain<strong>da</strong> lutou pela legalização do PCB, o que conseguiuem 1992.Faleceu de septicemia provoca<strong>da</strong> por pneumonia bacteriana,em 31 de dezembro de 1997, aos 88 anos.184 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>185


Edgar de Godói <strong>da</strong> Mata MachadoEdgar de Godói <strong>da</strong> Mata Machado, filhode Augusto Aires <strong>da</strong> Matta Machado eMariana Flora de Godoy <strong>da</strong> Matta Machado,nasceu na ci<strong>da</strong>de de Diamantina, MinasGerais, no dia 14 de maio de 1913. Casou-secom Yed<strong>da</strong> Novaes <strong>da</strong> Mata Machado e comela teve sete filhos: Maria do Carmo, Marília,José Carlos, Mônica, Virgínia, Edith e Bernardo.Foi um menino inquieto. No curso primário,desnorteado por estar demorando aaprender a ler, foi ter com a diretora <strong>da</strong> escola, sua tia Eponina.Chamando a professora, a tia resolveu o problema:- "O Edgar não tem jeito. Eu piso no pé dele e ele nãoaprende a ler", queixou-se a professora.- "Ele não aprende a ler porque você pisa no pé dele. Entãovocê pára com essa história de pisar no pé dele que ele aprende".O fato é que ele acabou terminando o curso primário coma prima e professora Mariana <strong>da</strong> Mata Machado. Depois foi parao Colégio Arnaldo fazer o curso médio, assim chamado naquelaépoca. Mas lá só permaneceu um ano: decidira tornar-se padree foi então para o seminário de Diamantina.As férias do meio do ano eram passa<strong>da</strong>s em ConselheiroMata. O seminarista se entusiasmava com as férias porque,segundo ele próprio conta em seu livro Fé, Cultura e Liber<strong>da</strong>de,em Diamantina, "não havia abacaxi. E lá, ao contrário, em ConselheiroMata, tinha muito. Era muito agradável para a gente passaras férias".186 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>187


A permanência no seminário foi interrompi<strong>da</strong> a conselhodo padre Avelar, que, em carta ao pai de Edgar, afirmou que nãovia no menino vocação para a batina. O fato decepcionaria muitoo pai, que queria um filho padre, mas Edgar, apesar de terabandonado o seminário, mostrava-se bastante grato pelos trêsanos em que cursara Filosofia na instituição.Ao sair do seminário, onde o curso que fizera não erareconhecido, Edgar teve de fazer o supletivo, que repartiu entrePouso Alegre (1933), Itanhandu (1934) e Belo Horizonte (1935). Eo embasamento cultural que trazia, somado à sua privilegia<strong>da</strong>inteligência e vocação para o estudo, abriu caminho para umavitoriosa carreira profissional, que se manifestou na imprensa,na cátedra e na política.A projeção que ele alcançaria no curso de sua vi<strong>da</strong> nãoofuscou, entretanto, nem sua inata modéstia, nem a franciscanavisão cristã que inspirou todo o seu comportamento.Entrou na Facul<strong>da</strong>de com distinção e, em conseqüência,estudou gratuitamente: "Até me lembro que eu tomei a maiorvaia, porque quando foi anunciado o resultado, a gente no pátio,esperando, a primeira coisa que aconteceu foi a notícia de quefulano de tal fez o concurso e teve distinção em to<strong>da</strong>s as matériase por isso estaria incluído na Facul<strong>da</strong>de gratuitamente. Não precisavapagar. Então, o pessoal começou a me <strong>da</strong>r vaia. Foi a maiorhomenagem que eu já tinha recebido, a maior vaia dos outros,que não tiveram as notas. Eu entrei com uma grande vaia. Foibom: eu me habituei".Abriu um escritório com o Bolivar de Freitas, que já conheciado seminário de Diamantina. O escritório, com o nome deEscritório Sóror Mariana de Alcaforado, era dedicado à escrita decartas de amor. Eles faziam cartas para as emprega<strong>da</strong>s, asemprega<strong>da</strong>s levavam para os sol<strong>da</strong>dos. Depois, os sol<strong>da</strong>dos liame pediam para fazer as respostas. O escritório tinha grande movimento.Com o dinheiro os dois iam ao cinema.Diplomou-se pela Facul<strong>da</strong>de de Direito de Minas Geraisem 1939. Já então, exercia o jornalismo, tendo participado, em1934, <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção do órgão de inspiração católica O Diário, doqual ele foi re<strong>da</strong>tor, secretário e re<strong>da</strong>tor-chefe. No jornal integrou-sea um grupo brilhante de jornalistas formado por CidRebelo Horta, João Etienne Filho, José Mendonça, João Camilode Oliveira Torres, Nilton Amado, Mozarth Meniconi, GeraldoDiniz Resende, Geraldo Magela de Andrade, Fernando DiasCorrêa, Geraldo Mendes Barros, Hélio Pellegrino e Otto LaraResende.Logo após sua formatura, atuou como advogado de acusaçãode um ci<strong>da</strong>dão que matara o pai de um linotipista de ODiário. O processo corria na comarca de Bonfim, Minas Gerais,sendo o juiz o pernambucano Oscar Mendes. Fez uma denúnciamuito articula<strong>da</strong>. O rapaz foi condenado. Esse caso seria inesquecívelao recém-formado porque o Dr. Oscar Mendes, quandoveio o resultado condenando o rapaz, advertiu-o: "Olha, há umagrande irritação na família do rapaz, de modo que o melhor évocê voltar para Belo Horizonte".Suas convicções católicas e a lucidez de sua inteligênciaestruturaram as raízes de seu pensamento otimista, que seguiaa linha do francês Jacques Maritain e do brasileiro Alceu deAmoroso Lima (Tristão de Athaíde). Essa linha de esclareci<strong>da</strong>ideologia cristã, volta<strong>da</strong> para o equacionamento dos angustiantesproblemas sociais do mundo contemporâneo, levaram-noa uma inabalável crença nos princípios democráticos, exatamentenuma hora em que as forças totalitárias atingiam oapogeu de dominação mundial.A imprensa foi, naquele momento, a sua trincheira. Em1943, único jornalista escolhido em Minas Gerais, fez uma viagemaos Estados Unidos a convite do Departamento de Estudos.Durante a viagem, conheceu o presidente Roosevelt, que elelembraria como "uma pessoa impressionante". Também conheceuo ator Orson Welles, em Hollywood, artista que já havia estadoem Belo Horizonte e que queria fazer um filme exclusivamentesobre o Brasil, embora confessasse estar encontrandouma resistência muito grande por parte <strong>da</strong> ditadura.188 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>189


E a ditadura, para o próprio jornalista, era um grande peso,a ponto de ele nunca ter mencionado, nas reportagens que man<strong>da</strong>va,o governo do Brasil.Em 1944, Edgar transferiu-se para o Rio de Janeiro, ondefoi re<strong>da</strong>tor do Diário de Notícias e de O Globo, integrando ain<strong>da</strong>o grupo de re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Editora Agir. Como representante de OGlobo, voltou aos Estados Unidos, recolhendo subsídios e observaçõesque foram transmitidos em seu primeiro livro publicado,Imagem <strong>da</strong> América.Em 1946, ficou com a chefia <strong>da</strong> seção política de O Globo.Dr. Edgar fazia comentários políticos e entrevistas, muitas delascom o ministro <strong>da</strong> Guerra Góes Monteiro, entrevistas semprecuriosíssimas. O ministro chegava, cumprimentava e então começavaditando a entrevista. Dr. Edgar batia à máquina: "Estamanhã tive mais um contato com o General Góes Monteiro, quefoi encontrado tratando dos seus pássaros..." Depois, ele fariaoutro texto para a publicação no jornal.Em março de 1947, a convite de Milton Campos, Edgar assumiua chefia do gabinete do então Governador, cargo que ocupouaté candi<strong>da</strong>tar-se à Assembléia Legislativa. Eleito deputadoestadual (1951-1955), foi líder <strong>da</strong> oposição e membro <strong>da</strong>s Comissõesde Re<strong>da</strong>ção e de Educação e Cultura.Simultaneamente, sua já consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> cultura jurídica ehumanística convocou-o para o magistério superior. Foi professorde Introdução à Ciência do Direito na Universi<strong>da</strong>de Católica, deHistória <strong>da</strong> Filosofia, Lógica e Metafísica na Facul<strong>da</strong>de de Filosofia,Ciências e Letras Santa Maria, e de Introdução à Filosofiae Lógica na Facul<strong>da</strong>de de Filosofia <strong>da</strong> UFMG. Em 1954, aprovadoem concurso, ocupou a cadeira de Introdução à Ciência doDireito na Facul<strong>da</strong>de de Direito <strong>da</strong> UFMG, cadeira <strong>da</strong> qual, tambémpor concurso, seria titular em 1956. No magistério, reveloutodo o seu saber jurídico e sedimenta<strong>da</strong> cultura, tornando-semestre conceituado e líder respeitado de sucessivas gerações.No governo Magalhães Pinto exerceu as funções de titular<strong>da</strong> recém-cria<strong>da</strong> Secretaria do Trabalho e Cultura Popular, à frente<strong>da</strong> qual pôs em execução um admirável programa voltado paraas classes menos favoreci<strong>da</strong>s. Afastando-se do cargo em conseqüênciado Golpe Militar de 1964, foi eleito deputado federalem 1966, tendo seus direitos políticos cassados em 1969, peloAto Institucional nº 5. Logo a seguir, foi afastado <strong>da</strong>s cátedrasque conquistara, sendo reintegrado dez anos depois, graças àanistia de 1980.Na época atribula<strong>da</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> nacional constituí<strong>da</strong> peladitadura, os desenganos <strong>da</strong> injustiça humana foram acrescidosdo sacrifício do filho José Carlos, truci<strong>da</strong>do barbaramente pelasforças <strong>da</strong> repressão militar, em 1973. A inabalável crença católi-190 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>191


ca foi o que lhe fortaleceu o ânimo, fazendo com que Edgarvencesse os tormentos e se mantivesse firme em suas convicçõespolíticas e religiosas. A mesma crença permitiu-lheresistir ao inquérito militar a que foi submetido e a demonstrar,durante todo o processo, a altivez e a bravura de um autênticodemocrata, além de surpreendente ascendência intelectualsobre seus inquisidores.Com a volta <strong>da</strong> democracia, Edgar foi convi<strong>da</strong>do por TancredoNeves para ser embaixador na Santa Sé. Na época trabalhavacom Afonso Arinos, que dirigia uma comissão de estudosconstitucionais preparadores <strong>da</strong> Constituinte de 1988.Em 1985, o então presidente José Sarney convidou umseleto número de personali<strong>da</strong>des para escrever um artigo sobrea importância <strong>da</strong> Constituinte para o País. Na época, o coordenadoreditorial do projeto, Villas-Boas Corrêa, afirmou que "só foiconvi<strong>da</strong>do a participar desta série de depoimentos quem realmentetem o que dizer. Quem pode oferecer a contribuição insubstituível<strong>da</strong> experiência ou quem não fala apenas por si, mas emnome de faixas <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de". Dentre os convi<strong>da</strong>dos figuravamAntônio Ermírio de Morais, Aureliano Chaves, Barbosa LimaSobrinho, Fernan<strong>da</strong> Montenegro, Fernando Henrique Cardoso,Dom Hélder Câmara, Luiz Inácio <strong>da</strong> Silva, Miguel Arraes,Otto Lara Resende, Roberto Magalhães e Edgar de Godói <strong>da</strong>Mata Machado.Redemocratizado o País, foi eleito suplente de senador em1986, exercendo o man<strong>da</strong>to no período de 1990 a 1991, quando otitular Itamar Franco assumiu a vice-presidência <strong>da</strong> República.Membro <strong>da</strong> Academia Mineira de Letras, Edgar deixou oseu nome inscrito na história de Minas, graças aos seus invulgaresatributos morais e intelectuais. Poucos conterrâneos seus,na segun<strong>da</strong> metade do século XX, igualaram-no em cultura einteligência; nenhum o sobrepujou na probi<strong>da</strong>de e na modéstiae, especialmente, na imensurável dimensão humana.192 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>193


Edina Maria <strong>da</strong> PaixãoEdina Maria <strong>da</strong> Paixão nasceu emTaiumirim, distrito de Caratinga, MinasGerais, em 1936. Em 1951, casou-se comFrancisco Raymundo <strong>da</strong> Paixão, com quemteve os seguintes cinco filhos: Edi-Lamar,Elizimar, Elizabel, Edinézia e Luiz Carlos,este último batizado com o mesmo nome dogrande líder brasileiro Luís Carlos Prestes.Francisco, o pai, combinara com Edina quea criança que ela esperava, se fosse do sexofeminino, ela escolheria o nome, mas, sefosse menino, ele queria prestar esta grande homenagem a umpersonagem que admirava.A vi<strong>da</strong> de Edina foi uma luta constante. Ela cui<strong>da</strong>va dosfilhos, <strong>da</strong> casa e ain<strong>da</strong> militava junto com o marido, que era líderdos camponeses. A casa onde viviam era dividi<strong>da</strong> ao meio: deum lado morava a família e do outro lado era a sede do sindicato.Contando com o apoio <strong>da</strong> mãe, que a aju<strong>da</strong>va nas tarefasdomésticas e nos cui<strong>da</strong>dos com os filhos, Edina ficava libera<strong>da</strong>para cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong> burocracia do sindicato, fazendo inscrições eca<strong>da</strong>stramentos dos camponeses, distribuindo alimentos.Enquanto isso, o marido viajava levantando recursos e lutandopor benefícios para todos.Pesquisas dão conta de que a segun<strong>da</strong> área social maisduramente atingi<strong>da</strong> nos primeiros tempos do regime militar foi omeio sindical, principalmente as Ligas Camponesas. Com ocasal formado por Edina e Francisco não foi diferente. No dia 31de março de 1964, três dos filhos em casa com a avó, um carrochegou a to<strong>da</strong> veloci<strong>da</strong>de. Dele desceram muitos homens, todosarmados. Uma <strong>da</strong>s crianças correu em direção dos pais paraavisá-los do ocorrido. Veio a ordem expressa do pai: todos deveriamse esconder no banheiro.Enquanto Francisco e Edina fechavam a sede do sindicato,chegou outro carro oficial com muitos militares e foi iniciadoum tiroteio. Francisco conseguiu fugir pela janela, mas Edinaficou na linha de tiro e foi balea<strong>da</strong> com três tiros: um de raspão,outro vazou pelo seu corpo e o terceiro ficou cravado em suascostas. As crianças pemaneciam quietas no banheiro até quecessaram os tiros. Quando a avó, que as protegia, percebeu queElizabel, então com 5 anos, estava com o rosto sangrando,procurou socorro e, então, mãe e filha foram encaminha<strong>da</strong>s parao hospital <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Até hoje não se sabe se os tiros partiramdos capangas do coronelismo que imperavam na região ou dosmilitares.Com o episódio, a alternativa para a família foi sair <strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de. As crianças foram para o Rio de Janeiro sem os pais e serefugiaram na casa de uma tia <strong>da</strong> mãe. Duas semanas depois,Francisco e Edina chegavam.Escondi<strong>da</strong>, a família ficou exila<strong>da</strong> no próprio País. Um anoe meio depois de estarem escondidos, Francisco, para proteger afamília, teve de partir para a clandestini<strong>da</strong>de. Propôs à esposadeixar os filhos num orfanato, a fim de que pudessem seguir emfrente com seus projetos políticos. Sem discor<strong>da</strong>r, Edina Maria<strong>da</strong> Paixão retrucou com firmeza: "você vai, eu estou grávi<strong>da</strong> e nãovou abandonar meus filhos".Francisco Raymundo <strong>da</strong> Paixão voltou a juntar-se à famíliaem 1979, quando saiu a anistia.Durante o período de separação, a família peregrinou porcaminhos tortuosos e difíceis. Sofreu muito. Foi abandona<strong>da</strong>pelos políticos que se diziam amigos do pai. Passou fome, frio,discriminação. As crianças não puderam ter um vi<strong>da</strong> normalcomo outras pessoas, pois passaram a maior parte de suas vi<strong>da</strong>sfugindo e tentando sobreviver. Edina, mesmo sem perder jamais194 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>195


a esperança, passou a ter depressão, pânico, tornou-se obesa,diabética, cardíaca e, por causa do projétil nas costas, entre osrins e a coluna, veio a falecer em 1985, em Belo Horizonte, ondeestá sepulta<strong>da</strong>.Os filhos her<strong>da</strong>ram os sonhos e a esperança. Hoje, todossão casados, têm filhos, até mesmo netos. Sabem que seriammais felizes se não tivessem as cicatrizes do passado, massabem que têm um patrimônio de exemplos difícil de ser encontradomesmo entre as mais nobres pessoas.196 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>197


Eduardo Antônio <strong>da</strong> FonsecaEduardo Antônio <strong>da</strong> Fonseca nasceu em Belo Horizonte,Minas Gerais, no dia 23 de fevereiro de 1947, filho de JoaquimFonseca Júnior e de Lucin<strong>da</strong> Miquelina Braga.Iniciou-se no movimento estu<strong>da</strong>ntil muito jovem. Erasecun<strong>da</strong>rista em 1968, quando se ligou ao Partido SocialistaRevolucionário Brasileiro (PSRB), participando de seu núcleo deformação, ao lado do dirigente Aurélio Bastos, que já havia sidovice-presidente <strong>da</strong> União Nacional dos Estu<strong>da</strong>ntes (UNE).O PSRB foi criado a partir <strong>da</strong>s idéias de Rui Mauro Marini,um grande intelectual que se encontrava exilado no Chile.Alguns militantes do PSRB, entre eles o advogado AurélioBastos, já haviam participado <strong>da</strong> organização revolucionáriamarxista Política Operária (POLOP).Em 1969, o grupo se desfez: alguns militantes foram parao Comando de Libertação Nacional (COLINA) e outros para aCorrente Revolucionária de Minas Gerais (CORRENTE). EduardoAntônio <strong>da</strong> Fonseca filiou-se à CORRENTE.No final de 1969, com a que<strong>da</strong> <strong>da</strong> organização, EduardoFonseca foi clandestinamente para São Paulo, onde militou naAção Libertadora Nacional (ALN).Foi fuzilado numa embosca<strong>da</strong> monta<strong>da</strong> pelo Destacamentode Operações de Informações do Centro de Operações deDefesa Interna (DOI/CODI) de São Paulo, no dia 23 de setembrode 1971, na rua João Moura, altura do n º 2.358, bairro doSumarezinho, em São Paulo. Juntamente com Eduardo Antônio<strong>da</strong> Fonseca, foram mortos seus companheiros José MarvelMendes de Abreu e Antônio Sérgio de Matos.Ana Maria Nacinovic Corrêa, que viria a ser assassina<strong>da</strong>em 14 de junho de 1972, conseguiu escapar <strong>da</strong> embosca<strong>da</strong> narua João Moura. Relatou que seus companheiros não tinhamtido a chance de resistir, o que mostra, com clareza, que o objetivodos policiais era o assassinato e não a prisão.É curioso notar que, na mesma <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> morte de Eduardo,23/09/71, foi fotografado um cadáver como vítima desconheci<strong>da</strong>(foto nº 323/71 - laudo nº 3 - 4796171) e foi feita para ele umarequisição de exame de corpo de delito. O cadáver era de umjovem de nome Eduardo Antônio <strong>da</strong> Fonseca e dele se ocupavao delegado Alcides Cintra Bueno. O exame necroscópico, assinadopelos médicos Isaac Abramovite e Antônio Valentini, concluiuque o examinado falecera por anemia agu<strong>da</strong> traumática. Oresultado desse exame foi registrado no Instituto Médico <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong>de de São Paulo (IMUSP), sob o n º 39.537, no dia 12de outubro de 1971, tendo o óbito sido registrado no cartório doJardim América.Eduardo Antônio <strong>da</strong> Fonseca foi sepultado pela família noCemitério São Pedro, às 15 horas do dia 30 de outubro de 1971.Segundo o relatório do Ministério <strong>da</strong> Aeronáutica à Comissãode Representação Externa <strong>da</strong> Câmara Federal, em dezembrode 1993, fornecido pelo Ministério <strong>da</strong> Justiça, EduardoAntônio <strong>da</strong> Fonseca "faleceu no dia 23 de setembro de 1971, nobairro de Pinheiros, em São Paulo, ao reagir, a tiros, à ordem deprisão <strong>da</strong><strong>da</strong> por policiais". Já segundo o relatório do Ministério <strong>da</strong>Marinha à Comissão de Representação Externa <strong>da</strong> Câmara Federal,em dezembro de 1993, fornecido pelo Ministério <strong>da</strong> Justiça,Eduardo "foi morto por agentes dos órgãos de segurança,quando, juntamente comoutros elementos fortementearmados de metralhadoras,atacaram umaviatura militar do IIExército que se encontravaestaciona<strong>da</strong> à rua JoãoMoura, no bairro doSumarezinho, São Paulo".198 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>199


Eduardo Colen Leite - BacuriEduardo Colen Leite, o Bacuri,nasceu em Campo Belo, Minas Gerais,em 28 de agosto de 1945, filho deAlberto Colen Leite e Maria Apareci<strong>da</strong>Leite.Eduardo foi militante <strong>da</strong> organizaçãorevolucionária marxista PolíticaOperária (POLOP) e <strong>da</strong> Vanguar<strong>da</strong> PopularRevolucionária (VPR). Depois,tornou-se dirigente <strong>da</strong> Ação LibertadoraNacional (ALN).Foi preso no dia 21 de agosto de 1970, no Rio de Janeiro,pelo delegado Sérgio Fleury e sua equipe, num hotel no Rio deJaneiro, traído por um colega.Levado em segui<strong>da</strong> para uma residência particular, lá foivítima <strong>da</strong>s primeiras torturas. Os gritos de Eduardo e dos torturadoresressoavam pela vizinhança, que solicitou intervençãopolicial. A polícia, ao constatar que se tratava de episódio sob ocontrole <strong>da</strong> tropa do delegado Fleury, foi orienta<strong>da</strong> pelas autori<strong>da</strong>descompetentes a recomen<strong>da</strong>r apenas que mu<strong>da</strong>ssem de local.As torturas continuaram na sede do Centro Nacional deInformações <strong>da</strong> Marinha (CENIMAR), também no Rio de Janeiro;em segui<strong>da</strong>, Eduardo foi transferido para o 41º Distrito Policialem Vila Rica, São Paulo, ain<strong>da</strong> sob o comando do delegadoFleury. Retornou ao Rio de Janeiro, para o CENIMAR, e continuousofrendo torturas horríveis até meados de outubro, quandofoi transferido novamente para São Paulo, para a sede do Destacamentode Operações de Informações do Centro de Operações200 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>201


de Defesa Interna (DOI/CODI). Ain<strong>da</strong> em outubro, foi removidopara o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS)paulista, onde foi encarcerado na cela 4 do fundão, onde as celaseram totalmente isola<strong>da</strong>s.No dia 25 de outubro, ficou evidenciado que um plano diabólicofora montado para assassinar Eduardo: haviam sido divulga<strong>da</strong>spelos jornais a morte de Joaquim Câmara Ferreira, coman<strong>da</strong>nte<strong>da</strong> ALN, e a fuga de Eduardo, bem como o desconhecimentodo seu paradeiro. Só que a notícia era totalmente falsa,uma vez que, pelas torturas que vinha sofrendo, Eduardo nãoconseguia sequer manter-se de pé. Segundo o testemunho de 50presos políticos recolhidos ao DOPS, Eduardo jamais saíra desua cela, a não ser carregado para as sessões de tortura, queeram diárias.Sua retira<strong>da</strong> do DOPS foi trama<strong>da</strong> de forma que os demaispresos políticos não testemunhassem o fato. Vigilantes, os 50companheiros não deixaram que isso acontecesse. Mas de na<strong>da</strong>adiantaram seus protestos desesperados, insuficientes para evitara remoção do então debilitado militante.Soube-se, mais tarde, que no dia 27 de outubro de 1970,Eduardo fora levado para o sítio particular do delegado Fleury,para onde eram levados os presos especiais, ou os que seriamtorturados e assassinados sem testemunho de ninguém.No dia 8 de dezembro de 1970, os jornais paulistas noticiarama morte de Eduardo, que teria ocorrido durante um tiroteionas imediações <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de São Sebastião, litoral paulista. Naver<strong>da</strong>de, a morte, ou seja, o assassinato de Eduardo Colen Leitefoi, entre todos os creditados à polícia política, um dos mais bárbarosde que se tem notícia.Seu corpo foi deixado no Cemitério Areia Branca, em Santos,São Paulo, onde foi enterrado como indigente. A polícia, tantodentro como fora do cemitério, não permitiu que a imprensaentrasse e cobrisse o fato. Sua mulher, Denise Crispim, mãe <strong>da</strong>filha que ele não chegou a conhecer, armou um escân<strong>da</strong>lo porqueos policiais não queriam abrir o caixão. A cena foi terrível.Denise constatou que as orelhas de Eduardo haviam sidodecepa<strong>da</strong>s, os olhos vazados, os dentes arrancados, além dehaver escoriações, queimaduras e cortes profundos espalhadospor todo o corpo.Denise deu à luz a filha alguns meses depois e fugiu parao Chile, indo depois para Roma. Não pôde mais permanecer noBrasil após a morte do seu Bacuri que, em Tupi-Guarani, querdizer menino.202 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>203


Eduardo Demétrio FerreiraEduardo Demétrio Ferreira nasceu em Belo Horizonte,Minas Gerais, no dia 6 de março de 1953, filho do vendedor Joséde Lourdes Ferreira e de Lea Demétrio Ferreira. Na família declasse média, humilde, ele era o terceiro filho, sendo que seteirmãos lhe faziam companhia.Sempre estudioso e idealista, muito jovem já demonstravatendência para a ação política. Aos 13 anos, ain<strong>da</strong> ingênuo esem saber até onde poderiam chegar os limites do terror, expunha-secotidianamente em comícios relâmpagos e passeatas,fazendo a segurança de dirigentes de oposição. Acreditava, juntamentecom companheiros <strong>da</strong> época do final dos anos 60, queera hora de conjugar a vi<strong>da</strong> escolar com a participação nahistória. Não sabia que durante os próximos anos viria a ser consideradoinimigo de um regime brutal, que permitia, inclusive, aeliminação física <strong>da</strong>queles que lhe opusessem qualquer formade resistência.Demétrio, como era chamado pelos colegas, foi mais umestu<strong>da</strong>nte engajado. Acreditou profun<strong>da</strong>mente nas razões desua luta e aos poucos tornou-se um combatente pela liber<strong>da</strong>deem tempo integral, julgando que servir a uma causa pode justificaruma vi<strong>da</strong>. Soube-se que sofreu seqüestros relâmpagos em1967/74, quando a tortura era rápi<strong>da</strong> e precisa, não deixandoregistros oficiais. O que importava era obter a informação nomenor prazo possível.Estu<strong>da</strong>nte secun<strong>da</strong>rista, ain<strong>da</strong> menor de 18 anos, foiexpulso de várias escolas. Quando estu<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> EscolaMunicipal IMACO, foi preso durante manifestação estu<strong>da</strong>ntil,logo após falar para a massa de estu<strong>da</strong>ntes e conclamar uma204 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>205


manifestação dos jovens. Ele falava muito bem e tinha o dom deinfluenciar os estu<strong>da</strong>ntes. Na hora <strong>da</strong> saí<strong>da</strong>, foi feito pela políciaum corredor polonês (duas fileiras de policiais no meio <strong>da</strong>s quaisos estu<strong>da</strong>ntes tinham de passar) encabeçado pelos delegados doDepartamento de Ordem Política e Social (DOPS) ThacyrMenezes Sia e David Hazan: assim que os estu<strong>da</strong>ntes passavam,eram identificados e presos.Preso durante a manifestação no IMACO, Demétrio estevedetido também dentro <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Direito em 1968, quandoela foi ocupa<strong>da</strong> pelos estu<strong>da</strong>ntes e as mães e outros parentesficaram do lado de fora, tentando tirar seus filhos e impedindo ainvasão do prédio pela polícia.Por participar ativamente de to<strong>da</strong>s as ações e manifestaçõespolíticas nos idos de 1968/69 e, ain<strong>da</strong>, por ser muitíssimojovem (devia ter de 14 a 15 anos), Demétrio era muito conhecidopelos aparelhos <strong>da</strong> repressão e, no final dos anos 60, foi obrigadoa cair na clandestini<strong>da</strong>de.Antes desse desfecho, Eduardo Demétrio dirigiu enti<strong>da</strong>desrepresentativas dos secun<strong>da</strong>ristas em nível regional e nacional.Nessa época foi preso por agentes <strong>da</strong> repressão política e ficou àdisposição do então Coronel Medeiros, que dirigiu uma equipede policiais e torturadores cuja ação se concentrava numInquérito Policial Militar, visando reprimir o movimento estu<strong>da</strong>ntile prender, torturar e intimi<strong>da</strong>r seus líderes.Militante junto à Ação Popular (AP), empenhado em viabilizar,juntamente com companheiros <strong>da</strong> época, o Congresso <strong>da</strong>União Nacional dos Estu<strong>da</strong>ntes (UNE) que ocorreria em Ibiúna,São Paulo, assim que chegou a Montes Claros foi preso pelapolícia e encaminhado para o DOPS. Pouco depois, foi transferidopara alguma uni<strong>da</strong>de do Exército e torturado barbaramente.O coman<strong>da</strong>nte do Inquérito Policial na época era o CoronelMedeiros e um dos interrogadores era o Capitão Portela.Ain<strong>da</strong> em 1969, foi preso por participar de reunião ilegaldo Diretório Central dos Estu<strong>da</strong>ntes (DCE/MG). Foi citado emvários depoimentos e inquéritos policiais como elemento vincu-lado a organizações clandestinas <strong>da</strong> AP. Integrou a relação deatingidos pelas sanções do Decreto-Lei nº 477/69, tendo sidodesligado <strong>da</strong> Escola Técnica Federal de Minas Gerais onde estu<strong>da</strong>va,ficando proibido de estu<strong>da</strong>r.Foi militante político também do Partido ComunistaBrasileiro (PCB) e posteriormente <strong>da</strong> organização chama<strong>da</strong>Partido Operário Comunista (POC), ocasião em que foi indiciadoem inquérito instaurado pela Infantaria Divisionária (ID/4) <strong>da</strong> 4ªRegião Militar para apurar ativi<strong>da</strong>des do partido, na área de BeloHorizonte, em 1969. Era tido como perigoso pelo Exército.Sol<strong>da</strong>dos do Exército ficavam na porta de sua casa, na rua Jacuí,2133, em Belo Horizonte, com o objetivo de prendê-lo. Certafeita, sua mãe teve que se disfarçar usando perucas e se vestindode homem para desviar a atenção dos sol<strong>da</strong>dos para queDemétrio pudesse sair em fuga, sem ser abor<strong>da</strong>do e preso.Perseguido e preso várias vezes por agentes federais, foiinternado em clínicas psiquiátricas algumas vezes. Viveu escondido,banido em seu próprio País, teve uma vi<strong>da</strong> provisória quenão lhe permitia criar laços afetivos ou emocionais. Criou a partir<strong>da</strong>í uma síndrome de perseguição que o fazia tremer ao ouviruma sirene policial, ao ver uma far<strong>da</strong> ou a desencontrar-se doscompanheiros nos pontos marcados.A ca<strong>da</strong> prisão de um amigo,entrava em crise, imaginando ser opróximo.Em 1978, foi enviado para aFrança, onde permaneceu um ano.Ao voltar, tentou retomar a vi<strong>da</strong>como ci<strong>da</strong>dão comum. Freqüentou ocurso de Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (UFMG),mas seus problemas psíquicos nãolhe permitiram a<strong>da</strong>ptar-se à rotina<strong>da</strong>s aulas. Retomar os estudos paratentar um emprego público tornou-Estu<strong>da</strong>ntes como Demétrio foram alvode perseguições <strong>da</strong> ditadura militar206 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>207


se impossível também devido aos encargos com sua família,inclusive com a nova que, ain<strong>da</strong> estu<strong>da</strong>nte de Direito, formoucom a companheira Rosane Guedes <strong>da</strong> Silva, com quem teveduas filhas: Andressa e Ana Carolina Guedes Demétrio.Seguindo, Eduardo trabalhou em campanhas políticas ecom representação comercial. Pertenceu ao Partido DemocráticoTrabalhista (PDT) e ao Partido Comunista do Brasil (PC do B). Em1986/87 foi assessor parlamentar na Câmara Municipal de BeloHorizonte.Em 1994, Demétrio estava trabalhando com representaçãode tecidos e, por viajar sempre, ausentava-se muito de casa. Foimais uma fase difícil. Com todos os seus traumas, a esperançade a<strong>da</strong>ptação profissional e familiar ia se enfraquecendo. Derepente, teve que ser internado às pressas, por conta de seuorganismo debilitado. E ele acabou encontrando na bebi<strong>da</strong> umrefúgio barato para o sofrimento e a falta de perspectiva na vi<strong>da</strong>.Foi internado em Varginha, Minas Gerais, onde veio a falecerem 14 de dezembro de 1995. Sepultado no Cemitério de VilaAlpina, em São Paulo, Capital, deixou o amparo de sua memóriaàqueles a quem a morte o impediu de proteger.RUA EDUARDO DEMÉTRIO208 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>209


Eloy Ferreira <strong>da</strong> SilvaEloy Ferreira <strong>da</strong> Silva,filho dos lavradores ArlindoFerreira <strong>da</strong> Silva e Maria GomesFerreira, nasceu no dia 1º dedezembro de 1930. Com 8 anosde i<strong>da</strong>de, veio de Goiás, ondeficava sua terra natal, paraSerra <strong>da</strong>s Araras, no municípiode São Francisco, onde foi criado.Mais tarde, casou-se e teve10 filhos. Nunca se sentou emum banco de escola: aprendeua ler em casa, o suficiente paraassinar o nome e ler a Bíblia.Como todo lavrador filho de lavrador, batalhou muitosanos antes de ter a esperança de ter para si e para sua famíliaum pe<strong>da</strong>ço de terra. Em 1973, com 43 anos de i<strong>da</strong>de e 20 decasado, Eloy conseguiu <strong>da</strong>r entra<strong>da</strong>, em dinheiro, para a comprade uma posse de 42 alqueires, dentro <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong> Menino. Eloynão poderia adivinhar que a compra dessa terra iria transformara sua vi<strong>da</strong>, o seu trabalho, numa luta. Porque para ele, a coisaera simples: uma pessoa compra uma terra, paga e recebe aescritura. Só que não foi isso o que aconteceu.Diante <strong>da</strong>s constantes ameaças de grilagem recebi<strong>da</strong>spelos habitantes <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, procurou organizá-los na defesade seus direitos.Em 4 de abril de 1978, com 48 anos, ingressou noSindicato dos Trabalhadores Rurais de São Francisco, no nortede Minas, como associado, onde recebeu a matrícula de nº 1219.A liderança exerci<strong>da</strong> na luta contra os grileiros levou seus companheirosa elegê-lo como delegado sindical de base.Por essa época, a luta de Eloy já deixara de ser a luta deum homem só, injustiçado. A luta pelo direito à sua terra - quecomprara e não conseguia um documento que comprovasse -não era mais uma luta individual. Eloy descobrira a importânciade um instrumento que permitisse lutar pelo direito detodos os trabalhadores enganados, injustiçados, roubados: osindicato.Começou então a grande luta de Eloy pelo fortalecimentodo movimento sindical. Ele saía pregando junto a todos ostrabalhadores, um por um, sobre a necessi<strong>da</strong>de de se unirempara que todos saíssem ganhando.Em 7 de fevereiro de 1981, escolhido para fazer parte <strong>da</strong>chapa, foi eleito presidente do sindicato, tomando posse a 14de abril de 1981. Em 4 de março de 1984, foi reeleito para novoman<strong>da</strong>to, com posse em 11 de abril do mesmo ano.No dia 21 de abril de 1984, Eloy foi condecorado com aMe<strong>da</strong>lha <strong>da</strong> Inconfidência, tendo sido o primeiro trabalhadorrural a receber esta comen<strong>da</strong>. Na ocasião, afirmou que suaescolha era sinal de mu<strong>da</strong>nça no relacionamento do governocom os trabalhadores. Afirmou ain<strong>da</strong> que <strong>da</strong>quela <strong>da</strong>ta emdiante as autori<strong>da</strong>des poderiam até lutar junto com os camponeses.Dois dias antes de ser assassinado, Eloy havia denunciadoà Secretaria de Estado do Trabalho e Ação Social de MinasGerais uma série de ameaças que vinha recebendo por partede Leonardo Pereira, que arrancava também as cercas de suaproprie<strong>da</strong>de. Mas o fato é que ele, então presidente doSindicato dos Trabalhadores Rurais de São Francisco, foicovardemente assassinado no distrito de Serra <strong>da</strong>s Araras, às9 horas do dia 16 de dezembro de 1984.Minutos após o sepultamento de Eloy, o delegado encarregadodo caso, Márcio Lima Carence, indiciava como mata-210 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>211


dores do sindicalista os grileiros Paulo Leonardo Pereira e JoséMendes Amorim. Em 19 de setembro de 1991, segundo o jornalFolha de Januária, edição de 28 e 29 de setembro de 1991, oassassino de Eloy, Paulo Leonardo Pereira, foi condenado a seteanos de prisão, quando todos esperavam uma pena de mais de16 anos. O assassino havia contratado um famoso advogado.Um jornal sindical registrou na época que "enquanto ocorpo de Eloy descia à sepultura, latifundiários e comerciantesricos de São Francisco soltavam rojões, devoravam suculentoschurrascos e se embriagavam alegremente. Estavam comemorando,aliviados, o desaparecimento <strong>da</strong>quele que, com tantafirmeza, liderara a resistência dos trabalhadores do campocontra o latifúndio".A história é essa. É a história <strong>da</strong>s idéias de um altruístae a <strong>da</strong> violência com que grileiros e latifundiários expulsavamde suas terras os posseiros e pequenos proprietários. A luta deEloy foi a luta pela terra. Uma luta em que se opõem, de umlado, uma imensa multidão de trabalhadores pobres, oprimidos,desempregados, brigando pelo direito ao trabalho, pelodireito a um pe<strong>da</strong>ço de terra e, de outro lado, uma pequeníssimaminoria de poderosos, de ricos, que detêm em suas mãos agrande maioria <strong>da</strong>s terras de cultura.A luta de Eloycontinua em curso. Enão é só dele essa luta,e sim de milhões debrasileiros explorados.É a luta pela reformaagrária, a luta por umasocie<strong>da</strong>de mais justa,em que o trabalhadortenha direito à saúde, àeducação, à moradia, àterra. Direito à vi<strong>da</strong>.212 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>213


Elson CostaRUA ELOY FERREIRA DA SILVAElson Costa nasceu na ci<strong>da</strong>de dePrata, Minas Gerais, no dia 26 de agostode 1913, filho de João Soares <strong>da</strong> Costa eMaria Novais Costa. Na juventude, casou-secom Aglaé de Souza Costa. Dedicadoaos ideais que abraçaria, residiuem várias ci<strong>da</strong>des, mu<strong>da</strong>ndo-se, com afamília, para aquela em que sua presençase mostrava necessária: Uberlândia, BeloHorizonte, Rio de Janeiro, Niterói, CampoGrande, Recife e, finalmente, São Paulo,onde foi preso.Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), era oresponsável pelo setor de agitação e propagan<strong>da</strong> do partido,divulgando o jornal Classe Operária. Na déca<strong>da</strong> de 60, participoude um congresso internacional, visitando vários países,como a antiga União Soviética, a Polônia e a Bulgária, de ondevoltou entusiasmado com o que viu. Sempre foi fiel ao PCB,lutando por uma mu<strong>da</strong>nça a ser opera<strong>da</strong> por meios pacíficos.Mais tarde, por ser <strong>da</strong> direção do partido, seu nome constariade anotações pessoais de Luís Carlos Prestes, o que <strong>da</strong>riamargem a que fosse incluído no chamado Processo <strong>da</strong>sCadernetas de Prestes.Quando Jânio Quadros renunciou à presidência de República,Elson estava na Assembléia Legislativa e foi levado porum delegado para o Centro de Preparação de Oficiais <strong>da</strong> Reserva(CPOR), onde esteve alguns dias aguar<strong>da</strong>ndo o desenrolar dosacontecimentos. Ele defendia a posse do vice-presidente João214 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>215


Goulart. O que sobreveio, no entanto, foi o Golpe Militar e esteacabou por cassar-lhe os direitos políticos.Na manhã do dia 15 de janeiro de 1975, Elson foi preso nobar, ao lado de sua casa, onde havia ido tomar café. Alguns vizinhostentaram protestar contra a ordem de prisão <strong>da</strong><strong>da</strong> por seishomens, pois, para eles, quem estava sendo preso era o aposentadoManoel de Souza Gomes, que vivia na <strong>Rua</strong> Timbiras, 199,bairro de Santo Amaro, em São Paulo.Segundo depoimento do ex-Sargento do Exército MarivalDias Chaves do Canto, publicado na revista Veja de 18/11/92,Elson foi levado para a casa de Itapevi, centro clandestino de torturae assassinato do Destacamento de Operações e Informaçõesdo Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI) emSão Paulo, onde ele foi submetido a todo tipo de tortura e barbari<strong>da</strong>de.Seu corpo foi banhado em álcool, queimado e afogadono rio Avaré.Segundo ain<strong>da</strong> o depoimento desse ex-Sargento, oDOI/CODI/SP, em fins de 1973, para o fim de torturar e assassinarmilitantes políticos, usava uma casa no bairro Ipiranga, nazona sul de São Paulo, e outra na estra<strong>da</strong> de Itapevi, até que, em1975, esta última, por medi<strong>da</strong> de segurança, foi substituí<strong>da</strong> poruma fazen<strong>da</strong> na Rodovia Castelo Branco, a 30 quilômetros <strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de de São Paulo.Sem notícias de Elson desde seu desaparecimento em1975, apesar <strong>da</strong>s competentes buscas, sua família conseguiu, najustiça, anos depois, um atestado de morte presumi<strong>da</strong>. Sua irmãZail<strong>da</strong>, exprime assim sua dor, em uma entrevista à revista Veja,edição de 18/11/92: "sempre tive um pouco de esperança de queele poderia aparecer vivo, mas, depois de tantos anos, é tristeparar de acreditar nisso".216 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>217


Francisco de Assis MagalhãesGomesFrancisco de Assis Magalhães Gomes nasceu em OuroPreto, Minas Gerais, em 16 de janeiro de 1906, filho deFrancisco de Paula Magalhães Gomes e Amália Brandão deMagalhães Gomes. Seu pai, que era médico, botânico e químico,participou <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Medicina <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (UFMG) e teve influênciadecisiva na sua formação humanística e no seu interessepela ciência.Francisco casou-se em 6 de agosto de 1935 com MariaClara Morgan Birchal, com quem teve 13 filhos: Francisco dePaula, Maria Apareci<strong>da</strong>, Clara de Assis, Maria <strong>da</strong> Conceição,Frederico, Maria Amália, Alberto Augusto, Luís Marcos, JoanaD´Arc, Maria Cecília, Maria Inês, Leonardo José e MariaLetícia. Quando faleceu, em julho de 1990, tinha quase 30 netose duas bisnetas. Era amigo próximo de todos, reconhecido equerido, mesmo dos netos mais novos, por quem era chamado,carinhosamente, de Vovô Chiquinho.Em 1928, formou-se engenheiro civil e de minas pelaEscola de Minas de Ouro Preto e, até o seu falecimento, em 17de julho de 1990, em Belo Horizonte, dedicou sua vi<strong>da</strong> ao desenvolvimentodo ensino e <strong>da</strong> pesquisa científica e tecnológica emMinas Gerais e no Brasil, tendo participado de forma ativa depraticamente todos os movimentos que visavam dotar o País deuma base técnico-científica sóli<strong>da</strong>.A partir de 1930, foi professor de Física do Curso Anexo <strong>da</strong>Facul<strong>da</strong>de de Medicina e, em 1938, por concurso, assumiu,simultaneamente, as cátedras de Física Geral e Experimental <strong>da</strong>218 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>219


Escola de Engenharia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais(UFMG) e <strong>da</strong> Escola de Minas de Ouro Preto. Mais tarde, participou<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Filosofia <strong>da</strong> UFMG, ondeorganizou a cadeira de Física Teórica e Superior. Lecionou,ain<strong>da</strong>, durante sua carreira acadêmica, as disciplinas deSiderurgia, Física Atômica e História <strong>da</strong> Ciência.Um dos pioneiros dos estudos e pesquisas sobre energianuclear no Brasil, liderou, em 1953, a fun<strong>da</strong>ção do Instituto dePesquisas Radioativas (IPR) <strong>da</strong> Escola de Engenharia <strong>da</strong> UFMG,que se tornou um dos principais centros de investigação científicanesta área. Foi o primeiro diretor do IPR e, nesta função,dirigiu a equipe que instalou o reator experimental Triga. Datadesta época o apelido de Chiquinho Bomba Atômica, que recebeude alguns de seus alunos.Foi também um dos organizadores e o primeiro diretor doInstituto de Ciências Exatas <strong>da</strong> UFMG, implantado em 1967,como resultado do movimento pela reforma universitária e dosesforços feitos para adequar a UFMG aos moldes de uma universi<strong>da</strong>demoderna e com os vários ramos do saber integrados.Na déca<strong>da</strong> de 70, ajudou a organizar e assumiu a direção doObservatório Astronômico <strong>da</strong> Serra <strong>da</strong> Pie<strong>da</strong>de, município deCaeté, Minas Gerais.Integrou o Conselho Nacional de Pesquisas e a ComissãoNacional de Energia Nuclear, <strong>da</strong> qual se desligou durante o governoCastello Branco, por discor<strong>da</strong>r dos rumos então <strong>da</strong>dos àpolítica nuclear e <strong>da</strong> perseguição política pratica<strong>da</strong> contra cientistasbrasileiros. Fez parte, como fun<strong>da</strong>dor e membro titular, <strong>da</strong>Academia Brasileira de Ciências e, no final de sua vi<strong>da</strong>, foi eleitopara a Academia Mineira de Letras, em virtude de sua formaçãode humanista e de sua paixão pela literatura.Publicou inúmeros artigos científicos e culturais em diversasrevistas, entre elas Kriterion, <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Filosofia <strong>da</strong>UFMG, e a revista <strong>da</strong> Escola de Minas de Ouro Preto. Em 1983,foi publicado seu livro História <strong>da</strong> Siderurgia no Brasil, editadopela Eletrici<strong>da</strong>de de São Paulo S.A. (Eletropaulo).Nos últimos anos de sua vi<strong>da</strong> dedicou-se intensamente atemas ligados à história <strong>da</strong> ciência, tendo deixado muitos trabalhossobre o significado e a importância de Galileu.Durante muitos anos, em Belo Horizonte, foi colaboradordo jornal O Diário, onde escreveu sobre assuntos de interessecultural e social. No princípio <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 80, foi convi<strong>da</strong>dopelo Vaticano a participar de um grupo constituído pelo PapaJoão Paulo II para aprofun<strong>da</strong>r a questão que envolveu, no séculoXVII, a inquisição <strong>da</strong> Igreja Católica e o sábio italiano Galileu.A iniciativa surgiu por ocasião <strong>da</strong> comemoração dos cem anosde nascimento de Albert Einstein, em 10 de novembro de 1979,quando o Papa expressou seu desejo de que teólogos, intelectuaise historiadores, animados por um sincero espírito de colaboração,estu<strong>da</strong>ssem o caso de Galileu de maneira mais profun<strong>da</strong>.Seus trabalhos sobre Galileu estão evidentemente relacionadoscom sua participação na Comissão do Vaticano, mas transcendemo aspecto puramente religioso, já que ele sempre foi umardoroso admirador de Galileu e de seu papel no desenvolvimento<strong>da</strong> ciência moderna.Francisco de Assis Magalhães Gomes foi um dos importantessignatários do Manifesto dos Mineiros contra a ditaduraVargas, nos anos 40, como intelectual e democrata que era.220 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>221


Francisco Lage Pessoa -Padre LageFrancisco Lage Pessoa, o Padre Lage,nasceu na ci<strong>da</strong>de de Ferros, Minas Gerais, nodia 18 de março de 1917, filho de José JamesPessoa e Leopoldina Lage Pessoa. Era o terceiroentre os irmãos René, Renaud e James.O menino Francisco teve uma vi<strong>da</strong> como a dequalquer outro do interior de Minas, na<strong>da</strong>ndono rio que cortava a ci<strong>da</strong>de, brincando nosfolguedos do dia-a-dia, indo à missa aosdomingos, criando seus próprios brinquedos.O pai de Francisco, Sr. José, criou aEscola Normal de Ferros, com o propósito deque não faltassem professores primários em sua ci<strong>da</strong>de e nasvizinhas. Ele fazia o curso de Direito em Niterói, Rio de Janeiro,aonde ia uma vez por ano fazer provas finais de um curso por correspondência.Já advogava na ci<strong>da</strong>de e na<strong>da</strong> cobrava <strong>da</strong>s pessoasmais pobres. Endivi<strong>da</strong>va-se pagando a casa que comprarapara abrigar a família. No dia de sua formatura, em Niterói, foicomemorar com um amigo em um restaurante no cais do porto.Comeu um peixe que lhe provocou infecção intestinal. Viajoupassando mal até Santa Bárbara e de lá seguiu a cavalo atéSanta Maria do Itabira, onde veio a morrer aos 33 anos de i<strong>da</strong>de.Deixava D. Leopoldina com 30 anos, os filhos todos pequenos,Francisco com 5 anos, e muitas dívi<strong>da</strong>s. Venderam tudopara pagá-las e foram morar com o avô, que influenciou as crianças,sobretudo por sua honradez. A mãe decidiu fazer o cursoNormal, formar-se professora, e o fez graças a uma bolsa de222 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>223


estudos doa<strong>da</strong> pelo Dr. Júlio Mesquita, que substituiu o maridona direção <strong>da</strong> Escola Normal. Concluído o curso Normal, D. Leopoldinaconseguiu um emprego em escola do município. Forammorar em Sentinela, onde D. Leopoldina lecionava e, nas horasvagas, debruçava-se sobre a máquina, fazendo camisas, paracompletar o orçamento familiar.Naquele período, o menino Francisco, já com 12 anos,começou a trabalhar, vendendo quitan<strong>da</strong>s e goiaba<strong>da</strong> feitas pelaquitandeira D. Mariquinha. Do que conseguisse vender, ganhava10%, e isso já lhe rendia algum dinheiro para aju<strong>da</strong>r a mãe.Em sua rotina, que incluía a assidui<strong>da</strong>de nos ofícios religiosos,o menino Francisco aproximou-se profun<strong>da</strong>mente do párocoPadre Macedo. Também se aproximou do Padre Bonifácio,que, certo dia, perguntou-lhe à queima-roupa: "Você quer serpadre?". Francisco respondeu-lhe que sim, para tristeza <strong>da</strong> mãe,cujos dois filhos mais velhos já haviam partido para tentar a vi<strong>da</strong>na ci<strong>da</strong>de grande. E Francisco realmente foi estu<strong>da</strong>r fora.Em março de 1930, foi para Mariana onde iniciou seus estudosno seminário. Logo se destacou como o primeiro aluno. Foi escolhidopara ser enfermeiro <strong>da</strong> divisão dos menores e rapi<strong>da</strong>menteaprendeu o ofício que, pelas funções, <strong>da</strong>va-lhe certas regalias,como ter frutas e guloseimas à vontade. Tomou gosto pelo trabalhode enfermeiro e decidiu entrar para a congregação dos Lazaristas,que lhe permitiria dedicar-se mais ao próximo. FranciscoLage foi aceito na congregação e, no ano seguinte, foi paraPetrópolis, onde ficava o Seminário Maior dos padres Lazaristas.Terminado o noviciado, começou um período de estudosmais aprofun<strong>da</strong>dos de Filosofia. No meio <strong>da</strong>s limitações <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>religiosa, teve a ousadia de criar uma revista, chama<strong>da</strong> Ecos <strong>da</strong>Província, que publicava crônicas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> estu<strong>da</strong>ntil e era dirigi<strong>da</strong>a to<strong>da</strong> a Província Brasileira dos Padres <strong>da</strong> Missão, congregaçãoposteriormente alinha<strong>da</strong> às forças de vanguar<strong>da</strong> <strong>da</strong> Igrejabrasileira.Assim transcorreu sua vi<strong>da</strong> de religioso, dividi<strong>da</strong> entre ostrabalhos e os estudos. Ordenado sacerdote, Padre Lage voltoupara o estabelecimento onde estu<strong>da</strong>ra, em Mariana, como professorde Matemática, Português e Latim. De Mariana foi para aBahia, atendendo a um remanejamento de praxe e, finalmente,estabeleceu-se em Belo Horizonte.Padre Lage desempenhou sua ativi<strong>da</strong>de eclesiástica comelevado espírito crítico. A política estava presente em suas atitudescotidianas. Iniciou sua ativi<strong>da</strong>de social na então chama<strong>da</strong>Vila dos Marmiteiros, na confluência dos bairros Dom Cabral,Coração Eucarístico e Padre Eustáquio. Foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong> uma associaçãoque se tornou responsável pela permanência <strong>da</strong>s pessoasnaquela favela e que caracterizava um sentido mais amplo efun<strong>da</strong>mental do direito de morar.Seu trabalho social em Belo Horizonte foi extenso. Em razão<strong>da</strong> primeira experiência na Vila dos Marmiteiros, moradores deoutras favelas chegavam a grandes conquistas, como o tratamento<strong>da</strong>s endemias e epidemias, a instalação de postos policiais,telefone e energia, a plantação de hortas nos quintais ejardins nas casas. Havia em Belo Horizonte, naquela época, maisou menos 30 favelas e to<strong>da</strong>s elas tinham a sua Associação deDefesa Coletiva (ADC) e em ca<strong>da</strong> uma foram implantados osmesmos benefícios.Nesta mesma época, Dom Hélder Câmara iniciava no Riode Janeiro uma campanha de assistência social nas favelas comum lema: tomar dos ricos para <strong>da</strong>r aos pobres. Influenciado poraquela campanha, a preocupação do trabalho de Padre Lage eralutar pela igual<strong>da</strong>de para conseguir melhores condições de vi<strong>da</strong>.Este trabalho era desenvolvido com a participação <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>deenvolvi<strong>da</strong> e com muita discussão orienta<strong>da</strong> para o despertar<strong>da</strong> força que as comuni<strong>da</strong>des possuíam.Foi do Padre Lage e de um dos fun<strong>da</strong>dores do sindicalismorural a frase que se tornou palavra de ordem em to<strong>da</strong> a AméricaLatina: O povo unido jamais será vencido. Muito antes, pois, doadvento <strong>da</strong> Teologia <strong>da</strong> Libertação, o Padre Lage já havia se colocadoao lado dos pobres, juntamente com João Goulart, lutandopara instalar no Brasil os sindicatos rurais e a reforma agrária.224 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>225


Anos mais tarde, falando <strong>da</strong> Teologia <strong>da</strong> Libertação ao jornalEdições do Brasil, de 25/01/87, Padre Lage afirmou que, senão tivesse se afastado <strong>da</strong> Igreja, estaria com certeza no grupoque defendia aquela Teologia: (...) "eu acredito que, se há algumalibertação a ser feita, a primeira, sem dúvi<strong>da</strong>, é a de Cristo, <strong>da</strong>sigrejas, ou seja, recuperar o Cristo que foi seqüestrado pelas igre-jas e também pela Igreja Católica... Em vez de estu<strong>da</strong>rmos oCristo <strong>da</strong> História, nós estu<strong>da</strong>mos a história dele, um homemmeio unissex, sem participação nenhuma na História doHomem, um estranho que está nos altares, muitas vezes temcoroa na cabeça e participa <strong>da</strong> majestade do poder, quando nareali<strong>da</strong>de esse homem era um trabalhador, que viveu e morreupara a libertação do povo. Cristo precisa ser tomado <strong>da</strong> Igreja eser entregue ao povo".Mas, como os movimentos <strong>da</strong> história muitas vezes atropelamtrabalhos em an<strong>da</strong>mento, a luta de Padre Lage durou apenasaté 1964, mais precisamente até 1º de abril de 1964, quandoocorreu no Brasil o Golpe Militar. Preso no dia 10 de abril de1964, permaneceu um ano e um mês na prisão. Foi solto no dia6 ou 7 de maio de 1965, graças à intervenção do arcebispo deJuiz de Fora.Posteriormente, afastou-se <strong>da</strong> Igreja. Exilado no México, implantounaquele País o curso de Língua Portuguesa na Universi<strong>da</strong>dedo México. Casou-se com a mexicana Maria Elena Isaura CamachoPessoa, com quem teve um filho, Sérgio Pessoa Camacho.Padre Lage, como é conhecido até hoje, jamais abandonoua luta pelos direitos humanos. Foi suplente de deputado federalnas eleições de 7 de outubro de 1962. Foi eleito vereador peloPartido dos Trabalhadores (PT) em 15/11/88, sendo um dos cincovereadores mais votados naquele pleito em Belo Horizonte.Faleceu no dia 7 de abril de 1989, de infarto do miocárdio,em pleno man<strong>da</strong>to.226 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>227


Francisco Mário de Souza -Chico MárioFrancisco Mário de Souza nasceuem Belo Horizonte, Minas Gerais,no dia 22 de agosto de 1948, filho deHenrique José de Souza e Maria <strong>da</strong>Conceição Figueiredo de Souza, a D.Maria, que ficou conheci<strong>da</strong> através <strong>da</strong>scartas do Henfil no Pasquim e na IstoÉ. Tinha sete irmãos: Betinho, Henfil,Glorinha, Filó, Wan<strong>da</strong>, Tan<strong>da</strong> e Zilah.Chico Mário, como era carinhosamentechamado, estudou violão eEconomia; pós-graduou-se em Engenhariade Sistemas na COPPE; foi jornalistano Estado de São Paulo e críticomusical na revista Reali<strong>da</strong>de.Desde os 5 anos de i<strong>da</strong>de, Chicodemonstrava profun<strong>da</strong> vocação musical. Além do violão, queestudou, tocava bongô e atabaque, contando com o incentivo doseu irmão Betinho, que se reunia com sua turma e ouvia Bach,Tchaikovski, Choppin. Outra grande responsável por sua formaçãomusical foi a hemofilia, doença que o obrigava a ficar derepouso, deitado: essas horas, longas, ele as passava tocando oviolão. O tio Geraldo, vindo de Bocaiúva, no norte de Minas, paraBelo Horizonte, foi quem primeiro ensinou o Chico Mário nossegredos do violão. Um dia apareceu o Bernard, violonista fantástico,que morreu no dia em que iria <strong>da</strong>r a primeira aula parao Chico: ficou um desafio no ar para o jovem violonista.228 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>229


Em 1965, entrou em Belo Horizonte para os quadros <strong>da</strong>Juventude Estu<strong>da</strong>ntil Católica (JEC), tornando-se membro <strong>da</strong>direção regional. Nos encontros dos jovens <strong>da</strong> associação, o violãode Chiquinho fazia bonito nas horas de meditação e, muitasvezes, nas missas gregorianas dos freis Dominicanos.No ano de 1966, já em São Paulo, Chico Mário entrou parao movimento estu<strong>da</strong>ntil secun<strong>da</strong>rista através <strong>da</strong> União Brasileirados Estu<strong>da</strong>ntes. Participou <strong>da</strong>s pichações dos muros <strong>da</strong> ruaConsolação, correu em ziguezague para fugir <strong>da</strong>s balas <strong>da</strong>repressão até chegar à rua Maria Antônia, pulou muros para abrigar-seno campus <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo (USP), apoiou osoperários grevistas do ABC. Mais tarde, ele contaria que, na lutapara mu<strong>da</strong>r o País, até se esquecia de que era hemofílico.Em 1967, com 19 anos, já casado, ain<strong>da</strong> em São Paulo,<strong>da</strong>va aulas para sobreviver e, ao mesmo tempo, estu<strong>da</strong>vaEconomia e Análise de Sistemas. Estudou violão com o professorHenrique Pinto e criou o método de música em cores paracrianças, aplicando técnica dramática e músicas folclóricasbrasileiras: o método foi, posteriormente, utilizado em váriasescolas de São Paulo e em cursos para professores. Escreveuvárias estórias para a revista Recreio, <strong>da</strong> editora Abril, entre elasTonho, o elefante, O gigante <strong>da</strong> lagoa preta, O leão fominha, Apulga do realejo. Foi consultor <strong>da</strong> Escola de Comunicação eArtes <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo (USP) em trabalho realizadocom o professor Oswaldo Sangiorgi. Fez curso de dinâmica degrupo com o professor Lauro de Oliveira Lima, a<strong>da</strong>ptando-o parao seu curso de violão.Em 1978, foi viver no Rio de Janeiro, onde as possibili<strong>da</strong>despara a carreira de músico eram bem melhores na época.Não demorou para entrosar-se no ambiente carioca, começandoa tocar, chamando atenção para o seu talento. Nesse mesmotempo estudou arranjos e teoria com o professor RobertoGnattali, responsável pelos arranjos do seu primeiro show OuroPreto, realizado no parque Laje e na Universi<strong>da</strong>de Federal do Riode Janeiro.Dedicado, corajoso e idealista, em 1979 gravou seu primeirodisco, Terra, lançado também no México e elogiado por CarlosDrummond de Andrade. Com a capa de Noguchi, o disco contoucom participações de Joyce, Quarteto em Cy, Antônio Adolfo,Airton Barbosa, Chiquinho do Acordeon, entre outros. Um discobem mineiro, que falava <strong>da</strong>s montanhas de Minas. Em maio domesmo ano, como vice-presidente <strong>da</strong> Associação dos Produtoresde Discos Independentes, em Curitiba, constatou que, emborafizesse parte <strong>da</strong> primeira forna<strong>da</strong> de produtores, esses eram ain<strong>da</strong>minoria, já que se produziam cinco vezes mais discos sertanejosque de música popular brasileira (MPB). A exposição dos discosde Antônio Adolfo, Danilo Caymmi, Luli e Lucin<strong>da</strong>, FranciscoMário, os pioneiros do disco independente, representava naqueleencontro ver<strong>da</strong>deiras bandeiras para músicos, compositores eintérpretes que não conseguiam entrar no mercado. Em julho participoudo Festival de Inverno de Ouro Preto na sua 12ª edição.Em 1980, para gravar o disco Revolta dos Palhaços, FranciscoMário entrou no estúdio com a aju<strong>da</strong> de 200 pessoas, quecompraram o disco antes que ele ficasse pronto. Chico dizia:"Com este disco denuncio a ilusão monta<strong>da</strong> para ver a nossa reali<strong>da</strong>desubdesenvolvi<strong>da</strong> de País de terceiro mundo e que atépoderia chocar as pessoas que estavam sonhando e não queriamacor<strong>da</strong>r, preferindo acreditar na falsa reali<strong>da</strong>de recria<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong>dia". No encarte, uma grande lona de circo assina<strong>da</strong> pelo cartunistaNani, em que os coprodutores assinavam, compravam eapoiavam a idéia do disco independente. Contava com parceriasde poetas como Aldir Blanc, Paulo Emílio, Fernando Rios, do jornalistaTárik de Souza, do autor Guarnieri e com participaçõesespeciais de Ivan Lins, MPB4, Lucinha Lins, Boca Livre, MauroSenise, Luiz Cláudio Ramos, Danilo Caymmi, Djalma Correia,entre outros. Com a capa do irmão Henfil, estava formado o maiorespetáculo <strong>da</strong> terra, o disco Revolta dos Palhaços.Em 1981, recebeu um convite para participar do 5º Festivalde Oposicion no México. Pela primeira vez, Chico saiu do Brasile foi mostrar sua música para o mundo, tendo como resultado o230 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>231


lançamento do seu primeiro disco, Terra, no México pela gravadoraFoton. No festival, que contou com a participação de músicosdo mundo todo e um público de 15 mil pessoas, FranciscoMário, Djalma Correa e Henrique Drach foram aplaudidos de pécom palmas que não se interrompiam, tendo que voltar setevezes ao palco para o bis. Neste mesmo ano, gravou um discocom Francisco Julião, que acabara de chegar do exílio, Versos eViola, vetado pela censura na época. Impressionado com areceptivi<strong>da</strong>de mexicana a seus chorinhos e baiões, Chico, aochegar ao Brasil, resolveu gravar o seu primeiro disco instrumentalConversa de Cor<strong>da</strong>s, Palhetas e Metais, que foi eleito omelhor disco de música instrumental do ano de 1983, recebendoo troféu Chiquinha Gonzaga.Junto com o disco,foi lançado também umlivro de poemas, o PainelBrasileiro, com capa deAlifas Andreato, foto deFernando Carvalho e participaçãode feras comoNivaldo Ornelas, RafaelRabello, Antônio Adolfo,Afonso Machado e ZecaAssumpção.Em novembro de1986, Chico Mário fezseu último show, apresentandosuas músicas novas do projeto Suíte Brasil, promovidopela Rioarte. No mês seguinte, acometido de uma pneumonia,ficou sabendo que contraíra o vírus <strong>da</strong> Aids numa transfusão desangue contaminado. Depois que saiu do hospital, no início de1987, foi para a Fazen<strong>da</strong> <strong>da</strong> Serra, em Itatiaia, com a família. Alicompôs suas três últimas obras: Dança do Mar, Suíte Brasil eTempo. Em outubro de 1987, entrou no estúdio Sonoviso e transformouessas suas últimas obras em disco.Em dezembro de 1987, foi realizado no Rio um dos maisbonitos shows de todos os tempos. Com a finali<strong>da</strong>de de aju<strong>da</strong>rno tratamento de Chico Mário, mais de 30 artistas subiram aopalco do Teatro João Caetano, entre eles Milton Nascimento,Chico Buarque, Gonzaguinha, Dona Ivone Lara, Paulinho <strong>da</strong>Viola, Emílio Santiago, Joyce, Cláudio Nucci, Fagner, AldirBlanc, Elton Medeiros. Em fevereiro de 1988, foi a vez dosmineiros em show com a mesma finali<strong>da</strong>de no Cabaré Mineiro:Beto Guedes, Paulinho Pedra Azul, Gilvan de Oliveira, TadeuFranco, Rubinho do Vale, entre outros.Francisco Mário tinha material inédito para três discosquando faleceu, em 14 de março de 1988.Depois de sua morte, sua esposa e produtora Nívia Souza,suas filhas Ana e Karina e seu filho mais velho, Marcos Souza,lançaram os álbuns póstumos respectivos em vinil. Em 1998, foirealizado o projeto Francisco Mário - 50 Anos, um evento quecontou com uma exposição, vídeo, teatro, shows e leitura de poemas.Valorizaram-se os três livros (Ressurreição, Como Fazer umDisco Independente e Painel Brasileiro) que escreveu. E reconheceu-seque Chico Mário deixara, além <strong>da</strong> esposa e dos filhos,além <strong>da</strong> música, <strong>da</strong> literatura e do humor, as lições imperecíveisde muita luta e, sobretudo, de muita esperança.Amigos de todos os quadrantes reconheceram essaslições, tal como a seguir se transcreve:"Músico de primeira, que toca fácil ou difícil conforme anecessi<strong>da</strong>de, ele vai remexendo o choro, revirando o baião,sacudindo o samba e outras bossas latinas e ladinas, commuito jogo de cintura e o talento que não se compra em hipermercado.Atenção para o bor<strong>da</strong>do do violão e a palavra seca,despi<strong>da</strong> de ornamentos e retórica, deste inconfidente musicalque tira as tragédias de letra. E aposta no poder <strong>da</strong> poesia."(Tárik de Souza, jornalista)"Diz uma <strong>da</strong>s len<strong>da</strong>s indígenas mexicanas que o pequenodeus doente se transformou no sol. O homem que a inspirou232 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>233


certamente se parecia com Chico Mário. Acho que a angústiaque sentimos, quando pensamos em nossos últimos momentos,seria bem menor se pudéssemos antever instantes finaisque não fossem apenas dor e despedi<strong>da</strong> irremediáveis.Quando penso em minha própria morte, digo baixinho: Meaju<strong>da</strong>, Chico Mário - me aju<strong>da</strong> a extrair de tanta sombra umpequeno sol primitivo que fique com aqueles a quem amo eque cresça sem parar, clareando com cintilações puríssimas atreva <strong>da</strong> sau<strong>da</strong>de, e que torne a morte uma coisa inquieta eviva feito a Dança do Mar." (Aldir Blanc, compositor)"Mano Chico, estamos aqui para te ouvir por to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>, a tuaeterni<strong>da</strong>de. Não pare de tocar, nem de compor, siga as on<strong>da</strong>s,as cor<strong>da</strong>s, onde for." (Betinho, sociólogo)"Chico Mário só pensava na música e no Brasil." (AffonsoRomano de Sant´Anna, escritor)"Francisco Mário é um artista absolutamente ligado em suasraízes e que sempre acrescentou em seu trabalho." (NivaldoOrnelas, músico)Francisco Mário é muito mineira e bonita, na forma e no conteúdo."(Sérgio Cabral, jornalista)"Chorinhos, sambas, regionais, serestas, Chico Mário passeavapor todos os estilos <strong>da</strong> MPB. Assim, era querido pelos maisdiferentes artistas." (Lula Branco Martins, jornalista)"Francisco Mário deixou uma obra importante na MPB instrumental.É a sua instigante instrumentação, que casa admiravelmentecom a matéria sonora. Este disco, Retratos, retratauma cultura musical viva e vibrante: a nossa." (RobertoMugiatti, crítico musical)"É impressionante como este rapaz, teimoso, mineiro, constróisua carreira. Feita de composições brilhantes e execuçãogra<strong>da</strong>tivamente aprimora<strong>da</strong>. Com pertinácia e independência,no selo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, está chegando ao nível de nossos melhoresviolonistas." (Maria Helena Dutra, jornalista)"A obra de Chico Mário tem um quase impressionista sabor dechão brasileiro." (Mauro Dias, crítico musical e jornalista)"O Chico eu conheço desde o primeiro LP, Terra, quando eleme ligou chamando para cantar uma faixa. É um supermineiro, muito quieto, na dele, caladão e muito relax." (Joyce,cantora)"Chico deixou para nós uma lição de lucidez e humor, deestratégia política no cultural, de irreverência e humil<strong>da</strong>de,numa combinação única e original." (Luli e Lucin<strong>da</strong>, cantorase compositoras)"Chama-se Francisco Mário o mais novo guerrilheiro <strong>da</strong> MPB.Compositor, cantor e tocador de violão e flauta. A música de234 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>235


"Francisco Mário tem contribuído para a MPB com talento,serie<strong>da</strong>de e digni<strong>da</strong>de." (Roberto Moura, crítico musical)"Além de irmão do Henfil e do Betinho, Francisco Mário eraum ótimo violonista e fértil compositor." (Fábio Rodrigues, jornalista)"Francisco Mário: Com atraso indesculpável (mesmo assim,peço que me desculpe), venho agradecer-lhe o belo presentede sua voz e de suas composições musicais no LP tão mineiroe tão cheio de sugestões e sensações para quem guar<strong>da</strong>Minas no coração." (Carlos Drummond de Andrade, poeta).(A<strong>da</strong>ptado de texto de autoria de Nívia Souza, a que foram somados os depoimentosdos amigos)236 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>237


Frederico Ozanam PereiraFrederico Ozanam Pereiranasceu no dia 10 de dezembro de1937, em Uberlândia, MinasGerais, filho de Custódio PereiraSobrinho e Dulce Alves Pereira.Pertenceu a uma família numerosa,<strong>da</strong> qual faziam parte osirmãos Marcelo, Sônia Maria, ÂngelaMaria, Lúcia Beatriz, LuizEugênio, Vicente de Paulo, Franciscode Assis, Custódio e MariaAuxiliadora Pereira.Optando pela vi<strong>da</strong> religiosa,entrou no seminário de Uberabaaos 12 anos de i<strong>da</strong>de. Ordenou-sepadre em 1963, tendo completado o curso superior deTeologia. Posteriormente, concluiu o curso de Licenciatura Plenaem Filosofia pela Universi<strong>da</strong>de Católica de Minas Gerais, hojePUC-Minas. Continuando os estudos, especializou-se emGerência de Marketing pela Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica doRio de Janeiro (PUC/RJ) e em Marketing Financeiro pelaFun<strong>da</strong>ção Getúlio Vargas (FGV), também no Rio de Janeiro.Em 1968, em nova opção em sua vi<strong>da</strong> pessoal, pediu licençados votos celibatários para se casar. Casou-se com a publicitáriaMaria Luíza de Souza Pereira, com quem teve os filhos FredericoAugusto, Marcus Felipe e Cybelle Luísa de Souza Pereira. Afamília foi amplia<strong>da</strong> com a chega<strong>da</strong> de noras e netos: Laura, filhade Cybelle e Ricardo, e André, filho de Frederico e Aline.Desfrutou de um convíviofamiliar pleno com sua esposa, filhose netos. Adorava receber os amigose ficava extremamente feliz com acasa cheia.Teve trajetória profissional brilhante.Foi professor em várias universi<strong>da</strong>des:PUC-Minas, Facul<strong>da</strong>dede Ciências Médicas em Belo Horizontee Universi<strong>da</strong>de Federal de MinasGerais (UFMG). No setor privado,de 1969 a 1977, foi superintendentede Marketing do Grupo FinanceiroBMG, diretor-gerente <strong>da</strong> Brasife vice-presidente do Instituto Nacional de Desenvolvimento doAço (INDA). De 1977 a 1979, foi diretor <strong>da</strong> Norton Propagan<strong>da</strong> ediretor <strong>da</strong> L&F Publici<strong>da</strong>de. Em 1985, fundou a Facta Comunicaçãoe Marketing.Paralelamente, dedicou-se à leitura, produziu numerososescritos e foi autor de frases memoráveis:"Mesmo com to<strong>da</strong>s essas coisas acontecendo, ca<strong>da</strong> um denós ain<strong>da</strong> é capaz de procurar a estrela que brilha de milem mil anos.""Ser crítico é saber tirar a ver<strong>da</strong>de do seu esconderijo, desua camuflagem. É saber ir além <strong>da</strong>s aparências e do queé falso. Ser crítico é assumir o ser humano, o ser conscienteno meio socialaparente, <strong>da</strong>s interpretaçõesmanipula<strong>da</strong>s. Semmedo de ser incompreendido,de incomo<strong>da</strong>r, deser dissonante numasocie<strong>da</strong>de permissiva."238 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>239


Fez incursões também na poesia. Para homenagear a primeiraneta, ele escreveu:LauraQuando vale o sorrisoQuanto vale a beleza infinitaDessa pequena i<strong>da</strong>de?ValeUma partilha <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>deValeUm pe<strong>da</strong>ço do mundoValeUma razão de viverE acreditar em tudo o que existeE a Laura existe.Quando, nos anos 60, implantou-se no Brasil o regime militar,Frederico Ozanam, ou padre Ozanam, como era chamado,engajou-se nos movimentos políticos de oposição. Acompanhouo surgimento <strong>da</strong> Juventude Universitária Católica (JUC) e JuventudeOperária Católica (JOC), organizações que lutavamcontra as injustiças e, principalmente, contra as prisões e torturas.Padre Ozanam, por coincidência ou missão, sempre estavanos lugares de conflito, onde, sem pedir autorização, celebravauma missa envolvente, com os violões e as canções que embalavamos momentos que marcaram a época.Na vila operária, próxima ao bairro Coração Eucarístico, amissa reza<strong>da</strong> por padre Ozanam se tornou marco revolucionárionaquele ano de 1967, quando o regime militar ganhava força erompia as barreiras do respeito humano e <strong>da</strong>s diferenças sociopolíticas.Em passeatas, protestos, reuniões e congressos estu-<strong>da</strong>ntis, a sua presença era deseja<strong>da</strong> e marcante. Chegou a encabeçaruma lista em que se manifestava o repúdio à ditaduramilitar.Considerado mentor intelectual de documento que questionavanão apenas a ditadura militar, mas também o celibato eque seria tomado como ver<strong>da</strong>deiro manifesto, padre Ozanamrespondeu a processo por subversão. Perseguido pelo Departamentode Ordem Política e Social (DOPS), foi obrigado a esconder-sedurante os últimos meses de 1968. Em maio de 1969, suacasa no Rio de Janeiro foi invadi<strong>da</strong> e vasculha<strong>da</strong>; sua esposa Malu,grávi<strong>da</strong> do primeiro filho, foi impedi<strong>da</strong> de se aproximar dele.Ozanam foi preso, arrastado e levado para Belo Horizonte, ondeficou detido por mais de duas semanas no 12º Regimento deInfantaria.Os sofrimentos não lhe trouxeram desânimo. Acompanhoude perto os movimentos pela Anistia e Diretas Já. Voltaram oscomícios e as passeatas. Muitos amigos retornaram do exílio. Oex-padre transformou antigas palavras de ordem em premiadosslogans. Outdoors com as cores do Brasil moderno, que começavaa ser desenhado, <strong>da</strong>vam nova conotação às cores verde, amarela,azul e branca. Um imenso mar de bandeiras vermelhas seespalhava pelo País.Ozanam sempre acreditou num País legitimado pelo povoe para o povo. Acreditou e trabalhou pela eleição do presidenteLuiz Inácio Lula <strong>da</strong> Silva, em to<strong>da</strong>s as suas quatro tentativas.Mas sobreveio uma noite clara, após o eclipse <strong>da</strong> lua quehavia acontecido dois dias antes. Foram mais de duas horasolhando para o céu e torcendo para que as nuvens não atrapalhassemaquele momento mágico. Naquela noite clara, um forteabraço no neto. Emoção que invadiu a alma. Era o combustívelque faltava para que ele retornasse ao lugar de onde veio. Ojardim estava lindo, bem cui<strong>da</strong>do como sempre. Mas os olhosestavam voltados, mais um vez, para o infinito. A viagem foi rápi<strong>da</strong>.Ele estava confortavelmente instalado numa cadeira nasala e, em silêncio absoluto, partiu.240 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>241


E como não poderia deixar de ser, deixou um vazio enorme.RUA FREDERICO OZANAN242 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>243


Geraldino Heleodoro de CarvalhoGeraldino Heleodoro de Carvalhonasceu em Diamantina, Minas Gerais,em 24 de setembro de 1908. Foi oprimeiro filho de Dionísio Heleodoro deCarvalho e de Georgina Águi<strong>da</strong> de Carvalho,partilhando sua infância comoito irmãos. A família numerosa em quenasceu se repetiria naquela que elepróprio constituiria mais tarde: casadocom Juracy Palmeira de Carvalho, tevenove filhos, todos batizados com nomesindígenas, o que denunciava onacionalismo do pai: Yara, Guaraciaba,Ibayara, Ibiratan, Djaci, Irani, Ibirajara, Zagma, Diacuí, Iracema.Embora tivesse apenas escolari<strong>da</strong>de de nível médio, Geraldinolia muito, principalmente revistas produzi<strong>da</strong>s em paísescomunistas, como União Soviética, Tchecoslováquia, Polônia eAlemanha Oriental, que retratavam a quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> de seuspovos, todos com as suas necessi<strong>da</strong>des básicas muito bem atendi<strong>da</strong>s.Dessa literatura moldou e fun<strong>da</strong>mentou a sua formaçãosocialista. Gostava também de revistas produzi<strong>da</strong>s no Brasil, especialmente<strong>da</strong> revista Em Guar<strong>da</strong> para a Defesa <strong>da</strong>s Américas,que tratava dos assuntos referentes à segun<strong>da</strong> guerra mundial,e de uma outra que abor<strong>da</strong>va a causa indígena, a qual lhe deuinspiração para batizar os filhos.Em Pirapora, Minas Gerais, onde passara a residir, liderouos movimentos denominados O que é Comunismo Brasileiro, Lutapela Reforma Agrária e Luta Camponesa. Formou lideranças parao movimento Boinas Vermelhas no Triângulo Mineiro, participoudo movimento pela nacionalização do petróleo, que ficou conhecidocomo O Petróleo é Nosso, e dos movimentos contra o enviode tropas brasileiras para a guerra <strong>da</strong> Coréia e Canal de Suez.Geraldino realizava reuniões do Partido Comunista Brasileiro(PCB), já na clandestini<strong>da</strong>de antes de 1964, em sua residênciaem Pirapora, Minas Gerais. Dessas reuniões participavamfiguras de destaque do partido, tais como João Amazonas,Porfírio Francisco de Souza (camara<strong>da</strong> Toledo) João Leal, SinvalBambirra, José Pacheco <strong>da</strong> Silva e Roberto Drumond (camara<strong>da</strong>Lima), que acabou escrevendo uma crônica sobre Geraldino.O horário escolhido eram sempre as madruga<strong>da</strong>s, para nãodespertar a atenção dos delatores. Mas, mesmo assim, elesacabaram se infiltrando no movimento e foram responsáveis pelasintimações e depoimentos que levavam o líder freqüentementeà Capitania dos Portos <strong>da</strong> Marinha, na própria ci<strong>da</strong>de de Pirapora.Essas delações constantes acabaram atribuindo a eleuma sensível notorie<strong>da</strong>de política, a qual lhe acarretou perseguiçõesde to<strong>da</strong> ordem, que interferiram negativamente em suavi<strong>da</strong> profissional e familiar.A partir de 1964, após o Golpe Militar, Geraldino passou aser constantemente preso e torturado tanto nas dependências <strong>da</strong>Marinha, como no Departamento de Ordem Política e Social deMinas Gerais (DOPS/MG), Penitenciária de Linhares, de Juiz deFora, e outros locais ignorados, onde chegava a ficar por períodode até 45 dias e era torturado de diversas maneiras para que confessassesuas ativi<strong>da</strong>des políticas e delatasse os seus companheiros,o que jamais aconteceu.Desnecessário mencionar que durante seus desaparecimentossua esposa, filhos e familiares ficavam em completo desespero,sem saber se o veriam novamente com vi<strong>da</strong>, pois tinhamconhecimento dos métodos <strong>da</strong> ditadura para obter confissões eeliminar inimigos políticos.Mas na<strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>va Geraldino, que, na ver<strong>da</strong>de, praticamenteabriu mão de sua vi<strong>da</strong> familiar e se esqueceu do bem-244 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>245


estar e do futuro de seus filhos em benefício de sua militânciapolítica. Tudo o que ele fez em vi<strong>da</strong>, numa luta obstina<strong>da</strong>, foipara o bem do Brasil. E a família, ao final, acabou sendo umagrande vítima. O clima de contínuo sobressalto, o risco <strong>da</strong>s perseguições,as freqüentes prisões e as notícias <strong>da</strong>s torturas deixaramseqüelas emocionais profun<strong>da</strong>s nas crianças, que perdurariamdurante to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> adulta. As cenas de um pai honesto,sendo algemado, humilhado e incompreendido marcaramcom sulcos irremovíveis ca<strong>da</strong> um <strong>da</strong>queles muitos filhos, testemunhase personagens de uma trágica história.Quando a ditadura militar chegou ao fim no Brasil, quandoa abertura democrática se concretizou, quando a anistia descortinounovos horizontes e quando de novo se respirou liber<strong>da</strong>deno País, sementes como as planta<strong>da</strong>s por Geraldino frutificavam.Na<strong>da</strong> vinha de graça ou caíra do céu. Os novos temposeram produtos de fortes sementes e essas haviam sido irriga<strong>da</strong>scom o suor, o sangue e a luta permanentes de homens como Geraldino,morto na pobreza em Pirapora, vivo para sempre emgrandeza na história do Brasil.RUA GERALDINO HELEODORO DE CARVALHO246 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>247


Geraldo Magela de Almei<strong>da</strong>Geraldo Magela de Almei<strong>da</strong> nasceu em Minas Novas,Minas Gerais, no dia 11 de setembro de 1939, filho de ManoelMatias de Almei<strong>da</strong> e Lígia Otoni de Almei<strong>da</strong>.Formou-se pela Facul<strong>da</strong>de de Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (UFMG) em 1967. À formação jurídicaacrescentou a sensível consciência política que o tornou militantedo Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde muito jovem.Jurista e militante, o Dr. Geraldo Magela, como era conhecido,foi intransigente defensor dos direitos fun<strong>da</strong>mentais doci<strong>da</strong>dão, especialmente durante os anos de chumbo, quando aviolência, a perseguição e o arbítrio se instalaram no País.Nessa condição, destacou-se como advogado de diversossindicatos de trabalhadores, como os dos hidrelétricos, eletricistase tecelões, bem como <strong>da</strong> União Nacional dos ServidoresPúblicos.Destacou-se também como advogado de um grandenúmero de presos políticos. Sem considerar a corrente ideológicaa que pertenciam, o Dr. Geraldo Magela defendeu militantesprovenientes <strong>da</strong> Corrente Revolucionária de Minas Gerais (COR-RENTE), Comando de Libertação Nacional (COLINA), AçãoPopular (AP), Ação Libertadora Nacional (ALN), Ala Vermelha,Partido Comunista do Brasil (PC do B), Partido ComunistaBrasileiro (PCB), Movimento de Libertação Popular (MOLIPO) eoutros. Teve atuação destaca<strong>da</strong> em 90% dos processos que tramitaramna Auditoria Militar de Juiz de Fora, no período de 1964 a1979. Trabalhou para a defesa de inúmeros estu<strong>da</strong>ntes, jornalistas,sindicalistas e militantes <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong>. Um dos maioresprocessos em que atuou foi o <strong>da</strong> CORRENTE, quando defendeumais de uma centena de acusados, num julgamento que durouuma semana. Outro processo importante foi o de defesa de umcondenado à pena de morte, cuja revogação o Dr. Magela conseguiuno Superior Tribunal Militar (STM), em Brasília.Paralelamente, foi fun<strong>da</strong>dor do Centro Brasil Democrático(CEBRADE), do Comitê Brasileiro de Anistia (CBA) e advogadodo Movimento Feminino pela Anistia (MFPA).Geraldo Magela de Almei<strong>da</strong> foi casado, em primeiras núpcias,com Regina Albino Andrade Almei<strong>da</strong>, com quem teve asfilhas Maria Regina e Fernan<strong>da</strong> Alina. Depois, casou-se com DéaMaria <strong>da</strong> Fonseca, sua companheira até os últimos momentos,com quem teve um filho, Cláudio Daniel Fonseca de Almei<strong>da</strong>.Ao falecer, no dia 15 de novembro de 1993, aos 54 anos,Geraldo Magela de Almei<strong>da</strong> era reconhecido símbolo de crençana liber<strong>da</strong>de, de perseverança na luta e de confiança no futuro,valor que inscreveu definitivamente sua memória nas páginasmais brilhantes <strong>da</strong> libertária história de Minas.248 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>249


Gerosina Silva PereiraFilha de Antônio Soares de Arru<strong>da</strong> e de Laura Soares Silva,Gerosina nasceu no dia 15 de julho de 1918 em São Pedro deJequitinhonha, no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais. De famíliapobre, Zizinha, nome carinhoso pelo qual se tornou conheci<strong>da</strong>,desde cedo começou a trabalhar como operária na indústria de confecção.Sempre trabalhando como operária, foi viver em São Paulo.Em 1938, casou-se com Antônio Ubaldino Pereira, comquem teve três filhos.Com o Golpe Militar de 1964, acabouse ligando à Vanguar<strong>da</strong> PopularRevolucionária (VPR) e foi presa incomunicávelem fins de 1970. Seu marido, queestava preso desde 1969, foi banido parao Chile em 13 de janeiro de 1971. Assimque foi solta, Zizinha partiu para aquelePaís. Ali viveu e trabalhou até o golpe desetembro de 1973, quando o casal novamentese viu separado pelas circunstâncias:enquanto Antônio Ubaldino viajoupara a Argentina e <strong>da</strong>í para a Suécia,Zizinha asilou-se no Panamá. Mesmosem documentos, prosseguiu suaviagem com o objetivo de se reunir aoamigo e companheiro de vi<strong>da</strong> e de lutas.Finalmente o casal se reuniu em Lund.Em 1974, começou a trabalhar como restauradora de objetosno Museu Lund. Além disso, presidia o Comitê Brasileiro deMulheres Democráticas, fun<strong>da</strong>do na ci<strong>da</strong>de de Lund.250 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>251


Embora nunca tivesse deixado de desejar retornar aoBrasil e rever seus filhos, netos e amigos, tais desejos não sematerializaram: em 9 de setembro de 1978, Zizinha morreu decâncer, no exílio.Seu corpo foi cremado e as cinzas leva<strong>da</strong>s para São Paulo,onde viviam seus familiares. Em Lund, a sala onde os exiladosbrasileiros se reuniam para lutar pelo retorno ao Brasil recebeuseu nome, justa e mereci<strong>da</strong> homenagem àquela que tão bemencarnou a vi<strong>da</strong> de milhares de mulheres brasileiras.252 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>253


Getúlio D´Oliveira CabralGetúlio D´Oliveira Cabral nasceu em 4de abril de 1942, em Espera Feliz, MinasGerais, filho de Manoel D' Oliveira e LindrosinaCabral de Souza.Cursou o Ensino Fun<strong>da</strong>mental na EscolaDarcy Vargas, em Caxias, Rio de Janeiro, ondesua família passara a residir. Casou-se comMaria de Lourdes, com quem teve dois filhos.Trabalhando como escriturário na FábricaNacional de Motores, ain<strong>da</strong> muito joveminiciou sua militância na União <strong>da</strong> Juventude Comunista. Maistarde incorporou-se ao Centro Pró-Melhoramento de Caxias.Filiou-se ao Sindicato dos Metalúrgicos e participou <strong>da</strong>s lutas desua categoria profissional. Foi dirigente regional do PartidoComunista Brasileiro (PCB) e, posteriormente, dirigente nacionaldo Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).Morto sob tortura no dia 29 de dezembro de 1972, aos 31 anos,no Destacamento de Operações de Informações do Centro deOperações de Defesa Interna do Rio de Janeiro (DOI/CODI/RJ),Getúlio foi uma <strong>da</strong>s vítimas do massacre que também vitimououtros companheiros de luta.Os relatórios dos Ministérios <strong>da</strong> Marinha e <strong>da</strong> Aeronáuticadizem que Getúlio "faleceu dia 29 de dezembro de 1972, no Rio deJaneiro em tiroteio com agentes de segurança...". Já o relatório <strong>da</strong>Anistia Internacional diz que ele foi morto e colocado em um carroincendiado, sendo seu corpo parcialmente carbonizado, após tersido torturado no DOI/CODI no Rio de Janeiro.254 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>255


Gildo Macedo Lacer<strong>da</strong>GETÚLIO D´OLIVEIRA CABRALGildo Macedo Lacer<strong>da</strong> nasceu emItuiutaba, Minas Gerais, em 8 de julho de1949, filho de Célia e Agostinho NunesLacer<strong>da</strong>, pequenos sitiantes nas proximi<strong>da</strong>desde Uberaba, ci<strong>da</strong>de onde o meninose faria moço, cumpriria os anos de seusestudos Fun<strong>da</strong>mental e Médio, descobririaas ativi<strong>da</strong>des radiofônicas e de teatroamador, integraria a Moci<strong>da</strong>de Espírita edesenvolveria aquele espírito crítico eaquela capaci<strong>da</strong>de de liderança que olevariam a opor-se ao regime militar e alutar por uma socie<strong>da</strong>de de oportuni<strong>da</strong>desiguais para todos, tudo culminando com sua morte noRecife, Pernambuco, no final de outubro de 1973 - provavelmenteno dia 28 -, aos 24 anos de i<strong>da</strong>de, assassinado pelas forças<strong>da</strong> repressão.Destacando-se desde adolescente como liderança no meioestu<strong>da</strong>ntil, Gildo tornou-se, em 1967, militante <strong>da</strong> Ação Popular(AP), organização de esquer<strong>da</strong> de origem católica, que posteriormentetransitou para uma posição claramente marxista-leninista,incorpora<strong>da</strong> inclusive em sua sigla (APML).Na Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (UFMG), ondeiniciou em 1968 o curso de Economia, Gildo participou do DiretórioAcadêmico (DA) de sua Facul<strong>da</strong>de, atuou no DiretórioCentral dos Estu<strong>da</strong>ntes (DCE) e foi um dos delegados mineirosno 30º Congresso <strong>da</strong> União Nacional dos Estu<strong>da</strong>ntes (UNE) emIbiúna, São Paulo, dissolvido pelas forças <strong>da</strong> repressão, com a256 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>257


conseqüente prisão de todos os seus participantes. Gildo, umdos presos, foi conduzido para Belo Horizonte, onde permaneceuencarcerado por mais de 30 dias.Depois de libertado, Gildo retomou a militância na AP, ajudoua reorganizar a União Estadual dos Estu<strong>da</strong>ntes de MinasGerais (UEE/MG) e participou <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de do 30º Congresso<strong>da</strong> UNE realiza<strong>da</strong> clandestinamente. Em 1969, na gestão deJean Marc Van Der Weid, Gildo iniciou sua participação na UNEcomo assessor especial. Sentindo intensificar-se a repressão emMinas entre junho e julho de 1969, mudou-se para o Rio deJaneiro, vindo a ser eleito vice-presidente <strong>da</strong> UNE na gestãoseguinte. Em 1970, em razão de sua militância política, teve seudireito de estu<strong>da</strong>r cassado pelo Decreto 477, editado em fevereirode 1969 pelo Marechal Arthur <strong>da</strong> Costa e Silva.Mas a perseguição não parou por aí. Gildo estava, a essaépoca, definitivamente inscrito no alvo <strong>da</strong> repressão política.Material encontrado no acervo do antigo Departamento deOrdem e Política Social (DOPS) paulista dá conta de que oCentro Nacional de Informações <strong>da</strong> Marinha (CENIMAR), órgãoque se especializara na investigação e repressão <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des<strong>da</strong> AP, tinha documenta<strong>da</strong>s tanto a "trajetória histórica <strong>da</strong> organização,as siglas, as estruturas nacional e regional" como arelação de seus quadros, "com codinomes, nomes ver<strong>da</strong>deiros,estrutura passa<strong>da</strong> e atual a que o militante ou dirigente pertence":entre esses quadros, com foto enome completo, está Gildo MacedoLacer<strong>da</strong>, identificado como um dosprincipais <strong>da</strong> AP e também como dirigente<strong>da</strong> UNE.Acirrando-se a perseguição nogoverno do General Emílio GarrastazuMédici, com a prisão e a tortura cruelde centenas de ativistas <strong>da</strong> organização,Gildo foi obrigado a viver e a atuarna clandestini<strong>da</strong>de. Foi deslocadoentão para São Paulo, onde continuou desempenhando papeldestacado na UNE, tendo realizado reuniões <strong>da</strong> enti<strong>da</strong>de na Capitalpaulista, em Curitiba, no Paraná, e em Porto Alegre, no RioGrande do Sul. Mas, em dezembro de 1970, novas prisões entreas fileiras <strong>da</strong> AP em São Paulo obrigaram Gildo a voltar para oRio de Janeiro.E o cerco <strong>da</strong> repressão prosseguia. Em 16 de agosto de1972, o Ministério <strong>da</strong> Justiça/Departamento de Polícia Federalde Brasília enviou aos órgãos de informações de todo o Brasildocumento contendo um resumo histórico <strong>da</strong> APML e um ver<strong>da</strong>deiroroteiro de como interrogar e torturar militantes <strong>da</strong> organização,desde os de base até as direções locais, regionais enacionais e com detalhes do que perguntar a ca<strong>da</strong> militante. Umanexo ao documento fornecia a lista dos membros <strong>da</strong> AP: <strong>da</strong> listaconstava o nome de Gildo Macedo Lacer<strong>da</strong>, nela identificadocomo um dos principais quadros <strong>da</strong> organização.No início de 1972, quando a AP vivia um intenso debateinterno sobre o caráter <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira e os rumos <strong>da</strong>luta contra a ditadura - uma que identificava a socie<strong>da</strong>debrasileira como predominantemente feu<strong>da</strong>l e, por essa razão,defendia a guerra popular prolonga<strong>da</strong>, à maneira chinesa, comoo caminho para a derrota <strong>da</strong> ditadura e do imperialismo norteamericanono País, e outra que entendia que o Brasil era umasocie<strong>da</strong>de capitalista, ain<strong>da</strong> que periférica, e por isso defendia aimplantação do socialismo no País, por meio de uma luta populararma<strong>da</strong> com participação massiva dos trabalhadores docampo, mas principalmente dos operários e do povo <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>dese que ao mesmo tempo derrubaria a ditadura -, Gildo, vinculadoà segun<strong>da</strong> tendência, chama<strong>da</strong> a esquer<strong>da</strong> <strong>da</strong> AP, foi transferidopara Salvador, Bahia, onde passou a integrar a direção regional<strong>da</strong> sigla no Estado, tarefa que incluía rearticular as bases dosmovimentos estu<strong>da</strong>ntil e operário.Em Salvador, conheceu, em junho de 1972, a jornalistaMariluce de Souza Moura, 21 anos, também militante <strong>da</strong> APML.Um mês depois começaram a namorar, três meses depois se258 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>259


casaram. Em sua última carta para a família, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 17 desetembro de 1973, Gildo manifestou sua preocupação por nãoreceber cartas dos pais e irmãs - acreditava em extravio de correspondência.Falava também de seu trabalho (ele vivia e trabalhavaem Salvador clandestinamente, com o nome de Cássiode Oliveira Alves), de melhoria do salário e de uma próxima i<strong>da</strong>a Uberaba no fim do mês. Essa viagem foi efetivamente feita e,na passagem pelo Rio de Janeiro, soube, na companhia deMariluce, <strong>da</strong>s que<strong>da</strong>s que haviam ocorrido com militantes <strong>da</strong> AP.No dia 22 de outubro de 1973, em Salvador, por volta domeio-dia, Gildo foi preso ao sair de sua casa na av. LuísTarquínio, bairro <strong>da</strong> Boa Viagem. Na mesma hora, Mariluce, queestava grávi<strong>da</strong> de um mês, foi presa em frente ao ElevadorLacer<strong>da</strong>, na praça Cairu, em pleno centro de Salvador. Nomesmo dia foram presos uma estu<strong>da</strong>nte, um bancário e os jornalistasOl<strong>da</strong>ck Miran<strong>da</strong> e Nadja Magalhães Miran<strong>da</strong>. Os seisforam levados à noite para a Superintendência <strong>da</strong> PolíciaFederal, onde escreveram depoimentos de próprio punho, sendodepois reunidos em uma sala, onde ficaram sob vigilância, sempoder se comunicar uns com os outros. No dia 23, Gildo e Ol<strong>da</strong>ckforam transferidos para o Quartel do Barbalho, onde foram torturados- Ol<strong>da</strong>ck presenciou Gildo sendo empurrado por militarespor causa de uma feri<strong>da</strong> no pé. Mariluce foi leva<strong>da</strong> para oQuartel do Forte de São Pedro, onde ficaria presa por 42 dias.Ven<strong>da</strong><strong>da</strong>, no dia 25 de outubro foi leva<strong>da</strong> a um local ignorado etortura<strong>da</strong>, quando um dos agentes lhe disse que Gildo fora levadopara uma longa viagem. Na ver<strong>da</strong>de, Gildo fora transferidopara o Destacamento de Operações de Informações do Centro deOperações de Defesa Interna (DOI/CODI) de Recife entre essedia e 26 de outubro.No dia 1º de novembro, Mariluce foi informa<strong>da</strong> <strong>da</strong> mortede Gildo, que ocorrera provavelmente no dia 28 de outubro. Osórgãos de repressão fizeram publicar nos jornais do dia a versãode que, ao ser interrogado, Gildo teria fornecido a informação dolocal onde se encontraria com José Carlos <strong>da</strong> Mata Machado ecom uma terceira pessoa, de nome Antônio. Levado ao local, aesquina <strong>da</strong> av. Caxangá com a rua General Polidoro, no centrode Recife, teria havido um tiroteiro no qual Gildo teria sidobaleado por Antônio e José Carlos também teria sido morto emdecorrência do incidente. A farsa <strong>da</strong> versão oficial, o Teatro <strong>da</strong>Caxangá ou a prática do Teatro dos Mortos, além de encobrir osbárbaros assassinatos sob tortura de Gildo e José Carlos, tentouencobrir o assassinato de Paulo Stuart Wright, o Antônio, queteria conseguido fugir. Na ver<strong>da</strong>de, Paulo Stuart Wright tinhasido preso pelo DOI/CODI de São Paulo, em setembro de 1973,quando foi assassinado, tendo sido <strong>da</strong>do como desaparecidodesde então.A prisão e o assassinato de Gildo Macedo Lacer<strong>da</strong> e JoséCarlos <strong>da</strong> Mata Machado não foram fatos isolados e, sim, fizeramparte <strong>da</strong> ofensiva <strong>da</strong> ditadura contra a AP em 1973, quandoa violência do governo do General Médici, com o conhecimento260 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>261


e consentimento do sucessor General Ernesto Geisel, veio comto<strong>da</strong> a fúria contra os militantes <strong>da</strong> organização em São Paulo,Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais. Numa operaçãocoordena<strong>da</strong> pelo Centro de Informações do Exército (CIE),dezenas e dezenas de militantes <strong>da</strong> AP foram presos e torturadose vários deles foram mortos sob tortura. Entre esses últimoscontam-se, além de Gildo Macedo Lacer<strong>da</strong> e José Carlos <strong>da</strong>Mata Machado: o ex-deputado Paulo Stuart Wright, dirigente <strong>da</strong>AP, preso em São Paulo entre 4 e 5 de setembro de 1973 peloDOI/CODI, assassinado a seguir e <strong>da</strong>do como desaparecido;Honestino Guimarães, presidente <strong>da</strong> UNE; Humberto Câmara,ex-diretor <strong>da</strong> UNE; vários militantes presos no Rio em outubrode 1973, assassinados a seguir e <strong>da</strong>dos como desaparecidos; osestu<strong>da</strong>ntes Eduardo Collier e Fernando Santa Cruz, militantesno Rio de Janeiro, assassinados e <strong>da</strong>dos como desaparecidos.Para desfechar sua ofensiva contra a AP, a ditadura contoucom a colaboração de algumas pessoas liga<strong>da</strong>s à própria organização.Foi a partir delas que o CIE e demais órgãos de repressãopromoveram o assalto sangrento à organização. Uma dessaspessoas foi Gilberto Prata Soares, um ex-militante na déca<strong>da</strong> de70 e que se tornou informante dos órgãos de repressão: conformeele mesmo revelou, anos depois, no início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 90, ementrevistas aos jornais e em depoimento ao ex-deputadoNilmário Miran<strong>da</strong>, ele teve participação direta nas prisões doseu cunhado José Carlos <strong>da</strong> Mata Machado, de Gildo MacedoLacer<strong>da</strong> e de outros militantes em Salvador e em Recife.A responsabili<strong>da</strong>de pelas prisões e mortes dos militantes<strong>da</strong> AP é <strong>da</strong> ditadura militar. No caso de Gildo Macedo Lacer<strong>da</strong> eJosé Carlos <strong>da</strong> Mata Machado, o próprio governo militar assumiua responsabili<strong>da</strong>de, sendo que os dois haviam sido vistosain<strong>da</strong> vivos e sendo torturados na prisão. Um documento encontradono Arquivo Edgard Leuenroth, na Universi<strong>da</strong>de Estadualde Campinas (UNICAMP), em papel timbrado do Ministério doExército, com <strong>da</strong>ta de 5 de novembro de 1973, assinado peloCoronel Oliveiros Lana de Paula, chefe do CODI 6 <strong>da</strong> Bahia, edirigido ao Coronel Luiz Arthur, superintendente <strong>da</strong> PolíciaFederal naquele Estado, informa que "como coroamento <strong>da</strong>sinvestigações relaciona<strong>da</strong>s com a desarticulação de organizaçõessubversivas de cunho marxista-leninista e que vinhamsendo processa<strong>da</strong>s desde junho 73 nesta área, sob a responsabili<strong>da</strong>dee condução direta do CIE, aquele órgão delegou aoCODI 6 o prosseguimento <strong>da</strong> operação e prisões no dia 22 de outubrode 73 dos elementos abaixo citados(...)". Entre os nomesestá o de Gildo Macedo Lacer<strong>da</strong>, "preso em 22 de outubro de 73,nesta ci<strong>da</strong>de". O documento informa também que Gildo "foi entreguea uma equipe do CIE no dia 26 de outubro paraprosseguimento dos interrogatórios". Dias depois, a ditadura militaranunciava a morte de Gildo Macedo Lacer<strong>da</strong> e José Carlos<strong>da</strong> Mata Machado.Na ver<strong>da</strong>de, Gildo estava marcado para morrer desde muitotempo. Era um dos militantes e dirigentes de organizações deesquer<strong>da</strong> cujo nome constava de uma lista <strong>da</strong> ditadura para aprisão e a morte. A lista dos dirigentes <strong>da</strong> AP que seriam mortosfoi mostra<strong>da</strong> ao líder camponês Manoel Conceição em 1972pelos policiais, quando ele estava preso e sendo torturado noCENIMAR e DOI/CODI do Rio de Janeiro. Segundo ManoelConceição, figuravam na lista, entre outros nomes, os de PauloStuart Wright, Honestino Guimarães, Humberto Câmara, JoséCarlos <strong>da</strong> Mata Machado e Gildo Macedo Lacer<strong>da</strong>, todos assassinadosem 1973; também lá estavam os nomes de outros dirigentesnacionais <strong>da</strong> AP, entre eles o de Jair Ferreira de Sá e o deDoralina Rodrigues Carvalho, que teriam sido mortos setivessem sido presos.Por conta <strong>da</strong> pressão <strong>da</strong> opinião pública, o corpo de JoséCarlos foi entregue a seus familiares, em uma urna lacra<strong>da</strong>. Masas famílias dos outros militantes <strong>da</strong> AP assassinados naqueleperíodo não puderam enterrar seus mortos.Mariluce, depois de liberta<strong>da</strong> no dia 3 de dezembro de1973, tentou sistematicamente recuperar o corpo de Gildo: emseu depoimento e em seu julgamento na Auditoria Militar exigiu262 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>263


a devolução do corpo à família, contratou um advogado, estabeleceucontatos com a Igreja. Em janeiro de 1974, quando conseguiuviajar a Uberaba, os pais de Gildo se juntaram a ela emsua luta. Mas as circunstâncias políticas tornavam inócuas to<strong>da</strong>a ação nesse sentido.Em 1991, pesquisas do Grupo Tortura Nunca Mais nosarquivos do DOPS de Pernambuco descobriram que Gildo foraenterrado como indigente no Cemitério <strong>da</strong> Várzea, em Recife,tendo seu corpo sido necropsiado no Necrotério Público de SantoAmaro, para onde havia sido encaminhado pelo delegado JorgeTasso de Souza. Os restos mortais de Gildo foram, em segui<strong>da</strong>,transferidos para a vala comum no Buraco do Inferno e, em 1966,para outra vala comum no Cemitério Parque <strong>da</strong>s Flores, essauma vala a céu aberto, o que tornava impossível a identificação<strong>da</strong> ossa<strong>da</strong>. Mariluce, que tanto lutou pela recuperação do corpode Gildo, travou também a batalha pelo reconhecimento <strong>da</strong>paterni<strong>da</strong>de de sua filha, que nasceu em 18 de junho de 1974,quase oito meses depois <strong>da</strong> morte do pai.A Comissão Especial forma<strong>da</strong> pela Lei n º 9.140/95 reconheceupor unanimi<strong>da</strong>de, em 18 de janeiro de 1996, a responsabili<strong>da</strong>dedo Estado pela morte de Gildo Macedo Lacer<strong>da</strong>.Postumamente, ele recebeu a Me<strong>da</strong>lha Major Eustáquio (fun<strong>da</strong>dorde Uberaba), numa proposta do vereador Lauro Guimarães,em 1 º de maio de 1993; deu seu nome ao DCE <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>dede Uberaba, denominado DCE Gildo Macedo Lacer<strong>da</strong>em 24 de outubro de 1980; recebeu a Me<strong>da</strong>lha Tributo à <strong>Utopia</strong>,<strong>da</strong> Câmara Municipal de Belo Horizonte, em 31 de março de2004, ao se contarem 40 anos do Golpe Militar de 1964.(Condensado a partir de texto de autoria de Tessa Moura Lacer<strong>da</strong>, MariluceMoura e Otto Filgueiras, <strong>da</strong>tado de São Paulo, aos 19 de maio de 2004)Depoimento <strong>da</strong> mãe de Gildo, Célia Garcia MacedoLacer<strong>da</strong>:Meu saudoso filho, Gildo Macedo Lacer<strong>da</strong>, foi um moçonotável, simpático e justo, empreendedor e dinâmico. Viviasempre rodeado de bons amigos e por onde passava iasempre conquistando novas amizades, isto graças à suaafabili<strong>da</strong>de, ao seu coração magnânimo, à sua grandezade alma. Era amigo <strong>da</strong> paz e <strong>da</strong> justiça. Seu maior desgostoera ver alguém ser pisoteado sofrendo calami<strong>da</strong>desinjustamente. Era possuidor de um coração generoso enobre, vivia sempre <strong>da</strong>ndo o melhor de si em prol <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de.Ficamos arrasados com tudo o que aconteceu como nosso querido Gildo. Ficamos também decepcionadoscom o cinismo por parte dos seus algozes e pelo consentimento<strong>da</strong>quele governo déspota. Gildo morreu como morremtodos os heróis, de cabeça ergui<strong>da</strong> e consciência tranqüila.Seu desaparecimento foi uma per<strong>da</strong> irreparável, nãosó para nós os seus familiares, como para to<strong>da</strong> a nação.Sentimos até hoje uma incomensurável falta <strong>da</strong> sua presençaamiga, bondosa, com to<strong>da</strong> aquela gentileza que lheera muito peculiar. Como também sentimos a falta de seuapoio, ele era o nosso arrimo, o nosso braço direito. Ele eraquem nos orientava, nos aconselhava, resolvendo os problemascom acerto, com a orientação dele, tudo <strong>da</strong>va certo.Estou escrevendo com as lágrimas a escorrer-me pelaface, pois, até hoje eu sinto uma dor intensa, arraiga<strong>da</strong>, acorroer-me nas mais profun<strong>da</strong>s entranhas <strong>da</strong> alma.E esta dor eu sei que me acompanhará até ao túmulo,por ter perdido o meu querido e amado filho que foi vítimafatal <strong>da</strong> sanha <strong>da</strong>queles bárbaros desumanos, como tantosoutros, brutalmente assassinados.Mas, não desejo o mal a eles, entrego para Deus; somentea Deus compete <strong>da</strong>r a punição que esses pobresinfelizes merecem.264 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>265


Guido Leão SantosGuido Leão Santos, operário metalúrgico, foi morto emsetembro de 1979, em Betim, Minas Gerais, quando fazia umpiquete de greve em frente à fábrica <strong>da</strong> FIAT Automóveis.Tentando fugir de uma investi<strong>da</strong> <strong>da</strong> cavalaria <strong>da</strong> PolíciaMilitar arma<strong>da</strong> de sabres, Guido Leão foi atropelado por umcarro <strong>da</strong> própria polícia, não conseguindo sobreviver.Lasar Segall266 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>267


Helber José Gomes GoulartHelber José Gomes Goulart, filho deGeraldo Goulart do Nascimento e de Jandirade Souza Gomes, nasceu em Mariana,Minas Gerais, no dia 19 de setembro de1944. Tinha duas irmãs, Maria do Carmo eElba, que se lembraram sempre com sau<strong>da</strong>desdo Helber criança: passivo, quieto,que gostava de escrever, que lia muito, especialmente,as obras Quarup e Bar DonJuan de Antônio Callado, que apreciavamúsica erudita e música popular brasileira,que ouvia muito Geraldo Vandré, ChicoBuarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Bethânia, Tom Jobim eMPB-4.Helber estudou até a segun<strong>da</strong> série do Ensino Fun<strong>da</strong>mentalem Mariana, no Ginásio Frei Manoel <strong>da</strong> Cruz, <strong>da</strong> CampanhaNacional de Escolas <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong>de (CNEC). Apesar de suapouca escolari<strong>da</strong>de, Helber era um rapaz de vasta cultura porsua vivência e muitas leituras. Começou a trabalhar muito cedo:aos 11 anos, era entregador de jornais; aos 13, empregado noescritório <strong>da</strong> fábrica de tecidos de Mariana e, pouco depois, era<strong>da</strong>tilógrafo na Prefeitura <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Era reconhecido como excelentefuncionário. Em 1961, aos 17 anos, foi para São Pauloem busca de melhores condições de trabalho, lá permanecendoaté 1963.A luta de Helber pela própria vi<strong>da</strong> seria secun<strong>da</strong><strong>da</strong> poroutra espécie de luta. Guiado pelo exemplo do pai, antigo membrodo Partido Comunista Brasileiro (PCB), Helber Gomes Gou-268 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>269


lart enveredou pelos caminhos <strong>da</strong> luta política e, quando em SãoPaulo, juntou-se ao Grupo dos Onze nas lutas camponesas.Após o Golpe Militar de 1964, Helber foi julgado na AuditoriaMilitar de Juiz de Fora, Minas Gerais. Mudou-se depois parao Mato Grosso, onde foi trabalhar, como apontador, na construção<strong>da</strong> hidrelétrica de Urubupungá. A experiência mexeu comele: diante <strong>da</strong>s péssimas condições de trabalho e segurança aque eram submetidos os operários, revoltou-se profun<strong>da</strong>mente eretornou a Mariana.Era o ano de 1968. No ano seguinte, 1969, Helber mudousepara Ouro Preto e se integrou à Ação Libertadora Nacional(ALN). Em 1971, partiu definitivamente para São Paulo, já comoclandestino. Muito ligado à família, não a deixou no abandono enão deixou de enviar dinheiro para aju<strong>da</strong>r sua mãe. Mas, os contatosentre eles foram ficando mais difíceis, sendo feitos atravésde cartas e de raros encontros. Os últimos foram nos meses demarço e junho de 1973, pouco antes de Helber ser morto pelasforças <strong>da</strong> repressão.Quando as irmãs perguntavam a Helber sobre a vali<strong>da</strong>de<strong>da</strong> sua luta pelo País e se conseguiria obter sucesso no que sepropunha, tarefa tão difícil e árdua, ele respondia que, se nãoconseguisse na<strong>da</strong>, pelo menos faria História.Numa carta envia<strong>da</strong> à família em 08/10/71, ele brincavadizendo que trabalhava 25 horas por dia, pois levantava sempreuma hora mais cedo e não tinha tempo para paquerar. Em outras,dizia que os problemas não se resolveriam no plano individuale sim coletivamente. Recomen<strong>da</strong>va bons livros e bonsfilmes: Queima<strong>da</strong>, Os Estranhos Caminhos de São Tiago e, também,a leitura do jornal O Pasquim. Criticava o sistema, o ufanismoexagerado, a política de massificação. E se despedia semprecom afeto e sau<strong>da</strong>des. Sua última carta é <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 07/09/72.Helber foi preso e torturado até a morte pelos agentes doDestacamento de Operações de Informações do Centro de Operaçõesde Defesa Interna (DOI/CODI) em São Paulo. A notíciaoficial de sua morte <strong>da</strong>va-a como tendo ocorrido no dia 16 dejulho de 1973, durante um tiroteio nas imediações do Museu doIpiranga, em São Paulo. Era estranho que a nota não especificassea via pública em que o incidente ocorrera. Mais estranhoera o desencontro de horários: a nota registrava que o corpo deraentra<strong>da</strong> no Instituto Médico Legal (IML) às 8 horas e que foraencontrado às 16 horas. Ou seja, segundo a nota, o corpo deuentra<strong>da</strong> no IML antes de ser encontrado morto. O laudo ca<strong>da</strong>véricovinha assinado por Harry Shibata.As falhas nas informações <strong>da</strong> nota oficial indicavam que aver<strong>da</strong>de era outra. De fato, Helber havia sido visto no DOI/CODI/SPpor diversos presos políticos alguns dias antes do dia 16. Seu estadoera, segundo os depoimentos, lastimável: com a barba por fazerhá vários dias, ele apresentava evidentes sinais de torturas. Foi seuestado precário o que obrigou os agentes do DOI/CODI a levá-lo aoHospital Geral do Exército, no Cambuci, bairro próximo ao Museudo Ipiranga, onde a versão oficial afirma ter ocorrido a morte.Helber tinha na época 29 anos de i<strong>da</strong>de e era solteiro. Foienterrado em vala comum. Sua família tomou conhecimento desua morte dias depois pela televisão e pelos jornais, entre eles O270 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>271


Globo de 19/07/73, que informou que Helber portava documentosfalsos com os nomes de Valter Aparecido Santos e AcrísioFerreira Gomes. A família não teve acesso aos seus objetos pessoais:documentos, roupas, livros e outros pertences.O resgate viria muitos anos depois. Em setembro de 1990,diversas ossa<strong>da</strong>s foram encontra<strong>da</strong>s em valas clandestinas no CemitérioDom Bosco, em Perus, São Paulo, por equipes <strong>da</strong> Prefeiturade São Paulo e pela Associação dos Familiares dos Mortos eDesaparecidos. No dia 20 de junho de 1992, a equipe do Dr. FortunatoPalhares, <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Estadual de Campinas (UNICAMP),identificou três ossa<strong>da</strong>s: uma delas, junto <strong>da</strong>s de Emanuel Bezerrados Santos e Frederico Eduardo Mayr, a de Helber José GomesGoulart. Finalmente, em 13 de julho de 1992, o corpo de HelberJosé Gomes Goulart foi entregue à sua família, numa urna cobertapela Bandeira Nacional, emocionando a todos os que foramrecebê-lo no Aeroporto <strong>da</strong> Pampulha, em Belo Horizonte.D. Jandira Gomes do Nascimento, junto com as duas filhas,apesar de sentir orgulho do filho, preferia que ele estivessevivo: "A gente não pode fazer muita coisa, porque lá se vão 19anos <strong>da</strong> morte do Helber, mas pelo menos vamos poder enterrálocom digni<strong>da</strong>de", comentou em 1992.Para o então presidente <strong>da</strong> Conferência Nacional dos Bisposdo Brasil (CNBB), Dom Luciano Mendes de Almei<strong>da</strong>, arcebispode Mariana, em entrevista ao Diário <strong>da</strong> Tarde de 14/07/92,"Helber tinha um ideal que não foi respeitado" e, na atuali<strong>da</strong>de,"esse mesmo ideal, convertido em outros tipos de atitudes, continuasendo desrespeitado. No período revolucionário, essesideais eram mais complexos e difíceis de serem entendidos, masé preciso refletir sobre isso. A socie<strong>da</strong>de brasileira precisa unirforças para garantir uma democracia mais participativa, porquea população, principalmente a mais pobre, deve ter condições devi<strong>da</strong> mais dignas."Os restos mortais de Helber José Gomes Goulart foram sepultadosno Cemitério de Santana, em Mariana, onde lhe forampresta<strong>da</strong>s as últimas homenagens.272 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>273


Hélcio Pereira FortesHélcio Pereira Fortes nasceu em OuroPreto, Minas Gerais, no dia 24 de janeiro de1948, filho de José Ovídio Fortes e AlicePereira Fortes. Passou a infância e a adolescênciaem sua ci<strong>da</strong>de natal, sempre cercadopelos muitos amigos que conseguiaconquistar com seu espírito comunicativo,alegre e de liderança. Desde cedo manifestouseu interesse pela história social epolítica do País e estava presente em todosos eventos e manifestações culturais de suaépoca. Em Ouro Preto, habitualmente sereunia com um grupo de estu<strong>da</strong>ntes emtorno do Grêmio Literário Tristão de Athaíde.Terminou o Ensino Fun<strong>da</strong>mental no Colégio Arquidiocesano,aos 13 anos de i<strong>da</strong>de, ingressando na Escola TécnicaFederal de Ouro Preto, que deixou no último período, para sededicar à militância política.Em 1968, quando já militava na Ação LibertadoraNacional (ALN) e passou a sentir a força <strong>da</strong> repressão militar, foiobrigado a viver na clandestini<strong>da</strong>de, juntamente com tantos outroscompanheiros. Clandestino, não deixava de se comunicarcom a família. Usando o meio que fosse possível, escrevia cartasem que expressava a sua sau<strong>da</strong>de e as razões que o haviam levadoa optar pela luta arma<strong>da</strong>. A última vez que se comunicoucom a família foi através de um telegrama, no Natal de 1971.Hélcio foi preso no dia 22 de janeiro de 1972, no Rio deJaneiro, e levado imediatamente para o Destacamento de Ope-rações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna(DOI/CODI) do Rio de Janeiro e, em segui<strong>da</strong>, transferido parao DOI/CODI de São Paulo. Num e noutro local, as torturas abateram-sebarbaramente sobre ele e, em conseqüência delas, ojovem, então com 24 anos de i<strong>da</strong>de, veio a falecer seis diasdepois, exatamente no dia 28 de janeiro do mesmo ano.A versão oficial é que Hélcio teria morrido quando, ao serpreso, tentou fugir. Entretanto, companheiros seus que testemunharamsua prisão e o viram ser torturado nos DOI/CODIs doRio e São Paulo desmentem a versão <strong>da</strong> polícia e atestam que eleem ver<strong>da</strong>de foi assassinado e isso <strong>da</strong> forma a mais bárbara, quefoi a decorrente <strong>da</strong>s torturas que sofreu.Nos relatórios dos Ministérios Militares, encaminhados àComissão de Representação Externa <strong>da</strong> Câmara Federal, emdezembro de 1993, pelo Ministério <strong>da</strong> Justiça, foram detecta<strong>da</strong>sgrandes contradições na história de sua fuga. No relatório <strong>da</strong>Aeronáutica lê-se: "faleceu no dia 28/01/72, ao <strong>da</strong>r entra<strong>da</strong> noHospital <strong>da</strong>s Clínicas em São Paulo, após travar tiroteio comagentes de segurança que o perseguiam". Já no relatório <strong>da</strong>Marinha registra-se que ele "morreu no dia 28/01/71 (atençãopara a <strong>da</strong>ta) em tiroteio com agentes de segurança ao tentar fugirem um fusca, após estabelecer contato com um companheiro".Segundo depoimento de seu irmão Gélcio, a família tomouconhecimento de sua morte pela televisão, no mesmo dia28/01/72 em que ela ocorreu. Imediatamente dirigiu-se para SãoPaulo, conseguindo localizar sua sepultura individual noCemitério de Perus. Em 1975, conseguiu trazer seus restos mortaispara Ouro Preto, onde foi enterrado na Igreja São José.Hélcio Fortes tem hoje o reconhecimento pelo seu desprendimento,coragem e fideli<strong>da</strong>de à sua opção política, que lhecustou a vi<strong>da</strong>, assim como ocorreu com outros companheiros.Sua memória está presente em muitos cantos <strong>da</strong> históricaci<strong>da</strong>de natal e em depoimentos carinhosos e cheios de sau<strong>da</strong>dede amigos, colegas, professores e familiares.274 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>275


Hélio PellegrinoHélio Pellegrino nasceu em BeloHorizonte, Minas Gerais, no dia 5 dejaneiro de 1924, e faleceu em março de1988, no Rio de Janeiro, ci<strong>da</strong>de que adotou.Casado três vezes, teve com apsicóloga Maria Urbana PentagnaGuimarães Pellegrino seus sete filhos edividiu os últimos 27 meses de sua vi<strong>da</strong>com a escritora gaúcha Lya Luft.Pensador ativo, carismático, tinhano dom <strong>da</strong> oratória a sua marca. Héliofoi um psicanalista de grandes embates institucionais, colunistadestemido em tempos de censura, prisioneiro político durante aditadura, fun<strong>da</strong>dor e ativista do Partido dos Trabalhadores (PT) eamigo, muito amigo mesmo, dos seus muitos amigos. Escreveupouco, infelizmente. Mas seu pensamento profundo, desconcertante,contraditório, alinhavou religião, política e psicanálise econtaminou to<strong>da</strong> uma geração de intelectuais de esquer<strong>da</strong>.Indignado, mas amoroso; revoltado, mas reflexivo; tímido,mas ruidoso; carrancudo, mas dono de um humor extremo.Tendo formado com Otto Lara Resende, Fernando Sabino e PauloMendes Campos um quarteto dos mineiros mais cariocas de quese tem notícia, Hélio viveu 36 anos no Rio de Janeiro. Naquelaci<strong>da</strong>de, viveu seus três casamentos e deixou uma vasta ninha<strong>da</strong>de filhos. Hélio fez <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> um ato apaixonado pelo outro.Médico psiquiatra, ele dizia que "queria mesmo era fazer filosofia".Como em Belo Horizonte não havia Facul<strong>da</strong>de de Filosofianaquela época, restou-lhe fazer Medicina e política.276 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>277


O poeta e o psiquiatra surgiram juntos, pois no ano em quese formou também estreou nas letras, lançando um livretoreunindo dois longos poemas escritos em 1947: Poema dopríncipe exilado, dedicado a Mário de Andrade, e Deixa que eute ame. Definia-se como mineiro apostólico romano. DepostoVargas, Hélio embarcou com entusiasmo na recém-cria<strong>da</strong> UniãoDemocrática Nacional (UDN), que ain<strong>da</strong> não adquirira sua fisionomiaconservadora. Era estuário natural <strong>da</strong> gente de esquer<strong>da</strong>que não fechava com o Partidão. Mais exatamente, na ala <strong>da</strong>UDN que ficou conheci<strong>da</strong> como Esquer<strong>da</strong> Democrática. Foi poressa facção que Hélio, ain<strong>da</strong> estu<strong>da</strong>nte, aos 21 anos, saiu candi<strong>da</strong>toa uma cadeira de deputado federal na Constituinte de 1946.Como petista, durante a ditadura instala<strong>da</strong> em 1964, fazia discursosinflamados e chegou a ser chamado de homem-comício.A generosi<strong>da</strong>de desse homem, que proclamava o estarcom-o-outrovalor maior, fez com que ele estivesse sempre presentena tumultua<strong>da</strong> cena carioca do período <strong>da</strong> ditadura militar,que fosse expulso <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de Brasileira de Psicanálise em1981, que fosse acusado pelo ensaísta José Guilherme Merquiorde ser um escritor sem livros. Mas como a generosi<strong>da</strong>de, quandonão se origina <strong>da</strong> pura culpa, pode ser uma estratégiainteligente para o bem-viver, o perfil de Hélio tinha traços de umhomem alegre, cheio de senso de humor, cuja sensuali<strong>da</strong>de faziapar com um amor quasesagrado pela vi<strong>da</strong>, a qual,para ele, cristão convicto, eravista como dom de Deus.No caso <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>dePsicanalítica do Rio de Janeiro(SPRJ), de que foi membroe expulso, Hélio Pellegrinodenunciou não apenaso poder imperial dos burocratasque a coman<strong>da</strong>vamNa prisão, em 1968como também o acoberta-mento, por esses dirigentes, do associado Amílcar Lobo, quecolaborara com a tortura a prisioneiros políticos do início dosanos 70. A denúncia custou-lhe a expulsão, retornando ele à enti<strong>da</strong>deapenas pela via judicial. Pouco antes de morrer, colheuuma vitória quando o Conselho Regional de Medicina do Rio deJaneiro cassou o registro de Amílcar Lobo, impedindo-o deexercer a profissão.Apaixonado pela justiça, ele carregavaem seu final de vi<strong>da</strong> um sonho obsessivoain<strong>da</strong> irrealizado: ver reaberto o caso Riocentro.Uma semana antes de sua morte, oSuperior Tribunal Militar decidiu pelo arquivamentodo inquérito aberto para apurar oatentado terrorista com que a extrema direita,no dia 30 de abril de 1981, pretenderasemear o pânico e a morte entre as 30 milpessoas que assistiam a um show de músicapromovido por organizações democráticas. OInquérito Policial Militar (IPM), como se previa,não avançou um milímetro na direção <strong>da</strong>ver<strong>da</strong>de.Hélio Pellegrino nunca se conformara com isso. No últimoparágrafo de seu último artigo, publicado postumamente, citavao ministro do Exército, General Leôni<strong>da</strong>s Gonçalves, que apropósito de outro episódio falara em honra militar. "Em nomedela é que o IPM do Riocentro deveria ter sido reaberto", argumentavaHélio. O escritor Otto Lara Resende, seu amigo, contaque ele an<strong>da</strong>va siderado pelo conceito de honra e lia muito sobreo tema - mergulhara, com especial interesse, nos textos doescritor católico francês Georges Bernanos. "Estava se preparandopara escrever um longo artigo sobre o Riocentro", revela OttoLara Resende, lembrando que Hélio morreu com outra frustração:horas antes do infarto fatal, já hospitalizado, viu aConstituinte aprovar a emen<strong>da</strong> que praticamente liquidou aesperança de eleições diretas para presidente naquele ano.278 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>279


A morte poupou-o de mais um pesado golpe: internado noInstituto Brasileiro de Cardiologia, em Ipanema, não chegou asaber do melancólico fechamento <strong>da</strong> Clínica Social de Psicanálise,decidido em assembléia <strong>da</strong> enti<strong>da</strong>de na noite de 22 demarço. "A clínica morreu com ele", diz com amargura o psicanalistacarioca João Batista Ferreira, que aju<strong>da</strong>ra a pôr de pé essautopia sonha<strong>da</strong> por Hélio Pellegrino. A idéia era colocar a psicanáliseao alcance <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s mais pobres <strong>da</strong> população. "Ooperário só entra no meu consultório como bombeiro ou pintor deparedes, jamais como cliente", dissera ele certa vez. "Só entraquem paga meu preço, e o preço é a nossa linha de partilha severa,o leão-de-chácara na porta do consultório, que tem a arrogânciade barrar a imensa maioria do povo brasileiro. O preço éuma determinação do mercado, o ponto em que a psicanálise searticula com a política".Mas as boas sementes, lança<strong>da</strong>s com amor, um dia germiname, mesmo passado o tempo de quem as teve nas mãos,florirão com abundância: essa é a esperança de todos quantos sealimentam <strong>da</strong>s grandes lições dos grandes homens.280 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>281


Hélio Salvador de AzevedoHélio Salvador de Azevedonasceu na ci<strong>da</strong>de de PonteNova, Minas Gerais, no dia 5 dedezembro de 1925, filho deManoel Salvador de Azevedo ede Maria Francisca do Amaral.Sete irmãos, Anésio, Henrique,Boanerges, Antero, José Salvador,Ivete e Diva, fizeram-lhecompanhia na casa paterna.Mais tarde, casado com ManoelaMaria Duarte de Azevedo, formoufamília numerosa, com setefilhos: Cliane Maria, Luiz Fernando,Lúcia Helena, Vânia Maria, Tânia Virgínia, Carlos Eduardo eAlexandre Marcos de Azevedo.Cursou o Ensino Fun<strong>da</strong>mental na Escola Estadual JoséBonifácio, em sua terra natal. Profissão, exerceu a de eletricistaresidencial. Conciliando-a com gosto pessoal pela militância política,filiou-se aos 18 anos ao Partido Comunista do Brasil (PC doB). Profissional e militante político, foi presidente do Sindicatodos Eletricistas e Bombeiros Hidráulicos de Minas Gerais.Como militante político sonhava com igual<strong>da</strong>de social,escola, saúde e trabalho para todos. Segundo seus familiares,ninguém amou o Brasil com tanta intensi<strong>da</strong>de, com tal vontadede orientar seus companheiros de profissão. Sempre achou opovo brasileiro muito generoso e sábio. Sabia <strong>da</strong>s riquezas naturaisdo País e julgava que, administrado com competência emãos firmes e honestas, o Brasil seria uma grande potência.Como muitos outros, era inconformado com o que acontecia noPaís e com a omissão <strong>da</strong>s elites gananciosas e egoístas.Tais convicções levaram-no a participar ativamente detodos os movimentos contra a ditadura militar que se instalou noBrasil a partir de 1964. Foi perseguido, preso e torturado. Fichadono Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais(DOPS/MG), tinha o seu nome na lista negra forma<strong>da</strong> pelos sindicalistasprocurados e comunistas. Por várias vezes teve que partirpara a clandestini<strong>da</strong>de, deixando seus familiares à mercê <strong>da</strong>quelesque, infiltrados, também queriam saber do seu paradeiro.A família viveu momentos de muita angústia e sofrimentocom aquele homem que fora sempre um bom pai, um esposoexemplar. Tendo perdido Hélio em 20 de janeiro de 1980, quandoele sucumbiu ao peso de um câncer que se generalizara, acreditaque só morre definitivamente quem não deixa boas lembrançasnos seres que continuam vivos. Hélio é figura que continuaviva.282 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>283


Henrique de Souza Filho - HenfilHÉLIO SALVADOR DE AZEVEDOHenrique de Souza Filho, o Henfil,nasceu em Ribeirão <strong>da</strong>s Neves, MinasGerais, no dia 5 de fevereiro de 1944. Erafilho de Henrique José de Souza e Maria<strong>da</strong> Conceição Figueiredo de Souza eirmão de Herbet de Souza (Betinho) e deChico Mário.Desde menino, quando estu<strong>da</strong>nteem um colégio de padres, Henfil traziaem seu comportamento as marcas <strong>da</strong>irreverência e rebeldia, às quais semesclava um constante bom humor,com que conquistava facilmente aamizade dos colegas.Depois do colégio de padres, Henriquefez um curso supletivo noturno. Mais tarde, tentaria fazer ocurso de Sociologia, mas não conseguiu. Largou a Facul<strong>da</strong>de e foitrabalhar como embalador de queijos e office-boy.Iniciou a carreira na profissão que seria a sua em 1964, naRevista Alterosa e no Diário de Minas, em Belo Horizonte. Seujeito original de expressar-se através de desenhos, seu estiloúnico e peculiar, seu grande senso de humor logo chamaram aatenção. Em breve, tornou-se conhecido e adotou o pseudônimode Henfil, com o qual ficou nacional e internacionalmentefamoso.Henfil conseguiu passar em seus desenhos uma inequívocamensagem de protesto. Foi crítico impiedoso do regime militare, com um estilo sutil, de dizer sem estar dizendo, criou per-284 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>285


sonagens imortais como os Fradinhos, a Graúna, o Zeferino, oBode Orleana e Lati.Em meados dos anos 60, transferiu-se para o Rio deJaneiro, iniciando ali o seu trabalho no Jornal dos Sports, em umsuplemento de cartum, onde criou os personagens Urubu(Flamengo), Bacalhau (Vasco) e Pó-de-Arroz (Fluminense).Criado o Pasquim, Henfil foi recrutado pelo novo jornal eali criou os personagens que o tornaram conhecido em poucotempo e o imortalizaram. Seu sucesso não parou e Henfil passoua trabalhar para os maiores jornais e revistas do País, entre eleso Jornal do Brasil, O Dia, Jornal dos Sports, do Rio, O Globo, Istoé, Veja, Reali<strong>da</strong>de, Placar. Todos esses veículos contavam comseu humor inteligente em suas páginas, que tinham leitores decadeira cativa.A sua capaci<strong>da</strong>de de criação era inesgotável e, segundodepoimento de seu irmão Betinho, Henfil gostava de fazercharges para presentear amigos, por correspondência, até comoforma de gravar momentos pitorescos de sua vi<strong>da</strong>. Criou o personagemSapo Ivan especialmente para seu único filho, Ivan.Foram tantas as charges do Sapo Ivan que elas acabaram setransformando em livro de pano para crianças, com pequenatiragem. Existem, ain<strong>da</strong>, outras tantas aventuras do personagemque faz parte dos planos de seu filhotransformá-las em livro.Henfil deixou, além <strong>da</strong>s charges edesenhos, muitas outras obras comolegado cultural. Entre elas estão oslivros Diário de uma Cucaracha, Henfilna China e Cartas <strong>da</strong> Mãe; as peças deteatro componentes <strong>da</strong> Revista doHenfil; e um filme, Tanga - Deu no NewYork Times, que ele próprio dirigiu.No auge de sua carreira, na déca<strong>da</strong>de 70, conta Ziraldo, seu amigo ecompanheiro de jorna<strong>da</strong>s, Henfil decidiuconquistar os Estados Unidos, que ele odiava, mas por capricho,queria vencer lá. Filiou-se então, em 1974, a um sindicatoamericano para distribuir seus fradinhos. Na primeira pia<strong>da</strong>, osfradinhos anunciavam Deus em sabor limão, o que provocouuma avalanche de reclamações aos jornais, que redundou nocancelamento <strong>da</strong>s publicações, alegando que as tirinhas eramsick (doentias, perverti<strong>da</strong>s). Isto para Henfil foi uma <strong>da</strong>s maioresglórias: afrontara a socie<strong>da</strong>de americana, que foi incapaz dealcançar a espirituali<strong>da</strong>de do seu humor.Henfil foi casado com Gil<strong>da</strong> Cosenza, mãe do seu únicofilho, Ivan Cosenza de Souza. Ivan e a segun<strong>da</strong> mulher de Henfil,Lúcia Lara, conservaram os originais de seu trabalho, após a suaparti<strong>da</strong> precoce, que decorrera de grave doença: por ser hemofílicoe necessitar de constantes transfusões de sangue, acaboucontraindo o vírus HIV. A hemofilia era um dos seus entraves,uma vez que o inchaço <strong>da</strong>s juntas exigia períodos de repouso; noentanto, a convivência com a doença era pacífica e vivi<strong>da</strong> commuito bom humor.Quando contraiu a Aids, através de uma transfusão desangue, "Henfil revoltou-se, mas não culpou o azar", segundoZiraldo. Apenas dizia: "Que País é esse? Vou morrer porque mederam sangue contaminado".Desde 1986, por conta de seu estado de saúde, foi internadovárias vezes e por longos períodos. Faleceu em 4 de janeiro de1988, quando o Brasil perdeu um crítico implacável dos regimespolíticos, um dos maiores cartunistas do século, um de seusgrandes e insubstituíveis gênios.286 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>287


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Herbert Eustáquio de CarvalhoHerbert Eustáquio de Carvalho, o Herbert Daniel, nasceuem Bom Despacho, Minas Gerais, em 14 de dezembro de 1946.Sua mãe, Geny Brunelli de Carvalho, de ascendência italiana,nasceu em Barbacena, onde se tornou operária. Mudou-se paraBelo Horizonte logo após o casamento. Seu pai, Geraldo Felicianode Carvalho, natural de Belo Horizonte, pertencia aos quadros<strong>da</strong> Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) e era radialista.Quem, nos anos 50, não conheceu e se divertiu com as graças doGé de Carvalho? A família completava-se com mais dois irmãos:Hamilton Brunelli de Carvalho, mais tarde Coronel <strong>da</strong> PMMG, eHelder Nazareno de Carvalho, engenheiro e funcionário do TesouroNacional.Herbert passou a sua infância e adolescência em BeloHorizonte. Estudou no Colégio Tiradentes <strong>da</strong> PMMG e fez o cursode Medicina na Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais(UFMG). Ele era uma pessoa dividi<strong>da</strong> entre dois mundos: de umlado, os rigores de um colégio militarizado e de uma estruturafamiliar tradicional e conservadora; de outro, o clima <strong>da</strong> rádio,descontraído e fascinante, onde seu pai brilhava.Herbert, o Bete, como era chamado em casa, tornou-semuito cedo uma personali<strong>da</strong>de introverti<strong>da</strong>. Lia muito, estu<strong>da</strong>vasempre e brincava pouco com as crianças de sua i<strong>da</strong>de; gostavamesmo era de estar sempre entre adultos.Seu grande drama desenvolveu-se fora de casa, fora <strong>da</strong> escola.Acontecia no meio do parque, no escuro <strong>da</strong> noite, no fundodo peito, no meio do preconceito. Sua atração por outros homenscomeçou cedo a se chocar (como aconteceu com milhares deoutros homossexuais) com tudo o que ele ouvira e aprendera. Aculpa, o medo, o silêncio tornaram-se o seu modo de ser na adolescência.Além disso, sentia-se feio e incapaz de atrativos físicos.Aliando sua enorme capaci<strong>da</strong>de de elaboração teórica auma cultura geral muito extensa, Herbert seduzia intelectualmente,explicava o que parecia confuso, teorizava sobre o que pareciaser apenas intuição. Aos 14 anos começou a escrever, semanalmente,um programa sobre crítica cinematográfica para a RádioInconfidência. Fez isto durante cerca de sete anos. Na Facul<strong>da</strong>dede Medicina tornou-se membro do Diretório Central dosEstu<strong>da</strong>ntes (DCE) e dirigiu o Show Medicina por dois anos.Foi também na Facul<strong>da</strong>de que ele encontrou Ângelo Pezzuti,seu quase irmão, melhor amigo e confidente. Sempre em parceriacom Ângelo, entrou para o DCE, tornou-se membro <strong>da</strong> organizaçãorevolucionária marxista Política Operária (POLOP),uma <strong>da</strong>s organizações de esquer<strong>da</strong> que enfrentaram a ditaduramilitar. Depois, deixou a POLOP para criar o Comando de LibertaçãoNacional (COLINA), organização que defendia a tática290 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>291


guerrilheira como maneira de derrubar a ditadura e chegar aosocialismo.Com a prisão de Ângelo, em 1969, Herbert deixou BeloHorizonte e começou, no Rio de Janeiro, sua extensa militânciaclandestina. Nesse período, como dirigente do COLINA, fundoua Vanguar<strong>da</strong> Arma<strong>da</strong> Revolucionária - Palmares (VAR-Palmares).Deixando a VAR, fundou, com Carlos Lamarca e militantes egressosdo COLINA e <strong>da</strong> Vanquar<strong>da</strong> Popular Revolucionária (VPR) deSão Paulo, uma nova VPR, onde militaria até os dias de exílio. NaVPR, participou com Lamarca dos treinamentos guerrilheiros doVale <strong>da</strong> Ribeira e dos seqüestros dos embaixadores alemão esuíço.Em 1971, quase todos os companheiros de luta estavampresos, mortos ou exilados. Lamarca morreu numa tocaia naBahia, lara morreu em Salvador e Juarez, no Rio. Ângelo, Mariado Carmo (a Lia), Dodora, Murilo, Carmela e Lina estavam exilados,Inês estava presa, Herbert estava só. Foi então que Herbertconheceu Cláudio Mesquita. Escondeu-se em sua casa parapensar no que fazer. Acabaram vivendo juntos durante 20 anos,até sua morte.Durante os anos de militância clandestina, a homossexuali<strong>da</strong>defora reprimi<strong>da</strong> e sufoca<strong>da</strong>. A guerrilha era uma opção militare, na sua vi<strong>da</strong> de dois mundos, ela não combinava com ahomossexuali<strong>da</strong>de. Além disto não havia clima para emoçõespessoais diante <strong>da</strong> enorme tarefa de mu<strong>da</strong>r o mundo. O encontrocom Cláudio mudou o rumo <strong>da</strong>s coisas. Um processo de empatiase estabeleceu entre os dois, afini<strong>da</strong>des que se tornaramamor, depois paixão.Em 1973, a repressão achou o paradeiro de Herbert, masele e Cláudio conseguiram fugir para a casa de uma tia emBarbacena, Minas Gerais. Finalmente, em 1974, exilaram-se osdois em Portugal, depois na França.Exilados, resolveram falar sobre a sua homossexuali<strong>da</strong>depublicamente. Herbert decidiu saber mais sobre o assunto, erapreciso um discurso teórico sobre o tema. Empregou-se numasauna gay em Paris, aprendeu a fazer massagem, fez ginástica,havia um corpo (ain<strong>da</strong> recusado) a conhecer e a mol<strong>da</strong>r. Sentiuprazer em seduzir com o corpo, vendeu sexo, descobriu os labirintosdo gueto homossexual. Neste período, escreveu os primeirosensaios teóricos sobre a homossexuali<strong>da</strong>de, publicadosem 1979, em Paris, Notas Marginais, republicados em 1983, emJacarés e Lobisomens, pela Achiamé, Rio.De retorno ao Brasil em 1981, dois anos após a anistia, poisnão fora anistiado e teve de esperar a prescrição <strong>da</strong> pena, chegoucomo o último exilado <strong>da</strong>s cartas do Henfil na revista Isto É,confundido com o personagem Sebá de Jô Soares.Filiou-se, juntamente com Cláudio, ao Partido dos Trabalhadores(PT), onde via um espaço democrático aberto à discussãodos temas ditos menores que lhe pareciam tão maiores:o respeito à diferença como prática <strong>da</strong> democracia, o direito àvoz <strong>da</strong>s minorias, o exercício <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, a relação dos sereshumanos com o meio ambiente.Em 1986, diante <strong>da</strong> conjuntura política do Rio de Janeiro,fundou, com Fernando Gabeira, o Partido Verde (PV), pois acreditavahaver espaço político para a existência de um partido ligadoespecificamente às questões libertárias (de direitos deci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia). Candi<strong>da</strong>tou-se, sem muita convicção, ao cargo dedeputado estadual por uma coligação PT/PV e ficou aliviado aoser derrotado: "Sou muito "gauche" para exercer o poder. Melhorquestioná-lo".O mal do século, denominado Aids, entrou na vi<strong>da</strong> deHerbert ain<strong>da</strong> em Paris, com as primeiras manchetes de jornalfalando <strong>da</strong> Peste Gay apareci<strong>da</strong> entre os americanos. A avaliaçãode Herbert era a de que "estão querendo encontrar umadeterminação patogênica na homossexuali<strong>da</strong>de. Vem chumbogrosso pela frente".Em 1983, em Jacarés e Lobisomens, falava sobre o assunto,alertando para o perigo de culpar grupos pela doença e discriminaros doentes, ao invés de tratá-los e <strong>da</strong>r-lhes os direitosde ci<strong>da</strong>dão que lhes são devidos. Em 1987, começou a trabalhar292 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>293


especificamente com a Aids, entrando para a AssociaçãoBrasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), fun<strong>da</strong><strong>da</strong> porHerbert de Souza, o Betinho, após a morte do Henfil.Em 1989, descobriu-se doente de Aids. Após oprimeiro impacto, decidiu fazer de si próprio bandeirade luta pelos direitos civis dos portadores dovírus e doentes de Aids: "Ninguém morre antesde morrer. Tenho Aids e estou aqui, vivo e prontopara gritar e exigir o direito que tenho à vi<strong>da</strong>".Fundou, ain<strong>da</strong> em 1989, o Grupo de Valorização e Integri<strong>da</strong>dedos Doentes de Aids (VIDA): "É preciso <strong>da</strong>r voz aos portadorese doentes. Não é possível deixar que o discurso médicojurídico-jornalísticosubstitua o dos que vivem a doença. Soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>deé a melhor vacina contra a Aids e <strong>Viva</strong> a Vi<strong>da</strong>!". Foramas duas palavras de ordem cria<strong>da</strong>s por ele que ecoaram mundoafora, tornando-se o discurso oficial <strong>da</strong> Organização Mundial deSaúde (OMS), dos principais governos do mundo e, sobretudo,<strong>da</strong>s milhares de ONGs que trabalham com Aids.Em 1991, foi convi<strong>da</strong>do a participar de uma coalizaçãointernacional para o estudo <strong>da</strong> epidemia de Aids, único membrolatino-americano do grupo encabeçado pelo Dr. Jonathan Mann.Foi convi<strong>da</strong>do também a participar do Comitê Organizador <strong>da</strong> IXConferência Internacional de Aids, que se realizaria em 1992 emAmster<strong>da</strong>m. Não chegou a participar <strong>da</strong> Conferência, Cláudio foiem seu lugar, para ler o seu último texto escrito e participar <strong>da</strong>shomenagens póstumas que 12 mil participantes lhe prestaram.Ironicamente, Herbert Eustáquio, que publicou seis livrosdesde seu retorno ao Brasil sem grande sucesso de ven<strong>da</strong>, apesardo sucesso de crítica, viu seu sétimo livro, Vi<strong>da</strong> antes <strong>da</strong>Morte (Jaboti, Rio de Janeiro, 1989), que relata sua visão sobreestar com Aids, ser traduzido e publicado em italiano, francês,inglês, tailandês e japonês. Os livros precedentes eram:Passagem para o próximo sonho (Codecri, Rio de Janeiro, 1982),A fêmea sintética (Codecri, Rio de Janeiro,1983), Jacarés e lobisomens(com Leila Meollis, Codecri, Rio de Janeiro, 1983), Meu294 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>295


corpo <strong>da</strong>ria um romance (Rocco, Rio de Janeiro,1984), As trêsmoças do sabonete (teatro, Rocco, Rio de Janeiro, 1984) eAlegres e irresponsáveis abacaxis americanos (Espaço e Tempo,Rio de Janeiro, 1986). Em 1991, seria a vez de AIDS, a terceiraepidemia, em co-autoria com Richard Parker (Iglu, São Paulo,1991). Postumamente foi publicado Sexuality, polities and AIDSin Brazil in another world (com Richard Parker, pela The PalmerPress, Londres, 1993).Deixou inédito e não publicado um romance curto, Ao Vivo,além de textos e artigos inéditos ou que foram publicadosdispersamente e seriam reunidos num volume organizado porCláudio Mesquita e Richard Parker sob o título (<strong>da</strong>do por Herbertao ensaio que não terminou de escrever) A Alma do Ci<strong>da</strong>dão.Herbert faleceu no dia 29 de março de 1992, no Rio deJaneiro.(Texto-base de autoria de Cláudio Mesquita em 10/08/94)296 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>297


Herbet José de Souza - BetinhoHerbet José de Souza, (sem o r por erro docartório), o Betinho, nasceu em 3 denovembro de 1935, na pequena ci<strong>da</strong>de mineirade Bocaiúva. Com uma infância eadolescência marca<strong>da</strong>s pelos limites impostospela hemofilia e tuberculose, soubeapropriar-se <strong>da</strong>quele fio de vi<strong>da</strong> que lherestava. Transformou sua fragili<strong>da</strong>de físicaem grandeza de humani<strong>da</strong>de. Buscou avi<strong>da</strong> de forma intensa para si e para os outros,particularmente para os excluídos <strong>da</strong>socie<strong>da</strong>de. Seu humor e sua ironia juntavam-sea uma forte indignação diante<strong>da</strong> mínima injustiça.Ele afirmava que a democracia não é um modelo ou umaestrutura acaba<strong>da</strong>, mas algo que constantemente deve ser sonhado,imaginado ou recriado. Para ele, a busca <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>igual<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> valorização <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>participação era um princípio que devia fermentar to<strong>da</strong> intervençãoci<strong>da</strong>dã em direção <strong>da</strong> democracia.Betinho apostou na ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. Investiu nos movimentossociais e nos grupos comunitários, nos comitês, nas associaçõese organizações civis de todo o tipo, nas manifestações culturaise artísticas como escolas de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.A militância nos movimentos estu<strong>da</strong>ntis nos anos 60, apresença dos pioneiros impulsos de renovação do cristianismo,as campanhas contra a fome e pela reforma agrária, a luta contraos regimes militares latino-americanos, o exílio, a anistiaconquista<strong>da</strong> e a contaminação pelo vírus <strong>da</strong> Aids colocaramBetinho no front de uma luta pela abertura de caminhos contradiversas formas de medo e autoritarismo.Terceiro de uma série de oito irmãos, completou, em 1962,os cursos de Sociologia e Política e de Administração Pública naFacul<strong>da</strong>de de Ciências Econômicas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal deMinas Gerais (UFMG). Nessa época, atuou como liderança nacionaldos grupos <strong>da</strong> juventude católica que representavam asaspirações de transformação social, depois reforça<strong>da</strong>s com oConcílio Vaticano II, e participou <strong>da</strong>s conquistaspelas chama<strong>da</strong>s reformas de base.Segundo testemunho do escritor Otto LaraResende, <strong>da</strong> Academia Brasileira de Letras,Betinho, nas praças públicas, pedia tudoque os comunistas pediam - e mais o céu.Naquele período <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> democráticano Brasil, Betinho exerceu funções decoordenação e assessoria no Ministério <strong>da</strong>Educação e Cultura e na Superintendênciade Reforma Agrária, além de elaborarestudos sobre a estrutura social brasileirapara a Comissão Econômica para aAmérica Latina (CEPAL), <strong>da</strong> Organização<strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s (ONU). Data desseperíodo também a sua presença nos movimentos operáriosbrasileiros.Com o Golpe de 1964, passou a atuar na resistência contraa ditadura militar, dirigindo organizações de cunho democráticono combate ao regime que se instalava. No começo <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de70, foi para o exílio e, como no poema de Brecht, trocava de paíscomo quem trocava de sandálias. Morou primeiro em Santiago,no Chile, onde deu aulas na Facul<strong>da</strong>de Latino-Americana deCiencias Sociales e atuou como assessor do presidente Allende.Conseguindo escapar do sangrento golpe militar do GeneralPinochet, foi para a embaixa<strong>da</strong> do Panamá, em 1974. Seguiu298 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>299


depois para o Canadá, de lá para o México. Exerceu, nessa época,diversos cargos, como o de diretor do Conselho Latino-Americanode Pesquisa para a Paz (IPRA), consultor para a FAO sobre projetose migrações na América Latina e coordenador do LatinAmerican Research Unit (Laru), entre outros. Foi, ain<strong>da</strong>, professorefetivo do doutorado de economia <strong>da</strong> Divisão de EstudosSuperiores, na Facul<strong>da</strong>de de Economia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de NacionalAutônoma do México, e diretor de Brasilian Studes, no Canadá.Com o crescimento dos movimentos pela democratizaçãodos meios de comunicação no Brasil, seu nome tornou-se umdos símbolos <strong>da</strong> campanha pela anistia. Em 1979, voltou aoBrasil e entrou de cheio nas lutas sociais e políticas, sempre sepropondo a ampliar a democracia e a justiça social. Em 1981,fundou o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas(IBASE), enti<strong>da</strong>de volta<strong>da</strong> para a democratização <strong>da</strong>s informaçõesacerca <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des econômicas, políticas e sociaisno Brasil.Diante <strong>da</strong> grave questão <strong>da</strong> posse <strong>da</strong> terra, que sentia acarretara fome e o êxodo rural e representar um dos principais problemasestruturais do Brasil como país subdesenvolvido, Betinhodesempenhou um papel decisivo na articulação <strong>da</strong> CampanhaNacional pela Reforma Agrária, em 1983, congregando enti<strong>da</strong>desde trabalhadores rurais em busca <strong>da</strong> terra prometi<strong>da</strong>, um pe<strong>da</strong>çode chão onde fosse possível cultivar e produzir em paz.Ain<strong>da</strong> na luta pela democratização <strong>da</strong> terra, organizou, em1990, o Movimento Terra e Democracia, que levou ao Aterro doFlamengo milhares de pessoas. Em 1992, assumiu uma <strong>da</strong>s liderançasdo Movimento pela Ética na Política, que culminou noimpeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, emsetembro do mesmo ano.Termina<strong>da</strong> a batalha do impeachment, o Betinho <strong>da</strong>scausas impossíveis abraçou a Ação Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia contra a Miséria ePela Vi<strong>da</strong>. A Campanha contra a Fome ganhou as ruas em 1993e chegou ao final <strong>da</strong>quele ano com total aprovação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de- 96% de concordância, segundo o Ibope. Betinho metamorfo-seou-se no grão <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, que se multiplicou na soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>dede ca<strong>da</strong> dia.Ao longo de sua trajetória, publicou diversos livros, artigose ensaios, sempre com a mesma preocupação de criticar asestruturas que tornam a vi<strong>da</strong> difícil e injusta para milhões depessoas.Uma última nota de sua extraordinária soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de e deseu imensurável sentimento de humani<strong>da</strong>de viria de suacondição de hemofílico e aidético. Betinho nascera hemofílico,como seus dois irmãos, o cartunista e humorista Henfil e o compositorFrancisco Mário. Os três contraíram o vírus <strong>da</strong> Aids portransfusão de sangue. No começo de 1988, os dois irmãos morreram,mas Betinho agregou, em sua luta pela liber<strong>da</strong>de, adenúncia de uma epidemia que mexe em temas como medo,300 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>301


sexuali<strong>da</strong>de e morte. Sua presença nos meios de comunicaçãotransformou-se em símbolo <strong>da</strong>s vítimas <strong>da</strong> Aids e <strong>da</strong> luta pelasaúde <strong>da</strong> população. Em 1986, fundou a Associação BrasileiraInterdisciplinar de Aids (ABADIA).No ano de 1994, lançou a Campanha Natal sem Fome, quearrecadou, no primeiro ano, 600 tonela<strong>da</strong>s de alimentos. Emagosto do mesmo ano, fez um pronunciamento na ONU, nareunião preparatória para a Conferência Mundial sobre oDesenvolvimento Social. Dois momentos marcantes desse trabalhoforam a Caminha<strong>da</strong> pela Paz no movimento Reage Rio, emnovembro de 1995, e o desfile no carnaval de 1996, quandoBetinho foi enredo <strong>da</strong> Escola de Samba Império Serrano, no Riode Janeiro. O tema, muito apropria<strong>da</strong>mente, intitulava-se: "Everás que um filho teu não foge à luta".Quando a ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro empenhava-se em suacandi<strong>da</strong>tura a sede olímpica, em 1996, Betinho procurou o ComitêOlímpico Internacional e apresentou sua proposta para aAgen<strong>da</strong> Social Rio 2004. Ain<strong>da</strong> no ano de 1997, o Ibase lançariaa Agen<strong>da</strong> Social Rio 2000 e Sempre, lutando pela melhoria <strong>da</strong>quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong> no Estado do Rio de Janeiro, por meio <strong>da</strong>implantação <strong>da</strong>s metas sociais idealiza<strong>da</strong>s por Betinho. Em julhode 1997, num encontro com empresários de todo o País, Betinholançou a campanha de adesões ao Balanço Social, uma espéciede balanço financeiro onde os indicadores eram os investimentossociais feitos por empresas.No dia 5 de julho de 1997, Betinho foi internado noHospital <strong>da</strong> Beneficência Portuguesa, no Rio, vítima de umainfecção oral. Vinte e cinco dias depois, pediu para voltar paracasa. Morreu em sua casa, no bairro Botafogo, no Rio de Janeiro,em 9 de agosto de 1997, com 61 anos de i<strong>da</strong>de, ao lado <strong>da</strong> mulher,dos filhos e de alguns amigos, vítima de insuficiência hepáticae pneumonia bacteriana. Em 11 de agosto, o corpo do sociólogofoi cremado, sendo as cinzas espalha<strong>da</strong>s, conforme pedidoem vi<strong>da</strong>, sobre as áreas livres, limpas e pacíficas de seu sítio emItatiaia.302 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>303


Herculano Mourão SalazarHerculano Mourão Zalazar nasceu no dia9 de março de 1947, em Belo Horizonte, MinasGerais, filho de Guttemberg Salazar Júnior e deSalambô Mourão Salazar. Casou-se com EmelyVieira Salazar, de quem foi companheiro eamigo e de quem recebeu o apoio nas opçõespela soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de que faria ao longo de suavi<strong>da</strong>. O casal teve uma filha, Fabiana VieiraSalazar.Herculano iniciou sua militância políticaquando aluno do Colégio Estadual Central, hojeEscola Estadual Governador Milton Campos, em Belo Horizonte.O Colégio Estadual foi de enorme importância na formação demilhares de jovens, que ali receberam uma educação aberta,inovadora, criativa, crítica e revolucionária, num tempo em queos alunos não só acreditavam nas mu<strong>da</strong>nças como tambémousavam contestar e buscar alternativas.Médico formado pela Facul<strong>da</strong>de de Medicina <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1969, Herculanodedicou-se com grande empenho à carreira que escolheu.Foi médico concursado do Estado, professor <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>dede Medicina <strong>da</strong> UFMG, coordenador do Centro de Hemodiálisedo Hospital <strong>da</strong>s Clínicas <strong>da</strong> UFMG, coordenador <strong>da</strong> ComissãoEstadual de Nefrologia e coordenador do MG-Transplantes.Em razão de seu envolvimento com a militância política,que desenvolvia paralelamente ao exercício <strong>da</strong> profissão,Herculano foi capturado e permaneceu preso no período de maiode 1970 a dezembro de 1971, um dos mais cruéis <strong>da</strong> ditaduramilitar. Era a época do governo Médici, que patrocinou serviçode repressão permanente, nela incluí<strong>da</strong>s sessões de bárbarastorturas e sevícias de to<strong>da</strong> ordem. Logo que libertado, em 1972,filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB).Mas, diante do contínuo sobressalto imposto pela repressão,a alternativa foi sair do País, buscar outras perspectivas.Buscar sobreviver. Herculano foi para a França, onde permaneceude 1972 a 1975 e aproveitou para especializar-se em Nefrologia.A partir de 1992, concentrou sua militância política naprática médica no setor público (Secretaria de Estado <strong>da</strong> Saúde/SESe UFMG), ampliando e defendendo a cobertura do atendimentoaos pacientes <strong>da</strong> seguri<strong>da</strong>de social. Jamais cedeu ainteresses particulares ou individuais em detrimento do coletivo.Empenhou sua inteligência, seu conhecimento e sua coragemna conquista <strong>da</strong> justiça social, tendo vivido intensa e profun<strong>da</strong>mentesuas opções de vi<strong>da</strong>.Do Dr. Herculano Mourão Salazar pode-se dizer que suamarca foi a coragem; sua bandeira, a justiça social; sua postura,a digni<strong>da</strong>de.Faleceu precocemente no dia 30 de outubro de 1998, aos51 anos, no Hospital <strong>da</strong>s Clínicas <strong>da</strong> UFMG, onde trabalharadurante tanto tempo e onde cui<strong>da</strong>ra abnega<strong>da</strong>mente de todos,sem distinguir-lhes a raça, cor, credo e sem negar-lhes asdemonstrações de serie<strong>da</strong>de e probi<strong>da</strong>de presentes em to<strong>da</strong> asua vi<strong>da</strong>. Uma vi<strong>da</strong> curta, se considerado o tempo; uma vi<strong>da</strong>longa, se senti<strong>da</strong>s a sua densi<strong>da</strong>de e a sua significação.304 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>305


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I<strong>da</strong>lísio Soares Aranha FilhoI<strong>da</strong>lísio Soares Aranha Filho nasceu em Rubim, MinasGerais, no dia 27 de agosto de 1947, filho de I<strong>da</strong>lísio SoaresAranha e de Aminthas Rodrigues Pereira. Afetivo, carinhoso,observador e de pouca conversa: assim era o I<strong>da</strong>lísio cantador,seresteiro e tocador de violão.Caçula dos homens, fez as primeiras séries do EnsinoFun<strong>da</strong>mental em Rubim; as séries finais, correspondentes aoantigo ginásio, no Colégio São José, de Teófilo Otoni; o segundograu, hoje Ensino Médio, no Colégio Estadual Central de BeloHorizonte, sendo que no terceiro e último ano desse curso ele setransferiu para o Colégio Universitário <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federalde Minas Gerais (UFMG). Prestou o vestibular para Psicologiaem 1968, na UFMG, entrando para a universi<strong>da</strong>de após a vitóriados estu<strong>da</strong>ntes na luta dos excedentes.Na universi<strong>da</strong>de, foi presidente do Centro de Estudos dePsicologia e, em 1971, elegeu-se presidente do Diretório Acadêmico(DA) de sua escola: o fato seria lembrado anos mais tarde,quando o DA <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Filosofia e Ciências Humanas(FAFICH), onde atualmente está alojado o curso de Psicologia,recebeu o nome de I<strong>da</strong>lísio Aranha, numa reconheci<strong>da</strong> homenagempóstuma.Em janeiro de 1971, I<strong>da</strong>lísio e Walkíria, sua companheira,decidiram viver no Araguaia. Como violeiro e cantador, que usavaos codinomes de Aparício, Bragança, Braguinha e Ivan, conquistourapi<strong>da</strong>mente a simpatia <strong>da</strong>queles que com ele conviviam.Mas pouco tempo viveria ele no Araguaia. Em 1972, somenteum ano depois de sua chega<strong>da</strong>, I<strong>da</strong>lísio foi morto durantea primeira Campanha de Cerco <strong>da</strong>s Forças Arma<strong>da</strong>s. O militantechegou a trocar tiros com o Exército, mas nunca se soube se suacondição de alvo se originara de alguma denúncia ou se ocorrerapor acaso.O capitão-de-corveta Uriburu Lobo Cruz, em seu relatóriosobre a Guerrilha do Araguaia, informou, conforme consta noJornal do Brasil, Caderno Brasil, edição de 03/12/92, que aOperação Papagaio produzira baixas entre os guerrilheiros e que,no dia 2 de junho, na região de Caiano, "foi morto o terroristaBergson Gurjão Farias, o Jorge, e no dia 12 de junho de 1972, foimorto, em embosca<strong>da</strong>, o terrorista I<strong>da</strong>lísio Soares Aranha Filho, oAparício, na região de Perdidos".308 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>309


Ísis de Araújo D’ Ávila MagalhãesÍsis de Araújo D´Ávila Magalhães nasceu no Rio deJaneiro, em 4 de julho de 1949, filha única de GrimoaldoNóbrega de Araújo, médico, e de Déa Dália Vieira de Araújo,enfermeira. Viveu três casamentos, o primeiro com Luís Magalhães,o segundo com Júlio Pires, pai de seu filho, Pedro, e oteceiro com Walteneyr Raimundo.Ísis passou a infância e adolescência no Rio de Janeiro eviveu a sua juventude em Brasília. Depois, veio para BeloHorizonte, onde permaneceu o resto de sua vi<strong>da</strong>. Era uma pessoamuito estudiosa, sensível e inteligente.Estudou Sociologia na Universi<strong>da</strong>de Nacional de Brasília(UnB), tornando-se socióloga e professora. Participou deinúmeras manifestações públicas em defesa <strong>da</strong> democracia econtra a ditadura militar. Engajou-se em movimentos como o <strong>da</strong>luta pela anistia, pertenceu à Organização Socialista Internacional(OSI), participou do movimento sindical e de movimentosde trabalhadores que resultaram na criação do Sindicato dosProfessores em Belo Horizonte (SIND-UTE), <strong>da</strong> Central Únicados Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores (PT).Como todo militante de esquer<strong>da</strong> de sua época, foi persegui<strong>da</strong> epresa pelos militares, tendo a prisão ocorrido em 1980, na épocaem que dirigia o SIND-UTE.Viveu grande parte de sua vi<strong>da</strong> morando somente com ofilho e ocupando-se, com exclusivi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> tarefa de cui<strong>da</strong>r dele.Acompanha<strong>da</strong> por Walteneyr, que a assistiu com carinho durantegrave enfermi<strong>da</strong>de, faleceu no dia 4 de dezembro de 1999, decâncer, aos 50 anos de i<strong>da</strong>de.310 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>311


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Itair José VelosoItair José Veloso nasceu no dia 10 de junho de 1930, emMinas Gerais, filho de Sebastião Veloso e Zulmira Veloso. Casousecom Ivanil<strong>da</strong> <strong>da</strong> Silva Veloso, com quem teve quatro filhas.Sua dedicação à família não rivalizava com sua dedicação aotrabalho, pois seu envolvimento com a mulher e as filhas eradesmedido.Operário, apontador deobras e líder sindical <strong>da</strong> construçãocivil no Rio de Janeiro,Itair José foi militante do sindicalismobrasileiro desde 1953,quando entrou para a ala jovemdo Partido Comunista Brasileiro(PCB).Foi dirigente do Sindicato dos Trabalhadores <strong>da</strong>Construção Civil de Niterói e Nova Iguaçu, em 1961. Em segui<strong>da</strong>tornou-se secretário-geral <strong>da</strong> Federação dos Trabalhadores <strong>da</strong>Construção Civil do Estado do Rio de Janeiro e Niterói. Mas nempor isso abandonou sua função de apontador de obras, para nãoperder o contato com as bases.Desenvolvendo uma ativi<strong>da</strong>de sindical intensa, alcançou,no início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 60, uma posição de destaque dentro domovimento operário. Prova-o o fato de que, durante o governoJoão Gourlart (1961-1964), Itair Veloso chefiou uma delegaçãosindical brasileira a um encontro internacional de sindicalistas,em Moscou.Sua militância política, nos tempos em que havia garantiasconstitucionais às liber<strong>da</strong>des individuais, sempre abertadentro do organismo político esindical, fez com que seu nomefosse alvo dos órgãos de repressão,assim que a democracia foisuprimi<strong>da</strong> no Brasil. Logo após oGolpe Militar de 1964, sua casafoi invadi<strong>da</strong> por policiais doDepartamento de Ordem Políticae Social (DOPS) de Niterói, quenão o encontraram. Arrolado emprocesso sob a acusação de pertencerao PCB, passou a viver naclandestini<strong>da</strong>de.Itair não costumava informara família sobre suas ativi<strong>da</strong>despolíticas fora de casa,enquanto clandestino, para nãoenvolver as filhas. De algumaforma, no entanto, elas já sabiam, antes de seu desaparecimento,que ele era filiado ao PCB e que se dedicava intensamente aomovimento de politização dos seus companheiros trabalhadores.Assim é que Itair Veloso saiu de casa no dia 25 de maio de1975, às 7h30min, para um encontro às 8 horas, dizendo quevoltaria ao meio-dia para ir ao médico. Mas, desde então, suafamília nunca mais recebeu notícias dele.Acreditando que poderia encontrá-lo de alguma forma,Ivanil<strong>da</strong> começou sua peregrinação: Conferência Nacional dosBispos do Brasil (CNBB), Palácio São Joaquim, D. Eugênio Sales(à época capelão do Hospital do Exército), os advogados HelenoFragoso e Modesto <strong>da</strong> Silveira, reuniões <strong>da</strong> Anistia, ComitêBrasileiro de Anistia (CBA), imprensa em geral. To<strong>da</strong>s essas pessoase instituições foram procura<strong>da</strong>s por ela.Mais tarde, nos dias 19 e 20 de setembro de 1978, ItairVeloso foi julgado na 2ª Auditoria <strong>da</strong> Marinha, no processo dejulgamento de Luís Carlos Prestes, juntamente com mais 60 pes-314 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>315


soas acusa<strong>da</strong>s de tentar reorganizar o PCB. Apesar de julgado àrevelia, foi absolvido. Em sua defesa atuara o advogado AmiltonSiqueira e, pela primeira vez, o nome de Itair José Veloso foracitado, recebendo elogios de um antigo companheiro, o advogadoMarco Antônio Tavares Coelho, que se encontrava preso,segundo notícia do Jornal do Brasil, edição de 21/09/79.De acordo com as denúncias do ex-Sargento MarivalChaves, publica<strong>da</strong>s na revista Veja de 18/11/92, Itair José Veloso,aos 45 anos de i<strong>da</strong>de, foi preso por agentes do DOI/CODI de SãoPaulo, no Rio de Janeiro, durante a Operação Ra<strong>da</strong>r, acusado deintegrar comitê específico do PCB.Ain<strong>da</strong> segundo o ex-Sargento Marival, ltair Veloso morreude choque térmico, sob tortura, numa casa de Itapevi, em SãoPaulo. Era o inverno de 1975 e o que o levou à morte foi umbanho de água gela<strong>da</strong>. Seu corpo teria sido jogado <strong>da</strong> ponte, nasimediações de Avaré, a 260 quilômetros de São Paulo.Itair José Veloso consta <strong>da</strong> relação oficial de mortos edesaparecidos políticos brasileiros.Esboço de CândidoPortinari retratandoconstruções316 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>317


Ivan Mota DiasIvan Mota Dias nasceu no dia 29de outubro de 1942, em Passa Quatro, sulde Minas, filho de Lucas de Souza Dias e deNair Mota Dias. Teve somente um irmão.Era um menino estudioso,comunicativo, carinhoso, gostava de músicae tocava violino. Teve uma formação religiosasóli<strong>da</strong>, pois, tendo nascido numafamília presbiteriana, aprendeu, desdecedo, os princípios <strong>da</strong> cari<strong>da</strong>de e fraterni<strong>da</strong>decristãs.Estu<strong>da</strong>nte de História na Universi<strong>da</strong>de FederalFluminense (UFF), em Niterói, Ivan conciliava os estudos com oseu trabalho como professor do cursinho pré-vestibular <strong>da</strong>própria universi<strong>da</strong>de e com ativa militância no movimento estu<strong>da</strong>ntil.E foi exatamente sua participação como militante estu<strong>da</strong>ntilque interrompeu os planos de Ivan, que não conseguiuacabar o seu curso de História na UFF em dezembro de 1968,conforme previsto: por ter participado do 30º Congresso <strong>da</strong>União Nacional de Estu<strong>da</strong>ntes (UNE) realizado em Ibiúna, SãoPaulo, teve sua prisão preventiva decreta<strong>da</strong> e passou a viver naclandestini<strong>da</strong>de.No período em que ficou clandestino no Rio de Janeiro,trabalhava com tradução e morava num quarto alugado, numarua perto <strong>da</strong> Central do Brasil. De 1968 a 1971, ele <strong>da</strong>va notíciasregularmente para a família, através de cartas ou telefonemas,sem nunca deixar o endereço.Sua prisão ocorreu no dia 15 de maio de 1971, provavelmenteno bairro carioca de Laranjeiras, por agentes do Centro deInformações e Segurança <strong>da</strong> Aeronáutica (CISA) e, apesar de levadoimediatamente para as câmaras de tortura do Aeroporto doGaleão, foi <strong>da</strong>do como foragido pelas forças de repressão.O ex-preso político Alex Polari de Alverga testemunhou terouvido pelo serviço de alto-falantes do CISA que o Coman<strong>da</strong>nteCabanos, nome de guerra de Ivan, havia sido preso. Nessaépoca, Ivan fazia parte do comando nacional <strong>da</strong> organizaçãoVanguar<strong>da</strong> Popular Revolucionária (VPR).Ivan Mota Dias foi julgado como réu e condenado a oitoanos de reclusão pelo Conselho Permanente de Justiça <strong>da</strong> 2ªAuditoria do Exército, em 1972, enquadrado no artigo 23 <strong>da</strong> Leide Segurança Nacional (LSN), sob a acusação de "tentar derrubaro governo através <strong>da</strong> violência e <strong>da</strong> luta arma<strong>da</strong>, juntamentecom Alfredo Hélio Sirkis, A<strong>da</strong>ir Gonçalves Reis, JoséMaurício Gradel, Roberto <strong>da</strong>s Chagas e Silva, Sônia Eliane Lafose Walter Ribeiro Novais".Mas, ain<strong>da</strong> em 1972, o Conselho Permanente de Justiça<strong>da</strong> 2ª Auditoria <strong>da</strong> Aeronáutica absolveu Ivan, por unanimi<strong>da</strong>de,junto com Alex Polari de Alverga, Tereza Ângelo e Walter RibeiroNovais. Nesse processo, ele havia sido denunciado junto comoutros integrantes <strong>da</strong> VPR de prática de assaltos, o que o sujeitavaao artigo 27 <strong>da</strong> LSN, que previa reclusão de 10 a 12 anos. Ivanfigurou, também, num processo <strong>da</strong> 2ª Auditoria do Exército,junto com outros 12 membros <strong>da</strong> VPR, em que foi acusado departicipação nos seqüestros dos embaixadores <strong>da</strong> Alemanha e<strong>da</strong> Suíça.A única notícia que a família recebeu sobre Ivan MotaDias foi um telefonema anônimo que denunciava sua prisão.Inúmeros contatos foram feitos pela família, buscando algumanotícia ou informações sobre o paradeiro de Ivan. Buscaramaju<strong>da</strong> através <strong>da</strong> Igreja Presbiteriana, <strong>da</strong> Igreja Católica, doConselho Mundial de Igrejas, de autori<strong>da</strong>des militares, doMovimento Democrático Brasileiro (MDB), dos deputados318 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>319


Lysâneas Maciel e Marcelo Cerqueira e até <strong>da</strong> mulher doGeneral Médici, então presidente <strong>da</strong> República.Diversos habeas corpus foram impetrados e negados sob aalegação de que Ivan não se encontrava preso em nenhumadependência militar.Ivan Mota Dias, de tantos codinomes, Cabana, Eli, Abel,Afonso e Cururu, desapareceu e seu corpo nunca foi encontrado.320 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>321


Izaurino Alves de SouzaIzaurino Alves de Souza nasceu na ci<strong>da</strong>de de Pompéu,Minas Gerais, no dia 12 de fevereiro de 1906. Filho do alfaiateAntônio Alves de Souza e de Maria do Carmo Barbosa, partilhoua infância com sete irmãos. Casou-se com Emília Alves <strong>da</strong> Silva,com quem teve 10 filhos.Com o ginásio completo, ele sentou praça na Guar<strong>da</strong> Civildo Estado de Minas Gerais, atendendo a convite de um grandeamigo <strong>da</strong> família. Egresso do Departamento de Mecânica doServiço de Transportes de Bondes do Estado, Izaurino cumpriutodo o período na corporação, fazendo jus a promoções pormerecimento, tendo se aposentado em 5 de dezembro de 1955.Militou na Ação Libertadora Nacional (ALN), organizaçãoque surgira em 1967 de uma cisão dentro do Partido ComunistaBrasileiro (PCB). Sua história liga-se intimamente ao nome deCarlos Marighella, antigo dirigente do partido. A filha Irma Alves,anos mais tarde, descreveria a prisão do pai, que ocorreu em suaresidência na presença <strong>da</strong> esposa e dos filhos ain<strong>da</strong> crianças,assustados com a invasão de sua casa por pessoas desconheci<strong>da</strong>s.São dela as palavras que se seguem neste pequeno relato:"Estava entardecendo, e todos nós nos preparávamos paradormir. Quatro homens armados chegaram e dois delesinvadiram a casa e deram voz de prisão, levando o meu paipara um lugar desconhecido. Ficamos vários dias sem vê-loe sem saber do seu paradeiro. Minha mãe, desespera<strong>da</strong>,procurava-o em to<strong>da</strong>s as delegacias. Até que um dia, umapessoa, vendo o sofrimento e angústia de todos, informounosque ele se encontrava no Departamento de OrdemPolítica e Social (DOPS), na sede <strong>da</strong> av. Afonso Pena".No DOPS a família conseguiu falar com Izaurino.A prisão de Izaurino foi o início <strong>da</strong> via-crúcis <strong>da</strong> família. Juntocom o almoço, que era levado sempre para o pai, seguia camufladoum bilhete pedindo notícias. Com sua transferência para o quartel<strong>da</strong> Polícia Militar de Minas Gerais, no bairro de Santa Efigênia, osencontros puderam ser mais freqüentes e demorados. Mas, maistarde, houve outra transferência, desta vez para o presídio sediadoem Juiz de Fora, onde permaneceu dois anos.Izaurino fora preso, a família submeti<strong>da</strong> ao sofrimento, ascrianças relega<strong>da</strong>s à ausência do pai porque o militante sempredefendera um programa de transformação social capaz de proporcionarque ocorresse mais justiça e de propiciar que o gritodos pobres fosse ouvido. Izaurino colaborou e trabalhou para aconstrução <strong>da</strong> Creche Menino Jesus, em 1938; lutou pela pensão<strong>da</strong>s viúvas <strong>da</strong> Guar<strong>da</strong> Civil do Estado de Minas Gerais; fundou aBan<strong>da</strong> de Música Santa Cecília e o Time de Futebol, ambos <strong>da</strong>Guar<strong>da</strong> Civil; de 1991 a 1993, lutou pela causa dos Trabalhadoresdo Serviço Público, sendo agraciado com uma Me<strong>da</strong>lha de Honraao Mérito pelos bons serviços prestados à categoria; e finalmentefoi integrante <strong>da</strong> Comissão Pró-Melhoramento do BairroConcórdia, quando a comuni<strong>da</strong>de recebeu calçamento nas ruas.Izaurino Alves de Souza faleceu em 11 de fevereiro de1998, aos 92 anos, em conseqüência de insuficiência cardiorrespiratóriae de acidente vascular cerebral. Sua lembrança, alembrança de um vivo combatente, jamais se apagou no coraçãode seus familiares e no de seus inúmeros amigos.Moscou 1985322 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>323


Música de Natal composta pelo vovô em1978 – ele se vestia de Papai Noel e entrava nasala com um saco cheio de balas e bombons,cantando esta letra:$WColaboração de Irma Alves <strong>da</strong> Silva Kerckhoven324 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>325


Jaime Petit <strong>da</strong> Silvatados sobre os desaparecidos políticos, Jaime Petit <strong>da</strong> Silva foicondenado por suas ativi<strong>da</strong>des subversivas, à revelia, a três anosde detenção pela 2ª Auditoria do Exército.Segundo versões oficiais, Jaime Petit <strong>da</strong> Silva está desaparecidodesde o dia 29 de novembro de 1973, após ter travadotiroteio com as Forças Arma<strong>da</strong>s. Tinha 29 anos à época.Jaime Petit <strong>da</strong> Silva, filho de JoséBernardino <strong>da</strong> Silva Júnior e de JulietaPetit <strong>da</strong> Silva, nasceu em Iacanga, SãoPaulo, no dia 18 de junho de 1945. Fez seusestudos iniciais em Amparo e Duartina,São Paulo.Perdeu o pai muito cedo, o que o obrigoua começar logo no trabalho. Nessa época,morou e estudou no Rio de Janeiro e, em1962, mudou-se para Itajubá, morando comseu irmão Lúcio Petit <strong>da</strong> Silva. Ingressouentão no Instituto Eletrotécnico de Engenhariaem 1965 e trabalhou como professor de Matemática eFísica em colégios de Itajubá e Brasópolis, no sul de Minas.Foi participante ativo do movimento estu<strong>da</strong>ntil, tendo sidoeleito presidente do Diretório Acadêmico de Engenharia, em Itajubá,em 1968. Era também militante do Partido Comunista doBrasil (PC do B).Sua ativi<strong>da</strong>de política não passaria despercebi<strong>da</strong>. Já em1968, foi preso em Ibiúna, São Paulo, durante a realização doXXX Congresso <strong>da</strong> União Nacional dos Estu<strong>da</strong>ntes (UNE).Com a intensificação <strong>da</strong> repressão, Jaime viu-se forçado aabandonar o curso de Engenharia. Em 1969, foi viver no interior,como eletricista. Na déca<strong>da</strong> de 70, mudou-se para a região deCaianos, no Araguaia, onde já viviam seus irmãos Lúcio e MariaLúcia.Segundo <strong>da</strong>dos existentes no Centro de Inteligência doExército e entregues à Comissão Externa <strong>da</strong> Câmara dos Depu-326 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>327


Jair Ferreira de SáEra uma vez, faz muito tempo, um menino. Viveu como aliber<strong>da</strong>de, sempre em movimentação. Era o nono de uma famíliade 14 irmãos, filhos do tropeiro Eurico Ferreira de Sá e Maria Rosade Sá, uma devota do carpinteiro José, o santo dos operários.Muitos anos depois, mesmo com i<strong>da</strong>de avança<strong>da</strong>, Maria Rosa nãoesqueceria que o calendário marcava 22 de março de 1941, quandoum tiquinho de gente rompeu de dentro dela como quem rasgae brota do chão e sem hesitar apresentou-se ao mundo berrando:Jair, dos Ferreira de Sá. O menino viveu vi<strong>da</strong> discor<strong>da</strong><strong>da</strong>, virouhomem ain<strong>da</strong> criança, tornou-se Jair, dos oprimidos e sua emoçãoencantou a todos que lutaram contra a tirania, nos subterrâneos<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, naqueles tempos sombrios, duros, de terror, impostospelo regime militar implantado no Brasil no Golpe de 1964.Jair viveu revoltoso e to<strong>da</strong> vez que a vi<strong>da</strong> parecia que ia,vinha vindo e ele não teve medo de encontrá-la. Foi assim desdeque nasceu. Olhos esbugalhados, o pequenino foi festejado pelospais e os irmãos Oscar, Terezinha, Geraldo, Zezé, Cléria eNathália. A ci<strong>da</strong>de, Nova Lima, era povoa<strong>da</strong> por operários heróicosque trabalhavam nas minas de ouro e prata do Morro Velho,extraindo riqueza para a empresa inglesa Saint John D'el ReyMining Company Limited. Nas profundezas <strong>da</strong> terra, os mineirosganhavam seu pão e morriam soterrados, afogados pela lamaem desastres jamais esquecidos por aquela gente. Em 1886, porexemplo, uma enorme pedra desmoronou e tampou a entra<strong>da</strong> <strong>da</strong>galeria, soterrando dezenas de operários; a empresa inglesa,com dificul<strong>da</strong>de para removê-la, inundou o lugar, afogando osque ain<strong>da</strong> respiravam. Já naquele tempo, o capitalismo no Brasilera assim, extrativo, perverso, concentrava a ren<strong>da</strong>, a pro-328 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>329


prie<strong>da</strong>de rural (a empresa inglesa era dona de 80% <strong>da</strong>s terras domunicípio) e as famílias de pequenos agricultores sem chão,meeiros como os Ferreira de Sá, viviam mu<strong>da</strong>ndo de lugar, ca<strong>da</strong>vez mais perto <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des.Na déca<strong>da</strong> de 1940 foram bater na Fazen<strong>da</strong> São Sebastião<strong>da</strong>s Águas Claras (Macacos), de onde carregavam carvão elenha em tropa de burro até Belo Horizonte. Terminaram ficandode vez na capital mineira. Aqui e ali, morando nas casinhas simplesdos bairros periféricos de Cachoeirinha, Vila Santo André efinalmente no Salgado Filho, a Vila Operária do Mato <strong>da</strong> Lenha.Foi lá, aos 7 anos de i<strong>da</strong>de, que o pequeno Jair ouviu <strong>da</strong> mãeMaria Rosa que a vi<strong>da</strong> também é para ser li<strong>da</strong> e começou a estu<strong>da</strong>rno Grupo Escolar Maurício Murgel. Cadernos na mão, ele iapara a escola a pé, com seu uniforme limpinho e engomado pelamãe no ferro de brasa, pesado.Passou a estu<strong>da</strong>r à noite, quando, aos 11 anos, tornou-setrabalhador assalariado. E viu, na sua casa modesta, chegaremos irmãos mais moços: Vicente, Eurico, Cleuza e Fábio. A vi<strong>da</strong>difícil, dura, tinha sua compensação na hora de cantar as cantigasde ro<strong>da</strong>, nas fogueiras de São João, nas novenas e terços deSão José, comuns entre o povo humilde <strong>da</strong>quele Brasil distante.Doze anos mais tarde, Jair, agora um rapaz, estava devolta a Belo Horizonte, depois de ter morado cinco anos com oirmão Geraldo, no Rio de Janeiro, onde trabalhara como escrituráriona Companhia de Armazéns Gerais de Minas, fizera cursode comércio básico na Escola Estácio de Sá e, junto com umpadre francês <strong>da</strong> Igreja do Largo do Santo Cristo, virou caminhantesolidário pelas favelas do antigo Distrito Federal, a velhaCapital <strong>da</strong> República. O Brasil estava modificado: Getúlio Vargasse suici<strong>da</strong>ra, Juscelino Kubitschek terminara seu man<strong>da</strong>to napresidência <strong>da</strong> República, Jânio Quadros havia renunciado eJoão Goulart tomara posse na presidência graças à mobilizaçãopopular e contra a vontade <strong>da</strong>s forças políticas conservadoras.Por essa época, o pai Eurico morreu de infarto. Era o anode 1958 e, um ano depois, o irmão Oscar também se foi. Com aslágrimas escorrendo pela face, Jair seguiu em frente. Concluiu ocurso de Contabili<strong>da</strong>de na Escola Técnica de Comércio Inconfidência,entrou para a Facul<strong>da</strong>de de Ciências Econômicas <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (FACE/UFMG) e trabalhavana Companhia de Armazéns e Silos do Estado de MinasGerais (CASEMG). E, caminhante, revolucionário, aju<strong>da</strong>va aorganizar o movimento político Ação Popular (AP), que renovouo pensamento <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> brasileira <strong>da</strong>queles tempos. Era oBrasil <strong>da</strong>s Ligas Camponesas, <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Contag, doComando Geral dos Trabalhadores, <strong>da</strong>s greves operárias de SãoPaulo, dos petroleiros, dos trabalhadores rurais, dos mineiros deNova Lima, dos alagados na Bahia e dos mocambos no Recife. OBrasil <strong>da</strong> Juventude Estu<strong>da</strong>ntil Católica (JEC), JuventudeUniversitária Católica (JUC), Juventude Operária Católica (JOC)e Juventude Agrária Católica (JAC), uma geração de jovens generosos,sonhadores que vislumbravam um País sem fome, semmiséria, sem opressores e oprimidos e que lutavam pela construçãode uma socie<strong>da</strong>de socialista. Jovens católicos e protestantes,alguns sem religião, políticos progressistas, militantesoperários e camponeses, que fun<strong>da</strong>vam a Ação Popular (AP) em1962, na ci<strong>da</strong>de de Salvador.Ao lado de Herbert de Souza, o Betinho, de Aldo Arantes,Severo Sales, que já se dizia ateu, e de outros jovens revoltososcomo ele, Jair Ferreira de Sá foi escolhido por seus companheirospara fazer parte <strong>da</strong> coordenação nacional <strong>da</strong> AP. Forma<strong>da</strong> principalmentepor integrantes <strong>da</strong> JUC, onde tinha a sua principalbase, a AP ampliava seus vínculos com os trabalhadores comquadros como Jair, que pertencia à JAC e desenvolvia importantetrabalho como coordenador <strong>da</strong> equipe de sindicalismorural <strong>da</strong> Regional Leste 11, <strong>da</strong> Conferência Nacional dos Bisposdo Brasil (CNBB), no Movimento de Educação de Base e papeldecisivo na organização <strong>da</strong> Contag. Naquela época, a Igrejatransmitia programas radiofônicos educativos, difundindo conhecimentose incentivando a sindicalização e os trabalhadoresouviam por aqueles radinhos receptores construídos artesanal-330 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>331


mente. É que, na época, a população brasileira somava 70 milhõesde habitantes, dos quais 38 milhões ain<strong>da</strong> viviam na zonarural e existiam apenas uns 6 milhões de rádios receptoresconstruídos pela indústria para to<strong>da</strong> aquela gente.Por essa época, Jair conheceu a também militante <strong>da</strong> APMaria José (Bizeh), com quem se casaria em 1965, depois dosprimeiros sinais <strong>da</strong> repressão que se instalou no Brasil um anoantes, com o Golpe Militar de 1964. Foram morar num pequenoapartamento na rua General Jardim, em São Paulo, próximo àEscola de Sociologia e Política, onde ele concluía o bachareladoem Sociologia e Política e ela terminava a pós-graduação emFilosofia, na Universi<strong>da</strong>de de São Paulo (USP). Foramincumbidos pela AP de levar ao movimento operário de SãoPaulo as idéias socialistas e as bandeiras democráticas deresistência ao regime militar. Assim, a AP estreitou seus vínculoscom os operários brasileiros, a exemplo do que já tinha feitona área rural.Até então, apesar <strong>da</strong> ditadura, Jair mantinha uma vi<strong>da</strong>legal, conservava os seus documentos ver<strong>da</strong>deiros e apenas aativi<strong>da</strong>de política era clandestina. Para sobreviver, ele faziapesquisas para uma empresa de planejamento e ia tocando a vi<strong>da</strong>com Bizeh, debatendo com os operários e os companheiros <strong>da</strong> AP.Mas a repressão policial do regime recrudesceu. Asprisões e perseguições obrigaram os ci<strong>da</strong>dãos a entrarem naclandestini<strong>da</strong>de ou exilarem-se no exterior. A repressão <strong>da</strong>ditadura modificou a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas, separando famílias, paisde filhos, irmãos de irmãos, mulheres de maridos. Nesse quadrorepressivo, a AP viu-se obriga<strong>da</strong> a novas transformações na suaprática política e debateu novos princípios teóricos de filósofoscomo Althusser, Karl Marx, Lenin, o pensamento de Mao TseTung, aproximando-se dos três últimos. No começo de 1967, Jairfoi enviado com outros companheiros para conhecer a experiênciado socialismo na República Popular <strong>da</strong> China. Voltaramfascinados. Depois foi a vez de Bizeh e outros quadros <strong>da</strong> AP visitarema China.Enquanto isso, no Brasil amor<strong>da</strong>çado, a repressão se intensificoucontra o movimento de massas e os grupos oposicionistas.A partir desse período, os militantes e principalmente os dirigentes<strong>da</strong> AP foram obrigados a trocar de nome, de documentose viver na completa clandestini<strong>da</strong>de. Dentro <strong>da</strong> organização, pormedi<strong>da</strong> de segurança, Jair usa o nome de Dorival e, a partir de1969, torna-se o principal dirigente <strong>da</strong> Ação Popular Marxista-Leninista (APML), a nova denominação <strong>da</strong> AP, tornando-se tambémum dos homens mais procurados pela polícia <strong>da</strong> ditadura.Em outubro e dezembro de 1970 e depois em 1971, Jair eseus companheiros sentem aquele gosto amargo do sofrimento:são presos, torturados e assassinados o engenheiro baiano JorgeLeal Gonçalves (até hoje desaparecido) no Rio de Janeiro, o líderoperário Raimundo Eduardo <strong>da</strong> Silva, em Mauá, São Paulo, e oestu<strong>da</strong>nte de Agronomia Luiz Hirata, em São Paulo, Capital. Abandeira de luta <strong>da</strong> AP era resistir e vincular-se aos movimentosestu<strong>da</strong>ntil, operário e camponês.Nesse Brasil <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970, onde a maioria dos 90milhões de habitantes já morava nas ci<strong>da</strong>des, os militantes <strong>da</strong>AP realizaram importante debate teórico sobre o caráter <strong>da</strong>socie<strong>da</strong>de brasileira, do Estado e <strong>da</strong> revolução e sobre a construçãode um partido proletário de tipo inteiramente novo. A discussão,por causa do sectarismo e dogmatismo, não foi aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong>suficientemente e terminou precipitando, em 1972, adivisão <strong>da</strong> APML: Haroldo Lima, Aldo Arantes e José RenatoRabelo encabeçam uma tendência majoritária que dá por encerra<strong>da</strong>a experiência <strong>da</strong> AP e, sem realizar o congresso defendidopor Duarte Pacheco Pereira, ingressam no Partido Comunista doBrasil (PC do B). Duarte Pereira, que defendia o aprofun<strong>da</strong>mentodo debate, termina sendo derrotado nas discussões e recusa-sea entrar no PC do B. Enquanto isso, Jair Ferreira de Sá e PauloWrigth, que também defendiam a realização do congresso ehaviam sido destituídos <strong>da</strong> direção pela maioria <strong>da</strong> ComissãoExecutiva, rearticulam a APML e seguem em frente com a bandeira<strong>da</strong> organização.332 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>333


Em 1972 e 1973, a repressão policial chega ao seu auge. OAto Institucional nº 5 (AI-5) já tinha sido baixado, a nova Lei deSegurança Nacional estava em vigor desde setembro de 1969,Emílio Garrastazu Médici era o novo general-presidente <strong>da</strong>ditadura desde dezembro de 1969 e o seu governo se caracterizavapelo terror, o período mais duro de todos os 20 anos doregime militar no Brasil. As manifestações de ruas estavamproibi<strong>da</strong>s, teatros e escolas eram invadidos pela polícia, a censuraprévia investia contra livros e imprensa. E, desde maio de1970, a famigera<strong>da</strong> Operação Bandeirantes, de São Paulo, estavalegaliza<strong>da</strong>, tendo passado a chamar-se Destacamento deOperações de Informações do Centro de Operações de DefesaInterna (DOI/CODI): organizado em várias capitais brasileiras, osDOI/CODIs tornaram-se os campos de concentração do regimemilitar e, junto com o Centro de Informações e Segurança <strong>da</strong>Aeronáutica (CISA), o Centro Nacional de Informações <strong>da</strong>Marinha (CENIMAR), o Serviço de Informação do Exército e oDepartamento de Ordem Política e Social (DOPS), estabeleceuum regime ain<strong>da</strong> mais sanguinário contra os brasileiros.O cerco policial sobre a AP se intensifica e Bizeh, comgraves problemas de saúde, procura<strong>da</strong> pela polícia e correndorisco de vi<strong>da</strong>, foi obriga<strong>da</strong> a exilar-se no Chile, de SalvadorAllende, em 1972. As famílias dos Jaime e dos Ferreira de Sá juntaramdinheiro para que Jair também saísse do País, mas ele serecusou a ficar longe <strong>da</strong> pátria. Chegou a ir ao Chile, em dezembrode 1972, passou o Natal com Bizeh e retornou ao Brasil.Distantes e naquelas condições, o casamento chegou ao fim.Sem medo do aberto perigo, ele vivia arriscando as pequenase as grandes horas. Em meados de 1973, Jair mudou-se parao Rio de Janeiro, porque em São Paulo as condições de segurançae de sobrevivência estavam precárias. O cerco policial seapertava sobre a AP e dezenas de pessoas foram presas a partirde setembro de 1973. A ca<strong>da</strong> notícia de prisão, tortura e mortedos companheiros, Jair voltava a sentir aquele gosto amargo queexperimentara pela primeira vez na adolescência. A brutali<strong>da</strong>de334 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>335


estocava certeiramente o seu coração e ia ferindo-o mortalmente.Dentro do seu peito ocorriam explosões sem nem saber,estalos surdos, barulho de coisas rompendo, estraçalhando...dilacerando.Mas, ele ia em frente, agora ao lado <strong>da</strong> sua segun<strong>da</strong>grande paixão, Doralina, dos Rodrigues Carvalho (Dora), ex-diretora<strong>da</strong> UNE, uma revoltosa, discor<strong>da</strong><strong>da</strong> e persegui<strong>da</strong> como ele.O amor era vivido perigoso. Moraram primeiro no Grajaú. Saíramàs carreiras. A polícia chegou perto, muito perto e eles iammu<strong>da</strong>ndo de lugar, de endereço, de bairros, an<strong>da</strong>ndo aqui e alipelo Rio de Janeiro. Não interrompiam as ativi<strong>da</strong>des, cobriam ospontos, encontros de rua marcados com companheiros que nãoapareciam porque estavam presos. Entre 1973 e 1974, a maioriados militantes estava presa e restaram poucos do lado de fora<strong>da</strong>s prisões, como ele e Dora.Em 1975 e 1976, a AP engajou-se na luta pela anistia edireitos humanos e atuou junto com o movimento popular quecomeçava a se rearticular, exigindo liber<strong>da</strong>des democráticas noPaís. Num dia qualquer de 1977, ain<strong>da</strong> clandestino, quando participavade uma reunião no interior de São Paulo, o coração deJair não agüentou de tanta dor. Era o primeiro infarto declaradoe assinado. Quando os médicos abriram seu peito, foi revelado:outros infartos tinham ocorrido, sem nem saber, ao longo dosanos de clandestini<strong>da</strong>de. Colocaram pontes de safena e Jair,determinado, retomou suas ativi<strong>da</strong>des como antes.Já vivendo com sua nova companheira, Ângela, dosBorba, sua terceira e derradeira paixão, Jair com seu coraçãoferido participou <strong>da</strong> campanha eleitoral de 1978 e <strong>da</strong> campanhapela anistia. Em 1979, a luta pela anistia é vitoriosa e ele voltoua usar seu próprio nome, Jair Ferreira de Sá, e saiu de uma clandestini<strong>da</strong>dede 15 anos. Entrou em contato com a família, soubedo falecimento de Terezinha, sua irmã mais velha. Com o apoiodecisivo de Ângela, ele retornou à vi<strong>da</strong> legal, fez pós-graduaçãoem Ciências Sociais na Universi<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro, foi eleitoduas vezes para a diretoria <strong>da</strong> Associação Nacional dosSociólogos, participou <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção do Partido dos Trabalhadores(PT) e estudou a reali<strong>da</strong>de brasileira, buscando contribuir para aabertura de novos horizontes para a esquer<strong>da</strong> e sua unificação.Em 1981, seu coração foi operado pela segun<strong>da</strong> vez enovas pontes de safena foram coloca<strong>da</strong>s. O peito sofrido e feridoteve uma compensação e explodiu de alegria em maio de 1982:emocionado, Jair viu seu filho Miguel romper de dentro <strong>da</strong> mãee brotar para a vi<strong>da</strong> como uma semente germina<strong>da</strong>, virandoplanta, fruto do seu amor com Ângela. Naquele mesmo ano, nodia dos pais, ele escreveu ao filho: "Pela primeira vez em 41 anosposso tomar essa <strong>da</strong>ta também como minha. Por sua causa,porque você veio ao mundo e me fez pai. Rapaz, isso é umaenorme coisa: me fez pai. Foi sofri<strong>da</strong> a espera, mas valeu muito,pois pintou você. Já chegou botando pra quebrar, furando prazos,antecipando a vi<strong>da</strong>...".A esperança que mantém um homem vivo fazia Jair lutarao lado de sua gente na campanha pelas Diretas-já, que levouuma multidão de milhões de pessoas às praças públicas de todoo Brasil exigindo o fim do regime militar e eleição direta parapresidente <strong>da</strong> República. Em outubro de 1984, ele foi hospitalizadopela terceira vez para fazer uma angioplastia. Mais umavez, quando sua vi<strong>da</strong> parecia que ia, vinha vindo e ele não tinhamedo de encontrá-la. Enfrentava as cirurgias determinado esaltava para dentro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Mas, quando saía do hospital, zombava<strong>da</strong> morte e <strong>da</strong>s recomen<strong>da</strong>ções médicas. Os velhos e novosamigos, antigos militantes <strong>da</strong> AP (que já tinha acabado), as exmulheresBizeh e Dora e sua mulher Ângela insistiam, brigavampara que Jair se cui<strong>da</strong>sse. Mas, o homem zombava de tudo, tinhaprazer de viver e quando encontrava comi<strong>da</strong> gostosa, faziaum prato bem grande, <strong>da</strong>queles de pião, apesar <strong>da</strong> dieta rigorosaque os médicos passavam. Jair, dos oprimidos era assim, continuavaa viver arriscado. Por isso e por to<strong>da</strong> sua generosi<strong>da</strong>dehumana e sua luta ao lado dos deser<strong>da</strong>dos, foi um <strong>da</strong>queles amigosespeciais que a gente guar<strong>da</strong> para sempre, a sete chaves, nolado esquerdo do peito.336 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>337


Mas no dia 30 de janeiro de 1985, o coração do lutadorparou definitivamente. No velório de uma capela do CemitérioSão João Batista, no Rio de Janeiro, operários, estu<strong>da</strong>ntes, parlamentares,representantantes de partidos políticos, amigos,parentes e companheiros foram despedir-se de Jair, dos Ferreirade Sá. Choravam lágrimas escorrendo pela face. Foram homenageá-lo,discursaram. Depois seu corpo morto seguiu para serenterrado em Belo Horizonte, ao lado do pai Eurico, do irmãoOscar e <strong>da</strong> irmã Terezinha. Lá estava um outro tanto de gente,irmãos e irmãs sentindo aquele gosto amargo de sofrimento. Amãe Maria Rosa, que enterrava mais um filho, sentiu a dormaior. Na hora em que seu menino discor<strong>da</strong>do, que viveu comoliber<strong>da</strong>de, estava sendo enterrado, seu rosto firme, íntegro, indicavaque além <strong>da</strong> morte morri<strong>da</strong>, Jair, com certeza, tambémmorrera de morte mata<strong>da</strong> to<strong>da</strong>s as vezes que prenderam, torturaram,feriram e assassinaram um irmão, um companheiro seu.Na lápide de sua sepultura ficou escrito para sempre por suamulher Ângela e por seu filho Miguel, que Jair, dos Ferreira deSá "Na política, sonhou grande. Sonhou o amor generoso e despojado".Jair, o menino discor<strong>da</strong>do de D. Maria Rosa, o Jair dosoprimidos, o Jair amigo de Betinho, do Padre Vaz, do HonestinoGuimarães, do Paulo Wright, <strong>da</strong> Dora e de tantos outros, o Jaircompanheiro <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de e do socialismo, o Jair, autor deImagens <strong>da</strong> Revolução em parceria com Daniel Aarão Reis Filho,o Jair que usava os codinomes José Roberto, Rubens, Dorival,Dori, o Jair, esse caminhante <strong>da</strong> sau<strong>da</strong>de, quando partiu, deixouum grande legado e ensinou a todos que na luta pela vi<strong>da</strong>,homens e mulheres precisam sonhar, acreditar nos seus sonhos,sem esquecer jamais que muita diferença faz entre lutar com asmãos ou abandoná-las para trás.(A<strong>da</strong>ptado de texto de autoria Otto Filgueiras, jornalista)338 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>339


James Alen LuzJames Alen Luz nasceu em Buriti,Goiás, no dia 21 de dezembro de 1938,filho do alfaiate Cassiano Diniz Filho <strong>da</strong>Luz e <strong>da</strong> costureira Rolandina Martins<strong>da</strong> Luz. James teve sete irmãos.James Alen Luz não figura nalista dos desaparecidos políticos divulga<strong>da</strong>pelo Ministério <strong>da</strong> Justiça.Tampouco seu nome é colocado nopedestal dos heróis <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> quandosão lembrados os protagonistas <strong>da</strong>resistência ao regime do exceção instaladoem 1964. Um dos maioresexpoentes <strong>da</strong> luta arma<strong>da</strong> instala<strong>da</strong> no País após a edição do AtoInstitucional n º 5 (AI-5), no auge <strong>da</strong> repressão política duranteo governo Médici, James Alen foi o último dirigente de peso <strong>da</strong>organização inimiga número um dos militares, a VAR-Palmares.Iniciou sua trajetória política na Escola Técnica Comercialde Campinas no final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 50. De oratória comovente,no começo ele se filiava às teses udenistas e proclamava emseus discursos a bandeira de um nacionalismo que trafegavaentre o pueril e a xenofobia. Após a revolução cubana, as imagensmitológicas de Che Guevara e Fidel Castro sedimentaramsua intuição esquerdista e definiram caminhos em direção à lutaarma<strong>da</strong>. Ao lado de vários companheiros, Alen passou a integraras Ligas Camponesas do pernambucano Francisco Julião, realizandoexercícios de guerrilha no interior de Goiás e MatoGrosso."Diante <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> AméricaLatina, as reformas de base são a únicaalternativa para as maiorias. Do contrário,lamento profun<strong>da</strong>mente que este continenteseja banhado em sangue",escreveu James em 1963.O líder estu<strong>da</strong>ntil chegou a cursar oquinto ano de Direito, mas o Golpe Militarde 1964 obrigou-o a entrar na clandestini<strong>da</strong>de.Em 1966, já como integrante doPartido Comunista do Brasil (PC do B),James foi preso e conduzido ao quartel do10º BC, hoje 3ª Briga<strong>da</strong>, no Setor SantaGenoveva. Interrogado por um coronel, ele replicou: "Oficial aquisou eu, que adquiri patente na guerrilha".De Goiânia, ele foi man<strong>da</strong>do para o Rio de Janeiro, ondeficou enclausurado na Fortaleza <strong>da</strong>s Lages.Depois de três meses no cárcere, numa ilha <strong>da</strong> baía deGuanabara, James Alen e outros companheiros já tinham prontaa estratégia de fuga. Tudo foi facilitado porque o cabo Arraes,chefe <strong>da</strong> guar<strong>da</strong>, foi contaminado pelos ideais revolucionários edecidiu desertar com os prisioneiros. Em um barco de pescador,os quatro fugitivos alcançaram a praia do Flamengo e logo estavamseguros na embaixa<strong>da</strong> do Uruguai, à espera do exílio.Impetuoso, destemido, de temperamento explosivo, JamesAlen não se conformava com os dias frios e o cotidiano modorrentode Montevidéu. Procurado vivo ou morto, ele voltou para oBrasil e desenvolveu ações arma<strong>da</strong>s em São Paulo e Rio de Janeiro,liderando a Ala Vermelha do PC do B, uma facção radicalque via na guerrilha urbana o caminho de libertação do País.No final de 1969, James aproximou-se do grupo de CarlosLamarca, capitão do Exército que desertara para combater o regimemilitar. O resultado desta união foi o seqüestro de umaaeronave. Em 1972, um aparelho <strong>da</strong> VAR-Palmares foi estouradono Rio de Janeiro e James Alen <strong>da</strong>do como morto. Seu irmão,340 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>341


Walbis Suel, fez o reconhecimento de sete corpos, mas não identificouo dele. Para os militares, isso era um sinal de que a caça<strong>da</strong>tinha de continuar.O guerrilheiro, a exemplo de tantos brasileiros, ficou unstempos no Chile de Salvador Allende. Mesmo contrariando decisãodo partido, voltou ao Brasil. No Natal de 1972, fez o últimocontato com a família.Apesar de existirem várias versões sobre seu desaparecimento,há fortes indícios de que, em março de 1973, James AlenLuz morreu em acidente automobilístico nos arredores de PortoAlegre. De seu corpo, contudo, até hoje não se sabe o paradeiro.(Texto de Márcio Fernandes)342 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>343


Jayme GoifmanRUA JAMES ALEN LUZJayme Goifman nasceu na ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro, nodia 15 de agosto de 1928, filho dos imigrantes russos NuteGoifman e Liuba Goifman, ambos militantes do Partido ComunistaBrasileiro (PCB). Irmão de José e Eva Goifman, casou-secom Berta Ludischevitch Goifman, com quem teve os filhos Márciae José Henrique Goifman.Foi militante e funcionário do PCB. A família Goifman,judia de origem russa, tinha um pai sério, de poucas palavras esempre muito ocupado. A mãe era uma matriarca preocupa<strong>da</strong> eapreensiva com o que poderia acontecer a seus filhos militantescomunistas, pois ela e o esposo já haviam passado por grandesdificul<strong>da</strong>des. Tal era o envolvimento <strong>da</strong> família, que o próprioapartamento em que residiam era utilizado para a realização dereuniões clandestinas de militantes comunistas.Numa de suas crônicas, o escritor mineiro RobertoDrummond, que se dizia stalinista linha dura, recordou algunsmomentos que viveu junto com Jayme Goifman e outros companheiros,quando lideravam comícios-relâmpagos nos bondeselétricos de Belo Horizonte. Entravam cinco, seis militantes numbonde, como se não se conhecessem, e, numa para<strong>da</strong>, um delesfazia um discurso, de acordo com a palavra de ordem do partido.Quando os agentes do Departamento de Ordem Política e Social(DOPS) chegavam, só restava a fuga. Os comícios eram programadospara as noites.Jayme começou cedo a sua trajetória na vi<strong>da</strong> política. Aos4 anos, foi preso com seus pais, em São Paulo, sob a acusação deserem comunistas. Com esta i<strong>da</strong>de, ele freqüentava reuniões doPCB, pronunciava palavras como capitalista e burguês e gritava344 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>345


slogans como <strong>Viva</strong> o proletariado!. Segundo alguns observadores,Jayme teria impressionado o próprio presidente <strong>da</strong> República,Getúlio Vargas.Após a prisão, Jayme, junto com seus pais, foi levado paraa casa de um general do Exército que quis mostrar para suafamília aquela criança exótica. Foi encarcerado na Ilha Grande,no Rio de Janeiro: como os pais estavam presos, os militaresacharam adequado que Jayme também permanecesse por lá.Já com 8 anos, Jayme e seus dois irmãos foram levadospela mãe para visitar o pai, Nute Goifman, que tinha sido transferidopara o presídio Tiradentes, em São Paulo. Na saí<strong>da</strong>, umrabecão os esperava e as crianças foram tira<strong>da</strong>s à força <strong>da</strong> mãepara serem interna<strong>da</strong>s em uma instituição para menores abandonados.Anos depois, o DOPS mineiro o acusou de ter assassinadoum operário durante uma manifestação. Goifman desmentiu aacusação. Segundo ele, os policiais queriam apenas tirar a forra<strong>da</strong> Passeata pela Paz que fora realiza<strong>da</strong> anteriormente comgrande sucesso. Vinte, dos seus 69 anos, foram passados atrás<strong>da</strong>s grades, entre o juizado de menores, o DOPS e várias penitenciárias.Sua última detenção ocorreu em 1977, durante a qual,encapuzado, foi torturado por militares. Mesmo assim, mais deuma vez ele afirmou que nunca deixou de carregar no peito osonho de ver um Brasil melhor.Vitimado pelo câncer, JaymeGoifman faleceu em junho de 1998.RUA JAMES ALEN DA LUZ346 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>347


Jeová de Assis GomesJeová de Assis Gomes nasceu emAraxá, no Triângulo Mineiro.Estu<strong>da</strong>nte de Física na Universi<strong>da</strong>dede São Paulo (USP), foi militante <strong>da</strong>Ação Libertadora Nacional (ALN) e,mais tarde, do Movimento de LibertaçãoPopular (MOLlPO). Era conhecidopelos nomes Aurélio, Antônioe Osvaldo.Foi preso em Brasília, no dia 12 denovembro de 1969, enquanto tentavaorganizar a luta revolucionária naCapital <strong>da</strong> República. Levado paraSão Paulo, foi barbaramente torturado.Queimaduras provoca<strong>da</strong>s com oauxílio de fios elétricos marcaram-lheo tórax, os braços e as pernas. Dependurado no pau-de-arara orapelos braços, ora pelas pernas, teve distensão nos tendões deligamento <strong>da</strong>s pernas com os pés e <strong>da</strong>s mãos com os braços. Asduas pernas foram fratura<strong>da</strong>s e tiveram de ser engessa<strong>da</strong>s.Mesmo com o peso dessa barbárie, Jeová conseguiuretornar à liber<strong>da</strong>de. Em 1970, foi trocado pelo embaixador VonHolleben, <strong>da</strong> Alemanha Ocidental, tendo sido banido para aArgélia no dia 13 de junho <strong>da</strong>quele ano. Em 1971, voltou para oBrasil, mas, no dia 9 de janeiro de 1972, na ci<strong>da</strong>de de Guará,Goiás, onde estava residindo, Jeová foi morto com tiros demetralhadora, pelas costas, enquanto assistia a uma parti<strong>da</strong> defutebol. Havia sido descoberto pela polícia.Segundo relato de um familiar, Jeová teria ido a um encontromarcado num domingo de janeiro de 1972. Enquanto aguar<strong>da</strong>vaa chega<strong>da</strong> do companheiro, dirigiu-se ao campo de futebol,onde estava sendo realiza<strong>da</strong> uma parti<strong>da</strong> de futebol entre doistimes de ci<strong>da</strong>des <strong>da</strong> região, única atração em Guará naquele dia.A torci<strong>da</strong> estava composta de pessoas varia<strong>da</strong>s, inclusive comtorcedores que usavam terno e haviam se dirigido até lá decarro, atitude muito suspeita para aquela ocasião. Vários participantes,percebendo a estranheza, começaram a gritar seunome: Jeová! Jeová!. Embora estivesse usando nome e documentosfalsos, ele percebeu que tinha sido descoberto e tratoude fugir. Foi aí que aconteceu o acidente fatídico: Jeová de AssisGomes foi alvejado por uma raja<strong>da</strong> de metralhadora.Naquele mesmo dia, um familiar solicitou uma certidão deóbito na tentativa de esclarecer os fatos. Mas o Sargento-Delegado, recusando, afirmou que "os homens do Exército orientarampara não fornecer nenhum documento sobre aquele episódioe que o governo se encarregaria de enviar documentos e pertencesdo morto".A família de Jeová de Assis Gomes aguar<strong>da</strong> até hoje umaexplicação sobre a morte do saudoso filho.348 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>349


João Batista Franco DrummondJoão Batista Franco Drummond, filho deJoão Baptista Moura Drummond e Zilah CarvalhoDrummond, nasceu no dia 28 de maio de1942, na Fazen<strong>da</strong> <strong>da</strong>s Posses, em Varginha, MinasGerais. Tinha quatro irmãos: Zulma, Vânia,Augusto e Vanessa.Cursou o Ensino Fun<strong>da</strong>mental no GinásioSalesiano Dom Bosco, de Cachoeira do Campo eo Ensino Médio no Colégio Loyola em Belo Horizonte.Em 1961, aprovado no vestibular, ingressouno curso de Economia <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Ciências Econômicas<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (FACE/UFMG),o qual concluiu em 1966. Enquanto estu<strong>da</strong>nte, no período de1964/65, exerceu a presidência do Diretório Acadêmico <strong>da</strong>quelaFacul<strong>da</strong>de e foi um dos principais organizadores do 27º e do 28ºCongressos <strong>da</strong> União Nacional dos Estu<strong>da</strong>ntes (UNE).Além de sua militância na política estu<strong>da</strong>ntil, tomavaparte, desde 1963, no movimento camponês no sul de Minas enas campanhas eleitorais naquela região, juntamente com olíder operário Dazinho. Inicialmente, foi membro <strong>da</strong> organizaçãoAção Popular (AP) e, posteriormente, <strong>da</strong> Ação Popular Marxista-Leninista (APML), onde exerceu diversas funções, como a deresponsável pela Secretaria de Organização (1969) e pelo ComitêPolítico (1971).Entre os anos de 1969 e 1970, foi julgado pela JustiçaMilitar e teve seus direitos políticos cassados por 10 anos, alémde ter sido condenado, à revelia, a 14 anos de prisão. Em 1972,passou a viver na clandestini<strong>da</strong>de. Com a incorporação de parte350 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>351


dos militantes <strong>da</strong> APML ao Partido Comunista do Brasil (PC doB), passou a militar nesse partido, vindo a integrar seu ComitêCentral a partir de 1974.Foi preso no dia 16 de dezembro de 1976, quando a direçãodo PC do B encontrava-se reuni<strong>da</strong> numa casa localiza<strong>da</strong> no bairro<strong>da</strong> Lapa, em São Paulo. No episódio, conhecido como o Massacre<strong>da</strong> Lapa, morreram Pedro Pomar e Ângelo Arroyo. João foipreso já fora <strong>da</strong> casa e levado ao Destacamento de Operações deInformações do Centro de Operações de Defesa Interna(DOI/CODI), onde morreu sob tortura.Em nota oficial assina<strong>da</strong> pelo General Dilermando GomesMonteiro, o II Exército comunicou sua morte por atropelamento.João Batista deixou dois filhos, Rosamaria e Sílvia, de seucasamento com Maria Esther Cristelli Drummond. Seu corpo foienterrado no Cemitério do Parque <strong>da</strong> Colina, em Belo Horizonte.Com sau<strong>da</strong>des eternas, seus familiares a ele dedicaram o textoque a seguir se transcreve:João...Às vezes, por alguma ou nenhumarazão, somos chamados aopassado e, assim, reabrimos feri<strong>da</strong>sprofun<strong>da</strong>s que nem os muitos anostranscorridos conseguem cicatrizar.Isso acontece conosco, João,sempre que retornamos no tempo e,de novo, vivemos nossa amizadeterna e cúmplice de crianças, adolescentese adultos. Mais não vivemos, porque nãodeixaram.Dividimos intensamente as brincadeiras de rua,desde as pela<strong>da</strong>s na nossa Paracatu até a bente-altas, asbolas de gude e o "tapão" de figurinhas. Da mesma forma,as férias na fazen<strong>da</strong>, pulando os montes de café, competindopelos "felipes", o esconde-esconde pela noiteadentro, as para<strong>da</strong>s na ven<strong>da</strong> para a sodinha de abacaxi,as primeiras traga<strong>da</strong>s às escondi<strong>da</strong>s, as estóriasmirabolantes que, ao mesmo tempo, nos encantavam eassustavam. Igualmente partilhamos os carnavais naNovo Império, com você sempre firme no tamborim, semperder o repique. E, também, os bailes com conjuntos debolero, dois pra lá dois pra cá e, eventualmente, a grandeorquestra com muito mambo, samba e chá-chá-chá. Nóséramos bons nisto, hein? As festas foram muitas eseguiram pela vi<strong>da</strong> afora com você já então nos encantandocom seu violão e a voz tão afina<strong>da</strong>.Dividimos também intensamente outras descobertas,novas experiências, essas já não tão alegres mas,igualmente, povoadoras de sonhos. A imposição do colégiode que queimássemos os livros do Monteiro Lobato foium dos nossos primeiros cheiros de violência, de injustiçae, portanto, de decepção. E fomos crescendo por aí, comtantos outros desses malditos cheiros, agredidos e reagindocomo podíamos, pois descendemos de troncos firmes evalorosos.Chegou o momento em que nos separamos e, detudo, nos sobrou uma consciência profissional e, paravocê, uma razão forte para viver.A partir <strong>da</strong>í nossos encontros foram esporádicos.Ca<strong>da</strong> um deles era marcado, a princípio, por ansie<strong>da</strong>de eexpectativa e, depois, pelo alívio e pura felici<strong>da</strong>de doencontro bem sucedido.Vimos você, João, examinar nossas casas nomomento <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> à procura do melhor caminho paraa fuga, caso essa fosse necessária. Nem é preciso falardos nossos sentimentos sobre este ato que revelava claramentea dura reali<strong>da</strong>de por você vivi<strong>da</strong>. Reali<strong>da</strong>de queenfim lhe tomou a vi<strong>da</strong>.Entretanto, eram momentos de muita alegria.Matávamos as sau<strong>da</strong>des com abraços, beijos, risos e notíciasrega<strong>da</strong>s com muito Mate Couro e o famoso lombo <strong>da</strong>mãe Zilah. As conversas com você eram sempre carrega<strong>da</strong>sde calma e sabedoria. Fazíamos mil perguntas,352 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>353


uscando entender melhor sua opção de vi<strong>da</strong>. Suamaneira de responder assemelhava-se àquela de um ver<strong>da</strong>deiromestre, pois, com paciência e interesse, vocêenvere<strong>da</strong>va por nossas inquietações. Sempre sereno, vocênos assegurava sobre a real possibili<strong>da</strong>de de uma saí<strong>da</strong>justa e pacífica para o nosso País. Você nos dizia que ocaminho seria desbravado por pequenos passos, um apóso outro e, ain<strong>da</strong>, que ca<strong>da</strong> hora e ca<strong>da</strong> dia tinham suaimportância no trilhar para um futuro melhor. Você afirmavaque ca<strong>da</strong> um de nós tinha uma ampla tarefa arealizar por onde passássemos, seja na família, na escola,no trabalho e na profissão. Como bom fotógrafo, vocêsempre fazia analogia entre os atos do cotidiano e afotografia, dizendo-nos que ambos, na sua singulari<strong>da</strong>de,criavam efeitos desencadeadores.Falando em fotografia, João, que surpresa saberdos prêmios nacionais ganhos por você, sob pseudônimo,neste ofício que lhe permitiu sustentar sua famíliadurante tantos anos.Descrever você, João, é uma tarefa quase impossível,pois as palavras são pobres para transmitir a riquezade sua pessoa: tranqüilo, inteligente, paciente, sério, criativo,persistente, carinhoso, contemplativo e decidido,filho, irmão, esposo e pai dedicado.Hoje sabemos que você, na sua loucura amorosapela Pátria, pelos valores coletivos - essência exclusiva<strong>da</strong>queles capazes de provocar mu<strong>da</strong>nças para melhor nahumani<strong>da</strong>de - subestimou a repressão. Assim, perdemossua presença, sentimos e choramos sua falta, mas saibaque nunca duvi<strong>da</strong>mos de sua certeza de que é possívelum mundo melhor.Até hoje, nas nossas vi<strong>da</strong>s pessoais e profissionais,lembramos <strong>da</strong>s conversas com você, João - ou Evaristo,ou Venâncio, ou Marcelo ou Zé - e, a ca<strong>da</strong> passo <strong>da</strong>do emdireção à digni<strong>da</strong>de, continuamos com um sonho do qualtivemos o privilégio de participar.(Texto de Zulma, Vânia, Suzanne e Vanessa Drummond)354 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>355


João Bosco Burnier - PadreBurnierJoão Bosco Burnier, o Padre Burnier,nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 11de junho de 1917, filho de Henrique Burnier eMaria Cândi<strong>da</strong>. Fizeram-lhe companhia nainfância nove irmãos, sendo que dois deles,além de João Bosco, optaram pelo sacerdócio:Frei Martinho e Monsenhor Vicente PenidoBurnier.De sua trajetória em favor <strong>da</strong> justiça ede melhores condições para o povo sofrido,especialmente a comuni<strong>da</strong>de indígena, fezparte um episódio de resultado trágico, que o levou à morte. Em12 de outubro de 1976, em companhia do Bispo de São Félix doAraguaia, Dom Pedro Casaldáliga, o Padre Burnier compareceuà cadeia pública de Bonito, Mato Grosso do Sul, para apurardenúncias sobre torturas pratica<strong>da</strong>s contraseus paroquianos, em especial duas mulheres<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de. Na ocasião, duasbalas no crânio, dispara<strong>da</strong>s cara-a-cara,tiraram-lhe covardemente a vi<strong>da</strong>.A trágica morte do Padre Burnier teverepercussão impressionante. Todos osmeios de comunicação se ocuparam do fatono Brasil e no exterior durante vários dias,descrevendo as cenas de sua agressão,agonia e morte de forma pormenoriza<strong>da</strong>. Amissa de sétimo dia congregou imensamultidão. O povo fez do Padre Burnier um mártir seu e, durantea missa, uma <strong>da</strong>s mais participa<strong>da</strong>s de que se tem notícia emBonito, expressou todo o seu sofrimento, sua sede de liber<strong>da</strong>de esua indignação. A cadeia de Bonito foi destruí<strong>da</strong> por esse povoindignado, que julgou naquele momento que ela não se prestavaa fazer nenhuma espécie de justiça: celebrou-se a Eucaristia,plantou-se a cruz e derrubou-se a cadeia, tudo num gesto só.No conforto a seu povo, Dom Pedro Casaldáliga afirmouque "a morte do Padre Burnier não foi uma morte morri<strong>da</strong>, masvivi<strong>da</strong>, consciente, generosa, uma esperança". Ela abria sen<strong>da</strong>sde luz para que todos, ouvindo os gritos dos irmãos desamparados,dessem as mãos uns aos outros, seguindo juntos o seu caminho.356 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>357


João de Carvalho BarrosJoão de Carvalho Barros era veterinário, casado e pai deum filho.No dia 4 de abril de 1964, sua residência foi invadi<strong>da</strong>, emBelo Horizonte, Minas Gerais, por elementos não identificados.Balearam sua mulher e seu filho, depre<strong>da</strong>ram tudo o queencontraram e o assassinaram, barbaramente, com cinco tiros,num hediondo crime político.Eram os primeiros dias do Golpe Militar.358 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>359


João Firmino LuziaJoão Firmino Luzia, natural <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Belo Horizonte,Minas Gerais, nasceu no dia 31 de dezembro de 1923. Casadocom Ilka, foi pai de José Firmino, Eustáquio, Heloísa, AntônioCarlos e Nilton. Netos e bisnetos, mais tarde, completaram-lheuma grande família.Militante político, marceneiro, foi presidente do sindicatodessa categoria e filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).Em 1957, representou sindicatos brasileiros em diversos congressostrabalhistas a convite de países comunistas e socialistaseuropeus, razão pela qual permaneceu sob prisão preventivaentre 31 de julho de 1964 a 23 de abril de 1965, quando foi colocadoem liber<strong>da</strong>de condicional.Solicitou asilo político na Argélia, mas não pôde, entretanto,empreender viagem àquele País por dificul<strong>da</strong>des financeiras.Buscou, a partir de então, a clandestini<strong>da</strong>de, mas, em 7 defevereiro de 1966, foi condenado pela Justiça Militar a 17 anosde reclusão. Embora ele jamais tivesse falado sobre agressões outorturas, a esposa, D. Ilka, admitiria, anos mais tarde, quechegou a vê-lo muito machucado.Anistiado em 1979, retomou suas ativi<strong>da</strong>des políticas ecolaborou para a fun<strong>da</strong>ção do Partido Democrático Trabalhista(PDT), tendo sido seu conselheiro e presidente de honra até aépoca de seu falecimento, em 19 de setembro de 1989.360 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>361


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João Lucas AlvesJoão Lucas Alves nasceu na ci<strong>da</strong>de de Canhotinho,Pernambuco, no dia 2 de novembro de 1935. Cursou as quatroprimeiras séries do Ensino Fun<strong>da</strong>mental no Grupo EscolarMaciel Pinheiro e as seguintes no Colégio Pernambucano e noGinásio Visconde de Mauá, em Recife. Posteriormente, estudouna Escola de Especialistas <strong>da</strong> Aeronáutica, em Guaratinguetá,São Paulo, onde se diplomou 3º Sargento <strong>da</strong> Aeronáutica.Serviu na Base Aérea de Ibura, Pernambuco, de 1957 a1959, quando então foi selecionado para participar de cursos deespecialização em San Antonio, Texas, Estados Unidos, porconta do Ministério <strong>da</strong> Aeronáutica. Retornando ao Brasil emagosto de 1961, foi transferido para a Base Aérea de Santa Cruz,no Rio de Janeiro.Militante do Comando de Libertação Nacional (COLINA) e<strong>da</strong> Ação Libertadora Nacional (ALN), João Lucas foi preso eexpulso <strong>da</strong> Força Aérea Brasileira (FAB), em 1964, pelo AtoInstitucional nº 1 (AI-1) assinado pelo então presidente CastelloBranco. Mais tarde, graças aos esforços <strong>da</strong> sua irmã, que recorreua to<strong>da</strong>s as instâncias, o ex-Sargento Lucas foi posto em liber<strong>da</strong>de.Em novembro de 1968, quando se encontrava no Rio deJaneiro, foi novamente detido. Transferido para Belo Horizonteno final de fevereiro de 1969, ficou retido na Delegacia de Furtose Roubos.Barbaramente torturado, João Lucas Alves teve váriosossos quebrados, os olhos vazados, além de inúmeras queimadurasespalha<strong>da</strong>s por todo o corpo. Foi Onofre Pinto, ex-banido edesaparecido em 1973, preso na mesma época em que o SargentoJoão Lucas, que denunciou o fato, em depoimento à organizaçãoAnistia Internacional.A nota oficial sobre a morte de João Lucas, em 6 de marçode 1969, explicava que ele cometera suicídio na cela em queestava recolhido, nas dependências do Departamento de OrdemPolítica e Social (DOPS) de Belo Horizonte. A mesma informaçãoconsta de documento pertencente ao arquivo do antigoDOPS/SP: um relatório sobre a vi<strong>da</strong> de João Lucas existente naDelegacia Regional/GB, Serviço de Ordem Política e Social,<strong>da</strong>tado de 8/11/68, contém uma anotação feita a caneta revelandoque ele "suicidou-se no DOPS/BH".Mas entre os registros oficiais e a ver<strong>da</strong>de havia uma distânciaintransponível: o laudo ca<strong>da</strong>vérico, requerido pelo advogadoDr. Modesto <strong>da</strong> Silveira, revelou que o corpo tinha unhasarranca<strong>da</strong>s, escoriações generaliza<strong>da</strong>s e equimoses inclusive norosto e nádegas, eliminando, portanto, qualquer indício dosuposto suicídio por enforcamento. João Lucas Alves, na reali<strong>da</strong>de,não resistira à violência <strong>da</strong> tortura e o seu sangue de mártirjuntou-se ao de quantos prenunciaram, naqueles árduos tempos,a aurora de liber<strong>da</strong>de que demoraria para irromper no horizontedo Brasil.364 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>365


João Pio de SouzaJoão Pio de Souza, natural de Rio Casca, Minas Gerais,nasceu no dia 21 de setembro de 1926. Filho de FranciscoAniceto Zacarias e Raimun<strong>da</strong> Pio de Souza, teve os seguintesquatro irmãos: Celso, Delfina, Francisca e Maria. Por profissãoescolheu a de torneiro mecânico e, mais tarde, casou-se comMaria <strong>da</strong> Conceição Apareci<strong>da</strong> de Souza, com quem teve os filhos:Heloísa, Lourdes, Raimun<strong>da</strong>, João, Henrique e Rosimar.Foi líder sindicalista e de comuni<strong>da</strong>des favela<strong>da</strong>s. Antesque chegasse a essa condição, passou pela escola <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, demodo igual a tantos outros trabalhadores brasileiros cuja palavrade ordem era a esperança em dias melhores.Começou trabalhando como torneiro mecânico na RetíficaDante Zoporlline. Destacando-se como liderança, chamou parasi o enfrentamento dos problemas que afligiam a classe metalúrgicae seus companheiros mais próximos. Como líder declasse, participou como tesoureiro do Sindicato dos Metalúrgicosde Belo Horizonte e Contagem, tendo como companheirosde luta os sindicalistas Ênio Seabra e Mário Bento.Revelou-se grande ativista e articulador sindical.Com o Golpe Militar de 1964, os movimentos sindicaisforam desarticulados e suas lideranças persegui<strong>da</strong>s, presas,tortura<strong>da</strong>s e mortas. João Pio, para escapar destas atroci<strong>da</strong>des,teve que se evadir travestido de mulher, escapando assim deuma morte programa<strong>da</strong> pela organização repressora vigentedurante os anos de chumbo.Depois de seis meses de clandestini<strong>da</strong>de, voltou à vi<strong>da</strong>familiar. Como na lista negra dos metalúrgicos impedidos deexercer sua ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e trabalhar para o sustento de sua família,366 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>367


João Pio não pôde retomar sua profissão de torneiro mecânico.Tornou-se sapateiro e, morador na Vila Marçola, no bairro Cruzeiro,mantinha uma oficina de consertos de sapatos.Como líder comunitário, foi presidente <strong>da</strong> associação debairro por dois man<strong>da</strong>tos, uma vez que a sua administração foisempre elogia<strong>da</strong> pelos moradores do Cruzeiro. Na sua gestãoimportantes conquistas foram registra<strong>da</strong>s. Em 1984, conseguiuseaprovar a Lei Pró-favela - uma lei social <strong>da</strong>s mais avança<strong>da</strong>s.Em 1985, por motivo de doença, João Pio substituiu o então presidente<strong>da</strong> União dos Trabalhadores <strong>da</strong> Periferia (UTP), mas logodeixou o cargo para ocupar a Secretaria Adjunta de AçãoComunitária durante o governo do prefeito Ruy Vianna Lage.Depois, João Pio tornou-se assessor <strong>da</strong> Companhia deUrbanização de Belo Horizonte (URBEL) e, durante cinco anosconsecutivos, a exemplo de sua atuação como secretário adjunto<strong>da</strong> Secretaria de Ação Social, prestou relevantes serviços àscomuni<strong>da</strong>des de favelados.Trabalhou até o dia do seu falecimento, em 16 de maio de1990.368 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>369


Joaquim José de OliveiraJoaquim José de Oliveiranasceu em 19 de março de 1922,em Santana dos Ferros, Minas Gerais.Seu Joaquim, como era conhecido,foi casado com D. MariaJosé Leite Oliveira e teve os seguintesfilhos: José Paulo, Leni,Maria Raimun<strong>da</strong>, Amilton, Ailton,Maria Clarice, Maria Cleonice,Maria Eunice, Cléssia Maria,Cleide Maria, Jafet e Josafá.Seu Joaquim, que passou 30anos de sua vi<strong>da</strong> como trabalhadorna indústria, era metalúrgico, especializadocomo mol<strong>da</strong>dor em fundição. Trabalhou durantemuitos anos na Única, indústria fabricante de equipamentos emáquinas para pa<strong>da</strong>ria, de onde saiu por causa de sua militânciapolítica. Líder sindical, participou ativamente, na quali<strong>da</strong>de dedirigente, <strong>da</strong> greve dos metalúrgicos de Belo Horizonte/Contagemocorri<strong>da</strong> em 1968 por melhores salários. Em conseqüência, osindicato que dirigia sofreu intervenção do governo militar e oman<strong>da</strong>to do dirigente foi cassado.A penali<strong>da</strong>de não ficou circunscrita ao fato. As leis sindicaisdo período <strong>da</strong> ditadura tornavam inelegíveis os dirigentesdos sindicatos que haviam sofrido intervenção. Dessa forma, SeuJoaquim não pôde ser candi<strong>da</strong>to <strong>da</strong> Chapa 2, de oposição, dosmetalúrgicos de Belo Horizonte/Contagem em 1979. Sua candi<strong>da</strong>turafoi impugna<strong>da</strong>.Os duros golpes não lhe tiraram o ânimo. Sempre lutoupara que a anistia fosse <strong>da</strong><strong>da</strong> a todos os punidos pelo GolpeMilitar de 1964 e sempre acreditou que a democracia no Brasilsó poderia vir pela força <strong>da</strong> maioria, pela força dos trabalhadores.Afirmava sempre que o trabalhador deveria lutar pelo direito deopinião e pelo direito de pertencer a qualquer partido que desejasse.Acreditava que só o trabalhador poderia fazer a ver<strong>da</strong>deirademocracia.Fun<strong>da</strong>dor do Partido dos Trabalhadores (PT) e membro doDiretório Estadual do partido em Minas Gerais, foi candi<strong>da</strong>to aoSenado, em 1982.A par de sua luta política, Seu Joaquim desenvolveu outra,no âmbito doméstico, para criar e educar seus filhos. A duraspenas, manteve-os todos na escola: muitas vezes, na falta decadernos, eles levavam papel de pão para os deveres, masjamais faltaram de aula. A esposa, companheira aguerri<strong>da</strong>, mantinha-sevigilante em casa, à frente dos trabalhos domésticos,inclusive com os filhos, assim liberando Seu Joaquim para a lutapolítica.E em ambos os níveis a luta de Seu Joaquim rendeu frutospreciosos. O PT fortaleceu-se e a família de Seu Joaquim,através <strong>da</strong> referência a ele, manteve-se uni<strong>da</strong> e solidária, vindoos filhos a se tornarem ci<strong>da</strong>dãos conscientes, dignos e bem formados.Faleceu em 20 deabril de 1986, num acidentede carro, quandoviajava de Betim para BeloHorizonte. Em sua homenagem,mais de umafala se ouviu, como a quea seguir se transcreve:370 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>371


Dedico esta breve história do PT em Minas a Joaquimde Oliveira, um de seus fun<strong>da</strong>dores maisaguerridos. No dia 21 de abril de 1986, enquanto emOuro Preto se honrava a memória de Tiradentes, um outroJoaquim era sepultado em Belo Horizonte, com o ataúdecoberto pelas bandeiras <strong>da</strong> Central Única dos Trabalhadores(CUT) e do PT, rodeado por uma pequena multidãode sindicalistas, metalúrgicos e militantes do PT.Joaquim de Oliveira, negro, proletário, líder sindical,fun<strong>da</strong>dor do PT, presente em to<strong>da</strong>s as lutas desde1960. Em 1968, fez parte <strong>da</strong> diretoria do sindicato metalúrgicode BH - Contagem, cassado após a greve. Preso,ferido a baioneta em um piquete, Joaquim tirava maisforça <strong>da</strong>s perseguições. Foi fun<strong>da</strong>dor, nos anos 70, <strong>da</strong>Oposição Sindical que em 1984, depois de muitos anos deluta, conquistou o sindicato, quando ele, por ironia <strong>da</strong>história, estava desempregado e fora <strong>da</strong> categoria metalúrgica.O trabalho de Joaquim era um trabalho de formiga.Com uma sacola cheia de boletins, guar<strong>da</strong>-chuva na mão,vivia nas horas livres nas portas <strong>da</strong>s fábricas, animandoos companheiros, sem jamais esmorecer. Calça surra<strong>da</strong>,camisa para fora <strong>da</strong> calça, os sapatos às vezes furados,sua presença constante nas ruas <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de Industrial,no sindicato, nas portas <strong>da</strong>s fábricas é inesquecível paraos companheiros de seu tempo em Contagem.Nos piquetes <strong>da</strong>s greves era a confiança e o estímulopermanente à luta. Seus discursos inflamados nasassembléias entusiasmavam os mais reticentes. Seuideal: a transformação socialista.Foi um revolucionário incansável. Sua consciêncianasceu com a pobreza e se desenvolveu com o conhecimento<strong>da</strong> política. Nascido no interior de Minas, Santanados Ferros, camponês sem terra, para fugir <strong>da</strong> misériapartiu para Belo Horizonte aos 30 anos de i<strong>da</strong>de. Foi-seempregar como fundidor em Contagem. Na boca do fornopassou 35 anos, colocando as matrizes no forno com aspróprias mãos. E se tornou um símbolo de persistência ecoragem na luta operária. Seu sonho, ele falava a miúdodesse sonho, era ver todos os trabalhadores, operários ecamponeses unidos no PT, como uma força imensa paradestruir o capitalismo, instaurando uma nova socie<strong>da</strong>de.Joaquim lia, estu<strong>da</strong>va, escrevia com dificul<strong>da</strong>de, masescrevia. Nunca deixou de ser operário na mentali<strong>da</strong>de,nas condições econômicas, no jeito de viver e de sentir. Eacrescentou a isso o esforço do conhecer. Era radical. Nãoqueria pequenas mu<strong>da</strong>nças. Era um mundo novo o queele queria, um PT sem compromissos com ninguém a nãoser com os próprios trabalhadores, rumo a uma revoluçãosocial e política.Conheceu a discriminação em todos os seus aspectos.A polícia pedia seus documentos, quando, tarde <strong>da</strong>noite, voltava para casa, porque era negro. Políticos deesquer<strong>da</strong> o desprezavam por ser semi-analfabeto. Comocandi<strong>da</strong>to a senador pelo PT, em 1982, sofreu porquecompanheiros de partido não viam nele capaci<strong>da</strong>de parao cargo.Esquecido, nunca deixou de continuar o combate noseu campo predileto: o sindicato e as portas <strong>da</strong>s fábricas.Estava ali a base para realizar seu sonho.Uma vi<strong>da</strong> realiza<strong>da</strong>, completa, que encoraja a todosos que o conheceram.(Texto de Ignácio Hernandes, membro do PT)372 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>373


Joel José de CarvalhoJoel José de Carvalho, filho de Ely José de Carvalho e de EstherJosé de Carvalho, nasceu em Muriaé, Minas Gerais, no dia13 de julho de 1948. De seus irmãos - Jairo, Daniel, Devanir e Derly- dois outros viriam a se integrar à luta política e viriam a ser alvos<strong>da</strong> repressão posta em prática pela ditadura militar: Daniel,que é <strong>da</strong>do como desaparecido, e Devanir, que foi assassinado.A história de Joel na militância começa à época em queele era operário gráfico e membro do Partido ComunistaBrasileiro (PCB). Mais tarde, ingressou na Vanguar<strong>da</strong> PopularRevolucionária (VPR). Preso no dia 5 de outubro de 1970 pelaOperação Bandeirantes (OBAN), foi brutalmente torturado.Foi banido para o Chile em 13 de janeiro de 1971, juntocom 69 companheiros, por ocasião do seqüestro do embaixadorsuíço Giovanni Enrico Bucher. Em 10 de maio de 1971, José envioude Santiago do Chile uma carta a seu pai em São Paulo. Nacarta, Joel lamentava a morte do irmão Devanir e solicitava queo pai vendesse a casa <strong>da</strong> família e se juntasse a ele em Santiago,onde o Daniel já se encontrava.Mas nem o pai dispôs-se a atender à solicitação e nem ofilho permaneceu em Santiago. Em 1973, o Chile foi varrido pelogolpe que derrubou o presidente Salvador Allende e tambémnaquele País o conceito de liber<strong>da</strong>de se alterou. Nessa ocasião,Joel fugiu para a Argentina. E desapareceu em dezembro de1973, na fronteira <strong>da</strong> Argentina com o Brasil, tentando entrar,junto com outros banidos, como clandestino no seu próprio País.O jornal Correio Braziliense do dia 21 de novembro de1992, em uma nota intitula<strong>da</strong> Grupo exige investigação, fez referênciaao caso, denunciando-o junto ao Movimento de Justiça e374 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>375


Direitos Humanos e solicitando à Comissão Especial <strong>da</strong> Câmarados Deputados que fizesse investigações. A nota mencionavaque o ex-Sargento Marival Dias Chaves Canto, em resposta ain<strong>da</strong>gações sobre desaparecidos, informara sobre a morte decinco pessoas, entre elas um ci<strong>da</strong>dão de nome Onofre Pinto. Ora,Joel José de Carvalho fazia parte do grupo de Onofre Pinto, queaventurara retornar ao Brasil nos anos 70: <strong>da</strong>í se supõe que eleera um dos cinco mortos.Ernesto Ruggia, um dos companheiros de Joel, considerava-oum autêntico Che Guevara. E foi com a aura de idealista ede bravo combatente, de grande sonhador por dias melhorespara todo o povo brasileiro, que ele passou à história.376 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>377


Jorge Batista FilhoJorge Batista Filho nasceu em Cássia, Minas Gerais, noano de 1942. Após a morte de seu pai, Jorge Batista, sua mãe, D.Natinha, mudou-se com a família para Belo Horizonte. Era o início<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 60.Jorge estudou Jornalismo na Facul<strong>da</strong>de de Filosofia eCiências Humanas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais(UFMG) e iniciou carreira no serviço público, ingressando comofuncionário do Instituto de Previdência dos Servidores Públicosdo Estado de Minas Gerais (IPSEMG).Com o Golpe Militar de 1964, iniciou, a partir do movimentoestu<strong>da</strong>ntil, uma longa trajetória de militância política. Em1966, foi eleito presidente do Diretório Central dos Estu<strong>da</strong>ntes(DCE) <strong>da</strong> UFMG, que congregava os Diretórios Acadêmicos deto<strong>da</strong>s as Escolas <strong>da</strong>quela Universi<strong>da</strong>de.A luta continuou sem interrupçõesaté que, em 1968, quando participava deCongresso <strong>da</strong> União Nacional dos Estu<strong>da</strong>ntes(UNE), em Ibiúna, São Paulo,Jorge foi preso, juntamente com muitosoutros companheiros. Permaneceu presode 1968 a 1973, tendo sido julgado econdenado pela Justiça Militar de São Paulo.Em 1973, ao sair <strong>da</strong> prisão, Jorge mudou-se para o RioGrande do Norte, onde concluiu o curso de Jornalismo e trabalhouna imprensa chama<strong>da</strong> alternativa. Retornou a São Paulo em 1975,onde fez Mestrado em Ciência Política na Universi<strong>da</strong>de Estadual deCampinas (UNICAMP), continuou trabalhando na imprensa alternativae participou <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção do Partido dos Trabalhadores (PT).Foi suplente de deputado estadual em São Paulo e membrosuplente <strong>da</strong> Executiva Nacional do PT.Jorge faleceu em um acidente automobilístico, no dia 24de dezembro de 1986, quando se dirigia para Goiás, onde passariaas festas de final de ano. O único sobrevivente <strong>da</strong> trágicaviagem foi seu filho mais novo, Manoel: além de Jorge, falecerama mulher, Ana Valderez, e o filho Bruno.Os amigos e companheiros fizeram um ato público no dia26/01/ 87 na antiga sede do DCE/UFMG, na rua Gonçalves Dias,em Belo Horizonte, onde mais tarde passou a funcionar o CineBelas Artes Liber<strong>da</strong>de. Em Osasco, São Paulo, onde militou porvários anos, foi cria<strong>da</strong> em sua homenagem a Fun<strong>da</strong>ção JorgeBatista Filho, que administra cursos de especialização em váriasmo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des. Seu nome foi <strong>da</strong>do à praça Jorge Batista, no bairroAlto dos Pinheiros, na ci<strong>da</strong>de de São Paulo, a uma escolapública na ci<strong>da</strong>de de Cássia, Minas Gerais, ondenasceu, e a uma rua em Belo Horizonte,Capital de seu Estado natal.O acidente, ao levar a vi<strong>da</strong> deJorge e a de seus caros familiares,levou-lhe um últimosonho: ele estava certo deque, após os festejos defim de ano junto com afamília, retornaria aBelo Horizonte, onde,por força <strong>da</strong> anistia,retomaria seu trabalhonoIPSEMG.378 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>379


José de AssisDurante o período <strong>da</strong> ditadura militar que se instalou noBrasil a partir de 1964, as companhias Belgo Mineira e USIMI-NAS perseguiram e permitiram que vários de seus operários fossempresos e torturados, sob a alegação de que eram elementosperigosos, pois teriam o propósito de subverter a ordem pública.Esses operários, além de to<strong>da</strong> a humilhação sofri<strong>da</strong>, foramobrigados a assinar carta de demissão, quando, com mais de 20anos prestados a suas empresas, já estavam perto de alcançarsua aposentadoria. A pressão para que assinassem a carta dedemissão usava do argumento de que, caso se recusassem,receberiam a pena de uma prisão mais longa, além de outrasmedi<strong>da</strong>s punitivas mais drásticas.Acuados, eles deixaram seus familiares em dificul<strong>da</strong>de,pois a empresa obrigou-as a abandonar as casas funcionais queocupavam. Além disso, eles foram insultados em diversasocasiões, sob a pecha de parentes de bandidos, subversivos ecomunistas. Para to<strong>da</strong>s aquelas famílias, aquele foi um DIANEGRO, nome pelo qual ficou conhecido. Para a história deMinas, o dia foi o do Massacre de Ipatinga.José de Assis, filho de Antônio Augusto e de JosinaProtestante, nascido em 7 de abril de 1914, foi um dos operáriosalcançado por essas perseguições. Como crime, cometera o departicipar ativamente <strong>da</strong> política na região do Vale do Rio Doce380 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>381


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José Bartolomeu GrecoJosé Bartolomeu Greco nasceu em Dores do In<strong>da</strong>iá, MinasGerais, em 17 de janeiro de 1911, filho do artesão BartolomeuGreco e de sua mulher, Amélia Alexandrina Greco. Teve na infânciaa companhia <strong>da</strong>s irmãs Maria e Zulmira, formando todosuma família feliz.Em 1937, aos 26 anos, diplomou-se em Medicina pelaUniversi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (UFMG). Optando pelasáreas de alergologia e imunologia, prosseguiu continuamenteseus estudos, que incluíram uma pós-graduação em SãoFrancisco (EUA). Mais tarde viria a ser membro do Colégio Americanode Alergistas e membro fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de Brasileirade Alergistas.O ano de 1937, importante para a vi<strong>da</strong> profissional de JoséBartolomeu Greco com a conclusão de seu curso de Medicina,foi importante também para sua vi<strong>da</strong> pessoal: nesse ano, no dia25 de dezembro, casou-se com Helena Greco, com quem teve ostrês seguintes filhos: Dirceu, Marília Josefina e Heloísa. Nafamília que constituiu reviveu o clima <strong>da</strong> família de onde viera:tinha ótimo relacionamento em casa, estimulava os estudos dosfilhos, incentiva em todos o envolvimento com as causas sociais.Seu interesse pela política desenvolveu-se a partir de suainserção nos movimentos médicos do Conselho Regional deMedicina de Minas Gerais. Apoiou to<strong>da</strong>s as iniciativas <strong>da</strong> famíliana luta pela anistia e por uma socie<strong>da</strong>de justa e democrática.Com 91 anos incompletos, faleceu de morte natural em2002.384 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>385


José Carlos Novais <strong>da</strong> MataMachadoPRAÇA JOSÉ BARTOLOMEU GRECO"Minha confiança nas massas de nosso povo crescesem cessar. Talvez vejamos a libertação de nossapátria. Mas não lamentaremos se a morte noscolher no caminho. O importante é que soubemosmarchar com a História."(Trecho de uma carta de José Carlos a seu irmãoBernardo, escrita em 1972)José Carlos Novais <strong>da</strong> Mata Machado nasceu em 20 demarço de 1946 na ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro. Era o terceiro filhode Yed<strong>da</strong> Novais <strong>da</strong> Mata Machado e do professor de Direito, jornalista,escritor e político Edgar de Godói <strong>da</strong> Mata Machado. Seupai, nascido em Minas, transferira-se com a família para o Rioem 1944, mas, logo depois, em 1947, retornou definitivamente àCapital mineira. Foi o único dos sete filhos do casal a nascer forade Belo Horizonte.José Carlos fez os primeiros quatro anos do EnsinoFun<strong>da</strong>mental no Grupo Escolar Barão do Rio Branco e os quatroseguintes no Colégio Estadual de Minas Gerais, onde fez tambémo Ensino Médio, escolhendo, na época, o chamado cursoclássico. Durante a adolescência, fundou, junto com amigos dobairro Funcionários, o Youth Clube, grupo de jovens unidos pelaconvivência em festas, ativi<strong>da</strong>des esportivas, namoros e conversasanima<strong>da</strong>s.Em 1964, entrou para o curso de Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (UFMG), tendo obtido a primeira colo-386 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>387


cação no exame vestibular. Em 1966, concluiu o serviço militarobrigatório no Centro de Preparação de Oficiais <strong>da</strong> Reserva(CPOR), sendo aprovado com distinção (posteriormente, suapatente de oficial foi cassa<strong>da</strong> pelo Exército). Na Facul<strong>da</strong>de, foium dos fun<strong>da</strong>dores do Grupo de Alunos <strong>da</strong> Turma de 1964 (GAT-64) que exerceu muita influência política entre os estu<strong>da</strong>ntes.Sua liderança foi-se consoli<strong>da</strong>ndo até o ponto de seus colegasbrincarem dizendo que José Carlos não era mais o "filho do professorEdgar", mas o professor é que se tornara "pai do Zé". Em1967, foi eleito presidente do Centro Acadêmico Afonso Pena(CAAP), órgão de representação dos estu<strong>da</strong>ntes. No mesmo ano,elegeu-se vice-presidente <strong>da</strong> União Nacional dos Estu<strong>da</strong>ntes(UNE), enti<strong>da</strong>de que havia sido posta na ilegali<strong>da</strong>de pelo movimentomilitar de 1964. Nessa época, já integrava os quadros <strong>da</strong>Ação Popular (AP), grupamento político de origem católica, fun<strong>da</strong>doem 1962, que depois, sob a influência do pensamento deMao-Tsé-Tung, converteu- se ao marxismo-leninismo.A AP, inspira<strong>da</strong> na Revolução Chinesa de 1949, pretendiadesencadear no Brasil um movimento de libertação popular decaráter democrático e antiimperialista, que colocaria o País narota do socialismo. Para tanto, era essencial organizar e conscientizaros camponeses. A proposta era deflagrar uma revoluçãoa partir do campo e para ela seria buscado, nas ci<strong>da</strong>des, o apoiodos operários e estu<strong>da</strong>ntes.As condições para isso já estavam amadurecendo, pois navisão <strong>da</strong> AP e de grande parte <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong>, o capitalismobrasileiro vivia uma crise irreversível.Em outubro de 1968, durantea realização do XXX Congresso<strong>da</strong> UNE, em Ubiúna, SãoPaulo, José Carlos foi preso econdenado a oito meses dereclusão nas celas do Departamentode Ordem Política e So-cial (DOPS) de Belo Horizonte. Estando preso, não lhe permitiramprestar as provas finais do curso de Direito, embora houvessepara isso expressa autorização do Conselho Universitário.Em dois outros processos por ativi<strong>da</strong>des políticas instaurados na4ª Região Militar (Juiz de Fora/1970) e na 1ª Auditoria <strong>da</strong>Aeronáutica (Guanabara/1973), José Carlos foi absolvido.Solto no segundo semestre de 1969, com o País sob oregime de terror implantado pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5),José Carlos, firme nos seus ideais, resolveu continuar na luta,porém clandestinamente. No período que vai de junho de 1969 a28 de outubro de 1973, quando foi assassinado, muitos detalhesde sua vi<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> permanecem obscuros. Em 1970, casou-secom sua companheira de AP, Maria Ma<strong>da</strong>lena Prata Soares, emorou, por mais de um ano, numa favela de Fortaleza, Ceará,exercendo o ofício de comerciário. Isso lhe possibilitava contatomais estreito com a população vin<strong>da</strong> do campo.Nessa fase, sob o codinome José Cícero Ferreira, JoséCarlos experimentou duras condições de vi<strong>da</strong>, em parteameniza<strong>da</strong>s pela relação com Ma<strong>da</strong>lena e por aquele sentimentoque Mao considerava essencial ao revolucionário: o amor aopovo. Conta-se, também, que realizou viagens representando aAP por países latino-americanos e que teria propiciado a fuga decompanheiros seus para o exterior. Há indícios de que passoualgum tempo abrigado no Mosteiro dos Beneditinos, em Olin<strong>da</strong>,Pernambuco.Tem-se como certo que no primeiro semestre de 1973, emRecife, Pernambuco, conviveu com um grupo de estu<strong>da</strong>ntes, amaioria do curso de Medicina <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Pernambuco(UFPE), que havia fun<strong>da</strong>do um movimento políticoculturaldenominado Universi<strong>da</strong>de Livre <strong>da</strong> Ilha do Leite. Ogrupo organizava reuniões de estudo, redigia o jornal O Esculápioe programava acampamentos. Discor<strong>da</strong>vam <strong>da</strong> opção pelaluta arma<strong>da</strong>, mas <strong>da</strong>vam cobertura a militantes clandestinos.Para Abel Menezes, integrante desse grupo que, em outubro,também sofreria a prisão e a tortura, o convívio com o pessoal <strong>da</strong>388 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>389


Ilha do Leite deu a José Carlos um "alívio temporário". Abel refere-sea José Carlos como "uma figura muito afetiva, uma pessoadiscreta, bastante gentil. Parecia alguém especial. Gostei delede cara quando o conheci".O alívio durou pouco. Gilberto Prata Soares, seu cunhadoe ex-membro <strong>da</strong> AP, preso em fevereiro de 1973, concor<strong>da</strong>ra emcolaborar com o Centro de Informações do Exército (CIEX) naidentificação dos militantes <strong>da</strong> AP. A partir de março de 1973,com a aju<strong>da</strong> do informante, os passos de José Carlos e Ma<strong>da</strong>lenaforam minuciosamente rastreados pelos órgãos de repressão.Em conseqüência, a direção nacional <strong>da</strong> AP (<strong>da</strong> qual José Carlosfazia parte), militantes e simpatizantes começaram a cair comonum jogo de dominó.Pressentindo que o cerco se fechava sobre José Carlos,advogados do escritório de Joaquim Martins <strong>da</strong> Silva (companheirode José Carlos na Facul<strong>da</strong>de de Direito), em São Paulo, fizeramcontato com a família. Pretendiam providenciar um refúgioonde José Carlos e Ma<strong>da</strong>lena pudessem permanecer emsegurança. O casal já havia confiado aos avós a guar<strong>da</strong> do filho,Dorival Soares <strong>da</strong> Mata Machado, nascido em Goiânia, no dia 19de fevereiro de 1972. Na situação em que se encontrava, JoséCarlos já vislumbrava que a única alternativa era sair do País.Percebera que estava sendo seguido e que, por onde passasse,companheiros seus seriam presos. Chegou a reunir a documentaçãosua e de Ma<strong>da</strong>lena a fim de preparar a fuga. Contudo,ain<strong>da</strong> acreditava ser possível perseverar na luta, apesar de to<strong>da</strong>sas dificul<strong>da</strong>des.Depois de sua morte, soube-se que ele fizera contato, emSão Paulo, com Hélio Navarro, ex-deputado cassado pelo AI-5nas mesmas circunstâncias que o seu amigo e colega Edgar deGodói <strong>da</strong> Mata Machado, pai de José Carlos. A noiva de HélioNavarro, médica, examinou José Carlos nessa ocasião e achouobastante desnutrido. Ao ex-deputado, também advogado, JoséCarlos disse as seguintes palavras: "Eu vou deixar com você umaprocuração, porque se me apanharem em São Paulo, você poderátomar alguma providência de ordem jurídica. Porque a impressãoque eu tenho é que eles vão querer arrancar de mim informaçõesque eu nunca <strong>da</strong>rei".No dia 18 de outubro, atendendo ao apelo vindo de SãoPaulo, dois cunhados e um amigo <strong>da</strong> família foram encarregadosde buscar José Carlos e conduzi-lo a uma fazen<strong>da</strong> de um tio, nointerior de Minas Gerais. Ma<strong>da</strong>lena se encontraria com eles numsítio próximo a Belo Horizonte. No dia 19 de outubro, em SãoPaulo, para onde José Carlos tinha ido com o principal objetivode providenciar cobertura jurídica para os companheiros presos,encontraram-se no escritório de Joaquim Martins <strong>da</strong> Silva. Alicombinaram novo encontro em um posto de gasolina na saí<strong>da</strong><strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.Não percorreram mais do que alguns quilômetros e forampresos por elementos à paisana fortemente armados. Algemadose encapuzados, foram conduzidos provavelmente para o Destacamentode Operações de Informaçõesdo Centro de Operações deDefesa Interna (DOI/CODI), ondeforam submetidos a interrogatóriosdurante três dias. No dia 21 foramtransferidos, à exceção do JoséCarlos, para o 12º Regimento deInfantaria, em Belo Horizonte, ondepermaneceram incomunicáveis. Nanoite de 22, Ma<strong>da</strong>lena e seu filho Eduardo (do primeiro casamento)foram presos no sítio onde já se encontravam.Nesse mesmo dia, Gildo Macedo Lacer<strong>da</strong> (<strong>da</strong> AP) e suaesposa foram presos em Salvador, Bahia, pela Polícia Federal. Nodia 31, quarta-feira, pela manhã, os representantes <strong>da</strong> famíliaforam soltos. Na noite do mesmo 31/10, os meios de comunicaçãotransmitiram nota oficial informando sobre a morte deJosé Carlos e Gildo Macedo Lacer<strong>da</strong>, num tiroteio em Recife. Anota dizia que José Carlos e Gildo confessaram, durante os interrogatórios,que teriam, no dia 28, um encontro com "um subver-390 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>391


sivo de codinome Antônio". Levados para o local, o referido Antôniopressentiu alguma anormali<strong>da</strong>de e abriu fogo contra osseus companheiros. A notícia oficial seguia o padrão várias vezesrepetido naquela época. Quando alguém morria na tortura,dizia-se que havia encontrado, num tiroteio, a morte.De 31 de outubro até o dia 15 de novembro, <strong>da</strong>ta do sepultamentoem Belo Horizonte, a família percorreu uma longa viacrúcispara resgatar o corpo de José Carlos. A essa altura, amorte dos dois militantes estava repercutindo nacional e internacionalmente(New York Times de 13/11, Le Monde de 14/11,Awenire D'all ltália e Dal Mondo de 15/11). No dia 7 de novembro,a denúncia do Prof. Edgar ao Conselho de Defesa dos Direitos<strong>da</strong> Pessoa Humana foi li<strong>da</strong> na Câmara e no Senado peloslíderes <strong>da</strong> oposição, deputado Aldo Fagundes e senador NelsonCarneiro. A repercussão, soma<strong>da</strong> ao esforço dos advogados doRecife, Oswaldo Lima Filho e Mércia Albuquerque, resultou naautorização para a exumação e o traslado do corpo para BeloHorizonte. A condição imposta pelo Coronel Cúrcio Neto,coman<strong>da</strong>nte militar <strong>da</strong> 7ª Região, foi a de que não houvesse publici<strong>da</strong>de.Até mesmo o aviso fúnebre foi proibido.A Dra. Mércia acompanhou a exumação, realiza<strong>da</strong> no dia10 de novembro. José Carlos, assim como Gildo, foram enterradoscomo indigentes num caixão de madeira sem tampa e comfundo de taliscas. O corpo, que havia sido brutalmente espancado,parecia "um patê, a dentadura tinha algumas obturações deouro, usava calça escura, cueca zorba, meias pretas, tinha asmão contorci<strong>da</strong>s, o couro cabeludo arreado".No dia 15 de novembro, <strong>da</strong>ta comemorativa <strong>da</strong> proclamação<strong>da</strong> República, após ordens e contra-ordens, o corpo deJosé Carlos foi finalmente liberado e chegou a Belo Horizonte às13h15min, em caixão lacrado. Às 14h30min foi sepultado noCemitério Parque <strong>da</strong> Colina.Embora já no dia 9 de novembro de 1973 tivesse sido protocola<strong>da</strong>uma representação junto à Procuradoria-Geral <strong>da</strong>Justiça Militar requerendo a instauração de um InquéritoPolicial Militar, até hoje não foram toma<strong>da</strong>s providências paraapurar os fatos que cercaram a morte de José Carlos. Não sesabe qual a autori<strong>da</strong>de responsável por sua prisão em São Paulo,nem se conhecem as circunstâncias de sua transferência paraRecife.Entretanto, uma recente pesquisa realiza<strong>da</strong> por SamaroneLima de Oliveira, do Departamento de Comunicação Social <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong>de Católica de Pernambuco, resgatou a ver<strong>da</strong>de,através de entrevistas com a turma <strong>da</strong> Ilha do Leite, sobre osúltimos instantes de José Carlos.A morte, na madruga<strong>da</strong> do dia 28, foi testemunha<strong>da</strong> pelaestu<strong>da</strong>nte Fernan<strong>da</strong> Gomes de Matos. Ela e um grupo de amigosestavam presos no DOI/CODI do Recife, desde o dia 22, por ligaçõescom José Carlos. Ao lado <strong>da</strong> amiga Melânia Almei<strong>da</strong> deCarvalho, Fernan<strong>da</strong> reconheceu, imediatamente, quando MataMachado chegou no dia 27 de outubro de1973, escoltado por agentes, com uma ven<strong>da</strong>nos olhos: "Aquilo foi tão forte para mim, quegravei a roupa que ele estava usando: umacalça de veludo marrom, uma camisa estampa<strong>da</strong>cor de vinho e uma jaqueta".Mata Machado pediu ao carcereiro:"Preciso de uma escova. Há quatro dias nãoescovo meus dentes". A esperança de voltara sorrir acabou algumas horas depois, namão dos algozes. Após várias horas de agonia,pedindo aju<strong>da</strong>, porque estava perdendomuito sangue, a voz grave de Mata Machado silenciou.Preocupa<strong>da</strong>, Fernan<strong>da</strong> se ofereceu para doar sangue, masnão foi possível. Algumas horas depois, um rapaz que limpava ascelas, também preso político, deu a notícia: "Mataram o JoséCarlos".Os estu<strong>da</strong>ntes espalharam a notícia nas outras celas. "Mataramo José Carlos". Era a madruga<strong>da</strong> fria de 28 de outubro de1973.392 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>393


As terríveis circunstâncias <strong>da</strong> morte de José Carlos, aos 27anos, e <strong>da</strong> de Gildo, aos 24 anos, devem ser compreendi<strong>da</strong>s numaconjuntura histórica na qual a ditadura militar atingira o seuápice. Nesse ano de 1973, governo Médici, a indústria do terrorhavia crescido e ultrapassado as fronteiras do próprio aparatorepressor do Estado. Disseminara-se em gangs paramilitares financia<strong>da</strong>spor membros <strong>da</strong>s chama<strong>da</strong>s classes produtoras. Ahisteria anticomunista desan<strong>da</strong>va em pura violência.Não há dúvi<strong>da</strong> de que, no dia 22 de outubro de 1973, foidesencadea<strong>da</strong> uma operação nacional <strong>da</strong> caça aos militantes <strong>da</strong>AP, com o objetivo de desbaratar to<strong>da</strong> a organização. As ForçasArma<strong>da</strong>s, policiais militares e civis, com a colaboração de alcagüetes,prenderam militantes e simpatizantes em Minas Gerais,São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Em todos os lugareso método foi o mesmo: seqüestrar, algemar, encapuzar, torturar.Mesmo situando historicamente, é difícil aceitar a extremacruel<strong>da</strong>de cometi<strong>da</strong> contra José Carlos e Gildo. Por que foramenviados para Recife? Por que, lá chegando, foram imediatamenteassassinados? Teriam as mortes sido planeja<strong>da</strong>s como umcastigo exemplar? Ou foram acidentes <strong>da</strong> tortura? São perguntasain<strong>da</strong> sem resposta.O antigo nome <strong>da</strong> rua José Carlos <strong>da</strong> Mata Machado emBelo Horizonte era Dan Mitrione, torturador que viera dosEstados Unidos para o Brasil com o objetivo de ensinar métodosmodernos de interrogatório aos policiais e militares. Suas cobaiaseram mendigos recolhidos nas ruas e seu alvo eram os presospolíticos, como o companheiro José Carlos <strong>da</strong> MataMachado.O Projeto de Lei que deu nome à rua José Carlos <strong>da</strong> MataMachado é de autoria de D. Helena Greco e de Arthur Vianna,quando vereadores, e foi sancionado no dia 20 de maio de 1983.(Com exceção dos dois últimos parágrafos, o texto sobre José Carlos MataMachado foi escrito por Bernardo Mata Machado em outubro de 1993, porocasião dos 20 anos de sua morte).394 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>395


José do Carmo RochaJosé do Carmo Rocha nasceu em BeloHorizonte, Minas Gerais, no dia 15 de marçode 1937 e faleceu em 28 de agosto de 2002,vítima de câncer. Casado, teve os filhosMarcelo Eduardo, Cláudia Márcia e LucianaCristina RochaFoi admitido pela Companhia IndustrialRenascença (Fábrica Renascença), filiando-sea seguir no Sindicato de Tecelões de Belo Horizonte,onde, por sua vibrante atuação, logose tornou conhecido.Com o Golpe Militar de 31 de março de 1964, dirigentes sindicais,políticos, religiosos, militares, estu<strong>da</strong>ntes e intelectuaisde todo o País foram presos e cassados. O Sindicato dos Tecelõesde Belo Horizonte não ficou livre de perseguição: logo depois doGolpe, o sindicalista José do Carmo foi demitido sumariamente<strong>da</strong> Fábrica Renascença.Desempregado, ele passou a trabalhar como autônomo.Militou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) junto com outraslideranças conheci<strong>da</strong>s, como José Francisco Neres, Alaor Geraldo,Dimas Perrin, entre outros.Em 1969, José do Carmo começou a trabalhar numa gráficalocaliza<strong>da</strong> no bairro Renascença, que fora arren<strong>da</strong><strong>da</strong> pelocompanheiro Dimas Perrin, então morador no Rio de Janeiro. Agráfica tinha um bom relacionamento com os sindicatos e prestava-lhesos serviços de sua especiali<strong>da</strong>de, confeccionando jornais,boletins e os panfletos utilizados nas greves e manifestações.Mas o bom desempenho <strong>da</strong> gráfica nos primeiros seismeses foi interrompido em 1968 com a edição do AtoInstitucional nº 5, que proibiu enti<strong>da</strong>des sindicais de se organizarem,reunirem e manifestarem.Já casado - seu casamento fora realizado em 31 de maiode 1969 -, José do Carmo persistiu a duras penas com o trabalhona gráfica até 1973. Naquele ano, ele e o companheiro AlaorGeraldo decidiram fechar a pequena empresa e iniciaram umaparceria no ramo <strong>da</strong> fotografia. E a fotografia, viabiliza<strong>da</strong> com aabertura <strong>da</strong> Foto União, seria mais tarde adota<strong>da</strong> pela família,garantindo-lhe o sustento.A par do desenvolvimento do trabalho fotográfico, José doCarmo partiu para outra empreita<strong>da</strong>. Junto com José CarlosAlexandre e João Paulo Pires, fundou o jornal União Sindical,que foi importante elo de ligação entre os sindicatos mineirosde 1973 a 1980.Em 1974, José do Carmo aceitou compor uma comissãoprovisória para a reorganização do PCB em Minas Gerais. Naocasião, estreitou o relacionamento com Alípio Gomes, JoséFrancisco Neres, Jayme Goifman e João Guerra, principais dirigentesdo partido naquela época. Foi através dessa militânciaque veio a conhecer o dirigente nacional do PCB, Nestor Veras,que tinha como codinome Wilson. Neste ano, José do Carmoteve participação ativa nas eleições, quando o MovimentoDemocrático Brasileiro (MDB) cresceu muito.No final de 1974, José do Carmo participou de uma reuniãodo PCB com a presença de to<strong>da</strong>s as lideranças do partido, quandose fez um balanço sobre algumas questões relevantes, entre elasa eleitoral. José do Carmo conta que, depois dessa reunião, saiude carro junto com o Pinheiro e com o Wilson. Antes <strong>da</strong>s 10 horas,ele os deixou na rua Rio Grande do Sul com Tamoios, em BeloHorizonte. Naquela manhã, o Wilson, que na ver<strong>da</strong>de era o NestorVeras, foi seqüestrado em frente à antiga casa Falci e, a partir deentão, ele entrou na lista dos desaparecidos políticos brasileiros.Com o episódio, José do Carmo passou a viver preocupadoe sempre dizia que pessoas estranhas o estavam perseguindo. E396 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>397


suas preocupações tinham fun<strong>da</strong>mento. Em junho de 1976, setehomens chegaram a sua casa bem cedo, ain<strong>da</strong> antes de 6 horas<strong>da</strong> manhã. A casa foi to<strong>da</strong> revira<strong>da</strong> e José do Carmo, levado. Eleficou 15 dias desaparecido. Quando a família o encontrou, reclusono Presídio JK, ele estava muito calado. A polícia não deixouque os familiares falassem com ele sobre a prisão.Maurílio Pereira Rocha, então morador na <strong>Rua</strong> Jacuí, emBelo Horizonte, foi quem o recebeu sob sua responsabili<strong>da</strong>de nanoite de 1 º de julho de 1976, quando ele foi solto. E guardou lembranças<strong>da</strong> prisão do irmão:José do Carmo foi absolvidopor sete votos a zero em Juizde Fora. Em nossasconversas, ele me relatouque ficou preso, foi torturadono quartel do bairro SãoFrancisco, em Belo Horizonte,sob o comando do CoronelPantoche. Ele foi preso sob ocomando do CoronelArmando Amaral, que lhebateu duas vezes na cara.No último dia de sua prisão,dia 31 de maio de 1976,apanhou mais duas vezes efoi colocado na rua com orecado de nunca maisaparecer ali, sob pena dedesaparecer, porque eramuito impertinente e sempremantinha contato com osjornais.RUA JOSÉ DO CARMO ROCHA398 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>399


José Flávio Rodrigues PereiraCaminhando contra o ventoSem lenço, sem documento,Ao sol de quase dezembro,Eu vou...A canção de Caetano Veloso, de que foram lembrados osversos acima, muito bem representa a pessoa que foi o médicoJosé Flávio Rodrigues Pereira, o Zé Flávio, mineiro de Coromandel,nascido em 23 de novembro de 1947, filho de JoséRodrigues Pereira e Geni Rodrigues Pereira: pessoa leve, solta,feliz, de rumos claros...Da família de origem, de que faziam parte os irmãosTerezinha, Zezé, Tarcísio, Ermira e Luiz Carlos, Zé Flávio partiriapara formar a sua própria família quando se casou com MariaChristina Rodrigues e com ela teve os filhos Yara e Flávio Henrique.Desde jovem, ain<strong>da</strong> em Coromandel, percebeu as injustiçase desigual<strong>da</strong>des sociais do Brasil e de to<strong>da</strong> a AméricaLatina. Assumindo, com sensibili<strong>da</strong>de, atitudes políticas,definiu seu objetivo de vi<strong>da</strong>: a luta contra os opressores e contraos governos militares e civis que levavam milhões e milhões debrasileiros, como também homens e mulheres de todo o mundo,a viver em condições subumanas em conseqüência do avançodo modelo capitalista.Zé Flávio cursou seus estudos iniciais em Coromandel,mudou-se para Belo Horizonte, onde começou o Ensino Médiono Colégio Batista Mineiro. Em 1965, foi cursar a terceira e últimasérie do Ensino Médio no Colégio Técnico <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (UFMG), sendo então eleito presidentedo Grêmio Estu<strong>da</strong>ntil.Identificando-se com a luta contra a ditadura, passou adefender as bandeiras do movimento estu<strong>da</strong>ntil, que reivindicava,já naquela época, mais verbas para a escola pública, liber<strong>da</strong>dede expressão em debates e discussões <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil,entre outras coisas importantes. Foi aprovado na Escola deMedicina <strong>da</strong> UFMG em 1966, no momento em que o regime militarimpunha seus mecanismos de repressão e violência com oobjetivo expresso de reprimir, ao ponto do extermínio, qualquermovimento do livre pensar.Ângelo Pezzuti, Jorge Nahas, Zezé, Dodora, jovens que firmementelutaram, naqueles tempos de recrudescimento <strong>da</strong> repressão,por um País livre, progressista, foram seus amigos e companheiros.Como tantos outros, buscava novos caminhos que pudessem levarao fim o ciclo capitalista, suas injustiças e desigual<strong>da</strong>des, que ain<strong>da</strong>hoje deixam o povo na mais profun<strong>da</strong> miséria física e moral.Zé Flávio, através de muito estudo, debates e reflexões,passou a defender a reestruturação do modelo econômicobrasileiro. À época Fidel Castro, Che Guevara e outros revolucionáriosafirmavam que a única forma de obtê-lo era a instalaçãode um processo revolucionário através <strong>da</strong> guerrilha.Convicto desse norte, a opção imediata de Zé Carlos foi ingressarna Política Operária (POLOP), organização que, naquelemomento, em Minas, desenvolvia esse trabalho.Em pouco tempo, Zé Flávio compreendeu que sua combativi<strong>da</strong>de<strong>da</strong>va a ele possibili<strong>da</strong>de de ultrapassar os limites domovimento estu<strong>da</strong>ntil e ele, então, abandonou temporariamentea universi<strong>da</strong>de e passou a militar de forma mais ampla e efetivano movimento organizado. Militante incansável, caminhavacontra os senhores <strong>da</strong> ditadura, lutando com parcas armas frentea um grande e estruturado esquema militar.Em 1969, integrou-se aos quadros do Comando deLibertação Nacional (COLINA) e, sob o fogo cerrado <strong>da</strong> ditadura,foi nesse mesmo ano para a clandestini<strong>da</strong>de.400 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>401


Num sol de quase dezembro, em 28 de julho de 1987, morreu,deixando muita sau<strong>da</strong>de e uma herança de grande digni<strong>da</strong>de:amigo de fé, camara<strong>da</strong> ético, pai afetuoso, profissionaldedicado, estava sempre disposto a lutar por um mundo melhor,mais justo, mais fraterno.(A<strong>da</strong>ptado de texto de autoria de Maria Christina Rodrigues).402 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>403


José Júlio de AraújoJosé Júlio de Araújo, filho de José deAraújo e Maria do Rosário Corrêa Araújo, D.Lulu, nasceu em Itapecerica, Minas Gerais,no dia 22 de julho de 1943. José Júlio tinhatrês irmãos: Vinícius, Márcio e Valéria.Apesar de ter sido sempre uma criançasaudável, perdeu grande parte <strong>da</strong> vistaesquer<strong>da</strong> aos dois meses de i<strong>da</strong>de, por causade uma catapora. Não quis freqüentar,por muito tempo, o jardim de infância e,em Itapecerica, onde seu pai era comerciante,estudou no Colégio Herculano Paz.Com a mu<strong>da</strong>nça de sua família para Belo Horizonte, ondeseu pai havia comprado o antigo Hotel Continental, na av.Paraná, José Júlio passou a estu<strong>da</strong>r no Grupo Escolar CesárioAlvim e, posteriormente, no Colégio Anchieta. Abandonou osestudos na terceira série do Ensino Fun<strong>da</strong>mental, quando então,aos 14 anos, começou a trabalhar, por vontade própria, no Banco<strong>da</strong> Lavoura de Minas Gerais, onde se destacou como funcionárioeficiente, que realizava não só o seu trabalho, como também odos companheiros.Gostava muito de ler e, por influência de um antigo funcionáriodo Banco, passou a se interessar pelas idéias socialistase, de forma autodi<strong>da</strong>ta, conscientizou-se rapi<strong>da</strong>mente <strong>da</strong>squestões sociais do País. Nessa época, José Júlio tinha muitosamigos e uma militância política sigilosa: nem os colegas doBanco, nem os familiares suspeitavam de sua participação nosmovimentos de resistência à ditadura.Ao sair do Banco <strong>da</strong>Lavoura, aos 20 anos, foitrabalhar na SOCIMA, firmade atacados de que seu paiera sócio.José Júlio era tãonacionalista que não gostavade músicas americanas,ouvindo somente músicas deprotesto de compositores ecantores brasileiros como Elis Regina, Carlinhos Lyra e os dosantigos festivais <strong>da</strong> Record. Militante do Partido ComunistaBrasileiro (PCB), <strong>da</strong> Corrente Revolucionária de Minas Gerais(CORRENTE), resultante de dissidência do PCB, e <strong>da</strong> AçãoLibertadora Nacional (ALN), era conhecido como Juan, Israel eMata.O Golpe Militar de 1964 atingiu em cheio a vi<strong>da</strong> de JoséJúlio, que, na época, militava no movimento sindical bancário.Obrigado a atuar na clandestini<strong>da</strong>de, ele se entregou a duasfrentes de trabalho: primeiro, a de recontactar e reorganizar ossindicalistas bancários e, posteriormente, também outras categoriasurbanas; segundo, a de reorganizar o PCB na capital mineira.Um pouco mais tarde, no final de 1966 e início de 1967,acabou, no entanto, optando por se desligar do partido, queavaliou estar adotando posições reformistas e pacifistas.Convicto de que somente posições revolucionárias eram a soluçãopara o Brasil, ele, em conjunto com outros companheiros,partiu para a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> CORRENTE <strong>da</strong> qual foi dirigente. ACORRENTE viria a se alinhar mais tarde com Carlos Marighella,que elaborou a estratégia guerrilheira para o Brasil.Em 1968, resolveu ir para São Paulo, como clandestino e,nessa ocasião, deu de presente a Valéria, sua irmã, um discocompacto do poeta cubano Nicolás Guillén que ele havia recebidode uma pessoa amiga. Na dedicatória, a pessoa chamavaJosé Júlio de irmão e amigo e lhe dizia que o disco representava404 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>405


a voz de Cuba liberta, como ambos sonhavam seria o Brasil umdia. Nicolás Guillén, segundo Jorge Amado, "representava osofrido povo cubano, a sua luta e decisão". Guillén viveu exiladono Brasil, durante a ditadura de Fulgêncio Batista, antes <strong>da</strong>Revolução Cubana.O último contato pessoal de José Júlio com a família foiem São Paulo, em 1968, quando, 15 dias após a sua saí<strong>da</strong> de BeloHorizonte, recebeu a visita de D. Lulu, sua mãe, e de Valéria, suairmã, que se hospe<strong>da</strong>ram num hotel perto <strong>da</strong> av. Casper Líbero.Foram todos jantar no Restaurante do Papai, junto com o amigoGilney Amorim Viana. Nesse dia, José Júlio comeu uma peixa<strong>da</strong>,brincando que mineiro só gostava de churrasco. D. Lulu quismarcar um novo encontro e José Júlio, alegando uma viagempara o Rio, a convite de um amigo, despediu-se.A família acredita que, nessa ocasião, ele já estava deviagem marca<strong>da</strong> para Cuba. Após sua parti<strong>da</strong>, a polícia esteve,por duas vezes, na casa de seus pais à sua procura.Maurício Paiva, antigo militante, num artigo publicado nojornal Estado de Minas, de 25/10/91, intitulado Exilados Políticosconta que "a última vez que vi o José Júlio foi em Havana, quandoele se preparava para retornar, clandestino, ao Brasil. Todos osque estavam em Cuba tinham esse propósito, mas eu acabavade chegar e ele já arranjava as malas para partir". Ain<strong>da</strong> nesseartigo, ele se perguntava por que os brasileiros no exílio sempremantiveram acesa a chama do retorno ao Brasil, se a vi<strong>da</strong> eramais segura lá fora: "Por que voltar, sob ferrenha ditadura, sujeitando-seao risco <strong>da</strong> morte, <strong>da</strong> prisão e <strong>da</strong> tortura? E o que levariauma pessoa a uma luta em que as chances de sair com vi<strong>da</strong> eramtão escassas?". No final, ele conclui dizendo que "homens comoJosé Júlio tinham raízes finca<strong>da</strong>s nas profundezas dessa terra eque aqui queriam viver ou morrer".Voltando de Cuba em 1971, José Júlio morou algum tempono Chile, clandestinamente. Seu contato era Zil<strong>da</strong> XavierPereira, <strong>da</strong> ALN. Ficou no Chile apenas um ano, retornando aoBrasil em 1972.A luta revolucionária no Brasil fez com que José Júlioregressasse ao País, apesar de os companheiros o aconselharema não fazê-lo, em razão dos prováveis contatos já estarem mortose de a repressão estar muito violenta. Ain<strong>da</strong> assim, José Júlioretornou, indo morar em São Paulo, com os companheiros laraXavier Pereira e Arnaldo Cardoso Rocha, em curto período declandestini<strong>da</strong>de, pouco antes de sua morte.Por volta do dia 17 de agosto de 1972, segundo relato delara para Valéria, José Júlio chegou depois do horário combinado.Arnaldo advertiu-o sobre os riscos que corria, por nãocumprir os horários e pelo perigo constante de bati<strong>da</strong>s policiaisnas duas pontes que deveria atravessar para chegar em casa. Nodia seguinte, José Júlio não chegou e seus companheiros,desconfiados de algum problema, saíram <strong>da</strong> casa. E de fatohavia problemas. José Júlio fora preso naquele mesmo dia, 18 deagosto de 1972, em um bar de Vila Mariana, em São Paulo.Morreu no mesmo dia, segundo testemunho de Walderês NunesLoureiro, com quem esteve preso.A versão oficial é que teria morrido baleado por agentes desegurança em uma esquina <strong>da</strong> rua Teodoro Sampaio, no bairrode Pinheiros. Por essa versão, que serviu de álibi para os assassinosque o torturaram até o fim no Destacamento de Operaçõesde Informações do Centro de Operações de Defesa Interna(DOI/CODI) de São Paulo, José Júlio teria encaminhado policiaisaté um outro militante, quando roubou a arma de um segurançabancário e correu em ziguezague, sendo morto acidentalmente.Em agosto de 1975, seus ossos foram retirados doCemitério de Perus e trazidos para Belo Horizonte por seu irmãoMárcio, que escondeu a ossa<strong>da</strong> no sótão <strong>da</strong> casa onde moravam,no bairro Gutierrez. Para os pais ele diria que enterrara os ossosno Cemitério <strong>da</strong> Lapa, em São Paulo.Em 1976, Márcio, acometido de fortes crises depressivas,suicidou-se, levando consigo o segredo de que os ossos de JoséJúlio se encontravam em um caixote no sótão <strong>da</strong> casa. Após amorte de Márcio, a mãe, desconfia<strong>da</strong> do caixote no sótão,406 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>407


guar<strong>da</strong>do com tanto cui<strong>da</strong>do, descobriu os ossos de José Júlio edecidiu manter o segredo. Mas um bombeiro hidráulico ealcaguete <strong>da</strong> Polícia Militar, Salvador dos Santos Silva, contratadopela família descobriu o caixote e denunciou o fato ao delegadoMiguel Dias Campos, que abriu inquérito contra a mãe e airmã de José Júlio, por ocultação de cadáver. Feitos os exameslegistas e constata<strong>da</strong> a identificação, os ossos pertencentes aJosé Júlio foram liberados para serem enterrados.O enterro aconteceu no dia 6 de novembro de 1993, noCemitério Parque <strong>da</strong> Colina, acompanhado apenas por familiares,amigos, antigos companheiros e representantes dos movimentosde Direitos Humanos e <strong>da</strong> Anistia.A família de José Júlio de Araújo recebeu uma única cartaescrita por ele, envia<strong>da</strong> do Rio de Janeiro e <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 2 de marçode 1971. Nela ele pedia notícias de todos os parentes nominalmente.Reproduz-se a seguir trecho dessa carta.Minha queri<strong>da</strong> mãe:Espero que me perdoe por não ter escrito antes, afinalfaz tanto tempo que não nos vemos e eu sinto muito poristo. Minha vontade é estar junto de você e de todos.Mas que posso fazer.(...) Apesar de todos os problemas que tiveram por minhacausa, eu pediria ao Vinícius e Marcinho que visitassemmeus amigos que estão presos em Juiz de Fora e queIhes levassem cigarros e doces, que fazem muita faltapara quem está em uma prisão. Eu ficaria eternamenteagradecido se meus irmãos pudessem praticar estegesto de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de humana.(...) Você sabe que é a pessoa a quem eu mais quero, portudo que fez por mim e por meus irmãos. Espero quecompreen<strong>da</strong> que quando não escrevo é porque nãoposso. Apesar dos problemas que eu trouxe para você,por favor, seja feliz. Eu nunca poderia retribuir tantocarinho que você dedicou a mim. Terminarei esta cartacom estes versos, que exprimem meus sentimentos paracom minha adora<strong>da</strong> mãe:A pessoa mais próxima a mimés tua quem entretantonão vejo desde há muito temposó em sonhos.408 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>409


Montagem ofereci<strong>da</strong> pela família de José Júlio410 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>411


José Matheus Pinto FilhoJosé Matheus Pinto Filho nasceuna ci<strong>da</strong>de do Serro, Minas Gerais,no dia 31 de outubro de 1944, filhodo funcionário público e vereadorJosé Matheus Pinto e <strong>da</strong> professorapública estadual Célia <strong>da</strong> CunhaMagalhães.Em to<strong>da</strong> a sua breve vi<strong>da</strong>, JoséMatheus demonstrou, com suamaneira de existir, defender umafilosofia de vi<strong>da</strong> alicerça<strong>da</strong> najustiça social, soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de, fideli<strong>da</strong>deaos amigos e aos princípiospor que lutaram, ou seja, direitossociais básicos para todos, educação,saúde, moradia, alimentação e trabalho. A construção deuma pátria livre, igualitária e solidária era seu sonho maior, peloqual lutou sempre.Atuou de maneira incansável e com enorme empenho nadefesa dos injustiçados e marginalizados, especialmente <strong>da</strong> população<strong>da</strong>s favelas e dos presos políticos.Suas crenças e ideais desenvolveram-se desde muitocedo. Incentivado pelos pais, admirou, já na infância os exemplosde ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e luta dos conterrâneos ilustres, principalmenteTeófilo Otoni e Pedro Lessa. Estas lições iniciais de civismoe luta pela liber<strong>da</strong>de e justiça social levaram-no a escolhercomo profissão a advocacia, para ele exato instrumento para aconquista de seus ideais.412 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>413


Desde cedo destacou-se como estu<strong>da</strong>nte. Foi escolhidoorador <strong>da</strong> turma que concluiu a quarta série do EnsinoFu<strong>da</strong>mental em 1955 no grupo Escolar João Nepomuceno RubisLiseler, no Serro. Os estudos tiveram prosseguimento no GinásioMinistro Edmundo Lins, também no Serro. Mas, esgotando-se osrecursos em sua ci<strong>da</strong>de natal, a família viu-se obriga<strong>da</strong> aencaminhá-lo para Belo Horizonte, onde passou a morar na casa<strong>da</strong>s tias paternas, que inicialmente moraram no bairro Florestae depois se transferiram para o bairro de Santa Tereza.José Matheus optou pelo curso clássico, matriculando-seno Colégio Marconi de forma a se preparar eficientemente parao ensino superior - o curso de Direito. Das séries iniciais àFacul<strong>da</strong>de, construiu amizades profun<strong>da</strong>s e sinceras, que compartilharamdos mesmos sonhos e ideais.Enquanto estu<strong>da</strong>nte, José Matheus dedicou-se à lutapolítica no movimento estu<strong>da</strong>ntil, do qual tornou-se renomadolíder. Foi presidente do Diretório Central dos Estu<strong>da</strong>ntis (DCE) <strong>da</strong>UFMG de 1966-1967, período em que era grande a resistênciados estu<strong>da</strong>ntes à ditadura.Várias foram as ações de que José Matheus participou,como, por exemplo, um julgamento simulado do presidenteCastello Branco: no julgamento dos estu<strong>da</strong>ntes, o presidenterestava enquadrado em dez artigos <strong>da</strong> Lei de SegurançaNacional, cria<strong>da</strong> pelos próprios militares para reprimir o povo esuas instituições. Também coordenou o XXVIII CongressoNacional <strong>da</strong> União Nacional dos Estudos (UNE) realizado noConvento São Francisco, no bairro Carlos Prates, em BeloHorizonte. Publicou o nº 5 <strong>da</strong> revista Mosaic, prescrevendo to<strong>da</strong>a orientação <strong>da</strong>quela gestão para o DCE e para o movimentoestu<strong>da</strong>ntil <strong>da</strong> época. Foi militante <strong>da</strong> Ação Popular (AP), <strong>da</strong> qualfoi um dos dirigentes. Formou-se em dezembro de 1967, quandopassou à vi<strong>da</strong> profissional.Como funcionário público, começou atuando no Departamentode Assistência Judiciária (DAJ) de sua Facul<strong>da</strong>de.Teve ação destaca<strong>da</strong> na defesa de direitos sociais <strong>da</strong> popu-lação favela<strong>da</strong>, como a do conjunto Santa Maria de BeloHorizonte, em que atuou contra o pretenso proprietárioAntônio Luciano e o Departamento de Ordem Política e Social(DOPS), que pretendiam destruir as habitações ocupa<strong>da</strong>s porvários familiares: conquistou para eles o direito de permanência.Também desenvolveu ação segura e corajosa junto àsforças de repressão na libertação de colegas amigos e companheirosde luta contra a ditadura, entre eles Betinho Duartee Apolo Heringer Lisboa.José Matheus morreu em 13 de outubro de 1968, aos 22anos, quando voltava de uma viagem que fizera a Brasília aserviço do Movimento Democrático Brasieiro (MDB). Morreu emAbadia dos Dourados, distrito de Coromandel, por afogamento.Naquele momento sua prisão preventiva estava para ser decreta<strong>da</strong>pela Auditoria Militar de Juiz de Fora.(A<strong>da</strong>ptado de texto de autoria de Ana Maria e Mercês, irmãs de José Matheus)414 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>415


José Pereira Martins Filho -ZequinhaJosé Pereira Martins Filho nasceu no dia 20 de janeiro de 1949,em Teresina, Piauí, filho de José Pereira Martins e Heloísa CorreiaLima Martins. Era neto de Manoel Pereira Martins e Antônia Maria<strong>da</strong> Conceição Martins pelo lado paterno e de João Batista CorreiaLima e Maria Laura Correia Lima, pelo lado materno.Zequinha, como era conhecido por todos os amigos, foiuma criança tranqüila, que gostava <strong>da</strong> companhia dos pais e <strong>da</strong>sirmãs: Maria Heloísa, Maria Virgínia, Wan<strong>da</strong> e Walquíria.Fez as quatro primeiras séries do Ensino Fun<strong>da</strong>mental naEscola Estadual Dom Pedro II, continuando os estudos no antigoColégio Estadual Central, hoje Escola Estadual GovernadorMilton Campos.Foi sempre um aluno exemplar que, sem muito esforço,conseguia bom desempenho na escola. Homenageado váriasvezes como melhor aluno, tanto no curso primário como nosecundário, Zequinha foi aprovado em primeiro lugar no vestibularpara a Facul<strong>da</strong>de de Ciências Econômicas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (FACE/UFMG), no final dos anos 60,quando havia provas orais e escritas. Vaidoso, gostava de ouvirmúsica clássica, admirava Chico Buarque de Holan<strong>da</strong> e apreciavaa cozinha mineira e a nordestina. Cultivou o gosto peloteatro, cinema e literatura, passando por autores como JeanGeanett, Chris Namour e livros de conteúdo político-social.Acreditando numa socie<strong>da</strong>de justa e democrática, participouativamente <strong>da</strong>s lutas estu<strong>da</strong>ntis dos anos 60/70. Militouem organizações de esquer<strong>da</strong> no período cruel <strong>da</strong> ditadura militar,defendendo o operariado, os camponeses, os oprimidos.416 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>417


Em razão desse envolvimento sofreu duras perseguições<strong>da</strong> polícia política, tendo sido espancado no antigo Departamentode Ordem Política e Social (DOPS), o que lhe deixou seqüelasprofun<strong>da</strong>s tanto no corpo quanto na alma.Zequinha trabalhou na UFMG e no Departamento Nacionalde Estra<strong>da</strong>s de Ro<strong>da</strong>gem (DNER/MG).José Pereira Martins Filho faleceu em Belo Horizonte nodia 18 de maio de 1996, de para<strong>da</strong> cardiorrespiratória. Deixou amãe, irmãs, a sobrinha Daniela, uma afeição enorme, muita sau<strong>da</strong>dee a lembrança boa de uma pessoa que foi tão grande eviveu tão pouco!D. Heloísa Correia Lima Martins, sua mãe, dedicou-lhe ospoemas que abaixo se transcrevem, já publicados no livro de suaautoria Poesias de Minha Vi<strong>da</strong>.Nas rotas do meu caminho(A você filho)No meu peito guar<strong>da</strong>ndoEste incomensurável prantoVocê se distanciandoE eu te querendo tanto.Ausência(A você filho)Ansiosamente lhe espereiFim de semana chegouUm grande susto leveiTristezas você me legou.Turbilhões de pensamentosInvadem todo o meu serSão incontidos lamentosMuitos dias sem lhe ver.De repente soa a companhiaApresso-me em atender.Tudo ilusão cotidianaVolta triste a padecer...NNa ausência se vislumbram a dor e a sau<strong>da</strong>de.Nas rotas do meu caminhoFilho cor<strong>da</strong> do coraçãoDedicação, afeto, carinhoTrio de autêntico perdão.Vem enxugar o prantoVem depressa, não tarde nãoDa dor que estende o mantoNa fé dori<strong>da</strong> do meu coração.NFilho, poema que envolve to<strong>da</strong>s as cama<strong>da</strong>s do ser.418 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>419


José Prímola FerreiraDurante o período <strong>da</strong> ditadura militar que se instalou noBrasil a partir de 1964, as companhias Belgo Mineira e USIMI-NAS perseguiram e permitiram que vários de seus operários fossempresos e torturados, sob a alegação de que eram elementosperigosos, pois teriam o propósito de subverter a ordem pública.Esses operários, além de to<strong>da</strong> a humilhação sofri<strong>da</strong>, foram obrigadosa assinar carta de demissão, quando, com mais de 20anos prestados a suas empresas, já estavam perto de alcançarsua aposentadoria. A pressão para que assinassem a carta dedemissão usava do argumento de que, caso se recusassem, receberiama pena de uma prisão mais longa, além de outras medi<strong>da</strong>spunitivas mais drásticas.Acuados, eles deixaram seus familiares em dificul<strong>da</strong>de,pois a empresa obrigou-os a abandonar as casas funcionais queocupavam. Além disso, os familiares foram insultados em diversasocasiões, sob a pecha de serem parentes de bandidos, subversivose comunistas. Para to<strong>da</strong>s as famílias envolvi<strong>da</strong>s, aquelefoi um Dia Negro, nome que deram à fatídica <strong>da</strong>ta. Já a históriade Minas deu aos fatos <strong>da</strong>quele dia o nome de Massacre deIpatinga.José Prímola Ferreira foi um dos alcançados por essasperseguições. Como crime, cometera o de participar ativamente<strong>da</strong> política na região do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. E ocrime era o ápice de to<strong>da</strong> uma vi<strong>da</strong> lentamente construí<strong>da</strong> naluta e no trabalho desde o dia 17 de maio de 1922, <strong>da</strong>ta em queo menino José veio ao mundo, em Alvinópolis, Minas Gerais,preenchendo de nova alegria o lar de Francisco Soares Ferreira eCarmélia Prímola Ferreira.420 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>421


O menino teve uma infância alegra e despreocupa<strong>da</strong>, comoto<strong>da</strong> criança, juntamente com mais 11 irmãos, todos superprotegidospelos avós maternos de nacionali<strong>da</strong>de italiana:Giovanni Batista Prímola (João Prímola) e Marie Rose Pettinati.Fez seus primeiros estudos no Grupo Escolar Bias Fortes,mais tarde Escola Estadual Bias Fortes. Lá ele se destacava pelafacili<strong>da</strong>de com que assimilava os ensinamentos. Era consideradoum superdotado e sempre aju<strong>da</strong>va os colegas de classe, emdefesa de quem questionava os professores e o diretor, quandonão concor<strong>da</strong>va com determina<strong>da</strong>s atitudes. Por essa razão, foi,muitas vezes, considerado rebelde pelos padrões <strong>da</strong> época.Fez o curso de humani<strong>da</strong>des no Colégio D. Helvécio, dirigidopelos padres Salesianos. Aprendia tudo; apaixonado porlivros, lia tudo que lhe aparecia pela frente. Estu<strong>da</strong>va com afinco.Ávido em aumentar seu cabe<strong>da</strong>l de conhecimentos, aos 17anos já conhecia os grandes clássicos <strong>da</strong>s literaturas brasileira,portuguesa, francesa, russa. Terminado o curso, foi enviado pelopai, que naquela época era muito preocupado com a educaçãodos filhos, a Belo Horizonte, a fim de prosseguir nos estudos.Por essa época, começou a destacar-se como líder estu<strong>da</strong>ntil,já imbuído <strong>da</strong>s idéias de Vítor Hugo e dos princípios <strong>da</strong>Revolução Francesa: Liber<strong>da</strong>de, Igual<strong>da</strong>de e Fraterni<strong>da</strong>de. Tornouseadepto <strong>da</strong> idéia de distribuição de ren<strong>da</strong>s, defendendo que todosdeveriam ter direito à educação e melhores condições de vi<strong>da</strong>.Já na déca<strong>da</strong> de 40, no auge <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial,envolveu-se em movimentos sociais e na luta contra a opressão<strong>da</strong> classe trabalhadora, que avaliava oprimi<strong>da</strong> e sofri<strong>da</strong>. Tomoua partir <strong>da</strong>í a pecha de comunista.Quando chegou à maturi<strong>da</strong>de, tinha bagagem de vastacultura e múltipla experiência. Entendia tudo, sabia tudo, dominavaamplo leque de assuntos. Falava oito idiomas, escrevia,dirigiu o Ginásio Piracicabense em Rio Piracicaba, Minas Gerais,mais tarde Escola Estadual Professor Fernando Pinto.Possuía uma biblioteca com mais de 3 mil livros, que colocavaà disposição de quem quisesse estu<strong>da</strong>r. Defendeu de formacontumaz o meio ambiente. Amava a fauna e a flora, não permitiaque se derrubasse uma árvore e se maltratasse um animal.Seu sentimento de humani<strong>da</strong>de levou-o a estender suaação por todo o Vale do Rio Doce, ele que se mostrava solidáriocom quantos o procurassem para a defesa de seus direitos, especialmentedireitos do trabalhador. Deflagrado o Golpe Militar de1964, seu destino, como o de outros bravos combatentes, foi aprisão. Mas em nenhum momento fraquejou: pelo contrário,incentivava a todos para que levantassem a cabeça e tivessemum comportamento de coragem, bravura e esperança. Depois decomprovado que na<strong>da</strong> havia que o comprometesse, foi devolvidoà liber<strong>da</strong>de.A injustiça voltou a colhê-lo por ocasião do Massacre deIpatinga. Mas nem mesmo o Dia Negro anulou as grandes liçõesde José Prímola Ferreira: seu amor à cultura e à liber<strong>da</strong>de, suagenerosi<strong>da</strong>de, sua larga visão foram confirma<strong>da</strong>s por seus familiarespor ocasião de seu falecimento, em 3 de agosto de 2001,quando todos os livros de sua biblioteca foram doados, em últimogesto, à Prefeitura Municipal de sua ci<strong>da</strong>de.422 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>423


José Renato Campos do AmaralRUA JOSÉ PRÍMOLA FERREIRAJosé Renato Campos do Amaral, nascido em Belo Horizonteno dia 14 de março de 1945, era um apaixonado por essaci<strong>da</strong>de.Sua trajetória profissional começou no curso de CiênciasSociais, onde se destacou por sua militância no movimentoestu<strong>da</strong>ntil. Participou ativamente <strong>da</strong>s discussões sobre o ensinosuperior e a reforma universitária proposta pelo governo militar,sobretudo nas implicações que essa reforma teria nos cursos <strong>da</strong>área de humani<strong>da</strong>des. Formou-se em 1969, iniciando em segui<strong>da</strong>seu curso de pós-graduação em Ciência Política. Foi um dosmembros fun<strong>da</strong>dores do núcleo de Psicologia Social coordenadopelo reconhecido psicanalista Célio Garcia. Esse grupo dereflexão, de composição bastante heterodoxa, reunindo psicólogos,sociólogos e cientistas políticos, levou-o a reorientar seuinteresse intelectual para o campo <strong>da</strong> Psicologia.Foi como Professor do Departamento de Psicologia quepassou a integrar o corpo docente <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal deMinas Gerais (UFMG), em 1972.Em 1974, foi selecionado como bolsista do governo francêspara um curso de pós-graduação na École des Hautes Études,em Paris, onde permaneceu por dois anos, na companhia de suaesposa, a psicóloga Ruth Pina.Dono de inteligência ágil e criativa e de personali<strong>da</strong>demarcante, defendia ardorosamente suas convicções com relaçãoà vi<strong>da</strong> e à política. Era um livre pensador. Sustentava posições asmais diversas e, até mesmo, contraditórias. Seu círculo deamizades era amplo e irrestrito, assim como sua generosi<strong>da</strong>de edesprendimento.424 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>425


Ao longo de sua carreira universitária, participou intensamentedos destinos <strong>da</strong> UFMG, integrando a equipe do primeiroreitor eleito pela comuni<strong>da</strong>de universitária, Prof. Cid Veloso,além de ter sido representante docente em colegiados e câmarasdepartamentais.Hábil negociador, desempenhou um importante papel naconsoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Associação dos Professores Universitários de BeloHorizonte, sendo muitas vezes requisitado para finalização deacordos com o governo federal durante os movimentos grevistas.Sua formação eclética alia<strong>da</strong> a uma personali<strong>da</strong>de visionáriaexerciam um grande fascínio sobre os alunos. Foi o criadore primeiro editor <strong>da</strong> revista Cadernos de Psicologia, <strong>da</strong>UFMG, em 1984. Nos últimos anos como professor, dedicou-seao estudo <strong>da</strong> Psicanálise, principalmente de Freud e Lacan.Admirador ardoroso de Darcy Ribeiro, filiou-se ao PDT econcorreu a uma vaga na Câmara de Vereadores de BeloHorizonte, em 1988.Depois de aposentar-se, criou com Paulo Ribeiro, amigo esobrinho de seu mentor intelectual, a empresa de pesquisa econsultoria Opinião em Movimento.Lembrar de José Renato é vê-lo nas noites de BeloHorizonte, cercado de amigos em torno de uma cerveja rega<strong>da</strong> aum bom papo ou em sua presença constante no Mineirão,torcendo entusiasticamente pelo seu Cruzeiro.José Renato morreujovem, em 20 denovembro de 1999, deixandoum filho, MarceloPina Amaral, estu<strong>da</strong>ntede jornalismo <strong>da</strong> PUC-Minas e, também comoseu pai, um cruzeirenseapaixonado.RUA JOSÉ RENATO CAMPOS AMARAL(Texto de autoria de MarceloPina Amaral)426 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>427


José Roberto Gonçalves deRezendeJosé Roberto Gonçalves de Rezendetinha 3 anos de i<strong>da</strong>de quando as forças alia<strong>da</strong>sderrotaram a tirania nazifascista, pondofim à Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial. Tinha 17quando Fidel Castro entrou em Havana àfrente <strong>da</strong>s tropas vitoriosas <strong>da</strong> RevoluçãoCubana, em janeiro de 1959.Inconformista e simpatizante do socialismo,José Roberto era um típico jovem belohorizontinoquando o Golpe de 1964 depôs ogoverno constitucional do presidente JoãoGoulart. A ditadura militar que se instalou então teria umimpacto profundo sobre a vi<strong>da</strong> de todos os brasileiros. Para osque decidiram resistir a ela de armas na mão, como José Robertoe tantos outros jovens idealistas e corajosos, iniciava-se uma jorna<strong>da</strong>de sacrifícios pessoais, riscos imensos e reconhecidoheroísmo.O pai de José Roberto, desembargador José Gonçalves deRezende, casado com D. Hélia, professora, fizera uma típica carreirade magistrado, morando com a esposa e os seis filhos -Maria Marly, José Roberto, Carlos Humberto, Marco Antônio,Hélio Maurício e Luiz Eduardo - em várias comarcas do interiorantes de chegar à Capital.Pouco depois do Golpe de 1964, José Roberto começou ocurso de Direito na Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais(UFMG). Só haveria de concluí-lo, contudo, ao fim do regime militar,depois de anos de militância clandestina, de muitas açõesarma<strong>da</strong>s e de passar quase 10 anos como preso político em diferentescárceres <strong>da</strong> ditadura.José Roberto começou a militar no movimento estu<strong>da</strong>ntile, no fim <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 60, quando passou a ser procurado pelosagentes <strong>da</strong> repressão, entrou para a clandestini<strong>da</strong>de. Passou porvárias organizações <strong>da</strong> resistência - Comando de LibertaçãoNacional (COLINA), Vanguar<strong>da</strong> Arma<strong>da</strong> Revolucionária (VPR),Vanguar<strong>da</strong> Arma<strong>da</strong> Revolucionária - Palmares (VAR-Palmares) -e participou de ações ousa<strong>da</strong>s, como os seqüestros dos embaixadores<strong>da</strong> Alemanha e <strong>da</strong> Suíça, usados como moe<strong>da</strong> de trocapor presos políticos.Em 1970, enquanto José Roberto vivia e atuava clandestinamenteno Rio de Janeiro, a casa de sua família em BeloHorizonte era vigia<strong>da</strong> dia e noite pela polícia política e um deseus irmãos chegou a ser detido pelo antigo Departamento deOrdem Política e Social (DOPS) na tentativa de localizá-lo.Em maio de 1971, as organizações de luta arma<strong>da</strong>estavam praticamente derrota<strong>da</strong>s - centenas de militantes tinhamsido presos, dezenas morreram sob tortura. José Roberto tinha aopção de se exilar, mas preferiu permanecer no Rio, pois ain<strong>da</strong>cui<strong>da</strong>va de um companheiro ferido à bala no aparelho que ocupavamem Copacabana, um pequeno apartamento na ruaRainha Elizabeth, esquina com Raul Pompéia.Denunciado por um companheiro que fraquejou na mesmahora em que foi preso e levou a polícia ao seu encontro, JoséRoberto ficou seis meses desaparecido. Nesse período, foi barbaramentetorturado no quartel <strong>da</strong> Polícia do Exército. Ao serapresentado ao juiz militar para o início do seu primeiro processo,um ano depois, exibiu no tribunal as marcas <strong>da</strong> tortura queain<strong>da</strong> permaneciam.José Roberto Gonçalves de Rezende foi um dos poucosbrasileiros condenados à morte pelos tribunais militares, com acuriosi<strong>da</strong>de de ter recebido também pena de prisão perpétua eoutras condenações menores. Foi combativo mesmo preso, poisfoi um dos líderes <strong>da</strong> vitoriosa greve de fome dos presos políticos428 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>429


do cárcere <strong>da</strong> Ilha Grande, em 1976, que obtiveram com seumovimento a transferência para o continente.Só em 1980, graças à revisão judicial de seus processos enão à anistia, que não o alcançou, José Roberto foi libertado.Concluiu seu curso de Direito e passou a advogar para movimentossociais de Belo Horizonte. Em 1997, seu nome foi indicado porunanimi<strong>da</strong>de pelo Conselho de Direitos Humanos de MinasGerais para ocupar o recém-criado cargo de Ouvidor de Polícia.José Roberto instalou a Ouvidoria e, no desempenho <strong>da</strong>ssuas funções, conquistou o respeito e admiração de todos, inclusive<strong>da</strong>s forças policiais. Faleceu no cargo, vítima de um ataquecardíaco, em agosto de 1999, uma semana antes do lançamentodo seu livro de memórias, Ousar Lutar. Deixou um filho (Ronald)do primeiro casamento e dois (José Roberto e João) do segundo.Seu corpo foi velado na Assembléia Legislativa, com a presençade familiares, companheiros, admiradores e autori<strong>da</strong>des, como ogovernador do Estado. Antes de o esquife baixar à sepultura, umcorneteiro <strong>da</strong> Polícia Militar executou o toque de silêncio. Umoficial retirou, dobrou e entregou à mãe de José Roberto a bandeirado Brasil que cobrira o caixão. Foram as últimas homenagensa um brasileiro que tanto amou a liber<strong>da</strong>de e o seu País.JOSÉ ROBERTO GONÇALVES DE REZENDE(Texto de autoria de Marco Antônio de Rezende)430 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>431


José Rocha Filho - Frei MatheusFrei Matheus Rocha, <strong>da</strong> Ordemdos Pregadores (OP), nasceu em 26 deagosto de 1923, em Dom Silvério, MinasGerais, filho de José de Souza Rochae Dalva Vale Rocha. Seu nome debatismo, José Rocha Filho, foi eclipsadopelo nome eclesiástico, pelo qualfoi conhecido em sua longa vi<strong>da</strong> de intensotrabalho.O menino José fez os primeirosestudos no Grupo Escolar Nossa Senhora<strong>da</strong> Saúde, no arraial de mesmonome. Em março de 1936, com 12 anos, entrou no SeminárioMenor de Mariana. Foi todo feliz, ia realizar o seu ideal, ser sacerdote.Quando terminou o Seminário Menor e ia para o Maior,resolveu ingressar na congregação dos padres Lazaristas, emPetrópolis, Rio de Janeiro. Nesta época, ele teve que servir oExército. Sua mãe soube e, preocupa<strong>da</strong>, perguntou: "E seus estudos,meu filho?". Ele respondeu: "Estou saindo muito bem, ca<strong>da</strong>dia mais convicto de ser padre e com meu testemunho, quero serum mensageiro para que todos encontrem vi<strong>da</strong> nova em JesusCristo".Em 1948, ele conheceu Frei Domingos, Prior dos Dominicanosno Brasil. A convivência fez com que decidisse ingressarna Ordem dos Pregadores. Fez a sua profissão solene no Conventodos Dominicanos de São Paulo, em 20 de março de 1950.Completou seus estudos na França, no Convento de Saint-Maximin,onde conquistou o presbiterato.Voltou ao Brasil em novembro de 1952 e foi designado paraBelo Horizonte. Nomeado assistente <strong>da</strong> Juventude Estu<strong>da</strong>ntilCatólica (JEC), teve, nesse campo, uma notável atuação, compendia<strong>da</strong>depois no livro JEC: O Evangelho no Colégio, publicadoem 1957. Em abril de 1955, foi eleito Prior do Convento deBelo Horizonte. No ano seguinte, aos 20 dias do mês de maio, foieleito Provincial <strong>da</strong> já então Província de Santo Tomás de Aquinodo Brasil. Foi o segundo Provincial de uma Província cria<strong>da</strong> em1952. Frei Matheus tinha, então, 33 anos de i<strong>da</strong>de. Em 1960, foireconduzido para outro man<strong>da</strong>to de quatro anos.Em 1963, antes de encerrar o man<strong>da</strong>to, pediu para deixaro cargo para se dedicar, com a autorização do Mestre Geral dosDominicanos, ao trabalho de construir um Instituto de Teologia,dirigido por sua Ordem e integrado à recém-cria<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>dede Brasília (UnB). Nomeado vice-reitor <strong>da</strong> UnB, chegou a assumira reitoria, quando o reitor, professor Darcy Ribeiro, foi designadochefe <strong>da</strong> Casa Civil do presidente João Goulart.O Golpe Militar de 31 de março de 1964 encontrou-o nafunção de reitor <strong>da</strong> UnB, o que lhe custou prisão temporária e umInquérito Policial Militar (IPM). O projeto do Instituto de Teologiados Dominicanos não foi adiante, apesar <strong>da</strong> permanência de FreiMatheus em Brasília, onde continuou seu intenso apostoladocomo orientador de muitos católicos e de crentes e não-crentesque o procuravam.Em 1970, recebeu autorização para residir em um pequenosítio na ci<strong>da</strong>de de Abadiânia, em Goiás. Exerceu, também, ocargo de professor no seminário de Goiânia, Goiás, ensinandoespecialmente Cristologia, além de <strong>da</strong>r assessoria às Dominicanas<strong>da</strong> Província de Brasília.Em Abadiânia, Frei Matheus desenvolveu, com a aju<strong>da</strong> deamigos e discípulos, um projeto importante no qual acreditava:a escola de horário integral para as crianças <strong>da</strong> região, basea<strong>da</strong>na proposta do professor Darcy Ribeiro.Foi eleito, em janeiro de 1981, Ministro Provincial e, nessecargo, procurou tornar a Ordem mais conheci<strong>da</strong> no Brasil, publi-432 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>433


cando os Cadernos Dominicanos e coordenando a publicação<strong>da</strong>s obras Os Dominicanos e as Nove Maneiras de Rezar de SãoDomingos.Passou a integrar a equipe de reflexão <strong>da</strong> CRB/Nacionalem 1984, quando foi reeleito Provincial, buscando, desta vez, <strong>da</strong>ratenção especial ao recrutamento de novas vocações jovens, atéque, nos anos 70, sofreu uma sangria <strong>da</strong> qual não se recuperouplenamente.Publicou vários livros, entre eles Quem é esse homem?(1969), O Tormento de Deus (1970) e Projeto de vi<strong>da</strong> radical(segun<strong>da</strong> edição em 1977).Frei Matheus Rocha faleceu tragicamente num acidentede carro, no dia 23 de janeiro de 1985, quando ia de Goiânia paraUberlândia, a caminho de Belo Horizonte. Na altura de Apareci<strong>da</strong>,perto de Hidrolândia, ain<strong>da</strong> em Goiás, seu carro foi abalroadopor uma camioneta C-10. Frei Matheus teve morte instantânea,enquanto seu companheiro, a quem dera carona, faleceupouco depois. Tinha, então, 61 anos de i<strong>da</strong>de, dos quais consagrara43 à vi<strong>da</strong> religiosa.To<strong>da</strong> uma geração foi marca<strong>da</strong> pelo trabalho de Frei Matheus,que buscou formar um clero mais comprometido com oaspecto social, mais consciente <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e mais dedicado auma vi<strong>da</strong> pauta<strong>da</strong> no exemplo. As marcas deixa<strong>da</strong>s por eleforam profun<strong>da</strong>s, não só na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> Província Dominicana noBrasil e no exterior, mas em to<strong>da</strong> uma juventude, que acreditouna possibili<strong>da</strong>de de transformar o mundo. O papel de FreiMatheus, aquele que viveu em permanente disponibili<strong>da</strong>deevangélica e aquele que dinamizou de forma extraordinária aIgreja de seu tempo, foi de enorme importância para a evoluçãopolítica do Brasil.Foi de autoria do vereador Arthur Vianna a proposição deseu nome para denominar uma rua de Belo Horizonte, justa emereci<strong>da</strong> homenagem.434 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>435


José Toledo de OliveiraJosé Toledo de Oliveira, filho doagricultor José Sebastião de Oliveira e<strong>da</strong> professora A<strong>da</strong>ide de Toledo Oliveira,nasceu na ci<strong>da</strong>de de Uberlândia,Minas Gerais, no dia 17 de julho de1941. Teve duas irmãs, Maril<strong>da</strong> eMaria Laurin<strong>da</strong>.Bancário, José Toledo, arrimo defamília, estudou Direito no Rio deJaneiro. Aos 14 anos, entrou para oBanco de Crédito Real de MinasGerais.Filiou-se desde logo ao Sindicatodos Bancários e passou a participar<strong>da</strong>s lutas de classe <strong>da</strong> categoria. Foiativista incansável, participando, inclusive,<strong>da</strong> edição do jornal Elo, juntamente com o deputado federalJoão Alberto: com o pseudônimo de Sobral Siqueira, tinhacoluna fixa no periódico. À mesma época, elegeu-se diretor <strong>da</strong>associação dos funcionários do Banco, derrotando o grupoapoiado pela direção <strong>da</strong>quela instituição financeira.Muito breve, contudo, Toledo compreenderia que a lutasindical tinha limites e que o objetivo supremo de mu<strong>da</strong>r radicalmentea socie<strong>da</strong>de exigiria mais. Foi aí que passou a militarpoliticamente, ingressando no Partido Comunista Brasileiro(PCB), que na época aglutinava quase to<strong>da</strong> a esquer<strong>da</strong> brasileira.Veio o Golpe Militar de 1964, com intervenção nos sindicatose perseguição aos lideres sindicais. O PCB começou a436 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>437


fragmentar-se. O periódico foi fechado. Foram numerosas asdemissões no Banco Crédito Real. Toledo permaneceu porqueescrevia sob pseudônimo, mas, no dia 1º de agosto de 1969, foipreso pelo Departamento de Ordem Política e Social de MinasGerais (DOPS/MG) quando trabalhava, juntamente com outroscolegas bancários.Transferido para o Centro Nacional de Informções <strong>da</strong>Marinha (CENIMAR), na Ilha <strong>da</strong>s Flores, foi torturado com selvageria,mas não fraquejou. No tribunal militar, denuncioucorajosamente as torturas que sofreu. Foi absolvido, deixou oBanco e foi para a clandestini<strong>da</strong>de. Soube-se depois que forajuntar-se à Guerrilha do Araguaia, já pertencendo ao quadro doPartido Comunista do Brasil (PC do B), a dissidência maoísta doPCB.Admite-se que José Toledo tenha morrido em combate, aos31 anos, no dia 21 de setembro de 1972, junto com outros companheiros.As informações que levaram a essa hipótese não sãooficiais, pois o Exército não comunicou sua morte aos familiarese nem a eles entregou seu corpo. Até hoje José Toledo de Oliveirafaz parte <strong>da</strong> lista dos desaparecidos. A lembrança de seus ideaise suas imperecíveis lições por uma nação justa e solidária nãodeixam, porém, de manter acesa a esperança de que venha à luztodo o esclarecimento sobre a sua parti<strong>da</strong> precoce.438 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>439


Juarez Guimarães de BritoJuarez Guimarães de Brito nasceu em 22 de janeiro de1938, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Era o caçula dos nove filhosdo casal formado por Amélia Guimarães de Brito e peloengenheiro Jayme Ferreira de Brito. Ao lado de seus irmãos maisvelhos, Jayme, Dalva, Jaziel, Dilma, Dilza, Joel, Jessé e Daura, eleteve uma infância alegre. Seu primeiro sobrinho nasceu antesque ele fosse alfabetizado e seus irmãos brincavam com ele,chamando-o de titio analfabeto. Passou parte dessa meninice noMaranhão, vivendo no que ele costumava chamar de paraíso: erauma estação experimental de fruticultura, sob a direção de seupai, então, Secretário de Agricultura do Estado do Maranhão.De volta a Belo Horizonte, Juarez estudou no Colégio Batistae, posteriormente, ingressou na Facul<strong>da</strong>de de Ciências Econômicas<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (FACE/UFMG),onde se formou em 1962, nos cursos de Sociologia e Política e AdministraçãoPública. Fez o Centro de Preparação de Oficiais <strong>da</strong> Reserva(CPOR) junto com seus grandes amigos Theotônio e Teodoro.Naquela época, alternava os estudos com ativi<strong>da</strong>des políticase com a paixão pelo cinema, sendo freqüentador assíduo doCine Clube do Colégio Arnaldo.Membro <strong>da</strong> Juventude Trabalhista do Partido TrabalhistaBrasileiro (PTB) de Minas Gerais, trabalhou principalmente juntoaos sindicatos, assessorando e organizando cursos de história eoratória. Era ain<strong>da</strong> militante <strong>da</strong> organização revolucionária marxistaPolítica Operária (POLOP) e participou de to<strong>da</strong>s as lutas <strong>da</strong>época: <strong>da</strong> greve dos mineiros de Nova Lima contra a Hanna Corporatione dos movimentos <strong>da</strong> Liga Camponesa de Três Marias,entre tantas outras.440 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>441


Casou-se em 1962 com sua primeiranamora<strong>da</strong>, Maria do Carmo Dutra de Oliveira,colega de Facul<strong>da</strong>de e de ideais políticos.Depois de formado, o eixo de sua vi<strong>da</strong>passou a ser a ativi<strong>da</strong>de política. Em1963, foi trabalhar em Goiás, como assessore professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Goiás (UFGO). Em1964, mudou-se para Recife, onde exerceu funções na Superintendênciade Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).Após o Golpe Militar de 1964, foi preso e passou cinco mesesna prisão. Ao ser libertado, transferiu-se para o Rio de Janeiro,onde continuou a trabalhar como sociólogo e pesquisador.Divergindo <strong>da</strong> orientação <strong>da</strong> POLOP, dela se afastou, aooptar pela luta arma<strong>da</strong> como forma mais adequa<strong>da</strong> à resistênciaao golpe civil-militar naquele momento, passando a fazer partedo Comando de Libertação Nacional (COLINA). Participou <strong>da</strong>criação <strong>da</strong> Vanguar<strong>da</strong> Arma<strong>da</strong> Revolucionária - Palmares (VAR-Palmares) e, após sua divisão, permaneceu como militante <strong>da</strong>Vanguar<strong>da</strong> Popular Revolucionária (VPR), no staff direto doCapitão Carlos Lamarca.No dia 18 de abril de 1970, ao ir ao encontro de um companheirono Rio de Janeiro, na lagoa Rodrigo de Freitas, percebeuque este estava preso dentro de um jipe e que o local estavacercado. Ain<strong>da</strong> assim, tentou passar uma arma ao companheiro,numa sacola de feira cheia de alfaces, que lhe havia sido entreguepor um menino. Disse, naquele momento, à sua mulher: "Fulanonão entregou o ponto. Eu vim aqui na semana passa<strong>da</strong>, elenos fez sinal para nos afastarmos. De que adianta lutarmos portodo o povo se não podemos fazer na<strong>da</strong> pelo companheiro queestá tão próximo?".Quando o carro que dirigia foi cercado, Juarez cumpriu umpacto que tinha com sua companheira. Tirou <strong>da</strong>s mãos dela apistola que restara e deu um tiro no ouvido. Embora tenha sidoatingido também por balas de fuzil, o tiro letal foi disparado porele mesmo. Coerente na maneira de viver, coerente na maneirade morrer.Foi enterrado em Belo Horizonte. No culto ecumênico feitopor sua família e pela de sua mulher, o hino cantado foi Prova deamor maior não há do que doar a vi<strong>da</strong> pelo irmão.Sempre quis tocar clarineta. Não conseguiu. Muito amigode crianças, não teve filhos, mas sua viúva casou-se depois comÂngelo Pezzuti <strong>da</strong> Silva e os dois decidiram <strong>da</strong>r o seu nome aofilho do casal, Juarez Carlos Brito Pezzuti.(Texto de autoria de Maria do Carmo Brito em 08/08/94)A frustração não existiu.Sabia perfeitamente que caminhava em um mundo irreal.No mundo no qual todos os valores eram desvirtuados.No mundo onde não somos, e sim, somos o que os que não sãodeterminam que sejamos.Caminhava e não aceitava interromper os passos diante <strong>da</strong>montanha de cristal,corporifica<strong>da</strong> em preconceitos,refina<strong>da</strong>mente elaborados pelos séculos dos deuses.O que é a vi<strong>da</strong> senão um acumular diário de forças pararomper a rocha que impede o realizar do ser?Viver sem esta compreensãoé o mesmo que uma folha seca que se deixa pisare se desfaz em várias parcelas amorfas.O homem que não se compromete com o está-se-fazendoé o desfigurado <strong>da</strong>s mil faces.Conheci a mora<strong>da</strong> dos ímpios,onde brota a dor que não traz frustrações,mas, na ver<strong>da</strong>de, provoca o ódio,e, sobretudo, a consciência de que,em dia que talvez não será o meu,teremos de convocar todos os poetaspara inun<strong>da</strong>r a terra de mensagensque apaguem o fogo <strong>da</strong> ira, em vingança.(Poema escrito por Juarez depois de ter sido solto em Recife)442 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>443


Judith Vieira LisboaJudith Vieira Lisboa nasceu em Alfenas, Minas Gerais, em12 de maio de 1913, filha de fazendeiros empobrecidos. Desdejovem, como professora primária, trabalhou arduamente paraaju<strong>da</strong>r a sustentar seus pais e irmãos.Quando a família, em busca de melhores oportuni<strong>da</strong>des,mudou-se para São Paulo, Judith lecionou em várias escolas,inclusive no SENAI. Em 1940, casou-se com Aristides Lisboa,bancário e ex-líder sindical, mu<strong>da</strong>ndo-se para o Rio de Janeiro.O casal teve duas filhas, Marijane e Célia.Embora manifestasse grande interesse pela política,Judith só começou a desenvolver ativi<strong>da</strong>des nessa área quandose integrou ao grupo de mães que acabaria constituindo a UniãoBrasileira <strong>da</strong>s Mães. Por meio <strong>da</strong> União, as mães buscavam protegerseus filhos envolvidos com o movimento estu<strong>da</strong>ntil de 1968e, mais tarde, os jovens presos e torturados no período que seseguiu à decretação do Ato Institucional n º 5 (AI-5), em fins de1968.Quando sua filha Marijane foi presa, em setembro de 1969,pelo Centro Nacional de Informações <strong>da</strong> Marinha (CENIMAR),no Rio de Janeiro, Judith tratou de reunir em torno de si outrosfamiliares de presos políticos e advogados, fazendo chegar àConferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) a denúnciasobre as torturas e prisões arbitrárias que vitimavam tantosjovens. Daí em diante, tornou-se uma <strong>da</strong>s principais liderançasno Rio de Janeiro na luta pela proteção dos perseguidos políticos.Distinguiu-se não apenas na União Brasileira de Mães, mastambém no Movimento Feminino pela Anistia, no ComitêBrasileiro pela Anistia e, posteriormente, já no período de rede-444 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>445


mocratização do País, na Liga Brasileira em Defesa dos DireitosHumanos.Faleceu em 14 de março de 1995, aos 82 anos, deixando,além <strong>da</strong>s duas filhas, os netos Adriana e Tiago, filhos de Célia, eBárbara e Carlos, filhos de Marijane. Deixou também a sementede seus ideais em ca<strong>da</strong> um deles. A filha Marijane <strong>da</strong>ria continui<strong>da</strong>dedireta a eles, quando se engajou na enti<strong>da</strong>de ambientalistaGreenpeace e quando assumiu, no início do governo dopresidente Luiz Inácio Lula <strong>da</strong> Silva, a Secretaria de Quali<strong>da</strong>deAmbiental nos Assentamentos Humanos, do Ministério do MeioAmbiente.Sua história mostra que os bons exemplos não perecem,mas vivem para sempre.RUA JUDITH VIEIRA LISBOA446 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>447


Lenine Moreira <strong>da</strong> SilvaLenine Moreira <strong>da</strong> Silva, filho de MariaJosé de La Salete Tibães Moreira <strong>da</strong> Silva ede Nadir Moreira <strong>da</strong> Silva, nasceu no dia 30de abril de 1944, em Diamantina, MinasGerais. Wladimir, Ylitch, José Nathiun,Salete, Terezinha, Maril<strong>da</strong>, Enei<strong>da</strong> e Hércioeram os irmãos que, com ele, compunhamnumerosa família.Cursou o Ensino Fun<strong>da</strong>mental e o Médiono Colégio Arquidiocesano de Belo Horizonte,nos anos 60. Foi vice-presidente do Diretório Central dosEstu<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (DCE/UFMG)em 1968 e vice-presidente <strong>da</strong> mesma uni<strong>da</strong>de em 1969, eleitopor votação direta em todo o Estado. Participou, ativamente, <strong>da</strong>luta para a implantação do Centro Esportivo Universitário (CEU)para os alunos <strong>da</strong> UFMG.Lenine não pertenceu a nenhuma <strong>da</strong>s organizações deesquer<strong>da</strong>, mas foi uma pessoa expressiva no movimento estu<strong>da</strong>ntile no <strong>da</strong> Igreja Católica, no final dos anos 60 e início dos 70.Cursou Ciências Sociais na UFMG, mas, perseguido, foi impossibilitadode freqüentar regularmente o curso. Bacharelou-se emGeografia, terminando o curso de licenciatura em 1981.Casou-se com Maria Tereza Arvelos Costa, com quem teveduas filhas: Andreza, forma<strong>da</strong> em Comunicação Social, na áreade Relações Públicas, e Érica, em Engenharia Civil.Lecionou Geografia em várias escolas em Belo Horizonte:Colégio Dom Cabral, Champagnat, Monte Calvário, Fun<strong>da</strong>ção deEnsino de Contagem (FUNEC), Escola Estadual Helena Guerra,Escola Estadual Padre Camargos e Pré-Vestibular Gabarito.Lenine Moreira <strong>da</strong> Silva faleceu nodia 14 de dezembro de 1992, de problemascardíacos, enquanto lecionava naEscola Estadual Princesa Izabel, em BeloHorizonte. Na ocasião, trabalhava tambémna biblioteca <strong>da</strong> Escola EstadualGastão <strong>da</strong> Cunha, em Contagem.Idealista como tantos outros companheiros,Lenine Moreira <strong>da</strong> Silvaacreditou na construção de um Paísnovo, justo e fraterno e deixou para todosa grande lição <strong>da</strong> esperança.448 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>449


Lucimar Brandão GuimarãesLucimar Brandão Guimarães nasceu no dia 31 de julho de1948, em Lambari, sul de Minas, onde passou sua infância. Erafilho de Leovigildo Guimarães e Maria Dinah BrandãoGuimarães.Estudou no Colégio Pedro II, participou <strong>da</strong> JuventudeEstu<strong>da</strong>ntil Católica (JEC) e foi líder estu<strong>da</strong>ntil secun<strong>da</strong>rista noRio de Janeiro.Foi militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), doqual saiu para uma dissidência chama<strong>da</strong> Núcleo MarxistaLeninista (NML). Posteriormente, filiou-se à Vanguar<strong>da</strong> Arma<strong>da</strong>Revolucionária - Palmares (VAR-Palmares).Fugiu do Rio de Janeiro para Belo Horizonte em fins de1969, depois de participar do episódio que envolveu militantes<strong>da</strong> VAR-Palmares com órgãos <strong>da</strong> repressão na Vila Kosmos. Notiroteio que houve então, um major do Exército foi ferido eLucimar, jurado de morte, conforme ele mesmo dizia.Chegando a Belo Horizonte, foi morar no apartamento1.603 do edifício Araguaia, av. Augusto de Lima nº 136 - Centro.Usava, nessa época, os codinomes Calixto e Antunes, queacabaram virando Calixto Antunes, no momento de sua prisão,em Belo Horizonte.A prisão ocorreu no dia 26 de janeiro de 1970, no apartamentoonde residia com os companheiros José Roberto BorgesChamps, Antônio Orlando Macedo Ferreira, João de Barros eArtur Eduardo Consentino Alvarez.Foi visto pela última vez pelos companheiros quatro diasdepois de sua prisão, quando chegava escoltado à PenitenciáriaMagalhães Pinto, em Neves. Foi submetido a bárbaras torturas,450 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>451


tendo, inclusive, a coluna vertebral quebra<strong>da</strong>, o que o mantevena cama até sua morte.Lucimar Brandão Guimarães morreu aos 22 anos, no dia31 de agosto de 1970, no Hospital Militar de Belo Horizonte, emconseqüência <strong>da</strong>s sevícias que sofreu. Os companheiros souberamà época, através de carcereiros, que ele definhara noHospital Militar no período de março a agosto <strong>da</strong>quele ano.Ain<strong>da</strong> assim, a morte do jovem estu<strong>da</strong>nte foi atribuí<strong>da</strong> a ferimentossofridos por ocasião de um grave acidente ocorrido como veículo que o transportava: o veículo teria capotado, segundonota oficial dos órgãos de segurança. Essa mesma notícia foirepassa<strong>da</strong> aos companheiros de prisão pelo Capitão <strong>da</strong> PolíciaMilitar (PM) Pedro Ivo, em março de 1970.A denúncia de sua morte, sob torturas, foi feita pelaAnistia Internacional no seu boletim do mês de março de 1974.452 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>453


Lúcio Petit <strong>da</strong> SilvaLúcio Petit <strong>da</strong> Silva, filho de José Bernardino<strong>da</strong> Silva e de Julieta Petit <strong>da</strong> Silva,nasceu em Piratininga, São Paulo, no dia 1ºde dezembro de 1943.Fez os estudos iniciais em Amparo eDuartina, São Paulo. Após o falecimento deseu pai e devido às dificul<strong>da</strong>des financeiras<strong>da</strong> família, começou a trabalhar ain<strong>da</strong> muitojovem. Mudou-se para Itajubá, Minas Gerais,onde, morando na casa do tio, terminou oEnsino Médio e começou o curso superior deEngenharia no Instituto Eletrotécnico de Engenharia.Fez parte do Diretório Acadêmico (DA) de sua escola, ondese encarregou do setor cultural e iniciou sua militância política.Participou do Centro Popular de Cultura (CPC/UNE) e escreveupoemas e crônicas sobre os problemas sociais brasileiros para ojornal O Dínamo do DA ao qual pertencia.Foi para São Paulo em 1965 e, iniciando sua vi<strong>da</strong> profissional,empregou-se como engenheiro nas empresas Ligth,Engemix, Companhia Nativa e Usina Boa Esperança.Em 1970, transferiu-se para a região do Araguaia, como militantedo Partido Comunista do Brasil (PC do B). Abandonando otrabalho e a ci<strong>da</strong>de, buscava continuar a luta no campo, onde sedestacou como excelente mateiro. Optou por viver junto com seusirmãos Maria Lúcia e Jaime, usando os nomes Beto e Roberto.Escreveu vários poemas e literatura de cordel, que eramrecitados pelos camponeses <strong>da</strong> região e nas sessões de Terecô(religião local).Fez parte do Destacamento A - HeleniraResende e, com a morte docoman<strong>da</strong>nte José Carlos Haas Sobrinho,foi promovido a vice-coman<strong>da</strong>nte domesmo destacamento, em 14 de outubrode 1973. Está desaparecido desde o dia14 de janeiro de 1974, quando foi vistovivo pela última vez por seus companheiros.Desapareceu, juntamente comAntônio Alfaiate e Antônio de PáduaCosta, após intenso tiroteio com asforças de repressão.O relatório do Ministério doExército diz que é considerado desaparecidodesde o dia 29/11/73, quando teria travado tiroteio com umapatrulha do Exército. Já o relatório do Ministério <strong>da</strong> Marinhaafirma que foi morto em março de 1974.Jaime, Lúcio e Maria Lúcia Petit provaram, além de seuamor à liber<strong>da</strong>de e à Pátria, que o sentimento de mineiri<strong>da</strong>denão é conquistado apenas pelo nascimento, mas também pelaintegração à cultura mineira. Os três irmãos não nasceram emMinas Gerais: tornaram-se mineiros pelas circunstâncias <strong>da</strong>própria vi<strong>da</strong>, quando foram morar em Itajubá, com os tios, depois<strong>da</strong> morte do pai.454 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>455


Luiz Pompeu de CamposLuiz Pompeu de Campos nasceu em São João Del Rei,Minas Gerais, no dia 28 de fevereiro de 1946, quarto filho docasal Antônio Pompeu de Campos e Celina Braga de Campos.Celina era pessoa maravilhosa, com o perfil de uma árvore frondosade raízes profun<strong>da</strong>s, muito generosa, de abun<strong>da</strong>ntes edoces frutos, que teve a felici<strong>da</strong>de de ter um filho também tãogeneroso, amigo, companheiro, marido e pai como Pompeu.Pompeu deixou os irmãos Cristóvão, Antônio, Cecília,Auxiliadora, os gêmeos Francisco e José Lúcio, Celina, Pilar,Eduardo e João Bosco, além de inúmeros sobrinhos.Luiz Pompeu fez os estudos iniciais ain<strong>da</strong> em São João DelRei, período em que foi interno no colégio dos fradesFranciscanos. Em 1958, aos 12 anos de i<strong>da</strong>de, veio para BeloHorizonte. Entrou para o Colégio Estadual Central, hoje EscolaEstadual Governador Milton Campos, onde estudou até terminaro Ensino Médio.Graduou-se em Física pelo Instituto de Ciências Exatas <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (ICEX-UFMG), iniciandosua profícua vi<strong>da</strong> de professor e educador respeitado não só noâmbito <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de, mas no de outros órgãos ou associaçõesimportantes nas áreas docentes e discentes do País.Ocupou inúmeros cargos, prestando relevantes serviços àcausa acadêmica: foi presidente <strong>da</strong> Associação dos ProfessoresUniversitários de Belo Horizonte (APUBH), vice-presidente <strong>da</strong>Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES),diretor do Colégio Pe<strong>da</strong>gógico <strong>da</strong> UFMG, diretor-geral do ColégioTécnico (COLTEC/UFMG), diretor <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Educação(FAE/UFMG), presidente <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Universitária MendesPimentel (FUMP/UFMG).456 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>457


Seu primeiro casamento foi com Márcia Rezende SpyerPompeu, com quem teve o filho Carlo Spyer Pompeu.Posteriormente, viveu 21 anos com sua segun<strong>da</strong> esposa, ThelmaCoutinho, a partir de 1974, deixando os filhos: Flávia, Gabriel eJoana Coutinho Campos. Seus filhos eram seu carinho, seuafeto, seu doce viver!Gostava profun<strong>da</strong>mente <strong>da</strong> música popular brasileira, destacando-seentre seus preferidos Renato Teixeira, Dominguinhos,Cartola, Pixinguinha, Pena Branca e Xavantinho e GeraldoAzevedo. Pompeu adorava passarinho. Tinha uma percepção rara:identificava ca<strong>da</strong> pássaro pelo seu canto, colocando nome em ca<strong>da</strong>um deles: Carlitos, Hidrocor, Cacá, Beethoven e outros.Tinha um lote no bairro São Luiz, na Pampulha, em BeloHorizonte, que era conhecido como quintal e onde reunia seusincontáveis e queridos amigos. Lá cultivava sua horta, tinha seupomar onde cui<strong>da</strong>va dos pés de graviola, grapefruit, sirigüela,todo tipo de frutas cítricas, carambola, mangas diversas, goiaba,bananeiras, jabuticabeiras, uva e tantas outras que conseguisseencontrar! As orquídeas eram outra grande paixão, <strong>da</strong>s quaiscui<strong>da</strong>va com enorme carinho, sendo que o jardim do quintalestava sempre florido, de acordo com a estação. O que gostavamesmo era de cozinhar no seu fogão a lenha, o que fazia commaestria e grande prazer, gastando horas elaborando seus pratosprediletos, curtindo amigos e, mais ain<strong>da</strong>, a própria vi<strong>da</strong>! Comobom chef e como gourmet tinha suas especiali<strong>da</strong>des: caldos demandioca e feijão, cozidos, macarrona<strong>da</strong>s com gorgonzola, sala<strong>da</strong>svaria<strong>da</strong>s, coelhos à mo<strong>da</strong>, strogonofes e tantos outrospratos! Com o coração, o bom humor e a alegria cultivava amigos,muitos amigos, <strong>da</strong>s crianças vizinhas que o esperavam noportão para brincar ("Pompeu, Pompeu, cara de pneu") a adultos,alunos, companheiros, parentes, filhos, filhos dos amigos e, principalmente,Thelma, para quem tinha uma palavra, um gesto,um sorriso!Luiz Pompeu faleceu no dia 15 de fevereiro de 1996, aos 49anos, de infarto agudo, no seu quintal, rodeado <strong>da</strong> família e deamigos queridos como gostava de viver, fazendo o que realmentegostava de fazer: <strong>da</strong>ndo aulas, dirigindo a Fun<strong>da</strong>ção MendesPimentel e vivendo o que de bom a vi<strong>da</strong> lhe oferecia!Dizer que deixou sau<strong>da</strong>des, ausência, dor, lembranças épouco! Deixou muito amor, um amor enorme acima de tudo, oamor ilimitado, iluminado. Deixou também lições de sabedoria,do saber viver e trabalhar, <strong>da</strong> digni<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> serie<strong>da</strong>de com queencarava tudo a que se dedicava!458 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>459


Mag<strong>da</strong> Magalhães AlvesMag<strong>da</strong> Magalhães Alves, a Maguidinha, nasceu em Patosde Minas, Minas Gerais, no dia 14 de dezembro de 1940, filha doProf. Aguinaldo de Magalhães Alves e de Deoclides MenezesAlves, a D. Quite.Maguidinha cursou o Ensino Fun<strong>da</strong>mental no Colégio PioXII, em Belo Horizonte. O Ensino Médio fez no Instituto de Educaçãode Minas Gerais, no curso de Formação de Professores.Graduou-se em História pela Facul<strong>da</strong>de de Filosofia eCiências Humanas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais(FAFICH/UFMG), onde cursou, também, o Mestrado em CiênciasPolíticas, iniciado em 1972, com créditos completados em1973. A tese, sobre Controle Político e Comunicação de Massas,concluí<strong>da</strong> e aprova<strong>da</strong>, estava em fase final de re<strong>da</strong>ção para serpublica<strong>da</strong>. O processo, no entanto, foi bruscamente interrompidocom a morte súbita <strong>da</strong> autora no dia 22 de dezembro de 1976:ela sofreu um episódio de embolia cerebral, no Rio de Janeiro,para onde se transferira exatamente para concluir seu trabalho.Mag<strong>da</strong> era bolsista do Centro de Aperfeiçoamento de Professoresdo Ensino Superior (CAPES) e, no final, <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Ford.Maguidinha não chegou a defender sua tese, mas deixouum legado importante para os anais <strong>da</strong> pesquisa, contendodenúncias dos tempos de repressão e censura às artes, à cultura,à imprensa. Sua pesquisa foi feita diretamente com os autores<strong>da</strong>s obras massacra<strong>da</strong>s pela censura repressora dos anos 60 e70. O material que ela deixou e que hoje faz parte do acervo doDepartamento de Ciências Políticas <strong>da</strong> FAFICH/UFMG, incluidepoimentos importantes de pessoas do mundo artístico e culturalbrasileiro.460 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>461


Mais tarde, em 1978, graças ao empenho de alguns professoresdo Departamento de Ciências Políticas, seu trabalho foipublicado, sob o título Autoritarismo e Censura no Brasil: NotasPreliminares de Pesquisa.Maguidinha foi professora de História <strong>da</strong> América e doBrasil na Facul<strong>da</strong>de de Filosofia de Formiga e Professora Assistente<strong>da</strong> cadeira de História Econômica do Brasil na Escola deServiço Social <strong>da</strong> então Universi<strong>da</strong>de Católica de Minas Gerais,hoje PUC-Minas. Em 1º de fevereiro de 1976, pouco antes de suamorte, havia iniciado trabalho como socióloga coordenadora <strong>da</strong>sativi<strong>da</strong>des de planejamento familiar, na Socie<strong>da</strong>de Brasileirapara o Bem-Estar <strong>da</strong> Família (BEMFAM), e estava escala<strong>da</strong> parafazer curso de especialização no Canadá.Durante sua trajetória escolar, defendeu sempre a justiçasocial, indignando-se com os maus tratos e as injustiças contranosso povo. Foi militante <strong>da</strong> organização Ação Popular (AP),onde pôde concretizar na prática possível <strong>da</strong> época suas idéiasrevolucionárias, tendo ocupado cargos junto à União Estadual deEstu<strong>da</strong>ntes de Minas Gerais (UEE/MG).Maguidinha foi uma grande revolucionária, foi uma intelectualbrilhante, mas foi, sobretudo, uma pessoa maravilhosa,amiga de seus amigos, companheira de seus companheiros, filhae irmã dedica<strong>da</strong> e carinhosa: assim o confirmaram em inúmerasoportuni<strong>da</strong>des os seus familiares e as pessoas que tiveram o privilégiode desfrutar do seu convívio e <strong>da</strong> sua amizade.462 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>463


Márcio José de AraújoMárcio José de Araújo, filho deJosé de Araújo e de Maria doRosário Corrêa Araújo, nasceu emItapecerica, Minas Gerais, no dia24 de junho de 1946. A famíliatransferiu-se para Belo Horizonteem 1951, quando Márcio tinha 5anos. Moraram durante nove anosna av. Paraná, exatamente no HotelContinental, que havia sido adquiridopor seu pai, que era comerciante.Fez os estudos iniciais no GrupoEscolar Olegário Maciel, mostrando-se um menino estudioso einteligente. Magro e franzino, recebeu dos amigos o apelido deMosquito Elétrico.Por gostar mais de pescaria, na lagoa <strong>da</strong> Pampulha, do quede estu<strong>da</strong>r, acabou voltando para Itapecerica, como aluno interno,para terminar o Ensino Fun<strong>da</strong>mental. Retornando a BeloHorizonte, estudou nos Colégios Loyola e Marconi, onde fez oEnsino Médio.Sempre dizia que queria fazer Engenharia, mas seu profundoamor à natureza encaminhou-o para a Medicina.Ecologista, defensor intransigente <strong>da</strong> natureza, aproveitavaseus fins-de-semana para apanhar borboletas e insetos emsítios e ci<strong>da</strong>des próximas de Belo Horizonte. Numa ocasião,mandou fazer um armário imenso e especial, para guar<strong>da</strong>r suasqueri<strong>da</strong>s borboletas.Márcio, como todos os jovens de sua época, era um rapazalegre, namorador, cheio de amigos. Gostava <strong>da</strong> música clássicae <strong>da</strong> música popular. Apreciava ouvir Maria Bethânia,Paulinho <strong>da</strong> Viola, Beatles entre outros. Outra grande paixãosua era o carro, um Corcel branco todo equipado e muito bemcui<strong>da</strong>do.Formou-se em Medicina em 1971, optando por fazer suaresidência médica em Psiquiatria, no Hospital Raul Soares, <strong>da</strong>rede pública. Como chefe de residência, encabeçou um movimentono hospital, junto com outros companheiros de área,exigindo um tratamento mais humano e digno para os doentesmentais: protestava contra a aplicação dos choques elétricos,tratamento que considerava desumano e agressivo, principalmentepor serem aplicados sem anestesia, e na maioria <strong>da</strong>svezes, como forma de punição.Acabou assumindo a luta sozinho, pois os colegas não quiseramacompanhá-lo. Como resultado, acabou saindo do HospitalRaul Soares, não terminando sua residência médica, quandosó faltavam seis meses para concluí-la.Atuante, participou de inúmeros seminários na área dePsiquiatria. Posteriormente, foi trabalhar no Instituto Nacionalde Previdência Social (INPS), nos hospitais André Luís e GalbaVeloso, tendo feito parte de inúmeras mesas redon<strong>da</strong>s pertinentesà sua área.Estava, ain<strong>da</strong>, trabalhando no Hospital Raul Soares, quandosoube <strong>da</strong> morte de seu irmão, José Júlio, assassinado pelarepressão em São Paulo, em 1972.Márcio continuou atuando, ain<strong>da</strong> por algum tempo comopsiquiatra. Porém amargurado e desgostoso com o trabalho, como descaso com que os pacientes eram tratados e pela própriaforma de se administrar a questão na área <strong>da</strong> Psiquiatria, resolveu,então, fazer um curso de Medicina Tropical, em São Paulo.Nessa ocasião, descobriu que os ossos de seu irmão, JoséJúlio, estavam sepultados no Cemitério Dom Bosco, em Perus,onde eram enterrados os mortos <strong>da</strong> ditadura.464 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>463


Montagem ofereci<strong>da</strong> pela famíliaTrês anos depois, em 1975, Márcio tentou a remoção docorpo do irmão para Belo Horizonte. Para cumprir o ritual burocrático,alugou o ossário 1649, na terceira galeria do Cemitério<strong>da</strong> Lapa, fornecendo o registro à administração de Perus comosendo o local para onde seria leva<strong>da</strong> a ossa<strong>da</strong>. O ossário <strong>da</strong> Lapapermaneceu lacrado até outubro de 1991.Márcio, porém, não transportou a ossa<strong>da</strong> para o local queindicara. Na ver<strong>da</strong>de, acomodou os ossos num caixote demadeira, que cabia no porta-malas de seu Corcel branco, juntocom uma sacola <strong>da</strong> Polícia Militar que continha as roupas e sapatosde seu irmão. De volta a Belo Horizonte, guardou o caixoteno sótão de sua casa, dizendo aos pais, José e D. Lulu, que haviatransferido o corpo para o Cemitério <strong>da</strong> Lapa. O que Márcio buscavaera, na ver<strong>da</strong>de, um sepultamento digno para seu irmão,em Belo Horizonte.Segundo Valéria, sua irmã, Márcio sentia-se inconformadocom a morte de José Júlio, morto por um ideal e marginalizadopela socie<strong>da</strong>de. Sentia-se sem condições de mu<strong>da</strong>r a situação dealguma forma e guar<strong>da</strong>va um profundo silêncio sobre o assunto,do qual não gostava de falar.Um ano depois, no dia 4 de abril de 1976, Márcio pôs fimà própria vi<strong>da</strong>, em meio a uma profun<strong>da</strong> crise depressiva. Tinha,então, 29 anos. Márcio não agüentou o sofrimento causado pelaper<strong>da</strong> do irmão mais velho e pela angústia de um segredo guar<strong>da</strong>dopor longos anos. Como tantos outros familiares de presospolíticos mortos e desaparecidos, Márcio morreu lutando peloresgate <strong>da</strong> história do País.Só em setembro de 1991 é que foi divulga<strong>da</strong> a existênciados ossos no sótão <strong>da</strong> casa, quando o bombeiro hidráulico ealcaguete <strong>da</strong> polícia Salvador dos Santos Silva, que estavafazendo um reparo na residência dos Araújos, encontrou no sótãoum caixote lacrado com pregos e resolveu abri-lo. Encontrouentão a ossa<strong>da</strong> e denunciou o fato ao delegado Miguel DiasCampos, que abriu inquérito contra a mãe e a irmã de Márcio eJosé Júlio, por ocultação de cadáver.466 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>467


A ossa<strong>da</strong> foi leva<strong>da</strong> para o Instituto Médico Legal de BeloHorizonte, onde foi submeti<strong>da</strong> a exames e perícia técnica. Depoisde liberados, os restos mortais de José Júlio foram sepultadosno Cemitério Parque <strong>da</strong> Colina, em Belo Horizonte, MinasGerais. Era o dia 6 de novembro de 1991.468 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>469


Marcos Magalhães RubingerMarcos Magalhães Rubinger nasceuno dia 5 de fevereiro de 1934, na ci<strong>da</strong>de deBelo Horizonte, Minas Gerais. Era filho deLéon Laboisière Rubinger e Alzira MagalhãesRubinger e irmão de Le<strong>da</strong>, Alzira, Matheus,Hélia, Léia, Lisle e Lucas Leon. Em março de1964, casou-se com Maria <strong>da</strong> Conceição MarquesRubinger, então estu<strong>da</strong>nte de CiênciasSociais na Universi<strong>da</strong>de Federal de MinasGerais (UFMG), com teve os filhos Mayra, Tarinae Rero.Bacharel em Sociologia e Política eAdministração Pública pela Facul<strong>da</strong>de de Ciências Econômicas<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (FACE/UFMG), pósgraduadoem Antropologia pelo Museu Nacional <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal do Rio de Janeiro (UFRJ), dedicou-se principalmenteaos seguintes estudos: pinturas rupestres, pré-história do Estadode Minas Gerais e culturas indígenas como a Maxacali e as doXingu.Lecionou no curso de Sociologia Política <strong>da</strong> FACE/UFMG,onde foi escolhido, em 1964, como o Melhor Professor do Ano e,nos anos de 1965 e 1966, Professor Homenageado pelos formandos<strong>da</strong>quela Facul<strong>da</strong>de, embora já estivesse exilado do País.Membro <strong>da</strong> Academia de Ciências de Minas Gerais, escreveuvários trabalhos nas áreas de Antropologia, Sociologia,Política e sobre temas variados <strong>da</strong> América Latina. Foi pesquisadorcontratado pela Organização <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s (ONU)durante cinco anos, prestando serviços à UNESCO e à Orga-nização Internacional do Trabalho (OIT) na Bolívia, Chile, Peru eSuíça, ocasião em que trabalhou, especialmente, junto a comuni<strong>da</strong>desindígenas <strong>da</strong> América Latina. O professor Marcos Rubingertambém ministrou cursos e palestras em várias instituiçõesbrasileiras e estrangeiras.Participando intensamente <strong>da</strong> luta em defesa dos direitossociais, Marcos Rubinger foi preso pelo regime militar durante operíodo de março a dezembro de 1964. De 1965 a 1970, esteveexilado em vários países <strong>da</strong> América Latina e <strong>da</strong> Europa. Retornouao Brasil ain<strong>da</strong> durante o regime militar, em 1970, permanecendo,porém, privado de sua ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e proibido de atuar comoprofessor e pesquisador <strong>da</strong> UFMG, direito que utopicamenteesperava readquirir.Faleceu em 19 de novembro de 1975, três anos antes <strong>da</strong>Lei <strong>da</strong> Anistia. Contava então 41 anos, tendo deixado a esposa,de 32 anos, e os três filhos. A família, na sua ausência, prosseguiubrilhantemente nos caminhos deixados abertos. A esposa,Maria <strong>da</strong> Conceição, forma<strong>da</strong> como ele em Sociologia pela470 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>471


UFMG, deu continui<strong>da</strong>de a seu trabalho como professora <strong>da</strong>quelainstituição, também trabalhando na captação de recursosatravés <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção para o Desenvolvimento <strong>da</strong> Pesquisa(FUNDEP). A filha Mayra, diploma<strong>da</strong> em Química, concluiu cursosde Mestrado (UFMG), Doutorado (Inglaterra) e Pós-Doutorado(UFMG), vindo a trabalhar como professora e pesquisadora naUniversi<strong>da</strong>de Federal de Viçosa (UFV). A filha Tarina, diploma<strong>da</strong>em Medicina pela UFMG, especializou-se na Inglaterra e nosEUA. O filho Rero, com Mestrado e Doutorado em Física pelaUFMG, fez carreira como professor e pesquisador <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong>de Federal de São João del Rei (UNIFEI).Não só os familiares, que tão bem honraram na digni<strong>da</strong>dede seu trabalho a proposta de Marcos Rubinger, podem porémhomenagear o destacado professor, um dos muitos cuja ausênciasignificou a desestabilização do crescimento intelectual noBrasil durante os anos de chumbo: sua memória, ao ser imortaliza<strong>da</strong>numa <strong>da</strong>s ruas <strong>da</strong> Capital de Minas, torna-se guia paraquantos queiram seguir o exemplo de um ci<strong>da</strong>dão que colocousua vi<strong>da</strong> e sua carreira a serviço do País.472 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>473


Maria Auxiliadora Lara BarcellosMaria Auxiliadora Lara Barcellos,filha de Clélia Lara Barcellos e Waldemarde Lima Barcellos, nasceu no dia 25 demarço de 1945, em Antônio Dias, MinasGerais, onde seu pai trabalhava comoagrimensor.Dora, Dorinha, Doralice, como erachama<strong>da</strong>, tinha três irmãs e um irmão:Maria Helena, Maria Luísa, MariaCarmelita e José Guilherme.A profissão do pai levou-o aregiões diversas: São Paulo, Goiás, Rio deJaneiro. Todos <strong>da</strong> família eram obrigadosa acompanhá-lo em suas an<strong>da</strong>nças. Para os filhos isso significoufreqüentar diversas escolas e séries escolares, pois nos anos 50não havia sistema homogêneo de educação primária no Brasil.Em Belo Horizonte, Dora estudou no Colégio EstadualNossa Senhora de Fátima. Seus avós haviam aju<strong>da</strong>do a organizaruma escolinha num bairro pobre. Com 14 anos, junto comMaria Helena, sua irmã, lecionava nessa escolinha. Lecionarampor mais de dois anos, em contato permanente com a misériados moradores <strong>da</strong> favela, emigrantes de zonas rurais.Quando era aluna do antigo curso primário, Dorinha sonhavaser missionária. Quando moça, ela pensava em servir,como médica, no próprio Brasil ou no exterior.Começou a estu<strong>da</strong>r Medicina na Universi<strong>da</strong>de Federal deMinas Gerais (UFMG) em 1965. Durante o curso, ela começou aperceber a miséria que a cercava, inclusive na sala de Anatomia,onde ela tinha de preparar cadáveres que pareciam pertencer asexagenários, mas que na ver<strong>da</strong>de eram de trintenários, muitosdeles falecidos por subnutrição ou, em última análise, depobreza. Assim ela chegou ao quinto ano de Medicina, optarapela Psiquiatria e <strong>da</strong>va plantões no Hospital Galba Veloso e noPronto-Socorro Policial.Nos hospitais onde Dorinha trabalhou como estu<strong>da</strong>ntehavia em média 80 pacientes em dormitórios planejados para 15pessoas. Faltava alimentação adequa<strong>da</strong>, os doentes eram submetidosao penoso processo de choque elétrico e tratados maiscomo números do que como seres humanos. A partir <strong>da</strong>í, Doracomeçou a se rebelar.Em 1968, aderiu à ideologia marxista-leninista, admirando,como grandes exemplos, personali<strong>da</strong>des como as de CheGuevara e de Carlos Marighella e recebendo uma grandeinfluência <strong>da</strong>s teorias de Regis Debray, jornalista francês queacompanhou Guevara à Bolívia. Nessa época, ela já estavaatuando ativamente no movimento estu<strong>da</strong>ntil.No dia 19 de março de 1969, Dora mudou-se de BeloHorizonte para o Rio de Janeiro, entrando para a clandestini<strong>da</strong>decomo militante <strong>da</strong> organização Vanguar<strong>da</strong> Arma<strong>da</strong> Revolucionária- Palmares (VAR-Palmares). Usava os nomes de MariaAuxiliadora Montenegro e Maria Carolina Montenegro e os codinomesDodora, Maria Alice, Maria Eugênia, Chica e Laura.Mesmo vivendo como clandestina, continuou enviando notícias,através de cartas, para sua família.Dorinha foi presa no dia 21 de novembro de 1969 no Rio deJaneiro, em companhia de Antônio Roberto Espinoza e ChaelCharles Schreier, na casa em que moravam na rua Aqui<strong>da</strong>bá,1.053, em Lins Vasconcelos, por denúncias de vizinhos. Levadospara o quartel <strong>da</strong> Polícia do Exército, na Vila Militar, foram bastantetorturados e Chael, não resistindo às torturas, morreu emmenos de 24 horas de prisão, conforme testemunho de Dorinha.Maria Auxiliadora Lara Barcellos foi bani<strong>da</strong> para o Chile,em 23 de janeiro de 1971, quando do seqüestro do embaixador474 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>475


suíço no Brasil, Giovanni Enrico Bucher. Junto com ela foramliberados outros 69 presos políticos brasileiros. Viajou feliz,acreditando que poderia levar uma vi<strong>da</strong> normal, estu<strong>da</strong>ndo e trabalhando,fazendo o que queria, lutando pelos oprimidos. NoChile, que ela tanto amou, onde reencontrou a alegria, a esperançae a liber<strong>da</strong>de, voltou a estu<strong>da</strong>r.Em 1973, com a que<strong>da</strong> de Allende e o golpe militar, Dorateve que conseguir asilo político na embaixa<strong>da</strong> do México.Naquele País, ela viveu seis meses e trabalhou como intérprete.Do México foi para a Bélgica e <strong>da</strong> Bélgica para a França,onde ficou dois meses. Da França ela foi para a Alemanha, passandoa viver em Colônia e a fazer um curso <strong>da</strong> língua alemã.Como aluna aplica<strong>da</strong> e estudiosa conseguiu ir para BerlimOcidental, depois de passar, em primeiro lugar, no concurso delíngua alemã, entre 600 estrangeiros. Na Alemanha, finalmente,conseguiu <strong>da</strong>r prosseguimento ao curso de Medicina que, noBrasil, interrompera no quinto ano e no Chile não conseguiraconcluir.Para conclusão do curso, com especiali<strong>da</strong>de emPsiquiatria, pelo seu currículo e pela sua comprova<strong>da</strong> inteligência,foi feita apenas a exigência de que se submetesse a 24provas, de quatro horas ca<strong>da</strong> uma: ao final, se aprova<strong>da</strong>, receberiao diploma de alto gabarito. Com a coragem e disposiçãoque lhe eram peculiares, dispôs-se a fazer as provas; recebiapara isto, uma bolsa do governo alemão, que era uma <strong>da</strong>smaiores na época, e recebia até carro, a ponto de dispensar aaju<strong>da</strong> familiar, que até então fora imprescindível.Estava escrito, contudo, que Dora não deveria mesmo concluiro curso de Medicina: quando estava fazendo a 18 ª prova,jogou-se sob os trilhos do metrô, encontrando morte instantânea.O governo alemão encarregou-se <strong>da</strong>s providências e arcoucom to<strong>da</strong>s as despesas, desde que morreu até o traslado do seucorpo para o Brasil, além de conceder uma indenização que, apedido de sua família, foi reverti<strong>da</strong> em benefício dos seus companheirosque mais precisavam. Seu corpo foi trazido para oBrasil e enterrado em Belo Horizonte, em 18 de junho de 1976.Dorinha foi recebi<strong>da</strong> no aeroporto com as braça<strong>da</strong>s de rosas queD. Clélia lhe prometera, um dia, no Chile.Embora distante do Brasil, Dora sempre reconhecia aqui asua pátria, o lugar para onde voltaria. "O Brasil é sua pátria, o seuberço; aqui é o seu lugar e no Brasil ficará eternamente": forampalavras de sua mãe, quando do seu enterro.Com a morte de Dora, abriram-se alguns caminhos burocráticosque facilitaram a vi<strong>da</strong> de muitos brasileiros radicados naAlemanha, cujos documentos foram então liberados.476 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>477


Maria <strong>da</strong>s Graças TeixeiraMaria <strong>da</strong>s Graças Teixeira nasceu no dia 1º de fevereiro de1948, em Rio Doce, Minas Gerais.Militante do Partido dos Trabalhadores (PT), foi elementoimportante para sua organização em Minas. Começou sua militânciapolítica depois de ouvir uma palestra de Frei Betto sobre aTeologia <strong>da</strong> Libertação, na Facul<strong>da</strong>de de Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (UFMG). A partir desse contato com FreiBetto, ela passou a participar do Grupo Cristão que funcionava naIgreja São José, em Belo Horizonte.Dedicou-se ao trabalho com os pobres e marginalizados emsua região, a comuni<strong>da</strong>de do bairro Caetano Furquim, em BeloHorizonte. Coordenou, ain<strong>da</strong>, um trabalho em defesa dos Direitos<strong>da</strong> Mulher, através do Clube de Mães, no mesmo local. Graça,como era chama<strong>da</strong>, foi também militante do Movimento Negro.Faleceu no dia 21 de novembro de 1985, deixando umagrande lacuna na luta pelos direitos <strong>da</strong> mulher.478 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>479


Maria Floripes Nascimento AlvesMaria Floripes Nascimento Alves nasceu no dia 13 deagosto de 1938, em Santana de Pirapama, pequena locali<strong>da</strong>depróxima a Sete Lagoas, Minas Gerais, filha de Dimas Marquesdo Nascimento e Natalina Pereira do Nascimento.Cria<strong>da</strong> na roça, Flor, como era chama<strong>da</strong>, foi acostuma<strong>da</strong> auma vi<strong>da</strong> de dificul<strong>da</strong>des, aju<strong>da</strong>ndo a mãe viúva com cinco filhose vivendo numa casa de dois cômodos, sem luz e encanamentode água, que era retira<strong>da</strong> de um poço.No início dos anos 50, a família transferiu-se para Belo Horizonte,por ter sido expulsa <strong>da</strong> terra em que vivia. Flor começou, então,a trabalhar como doméstica, a participar <strong>da</strong> Juventude OperáriaCatólica (JOC) e dos movimentos operários. Posteriormente,na déca<strong>da</strong> de 70, trabalhou no Serviço Nacional <strong>da</strong> Indústria(SENAI) e como auxiliar de serviços no laboratório de análisesquímicas do Centro Tecnológico de Minas Gerais (CETEC).480 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>481


Em 1968, atuando ativamente na JOC, transferiu-se parao Rio de Janeiro, onde permaneceu servindo como elemento deligação entre a JOC nacional e a equipe regional de Minas.Retornando a Belo Horizonte, dedicou-se ao trabalho de reformulação<strong>da</strong> Ação Católica Operária (ACO), enti<strong>da</strong>de liga<strong>da</strong> aomovimento católico que estava esfacela<strong>da</strong> desde 1964, devidoao Golpe Militar.A partir do final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 70, além do trabalho naACO, agora já reestrutura<strong>da</strong> e espalha<strong>da</strong> por várias ci<strong>da</strong>des,desenvolveu trabalho de conscientização junto à comuni<strong>da</strong>de dobairro Nova Vista, onde residiu durante três anos. Depois, transferiu-separa o bairro Santa Terezinha, onde ajudou a mobilizarjovens, pais e crianças em função de uma vi<strong>da</strong> comunitária melhor.A partir dos problemas educacionais <strong>da</strong>s crianças do bairro,relacionou-se com profissionais <strong>da</strong> área <strong>da</strong> educação, tendopartilhado com estes profissionais sua visão e experiência comoeducadora e mãe.Buscando soluções para os problemas <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de,participando do movimento de educação popular, <strong>da</strong>s pastorais<strong>da</strong> Arquidiocese de Belo Horizonte, fazendo palestras onde relatavasuas lutas e experiências na busca de uma vi<strong>da</strong> melhor,Flor, apesar <strong>da</strong> saúde frágil, foi um símbolo de mulher forte e devibrante educadora popular.De seu ideário, base de seu trabalho, faziam parte fun<strong>da</strong>mentoscomo os seguintes:"A construção <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de nova se faz não só mu<strong>da</strong>ndoestruturas, mas também construindo e transformando as pessoase a família operária.""A vi<strong>da</strong> do trabalhador não pode ser dividi<strong>da</strong> em partes. Somosoperários na família, no trabalho, no sindicato, no bairro.""A atual escola discrimina, padroniza, ignora as lutas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>do bairro.""Ser educador é opção de vi<strong>da</strong>, é ser transformador.""Quando me encontro com alguém para falarmos, ele é tãoimportante e quase único para mim, eu acredito sempre novalor e na capaci<strong>da</strong>de que tem um para contribuir para o conjunto.""Escutar com paciência as pessoas é um ato de amor."Flor, casa<strong>da</strong> com Luiz Alves <strong>da</strong> Silva, metalúrgico, tevetrês filhos deste casamento: Wagner, Juliana e Virgínia. Mas,generosa, ampliou o número desses filhos com os seis sobrinhosque adotou, filhos de sua irmã que falecera precocemente.Floripes, portadora de doença de Chagas, sabia que iriamorrer a qualquer momento. Nem por isso parou um só minutona sua luta no bairro, na defesa dos jovens sempre perseguidospor policiais, no trabalho de conscientização nas comuni<strong>da</strong>desde bairro, na briga por maior justiça social, por mais digni<strong>da</strong>depara os trabalhadores.Em 1983, ajudou a preparar o 32º Congresso Nacional deJovens Trabalhadores coordenado pela JOC e, em março domesmo ano, falou a mais de 500 professores e pe<strong>da</strong>gogos no IEncontro de Profissionais de Educação.Morreu em 25 de julho de 1983, tão serena quando viveu,após voltar do trabalho.482 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>483


Recebeu algumas homenagens póstumas, como o nomede uma escola no município de Sabará e o nome de um palco naAssociação dos Funcionários do CETEC, onde trabalhou atéseus últimos momentos de vi<strong>da</strong> e onde era muito queri<strong>da</strong> erespeita<strong>da</strong> por todos.484 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>485


Maria Lúcia Petit <strong>da</strong> SilvaMaria Lúcia Petit <strong>da</strong> Silva, filha deJosé Bernardino <strong>da</strong> Silva Júnior e de JulietaPetit <strong>da</strong> Silva, nasceu em Agudos,São Paulo, no dia 20 de março de 1950.Iniciou seus estudos em Duartina,São Paulo, concluindo o curso Normal,de formação de professoras, em 1968,no Instituto de Educação Fernão Dias,na Capital paulista. Foi professora primáriamunicipal e entusiasmava-secom suas experiências com crianças <strong>da</strong>zona norte de São Paulo.No início de 1970, fez sua opção política: desenvolver seutrabalho no interior do Brasil. Foi participante ativa <strong>da</strong>s lutas dosestu<strong>da</strong>ntes secun<strong>da</strong>ristas e militante do Partido Comunista doBrasil (PC do B).Maria Lúcia, mais conheci<strong>da</strong> por Maria, mudou-se para ointerior de Goiás e depois para a região de Caianos, no Araguaia,com o objetivo de <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong>de ao seu trabalho político.Nessa região, Maria Lúcia dedicou-se ao magistério e ao trabalhona roça, conquistando grande simpatia dos moradores <strong>da</strong>sredondezas.A partir de sua vivência no Araguaia, Maria Lúcia adquiriumaior conhecimento <strong>da</strong> terrível situação de abandono e misériana qual vegetavam os trabalhadores rurais e a populaçãocamponesa.Pessoa muito queri<strong>da</strong> pelos moradores <strong>da</strong> região, foi mortano dia 16 de maio de 1972, durante a campanha de cerco <strong>da</strong>sForças Arma<strong>da</strong>s realiza<strong>da</strong> entre os meses de abril e junho <strong>da</strong>queleano. Ao se aproximar <strong>da</strong> casa de um camponês, foi fuzila<strong>da</strong>por tropas do Exército, sob o comando do General AntônioBandeira, <strong>da</strong> 3ª Briga<strong>da</strong> de Infantaria.Maria Lúcia morreu em plena juventude por tentar mantervivos ideais de liber<strong>da</strong>de e justiça social no período <strong>da</strong> ditadurapós-64. Em sua homenagem, o companheiro HMA dedicou-lhe opoema abaixo transcrito, publicado no jornal Tribuna <strong>da</strong> LutaOperária, de 7 a 20 de janeiro de 1981:Um Poema: MariaVocê poderia sercomo tantas outras,o seu sorriso ain<strong>da</strong> éamor e dor.Maria dos mangues, <strong>da</strong> favela, do povo...uma Maria do povo deixou seu sorrisomarcado em nossos corações e tanta esperança pra gente...Defloraram seu seio depois de morta,mas seu grito ain<strong>da</strong> balança as árvores do Araguaia,o rio que corre é seu sangue, aquela região é seu corpo, vocêain<strong>da</strong> vive em nossos sonhos,em nossa luta...Pois enquanto restarem em um de nós o seu sorriso e suaforça, nós seremos você,Maria revolucionária,Maria guerrilheira do Araguaia, Maria flordeste povo.A lista oficial forneci<strong>da</strong> pelo Centro de Inteligência doExército (CIE) publica<strong>da</strong> pelo Jornal do Brasil de 22/03/92 contémo nome de Maria Lúcia Petit, <strong>da</strong><strong>da</strong> como morta.As versões oficiais sobre a morte de Maria chegam aoabsurdo. Em Brasília, no presídio <strong>da</strong> 3ª Briga<strong>da</strong> de Infantaria, emagosto de 1972, o General Antônio Bandeira, então seu coman-486 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>487


<strong>da</strong>nte, disse que Maria fora morta por um recruta inexperiente,logo retirado <strong>da</strong>quela área. O recruta, segundo o General, viuMaria como se fosse um menino, caminhando cauteloso e atento,portando uma espingar<strong>da</strong>. Já o relatório do Ministério <strong>da</strong> Marinhadizia que Maria Lúcia fora morta durante enfrentamentona tarde do dia 16/06/72, próximo a Pau Preto.Em 1991, familiares de mortos e desaparecidos doAraguaia, juntamente com membros <strong>da</strong> Comissão Justiça e Paz<strong>da</strong> Arquidiocese de São Paulo e a equipe de legistas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deEstadual de Campinas (UNICAMP), estiveram em umcemitério <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Xambioá, onde exumaram duas ossa<strong>da</strong>s.Uma de um velho, negro, provavelmente de Francisco ManoelChaves, desaparecido na Guerrilha do Araguaia, e outra, de umamulher jovem enrola<strong>da</strong> num pe<strong>da</strong>ço de pára-que<strong>da</strong>s. A mulherpoderia ser Maria Lúcia ou Áurea Eliza Pereira Valadão.Trazi<strong>da</strong> para a UNICAMP, a ossa<strong>da</strong> foi identifica<strong>da</strong>, em1996, como sendo a de Maria Lúcia Petit, sepulta<strong>da</strong> a seguir emBauru, São Paulo. Foi o único corpo do Araguaia que alcançouser identificado.488 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>489


Mário Alves de Souza VieiraMário Alves de Souza Vieira nasceu no dia 14 de julho de1923, na Bahia. Fez o Ensino Médio em Salvador, formou-se emLetras pela Facul<strong>da</strong>de de Filosofia, Ciências e Letras <strong>da</strong> Bahia.Mário era filho de uma família de latifundiários do interior<strong>da</strong> Bahia que depositava no filho a esperança de preservação<strong>da</strong>s posses. Mário, entretanto, muito cedo se rebelou contra asinjustiças sociais e, ain<strong>da</strong> na escola, fez parte do núcleo de fun<strong>da</strong>dores<strong>da</strong> União dos Estu<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong> Bahia; participou de várioscongressos <strong>da</strong> União Nacional dos Estu<strong>da</strong>ntes (UNE) e, em 1945,com a legalização do Partido Comunista no Brasil (PCB), filiouseao partido e passou a integrar o Comitê Estadual <strong>da</strong> Bahia.Em 1948, com a volta do partido à clandestini<strong>da</strong>de, transferiu-separa o sul.Aperfeiçoou sua cultura marxista, tornando-se um dosmais brilhantes teóricos marxistas brasileiros <strong>da</strong> AméricaLatina. No IV Congresso do PCB, realizado na clandestini<strong>da</strong>deem 1954, em São Paulo, foi eleito para o Comitê Central.Em 1956, o partido passou por profun<strong>da</strong>s lutas internas,tendo sido denuncia<strong>da</strong>s por ele as tendências stalinistas nadireção, às quais ele se opôs. Em 1957, foi eleito para a Executivado partido e propôs modificações <strong>da</strong>s linhas políticas resultantes<strong>da</strong>s teses aprova<strong>da</strong>s no V Congresso do PCB, realizado noRio. Com o Golpe Militar de 1964, foi preso no Rio e libertado porhabeas corpus. Afastado <strong>da</strong> Executiva, mudou-se para BeloHorizonte.O acirramento <strong>da</strong> luta política eideológica no interior do PCB culminoucom o racha na organização em 1967. Em1968, juntamente com outros companheiroscomo Carlos Marighella, Apolônio deCarvalho, Joaquim Câmara Ferreira, foiexpulso do partido. Participou então <strong>da</strong>fun<strong>da</strong>ção do Partido Comunista BrasileiroRevolucionário (PCBR), de cujo programafoi o principal re<strong>da</strong>tor.No dia 17 de julho de 1970, Máriofoi preso e assassinado em longa noite detorturas no 2º an<strong>da</strong>r do Pelotão de Investigações Criminais <strong>da</strong>Polícia do Exército no Rio de Janeiro.Como o de tantos outros, o corpo de Mário nunca foiencontrado, embora houvesse testemunhas que o viram ser torturadoe morto. Diante <strong>da</strong> sua recusa em atender às exigênciasdos torturadores sofreu todo tipo de barbari<strong>da</strong>de que se possaimaginar.Segundo declarações do ex-Sargento Marival Dias Chavesdo Canto à revista Veja, do dia 18/11/92, Walter foi levado paraPetrópolis, onde a prática de ocultação dos corpos se <strong>da</strong>va atravésdo esquartejamento: esfacelava-se o corpo em várias partes490 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>491


e essas eram enterra<strong>da</strong>s em lugares diferentes. Assim se evitavao reconhecimento.Mário Alves foi casado com Dilma Borges Vieira, comquem teve uma filha, Lúcia, nasci<strong>da</strong> em 1947. Tinha um belo relacionamentoe uma grande preocupação com Lúcia, especialmenteno tocante a sua formação ideológica. Lamentava nãodispor de muito tempo para estar e conversar mais com ela.Sempre que podia, presenteava-a com livros. Certa vez, levou depresente O Homem de Havana e, em outra ocasião, conversandocom ela sobre o livro, ficou impressionado com o seu entendimentoe suas conclusões.Nem só a filha, mas companheiros e amigos, brasileiros detodos os quadrantes usufruiriam mais tarde <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de que osideais de Mário Alves lutaram por implantar no Brasil.492 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>493


Mário Bento <strong>da</strong> SilvaMário Bento <strong>da</strong> Silva nasceu emConselheiro Lafaiete, Minas Gerais, no dia12 de agosto de 1932, filho do ferroviárioAlfredo Bento <strong>da</strong> Silva e de Elvira Menezes.Sendo a sua uma família operária,Mário Bento aprendeu, desde cedo, o significado<strong>da</strong> palavra trabalho: foi caixeiro,descarregador de vagões <strong>da</strong> Central doBrasil, empregado do bar <strong>da</strong> Estação Ferroviária,metalúrgico <strong>da</strong> Santa Matilde e <strong>da</strong>Mafersa, mecânico na Dante Zanforlin, especialistaem retífica de eixos na Volpini ena Lambertucci, empregado <strong>da</strong> Forjinha, eletricista na Dourex emascate nos diversos momentos de desemprego, por causa <strong>da</strong>sperseguições políticas.Em 1954, após ter prestado em sua ci<strong>da</strong>de natal o serviçomilitar, mudou-se para Belo Horizonte em busca de melhorescondições de trabalho.Iniciou sua militância política por volta de 1959/1960, deforma independente, atuando na área sindical. Apesar de identificar-secom as idéias do comunismo, Mário Bento não concor<strong>da</strong>vacom a atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), quejulgava tími<strong>da</strong> e acomo<strong>da</strong><strong>da</strong>. Por assim avaliar, ele se filiou àAção Popular (AP), em 1962. Neste mesmo ano, foi eleito para adiretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de Belo Horizonte eContagem para o biênio 1963/1965. Não chegou, porém, a completarsua gestão, pois em 1964, por força do Golpe Militar, to<strong>da</strong>a diretoria foi destituí<strong>da</strong>.Mario Bento iniciou, então, uma resistência clandestina.Outra não podia ser a maneira de agir naquelas circunstânciase, junto com outros militantes históricos do movimento operárioem Minas, tais como Ênio Seabra, Joaquim de Oliveira, Milton eas irmãs Imacula<strong>da</strong> Conceição e Efigênia,ajudou a organizar aluta contra a diretoria de pelegos imposta ao Sindicato dosMetalúrgicos pela ditadura. E assim foi que, em 1967, após lutaintensa, foi eleita uma diretoria novamente representativa dostrabalhadores, derrotando a chapa de direita.Através de uma atuação combativa e corajosa, MárioBento participou ativamente <strong>da</strong>s mobilizações populares e <strong>da</strong>organização e deflagração <strong>da</strong>s greves dos metalúrgicos de BeloHorizonte e Contagem, em abril e outubro de 1968. Sob violentarepressão, a diretoria sindical foi novamente deposta. O ano seencerrou com o recrudescimento dos instrumentos de repressãoditatorial e a imposição do Ato Institucional nº 5 (AI-5).Em julho de 1969, juntamente com Ênio Seabra, JoséAfonso, Afonso Cruz e Melgaço, Mário foi preso e sofreu torturasterríveis nas dependências do Exército, no 12º RI. Permaneceupreso por seis meses na Penitenciária Agrícola de Neves, hojePenitenciária Dutra Ladeira. Nesse mesmo ano, ain<strong>da</strong> preso,494 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>495


casou-se com Núbia Goulart, com quem teve quatro filhos: JeanPierre, Nubimar, Oswalfre e Janaína.Militante incansável, de uma coragem bravia forja<strong>da</strong> naluta e no exemplo de militantes como Orlando Bonfim, DimasPerrin e Olinto Goulart, e, ao mesmo tempo, <strong>da</strong> extrema doçuraher<strong>da</strong><strong>da</strong> de sua avó índia que se dizia inconforma<strong>da</strong> com aexistência de pobres e ricos na socie<strong>da</strong>de branca, Mário não descurava,combatia incessantemente.Em 1972, foi novamente preso, em processo <strong>da</strong> AçãoLibertadora Nacional (ALN) e mais uma vez sofreu violentas torturasno Destacamento de Operações de Informações do Centrode Operações de Defesa Interna (DOI/CODI) que funcionava nasdependências do Destacamento de Ordem Política e Social(DOPS) em Belo Horizonte. Na prisão conheceu militantes doPartido Comunista do Brasil (PC do B), partido ao qual se filioumais tarde, em liber<strong>da</strong>de, e no qual permaneceu até meados <strong>da</strong>déca<strong>da</strong> de 1980. Foi julgado e absolvido pela Junta <strong>da</strong> 4ª RegiãoMilitar de Juiz de Fora.Mário Bento era um ativista inato: não se amedrontavanunca e lutava com to<strong>da</strong> a energia pelo que realmente acreditava.Apoiou o governo de Jango e as reformas de base preconiza<strong>da</strong>snesse período, sempre com expressiva liderança.Morou, durante muitos anos, no bairro Liber<strong>da</strong>de (regiãodo Jaraguá), em Belo Horizonte, onde desenvolveu intensa ativi<strong>da</strong>decomunitária, participando de to<strong>da</strong>s as lutas importantes <strong>da</strong>região: a luta pela creche, pela democratização <strong>da</strong>s escolaspúblicas, pela melhoria <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de de ensino, pela solução dosproblemas de transporte. Era um incansável batalhador pelajustiça social e um companheiro extremamente solidário.Apesar de nunca ter podido obter educação escolar formal,foi um homem instruído e capaz de dialogar com o seutempo, assumindo ações as mais complexas e se engajando nosmeios intelectuais através do apoio que emprestou a jornaiscomo Opinião, Movimento, Assuntos e Tribuna de Luta Operária,que ajudou a divulgar. Identificou-se com os mecanismos de lutado povo e dos partidos e deles fez sua bandeira:a Guerrilha do Araguaia, o Movimento pela Anistia, o apoioa candi<strong>da</strong>turas parlamentares diversas em 1974, 1978 e 1982, acampanha pelas Diretas Já, a Constituinte de 88 e a luta pelalegali<strong>da</strong>de do Partido Comunista. No plano internacional, foi umadmirador e fervoroso defensor <strong>da</strong>s revoluções chinesa e cubanae <strong>da</strong> luta de libertação do povo vietnamita.Figura simples e carismática, Mário Bento nunca estava sozinho.Às vezes, surpreendia aqueles que o conheciam, como umeletricista a quem recorria para serviços gerais e que sequer poderiaimaginar a estatura <strong>da</strong>quele homem e a carga histórica que traziacom ele. Aquele operário simplesmente vestido, an<strong>da</strong>ndo comsua pasta de ferramentas pela av. Afonso Pena, em Belo Horizonte,pelos bairros, sugerindo soluções para problemas complexos deengenharia elétrica. Ser amigo do Mário era um privilégio!Mário Bento faleceu no dia 5 de abril de 1990, de traumatismocraniano, ao sofrer um acidente em casa, e foi sepultadoem Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais.Mário teve seis netos: Rafael, Mário Neto, Gabriela,Jéssica, Áurea e Bárbara. Deixou em seus amigos e companheirosum vazio e uma sau<strong>da</strong>de enormes, pois foi uma pessoa realmentemuito especial.496 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>497


Maurício de Resende PiresAlcântaraMaurício de Resende Pires Alcântara,o Maurício Metralha, nasceuem Belo Horizonte, em MinasGerais, no dia 6 de novembro de1949, filho do Dr. Augusto Pires Alcântarae de Lígia de Resende PiresAlcântara.Desde criança destacou-se nosestudos, tendo sido escolhido orador<strong>da</strong> turma por duas vezes. Suamaior aptidão foi sempre na área<strong>da</strong> literatura, pois além do gostopela leitura, tinha o dom de escrevercontos e poemas. Além disso,era uma pessoa generosa e sonhadora, coerente na manutençãode seus ideais de liber<strong>da</strong>de. Todos quantos conviveram com elesouberam de seu grande coração.Foi militante político na época <strong>da</strong> ditadura militar e, nosanos 70, foi perseguido, preso, espancado e torturado no Departamentode Ordem Política e Social de Minas Gerais (DOPS/MG)e em delegacias de Belo Horizonte. Chegou a ser retirado <strong>da</strong> salade aula, com voz de prisão, quando cursava Ciências Sociaisna Facul<strong>da</strong>de de Filosofia e Ciências Humanas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (UFMG).Tudo isto provocou seqüelas psicológicas diversas peloresto de sua vi<strong>da</strong>. No entanto, Maurício sempre se esforçou poralcançar algo positivo, mesmo nas maiores adversi<strong>da</strong>des. E foi498 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>499


com esse espírito que ele começou a escrever sobre o período domovimento estu<strong>da</strong>ntil. Nos dois meses que antecederam suamorte - ele foi encontrado morto em 23 de abril de 2004, deixandoconsternados familiares e amigos - Maurício estava reunindomaterial para um livro de memórias. São dele os trechos quese seguem:"A proposta é: vamos viajar pelos anos 70 e por 68também. Quem viveu irá reviver e saber mais.Quem era muito novo ou nem tinha nascido,irá conhecer. Sob uma nova ótica.""A expectativa era que a ditadura, o grande dragão <strong>da</strong>mal<strong>da</strong>de, num certo momento, de repente, conheceriaa derrota. E a esquer<strong>da</strong>, lado a lado com o povo,mu<strong>da</strong>ria a história política do Brasil.""E o paraíso socialista, no bojo <strong>da</strong> revolução vitoriosa,teria início. Mas a distância entre o ideal e o realaumentava com o passar dos dias, dos meses, dosanos...""Organizações esquerdistas pouco organiza<strong>da</strong>s erammina<strong>da</strong>s por vários motivos. Certos militantesentregavam o ouro aos bandidos. E informações eram oque o regime ditatorial mais queria. O que era secreto,sigilosamente secreto, num momento, num instante, oinstante do vacilo, <strong>da</strong> falha, <strong>da</strong> distração, se transformavaem subsídio para que a repressão detonassevi<strong>da</strong>s e sonhos.""Sim, havia os que conseguiam, à custa de muitoesforço, coragem e determinação para preservar oprocesso de resistência revolucionária. E os que fraquejavamdenunciavam, cooptavam. E o trágico efeitodominó que se instalava...""Prisões de militantes, com real compromissorevolucionário, aconteciam. Como também de pessoascom ligações para lá de indiretas com o processo,inocentes úteis; às vezes ligações apenas afetivas, quede repente também eram submeti<strong>da</strong>s à tortura.E, de várias maneiras a tortura esteve presente..."Um de seus poemas:Sobreviver é preciso,Delatar não é preciso,Resistir é preciso."Engalobar" também.Grandes vitórias,Em micro-situações.Afinal, nos anos de chumboA Esquer<strong>da</strong> contabilizou vitórias.Aquele papo que a DitaduraVenceu a Esquer<strong>da</strong> no período 68/78É pra lá de relativo.Pode ter vencido a Guerra,Mas perdeu várias batalhas.No final, quem realmenteSaiu vitoriosaFoi a DEMOCRACIA500 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>501


Milton Freitas de CarvalhoMAURÍCIO DE RESENDE PIRES ALCÂNTARA,Milton Freitas de Carvalho nasceu emPonte Nova, Minas Gerais, no dia 29 desetembro de 1925. Filho do alfaiate José deFreitas Carvalho e <strong>da</strong> dona-de-casa NatalinaFreitas Carvalho, tinha três irmãos:Paulo, Zemita e Ofélia. Em 1958, com 23anos, casou-se com Maria Rodrigues deCarvalho, com quem teve oito filhos: Renato,Ricardo, Rui, Marta, Regina, Régis,Rosália e Milton.Fez seus estudos no Grupo EscolarAntônio Martins, em sua ci<strong>da</strong>de natal.Desde cedo, mostrou-se sensível aosproblemas sociais. E a percepção <strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>deexistente na estrutura <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>debrasileira levou-o a ingressar na militância política. Trabalhandocontínua e incessantemente, acabou se tornando umrapaz ausente na família.Quando chegou a Belo Horizonte, vindo de uma fazen<strong>da</strong>em São Pedro dos Ferros, fixou residência na Ci<strong>da</strong>de Industrial.Ingressando logo no movimento sindical, tornou-se membro <strong>da</strong>organização revolucionária marxista Política Operária (POLOP)em 1961. Teve atuação insistente junto à imprensa de resistência,especialmente junto aos veículos Jornal dos Bairros e JornalCompanheiro. Eleito diretor do Sindicato dos Metalúrgicos,atuou nas greves de abril e de outubro de 1968 em Contagem,Minas Gerais, sendo a seguir detido e cassado. Continuando aparticipar de todos os movimentos populares na déca<strong>da</strong> de 70,502 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>503


foi perseguido, preso e torturado pelo Departamento de OrdemPolítica e Social (DOPS) de Minas Gerais.Mais tarde, participou do movimento pela anistia e <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>çãodo Partido dos Trabalhadores (PT). Presidente <strong>da</strong> Casa doMovimento Popular, mobilizou todos os companheiros paraapoiar para o Senado a chapa petista encabeça<strong>da</strong> por JoaquimJosé de Oliveira, na qual eram suplentes o médico Jorge Nahase a trabalhadora Adélia Batista Fernandes.Evangélico, firme, confiante, tornou-se uma figura lendária<strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> mineira. Persistiu na luta até o fim de seus dias, quando,no dia 5 de setembro de 1999, em Betim, Minas Gerais, aos73 anos de i<strong>da</strong>de, faleceu devido a um choque circulatório decorrentede uma infecção pulmonar e de uma obstrução intestinal.504 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>505


Milton Soares de CastroMilton Soares de Castro nasceu em Santa Maria, RioGrande do Sul, em 23 de junho de 1941. Do pai, MarcílioPalmeira de Castro, Milton usava, além do último sobrenome,também o primeiro: assim, era mais conhecido como MiltonPalmeira de Castro, embora não tivesse sido registrado com essenome.O pai morreu muito cedo, deixando a viúva com 10 filhos,um deles Milton. Ela acabou encontrando novo companheiro,tendo com ele outros cinco filhos. Para os filhos do primeiro casamentoo pa<strong>da</strong>stro não seria exatamente um novo pai, sendo queca<strong>da</strong> um dos 10 irmãos foi deixado numa casa diferente. Miltonteve, como os irmãos, uma infância sofri<strong>da</strong>.Mais tarde, já trabalhando, Milton era operário metalúrgicoe, interessando-se pelo movimento político, tornou-se militantedo Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR). Reservado econtando com vários militares entre seus parentes, jamais falavade suas ativi<strong>da</strong>des com a família, que pouco visitava.Foi preso juntamente com vários companheiros na Serrado Caparaó, quando <strong>da</strong> repressão ao movimento guerrilheiro queali se iniciava. Naquela ocasião, todos os presos foram levadospara um quartel do Exército, em Juiz de Fora, Minas Gerais.Companheiros de Milton, presos na mesma <strong>da</strong>ta, massobreviventes, afirmam que ele teria sido morto após uma discussãocom um oficial conhecido por Major Half que, posteriormente,teria assumido o comando do 10º RI de Juiz de Fora.Após o incidente, Milton Palmeira de Castro, apartado de seuscompanheiros, foi recolhido a uma cela isola<strong>da</strong>. No dia 12 deabril de 1967, foi encontrado morto nessa mesma cela.Segundo versão oficial, Milton teria se suici<strong>da</strong>do por enforcamento,o que foi desmentido pelos depoimentos dos própriossol<strong>da</strong>dos do quartel, que afirmavam que o corpo dele sangravaabun<strong>da</strong>ntemente ao ser retirado <strong>da</strong> cela. Esses testemunhos nãocorroboram a versão de morte por enforcamento.O Grupo Tortura Nunca Mais - RJ, em pesquisa realiza<strong>da</strong>nos 12 volumes do Projeto Brasil Nunca Mais, encontrou noTomo V, volume 4, no capítulo intitulado Os Mortos, examenecroscópico e certidão de óbito de Milton. Segundo consta nomencionado volume, sua necropsia fora feita no dia 28 de abrilde 1967, pelos médicos Nelson Fernandes de Oliveira e MarcusAntônio Nagem Assad, no Hospital Geral de Juiz de Fora. Danecropsia, consta a indicação de que o corpo apresentava"equimoses nas pernas, principalmente nos joelhos", o que tambémnão confirma a versão oficial de morte por enforcamento.A Certidão de Óbito, documento que atribui sua morte aenforcamento, foi feita no mesmo dia 28, na Penitenciária deJuiz de Fora, mas é assina<strong>da</strong> pelo Dr. J. Gua<strong>da</strong>lupe, médico quenão havia feito a necropsia.Outra informaçãoque consta na Certidãode Óbito é a de que MiltonSoares de Castro foienterrado pela famíliano Cemitério de SantaMaria, no Rio Grande doSul, em 1968. A família,no entanto, afirma queo corpo de Milton nãofoi destinado a SantaMaria e, sim, a Juiz deFora, Minas Gerais, ondeela julga que ele tenhasido enterrado.506 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>507


Murilo Pinto <strong>da</strong> SilvaMurilo Pinto <strong>da</strong> Silva, segundo filhode Carmela Pezzuti e Theofredo Pinto <strong>da</strong>Silva e irmão de Ângelo Pezzuti <strong>da</strong> Silva,nasceu em Araxá, Minas Gerais, no dia 3de outubro de 1947.Fez as quatro primeiras séries doEnsino Fun<strong>da</strong>mental no Grupo EscolarDelfim Moreira e as seguintes no ColégioDom Bosco, ambos em Araxá. Mais tarde,estudou no Colégio Padre Machado, emBelo Horizonte. Murilo foi autodi<strong>da</strong>ta.Desenvolveu estudos de acordo com asáreas de seu interesse, que eram as deFilosofia, Sociologia, Antropologia e Política.Ao contrário de seu irmão Ângelo, Murilo tinha um temperamentointrovertido e, embora fosse espirituoso e irônico, expressavamais pelo olhar do que pelas palavras, escutava mais do que falava.Conseguia comunicar-se muito bem através <strong>da</strong> escrita, por meio <strong>da</strong>qual expunha com clareza suas idéias e propostas.O traço mais marcante de sua personali<strong>da</strong>de era odesprendimento.Desde criança era interessado pela natureza; gostava debrincar no campo e possuía grande habili<strong>da</strong>de manual, construindoseus próprios brinquedos, aviões e carrinhos de madeira. Naadolescência, interessava-se por música e, especialmente, pelahistória <strong>da</strong> Itália, aí incluindo a música e a política italianas.Adulto, continuou aprimorando suas preferências porleituras, música clássica e óperas. Conservava a mesma ternura508 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>509


do garoto no olhar e no sorriso, com os quais se expressava maisque com o corpo. Possuía poucos amigos, mas entregava-se ver<strong>da</strong>deiramentea eles, era fiel companheiro.Sua formação intelectual espontânea levou-o à política e,incentivado pelo irmão, Ângelo, iniciou sua militância no grupo deesquer<strong>da</strong> Comando de Libertação Nacional (COLINA), em 1968.Na madruga<strong>da</strong> de 29 de janeiro de 1969, foi preso peloDepatamento de Ordem Política e Social (DOPS) de BeloHorizonte, juntamente com outros companheiros, após um confrontoarmado com policiais que invadiram a casa onde seencontravam.Preso no DOPS, foi levado em segui<strong>da</strong> para a ColôniaPenal Magalhães Pinto, em Neves, e, depois, para o 12º RJ, parao Centro de Preparação de Oficiais <strong>da</strong> Reserva (CPOR) e, maistarde, para o Regimento Obuzes, em Juiz de Fora, em segui<strong>da</strong>,para a Polícia do Exército (PE) <strong>da</strong> Vila Militar no Rio de Janeiroe, finalmente, para a prisão de Linhares, em Juiz de Fora.Sofreu todos os tipos de tortura física e psicológica, sendoque na PE <strong>da</strong> Vila Militar do Rio de Janeiro serviu de cobaia emaulas de tortura ministra<strong>da</strong> pelo Exército, mais especificamentepelo tenente Ailton, para cerca de cem oficiais. Num <strong>da</strong>quelesdias, durante to<strong>da</strong> a aula, enquanto cinco outros companheirossofriam ca<strong>da</strong> um uma forma de tortura, Murilo foi forçado a ficar,de pés descalços, sobre as lâminas de duas latas abertas. Os bordosaguçados <strong>da</strong>s latas penetravam-lhe na sola dos pés e a dorsubia-lhe pelos músculos <strong>da</strong> perna. Mesmo sofrendo, Murilo deuconta de perceber que a sua dor e a dos companheiros era motivode pia<strong>da</strong>, de diversão, para os que assistiam à aula-demonstração.Ao final, de volta à cela, sentia-se vazio, sem emoções,mas sabia que, <strong>da</strong>quele dia em diante, por mais que o provocassemou por mais justa que fosse a sua causa, jamais fariasofrer um ser humano.Mais tarde, participou <strong>da</strong> elaboração e foi signatário doDocumento de Linhares, uma denúncia <strong>da</strong>s torturas e seusefeitos sobre os presos políticos <strong>da</strong>quela cadeia. Enviado àsautori<strong>da</strong>des brasileiras, o documento foiignorado, o mesmo não acontecendo nomundo inteiro, onde foi divulgado.Em 1970, juntamente com outros39 companheiros, inclusive seu irmãoÂngelo, foi trocado por embaixadoralemão e man<strong>da</strong>do para a Argélia. Logoem segui<strong>da</strong>, foi para Cuba, onde moroudois anos, preparando-se para voltar aoBrasil.Em 1972, foi para o Chile, onde jáse encontravam exilados sua mãeCarmela e seu irmão Ângelo. Junto ao portão de saí<strong>da</strong> do aeroporto,todos muito alegres e expansivos, não se contiveramquando Murilo apontou na sala de desembarque, o cabelo engomadoà <strong>da</strong>nçarino de tango: "Murilo! ... Murilo!...", gritavam-lhe,abanando as mãos. No entusiasmo, tinham se esquecido de queMurilo não era ele mesmo. Era, como qualquer banido, e comomuitos outros exilados, um sujeito que ele nem sequer conheciae que tinha viajado por vários países, via-se pelos carimbos nopassaporte. Mais tarde o saberia: o legítimo dono do seu passaportejá havia sido morto pela repressão no Brasil - e ele nãoseria o primeiro e nem o último a usar um passaporte assim parachegar ao Chile.O fato é que Murilo, integrando-se à família no Chile, participou<strong>da</strong> luta do povo chileno pelo socialismo. Sobrevivia comoartesão, em condição ilegal, porque não obteve visto de permanênciado governo chileno.Quando do golpe do Chile, pediu asilo à embaixa<strong>da</strong> doPanamá, mas, por falta de documentos e trabalho, seguiu para aBélgica, onde trabalhou como restaurador de móveis. Da Bélgicafoi para a França e, em Paris, trabalhando como operário nafábrica de óculos Pierre Cardin e como técnico em gráfica, participoudo Comitê Brasileiro pela Anistia. Participou ain<strong>da</strong> deestudos sobre a América Latina, mantendo contato com o Brasil510 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>511


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e tentando conseguir apoio para os companheiros que ain<strong>da</strong> seencontravam presos.Em dezembro de 1979, anistiado, retornou ao Brasil e foimorar em Cuiabá, Mato Grosso, participando de trabalhoscomunitários junto a associações de bairros.Iniciou um trabalho com camponeses em Nova Brasilândia,em Cuiabá, e no Vale do Guaporé, onde se radicou definitivamente.Com o aval <strong>da</strong> Pastoral <strong>da</strong> Terra (CPT), conseguiualguns recursos, muito pequenos, que mal <strong>da</strong>vam para sobrevivere tocar o barco; lá não havia muitos companheiros para openoso trabalho, contava apenas com uma companheira, umamigo, com a aju<strong>da</strong> <strong>da</strong> CPT e de um padre <strong>da</strong> Paróquia <strong>da</strong> Igrejado Rosário.Murilo trabalhou incessantemente durante 10 anos paraaju<strong>da</strong>r os camponeses a chegarem a um ponto: a certeza <strong>da</strong> suaimportância, do seu valor, de sua responsabili<strong>da</strong>de por seus destinose por uma socie<strong>da</strong>de mais justa.O último projeto de Murilo, mais arrojado, conseguiureconhecimento e aprovação: consistia na educação popular deposseiros do Vale do Guaporé. Em 1987, foram liberados recursospara esse projeto e a equipe responsável mudou-se para VilaBela <strong>da</strong> Santíssima Trin<strong>da</strong>de, fronteira com a Bolívia. Murilo eseus companheiros queriam que os camponeses resgatassem asua digni<strong>da</strong>de, como seres humanos capazes de conduzir opróprio destino.Murilo morreu no dia 12 de março de 1990, após uma fasemuito conturba<strong>da</strong>, de muita dor, agrava<strong>da</strong> por uma crise depressiva.Deixou três filhos: Maíra, Inah e Jerônimo. Foi enterrado noCemitério do Vale do Guaporé, na locali<strong>da</strong>de que tanto amava eonde semeou suas esperanças, sem ter tido tempo, contudo, decolher os frutos.HOMENAGEM AO SAUDOSO MURILOFrancisco Alexandre dos Santos "Diá"Ó meu Deus que me protege, ó Pai <strong>da</strong> consolação.Tanta dor que sinto agora, que me treme o coração.Me respon<strong>da</strong> se é certo ou se é uma traição.Porque me falta um companheiro <strong>da</strong> primeira posição.Me lembro <strong>da</strong> sua voz falando em reunião, Me ensinoutantas coisas para fugir <strong>da</strong> prisão.Falava em liber<strong>da</strong>de para sair <strong>da</strong> escravidão, Tinhatanto amor ao trabalho, pisava firme no chão.Abraçou o lavrador com suas boas feições.Será que isso é uma sina ou se é perturbação Se eunão falo o que sinto, ninguém dá uma sugestão.Será que caio no buraco, e ninguém me dá a mão?Hoje falta um companheiro, de triste separação.Abalou o movimento, ficou olhando para o chão.Ó meu Deus que é poderoso, que é o Senhor do perdão,Por to<strong>da</strong>s as lutas que fez, não deixas cair no chão.Por esse bom companheiro vamos fazer uma oração,Que seja bom para Deus, como foi para os irmãos.Meu Deus eu já estou cansado de ver tanta ingratidão.Proteja os inocentes que estão com enxa<strong>da</strong> na mão.Venha ficar comigo, contigo quero falar.Quero dizer o que sinto, contigo quero sentar.Vamos ficar nesta sombra e aproveitar o luar.Vamos ficar para sempre, A luta não vai parar.514 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>515


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Nelson José de Almei<strong>da</strong>Nelson José de Almei<strong>da</strong> nasceu em Mendes Pimentel,Minas Gerais, quarto filho de uma família de 10 irmãos. Seuspais, camponeses humildes, nascidos e radicados na região doVale do Rio Doce, em Minas Gerais, mu<strong>da</strong>ram-se com to<strong>da</strong> afamília para Governador Vala<strong>da</strong>res, quando ele tinha apenas 10ou 11 anos de i<strong>da</strong>de: expulsos do campo pelas péssimas condiçõeseconômicas em que viviam, foram obrigados a procurar trabalhonuma ci<strong>da</strong>de maior.Nelson começou a trabalhar muito cedo, buscando contribuirpara o sustento <strong>da</strong> família, desde o período em que entroupara a escola. Vendia produtos agrícolas, verduras, legumes elaticínios aos construtores do prédio <strong>da</strong> USIMINAS, em Ipatinga,Minas Gerais.Concluiu, em 1963, as quatro primeiras séries do EnsinoFun<strong>da</strong>mental na Escola Estadual Israel Pinheiro, em GovernadorVala<strong>da</strong>res. Ao final delas, mudou-se mais uma vez com to<strong>da</strong> afamília, desta vez para Brasília, onde já estava trabalhando seuirmão mais velho. Apesar <strong>da</strong> pouca i<strong>da</strong>de, teve que encararserviços bastante pesados, como o de aju<strong>da</strong>nte de pedreiro.Por volta de 1964/1965, descobriu que sofria de epilepsia.Mesmo procurando tratamento médico, continuou a trabalhar dedia e a estu<strong>da</strong>r à noite. Foi assim que concluiu as séries finais doEnsino Fun<strong>da</strong>mental em Sobradinho, uma <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des satélitesde Brasília.Por essa época, passou a compreender o significado doGolpe Militar de 1964, percebendo o grau de repressão políticaque pairava sobre aqueles que criticavam o acirramento <strong>da</strong>s desigual<strong>da</strong>dessociais. Engajou-se então na luta política. Em 1968,após a publicação do Ato Inconstitucional nº 5 (AI-5), Nelsonalinhou-se com a corrente política que defendia o enfrentamentoarmado dos militares. Participou <strong>da</strong>s organizações Comando deLibertação Nacional (COLINA) e Corrente Revolucionária de MinasGerais (CORRENTE) como militante e ativista.Ocorreu então que, no dia 1º de abril de 1969, na ci<strong>da</strong>de deTeófilo Otoni, interior de Minas, Nelson foi preso por agentes doDepartamento de Ordem Política e Social (DOPS) em Minas. Nodia 11 de abril, preso no quartel do batalhão <strong>da</strong> Polícia Militarlocal, foi reconhecido por um sol<strong>da</strong>do, chamado Artur Orozimbo,que havia sido colega de Nelson e de seu irmão, ain<strong>da</strong> na primeiraescola, em Mendes Pimentel. Por uma dessas coincidênciasdo destino, seria o mesmo sol<strong>da</strong>do Artur Orozimbo quem,pouco depois, noticiaria a morte do antigo colega à família.Segundo denúncias <strong>da</strong> Anistia Internacional, Nelson Joséde Almei<strong>da</strong>, mesmo preso e algemado, tentou uma desespera<strong>da</strong>fuga. Na tentativa, acabou recebendo uma raja<strong>da</strong> de metralhadora,que foi desferi<strong>da</strong> em suas costas pelos agentes de segurançaque o haviam prendido.Consta que Nelson José de Almei<strong>da</strong> encontra-se enterradono Cemitério de Teófilo Otoni, em Minas Gerais.518 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>519


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Nestor VerasNestor Veras nasceu no dia 19 de maio de 1915, emRibeirão Preto, São Paulo, filho dos camponeses Manoel Veras ePilar Velasques. Gostava de tocar clarineta.Segundo <strong>da</strong>dos existentes no Centro de Inteligência doExército (CIE), Nestor Veras esteve fazendo curso em Moscou.Foi militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e integrantedo Comitê Central, onde se encarregava do setor camponês.Foi membro <strong>da</strong> direção <strong>da</strong> União dos Lavradores eTrabalhadores Agrícolas do Brasil e tesoureiro <strong>da</strong> ConfederaçãoNacional dos Trabalhadores <strong>da</strong> Agricultura.Foi cassado pelo Ato Institucional nº 1 (AI-1) e preso emfrente a uma drogaria em Belo Horizonte, em abril de 1975, conformedenúncia de Luís Carlos Prestes.O jornal Correio Sindical, em maio de 1979, denunciou oseu seqüestro.Nestor Veras foi mais uma vítima <strong>da</strong> ditadura militar.522 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>523


Ney Jansen Ferreira JúniorNey Jansen Ferreira Júnior nasceu no dia10 de janeiro de 1939 em Belo Horizonte,Minas Gerais. Filho de Ney Jansen Ferreirae Adília Borges do Espírito Santo, ambostelegrafistas dos Correios e Telégrafos, Neyteve os irmãos Taís e Ivan, este último,médico, residente no bairro <strong>da</strong> Floresta, emBelo Horizonte, onde a família está estabeleci<strong>da</strong>há mais de 60 anos. Foi naFloresta que os três irmãos estu<strong>da</strong>ram.Casado com Maria Luíza Stabile Sartorelli,Ney teve os fihos Ney Jansen Ferreira Neto e WladimirJansen Ferreira.Desde a adolescência, Ney mostrava-se preocupado comas questões políticas e sociais e engajou-se logo na militânciapolítica. A tal ponto o envolvimento político o absorvia que ele,aprovado no vestibular para o curso de Matemática <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (UFMG), abandonou os estudospouco depois, no segundo ano, por ter de passar a viver na clandestini<strong>da</strong>de.E isso ele fez mesmo sendo a Matemática a suaopção profissional e mesmo já tendo iniciado, antes que entrassepara a Facul<strong>da</strong>de, a sua vi<strong>da</strong> no magistério nessa disciplina.Para o início de sua militância política, nos primeiros anos<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 60, Ney filiara-se ao Partido Comunista Brasileiro(PCB). Rompeu com o partido em 1967 e, em 1968/69, passou amilitar na Ala Vermelha. Entendia, à época, que somenteatravés <strong>da</strong>s armas o País poderia, após o Golpe Militar de 1964,resolver questões fun<strong>da</strong>mentais para o seu desenvolvimento.Assim, durante todo aquele período, participou de várias açõesarma<strong>da</strong>s em Minas Gerais e em São Paulo.Em 1969, como estava havendo em Belo Horizonte umaperseguição ostensiva pelos órgãos de repressão aos militantespolíticos, Ney transferiu-se para São Paulo, já na clandestini<strong>da</strong>de.Como militante de algumas organizações como o MovimentoRevolucionário Marxista (MRM) e Movimento RevolucionárioTiradentes (MRT), participou de ações arma<strong>da</strong>s conjuntamentecom um movimento conhecido como FRENTE. Apesar<strong>da</strong> clandestini<strong>da</strong>de, criou um curso supletivo e lecionou Matemáticana região central de São Paulo.Em março de 1971, foi preso e barbaramente torturado,assumindo para si a maior parte <strong>da</strong> culpa atribuí<strong>da</strong> a seus companheiros,o que lhe rendeu uma série de seqüelas que contribuiriampara a sua decadência física e o levariam posteriormenteà morte.Mas nem a iminência <strong>da</strong> morte o intimidou. Sua militânciacontinuou ativa dentro dos presídios pelos quais passou:Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), Destacamentode Operações de Informções do Centro de Operaçõesde Defesa Interna (DOI/CODI), Presídio Tiradentes, Casa deDetenção, Penitenciária do Carandiru e Presídio Político doBarro Branco.Participou de to<strong>da</strong>s as manifestaçõesdos presos políticos, inclusive através <strong>da</strong>sgreves de fome, como a que foi realiza<strong>da</strong>durante 30 dias (na ocasião ele perdeu 30quilos) a fim de que conseguissem umpresídio político e não mais ficassem empresídios comuns.Uma de suas preocupações estavaem fazer o controle de entra<strong>da</strong> e saí<strong>da</strong> dosprisioneiros políticos de todos os presídiospor onde passou, segundo ele "para se controlaro desaparecimento de presos".524 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>525


Participou <strong>da</strong> elaboração e assinou documentos em que ospresos políticos do Barro Branco denunciavam as torturas, ostorturadores e to<strong>da</strong>s as irregulari<strong>da</strong>des pelas quais passavam.Entre esses documentos estão uma carta ao presidente <strong>da</strong>Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de 23 de outubro de 1975e o Ritual de Aflição nos Cárceres Políticos, de 12 de dezembrode 1977.Saiu <strong>da</strong> prisão no dia 15 de dezembro de 1978 em liber<strong>da</strong>decondicional, sendo beneficiado pela anistia em 1979.Livre, retomou os estudos de Matemática na PontifíciaUniversi<strong>da</strong>de Católica de São Paulo (PUC/SP), ao mesmo tempoem que voltou a <strong>da</strong>r aulas em escolas públicas, particulares ecursinhos, até vir a dedicar-se totalmente às escolas públicas,que via como um projeto maior de sua vi<strong>da</strong>.Também participou ativamente do Sindicato dos Professoresdo Estado de São Paulo (APEOESP), tendo sido o representantesindical na sua região, Taboão <strong>da</strong> Serra. Sua saúde,porém, entraria em processo de declínio gra<strong>da</strong>tivo, o que fez comque se afastasse <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des docentes nos dois últimos anosde sua vi<strong>da</strong>. Faleceu no dia 4 de junho de 1996.Ney Jansen Ferreira Júnior, bravo lutador e autêntico idealista,jamais abandonou suas convicções políticas e suasopções de vi<strong>da</strong>, mesmo que elas lhe acarretassem grandes dificul<strong>da</strong>des.Foi <strong>da</strong>queles homens imprescindíveis, presentes à lutadurante todo o tempo que lhe foi <strong>da</strong>do viver.RUA NEY JANSEN FERREIRA JÚNIOR526 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>527


Ondina Pedrosa NahasOndina Pedrosa Nahas nasceu no dia 15 de outubro de1917, em Rio Acima, Minas Gerais, filha de Joaquim Pereira eHilarin<strong>da</strong> Pedrosa Pereira. Casa<strong>da</strong> com Antônio Augusto Nahas,era mãe de Jorge Raimundo, Joaquim Augusto, Maria Inês,Antônio Nahas Júnior, Manoel Elias e Mauro José.Quando começou seu trabalho político, já era professoraaposenta<strong>da</strong>. Sua grande motivação para a nova empreita<strong>da</strong> foraa necessi<strong>da</strong>de de defender os filhos Jorge Nahas, que havia sidopreso em 1969 e banido do País em 1970, e Antônio NahasJúnior, o Toninho, preso no início dos anos 70 no Brasil.Foi uma <strong>da</strong>s fun<strong>da</strong>doras do Movimento Feminino pelaAnistia (MFA) de Minas Gerais e orientou várias famílias nabusca de seus filhos prisioneiros ou desaparecidos durante arepressão política. Em sua casa, D. Ondina acolheu esposas depresos políticos e militantes de outros Estados, além de cedê-lacomo espaço para as reuniões do MFA, quando servia centenasde refeições para todos os participantes.Denunciando as torturas sofri<strong>da</strong>s pelos militantes políticos,visitando penitenciárias, exigindo melhores condiçõescarcerárias, D. Ondina dedicou 10 anos de sua vi<strong>da</strong> à causa <strong>da</strong>luta pelos direitos humanos, contribuindo, com sua força, para aconquista <strong>da</strong> anistia no País.Faleceu em Belo Horizonte no dia 6 de janeiro de 1992.528 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>529


Oracílio Martins GonçalvesOracílio Martins Gonçalves era operário <strong>da</strong> construçãocivil. Foi assassinado pela repressão policial, quando participava<strong>da</strong> greve dos trabalhadores <strong>da</strong> sua categoria, no dia 30 de julhode 1979.Tinha 24 anos à época do seu assassinato. Era casado epai de um bebê de dois meses.Seu único crime: a luta por melhores salários.530 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>531


Orestes Timbaúva RodriguesOrestes Timbaúva Rodrigues nasceu em Bagé, Rio Grandedo Sul, no dia 10 de julho de 1915. Em sua família todos eram ferroviários,sendo esta a primeira profissão que escolheu. Posteriormentesentou praça no 12º Regimento de Cavalaria Independentede Bagé. Casou-se com Le<strong>da</strong> em 1940, com quem tevesua única filha, Virgínia.De instrução primária, Orestes era um autodi<strong>da</strong>ta e todo oavanço teórico que conseguiu foi graças a seu próprio esforço,curiosi<strong>da</strong>de e dedicação aos seus poucos estudos.Ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1935.A essa época, já era cabo e participou do movimento <strong>da</strong> AçãoLibertadora Nacional (ALN). Foi preso, torturado e transferidoposteriormente para a casa de detenção do Rio de Janeiro,depois para o presídio de Ilha Grande. De Graciliano Ramos, aquem conheceu no presídio <strong>da</strong> Ilha Grande e a quem muitoimpressionou, mereceu um capítulo inteiro no livro Memórias doCárcere, ali figurando sob o pseudônimo Euclides Figueiredo,seu nome de guerra.Em 1937, com a Mace<strong>da</strong><strong>da</strong>, foi libertado e iniciou um trabalhode conspiração no Rio de Janeiro e em São Paulo. De voltaao Rio Grande do Sul, no início dos anos 40, reorganizou o PCBno seu Estado e estruturou o Comitê Estadual, tendo sido eleitoseu membro efetivo. Em 1946, na Conferência Nacional do PCB,foi eleito para o Comitê Central, onde permaneceu até suamorte.Seu trabalho político, exercido sempre no PCB, não conheciafronteiras dentro do Brasil. Trabalhou em todos os Estados,integrando a Seção de Organização e se destacando por memo-532 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>533


ável trabalho especialmente no Rio de Janeiro, Maranhão,Pernambuco e São Paulo. Foi pulso forte durante a crise de1956/57, posicionando-se com firmeza, liderando a correção dosrumos e concepções comunistas e reformulando a linha políticado partido.Dirigiu o Comitê Estadual <strong>da</strong> Guanabara, de 1958 a 1962,a Assessoria Parlamentar e a Comissão de EntendimentoPolítico, a partir de 1964 até 1967. Nesse ano, o partido, no antigoEstado do Rio de Janeiro, recuperou-se dos <strong>da</strong>nos causadospelo racionismo, o que permitiu a realização do IV Congresso.Em 1970, foi designado para o trabalho em Minas Geraise, em 1973, foi eleito suplente <strong>da</strong> Comissão Executiva do ComitêCentral.Em 1974, viajou para a URSS, onde permaneceu até 1976.Estudou e participou <strong>da</strong> reorganização <strong>da</strong> direção do PCB noexterior. Representou o partido em Cuba até novembro de 1979,quando retornou ao Brasil, anistiado.A partir de 1980, após seu retorno ao Brasil, o camara<strong>da</strong>Timbaúva atuou em Minas. Coube-lhe enfrentar as tentativasfracionistas coman<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelo camara<strong>da</strong> Prestes, o que ele fezcom decisão.Faleceu aos 66 anos de i<strong>da</strong>de, sendo enterrado em SãoPaulo. O Coletivo Nacional de Dirigentes Comunistas, por ocasiãode sua morte, envioumensagem à família, enaltecendoo companheiro morto,mensagem esta publica<strong>da</strong>na íntegra pelo jornal dopartido Voz <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de,onde ficou um dos poucosregistros de suas grandeslições.534 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>535


Orlando <strong>da</strong> Silva Rosa BomfimJúniorOrlando <strong>da</strong> Silva Rosa BomfimJúnior, filho de Orlando <strong>da</strong> Silva RosaBomfim e de Maria Gasparini Bomfim,nasceu no dia 13 de janeiro de 1915, emSanta Tereza, Espírito Santo.Mu<strong>da</strong>ndo-se para Belo Horizonte,fez o curso de Direito na Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (UFMG) eexerceu as ativi<strong>da</strong>des de jornalista noEstado de Minas, jornal de grande circulação,do qual, ain<strong>da</strong> jovem, alcançouser secretário. Foi jornalista até 1964,quando o jornal Novos Rumos, que dirigiano Rio de Janeiro, foi fechado.Orlando fez opção política no período <strong>da</strong> redemocratização,quando foi eleito vereador em Belo Horizonte nas eleiçõesde 1946, tendo sido líder do seu partido, o Partido ComunistaBrasileiro (PCB).Foi um dos signatários do Manifesto dos Mineiros e passoua dirigir jornais partidários e a advogar gratuitamente, tendoabandonado, então, uma famosa banca de advocacia.Em 1958 mudou-se para o Rio de Janeiro e começou a trabalharno jornal Imprensa Popular.Uma <strong>da</strong>s participações mais marcantes de Orlando foi nagreve dos operários do Morro <strong>da</strong> Mina, greve esta que durou 43dias. Orlando atuou como advogado dos operários, morou comeles e foi lá que, procurado vivo ou morto,conseguiu cobertura de casa em casa,escondendo-se <strong>da</strong> polícia.No dia 8 de outubro de 1975, suafilha Beatriz Bomfim ficou sobressalta<strong>da</strong>com um telefonema anônimo, em quealguém, dizendo-se "um amigo de seupai", comunicava a prisão de Orlando epedia que a família contratasse um advogadoe comunicasse o fato à AssociaçãoBrasileira de Imprensa (ABI). Imediatamente,os filhos e o Comitê Central doPCB mobilizaram-se para localizá-lo. Apartir <strong>da</strong>í, começou mais uma busca aum desaparecido por força <strong>da</strong> repressãopolítica.No mesmo dia, foi feito contato com uma autori<strong>da</strong>de emBrasília, que prometeu eluci<strong>da</strong>r o desaparecimento de Orlandoem 72 horas. Passaram-se as horas, os dias, os anos e Orlandonunca foi encontrado, apesar dos esforços de partidos políticos,enti<strong>da</strong>des como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil(CNBB), o Comitê Brasileira de Anistia (CBA) e a Comissão deJustiça e Paz <strong>da</strong> Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Todos osinstrumentos legais foram acionados e, no dia 13 de outubro, oadvogado deu entra<strong>da</strong> a uma petição na 2ª Auditoria <strong>da</strong> Marinha,onde Orlando Bomfim tinha um man<strong>da</strong>do de prisão preventivadecretado; de acordo com a petição, qualquer dependênciapolicial ou militar em que se encontrasse o preso deveriacomunicar o fato imediatamente à Marinha.To<strong>da</strong> a alteração provoca<strong>da</strong> pelo brusco desaparecimentodo pai não era, contudo, a primeira preocupação que se instalavadentro <strong>da</strong> família. "A angústia não <strong>da</strong>tava de 8 de outubro. Elavinha desde 1964, quando nosso pai foi arrancado do convívio desua família e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de para entrar numa clandestini<strong>da</strong>deforça<strong>da</strong> pela situação política. Uma clandestini<strong>da</strong>de que era,536 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>537


mais uma vez, opção de uma vi<strong>da</strong> dedica<strong>da</strong> à luta, a um ideal.Mas esta mesma clandestini<strong>da</strong>de era pesa<strong>da</strong> para um homemcheio de hábitos simples e pequenos", ressaltaria mais tarde seufilho.No dia 31 de outubro, a família recebeu a notícia de que opai estaria preso no Destacamento de Operações de Informaçõesdo Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI) do Rio deJaneiro. Os contatos foram retomados na esperança de encontrarOrlando, mas, mais uma vez, as tentativas resultaramfrustra<strong>da</strong>s.No dia 27 de novembro de 1975, a re<strong>da</strong>ção do jornal OEstado de São Paulo recebeu um telefonema anônimo, <strong>da</strong>ndoconta de que Orlando estava morto. Naquele mesmo dia, asucursal <strong>da</strong> Folha de São Paulo recebeu também telex informandoque Orlando Bomfim fora morto na prisão, durante interrogatório.Seu corpo nunca foi encontrado e, na angústia do desconhecimento,passou a ser <strong>da</strong>do, como tantos outros companheiros,como desaparecido. No entanto, de acordo com declaraçõesdo ex-Sargento Marival Dias Chaves do Canto, em entrevistaà revista Veja de 18/11/92, Orlando Bomfim Júnior, comopertencente à cúpula do PCB, foi mortocom injeção para matar cavalo. Foi capturadono Rio de Janeiro pelo DOI/CODI deSão Paulo e levado para o cárcere CastelloBranco. Morto, seu corpo foi jogado no rioAvaré, no trecho entre a ci<strong>da</strong>de de Avaré,São Paulo, e a rodovia Castello Branco.O homem que a repressão levaraà morte era casado e pai de seis filhos:Regina, Orlando, Roberto, Olga, Sérgio eBeatriz. Segundo depoimento de amigos efamiliares, era uma pessoa sincera e franca.Convivia igualmente com pessoas dequalquer nível social e era respeitado tan-to no meio operário, como entre políticos e intelectuais. Era umespírito aberto e sem ver<strong>da</strong>des pré-fabrica<strong>da</strong>s, admirado portodos que tinham o privilégio de desfrutar do seu convívio.Um de seus filhos prestou testemunho do respeito que opai tinha pelos outros, pelas idéias e crenças dos outros. Contouque uma de suas irmãs era religiosa devota<strong>da</strong> e o pai, que eraateu, jamais reprimia a filha, pelo contrário, acor<strong>da</strong>va-a semprepara que não perdesse o horário <strong>da</strong> missa.Orlando era um ídolo para os filhos, que não se conformaramem ter o pai arrolado na lista de presos políticos desaparecidos.Prometeram a si mesmos que a luta que o levara àmorte não cessaria e que, em nome dele, continuariam trabalhandopelas minorias e por uma vi<strong>da</strong> digna e justa para todos.538 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>539


Osório <strong>da</strong> Rocha DinizOsório <strong>da</strong> Rocha Diniz nasceu em Contagem, Minas Gerais,em 1º de outubro de 1904.Economista, engenheiro, jornalista e professor universitário,participou <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Ciências Econômicas <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (UFMG), <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de deEngenharia Kennedy e <strong>da</strong> Escola Superior de Agrimensura.Foi um dos articuladores <strong>da</strong> campanha O Petróleo é Nosso,<strong>da</strong> qual surgiu a lei que criou a Petrobrás. Mais tarde, de 1963 a1967, viria a ser membro do Conselho de Administração <strong>da</strong>quelaempresa, época em que impediu demissões arbitrárias de trabalhadoresem razão de perseguição política. Defendeu intransigentementeos recursos minerais e naturais do País.Autor de 14 livros publicados na coleção Brasiliana, entreeles O Brasil em face do imperialismo moderno e A política queconvém ao Brasil, escreveu também durante 50 anos no jornalDiário do Comércio, em Belo Horizonte. Catedrático, foi aposentadocompulsoriamente pelo Ato Institucional n.º 5 (AI-5) em1968. Em segui<strong>da</strong>, vítima de perseguição política, foi impedidode trabalhar. Foi presoem Belo Horizonte noID 4, por defender umBrasil livre, soberano eindependente.Osório <strong>da</strong> RochaDiniz faleceu em 14 dejunho de 2003.540 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>541


Osvaldo Orlando <strong>da</strong> CostaOsvaldo Orlando <strong>da</strong> Costa nasceu em27 de abril de 1938, em Passa Quatro, sul deMinas. Negro, forte, com quase dois metrosde altura, era uma figura inconfundível, atéporque seu porte avantajado contrastavacom sua meiguice e afetivi<strong>da</strong>de.Estudou na Escola Técnica Nacionaldo Rio de Janeiro, onde se formou técnicoem máquinas e motores. Praticou atletismono Botafogo, onde se inscreveu em 1957; foicampeão carioca de box pelo Clube Oficial<strong>da</strong> reserva, do Centro de Preparação deOficiais <strong>da</strong> Reserva (CPOR); cursou até o 3ºano de Engenharia na Tchecoslováquia, onde viveu alguns anos.Membro do Partido Comunista do Brasil (PC do B), foi obrigadoa viver na clandestini<strong>da</strong>de logo depois do Golpe Militar de 1964.Osvaldo foi um dos primeiros a chegar à região do Araguaia, emTocantins, por volta de 1966/1967, como garimpeiro e mariscador.Tornou-se o maior conhecedor de to<strong>da</strong> a área, tanto a <strong>da</strong>guerrilha como as circunvizinhas. Fixou residência numa proprie<strong>da</strong>deque adquiriu em 1969, às margens do rio Gameleira,onde mais tarde a ele vieram se juntar outros companheiros.Era muito querido e respeitado tanto pela população quantopelos companheiros. Contam a seu respeito, inúmeras histórias naregião, muitas delas ver<strong>da</strong>deiras, outras autênticas len<strong>da</strong>s sobresua bon<strong>da</strong>de, sua força, sua coragem e também sobre sua pontaria.Era conhecido na região como Osvaldão ou Mineirão.Foi coman<strong>da</strong>nte do Destacamento B <strong>da</strong>s Forças Guerrilheirasdo Araguaia e participou de vários combates ao lado de542 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>543


Dina, tornando-se o mais conhecido combatente do Araguaia.Estava entre os que foram atacados por grande contingente <strong>da</strong>sForças Arma<strong>da</strong>s em 25 de dezembro de 1973.Morto em abril de 1974, perto <strong>da</strong> locali<strong>da</strong>de de São Domingos,seu corpo foi amarrado em um helicóptero que sobrevoouto<strong>da</strong> a região. Posteriormente, sua cabeça foi decepa<strong>da</strong> e exposta.Em matéria sobre a Guerrilha do Araguaia publica<strong>da</strong> noJornal do Brasil por Etevaldo Dias e Ronaldo Brasiliense em22/03/92, sob o título Um mistério chega ao fim, há um trechoque se refere à morte de Osvaldão: "tombou o mais temido eprocurado dos militantes comunistas. Ele teria "topado" de frentecom uma patrulha do Exército, levando o primeiro tiro de espingar<strong>da</strong>calibre 32 disparado por Mineiro, um mateiro, conhecidoguia recrutado pelo Exército. Caído, baleado na barriga, Osvaldãofoi fuzilado pelos sol<strong>da</strong>dos. Seu corpo foi embrulhado emum saco de lona e içado por um helicóptero. Segundo um dosparticipantes <strong>da</strong> patrulha, a cor<strong>da</strong> rompeu-se no ar, a uma alturade 10 metros e, na que<strong>da</strong>, o corpo teve o tornozelo fraturado.Como os outros combatentes mortos, Osvaldão foi enterrado emcemitério clandestino na própria região".544 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>545


Oswaldo França JúniorOswaldo França Júnior nasceu noSerro, Minas Gerais, em 21 de julhode 1936, filho dos advogados OswaldoFrança e Jacyra Nunes França. Tinhacinco irmãos. Casou-se com MariaLília Fonseca França, com quem tevetrês filhos: Andréa, Jacyra e OswaldoFrança Neto.Após a conclusão do curso primário,to<strong>da</strong> a sua formação se deu naEscola Preparatória de Cadetes do Ar,onde ele se diplomou piloto de caçabombardeiro <strong>da</strong> Aeronáutica Brasileira.França Júnior exerceu inúmeras ativi<strong>da</strong>des durante suavi<strong>da</strong>: foi cadete; corretor de mercado de capitais, de imóveis, decereais, de carros usados; proprietário de banca de revistas, debarracas de pipocas; gerente de empresa de ônibus e sócio deempresa de táxis.Como cadete <strong>da</strong> Aeronáutica, teve os seus direitos políticoscassados por não cumprir as ordens superiores que haviamordenado que o Esquadrão de Caça, sediado em Porto Alegre,bombardeasse o Palácio do Governo no período em que ele estavasendo ocupado pelo governador Leonel Brizola. França Júniorresistiu ain<strong>da</strong> à ordem de atingir também a residência particulare a rádio que o político gaúcho utilizava como palanque paraseus discursos inflamados contra o Golpe Militar de 1964. Ossuboficiais se rebelaram naquela base e nenhum avião decolou.Nos anos de chumbo todo o esquadrão foi preso e cassado.França Júnior começou sua produção literária após tersido afastado <strong>da</strong> Aeronáutica, como subversivo, por ocasião doGolpe Militar de 1964. Publicou seu primeiro romance O Viúvoem 1965. A esse se seguiriam seus demais livros: Jorge, Um Brasileiro(1967), Um Dia no Rio (1969), O Homem de Macacão (1972),A Volta para Maril<strong>da</strong> (1974), Os Dois Irmãos (1976), As Lembrançasde Eliana (1978), Aqui e em Outros Lugares (1980), À Procurados Motivos (1982), O Passo-Bandeira (uma história de aviadores)(1984), As Laranjas Iguais (1985), A Árvore que Pensava (1986),Recor<strong>da</strong>ções de Amar em Cuba (1986), No Fundo <strong>da</strong>s Águas(1987).Faleceu no dia 10 de junho de 1989, em um acidente decarro, poucos dias após ter concluído seu último romance, intituladoDe ouro e de Amazônia.546 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>547


Otaviano de CarvalhoOtaviano de Carvalho nasceu em Iguatama, Minas Gerais,em 13 de outubro de 1955. Aos 14 anos, deixou os pais para estu<strong>da</strong>rem Belo Horizonte, morando com sua irmã mais velha, aIzinha. O oitavo de nove irmãos, tinha em Izinha uma segun<strong>da</strong>mãe e com ela ficou até os 23 anos, quando se formou emComunicação pela Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de MinasGerais (PUC - Minas).Em janeiro de 1981 mudou-se para Vitória, Espírito Santo,com a finali<strong>da</strong>de de aju<strong>da</strong>r a construir o Partido dosTrabalhadores (PT) e a Organização Revolucionária Marxista -Democracia Socialista (ORM-DS), <strong>da</strong> qual era militante naépoca. O PT havia sido oficializado em 1980 e precisava ser consoli<strong>da</strong>dona Capital e organizado no interior. Otaviano se encarregoudessa missão e por ela trabalhou muito.Quatro meses depois de ter se transferido para Vitória,Otaviano voltou a Minas, casou-se com Lísia Pimenta Mendes e,em abril de 1981, voltou com a mulher para a terra capixaba,construindo uma nova vi<strong>da</strong>. O casal teve duas filhas, Camila eMariana. Lísia era companheira forte, segurou muitas on<strong>da</strong>s.Aceitou o desafio de mu<strong>da</strong>r-se para Vitória, agüentou as dificul<strong>da</strong>desfinanceiras, quando o dinheiro era curtíssimo. Foram 18anos juntos.De Otaviano pode-se dizer que sua profissão era a de umlutador. Jornalista por formação, jamais colocou a carreira àfrente de seu desejo de transformar o mundo, sonho que operseguiu durante to<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>. Na vi<strong>da</strong> comunitária, foi líderque encabeçou lutas por melhoramentos em seu bairro e pelaorganização <strong>da</strong>s associações de moradores. Na política, pautou-458 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>549


se pela ideologia e pela ética. Sua postura e seu voto não erammercadorias, portanto não os trocava nem os negociava.A vocação de Otaviano para a responsabili<strong>da</strong>de social epolítica, tão intensamente presente em to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong>, manifestara-sedesde os tempos de estu<strong>da</strong>nte. Ain<strong>da</strong> em MinasGerais, havia sido diretor do Diretório Central dos Estu<strong>da</strong>ntes(DCE) <strong>da</strong> PUC-Minas e <strong>da</strong> União Estadual dos Estu<strong>da</strong>ntes(UEE/MG). Mais tarde, no Espírito Santo, começou aju<strong>da</strong>ndo aorganizar o PT em vários municípios, formando militantes eestruturando diretórios. Em 1982, foi responsável pela confecçãodo material de campanha dos candi<strong>da</strong>tos majoritários do PT.Fazia o material e ele mesmo ro<strong>da</strong>va em sua off-set. Sempreacreditou no PT como alternativa político-partidária e por eletrabalhava todos os minutos <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>. Foi <strong>da</strong> executiva do PTmunicipal de Vitória, <strong>da</strong> executiva estadual e membro dodiretório nacional várias vezes.Eleito vereador em Vitória duas vezes, não completou oúltimo man<strong>da</strong>to, pois assumiu a Superintendência de Comunicaçãodo Governo Estadual. Seu objetivo era realizar um trabalhoque acreditava ser possível e necessário e que visavamoralizar a área de comunicação, que vinha servindo apenasde canal para trambiques e armações político-econômicas.Em 1996 saiu do cargo, pois os rumos adotados pelo governopetista eram muito diferentes dos concebidos pelo partido,antes <strong>da</strong>s eleições. Candi<strong>da</strong>tou-se então a prefeito de Vitória,ficando em terceiro lugar. Em 1997, assumiu a vaga de deputadoestadual, por ser o primeiro suplente <strong>da</strong> coligaçãoPT/PSB.Vindo de uma família mineira interiorana, apega<strong>da</strong> a costumese raízes, Otaviano rompeu com valores e crenças, mas conservava,mesmo sem se <strong>da</strong>r conta, muito do que aprendeu lánaquela ci<strong>da</strong>dezinha, na Iguatama que tanto amava. Mas foi naterra do Espírito Santo que Otaviano partiu, e tão inespera<strong>da</strong> e brutalfoi a parti<strong>da</strong> que restou um sulco de dor profun<strong>da</strong> no coração detodos quantos de alguma forma se relacionavam com ele.Era um dia comum aquele 10 de junho de 1999 em queOtaviano, 43 anos, viajava pela rodovia BR-101, no município deLinhares, no norte do Espírito Santo. Inespera<strong>da</strong>mente, um caminhãoem alta veloci<strong>da</strong>de atingiu o carro em que viajava, umFiat Tipo. O carro pegou fogo minutos depois. Otaviano ficoupreso às ferragens e foi carbonizado. De acordo com relato detestemunhas, o ex-deputado ain<strong>da</strong> lutou para sair do carro, masacabou desistindo. "Companheiro, não tem jeito, eu vou morrer",teria dito o ex-deputado, segundo testemunhas.O presidente Luiz Inácio Lula <strong>da</strong> Silva esteve no velório deOtaviano, a quem comparou a "uma artéria que faz o coração doPT pulsar". Avaliou que a morte do militante "trouxe per<strong>da</strong> aomovimento popular, sindical, ao PT e à democracia", lamentandoa fatali<strong>da</strong>de, inexplicável para o ser humano, que ceifara vi<strong>da</strong>tão preciosa.550 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>551


RUA OTAVIANO DE CARVALHOPaschoal Souza LimaA partir do momento em que foi deflagrado o Golpe Militarde 1964, as forças repressoras buscaram sufocar todo tipo deresistência ao movimento.Muitos estu<strong>da</strong>ntes, operários e camponeses foram mortos.Paschoal Souza Lima foi um deles. Morreu na ci<strong>da</strong>de deGovernador Vala<strong>da</strong>res, Minas Gerais, no dia 31 de março de1964, em conflito de rua, conforme denúncias do jornal Correio<strong>da</strong> Manhã em sua edição de 2 de abril de 1964.RUA OTAVIANO DE CARVALHO552 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>553


Paulo Costa Ribeiro BastosPaulo Costa Ribeiro Bastos nasceuem 16 de fevereiro de 1945, em Juiz deFora, Minas Gerais, filho do GeneralOthon Ribeiro Bastos e de Maria do CarmoCosta Bastos. Cursou o Ensino Fun<strong>da</strong>mentale o Médio no Colégio Militar doRio de Janeiro. Mais tarde, seria diplomadoEngenheiro Civil pela Universi<strong>da</strong>deFederal do Rio de Janeiro (UFRJ),passando a trabalhar como funcionáriodo Departamento Nacional de ObrasContra a Seca (DNOCS).Era militante do Movimento Revolucionário8 de Outubro (MR-8).Segundo <strong>da</strong>dos sobre os 144 desaparecidos políticos existentesno Centro de Inteligência do Exército (CIE) colhidos pelaComissão Externa <strong>da</strong> Câmara Federal, Paulo, que usava os codinomesLuiz, Nando, Fernando e Nelson, teria participado de váriosassaltos a instalações comerciais. O mesmo documento informasobre sua presença na República Federal <strong>da</strong> Alemanha, em 1976.Em 10 de julho de 1972, Paulo foi preso, junto com SérgioLandulfo Furtado, pelo Destacamento de Operações de Informaçõesdo Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI)no Rio de Janeiro. Foi levado para a Polícia do Exército (PE), soba acusação de ser militante do MR-8. A prisão ocorreu no bairrocarioca <strong>da</strong> Urca.Paulo Costa Ribeiro Bastos morreria sob tortura três diasdepois.554 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>555


Paulo Roberto Pereira MarquesPaulo Roberto Pereira Marques nasceuno dia 14 de maio de 1949, na ci<strong>da</strong>de dePains, em Minas Gerais, filho de MariaLeonor Pereira Marques e Sílvio MarquesCamilo. Seus irmãos eram Maria de Fátima,Sílvia Maria, Júlio César e Maria Ângela.Aos 15 anos, a fim de <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong>dea seus estudos, transferiu-se paraAcesita, indo morar na casa de uma tia. Veiodepois para Belo Horizonte, concluindo oEnsino Médio no Colégio Lúcio dos Santos. Ingressou, emsegui<strong>da</strong>, no curso pré-vestibular Pitágoras, preparando-se parao vestibular de Química.Funcionário do Banco do Estado de Minas Gerais, participouativamente <strong>da</strong> greve dos bancários de 1968, razão pelaqual foi indiciado com base na Lei de Segurança Nacional.Em 1969, membro do Partido Comunista do Brasil (PC doB), foi viver no lugar denominado Gameleira, na região doAraguaia, montando uma pequena farmácia, juntamente com ocompanheiro Ciro Flávio Salazar e Oliveira. Em pouco tempo,tornou-se conhecido na região. Amauri, nome pelo qual era conhecido,tinha gênio alegre e espírito sempre bem disposto.Tocava violão e cantava, naquela terra que o acolhia, as músicasque falavam dos ideais de libertação e de uma vi<strong>da</strong> mais justapara o povo brasileiro.Em última carta envia<strong>da</strong> à família, Paulo dizia à mãe paranão se preocupar, porque não estava fazendo na<strong>da</strong> de errado,apenas lutava para mu<strong>da</strong>r o País, a fim de que todos tivessemuma vi<strong>da</strong> melhor. Sabendo que a mãe, D. Leonor, gostava muito556 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>557


<strong>da</strong>s músicas de Chico Buarque, dizia, em suas cartas que, aoouvir Apesar de Você, lembrava-se dela. Filho amoroso e preocupadocom os irmãos menores, pedia à irmã mais velha, Maria deFátima, que cui<strong>da</strong>sse bem dos irmãos, já que ele não poderiafazê-lo, pois estava ausente.Paulo Roberto está desaparecido desde o ataque <strong>da</strong> ComissãoMilitar à região do Araguaia,no dia 25 de dezembro de1973. Os familiares, apesar <strong>da</strong>sbuscas, nunca mais tiveram notíciasde Paulinho, como era chamadopor eles.Apesar de vocêamanhã há de seroutro dia.....558 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>559


Pedro Alcântara MoreiraPedro Alcântara Moreira nasceu em Mogi-Mirim, São Paulo,no dia 18 de fevereiro de 1953. Casou-se com Maria AuxiliadoraGomes, a Dora, com quem teve duas filhas: Joana e Paula.Mudou-se para Belo Horizonte em 1974, onde desenvolveuintensa ativi<strong>da</strong>de política, destacando-se nas lutas sindicais enos movimentos dos servidores públicos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (UFMG). Também participando dos movimentosde bairro, tornou-se, em 1978, dirigente <strong>da</strong> AssociaçãoComunitária do Bairro Jardim América (ADAVE).Foi um dos fun<strong>da</strong>dores do Partido dos Trabalhadores (PT)em Belo Horizonte e desenvolveu trabalho de assessoria naseleições de 1989, em João Monlevade, Bela Vista de Minas e SãoDomingos do Prata. Os fun<strong>da</strong>dores do PT <strong>da</strong>quelas regiões tinham-nocomo pessoa de singular competência, de caráter firmee de alma terna. Afirmavam ter por ele imensa dívi<strong>da</strong> de gratidão.De 1985 a 1986, presidiu a Associação dos Servidores <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (ASSUFEMG).Desenvolveu trabalho sindical na Associação Sindical dosFuncionários de Universi<strong>da</strong>des Brasileiras (FASUBRA), como seupresidente, de 1987 a 1988, e como coordenador, de 1989 a 1992,época em que exerceu concomitantemente, um cargo na ExecutivaNacional <strong>da</strong> Central Única dos Trabalhadores (CUT).Morador do Bairro Ven<strong>da</strong> Nova,deu imprescindível contribuiçãoaos movimentos comunitários.Doente, não abandonou nenhumade suas lutas. Faleceu no dia 12de março de 1993, de câncer, emBelo Horizonte.560 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>561


Pedro Alexandrino de Oliveira FilhoPedro Alexandrino de Oliveira Filho, filhode Pedro Alexandrino de Oliveira e deDiana Piló Oliveira, nasceu em Belo Horizonte,no dia 19 de março de 1947. Tinhatrês irmãs: Ângela, Eliana Maria e DianaMaria. Sempre foi um filho e irmão muitoamigo, amoroso e alegre. Perto ou longe,participava intensamente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>família e tratava as irmãs com um carinhoincomum.Também os inúmeros amigos, entre elesFredinho Silésio, Leonardo Andrade eDidiu, tinham nele uma pessoa alegre etranqüila. Sabiam que ele gostava muito de cantar e que o faziamuito bem, pois era dono de uma belíssima voz. Ele adoravafazer serenatas com os seus amigos, inclusive para as própriasirmãs. Duas eram as músicas de sua preferência, as que maismarcaram sua irmã Eliana, Perfídia e Relógio.Pedro cursou o Ensino Fun<strong>da</strong>mental no Colégio MonteCalvário e o Ensino Médio no Colégio Anchieta. Começou cedoa trabalhar no antigo Banco Hipotecário, depois Banco doEstado de Minas Gerais, instituição que o transferiu para SãoPaulo em 1967. Em São Paulo, ele terminou seus estudos, fazendotambém um curso de inglês.Retornou a Belo Horizonte em 1969, quando já era procurado.Foi preso em dezembro do mesmo ano, dentro <strong>da</strong> casa desua irmã Ângela, no bairro Gutierrez, para onde correu quandose sentiu seguido e ameaçado. Na própria casa de Ângela, quese encontrava no trabalho, levou coronha<strong>da</strong>s na cabeça, pon-tapés, foi colocado nu e espancado na frente de suas duassobrinhas, de 3 e 4 anos de i<strong>da</strong>de. Levado preso para o Departamentode Ordem Política e Social de Minas Gerais (DOPS/MG)foi barbaramente torturado com choques elétricos no intestino,pau-de-arara, palmatória, enforcamento e outras atroci<strong>da</strong>des.Quando foi solto, estava surdo de um ouvido, sendo que o outroencontrava-se em estado lastimável.Pedro Alexandrino passou o Natal de 1969 com a família,almoçando com todos na casa dos avós. Em segui<strong>da</strong>, dirigiu-seaté à residência do casal amigo Mário Silésio e D. Maria Eugênia,pais de Fredinho e sogros do ex-governador Hélio Garcia.Saiu <strong>da</strong> casa dos amigos e nunca mais foi visto. Sem condiçõesde viver em Belo Horizonte, optou pela clandestini<strong>da</strong>de.Estu<strong>da</strong>nte universitário, Pedro já participava ativamentedo movimento estu<strong>da</strong>ntil em São Paulo. Nesse período, a famílianão teve mais paz, a casa onde moravam era freqüentementeinvadi<strong>da</strong> por policiais à procura de Pedro Alexandrino.D. Diana, não suportando as constantes violências, resolveumu<strong>da</strong>r-se para o Rio de Janeiro, onde foi tentar encontrar oparadeiro de seu filho tão querido. Bateu em to<strong>da</strong>s as portas possíveis:Igreja, Comissão de Direitos Humanos, Comissão de Justiçae Paz e outras tantas até que encontrou um casal, Sr. Edgare D. Sirene, que buscavam notícias de dois filhos e <strong>da</strong> nora, tambémdesaparecidos. Nessa ocasião, D. Diana soube do envolvimentode Pedrinho com o Partido Comunista do Brasil (PC do B)e com a Guerrilha do Araguaia.Em procura incansável, conseguiu descobrir um companheirodo filho, o Glênio, que dividira com Pedro e José Genoínouma mesma casa no Araguaia: Glênio e José Genoíno, maistarde presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), conseguiramsair com vi<strong>da</strong>.A família soube, nesta época, que Pedro tinhauma namora<strong>da</strong>, com codinome Tuca, que haviaido também para o Araguaia. Chamava-se MariaLuísa Garlipe, enfermeira do Departamento de562 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>563


Moléstias Transmissíveis do Hospital <strong>da</strong>s Clínicas de São Paulo,nos anos de 1967 a 1969. No Araguaia, ela desenvolveu intensotrabalho de saúde, destacando-se como parteira e substituindoJoão Carlos Haas Sobrinho, depois de sua morte, no serviço desaúde <strong>da</strong>s forças guerrilheiras do Araguaia.Pedrinho, como era carinhosamente chamado pela família,ou Peri pelos companheiros, ao transferir-se para o Araguaia, foiresidir na região <strong>da</strong> Gameleira, incorporando-se depois, comocombatente do Destacamento B. Em 1974, quando tinha 24anos, foi tido como desaparecido. Segundo informes <strong>da</strong> Marinha,Pedro teria morrido no dia 4 de agosto de 1974, em Xambioá,onde usava os codinomes de Moisés, Chico e Peri.A família até hoje pergunta onde estão os restos mortaisdo irmão querido e do filho tão amado.Durante uma entrevista ao Jornal do Brasil, edição de25/11/92, a deputa<strong>da</strong> Maria Luíza Fontenelle (PSB-Ceará) afirmouque "buscar onde foram enterrados nossos mortos é comobuscar a nossa PAZ".As cartas escritas por Pedro Alexandrino para a famíliaeram extremamente afetivas e carinhosas. As sau<strong>da</strong>des eramsempre imensas e a vontade de poder abraçar, beijar, sorrir e cantarcom as irmãs também era constante. Sempre se colocavacomo um grande amigo e companheiro delas. Perguntava dossobrinhos, queria notícias de todos. De seus projetos pessoais e desua vi<strong>da</strong> particular, pouco falava. Mas sempre lembrava do seucompromisso com o povo brasileiro, do significado <strong>da</strong> luta política,<strong>da</strong> importância <strong>da</strong> honesti<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> serie<strong>da</strong>de, do crescimentointerior, de atitudes decentes e até <strong>da</strong> vontade de ter um filho,algum dia. Numa de suas cartas ele dizia: "Tudo do amanhã estásempre no campo <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des, é de hoje que temos acerteza, é hoje que criamos as condições objetivas para o amanhã".Terminava, sempre, com lembranças aos amigos, com umabraço para ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s irmãs e carinhos especiais para D.Diana, a quem dedicava os muitos beijos do Pedrinho ou doPeter.564 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>565


Raimundo CarlosDurante o período <strong>da</strong> ditadura militar que se instalou noBrasil a partir de 1964, as companhias Belgo Mineira e USIMI-NAS perseguiram e permitiram que vários de seus operários fossempresos e torturados, sob a alegação de que eram elementosperigosos, pois teriam o propósito de subverter a ordem pública.Esses operários, além de to<strong>da</strong> a humilhação sofri<strong>da</strong>, foramobrigados a assinar carta de demissão, quando, com mais de 20anos prestados a suas empresas, já estavam perto de alcançarsua aposentadoria. A pressão para que assinassem a carta dedemissão usava do argumento de que, caso se recusassem,receberiam a pena de uma prisão mais longa, além de outrasmedi<strong>da</strong>s punitivas mais drásticas.Acuados, eles deixaram seus familiares em dificul<strong>da</strong>de,pois a empresa obrigou-as a abandonar as casas funcionais queocupavam. Além disso, eles foram insultados em diversasocasiões, sob a pecha de parentes de bandidos, subversivos ecomunistas. Para to<strong>da</strong>s aquelas famílias, aquele foi um DIANEGRO, nome pelo qual ficou conhecido. Para a história deMinas, o dia foi o do Massacre de Ipatinga.Raimundo Carlos, filho de Manoel Carlos e de CecíliaAndré, nascido em 1909 e falecido em 1984, foi um dos operáriosalcançado por essas perseguições. Como crime, cometera o departicipar ativamente <strong>da</strong> política na região do Vale do Rio Doce566 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>567


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Raimundo Eduardo <strong>da</strong> SilvaRaimundo Eduardo <strong>da</strong> Silva, jovem negro, estu<strong>da</strong>nte,operário, tinha uma sensibili<strong>da</strong>de apura<strong>da</strong> para os problemassociais, principalmente os <strong>da</strong> classe operária. Desde cedo iniciouum trabalho de discussão sobre os problemas políticos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>debrasileira e, para isso, tentou estruturar um trabalho nobairro em que morava.Em sua mente brotavam idéias, por exemplo, sobre comodeveria agir para organizar uma mobilização em sua comuni<strong>da</strong>de.Ou sobre como formar um partido e sobre qual seria oobjetivo desse partido.O que se notava claramente na militância política deRaimundo era o caráter libertador <strong>da</strong> luta, isto é, ele desejavareunir jovens e operários em torno de uma luta para organizaro povo.Devido a essa vontade, devido a esse desejo de ver seu povolivre <strong>da</strong> opressão política, Raimundo tornou-se, em pouco tempo,um militante <strong>da</strong> Ação Popular (AP), juntando-se a um grupode jovens que freqüentavam a Igreja no bairro onde morava.A AP nascera em 1962, composta de cristãos progressistasligados à Ação Católica, em particular à Juventude UniversitáriaCatólica (JUC). Num primeiro momento, definira-se como movimentopolítico (e não partido), inspirara-se nas idéias humanistasde Jacques Maritain, Teilhard de Chardin, Mounier e doPadre Lebret. Em seu Documento Base, editado em 1963, haviase proposto a lutar por uma socie<strong>da</strong>de justa, condenando tanto ocapitalismo quanto os países socialistas existentes. Seu pesomaior estava na área estu<strong>da</strong>ntil, em que a organização controlouas sucessivas diretorias <strong>da</strong> União Nacional dos Estu<strong>da</strong>ntes(UNE), procurando penetrar nosmeios operários e rurais.Como militante ativo <strong>da</strong> AP,Raimundo, em menos de um ano,já havia formado várias células,com a participação de 30 militantes.Com o crescimento e o desenvolvimentoprogressivos desse trabalho,ele se tornou, aos 20 anos,um líder conhecido por muitos moradores do bairro Jardim Zaíra,na ci<strong>da</strong>de de Mauá. Foi o mais jovem presidente <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>deAmigos do Bairro.Mas, em fins de 1970, ocorreu uma infiltração em seugrupo. Surgiu o risco iminente de que a repressão interviesse eprendesse a todos. Raimundo mudou-se, então, para a ci<strong>da</strong>de deSanto André, mas, infelizmente, caiu nas mãos dos agentes <strong>da</strong>repressão, vindo a falecer em 5 de janeiro de 1971.Foi enterrado como indigente em Guaianases: esta foi ahistória que contaram para seus familiares. Para os que conviveramcom ele, Raimundo hoje seria um ci<strong>da</strong>dão perfeitamenteintegrado ao processo de democratização do Brasil.(Texto cedido por familiares).570 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>571


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Raimundo Gil <strong>da</strong> SilvaRAIMUNDO EDUARDO DA SILVARaimundo Gil <strong>da</strong> Silva nasceu no dia 6de novembro de 1937 na ci<strong>da</strong>de de SantaCruz do Escalvado, Minas Gerais, filho dosagricultores Gentil <strong>da</strong> Silva e Maria Oliveira<strong>da</strong> Silva. Teve oito irmãos: Gil Felix, Geraldo,Aventino, Maria, Francisca, Longuinha,Geracina e Mariazinha. Mais tarde, casou-secom Almerin<strong>da</strong> Alves Serina, com quem teveos seguintes filhos: Marcelo, Raquel, Gilson.Ex-policial <strong>da</strong> Guar<strong>da</strong>-Civil na época,líder comunitário por mais de 30 anos, adepto<strong>da</strong> prática de esportes e atleticanodoente, Raimundo assumiu como suplente o cargo de vereadorpelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) na Câmara Municipalde Belo Horizonte, tendo exercido o cargo durante 60dias. No decorrer do período, serviu-se <strong>da</strong> tribuna para lembrarseus compromissos com o trabalhismo de Getúlio Vargas e sualuta ao lado dos mais carentes, vínculos que lhe haviam rendidoa cruel perseguição exerci<strong>da</strong> pelo regime militar de 1964,com prisão, condenação, tortura, além de perseguição contra asua família.De fato, em 1964 Raimundo fora preso junto com outroscompanheiros, permanecendo por algum tempo no Departamentode Ordem Política e Social (DOPS) em Belo Horizonte.Mais tarde, foi transferido para o Presídio Dutra Ladeira, emRibeirão <strong>da</strong>s Neves, Minas Gerais, e, depois, para a Penitenciáriade Linhares, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Lá, ficou presovários meses. Quando novamente em liber<strong>da</strong>de, anistiado, con-574 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>575


tinuou seu trabalho, organizando e participando diretamente demovimentos comunitários.Como líder comunitário, junto com outros moradores, ajudoua construir o aglomerado Cabana Pai Tomás, depois de enfrentamentoscom a polícia, que, de prontidão, não permitia aentra<strong>da</strong> de material de construção, uma vez que o terreno eraproprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> e a autori<strong>da</strong>de competente já havia declaradoreintegração de posse. Hoje, a comuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quela regiãotem uma infra-estrutura volta<strong>da</strong> para a educação, saúde, transportecoletivo, energia e saneamento básico. Segundo amigos ecompanheiros, Raimundo Gil tinha bon<strong>da</strong>de até no olhar. Sempretinha uma palavra de conforto e de chamamento para a luta,reivindicando melhores condições de vi<strong>da</strong> para todos.Durante o tempo que permaneceu na Câmara, Raimundomanteve o posicionamento ideológico que sempre norteou suavi<strong>da</strong> de líder comunitário na comuni<strong>da</strong>de Cabana Pai Tomás. Eapesar de curto esse tempo, deixou sua marca com a postura dedesapego ao cargo: não fez oposição sistemática ou inconseqüente,não defendeu o jargão do "quanto pior, melhor para aoposição".Na noite do dia 12 de junho de 1995, vítima de afogamento,viria a falecer o grande homem que foi Raimundo Gil <strong>da</strong> Silva.RAIMUNDO GILRAIMUNDO GIL576 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>577


Raimundo Gonçalves FigueiredoRaimundo Gonçalves Figueiredo era mineiro e casado comMaria Regina Lobo Leite de Figueiredo, com quem teve dois filhos.Militante <strong>da</strong> organização Vanguar<strong>da</strong> Arma<strong>da</strong> Revolucionária- Palmares (VAR-Palmares) e conhecido como José Severo, foifuzilado sumariamente por agentes de segurança no dia 27 deabril de 1971, quando saía de sua casa no bairro Sucupira, emRecife, Pernambuco.Em 29 de março de 1972, menos de um ano depois, suaesposa Maria Regina, companheira de luta, também teve omesmo destino: foi morta pelas forças <strong>da</strong> repressão, quando suacasa foi invadi<strong>da</strong>, no Recife. Na operação, os policiais usaramgrana<strong>da</strong>s e raja<strong>da</strong>s de metralhadoras.578 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>579


Raul Amaro Nin FerreiraRaul Amaro Nin Ferreira nasceuno Rio de Janeiro em 2 de junho de1944, filho de Rodrigo Nin Ferreira eMariana Lanari Ferreira. Completavamsua família os irmãos Maria Carmem,Maria Coleta, Maria Alice, Rodrigo,Miguel, Pedro, Paulo e André.As raízes <strong>da</strong> família eram mineirase italianas: parte delas era de Itaverava,perto de Conselheiro Lafaiete;parte tinha laços com a Itália, atravésde Cássio Lanari, o ascendente queviera de Ancona para o Brasil no finaldo século XIX, na época do Encilhamento, e escolhera MinasGerais para viver e criar sua família.O avô de Raul, Amaro Lanari, formou-se pela Escola deMinas e Metalurgia de Ouro Preto e criou a Fun<strong>da</strong>ção Gorceix. Afamília Lanari sempre possuiu uma expressiva tradição nasáreas de Engenharia e Siderurgia.Raul Amaro fez o Ensino Fun<strong>da</strong>mental no Colégio Brasileirode Almei<strong>da</strong> e o Ensino Médio no Colégio São Bento, no Riode Janeiro. Formou-se, em 1967, aos 23 anos, em EngenhariaMecânica pela Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica do Rio de Janeiro(PUC/RJ). Participou, enquanto estu<strong>da</strong>nte, de importantescongressos e seminários no Brasil e no exterior, tais como comoo Congresso Latino-Americano de Estu<strong>da</strong>ntes Universitários,realizado em Lima, Peru, em 1964, e o Seminário sobre ProblemasLatino-Americanos, realizado na Universi<strong>da</strong>de de NotreDame, Estados Unidos, em 1965. Posteriormente, fez o curso deEngenharia Econômica.Trabalhou como professor-assistente de Engenharia Navalno COPPE/RJ, até a sua morte e, como engenheiro, trabalhouem empresas como a CIQUINE, a Montreal Engenharia e aEMAO-Estaleiros. Foi, ain<strong>da</strong>, técnico do Ministério <strong>da</strong> Indústriae Comércio, lotado no Conselho de Desenvolvimento Industrial,na gestão do ministro Pratini de Morais, até agosto de 1971 .Por sua destaca<strong>da</strong> atuação, o governo holandês concedeulheuma bolsa para fazer o Mestrado em Economia, na Universi<strong>da</strong>dede Haia. Raul teria embarcado em outubro de 1971, senão houvesse sido vítima <strong>da</strong> ditadura militar.Preso no dia 1º de agosto de 1971, quando voltava de umafesta, foi interrogado no Departamento de Ordem Política e Socialdo Rio de Janeiro (DOPS/RJ) e transferido para o quartel <strong>da</strong> Políciado Exército/RJ sob o comando do Coronel Homem de Carvalho.Lá, foi barbaramente torturado, teve suas condições físicas deteriora<strong>da</strong>s,sendo transferido, às pressas, para o Hospital Central doExército, onde faleceu no dia 12 de agosto de 1971.Segundo informações <strong>da</strong> época, Raul Amaro Nin Ferreiraera suspeito de ser um dos dirigentes do movimento de resistênciaà ditadura militar, tendo se recusado a <strong>da</strong>r os nomes de amigose companheirosmilitantes <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong>católica que freqüentavamseu apartamento.A recusacustou-lhe a vi<strong>da</strong>. Aos27 anos de i<strong>da</strong>de, foiseum jovem brilhante,com uma carreiraascendente e umagrande contribuição a<strong>da</strong>r ao Brasil.580 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>581


Roberto Décio de Las CasasRoberto Décio de Las Casas nasceu em Belo Horizonte,Minas Gerais, no dia 21 de janeiro de 1929, filho de José de LasCasas e Leontina Roland de Las Casas. Seus avós maternoseram belgas. Tinha quatro irmãos: Júlio, Maria Terezinha, EstêvãoGesuíno e Antônio Tarcísio. Foi casado com Sarah Pinheirode Las Casas, companheira de vi<strong>da</strong> e exílio, com quem não tevefilhos e que faleceu em 1988, de câncer.Em 1964, formou-se em Ciências Sociais pela Facul<strong>da</strong>dede Filosofia, Ciências e Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal do Pará.Fez o Doutorado sob a direção de Alain Touraine na École Pratiquedes Hautes Études e defendeu tese na Universi<strong>da</strong>de deParis X. Enriqueceu constantemente sua vi<strong>da</strong> profissional cominúmeros cursos de atualização, seminários e congressos no Brasile no exterior.Trabalhou em inúmeras pesquisas, foi membro de váriasassociações científicas, compôs o quadro de profissionais de universi<strong>da</strong>des,centros de pesquisa, museus e diversos jornais, nosquais atuou como colaborador. A par de sua ativi<strong>da</strong>de de professore pesquisador, devotou sua visão de sociólogo humanista e de jornalistaà análise <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de do País e do contexto latino-americano.Interessou-se pelo fenômeno humano em todo o mundo. Devotouto<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, enfim, a pensar e a sentir o homem e o mundo.Dão sinal <strong>da</strong> vasta abrangência de seus interesses e <strong>da</strong> suafértil produção os inúmeros trabalhos que publicou, entre eles osseguintes: Situação <strong>da</strong> Educação no Pará (1962), Amazonas e RioBranco (1962), Estruturas Sociais numa Região de Cultura de Juta(1963), Índios e Brasileiros no Vale do Tapajós (1964), Observaçõessobre a América Latina (1968), Formação e Comportamento do582 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>583


Proletariado no Brasil (1969), A Socie<strong>da</strong>de Brasileira (1969), O EstadoAutoritário - O Caso Brasileiro (1970), Considerações sobre aUtilização <strong>da</strong> Variável Econômica nos Estudos Demográficos sobre oTerceiro Mundo (1970), Mu<strong>da</strong>nças na Dependência e as Relações deClasses nos Países Dominados (1973), O Comportamento Operáriono Chile (1975), O Movimento Operário e a Socie<strong>da</strong>de Chilena(1975), A Socie<strong>da</strong>de Brasileira Hoje (1977), Multinacionais eTrabalhadores no Brasil (1978), A Crise no Socialismo (1979),Diversas Perspectivas de Análise <strong>da</strong> Produção Informal (1980), OEstudo do Processo de Libertação de Angola (1980).A ditadura militar levou-o ao exílio, primeiro em Roma,pouco depois em Paris, onde viveu grande parte de sua vi<strong>da</strong>.Esteve, por algum tempo, no Chile, na déca<strong>da</strong> de 60.Passou em primeiro lugar, enquanto latino-americano, noconcurso para admissão no Centro Nacional de PesquisasCientíficas (CNRS), na França, tornando-se o primeiro brasileiroa ser aceito como funcionário pelo governo francês. Era amigopessoal de Mário Soares e François Mitterrand.Roberto de Las Casas faleceuno dia 14 de setembro de1993, de infarto fulminante, apóster se submetido a um transplante.Era o ponto final numavi<strong>da</strong> de luta e sonhos, durante aqual, longe de pretender recompensapessoal, ele foi exemplodigno de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia conscientementeexerci<strong>da</strong> até o fim de seusdias.Sempre saudoso de suaterra, os 14 anos que passara noexílio não apagaram de seucoração a imagem do Brasil, sobretudoa de sua queri<strong>da</strong> BeloHorizonte.584 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>585


Rodolfo de Carvalho TroianoRodolfo de Carvalho Troiano nasceuem 1950, em Juiz de Fora, ci<strong>da</strong>de mineira<strong>da</strong> Zona <strong>da</strong> Mata, filho de Rodolfo Troianoe de Geny de Carvalho Troiano. De estaturapequena, era louro, magro, e usava umabarba cerra<strong>da</strong> e vasta.Participou ativamente do movimentoestu<strong>da</strong>ntil secun<strong>da</strong>rista. Sua saga começouquando o jovem pichou o Morro doCristo com frases de defesa do socialismo.Foi preso na ci<strong>da</strong>de de Rubim, Minas Gerais.Respondeu, na época, a seu primeiroTermo de Perguntas, permanecendo incomunicável por cerca denove dias. Mais tarde, foi transferido para o presídio de Linhares,em Juiz de Fora, de onde saiu no final de 1971.Tornou-se militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B).Após ser posto em liber<strong>da</strong>de, em razão <strong>da</strong> grande perseguiçãoque lhe moviam os órgãos de repressão, optou por ir viverno interior do Maranhão, na posse do Chega com Jeito, próximoao Brejo Grande/Araguaia. Era conhecido por Mané Carlos, ouManoel do "A", por ser combatente do Destacamento A, coman<strong>da</strong>dopor Helenira Resende de Souza Nazareth.Por ser muito jovem, Rodolfo Troiano tinha pouca experiência.Não sabia cozinhar, nem lavar suas roupas, tudo era difícil,o que lhe valeu o apelido de desastrado. Com perseverança,conseguiu superar as dificul<strong>da</strong>des, vindo a destacar-se comocombatente no grupo.Rodolfo de Carvalho Troiano morreu em 1974, noAraguaia, e seu corpo não foi encontrado. Em 1996, seus irmãos586 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>587


eceberam uma Certidão de Óbito simbólica, com <strong>da</strong>ta e motivodo falecimento em branco.588 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>589


Rodolpho Fritsch FilhoRodolpho Fritsch Filho nasceu no dia 17de outubro de 1947, em São João Del Rei, MinasGerais. Transferiu-se para Belo Horizontepara cursar o Ensino Fun<strong>da</strong>mental e o Médiono Colégio Militar. Bacharelou-se em Letras,com especiali<strong>da</strong>de em Alemão, pela Universi<strong>da</strong>deFederal de Minas Gerais (UFMG) e emAdministração de Empresas pela União deNegócios e Administração (UNA).Em 1969, ao iniciar seus estudos naUFMG, no prédio <strong>da</strong> antiga Facul<strong>da</strong>de de Filosofiae Ciências Humanas (FAFICH) na rua Carangola, em BeloHorizonte, Rodolpho entrou em contato com o movimento estu<strong>da</strong>ntil,que se rebelava, em discursos e ações, contra a ditaduramilitar e seus desmandos, sua arrogância, seu autoritarismo, suailegitimi<strong>da</strong>de, sua falta de transparência. Atuou na Ala Vermelhado Partido Comunista do Brasil (PC do B).Sonhava, como todos, com a democracia. Sonhava exercerplenamente seus direitos políticos. Sonhava com um Brasil maisjusto, com ci<strong>da</strong>dãos conscientes de seu papel na construção deuma socie<strong>da</strong>de livre e digna.Para que esses sonhos se tornassem reali<strong>da</strong>de, Rodolpho,assim como milhares de estu<strong>da</strong>ntes de sua época, lutou com oque tinha em mãos, abrindo caminhos para a liber<strong>da</strong>de políticaque viria mais tarde. Mas pagou por isso um alto preço: foi presoe torturado física, psicológica e moralmente nas dependênciasdo antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Lá,como tantos outros, ficou frente à frente com o sadismo dos poli-ciais, inclusive de antigos colegas do tempo do Colégio Militar.Além <strong>da</strong>s torturas físicas, sofreu ameaças contra a vi<strong>da</strong> de seusfamiliares, principalmente sua irmã e sua mãe. Chegaram a afirmarque uma delas havia sido morta.Em resultado, Rodolpho, mesmo passado aquele bárbaroperíodo, nunca mais foi o mesmo.Faleceu em outubro de 1992, às vésperas de completar 45anos. Deixou dois filhos, Isabella e Henrique Silveira Fritsch.197519771992590 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>591


Ronaldo Mouth QueirozRUA RODOLPHO FRITSCH FILHORonaldo Mouth Queiroz, filho deÁlvaro D'Ávila Queiroz e Elza Mouth Queiroz,nasceu em São Paulo, Capital, em 1949.Consta, nos arquivos <strong>da</strong> Comissão Brasileirade Anistia (CBA) e <strong>da</strong> Arquidiocese de SãoPaulo, que suas raízes são mineiras.Ronaldo foi estu<strong>da</strong>nte de Geologia,presidente do Diretório Central dos Estu<strong>da</strong>ntes(DCE) <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo(USP) na gestão 1970/1971 e militante<strong>da</strong> Ação Libertadora Nacional (ALN).Foi assassinado, por fuzilamento, naav. Angélica, em pleno centro de SãoPaulo, no dia 6 de abril de 1973, por agentes do Destacamento deOperações de Informações do Centro de Operações de DefesaInterna (DOI/CODI) de São Paulo. Tinha, ao ser morto, 24 anosde i<strong>da</strong>de.A versão oficial publica<strong>da</strong> no dia seguinte ao de sua morteafirmava que Ronaldo teria resistido à prisão, sendo morto emtiroteio travado com os órgãos de segurança. Outros informesdiziam, na época, que ele teria morrido em Vila Buarque, bairropróximo ao centro de São Paulo.Estas versões foram desmenti<strong>da</strong>s por populares que teriamvisto a execução sumária de Ronaldo Mouth Queiroz, porfuzilamento, sem nenhuma chance de defesa. Anos mais tarde,o irmão Sidney Mouth Queiroz relataria como se dera essa execução,a execução de mais um jovem cujo crime era o de fazercomícios-relâmpagos, usar mimeográfos antigos, preparar mu-592 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>593


ais e afixar cartazes que procuravam esclarecer o povo na ruasobre a situação então vivi<strong>da</strong> no País:"Quando esperava o ônibus num ponto <strong>da</strong> av. Angélica,o Ronaldo foi assassinado por agentes do DOPS: um tiroabaixo do lábio esquerdo e outro no hemitórax esquerdo.Segundo o testemunho do sociólogo Paulo Antônio Guerra,três homens desceram de uma perua Veraneio: um japonês,um de aparência forte e outro de barba, vestindo jaquetaazul e de arma na mão. Um deles disse: É esse, éesse! O de jaqueta azul, friamente, disparou um tiro noRonaldo, que caiu, mas o assassino disparou outro tiro decima para baixo, embora o ex-estu<strong>da</strong>nte universitário (excontra a vontade, como os outros) não reagisse durante to<strong>da</strong>a ação. Uma mulher grávi<strong>da</strong> gritou e um senhor protestou,sendo jogado no bagageiro <strong>da</strong> Veraneio. Anos depois,a testemunha soube que o jovem assassinado era oQueiroz, um ex-colega de Geologia. A testemunha não reconheceuo Ronaldo, porque este estava usando barba. OPaulo Antônio Guerra ia fazer um teste no Metrô, fato confirmadopela Comissão Especial, 14 anos depois. O covardee vergonhoso assassinato oficial do Ronaldo aconteceuàs 7h45min do dia 6 de abril de 1973. O agente do DOPScolocou um revólver na mão do Ronaldo, outro na cinturadele, e uma agen<strong>da</strong> pequena no seu bolso. Depois mentiram,como sempre, aos jornais, afirmando que tinha havidoum violento tiroteio".Sabe-se hoje que o assassinato de Ronaldo contou com aaju<strong>da</strong> de João Henrique Ferreira de Carvalho, então estu<strong>da</strong>nte deMedicina, que entregava os estu<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de SãoPaulo (USP) para os agentes <strong>da</strong> ditadura militar: o próprio JoãoHenrique, em entrevista à revista Veja, contou em detalhes comoagia, tendo contribuído para a morte de cerca de 20 pessoas.Com a aju<strong>da</strong> de delatores, com a força brutal dos órgãos doDOPS, DOI/CODIs e outros e com a conivência do Estado, suprimiram-se,naquele período de chumbo <strong>da</strong> história, vi<strong>da</strong>s preciosascomo a do jovem, idealista e corajoso Ronaldo Mouth Queiroz.594 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>595


Sami SirihalSami Sirihal nasceu no dia 2 de novembro de 1934, filho deRagil Sirihal e Fari<strong>da</strong> Sirihal, em Belo Horizonte, Minas Gerais.Casado com Rina Bogliolo Sirihal, era pai de Adriana, Alexandree Alberto.Intelectual, advogado trabalhista, professor de Português,Literatura Brasileira e Teoria Literária, lecionou na Facul<strong>da</strong>de deFilosofia e Ciências Humanas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de MinasGerais (FAFICH-UFMG) e no antigo Colégio Estadual de BeloHorizonte, quando este era um dos grandes exemplos comoinstituição de ensino para Minas Gerais, não só pela excelênciado ensino que ministrava, mas também pelo alto nível de seusprofessores, pela visão humanista de mundo que transmitia epela própria valorização social do magistério. Foi um dos fun<strong>da</strong>dores<strong>da</strong> antiga Facul<strong>da</strong>de Belo Horizonte, hoje a UNI-BH.Educador por excelência, o professor Sami Sirihal, além dedespertar nos seus alunos o interesse e o gosto pela Literatura,buscava desenvolver neles o espírito crítico, a criativi<strong>da</strong>de, preocupando-sesempre com o desempenho futuro <strong>da</strong>queles jovensdentro <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de que desejava justa e democrática.Em 1969, foi cassado pelo governo militar e aposentadocompulsoriamente. Proibido de exercer suas ativi<strong>da</strong>des comoprofessor nas instituições públicas de ensino, continuou lecionandoem cursos particulares. A partir do final de 1970, quandoconcluiu o curso de Direito pela UFMG, dedicou-se, como advogadotrabalhista, a <strong>da</strong>r assistência a vários sindicatos, entre eleso Sindicato dos Metalúrgicos de João Monlevade, cujos companheirosde diretoria dedicavam-lhe uma ternura imensa, porquedefendia com ardor os direitos dos trabalhadores. Tornou-se596 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>597


conhecido e respeitado tanto em Minas Gerais como em outrosEstados, mas não abandonou seus estudos de Língua Portuguesae de Literatura, publicando artigos e livros sobre o assunto.Em 1977, foi escolhido membro efetivo <strong>da</strong> Academia Brasileirade Língua Portuguesa, com sede em Porto Alegre, posição queocupou ao lado do também reconhecido professor Aires <strong>da</strong> MataMachado.Posteriormente, anistiado, reassumiu suas aulas na Facul<strong>da</strong>dede Educação <strong>da</strong> UFMG e na Escola Estadual GovernadorMilton Campos, antigo Colégio Estadual.Sami Sirihal faleceu, ain<strong>da</strong> jovem, no dia 20 de novembrode 1989, sendo lembrado com carinho e respeito por seus exalunos,pelos mais importantes dirigentes sindicais do País que,juntamente com ele, assinaram o famoso Documento deMonlevade, e por todos os que partilharam com ele sábia e afetuosaconvivência.598 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>599


Sinval de Oliveira BambirraSinval de Oliveira Bambirra nasceu em 10de fevereiro de 1933, num lugarejo chamadoJoatuba, no município de Betim, Minas Gerais,onde a família, moradora no sítio de VargemGrande, criava abelhas e cultivava hortaliças,frutas, amendoim e gergelim.Seu pai, Djalma de Oliveira Bambirra, foiexímio artesão na arte do couro, produzindoarsenal de selaria e botas feitas à mão.Apreciava a música e a literatura, passandopara os filhos o gosto por essas artes. Foi o principal incentivador<strong>da</strong> criação de uma escola primária na região. Já sua mãe, MariaRita de Oliveira, muito religiosa, era pren<strong>da</strong><strong>da</strong> dona-de-casa.Costurava, bor<strong>da</strong>va, tecia, economizava em casa e acompanhavaos filhos na produção dos doces e queijos que vendiam naestação rodoviária <strong>da</strong> locali<strong>da</strong>de.Sinval era o último dos sete filhos, vindo após Beatriz,Lígia, Belquis, Luís, Vinícius e Décio. Quando Beatriz se casou epassou a morar em Belo Horizonte, Sinval teve a chance derealizar seu sonho de vir estu<strong>da</strong>r na Capital. Inicialmente, foitrabalhar no Mercado Central, onde a irmã tinha uma banca deprodutos que vinham <strong>da</strong> roça <strong>da</strong> família. Mais tarde, ele viria adizer com orgulho que, antes de iniciar seu trabalho na fábrica,vendia bananas no mercado.Em 1950, aos 17 anos, terminando o curso ginasial à noite,conseguiu emprego na Cia. Industrial Belo Horizonte. Passou porvárias seções: alvejamento, sala de pano, expedição, estamparia,carpintaria, salão de cilindros, etc. Seus colegas logo perceberamque ele estava deslocado emqualquer <strong>da</strong>quelas funções, poisgostava mesmo era de estar pordentro de to<strong>da</strong>s as notícias.Trazia de casa os jornais e, nahora do almoço, recortava osprincipais artigos e os colocavanum mural para que todospudessem se informar, refletir ediscutir. Transformou, posteriormente,essa ativi<strong>da</strong>de na edição do jornalzinho O Tear.Desde criança, incentivado pelo pai, era um grande leitor.Na adolescência, seu senso crítico foi incentivado também pelotio Ivan Bambirra, irmão do seu pai, corretor de imóveis em BeloHorizonte e dono de uma alfaiataria no centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, pontode encontro de políticos, principalmente nos trabalhos administrativos.Em 1953, foi eleito delegado do Sindicato dos Trabalhadoresnas Indústrias de Fiação e Tecelagem de Belo Horizontejunto à Federação estadual <strong>da</strong> categoria. Com 20 anos de i<strong>da</strong>de,participou de uma reunião importante para os tecelões, com oministro do Trabalho João Goulart, no Rio de Janeiro, em companhiade dezenas de outros sindicalistas de vários Estadosbrasileiros, para tratar de reivindicações salariais. Conheceu figurasde destaque do movimento operário de São Paulo, entre osquais Antônio Chamorro, o líder <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> Greve dos 300 Mil,um marco dos movimentos operários brasileiros.Mais tarde, Sinval Bambirra foi eleito representante doSindicato junto à Confederação Nacional dos Trabalhadores <strong>da</strong>Indústria (CNTI). À frente <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des, ao lado dos sindicalistasmais corajosos, ávido em aprender e mostrando-se hábil,au<strong>da</strong>cioso e persistente, o jovem Sinval Bambirra teve rápi<strong>da</strong>ascensão.Em 1956, aos 23 anos de i<strong>da</strong>de, foi eleito secretário doSindicato, com man<strong>da</strong>to de dois anos. Era um tempo em que os600 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>601


partidos nacionalistas, os grêmios estu<strong>da</strong>ntis, as associações debairros e favelas se manifestavam em defesa <strong>da</strong>s riquezas mineraisbrasileiras, principalmente o petróleo. Bambirra foi ardorosodefensor e participante de pelo menos três mobilizações trabalhistasde vanguar<strong>da</strong>: as campanhas nacionalistas pelo petróleo(O Petróleo é Nosso), pelas reformas de base e pela sindicalizaçãorural.Em junho de 1958, Sinval elegeu-se presidente doSindicato e <strong>da</strong> Federação dos Sindicatos Têxteis de Minas Geraise também delegado de Federação junto ao Conselho deRepresentantes <strong>da</strong> CNTI. Seu desempenho, como disse o padreLage, "de grande animador do movimento operário em MinasGerais, chamava a atenção dos profissionais <strong>da</strong> imprensa", comoOrlando Bonfim, do Jornal do Povo e Novos Rumos, Mauro Santayana,<strong>da</strong> revista Manchete, Guy de Almei<strong>da</strong>, do Binômio eDiário de Minas, e Lincoln Gonçalves, do jornal Última Hora. OÚltima Hora publicou caderno especial, quando o líder foi escolhidopor votação de um júri formado por personali<strong>da</strong>des diversascomo o Sindicalista do Ano.Em dezembro <strong>da</strong>quele ano, casou-se com Maria Auxiliadora,que, um ano após, deu-lhe o primeiro filho: Sinval de OliveiraBambirra Júnior. Dois anos depois, nascia a filha SiomaraBambirra. O terceiro, Sérgio Bambirra, nasceu fora do País, estandoa família exila<strong>da</strong> em Berlim.Além de ocupar vários cargos representativos, SinvalBambirra foi fun<strong>da</strong>dor e dirigente do 1º Congresso Sindical deMinas Gerais em 1975 e dos seguintes até 1961, quando foi criadoo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), para o qual ele foiescolhido presidente em Minas Gerais.Desenvolvendo um trabalho de aglutinador entre to<strong>da</strong>s asorganizações de trabalhadores, tornou-se o braço direito doentão deputado Clodsmidt Riani, o presidente <strong>da</strong> CNTI. Quandoo movimento sindical mineiro criou o Congresso Sindical deMinas, Bambirra elegeu-se secretário, Delmir Villela, tesoureiroe Riani, presidente. A realização desse Congresso transformouMinas Gerais num dos centros de grande agitação do movimentooperário, trazendo para o Estado até o movimento <strong>da</strong>s LigasCamponesas liderado por Francisco Julião. Esse movimento tevea participação dos estu<strong>da</strong>ntes, que faziam um trabalho voluntário,aju<strong>da</strong>ndo na criação <strong>da</strong>s associações, embriões dos sindicatosrurais. Assim, os grêmios estu<strong>da</strong>ntis tomaram a iniciativade levar a alfabetização onde havia concentração de ruralistas eoperários nas periferias <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des, utilizando os métodos doprofessor Paulo Freire e os espaços <strong>da</strong>s sedes dos sindicatos detrabalhadores nos finais de semana. Sinval Bambirra, oriundo domeio rural, <strong>da</strong>va o maior incentivo para que os estu<strong>da</strong>ntes,operários e trabalhadores rurais se entendessem muito bem.Pois sabia que só através <strong>da</strong> educação e do trabalho os excluídospoderiam mu<strong>da</strong>r sua reali<strong>da</strong>de.Outra experiência interessante que reforçou sua inclinaçãoautodi<strong>da</strong>ta foi sua atuação como representante dos trabalhadoresna Junta de Julgamento e Revisão do ex-IAPI, deMinas Gerais. Um trabalho que lhe exigiu aprendizado especialpara redigir pareceres e argumentos sempre baseados em leis e,sobretudo, nos tratados dos direitos humanos. Tudo era motivopara que Sinval se debruçasse na pesquisa, qualquer que fosseo assunto em pauta.Filiando-se ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Sinvalcandi<strong>da</strong>tou-se a deputado com o apoio dos trabalhadores têxteise também do partidocomunista, através de DimasPerrin e Ziller. Foieleito com grande votação,estímulo para cumprir compersistência e ousadiaaquele man<strong>da</strong>to inédito naAssembléia Legislativa,considera<strong>da</strong> à época uma<strong>da</strong>s mais reacionárias doPaís.602 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>603


Para a pauta de seu trabalho diário como deputado, Sinvaltrazia o espírito de luta cunhado em farta experiência, o acervode cultura adquirido desde tenra infância e a doutrinação obti<strong>da</strong>na leitura de autores como Rosa de Luxemburgo, KarlLiebknecht, Antonio Gramsci e Karl Marx. Com essa bagagem,viveu a experiência inusita<strong>da</strong> e instigante para ele de "fazerparte de um ninho do poder político na tradicional socie<strong>da</strong>de deMinas Gerais. O Estado <strong>da</strong>s oligarquias rurais, centro dos banqueiros,e com uma burguesia empresarial emergente, masmuito pe<strong>da</strong>nte". Sinval sentia que o preconceito e a arrogânciaprevaleciam durante as discussões no plenário <strong>da</strong> AssembléiaLegislativa. Isso fazia parte do jogo de poder, o que ele nãoaceitava, indignando-se com a postura gananciosa e egoísta dealguns colegas deputados.Denunciou na tribuna <strong>da</strong> Assembléia Legislativa a conspiraçãode organizações como IPES/IBAD, que vinham financiandoações de organismo <strong>da</strong> direita e políticos dispostos a embargar,a qualquer preço, até pela violência, o desenvolvimento do País.Viveu a tensão reinante em Minas antes do Golpe Militar de 1964,quando as passeatas e comícios políticos eram alvo <strong>da</strong> violência<strong>da</strong> política do governo de Magalhães Pinto, sempre a postos paradispersar a multidão e impedir qualquer manifestação. Foi solidárioaos líderes sindicais e <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> que corriam o risco de seremassassinados a mando dos organismos <strong>da</strong> ala <strong>da</strong> direita, o quefoi confirmado quando houve, naquela época, o trágico Massacrede Ipatinga, balão de ensaio para o Golpe Militar deflagrado justamentea partir de Minas Gerais.Apesar <strong>da</strong>s constantes tensões e de sofrer muitas provocaçõesna Assembléia, Sinval Bambirra não perdia a postura cavalheira,mas também não se intimi<strong>da</strong>va. Continuava apresentandomoções e requerimentos pedindo investigação <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des antinacionaise desumanas. Seus esforços podiam <strong>da</strong>r em na<strong>da</strong>, mas,pelo menos transformavam-se em registros nos anais <strong>da</strong> Casa.Tendo consciência de que as organizações sindicais e partidáriasain<strong>da</strong> não dispunham de lideranças intermediárias e deque as organizações de base eram insuficientes para sustentar omovimento sindical na ausência de seus principais líderes,Sinval Bambirra, assim como outros deputados operários, dispunham-sea agir como porta-vozes de uma maioria silenciosa.Seus deveres eram muitos, muito além de apresentar projetos oumoções de apoio no plenário, e eles procuravam trazer para suasposições a adesão <strong>da</strong> burguesia nacionalista, que também buscavauma solução de coexistência pacífica para tirar o País <strong>da</strong>dependência econômica.O Golpe Militar de 1964 poria fim a esse trabalho. SinvalBambirra foi preso no dia 30 de março de 1964. Condenaram-noa um sofrimento atroz por ser um trabalhista convicto, acreditarna utopia socialista, sonhar com um mundo de paz e justiçasocial. Em 7 de abril do mesmo ano, a própria AssembléiaLegislativa cassou-lhe o man<strong>da</strong>to. Como diria Sinval, "o Estado<strong>da</strong>s oligarquias rural e econômica se prestou ao triste papel de sealiar às forças retrógra<strong>da</strong>s e permitir o desastroso hiato naHistória do Brasil".Bambirra esteve preso cerca de 15 meses, sofreu torturasfísicas e psicológicas. Perdeu a audição e nunca mais teve osono tranqüilo. Havia noites em que o pesadelo o atormentava;voltava a imaginar que estava nas masmorras dos cárceres,levando panca<strong>da</strong>s e simulação de fuzilamento.Por força de um habeas corpus foi libertado, mas o governomilitar poderia prendê-lo a qualquer momento, com o peso deoutros processos que lhe impuseram. Os familiares e amigosdecidiram por ele que era mais seguro pedir asilo político. Pormais de três meses viveu na clandestini<strong>da</strong>de, pois as embaixa<strong>da</strong>sestavam lota<strong>da</strong>s e não pretendiam facilitar novos asilos. Odeputado José Aparecido de Oliveira e dois influentes jornalistasdo Rio intercederam junto à embaixa<strong>da</strong> do México e conseguiramsensibilizar o então embaixador mexicano Don VicenteSanches Gavito. Ele se prontificou a ajudá-lo, mas, só depois decondenado. Os jornais anunciavam o seu desaparecimento. Nodia 24/11/64, a manchete do jornal O Globo, <strong>da</strong>ndo como604 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>605


Desaparecido o ex-parlamentarSinval Bambirra,serviu como prova deque, se não o acolhessemnaqueles dias, voltariaà prisão, com oestado de saúde quevinha se agravando devidoàs torturas sofri<strong>da</strong>sno DOPS, no CPOR, no12 RI e no ID4 na 4ªRegião Militar de Juiz de Fora. Nesta última prisão, estivera namesma cela com o deputado Dazinho e o Padre Lage, com oqual se reencontrou ao entrar na embaixa<strong>da</strong> do México. O destinoreunira ain<strong>da</strong> nesse espaço o líder <strong>da</strong>s Ligas Camponesas, odeputado Francisco Julião. Os três foram para o México no dia31 de dezembro de 1965.Do México Sinval passou, já com a família, para a entãoRepública Democrática Alemã, onde, além do asilo, buscavatratamento médico. Ain<strong>da</strong> debilitado, mas já razoavelmente recuperado,ingressou na Escola Superior de Economia Política eEstudos Sociais. A bolsa de estudos, única fonte de ren<strong>da</strong> de quedispunha, era complementa<strong>da</strong> pelo trabalho <strong>da</strong> mulher na RádioBerlim Internacional, como locutora nos programas em on<strong>da</strong>scurtas dirigidos para Espanha e Portugal. As crianças permaneciamem colégios de semi-internato. Quando o filho caçulanasceu, Bambirra passou a dividir as tarefas com a esposa.Levava o bebê para a creche <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de onde estu<strong>da</strong>va desegun<strong>da</strong> a sexta-feira e isso permitiu a sua esposa estu<strong>da</strong>r naAcademia de Rádio e fazer o curso de idioma alemão à noite. Afamília só se encontrava aos sábados e domingos. Foram temposdifíceis, de muita angústia e solidão.Em abril de 1969, Sinval Bambirra ficou muito abaladocom a notícia do falecimento de sua mãe, D. Maria Rita. Nãopoderia vir ao Brasil <strong>da</strong>r o último adeus àquela que tanto amava.Sofreu muito. Demorou a se recuperar <strong>da</strong> depressão, que o acometeude novo.No exílio, nem mesmo a correspondência com amigos eparentes podia se realizar sem preocupação. As cartas eram censura<strong>da</strong>s.A música era o único elo possível à época. Chico Buarque,Caetano Veloso, Geraldo Vandré e tantos outros man<strong>da</strong>vamseu recado para quem estava sofrendo, longe de sua terra.E Sinval Bambirra mais uma vez deu a volta por cima.Aprendeu a conviver com as seqüelas e cicatrizes que teve decarregar pelo resto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, para nunca mais esquecer a violênciados anos de chumbo. Estudou e foi excelente aluno. Ganhouprêmios, me<strong>da</strong>lhas e cartas de elogios. Trabalhou na RádioBerlim Internacional e em vários jornais <strong>da</strong> Alemanha. Além deexercer a profissão de tradutor de artigos políticos, Bambirra representouem Berlim, de 1967 a 1979, o Partido ComunistaBrasileiro (PCB), por designação de Luís Carlos Prestes, que eranaquela época também exilado na antiga União Soviética e ocupavao cargo de secretário do PCB.E assim se passaram os anos no exílio, do outro lado domuro de Berlim, em plena guerra fria, quando havia o perigoiminente de eclodir a terceira guerra mundial. A tão sonha<strong>da</strong>anistia só chegou no final dos anos 70; a volta de SinvalBambirra com a família se deu em dezembro de 1979. O casalveio com o filho caçula berlinense já com 13 anos de i<strong>da</strong>de eque falava apenas o alemão. Os dois mais velhos, SinvalJúnior e Siomara Bambirra, tiveram que ficar mais algumtempo para concluir o curso pré-vestibular. A volta foi tãodolorosa quanto a saí<strong>da</strong>.De volta ao Brasil, Bambirra trouxe na bagagem a credencialdo jornal alemão para o qual trabalhava, tencionando continuarsendo seu correspondente. E de fato tentou trabalharcomo jornalista. Mas se envolvia 24 horas por dia com a política.Ajudou a criar o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e, emfunção disso, viajava pelo Estado inteiro. Adquiriu outras profissões,mas continuava se preocupando com os tecelões e seu606 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>607


sindicato, voltando a editar O Tear, o jornalzinho que criara nofinal dos anos 50.No ano de 2001, a Assembléia Legislativa de Minas Geraisdeclarou a reabilitação dos três deputados que foram cassadosinjustamente, pediram desculpas e concederam a Dazinho, Rianie Bambirra uma indenização. Projeto do deputado Durval Ângelo,do Partido dos Trabalhadores (PT), que obteve o apoio de seuspares e a sanção do então governador Itamar Franco. Com apensão equivalente ao subsídio mensal dos deputados,Bambirra, que lutava contra um câncer há mais de cinco anos,teve todo o tratamento médico possível, nos últimos dois anos.O ex-deputado Sinval Bambirra faleceu em 10 de dezembrode 2003. O último adeus dos parentes e amigos foi naAssembléia Legislativa de Minas Gerais, ao som <strong>da</strong>s músicasbrasileiras que ele mais apreciava, encerra<strong>da</strong> a despedi<strong>da</strong> com oHino <strong>da</strong> Internacional.(Condensado a partir de texto de autoria de Maria AuxiliadoraBambirra)PRAÇA SINVAL BAMBIRRA608 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>609


Sônia Maria de Moraes AngelJonesSônia Maria de Moraes AngelJones nasceu no dia 9 de novembro de1946 em Santiago do Boqueirão, RioGrande do Sul, filha do Coronel doExército João Luiz Moraes e de sua mulher,Cléa Lopes Moraes. Tinha uma irmã,Ângela.Começou sua militância no movimentoestu<strong>da</strong>ntil, quando cursava aFacul<strong>da</strong>de de Ciências Econômicas <strong>da</strong>Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de Janeiro(UFRJ). Filiou-se ao MovimentoRevolucionário 8 de Outubro (MR-8),organização de esquer<strong>da</strong> que combatia a ditadura militar principalmenteatravés <strong>da</strong> luta arma<strong>da</strong>. A organização consolidou-sena déca<strong>da</strong> de 70, fortalecendo seu nome, que lembrava a mortede Che Guevara, ocorri<strong>da</strong> em 8 de outubro de 1967. Um dos líderesdo MR-8 foi o Capitão Lamarca, morto em 1971.No dia 1 º de maio de 1969, último ano de seu cursouniversitário, Sônia foi presa na Praça Tiradentes, no centro doRio de Janeiro, quando se preparava, com alguns companheiros,para um trabalho de panfletagem junto a algumas fábricas. Permaneceupresa durante quatro meses, sendo absolvi<strong>da</strong>, por unanimi<strong>da</strong>de,em julgamento realizado pelo Conselho de Justiça <strong>da</strong>1ª Auditoria do Exército. Após sair <strong>da</strong> prisão, Sônia e o marido,Stuart Edgar Angel Jones, também militante no MR-8, passarama viver na clandestini<strong>da</strong>de.Em 1970, ela exilou-se em Paris, onde permaneceu até oinício de 1971, trabalhando para sua organização, estu<strong>da</strong>ndoEconomia na Universi<strong>da</strong>de de Vincennes e <strong>da</strong>ndo aulas de portuguêsna Escola de Idiomas Berlitz. De Paris foi para Santiago,no Chile, onde ficou até o início de 1973, quando regressou aoBrasil clandestinamente, já filia<strong>da</strong> à Ação Libertadora Nacional(ALN).Foi presa novamente no dia 30 de novembro de 1973, juntocom seu companheiro Antônio Carlos Bicalho Lana, um dos dirigentes<strong>da</strong> ALN, quando iam de São Vicente para São Paulo. Encaminhadospara um centro de tortura e assassinato mantidopelo Destacamento de Operações de Informações do Centro deOperações de Defesa Interna (DOI/CODI) de São Paulo, foramtorturados, assassinados no mesmo dia e enterrados noCemitério Dom Bosco, em Perus, São Paulo. Ele, sob o próprionome; ela, sob o pseudônimo que usava na época, Esmeral<strong>da</strong>Siqueira Aguiar.Durante muitos anos, a família de Sônia tentou, incansavelmente,a apuração de sua morte e buscou seus restos mortais.Seus pais, Cléa e João Luiz, integravam no Rio de Janeiro ogrupo Tortura Nunca Mais, criado em 1985, com o objetivo deapurar as mortes e os desaparecimentosdos prisioneiros políticose de denunciar os responsáveispelas bárbaras torturas sofri<strong>da</strong>spor eles.Em 1991, com a descoberta,no Cemitério de Perus, <strong>da</strong>s ossa<strong>da</strong>sde dezenas de militantesconsiderados desaparecidos, afamília pôde, finalmente, enterraros restos mortais de Sônia: odia era 12 de agosto e o local, oCemitério Jardim <strong>da</strong> Sau<strong>da</strong>de, noRio de Janeiro.610 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>611


Stuart Edgar Angel JonesStuart Edgar Angel Jones nasceu emSalvador, Bahia, no dia 11 de janeiro de1945, "justo na hora em que estavam lavandoas esca<strong>da</strong>rias <strong>da</strong> Igreja do Senhor doBonfim". Era filho de Zuzu Angel, mineirade Curvelo, e de Norman Angel Jones,ci<strong>da</strong>dão americano."Louro, amassadinho e vermelho",nas palavras de sua mãe, Stuart ou Tuti,como era chamado, foi criado no Rio de Janeiro,num apartamento térreo, de doisquartos e com um grande quintal. No quarto,que dividia com as irmãs Ana Cristina eHildegard, funcionava um improvisado atelier de alta costura <strong>da</strong>estilista Zuzu Angel.Freqüentou os melhores colégios, fez todos os cursos epraticou todos os esportes que desejou: tênis, natação, capoeira,remo, levantamento de peso. Ele queria ficar musculoso, tinhaessa preocupação quando adolescente. Foi sócio do Caiçaras,um clube de Ipanema.O Tuti foi um menino bom, estudioso. Uma doçura de pessoa!Estava sempre pedindo perdão por tudo em suas cartinhas,cartões de aniversário ou de dia <strong>da</strong>s mães. Quando se tornouestu<strong>da</strong>nte de Economia e militante político, demonstrava umacaracterística comum a todos os jovens revolucionários: umacalma, um autocontrole que raramente deixavam transparecer atensão interior. Era uma figura serena e, vez por outra, um jeitodos lábios ou de olhar revelava uma amargura fugaz. Conti<strong>da</strong>, a612 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>613


afetivi<strong>da</strong>de aflorava sob forma de umadelicadeza muito grande nos gestos, nosorriso límpido e, ao mesmo tempo, grave.A postura meio tími<strong>da</strong>, não escondia afirmeza e o desprendimento do seu espírito,incapaz de proferir afirmações ou fazerprofissões de fé desnecessárias.Numa cerimônia simples, na casa<strong>da</strong> noiva, Stuart casou-se com SôniaMaria Lopes Moraes. Após viajar para Petrópolis,foi morar no bairro <strong>da</strong> Tijuca, noRio de Janeiro.Stuart Edgar Angel Jones, codinome Paulo, militante doMovimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), tinha duplaci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia: era ci<strong>da</strong>dão americano e brasileiro. Entrou para aclandestini<strong>da</strong>de logo depois do seu casamento.Seu desaparecimento, durante o governo do GeneralMédici, foi um dos fatos políticos brasileiros de maior repercussãointernacional, <strong>da</strong><strong>da</strong>s as circunstâncias e o envolvimentode conheci<strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des nas dependências do Centro deInformações e Segurança <strong>da</strong> Aeronáutica (CISA), na Base Aéreado Galeão, no Rio de Janeiro. No jargão de alguns oficiais ligadosaos órgãos de repressão, foi "um trabalho malfeito". Suamorte foi reconta<strong>da</strong> por seus próprios companheiros de militânciapolítica.A grande repercussão <strong>da</strong>morte de Stuart Edgar Angel Jonesdeveu-se às denúncias do poeta,amigo e companheiro de militânciapolítica Alex Polari de Alverga, quefoi testemunha do brutal assassinato.Após ser torturado e já com a peleesfola<strong>da</strong>, Stuart foi amarrado na traseirade um jipe oficial <strong>da</strong>Aeronáutica com a boca cola<strong>da</strong> nocano de descarga e arrastado de um lado para o outro. Morreuasfixiado e intoxicado pelo monóxido de carbono na madruga<strong>da</strong>do dia 15 de maio de 1971, no CISA, na Base Aérea do Galeão.Sua mãe, Zuzu Angel, foi a responsável pelas inúmerascartas envia<strong>da</strong>s às autori<strong>da</strong>des brasileiras, civis e militares epara enti<strong>da</strong>des do exterior, relatando a prisão e morte de seufilho. Essas denúncias foram reforça<strong>da</strong>s após a inclusão doepisódio no livro Os Governos Militares - 1969/1974, do historiadorHélio Silva.Sônia, sua esposa, foi para Paris, pouco depois de ser presa,e acabou voltando para o Brasil, via Chile, após a morte de Stuart.Foi morta durante uma operação militar, em São Paulo.614 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>615


Sylvio de VasconcellosSylvio de Vasconcellos nasceu em Belo Horizonte, MinasGerais, no dia 14 de outubro de 1916, filho de Salomão deVasconcellos e Branca de Vasconcellos, numa família liga<strong>da</strong> àhistória de Minas, <strong>da</strong> qual fazia parte o historiador Diogo deVasconcellos.Em 1944, formou-se em Arquitetura pela Escola deArquitetura <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (UFMG) e,quatro anos depois, ingressou na mesma Escola, como professor,onde concluiu, em 1952, com me<strong>da</strong>lha de ouro, o curso deUrbanismo.Em 1953, passou a ser professor catedrático, através deconcurso, apresentando uma tese sobre a arquitetura residencialde Ouro Preto, tema sobre o qual possuía grandes conhecimentos,pois, desde 1939, ocupava a direção do setor de Minas Geraisdo então Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.Arquiteto, historiador, crítico de arte e de futebol, professoruniversitário, desenhista, escritor, Sylvio de Vasconcellosescreveu sobre arquitetura brasileira e arte colonial. Teve artigospublicados em diversas revistas e livros, entre os quais destacam-se:Vila Rica, Arquitetura no Brasil, Pintura Mineira, ArquiteturaColonial Mineira, Capela Nossa Senhora do Ó de Sabará,Formação <strong>da</strong>s Ci<strong>da</strong>des nas Regiões Auríferas Mineiras,Construções Coloniais em Minas Gerais, Vocabulário Arquitetônico,Mineiri<strong>da</strong>de, Minas: Ci<strong>da</strong>des Barrocas, Consideraçõessobre a Arte Brasileira Contemporânea, Arquitetura: Dois Estudose Vi<strong>da</strong> e Obra de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Foitambém cronista do jornal Estado de Minas, para o qualescreveu durante anos seguidos.616 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>617


Como arquiteto, fez inúmeros projetos de residências e deprédios de diversas finali<strong>da</strong>des, como o <strong>da</strong> capela do ColégioIsabela Hendrix, o <strong>da</strong> sede do Instituto Cultural Brasil-EstadosUnidos, o do Diretório Central dos Estu<strong>da</strong>ntes (DCE) <strong>da</strong> UFMG.Também é <strong>da</strong> autoria dele o projeto do monumento aAleijadinho, erguido em frente à reitoria <strong>da</strong> UFMG, no CampusUniversitário <strong>da</strong> Pampulha.Em 1964, quando diretor <strong>da</strong> Escola de Arquitetura, diretorCultural do ICBEU e diretor do Automóvel Clube de BeloHorizonte, foi preso pelo regime militar. Posto em liber<strong>da</strong>de, foiviver no Chile e na França, onde trabalhou no escritório doarquiteto Bernard Granet. Anos mais tarde, retornou ao Brasil eassumiu suas antigas funções, até que foi aposentado, compulsoriamente,pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5). Partiu em 1969para os Estados Unidos e fixou residência definitiva emWashington.A partir de então, realizou várias pesquisas em Portugal,México e Estados Unidos, através <strong>da</strong>s bolsas de estudo que ganhou,sucessivamente, <strong>da</strong>s Fun<strong>da</strong>ções Gulbenkian, Guggenheime do Fundo Nacional para o Desenvolvimento <strong>da</strong>s Artes, dogoverno mexicano. Para este último, desenvolveu um projeto depesquisa sobre documentos mineiros do século XVIII, trabalhoque não chegou a ser concluído.Casado com Gertrudes de Vasconcellos, D. Kate, tinha trêsfilhas: Andréa, Cláudia e Sílvia. Faleceu em Washington, no dia14 de março de 1979, tendo sido enterrado em Belo Horizonte.Dele falou o amigo Otto Lara Rezende: "Perseguido, <strong>da</strong>docomo indigno por ser mineiro, Sylvio de Vasconcellos estará sempreredivivo em suas obras literárias. Esta glória ninguém lhecassa. Esta força ninguém lhe tira. Sylvio de Vasconcellos podeviver sem Minas; mas Minas não pode viver sem SylvioVasconcellos".Monumento a Aleijadinho erguido em frente à reitoria <strong>da</strong> UFMG, noCampus Universitário <strong>da</strong> Pampulha618 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>619


Therezinha Viana de AssisTherezinha Viana de Assis nasceu em Aracaju, Sergipe,no dia 22 de julho de 1941, filha do empresário Antônio Verianode Assis e Edith Vianna de Assis. Teve seis irmãos: José,Maria Lúcia, Antônio Fernandes, Selma, Célia e Celso Vianade Assis.Fez seus estudos na ci<strong>da</strong>de natal, concluindo o curso deEconomia na Universi<strong>da</strong>de Federal de Sergipe (UFSE). Funcionária<strong>da</strong> Caixa Econômica Federal, mudou-se para Belo Horizonte,onde fez outros cursos e começou a militar na AçãoPopular (AP) e outras organizações de esquer<strong>da</strong>.Foi presa e tortura<strong>da</strong> em Belo Horizonte entre os anos de1968 e 1972. Ao ser liberta<strong>da</strong>, temeu ser alcança<strong>da</strong> por novasprisões, vindo a exilar-se no Chile no início de 1973. Lá fez cursode pós-graduação pela Universi<strong>da</strong>de de Santiago. Em setembrode 1973, com o golpe de Estado no Chile e a derruba<strong>da</strong> e mortedo então presidente Salvador Allende, ela foi acolhi<strong>da</strong> nacondição de asila<strong>da</strong> política pelo governo <strong>da</strong> Holan<strong>da</strong>.Em fevereiro de 1974, ela chegava à Holan<strong>da</strong>. Inicialmenteresidiu em Roter<strong>da</strong>m e, posteriormente, em Amster<strong>da</strong>m, onde seestabeleceu até sua morte. Em Amster<strong>da</strong>m ela se a<strong>da</strong>ptou muitobem e escrevia freqüentemente para os familiares mostrandosua alegria e satisfação. Sucesso nos estudos, satisfeita com aci<strong>da</strong>de e com o trabalho que realizava na Prefeitura local na áreade planejamento. Estava feliz, apesar de se encontrar nacondição de asila<strong>da</strong>. Ela dizia ser uma asila<strong>da</strong> privilegia<strong>da</strong> porter conseguido um emprego. Os seus superiores na Prefeituraestavam satisfeitos com o trabalho apresentado. Tudo transcorriamuito bem e Therezinha aproveitava as folgas para conhecer620 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>621


outros países <strong>da</strong> Europa. Em Amster<strong>da</strong>m, ela prosseguiu os estudos,chegando a doutorar-se em Economia.Em meados de 1977, nas férias de verão, ela decidiu conhecerpaíses <strong>da</strong> Europa Oriental, e de ca<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, de ca<strong>da</strong> paíspor onde passava, escrevia cartas e enviava fotos, postais paraos familiares.Mas tinha algo que a inquietava... Ela chegou a falar sobreisso em algumas correspondências, onde escreveu: "É que emca<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de na qual chegava, sempre avistava quatro pessoas,sempre as mesmas, <strong>da</strong>ndo a entender que estavam me perseguindo".Ela começou a ficar com medo. De volta <strong>da</strong> viagem, emAmster<strong>da</strong>m, ela encontrou seu apartamento totalmente remexido,desarrumado, sinalizando que alguém havia penetrado noambiente à procura de alguma coisa que ela mesma não saberiaidentificar. Pediu informações para algumas pessoas e ninguémsoube esclarecer.Esses fatos passaram a ocorrer de forma freqüente. Umcompanheiro, também exilado, pediu que ela tivesse muitocui<strong>da</strong>do, porque ele soubera que policiais brasileiros e chilenosestavam vigiando, perseguindo exilados em diversos países,inclusive na Holan<strong>da</strong>. O medo tomou conta e Therezinha pediuaos familiares que não man<strong>da</strong>ssem cartas e nem telefonassem,pois as correspondências estavam sendo viola<strong>da</strong>s e o telefonegrampeado. Assim que pudesse, prometeu ela, restabeleceria ocontato. Mas isso não aconteceu. Therezinha não deu mais notícias,deixando a família preocupa<strong>da</strong> e apreensiva.No início de fevereiro de 1978, o irmão mais velho recebeua notícia <strong>da</strong> sua morte, com informações confusas. Ela haviasido encontra<strong>da</strong> agonizando, quase morta, sobre a calça<strong>da</strong> doedifício onde residia. Foi leva<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> com vi<strong>da</strong> para o hospitalAcademische Ziekenhuis <strong>da</strong> Vrije Universiter, onde foi opera<strong>da</strong>,mas não resistiu. A que<strong>da</strong> do sétimo an<strong>da</strong>r causou-lhe fratura decostelas e uma grande hemorragia no baço.A morte foi considera<strong>da</strong> suicídio, o que foi rechaçado pelosfamiliares que disseram que jamais Therezinha se suici<strong>da</strong>ria,primeiro porque tinha uma formação religiosa muito sóli<strong>da</strong> esegundo porque estava muito feliz: gostava do emprego e <strong>da</strong>sativi<strong>da</strong>des desenvolvi<strong>da</strong>s no trabalho, tinha sucesso nos estudos,conhecia outros países e culturas.Therezinha desejava ver um Brasil melhor, do ponto de vistaeconômico, social e político: esse o seu sonho, esse o seu crime.622 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>623


Tito de Alencar Lima - Frei TitoTHEREZINHA VIANATito de Alencar Lima, o Frei Tito, filhocaçula de Idelfonso Rodrigues Lima e IsauraAlencar Lima, nasceu em Fortaleza, Ceará,em 14 de setembro de 1945.Freqüentou o Colégio dos Jesuítas deFortaleza e foi coordenador <strong>da</strong> Ação CatólicaEstu<strong>da</strong>ntil no nordeste do País. Estudou Filosofiana Universi<strong>da</strong>de de São Paulo (USP) efoi ordenado sacerdote em 10 de fevereiro de1967.Foi preso em 1968 sob a acusação deter alugado, em Ibiúna, São Paulo, o sítio ondese realizou o mais famoso congresso <strong>da</strong> União Nacional dosEstu<strong>da</strong>ntes (UNE). No dia 4 de novembro de 1969, no Conventodos Dominicanos, junto com mais sete religiosos, foi preso novamente,pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, no mesmo dia <strong>da</strong>morte de Carlos Marighella, sob a acusação de envolvimento coma Ação Libertadora Nacional (ALN). Os dois fatos permitiram adeflagração de uma ampla campanha contra a Igreja Católicaconheci<strong>da</strong> como Batina Branca, com os objetivos de desmoralizá-lapor trair a Fé e por trair Carlos Marighella.Frei Tito de Alencar Lima foi barbaramente torturado noDepartamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS/SP),durante 40 dias, pela equipe de Fleury, sendo transferido para oPresídio Tiradentes, em São Paulo, onde permaneceu até 17 dedezembro de 1970. Nesse dia, foi transferido pela OperaçãoBandeirantes para o Destacamento de Operações de Informaçõesdo Centro de Defesa de Operações Internas (DOI/CODI) deSão Paulo, onde conheceu a sucursal do inferno. Foi violenta-624 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>625


mente torturado durante dois dias: pendurado no pau-de-arara,recebeu choques elétricos na cabeça, tendões dos pés, órgãosgenitais, pés, mãos, ouvidos. Esteve sujeito a socos, paula<strong>da</strong>s,palmatórias, queimaduras. To<strong>da</strong> a tortura foi acompanha<strong>da</strong> deameaças e insultos, inclusive foi-lhe aplicado um fio elétrico quelhe arrebentou a boca, impedindo-o de falar. Depois de uma noitede tortura no pau-de-arara, foi levado para a cela no dia 20 defevereiro de 1970. Tentou, então, o suicídio com uma gilete, sendoconduzido às pressas para o Hospital do Cambuci, onde ficouuma semana em tratamento médico.Denunciou todo o seu sofrimento ao Provincial <strong>da</strong> OrdemDominicana no Brasil, ao Cardeal Arcebispo de São Paulo, D.Paulo Evaristo Arns, e ao Juiz Nelson Machado Guimarães, <strong>da</strong>Justiça Militar. Mesmo nesse período, sofreu tortura psicológicaconstante e foi condenado a um ano e seis meses de prisão.Foi banido para o Chile em 13 de janeiro de 1971, quandodo seqüestro do embaixador <strong>da</strong> Alemanha no Brasil. Viajou paraa Itália e depois para a França. Nesse País, permaneceu algumtempo na Capital, Paris, instalando-se depois na Comuni<strong>da</strong>deDominicana de Arbresle, perto de Lyon.Tentou, desespera<strong>da</strong>mente, lutar contra os crescentes tormentosde sua mente abala<strong>da</strong> pela tortura. No dia 7 de agosto de1974, Frei Tito foi encontrado enforcado em uma árvore. Em seutúmulo de terra junto ao Convento de Arbresle, em uma cruz demadeira, foi coloca<strong>da</strong> uma inscrição: "Frei <strong>da</strong>Província do Brasil. Encarcerado, torturado,banido, atormentado até a morte, por terproclamado o Evangelho, lutando pela liber<strong>da</strong>dede seus irmãos. TITO descansa emterra estrangeira".Em 1983, os restos mortais de Frei Tito deAlencar Lima foram trasla<strong>da</strong>dos de Parispara Fortaleza. O País, ao recebê-los, homenageou,de certa forma, não apenas aquelefilho que morrera ausente <strong>da</strong> pátria, mas to-<strong>da</strong> a comuni<strong>da</strong>de dos padres Dominicanos, que, reconheci<strong>da</strong>mente,envolveu-se em movimentos populares e sofreu, em conseqüência,grandes perseguições, tal como relatado em várioslivros, entre eles Batismo de Sangue e A Igreja <strong>da</strong>s Prisões, deautoria de Frei Betto, e A Igreja e a Política no Brasil, de MárcioMoreira Alves.626 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>627


Vinícius José Nogueira CaldeiraBrantVinícius José Nogueira Caldeira Brant, filho de NeusaNogueira Caldeira Brant e Leôni<strong>da</strong>s Vinícius Caldeira Brant,nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, no dia 23 de março de1941. Graduou-se em Sociologia e Política (1959/62) e AdministraçãoPública (1959/63) pela Facul<strong>da</strong>de de CiênciasEconômicas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (UFMG).Participou ativamente de movimentos sociais e políticos,tendo sido assessor de sindicatos operários e de associações debairro, além de ter participado <strong>da</strong> formação <strong>da</strong>s LigasCamponesas. Colaborou em diversos órgãos de imprensa local,com artigos, traduções e reportagens.Mudou-se para o Rio de Janeiro quando eleito presidente <strong>da</strong>União Nacional dos Estu<strong>da</strong>ntes (UNE), em julho de 1962. Suagestão (1962/63) deu continui<strong>da</strong>de à campanha pelareforma universitária e associou-se ao movimentomais geral pelas chama<strong>da</strong>s reformas de base, integrando-senuma corrente mais ampla que congregousindicatos, parlamentares nacionalistas, militaresprogressistas e outros segmentos de esquer<strong>da</strong>,constituindo em 1963 a Frente de MobilizaçãoPopular. Além de promover intensa participaçãopolítica dos estu<strong>da</strong>ntes, a UNE foi também um centrode efervescência cultural, contando com a participaçãode intelectuais e artistas no CentroPopular de Cultura e na Editora Universitária.Ain<strong>da</strong> em 1963, participou <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>Ação Popular (AP), organização política de natureza não-confes-628 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>629


sional, embora com predominância de militantes católicos, cujaorientação desde o início foi defini<strong>da</strong> como revolucionária deesquer<strong>da</strong>.Em fevereiro de 1964, viajou para a Europa e fixou-se emParis, onde fez cursos de pós-graduaçãona École Pratique des Hautes Études ecolaborou em pesquisas no CentroNacional de Le Recherche Scientifique(CNRS).Após o Golpe Militar no Brasil, quedepôs o presidente João Goulart, paralelamenteàs ativi<strong>da</strong>des acadêmicas em Paris, Vinícius passou aatuar em articulações de apoio internacional às ativi<strong>da</strong>des <strong>da</strong>resistência democrática brasileira. Entre outras, participou comoobservador convi<strong>da</strong>do do Seminário Afro-Asiático em Argel(1965) e como delegado <strong>da</strong> Conferência Tri-Continental (1966) e<strong>da</strong> Conferência <strong>da</strong> Organização Latino-Americana de Soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de(1967), essa última em Havana.Nos últimos anos <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 60, de volta ao Brasil, passoua atuar nos movimentos de resistência ao regime militar.Inicialmente reintegrou-se à AP, <strong>da</strong> qual se desligou algunsmeses depois, devido a divergências de orientação política. Em1968, participou <strong>da</strong> criação do Partido Revolucionário dos Trabalhadores(PRT). De setembro de 1970 a outubro de 1973, permaneceupreso no Rio de Janeiro e em São Paulo, por condenaçãodo Tribunal Militar. Foi mantido incomunicável por umtempo, medi<strong>da</strong> com que se pretendeu evitar que se vissem asmarcas de tortura a que havia sido submetido, muitas <strong>da</strong>s quaisficaram aparentes por muito tempo, outras para sempre. Emjaneiro de 1974, pouco depois <strong>da</strong> <strong>da</strong>ta em que foi libertado, passoua trabalhar, como sociólogo, no Centro Brasileiro de Análisee Planejamento (CEBRAP) inicialmente como pesquisador associadoe, em segui<strong>da</strong>, como coordenador.Vinícius José Nogueira Caldeira Brant faleceu em SãoPaulo, no dia 25 de maio de 1999.RUA VINÍCIUS CALDEIRA BRANT630 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>631


Virgílio Faustino SalomãoVirgílio Faustino Salomão nasceu na ci<strong>da</strong>de de TeófiloOtoni, Minas Gerais, no dia 15 de dezembro de 1918, filho doslavradores Manoel Faustino e Maria Moreira <strong>da</strong> Silva. Tinha 13irmãos. Nos estudos, completou apenas a primeira parte doEnsino Fun<strong>da</strong>mental, correspondente ao antigo curso primário.Casou-se com Tereza Dias Salomão e teve com ela oito filhos.Pai e esposo dedicado, nunca deixou faltar as coisas dentrodo seu lar.Foi sindicalista e militou no antigo Movimento DemocráticoBrasileiro (MDB), sempre lutando pelos direitos trabalhistas, principalmenteem prol de seus companheiros, trabalhadores <strong>da</strong> BelgoMineira. O envolvimento político não desgastaria o funcionáriojunto <strong>da</strong> empresa: com 20 anos de dedicação à Belgo, Virgílio foiagraciado com um relógio, prática adota<strong>da</strong> pela companhia paraprestigiar e homenagear os funcionários mais antigos <strong>da</strong> casa.De acordo com o relatório político <strong>da</strong> época, várias empresas,entre elas a Belgo Mineira e a Usiminas, depois do GolpeMilitar de 1964, passaram a perseguir lideranças sindicais, operáriose seus familiares. Perseguiram e torturaram centenas deles,dispensando-os do trabalho, com isto causando transtornosnas vi<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s famílias, que, na rua <strong>da</strong> amargura, passaram pormomentos difíceis. Alegavam que os sindicalistas eram comunistas.Assim foi que, ao visitar um colega que se encontravapreso, Virgílio recebeu voz de prisão na rua. Nesse período, ficoudetido na prisão de Rio Piracicaba. Ele era o único preso que discutiacom o Coronel Eustáquio durante os inquéritos. Dizia queo Coronel estava utilizando métodos de tortura para obrigar osfuncionários <strong>da</strong> Belgo a assinarem o documento de pedido dedispensa, sem direito a qualquer indenização.De fato, as autori<strong>da</strong>des policiais, coman<strong>da</strong><strong>da</strong>s peloCoronel, liam a mensagem <strong>da</strong> empresa, na qual constavam asseguintes recomen<strong>da</strong>ções: "To<strong>da</strong>s as pessoas que morassem emresidência de proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Belgo tinham que entregá-la noprazo de 48 horas. Nenhum operário dispensado podia residir emum raio inferior a 60 km <strong>da</strong> companhia. Todos os dispensadosque fossem detidos nas proximi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Belgo seriam encaminhadospara o presídio de Ilha Grande".Residindo em Nova Era, Minas Gerais, Virgílio Faustino foisurpreendido pelos militares, que exigiram sua presença na delegaciapara prestar esclarecimentos.Foi levado para o Departamento de Ordem Política e Social(DOPS) em Belo Horizonte e ficou incomunicável por várias semanas.Foi torturado, chegando em casa com vários ferimentose hematomas: olho roxo e inchado de socos; foi vítima de abusosexual por policiais que o colocaram de quatro e depois o humilharam,além de obrigá-lo a lavar carros vestido com short minúsculo,motivo de muita chacota. Foi submetido à tortura do pingod'água fria que gotejava em sua cabeça. Consta dos autos quechegaram à barbárie de alfinetar o seu órgão genital para quenão tivesse relações sexuais com a esposa.Virgílio respondeu a inquérito também, em Juiz de Fora,sendo absolvido em 1968. Em liber<strong>da</strong>de, candi<strong>da</strong>tou-se a umcargo eletivo, tornando-se um grande líder político na região,quando recebeu mais votos do que o candi<strong>da</strong>to a prefeito deJoão Monlevade.Faleceu no dia 9 de novembro de 1972, vítima de hemorragiacerebral.632 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>633


RUA VIRGÍLIO FAUSTINO SALOMÃO634 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>635


Waldemar <strong>da</strong>s Dores - MamárioWaldemar <strong>da</strong>s Dores, o Mamário, filho dos sitiantes JoséMaria <strong>da</strong>s Dores e Carmelita <strong>da</strong>s Dores, nasceu em Nova Lima,Minas Gerais, no dia 16 de fevereiro de 1915. Foi casado comSantina <strong>da</strong> Conceição Machado, com quem teve nove filhos:Cléria, Clair, Antônio, Catarina, Geraldo Abade, Carmelita, Lúcio,Mazinho e Jesus.Em 1963, foi eleito prefeito <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Barão de Cocais,Minas Gerais, man<strong>da</strong>to que cumpriria até 1967. Apesar deeleito diretamente pelo povo, em 1964 foi impedido de <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong>deao seu man<strong>da</strong>to, sob a alegação de que era comunistae de que se entregava à prática de atos subversivos. No dia 14de abril de 1964, foi preso e levado para a vizinha GovernadorVala<strong>da</strong>res, onde permaneceu preso durante três dias. Aoretornar à ci<strong>da</strong>de, a Câmara Municipalcassou-lhe o man<strong>da</strong>to e todosos seus direitos políticos.Afastado do cargo e sem recursos,vieram as dificul<strong>da</strong>des.Aqueles que administravama ci<strong>da</strong>de chegaram a cortarlheo crédito nos armazéns,pa<strong>da</strong>rias, farmácias. A família,com os muitos filhos pequenos,passou privações, além de sera todo instante vigia<strong>da</strong> e persegui<strong>da</strong>pelas polícias local, de GovernadorVala<strong>da</strong>res e de Belo Horizonte.Novamente, em maio de 1964,Mamário foi preso, sendo desta vez pelos agentes doDepartamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais(DOPS/MG), sem nenhuma alegação plausível. Foi levado paraBelo Horizonte, onde ficou incomunicável por três dias, sofrendointerrogatórios e torturas como os choques elétricos, que lhedeixaram irreversíveis seqüelas.A família teve também a residência invadi<strong>da</strong> por agentesque procuravam, em vão, livros de orientação comunista e armamentos.Ao cabo de tanto martírio e de to<strong>da</strong>s as tramitaçõesprocessuais no DOPS/MG, nenhuma prova contundente foi colhi<strong>da</strong>contra ele. Mamário foi então absolvido, restando-lhe osaldo <strong>da</strong>s injustiças e humilhações infun<strong>da</strong><strong>da</strong>s que sofrera juntamentecom sua família naquele ingrato período. Os traumaspsicológicos, o sofrimento físico, as dificul<strong>da</strong>des financeiras acabaramacarretando que ele viesse a contrair problemas cardíacose distúrbios mentais, os quais o levaram a várias internações,inclusive em hospitais psiquiátricos.Como esportista, foi um bom jogador de futebol e comolíder sindical foi presidente do Sindicato dos TrabalhadoresMetalúrgicos de Barão de Cocais por três man<strong>da</strong>tos. Em vi<strong>da</strong>,foi agraciado pela Câmara Municipal com o Título de Ci<strong>da</strong>dãoHonorário de Barão de Cocais. O título foi votado e assinadopelos vereadores de todos os partidos, numa demonstração deque se queria fazer justiça a um dos filhos mais honrados <strong>da</strong>terra, que dedicou sua vi<strong>da</strong> à causa pública, principalmente aoscarentes, desamparados e oprimidos.Waldemar <strong>da</strong>s Dores faleceu no dia 30 de setembro de1990.636 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>637


WALDEMAR DAS DORESWalkíria Afonso CostaWalkíria Afonso Costa nasceu emUberaba, Triângulo Mineiro, no dia 2 deagosto de 1947. Era filha de Edwin Costa,funcionário do Banco Comércio e Indústriade Minas Gerais, e de Odete Afonso Costa.Walkíria fez as quatro primeirasséries do Ensino Fun<strong>da</strong>mental na EscolaNormal de Patos de Minas, Minas Gerais,e as duas seguintes no Ginásio Rio Branco,em Bom Jesus do Itabapoana, Rio de Janeiro.Com a transferência de sua famíliapara Pirapora, onde seu pai continuava aservir ao Banco, Walkíria terminou o EnsinoFun<strong>da</strong>mental no Colégio Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento,estabelecimento dirigido por religiosas, o que muitoinfluiu na sua formação cristã. No período de 1963 a 1965, estudouno Colégio São João Batista, em Pirapora, onde terminou oEnsino Médio, na época, de formação de professoras. Walkíria foisempre aluna exemplar e ocupou os primeiros lugares de to<strong>da</strong>sas escolas por onde passou.Forma<strong>da</strong> professora, Wal, como era chama<strong>da</strong>, moça alegre,conhecedora de teoria musical e que cantava e tocavaacordeão e violão, lecionou em alguns grupos escolares <strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de onde morava. Em 1966, prestou concurso para o Estado efoi nomea<strong>da</strong> na primeira chama<strong>da</strong>, transferindo-se então paraBelo Horizonte, onde passou a lecionar.Ao trabalho Walkíria aliou a oportuni<strong>da</strong>de de continuar osestudos. Prestou o vestibular para o curso de Pe<strong>da</strong>gogia na638 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>639


Universi<strong>da</strong>de Federal de Minas Gerais (UFMG), classificando-seem segundo lugar. Mas freqüentou apenas os três primeiros anosdo curso. É que passara a tomar consciência dos problemaspolíticos e sociais do País e, em particular, dos <strong>da</strong> própria universi<strong>da</strong>de,vindo a engajar-se na luta política.Participou junto com outros colegas <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção doDiretório Acadêmico (DA) <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Educação, em 1968,sendo sua primeira vice-presidente. Hoje o DA leva o nome deDA Walkíria Afonso Costa, numa justa homenagem. Lutavam peladefesa de interesses estu<strong>da</strong>ntis e buscavam o caminho paradecisões e soluções de questões mais concretas como cortes deverbas, acordo MEC-USAID, fechamento de restaurantes universitários,Decreto-Lei 477, etc.As perseguições políticas começaram a se intensificar. Oisolamento do prédio <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Educação demonstrou umclaro desrespeito aos alunos e professores. Intimações para depoimentosno Departamento de Ordem Política e Social (DOPS),prisões, algumas já sob tortura, eram sinais nítidos do agravamento<strong>da</strong> situação política.Walkíria, até então, não havia sido indicia<strong>da</strong> em nenhuminquérito pelo DOPS ou por qualquer outro órgão de segurança.Já prevendo dificul<strong>da</strong>des futuras e maiores riscos de atuação,decidiu partir para outra frente de trabalho político: a luta juntoaos camponeses pobres <strong>da</strong> região do Araguaia. Foi quandoabandonou seus estudos universitários eseguiu com seu marido, I<strong>da</strong>lísio SoaresAranha Filho, ambos filiados ao PartidoComunista do Brasil (PC do B) para a região<strong>da</strong> Gameleira, no sul do Pará.Foi então que agentes <strong>da</strong> repressão(DOPS/MG) a procuraram em Belo Horizonte.A casa onde morara foi invadi<strong>da</strong> sob a alegaçãode envolvimento em reuniões estu<strong>da</strong>ntis.E, em julho de 1973, Walkíria foi julga<strong>da</strong> àrevelia pela Auditoria <strong>da</strong> 4ª Região Militar, emJuiz de Fora, tendo sido absolvi<strong>da</strong> por absoluta falta de provas.Mas Walkíria, Walk ou Wal, com seu marido, prosseguiadesenvolvendo no Pará seu trabalho de conscientização política.Fez parte do Destacamento B, coman<strong>da</strong>do por João Carlos HaasSobrinho, na locali<strong>da</strong>de de Faveira, participando <strong>da</strong> Guerrilha doAraguaia.As forças <strong>da</strong> repressão a alcançariam lá. No último ataque<strong>da</strong>s Forças Militares no Araguaia, em 25 de dezembro de 1973,Walkíria buscou refúgio na mata, onde permaneceu sozinha atéoutubro de 1974. Quando pedia comi<strong>da</strong> na casa de um companheiro,foi traí<strong>da</strong> pelo mesmo e leva<strong>da</strong> para a base de Xambioá.Man<strong>da</strong>ram furar um buraco de mais ou menos um metro de profundi<strong>da</strong>dee ali mesmo, à beira <strong>da</strong> cova, Walkíria foi executa<strong>da</strong>com três tiros no pescoço."Os mortos inimigos serão sepultados na selva, após identificação":esta recomen<strong>da</strong>ção está escrita em farto material <strong>da</strong>sForças Arma<strong>da</strong>s sobre a segun<strong>da</strong> fase <strong>da</strong> Guerrilha do Araguaiaem 1972, denomina<strong>da</strong> Operação Papagaio. Mas, no dia 14 demarço de 1996, quando foi entregue à família, por força <strong>da</strong> Lei nº9.140/95, o Atestado de Óbito de Walkíria registrava apenas: "foiencontra<strong>da</strong> morta, em local ignorado".Walkíria Afonso Costa, de muitas lembranças e tantas sau<strong>da</strong>des,alta, clara, cabelos castanhos e lisos, rosto ovalado,inteligente e leal, teve o seu nome <strong>da</strong>do a uma rua na ci<strong>da</strong>de dePirapora (projeto do vereador José Carlos Costa), a uma rua naci<strong>da</strong>de de Campinas e a uma terceira rua em Belo Horizonte(projeto do vereador Betinho Duarte). Em 2004, foi homenagea<strong>da</strong>post mortem com a Me<strong>da</strong>lha Chico Mendes, no Rio de Janeiro, ecom a Me<strong>da</strong>lha Tributo à <strong>Utopia</strong>, na Câmara Municipal de BeloHorizonte.640 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>641


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Walter de Souza RibeiroWalter de Souza Ribeiro, filho deBenedito Ribeiro e Maria Natalícia deSouza Ribeiro, nasceu em Teófilo Otoni,Minas Gerais, no dia 24 de setembro de1924. Irmão de Wan<strong>da</strong>, Walmira, Analice,Geraldo, Waldir e Conceição, casou-secom A<strong>da</strong>lcy Byrro Ribeiro, filha de umafamília de comerciantes em GovernadorVala<strong>da</strong>res e com ela teve três filhos:Marcos, Marina e Marcelo.Fez as quatro primeiras séries doEnsino Fun<strong>da</strong>mental numa escola públicade Teófilo Otoni, completando-as em Conceição do Mato Dentro.Sua família morava em Governador Vala<strong>da</strong>res, quando Waltersaiu de casa em busca de formação profissional: resolvera seroficial do Exército e entrou para o Curso Preparatório de Cadetes<strong>da</strong> Academia Militar <strong>da</strong>s Agulhas Negras. Pessoas que com eleconviveram e que o conheceram de perto descreveram-no comoencantador, inteligente, excelente amigo, fiel companheiro emuito bom pai.Foi reformado como Oficial do Exército pela Lei nº 1 .507- A, de 28/ 01/50, por incompatibili<strong>da</strong>de com o oficialato. Comoincompatibili<strong>da</strong>de, consideraram o fato de Walter ter assinadodocumento pela paz mundial, contra o uso de armas atômicas eo envio de tropas brasileiras para a guerra <strong>da</strong> Coréia.Walter desapareceu no dia 3 de abril de 1974, em SãoPaulo, e quando isto ocorreu, a primeira reação de A<strong>da</strong>lcy foipensar em acidente, mas, logo em segui<strong>da</strong>, concluiu que seu646 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>647


seqüestro e desaparecimento poderiam ter sido mais uma arbitrarie<strong>da</strong>de<strong>da</strong> polícia política implacável e violenta.A partir <strong>da</strong>í, a família começou extensa e sofri<strong>da</strong> peregrinaçãona tentativa de encontrar o esposo e pai. Marina, suafilha, procurou por ele, colocando anúncios nos jornais. Foramfeitos contatos com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e aConferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) de São Pauloque, através de D. Paulo Evaristo Arns, conseguiu uma audiênciapara 10 famílias de presos políticos com o General Golbery doCouto e Silva. O General Golbery prometeu a A<strong>da</strong>lcy que, noprazo máximo de um mês, <strong>da</strong>ria uma resposta sobre o paradeirode Walter, o que não aconteceu.A única reação do governo viria um pouco depois, deforma fulminante, quando, em fevereiro de 1975, o ministro <strong>da</strong>Justiça, Armando Falcão, em nota sobre os presos políticos,acusava Walter de subversivo e indigno para o oficialato.Informava, ain<strong>da</strong>, que havia contra ele um man<strong>da</strong>do de prisãoexpedido pela 2ª Auditoria <strong>da</strong> 2ª Comissão <strong>da</strong> Justiça Militar(CJM) em 1970, mas que ele se encontrava foragido.Indigna<strong>da</strong>, Al<strong>da</strong>cy manifestou-se. Protestou veementementecontra as calúnias e apresentou documentos que desmentiamo ministro, entre eles a certidão negativa que atestavaa boa conduta de seu marido expedi<strong>da</strong> pela 2ª Auditoriado Exército de São Paulo. Foram as seguintes, na época, assuas palavras: "A nota é caluniosa também quando diz quemeu marido foi expulso do Exército como indigno. Não existe,até agora, que seja do meu conhecimento e dos meus filhos,nenhuma expulsão e sim reforma pela Lei nº 1507-A, de28/01/50, por incompatibili<strong>da</strong>de para o oficialato. A reformade um oficial por incompatibili<strong>da</strong>de não significa indigni<strong>da</strong>de,conforme declarou o ministro Falcão. Nossa dor já erademasia<strong>da</strong>mente grande pelo dramático desaparecimento dochefe <strong>da</strong> nossa família para suportar ain<strong>da</strong> o peso <strong>da</strong>difamação que o ministro nos impôs através de to<strong>da</strong> aimprensa nacional".Para a família de Walter, seu desaparecimento, além derevolta e angústia, significou grandes privações, inclusive financeiras,uma vez que não podia, ao menos, receber o soldo a queo oficial tinha direito, pois não possuía atestado de óbito. Afamília de Walter jamais desistiu de encontrá-lo, continuandosua busca insistentemente através de advogados e <strong>da</strong> Comissãode Justiça e Paz <strong>da</strong> CNBB.De acordo com declarações do ex-Sargento Marival DiasChaves do Canto à revista Veja, edição de 18/11/92, Walter de SouzaRibeiro foi capturado pelo Destacamento de Operações deInformações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI)em São Paulo e levado para o Rio de Janeiro, onde foi assassinadoe esquartejado, sendo as partes de seu corpo enterra<strong>da</strong>s em lugaresdiferentes, para que o morto não viesse a ser identificado.Como o de outros tantos bravos militantes, o sangue deWalter de Souza Ribeiro coloriria, mais tarde, a aurora de democraciaque viria a se abrir no horizonte do Brasil.648 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>649


Zilah Souza SpósitoZilah Souza Spósito, filha de Henrique José de Souza eMaria <strong>da</strong> Conceição Figueiredo de Souza, nasceu em Bocaiúva,Minas Gerais, no dia 22 de abril de 1928. Era irmã de MariaCândi<strong>da</strong>, Wan<strong>da</strong>, Herbet (Betinho), Henrique (Henfil), Maria <strong>da</strong>Glória, Filomena e Francisco Mário (Chico Mário).Estudou em regime de internato no Colégio Santa Maria,em Belo Horizonte. Durante a déca<strong>da</strong> de 60, tornou-se militante<strong>da</strong> Ação Católica (AC), <strong>da</strong> qual foi uma <strong>da</strong>s fun<strong>da</strong>doras, tendosido posteriormente presidente <strong>da</strong> Juventude IndependenteCatólica (JIC). Sua percepção dos problemas sociais e seu engajamentonos movimentos políticos viriam a influenciar a formaçãopolítica dos irmãos.Em 1963, casou-se com Ordener Germano Spósito, comquem teve quatro filhos: Paulo Henrique,Tereza Cristina, Regina Lúcia eLuiz Fernando.Zilah fez carreira na ReceitaFederal, onde se aposentou como AuditoraFiscal do Tesouro Nacional em1988. Participou de vários trabalhos<strong>da</strong>s pastorais <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong>de Carmo-Sion, <strong>da</strong> Comissão de Direitos Humanos<strong>da</strong> Arquidiocese de Belo Horizonte,do Movimento Feminino pelaAnistia e <strong>da</strong> Frente de Defesa <strong>da</strong>Criança e do Adolescente.Faleceu em Belo Horizonte, deinfarto, no dia 19 de fevereiro de 1992.650 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>651


Zuleika Angel Jones - Zuzu AngelFilha de Pedro Netto e de FranciscaNetto, Zuleika ou Zuzu Angel Jones, mineirade Curvelo, nasceu em 5 de junho de 1923. Afamília, de classe média, mudou-se mais tardepara Belo Horizonte, onde Zuzu passou partede sua vi<strong>da</strong>.Uma mulher incomum, dota<strong>da</strong> do talentopeculiar de trazer brilho para as cores e poesiapara as coisas com as quais convivia e emque tocava. Ousa<strong>da</strong>, criativa, inovadora, antimilitarista, talentosa,corajosa, envolvente, charmosa, comovente e alegre: essesadjetivos definem a personali<strong>da</strong>de forte <strong>da</strong> estilista Zuzu Angel,que morreria numa quarta-feira, 17 de abril de 1976, numaSemana Santa. Como ela mesma dizia, todos os seus dias eramparte de uma via-crúcis, inicia<strong>da</strong> com o desaparecimento de seufilho Stuart.Zuzu Angel começou sua carreira como costureira e, maistarde, tornou-se designer, transformando panos de colchão,fitas de gorgurão, ren<strong>da</strong>s do norte, pedras preciosas, estampadosde pássaros e papagaios, babados e zuartes em saias,chales e vestidos maravilhosos, criando uma mo<strong>da</strong> brasileiracapaz de encantar o mundo. Usava tudo como recurso criativo,já que não dispunha de capital para comprar tecidos caros. Oanjo era a logomarca de sua confecção. Seu princípio era a liber<strong>da</strong>de.Criava uma mo<strong>da</strong> autêntica, a partir <strong>da</strong>s raízes de suavi<strong>da</strong> e <strong>da</strong>s suas ricas emoções. A natureza brasileira estava presenteem suas roupas, através <strong>da</strong>s flores, dos pássaros e <strong>da</strong>sborboletas.652 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>653


Depois, Zuzu passou a fazer - como elamesma classificaria - "a primeira coleção demo<strong>da</strong> política <strong>da</strong> história", usando estampascom silhuetas bélicas, pássarosengaiolados e balas de canhão dispara<strong>da</strong>scontra anjos. O anjo tornou-se o símbolo deTuti, o filho desaparecido nos tempos <strong>da</strong>ditadura militar brasileira. Sua mo<strong>da</strong> traziaanjos amor<strong>da</strong>çados, meninos aprisionados,sol atrás <strong>da</strong>s grades, jeeps e quepes.Mãe de Stuart, Hildegard e Ana Cristina,Zuzu Angel concentrou todos os seus esforços na procurade seu filho Stuart Edgar Angel Jones, estu<strong>da</strong>nte de Economiana Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desaparecidoe assassinado, antes de ser absolvido, no Centro de Informaçõese Segurança <strong>da</strong> Aeronáutica (CISA), no Galeão, Rio de Janeiro,em 14 de maio de 1971, aos 26 anos.A partir de então, Zuzu Angel tornou-se uma militantepolítica, agindo sempre no sentido de denunciar o desaparecimentodo filho. Passou a fazer contatos internacionais, mobilizandoa imprensa e o Senado norte-americano, batendo em to<strong>da</strong>sas portas, fazendo comícios em filas de bancos ou supermercados,onde encontrasse gente para escutá-Ia. Buscou, durantecinco anos, reaver o corpo de Stuart, cuja morte e prisão jamaisforam admiti<strong>da</strong>s pelos órgãos de segurança. Desencadeou umagrande batalha em que suas armas foram a firmeza, o atrevimento,a criativi<strong>da</strong>de, a audácia e até mesmo o bom humor. Paraalcançar seu objetivo, não tinha pudores, timidez ou acanhamento:peregrinava de casa em casa, procurava as pessoas influentes,mimeografava milhares de poesias sobre o Stuart e asenviava clandestinamente para o exterior, pelo correio. Alémdisso, preparava o dossiê Stuart.Nessa empreita<strong>da</strong>, soube tirar proveito de sua fama.Envolveu a favor <strong>da</strong> sua causa inúmeros clientes e amigosimportantes: Yolan<strong>da</strong> Costa e Silva, Joan Crawford, Kim Novak,Veruska, Liza Minelli, Jean Shrimpton, Margot Fonteyn, HenryKissinger, Ted Kennedy, Walter Mon<strong>da</strong>le, Frank Church e outros.Todos se mobilizaram de uma maneira ou de outra paraaju<strong>da</strong>r Zuzu, que estava sempre dizendo: "Eu não tenho coragem,coragem tinha meu filho. Eu tenho legitimi<strong>da</strong>de!".Zuzu Angel morreu no dia 17 de abril de 1976, num misteriosoacidente de carro até hoje sem explicação, assim como ficousem explicação a morte de seu filho. Seu carro caiu em umaribanceira de cinco metros de altura, quando retornava de umjantar na casa de uma amiga.Uma semana antes do acidente que a vitimou, Zuzu deixarana casa do amigo Chico Buarque um documento que deveriaser publicado caso algolhe acontecesse, como"um desastre deautomóvel", por exemplo.No texto ela atribuíaa responsabili<strong>da</strong>de doque pudesse lhe aconteceràs "mesmas pessoasque mataram meu filho".Sua postura diante<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sua força, suagarra inspiraram ChicoBuarque a compor emsua homenagem a cançãoAngélica, em que opoeta pergunta: "Quemé essa mulher?".654 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>655


Apêndice656 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>657


Uma PalavraEm 1994, quando <strong>da</strong> primeira edição do <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>, mais deuma personali<strong>da</strong>de e mais de um dos profissionais envolvidoscom a produção <strong>da</strong> obra manifestaram-se sobre ela, destacandouns a importância de se re-descobrir trecho tão sombrio <strong>da</strong>história, enfatizando outros o vasto campo de ensinamentos e deemoções nele contido.Tão significativas foram aquelas manifestações e tão caraselas continuam sendo para mim que as republico nesta segun<strong>da</strong>edição, tendo-as escolhido para <strong>da</strong>r a ela, sob a forma deum Apêndice, um muito especial fecho de ouro. Faço-as preceder<strong>da</strong> Ficha Técnica dos profissionais envolvidos na preparação<strong>da</strong> primeira edição do livro.Assim fazendo, trago para o nível pessoal a assertiva de querestam sempre vivas as sen<strong>da</strong>s construí<strong>da</strong>s com altruísmo, com generosi<strong>da</strong>dee com amor. Se valem para a dimensão coletiva, valemtambém para as páginas de nossa vi<strong>da</strong>, mesmo as mais modestas,aquelas argutas observações de Otávio Paz que asseguram que "adestruição <strong>da</strong> memória afeta não apenas o passado, como também ofuturo". Para ele e também para mim "a memória é a forma mais alta<strong>da</strong> imaginação humana, não é apenas a capaci<strong>da</strong>de automática derecor<strong>da</strong>r. Se a memória se dissolve, a homem se dissolve".O meu obrigado a todos.Belo Horizonte, 28 de agosto de 2004.Betinho DuartePresidente <strong>da</strong> Câmara Municipal de Belo Horizonte<strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>659


Ficha Técnica <strong>da</strong> 1ª EdiçãoMemória EssencialAlgumas marcas desaparecemoutras ficam por uns temposAquele gostoAquele cheiroAqueles gritos...Estes permanecemcalados lá dentrocolados numa memória essencialsem intervalos possíveisvale dizer, definitivos.Alex PolariÉ esta memória essencial que <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong> resgata hoje com aradicali<strong>da</strong>de que o tema merece. É esta memória essencial queestá sendo recupera<strong>da</strong> junto com a história dos militantes mortos,homens e mulheres que dedicaram suas vi<strong>da</strong>s à luta contraa opressão e ousaram acreditar no sonho de uma socie<strong>da</strong>de justae fraterna, sem exploradores e explorados.A categoria desaparecido político é eufemismo perversoque designa os companheiros e companheiras assassinados peladitadura militar, cuja morte jamais foi assumi<strong>da</strong>, cujos corposjamais foram entregues às respectivas famílias. Sabemos que amaioria foi morta sob tortura, muitos deles tiveram os corposmutilados e foram esquartejados para dificultar a identificação efacilitar a ocultação. Hoje repousam em valas clandestinas(como no Cemitério de Perus/SP), e no fundo de rios e do oceano.Conquistamos a anistia que, no entanto, não veio ampla, geral eirrestrita como queríamos. Ela foi parcial: os policiais e militaresassassinos e torturadores jamais foram punidos e freqüentementesão contemplados com cargos e promoções. O último660 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>661


general deixou o poder há quase dez anos e não houve sequer oesclarecimento <strong>da</strong> questão dos desaparecidos políticos.A barbárie, institucionaliza<strong>da</strong> pelos militares, sobreviveu àditadura através <strong>da</strong> certeza <strong>da</strong> impuni<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> permanência <strong>da</strong>tortura, <strong>da</strong> miséria e <strong>da</strong> fome endêmicas, do obscurantismopolítico, <strong>da</strong> corrupção e roubalheira generaliza<strong>da</strong>s, <strong>da</strong> dilaceração<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, <strong>da</strong> banalização <strong>da</strong> violência.Neste final de milênio, ao atingirmos a soleira <strong>da</strong> pós-barbárie,a generosi<strong>da</strong>de, o idealismo e o despojamento que marcamas histórias conta<strong>da</strong>s neste livro nos comovem e nos alertampara a necessi<strong>da</strong>de de continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> luta. É impossívelfalar de nossos mortos sem emoção: misturamos sempre tristeza,sau<strong>da</strong>de e perplexi<strong>da</strong>de. Perplexi<strong>da</strong>de necessária porque debelao risco <strong>da</strong> banalização tão presente neste País que literalmentefabrica o cinismo e a amnésia. Perplexi<strong>da</strong>de necessária, porquealimenta nossa capaci<strong>da</strong>de de indignação e fortalece nossoespírito de luta.<strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong> constitui, assim, a própria celebração <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> emantém aceso o princípio legado pelos companheiros e companheirasque figuram nas suas páginas: prosseguir no combatecontra to<strong>da</strong>s as formas de opressão.Hoje todos os brasileiros precisam ser anistiados e esteprocesso depende <strong>da</strong> recuperação <strong>da</strong> memória essencial que é otema central deste livro.Belo Horizonte, agosto de 1994Helena GrecoNão Chegou para TodosA Anistia foi uma conquista memorável do povo brasileirohá 15 anos. Através <strong>da</strong> Anistia milhares de brasileiros saíram <strong>da</strong>clandestini<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>s prisões, voltaram do exílio.Nunca engoli a anti-anistia aplica<strong>da</strong> aos que torturaram,mataram, esquartejaram, desapareceram com opositores políticosem nome <strong>da</strong> segurança nacional. Com certeza, este câncerque é a impuni<strong>da</strong>de tem tudo a ver com o perdão autoconcedidoaos criminosos do regime militar. Que tristeza nos dá ver um AdyrFiúza de Castro, um Curió, um Brilhante Ullstra, um Burnier -personagens sinistras - passeando sua impuni<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>ndo entrevistasem defesa <strong>da</strong> tortura.A Anistia não respondeu a outra injustiça que clama: osdesaparecidos políticos. Os patriotas seqüestrados e truci<strong>da</strong>dospelas forças de segurança.Os cinco brasileiros desaparecidos no Chile, após o golpede Pinochet, já foram reconhecidos pelo Estado Chileno comovítimas <strong>da</strong> violência política e <strong>da</strong> violação dos direitos humanose suas famílias, no Brasil, recebem pensão especial do governochileno. Vergonhosamente, os desaparecidos políticos brasileirosnão foram reconhecidos pelos governos democráticos deSarney, Collor e Itamar como vítimas do Terror de Estado. Puracovardia política!Também permanecem em situação de injustiça, milharesde trabalhadores demitidos e perseguidos no setor privado,assim como militares de baixas patentes e demitidos nas políciasmilitares por motivos políticos. Enquanto essas injustiçasclamorosas não forem resolvi<strong>da</strong>s, a luta continuará.Aos 15 anos de ANISTIA só posso louvar a iniciativa de<strong>da</strong>r nomes às ruas de Beagá aos militantes que tombaram na662 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>663


luta contra a ditadura ou que se foram. Memória é fun<strong>da</strong>mentalpara a construção <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia e <strong>da</strong> democracia. Não podemospermitir que seqüestrem e roubem a ver<strong>da</strong>de histórica sobreestes companheiros.Quando levamos os restos mortais de Arno Preis - resgatadosde um cemitério em Paraíso de Tocantins - para suaterra natal, Forquilhinha (SC), na ocasião, Derley de Lucca, expresapolítica, companheira de fé de Arno Preis, escreveu a ele aseguinte carta, lá para onde foram os brasileiros que doaramsuas vi<strong>da</strong>s pela nossa liber<strong>da</strong>de:Caro Arno:Carta aberta ao Arno PreisCriciúma, 29 de abril de 1994.Você não ia acreditar, mas Nelson Mandela é o favorito naseleições presidenciais <strong>da</strong> África do Sul. Acusado de terrorista,subversivo, como tu, cumpriu 27 anos de cadeia.Isaak Shamir, acusado de terrorista e subversivo pelosingleses é o primeiro-ministro em Israel.Yasser Arafat, o líder <strong>da</strong> OLP, acusado de terrorista e subversivo,foi recebido pelo presidente dos Estados Unidos em dezembrodo ano passado e é recebido na ONU como chefe de Estado.Forquilhinha já é município e está orgulhosa de ti. Lurdes,Zil<strong>da</strong>, tias, sobrinhas e primas estão mobilizando a ci<strong>da</strong>de parate levar flores.Existe um aparelhinho chamado fax. Em questão desegundos a gente se comunica com o mundo man<strong>da</strong>ndo documentos.Meu filho estu<strong>da</strong> automação na UFSC.Dulcinha, Amelinha e Susana estão tristes com a confirmaçãode tua morte, mas firmes, organizando as homenagens.O Ivo Sooma foi heróico. Realmente quem tem um amigotem um tesouro. Ivo é o teu tesouro.Nilmário, Genoíno, Zé Dirceu são deputados federais.Brizola é governador do Rio. Tem um operário do ABC candi<strong>da</strong>toa presidente <strong>da</strong> República.Betinho não defende mais a luta arma<strong>da</strong> mas dirige umacampanha lin<strong>da</strong> contra a fome e a miséria. Mobilizou todo o país.Tu fazes muita falta. Serias nosso ministro <strong>da</strong>s RelaçõesExteriores brilhante, defendendo posições do Brasil no mundo. Iaesquecendo: o Brasil já reatou relações diplomáticas com Cuba.Eu já voltei lá algumas vezes com passaporte e tudo, legalmente.A gente não diz "turma", diz "galera".Fumar não é mais mo<strong>da</strong>, é cafona, coisa de Boko Moko.Na<strong>da</strong> melhor que um dia depois do outro.Seja feliz no céu protegendo a nossa terra. Aqui tu nãoserás esquecido.DerleyBrasília, agosto de 1994Nilmário Miran<strong>da</strong>, deputado federal pelo PT e Presidente <strong>da</strong>Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos <strong>da</strong> CâmaraFederal.664 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>665


Há EsperançaAo escrever este texto, perguntei à filha de um companheiro,ex- exilado, às vésperas de comemorar seus 15 anos, oque significava a Anistia. E ela respondeu, simplesmente: "A libertaçãoe a volta dos exilados políticos. Mas, no meu caso, representoutambém a possibili<strong>da</strong>de de ter nascido no Brasil".Para nós, esta menina representa a possibili<strong>da</strong>de de tê-Iavisto tão irradiante em sua indignação, precocemente trajando oluto, a cara pinta<strong>da</strong> de verde e amarelo e, com tantos outros desua geração, sair pra luta, sair pras ruas, <strong>da</strong>ndo um novo fôlegoe alento em prol <strong>da</strong> Anistia definitiva: a Anistia para o nossopovo!O nosso povo, apartado dos direitos mínimos de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia,torturado pela fome e pela miséria, preso nas garras de umasocie<strong>da</strong>de injusta que o marginaliza e tenta mantê-lo exilado emsi mesmo. Uma socie<strong>da</strong>de que quer mantê-lo fora de cena, comosolitário espectador de uma história onde ele possa apenas conformaro gigantesco exército dos despossuídos, dos sem na<strong>da</strong>.Banido e desterrado, condenado à sua própria sorte. Mas háesperança!1994, 15 anos, aí está o Herbert de Souza, o Betinho, profetacontemporâneo de um novo ciclo para este País. Aí está ele,desafiando a vi<strong>da</strong>, aquela que ele tantas vezes arriscou, nos<strong>da</strong>ndo o exemplo maior de que as irreverências mil não foraminúteis. De que a dor pungente dos tantos que entregaram suasvi<strong>da</strong>s, percorrendo a longa e obscura noite do Brasil não foi e nãoserá nunca inutilmente. Sonhamos, lutamos, choramos, mas aíestão de volta os irmãos do Henfil.Aqui estamos nós, os loucos, os indignados, os que embarcamosnos rabos de foguete, os que acreditamos na vi<strong>da</strong>, os quevislumbramos na noite desse país, a lua e as estrelas. Aqui estamosnós reverenciando aqueles que se foram, e não puderamsentir o forte abraço do regresso; os que se foram e nem sequersabemos para onde; e os que não puderam suportar o exílio emsua própria pátria. Os que permanecem vivos em nossamemória, falando à nossa consciência que a luta continua, ain<strong>da</strong>que em alguns passos dessa linha possa- mos, como eles, nosmachucar.E nessa luta é indispensável reverenciar também, deforma muito especial, com o maior respeito e gratidão possível,os que dedicaram e estão dedicando suas vi<strong>da</strong>s a resgatar essaparte sofri<strong>da</strong> de nossa memória. Abnega<strong>da</strong> e obstina<strong>da</strong> tarefa deexpor a chaga de tantas feri<strong>da</strong>s, conviver com tantas lágrimas, emanter acesa a chama <strong>da</strong> libertação - como disse a menina - edo regresso. Manter viva a acesa, nas ruas e nas praças, poronde hoje uma nova geração caminha, a dimensão de um belohorizonte. O horizonte dos sonhos compartilhados, <strong>da</strong> utopia <strong>da</strong>qual não se abre mão, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que se quer resgatar.A vi<strong>da</strong> perpetua<strong>da</strong> na batalha persistente de nossas mulheres:mães, irmãs, esposas. Bravas, sofri<strong>da</strong>s e vitoriosas guerreiras,mulheres do Brasil. Nossas Helenas, exemplos em quemnos espelhar. A elas o país deve página por página desse capítuloem sua história: a história <strong>da</strong> luta pela Anistia. A elas devemostodos, os que clamamos pela justiça e libertação de nosso povo.Belo Horizonte, agosto de 1994Patrus Ananias de Sousa, Prefeito de Belo Horizonte666 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>667


Contra a Espoliação <strong>da</strong>sLembranças<strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong> foi concebido como parte do esforço coletivo deluta contra um dos mais cruéis exercício <strong>da</strong> opressão: a espoliação<strong>da</strong>s lembranças, como enuncia a frase lapi<strong>da</strong>r de Ecléa Bosi.Trata-se de simples levantamento e compilação de <strong>da</strong>dos,vivências e experiências que acabam contando uma parte terrível<strong>da</strong> nossa história. Gostaríamos de alertar que não se trata deum projeto acabado, mas em construção: a coleta de <strong>da</strong>dos foidifícil, a documentação é falha. Não temos ain<strong>da</strong> acesso aosarquivos <strong>da</strong> repressão, fonte importantíssima para este tipo detrabalho.Em momento algum houve a pretensão de elaborar umaobra acadêmica. De resto, não saberíamos manter o distanciamentoexigido pelo rigor científico: devemos confessar que foicom muita emoção e envolvimento que nos desincumbimos <strong>da</strong>tarefa de organizar as informações conti<strong>da</strong>s neste livro. Tivemosque reviver e fazer reviver os sofrimentos <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s definitivase dos trabalhos de luto que considerávamos concluídos. Nossaindignação revigora<strong>da</strong> temperou e compensou este lado penosoinevitável.Afinal de contas, contamos as histórias de nossos mortosqueridos, muitos deles amigos queridos, com os quais compartilhamossonhos, esperanças, projetos e também equívocos econtradições.Os homens e mulheres presentes nestas páginas foramforjados na resistência contra a ditadura militar, que durou 21anos no Brasil (1964/1985). São jovens, em sua maioria, ansiosospor romper com o estreito individualismo de sua origempequeno-burguesa e abraçar a utopia coletiva, internacionalistae revolucionária, ao lado "dos trabalhadores e do povo". Suas característicascomuns são a generosi<strong>da</strong>de, o desprendimento, boadose de humanitarismo cristão, alguma confusão e muito voluntarismo.Levaram às máximas conseqüências a luta contra aopressão: alguns chegaram a pegar em armas para combater aditadura que a ferro e a fogo impunha a miséria, a fome, aexclusão social, a impuni<strong>da</strong>de, a corrupção e a violência. Oregime de 64 endureceu ain<strong>da</strong> mais em 68, com o AtoInstitucional n° 5: to<strong>da</strong>s as estruturas do Estado se militarizaram.Foi construído um sistema de repressão e controle tentacularque amor<strong>da</strong>çou a socie<strong>da</strong>de. A tortura foi eleva<strong>da</strong> àcondição de instrumento rotineiro de investigação e como talcontinua até hoje. Milhares de brasileiras e brasileiros foramperseguidos, cassados, presos, exilados, banidos, mortos e mutilados.Os mortos e "desaparecidos políticos", cuja situação atéhoje não foi esclareci<strong>da</strong>, dão a medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> feroci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>repressão que se abateu, então, sobre os opositores <strong>da</strong> ditadura.Contamos também a história de pessoas que sobreviverama esse período e vieram a falecer mais recentemente. Suas vi<strong>da</strong>stambém estão marca<strong>da</strong>s pela participação e pela militânciapolítica, pela combativi<strong>da</strong>de e pela disposição de lutar contra ainiqüi<strong>da</strong>de.A iniciativa de batizar as ruas de Belo Horizonte com osnomes destes valorosos companheiros e destas valorosascompanheiras, concretiza<strong>da</strong> pelos projetos de lei do vereadorBetinho Duarte e pelos decretos do prefeito Patrus Ananias, constituemintervenção significativa nestes 15 anos <strong>da</strong> lei deAnistia (1979/1994): a memória resgata<strong>da</strong> se apropria do espaço<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, que é também o espaço de exercício <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia,promovendo o que podemos considerar uma "reforma urbanasimbólica".Esta apropriação do espaço urbano deve mitigar um poucoa tristeza de familiares e amigos dos companheiros mortos, massobretudo incentivar a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> luta contra to<strong>da</strong>s as for-668 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>669


mas de opressão. As ruas de Belo Horizonte merecem o nome<strong>da</strong>queles que fizeram a sua história. História e memória são ascondições fun<strong>da</strong>mentais para o exercício e a construção <strong>da</strong>ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.Belo Horizonte, agosto de 1994Ângela Maria Cyrino de AndradeHeloísa Amélia Greco (Bizoca)Márcia Silva Lopes (Muri)Maria Clotilde Vieira Ayer Quintela (Clô)Livros que apoiei ou escrevi1 131 - D - Linhares - Memorial <strong>da</strong> Prisão PolíticaGilney Amorim Viana, 1979.2 Helena Greco, Eu Te Batizo AnistiaAna Maria Rodrigues de Oliveira, 1983.3 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>Betinho Duarte, 1994.4 Até Que Corra Justiça - Manual de Ação SocialBetinho Duarte, 1996.5 Semear EsperançasJoaquim de Poté, 1996.6 Honrai a Quem Tem HonraBetinho Duarte, 1997.7 Éramos Felizes e SabíamosBetinho Duarte, 1997.8 <strong>Rua</strong> AmigaBetinho Duarte, 1997.9 Aldey<strong>da</strong> e Armando - EternamenteBetinho Duarte, 2001.10 Morri em SantiagoBetinho Duarte, 2002.11 Morrer é Lucro / De hoje não passaBetinho Duarte, 2004.670 <strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong><strong>Rua</strong> <strong>Viva</strong>971

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