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Texto Completo - CCHLA - Universidade Federal da Paraíba

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ANGELI E A REPÚBLICA DOS BANANAS: REPRESENTAÇÕESCÔMICAS DA POLÍTICA BRASILEIRA NA REVISTA CHICLETECOM BANANA (1985-1990)Keliene Christina <strong>da</strong> SilvaOrientadora: Profa. Dra. Regina Maria Rodrigues BeharDissertação de Mestrado apresentado ao Programade Pós-Graduação em História do Centro deCiências Humanas, Letras e Artes <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong><strong>Federal</strong> <strong>da</strong> Paraíba – UFPB, em cumprimento àsexigências para a obtenção do título de Mestre emHistória, Área de Concentração em História eCultura Histórica.JOÃO PESSOA – PBAGOSTO – 2011


S586aSilva, Keliene Christina <strong>da</strong>.Angeli e a República dos Bananas: representações cômicas <strong>da</strong> políticabrasileira na revista Chiclete com Banana(1985-1990) / Keliene Christina <strong>da</strong>Silva. - - João Pessoa: [s.n.], 2011.139f. : il.Orientadora: Regina Maria Rodrigues Behar.Dissertação (Mestrado) – UFPB/<strong>CCHLA</strong>.1. História cultural. 2. Cultura histórica. 3. Histórias emquadrinho. 4. Angeli - Cartunista.UFPB/BC CDU: 930.85(043)


ANGELI E A REPÚBLICA DOS BANANAS: REPRESENTAÇÕES CÔMICAS DAPOLÍTICA BRASILEIRA NA REVISTA CHICLETE COM BANANA (1985-1990)Keliene Christina <strong>da</strong> SilvaDissertação de Mestrado avalia<strong>da</strong> em ____ /____ / ____ com conceito __________________BANCA EXAMINADORA___________________________________________________________________Profª. Drª. Regina Maria Rodrigues BeharPrograma de Pós-Graduação em História – <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> ParaíbaOrientadora___________________________________________________________________Prof. Dr. Iranilson Buriti de OliveiraPrograma de Pós-Graduação em História – <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> de Campina GrandeExaminador Externo____________________________________________________________________Prof. Dr. Henrique Paiva de MagalhãesPrograma de Pós-Graduação em Comunicação – <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> ParaíbaExaminador Interno______________________________________________________________________Prof. Dr. Antonio Clarindo Barbosa de SouzaPrograma de Pós-Graduação em História – <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> de Campina GrandeSuplente Externo______________________________________________________________________Prof. Dr. Elio Chaves FloresPrograma de Pós-Graduação em História – <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> ParaíbaSuplente Interno


Dedico esta dissertação à minha mãe, Maria do Carmo <strong>da</strong> Silva.i


iiAGRADECIMENTOSEsta pesquisa foi realiza<strong>da</strong> com muita dedicação e nasceu a partir de uma grandepaixão que nutro pelas histórias em quadrinhos. Mas, mesmo estando inteiramenteapaixona<strong>da</strong> pelo meu trabalho, eu reconheço que sozinha eu não teria avançado um passosequer nesta dissertação. Sinto-me feliz e uma pessoa extremamente afortuna<strong>da</strong> por tercontado com tão bons companheiros nesta jorna<strong>da</strong> durante o mestrado. Os meus maisprofundos agradecimentos:À minha orientadora, a professora Regina Maria Rodrigues Behar, que já acompanhaminha trajetória desde a graduação e sempre me motivou e acreditou no meu trabalho. Seusconselhos e recomen<strong>da</strong>ções, não apenas no que diz respeito a este trabalho, seguirão comigopor to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>.Aos docentes do PPGH/UFPB: à professora Regina Célia Gonçalves, pois foi atravésde suas aulas que abandonei meus temores em relação à Teoria <strong>da</strong> História; ao professorAntonio Carlos Ferreira e à professora Cláudia Engler Cury, por suas aulas sobre ametodologia <strong>da</strong> pesquisa em História que foram fun<strong>da</strong>mentais para que eu definisse o melhorcaminho para um bom desenvolvimento do meu trabalho; ao professor Elio Chaves Flores,que conhece meu trabalho desde o momento em que ele não passava de uma simples ideiaresumi<strong>da</strong> em cinco linhas, suas observações no Seminário de Dissertação e no Exame deQualificação foram de extrema importância para que minha pesquisa se delineasse e chegasseà forma que tem agora; ao professor Acácio Catarino, que desde a graduação me apoia e aquem eu considero um bom amigo. Agradeço também à secretária do PPGH, VirgíniaKyotoku, pela sua agili<strong>da</strong>de e condução dos encaminhamentos administrativos ao longo desseperíodo.Ao professor Iranilson Buriti de Oliveira, por ter aceitado o convite para compor abanca de defesa deste trabalho e pelas excelentes observações sobre o mesmo, as quais foramimportantes tanto para esta pesquisa como para as futuras.Gostaria de agradecer também aos professores do PPGCOM/UFPB: ao professorHenrique Magalhães, tanto por ter permitido total acesso às revistas do acervo <strong>da</strong> GibitecaHenfil, bem como sua digitalização (algo que nem todo colecionador permite!), assim comopor suas observações durante o Exame de Qualificação e durante a defesa <strong>da</strong> versão final, pois


iiias mesmas me permitiram estreitar melhor o diálogo entre a história e a comunicação social,não conseguiria imaginar a banca sem sua presença; ao professor Marcos Nicolau, pelaatenção e gentileza com que sempre me recebeu, <strong>da</strong>ndo-me livre acesso à biblioteca doPPGCOM/UFPB.Àqueles que contribuíram, à distância com a minha pesquisa: ao professor PauloRamos, por sua prontidão e solicitude em esclarecer as minha dúvi<strong>da</strong>s; ao jornalista GonçaloJúnior, sua recomen<strong>da</strong>ção caiu como uma luva e surgiu no momento certo.Ao meu grande amigo e companheiro na paixão pelos quadrinhos, Manassés Filho,agradeço demais a compreensão pelas minhas ausências e por ser o meu “divã” nos momentosem que a angústia me perturbava.À minha prima, mais que amiga e quase irmã, Mirtes de Fátima, sei que nestemomento um oceano nos separa, mas suas palavras sempre me deram força; muito obriga<strong>da</strong>por me lembrar sempre que a <strong>da</strong>nça não pode parar.Aos meus companheiros <strong>da</strong> época <strong>da</strong> graduação que ain<strong>da</strong> me acompanham nestajorna<strong>da</strong>: Adeilma Bastos, Waldemar Pinheiro, Isabela Virgínio, Edson Vasconcellos e MoisésCosta. Nossa conversas e e boas risa<strong>da</strong>s sempre foram o alívio dos momentos mais pesados.Aos colegas do curso de mestrado que sempre me estimularam e torceram por mimdurante o desenvolvimento desta pesquisa, especialmente Simone Silva, Aman<strong>da</strong> Teixeira eVânia Cristina <strong>da</strong> Silva, sem nossas “extensões” às quintas-feiras tudo teria sido mais difícil.Aos colegas de trabalho <strong>da</strong> Escola Municipal Leôni<strong>da</strong>s Santiago que acompanharammeu esforço em realizar esta pesquisa e equilibrar as ativi<strong>da</strong>des relaciona<strong>da</strong>s à praticadocente.Ao meu sobrinho “filho” e “irmão”, Alexsander, alegria na minha vi<strong>da</strong>.E por último, mas jamais menos importante, à minha mãe, Maria do Carmo <strong>da</strong> Silva. Afonte de to<strong>da</strong> a minha força, minha luz nos momentos de escuridão, meu porto seguro emmeio à mais terrível tempestade. Mãe, o amor que você me deu sempre me salvou quando caí,tudo que fui, sou e serei foi por você e para você.


ivRESUMOO presente estudo tem por objetivo analisar as representações cômicas produzi<strong>da</strong>s pelocartunista Angeli sobre a política brasileira, do período que se incia em 1985, com aredemocratização do Brasil, até o ano de 1990. Utilizamos como fonte para a nossa pesquisaos vinte e quatro números <strong>da</strong> série bimestral <strong>da</strong> revista Chiclete com Banana. Através <strong>da</strong>análise dos exemplares, selecionamos imagens que nos permitiram construir um pequenopanorama do período escolhido, este referente aos anos pelos quais a publicação se estendeu.Esta pesquisa assentou-se sobre a utilização <strong>da</strong>s charges, tiras cômicas e cartuns produzidospelo artista como testemunhos de sua época, identificando-os como discursos neutroscarregados de significados, correspondentes à visão pessoal do artista mas tambémconsiderando sua inserção num grupo social e profissional no âmbito do qual sua produção seinsere, este estudo está vinculado à linha de pesquisa “Ensino de História e SaberesHistóricos” do Programa de Pós-Graduação <strong>da</strong> <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> Paraíba, com área deconcentração em “História e Cultura Histórica”. Através dele, buscamos traçar as principaiscaracterísticas <strong>da</strong> nova conjuntura política, configura<strong>da</strong> após o fim do regime militar noBrasil, a partir <strong>da</strong>s lentes do referido desenhista, suas percepções e sua perspectiva crítica <strong>da</strong>política e dos políticos na Nova República.Palavras-chave: Cultura Histórica, Histórias em quadrinhos, Angeli.


vABSTRACTThe present study has the goal to analyze the comic representations produced by thecartoonist Angeli about Brazilian politics, within a period which starts in 1985, with Brazil'sre-democratization, until 1990. We used the twenty four issues of bi-monthly magazine seriesChiclete com Banana as source for our research, through the analysis of the examples weselected images which proportioned us to build a small panorama of the chosen period, whoserefers throughout the years the publication lasted. This research established itself on the usageof charges, comic stripes and cartoons produced by the artist as testimonials of his era,identifying these as a neutral approach impregnated with meaning, corresponding to theartist's point of view but also considering his insertion in a social and professional groupwithin the scope of his production, This study is bound to the line of research “Teaching ofHistory and Historical Knowledge” from the Postgraduate Program of the <strong>Federal</strong> Universityof Paraíba, concentrated on “History and Historical Culture”, through this study we strive foroutlining the main characteristics of the new political situation configured after the ending ofthe military regime in Brazil, from the point of view of the referred artist, his perception andhis critical perspective about the politics and the politicians of the New Republic.Keywords: Historical Culture, Comics, Angeli.


viLISTA DE FIGURASFigura 01 – Angeli em crise.................................................................................................... 47Figura 02 – Foto – Los Tres Amigos (Angeli, Glauco e Laerte)............................................. 51Figura 03 – Ralah Rikota......................................................................................................... 52Figura 04 – Ralah Rikota e Mr. Natural.................................................................................. 52Figura 05 – Capa <strong>da</strong> Chiclete com Banana número 1............................................................. 59Figura 06 – Editorial: a quebra<strong>da</strong> <strong>da</strong> esquina.......................................................................... 60Figura 07 – Capa <strong>da</strong> Chiclete com Banana número 4............................................................. 65Figura 08 – Bob Cuspe: encanação total................................................................................. 65Figura 09 – Bob Cuspe (tira cômica) …................................................................................. 66Figura 10 – Rê Bordosa (tira cômica)..................................................................................... 68Figura 11 – O pai <strong>da</strong> Rê Bordosa (tira cômica)....................................................................... 69Figura 12 – Meiaoito e Nanico: Aí tem coisa!........................................................................ 70Figura 13 – Os Skrotinhos (tira cômica)................................................................................. 72Figura 14 – Político Anta......................................................................................................... 89Figura 15 – A fauna que aflora................................................................................................ 91Figura 16 – Partido de oposição.............................................................................................. 93Figura 17 – A luta continua..................................................................................................... 94Figura 18 – Vote Bob Cuspe para prefeito.............................................................................. 95Figura 19 – Dez previsões para 86......................................................................................... 100Figura 20 – New Looks: Frente Liberal................................................................................. 101Figura 21 – Fantasias para o carnaval: Novo Ministério....................................................... 102Figura 22 – Fantasias para o carnaval: Aliança Democrática................................................ 103Figura 23 – Fantasias para o carnaval: Nova República........................................................ 104Figura 24 – Meiaoito e Nanico (tira cômica) ....................................................................... 106


viiFigura 25 – Meiaoito: o último dos barbichinhas.................................................................. 107Figura 26 – CVV. Boa noite, camara<strong>da</strong>s!.............................................................................. 109Figura 27 – Recor<strong>da</strong>r é viver................................................................................................. 110Figura 28 – Meiaoito na banheira <strong>da</strong> Rê Bordosa................................................................. 111Figura 29 – Editorial Down!.................................................................................................. 113Figura 30 – As mil e uma utili<strong>da</strong>des do presidente: apoio para livros.................................. 115Figura 31 – As mil e uma utili<strong>da</strong>des do presidente: enchedor de lingüiça............................ 117


viiiÍNDICE DE SIGLASAI-2 – Ato Institucional Número 2AI-5 – Ato Institucional Número 5ARENA – Aliança Renovadora NacionalDOPS – Departamento de Ordem Política e SocialEBAL – Editora Brasil América Lt<strong>da</strong>.FUNARTE – Fun<strong>da</strong>ção Nacional de ArtesINEP – Instituto Nacional de Estudos Pe<strong>da</strong>gógicosMDB – Movimento Democrático BrasileiroPCB – Partido Comunista BrasileiroPCNs – Parâmetros Curriculares NacionaisPDS – Partido Democrático SocialPDT – Partido Democrático TrabalhistaPFL – Partido <strong>da</strong> Frente LiberalPMDB – Partido do Movimento Democrático BrasileiroPNBE – Programa Nacional Biblioteca <strong>da</strong> EscolaPSD – Partido Social DemocrataPT – Partido dos TrabalhadoresPTB – Partido Trabalhista BrasileiroUDN – União Democrática Nacional


ixSUMÁRIODEDICATÓRIA......................................................................................................................... iAGRADECIMENTOS.............................................................................................................. iiRESUMO.................................................................................................................................. ivABSTRACT.............................................................................................................................. vLISTA DE FIGURAS............................................................................................................... viÍNDICE DE SIGLAS............................................................................................................. viiiSUMÁRIO............................................................................................................................... ix1 - INTRODUÇÃO................................................................................................................... 11.1 – Papel, lápis e imaginação: como nasce uma história …................................................... 41.2 – Cultura e contracultura: definindo espaços …................................................................ 121.3 – Histórias em quadrinhos e representações culturais na contemporanei<strong>da</strong>de.................. 181.4 – Algumas considerações sobre o gênero <strong>da</strong>s histórias em quadrinhos: conceituação ecaracterísticas marcantes <strong>da</strong> linguagem................................................................................... 212 – Elaborando o argumento: <strong>da</strong> formação do mercado brasileiro à formação do“personagem” Angeli............................................................................................................. 282.1 – A formação do mercado editorial brasileiro.................................................................... 302.2 – Do underground ao udigrudi: o mercado alternativo de quadrinhos no Brasil............... 362.3 – De Arnaldo Angeli Filho à “Angeli em Crise”: a formação docartunista...................................................................................................................................453 – Chiclete com Banana: influências e caracterização <strong>da</strong> publicação...............................543.1 – A preparação do espaço: a criação <strong>da</strong> Circo Editorial..................................................... 553.2 – Entre o chiclete e a banana: as entrelinhas <strong>da</strong> publicação.............................................. 593.3 – Expediente: fatores que levaram ao fim <strong>da</strong> publicação.................................................. 754 – Quadros do período: as visões e opiniões de Angeli através do seu traço................... 804.1 – Algumas considerações sobre o processo de abertura democrática: a reorganizaçãopartidária.................................................................................................................................. 814.2 – A política e os políticos sob as lentes de Angeli............................................................. 884.3 – A Nova República: o que deveria ser e não foi............................................................... 964.4 – A esquer<strong>da</strong> na Nova República: um grupo sem lugar................................................... 1054.5 – Ribamar, nosso presidente: o poder executivo através do traço de Angeli................... 111Considerações finais: os últimos traços...............................................................................119Fontes utiliza<strong>da</strong>s................................................................................................................... 123Bibliografia............................................................................................................................124


11. Introdução: “traçando as linhas”Quadrinhos são palavras e imagens. Oque não se faz com palavras e imagens?(Harvey Pekar)Introduzi<strong>da</strong>s nas nossas vi<strong>da</strong>s geralmente nos primeiros anos escolares, às vezes antes,as histórias em quadrinhos costumam, por conta disso, ser associa<strong>da</strong>s à ideia de uma leituravolta<strong>da</strong> exclusivamente para o público infantil.Ver<strong>da</strong>de seja dita, devemos admitir que o festival de cores presentes em suas páginas,a narrativa rápi<strong>da</strong> e de fácil compreensão, dispensando algumas vezes o emprego de signosfonéticos para o entendimento <strong>da</strong> mensagem, apresenta-se de forma extremamenteconvi<strong>da</strong>tiva aos olhos dos pequenos. Conquistado na tenra i<strong>da</strong>de, o leitor leva consigo estegosto por tal leitura aos primeiros anos de sua adolescência, época de transição, que porsituar-se entre a fase infantil e a adulta, permite a manutenção de certos hábitos adquiridosain<strong>da</strong> na infância. Contudo, ao contrário do que se pensa, a i<strong>da</strong>de adulta não põe fimcompletamente a essa paixão, e alguns seguem carregando este sentimento plantado há muitosanos, para a fase adulta <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. São justamente estes mantenedores de uma grande fideli<strong>da</strong>dea um sentimento tão antigo, e ao mesmo tempo muito forte, os defensores <strong>da</strong> ideia de históriasem quadrinhos, para além de serem produto para o público infantil, se constituírem emmanifestação artística, caracterizando-se como um tipo de linguagem que possui recursospróprios, capaz de direcionar-se aos mais variados públicos. Portanto, nos apoiamos nesteargumento, e fazemos coro com os que defendem a linguagem <strong>da</strong>s histórias em quadrinhoscomo expressão artística multifaceta<strong>da</strong> e as percebem como elementos abertos a múltiplaspossibili<strong>da</strong>des de interpretação.Assim como ocorre com a grande maioria <strong>da</strong>s pessoas, o primeiro contato com estetipo de linguagem nos ocorreu ain<strong>da</strong> na infância. A atenção nos foi desperta<strong>da</strong> especialmentepelos desenhos e pelo gosto em desenhar. Sim, mais uma paixão na vi<strong>da</strong>, o desenho! Damesma maneira que muitas crianças brasileiras, a nossa infância proporcionou um primeirocontato com as histórias em quadrinhos por meio <strong>da</strong>s produções de Maurício de Sousa. Nãopodemos apontar com exatidão o momento em que o gosto por desenhar começou a sedesenvolver, mas com segurança é possível afirmar que acompanhar as histórias <strong>da</strong> Turma <strong>da</strong>Mônica e dos demais personagens criados pelo desenhista, acrescentou um pouco mais defermento à imaginação e permitiu um empenho maior, ain<strong>da</strong> que não proposital, nodesenvolvimento de tal habili<strong>da</strong>de.À medi<strong>da</strong> que avançavam as etapas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> o encantamento aumentava, durante a


2adolescência a invasão dos desenhos orientais permitiu que esse sentimento se aquecesseain<strong>da</strong> mais, os olhos grandes e expressivos e o traço bem diferente do que habitualmente sevia, chamaram-nos imediatamente a atenção e fizeram com que a busca por mais crescesse diaapós dia, ultrapassando os limites <strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de e alcançando a vi<strong>da</strong> adulta.O fascínio pelas histórias em quadrinhos seguiu de forma crescente e nosso interessenão estava mais voltado apenas para aquilo que vinha <strong>da</strong> terra do sol nascente. As produçõesnorte-americanas também começaram a exercer seu fascínio, especialmente após o contatocom histórias diferentes, como Superman: as quatro estações, que mostravam o outro lado dosuper-herói, seus medos e suas fraquezas. Nesta mesma época, surgiu no nosso horizonte deleitura as graphic novels, como a própria tradução do termo explica, novelas gráficas,histórias cativantes que não necessitavam de super-heróis, muito embora existam produçõesde tal gênero com os mesmos; e através delas nos foi possível chegar aos trabalhos de WillEisner 1 , e, assim, adentrar muito mais neste universo literário.O interesse pelas histórias em quadrinhos seguiu e adentrou a vi<strong>da</strong> acadêmica,especialmente depois de ter conhecimento <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de realizar uma pesquisa nessalinha como trabalho de conclusão de curso, empreita<strong>da</strong> realiza<strong>da</strong> com to<strong>da</strong> a força <strong>da</strong> paixãodesperta<strong>da</strong> por esta linguagem, e o resultado foi a produção de uma história em quadrinhossobre a vi<strong>da</strong> e obra do naturalista paraibano Manuel Arru<strong>da</strong> <strong>da</strong> Câmara 2 . Tal trabalhopretendia demonstrar a possibili<strong>da</strong>de tanto <strong>da</strong> utilização dos quadrinhos como materialdidático, quanto o espaço para veiculação e produção do conhecimento histórico.Cabe-nos ain<strong>da</strong> acrescentar que grande parte do aprofun<strong>da</strong>mento nos conhecimentossobre os quadrinhos deve-se aos seis anos de trabalho em uma comic shop (loja especializa<strong>da</strong>na ven<strong>da</strong> de histórias em quadrinhos), pois a experiência adquiri<strong>da</strong> no trabalho com umpúblico seleto – e também seletivo! - nos proporcionou uma vivência maravilhosa com estetipo de linguagem e contribuiu para que a paixão aumentasse ca<strong>da</strong> vez mais, tornando oobjeto de tal sentimento ca<strong>da</strong> vez mais presente, mais necessário na vi<strong>da</strong>.O primeiro contato com os quadrinhos underground foi feito no decorrer destes seisanos de trabalho próximo à leitura desse gênero, primeiramente através dos autores norteamericanos.Ao contrário do que muitos podem pensar, não ingressamos neste segmento por1 “Para os quadrinhos, William Erwin Eisner é uma figura tão importante quanto Orson Welles foi para ocinema” (GOIDANICH, 1990, p.12). Will Eisner foi um autor de quadrinhos responsável por umareformulação na própria linguagem. Devido às inovações realiza<strong>da</strong>s e por elaboração de estudos teóricossobre o tema, consideramos importante ressaltar que o conhecimento sobre seus trabalhos contribuiu para umalargamento <strong>da</strong> nossa visão sobre as histórias em quadrinhos.2 O trabalho recebeu a orientação do Prof. Dr. Acácio José Lopes Catarino, e foi intitulado Manuel Arru<strong>da</strong> <strong>da</strong>Câmara: um naturalista a serviço de sua majestade. Concluído no ano de 2005, consistiu na pesquisa sobre avi<strong>da</strong> e obra do referido naturalista e, posteriormente, a quadrinização do resultado desta pesquisa, com vistas<strong>da</strong> mesma constituir-se como um material didático.


3meio de leitura de um autor muito conhecido, mas por Peter Bage e sua comic book 3 Ódio. Otraço diferente, totalmente despreocupado com os padrões do quadrinho industrial, chamouimediatamente nossa atenção, além disso, os temas abor<strong>da</strong>dos, mais voltados para o cotidianoe apresentando a ótica do autor, tornaram a obra ain<strong>da</strong> mais interessante, despertando-nos acuriosi<strong>da</strong>de para tal estilo a partir de então.Buscando conhecer mais, ingressamos na leitura <strong>da</strong>s obras de Robert Crumb,especialmente o seu personagem mais conhecido Fritz The Cat. A leitura dos quadrinhos deCrumb permitiu o conhecimento <strong>da</strong>s principais características dos quadrinhos underground,haja vista que o mesmo influenciou to<strong>da</strong> uma geração posterior de quadrinistas, incluindo opróprio Angeli, autor escolhido para o presente estudo. Outra leitura fun<strong>da</strong>mental destesegmento, e mais uma criação de Crumb, foi um encadernado, lançado no Brasil, <strong>da</strong> revistaZap Comix. Tal publicação constitui-se como um espaço de expressão e divulgação dounderground norte-americano.Passar <strong>da</strong>s produções norte-americanas às brasileiras foi apenas um passo. Apesar degrande parte dos quadrinhos alternativos nacionais terem sido publicados na déca<strong>da</strong> de 1980,podemos ain<strong>da</strong> ter acesso aos mesmos por meio de re-edições de histórias antigas, por novashistórias com personagens já conhecidos do público, ou por outros meios como as gibitecas eos acervos digitais. Chegamos ao nosso autor por meio de uma personagem muito conheci<strong>da</strong>,a Rê Bordosa, que até os dias de hoje tem materiais re-editados. Através dela foi possível oconhecimento de demais criações do autor, e em pouco tempo, o humor ácido e seu traçoúnico nos seduziram; e o primeiro espaço de diálogo com sua produção abriu-se naquelemomento.O tempo compartilhado em companhia de tal tipo de literatura fez com que a mesmase tornasse uma necessi<strong>da</strong>de; somou-se a isso a acui<strong>da</strong>de adquiri<strong>da</strong> pelo olhar depois desermos introduzidos no labor historiográfico, uma visão crítica que uma vez em nósimpregna<strong>da</strong> não resigna-se a nos acompanhar apenas no ambiente acadêmico, mas segueconosco em todos os ambientes, do espaço familiar à reclusão do quarto, do ambiente detrabalho aos momentos de prazer. Uma vez que nos banhamos no mar <strong>da</strong> História nunca maissomos os mesmos.Portanto, uma vez despertado esse olhar do intérprete <strong>da</strong>s ações humanas que ohistoriador possui, a ele não escapam nossas próprias paixões, e entre muitas outras, esta pelashistórias em quadrinhos ardia com mais intensi<strong>da</strong>de. Unindo o interesse pela produção deAngeli à vontade de desenvolver uma pesquisa histórica volta<strong>da</strong> para a linguagem dosquadrinhos, lançamo-nos à busca de subsídios para tal empreita<strong>da</strong>, encontrando-os na revista3 Dá-se o nome de comic book aos quadrinhos editados em formato de livro.


4Chiclete com Banana, uma publicação cria<strong>da</strong> pelo cartunista e que abriga um grande númerode trabalhos seus. À leitura de ca<strong>da</strong> página nosso intento tornava-se ca<strong>da</strong> vez mais nítido.Dessa maneira, nos lançamos, com to<strong>da</strong> a força que um sentimento arrebatador podeter, na realização do presente estudo, e esperamos que o leitor possa perceber que além deuma investigação científica pretendemos nos unir aos que compartilham dessa mesma paixãoe oferecer a esta linguagem o merecido reconhecimento como uma manifestação artística ecultural, como instrumento de produção e veiculação do saber histórico, um espaço aberto derepresentações e ao mesmo tempo de uma prática de leitura característica <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de.1.1. Papel, lápis e imaginação: como nasce uma história.A imagem foi um recurso muito utilizado pelos seres humanos ao longo <strong>da</strong> história,em qualquer suporte em que esteja. É inegável a primeira finali<strong>da</strong>de de uma imagem, que é acomunicação. Para um grande público, para um pequeno número de pessoas, ou para simesmo, a imagem remete a um significado, às vezes explícito, outras não. É uma tarefa árduaobservar uma imagem e não tentar atribuir a ela um significado.Como afirma Martine Joly , “vivemos hoje em uma 'civilização <strong>da</strong> imagem'” (2005, p.9), as tecnologias permitem que as informações circulem em uma veloci<strong>da</strong>de ca<strong>da</strong> vez maior.Dessa maneira, a imagem ocupa um espaço importante na veiculação do conhecimento devidoà sua linguagem ágil e dinâmica, aberta à rápi<strong>da</strong> compreensão e à ampla possibili<strong>da</strong>de dediálogo. To<strong>da</strong>via, ao mesmo tempo em que a imagem nos cerca ela também nos desafia ainterpretá-la, a possuí-la, a usá-la e a manipulá-la. Isso mesmo, manipular. Afinal, quem nãoconsegue lembrar de algum momento ao longo <strong>da</strong> história em que a imagem foi manipula<strong>da</strong>?Em vários lugares do mundo e, mais precisamente, após a revolução causa<strong>da</strong> pelodesenvolvimento <strong>da</strong> fotografia, a manipulação <strong>da</strong> imagem tornou-se um recurso frequente,especialmente no que diz respeito à transmissão de ideias liga<strong>da</strong>s à política. Alia<strong>da</strong> à palavra,que pode prestar-lhe auxílio, ou mesmo “solitária”, pois tem a capaci<strong>da</strong>de de condensargrande mensagem em si, sem que seja absolutamente necessário a escrita vernácula, elasempre se mostra presente, dá força ao discurso, em muitos casos o sustenta, sugerindo umcorrelato de famoso ditado popular, nesse caso: “o que os olhos veem o coração sente”. Semperceber, somos presos, e quando nos <strong>da</strong>mos conta, já as absorvemos, ao mesmo tempo emque somos absorvidos por elas. É exatamente nessa teia sedutora dos estudos sobre asimagens que o presente trabalho encontra-se preso. Perigosamente enre<strong>da</strong>do, mas tambémprazerosamente realizado.Portanto, concor<strong>da</strong>mos com a afirmação de Peter Burke de que “imagens, assim como


5textos e testemunhos orais, constituem-se numa forma importante de evidência histórica. Elasregistram atos de testemunha ocular” (2004, p. 17). Dessa maneira, buscamos aqui analisar asimagens escolhi<strong>da</strong>s como testemunhas do período abor<strong>da</strong>do, como representações carrega<strong>da</strong>sde significados, sem, contudo, esquecer que por se tratarem de “testemunhas mu<strong>da</strong>s”(BURKE, 2004, p. 18), guar<strong>da</strong>m também os devidos cui<strong>da</strong>dos no processo de análise, pois “édifícil traduzir em palavras o seu testemunho” (BURKE, 2004, p. 18).Podemos afirmar que, de certo modo, a escolha do tema foi fácil, devido àfamiliari<strong>da</strong>de com o universo de pesquisa escolhido, entretanto, o momento de delimitação dotrabalho, os caminhos que tiveram que ser percorridos para moldá-lo, foram a parte maisárdua do processo de desenvolvimento do projeto.Muitos estudos já existem no campo <strong>da</strong>s imagens, mas especificamente o tipo deimagem aqui trabalhado, as histórias em quadrinhos, ain<strong>da</strong> não possui tantos olhares voltadosem sua direção. Eis aqui o primeiro desafio, encontrar bibliografia que desse suporte analíticopara tal tipo de fonte.Encontramos a abertura necessária para abor<strong>da</strong>r tal fonte no amplo espaço que abrangeo termo cultura histórica. To<strong>da</strong>via, um espaço que se abre para tantas possibili<strong>da</strong>des tambémoferece como contrapeso as mais diversas dificul<strong>da</strong>des, tomando uma certa liber<strong>da</strong>de, cabeaqui citar uma frase de um famoso personagem <strong>da</strong>s histórias em quadrinhos: “Grandespoderes exigem grandes responsabili<strong>da</strong>des” 4 .Foi mais precisamente no artigo de Elio Chaves Flores que encontramos o ponto deapoio teórico para direcionarmos os caminhos desta pesquisa, tendo em vista que o referidoautor entende por cultura histórica “os enraizamentos do pensar historicamente que estãoaquém e além do campo <strong>da</strong> historiografia e do cânone historiográfico” (2007, p. 95). Dessamaneira, amplia as possibili<strong>da</strong>des de incorporar as visões dos diferentes momentos históricosproduzi<strong>da</strong>s não apenas por profissionais do ofício, mas por outros agentes do conhecimento,abrindo espaço para campos do conhecimento de uma abrangência maior que aquela gesta<strong>da</strong>pelo saber científico constituído na academia.Pensar nessa direção proporcionou um prazeroso e satisfatório encontro com a leiturade Roger Chartier, A história cultural: entre práticas e representações. Encontro melhor nãopoderia ter ocorrido, pois foi através dele e suas reflexões sobre as representações e seussignificados atribuídos aos próprios dos grupos produtores <strong>da</strong>s mesmas, que o trabalho foiadquirindo contornos mais precisos. Mas percebemos que apenas Chartier não seria suficiente4 A referi<strong>da</strong> frase foi dita pelo personagem Ben Parker, tio do Peter Parker, o rosto que se esconde por trás <strong>da</strong>máscara do Homem-aranha. Peter no decorrer de várias histórias recor<strong>da</strong>-se do conselho do seu tio devido àculpa que sente pela morte do mesmo. Ben foi assassinado por um assaltante que Peter deixou escaparvoluntariamente.


6para <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de do tema. Essa certeza ficou ca<strong>da</strong> vez mais presente quando asfontes passaram pela primeira vez por um exame mais minucioso.A série documental que serve como fonte desta pesquisa são as revistas Chiclete comBanana, série bimestral em 24 edições, encontra<strong>da</strong>s agrupa<strong>da</strong>s e disponíveis em um mesmoespaço, a Gibiteca Henfil, localiza<strong>da</strong> atualmente na Biblioteca do Programa de Pós-Graduaçãoem Comunicação Social, na <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> Paraíba.A Chiclete com Banana foi uma revista que exerceu grande influência sobre ajuventude urbana <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980. Cria<strong>da</strong> pelo cartunista Angeli 5 , teve seu primeironúmero publicado em outubro de 1985. Pode-se afirmar que foi uma publicação de certaforma já espera<strong>da</strong>, pois, anteriormente, o cartunista já havia lançado um livreto com o mesmotítulo contendo tiras do personagem Bob Cuspe. Segundo Nadilson Manoel <strong>da</strong> Silva (2002),foi este personagem que deu impulso ao desenvolvimento <strong>da</strong> revista, bem como garantiu seusucesso editorial, tendo em vista que o referido personagem já havia conquistado o públicojovem que esperava ansiosamente por mais um trabalho do autor.A publicação “vai se diferenciar <strong>da</strong>s demais revistas, principalmente por seu ecletismo,tanto em termos de conteúdo como de estrutura” (SILVA, 2002, p. 61). O primeiro número écomposto quase que exclusivamente por Angeli, com exceção <strong>da</strong>s últimas oito páginas, ondefoi publica<strong>da</strong> uma história de Luiz Gê. Nas demais edições esse espaço foi reservado tantopara a exposição de trabalhos de cartunistas já famosos, como Glauco e Laerte, como para olançamento de outros artistas. Nas últimas revistas, a participação dos colaboradoresaumentou e o volume de trabalhos de Angeli diminuiu. Nos primeiros números, percebemos opredomínio de tiras e quadrinhos de personagens criados pelo autor, como Rê Bordosa, BobCuspe, Meiaoito e Nanico, entre outros. O autor também fazia uso de fotonovelas, to<strong>da</strong>s comconteúdo cômico; também encontramos as colunas, onde Angeli, diretamente ou usandooutros nomes, na maioria <strong>da</strong>s vezes fazendo um trocadilho com seu próprio nome, expressasua opinião sobre questões conjunturais. Merece destaque, também, a seção de cartas,intitula<strong>da</strong> Upper-cut, espaço de comunicação direta entre Angeli e seu público, e dentro <strong>da</strong>seção de cartas, uma coluna especial chama<strong>da</strong> Pau-de-macarrão, reserva<strong>da</strong> para a publicação5 Arnaldo Angeli Filho. Nascido em 31 de agosto de 1956, este paulistano <strong>da</strong> Zona Norte ingressou cedo nouniverso <strong>da</strong>s charges e publicou seu primeiro trabalho na revista Senhor. No início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970 passoua atuar na imprensa alternativa, espaço onde desenvolveu vários personagens próprios. Em 1975 foicontratado pela Folha de São Paulo, na qual foi possível, por meio de suas tiras diárias o surgimento dospersonagens Rê Bordosa e Bob Cuspe, os mesmos renderam-lhe grande reconhecimento. Na déca<strong>da</strong> de 1980iniciou a publicação <strong>da</strong> Chiclete com Banana, revista <strong>da</strong> contracultura e do underground que deu um novoimpulso aos quadrinhos nacionais, incentivando o trabalho de outros artistas como Laerte, Luiz Gê, ClaudioPaiva, Glauco, entre outros. Já teve suas tiras publica<strong>da</strong>s na Alemanha, França, Itália, Argentina e Portugal,obtendo mais destaque nesse último país. Em 1983 participou <strong>da</strong> série Redescobrindo o Brasil <strong>da</strong> editoraBrasiliense, com o álbum República Vou Ver!, com textos <strong>da</strong> historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Atualmentecontinua trabalhando como chargista <strong>da</strong> Folha de S Paulo (GOIDANICH, 1990, p. 25).


<strong>da</strong>s cartas intercepta<strong>da</strong>s pela “esposa” de Angeli , e funcionava como respostas dessa esposafictícia às fãs, que, às vezes, “exageravam na admiração” pelo autor. A partir do númerodezesseis <strong>da</strong> revista foi introduzido o suplemento JAM 6 , sigla cujo significado jamais foirevelado pelo autor que, a ca<strong>da</strong> número, lhe <strong>da</strong>va um conteúdo diferente, e pode serconsiderado uma revista dentro <strong>da</strong> revista; impresso em duas cores, tratava de música ehábitos <strong>da</strong>s tribos urbanas, uma parcela considerável do público leitor <strong>da</strong> revista. Além dosvinte e quatro números <strong>da</strong> série bimestral, a revista ain<strong>da</strong> teve dez edições especiais e deztítulos <strong>da</strong> série Tipinhos Inúteis e, de junho de 2007 a fevereiro de 2010, foram publicados dezfascículos de uma antologia prevista para dezesseis números. Sem motivos muito claros, aantologia teve sua publicação interrompi<strong>da</strong> pela editora, entretanto, esclarecemos que nossapesquisa se debruçou apenas sobre a série bimestral, publica<strong>da</strong> entre 1985 e 1990.A revista em si oferece um leque bem amplo de possibili<strong>da</strong>des de trabalho, pois não setrata apenas de uma revista de histórias em quadrinhos, mas de um periódico que pode serconsiderado um produto do estilo underground no Brasil ou, como eles mesmos seautoproclamavam, os quadrinhos udigrudi 7 . Porém, nosso maior interesse em relação à revistaneste momento são as referências permanentes ao contexto histórico <strong>da</strong> época: a abertura como governo de José Sarney, as eleições de 1989, e os primeiros momentos do governo deFernando Collor, presentes até a extinção do periódico, que ocorreu por volta do mês deagosto em 1990.A partir <strong>da</strong>í, pudemos desenhar os dois fios condutores <strong>da</strong> pesquisa: humor e política.Muitos autores adentraram no diálogo, mas foram efetivamente utilizados três como grandesaliados: para o humor, o texto de Henri Bergson, O riso: ensaio sobre a significação docômico, considerado um clássico nos estudos <strong>da</strong> área; dois artigos sobre cultura política <strong>da</strong>historiadora Ângela de Castro Gomes, Cultura política e cultura histórica no Estado Novo eHistória, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões; e, ligando os dois fiosem um único trabalho, encontramos, na tese de doutoramento em História de Elio ChavesFlores, República às avessas: narradores do cômico, cultura política e coisa pública noBrasil contemporâneo (1993-1930), um bom suporte teórico, pois, ao longo <strong>da</strong> leitura destaencontramos uma excelente análise do cômico no período republicano a partir <strong>da</strong> Revolta de6 Na ocasião <strong>da</strong> defesa do presente trabalho, o Professor Henrique Magalhães, examinador externo, esclareceuque JAM vem do Jam Session, sessão musical livre e com improvisações. Segundo ele, Angeli brincou com otermo para definir a liber<strong>da</strong>de temática do caderno, onde figuravam notícias de música e outras expressões decultura independente, bem como a própria terminologia, atribuindo novos conteúdos às letras <strong>da</strong> sigla.7 Nadilson Manoel <strong>da</strong> Silva oferece a seguinte caracterização para o estilo udigrudi: “Inicialmente, eramrevistas experimentais que sobreviviam às custas do autofinaciamento dos autores, revistas influencia<strong>da</strong>spelas propostas identifica<strong>da</strong>s com o movimento underground norte-americano, que estava começando achegar ao Brasil, e outras propostas contraculturais. Suas características tendiam a seguir as propostasestéticas e culturais à margem do mercado oficial. Assim, a tradução tupiniquim chamou-se udigrudi”(SILVA, 2002, p. 24).7


81930, bem como um conceito fun<strong>da</strong>mental de “intelectuais do humor”, desenvolvido por ElioFlores, e no qual situamos Angeli, o autor sobre o qual nos debruçamos neste trabalho dedissertação.A opção pelo cartunista ocorreu, em primeiro lugar, por sua relevância para aprodução nacional de histórias em quadrinhos, tendo em vista que ele é o criador depersonagens muito conhecidos pelos apreciadores do gênero, como, por exemplo, a RêBordosa, os Skrotinhos, Mara Tara, Ralah Rikota, entre outros, bem como pelo fato de que eleera o editor-chefe e criador <strong>da</strong> revista, veiculando na publicação um grande volume detrabalhos seus e, em nossa perspectiva, a revista veicula sua visão a propósito <strong>da</strong> conjunturapolítica do período. Em segundo lugar, foi leva<strong>da</strong> em consideração a escassez de estudossobre os trabalhos deste autor, especialmente durante seu período à frente <strong>da</strong> revista Chicletecom Banana. Esse quase ineditismo despertou ain<strong>da</strong> mais nossa curiosi<strong>da</strong>de, e nos instigou anos debruçarmos sobre essa produção para este trabalho acadêmico. Em terceiro lugar, foileva<strong>da</strong> em consideração a influência de O Pasquim sobre o cartunista, como um periódico quese constituiu em campo de exposição de ideias contrárias aos governos militares no Brasil.Então, afinal, o que esse “herdeiro” <strong>da</strong> tradição pasquiniana teria a dizer sobre os tempos deredemocratização?No desenvolvimento do presente trabalho buscamos analisar as ligações entre aHistória e as histórias em quadrinhos, trabalhando com o conceito de representação nosmoldes propostos por Chartier, qual seja: “as representações do mundo social, emboraaspirem à universali<strong>da</strong>de de um diagnóstico fun<strong>da</strong>do na razão, são sempre determina<strong>da</strong>s pelointeresse dos grupos que as forjam” (CHARTIER, 1990, p. 17). Ain<strong>da</strong> citando Roger Chartier:(...) as percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzemestratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor umaautori<strong>da</strong>de à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projectoreformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.(CHATIER, 1990, p. 17)Portanto, percebendo as mesmas como representações sociais do contexto em queforam produzi<strong>da</strong>s, e como portadoras de significados próprios dos grupos, ou indivíduos, queas produziram, procuramos trilhar os caminhos <strong>da</strong> História Cultural e identificar quaispercepções <strong>da</strong> política brasileira foram representa<strong>da</strong>s pelo cartunista escolhido.Mesmo sendo o nosso objeto de trabalho, a produção do cartunista Angeli, umindivíduo, na revista Chiclete com Banana, devemos lembrar que o mesmo não está em umcontexto isolado, mas sim envolvido em uma teia de influências, tanto externas quantointernas, e, consequentemente, sofreu influências no seu trabalho individual. Seu testemunhorecebeu os moldes e as tintas <strong>da</strong> geração à qual pertencia e carrega seu olhar sobre a época em


9que vivia. Assim como Jan van Eyck assinou no próprio quadro que estava presente nocasamento que retratou, demonstrando, assim, ser o pintor dessa maneira o agente <strong>da</strong>quelemomento, Angeli também esteve presente nos cenários que abor<strong>da</strong>. Ca<strong>da</strong> um dos personagensque criou é, de certo modo, uma de suas facetas, e revela a fala do artista por meio <strong>da</strong>s suaspalavras e atitudes.Dessa maneira, como sujeito do seu momento histórico ele produziu visões sobre ocontexto, assim, pensou historicamente acerca do período no qual, como intelectual e artista,produziu e divulgou sua leitura do processo político em curso no Brasil. Essa produção nosremete a Flores e à sua ideia de cultura histórica como a(...) intersecção entre a história científica, habilita<strong>da</strong> no mundo dos profissionaiscomo historiografia, <strong>da</strong>do que se trata de um saber profissionalmente adquirido, e ahistória sem historiadores, feita, apropria<strong>da</strong> e difundi<strong>da</strong> por uma plêiade deintelectuais, ativistas, editores, cineastas, documentaristas, produtores culturais,memorialistas e artistas que disponibilizam um saber histórico difuso através desuportes impressos, audiovisuais e orais.(FLORES, 2007, p. 95)É a partir <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des dessa intersecção entre a história científica e a históriasem historiadores que este trabalho encontra seu lugar. Pretendemos abor<strong>da</strong>r academicamenteesse pensar historicamente realizado fora dos muros <strong>da</strong> academia, e nos apropriarmos delepara observar como esse tipo de saber é produzido e difundido através <strong>da</strong> análise <strong>da</strong>s chargese cartuns produzidos por Angeli, veiculados na revista Chiclete com Banana.Ain<strong>da</strong> nessa perspectiva, procuraremos perceber esse pensar historicamente nalinguagem humorística com base de apoio em Henri Bergson e suas premissas:Para compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu ambiente natural que é asocie<strong>da</strong>de; impõe-se sobretudo determinar-lhe uma função útil, que é uma funçãosocial. (...). O riso deve corresponder a certas exigências <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> comum. O riso deveter uma significação social.(BERGSON, 1980, p. 14)Apesar do texto de Bergson apresentar algumas contradições que foram analisa<strong>da</strong>s porVerena Alberti (1999) no seu livro O riso e o risível na história do pensamento, devemoslevar em consideração que tanto a própria Alberti como outros autores por ela citados,consideram como váli<strong>da</strong> a ideia <strong>da</strong> ação corretiva do riso. Primeiramente é preciso esclarecerque Bergson identificou o cômico como uma ação mecânica aplica<strong>da</strong> sobre o vivo; este deveser compreendido como a ordem natural <strong>da</strong>s coisas, aquilo que é naturalmente aceitável: “Adefinição do cômico como 'mecânico aplicado sobre o vivo' ganha sentido na medi<strong>da</strong> em queo riso adquire função social: aquilo de que se ri é aquilo de que é preciso rir para restabelecer


10o vivo na socie<strong>da</strong>de” (ALBERTI, 1999, p. 185). Dessa maneira, o riso adquire um caráterdenunciador e restabelecedor, ele aponta o que não está correto buscando, assim, agir noretorno à ordem natural, no caso, o vivo. Esta significação social é a tentativa de Bergson emexplicar as causas do cômico e pode ser percebi<strong>da</strong> como aquilo que precisa ser corrigido eneste ponto, encontra convergência com a produção de Angeli. Segundo a proposta deBergson podemos caracterizar o cenário que Angeli observou como o vivo em desacordo, seuriso buscou denunciar este erro para que os mecanismos de correção pudessem serencontrados.Além de Bergson fizemos uso de um outro autor para nos apoiar na análise do cômico,Vladmir Iakovlevich Propp. Semiólogo russo, lecionou na <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> de Leningrado de1938 até o final <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>. Seus trabalhos mais importantes são dedicados aos problemas <strong>da</strong>teoria e história do folclore, porém, a obra que utilizamos no nosso trabalho é seu últimoestudo, Comici<strong>da</strong>de e riso.Sendo essencialmente um etnólogo e um lógico (pelo menos no modo de agrupar os<strong>da</strong>dos e argumentar), ele conduz sua pesquisa no sentido de estabelecer umatipologia do cômico, na base de materiais fornecidos pela literatura e pelo folclore,mas também com um balanço crítico do que já se escreveu sobre o tema.(SCHNAIDERMAN, 1992, p. 7)Nos apoiamos nas categorias desta tipologia do riso para tecermos nossas análisessobre as produções de Angeli, de maneira a compreender o risível por elas suscitado.Entretanto, acreditamos ser necessário esclarecer uma questão <strong>da</strong> nossa pesquisa:apesar de Propp defender o riso tout court, indo de encontro à finali<strong>da</strong>de social do riso e, logo,estando em posição contrária a Bergson, autor que também utilizamos, devemos recor<strong>da</strong>r,neste momento, que o nosso interesse em Propp reside nas categorias risíveis por eledesenvolvi<strong>da</strong>s. Até mesmo porque, ao contrário de outros teóricos do riso, Propp não teve aintenção de abor<strong>da</strong>r o cômico em oposição a uma outra categoria, como a tragédia porexemplo, mas circunscrito ao seu próprio domínio, pois acreditava ser esta a melhor maneirade compreendê-lo. Para o autor “em ca<strong>da</strong> caso isolado é preciso estabelecer a especifici<strong>da</strong>dedo cômico, é preciso verificar em que grau e em que condições um mesmo fenômeno possui,sempre ou não, os traços <strong>da</strong> comici<strong>da</strong>de” (PROPP, 1992, p. 20).Daí a necessi<strong>da</strong>de de analisar as categorias isola<strong>da</strong>mente, pois “diferentes aspectos decomici<strong>da</strong>de levam a diferentes tipos de riso” (PROPP, 1992, p. 24). Portanto, ao utilizar ascategorias risíveis propostas por Propp, alia<strong>da</strong>s à função corretiva do riso defendi<strong>da</strong> porBergson, procuramos esboçar a tipologia do riso presente na produção de Angeli, que possuitanto elementos que a aproximam de Propp, quanto detém um caráter denunciador que nos


11leva a acercá-la de Bergson.Estreitando um pouco mais a abor<strong>da</strong>gem, a escolha dos quadrinhos que faziamreferência à política nos fez caminhar em direção aos estudos voltados para a cultura política,o que nos possibilitou o encontro com Angela de Castro Gomes; esta, apoia<strong>da</strong> nos diálogosentre Ciência Política, Sociologia Política e Antropologia, entende a cultura política como(...) um sistema de representações, complexo e “heterogêneo”, mas capaz de permitira compreensão que um determinado grupo (cujo tamanho pode variar) atribui a umadetermina<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de social, em determinado momento do tempo.(GOMES, 2005, p. 31)Ain<strong>da</strong> segundo a autora:(...) estu<strong>da</strong>r uma cultura política, ou melhor, trabalhar com sua formação edivulgação – quando, quem, através de que instrumentos - , é entender como umacerta interpretação do passado (e do futuro) é produzi<strong>da</strong> e consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>, integrando-seao imaginário ou à memória coletiva de grupos sociais, inclusive nacionais.(GOMES, 2005, p. 33)Trabalharemos nesta proposta menciona<strong>da</strong> pela autora, buscando perceber essacompreensão do contexto político vivido pelo grupo que produzia a revista Chiclete comBanana, a partir <strong>da</strong> figura de Angeli, que, como editor-chefe, era responsável, em largamedi<strong>da</strong>, pela concepção intelectual <strong>da</strong> publicação. Buscaremos compreender como suaprodução foi gesta<strong>da</strong> e difundi<strong>da</strong>, quais grupos visava atingir, e as contribuições deixa<strong>da</strong>s paraa história/memória e, não menos importante, quais situações e acontecimentos <strong>da</strong> época essashistórias, matérias e crônicas do cotidiano representam ou criticam.Portanto, pretendemos, apoiados na leitura <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> autora, identificar estasrepresentações sociais do mundo <strong>da</strong> política presentes na revista e produzi<strong>da</strong>s pelo cartunistaAngeli, inserindo-as no universo maior <strong>da</strong> cultura histórica, e identificando-as, não apenascomo representações do período ou visões de grupo ou de um indivíduo, mas como produçãointelectual e artística mol<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo contexto em que surge, sobre o qual também produzdiscursos, esses capazes de influir nas concepções e práticas políticas de seus leitores.Nosso trabalho está inserido na linha de pesquisa Ensino de História e SaberesHistóricos, buscamos dentro desse espaço analisar as representações construí<strong>da</strong>s pelocartunista sobre o período escolhido, entendendo as mesmas como versões <strong>da</strong> história.Compreendemos que os saberes produzidos nos mais diversos espaços de manifestação <strong>da</strong>cultura refletem as visões do indivíduo sobre determina<strong>da</strong> época, tal personagem constrói seudiscurso marcado pelos interesses do grupo ao qual pertence produzindo dessa maneirasaberes sobre a história.


121.2. Cultura e contracultura: definindo espaçosEstu<strong>da</strong>r os quadrinhos de Angeli, especialmente seu trabalho na Chiclete com Banana,nos levou a buscar conhecimento sobre o contexto histórico que o influenciou e, dessamaneira, a tecermos reflexões sobre a contracultura, pois a linguagem adota<strong>da</strong> por ele nãoestava de acordo com os padrões comerciais do mercado editorial <strong>da</strong> época. Masespecificamente, o que viria a ser um movimento ou uma expressão <strong>da</strong> contracultura?Tomando o termo “ao pé <strong>da</strong> letra”, podemos entender, de imediato, como algo em oposição,devido ao prefixo “contra” presente na palavra, acrescido <strong>da</strong> palavra “cultura”, no caso pornós abor<strong>da</strong>do, leva-nos a, de imediato, entendê-la como em referência a uma manifestaçãocontrária a uma cultura estabeleci<strong>da</strong>. Porém, a discussão não se esgota de maneira tão simples,e acreditamos que para compreender esta postura de oposição, é necessário primeiramenteelaborar algumas considerações acerca do pensar sobre cultura, não esquecendo, contudo, quea própria palavra isola<strong>da</strong> já provoca debates profundos e complexos. Como afirma Williams,isso ocorre porque:Cultura é uma <strong>da</strong>s duas ou três palavras mais complica<strong>da</strong>s <strong>da</strong> língua inglesa. Isso emparte por causa do seu intrincado desenvolvimento histórico em diversas línguaseuropeias, mas principalmente porque passou a ser usa<strong>da</strong> para referir-se a conceitosimportantes em diversas disciplinas intelectuais distintas e em diversos sistemasdistintos e incompatíveis.(WILLIAMS, 2007, p. 117)Os significados a ela atribuídos modificaram-se ao longo do tempo, adquirindocontornos correspondentes às mu<strong>da</strong>nças ocorri<strong>da</strong>s na própria história. Percebemos, em autorescomo Raymond Williams e Terry Eagleton, o esforço em mapear essas mu<strong>da</strong>nças e a tentativade delinear as versões existentes desse termo.Desde a sua origem, a palavra cultura encontra-se acomo<strong>da</strong><strong>da</strong> em uma teia designificados. Da sua raiz latina, colere, temos, como termos relacionados, os seguintes“habitar, cultivar, proteger, honrar com veneração” (WILLIAMS, 2007, p. 117). Ca<strong>da</strong> umadestas palavras desdobrou-se no caminho de um sentido próprio. Por exemplo, habitar derivoupara o sentido de colônia ou colonizar; honrar, do latim cultus, a<strong>da</strong>ptou-se para cult (culto, nosentido religioso), e cultura foi associa<strong>da</strong> ao sentido de cultivo, cui<strong>da</strong>do. Esse sentido foimuito utilizado até o início do século XVI. A partir desse período, outro significado foiadicionado à palavra cultura, sem, contudo, anular a utilização do anterior, que é o de culturaenquanto desenvolvimento humano; esses dois sentidos foram os mais utilizados até o finaldo século XVIII e início do século XIX. Williams ain<strong>da</strong> elenca “três categorias amplas e


13ativas de uso” (WILLIAMS, 2007, p. 121) para a palavra cultura:(i) o substantivo independente e abstrato que descreve um processo dedesenvolvimento intelectual, espiritual e estético a partir do S18; (ii) o substantivoindependente quer seja usado de modo geral ou específico, indicando um modo devi<strong>da</strong> particular, quer seja de um povo, um período, um grupo <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de emgeral (...); (iii) o substantivo independente e abstrato que descreve obras e práticas <strong>da</strong>ativi<strong>da</strong>de intelectual e, particularmente artística.(WILLIAMS, 2007, p. 121)Usualmente, este terceiro sentido tem sido empregado com frequência quando serefere à cultura, entretanto, sua origem é difícil de ser <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> porque, segundo o autor, tratase,na prática, de uma forma aplica<strong>da</strong> do primeiro sentido (WILLIAMS, 2007, p. 121).Quanto ao segundo sentido, teve seu desenvolvimento no final do século XIX e início deséculo XX, passando agora a ser antônimo de civilização, isso porque a palavra civilizaçãoassume uma função normativa e descritiva. No final do século XIX, civilização adquire umaconotação imperialista, afastando-se ain<strong>da</strong> mais do sentido de cultura, e favorecendo aemergência deste último, tendo em vista que o primeiro foi adquirindo um sentido valorativo;é a partir deste momento que entra em cena a noção de peculiari<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> povo, em ummovimento de reação ao colonialismo, uma abertura do olhar para a plurali<strong>da</strong>de cultural, emoposição à ideia de civilização, associa<strong>da</strong> aos comportamentos normatizados em seuparadigma ocidental.Percebemos aqui que a grande problemática não está na palavra em si, mas na grandevarie<strong>da</strong>de de significados que adquiriu e incorporou ao longo do tempo e ain<strong>da</strong> podeincorporar, tendo em vista o período de desenvolvimento intelectual que vivemos, aveloci<strong>da</strong>de de circulação <strong>da</strong>s informações e seu reflexo na dinâmica de rápi<strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças designificados e conceitos.Entretanto, apesar de todos os significados que o termo abarca, voltamos nosso olharpara a ideia de cultura expressa na terceira proposta de Raymond Williams, sem desconsideraras demais proposições. No final do século XVIII e início do XIX, o termo cultura no sentidode produção artística e intelectual, terceira dimensão aponta<strong>da</strong> por Williams, foi relaciona<strong>da</strong>ao âmbito <strong>da</strong>s Belas Artes, restrita a um caráter erudito, exigindo certo refinamento intelectuale o domínio de um conhecimento técnico academicista e obediência a regras técnicas bastanterígi<strong>da</strong>s para que se pudesse adentrar no seu campo de conhecimento, era a cultura “eleva<strong>da</strong>”,ou Cultura, com maiúscula, tomando de empréstimo, mais uma vez,, as proposições de TerryEagleton. Referia-se às obras de arte, como pintura, escultura, música, literatura, enfim,apreensões individuais do mundo, mas devido ao caráter universalizante que esse sentido <strong>da</strong>palavra guar<strong>da</strong>, passaram a ser disseminados como um padrão para que uma produção


14material merecesse o status elevado de obra de arte. Destoando deste, existia uma produçãofora dos padrões <strong>da</strong> estética acadêmica hegemônica, mera produção popular, considera<strong>da</strong> noâmbito de expressões artísticas menores, muitas vezes não associa<strong>da</strong> ao termo arte, masartesanato, ou arte popular.Isso, entretanto, foi uma característica típica <strong>da</strong> alta moderni<strong>da</strong>de que, segundoJameson (1997, p. 28), teve sua fronteira em relação à cultura de massas diluí<strong>da</strong> pela intensamercadorização típica <strong>da</strong> pós-moderni<strong>da</strong>de 8 . Com o avanço <strong>da</strong>s comunicações de massa,caracterizando o que Raymond Williams considera “a cultura eleva<strong>da</strong> a sua mais altapotência histórica” (CEVASCO, 2007, p. 14), temos uma “abertura” no nível de abrangênciado conceito. A partir desse momento, a “fronteira” entre “alta” e “baixa” cultura passou a serdiluí<strong>da</strong> (EAGLETON, 2005, p. 80) com a utilização de meios de comunicação como ocinema, por exemplo, que consegue agregar em uma única linguagem refinamento artístico egosto popular, “e o aparecimento de novos tipos de texto, impregnados <strong>da</strong>s formas, categoriase conteúdos <strong>da</strong> mesma indústria cultural que tinha sido denuncia<strong>da</strong> com tanta veemência pelosideólogos modernos.” (JAMESON, 1997, p. 28). A produção cultural passou a ser vista comoum bem de consumo e, portanto, detentora de um forte potencial lucrativo. Tal processo levouao desenvolvimento de mecanismos de controle que despertassem o interesse do consumidorpela compra de tal mercadoria, assim, podemos afirmar que implementou-se uma ver<strong>da</strong>deirapropagan<strong>da</strong> com a finali<strong>da</strong>de de vender um determinado estilo de vi<strong>da</strong>.Podemos dizer que os movimentos contraculturais surgem no sentido oposto a estahomogenei<strong>da</strong>de inseri<strong>da</strong> no processo de transformação <strong>da</strong> cultura em mercadoria. Antes demais na<strong>da</strong>, é necessário circunscrever o nosso estudo, pois, ao falarmos de movimentos decontestação a um certo padrão estabelecido, certamente encontraremos a ocorrência dediversos momentos na história. Assim, no presente estudo, ao falarmos em contraculturaestamos nos referindo ao conceito mais contemporâneo, que diz respeito à mu<strong>da</strong>nça devalores e do comportamento <strong>da</strong> juventude <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1960, como uma forma de reação aosvalores culturais vigentes. Para contornos mais precisos, tomemos a definição proposta porLuís Carlos Maciel, e cita<strong>da</strong> no livro O que é contracultura, de Carlos Alberto M. Pereira:O termo “contracultura” foi inventado pela imprensa norte-americana, nos anos 60,para designar um conjunto de manifestações culturais novas que floresceram, não sónos Estados Unidos, como em vários outros países, especialmente na Europa e,8 Embora os debates em torno <strong>da</strong> pós-moderni<strong>da</strong>de estejam , de certa forma, “indefinidos”, pois alguns autoresain<strong>da</strong> não aceitaram o termo e questionam se o período em que nos encontramos pode ser denominado de talforma, no presente estudo optamos por adotar esta perspectiva tendo em vista que os autores aqui utilizados,Raymond Williams, Terry Eagleton e Frederic Jameson, a adotaram em suas obras. Procuraremos, ain<strong>da</strong>,entender o pós-modernismo em uma perspectiva na linha de Jameson “não como um estilo, mas como umadominante cultural” (JAMESON, 1997, p. 28).


embora com menor intensi<strong>da</strong>de e repercussão, na América Latina. Na ver<strong>da</strong>de, é umtermo adequado porque uma <strong>da</strong>s características básicas do fenômeno é o fato de seopor, de diferentes maneiras, à cultura vigente e oficializa<strong>da</strong> pelas principaisinstituições <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des do Ocidente.Contracultura é a cultura marginal, independente do reconhecimento oficial. Nosentido universitário do termo é uma anticultura. Obedece a instintos desclassificadosnos quadros acadêmicos.(MACIEL apud PEREIRA, 1983, p. 13) 915O conceito proposto por Maciel foi publicado originalmente na déca<strong>da</strong> de 1980, comum certo distanciamento temporal do início do movimento em si, porém, para compreendercomo tal situação se configurou, faz-se necessário um retorno ao autor que primeiro abordouo tema e fez uso do termo contracultura, Theodore Roszak.Vários autores ao abor<strong>da</strong>r o tema fazem menção à Roszak e à importância do seu livroThe Making of a Counter Culture 10 , de 1969, para os estudos posteriores sobre contracultura.Porém, ao utilizar esta obra como referência algumas considerações precisam ser feitas. Aprimeira é que por ter sido escrito muito próximo aos acontecimentos, ou melhor,contemporâneo ao movimento, o autor não possuía o distanciamento necessário para realizaruma abor<strong>da</strong>gem tal qual se necessita no caso de um estudo assim. Em segundo lugar, eleignora a ocorrência do movimento em outros pontos, considerando apenas os Estados Unidoscomo berço <strong>da</strong> contracultura.Existem outros autores que apontam uma direção diferente sobre o nascimento <strong>da</strong>contracultura, entre eles temos Matteo Guarnaccia, que, na difícil tarefa de <strong>da</strong>tar o início domovimento, apontado por volta do ano de 1966, quando em Amsterdã, na Holan<strong>da</strong>, um grupode anarquistas que se autodenominavam Provos, adotaram medi<strong>da</strong>s e comportamentos queposteriormente foram compreendi<strong>da</strong>s como contraculturais. O mesmo autor explica queatribuir o pioneirismo dos movimentos contraculturais à juventude norte-americana deve-seao alcance do seu idioma e <strong>da</strong> força de sua indústria cultural (OLIVEIRA, 2007, p. 69-70).Não podemos deixar de concor<strong>da</strong>r de certa forma com tal afirmação, pois o alcance <strong>da</strong> culturanorte-americana foi ampliado a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1920, quando houve uma intensavalorização dos produtos e bens culturais norte-americanos, e tal estratégia deestabelecimento do seu padrão de vi<strong>da</strong> sobre os demais foi muito mais intenso no períodoapós a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial 11 . Dessa maneira, guar<strong>da</strong>ndo as devi<strong>da</strong>s ressalvas jámenciona<strong>da</strong>s, utilizaremos Roszak nesta discussão devido à sua grande importância para os9 Luís Carlos Maciel pode ser considerado o grande divulgador <strong>da</strong> contracultura no Brasil. Foi colaborador doPasquim nos anos 70, assim como de outros jornais underground. Publicou vários livros sobre o tema( PEREIRA, Brasiliense, 1983).10 O livro foi publicado no Brasil em 1972 com o título A contracultura, pela Editora Vozes.11 A propósito desta penetração cultural, especialmente referente ao caso brasileiro, Gerson Moura discute a“política <strong>da</strong> boa vizinhança” como uma estratégia que possibilitou a invasão de produtos culturais norteamericanosno Brasil, e com eles, seus valores e estilos de vi<strong>da</strong>. (MOURA, 1985)


16estudos sobre o tema.Roszak busca as raízes <strong>da</strong> contracultura na geração beatnik, na déca<strong>da</strong> de 1950, ou,como ficaram mais conhecidos, os beats. Tal agrupamento artístico não pode ser consideradoum fenômeno organizado, tanto na sua estética quanto na questão <strong>da</strong> existência de objetivosem comum. O nome Beat Generation, foi criado por aquele que é considerado seu maiorexpoente, o escritor e romancista Jack Kerouac. Tal termo se popularizou a partir de umareportagem do jornalista Clellon Holmes, veicula<strong>da</strong> no New York Times em novembro de1952. De acordo com os autores André Bueno e Fred Goes, a palavra é uma fusão de beatcom Sputnik, a nave soviética que iniciou a corri<strong>da</strong> espacial na déca<strong>da</strong> de 1950. Segundo osautores, não poderia haver designação melhor para os participantes deste processo derenovação artística, “já que os poetas e escritores Beats eram, de fato, ver<strong>da</strong>deiros foguetes,inquietos, ligados, criativos, absolutamente em contraste com a pasmaceira e a caretice <strong>da</strong>déca<strong>da</strong> de 50 americana” (BUENO e GOES, 1984, p. 6). Em uma explicação mais direta, osreferidos autores oferecem a seguinte caracterização:A Geração Beat foi uma geração em movimento: ia dos poemas às estra<strong>da</strong>s,passando por bares e cafés, festas e drogas, comuni<strong>da</strong>des e qualquer outro tipo depalco onde estivesse a vi<strong>da</strong>.Portanto, muito mais que um grupo de intelectuais reunidos em torno de um projetoestético definido num programa, muito mais do que um grupo de acadêmicosestéreis tentando salvar o mundo dentro dos confortáveis muros <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de.(BUENO e GOES, 1984, p. 7)O espírito de liber<strong>da</strong>de tão perseguido pelos beats, desde os seus escritos à própriaforma de vi<strong>da</strong> adota<strong>da</strong> por eles, abriu as portas para o surgimento de outras posturasinfluencia<strong>da</strong>s por eles, pois, como afirmaram Ken Goffman e Dan Joy: “O espíritocontracultural fun<strong>da</strong>mental se reinventa de formas imprevisíveis, estilos chocantes e novosmodelos” (2004, p. 46).Na tentativa de explicar essa avant gard <strong>da</strong> juventude estadunidense na adoção deatitudes contraculturais, Roszak elenca alguns fatores que considera como condicionantes.Um deles seria o fato de que após a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial o país foi o que mais sofreu oimpacto do remodelamento social, econômico e cultural, aplicado pela tecnocracia, defini<strong>da</strong>pelo mesmo como:Quando falo em tecnocracia, refiro-me àquela forma social na qual uma socie<strong>da</strong>deindustrial atinge o ápice de sua integração organizacional. É o ideal que geralmenteas pessoas têm em mente quando falam de modernização, atualização,racionalização, planejamento. Com base em imperativos incontestáveis como aprocura de eficiência, a segurança social, a coordenação em grande escala dehomens e recursos, níveis ca<strong>da</strong> vez maiores de opulência e manifestações crescentesde força humana coletiva, a tecnocracia age no sentido de eliminar as brechas e


17fissuras anacrônicas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de industrial.(ROSZAK, 1972, p. 19)Os Estados Unidos compunham o espaço adequado para a implementação de talsistema por diversos fatores, como, por exemplo, o fato de terem saído praticamente ilesos <strong>da</strong>Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial, pois os maiores <strong>da</strong>nos foram no continente europeu. Em talposição, puderam assumir o controle do bloco capitalista no cenário que se configurou após aguerra, assumindo também a responsabili<strong>da</strong>de sobre os mecanismos de controle do avanço dosocialismo, assim como também empreendeu uma divulgação, em larga escala, na tentativa devender, ou mesmo impor, o seu modo de vi<strong>da</strong>.Como outro fator motivador, Roszak aponta o fato de que a juventude norte-americanaestava menos inclina<strong>da</strong> à “luta política tradicional” que a europeia, esta detentora de umatradição de engajamento bem mais antiga e enraiza<strong>da</strong>. “Para Roszak, os europeus estavammais ligados à esquer<strong>da</strong> tradicional e tinham uma sóli<strong>da</strong> história de organizaçãopolítica.”(OLIVEIRA, 2007, p. 70). Além disso, o autor aponta como falha do socialismoidentificar o lucro como fonte dos males <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, segundo o mesmo, o ver<strong>da</strong>deiroinimigo, no caso a tecnocracia, permaneceria independente do sistema econômico vigente,pois a burocratização, característica <strong>da</strong> mesma, permaneceria atuando de maneirasignificativa.Entretanto, neste ponto, concor<strong>da</strong>mos com Oliveira (2007), que, em seu estudo, teceuo seguinte comentário sobre a crítica de Roszak à juventude europeia:Uma olha<strong>da</strong> mais atenta ao desenvolvimento <strong>da</strong>s ideologias socialistas na Europanos revela que, desde a formação <strong>da</strong>s primeiras organizações de trabalhadores, sãomúltiplas as correntes que propugnam seus próprios métodos e caminhos àrealização <strong>da</strong> utopia maior <strong>da</strong>s esquer<strong>da</strong>s: uma socie<strong>da</strong>de livre, igualitária e fraterna.Nesse sentido, os jovens europeus tinham, sim, como almejar uma mu<strong>da</strong>nça plena destatus quo; e talvez tivessem até mais subsídios históricos que os coetâneos do outrolado do pacífico.(OLIVEIRA, 2007, p. 71)Dessa maneira, fazemos aqui um retorno à ideia de Matteo Guarnaccia, e verificamosque os europeus não tinham menos condições que os norte-americanos para o surgimento depráticas contraculturais, até mesmo porque muitos autores consideram os eventos de maio de68 como expressões <strong>da</strong> contracultura. Mas a facili<strong>da</strong>de ofereci<strong>da</strong> pela populari<strong>da</strong>de do idiomainglês e a força de alcance dos seus produtos culturais contribuiu para esta atribuiçãovanguardista à juventude norte-americana. Porém, antes de encerrar a discussão, nos cabetambém fazer mais uma vez a defesa de Roszak como elaborador de um estudo demasiadopróximo do seu objeto para uma análise mais distancia<strong>da</strong>, assim, equívocos como este podem


18ser perdoados.To<strong>da</strong>via, independente <strong>da</strong> sua origem precisa, é inegável a influência destesmovimentos de contestação aos padrões vigentes, uma vez que, a partir dos mesmos foipossibilita<strong>da</strong> a abertura para uma outra infini<strong>da</strong>de de manifestações que se desdobram até osnossos dias, pois a juventude sempre encontra caminhos para apresentar suas insatisfaçõesdiante <strong>da</strong>s condições existenciais. Temos aqui, então, a fonte <strong>da</strong> qual beberia a imprensaunderground, um espaço de veiculação <strong>da</strong>s ideias destas diversas tribos, nasci<strong>da</strong>s a partirdeste primeiro passo <strong>da</strong>do por seus antecessores, um tipo de comunicação que, assim como asexpressões contraculturais antecessoras ao seu surgimento, era extremamente mutante, eavançou adquirindo contornos quiçá inesperados, mas não menos desejados pelos seusidealizadores, alcançando um espaço próprio e chegando mesmo a formar editoras, nãoapenas nos EUA como também no Brasil. É como parte desse processo que surge o trabalhode Angeli e a revista Chiclete com Banana.Porém, antes de inciarmos a discussão sobre nosso autor e sua produção, acreditamosser necessário fazer alguns esclarecimentos acerca <strong>da</strong> própria história <strong>da</strong>s histórias emquadrinhos, assim como <strong>da</strong>s características próprias desta linguagem, enquanto portadora dediversos significados e veiculadoras de conhecimento.1.3. Histórias em quadrinhos e representações culturais na contemporanei<strong>da</strong>deJá discutimos, no presente texto, os vários sentidos atribuídos à palavra cultura; onosso estudo abor<strong>da</strong>rá um dos aspectos indicados, o de produção artística e intelectual,visando, como foi explorado no tópico anterior, ressaltar os pontos de convergência entreproduções artísticas e contexto histórico, com a ressalva de que tais expressões veiculavam,no caso <strong>da</strong> escolha do nosso estudo, uma posição de contestação, tanto aos padrões estéticosdo que se produzia na época, quanto ao próprio contexto observado por seu produtor e pelogrupo artístico ao qual o mesmo pertencia. Vale aqui retornar a Chartier e sua afirmação deque as percepções do social produzem estratégias e práticas, e aproximá-lo de Eagleton(2005) e de sua concepção de que o valor <strong>da</strong>s obras é atribuído coletivamente.Partindo <strong>da</strong> ideia <strong>da</strong>s produções artísticas como formas de percepção do social,incorporemos a essas produções os meios de comunicação de massa que surgem no frenesi <strong>da</strong>socie<strong>da</strong>de industrial e atravessam as épocas, ampliando sua influência sobre a socie<strong>da</strong>de epassando por processos de mutação em busca <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptabili<strong>da</strong>de aos novos tempos.A “era industrial” nos trouxe a expansão <strong>da</strong> imprensa e a mercantilização <strong>da</strong>sinformações, e não apenas dela, pois, a partir do momento em que o sistema capitalista passa


19a adquirir contornos ca<strong>da</strong> vez mais nítidos,(...) a localização do eixo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social na relação dominante <strong>da</strong> produção sobre oconsumo, na transfiguração dos objetos, coisas e até mesmo sentimentos emmercadoria, criou uma racionali<strong>da</strong>de típica e pragmática, essencialmente dirigi<strong>da</strong>para a rentabili<strong>da</strong>de de qualquer ativi<strong>da</strong>de humana.(COHEN e KLAWA, 1997, p. 104)Dessa forma, tomamos a liber<strong>da</strong>de de afirmar que temos aqui o processo demercadorização <strong>da</strong> cultura em seu estágio inicial. Através <strong>da</strong> abrangência dos meios decomunicação de massas, os sentimentos e sensações passam a ser vendidos, através de umanotícia chocante, em primeira mão, ou do suspense que o fim de um romance em fascículospode proporcionar; ou até mesmo a alegria por um final feliz, ou as lágrimas por umacontecimento triste com determinado personagem com o qual se criou uma certa empatia,como em um seriado de TV, por exemplo.Nesse clima, a imagem foi introduzi<strong>da</strong> na vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas, alia<strong>da</strong> ao texto, tem seupoder de sedução ampliado. As imagens passaram a ser amplamente emprega<strong>da</strong>s, seja empropagan<strong>da</strong>s ou notícias; elas começaram a inun<strong>da</strong>r o meio social com sua presençaarrebatadora, carregando em si, mais uma vez recorrendo à Chartier, os interesses <strong>da</strong>quelesque as produziram. No caso <strong>da</strong> nossa fonte de estudo, as histórias em quadrinhos, podemospercebê-las não apenas como representantes de características culturais, mas também comoprodutoras de cultura.Direcionando ain<strong>da</strong> mais nossa discussão, fechemos no atual contexto <strong>da</strong> cultura nasocie<strong>da</strong>de pós-moderna, e tentemos explicar a condição dessa linguagem dentro <strong>da</strong>spossibili<strong>da</strong>des deste contexto.Tendo em vista o espaço de plurali<strong>da</strong>de verificado em tempos pós-modernos, alinguagem dos quadrinhos também não deixa de ser um campo plural. São vários os gênerosexistentes atualmente, porém, devido à abor<strong>da</strong>gem proposta no presente estudo, tomaremoscomo exemplo a indústria editorial dos quadrinhos, tendo como referência os Estados Unidos,e o movimento contrário à massificação e estan<strong>da</strong>rdização dessa produção, que inclui osautores dos quadrinhos conhecidos como underground, vertente veicula<strong>da</strong> a uma <strong>da</strong>s formasde expressão <strong>da</strong> contracultura, poisPara poder se falar em contracultura deve-se ter em mente que existe uma cultura,uma forma de pensar, compreender e significar o mundo que seja hegemônica, sendoentão a expressão de contracultura uma forma de questionar (seja estética, sejaconceitualmente ou ambas) essa hegemonia.(COIMBRA e QUELUZ)O início <strong>da</strong> publicação regular de quadrinhos ocorreu através <strong>da</strong> imprensa. Nascidos


20como suplementos dominicais de jornais, esse tipo de linguagem que teve início no final doséculo XIX, avançou até o século XX, tendo como característica forte o humor. Até a déca<strong>da</strong>de 1920, teve presença muito marca<strong>da</strong> nas histórias em quadrinhos, veicula<strong>da</strong>s nos jornais,um humor considerado leve e descompromissado. Aos poucos, os quadrinhos norteamericanosemanciparam-se <strong>da</strong> imprensa periódica e adquiriram espaço próprio.Na déca<strong>da</strong> de 1930 ocorreu o despontar de um gênero que passaria a ser identificadocomo típico dos Estados Unidos: o dos super-heróis. Há muitas controvérsias sobre qualpersonagem teria iniciado este tipo de gênero, mas, ao que tudo indica, o início desse tipo dehistória teria sido com o personagem O Fantasma, criado por Ray Moore, em 1934,conhecido também como “o espírito que an<strong>da</strong>”. Esse personagem abriu caminho para osdemais super-heróis, cujo sucesso ofuscou o brilho desse primeiro desbravador. No ano de1938, tivemos o aparecimento do personagem Superman, escrito por Jerry Siegel e desenhadopor Joel Shuster. Esse personagem foi desenvolvido em um momento de grande tensão,quando o mundo enfrentava o início <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial, e serviu à necessi<strong>da</strong>depolítica norte-americana de criação de um símbolo que inspirasse a população, revestido deum poder de comunicação abrangente e centralizado em uma determina<strong>da</strong> figura, o Supermancumpriu esse papel.No ano seguinte, foi criado o personagem oposto ao Superman, o Batman, criação deBob Kane, entretanto, essa oposição deve ser entendi<strong>da</strong> como uma complementari<strong>da</strong>de, duasfaces de uma mesma moe<strong>da</strong>, pois o primeiro é um herói do dia, <strong>da</strong>s luzes, enquanto o segundoprefere a noite, as trevas. Com o passar do tempo, esse “estilo” de fazer quadrinhos difundiusepara outras partes do mundo, ao ponto de tal linguagem ser limita<strong>da</strong>, muitas vezes, àrelação com esse gênero específico.Na teia multifaceta<strong>da</strong>, proporciona<strong>da</strong> pela pós-moderni<strong>da</strong>de, surgiu um movimento emvia contrária, que possibilitou a emergência do quadrinho underground. Este teve surgiu nacontra-mão <strong>da</strong> vertente hegemônica, pois não se desenvolveu no seio <strong>da</strong> indústria cultural esim na sua periferia. “Publicado de forma artesanal, vendido na rua pelo próprio desenhista ealguns amigos a própria obra satirizava todos os costumes e valores mais defendidos pelosconservadores” (PATATI e BRAGA, 2006, apud COIMBRA e QUELUZ).Podemos entender o desenvolvimento do estilo underground como uma resposta aocódigo de ética imposto às histórias em quadrinhos. A partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1950, teve iníciouma perseguição aos quadrinhos a partir <strong>da</strong> repercussão <strong>da</strong>s ideias defendi<strong>da</strong>s pelo psiquiatraFredric Wertham em sua obra Seduction of the Innocent. No livro Wertham afirmava que osquadrinhos eram uma leitura nociva às crianças, podendo levá-las à preguiça mental e àdelinquência, a partir desse discurso foi elabora<strong>da</strong> uma série de códigos sobre o que poderia


21ser abor<strong>da</strong>do nos quadrinhos, aqueles que não estivessem de acordo com o código nãoreceberiam o selo de quali<strong>da</strong>de e, consequentemente, teriam uma que<strong>da</strong> nas ven<strong>da</strong>s. Após ainstauração desse código os quadrinhos passaram por uma reformulação no seu conteúdo paraatender às exigências nele conti<strong>da</strong>s. Com temas totalmente opostos aos quadrinhos“industriais”, a proposta dos quadrinhos underground é realmente inovar, romper com ospadrões estabelecidos pelo gênero dos super-heróis, mostrando àquilo que os códigos de éticaimpediam. A obra que inaugura este estilo é a publicação Zap Comics, de Robert Crumb:A linguagem usa<strong>da</strong> por Crumb e que depois serviria de inspiração para osquadrinistas brasileiros era normalmente do traço preto e branco, não apenas pelobaixo custo de impressão, mas também pelo contraste visual que provoca. Assombras eram normalmente representa<strong>da</strong>s no trabalho de Crumb, mas isso não setornou regra e posteriormente variou conforme a forma de trabalho de ca<strong>da</strong> artista.(COIMBRA e QUELUZ)Portanto, podemos identificar este tipo de linguagem como um rompimento com omodelo anteriormente estabelecido e, a propósito, dominante e industrial, de fazer quadrinhos,mas também como reflexo <strong>da</strong>quele momento histórico que contava com a presença domovimento hippie, a valorização <strong>da</strong> cultura pop, o espírito de rebeldia e questionamento dossistemas e do status quo. A época proporcionou condições para o desenvolvimento dessalinguagem, experimentações e inovações na arte dos quadrinhos.No caso do Brasil não poderia deixar de ser diferente, o contexto do desenvolvimentode linguagens alternativas também teve suas características próprias, que marcarampeculiarmente a produção dessas publicações alternativas. No Brasil, os autores adeptos domovimento de contracultura, buscaram uma expressão nacional, tupiniquim, para caraterizarseu movimento, encontrando na expressão udigrudi uma denominação adequa<strong>da</strong> ao quepretendiam. Porém, guar<strong>da</strong>remos para os capítulos seguintes um aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>sdiscussões sobre o quadrinho nacional, a Chiclete com Banana, de Angeli, pois, antes de tudoacreditamos ser necessário uma breve introdução sobre a linguagem <strong>da</strong>s histórias emquadrinhos no tocante às suas questões estruturais.1.4. Algumas considerações sobre o gênero <strong>da</strong>s histórias em quadrinhos: conceituação ecaracterísticas marcantes <strong>da</strong> linguagemComecemos nossa discussão a partir <strong>da</strong> afirmação de Paulo Ramos de que “lerquadrinhos é ler sua linguagem, tanto em seu aspecto verbal quanto visual (ou não verbal)”(2009, p. 14). Ou seja, para compreender as histórias em quadrinhos é necessário estar atento


22às duas linguagens que a compõem que seriam a escrita, transmiti<strong>da</strong> através dos balões, e avisual, representa<strong>da</strong> por meio <strong>da</strong>s imagens.Entretanto, tentemos primeiro entender o que são histórias em quadrinhos, começandopor reconhecer tratar-se de uma tarefa que, em si, apresenta muitas dificul<strong>da</strong>des, pois, comoPaulo Ramos (2009) apresenta, há uma diversi<strong>da</strong>de de nomes para conceituar os gênerosligados às histórias em quadrinhos. Porém, essa mesma varie<strong>da</strong>de constitui-se em umobstáculo para uma melhor caracterização <strong>da</strong> mesma, acarretando, na maioria <strong>da</strong>s vezes, aeleição de um termo, provisório, nas palavras de Ramos, e aleatório nas nossas, para referir-sea qualquer produção do gênero sem ao menos ter um conhecimento mais aprofun<strong>da</strong>do do quese trata; tamanha confusão é repassa<strong>da</strong> ao leitor e acaba, por fim, atrapalhando de certa formaseu entendimento.Durante muito tempo as histórias em quadrinhos foram considera<strong>da</strong>s um tipo de leituradesaconselhável, socialmente condena<strong>da</strong> pelas ativi<strong>da</strong>des liga<strong>da</strong>s à educação. Hoje, a situaçãoé bem diferente, considera<strong>da</strong> como um importante veículo como estímulo à leitura, no Brasilforam incluí<strong>da</strong>s nos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) e alguns títulos deste tipo delinguagem entraram na lista do PNBE (Programa Nacional Biblioteca na Escola). Além destaentra<strong>da</strong>, agora pela porta <strong>da</strong> frente, no cenário escolar brasileiro, acompanhamos, desde adéca<strong>da</strong> de 1990, um crescente número de a<strong>da</strong>ptações destas para as telas do cinema, oumesmo seriados de TV, o que nos faz perceber as atenções direciona<strong>da</strong>s às mesmasatualmente.Essa atenção, em escala crescente, dedica<strong>da</strong> às histórias em quadrinhos, proporciona adivulgação de outros títulos, diferentes dos já conhecidos, entre estes, percebemos a presençade a<strong>da</strong>ptações <strong>da</strong> literatura para a linguagem dos quadrinhos, criando uma proximi<strong>da</strong>de deconceituação entre ambas, possibilitando a caracterização de histórias em quadrinhos comoum tipo de literatura. No que diz respeito a este assunto, compartilhamos com Ramos a ideiade que chamar quadrinhos de literatura é “uma forma de procurar rótulos aceitos ouacademicamente prestigiados (caso <strong>da</strong> literatura, inclusive a infantil) como argumento parajustificar os quadrinhos, historicamente vistos de maneira pejorativa, inclusive no meiouniversitário” (2009, p. 17). Dessa maneira, concor<strong>da</strong>mos com Ramos ao afirmar que:“Quadrinhos são quadrinhos. E, como tais, gozam de uma linguagem autônoma, que usamecanismos próprios para representar os elementos narrativos” (2009, p. 17). Portanto, apesarde reconhecidos os pontos de ligação com outras linguagens que não apenas a literatura, mastambém o cinema, por exemplo, de acordo com o autor, devem ser analisa<strong>da</strong>s respeitandosuas características próprias e como um produto cultural que não precisa necessariamenteestar atrelado a um outro tipo de manifestação artística para ser considera<strong>da</strong> como tal, tese


23com a qual corroboramos e a partir <strong>da</strong> qual tratamos as histórias em quadrinhos como umalinguagem autônoma.Na busca de um conceito para a referi<strong>da</strong> linguagem, é muito comum recorrer ao termo“arte sequencial”, criado por Will Eisner (2010) em substituição ao termo comics, que omesmo considerava muito limitado por dizer respeito apenas aos quadrinhos de humor, esabemos que este tipo de narrativa abarca os mais variados gêneros. Porém, Edgar SilveiraFranco afirma que tal conceito é muito amplo, e não seria o ideal para conceituá-las, pois oreferido termo abre espaço para muitas confusões, entre elas a que permite a caracterização deanimação como “arte sequencial” (2004, p. 23).Como um conceito mais amplo, Edgar Silveira Franco cita outro teórico dosquadrinhos, Scott McCloud, que oferece a seguinte definição: “(...) imagens pictóricas eoutras justapostas em sequência delibera<strong>da</strong> destina<strong>da</strong>s a transmitir informações e/ou produziruma resposta no espectador” (MCLOUD apud FRANCO, p. 23). To<strong>da</strong>via, assim como adefinição de Eisner, a de McCloud também apresenta uma certa confusão, pois a mesmaexclui <strong>da</strong> esfera <strong>da</strong>s histórias em quadrinhos o cartum, a charge e a caricatura, linguagens queoutros teóricos também caracterizam como histórias em quadrinhos, e perspectiva com a qualtambém concor<strong>da</strong>mos.Desta maneira, concor<strong>da</strong>mos com Franco quando o mesmo apresenta a definição deAntonio Cagnin para quadrinhos como a mais sintética e compreensível para conceituar alinguagem <strong>da</strong>s histórias em quadrinhos, que é a seguinte: “A história em quadrinhos é umsistema narrativo formado por dois códigos de signos gráficos: a imagem, obti<strong>da</strong> pelodesenho; [e] a linguagem escrita” (CAGNIN apud FRANCO, 2004, p. 25). Portanto, a uniãoentre texto, imagem e narrativa visual, são as principais características <strong>da</strong>s histórias emquadrinhos (FRANCO, 2004, p. 25). Porém, é necessário recor<strong>da</strong>r que ca<strong>da</strong> um dos elementoscitados pode desmembrar-se em uma ampla gama de possibili<strong>da</strong>des e especifici<strong>da</strong>despróprias, enriquecendo ain<strong>da</strong> mais este tipo de linguagem.No tocante à escrita, uma grande especifici<strong>da</strong>de reserva<strong>da</strong> à linguagem dos quadrinhosé a forma como o texto é inserido neste tipo de representação. Pois, diferentemente <strong>da</strong>literatura, em que a escrita cursiva ocupa todo o espaço e se encarrega <strong>da</strong> descrição decenário, ou <strong>da</strong>s sensações e sentimentos dos personagens, nos quadrinhos o texto é veiculadopor meio de um recurso próprio deste tipo de linguagem: o balão. Tendo como uma <strong>da</strong>s suasfunções a de representar a fala, “os balões talvez sejam o recurso que mais identifica osquadrinhos como linguagem” (RAMOS, 2009, p. 34). Assumindo formas diferentes para ca<strong>da</strong>mensagem que pretendem expressar, os balões revelam a entonação do personagem, se é emvoz alta, se está sussurrando ou mesmo se é apenas um pensamento.


24Ain<strong>da</strong> no que diz respeito aos recursos <strong>da</strong> escrita empregados nos quadrinhos, há umempregado especialmente neste tipo de linguagem e que, assim como o balão, também acaracteriza: a onomatopeia. Elas são palavras escritas fora do balão e que, dessa maneira,fazem parte <strong>da</strong> composição <strong>da</strong> cena, utiliza<strong>da</strong>s para expressar ruídos, sons <strong>da</strong> natureza ougritos. Uma curiosi<strong>da</strong>de é que devi<strong>da</strong> à grande influência do quadrinho norte-americano, é quea maioria <strong>da</strong>s onomatopeias utiliza<strong>da</strong>s hoje foi importa<strong>da</strong> <strong>da</strong>queles, como por exemplo o uso<strong>da</strong>s palavras CRACK (para indicar o som de algo sendo partido) ou SPLASH (que indica osom <strong>da</strong> água sendo derrama<strong>da</strong> ou de um mergulho).Quanto à imagem, a forma como o desenho é elaborado revela sempre as intenções doautor. Em primeiro lugar devemos ter em mente que o principal elemento visual <strong>da</strong> narrativaem quadrinhos é exatamente o quadro, mesmo que ele não seja limitado pelas linhas laterais,como no caso de alguns trabalhos de Will Eisner, o espaço visual onde transcorre a cena é oelemento fun<strong>da</strong>mental deste tipo de narração. Tal qual o diretor faz no cinema, quando umartista desenha em plano geral, ou seja, mostrando todo o cenário em seus detalhes, querpassar ao leitor uma visão mais ampla <strong>da</strong> cena, entretanto, quando desenha em close, ele querevidenciar apenas um detalhe <strong>da</strong> cena, ou mesmo a emoção de um personagem, através de suaexpressão facial.Além disto, os quadrinhos guar<strong>da</strong>m uma outra especifici<strong>da</strong>de que nos faz necessitar deum conceito mais amplo, o corte gráfico. Ao contrário do que ocorre com o cinema, nosquadrinhos não podemos ter uma continui<strong>da</strong>de do movimento em todos os quadros <strong>da</strong> página,dessa maneira o leitor é responsável por construir a sequência mentalmente entre um quadro eoutro. Este recurso recebe o nome de elipse.As HQs dependem deste efeito elíptico para existirem e é a ele que se deve atribuir aparticipação mais efetiva do leitor na narrativa, pois sem essa complementaçãomental dos espaços 'vagos' na sequencia entre um quadrinho e outro, ela não poderiaconfigurar-se.(FRANCO, 2004, p. 44)Contudo, para além desta caracterização <strong>da</strong>s histórias em quadrinhos no que dizrespeito às suas questões estruturais, retomemos Paulo Ramos (2009) para umaprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>s questões conceituais pertinentes ao tema e, mais precisamente, ao objeto<strong>da</strong> nossa pesquisa.Na busca por conceituar o que seriam as histórias em quadrinhos, Paulo Ramos, emestudo realizado em 2007, elencou uma série de tendências comuns à linguagem, como porexemplo: a sequência, ou tipo textual narrativo; a presença de personagens fixos ou não; oformato de narrativa, que varia conforme o gênero, agregando poucos ou vários quadros; a


tendência ao uso de imagens desenha<strong>da</strong>s, mas também a utilização de recursos como afotografia, entre outros (2009, p. 19).25Com base nesse levantamento, o autor definiu histórias em quadrinhos como umgrande rótulo que une as características apresenta<strong>da</strong>s anteriormente, utiliza<strong>da</strong>s emmaior ou menor grau por uma diversi<strong>da</strong>de de gêneros, nomeados de diferentesmaneiras.(RAMOS, 2009, p. 20)Portanto, para caracterizar as histórias em quadrinhos, Paulo Ramos recorre aMaingueneau e as classifica como um hipergênero, este agregaria diversos outros, ca<strong>da</strong> umcom suas especifici<strong>da</strong>des (2009, p. 20). Porém, no que diz respeito ao presente estudo, nosinteressa no momento a caracterização de três gêneros pertencentes a este grande rótulo, deacordo com Paulo Ramos, que são as histórias em quadrinhos: a charge, o cartum e a tiracômica. Dessa maneira, estreitemos nossa discussão agora em torno destas que constituem, nocampo dos quadrinhos, o objeto de estudo <strong>da</strong> nossa dissertação.É muito comum observarmos em jornais e outros suportes que veiculam este tipo delinguagem por vezes classificarem charge, como cartum, tira cômica como charge, enfim,cometerem alguns equívocos quando à conceituação de ca<strong>da</strong> um destes gêneros. Antes detudo é necessário verificar que, apesar de serem textos unidos pelo humor eles são diferentesna sua estrutura (RAMOS, 2009, p. 16).Comecemos pela charge, à qual muitas vezes é atribuído o nome cartum,erroneamente, e vice-versa. Contudo, a diferença entre ambas é sutil e justifica certa confusãona classificação, em especial pelos leitores menos atentos. Tomemos como ponto de parti<strong>da</strong> oconceito para charge proposto por Paulo Ramos: “A charge é um texto de humor que abor<strong>da</strong>algum fato ou tema ligado ao noticiário. De certa forma, ela recria o fato de forma ficcional,estabelecendo com a notícia uma relação intertextual” (2009, p. 21). O principal alvo <strong>da</strong>scharges são os políticos, assim como as notícias a que normalmente se referem estãorelaciona<strong>da</strong>s, de alguma maneira, ao conteúdo político. E eis aí o seu principal ponto dediferença em relação ao cartum, este, diferente <strong>da</strong> charge, não precisa ter seu temarelacionado ao noticiário, não exigindo assim do leitor um conhecimento prévio do contextopara o seu entendimento.Diferente dos dois gêneros relacionados acima, a tira cômica não é tão conceitua<strong>da</strong> demaneira erra<strong>da</strong>, embora aconteça. Isso se deve a seu formato específico, e à linguagem bemmais próxima do que comumente caracterizamos como quadrinhos.A temática atrela<strong>da</strong> ao humor é uma <strong>da</strong>s principais características <strong>da</strong> tira cômica. Mas


há outras: trata-se de um texto curto (<strong>da</strong><strong>da</strong> a restrição do formato retangular, que éfixo), construído em um ou mais quadrinhos, com presença de personagens fixos ounão, que cria uma narrativa de desfecho inesperado no final.(RAMOS, 2009, p. 24)26Por se desenvolver em quadros sequenciados, a tira cômica faz amplo uso dos recursosanteriormente mencionados, como o corte gráfico, o enquadramento, os balões, asonomatopeias. Mas, diferente <strong>da</strong>s histórias em quadrinhos, neste sentido nos referindo às quepossuem um número maior de quadros e páginas, e muitas vezes estendendo-se por muitosvolumes, a tira cômica precisa de uma narrativa rápi<strong>da</strong>, alongando-se por no máximo umapágina, para ter seu efeito cômico atingido.Neste texto preliminar, buscamos inserir o leitor no universo em torno do objeto depesquisa, de modo a apresentar-lhe os pressupostos teóricos essenciais que norteiam nossotrabalho. Assim como também buscamos indicar noções básicas do mundo dos quadrinhos.No segundo capítulo, analisaremos a formação do mercado editorial de quadrinhos noBrasil, observamos as primeiras iniciativas de introdução desta linguagem no mercadonacional, verificando a luta para vencer a censura e os preconceitos, e buscando demonstrarcomo a produção nacional procurou conquistar seu espaço na dura rivali<strong>da</strong>de com osquadrinhos norte-americanos. Traçamos ain<strong>da</strong> um perfil do autor escolhido para o nossoestudo, identificando suas principais influências artísticas e intelectuais.No terceiro capítulo, buscamos caracterizar a revista Chiclete com Banana, desde acriação <strong>da</strong> Circo Editorial até o seu auge como sucesso de ven<strong>da</strong>s nacional. Realizamos umaanálise dos personagens de mais destaque, numa tentativa de compreender o artista a partir<strong>da</strong>s suas criações. Buscamos identificar também os fatores que levaram à interrupção <strong>da</strong>revista no auge do seu sucesso.O quarto capítulo é trabalhado a partir <strong>da</strong> análise do trabalho de Angeli como leituracrítica <strong>da</strong> conjuntura brasileira dos anos 1980. É nesse capítulo que se condensam asarticulações teóricas que fizemos no sentido de identificar de que forma um intelectual dohumor participa <strong>da</strong> construção de uma cultura histórica, tendo como base uma leitura crítica (erisível) do Brasil dos anos 1980, tendo como centro o panorama político nacional. Para estecapítulo escolhemos quatro linhas de observação que nos pareceram como mais evidentes noque diz respeito ao tema, são eles: a política e os partidos políticos, no qual buscamosidentificar as percepções do artista em uma perspectiva mais ampla; a Nova República, deacordo com a visão do mesmo, pois devido à forma como nasceu e se desenvolveu provocoudiversas críticas do cartunista; o lugar <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> radical no novo cenário, um espaço quenão oferecia oportuni<strong>da</strong>de para atuações mais radicais; e, por fim, as representações cômicas


27do poder executivo na figura do então presidente na época, José Sarney. Um vice-presidentetransformado em presidente na última hora, detentor de forte ligação com o regime anterior eque apesar do grande capital político que apresentava, foi muitas vezes associado aodesempenho desastrado e à falta de preparo para encaminhar soluções para as criseseconômica e política em curso, e, desse modo, oferecia um farto material para o nosso artista,e o resultado apresentamos no nosso estudo.Resta-nos agora convidá-los para que nos acompanhem neste nosso passeio pelaRepública dos Bananas, um país criado por Angeli, curiosamente (?!) parecido com o nossoBrasil, mas no espaço criado pelo autor, as imperfeições são amplia<strong>da</strong>s com uma lente dealtíssima potência, para através do exagero suscitar o riso e, num retorno ao pensamento deBergson, apresentar este desacordo em uma tentativa de “beliscar”, nas palavras do próprioautor, “a besta do ser humano”, para ver se ela acor<strong>da</strong>. Desejamos a todos uma boa leitura!


Capítulo 2 – Elaborando o argumento: <strong>da</strong> formação do mercado editorial brasileiro àformação do “personagem” Angeli28A função do cartunista é alfinetar,levantar discussão.(Angeli em entrevista à revista TRIP, n.191, 2010)Ao visitar uma banca de revistas ou uma comic shop (loja especializa<strong>da</strong> na ven<strong>da</strong> dehistórias em quadrinhos), podemos perceber a grande quanti<strong>da</strong>de de títulos que existeatualmente, bem como a diversi<strong>da</strong>de de segmentos, e isso sinaliza a preocupação <strong>da</strong>s editorasem conquistar novos leitores.Além dos já famosos super-heróis norte-americanos, espalhados por todo o mundo,com alcance e potencial de consumo entre diversos públicos e que desde as últimas duasdéca<strong>da</strong>s vêm ganhando as telas dos cinemas, contribuindo até para o crescimento de uma novavertente nesta outra linguagem, temos também o quadrinho “de autor”, não tão industrializadocomo o gênero dos super-heróis, mas com tamanha profundi<strong>da</strong>de de conteúdo que conseguiuconquistar seu próprio espaço no âmbito do público leitor de quadrinhos.Percebemos, também, o ingresso, no mercado brasileiro, de uma ramificação orientaldessa linguagem, na figura dos mangás (quadrinhos japoneses), que apesar <strong>da</strong> distânciaimposta, em primeiro lugar pela barreira <strong>da</strong> língua e, em segundo, pela <strong>da</strong> cultura, haja vistaque os costumes orientais são considerados exóticos pelos olhos ocidentais, conseguiramentrar no mercado ocidental; em primeiro lugar, foi a invasão dos animes (desenhosanimados que surgem a partir dos mangás, ou vice versa) e, em segundo, a consequentemanifestação dos fãs deste gênero por meio de eventos, realizados para troca de experiênciase de “figurinhas”. Inicia<strong>da</strong>s com poucos títulos e ocidentaliza<strong>da</strong>s no seu formato, aspublicações originais têm o seu sentido de leitura invertido. Essa vertente dos quadrinhosconquistou uma parcela considerável do público leitor, apresentando hoje nas prateleirasnacionais diversos títulos do seu mercado segmentado, do mais infantil ao explicitamenteadulto, e modificou até mesmo o sentido <strong>da</strong> leitura, pois, a partir de pedidos dos própriosleitores, o sentido oriental de leitura foi adotado e hoje podemos ler um mangá “de trás para afrente”, tal qual fazem no Japão.Quanto às histórias em quadrinhos nacionais, podemos verificar que atualmente,apesar <strong>da</strong> concorrência com os demais títulos de outros países, vivemos uma fase melhor quea anterior, e podemos aqui tomar a liber<strong>da</strong>de de afirmar que ocorreu graças à aberturaproporciona<strong>da</strong> pela revista Chiclete com Banana, na déca<strong>da</strong> de 1980. Justificamos a


29afirmação: anteriormente, o mercado era dominado por títulos estrangeiros e o espaço para aprodução nacional teve como exemplos mais significativos, antes <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1960, osclássicos <strong>da</strong> literatura <strong>da</strong> EBAL (Editora Brasil-América Lt<strong>da</strong>.) e algumas outras investi<strong>da</strong>sdesta mesma editora. Na déca<strong>da</strong> de 1960, entraram em cena os trabalhos de Ziraldo, queseguiram pela déca<strong>da</strong> de 1970 com sua atuação no Pasquim (1969) ao lado de Henfil, LuísFernando Veríssimo e Jaguar; no mesmo período, também tivemos a revista Balão (1970).Porém, a produção brasileira de quadrinhos, durante muito tempo, ficou conheci<strong>da</strong> como umaativi<strong>da</strong>de volta<strong>da</strong> para o público infantil, apesar <strong>da</strong> existência <strong>da</strong>s ações já menciona<strong>da</strong>s. Dasua entra<strong>da</strong> no mercado por meio de publicações com o nome Suplemento Infantil (1934)[grifo nosso] à força com que se sustentam até hoje as criações de Maurício de Sousa, oestigma de literatura exclusivamente infantil perdura. Porém, podemos constatar que omercado demonstra uma abertura e investimento maior em tal linguagem considerando adiversi<strong>da</strong>de de faixas etárias e públicos diferenciados em termos de opção estética, o quecontribui para o esmaecimento deste estigma.Hoje, temos compatriotas brilhando no concorrido mercado norte-americano, sejadesenhando personagens de proprie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s editoras, como é o caso dos paraibanos Deo<strong>da</strong>toFilho e Jackson Herbert, que na terra do Tio Sam assinam como Mike Deo<strong>da</strong>to e Jack Herbertrespectivamente, seja publicando suas próprias histórias, como é o caso dos gêmeos FábioMoon e Gabriel Bá, e do desenhista Rafael Grampá, os brasileiros vem alcançando, aospoucos, um crescente reconhecimento no mercado internacional. O próprio mercado nacionalvem demonstrando um investimento maior neste segmento, que percebemos por meio depublicações como Bando de Dois, novela gráfica resultante de uma pesquisa feita por DaniloBeyruth sobre o cangaço, o intimista Cachalote, de Daniel Galera e Rafael Coutinho 12 , o Taxi,de Gustavo Duarte, que sem acento no título e sem balões de diálogos rodou o mundo e vemconquistando ca<strong>da</strong> vez mais espaço, e muitas outras inciativas vem aparecendo no cenário dosquadrinhos nacionais.Podemos afirmar que, nos dias de hoje, as histórias em quadrinhos ocupam um espaçoprivilegiado, e foram incluídos na lista do PNBE, desde 2006. Entretanto, nem sempre foiassim, somente através do empenho dos que realmente acreditavam no potencial deste tipo deleitura os avanços mais significativos foram conquistados. Partindo deste presente prolíficopara a linguagem e a arte <strong>da</strong>s histórias quadrinhos, convi<strong>da</strong>mos nossos leitores a uma visita aopassado dos quadrinhos nacionais, para que possamos tomar conhecimento <strong>da</strong>s pedras queprecisaram ser removi<strong>da</strong>s na construção desta estra<strong>da</strong> <strong>da</strong> produção nacional, hoje em pleno12 Filho do cartunista Laerte Coutinho, um dos principais nomes do quadrinho alternativo no Brasil, ao lado deAngeli e Glauco Villas Boas.


30uso e cheia de acessos.2.1. A formação do mercado editorial brasileiroAssim como ocorreu nos Estados Unidos e na Europa, fica difícil estabelecer uma <strong>da</strong>tade início <strong>da</strong> produção <strong>da</strong>s histórias em quadrinhos no Brasil. Os autores Waldomiro Vergueiro(2007) e Paulo Ramos (2009) apoiam-se na afirmação de Lailson de Holan<strong>da</strong> Cavalcanti paraapontar “o primeiro registro de humor gráfico” (RAMOS, 2009, p. 187) no país, a primeiramanifestação de um “desenho que representa a reali<strong>da</strong>de de forma humorística e alegórica”(VERGUEIRO, 2007, p. 4), foi O Corcundão, publicação pernambucana edita<strong>da</strong> entre maio eabril de 1831. Ambos também fazem referência à Semana Ilustra<strong>da</strong>, uma publicação doalemão Henrique Fleuiss que surgiu no Rio de Janeiro no final de 1860. Vergueiro acaracteriza como a “primeira revista de caricaturas regular e de larga duração” (2007, p. 4) eRamos lhe atribui o caráter de “primeiro jornal inteiramente dedicado a desenhos de humor”(2009, p. 188); Segundo Vergueiro, a mesma depois transformou-se em um modelo a serseguido pelas demais publicações humorísticas brasileiras do século XIX (2007, p. 4).A partir dessa informação, podemos <strong>da</strong>tar aproxima<strong>da</strong>mente a utilização <strong>da</strong> gravura, ede uma forma mais intensa <strong>da</strong> caricatura, nas produções nacionais, de cerca de um séculodepois de ter sido inicia<strong>da</strong> na Europa e nos Estados Unidos. Percebemos também que, desde oinício, o humor é uma característica muito forte nas publicações brasileiras. Ramos, porexemplo, afirma:O humor se confunde com o surgimento <strong>da</strong>s histórias em quadrinhos. Desde o iníciodo século XIX, aumentaram os exemplos de desenhos cômicos nos jornais dediferentes países <strong>da</strong> Europa e <strong>da</strong>s Américas. Na maioria, eram trabalhos caricatos,curtos, que aju<strong>da</strong>ram a firmar a linguagem usa<strong>da</strong> hoje nos quadrinhos.(RAMOS, 2009, p. 187)Segundo Saliba (1998, p. 298), o cômico, no Brasil especialmente, seria uma forma desublimar as emoções, manifestando-se no jornalismo satírico <strong>da</strong> Regência, nos folhetinscômicos do Segundo Reinado e se aprofun<strong>da</strong>ndo com o desenvolvimento <strong>da</strong> imprensa e aproliferação <strong>da</strong>s revistas ilustra<strong>da</strong>s no início <strong>da</strong> República, tendo sofrido modificações através<strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças de contexto ocorri<strong>da</strong>s na História, bem como dos grupos que proferem taldiscurso, o que nos remete a uma perspectiva apoia<strong>da</strong> em Chartier, de pensá-las comorepresentações forja<strong>da</strong>s nos parâmetro do grupo social que as produziram. Segundo Ramos:Ain<strong>da</strong> no século XIX, os desenhos de humor migraram para a imprensa tradicional.


Em 1898, o Jornal do Brasil já publicava caricaturas. As primeiras déca<strong>da</strong>s doséculo XX trouxeram desenhos de humor nos jornais diários e nas publicaçõescômicas, que continuaram sendo edita<strong>da</strong>s, não só para adultos.(RAMOS, 2009, p. 189)31Entretanto, a maioria dos estudiosos <strong>da</strong>s histórias em quadrinhos atribuem a AngeloAgostini, italiano radicado no Brasil, o caráter de “introdutor <strong>da</strong> linguagem gráfica sequencialno Brasil e como um dos precursores <strong>da</strong> 9ª arte” 13 (VERGUEIRO, 2007, p. 4). Consideradoum crítico do Segundo Império no país, Agostini inovou o gênero por apresentar, pelaprimeira vez, histórias em série. Nelas surgiram os primeiros personagens fixos dosquadrinhos nacionais. Porém, apesar de sequencia<strong>da</strong>s, suas histórias ain<strong>da</strong> não possuíam umelemento fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> linguagem dos quadrinhos: o balão. Os textos eram escritos sempreabaixo dos desenhos, contudo, isso não tira a geniali<strong>da</strong>de deste artista, nem a importância domesmo para a história dos quadrinhos no Brasil. Também é de Agostini a obra considera<strong>da</strong>como a primeira história em quadrinhos brasileira: As Cobranças, publica<strong>da</strong> em 1867, nojornal O Cabrião (1866-1867). Além de O Cabrião, o Diabo Coxo (1864-1865) tambémveiculou trabalhos de Agostini.Agostini também teve uma participação significativa naquela que é considera<strong>da</strong> aprimeira publicação sistemática de quadrinhos no Brasil, a revista O Tico-Tico. Lança<strong>da</strong> em11 de outubro de 1905, a revista infantil teve seu logotipo elaborado pelo autor e foi publica<strong>da</strong>pela Editora O Malho, teve vi<strong>da</strong> longa, até 1962:Idealiza<strong>da</strong> por Renato Castro, Cardoso Júnior e Manoel Bonfim, ela foi basea<strong>da</strong> emsua congênere francesa La Semaine de Susette, representando o modelo depublicações para a infância brasileira na primeira metade do século 20. Por elapassaram vários dos primeiros autores de quadrinhos do país, como Max Yantok,Alfredo e Osvaldo Storni, Miguel Hochman, Luís Sá e J. Carlos, bem como diversosescritores de renome no país, entre os quais podem ser destacados Josué Montello,Leonor Posa<strong>da</strong>, Osvaldo Orico, José Lins do Rego, Bastos Tigre, Olavo Bilac,Cardoso Júnior, Coelho Neto, Murilo Araújo, Catulo <strong>da</strong> Paixão Cearense, MalbaTahan, Humberto de Campos, Arnaldo Niskier, Eustórgio Wanderley e GustavoBarroso. Além de ter elaborado o logotipo <strong>da</strong> revista, Angelo Agostini tambémparticipou com ilustrações para as diversas matérias que a compunham e com aelaboração de uma coluna própria.(VERGUEIRO, CAMPOS apud VERGUEIRO, 2007, p. 5)O Tico-Tico não contava apenas com histórias em quadrinhos, havia também textos epassatempos, dessa forma não era vista como uma obra completamente volta<strong>da</strong> para o gênerodos quadrinhos, mas como uma revista infantil. A publicação também não era totalmentenacional, pois um dos personagens de maior populari<strong>da</strong>de entre os leitores, Chiquinho, cuja13 O termo 9ª arte decorre <strong>da</strong> busca pela atribuição de uma definição para as histórias em quadrinhos enquantoexpressão artística. No Brasil, os quadrinhos são classificados como 8ª arte, sendo a expressão 9ª artecorrespondente à França e outros países, que os situam após a televisão (MAGALHÃES, 2003, p. 11).


criação foi atribuí<strong>da</strong> à Loureiro, era um decalque do personagem Buster Brown, criação doartista norte-americano Richard F. Outcault 14 . “Boa parte dos demais personagens era'chupa<strong>da</strong>' de publicações francesas.” (SILVA JÚNIOR, 2004, p. 48). Porém, não podemosesquecer de que essa falta de originali<strong>da</strong>de não fechou os caminhos para que personagenspróprios fossem criados e tivessem conquistado seu reconhecimento entre os leitores, como,por exemplo, o trio Reco-Reco, Bolão e Azeitona, criações do artista Luís Sá, que chegaram amarcar época nas páginas <strong>da</strong> revista (SILVA JÚNIOR, 2004, p. 48). A longevi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>publicação é mais uma prova <strong>da</strong> sua importância para a história do mercado editorialbrasileiro, pois foi uma revista que influenciou muitas outras gerações, e deu possibili<strong>da</strong>de aosurgimento de outros empreendimentos neste sentido.Apesar de O Tico-Tico ter sido uma publicação extremamente importante para ahistória do mercado editorial brasileiro, podemos considerar como o ponto onde se iniciou oprocesso de massificação <strong>da</strong> publicação de histórias em quadrinhos no Brasil a iniciativa dovisionário Adolfo Aizen 15 . Depois de uma viagem de trabalho aos Estados Unidos em 1933, ojovem jornalista, que até então se dividia entre os três empregos nas revistas O Tico-Tico e OMalho e na re<strong>da</strong>ção do jornal O Globo, teve o primeiro contato com aquelas que oacompanhariam na sua carreira a partir de então, as histórias em quadrinhos norte-americanas.Percebendo o potencial deste tipo de linguagem, Aizen retornou ao Brasil resolvido a apostarnesta ideia, e pretendia lançá-los tal qual eram feitos nos Estados Unidos, como suplementosencartados nos jornais. Tentou vender a proposta para Roberto Marinho, mas o mesmo nãoacreditou na viabili<strong>da</strong>de deste empreendimento. To<strong>da</strong>via, a recusa de Marinho não desanimouAizen de forma alguma e, acreditando no sucesso do seu projeto, ele saiu em busca de umfinanciador, encontrando apoio na figura de João Alberto Lins de Barros, chefe <strong>da</strong> polícia deVargas e diretor do jornal A Nação. João Alberto apostou no projeto de Aizen e o jornal dogoverno, que tinha a imagem de uma publicação estritamente volta<strong>da</strong> para assuntos políticos,passou a publicar um suplemento encartado ao jornal todos os dias. Segundo Gonçalo Júnior14 O autor é considerado o pioneiro <strong>da</strong>s histórias em quadrinhos no Estados Unidos devido à sua publicaçãoDown Hogan's Allen, na qual ganhou destaque o personagem que deu origem ao grande sucesso posteriorThe Yellow Kid.15 “Sem ser desenhista, argumentista ou arte-finalista, Adolfo Aizen transformou-se num dos nomes maisimportantes para e divulgação e a evolução dos quadrinhos no nosso país” (GOIDANICH, 1990, p. 19).Russo de nascimento e baiano no documento (estratégia utiliza<strong>da</strong> para poder abrir uma empresa, pois naépoca em que o fez tal empreita<strong>da</strong> só era permiti<strong>da</strong> legalmente à brasileiros), Adolfo Aizen contribuiu deforma significativa para a formação do mercado editorial brasileiro de quadrinhos. Criou primeiro oSuplemento Infantil, associado ao jornal A Nação, em segui<strong>da</strong> fundou sua própria empresa, o GrupoConsórcio Suplementos Nacionais, e lançou os títulos Suplemento Juvenil, Mirim e Lobinho. “Neste elencode publicações, Aizen incentivou sempre a criação de histórias brasileiras, aju<strong>da</strong>ndo a formar dezenas denovos ilustradores e argumentistas (GOIDANICH, 1990, p. 20). Em 1945 fundou a EBAL (Editora Brasil-América Lt<strong>da</strong>.), que na déca<strong>da</strong> de 1950 consagrou-se como a mais importante empresa até o fim de 1970quando uma grande crise nos quadrinhos em nível mundial acarretou a redução do número de publicações <strong>da</strong>referi<strong>da</strong> editora (GOIDANICH, 1990); (SILVA JÚNIOR, 2004).32


33(2004), a abertura de João Alberto ao projeto de Aizen deveu-se à busca dele em melhorar areceptivi<strong>da</strong>de do jornal, que era tido como uma publicação muito séria, e dessa maneiraalavancar as ven<strong>da</strong>s. Distribuídos de acordo com a ordem de lançamento (humorístico,infantil, policial, feminino e esportivo) e com doze páginas ca<strong>da</strong> um, estes suplementos nãocustavam na<strong>da</strong> ao leitor do jornal, saíram tal qual Aizen desejava, como um encarte (SILVAJÚNIOR, 2004, p. 30).E tamanho foi o sucesso do empreendimento que contribuiu para o aumento <strong>da</strong>sven<strong>da</strong>s do jornal, especialmente nas quartas-feiras, quando saía o Suplemento Infantil com asfamosas histórias em quadrinhos tão defendi<strong>da</strong>s por Aizen. Verificou-se, desse modo, umaumento do público infanto-juvenil que se dirigia às bancas em busca <strong>da</strong>s aventuraspublica<strong>da</strong>s no suplemento. Estas adotavam estratégia semelhante ao dos folhetins do séculoXIX, pois sempre terminavam no clímax <strong>da</strong> história, aguçando a curiosi<strong>da</strong>de do leitor para sersacia<strong>da</strong> apenas no número seguinte. Assim criava-se um público fiel para estas publicações e,tendo em conta que a aquisição <strong>da</strong>s mesmas necessitava <strong>da</strong> compra do jornal, isso levou aoaumento <strong>da</strong>s ven<strong>da</strong>s, cumprindo o propósito mercadológico do Sr. João Alberto Lins deBarros.A publicação foi suspensa em decorrência de algumas especulações em torno doencarte e seu suposto prejuízo à imagem séria de um jornal do governo, no entanto, JoãoAlberto continuou a financiar o projeto na forma de uma publicação independente, com acondição de que Aizen não deixasse muito explícita sua ligação com a publicação. Surgiu, apartir <strong>da</strong>quele momento, o Suplemento Juvenil, uma publicação que nasceu com vi<strong>da</strong> própriae se constituiu como uma grande porta de entra<strong>da</strong> dos quadrinhos estrangeiros no mercadobrasileiro 16 .O sucesso adquirido por Aizen, primeiro com os suplementos publicados em A Naçãoe, em segui<strong>da</strong>, no Suplemento Juvenil, despertou o interesse de Roberto Marinho, que,percebendo a viabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quela alternativa editorial, propôs socie<strong>da</strong>de a Aizen em seusnegócios. Tendo sua proposta recusa<strong>da</strong>, Marinho lançou-se na disputa pelo mercado, primeirocom O Globo Juvenil e, em segui<strong>da</strong>, com O Gibi, revista cujo nome tornou-se, até hoje,sinônimo para histórias em quadrinhos.As déca<strong>da</strong>s de 1930 a 1950, seriam marca<strong>da</strong>s pelo confronto entre estes dois grandesnomes do mercado editorial; tal embate resultou na entra<strong>da</strong> de muitos personagens norteamericanosno Brasil, uma grande vantagem para o público leitor, assim como também pelaalternância de personagens entre uma editora e outra, pois, devido à grande concorrência,16 “Nas suas páginas desfilaram Flash Gordon, Brick Bradford, Mandrake, Red Barru, Rádio Patrulha, Tim eTom, Rei <strong>da</strong> Polícia Monta<strong>da</strong> e muitos outros personagens clássicos”. (GOIDANICH, 1990, p. 20)


34contratos eram cancelados e refeitos com outro editor 17 .A partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1950, os dois editores, outrora rivais, uniram forças contra acampanha de censura empreendi<strong>da</strong> aos quadrinhos, atitude que pode ser vista como umreflexo do que vinha acontecendo nos Estados Unidos com a instituição dos comic code 18 .A partir <strong>da</strong> introdução do modelo norte-americano no país, a trajetória <strong>da</strong>s históriasem quadrinhos no território brasileiro passaria pelos mesmos percalços encontradosem outros países, sendo idolatra<strong>da</strong> por adolescentes e desacredita<strong>da</strong> pela maioria doseducadores e intelectuais.(VERGUEIRO, 2007, p. 6)Na trilha <strong>da</strong>s discussões inicia<strong>da</strong>s nos Estados Unidos pelo psiquiatra FredericWertham, a perseguição às histórias em quadrinhos no Brasil começou a partir de um estudo arespeito do conteúdo <strong>da</strong>s histórias em quadrinhos realizado pelo Instituto Nacional de EstudosPe<strong>da</strong>gógicos (INEP), do Ministério <strong>da</strong> Educação e Saúde, e publicado, em 1944, na RevistaBrasileira de Estudos Pe<strong>da</strong>gógicos. O mesmo fazia sérias críticas a este tipo de linguagem. Areferi<strong>da</strong> publicação gozava de uma considerável respeitabili<strong>da</strong>de entre os educadores, demaneira que as informações por ela veicula<strong>da</strong>s repercutiram significativamente nessacategoria. Dentre as várias acusações feitas às histórias em quadrinhos, uma recebeu maiorênfase, e sobre a mesma se edificaram to<strong>da</strong>s as acusações posteriores, a de que tal tipo deleitura estava prejudicando o rendimento escolar <strong>da</strong>s crianças.Além <strong>da</strong>s teses de dominação cultural e do estímulo à violência promovido pelosquadrinhos, o INEP trouxe uma preocupação a mais aos pais: segundo aquelapesquisa, quem lia quadrinhos ficava com preguiça mental e avesso aos livros.(SILVA JÚNIOR, 2004, p. 114)Esta primeira acusação aos quadrinhos funcionou como um fator desencadeador parato<strong>da</strong>s as críticas que vieram posteriormente. Uma mobilização crescente dos profissionais <strong>da</strong>imprensa, educadores e pais se organizou para combater este tipo de publicação que, segundoos mesmos, ameaçava a formação moral e intelectual <strong>da</strong>s crianças e, portanto, necessitava sersubmeti<strong>da</strong> a um rígido controle. A essa campanha contra os quadrinhos, também aderirampolíticos e intelectuais com grande reconhecimento em nível nacional, chegando a provocar17 Em 1939, houve uma grande vira<strong>da</strong> nas publicações por conta de um “golpe” aplicado por Marinho emAizen. O proprietário de O Globo entrou em contato com Arroxelas Galvão, representante <strong>da</strong> editora quefornecia material para Aizen, e fez-lhe uma proposta para que cedesse o material que Aizen publicava a ele, eassim foi firmado o contrato entre Galvão e Marinho, o que fez com que Aizen perdesse muitos títulos desucesso para a concorrente, entre eles o grande sucesso <strong>da</strong> época Flash Gordon (SILVA JÚNIOR, 2004, p.69-73).18 Os comic code (código de ética) foram uma série de regulamentos criados para limitar o que podia e o quenão podia aparecer nas histórias em quadrinhos norte-americanas. Foram idealizados a partir <strong>da</strong> campanhacontra os quadrinhos empreendi<strong>da</strong> pelo psiquiatra Frederic Werthan, que no seu livro The Seduction of theInnocent acusa as histórias em quadrinhos de estimularem os jovens à delinquência. “Dentre as hipóteses dotratado, havia a de que a Mulher Maravilha representava idéias sadomasoquistas e <strong>da</strong> homossexuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>dupla Batman & Robin” (JARCEM, 2007, p. 6).


35debates no Congresso e manifestações pró e contra as referi<strong>da</strong>s publicações.Como uma forma de tentar modificar essa visão preconceituosa em relação aosquadrinhos, Aizen empreendeu um plano de ações para a valorização dos mesmos. Entre asestratégias por ele adota<strong>da</strong>s estavam: convites a intelectuais e jornalistas para visitas ao prédioque abrigava a EBAL; publicação de colunas em periódicos a respeito <strong>da</strong>s histórias emquadrinhos evidenciando seus aspectos positivos, <strong>da</strong>ndo ênfase ao seu próprio trabalho,realizado seguindo um código de ética 19 estabelecido por sua editora e direcionado, segundoAizen, à produção de quadrinhos que pudessem contribuir para a formação, tanto moral,quanto intelectual, <strong>da</strong> juventude brasileira; publicação de a<strong>da</strong>ptações de clássicos <strong>da</strong> literaturabrasileira e quadrinização <strong>da</strong> história de vi<strong>da</strong> de alguns santos e personali<strong>da</strong>desrepresentativas <strong>da</strong> Igreja Católica 20 ; distribuição gratuita destes mesmos exemplares apolíticos, jornalistas, escritores e alguns membros <strong>da</strong> Igreja Católica visando demonstrar aquali<strong>da</strong>de e o comprometimento cultural de suas publicações; entre outras medi<strong>da</strong>s quelograram certo êxito, tendo Aizen recebido alguns votos de felicitação, inclusive do próprioPresidente <strong>da</strong> República, Getúlio Vargas. Mas, nem mesmo a publicação paralela destas outrasvertentes, tampouco a realização de um evento dedicado exclusivamente à sua divulgação,foram capazes de livrá-las do rótulo de “produto cultural de segun<strong>da</strong> classe que devia serobjeto de desconfiança por parte dos pais”(VERGUEIRO, 2007, p. 6).A partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1960, teve início uma proliferação de personagens nacionais,como uma espécie de manifestação pela nacionalização dos quadrinhos. Podemos apresentaro Pererê, de Ziraldo 21 , como a primeira publicação neste sentido, quadrinho com umatemática mais direciona<strong>da</strong> à cultura brasileira por tratar-se de um personagem do nossofolclore. “Num universo povoado por super-heróis e figuras em na<strong>da</strong> liga<strong>da</strong>s à nossa reali<strong>da</strong>decultural, Ziraldo impôs personagens cem por cento brasileiros” (GOIDANICH, 1990, p.398).19 Este código pode ser compreendido como uma estratégia de Aizen para que suas publicações fossemdesvincula<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s críticas atribuí<strong>da</strong>s aos quadrinhos naquele período. Tratava-se de uma código interno queproibia a veiculação de certas cenas nas revistas, como por exemplo, os trajes de certas personagens, quandono desenho original se apresentavam como “inadequados” aos padrões eram “remodelados” pelos artistas <strong>da</strong>empresa que alteravam a matriz antes <strong>da</strong> impressão. (SILVA JÚNIOR, 2007, p. 257)20 Um fato curioso pois Aizen era judeu. Entretanto, devido à perseguição empreendi<strong>da</strong> aos quadrinhos eranecessário que se buscasse apoio de enti<strong>da</strong>des mantenedoras de grande influência sobre a população, demaneira que era importante a manutenção e divulgações de publicações nesta vertente. Para coordenar acoleção Aizen convidou o cônego Antônio de Paula Dutra, na época capelão do presídio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Niteróie um dos religiosos mais populares do Rio de Janeiro. (SILVA JÚNIOR, 2007, p. 261)21 Ziraldo Alves Pinto. Mineiro, nascido em Caratinga a 24 de outubro de 1932, este desenhista que “já nasceucom pseudônimo” atuou de forma marcante nos quadrinhos nacionais. Aos dezesseis anos apenas já eraconhecido nos jornais <strong>da</strong> sua ci<strong>da</strong>de natal, partiu então para o Rio de Janeiro em busca de voos maiores.Porém, como a profissão de desenhista ain<strong>da</strong> não era consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> no Brasil, teve que trabalhar por algumtempo no meio publicitário, até conseguir espaço em O Cruzeiro, onde pôde <strong>da</strong>r início a projetos comoPererê. Artista atuante, não retrocedeu durante o regime militar levantando e sacudindo a bandeira contra osexcessos deste regime através de O Pasquim. É muito conhecido pelos personagens infantis que criou, comoO Menino Maluquinho por exemplo, e continua produzindo até os dias de hoje (GOIDANICH, 1990, p. 398).


36A revista, embora tenha rendido poucos números, contribuiu para influenciar criaçõesposteriores. Ziraldo também atuou intensamente em quadrinhos voltados para adultosveiculados pelo Pasquim, tema que trataremos com mais detalhes mais adiante.Outro nome importante que despontou neste período foi o de Maurício de Sousa. Suaprimeira criação foram as tiras de Bidu, que começaram a ser publica<strong>da</strong>s em 1959. O sucessodo personagem permitiu o surgimento dos demais: Mônica, Cebolinha, Cascão, e outros. Nadéca<strong>da</strong> de 1970 houve o lançamento <strong>da</strong> revista <strong>da</strong> Mônica, que com seu sucesso crescentepossibilitou o desenvolvimento de um segmento de publicações dos demais personagens. Naspalavras de Ramos: “É o maior sucesso editorial brasileiro <strong>da</strong> história dos quadrinhos no país”(2009, p. 191). Essas publicações tinham como alvo o público infantil.Alguns estudiosos <strong>da</strong> área <strong>da</strong>s histórias em quadrinhos, costumam atribuir o início <strong>da</strong>spublicações volta<strong>da</strong>s para o público adulto aos quadrinhos produzidos por Carlos Zéfiro nadéca<strong>da</strong> de 1960. Com temática de forte conteúdo sexual, eram feitos pelo autor nas suas horasvagas, sem a preocupação em criar um público leitor, ou mesmo conseguir grandeabrangência no que se refere ao mercado editorial brasileiro, “eram consumi<strong>da</strong>s às escondi<strong>da</strong>se não faziam parte de qualquer movimento de quadrinhos nacionais” (SILVA, 2002, p. 24), oque nos lembra Tijuana Bibles, panfleto alternativo que circulou nos Estados Unidos nadéca<strong>da</strong> de 1930, tanto pelo conteúdo de forte apelo sexual quanto por sua circulação quaseque exclusivamente marginal. Concor<strong>da</strong>mos com a importância destas publicações bem comocom a sua influência sobre as gerações posteriores e a atuação pioneira nos temas de quetratavam. Porém, como nosso foco neste estudo são os quadrinhos que possuíam um esquemade distribuição nacional buscamos, a partir deste ponto, direcionar nosso estudo para o quepode ser considerado como a grande vira<strong>da</strong> no tabuleiro do mercado editorial nacional,quando os quadrinhos deixaram de ser vistos como um mero meio de entretenimento epassaram a assumir a postura de ferramentas para a transmissão de ideias e instrumentos decontestação.2.2. Do underground ao udigrudi: o mercado alternativo de quadrinhos no BrasilA déca<strong>da</strong> de 1970 foi marca<strong>da</strong> por transformações, tanto dentro como fora do Brasil.Fora, mais especificamente nos Estados Unidos, de onde veio boa parte <strong>da</strong> influência dosquadrinhos brasileiros, temos a efervescência cultural, provoca<strong>da</strong> pelo rock e pela ideologiahippie, uma contestação dos valores que até então eram tidos como regras incontestáveis.Ousamos até afirmar que mais que uma contestação foi uma ver<strong>da</strong>deira afronta jovem, umatentativa de romper com tudo o que parecia regrado e tradicional. Theodore Roszak, que


viveu e buscou compreender este fenômeno no seu livro The Making of a Counter Culture,fez a seguinte observação sobre a presença massiva dos jovens em movimentos decontestação:Para o bem ou para o mal, a maior parte do que atualmente ocorre de novo,desafiante e atraente, na política, na educação, nas artes e nas relações sociais (amor,corte sentimental, família, comuni<strong>da</strong>de) é criação de jovens que se mostramprofun<strong>da</strong>mente, até mesmo fanaticamente alienados <strong>da</strong> geração de seus pais, ou depessoas que se dirigem primordialmente aos jovens.(ROSZAK, 1972, p. 15)37A juventude deste período não encontrava correspondência dos seus anseios em meioaos produtos culturais veiculados predominantemente. Para além desta insatisfação, umaabertura maior para a vin<strong>da</strong> à luz de outras manifestações com as quais esse público passou ase identificar também facilitou o surgimento e proliferação de atitudes que buscavam aconstrução e a divulgação de uma cultura jovem, com características completamente diversas<strong>da</strong>s de seus pais. Persistindo ain<strong>da</strong> na ideia do referido autor de que “é aos jovens quecompete agir, provocar acontecimentos, correr os riscos e de uma forma geral proporcionarestímulos” (ROSZAK, 1972, p. 15) temos uma explicação a mais para o pioneirismo <strong>da</strong>juventude nestes movimentos de contestação. Ain<strong>da</strong> segundo o autor:(...) foram os jovens, à sua maneira amadorística e até mesmo grotesca, que deramefeito prático às teorias rebeldes dos adultos. Arrancaram-se de livros e revistasescritos por uma geração mais velha de rebeldes, e as transformaram num estilo devi<strong>da</strong>. Transformaram as hipóteses de adultos descontentes em experiências, emborafrequentemente relutando em admitir que às vezes uma experiência redun<strong>da</strong> emfracasso.(ROSZAK, 1972, p. 37)Desde a influência <strong>da</strong> geração beat, ao som frenético <strong>da</strong> bati<strong>da</strong> do rock and roll, essajuventude vinha tentando apresentar seus interesses por vias alternativas, demonstrando suainsatisfação tanto nas questões relaciona<strong>da</strong>s aos produtos culturais, quanto no que diz respeitoao seu posicionamento político. Não apenas os produtos culturais eram reinventados comotambém as formas de comportamento, pois um grupo sempre busca criar mecanismos deidentificação entre os seus participantes, como roupas, maneiras de falar, entre outros. Atémesmo certas instituições não se mantiveram intoca<strong>da</strong>s perante estes movimentos, umexemplo disso são as universi<strong>da</strong>des, pois a criação de cursos alternativos por meio <strong>da</strong>schama<strong>da</strong>s universi<strong>da</strong>des livres, atesta o anseio dessa juventude por mu<strong>da</strong>nças significativasassim como sua intenção em misturar a diversi<strong>da</strong>de de influências que os rodeava e, a partirdisto, criar algo novo, mais próximo do atendimento de seus desejos e expressar suasexpectativas.


38No que diz respeito ao cenário brasileiro <strong>da</strong>quele momento, vivíamos o período demaior recrudescimento do regime militar, uma época em que os reflexos do AI-5 22 eramsentidos, literalmente, na pele. Porém, é comum observarmos que exatamente nos períodosnos quais os limites parecem ser claramente estabelecidos e as cercas começam a se tornaremmais altas, a juventude liga<strong>da</strong> aos movimentos culturais encontra, ou melhor, cria umamaneira de <strong>da</strong>r a volta na cerca, ou até mesmo de se enroscar perigosamente nesse arame e, apartir do seu ato, do desafio aos limites impostos, inspirar novos, e oferecer testemunhos deresistência ao status quo. O anseio por liber<strong>da</strong>de torna-se maior que as forças que tentamlimitá-la, chegando ao ponto em que há de criar-se espaços de expressão para taissentimentos.É nesse contexto que o mercado alternativo se configura no Brasil, porém, nesteprimeiro momento não é exclusivamente um mercado de quadrinhos alternativos, mas umespaço em que também se tem quadrinhos alternativos, pois, no que se refere ao período doregime militar devemos falar mais em uma imprensa alternativa, para utilizar um termo maisadequado ao que ocorria.Vamos primeiramente compreender a formação desse novo eixo de publicações apartir de seu ponto de origem, o movimento underground norte-americano. Acreditamos sernecessário, antes de tudo, buscar uma definição que nos esclareça o que vem a ser umapublicação alternativa, e a encontramos na seguinte passagemSua produção é independente dos circuitos comerciais, sua linguagem discursiva eestética procura ser inovadora e apresenta conteúdos quando não contestatórios aomenos com um ângulo raramente enfocado pela grande imprensa.(MAGALHÃES apud SILVA, 2002, p. 24)Em outras palavras, trata-se de uma produção que busca inovar, tanto no que dizrespeito à estética, quanto ao conteúdo. Para tal, precisa ser independente do circuitocomercial, possibilitando tratar dos temas com total liber<strong>da</strong>de, sem se ater aos paradigmasimpostos pela grande imprensa.Esclarecido este ponto, partamos para a análise do movimento propriamente dito.Desde a déca<strong>da</strong> de 1930, alguns quadrinhos norte-americanos exploram temas alternativos22 O AI-5 (Ato Institucional número 5) baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do GeneralCosta e Silva, é considerado como o ponto de maior recrudescimento do regime. Tratado por muitos autorescomo “o golpe dentro do golpe”, deu plenos poderes ao governante para punir arbitrariamente os que seposicionassem contra o regime, ou assim fossem considerados; concedeu ao Presidente o direito de <strong>da</strong>rrecesso à Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmara de vereadores, período no qual oExecutivo assumiria to<strong>da</strong>s as funções; concedeu o poder de intervir livremente nos estados e municípios, semqualquer respeito as limitações constitucionais; concedeu o poder de suspender, por um período de dez anos,os direitos políticos de qualquer ci<strong>da</strong>dão brasileiro, e o de cassar man<strong>da</strong>tos de deputados federais, estaduais evereadores; proibiu manifestações populares de caráter político; suspendeu o habeas corpus; impôs censuraprévia para jornais, revistas, livros, peças de teatro e músicas. (ALVES, 1984); (SKIDMORE, 1989)


não abor<strong>da</strong>dos pelo mercado comum, como é o caso de Tijuana Bibles. Eles podem sercaracterizados <strong>da</strong> seguinte maneira:39Quadrinhos de protesto, eróticos, sádicos, pornográficos etc. São quadrinhos quetrazem uma visão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de que não é privilegia<strong>da</strong> pelos quadrinhos tradicionais.Essa característica aproxima-os de segmentos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de que, de alguma forma,sentem-se insatisfeitos com os valores dominantes. Nesse sentido, esses quadrinhosconstituem espaços privilegiados para que desejos, expectativas, necessi<strong>da</strong>des,sonhos desses segmentos possam se expressar, seja diretamente como produtores,seja por processos que passam pela fantasia.(SILVA, 2002, p. 12)Porém, devemos salientar que embora seja considera<strong>da</strong> a primeira manifestação decontestação aos valores vigentes (SILVA, 2002, p. 19), Tijuana Bibles não pode sercaracteriza<strong>da</strong> como pertencente a um movimento alternativo, pois, em primeiro lugar tratavasede uma publicação isola<strong>da</strong> e de pouca divulgação e, em segundo lugar, o próprio cenárioalternativo ain<strong>da</strong> não havia se articulado de fato.Dessa maneira, podemos afirmar, que o artista ao qual é atribuído o título de criadordesta vertente underground norte-americana, é Robert Crumb e a revista que serviu como“bandeira” foi a Zap Comix, também uma criação de Crumb e que, posteriormente, contoucom a participação de grandes nomes do underground norte-americano, entre eles GilbertShelton (MAGALHÃES, 2009, p. 3).Criados como uma resposta aos Comic Code <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1950 e explorando temasnem sequer mencionados nas publicações industriais, como sexo, drogas, perversões etc, osquadrinhos underground começaram como fanzines 23 , vendidos, ou simplesmente distribuídosde mão em mão em eventos, ou outros locais frequentados pelo público ao qual eramdirecionados, geralmente shows de rock e lojas de discos. Quando vendidos, o dinheiroadquirido era totalmente empregado na publicação de novas edições, constituindo-se na únicafonte de financiamento dos mesmos. “Esse movimento traz um elemento novo para se pensara história em quadrinhos e seu direcionamento para públicos específicos, que é o fato de tersido o primeiro movimento significativo de quadrinhos que visava atingir o público adulto”(SILVA, 2002, p. 22).O conteúdo dos fanzines não se restringia apenas à publicação de histórias emquadrinhos, eles também eram utilizados para divulgação de ban<strong>da</strong>s ou eventos musicais,constituindo-se como um espaço de manifestação e comunicação para as tribos que23 “O fanzine é uma publicação independente e amadora, quase sempre de pequena tiragem, impressa emmimeógrafos, fotocopiadoras, ou pequenas impressoras offset. Para sua edição, contamos com fãs isolados,grupos e associações ou fãs-clubes de determina<strong>da</strong> arte, personagem, personali<strong>da</strong>de, hobby ou gênero deexpressão artística, para um público dirigido, podendo abor<strong>da</strong>r um único tema ou uma mistura de vários.Criado no meio independente dos aficionados, o termo fanzine ganhou força e foi incorporado à línguaportuguesa, sendo utilizado com frequência em textos jornalísticos” (MAGALHÃES, 2003. p. 27).


40compunham o cenário alternativo. Alguns fanzines chegaram a ter tamanha divulgação que,aos poucos, adquiriram o status de revista. Contudo, como nosso foco são as histórias emquadrinhos, direcionemos nosso olhar para eles novamente.Como já foi mencionado, desde o seu conteúdo este tipo de publicação já demonstraseu caráter transgressor, que não fica limitado aos temas, mas se evidenciava, com a mesmaintensi<strong>da</strong>de, através dos desenhos. Extremamente marcados pela larga utilização de recursoscomo luz, sombra e muitas hachuras, os desenhos eram produzidos normalmente em preto ebranco, pois estas publicações deveriam ter um baixo custo, além do que muitos artistasutilizam este recurso visual para reforçar o valor artístico (artesanal) de suas produções, assimcomo para ressaltar a sua individuali<strong>da</strong>de e particulari<strong>da</strong>de, em oposição à coletivi<strong>da</strong>de e àgeneralização dos quadrinhos industriais. Diferenciam-se muito do modelo estabelecido pelaindústria dos quadrinhos norte-americanos justamente por não estabelecer um parâmetrocomum a ser seguido. Ca<strong>da</strong> autor tinha total liber<strong>da</strong>de para trabalhar seu próprio estilo e otraço do artista tornou-se sua marca pessoal, reforçando a agressivi<strong>da</strong>de com que eramabor<strong>da</strong>dos os conteúdos escolhidos.Assim, as proibições <strong>da</strong> associação, que visavam à proteção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> familiar, eramataca<strong>da</strong>s de uma forma ain<strong>da</strong> mais forte do que a simples exibição dos temasproibidos; Crumb atacava ferozmente a própria vi<strong>da</strong> familiar.(SILVA, 2002, p. 23)No underground não há preocupação em criar um público leitor, pois o mesmo jáexiste e, no caso, é o grupo de onde fala o autor, ele escreve e desenha aquilo que lhe parecesignificativo; de sua própria lente traça sua visão de mundo, sem se preocupar em melhorar asmatizes para assim parecer mais atrativo. O que mais preocupa os artistas do underground é atransmissão de suas ideias, e não o lucro. A liber<strong>da</strong>de dos autores nos quadrinhosunderground é tamanha que os mesmos podem simplesmente pôr fim a um personagemquando bem entenderem, como o fez, por exemplo, Robert Crumb. Ao perceber que seupersonagem mais conhecido, o gato Fritz, já estava se tornando comercial demais, elesimplesmente o assassinou, pelas <strong>da</strong>s mãos de uma avestruz, ex-namora<strong>da</strong> de Fritz, que haviasido rejeita<strong>da</strong> por ele 24 .No caso do Brasil, a produção alternativa começou na imprensa, que BernardoKucinski estabelece como limite de duração desde 1964 até 1980. O referido autor apontapara a existência de dois termos que tendem a ser confundidos, imprensa alternativa e24 O mesmo fez Angeli com a personagem Rê Bordosa que, após ser tortura<strong>da</strong> e quase assassina<strong>da</strong> pelopersonagem “Angeli em crise” (alter ego do autor), deixou a vi<strong>da</strong> boêmia que levava, mas terminoumorrendo por conta do tédio provocado nela pelo casamento.


41imprensa nanica, e, em concordância com o mesmo, acreditamos ser necessário estabeleceralgumas distinções entre os termos.Segundo Kucinski, o termo nanica surgiu a partir <strong>da</strong> associação ao formato tablóideque a maioria dos jornais alternativos adotou, e diz respeito, num primeiro momento aosaspectos físicos <strong>da</strong> publicação e, em segui<strong>da</strong>, à forma depreciativa como eram vistas pelagrande imprensa. Quanto à expressão “alternativa” afirma:Já o radical de alternativa contém quatro significados essenciais dessa imprensa: ode algo que não está ligado à políticas dominantes; o de uma opção entre duas coisasreciprocamente excludentes; o de única saí<strong>da</strong> para uma situação difícil e, finalmente,o do desejo <strong>da</strong>s gerações dos anos de 1960 e 1970, de protagonizar astransformações sociais que pregavam.(KUCINSKI, 2001, p. 5)Portanto, o termo alternativa tem um valor mais relevante para as publicações, eraexatamente por este termo que seus produtores as denominavam, e nos parece uma opçãomelhor para adotarmos porque imediatamente nos remete à ideia de produções que buscavamtanto denunciar o autoritarismo do governo quanto tentavam mobilizar a população na lutapor mu<strong>da</strong>nças. Os alternativos, dessa maneira, compunham a voz dissonante em meio ao coro<strong>da</strong> grande imprensa, que, dobrando-se à censura, fechava seus olhos às violações aos direitoshumanos e ao fracasso econômico sob o traje de “milagre”, que marcaram os anos de chumbono Brasil.Se tomarmos como parâmetro to<strong>da</strong>s as publicações nacionais que faziam oposição aogoverno vigente, acabaremos por fazer um retorno temporal muito grande, tomando comouma primeira referência os pasquins do período regencial, e encontrando similarcorrespondência também nos jornais anarquistas operários que circularam entre os anos de1880 e 1920. Porém, um retorno assim tão extenso não é nossa intenção aqui, portanto, nosrestringimos aos alternativos nascidos a partir <strong>da</strong> oposição ao regime militar, pois foi doengajamento deles que se puderam abrir as portas para que artistas como Angeli viessem àtona no mercado editorial brasileiro.De acordo com Kucinski (2001), apesar <strong>da</strong>s diferenças estruturais e dos padrões queca<strong>da</strong> publicação adotava, havia um fator comum que as ligava, este era o debate político eideológico. Diferente dos movimentos contraculturais <strong>da</strong> juventude norte-americana,analisados por Roszak, os alternativos brasileiros estavam muito mais preocupados com umposicionamento de combate às irregulari<strong>da</strong>des do sistema político vigente do que com ospadrões comportamentais. Muito embora tais temas se apresentassem em publicações do tipo,eram apresentados muito mais por seu potencial para a crítica política do que para contestação


42de valores comportamentais.O referido autor aponta como fatores propulsores para o desenvolvimento <strong>da</strong> imprensaalternativa o que chama de “articulação de duas forças igualmente compulsivas” (KUCINSKI,2001, p. 6). A primeira seria o desejo <strong>da</strong>s esquer<strong>da</strong>s em atuar de forma significativa na buscapor mu<strong>da</strong>nças na configuração do cenário vigente, pois, devido à rigidez do sistema, que pôsos partidos de esquer<strong>da</strong> na ilegali<strong>da</strong>de, seu campo de atuação encontrava-se bem limitado; e asegun<strong>da</strong> seria a tentativa de jornalistas e intelectuais em estabelecer outros espaços para aveiculação de suas ideias transformadoras, tendo em vista que as mesmas vinham enfrentandoforte perseguição dos mecanismos de censura estabelecidos pelo estado de exceção:É nessa dupla oposição ao sistema representado pelo regime militar e às limitações àprodução intelectual-jornalística sob o autoritarismo que se encontra o nexo dessaarticulação entre jornalistas, intelectuais e ativistas políticos. Compartilhavam , emgrande parte, um mesmo imaginário social, ou seja, um mesmo conjunto de crenças,significações e desejos, alguns conscientes e até expressos na forma de umaideologia, outros ocultos, na forma de um inconsciente coletivo. À medi<strong>da</strong> que semodificava o imaginário social e com ele o tipo de articulação entre jornalistas,intelectuais e ativistas políticos, instituíam-se novas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de jornaisalternativos.(KUCINSKI, 2001, p. 6-7)Portando, de acordo com o exposto por Kucinski, mesmo possuindo uma basejornalística, a imprensa alternativa terminou por agregar perspectivas e anseios bem maioresdo que se poderia supor devido à sua origem, pois acabou por transformar-se em espaço dereorganização política para um grupo que não encontrava mais espaço de atuação no sistemavigente, assim como também sofriam com os mecanismos restritivos presentes no mesmo. Éesse engajamento político que distingue a imprensa alternativa brasileira <strong>da</strong> europeia e <strong>da</strong>norte-americana.Nesse contexto, surgiram vários jornais alternativos. Alguns tiveram uma curtaexistência, não chegando a alcançar por vezes, a quinta edição, outros tiveram umadurabili<strong>da</strong>de mais significativa, mas o fato é que a instabili<strong>da</strong>de desse tipo de publicaçãoproporcionou o acúmulo de vários títulos nesse meio 25 . Entre os tantos títulos lançados nesseperíodo, um especial nos interessa, pois o mesmo pode ser considerado o “berço” de muitosartistas que vieram a compor posteriormente o movimento udigrudi. Trata-se do jornal OPasquim. A publicação surgiu <strong>da</strong> confluência de forças contestatórias já menciona<strong>da</strong>s a partir<strong>da</strong>s análises de Kucinski, podendo, de acordo com o mesmo, ser verifica<strong>da</strong> como pertencenteà quarta geração <strong>da</strong> imprensa alternativa brasileira 26 , e pode ter sua importância resumi<strong>da</strong> nas25 Encontramos uma pesquisa mais detalha<strong>da</strong> sobre grande parte dos jornais alternativos no seguinte estudo:KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários. Nos tempos <strong>da</strong> imprensa alternativa. São Paulo, Edusp,2001.26 Kucisnki propõe a existência de pelo menos sete gerações distintas <strong>da</strong> imprensa alternativa brasileira: a


43seguintes palavras:Uma <strong>da</strong>s publicações mais importantes foi o semanário Pasquim, que reuniu, além dejornalistas e intelectuais, desenhistas como Jaguar, Ziraldo e Henfil. Às vezescensurados e até detidos por causa <strong>da</strong> mor<strong>da</strong>ci<strong>da</strong>de de seus trabalhos, estes artistasconseguiram manter vivo o espírito crítico durante o período de exceção.(SANTOS, 2007, p. 3)O Pasquim constituiu-se como um espaço de crítica à política. Nascido um ano após odecreto do AI-5, pode ser entendido como uma resposta ao endurecimento do regime que pormeio <strong>da</strong>quele decreto aumentou a censura restringindo a atuação de jornalistas e intelectuais.Tal posição contra o cerceamento <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de de expressão verificamos na frase de Henfil 27 ,cita<strong>da</strong> por Kucinski, que afirma o seguinte: “o humorista tem a consciência de que só podeexpressar o que sente <strong>da</strong>s coisas, se tiver absoluta liber<strong>da</strong>de” (2001, p. 26). Naquelaconjuntura de restrições à opinião urgia o desenvolvimento de um novo espaço de expressãoque abrigasse estes profissionais ansiosos em expor, criticar e conscientizar. Através dohumor, os artistas tentavam driblar a censura imposta pelo AI-5 para veicular seus protestoscontra o autoritarismo do regime militar; era o humor engajado, chegando até mesmo a travarembates intelectuais, por meio de suas páginas, com o escritor Nelson Rodrigues, um convictodefensor do regime. 28A abertura proporciona<strong>da</strong> por O Pasquim, tanto permitiu o surgimento de novaspublicações como abriu um solo fértil onde seriam edificados os alicerces do movimentoalternativo dos quadrinhos brasileiros. Porém, como o conteúdo veiculado em O Pasquim nãose restringia apenas às histórias em quadrinhos, podemos percebê-lo mais como um jornal deprotesto do que como uma revista de quadrinhos propriamente dita, sem to<strong>da</strong>via tirar seusprimeira teve início em 1964 com o lançamento de PIF-PAF e estendeu-se até o fim <strong>da</strong> FOLHA DASEMANA, em 1966; a segun<strong>da</strong> teve início a partir de 1967, com o surgimento de jornais como O SOL,PODER JOVEM e AMANHÃ; o ano de 1968, que podemo compreender como uma terceira fase, não trouxelançamentos significativos segundo o autor; a quarta geração coube aos lançamentos de O PASQUIM eOPINIÃO em 1969; o surgimento de GRILO e BALÃO marcaram o que Kucisnki denomina como quintageração; a sexta geração, marca<strong>da</strong> pelo forte ativismo político, teve início em 1974 com o lançamento deVERSUS e MOVIMENTO; por fim, a partir de 1977, a campanha pela anistia fez nascer a sétima geraçãopor meio dos jornais REPÓRTER, RESISTÊNCIA e MARIA QUITÉRIA (KUCINSKI, 2001, p.18-19).27 Henrique de Souza Filho. Nascido em três de fevereiro de 1944 em Nossa Senhora do Pinheiro <strong>da</strong>s Neves,Minas Gerais. De acordo com a afirmação de Goi<strong>da</strong>nich, “foi um rio que passou nos quadrinhos e nocartunismo brasileiro”(1990, p.163). Com uma maestria única tanto no traço quanto no texto, Henfil marcoude forma profun<strong>da</strong> a história dos quadrinhos no Brasil. Atuou em vários jornais, e não se calou diante <strong>da</strong>truculência dos anos de chumbo, muito pelo contrário, ao lado de Ziraldo e <strong>da</strong> turma que compunha OPasquim, foi um dos críticos mais mor<strong>da</strong>zes do regime. Entre os vários personagens que criou eternizou-sepor Os Fradinhos e Capitão Zeferino, através <strong>da</strong> fala deles não economizava em na<strong>da</strong> no sarcasmo e na fortecrítica que <strong>da</strong>va cor ao seu humor. Infelizmente, como os fortes fenômenos <strong>da</strong> natureza, sua carreira foi curta,hemofílico, sucumbiu à AIDS, contraí<strong>da</strong> por meio de uma transfusão de sangue, em 1987, deixando órfãosmuitos amigos e admiradores (GOIDANICH, 1990, p. 163-164).28 Este assunto é tratado mais detalha<strong>da</strong>mente em FLORES, Elio Chaves. Bateu, levou. In: Revista de História<strong>da</strong> Biblioteca Nacional. Ano 3, n. 34. Reio de Janeiro. Julho/2008.


44méritos de atitude inovadora e grande influenciadora <strong>da</strong> geração posterior, pois, assim comoos leitores de MAD, nos Estados Unidos foram os protagonistas dos movimentoscontraculturais <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970, aqui no Brasil, os leitores de O Pasquim, foram osresponsáveis pelo surgimento dos quadrinhos udigrudi e pela mu<strong>da</strong>nça na forma de perceber alinguagem dos quadrinhos, que passaram a ser vistos como uma vertente que também poderiaser direciona<strong>da</strong> ao público adulto.Assim, excluindo O Pasquim <strong>da</strong> categoria de revista em quadrinhos, podemos afirmarque a primeira manifestação de quadrinho alternativo nacional nos anos 1970 foi a revistaBalão.O Balão deu origem a diversos fanzines, o que também contribuiu para adiversificação do mercado e para manter o eixo criativo aceso. Pode-se dizer que oque vai acontecer a partir dos anos 80 já estava em estado embrionário na déca<strong>da</strong> de70.(SILVA, 2002, p. 25)Apresentando um caráter explicitamente experimental, a revista contribuiu parafortalecer a ideia de uma expressão individual, assim como também representou mais umespaço de divulgação para os artistas nacionais, além de O Pasquim. A revista Balão, que tevedez edições, pode ser compreendi<strong>da</strong> como uma reação dos jovens à dominação de elementosestrangeiros no mercado editorial nacional, e abriu espaço para nomes como Luís Gê, Laerte,os irmãos Paulo e Chico Caruso, assim como o próprio Angeli. Por suas páginas passaramcerca de setenta novos desenhistas, um esboço do que posteriormente levaria à explosãocriativa do quadrinho nacional presencia<strong>da</strong> na déca<strong>da</strong> de 1980 (KUCINSKI, 2001, p. 18-19).Outra revista que também se apresentou como espaço do underground no Brasil foiGrilo (1975). Porém, ao contrário do que ocorria em Balão, cuja produção veicula<strong>da</strong> eramaterial exclusivamente nacional, em Grilo ocorria a reprodução de material estrangeiro,entre eles os quadrinhos de Charles Shultz, criador de Peanuts. Dessa maneira, Grilo seapresentava como uma “janela”, através <strong>da</strong> qual o leitor nacional poderia observar o queestava sendo produzindo fora do país. A revista influenciou uma série de artistas brasileiros,entre eles o próprio Angeli. A partir deste momento, então, estreitemos um pouco mais anossa lente, vamos <strong>da</strong>r um close no sujeito produtor <strong>da</strong>s fontes que são objeto deste estudo.


452.3. De Arnaldo Angeli Filho à “Angeli em Crise 29 ”: a formação do cartunistaAntes de partirmos diretamente para a trajetória do autor escolhido para a nossaanálise, faz-se necessário lançar uma luz teórica sobre ele, para que se compreen<strong>da</strong> melhor apartir de qual ângulo o mesmo foi observado neste trabalho. Optamos, nesta pesquisa, porabor<strong>da</strong>r Angeli a partir <strong>da</strong> perspectiva de Chartier. Portanto, ao nos propormos a analisar suasproduções humorísticas como representações do contexto em que foram realiza<strong>da</strong>s nãodevemos esquecer que, mesmo produzi<strong>da</strong>s por um indivíduo, elas carregam os interesses dogrupo no qual estava inserido o indivíduo que as criou, conforme afirma Chartier (1990, p.17). Assim, estabelecemos nossa linha de observação sobre o autor escolhido na intenção deverificar suas produções como reflexos <strong>da</strong>s influências vivi<strong>da</strong>s pelo mesmo e filtra<strong>da</strong>s a partir<strong>da</strong> lente do grupo ao qual ele pertencia.Arnaldo Angeli Filho nasceu no dia 31 de agosto de 1956. Cresceu no bairro <strong>da</strong> CasaVerde, zona norte de São Paulo, seu pai era funileiro e sua mãe costureira e ambos eram filhosde imigrantes italianos. Devido às suas atitudes na adolescência e vi<strong>da</strong> adulta, comoenvolvimento com drogas, participação em tribos urbanas como os punks e intensa frequênciano cenário alternativo <strong>da</strong> noite paulistana, seguia na contra-mão do padrão de sua família demodelo conservador, “<strong>da</strong>quelas que só pensam em cui<strong>da</strong>r dos filhos e em trabalho, trabalho,trabalho” (Revista TRIP, n. 191, 2010).Publicou seu primeiro trabalho relacionado ao humor gráfico na déca<strong>da</strong> de 1960, umdesenho para a revista Senhor. Em segui<strong>da</strong>, “nos anos 70, se engajou na produção de humorgráfico de panfletos e jornais sindicais, ligado aos movimentos operários do ABC paulista”(DINIZ, 2001, p. 28). Segundo Paulo Fernando Dias Diniz (2001), foi neste período queAngeli criou personagens que podem ser considerados como um tipo de “ensaio” para a suaprodução na déca<strong>da</strong> de 1980, período no qual alcançou maior reconhecimento especialmentepor conta do sucesso editorial <strong>da</strong> Chiclete com Banana, entre estas podemos citar: “Todo Blue(um ripongo), Moçamba (um negro que queria voltar a suas raízes africanas) e AI-5 (umcensor)” (DINIZ, 2001, p. 28). A partir de 1975 começou a publicar tiras diárias no jornalFolha de S Paulo, neste espaço Angeli desenvolveu personagens que posteriormente otornariam muito famoso, como o Bob Cuspe e a Rê Bordosa.Essa origem vai marcar to<strong>da</strong> a sua trajetória em dois sentidos: adoção de posturacrítica diante <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de social através do humor sarcástico de seus quadrinhos;simpatia em relação aos movimentos culturais alternativos, principalmente quando29 Aqui procuramos estabelecer uma relação com os quadrinhos Angeli em Crise, uma <strong>da</strong>s muitas histórias quecompõem a revista Chiclete com Banana, nesta o próprio autor é transformado em personagem e a partirdelas o mesmo expõe de forma mais explicita o seu “eu” histórico.


46relacionados à juventude.(SILVA, 2002, p. 60)Porém, o mercado <strong>da</strong>quela época não foi muito gentil para com o nosso produtivoartista. A falta de oportuni<strong>da</strong>de para trabalhar como quadrinista o levou a trabalhar na mídiaimpressa como cartunista para garantir sua sobrevivência, entretanto, a ânsia em trilhar novoscaminhos o fez ingressar na empreita<strong>da</strong>, junto com outros dois amigos, Toninho Mendes eFurio Lonza, de publicar o Patatá, que pode ser considerado como o primeiro jornalalternativo de São Paulo (SILVA, 2002, p. 9).Angeli não possui uma formação escolar muito avança<strong>da</strong>, pois foi expulso <strong>da</strong> escolaapós repetir a quinta série por três vezes segui<strong>da</strong>s. O próprio autor admite que teve umaformação precária; em uma entrevista recente à revista TRIP fez a seguinte afirmação quandoquestionado se sentia falta dos estudos:Ah, tem horas que sinto. Poderia ser um cartunista melhor. Luto com a gramática atéhoje. Na época que comecei a desenhar, ficava em pânico porque não sabia escrever.Sabia deixar um bilhete, deixar um recado. Vi que precisava ter mais atenção a isso.(Revista TRIP, n. 191, 2010)Porém, certas habili<strong>da</strong>des independem de formação acadêmica. Autodi<strong>da</strong>ta, para alémdo conhecimento veiculado por meio dos livros e dos profissionais <strong>da</strong> educação, Angelimuniu-se intelectualmente a partir de suas experiências pessoais e <strong>da</strong>s impressões capta<strong>da</strong>spor seu olhar perspicaz do cenário que se apresentava e ao mesmo tempo se modificava emtorno dele. Ou seja, a escola de Angeli foi sua própria vi<strong>da</strong>. As impressões por ele absorvi<strong>da</strong>sao longo de sua história, contribuíram para sua formação como sujeito do seu própriomomento e refletiram-se na sua produção artística, fazendo-nos verificar que é possível, pormeio <strong>da</strong>s criaturas, traçar um perfil do seu criador. Angeli estu<strong>da</strong>va aquilo que lhe interessava,portanto, lia aquilo que fazia parte do seu universo comportamental, estava antenado com osinteresses <strong>da</strong> sua tribo, do seu grupo, e a partir desta lente, trilhou seu caminho criativo,constituindo-se no autor de obra revelante, como “intelectual do traço”.Um dos aspectos que caracteriza muitos de seus personagens é o consumo de drogas,lícitas ou não. O caso mais famoso é o <strong>da</strong> personagem Rê Bordosa. Não é de se estranhar arecorrência dessa prática em seus personagens, pois o uso de drogas durante uma etapa <strong>da</strong>vi<strong>da</strong> é algo que Angeli não nega, e ain<strong>da</strong> fala abertamente sobre o assunto. Segundo entrevistaconcedi<strong>da</strong> tanto à revista TRIP como à Caros Amigos, o autor relata que começou a utilizarmaconha muito cedo, aos doze anos fumou seu primeiro “baseado”, porém o primeiro contatocom o fumo deu-se por meio de uma droga lícita, o cigarro. Angeli afirmou que fuma desde


47os nove anos de i<strong>da</strong>de, quando “pegava escondido as bitucas do Continental sem filtro quemeu pai fumava” (Revista TRIP, n. 191, 2010). Esse vício, muito forte anteriormente, oacompanha até os dias de hoje. Ele confessou ter feito uso de substâncias mais fortes, como acocaína por exemplo, <strong>da</strong> qual foi usuário durante quinze anos, e afirmou que esta rendeu-lheum dos períodos mais improdutivos pelo qual passou. “O meu trabalho era uma mer<strong>da</strong>durante esse tempo, ele decaiu e decaiu. Eu entrava na re<strong>da</strong>ção, fazia a charge e em quinzeminutos saía correndo porque tinha que cheirar com alguém.” (Caros Amigos, ed.50, 2006)O autor atribuiu ao filho um dos principais motivos que o levou a largar a cocaína, aover to<strong>da</strong> a energia do mesmo enquanto criança em contraste com sua própria inérciadecorrente do uso <strong>da</strong> substância. “Achei meio degra<strong>da</strong>nte ver ele brincando sozinho e o paiassim mal. Decidi que nunca mais usaria” (Revista TRIP, n. 191, 2010).Das drogas ilícitas que admitiu ter utilizado, Angeli segue usando uma até hoje, amaconha. Em ambas as entrevistas afirmou que consome maconha diariamente, e atribuiu àmesma o caráter de potencializadora de sua criativi<strong>da</strong>de, que o mesmo explica na seguinteafirmação: “Por exemplo, a tira tem três tempos: começo, meio e fim. Às vezes paro no meioe não tenho o final. Falta algo pra chegar e pumba! Sai a pia<strong>da</strong>. Fico an<strong>da</strong>ndo pra lá e pra cá,sem um final pra pia<strong>da</strong>. Falta uma palavra que descontraia” (Caros Amigos, ed. 50, 2006).Frequentador do cenário alternativo de São Paulo desde muito jovem, Angelisimpatizou com alguns movimentos culturais <strong>da</strong> juventude urbana <strong>da</strong> época, chegou a seidentificar um pouco com o movimento hippie, embora tenha alcançado apenas o fim domesmo e também admite que era muito mais um interesse dos seus amigos que seu.FIG. 01. Auto-retrato de Angeli, o personagem “Angeli em crise”. Identificaçãocom o público punk. Fonte: Chiclete com Banana n. 9. Circo Editorial. Abril de1987. p. 4.Depois de frequentar os mais diversos ambientes e beber <strong>da</strong>s mais varia<strong>da</strong>s fontes,podemos afirmar que foi entre os punks que nosso autor encontrou seu lugar, influenciando


48sua produção e possibilitando o estabelecimento de um diálogo mais intenso com seu público,verificado não apenas ao longo <strong>da</strong> existência <strong>da</strong> revista Chiclete com Banana como tambémpode ser identificado mais claramente na seção de cartas, pois, nesse espaço <strong>da</strong> publicação sepercebe bem a que tipo de tribo urbana o autor se dirigia.O processo de “auto reconhecimento” como punk foi bem curioso, e ousamos afirmaraté mesmo engraçado. Em entrevista à revista TRIP Angeli explicou que a sua visão sobre omovimento não era <strong>da</strong>s melhores. “Antes, eu tava muito reticente com punk. Achava que erauma modinha importa<strong>da</strong>. Não tava entendendo direito” (Revista TRIP, n. 191, 2010). Entãodecidiu fazer um personagem para criticar, ou em suas palavras “para gozar” os punks. Essepersonagem foi o Bob Cuspe; curiosamente, este personagem lhe proporcionou grandesucesso posteriormente, sendo considerado um dos impulsionadores do sucesso <strong>da</strong> Chicletecom Banana já na sua primeira edição. Angeli revela que para construir o referidopersonagem leu um livro de Antônio Bivar, escritor e dramaturgo brasileiro que atuouintensamente nos movimentos <strong>da</strong> contracultura <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1960 a 1980. “Quando li olivrinho, vi que era a minha turma” (Revista TRIP, n. 191, 2010). A partir desta leituracomeçou a identificar pontos de ligação do seu próprio ambiente com as apreensõesabsorvi<strong>da</strong>s pelo contato com o texto de Bivar, o que podemos perceber através <strong>da</strong> seguinteexplicação que fez sobre a sua “descoberta” como punk: “Sou <strong>da</strong> Casa Verde, do lado do rioTietê, que é o cu <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, saindo um monte de mer<strong>da</strong>... isso é punk.” (Revista TRIP, n. 191,2010). Ou seja, o artista se percebeu como pertencente à um ambiente que, por si, já levava àtransgressão.Além do personagem Bob Cuspe, ao se retratar como Angeli em Crise, umarepresentação mais direta do autor, ele se apresenta com os trajes que o identificam aomovimento punk. Além <strong>da</strong> caracterização física, os diálogos e a postura de Angeli em Crise,seja nas tiras cômicas, ou nas fotonovelas presentes na Chiclete com Banana, em que opróprio autor aparecia como seu personagem, apresentam um sujeito que buscava transgrediras regras do período em que vivia pois não se acreditava de acordo com elas.Analisar o trabalho de Angeli nos faz perceber a profundi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s suas críticas comrelação à política. Ao observar suas charges e tiras cômicas percebemos uma visão muitoapura<strong>da</strong> do seu contexto e um posicionamento extremamente crítico em relação à socie<strong>da</strong>deque observava, não apenas ao período por nós escolhido como limite temporal para estadissertação, pois o autor segue trabalhando nessa linha <strong>da</strong> crítica política até os dias de hoje.Segundo Angeli, seu interesse pelos temas políticos teve início ain<strong>da</strong> na infância “Bemmoleque, ali por 64, sabia que tava acontecendo uma coisa estranha no país. Em casa ninguémligava pra política, era só trabalho. Mas lembro do meu pai falando pro meu tio ter cui<strong>da</strong>do


com um gorro vermelho, que 'os caras estão pegando'” (Revista TRIP, n. 191, 2010). Porém,sua percepção foi aguça<strong>da</strong> através do contato com O Pasquim, introduzido na sua vi<strong>da</strong> pormeio dos seus amigos, que também liam o semanário.Entretanto, nos detendo um pouco mais em relação a preocupações com a política,gostaríamos de evidenciar um posicionamento do autor em relação ao humor, que diz respeitoa um certo impasse surgido na déca<strong>da</strong> de 1980, e que, portanto, insere-se na temporali<strong>da</strong>depor nós adota<strong>da</strong>. Partamos <strong>da</strong> pergunta lança<strong>da</strong> a Angeli durante a entrevista à revista TRIP,que foi a seguinte: “Existe humor a favor?”. A qual o autor respondeu <strong>da</strong> seguinte maneira: “Apublici<strong>da</strong>de faz, eu não consigo. Quando começou o PT, muitos cartunistas começaram afazer humor a favor. O próprio Henfil fez. Isso me incomo<strong>da</strong>. A função do cartunista éalfinetar, levantar discussão” (Revista TRIP, n. 191, 2010).Esse questionamento sobre o humorismo a favor teve início no período <strong>da</strong>redemocratização, quando Ziraldo assumiu o cargo de diretor <strong>da</strong> FUNARTE e, portanto,passou a trabalhar para o governo, logo, não poderia mais assumir uma postura tão crítica emrelação ao mesmo, pois estaria <strong>da</strong> mesma maneira atingindo a si próprio. Essa postura prógovernoprovocou a insatisfação de muitos intelectuais do humor no período, entre eles Henfile Millôr Fernandes, suscitando um debate sobre a possibili<strong>da</strong>de de existir um humorismo afavor 30 . Porém, o próprio Henfil, posteriormente, aderiu ao humorismo a favor, em suasreferências ao PT (Partido dos Trabalhadores), partido com o qual simpatizava.Percebemos, de acordo com a afirmação de Angeli, cita<strong>da</strong> acima, que para o mesmoessa possibili<strong>da</strong>de não é viável, e até mesmo descaracterizaria a função do cartunista, tirandolheo fator mais impactante do seu efeito cômico: a ironia. Não há como ser irônico quando seassume uma posição favorável. A ironia necessita <strong>da</strong> adoção de um posicionamento contrário.Além <strong>da</strong> adoção declara<strong>da</strong> deste humorismo obrigatoriamente “do contra”, há uma outracaracterística importante que assume em seu trabalho, a preferência por analisar ocomportamento político dos personagens.Quando questionado sobre a distinção entre charge política e quadrinhos decomportamento, ele respondeu o seguinte: “Para mim é tudo a mesma coisa. Olho <strong>da</strong> mesmaforma tanto para o comportamento quanto para a política. Mesmo nas charges, penso comoum crítico de comportamento. Todo político acaba tendo o mesmo...”. Mais adiante, chama aatenção para a linha tênue que existe neste trabalho pois há o risco de, no lugar de despertar opensamento crítico no seu leitor, <strong>da</strong>r margem apenas para a transformação desses políticos em“bonequinhos engraçados”. Para driblar este obstáculo, apresenta sua estratégia: “Prefiro não30 Esse tema é trabalhado de maneira mais detalha<strong>da</strong> por Elio Chaves Flores. Para um maior conhecimento verFLORES, Elio Chaves. República às avessas: narradores do cômico, cultura política e coisa pública no Brasilcontemporâneo. <strong>Universi<strong>da</strong>de</strong> <strong>Federal</strong> Fluminense, Programa de Pós-Graduação em História, Niterói, 2002.49


50<strong>da</strong>r cara, eliminar o rosto. Trato todo esse baixo clero como um monte de carne, uma coisa só”(Revista TRIP, n. 191, 2010).Na revista Chiclete com Banana, percebemos um amadurecimento <strong>da</strong> sua produçãoem relação aos trabalhos publicados na déca<strong>da</strong> de 1970, assim como uma liber<strong>da</strong>de maiorpara tratar dos temas que mais lhe interessavam, já que a publicação era assumi<strong>da</strong>mentedireciona<strong>da</strong> para o público adulto:Seus temas giram em torno de sexo, geralmente de forma perversa:sadomasoquismo, voyerismo, pedolatria, utilizando neologismos e palavrões.Privilegiam-se comportamentos repressivos, que são evidenciados na tendência a sereferir constantemente à mer<strong>da</strong> e a comportamentos perversos. (...). Os tabus e temasque podem ser considerados como amorais pelos padrões culturais dominantes,como o voyerismo, o fetichismo, a masturbação, são tematizados freqüentemente,indicando uma tentativa de oposição à moral dominante.(SILVA, 2002, p. 62)Dessa forma, Angeli enquadra-se no grupo dos artistas que produziam à margem dogrande mercado, e que, portanto, abor<strong>da</strong>rá temas que não são trabalhados nos quadrinhostidos como industriais. Porém, neste ponto, surge-nos a seguinte questão: que grupo é este?Principiemos pelo entorno que circun<strong>da</strong>va este autor. Em nível regional Angeliencontrava-se inserido em meio à juventude urbana paulistana, e juntamente com GlaucoVillas Boas 31 e Laerte Coutinho 32 formou a “trinca dos melhores e mais ativos quadrinistas <strong>da</strong>contra-cultura brasileira atual” (GOIDANICH, 1990, p. 145). Ambos, apesar de terem suaspróprias publicações, beneficia<strong>da</strong>s aliás pelo sucesso <strong>da</strong> Chiclete, contribuíramsignificativamente na revista do amigo Angeli, tanto com suas próprias criações, Geraldão ePiratas do Tietê, a primeira de Glauco e a segun<strong>da</strong> de Laerte, como com a história “desenha<strong>da</strong>a seis mãos”, Los tres amigos, na qual os alter-egos dos desenhistas (Angel Villa, Glauquito eLaerton) desenvolviam suas aventuras em um tipo de velho-oeste fictício, rega<strong>da</strong>s a muitohumor, sexo e perversões. O trio seguiu produzindo em parceria, mesmo após o fim <strong>da</strong> revistaChiclete com Banana, embora não com a mesma intensi<strong>da</strong>de, através de colaborações mútuasdevido à grande amizade e admiração existente entre os três, porém um acontecimento trágico31 Glauco Villas Boas. Paraense de Jan<strong>da</strong>ia nascido em dez de março de 1957. Seus primeiros trabalhos forampublicados em 1976, no jornal Diário <strong>da</strong> Manhã, de Ribeirão Preto. Fez colaborações para as seções dehumor Vira Lata e Gol, <strong>da</strong> Folha de S Paulo, onde mantinha uma tira diária com o personagem Geraldão,que posteriormente ganhou uma revista de periodici<strong>da</strong>de trimestral. Na referi<strong>da</strong> revista, além <strong>da</strong>s tiras dopersonagem título, apareceram também O Casal Neuras, Zé do Apocalipse, Doy Jorge e Dona Marta. Ocartunista foi premiado no Salão Internacional de Humor de Piracicaba (1977/1978) e na 2ª Bienal deHumorismo Y Grafica Militante de Cuba, em 1980 (GOIDANICH, 1990, p.145).32 Laerte Coutinho. Paulista, nascido em 10 de junho de 1951, é considerado um dos principais quadrinistas doBrasil. É o criador de uma <strong>da</strong>s mais populares e divulga<strong>da</strong>s tiras diárias, O Condomínio, “curtição <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>atribula<strong>da</strong> e força<strong>da</strong>mente coletiva num edifício de qualquer grande ci<strong>da</strong>de deste nosso país. Em suaativi<strong>da</strong>de intensa criou personagens consagrados até hoje, como Piratas do Tietê (GOIDANICH, 1990,p.203).


51com Glauco 33 levou à separação força<strong>da</strong> dos três amigos.FIG. 02: Na foto, Laerte, Angeli e Glauco, vestidos de acordo com os personagens <strong>da</strong>história Los tres amigos, cujos nomes são, respectivamente, Laerton, Angel Villa eGlauquito. Fonte: Leituras <strong>da</strong> História n. 37. Ed. Escala. Fevereiro de 2011, p. 54.De acordo com Paulo Fernando Dias Diniz, tanto a Chiclete com Banana como aprodução de Angeli:(…) faziam parte de um movimento maior dos quadrinhos brasileiros, que não seresumia apenas à produção paulista, na qual se inserem Angeli, Glauco, Laerte,Fernando Gonsales como destaques, mas que tinha representantes no Rio Grande doSul com (Edgar Vasques, Luís Fernando Veríssimo), no Rio de Janeiro com (MiguelPaiva), e em Pernambuco, onde foi cria<strong>da</strong> a PADA, uma associação para a criação epublicação de quadrinhos diretamente para as bancas de jornal.”(DINIZ, 2001, p. 2)Portanto, verificamos que a vertente de contestação aos valores hegemônicos nasocie<strong>da</strong>de não era uma proposta única de Angeli enquanto indivíduo, mas se caracterizavacomo uma postura adiciona<strong>da</strong> à sua personali<strong>da</strong>de por meio do compartilhamento de ideias dogrupo ao qual pertencia, no caso o dos artistas do udigrudi.Quanto às influências sobre o seu trabalho, podemos citar três em especial, duasexternas e uma interna. As externas foram o autor francês Wolinski, que influenciou nãoapenas Angeli como também vários outros artistas do udigrudi, e o norte-americano RobertCrumb. O contato de Angeli com estes autores se deu através <strong>da</strong> revista Grilo, publica<strong>da</strong> noBrasil no início dos anos 1970.De acordo com o próprio autor, essa revista foi responsável pela formação de sua“cabeça de quadrinista” (SILVA, 2002, p. 60), e ousamos dizer que, em relação a Crumb, ainfluência refletiu-se até mesmo no próprio traço de Angeli, pois as semelhanças são grandes,especialmente no uso <strong>da</strong>s hachuras, e <strong>da</strong> luz e sombra. A admiração por Crumb é tamanha queAngeli criou o personagem Ralah Rikota, em homenagem ao Mr. Natural, de Robert Crumb.33 Na madruga<strong>da</strong> de 25 de março de 2010 Glauco e seu filho Raoni, de 25 anos, foram assassinados peloestu<strong>da</strong>nte universitário Carlos Eduardo Sundfeld Nunes. O estu<strong>da</strong>nte invadiu a residência do cartunista, umachácara em Osasco e depois de manter Glauco e sua família como reféns atirou contra ele e o filho. O casoganhou grande repercussão na imprensa brasileira.


52Admiração esta evidencia<strong>da</strong> pelo encontro entre os dois personagens engendrado pelo artistana terceira edição <strong>da</strong> Chiclete com Banana. Quanto à influência interna, assim como ocorreu amuitos outros artistas <strong>da</strong> sua geração, deu-se por meio do Pasquim, que segundo o próprioautor, o influenciou muito. “É, tinha um amigo que comprava O Pasquim, aí comecei aperceber melhor as coisas que antes você ouvia mas não entendia o porquê. O Pasquim meinfluenciou muito” (Revista TRIP, n. 191, 2010).FIG. 03. Personagem Ralah Rikota, uma criação de Angeli em homenagem aoMr. Natural de Robert Crumb. Fonte: Chiclete com Banana n. 3. CircoEditorial. Fevereiro de 1986. p. 29.Nos detendo um pouco mais no personagem Ralah Rikota, podemos entendê-lo comomais um elemento dos movimentos contraculturais presentes na produção de Angeli, comotambém <strong>da</strong> sua grande referência, Crumb. É notória a tematização do psicodelismo eesoterismo presente nas manifestações <strong>da</strong> contracultura. Desde os beats e hippies, taiscaracterísticas se agregaram aos adeptos <strong>da</strong> contestação dos valores sociais dominantes.Contudo, como é característico dos quadrinhos underground, tais personagens apresentamuma crítica de costumes, tanto Crumb como Angeli buscaram evidenciar o ridículo desseesoterismo e não enaltecê-lo e, ao ressaltar esse ponto, suscitaram o risível nos mesmos.FIG. 04. Acima, parte <strong>da</strong> história de uma página onde ocorre o encontro de Ralah Rikotacom Mr. Natural, a “criação imortal de Crumb”, nas palavras de Angeli. Chiclete comBanana n. 3. Circo Editorial. Fevereiro de 1986. p. 39.Angeli utiliza recursos artísticos muito semelhantes aos de Crumb, especialmente ouso de hachuras. A história em que ocorre a visita de Mr. Natural ao Ralah Rikota ocupa to<strong>da</strong>


53uma página <strong>da</strong> Chiclete com Banana número três, mas para o nosso estudo escolhemos apenasuma tira <strong>da</strong> página para que possamos observar melhor as semelhanças entre os traços deambos. Tal encontro, provavelmente, foi realizado sem o conhecimento do autor original,Crumb, mas, <strong>da</strong><strong>da</strong> a interpretação de influências entre os artistas do underground, tomamos aliber<strong>da</strong>de de pensar que possivelmente o próprio Crumb não se importaria com a utilização deseu personagem, primeiro por se tratar de uma homenagem, e em segundo lugar porque osartistas deste meio não costumam <strong>da</strong>r tanta importância aos créditos quanto os que trabalhamna produção industrial de quadrinhos.Cumprimos, até agora, a tarefa de contextualizar o mercado editorial brasileiro,analisamos o contexto de desenvolvimento dos quadrinhos underground no Brasil e nosEstados Unidos e traçamos as influências sofri<strong>da</strong>s pelo autor escolhido para o nosso estudo.Também elaboramos um breve perfil do mesmo, por meio de suas próprias palavas e,também, um pouco, por seus personagens. Cabe-nos, a partir do próximo capítulo, discutir osurgimento <strong>da</strong> publicação que nos serve de fonte, intimamente relacionado à criação <strong>da</strong> CircoEditorial, responsável por grande parte <strong>da</strong>s publicações alternativas <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980.


54Capítulo 3 – Chiclete com Banana: influências e caracterização <strong>da</strong> publicaçãoÀs vezes me pergunto por que essa fascinaçãopelo outsider, pelo cara que não dá certo, quean<strong>da</strong> torto... Se vou criar um personagem, logovou pro cara mais roto, mais esfolado.(Angeli em entrevista à revista TRIP, n. 191,2010)Em um mercado caracterizado pela forte presença de quadrinhos norte-americanos, aproposta de uma publicação totalmente nacional e com temáticas correspondentes aos anseios<strong>da</strong> juventude urbana brasileira poderia soar como algo ousado e fa<strong>da</strong>do ao fracasso. Levandoem consideração que desde a introdução desta linguagem visual no Brasil, os quadrinhosforam apresentados como um produto direcionado ao público infanto-juvenil, e ain<strong>da</strong>, que amaioria <strong>da</strong>s publicações subsequentes continuaram investindo neste mesmo sentido, publicarquadrinhos para adultos, fazê-los conquistar espaço em prateleiras na maioria <strong>da</strong>s vezesreserva<strong>da</strong>s a produtos para crianças, e além disso, aceitar a disputa com as produçõesestrangeiras já estabeleci<strong>da</strong>s e com público garantido parecia uma tarefa impossível de serrealiza<strong>da</strong>. Além disso, se propunha uma publicação crítica politicamente, na contra-mão devalores morais defendidos pelo regime político autoritário ain<strong>da</strong> em vigor.Mas, a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Circo Editorial provou que não havia na<strong>da</strong> de impossível em taltarefa. Difícil? Sim, óbvio! Porém, as pessoas envolvi<strong>da</strong>s na fun<strong>da</strong>ção e funcionamento <strong>da</strong>editora congregavam em uma mesma proposta de trabalho: uma mu<strong>da</strong>nça na forma de sefazer quadrinhos no Brasil.Influenciados pelo estilo dos quadrinhos underground norte-americanos e carregandoconsigo as experiências adquiri<strong>da</strong>s tanto na confecção de fanzines quanto na atuação emveículos <strong>da</strong> imprensa alternativa, os envolvidos na criação <strong>da</strong> Circo Editorial acreditaram noprojeto, que a princípio exigiu pesado investimento de alguns, mas posteriormente mostrouque eles estavam certos. Havia espaço para quadrinhos direcionados aos adultos no Brasil, eeste espaço eles souberam desbravar e abrir espaço para os que viriam depois.O legado deixado pelas publicações <strong>da</strong> Circo Editorial na déca<strong>da</strong> de 1980 para osquadrinhos atuais pode ser comparado à influência exerci<strong>da</strong> pelo Pasquim para a geração <strong>da</strong>Circo. Podemos afirmar que esta editora, ao abrir espaço para um segmento não exploradoantes, levou as editoras maiores a investir em projetos neste sentido, ampliando o leque deopções para esta fatia do mercado durante muito tempo ignora<strong>da</strong>.Entre as suas produções, teve maior destaque a revista Chiclete com Banana, que comseu humor ácido distribuídos em vinte e quatro números bimestrais, deu origem a outras


55publicações basea<strong>da</strong>s nessa iniciativa, como edições especias, álbuns dedicados à únicopersonagem, entre tantas outras revistas tira<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Chiclete com Banana, nasci<strong>da</strong>s dessa ideia,a princípio, absur<strong>da</strong>, de fazer quadrinhos para adultos.3.1. A preparação do espaço: a criação <strong>da</strong> Circo EditorialA déca<strong>da</strong> de 1980 marcou, de uma forma especial, a história <strong>da</strong>s histórias emquadrinhos no Brasil devido ao surgimento <strong>da</strong> Circo Editorial, grande porta de entra<strong>da</strong> nomercado para muitos artistas brasileiros que são reconhecidos até os dias de hoje. A editora,por meio <strong>da</strong>s publicações que produziu, foi um dos fatores fun<strong>da</strong>mentais para o esmaecimento<strong>da</strong> ideia de que histórias em quadrinhos eram um tipo de literatura exclusivamente volta<strong>da</strong>para o público infantil, abrindo o mercado para um novo segmento, os quadrinhos adultos.Grande parte dos estudiosos sobre histórias em quadrinhos, afirmam que o impulso <strong>da</strong>do pelaspublicações <strong>da</strong> Circo na déca<strong>da</strong> de 1980 contribuiu para o delineamento do cenário atual, poismuitos autores ain<strong>da</strong> atuantes no mercado ou iniciaram sua carreira na Circo ou foraminfluenciados pelas revistas <strong>da</strong> editora.O início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980 foi marcado por uma série de fatores que ofereceram ascondições propícias para o surgimento <strong>da</strong> editora e essas mu<strong>da</strong>nças não se restringiam apenasàs produções culturais, mas se manifestaram também no que diz respeito ao comportamento.Produções cinematográficas com pretensões de atingir à juventude <strong>da</strong> época seproliferavam, entre elas podemos citar: Menino do Rio (1982), de Antonio Calmon, e BeteBalanço (1984), de Lael Rodrigues. Alavanca<strong>da</strong>s por hits de grande sucesso nas rádios, antesdos seus lançamentos – no caso de Menino de Rio a música antecedeu o filme, e em BeteBalanço pode-se dizer que a canção serviu como propagan<strong>da</strong> para o mesmo –, assim, músicae cinema se complementavam, contribuindo para a divulgação de expressões decomportamento marcantes no cotidiano <strong>da</strong> juventude urbana do período, como a rebeldia, ouso de drogas, o amor livre, entre outras (BUENO, 2011, p. 58-61).Nesse contexto efervescente surgiu a Circo Editorial. A ideia para a criação <strong>da</strong> editorapartiu de Antonio de Souza Mendes Neto, mais conhecido como Toninho Mendes; amigo deinfância de Angeli, Toninho teve também sua trajetória de vi<strong>da</strong> marca<strong>da</strong> por traços ligados aocenário alternativo <strong>da</strong> época. Ele foi integrante do movimento hippie, e sua ligação com asmanifestações contraculturais acabou por influenciar suas preferências, levando-o a umaaproximação maior com o universo underground e, consequentemente, à produção artística ecultural proveniente deste movimento. Toninho, assim como Angeli, teve contato com aspublicações alternativas através do Pasquim e do Grilo. Do primeiro, assimilou a tônica do


56humor utilizado pelos profissionais brasileiros, assim como também foi seduzido pela posturacontestadora; do segundo, acreditamos ter sido o maior atrativo a escolha de temaspolêmicos, ou mesmo não abor<strong>da</strong>dos pelas publicações comuns e a originali<strong>da</strong>de dos artistasunderground, características posteriormente apresenta<strong>da</strong>s também nas publicações <strong>da</strong> editorafun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Toninho. O início de suas ativi<strong>da</strong>des no mercado editorial se deu através <strong>da</strong>participação em jornais independentes como Ex, Movimento e Versus, espaço onde adquiriuconhecimento sobre o funcionamento <strong>da</strong>s publicações alternativas, levando em consideraçãoque as três publicações cita<strong>da</strong>s compunham o amplo repertório <strong>da</strong> imprensa alternativa <strong>da</strong>déca<strong>da</strong> de 1970. Assim, conheceu também a atuação <strong>da</strong> censura à imprensa alternativaempreendi<strong>da</strong> pelo regime militar, outro objeto de crítica nas publicações edita<strong>da</strong>s pelo mesmoposteriormente à frente <strong>da</strong> Circo. To<strong>da</strong>via, sua primeira experiência na área de edição dequadrinhos deu-se através <strong>da</strong> publicação de Versus quadrinhos e o Livrão dos quadrinhos,criações de Marcos Faerman. A partir desse momento, quando já havia adquirido experiênciano ramo, e do estreitamento <strong>da</strong> amizade com Luiz Gê e Angeli, surgiu a ideia para a criação<strong>da</strong> editora. (SANTOS, 2007, p. 5)A Circo Editorial foi cria<strong>da</strong> em 26 de abril de 1984, algo em si já muito significativopois nesta <strong>da</strong>ta o Congresso rejeitou a Emen<strong>da</strong> Dante de Oliveira 34 , adiando o retorno <strong>da</strong>seleições diretas para presidente <strong>da</strong> República, mantendo, assim, a escolha para o sucessor dogeneral João Batista Figueiredo ain<strong>da</strong> por via indireta. Entretanto, mesmo não tendo sidoaprova<strong>da</strong> a eleição direta para presidente <strong>da</strong> República, como há muito se desejava, eramclaros os sinais de que o ciclo de governos militares que se estendeu no Brasil por vinte anosdemonstrava seu estado agonizante. Dessa forma, ain<strong>da</strong> de acordo com Santos (2007, p. 5),percebemos o nascimento <strong>da</strong> editora como algo extremamente relacionado ao movimento deabertura política. Tal contexto contribuiu até mesmo para a mu<strong>da</strong>nça na forma <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gemhumorística, pois a crítica passou a privilegiar o comportamento político, a busca do ridículonas ações e não apenas nas figuras, uma abor<strong>da</strong>gem adota<strong>da</strong> tanto pelo cartunista escolhidopara o nosso estudo quanto pelos demais cartunistas do circuito alternativo na déca<strong>da</strong> de 1980.Tanto na Chiclete com Banana quanto nas demais publicações <strong>da</strong> Circo34 Apresenta<strong>da</strong> pelo deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT), a emen<strong>da</strong> propunha o retorno <strong>da</strong>seleições diretas para presidente <strong>da</strong> República. Começou a ser elabora<strong>da</strong> pelo deputado em janeiro de 1983,antes mesmo que ele tomasse posse, a partir de um tema por ele levantado ain<strong>da</strong> na época <strong>da</strong> sua campanhaeleitoral. Ele percebeu que to<strong>da</strong>s as propostas anteriores que visavam este mesmo objetivo estavamarquiva<strong>da</strong>s. Mesmo sem dispor de muitos contatos, saiu em busca <strong>da</strong>s 160 assinaturas regimentais para quepudesse apresentar a emen<strong>da</strong>, e as conseguiu. Quando apresentou a proposta, em 1984, outras cinco emen<strong>da</strong>scom textos diferentes mas objetivo similar já tramitavam no Congresso e, por meio de um acordo entre ospartidos, foram to<strong>da</strong>s reduzi<strong>da</strong>s à Dante de Oliveira, visando assim facilitar os procedimentos(RODRIGUES, 2003, p. 41-42).


A vi<strong>da</strong> pública representa<strong>da</strong> na revista não parece digna do menor respeito, visto quetodo político é mau caráter e o que se chama de Nova República é apenas umagrande pia<strong>da</strong>. O descrédito na vi<strong>da</strong> pública não se relaciona apenas com a políticamas também com os meios de comunicação, principalmente a televisão.(SANTOS, 2002, p. 73)57O cenário desenhado durante o processo de redemocratização, e cujo resultadocompleto foi contemplado nos anos seguintes, apresentava contornos não muito agradáveisaos integrantes do grupo de Angeli, e se, tal como afirmou Propp, o cômico pode semanifestar tanto de uma ação inespera<strong>da</strong>, de um elemento surpresa na cena, quanto de umasituação inversa ao que se aguar<strong>da</strong>va, podemos considerar que estes intelectuais do humor, eentre eles Angeli, extraíram e ampliaram a potenciali<strong>da</strong>de deste efeito cômico na conjuntura<strong>da</strong> qual tratavam e na qual estavam imersos. Portanto, o tipo de humor adotado pelaspublicações <strong>da</strong> Circo seguia a tendência <strong>da</strong> crítica de comportamento, ressaltando temas atéentão não tratados nas publicações <strong>da</strong>s demais editoras; assim temos a adoção de uma posturaextremamente irônica com relação à política, e o riso nas publicações <strong>da</strong> Circo resulta <strong>da</strong>provocação, do convite à crítica.A primeira publicação <strong>da</strong> Circo Editorial foi um álbum intitulado Chiclete comBanana, e se constituiria no primeiro número <strong>da</strong> Série Traço e Riso. A edição foi feita noformato horizontal e continha tiras cria<strong>da</strong>s por Angeli, publica<strong>da</strong>s anteriormente na Folha deS Paulo. Esta série estava planeja<strong>da</strong> para abarcar inicialmente dois volumes, o Chiclete comBanana, de Angeli, e Não tenho palavras, de Chico Caruso. Este último chegou até mesmo ainvestir seu próprio dinheiro na edição do livro de Angeli, pois, como o seu livro comportariacharges sobre o resultado <strong>da</strong> campanha <strong>da</strong>s Diretas Já, não se encontrava ain<strong>da</strong> concluído;dessa forma, o de Angeli foi publicado primeiro, e talvez, uma decisão muito afortuna<strong>da</strong>, poiso livro tornou-se um sucesso de ven<strong>da</strong>s, levando Toninho a investir em outros títulos e atémesmo no lançamento <strong>da</strong> revista Chiclete com Banana, que se tornou o grande sucesso <strong>da</strong>Circo Editorial. O livro tinha como destaque o personagem Bob Cuspe, e pode serconsiderado um grande sucesso para a época em que foi editado. “Esse livrinho chegou até a11ª edição, quando os livros de humor no Brasil vendem apenas metade <strong>da</strong> primeira edição”(SILVA, 2002, p. 54). Segundo o próprio Angeli, em entrevista concedi<strong>da</strong> a Silva (2002), olivro contribuiu não apenas financeiramente para o surgimento <strong>da</strong> revista, mas também criouuma certa expectativa por parte dos leitores cativados pela publicação anterior e conhecedoresdo trabalho de Angeli na Folha de S Paulo. Tal situação pode ser percebi<strong>da</strong> através docomentários de alguns leitores presente na seção de cartas 35 do primeiro número <strong>da</strong> Chiclete35 A seção de cartas pode ser como um espaço muito rico para explorar a relação do autor com seus leitores,pois o próprio Angeli respondia as cartas, seguindo o modelo de correspondência entre artista e públicoexistente nos fanzines. Uma análise mais aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> deste espaço pode ser encontra<strong>da</strong> no seguinte estudo:


58com Banana.Agradeço-lhe pelos seus quadrinhos nos jornais. Têm um sabor de atuali<strong>da</strong>de, demoderni<strong>da</strong>de, enfim, eles sintetizam o inconsciente coletivo <strong>da</strong> moça<strong>da</strong> e dos centrosurbanos. São gostosos como os grandes discos de rock. Nestes tempos onde aesperança é quase nula, é bom rir dos discursos do Meiaoito, <strong>da</strong> decadência <strong>da</strong> RêBordosa, <strong>da</strong> picaretagem do Ralah Rikota ou de outros inúteis. No fundo somosnós, vivendo no tédio de um mundo fracassado. Às vezes, cato um dos teus livros evou lendo no ônibus enquanto não pinta uma motivação qualquer: um amor, umamigo, uma trepa<strong>da</strong>, um novo filme, um disco...Sou caixa de banco e não sei mais o que fazer. Meus amigos de uma certa forma,estão sem fé nem esperança.Bom, teu livro é um tesão. Só mesmo com muito amor, poesia, rock'n'roll e humorque a gente segura essa barra. Um abração. Luiz Mota – São Paulo, SP.(Chiclete com Banana n.01. Circo Editorial, Outubro de 1985, p. 40)Através <strong>da</strong> carta aqui transcrita podemos perceber alguns personagens criados porAngeli já conhecidos pelos leitores, Ralah Rikota, Rê Bordosa e Meiaoito, demonstrando umacerta familiarização com a produção do artista. O leitor em questão, por exemplo, jáacompanhava o trabalho do cartunista antes do surgimento <strong>da</strong> revista Chiclete com Banana,pois ele menciona os quadrinhos dos jornais, no caso a Folha de S Paulo. Luiz Mota, o leitorde Angeli, também cita elementos do universo cultural <strong>da</strong>s tribos urbanas, especialmente notocante ao sentimento pessimista em relação à socie<strong>da</strong>de, à política, enfim, à reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>época <strong>da</strong> publicação, estreitando ain<strong>da</strong> mais a sua identificação com o autor dos quadrinhos,visto que seu trabalho dialogava com estes elementos, levando os leitores a encontrarem umacorrespondência entre as produções e seus anseios, que também eram os do autor. Na partefinal <strong>da</strong> carta ele faz referência ao livro <strong>da</strong> série Traço e Riso, reforçando a nossa ideia de quetal publicação contribuiu para o sucesso do primeiro número <strong>da</strong> Chiclete com Banana, naocasião do seu lançamento. A resposta <strong>da</strong><strong>da</strong> pelo autor não chega a ser tão extensa quanto otexto <strong>da</strong> carta, mas demonstra a relação estreita manti<strong>da</strong> com seus interlocutores,apresentando-se como integrante do mesmo universo cultural deles, defensor <strong>da</strong>s mesmasideias, atormentado por inquietudes semelhantes, sentimentos e impressões expressas pormeio de seus personagens, presentes até mesmo no momento do diálogo com seu leitor,recorrendo à “filosofia bobcuspiana” e buscando uma identificação com seu interlocutor aoafirmar: “Cuspamos todos por um mundo melhor” (Chiclete com Banana n.1, 1985, p. 40).O sucesso <strong>da</strong> Chiclete com Banana permitiu a publicação de outros títulospossibilitando a emergência a partir de então de uma nova vertente do mercado editorialbrasileiro, a dos quadrinhos de humor para adultos. Na trilha <strong>da</strong> revista seguiram-se: Piratasdo Tietê, o Síndico, Gato e Gata, Fagundes o Puxa-saco e O Grafiteiro, de Laerte, NíquelSILVA, Nadilson M. <strong>da</strong>. Chiclete com Banana: juventude, quadrinhos e sedução. Monografia (Conclusão doCurso de Ciências Sociais) – Recife, UFPE, 1992.


Náusea, de Fernando Gonsales, além de outros artistas que continuam a contribuir para osquadrinhos nacionais até os dias de hoje.593.2. Entre o chiclete e a banana: as entrelinhas <strong>da</strong> publicaçãoGrande sucesso editorial <strong>da</strong> Circo e responsável pela abertura dos caminhos para aspublicações seguintes, a revista Chiclete com Banana surgiu, de certa forma, como umaresposta ao anseio <strong>da</strong> juventude urbana <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980 por um espaço onde pudesseencontrar correspondência para as suas expectativas. Tal ideia é reforça<strong>da</strong> pela carta do leitortranscrita anteriormente, pois quando o mesmo afirma que os quadrinhos de Angeli“sintetizam o inconsciente <strong>da</strong> moça<strong>da</strong> e dos centros urbanos”, deixa claro qual segmento lia arevista e em qual locali<strong>da</strong>de encontrava-se. O período oferecia as condições propícias para talempreita<strong>da</strong> pois já havia um movimento <strong>da</strong> cultura jovem urbana em crescimento,evidenciado pelo crescente sucesso do rock nacional e pelo surgimento <strong>da</strong>s tribos urbanas.FIG. 05. Capa <strong>da</strong> revista Chiclete com Banana n. 1. Circo Editorial. Outubrode 1985.. A revista chegou a manter uma média de 90 mil exemplares portiragem, um grande feito para o mercado editorial do período.A edição de lançamento trazia na capa os âncoras do repertório de personagens deAngeli: Rê Bordosa, como destaque, e Bob Cuspe, em plano secundário. Logo abaixo,verificamos um desenho de Luiz Gê, cuja participação na edição de lançamento deu-se com ahistória Entra<strong>da</strong>s e Bandeiras, publica<strong>da</strong> nas últimas páginas <strong>da</strong> revista, e espaço reservadonos exemplares seguintes para a apresentação de novos desenhistas e para a contribuição doscolaboradores. Já a partir <strong>da</strong> estruturação <strong>da</strong> capa verificamos a abor<strong>da</strong>gem humorística doautor, tanto no subtítulo, que sintetiza a revista na seguinte frase “Humor, quadrinhos egalhofa, mas tudo no bom sentido”, quanto na informação do preço “Cr$ 9.000. Mais baratoque um X-Burger”. Chamamos ain<strong>da</strong> a atenção para o personagem Bob Cuspe, acompanhado


60do frase “Vote Bob Cuspe para prefeito”. Percebemos, neste primeiro momento, a insatisfaçãocom o cenário político, cuja solução proposta por Angeli é sua anárquica criação; talsentimento é reforçado pelo slogan do personagem “Cuspa no prato em que comeu!”,compreendendo a cuspara<strong>da</strong> como uma reação à insatisfatória situação vigente.Porém, antes de partirmos para uma análise mais detalha<strong>da</strong>, faz-se necessário recor<strong>da</strong>rque a fonte escolhi<strong>da</strong> não se encontra no mercado regular de quadrinhos; ela surge a partir deuma vertente “marginal” dos quadrinhos, os fanzines e, embora tenha sido publica<strong>da</strong> comquali<strong>da</strong>de de edição profissional, sua estrutura não nega as origens. Percebe-se a semelhançacom os fanzines, tanto na disposição <strong>da</strong>s criações quanto na escolha dos temas. SegundoHenrique Magalhães, essas produções alternativasse caracterizam pela criação de uma expressão própria de um mundo culturalrenovador e uma resistência cultural frente ao processo de dominação internacional.Nesse âmbito, a comunicação alternativa é vista sob vários ângulos e corresponde areali<strong>da</strong>des e contextos sociológicos diferenciados.(MAGALHÃES, 2003, p. 24)Portanto, em um mercado dominado pelos quadrinhos norte-americanos, ounderground, ou melhor, o udigrudi, surgiu como essa menciona<strong>da</strong> expressão própria noâmbito de uma resistência cultural, afirmativa <strong>da</strong>s alternativas locais, um jeito brasileiro defazer quadrinhos completamente descolado <strong>da</strong> tendência <strong>da</strong>queles produzidos segundo opadrão industrial, um espaço livre de amarras criativas e <strong>da</strong> censura, onde a tônica era odiálogo com a juventude, com os temas de seu interesse, como a rebeldia e contestação devalores dominantes e <strong>da</strong> tradição. Para melhor explicar essa situação, assim comoadentrarmos nos meandros <strong>da</strong> publicação conhecendo-a mais profun<strong>da</strong>mente, analisemos aseguinte imagem que acompanha o editorial <strong>da</strong> primeira edição <strong>da</strong> revista.FIG. 06. Fonte: Chiclete com Banana n. 1. Circo Editorial. Outubro de 1985, p.3.


61Podemos observar na imagem um famoso personagem do universo Disney, o PatoDonald, e nas “sombras”, aguar<strong>da</strong>ndo-o, prestes a atacá-lo, Bob Cuspe, personagem criadopor Angeli, acompanhado por outros punks. Na figura, observamos o olhar “perdido” do PatoDonald, ele caminha como o mercado editorial na época caminhava, o olhar fixo no estilonorte-americano de fazer histórias em quadrinhos, entretanto, o underground estava ali, namargem, nas sombras, como uma ameaça, mas também um grito de denúncia, um “estamosaqui, mesmo que você não queira”. Podemos perceber através dessa representação umademonstração do posicionamento dos editores <strong>da</strong> revista, assumindo sua vinculação a umgrupo cuja intenção é realmente seguir o caminho contrário e, dessa maneira, provocar omercado dos quadrinhos industriais.O material escolhido para o nosso estudo encontra-se na contramão <strong>da</strong> vertentedominante do mercado editorial <strong>da</strong> época, no sentido de uma resposta carrega<strong>da</strong> de um humorácido à situação, tanto política, quanto cultural e econômica do período, reforçando o discursoapresentado na imagem. O texto escrito por Angeli para o editorial que acompanha a imagemapresentação,expressa claramente o posicionamento <strong>da</strong> publicação. Vejamos:O ser humano é meio panaca mesmo. Alguns engolem fogo, outros escalam o monteEveresty; outros ain<strong>da</strong>, deitam em cama de prego, e nós resolvemos fazer um gibi –ou seria uma revista? - de galhofa para galhofeiros. Dois pontos, entre outros, sãodifíceis nesta façanha editorial: primeiro concorrer com o pato idiota, aí de cima esegundo fazer galhofa num país onde ultimamente todo mundo se leva terrivelmentea sério.Não! Não vamos encher seu saco narrando as desventuras do desenhista nacionalcontra um bando de patos afeminados e não assumidos, pois você não comprou estarevista – ou seria um gibi? - para ouvir lamúrias e nem vamos achar que humor écoisa tão importante a ponto de derrubar o governo <strong>da</strong> Cisjordânia, se é que lá temgoverno. Queremos com esse gibi – ou seria revista? - apenas beliscar a bun<strong>da</strong> do serhumano para ver se a besta acor<strong>da</strong>.(Chiclete com Banana n.01. Circo Editorial. Outubro de 1985, p. 03)A leitura deste editorial, articula<strong>da</strong> à imagem analisa<strong>da</strong> anteriormente, permiteperceber o padrão humorístico <strong>da</strong> publicação, assim como a intenção de estabelecer umacomunicação direta com uma parte do público leitor de quadrinhos, pois, quando se afirmaque é uma revista de “galhofa para galhofeiros”, nos leva a tecer conclusões sobre asintenções do autor, que no caso não seria a de estabelecer um diálogo com um públicopassivo, mas com leitores capazes de refletir risonhamente. Tal atitude é manti<strong>da</strong> ao longo <strong>da</strong>sdemais edições, tanto pela seção de cartas como em outros espaços <strong>da</strong> revista, pois os temastrabalhados por Angeli, e pelos demais colaboradores <strong>da</strong> publicação, buscam esse públicoportador de conhecimento crítico <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de política e social vigente no Brasil e,simultaneamente, capaz de interferir com o humor e a ironia, inclusive dirigido a si próprio,“para ver se a besta acor<strong>da</strong>”.


62Outro ponto que esclarece ain<strong>da</strong> mais para qual público se dirigia a publicação é apresença do personagem de Walt Disney, na imagem apresenta<strong>da</strong>. De acordo com Silva (2002,p.61) a presença do Pato Donald denota dois sentidos: em um primeiro momento fazreferência à dominação cultural norte-americana, e em um segundo momento demonstra oobjetivo <strong>da</strong> revista, o qual não era de forma alguma cativar os atuais leitores dos quadrinhosDisney, mas os antigos, os quais quando criança liam revistas infantis e na fase adulta optarampela Chiclete com Banana. Este último ponto reforça a ideia de que a intenção <strong>da</strong> publicaçãonunca foi atingir o público infantil, mas mostrar que as histórias em quadrinhos eram,também, um produto capaz de dialogar com o público adulto.Depois de esclarecer para quem fala, parte-se para evidenciar as dificul<strong>da</strong>des domercado dos quadrinhos nacionais, pois a concorrência com os quadrinhos estrangeiros atéentão ain<strong>da</strong> era muito forte. Mas, como a imagem analisa<strong>da</strong> explica, eles estão prontos para“descer a porra<strong>da</strong>” nos “patos” que aparecerem no meio do caminho.Um segundo ponto levantado no editorial a ser ressaltado é o fato de Angeli mencionara dificul<strong>da</strong>de em “fazer galhofa num país onde ultimamente todo mundo se leva terrivelmentea sério”, ou seja, reconhecer a conjuntura sisu<strong>da</strong>, pesa<strong>da</strong>, imposta por um governo herdeiro <strong>da</strong>tradição, <strong>da</strong> ordem. Fazer humor em um período em que não se “devia” rir ironicamente. Oestado de exceção já não era mais uma reali<strong>da</strong>de no Brasil, mas mesmo assim era umamemória recente, portanto as feri<strong>da</strong>s provoca<strong>da</strong>s pelo regime militar eram recentes e estavamabertas. A transição foi feita, mas não de maneira satisfatória. A anistia foi tão ampla, geral eirrestrita que estendeu-se até aos censores e aos responsáveis por atos de violação dos direitoshumanos durante o regime militar. Tínhamos um presidente, José Sarney, levado ao cargo poruma vira<strong>da</strong> do destino, e não conseguiu imprimir rumos novos que lograssem tirar o país desuas crises política e econômica. Porém, como já foi comentado no capítulo anterior, nadéca<strong>da</strong> de 1980 surgiu uma tendência, entre alguns cartunistas, de fazer o que ficou conhecidocomo “humorismo a favor”, provocando uma cisão entre os mesmos e, até certo ponto, umestranhamento, pois os que adotavam tal postura a favor do governo sofreram críticas dos quese opunham, em contraparti<strong>da</strong> estes ao continuarem fazendo uso do humor mor<strong>da</strong>z em suasproduções, também foram alvos de acusações, e por manterem esta postura crítica foramrotulados como “os do contra”, como se estivéssemos li<strong>da</strong>ndo com “rebeldes sem causa”.Neste sentido, podemos aqui levantar mais um mérito <strong>da</strong> publicação, o de resgatar e sair emdefesa desse humor mor<strong>da</strong>z, e utilizá-lo como posicionamento crítico ao cenário social,cultural e político, ou seja, neste caso não seria um riso descomprometido e ingênuo, masdirecionado e preenchido de intencionali<strong>da</strong>des, ou seja, esses rebeldes criavam caso, tinhamcausas.


63Outro ponto curioso do editorial é o jogo de palavras utilizado para qualificar apublicação, ora como gibi, ora como revista, sem definir exatamente o que era. Podemos, emum primeiro momento, relacionar esta indefinição à constante atribuição, no Brasil, do nomegibi para as revistas que publicam histórias em quadrinhos 36 . Ain<strong>da</strong>, podemos relacionar essaindefinição ao próprio formato <strong>da</strong> publicação, que não continha apenas histórias emquadrinhos, mas também fotomontagens, matérias sobre música e comportamento, entreoutros temas.Por fim, mais uma vez retorna-se à comunicação direta com o leitor, esclarecendo aintenção <strong>da</strong> publicação, quando mais uma vez é feito o jogo de palavas – revista ou gibi? -deixando claro sua intenção ao utilizar o humor, com o qual não pretendia realizar grandestransformações, mas levar seu interlocutor à reflexão, demonstrar aquilo que estava oculto, eatravés do riso levar a “besta do ser humano”, nas palavras do próprio autor, a acor<strong>da</strong>r para areali<strong>da</strong>de que o cercava.Assim, este texto e imagem inaugurais introduzem o leitor nas intençõescompartilha<strong>da</strong>s pelos produtores <strong>da</strong> revista, cuja figura central do projeto era Angeli. Domesmo modo, a partir do exemplo do editorial, no estilo jornalístico, define a linha de atuaçãode um periódico, podemos ter a ideia do humor utilizado, do tipo de riso que visava suscitar oirônico, e por meio <strong>da</strong> ironia a reflexão.A revista fugia também aos padrões convencionais em relação à sua estrutura,inspira<strong>da</strong> diretamente na Zap Comix, cria<strong>da</strong> por Robert Crumb. A Chiclete com Bananaapresentava uma mistura de linguagens em um mesmo espaço: as histórias em quadrinhosencontravam-se intercala<strong>da</strong>s por entrevistas, fotonovelas e colunas, debatendo diversosassuntos do interesse <strong>da</strong> juventude urbana, como música, comportamento, entre outros. Talformato não foi adotado ao acaso, era organizado de forma a se apresentar desta maneira. Ementrevista a Silva (2002) o próprio Angeli afirmou que buscavam sempre evitar a presençarepetitiva dos quadrinhos.'(…) Chiclete era muito bem pensa<strong>da</strong>, em termos de como você monta uma revista;tinha história, depois um texto, depois uma foto, nunca se juntava história, era umjogo de xadrez, nunca se juntava história com história, e quando se juntava, era ummero erro nosso, ou quando não deu certo no espelho.'(ANGELI apud SILVA, 2002, p. 61)To<strong>da</strong>via, como o nosso interesse diz respeito aos quadrinhos de Angeli, passemos a36 Entre o público que tem uma ligação mais estreita com este tipo de linguagem sabe-se que Gibi foi umarevista lança<strong>da</strong> em 1939, pelo O Globo de Roberto Marinho, para competir diretamente com a revista emquadrinhos Mirim (1937), de Adolfo Aizen.


64eles a partir de então. Comecemos pela questão do formato de quadrinhos adotados peloautor. Apesar de algumas histórias seguirem o formato convencional de uma história comprincípio, meio e fim desenvolvido em cerca de duas, três ou cinco páginas, a maioria <strong>da</strong>sproduções do autor apresenta-se no formato <strong>da</strong> tira cômica. A adoção de tal formato explica-seprimeiramente pelo trabalho realizado por Angeli neste mesmo sentido no jornal Folha de SPaulo; nesse sentido o autor já estava familiarizado com tal linguagem, dominando seuselementos e conseguindo desenvolver seus temas com desenvoltura, obtendo o efeito cômicodesejado. Além deste ponto, existem as características próprias <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> linguagem, pois:As tiras, geralmente, são apresenta<strong>da</strong>s como suplementos de jornais diárias, que assubmetem a certas restrições temáticas e de apresentação. Isso requer que as tirassejam breves para serem entendi<strong>da</strong>s por uma audiência ampla que, em geral, nãocomprou o jornal com o intuito de ler as histórias em quadrinhos.(SILVA, 2002, p. 51)A capaci<strong>da</strong>de de rápido diálogo com o leitor possibilita<strong>da</strong> pela linguagem <strong>da</strong> tiracômica, assim como a simplici<strong>da</strong>de com que devem ser expostos os temas podem serconsiderados importantes fatores para o sucesso <strong>da</strong> publicação, tanto por meio dos antigosleitores de Angeli desde a Folha de S Paulo e <strong>da</strong> série Traço e Riso, quanto através <strong>da</strong>conquista de novos leitores seduzidos pelo humor corrosivo do artista.Neste formato foram desenvolvi<strong>da</strong>s histórias de vários personagens, alguns jáconhecidos pelo público, outros nascidos no próprio espaço <strong>da</strong> revista. Acreditamos sernecessário a caracterização de alguns personagens relevantes para a produção e para tal,seguimos a proposta de Silva (2002), que em seu estudo escolheu os personagens a partir <strong>da</strong>frequência com que aparecem na revista. O referido autor construiu uma tabela com base emuma análise quantitativa realiza<strong>da</strong> em sua dissertação de mestrado em sociologia, do referidotrabalho originou-se o livro Fantasias e cotidiano nas histórias em quadrinhos. Observandoos resultados, o autor optou pela análise <strong>da</strong>s personagens mais recorrentes nas páginas <strong>da</strong>revista, no caso a Rê Bordosa, Bob Cuspe, Meiaoito e Nanico, Wood & Stock e os Skrotinhos.No nosso estudo optamos pela análise dos mesmos personagens analisados por Silva, excetoWood & Stock, devido a diferença entre o tema de nosso interesse e aquele estudo quetomamos como referência. Nossa intenção ao esclarecer as origens e principais característicasde alguns personagens é tornar mais claro ao leitor as análises <strong>da</strong> produção de Angelirealiza<strong>da</strong>s no capítulo seguinte, pois verificamos que tais personagens, quando não aparecemrelacionados à política de forma explícita, podem aparecer de forma indireta, como citações,ou mesmo através <strong>da</strong> inversão de papéis, um personagem no lugar do outro. Assim,acreditamos ser necessária uma primeira abor<strong>da</strong>gem dos mesmos, pois virá a auxiliar a leitura


65e compreensão do capítulo seguinte.Comecemos pelo personagem símbolo <strong>da</strong> tribo punk, o Bob Cuspe. Criado a partir <strong>da</strong>vontade de Angeli em “zoar” com os punks, o feitiço acabou virando-se contra o feiticeiro e ocriador passou a se identificar com as características culturais do ambiente inspirador para suacriatura, o próprio autor se descobriu punk.FIG. 07 FIG. 08Bob Cuspe, o nervo exposto <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Nas histórias do punk os aspectos negativos <strong>da</strong>socie<strong>da</strong>de são ressaltados. FIG. 07. Capa do quarto número <strong>da</strong> Chiclete com Banana,publica<strong>da</strong> em abril de 1986. FIG. 08. Fonte: Chiclete com Banana n. 3. Circo Editorial.Fevereiro de 1986.Presente na revista desde o primeiro número, mas tendo conquistado a capa do quartonúmero <strong>da</strong> publicação, Bob Cuspe é o personagem de maior destaque na Chiclete comBanana. Trata-se de um punk vivendo em meio ao caos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, cujo inconformismodiante do cenário em que vive é demonstrado através de cuspi<strong>da</strong>s, o escarro é seu ato deprotesto. Sua contestação não se restringe às suas ações mecânicas, mas apresenta-se tambématravés <strong>da</strong> sua indumentária: jaqueta de couro, lenço amarrado no pescoço, argolas no nariz ena orelha, tênis preto de cano alto e óculos com lentes escuras, em qualquer hora e ambiente,seja noite ou seja dia, esteja em ambiente fechado ou ao ar livre, os óculos sempre oacompanham. Além <strong>da</strong>s roupas e adereços, a própria constituição física do personagemtambém é uma contestação, o corpo magro apresentando uma postura curva<strong>da</strong>, braços finos ea pele em um tom esverdeado, como um reflexo <strong>da</strong> sua pouca exposição aos raios do sol,contrastam com os padrões de beleza e saúde veiculados pelos meios de comunicação emgeral. De acordo com Silva: “Através de sua aparência, nega-se um modelo de homemurbano, com seus valores e padrões de comportamento considerados normais” (2002, p. 113).Silva ain<strong>da</strong> afirma que sua maneira de vestir constitui-se “uma forma de sair do anonimato na


66paisagem urbana” (2002, p. 113), ao adotar um visual alternativo ele destoa do padrão, mas aomesmo tempo alinha-se à postura <strong>da</strong> sua tribo, que por sua vez é também o público leitor <strong>da</strong>revista. “Além disso, há a crença, arraiga<strong>da</strong> no senso comum, de que à aparência também sevincula uma determina<strong>da</strong> forma de comportamento. Nesse sentido o indivíduo que se vestediferente <strong>da</strong> maioria também teria um comportamento correspondente em relação às ideias”(SILVA, 2002, p. 113). O espaço por onde ele circula também evidencia sua presençacontestadora, pois quando não está vagando pelo cenário metropolitano ele habita,literalmente, sua parte mais baixa: os esgotos.Quando não está cuspindo, ele fica nos esgotos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, dividindo espaço comratos, lixo e principalmente “mer<strong>da</strong>”, não apenas no sentido literal, mas comometáfora <strong>da</strong>quilo que representa as contradições do sistema: a fome, a má quali<strong>da</strong>de<strong>da</strong> comi<strong>da</strong> enlata<strong>da</strong>, os baixos salários etc. Enfim, a mer<strong>da</strong> como aquilo que está portrás <strong>da</strong>s aparências, que está por baixo, nos esgotos de uma grande ci<strong>da</strong>de. E eleseria um sujeito capaz de mostrar essa reali<strong>da</strong>de porque é nos esgotos que ele vive.(SILVA, 2002, p. 114)Bob Cuspe é um personagem underground ao pé <strong>da</strong> letra, sua indignação busca a dopúblico leitor <strong>da</strong> revista, e é dela que vem o seu grande sucesso, que veio abrir as portas paraos demais componentes do universo criado por Angeli receberem a luz dos holofotes docenário dos quadrinhos contraculturais no Brasil.FIG. 09. Fonte: Chiclete com Banana n. 6. Circo Editorial. Agosto de 1986, p. 34.Permea<strong>da</strong>s por um clima de extremo pessimismo e descrença, as histórias de BobCuspe transbor<strong>da</strong>m a insatisfação do artista em papel e tinta. A cuspara<strong>da</strong> denuncia, assimcomo se apresenta enquanto saí<strong>da</strong>, mas também atinge o próprio personagem. Foi por estaúltima possibili<strong>da</strong>de de explicação <strong>da</strong> ação de cuspir que escolhemos a tira cômica acima.Podemos observar, no primeiro quadro, o personagem contemplando do alto a ci<strong>da</strong>de, comose estivesse pronto para atacar mais uma vítima de sua ação de protesto, contudo no exatomomento em que ele se prepara para concluir sua ação é atingido por uma cuspara<strong>da</strong>. A cenacômica é encerra<strong>da</strong> no terceiro quadro, apresentando o autor de tal gesto e concluindo o


67pensamento iniciado no primeiro quadro, de que caso não se cuspa primeiro sempre viráalguém para cuspi-lo. Aproveitando-se <strong>da</strong> ideia de que o mais forte e mais esperto semprevence, nos parece que Angeli tenta jogar com tal pensamento no desenvolvimento <strong>da</strong> tira, aoafirmar que em uma ci<strong>da</strong>de grande é necessário estar atento para cuspir primeiro. Bob Cuspetenta adiantar-se a fazer valer esta afirmação, porém, para acionar o mecanismo <strong>da</strong> açãocômica, o artista lança mão do elemento surpresa invertendo os papéis e tornando o autormais uma vítima de sua própria ação. A posição em que se encontra o agressor do Bob Cuspe,logo acima dele, também nos leva a refletir sobre a opressão dos mais ricos sobre os menosfavorecidos, apresentando o personagem secundário com elementos arquetípicos <strong>da</strong>s classesmais abastas, pois, além de estar em um local mais alto que o Bob Cuspe, ele também estábem vestido e fumando um charuto. O autor estaria apresentando sua visão sobre esse conflitode classes, as dispari<strong>da</strong>des sociais existentes no país, assim como a indiferença <strong>da</strong>s mesmasem relação aos que se encontram abaixo deles, pois, observando a posição em que se encontrapersonagem secundário, com a cabeça apoia<strong>da</strong> na mão e olhando para o lado oposto ao deBob Cuspe, demonstra a total falta de preocupação do mesmo com o resultado <strong>da</strong> sua ação.Ousamos até mesmo avançar um pouco mais nas nossas proposições ao verificarmos que,possivelmente, a cuspara<strong>da</strong> que atingiu Bob Cuspe não foi intencional, como é o caso <strong>da</strong>ssuas, mas uma ação de indiferença em relação aos demais, como se estivesse tentandodemostrar que as classes mais privilegia<strong>da</strong>s agem de acordo com os próprios interesses, sem amínima preocupação com quem pode ser atingido.Mas não apenas Bob Cuspe possuía uma quanti<strong>da</strong>de considerável de fãs antes dosurgimento <strong>da</strong> Chiclete com Banana, Rê Bordosa também já fazia sucesso nas tirasdesenvolvi<strong>da</strong>s pelo autor na Folha de S Paulo, e também foi a personagem título do segundolivro lançado por Angeli pela série Traço e Riso. Na Chiclete com Banana, Rê Bordosaaparece já no primeiro número. Seu nome traduz sua vi<strong>da</strong>, pois através <strong>da</strong> leitura desta palavranos remetemos à ideia do dia seguinte, <strong>da</strong>s reincidências, ocorrências estas que, na grandemaioria <strong>da</strong>s vezes são esqueci<strong>da</strong>s por efeito <strong>da</strong> embriaguez consequente à vi<strong>da</strong> de farras ebebedeiras <strong>da</strong> personagem, esta chega mesmo ao ponto de esquecer o nome de seu parceirosexual <strong>da</strong> noite anterior. Suas histórias desenvolvem-se, na maioria <strong>da</strong>s vezes, em doisambiente: ou ela está no bar ou está na sua banheira. Aparecerem histórias <strong>da</strong> personagem emoutros lugares, como a cama, por exemplo, ambiente no qual ela aparece sempreacompanha<strong>da</strong>, embora em alguns caso não saiba exatamente com quem. É possível fazer aleitura de que todos os espaços por onde a personagem figura, nos apresentam traços do seucomportamento e, consequentemente, características de diálogo e reconhecimento com seupúblico leitor.


68FIG. 10. Fonte: Chiclete com Banana n. 9. Circo Editorial. Abril de 1987, p. 31.Assim como descrita na entrevista de Benevides Paixão 37 no primeiro número <strong>da</strong>revista, Rê Bordosa é a “pin-up dos anos 80” (Chiclete com Banana n. 1, 1985, p. 23), ela nãotem amarras com sua própria sexuali<strong>da</strong>de, e foge aos padrões <strong>da</strong> mulher, digamos,“convencional”, pois seu comportamento remete mais a atitudes associa<strong>da</strong>s tradicionalmenteao padrão masculino. O instinto maternal, por exemplo, passa longe de seus horizontes, comoé perceptível na tira aqui apresenta<strong>da</strong>. A sequência <strong>da</strong>s histórias presentes no número nove <strong>da</strong>revista põem a personagem em uma complica<strong>da</strong> situação para uma mulher com o estilo devi<strong>da</strong> como o dela: uma gravidez. Quando se dá conta do seu estado, Rê Bordosa começa a sequestionar nas tiras anteriores se deve ou não ter esse filho, porém, a ca<strong>da</strong> quadro conclusivopercebe-se que sua intenção é sempre de não tê-lo. Finalmente, decidi<strong>da</strong> pelo aborto,conforme vemos na última sequência, incia a busca por uma clínica de abortos, e encontrauma com o sugestivo nome VAPT-VUPT, ao ser questiona<strong>da</strong> pela atendente se é uma clientenova, ela se apresenta como a “sócia fun<strong>da</strong>dora”. Além do efeito cômico que pretende <strong>da</strong>r àtira com tal desfecho, Angeli também evidencia o desapego <strong>da</strong> personagem aos padrõesmorais e religiosos, tocando em um tema que é polêmico até os dias de hoje. Porém, quando oautor busca explicar as origens de Rê Bordosa, percebe-se alguns traços de tradicionalismo nasua família, a sua mãe, por exemplo, é apresenta<strong>da</strong> como uma dona de casa que vive tentandocolocar a filha no “bom caminho”. Podemos verificar que, semelhante à maioria <strong>da</strong> juventudecontestadora, assim como nosso autor, ela veio de um lar cuja estrutura pode ser ti<strong>da</strong> como“normal” dentro dos padrões <strong>da</strong> época, mas passou a levar uma vi<strong>da</strong> despega<strong>da</strong> <strong>da</strong>s regras aoingressar na vi<strong>da</strong> noturna <strong>da</strong> juventude urbana contracultural paulistana. A única “máinfluência” para Rê Bordosa, tomando a liber<strong>da</strong>de de nos expressarmos, neste sentido, é seupai, que se envolve com outras mulheres e assim como a filha também bebe, porém, o próprio37 Benevides Paixão foi mais um dos personagens fictícios que figuravam nas páginas <strong>da</strong> Chiclete com Banana,entretanto não era desenhado nem aparecia em fotonovelas, tinha uma coluna onde realizava tanto entrevistascom os personagens <strong>da</strong> revista ou personali<strong>da</strong>des que de fato existiam assim como também tecia comentáriossobre a atuali<strong>da</strong>de, tudo, claro, regado de muito humor ácido e corrosivo.


69pai também não está satisfeito com o estilo de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> filha, pois, em uma determina<strong>da</strong> tira naqual Angeli explora esses laços familiares <strong>da</strong> personagem, o pai de Rê Bordosa diz admirarto<strong>da</strong>s as atitudes <strong>da</strong> filha, pois são exatamente tudo o que ele desejaria de um filho HOMEM.FIG. 11. Fonte: Chiclete com Banana n. 1. Circo Editorial. Outubro de 1985, p. 28.As atitudes dela não são comuns ao padrão patriarcal e <strong>da</strong>í provém em um primeiromomento sua posição crítica, to<strong>da</strong>via, o espaço <strong>da</strong> banheira o autor explora amplamente comomomento de reflexões <strong>da</strong> personagem. A banheira é seu espaço de reflexão existencial (ouseria lamentação?), “em sua eterna busca em conhecer-se a si mesma, questionando a todomomento a sua situação, vai-se tornando ca<strong>da</strong> vez mais incapaz de diferenciar-se <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>deque a cerca” (SILVA, 2002, p. 89). Ela dialoga com mulheres de classe-média, livres <strong>da</strong>samarras morais e convenções comportamentais. Rê Bordosa encarna e radicaliza acontestação e a busca do prazer na noite por meio <strong>da</strong> bebi<strong>da</strong> e de parceiros sexuais ocasionais,porém tal liber<strong>da</strong>de é posta em prova no dia seguinte, ao viver a ressaca na sua banheira,refletindo e lamentando a noite passa<strong>da</strong>, isto é, quando consegue lembrá-la.Outro personagem que habita as páginas <strong>da</strong> Chiclete com Banana, que também tem nobar um dos espaços de atuação é Meiaoito, entretanto, não pelos mesmos motivos <strong>da</strong> RêBordosa.Antigo guerrilheiro nos tempos <strong>da</strong> ditadura, Meiaoito representa os ideais <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong>,que já não encontram mais espaço nos tempos de redemocratização no Brasil. Junto com seucompanheiro Nanico, homossexual e apaixonado por ele, situação a qual Meioito buscaignorar, ele vive constantemente elaborando planos para o desenrolar de uma revolução <strong>da</strong>esquer<strong>da</strong>. Seu plano é a redemocratização, o que em uma leitura superficial já se percebetratar-se de uma ironia, como o próprio processo do retorno do governo às mãos dos civis,pois o mesmo não atendeu aos anseios de grande parte <strong>da</strong> população que esperava maisradicali<strong>da</strong>de, e muito menos dos militantes <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong>. Silva (2002, p. 94) oferece tambémuma outra possibili<strong>da</strong>de de leitura para o personagem, afirmando que o mesmo pode ser vistocomo uma referência aos “revolucionários de mesa de bar”, que pensavam em fazer uma


70revolução, mas sua atuação limitava-se apenas às palavras, sem uma atuação de fato.FIG. 12. Fonte: Chiclete com Banana n. 2. Circo Editorial. Dezembro de 1985, p. 7.A história acima foi publica<strong>da</strong> na revista Chiclete com Banana número dois, ondeocorre a primeira aparição do personagem na série. Nela podemos observar a presença dosdois personagens, embora existam histórias em que Meiaoito aparece sem Nanico e viceversa.Logo no primeiro quadro <strong>da</strong> sequência cômica, o autor nos informa sobre a relação“duvidosa” entre os dois, tanto pelo título <strong>da</strong> história, Aí tem coisa!, que em tom decomentário maldoso busca suscitar no leitor a atenção para algo a mais entre os guerrilheiros,quanto pelo comentário do Nanico, “Tenho culpa se acho ele um tesão”, que direciona o efeitocômico e corrobora a ideia proposta pelo autor por meio do título. Percebemos, na cena, osdois personagens sentados no sofá diante do televisor, Nanico, inferior a Meiaoito não apenasna estatura mas também em relação à posição hierárquica no partido, assim como também ade sujeito passional dessa relação platônica; demonstrando sua inferiori<strong>da</strong>de, solicita o direitode fazer um comentário ao companheiro. Diante <strong>da</strong> resposta afirmativa ele comenta seudesejo de fazer algo diferente, como uma maneira de suscitar a curiosi<strong>da</strong>de do colega e leváloa in<strong>da</strong>gar sobre a sua insinuação, e lança a pergunta revelando sua ver<strong>da</strong>deira intenção,sugerindo ao amigo que fizessem, nas palavras dele, “fuk fuk na janela”. Tal proposta éveementemente repreendi<strong>da</strong> por Meiaoito, deixando Nanico decepcionado por passar maisuma noite tentando sintonizar a Rádio Havana, como o mesmo se queixa. Podemos identificarduas leituras sobre a relação destes personagens, e assim apresentá-los neste momento (tendoem vista que os mesmos têm mais destaque no capítulo seguinte). A primeira nos leva averificar que os sentimentos de Nanico em relação a Meiaoito, embora exista uma tensãosexual forte, são tão exagerados que beiram o devocional. Seu amigo é o “cabeça <strong>da</strong>revolução”, entretanto, no jogo de composição dos elementos cômicos, este movimento falidona época entra como o gatilho que vem suscitar o risível, e nos leva a perceber até onde vai a


71devoção de Nanico em relação ao seu amigo, pois mesmo percebendo a mu<strong>da</strong>nça no cenáriopolítico no qual o espaço para a luta arma<strong>da</strong> não é mais favorável, ele continua seguindoMeiaoito. A segun<strong>da</strong> leitura nos leva a identificar a total indiferença de Meiaoito com relaçãoaos seus companheiros, o personagem está tão focado nos seus ideais, imerso em suasangústias diante <strong>da</strong> vitória dos inimigos que só pensa em arquitetar a reorganização <strong>da</strong>esquer<strong>da</strong> para a toma<strong>da</strong> do poder. Porém, neste ponto nos surge a questão, é possível que eleesteja mesmo alheio aos sentimentos do seu companheiro de partido, ou será que ele ignorapropositalmente como uma forma de não tratar do assunto e assim não discutir sua própriasexuali<strong>da</strong>de?Na contramão desse humor melancólico presente tanto em Rê Bordosa quanto emMeiaoito, temos o humor descomprometido dos Skrotinhos. Estranhamente idênticos, porémsem qualquer parentesco que os ligue, estes personagens são iguais tanto na acidez doscomentários quanto na forma de vestir-se. Fazem chacota com quem aparecer no seu caminhopelo simples prazer <strong>da</strong> diversão às custas do depreciamento de outrem. “Essas personagenscorporificam o espírito moleque ao qual o autor se refere em sua entrevista, e se comportamcomo crianças irresponsáveis diante do que poderão causar e incomo<strong>da</strong>ndo quem quer queapareça à sua frente” (SILVA, 2002, p. 129). Inspirados em Os Sobrinhos do Capitão, criaçãodo alemão Wilhem Bush, porém em uma versão mais agressiva, Os Skrotinhos representam,segundo Silva (2002, p. 129), uma vira<strong>da</strong> na abor<strong>da</strong>gem humorística do artista. O autorrecor<strong>da</strong> que o sucesso de personagens como Rê Bordosa, Bob Cuspe e Meiaoito, deu-se nosprimeiros anos <strong>da</strong> redemocratização, quando as feri<strong>da</strong>s ain<strong>da</strong> estavam abertas e o sentimentode inconformismo diante <strong>da</strong> situação que se configurou ain<strong>da</strong> pulsava forte na mente do autore dos grupos ansiosos pelas grandes mu<strong>da</strong>nças frustra<strong>da</strong>s por uma transição lenta, gradual econtrola<strong>da</strong>. Já o sucesso dos Skrotinhos deu-se em fins <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980 e início de 1990,naquele momento as expectativas de grandes reviravoltas não mais poderiam servislumbra<strong>da</strong>s, levando, dessa maneira, a um posicionamento fincado na ideia de que se não hámais espaço para grande mu<strong>da</strong>nças e atitudes decisivas, logo o humor reflexivo e melancólicodos personagens já não teria mais tanto impacto quanto essa nova abor<strong>da</strong>gem proporciona<strong>da</strong>pelos Skrotinhos, cuja única preocupação era provocar pelo simples prazer de ridicularizar eirritar seus interlocutores, elementos estes que Silva (2002) atribui a importante função nastiras dos personagens, pois é a partir deles, do seu incômodo em relação às pia<strong>da</strong>s realiza<strong>da</strong>s,que o efeito cômico pode acontecer.


72FIG. 13. Fonte: Chiclete com Banana n. 14. Circo Editorial. Junho de 1988, p. 21.O efeito cômico nas histórias dos Skrotinhos consiste na condição de “esca<strong>da</strong>” em quese encontram seus interlocutores. Como alvos <strong>da</strong> pia<strong>da</strong>, eles são os objetos nos quais se buscao ridículo. Seu desconforto é o risível neste caso. Tal observação pode ser confirma<strong>da</strong> pela tiracômica acima, nela verificamos os dois abor<strong>da</strong>ndo sua “vítima” <strong>da</strong> vez, um senador,conversando com o que poderia ser um outro político. Logo no primeiro quadro eles oabor<strong>da</strong>m questionando se o mesmo se recor<strong>da</strong> deles; a informação que levaria o interlocutor arecor<strong>da</strong>r-se é forneci<strong>da</strong> no segundo quadro, quando o local onde ocorreu o encontro, obanheiro do senado, é mencionado. Cumprindo as regras não-explícitas, porém existentes, decomportamento dos políticos, o senador ao lembrar-se, estende a mão em sinal decumprimento e, em sua fala, tenta reafirmar o discurso <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de com seus eleitores,porém, tal ação é interrompi<strong>da</strong> no terceiro quadro e <strong>da</strong>í decorre o efeito cômico <strong>da</strong> história,pois os Skrotinhos se negam a apertar sua mão por terem visto que ele não a lavara após o usodo banheiro. Ao levarem esse fato ao conhecimento <strong>da</strong>queles que não compartilharam de talcena, põem o senador em uma situação desconfortável, e do seu incômodo provêm o risível.A imagem cômica apresenta<strong>da</strong>, além de possibilitar um melhor conhecimento dospersonagens, assim como <strong>da</strong> estrutura de suas histórias, nos permite também tecer umcomentário em torno <strong>da</strong> crítica aos políticos por parte de Angeli, tendo em vista o recortetemático proposto. Ao colocar na cena um político, porém sem citar diretamente nomes,temos um claro exemplo <strong>da</strong>quilo que Angeli já havia mencionado anteriormente ementrevistas ou em algumas respostas às cartas dos leitores <strong>da</strong> Chiclete com Banana: ele nãofaz distinção entre os políticos; para o autor, tanto faz o partido ou proposta de trabalho, elessão alvo de crítica enquanto categoria, e não como uma sigla ou um movimento. Além destacaracterística <strong>da</strong> vertente cômica de Angeli, percebemos também seu direcionamento para acrítica ao comportamento político, nos levando a perceber que ele estava se atendo mais àsações do que às figuras em si. Na referi<strong>da</strong> tira, o ridículo se encontra na tentativa do senador


73em se igualar ao “povo”, reforçando a ideia de que vai ao banheiro assim como qualquerpessoa, sendo frustra<strong>da</strong> pelos personagens quando os mesmos evidenciam sua falta de higieneem não lavar às mãos, e essa mesma ênfase, na dita ação, nos remete à proposta de que asujeira nas suas mãos não seria apenas por não as ter lavado, mas também como uma mençãoàs atitudes ilícitas realiza<strong>da</strong>s por alguns membros <strong>da</strong> categoria ridiculariza<strong>da</strong> pelo cartunista.Ao mesmo tempo, no momento <strong>da</strong> afirmação de que os políticos têm mãos sujas, concluem:“como todo mundo”. Nesse sentido identificam povo e políticos. Angeli através dos seuspersonagens belisca “a bun<strong>da</strong>” dos brasileiros como sugere no editorial.Para além do editorial já analisado, <strong>da</strong> constante comunicação com o leitor feita porAngeli tanto por meio <strong>da</strong> seção de cartas quanto <strong>da</strong>s próprias histórias, visto que ele escreviade dentro de um grupo e para este mesmo grupo, o próprio nome <strong>da</strong> revista também jápropunha uma resistência cultural, como menciona<strong>da</strong> por Magalhães, e que Silva relaciona aomomento de emergência de uma cultura jovem urbanaNa Chiclete com Banana parece estabelecer-se uma discussão sobre esse novomomento <strong>da</strong> cultura urbana brasileira. O próprio nome <strong>da</strong> revista remete àquilo que émais industrializado, mais artificial, o chiclete, e o que é mais atrasado, mais natural,a banana, parecendo dizer que somos essa mistura indigesta que impunemente abrigaos maiores contrastes.(SILVA, 2002, p. 74)Essa ideia defendi<strong>da</strong> por Silva para o nome <strong>da</strong> revista é reforça<strong>da</strong> pela explicação dopróprio Angeli, numa entrevista à Guto Lacaz. Quando in<strong>da</strong>gado sobre a origem do nome,Angeli afirma:Foi uma homenagem ao Jackson do Pandeiro e àquela música maravilhosa Chicletecom Banana, que tem tudo a ver com o conceito <strong>da</strong> revista, a música fala de misturarbebop com samba, rock tocado com zabumba e tamborim... quer dizer, é uma culturarock, universal, sem deixar de ser uma coisa tipicamente brasileira. 38Na ver<strong>da</strong>de, a composição <strong>da</strong> música é de Gordurinha, e Jackson do Pandeiro é seuintérprete. De acordo com a afirmação de Angeli, percebemos que, na sua análise, a músicaremete à ideia desta mistura <strong>da</strong>s influências de fora, estas, no caso, não deveriam serrejeita<strong>da</strong>s, mas sim apropria<strong>da</strong>s e agrega<strong>da</strong>s às características internas do povo que as recebe,e, dessa forma transforma<strong>da</strong>s e a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>s ao gosto e aos ares tropicais. Porém, aoconfrontarmos as suas palavras com a letra <strong>da</strong> música, podemos supor que sua interpretaçãopeca um pouco no sentido dessa visão positiva <strong>da</strong> mistura de influências. Observemos a letrapara uma melhor compreensão:38 Entrevista disponível no endereço http://carosamigos.terra.com.br/<strong>da</strong> revista/edicoes/ed50/angeli.asp Acessoem 03/09/2006.


74Eu só ponho be-bop no meu sambaQuando o Tio Sam tocar um tamborimQuando ele pegar no pandeiro e no zabumbaQuando ele aprender que o samba não é rumbaAí eu vou misturar Miami com CopacabanaChiclete eu misturo com BananaE o meu samba vai ficar assimQuero ver a grande confusãoOlha aí o samba-rock meu irmãoÉ mas em compensaçãoEu quero ver o boogie-woogie de pandeiro e violãoQuero ver o Tio Sam de frigideiraNuma batuca<strong>da</strong> brasileira 39Ao interpretar a letra <strong>da</strong> música podemos verificar referências à mistura de influência,porém, há uma ressalva, apesar de reconhecer a forte presença dos elementos <strong>da</strong> cultura norteamericana,especialmente à respeito dos ritmos musicais, o autor impõe uma condição paraaceitá-los, no caso seria a aceitação, primeiro por parte dos norte-americanos, <strong>da</strong>sespecifici<strong>da</strong>des de nossas próprias produções culturais, assim como quando os mesmosaprenderem a distinguir entre as demais produções culturais latino-americanas, pois sabemosque os produtos culturais norte-americanos ingressam de forma massiva nos mercados doBrasil e de outros países <strong>da</strong> América Latina, mas o movimento contrário não ocorre. Namaioria <strong>da</strong>s vezes, a diversi<strong>da</strong>de cultural dos demais países <strong>da</strong> América é reduzi<strong>da</strong> a umamassa homogênea onde se evidenciam apenas algumas características pontuais, refletindo atotal falta de conhecimento por parte dos reprodutores de tal ideia, e ain<strong>da</strong> mais, revelam seucompleto desinteresse por conhecer estas outras culturas diferentes <strong>da</strong> sua. Portanto, a músicanão valoriza essa mistura, mas apresenta essa influência ocorrendo apenas por uma via,quando deveria ser mútua.No entanto, a visão lança<strong>da</strong> por Angeli sobre a música, embora um tanto quanto àparte <strong>da</strong>s intenções originais, contribuiu para o desenvolvimento dessa proposta <strong>da</strong> mistura nocenário udigrudi, pois, mesmo deixando muito clara sua admiração pelo trabalho de Crumb eafirmando por diversas vezes a influência do mesmo sobre suas produções, Angelidesenvolveu seu próprio traço, portanto, pode-se dizer que a partir <strong>da</strong>s influências recebi<strong>da</strong>sele criou algo novo a partir do que recebia “de fora”. Guar<strong>da</strong>ndo as devi<strong>da</strong>s proporções,podemos compará-lo aos defensores do movimento antropofágico, divulgadores <strong>da</strong> ação dereceber o que vinha de fora, digeri-lo e criar algo novo, com características nacionais.Cria<strong>da</strong> como espaço de inovação, a revista conseguiu conquistar um público39 Letra disponível em: http://www.vagalume.com.br/jackson-do-pandeiro/chiclete-com-banana.html . Acessoem 04 de maio de 2011.


75considerável. Os primeiros exemplares se esgotaram e reedições foram feitas e outras sériesforam cria<strong>da</strong>s a partir dos personagens surgidos na revista. Além <strong>da</strong>s vinte e quatro ediçõesbimestrais, foram publica<strong>da</strong>s dez edições especiais e dez títulos <strong>da</strong> série Tipinhos Inúteis.Foram, ao todo, mais de 3 milhões de exemplares vendidos (CHICLETE COM BANANA-ANTOLOGIA N. 01, 2007, p. 02). Porém, no auge do sucesso, exatamente na edição númerovinte quatro, a Chiclete com Banana encerra suas ativi<strong>da</strong>des. O que teria motivado umapublicação de sucesso a interromper sua trajetória? Esta pergunta tentaremos responder apartir de agora.3.3. Expediente: fatores que levaram ao fim <strong>da</strong> publicaçãoApesar de tamanho sucesso editorial a revista encontrou dificul<strong>da</strong>des para garantir suacontinui<strong>da</strong>de, o que levou ao seu cancelamento em 1990. Foram dificul<strong>da</strong>des decorrentes <strong>da</strong>conjuntura econômica nacional e os planos econômicos implementados durante o governo deSarney que deixaram a economia brasileira extremamente instável. A oscilação no preço dopapel e de outros materiais necessários à impressão refletiam no preço <strong>da</strong> revista,transformavam o processo de chega<strong>da</strong> de ca<strong>da</strong> número <strong>da</strong> revista nas bancas um ver<strong>da</strong>deirodesafio.Desde as primeiras edições a revista já encontrava dificul<strong>da</strong>des financeiras para suapublicação e Angeli as apresenta de forma clara na Chiclete com Banana número cinco,quando na seção de cartas um leitor reclama do preço <strong>da</strong> revista e <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de, que considerabaixa em relação ao custo. Eis a resposta <strong>da</strong><strong>da</strong> por Angeli:(…), se fôssemos uma publicação de uma dessas grandes editoras, com gráficaprópria, créditos bancários, anunciantes fortes... talvez tivéssemos condições decobrar preço de banana pelo Chiclete. Mas não somos, e se fôssemos, na certa nãofaríamos um gibi como este, que jorra puz, e sim uma revistequinha água comaçúcar qualquer. Sabe como é, o anunciante não gosta disso, o dono <strong>da</strong> editora nãogosta <strong>da</strong>quilo... e por aí vai.Chiclete com Banana custa caro porque o papel é caro, o fotolito uma fábula, aimpressão então... nem se fala; bimestral porque não somos pasta de dentes, que éfabrica<strong>da</strong> em série. Este gibi é um trabalho de autor. Suas páginas são lambi<strong>da</strong>s umaa uma... num processo quase artesanal por uma minúscula equipe cu-de-ferro. Aí éque está o tesão. Somos marginais mas fazemos um produto profissional.Nesse processo todo fica fora de propósito aumentarmos o número de páginas,diminuirmos o preço, ou passá-la a mensal. Seria o mesmo que, num momento deextrema alegria <strong>da</strong>rmos um tiro na cabeça.Por isso, deixe de ser chorão e continue desembolsando 14 cruzados a ca<strong>da</strong> doismeses para ler as bobagens <strong>da</strong> Chiclete com Banana. Ou você prefere o PatoDonald?(Chiclete com Banana n. 05. Circo Editorial. Junho de 1986, p. 37)O primeiro ponto alegado por Angeli para o alto preço <strong>da</strong> revista é a liber<strong>da</strong>de que a


76referi<strong>da</strong> publicação tinha, pois como o mesmo afirmou, publicações a preços mais acessíveistêm tal vantagem justamente por contar com a presença de anunciantes que garantemfinanciamento, mas, em contraparti<strong>da</strong>, limitam a liber<strong>da</strong>de criativa <strong>da</strong> produção, impedindo aabor<strong>da</strong>gem de certos temas e fazendo cortes no que diz respeito ao vocabulário empregado.Tal postura não condiz com a ideia mais forte dos quadrinhos underground: a total liber<strong>da</strong>dena escolha e abor<strong>da</strong>gem dos temas. Em segui<strong>da</strong>, o autor começa a tratar dos custosdecorrentes <strong>da</strong> produção <strong>da</strong> revista, pois, por tratar-se de um projeto independente, o próprioAngeli tinha total conhecimento dos custos porque estava envolvido em to<strong>da</strong>s as etapas dedesenvolvimento <strong>da</strong> publicação, desde as questões artísticas até as administrativas, o que,possivelmente, também pode ter influenciado no fracasso <strong>da</strong> inciativa enquanto negócio, poisum artista que em sua essência tem por princípio a criação livre de amarras, terminou por terque assumir a gerência financeira e organizacional do empreendimento. Essa ideia <strong>da</strong>liber<strong>da</strong>de criativa é reforça<strong>da</strong> quando o artista explica os motivos para a periodici<strong>da</strong>debimestral <strong>da</strong> revista, alegando que, ao contrário do que vinha sendo produzido comumente nomercado editorial, eles não produziam em série, o elemento motivador <strong>da</strong>quela publicaçãonão era em primeiro lugar o lucro mas, nas palavras do próprio autor, o tesão, o gosto porfazer, em participar de ca<strong>da</strong> etapa, de trabalhar com uma equipe que numericamente teriacapaci<strong>da</strong>de de realizar uma ativi<strong>da</strong>de artesanal, mas que, pelo interesse e engajamento naqueleprojeto, estavam colocando nas bancas um produto com quali<strong>da</strong>de profissional.No editorial <strong>da</strong> revista número 20 Angeli expõe novamente os problemas econômicospelos quais passava a revista <strong>da</strong> seguinte maneira:20. Numerinho um tanto insignificamente, que nas contas de qualquer autori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>área econômica, vai pro beleléu rapidinho, sumindo em 2 segundos. Mas vocês hãode concor<strong>da</strong>r que o fato de Chiclete com Banana ter chegado ao número 20, é umapusta proeza. Primeiro, porque também corremos o risco de virar poeira em continhade autori<strong>da</strong>des econômicas. Papel sobe 120%, fotolito 100%, impressão 200%,enquanto o mercado editorial cai 50%. Inflação, déficit, juros, percentual, taxasdisso, taxas <strong>da</strong>quilo... tudo isto está muito acima do ridículo e minúsculo número 20e, por estes e outros inumeráveis motivos, esta Chiclete 20 sobe para 3,50 cruzadosnovos. O que, para um país onde 80% de seus 150 milhões de habitantes recebem amerrequinha de 120,00 como salário mínimo, a coisa fica meio surreal.Nestes quase 4 anos, enfrentamos 4 ministros <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong>, 2 congelamentos, 3 crisesconjugais, nascimento de 5 filhos e uns 7 ou 8 pais de leitores, indignados babandoao telefone; isso sem contar com as mulheres que pintaram, mas aí são outros 500. Aúnica coisa certa, como 2 mais 2 são 5, é que chegamos ao número 20. Foram1.500.000 exemplares lidos, ou pelo menos folheados, e isso são favas conta<strong>da</strong>s.Imprimimos mais de 1300 páginas, desenhamos perto de 200 historietas,<strong>da</strong>tilografamos cerca de 900 lau<strong>da</strong>s de textos com 20 linhas de 70 toques ca<strong>da</strong> uma,clicamos mais de 1000 fotos e fomos 70 mil vezes ao banheiro <strong>da</strong>r uma mijadinha e,vejam bem, tudo isso para uma equipe de meia dúzia de pessoas, mas onde ca<strong>da</strong> umvale por 2 e, em certos casos, por 4. Talvez por isso chegamos ao número 20 e se aconta estiver certa e tudo correr às mil maravilhas, chegaremos ao 21. Como diz oGlauco: “O que é um dedinho pra quem já levou um palmo?”(Chiclete com Banana n.20. Circo Editorial. Sem <strong>da</strong>ta explicita<strong>da</strong>, p. 4)


77O autor reafirma a coragem em se fazer uma revista de tal quali<strong>da</strong>de como era aChiclete com Banana, em mercado editorial como o brasileiro. Ideia anteriormenteapresenta<strong>da</strong> no editorial do primeiro número <strong>da</strong> revista, assim como na seção de cartas doquinto número. Como primeiro grande obstáculo para que a revista alcançasse o número 20cita os problemas econômicos enfrentados, pois, à medi<strong>da</strong> que os custos envolvidos noprocesso produtivo <strong>da</strong> publicação subiam o mercado editorial entrava em crise, apresentandoum baixo nível de ven<strong>da</strong>s, chegando a cair em 50%. Todos o níveis indicando crescimento sãoaqueles que prejudicaram a empreita<strong>da</strong> do fazer quadrinhos alternativos no Brasil: os juros, ainflação, as taxas. Devido a todo este jogo numérico, levando-nos à perceber as condições sobas quais se encontravam os realizadores <strong>da</strong> revista, Angeli justifica o aumento do preço <strong>da</strong>mesma. Apesar de não esquecer-se que tal situação de crise não se limitava aos produtores <strong>da</strong>revista, mas atingia também a maioria <strong>da</strong> população brasileira, pois os baixos salários nãoabriam espaço para aquisição de bens voltados para o seu lazer, o autor não vê outra saí<strong>da</strong>para a continui<strong>da</strong>de do seu trabalho sem esse aumento no preço <strong>da</strong> publicação. Porém, essajustificativa, sempre recorrendo à exposição dos números, nos permite fazer a leitura de quenem mesmo os responsáveis pela publicação estavam satisfeitos com a mu<strong>da</strong>nça do preço,mas não havia outra alternativa senão aquela. O editorial ain<strong>da</strong> nos reforça a ideia <strong>da</strong> estreitarelação com seus leitores, cultiva<strong>da</strong> por Angeli ao longo <strong>da</strong> publicação, pois, ao apresentarsituações não apenas financeiras, mas também comuns ao cotidiano de uma equipe, comoquando cita os casamentos, os filhos ou mesmo a “mijadinha”, ele humaniza a produção eenfatiza que, apesar <strong>da</strong> meta ser colocar nas bancas uma publicação com nível profissional, aequipe atuante na empreita<strong>da</strong> era tão humana quanto seus leitores.Para além dos problemas financeiros, o autor aponta os problemas de conjunturapolítica e econômica nacionais, como a sucessão de ocupantes no cargo de ministro <strong>da</strong>fazen<strong>da</strong> e os congelamentos financeiros durante o governo de Sarney, assim como também fazreferência aos problemas próprios dos membros participantes <strong>da</strong> publicação, tendo em vistaque em sua condição de seres humanos são passíveis de serem afetados por seus problemaspessoais, como as crises conjugais cita<strong>da</strong>s, ou por acontecimentos que são de certa forma umaalegria, como o nascimento de filhos, mas também mais uma preocupação econômica <strong>da</strong>do operíodo de crise apresentado tanto em nível nacional quanto na estrutura interna <strong>da</strong>publicação.No último momento, Angeli passa a fazer uma quantificação pormenoriza<strong>da</strong> dotrabalho de confecção <strong>da</strong>s revistas, os números mais uma vez são utilizados para reforçar aideia do esforço empregado pelos envolvidos na revista para que a mesma bimestralmente


pudesse estar nas bancas, e que depois desta leitura compreendemos o porquê destaperiodici<strong>da</strong>de não ter sido menor, como desejavam os seus leitores. O texto nos dá uma ideia<strong>da</strong> consciência do editor diante <strong>da</strong> crise econômica e de como a mesma afetou a revista. Esseeditorial reforça a nossa percepção de que Angeli buscava manter uma relação muito estreitacom seu leitor, nesse momento explicava minuciosamente as razões do aumento do preço edemonstrava sua indignação, uma vez que o salário mínimo não aumentava na mesmaproporção que os custos de produção, repassados aos produtos.Angeli encerra o editorial deixando em dúvi<strong>da</strong>, devido ao crescente aumento doscustos <strong>da</strong> publicação, se o número 21 poderia vir a ser publicado, mas, apesar do suspense, aedição chegou às bancas, e melhor, em papel off-set (um papel de quali<strong>da</strong>de superior ao queera publicado antes).No número seguinte, novamente a quali<strong>da</strong>de do papel cai e a revista voltou a serpublica<strong>da</strong> em papel jornal; essa mu<strong>da</strong>nça também foi explica<strong>da</strong> por Angeli a seus leitoresatravés do editorial.Já sei. Não precisa nem gastar saliva. Você está se perguntando onde foi parar aquelepapel off-set 75 gramas, no qual foi impresso o número passado do Chiclete. Papelonde preto era preto, cor era cor e foto era foto. Um papel durinho, encorpado,<strong>da</strong>ndo um certo volume à revista. Um papel bem servido, muito mais que qualquerpapelote de cocaína mistura<strong>da</strong>. Pelo menos o barato durava mais que 15 minutos.Dava até pra ter uma certa ereção ao ver o nosso Chicletão impresso num papel<strong>da</strong>quele. Pois então, onde foi parar esse papel? - pergunta o insistente leitor. E eurespondo que, junto com o bimbão <strong>da</strong> Roberta Close, a rebeldia do rock and roll, ocombustível dos automóveis, a euforia capitalista dos yuppies, a prepotência <strong>da</strong>esquer<strong>da</strong>, o sexozinho promíscuo e gostoso, e mais: aquela saladinha com bifinho eum feijãozinho cheiroso sobre a mesa; aquela cadernetinha de poupança; aquela SãoPaulo, locomotiva do Brasil; a Rio de Janeiro, ci<strong>da</strong>de maravilhosa; aquela vidinhacalma e tranquila com um dinherinho no bolso, crianças felizes, passarinho cantandona varan<strong>da</strong> e um amor acenando na janela. Junto com tudo isso e mais uma porra<strong>da</strong>de coisas deste país, o nosso maravilhoso papelzinho off-set foi pra CUCUIA!(Chiclete com Banana n. 22. Sem <strong>da</strong>ta explicita<strong>da</strong>, p. 4)78A revolta do autor no editorial não se limitava à mu<strong>da</strong>nça no tipo de papel utilizado,mas em todo um conjunto de mu<strong>da</strong>nças desagradáveis aos seus olhos, sendo a que<strong>da</strong> dequali<strong>da</strong>de no papel <strong>da</strong> revista mais uma destas incômo<strong>da</strong>s situações por ele relaciona<strong>da</strong>s.Logo abaixo do editorial, ele acrescenta a seguinte nota: “A LEI DA COMPENSAÇÃO: Paracomemorar a falta de nosso rico papel off-set, ampliamos esta edição de 52 para 60 páginas;totalmente impressas em papel higiênico para seu maior conforto.” Neste caso, a relaçãomanti<strong>da</strong> com seu público o levava a adotar essa medi<strong>da</strong> de compensação, diante dodesconforto de apresentar uma que<strong>da</strong> na quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> publicação quando a mesma no númeroanterior havia apresentado uma quali<strong>da</strong>de satisfatória. Assim como faz um amigo próximo,Angeli expunha to<strong>da</strong> a situação para os seus leitores.A Chiclete com Banana já começava a <strong>da</strong>r sinais de que estava chegando ao fim. Nos


79seus últimos números, como nas próprias palavras do autor “deixou de ser uma revista dequadrinhos para se tornar uma revista de comportamento e ideias incômo<strong>da</strong>s” 40 , uma revistadivulgadora de influências para to<strong>da</strong> uma geração. Ao criar o que pode ser chamado de“escola experimental” para os quadrinhos nacionais, a Chiclete com Banana abriu o caminhopara as publicações direciona<strong>da</strong>s ao público adulto. Mas, infelizmente, a revista não resistiu àsoscilações provoca<strong>da</strong>s no mercado, pela crise econômica e fez sua última aparição nas bancasem 1990. Depois disso, seguiram-se reedições, edições especiais, mas na<strong>da</strong> de materialinédito 41 . O sabor do chiclete foi substituído pela insípi<strong>da</strong> borracha e <strong>da</strong> banana restou-nos suacasca ressequi<strong>da</strong>.Os números <strong>da</strong> revista encontram-se hoje esgotados e, dessa maneira, consideradosrari<strong>da</strong>des. Seus exemplares oferecem o olhar de um sujeito que pensou seu contexto históricopolítico,e que, vale a pena mencionar uma vez mais, pensou a partir do grupo do qual faziaparte, assim como também para este grupo. Produziu representações sobre cultura,comportamento, costumes e política no Brasil <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980. E é esta última, a política,sobre a qual nos debruçaremos a partir de agora, e buscaremos compreender que tipo de visãosobre a política foi veicula<strong>da</strong> pelo referido autor.40 Entrevista disponível no endereço http://carosamigos.terra.com.br/<strong>da</strong> revista/edicoes/ed50/angeli.asp Acessoem 03/09/2006.41 A publicação dessas reedições de material antigo nos permite acrescentar um outro fator, além do econômico,para o cancelamento <strong>da</strong> publicação, que seria o esgotamento criativo. O artista, possivelmente, não teria sea<strong>da</strong>ptado às exigências e prazos para um empreendimento editorial que pretende equilibrar quali<strong>da</strong>de eperiodici<strong>da</strong>de.


80Capítulo 4 – Quadros do período: as visões e opiniões de Angeli através do seu traçoNão entendo na<strong>da</strong> de política. Minhaposição é mais anárquica, vejo políticocomo algo viciado, que acaba comendoseu próprio rabo.(Angeli em entrevista à revista TRIP, n.191, 2010)Político é difícil você admirar. A políticaé a arte <strong>da</strong>s segun<strong>da</strong>s intenções, ou é opoder, ou é viabilizar algum projeto, ouideia política, sempre tem um discursinhoembutido em outro.(Angeli em entrevista à revista CarosAmigos, n. 50, 2006)O período sobre o qual se debruça o presente estudo, 1985 a 1990, embora curto, érico em historici<strong>da</strong>de. O país encontrava-se na transição democrática. Após vinte anos sob ocontrole dos militares, o retorno do poder político às mãos dos civis já se delineava nodesenho <strong>da</strong> história do Brasil. Entretanto, a transição do poder para a esfera civil não ocorreu<strong>da</strong> maneira como era espera<strong>da</strong> e o resultado foi a composição de um cenário que na suaessência, ain<strong>da</strong> carregava resquícios autoritários do período anterior. A tão aguar<strong>da</strong><strong>da</strong>transição democrática ocorreu sob a forma de eleição indireta de Tancredo Neves paraPresidente <strong>da</strong> República, e a inespera<strong>da</strong> morte do mesmo levou seu vice, José Sarney, quetinha uma forte ligação com o aparato autoritário, a assumir o cargo. Esta configuraçãoofereceu um amplo espaço a ser explorado pelos intelectuais do humor, que, mais uma vez,colocaram suas pranchetas a serviço <strong>da</strong> crítica, e entre eles, Angeli.Antes de partirmos para uma análise mais detalha<strong>da</strong> do trabalho de Angeli, com o focona cena política, acreditamos ser necessário chamarmos dois autores importantes para estemomento do trabalho: um semiólogo, Vladmír Propp, e uma historiadora, Angela de CastroGomes.De Angela de Castro Gomes tomaremos sua perspectiva de cultura política, aplica<strong>da</strong>ao Brasil republicano, como uma lente para observar o trabalho do cartunista e, através <strong>da</strong>srepresentações por ele produzi<strong>da</strong>s, para identificar sua compreensão do período delimitado,considerando essa compreensão também comum ao grupo reunido em torno <strong>da</strong> revistaChiclete com Banana.Tendo em vista nossa abor<strong>da</strong>gem do cômico, pois a produção de Angeli é marca<strong>da</strong>pelo humor, traremos para a discussão a abor<strong>da</strong>gem de Propp sobre o “riso de zombaria”,desenvolvi<strong>da</strong> em sua obra Comici<strong>da</strong>de e riso, assim como outras características do risível porele analisa<strong>da</strong>s e que podem ser aplica<strong>da</strong>s à análise do trabalho de Angeli.


81Levando em consideração o fato de o referido artista ter criado vários personagens, eos mesmos não se apresentarem na revista de forma ordena<strong>da</strong>, e ain<strong>da</strong>, além disso nem todostêm uma relação direta com a crítica à política, que optamos por realizar esta análiseverificando os temas mais recorrentes quanto a esse debate na publicação. Escolhemos ascharges e tiras que abor<strong>da</strong>m os aspectos do comportamento político (FLORES, 2002, p. 115),mais característicos do tipo de humor político exercido na déca<strong>da</strong> de 1980 pelo grupo ao qualAngeli pertencia.Como já foi mencionado, a publicação tem entre suas características fun<strong>da</strong>mentais adiversi<strong>da</strong>de, abrindo espaço para o trabalho com os mais variados eixos temáticos, como porexemplo: gênero, comportamento, relacionamento, entre outros. Porém, levando emconsideração que o foco do nosso estudo, a crítica à política através do humor característico<strong>da</strong> cena udigrudi, e expresso no traço e nos argumentos de Angeli, depois de uma análise detodos os vinte e quatro números <strong>da</strong> série sobre a qual se debruça a nossa pesquisa, elencamosquatro temas que, além de recorrentes, nos oferecem uma visão do autor acerca <strong>da</strong> conjunturapolítica do período abor<strong>da</strong>do. Dessa maneira, discutiremos as percepções de Angeli sobre apolítica e os políticos, o papel ocupado pela esquer<strong>da</strong> nesse novo cenário pós-ditadura militar,a Nova República, as expectativas que não se confirmaram e o seu olhar sobre o presidenteJosé Sarney, um dos alvos do cartunista.4.1. Algumas considerações sobre o processo de abertura democrática: a reorganizaçãopartidáriaAnalisando, de uma maneira geral, o contexto histórico no qual se insere a produçãoaqui analisa<strong>da</strong>, podemos observar que o recorte onde se localiza nosso sujeito no presenteestudo começou a ser esboçado já durante o regime militar, mais precisamente no período <strong>da</strong>chama<strong>da</strong> abertura política. Portanto, para um melhor conhecimento dos temas abor<strong>da</strong>dos porAngeli e escolhidos para a nossa dissertação, acreditamos ser necessário, em primeiro lugar,uma configuração geral do período no que se refere ao âmbito <strong>da</strong> política para demonstrarmosmelhor sob qual ângulo observamos as imagens seleciona<strong>da</strong>s para este tópico.Uma <strong>da</strong>s várias formas de controle político cria<strong>da</strong>s pelo regime militar foi obiparti<strong>da</strong>rismo. A partir de outubro de 1965, através do AI-2, foram extintos todos os partidospolíticos, e, em segui<strong>da</strong>, o Ato Complementar nº 4 estabeleceu o sistema bipartidário, “tendoinício uma clivagem que iria caracterizar a política brasileira durante uma geração:autoritários versus democratas” (MAINWARING, MENEGUELLO, POWER, 2000, p. 24).Esse novo modelo estabelecia a disputa política permiti<strong>da</strong> apenas a dois partidos: a Aliança


82Renovadora Nacional, ARENA, o partido do governo, e o Movimento DemocráticoBrasileiro, o MDB, nesse contexto a oposição consenti<strong>da</strong>. Dessa maneira, impedia-se oagrupamento em outros partidos o que forçou os participantes dos partidos extintos atravésdeste Ato, UDN (União Democrática Nacional), PSD (Partido Social Democrata), PTB(Partido Trabalhista Brasileiro) entre outros, a vincularem-se a um dos dois grupos. A maioriados políticos preferiu aderir à ARENA ao MDB. O partido do governo, construído sobre asbases dos antigos partidos conservadores, apresentou-se claramente como o “novo veículo doconservadorismo” (MAINWARING, MENEGUELLO, POWER, 2000, p. 24). Contudo, nolugar de vários partidos concorrentes, grupos conservadores organizavam-se em um únicogrupo, para que dessa maneira a sustentabili<strong>da</strong>de do governo dos militares fosse assegura<strong>da</strong>.De acordo com as proposições de Scott Mainwaring, Rachel Meneguello e TimotyPower, a ARENA deu continui<strong>da</strong>de ao trabalho desenvolvido anteriormente pelo PSD e pelaUDN, reforçando a construção de redes clientelísticas no interior do país, especialmente nasregiões menos desenvolvi<strong>da</strong>s. O reflexo dessas ações apareceram no resultado <strong>da</strong>s eleiçõeslegislativas, pois justamente nas regiões onde o desenvolvimento era mais insatisfatório, aARENA conseguia um número mais expressivo de votos. Ao passo que nas regiõesurbaniza<strong>da</strong>s e acentuado nível de desenvolvimento, um maior percentual de votos favoráveisera direcionado ao MDB (MAINWARING, MENEGUELLO, POWER, 2000, p. 24-25).A princípio, o sistema mostrou-se muito eficiente, tendo em vista as vitórias obti<strong>da</strong>spela ARENA nas eleições legislativas de 1966 e 1970. Entretanto, com o passar do tempo essecenário alterou-se, e teve início o crescimento do MDB, confirmado pelas eleições de 1974.Os políticos <strong>da</strong> ARENA estavam convictos de que teriam novamente sucesso nas eleiçõeslegislativas de 1974, devido ao alto índice de crescimento econômico e aos ecos, ain<strong>da</strong>ressoantes na socie<strong>da</strong>de, do “milagre econômico”. Porém, o MDB naquele momentoconseguiu amplo acesso tanto à TV quanto ao rádio, e, muito embora alguns membros dopartido não acreditassem na possibili<strong>da</strong>de de êxito, os demais se empenharam na promoção dedebates. Estas ações aqueceram o cenário político e a oposição que, valendo-se dos meios decomunicação, assumiu uma postura mais agressiva (ALVES, 1984, p. 187-188). O empenhodos políticos do MDB atingiu a população, criando um clima de mobilização como não se viadesde a instauração do AI-5. O resultado <strong>da</strong>s eleições demonstrou um crescimento do MDB eque<strong>da</strong> <strong>da</strong> ARENA.O MDB teve significativamente aumenta<strong>da</strong> sua representação no CongressoNacional. Em 1970, o partido obtivera 87 cadeiras na Câmara dos deputados, contra233 <strong>da</strong> ARENA. Em 1974, conquistou 161 cadeiras, e a maioria <strong>da</strong> ARENA desceupara 203 cadeiras. Nas assembléias estaduais, a oposição ganhou 45 <strong>da</strong>s 70 cadeirasno Estado de São Paulo, 65 <strong>da</strong>s 94 no Rio de Janeiro e completo controle <strong>da</strong>s


importantes assembléias do Paraná e do Rio Grande do Sul. Para muitosobservadores políticos, como para membros do próprio MDB, a vitória <strong>da</strong> oposiçãosurpreendia como uma inversão <strong>da</strong>s tendências eleitorais. As eleições foram emgeral considera<strong>da</strong>s equivalentes a um plebiscito em que os eleitores votaram antescontra o governo do que na oposição.(ALVES, 1984, p. 189)83Apesar <strong>da</strong>s ações do governo para tentar impedir o crescimento <strong>da</strong> oposição, osresultados apresentados nas eleições municipais de 1976 e nas eleições nacionais elegislativas de 1978 também foram positivos para a oposição. Embora a ARENA tivesseconseguido, nos respectivos pleitos, um resultado melhor em relação ao de 1974, estava ca<strong>da</strong>vez mais evidente o crescimento do MDB, combinado com a atuação de outros grupos <strong>da</strong>socie<strong>da</strong>de civil, como a Igreja Católica, a Ordem dos Advogados do Brasil e a AssociaçãoBrasileira de Imprensa, punha em risco o sistema de manutenção e controle do poderdesenvolvido pelos militares (MAINWARING, MENEGUELLO, POWER, 2000, p. 26-27).Percebendo o delineamento desta situação, e também observando a abertura políticacomo uma possibili<strong>da</strong>de concreta, portanto, urgia ao governo encontrar os meios necessáriospara que a mesma ocorresse <strong>da</strong> forma mais conveniente possível aos militares, o GeneralGolbery do Couto e Silva apresentou a necessi<strong>da</strong>de de “tentar dividir e fragmentar a oposiçãoe controlar mais cui<strong>da</strong>dosamente a organização dos partidos políticos” (ALVES, 1984, p.269). Segundo Skidmore “acima de tudo, o governo tinha que romper a uni<strong>da</strong>deoposicionista” (SKIDMORE, 1989, p. 427). Para tal, o governo lançou mão <strong>da</strong> manipulaçãodo sistema eleitoral como uma ação mais efetiva nesta empreita<strong>da</strong>. Dessa maneira, em 1979,impôs retorno do sistema multipartidário através <strong>da</strong> Nova Lei Orgânica dos Partidos.“Esperava-se com isso que a coalizão situacionista se mantivesse intacta, enquanto o MDB separtisse em várias facções” (MAINWARING, MENEGUELLO, POWER, 2000, p.27).Segundo Maria Helena Moreira Alves, a Nova Lei Orgânica dos Partidos, de 1979,pode ser vista como parte do “plano-mestre de Golbery” (1984, p. 270) nessa operação defragmentação do MDB e controle do processo dessa abertura anuncia<strong>da</strong>. As medi<strong>da</strong>s adota<strong>da</strong>spela nova lei redefiniam o cenário político e “deixavam bem claro o principal objetivo doEstado: garantir o controle governamental sobre a oposição sem sacrificar as vantagenslegitimadoras de 'eleições livres'” (ALVES, 1984, p. 269), mantendo sob a batuta dos militaresos ritmos <strong>da</strong> transição e garantindo sua segurança quanto aos rumos <strong>da</strong> passagem a umgoverno civil.Através <strong>da</strong> Lei Orgânica dos Partidos, foi extinto o biparti<strong>da</strong>rismo e, junto com ele, apolarização entre ARENA e MDB. A intenção era bem clara: fragmentar o MDB que jáapresentava sinais de fortalecimento entre a população demonstrado pelo crescimento de seu


84desempenho eleitoral. Dessa forma, a antiga ARENA deu origem ao Partido DemocráticoSocial (PDS) e o MDB acrescentou mais uma letra à nomenclatura antiga e tornou-se oPartido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). “Esta prestidigitação verbal atendeuao mesmo tempo às novas regras (proibindo o uso de legen<strong>da</strong>s anteriores) e irritou o governoporque a oposição preservara o reconhecimento do seu nome e o uso dos termos 'democrático'e 'brasileiro'” (SKIDMORE, 1989, p. 428).Além do fim do biparti<strong>da</strong>rismo, a Lei Orgânica dos Partidos também impôs outrosmecanismos de controle <strong>da</strong> situação política, tais como o reconhecimento legal dos partidos,que só seria obtido após as eleições marca<strong>da</strong>s para novembro de 1982, assim como aproibição de coalizão entre os partidos nas eleições para a Câmara dos Deputados, asassembleias estaduais e as câmaras municipais (ALVES, 1984, p. 271).De certa maneira, podemos perceber um certo êxito obtido no plano do GeneralGolbery quando observamos que:A iniciativa do Estado de dissolver o MDB e a ARENA e ao mesmo tempo anteporobstáculos ao processo de organização de novos partidos desarticulouconsideravelmente a oposição. Os anos seguintes à promulgação <strong>da</strong> Lei Orgânicados Partidos seriam marcados pela discussão e o debate internos quanto ao melhorcaminho a seguir. Importantes setores <strong>da</strong> oposição defendiam uma 'aliança <strong>da</strong> frentedemocrática', argumentando que a única alternativa consistia em manter a uni<strong>da</strong>dedo partido que renascera 'como Fênix' <strong>da</strong>s cinzas do extinto MDB. Setores maisconservadores, entretanto, viam com interesse a possibili<strong>da</strong>de de atuar como umacorrente de transição.(ALVES, 1984, p. 272)Portanto, a possibili<strong>da</strong>de de negociar uma transição com os militares, levou algunsmembros a se afastarem de grupos com tendências liberais e dos de esquer<strong>da</strong>, a fim dedesobstruir as vias de contato com os setores militares de linha dura (ALVES, 1984, p. 272), oque acabou por comprometer a uni<strong>da</strong>de do partido.Entretanto, se por um lado houve esse efeito, por outro a Lei Orgânica dos Partidosabriu espaço para a organização de grupos outrora impedidos de atuar. “A tentativa de evitar econtrolar a ativi<strong>da</strong>de política desencadeou novas energias oposicionistas, de um modo que oEstado não esperava nem pretendia” (ALVES, 1984, p. 272).Contudo, a mesma autora chama a atenção para o fato de que essa fragmentação,embora tendo provocado efeitos de certa forma inesperados, contribuiu para que divergênciasideológicas, anteriormente ignora<strong>da</strong>s a favor do combate ao estado de exceção, ressurgissem àluz dos novos acontecimentos, <strong>da</strong>ndo forças ao Estado de Segurança Nacional para manterain<strong>da</strong> mais sob seu controle os ritmos <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças na arena política. Nesse sentido “adesorganização <strong>da</strong> oposição após a dissolução dos partidos deu ao Estado tempo suficiente


85para elaborar políticas que lhe assegurariam o controle majoritário do Congresso e, emespecial, do colégio eleitoral que escolheria em 1984 o sucessor do Presidente Figueiredo”(ALVES, 1984, p. 273).Nascido diretamente do MDB, como já foi explicado, o PMDB, apesar <strong>da</strong>fragmentação, herdou a maioria dos membros do antigo grupo e apresentou-se como “omaior partido de oposição”. Sob sua sigla abrigou a ideia <strong>da</strong> luta pela democracia, chamandopara seu seio representantes dos mais diversos setores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, desde grandes capitalistasa camponeses e operários. Essa composição diversifica<strong>da</strong> refletiu-se também no que dizrespeito aos fun<strong>da</strong>mentos ideológicos, pois o partido abrangia(...) tanto ex-integrantes dos governos militares como antigos participantes <strong>da</strong> lutaarma<strong>da</strong>. Contava o partido com igual apoio de conservadores e de organizaçõesclandestinas de esquer<strong>da</strong> como o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8),o Partido Comunista do Brasil (PC do B) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB).(ALVES, 1984, p. 275)Um dos frutos <strong>da</strong> cisão do MDB foi o Partido Popular (PP), “um partido de centrodireitainicialmente considerado interlocutor do regime, e que se fundiu com o PMDB em1981”(MAINWARING, MENEGUELLO, POWER, 2000, p. 27). Composto pelos membrosconservadores do antigo MDB que acreditavam na sua própria força de atuação naviabilização de um governo de transição no ritmo ditado pela “política de liberalizaçãocontrola<strong>da</strong> <strong>da</strong> abertura” (ALVES, 1984, p. 275). Por representar justamente os capitalistasinteressados em participar do processo de “abertura”, o partido dispunha <strong>da</strong>s condiçõesnecessárias para se fazer ouvir nas negociações políticas.Além <strong>da</strong>s divisões ocorri<strong>da</strong>s no MDB, a Lei Orgânica dos Partidos possibilitou oretorno de partidos outrora suprimidos pelo AI-2, como foi o caso do PTB, que já dispunha deum certo histórico no cenário político brasileiro e congregava(...) três importantes correntes do poder político: o trabalhismo populista de GetúlioVargas, representado por sua presidente Ivete Vargas, sobrinha do ex-presidente; ojanismo, liderado em São Paulo pelo ex-presidente Jânio Quadros; e a herançaconservadora do ex-governador Carlos Lacer<strong>da</strong>, do Rio de Janeiro.(ALVES, 1984, p. 275)Esta convergência de grupos políticos tão expressivos significava uma união de forçana área política. Tendo conhecimento disso, o grupo mantinha um posicionamento dedisponibili<strong>da</strong>de à negociação, votando em certos momentos com o governo e em outros com aoposição. “Nessas condições, o partido assumiu um papel decisivo no equilíbrio <strong>da</strong>snegociações políticas entre o Estado e a oposição” (ALVES, 1984, p. 275-276).


86Contudo, essa herança trabalhista, que tanto enriquecia a legen<strong>da</strong> do PTB, não deixoude ser alvo de disputa, afinal, quem não iria gostar de ter sobre os ombros o legado varguista?Dessa maneira, recém-chegado do exílio, o ex-governador Leonel Brizola reivindicou para sio direito de usar a sigla e entrou em disputa com Ivete Vargas, sobrinha do ex-presidente.Entretanto o Tribunal Superior Eleitoral decidiu a favor <strong>da</strong> mesma. Skidmore teceu umaconsideração sobre a resolução deste impasse. Segundo o mesmo, apesar de não possuir umarelevância política equivalente à de Brizola, a vitória de Ivete Vargas teria sido viabiliza<strong>da</strong>provavelmente pelas boas relações que mantinha, com Golbery, tal situação, segundo o autor,teria influenciado na decisão a seu favor (SKIDMORE, 1989, p. 429). Tal decisão levouBrizola a fun<strong>da</strong>r o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Sob a nova sigla ele “tentoureviver a corrente de esquer<strong>da</strong> do trabalhismo político, reorganizando a herança do expresidenteJoão Goulart” (ALVES, 1984, p. 276), constituindo-se como um partido deorientação social-democrata naquele cenário, enquanto o PTB de Ivete Vargas “era uma cópiapáli<strong>da</strong> do seu antecessor de antes de 1964 e suas perspectivas não pareciam ser de longasobrevivência” (SKIDMORE, 1989, p. 429), mas ain<strong>da</strong> dispunha de certo apoio em diversospontos do país.Com muita dificul<strong>da</strong>de, devido à sua orientação claramente radical e à sua propostaexplicitamente socialista, o Partido dos Trabalhadores (PT) conseguiu ocupar também umespaço no novo tabuleiro político que se formava, e surgiu como o terceiro maior partido deoposição do período. De acordo com Skidmore, o PT “foi a primeira tentativa séria em 30anos de organizar um genuíno partido <strong>da</strong> classe operária” (SKIDMORE, 1989, p. 429).Segundo Paulo Giovani Antonino Nunes (2004), o PT nasceu <strong>da</strong> atuação de algumas forçassociais em ativi<strong>da</strong>de na déca<strong>da</strong> de 1970: “sindicalistas, organizações de base <strong>da</strong> IgrejaCatólica, organizações <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> clandestina, parlamentares ligados à esquer<strong>da</strong> do MDB, e,finalmente, por intelectuais de esquer<strong>da</strong>, ligados ou não às organizações clandestinas”(NUNES, 2004, p. 11). O partido seria o resultado <strong>da</strong> ação política destes grupos, atuandodesde o período <strong>da</strong> distensão lenta, gradual e segura proposta por Geisel, chegando ao pontoculminante na participação, e desempenho considerável, nas eleições de 1989, o primeirosufrágio direto para a presidência, após os anos de ditadura militar. Apesar <strong>da</strong> atuação dosgrupos citados ter sido inicia<strong>da</strong> antes, a primeira proposta concreta para criação do partidoocorreu na ocasião do Encontro dos Metalúrgicos de São Paulo, realizado na ci<strong>da</strong>de de Linsem janeiro de 1979 (NUNES, 2004, p. 22), sendo retoma<strong>da</strong> posteriormente no mês de junho,devido a realização de novo encontro <strong>da</strong> categoria, desta vez em Poços de Cal<strong>da</strong>s, em MinasGerais. Neste último encontro, o ritmo <strong>da</strong>s discussões em torno <strong>da</strong> proposta adquiriu um tommais acelerado, as discussões seguiram avançando e ain<strong>da</strong> no mesmo mês houve uma reunião


87em São Bernardo do Campo que contou com a presença de líderes sindicais, intelectuais epolíticos do MDB, a pauta era a fun<strong>da</strong>ção do Partido. No dia 26 do mesmo mês, Luladistribuiu em Belo Horizonte uma proposta preliminar de fun<strong>da</strong>ção do partido, tal documentodeveria ser contemplado e discutido pelos operários. Porém, neste primeiro momento deexposição pública <strong>da</strong>s intenções do futuro partido, o mesmo foi apresentado com umdiferencial em especial, pois Lula não se referiu apenas às bases sindicais como elementosconstitutivos do partido, mas também chamou para sua base as associações de bairro. Talatitude distanciava o PT <strong>da</strong> ideia de um partido exclusivamente sindical e estendia sua atuaçãopara os trabalhadores como um todo, visando assim ao fortalecimento e a uma maioraceitação do partido (NUNES, 2004, p. 23). A partir de outubro de 1979, em um encontro norestaurante São Ju<strong>da</strong>s Tadeu, teve início a organização do PT enquanto estrutura partidária; aatuação em torno <strong>da</strong> criação do partido seguiu em ritmo crescente até que:No dia 10 de fevereiro de 1980, foi formalmente fun<strong>da</strong>do o Partido dosTrabalhadores, no Encontro Nacional realizado no Colégio Sion em São Paulo, noqual estiveram presentes cerca de mil pessoas, representantes dos núcleos domovimento pró-PT de dezessete estados. Neste encontro, foi aprovado o Manifestodo Partido dos Trabalhadores, assina<strong>da</strong> a ata de fun<strong>da</strong>ção e eleita a ComissãoNacional Provisória. No dia 11 de fevereiro de 1982, foi concedido pelo TribunalSuperior Eleitoral (TSE) o registro do Partido dos Trabalhadores.(NUNES, 2004, p. 23-24)Para explicar os pontos que considera fun<strong>da</strong>mentais para a criação e desenvolvimentodo Partido, Nunes recorre à Keck (1991) e destaca duas características com principais: aprimeira seria o surgimento de lideranças trabalhistas sindicais, tendo como um dos núcleoscentrais a ci<strong>da</strong>de de São Paulo e, mais precisamente, a figura do líder sindicalista Luís Inácio<strong>da</strong> Silva; e a segun<strong>da</strong> seria uma base de massa que já vinha desde os anos setenta atuando deforma expressiva nas greves e manifestações promovi<strong>da</strong>s pelo movimento sindical.O crescimento do partido foi tão evidente que, segundo Nunes, o mesmo ganhou maisforça e espaço que o PCB, pois, ao se apresentar como uma voz dissonante em meio aos quese mostravam dispostos a negociar a abertura lenta e gradual, vistos como conciliadores, o PTassumiu a postura de oposição propriamente dita. Outro elemento que contribuiu para ofortalecimento do PT foi a adesão de um grupo de deputados de esquer<strong>da</strong> do PMDB que sesentiam marginalizados pelas lideranças do partido. Além <strong>da</strong>s forças sindicais e de outrascategorias como Igreja e demais organizações <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil, o PT pôde contar tambémcom um importante segmento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira: a alta intelectuali<strong>da</strong>de (NUNES, 2004,p. 26-27).Em linhas gerais esta foi a configuração partidária durante o processo de abertura


88política. A partir desse ponto, temos um desenho do cenário político e podemos ter umadimensão do espaço de observação do nosso artista e as bases para a realização <strong>da</strong>s análisesde sua produção.4.2. A política e os partidos políticos sob as lentes de AngeliTraçado este esboço do processo de abertura, podemos agora buscar perceber osreflexos <strong>da</strong>quele contexto na produção de Angeli. Em primeiro lugar, tentemos ter umacompreensão ampla de como Angeli percebe a política e os políticos de uma maneria geral.Relembrando uma <strong>da</strong>s principais características do grupo no qual Angeli se insere, osquadrinhos de contestação denominados udigrudi, numa referência ao underground norteamericano,não é muito difícil imaginar que o autor, para tecer suas críticas, buscasse ressaltaras características negativas para suscitar o riso no leitor e, dessa maneira, levá-lo à reflexãopor meio do diálogo com sua charge. Podemos perceber, então, que para uma boa leitura <strong>da</strong>simagens produzi<strong>da</strong>s por Angeli é necessário estar inteirado sobre o contexto <strong>da</strong> época, poischarges e tiras cômicas com conteúdos relacionados à política necessitam de umconhecimento prévio sobre o tema de que tratam. Não se tratava de um humordescomprometido, mas de uma prática ain<strong>da</strong> carrega<strong>da</strong> com alguns resquícios do engajamentocontra o regime militar, tão marcante nas produções <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> anterior, porém sem a outroratão utiliza<strong>da</strong> oposição entre dominadores e dominados, numa espécie de “maniqueísmohumorístico” (FLORES, 2002, p. 115), mas, agora, numa abor<strong>da</strong>gem buscando priorizar maisa análise do comportamento em lugar dos atos.Em nossa busca pela compreensão <strong>da</strong>s dimensões do cômico presentes nas charges ecartuns de Angeli na revista Chiclete com Banana, buscamos os referenciais de cômico erisível feito por Vladmír Propp, em especial na sua obra Comici<strong>da</strong>de e riso, principalmente noque se refere à ideia do “riso de zombaria”, que perpassa todo o texto e é apresenta<strong>da</strong> peloautor como a mais comum, pois, segundo Propp, o ser humano ri <strong>da</strong>quilo que lhe pareceridículo. Na revista, em várias passagens percebemos claramente isso, seja em relação àcomici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s características físicas ou <strong>da</strong>s ações. Tomemos, como exemplo, a seguinteimagem:


89FIG. 14. Chiclete com Banana n. 11. Circo Editorial. Setembro de 1987, p.5.Na charge apresenta<strong>da</strong> podemos observar um animal, no caso uma anta, caracterizadocom o figurino típico de um político, paletó e gravata, e logo acima, em destaque, a frase“Todo político brasileiro é uma ver<strong>da</strong>deira anta”. Usando um recurso que se assemelha a umdicionário ou mesmo uma enciclopédia, Angeli conceitua essa “espécie brasileira” e acaba pornos remeter à ideia do homem-animal, trabalha<strong>da</strong> por Propp. Segundo o autor, “para ascomparações humorísticas e satíricas são úteis apenas os animais que atribuem certasquali<strong>da</strong>des negativas que lembram quali<strong>da</strong>des análogas do ser humano”(PROPP, 1992, p. 66-67), uma vez que a referência a características positivas e nobres não provocam riso. Nestecaso, podemos observar a aplicação <strong>da</strong> afirmação de Propp. Temos, aqui, a comparação dohomem ao animal, uma anta, muitas vezes utiliza<strong>da</strong> para depreciar uma pessoa através dexingamentos, para ressaltar suas características negativas, na intenção de provocar o riso, maisprecisamente, o riso dirigido ironicamente aos políticos. Esse recurso é muito utilizado peloartista em outras charges e em tirinhas, ao longo <strong>da</strong> revista, reforçando seu caráter risível erevelando to<strong>da</strong> a crítica que carrega. Podemos perceber que a intenção não é provocar apenaso riso, mas fazer pensar através deste, pois, segundo Nair Gurgel:as charges, os cartuns e as tiras, além de provocarem o humor, em termos deconteúdo, podem ser tão ricas e densas quanto outros textos opinativos, crônicas eeditoriais, por exemplo. Além de atrair a atenção do leitor, o texto com imagenstransmite também um posicionamento crítico sobre personagens e fatos políticos.(GURGEL, 2003, p. 01)Na imagem escolhi<strong>da</strong>, além do recurso visual, o texto também aparece como suportepara mensagem, na intenção de estabelecer uma comunicação mais direta com seuinterlocutor. Para uma explicação mais detalha<strong>da</strong>, pensamos ser necessária a referência aos


90mesmos. Acima <strong>da</strong> imagem temos a seguinte chama<strong>da</strong>:Ci<strong>da</strong>dãos e ci<strong>da</strong>dãs: Nós, do CHICLETE COM BANANA, depois de assistirmos aolongo de vinte anos, a atuação dos políticos debaixo <strong>da</strong> mais ferrenha ditadura;depois de presenciarmos as mirabolantes mutações dos partidos políticos; depois deacompanharmos os discursos pelas Diretas, Já; depois de vermos Tancredo noColégio Eleitoral e José Sarney na presidência e depois de elegermos nossosrepresentantes para a Assembléia Nacional Constituinte, acreditando numa propostade transição, achamos que temos know-how suficiente para afirmar categoricamenteque... Todo político brasileiro é uma ver<strong>da</strong>deira anta!(Revista Chiclete com Banana n.11. Circo Editorial. Setembro de 1987)Há, nesta citação, várias referências ao cenário político <strong>da</strong> época: a menção aos anosde ditadura, to<strong>da</strong> a “<strong>da</strong>nça de cadeiras” realiza<strong>da</strong> durante o movimento pela redemocratização,o furor dos discursos <strong>da</strong> campanha <strong>da</strong>s Diretas, Já! que logo foi substituído pela sucessãolenta, suave e dita<strong>da</strong> pelo ritmo dos militares, assim como a insatisfação com o resultadodesse processo, terminando com a eleição de Tancredo e seu inesperado falecimento antes detomar posse, deixando a vaga livre para seu vice, José Sarney. E, ao mesmo tempo,acompanhamos as colocações destes momentos, escolhidos por Angeli, e podemos ler, emseus escritos e desenhos, a sua insatisfação com a política nacional, expressa por meio do seuhumor irônico. Além desta chama<strong>da</strong> acima <strong>da</strong> charge, há o seguinte texto abaixo:POLÍTICO ANTA. (Do gr. politikús, pelo lt. politicu – do ár. Larn ta – gir. pop. e adj.rad. bras. Anta. Mamífero <strong>da</strong> família dos carrapatos. Tem vários dedos, rabo preso ecor indefini<strong>da</strong> pois mu<strong>da</strong> conforme a situação. No entanto, à noite todos são pardos.Alimenta-se de folhas de pagamentos, propinas frescas, verbas desvia<strong>da</strong>s e sangue decontribuintes. Quando filhotes mamam no poder, depois, com o tempo, criam suaspróprias tetas. Vivem em bandos, conhecidos como partidos (apesar de seremextremamente individualistas). Habitam a América Latina, mas curiosamente fazemseus ninhos lá na Suíça. (Remix de “Dicionário do Aurélio”, “The Animals of SouthAmerica” e “A Fauna que Aflora”, de Angeli).Revista Chiclete com Banana n.11. Circo Editorial. Setembro de 1987Esta explicação, ao estilo de um dicionário, reforça a comici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> imagem edemonstra, novamente, a possibili<strong>da</strong>de de relacioná-la ao conceito do “homem-animal”trabalhado por Propp. Ao humanizar o animal, e, ao mesmo tempo, animalizar o homem,Angeli buscou ressaltar as características negativas que podem ligar ambos, e, dessa forma,suscitar o riso no seu interlocutor. Podemos, também, perceber no texto alguns elementos quenos permitem construir uma visão sobre a cultura política do período, como, por exemplo, aoposição como elemento desencadeador do riso no trecho “mamífero <strong>da</strong> família doscarrapatos”. Em termos científicos, os mamíferos são uma classe, a mammalia, e esta,logicamente, não engloba os carrapatos, pois estes pertencem à classe arachni<strong>da</strong>. No entanto,levando em consideração o ato de alimentar-se de ambos, os primeiros, nos meses inciais de


91vi<strong>da</strong>, mamam e, os segundos, ao longo de to<strong>da</strong> a sua existência sugam sangue dos animaisonde se “hospe<strong>da</strong>m”. Verificamos que o autor joga com a proximi<strong>da</strong>de de significados dessaspalavras, fazendo uma alusão ao comportamento de muitos políticos, pois uma vezcomo<strong>da</strong>mente assentados em seus cargos, põem-se a “sugar” ou “mamar” dos benefíciospropiciados pelo lugar ocupado por eles. Seguindo nossa análise, <strong>da</strong>mos destaque a uma outrapassagem do mesmo texto, onde se lê “têm vários dedos, rabo preso e cor indefini<strong>da</strong>, poismu<strong>da</strong> conforme a situação”, ou seja, na construção de uma análise <strong>da</strong> morfologia do “animal”em questão, Angeli usa expressões comuns ao vocabulário cotidiano <strong>da</strong>quela época e, atémesmo, <strong>da</strong> atual, que caracterizariam o comportamento <strong>da</strong> “espécie” por ele analisa<strong>da</strong>, pois“ter vários dedos” geralmente é utilizado como sinônimo para a ativi<strong>da</strong>de do ladrão, assimcomo a expressão “mãos rápi<strong>da</strong>s”; ou “rabo preso” faz referência ao jogo de corrupção quevincula os envolvidos, tornado-os reféns uns dos outros; ninguém acusa ninguém, pois todospodem cair em desgraça; e a “cor indefini<strong>da</strong>” pode ser associa<strong>da</strong> ao fisiologismo político, àocupação de qualquer legen<strong>da</strong>, a ausência de referenciais ideológicos claros, a políticaexerci<strong>da</strong> em torno de interesses privados, pessoais, em geral vinculados à manutenção deprivilégios.Seguindo ain<strong>da</strong> nesta abor<strong>da</strong>gem do “homem-animal” de Propp, encontramos outrosexemplos na série “A Fauna que Aflora”, um conjunto de nove charges que ocupam duaspáginas do primeiro número <strong>da</strong> revista, dentre elas, demos destaque a uma em especial pelauni<strong>da</strong>de entre texto e imagem proporcionando-nos a observação de uma ligação direta com aatitude dos políticos, tema deste tópico. A imagem, assim como a analisa<strong>da</strong> anteriormente,faz parte <strong>da</strong> composição de um tipo de enciclopédia sobre as “espécies exóticas do Brasil” eapresenta uma vaca. O risível <strong>da</strong> imagem não está no animal, mas nos pontos destacados porsetas indicando os carrapatos que aderem à sua pele. Novamente os carrapatos sãorelacionados aos políticos, e, dessa feita, nos permitem chamar para a discussão, novamente, acategoria risível do homem-animal. São três setas, e, em ca<strong>da</strong> uma, estão escritas as seguintesinformações: municipal, estadual e federal. Ou seja, uma referência às três esferas de poder.FIG. 15. Fonte: Chiclete com Banana n. 01. Circo Editorial. Outubro de 1985, p.38.


92Ao lado <strong>da</strong> imagem cômica o seguinte texto reforça seu caráter risível:CARRAPATOExistem os municipais, os estaduais e os federais. Todos <strong>da</strong> família dos sangue-sugas,primo-irmão dos vira-casacas. Reproduzem-se com extrema rapidez, parecemcoelhos, alimentam-se de verbas desvia<strong>da</strong>s, contas mal conta<strong>da</strong>s e apliques em geral.Vivem na América, mas costumam fazer seus ninhos na Suíça. Curioso não?Chiclete com Banana. n.01. Circo Editorial. Outubro de 1985. p.39Ao utilizar o carrapato Angeli evidencia uma característica que permeia a culturapolítica do período, a ideia do parasitismo dos políticos que se apossam dos cargos públicosapenas para benefício próprio quando deveriam trabalhar em busca de melhorias para asocie<strong>da</strong>de. O texto dá suporte à imagem, explicativo, como no exemplo anterior, afirmandoque a “espécie” em questão existe nas três esferas do poder, e no tocante à sua alimentação,usa expressões metafóricas para associar à ideia de escân<strong>da</strong>los financeiros envolvendopolíticos. Podemos observar que o local onde o parasita se instala, a pele <strong>da</strong> vaca, nos permiteestabelecer uma associação com certas referências cômicas que criticam a ação dos políticos,pois é muito comum lermos ou ouvirmos a expressão “mamar nas tetas do governo”, recursotambém explorado na imagem anterior, e em diversos textos humorísticos à parte <strong>da</strong> charge,ou mesmo em programas de televisão com conteúdo humorístico. A vaca também pode seruma referência ao povo brasileiro, em sua inércia e passivi<strong>da</strong>de, que continuam elegendo ospolíticos contribuindo assim para sua permanência nesse estado de “parasitismo social”.Além desse animal <strong>da</strong> “Fauna que Aflora”, Angeli apresenta outras “espécies” como o “Viracasaca”,o “Gavião do Planalto” e o Sagui-nacionalista”, todos reforçando as característicasnegativas do cenário político brasileiro, tanto pelo recurso às imagens como pelos textos queas acompanham. O autor recorre muito ao verbo “mamar”, como já foi explorado nas duasimagens anteriores, e também faz referência à constante mu<strong>da</strong>nça de partido e formação dealianças inespera<strong>da</strong>s, numa tentativa de caracterizar o jogo de interesses presente no cenáriopolítico nacional.O autor não se limita à crítica à política como um aparato administrativo, percebemosque em certos momento parte para o ataque direto aos partidos, sem a utilização de recursosgeneralizantes sua abor<strong>da</strong>gem. O leitor que as visualizou facilmente percebeu de que setratava. Tomemos como referência a contracapa do primeiro número <strong>da</strong> Chiclete com Banana,nela o autor nos apresenta sua visão sobre o contexto sócio político brasileiro. O mecanismopara acionar o efeito cômico escolhido pelo autor consiste em tratar alguns temas, comopartido de oposição, cheque sem fundo, escân<strong>da</strong>lo financeiro, casa de detenção, a lutacontinua, tropa de choque e cola de sapateiro, como se fossem hits do momento. Ao tecer seu


93comentário, como se fosse um crítico musical, o autor suscita o risível, usandoambiguamente, termos mais característicos <strong>da</strong> indústria fonográfica, servindo no caso à suaironia para abordá-los. Devido ao recorte temático proposto no presente estudo, selecionamosduas imagens para análise assim como seus respectivos textos explicativos.Na imagem intitula<strong>da</strong> “Partido de Oposição” podemos identificar a presença de quatropersonagens idênticos tanto nas características físicas quando nas suas vestimentas, elesaparecem fazendo a mesma pose, levando-nos imediatamente a refletir que compartilham umamesma visão. Abaixo <strong>da</strong> imagem, segue o texto:Grupo de peemedebistas. No início rasgavam violento punk-rock mas, com o passardo tempo e entra<strong>da</strong> de novos integrantes, foi se comercializando e, atualmente,fazem roquinho água com açúcar para as Fms.Chiclete com Banana n.1. p.2. Circo Editorial. Outubro de 1985.FIG. 16. Fonte: Chiclete com Banana n. 1. Circo Editorial. Outubro de 1985, p. 2.A ironia desta imagem reside na aparência dos personagens que compõem a cena,todos absolutamente iguais! Suas roupas, as características físicas e, até mesmo, a posição emque se encontram é a mesma. Tal disposição <strong>da</strong>s figuras nos remete, em um primeiromomento, à própria forma como Angeli enxerga a política e os políticos. Sempre ressaltandoseus aspectos mais negativos, tanto em entrevistas quanto em alguns editoriais, Angeli émuito enfático ao afirmar que não faz distinção entre políticos. Para o autor, seja de esquer<strong>da</strong>,de direita ou de centro, todos estão em um mesmo tabuleiro, e é às regras deste jogo e aomovimento de suas peças que o nosso autor está atento. A composição ain<strong>da</strong> nos permite umareferência à Bergson no que diz respeito à comici<strong>da</strong>de dos gestos e <strong>da</strong>s formas. O autortraduz esta ideia na seguinte sentença: “Atitudes, gestos e movimentos do corpo humano sãorisíveis na exata medi<strong>da</strong> em que esse corpo nos leva a pensar num simples mecanismo”


94(BERGSON, 1980, p. 23). Logo, ao assumir a mesma posição física e compactuar a mesmavisão os personagens presentes na composição não têm mais personali<strong>da</strong>de própria,assumindo o posto de apenas mais uma engrenagem na máquina partidária, e essa ausência dediferenças é, portanto, risível. Direcionando-nos para as questões intrínsecas ao conteúdo,verificamos, na abor<strong>da</strong>gem de Angeli sobre o PMDB elementos referentes à própria origemdo partido, acentuando seu aspecto cômico ao ressaltar a contradição entre o contexto do seudesenvolvimento e a situação do momento presente do seu observador. Conforme jáindicamos, o PMDB surgiu a partir do MDB, a oposição consenti<strong>da</strong> durante o regime militar;tal grupo adotou uma postura atuante no processo de redemocratização, como descrito naspalavras de Angeli “no início rasgavam violento punk-rock”, porém, ao longo mesmo e,especialmente, depois de sua efetivação passou por algumas cisões, os membros que nãoencontravam mais correspondência para seus ideais no referido partido migraram para atuarem outros espaços, e os que permaneceram adotaram a nova proposta do partido e passaram afazer “roquinho água com açúcar para as FMs”, ou seja, passaram a tomar atitudes maisbran<strong>da</strong>s de forma a manterem-se sempre em uma posição favorável no jogo político.A segun<strong>da</strong> imagem cômica, seguindo a mesma linha de apresentar os elementosescolhidos como grupos musicais, tem como título “A luta continua”. Assim como o PMDB, afigura apresenta quatro componentes exatamente iguais, tanto nos aspectos físicos quanto nasua indumentária, to<strong>da</strong>via, diferente <strong>da</strong> imagem analisa<strong>da</strong> anteriormente, nesta podemosidentificar tratar-se <strong>da</strong> caricatura de um personagem conhecido e extremamente atuante nocenário político do período: o líder sindicalista Luís Inácio <strong>da</strong> Silva, o Lula. Abaixo <strong>da</strong>imagem, o texto também explora essa repetição do mesmo personagem:Ban<strong>da</strong> forma<strong>da</strong> por Lula na guitarra, Lula no baixo, Lula na bateria e Lula nosteclados. No final dos anos 70, emplacaram com a música “Eu não sou cachorro,não”. Grande sucesso na região do ABC.Chiclete com Banana n.1. p.2. Circo Editorial. Outubro de 1985.


95FIG. 17. Fonte: Chiclete com Banana n. 1. Circo Editorial. Outubro de 1985, p. 2.O efeito cômico consiste na repetição do mesmo personagem na presente cena cômica,e nos permite realizar uma ligação com a própria organização do PT, que concentrou grandesesforços na sedimentação <strong>da</strong> figura de Lula como líder do partido, pois como grandeaglutinador de massas na época, o reforço <strong>da</strong> sua imagem também significava umfortalecimento do partido, entretanto, esta valorização <strong>da</strong> figura do sindicalista provocoualgumas cisões dentro do próprio PT, pois, segundo Skidmore “Alguns dos opositoressuspeitavam que a fama de Lula lhe tivesse subido à cabeça. Ele fascinava o público, ele quedesafiara a gigantesca indústria automobilística, os tradicionais exploradores <strong>da</strong> classeoperária, os comunistas, o governo” (SKIDMORE, 1989, p. 431). Tal informação é reforça<strong>da</strong>quando, no texto que acompanha a imagem, Angeli apresenta a ban<strong>da</strong> forma<strong>da</strong> por Lula naguitarra, Lula no baixo, Lula na bateria e Lula nos teclados, reforçando a atuação do partidode concentração de esforços na valorização <strong>da</strong> sua imagem. Além disto, o hit citado porAngeli, “Eu não sou cachorro, não”, música que obteve grande sucesso na voz de WaldickSoriano, pode ser compreendido como uma referência às reivindicações <strong>da</strong> categoria, hajavista que a grande luta dos mesmos era por melhores condições de trabalho e o fim <strong>da</strong>exploração dos trabalhadores por parte dos patrões.Ain<strong>da</strong> na Chiclete com Banana número 1, observamos o riso suscitado por Angeliatravés de outro mecanismo acionador do cômico: a inversão de slogans políticos do período,siglas de partidos e ditos populares. Seguindo ain<strong>da</strong> a perspectiva de Bergson: “Rimos já dodesvio que se nos apresenta como simples fato. Mais risível será o desvio que virmos surgir eaumentar diante de nós, cuja origem conhecermos e cuja história pudermos reconstituir”(BERGSON, 1980, p. 16). Na página de abertura <strong>da</strong> história “Bob Cuspe para prefeito”podemos observar o uso dos elementos risíveis citados.


96FIG. 18. Fonte: Chiclete com Banana n. 1. Circo Editorial. Outubro de 1985, p.5.A página apresenta o personagem Bob Cuspe usando seus trajes habituais do punkurbano, posando como se fosse para um cartaz de campanha eleitoral. No canto direitosuperior, identificamos a sigla PCB, que imediatamente nos remeteria ao significado correntePartido Comunista Brasileiro, se não fosse pela explicação, e também elemento suscitador docômico, presente logo abaixo <strong>da</strong> sigla, apresentando-a como Partido do Chiclete com Banana.Acima <strong>da</strong> imagem, podemos ler a frase “Cuspa no prato que comeu”, ao usar este ditadopopular Angeli nos permite pensá-lo sob a perspectiva do próprio Bob Cuspe, cuspir é a suaforma de reagir contra algo com o qual não concor<strong>da</strong>, desta maneira, votar no personagemseria cuspir/reagir contra a situação vigente. O convite a este ato de repúdio é reforçado peloslogan presente no canto esquerdo inferior <strong>da</strong> página, onde lemos “Escarra Brasil”. Nestecaso, Angeli faz um jogo com a expressão “Vota Brasil”, substituindo-o pela outra já cita<strong>da</strong>,como se por meio desta inversão estivesse convi<strong>da</strong>ndo seus leitores à reagir contra o cenáriopolítico <strong>da</strong>quele momento.Percebemos, assim, que a política e todo o aparato nela envolvido, os políticos, ospartidos, são percebidos por Angeli com um extremo pessimismo devido à acidez utiliza<strong>da</strong> emsuas abor<strong>da</strong>gens. Retomando o argumento <strong>da</strong> preferência em observar e representar ocomportamento político, verificamos uma recorrência maior <strong>da</strong>s atitudes impróprias dospersonagens desse cenário, em uma demonstração de inconformismo do autor diante doobservado e, ao mesmo tempo um diálogo com seu leitor para através do riso conduzi-lo àreflexão.4.3. A Nova República: o que deveria ser e não foi


97A historiografia brasileira costuma denominar o período posterior à ditadura militarcomo Nova República e junto a essa nomenclatura existiu todo um leque de expectativascarrega<strong>da</strong>s de esperança num profundo processo de transformação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira,desencadeado pela campanha por eleições diretas para presidente <strong>da</strong> República. Esse apelopartiu fun<strong>da</strong>mentalmente dos grupamentos políticos mais à esquer<strong>da</strong> articulados com asocie<strong>da</strong>de civil organiza<strong>da</strong> e desencadeou inúmeras manifestações de massas por todo o país.Artistas e intelectuais somaram-se ao ansioso clamor pela perspectiva de tempos detransformações sociais que se anunciavam. Porém, nem todos os esforços foram suficientespara vencer os interesses <strong>da</strong>queles que realmente ditavam as regras <strong>da</strong> transição, e a NovaRepública instalou-se com ares de velha, abortando o processo de sucessão direta, substituídopor eleições indiretas por decisão do Parlamento Brasileiro.Podemos compreender que to<strong>da</strong> esta expectativa está liga<strong>da</strong> diretamente à campanha<strong>da</strong>s Diretas, Já!, um movimento estreitamente vinculado à “crise do modelo dedesenvolvimento econômico e do Estado a ele associado e ao ressurgimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>decivil” (RODRIGUES, 2003, p. 12).De acordo com Alberto Tosi Rodrigues (2003, p. 13), no início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980 jáera possível observar, na socie<strong>da</strong>de brasileira, um novo padrão de organização, marcado poruma densi<strong>da</strong>de política e atuação militante diferente do observado no cenário antes e duranteo regime militar.(…) além desses dois fatores estruturais há um terceiro elemento, de ordem políticoinstitucional, que ajudou a compor o cenário em meio ao qual emergiu e desenrolousea campanha pelo restabelecimento de eleições diretas para presidente. Era aprópria estratégia desencadea<strong>da</strong> pelos articuladores políticos do regime para atransição, que visava mantê-la, tanto quanto possível, sob controle. Essa estratégiaconsubstanciava-se num jogo de concessões e de restrições alterna<strong>da</strong>s, que envolvianormatizações referentes aos partidos, aos processos eleitorais e, especificamente, àcomposição do Colégio Eleitoral que elegeria o presidente. Se as Diretas ganhassem.(RODRIGUES, 2003, p. 14)Embora a revista Chiclete com Banana tenha surgido apenas em outubro de 1985,podemos afirmar que o cenário de fundo para seu surgimento começou a ser elaborado nacampanha <strong>da</strong>s Diretas, Já!, processo desenvolvido de janeiro a abril de 1984. O mesmo, porsua vez, pode ser percebido como um resultado <strong>da</strong> política de distensão inicia<strong>da</strong> desde 1974,no governo de Ernesto Geisel. Portanto, acreditamos ser necessária uma breve caracterizaçãodeste movimento a fim de compreender as insatisfações com a Nova República expressas notraço de Angeli.Na grande maioria dos contextos em estágio de organização para processos demu<strong>da</strong>nças, sejam elas pequenas ou grandes, há um elemento chave, um fator desencadeador


98de uma série de acontecimentos que assumem proporções crescentes. Na paisagem por nósobserva<strong>da</strong>, esse elemento foi a emen<strong>da</strong> Dante de Oliveira. Tratava-se de um projeto deemen<strong>da</strong> constitucional protocolado em 1983 pelo deputado federal do estado do Mato Grosso,Dante de Oliveira, <strong>da</strong>í o nome pelo qual o projeto ficou conhecido, que propunha alteraçõessignificativas nas regras para as eleições para presidente <strong>da</strong> República. As mesmas deveriamrealizar-se no ano seguinte e de forma indireta, maneira como vinham sendo realiza<strong>da</strong>s aseleições desde o estabelecimento do regime militar. O projeto do deputado apresentava aproposta de que as eleições fossem realiza<strong>da</strong>s por sufrágio universal. Foi a “fagulha”necessária para que tivesse início a discussão em torno <strong>da</strong> retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong>s eleições diretas parapresidente <strong>da</strong> República. Protocola<strong>da</strong>, a emen<strong>da</strong> recebeu apoio de vários setores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>decivil.É importante destacarmos que o apoio <strong>da</strong>do por diversas enti<strong>da</strong>des <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civilà emen<strong>da</strong> Dante de Oliveira retirou do âmbito meramente legislativo o monopóliodessa discussão política, tornando a disputa pró ou contra eleições diretas paraPresidência <strong>da</strong> República um tema debatido pelos mais amplos setores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>debrasileira.(MENDONÇA, 2004, p. 15)Oficialmente, o movimento começou com o comício realizado em 12 de janeiro de1984, na ci<strong>da</strong>de de Curitiba, evento considerado a abertura <strong>da</strong> campanha. Mas, desde aprotocolação <strong>da</strong> emen<strong>da</strong> até o referido comício, todo um cenário foi armado e a opiniãopública mobiliza<strong>da</strong> em torno deste clamor que acabou por reunir várias vozes e pedidos sobum único grito de “eleições diretas”. A campanha serviu para congregar vários outros setoressociais organizados 42 , dispostos a outras reivindicações em torno de um projeto maior, avançarna luta por um governo de caráter social-popular no Brasil.Contando com o apoio destes diversos setores, e ca<strong>da</strong> vez mais abrigando sob suasombra novos adeptos, o movimento foi adquirindo proporções imensas, revelando o anseiopopular por mu<strong>da</strong>nças sociais e políticas mais profun<strong>da</strong>s. Comícios foram realizados emvárias ci<strong>da</strong>des do país, os grandes partidos de oposição ao regime militar, PMDB, PDT, PTB ePT, assumiram a liderança do movimento e, muito importante também, houve a adesão deintelectuais e artistas dos mais variados segmentos, emprestando sua imagem e sua voz àcampanha, entres eles estavam os atores Lúcio Mauro e Irene Ravache, e os cantores Chico42 Entre estes grupos podemos citar a Igreja Católica, por meio <strong>da</strong> ação <strong>da</strong>s Comuni<strong>da</strong>des Eclesiais de Base(CEBs), as organizações de bairro agrupa<strong>da</strong>s sob a sigla MAB (Movimento Amigos do Bairro), o NovoSindicalismo, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entre outros. In: ALVES, Maria Helena Moreira.Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Editora Vozes, Petrópolis, 1984. MENDONÇA. A condensaçãodo “imaginário popular oposicionista” num significante vazio: as “Diretas Já”. 2004. Disponível emhttp://lasa.internacional.pitt.edu/members/congress-papers/lasa2004/files/DeMendoncaDaniel xCD.pdfAcesso em: 06 de setembro de 2010.


99Buarque, Maria Bethânia e Simone (RODRIGUES, 2003, p. 46-56). Mas a artista que podeser considera<strong>da</strong> a própria personificação <strong>da</strong> campanha foi a Fafá de Belém, além dela, ElbaRamalho também pôs sua populari<strong>da</strong>de à favor <strong>da</strong> campanha, assim como o jogador <strong>da</strong>seleção brasileira de futebol Sócrates. O grande animador dos comícios era o locutorcomentaristaesportivo Osmar Santos. “Ao fim de ca<strong>da</strong> comício ele entoava o hino nacionalbrasileiro, que a multidão cantava vibrantemente, cumprindo assim o ritual com que aoposição demonstrava seu patriotismo” (SKIDMORE, 1989, p. 468).O ponto alto, momento de maior expectativa do processo, foi o dia 25 de abril de1984, <strong>da</strong>ta de votação <strong>da</strong> emen<strong>da</strong> Dante de Oliveira. Se aproximava o instante que iria exporfinalmente se os meses de intensa campanha realiza<strong>da</strong> anteriormente haviam criado ascondições para a obtenção dos resultados esperados. Porém, to<strong>da</strong> a expectativa foi frustra<strong>da</strong>pela rejeição <strong>da</strong> proposta por uma diferença de 22 votos apenas. Eram necessários 320 votosde um total de 479 congressistas, mas recebeu 298, sendo, dentre estes, 55 de deputadospertencentes ao PDS (SKIDMORE, 1989, p. 471). Essa frustração refletiu-se de imediato, viapronunciamento de jornalistas e outros grupos simpáticos ao movimento <strong>da</strong> Diretas nos meiosde comunicação, e, tomando de empréstimo a expressão de Alberti Tosi Rodrigues, podemosdizer que “começava aí a apagar-se o fogo do 'já'” (2003, p. 94).Na sequência <strong>da</strong> derrota <strong>da</strong> proposta, teve início o arrefecimento do movimento, pois,rejeita<strong>da</strong> a emen<strong>da</strong> perdeu-se o rumo propulsor <strong>da</strong> campanha, retirando <strong>da</strong> mesma, aospoucos, sua expressivi<strong>da</strong>de, levando-a à minguar até dividir-se entre aquele que ain<strong>da</strong>desejavam seguir com a reivindicação e os que optaram por negociar com o governo para,entre os espólios <strong>da</strong> guerra, reservar para si seu próprio quinhão. Entre estes do segundogrupo encontrava-se Tancredo Neves. Seu nome como candi<strong>da</strong>to para eleição, via ColégioEleitoral, foi de certa forma bem visto pelos militares, pois, entre as vozes atuantes naoposição ao regime a de Tancredo se apresentava como a mais amena, menos radical. Deacordo com Rachel Meneguello, o processo que levou à abertura e eleição de Tancredo Neves“deu-se sob as bases institucionais e políticas do regime autoritário” (1998, p. 80), ou seja, atransição não fugiu ao controle dos militares. A autora ain<strong>da</strong> afirma que a maioria dospartidos, com exceção do PT, apoiou a ideia de um projeto de redemocratização encabeçadopelo PMDB (MENEGUELLO, 1998, p. 81).De acordo com as proposições de Meneguello, podemos compreender que o elementounificador para o surgimento <strong>da</strong> Aliança Democrática, coligação entre PMDB e PFL (Partido<strong>da</strong> Frente Liberal), foi a cisão interna ocorri<strong>da</strong> no PDS. Essa divisão foi decorrente <strong>da</strong> escolhapara candi<strong>da</strong>to à presidente, devido a algumas discordâncias em torno <strong>da</strong> indicação de PauloMaluf, <strong>da</strong>ndo origem à Frente Liberal, “agrupamento político majoritariamente identificado


100com o regime anterior, mas de apoio à transição modera<strong>da</strong>” (MENEGUELLO, 1998, p.81). Areferi<strong>da</strong> coalizão lançou a chapa composta por Tancredo Neves (PMDB) para o cargo dePresidente <strong>da</strong> República e José Sarney (PFL) para o cargo de vice-presidente.Recebendo apoio do Colégio Eleitoral, que acreditava ser Tancredo Neves a melhoropção para uma transição modera<strong>da</strong>, o referido candi<strong>da</strong>to venceu o pleito contra Paulo Maluf,candi<strong>da</strong>to do governo, e estava forma<strong>da</strong> a base sobre a qual seria realiza<strong>da</strong> a transição para umgoverno civil. Entretanto, numa vira<strong>da</strong> do destino, a situação tomou contornos inesperados,pois, antes mesmo de tomar posse, Tancredo Neves foi internado de emergência emdecorrência de problemas de saúde e submetido a cirurgia digestiva. Após intenso tratamentofoi acometido por uma infecção generaliza<strong>da</strong> que o levou à morte. Em decorrência do fatoJosé Sarney, vice em sua chapa, assumiu o cargo de presidente <strong>da</strong> República. Tendo em vista aorigem política do referido candi<strong>da</strong>to, primeiro a UDN, depois a ARENA e, em segui<strong>da</strong>, oPDS (criado para abrigar os políticos <strong>da</strong> ex-ARENA), no momento <strong>da</strong> instituição <strong>da</strong> Nova LeiOrgânica dos Partidos, retirando-se dele em 1985 para criar o PFL, podemos compreenderque o poder político acabou por garantir a continui<strong>da</strong>de do esquema político que deusustentação ao regime militar, agora sob a batuta direta de seus aliados civis(MENEGUELLO, 1998, p. 81-88).Podemos perceber que to<strong>da</strong> a euforia, e a consequente frustração decorrente dos rumostomados pelos acontecimentos em questão, reflete-se em alguns momentos <strong>da</strong> produção deAngeli quando o mesmo se refere à Nova República.Compartilhamos com Flores (2002, p. 119) a ideia de que para os intelectuais dohumor os resquícios <strong>da</strong> ditadura não desapareceram porque, em sua concepção, a “NovaRepública” ain<strong>da</strong> não havia se efetivado. Portanto, a partir desta perspectiva e <strong>da</strong> análise detrechos <strong>da</strong> publicação veiculados à conjuntura brasileira dos anos 1980, podemos verificaressa constante referência ao “entulho autoritário” deixado pelo recém-acabado regime militar.Podemos identificar essa crítica aos vestígios do antigo regime, ain<strong>da</strong> presentes nonovo, em uma série de “previsões” feitas por Angeli na história desenvolvi<strong>da</strong> em página duplasob o título “Dez previsões para 86”. Entre os mais variados assuntos como música,comportamento, televisão, entre outros, nosso autor ironiza as situações por ele observa<strong>da</strong>s, eentre as dez demos destaque aqui a uma em especial:


101FIG. 19. Fonte: Chiclete com Banana n. 2. Circo Editorial. Dezembro de 1985, p. 27.A imagem, é justamente a última previsão, trata-se de uma narrativa visual em umquadro composto, pois o mesmo é dividido em dois, para expressar uma ideia de movimento<strong>da</strong> cena e assim tornar possível a transmissão <strong>da</strong> mensagem. Na primeira parte do quadropodemos observar um homem com vestimentas que normalmente nos recor<strong>da</strong> um político, acategoria a qual pertence é reforça<strong>da</strong> pelo seu discurso “Na frente sou liberal!”, e pela fraseexplicativa, a tal previsão, abaixo do desenho “Na política, sentiremos o sabor <strong>da</strong> mistura dealhos com bugalhos.” No segundo quadro observamos o mesmo homem, agora de costas, nobalão está escrito a continuação <strong>da</strong> sentença inicia<strong>da</strong> no quadro anterior “...já nas costas...”, enas mãos dele um cassetete, oculto aos que o observam pela frente. A ironia presente noquadro está justamente na oposição entre a palavra liberal, adquirindo no caso um duplosentido, tanto <strong>da</strong>quele que tem opiniões flexíveis como numa referência ao PFL, criado porSarney, e que entra em oposição ao quadro seguinte revelando os resquícios <strong>da</strong> origemautoritária deste agora auto anunciado liberal, representado por um dos símbolos <strong>da</strong> violênciado Regime Militar, o cassetete, usado tanto na repressão aos movimentos públicos contra aDitadura como nos espancamentos e em sessões de tortura sofri<strong>da</strong>s pelos opositores doregime, principalmente no período conhecido como “os anos de chumbo” (Governo Médici -1969/1974).A Frente Liberal aparece também no primeiro número <strong>da</strong> revista na série cômica deimagens intitula<strong>da</strong> “New Look”. Nela, Angeli apresenta vários exemplos de penteados: igreja,rock carioca, PDS, Nova República, dívi<strong>da</strong> externa, INAMPS, Frente Liberal, rock paulista,terror nuclear, dona Solange. Todos acompanhados de textos explicativos que auxiliam acomici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s imagens, pois o autor joga com jargões <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> para desenvolver suascríticas aos elementos escolhidos para a composição <strong>da</strong> série de imagens. Observemos omodelo Frente Liberal:


102FIG. 20. Fonte: Chiclete com Banana n. 1. Circo Editorial. Outubro de 1985, p.4.Observamos um personagem com um corte de cabelo que, observado pela frente,parece ter um aspecto moderno, vinculado a ideias liberais, próximo dos cortes de cabelo <strong>da</strong>juventude urbana <strong>da</strong> época, porém, visto por trás o corte não tem na<strong>da</strong> de inovador, ou mesmode liberal, pois se mostra bastante ligado à tradição, especialmente parecido com cortes decabelo típicos dos militares. Assim como a imagem explora<strong>da</strong> anteriormente, esta também fazreferência à aliança entre PMDB e PFL para conseguir eleger a dobradinha Tancredo/Sarney,pois o projeto de retorno do poder às mãos dos civis por via indireta foi produto <strong>da</strong>conciliação com os conservadores, uma transição pactua<strong>da</strong> que visava ain<strong>da</strong> manter os laçoscom a perspectiva militar de manutenção do controle social, haja vista que o próprio Sarneyera membro <strong>da</strong> antiga ARENA, continuou no mesmo partido quando este se transformou emPDS, afastando-se dele para fun<strong>da</strong>r o PFL devido a divergências dentro do PDS que levaram àindicação de Maluf como candi<strong>da</strong>to a Presidente <strong>da</strong> República, porém, mesmo em outropartido, Sarney carregou consigo o apoio que tinha junto aos militares, conseguindo êxitonesta investi<strong>da</strong> ao lado de Tancredo Neves.Percebemos nova referência a esse entulho autoritário, her<strong>da</strong>do do regime militar,numa sequência de charges distribuí<strong>da</strong>s em duas páginas <strong>da</strong> edição número 3 <strong>da</strong> publicação.As imagens são sugestões de fantasias para carnaval, cujo texto de abertura é o seguinte: “Seo leitor acha besteira falar em fantasia, agora que o carnaval já passou ou está marcando, meuchapa, pode cair na folia porque neste paiseco é carnaval o ano todo, haja saúde!”. Das onzeimagens escolhemos três que oferecem elementos para exemplificar nossa observação sobre aevidência dos resquícios do regime militar na Nova República, ressaltados pelo nosso artista.Observemos a primeira:


103FIG. 21. Fonte: Chiclete com Banana n. 3. Circo Editorial. Fevereiro de 1986, p. 12.Mais uma vez o alvo escolhido para ser representado é um político, curiosamente sema mão esquer<strong>da</strong>, e na direita, a única restante, segura to<strong>da</strong>s as pastas representando osministérios. A sentença abaixo <strong>da</strong> imagem explicita melhor a situação e dá suporte àcomici<strong>da</strong>de que ela tenciona suscitar, pois acima podemos ler a denominação NOVOMINISTÉRIO, e, logo abaixo dela, temos a seguinte descrição: “Fantasia simplérrima. Cortesua mão esquer<strong>da</strong> – não me pergunte como – e deixe to<strong>da</strong>s as pastas pra direita segurar.Sucesso garantido”. Assim como a Nova República, o Novo Ministério, dela decorrente,trouxe agregado a si valores her<strong>da</strong>dos do regime militar. Entre estes, a aversão à esquer<strong>da</strong> –niti<strong>da</strong>mente visível na mutilação do personagem - e o acúmulo <strong>da</strong>s pastas nas mãos, literal efigurativamente, <strong>da</strong> direita. Pois, como um acordo feito ain<strong>da</strong> no período de transição, adistribuição <strong>da</strong>s pastas após as eleições seguiu o quadro de articulações formado no momento<strong>da</strong> sucessão presidencial, dessa maneira, a maioria dos ministérios foi distribuí<strong>da</strong> entremembros do PMDB e PFL (MENEGUELLO, 1998, p.89-93) 43 .A segun<strong>da</strong> imagem cômica <strong>da</strong> sequência escolhi<strong>da</strong> apresenta uma representação <strong>da</strong>Aliança Democrática. Como já foi explicado anteriormente, trata-se <strong>da</strong> coligação políticaentre PMDB e PFL para disputar o cargo para presidente <strong>da</strong> República através <strong>da</strong> eleição viacolégio eleitoral, tendo como resultado a eleição de Tancredo e a posterior posse de Sarney. Aimagem apresenta dois homens unidos, como se fossem gêmeos siameses, idênticos nasfeições e nas vestes, divergem apenas na direção para onde apontam, pois ca<strong>da</strong> um aponta emoposição ao outro, situação reforça<strong>da</strong> pelo conteúdo dos balões de ca<strong>da</strong> um deles. Em umlemos “Vamos pra a esquer<strong>da</strong>!”, e no outro “Não! Vamos pra direita!”. Podemos entender esta43 Embora o Ministério no governo de Sarney tenha sido uma combinação entre líderes do PMDB e do PFL,<strong>da</strong>ndo uma continuação ao pacto partidário de transição estabelecido pela Aliança Democrática, o segundofoi contemplado apenas com quatro pastas, entre os ocupantes os mais conhecidos eram: Marco Maciel(Educação), Olavo Setúbal (Relações Exteriores) e Aureliano Chaves (Minas e Energia). Os membros doPMDB ocuparam as pastas restantes, entre os nomes mais importantes temos: Fernando Lira (Justiça), JoséAparecido (Cultura), Pedro Simon (Agricultura), Waldir Pires (Previdência Social) e Almir Pazzianotto(Traballho) (SKIDMORE, 1989. p. 497).


104imagem como uma crítica à composição um tanto quanto inusita<strong>da</strong> <strong>da</strong> Aliança Democrática,pois agregava um partido nascido como oposição, mas, nesse caso, um setor que já dialogavacom os detentores do poder para obter alguns benefícios durante a transição, e um partidorecém-criado com a pretensão de livrar-se <strong>da</strong> ligação explícita com o autoritarismo militar,que, entretanto, ain<strong>da</strong> carregava consigo os valores e perspectiva ideológica do mesmo.FIG. 22. Fonte: Chiclete com Banana n. 3. Circo Editorial. Fevereiro de 1986, p. 13.A última imagem cômica seleciona<strong>da</strong> para este tema também faz parte <strong>da</strong> série “Asfantasias para 86”. É a última sugestão de fantasia proposta pelo cartunista, e diz respeitoexatamente à própria Nova República. Ela é representa<strong>da</strong> por um homem com as vestimentascomumente usa<strong>da</strong>s pelos políticos (paletó, óculos, pastas sob braços), entre outras categorias.O texto explicativo abaixo <strong>da</strong> imagem já expressa muito bem sua mensagem: “Na<strong>da</strong> maismoderno que coisas antigas. Vasculhe uma loja de roupas usa<strong>da</strong>s, componha sua fantasia esaia <strong>da</strong>nçando logo que a orquestra atacar 'mu<strong>da</strong> Brasil'.”FIG. 23. Fonte: Chiclete com Banana n. 3. Circo Editorial. Fevereiro de 1986, p. 13.A comici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> imagem é reforça<strong>da</strong> pelo detalhamento dos itens, destacados por


105setas que explicam a composição do “visual”. Em sentido horário temos: 1) cabelos do tempo<strong>da</strong> brilhantina; 2) gravata dos anos Costa e Silva; 3) paletó do período Médici; 4) nomes nobolso do colete dos tempos de Geisel; 4) caneta dos anos Vargas; 5) abotoaduras dos anosCastelo; 6) pasta do tempo <strong>da</strong> onça; 7) ouvidos do tempo do bolerão. Como explicado pelotexto citado anteriormente, na<strong>da</strong> de novo, apenas peças antigas guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s no armário que bemarruma<strong>da</strong>s neste outro conjunto parecem novas e podem ser muito bem apresenta<strong>da</strong>s comouma proposta moderna e inovadora. Chamamos a atenção em especial para um item que nãodiz respeito ao período militar, mas a outro presidente que também estabeleceu uma ditadurano país: a caneta de Vargas. Provavelmente nesta passagem, Angeli fez uma referência aoepisódio envolvendo o cartunista Henfil, grande mente pensante do Pasquim e ferozcombatente <strong>da</strong> ditadura militar. Ao perceber os rumos tomados pelo arranjo eleitoral quelevou a articulação Tancredo/Sarney à vitória, indignado, escreveu uma crônica censura<strong>da</strong>pela Isto É, e posteriormente publica<strong>da</strong> em um livro seu, editado pela Record, na qualelaborava um comentário sobre a herança varguista sobre a qual foi assenta<strong>da</strong> a candi<strong>da</strong>turade Tancredo, e finaliza afirmando que o mesmo não deveria ter her<strong>da</strong>do a caneta de Vargas,mas o seu revólver (FLORES, 2002, p. 134-135).Podemos perceber, a partir <strong>da</strong> análise <strong>da</strong>s imagens cômicas seleciona<strong>da</strong>s, que aimagem construí<strong>da</strong> por Angeli sobre a Nova República está carrega<strong>da</strong> de pessimismo emrelação à política como um todo e também de um grande desencanto expresso pelaexpectativa gera<strong>da</strong> no processo de redemocratização, e que resultou em uma transição na qualas espera<strong>da</strong>s transformações que um processo de ruptura radical poderia engendrar, foramsubstituí<strong>da</strong>s pelo conservadorismo <strong>da</strong>s soluções pelo alto, dos acordos excluindo os “debaixo”, típicas <strong>da</strong>s transições políticas brasileiras.4.4. A esquer<strong>da</strong> na Nova República: um grupo sem lugarDéca<strong>da</strong> de 1980, o regime militar, que desde 1964 instaurara uma ditadura no país,estava <strong>da</strong>ndo seus últimos suspiros, e diante do “moribundo”, seus herdeiros se preocupavamcom o destino do seu mais protegido bem durante vinte anos, o comando do país. Nacontramão <strong>da</strong>s preocupações dos militares com a segurança e a ordem, um grande clima deeuforia disseminou-se em meio à população, afinal, a expectativa de grandes mu<strong>da</strong>nças nãoestava descarta<strong>da</strong>. A campanha pelas eleições diretas contribuiu para a divulgação dessasideias entre a maioria <strong>da</strong> população. Todo um cenário de ruptura e renovação estava seconfigurando mas... o que era para ser não foi, tivemos a transição para um governo civilorienta<strong>da</strong> pelo ritmo militar. A campanha <strong>da</strong>s Diretas, Já!, tão veemente, teve seu grito


106sufocado e a esquer<strong>da</strong> ficou, de certa forma, “perdi<strong>da</strong>”, nesse novo cenário. To<strong>da</strong> essa situaçãonão passou despercebi<strong>da</strong> aos olhos de Angeli, analista e ci<strong>da</strong>dão.Procuraremos trabalhar este recorte voltado para o olhar sobre a esquer<strong>da</strong> nesse novocenário, configurado a partir do fim do regime militar, por meio <strong>da</strong>s tiras do personagemMeiaoito, um ex-guerrilheiro atordoado em meio à confusão <strong>da</strong> Nova República. Devemosressaltar a recorrência desse tema, presente em outros espaços <strong>da</strong> publicação, mas acreditamosque o referido personagem oferece mais opções de comici<strong>da</strong>de a serem explora<strong>da</strong>s, assimcomo, também, uma recorrência maior em relação ao tema selecionado.Para analisar as tiras deste personagem, seguimos a ideia <strong>da</strong> comici<strong>da</strong>de presente nainversão dos papéis, discuti<strong>da</strong> por Propp (1992, p. 144-148), pois, após a redemocratização ea realização <strong>da</strong> transição de forma lenta e gradual, seguindo as expectativas dos militares, aesquer<strong>da</strong> em sua maioria, especialmente o PT, não apoiou esse modelo de transição(MENEGUELLO, 1998, p. 81). Segundo Francisco Carlos Teixeira <strong>da</strong> Silva, diferentementedo que se passou na Argentina e na Bolívia, onde ocorreu o que o referido autor chama detransição por colapso, no Brasil a transição foi realiza<strong>da</strong> de forma acor<strong>da</strong><strong>da</strong>, ou pactua<strong>da</strong>, apartir do momento em que se abandonou a proposta do retorno imediato <strong>da</strong>s eleições diretasem prol de uma candi<strong>da</strong>tura por via indireta de Tancredo Neves. Nesse acordo, que ditou osritmos <strong>da</strong> transição, partidos como o PT e outros partidos de orientação socialista ficaram defora do jogo político (SILVA, 2003, p. 273). Neste sentido, para não serem excluídos do novoespaço político, alguns dos que atuaram no processo de abertura a favor de uma rupturadefinitiva e imediata com o regime militar, adotaram uma postura mais modera<strong>da</strong> no cenáriopolítico pós ditadura. A própria indicação de Tancredo Neves para encabeçar a chapaoposicionista pode ser vista como um exemplo desta inversão de papéis durante a abertura,pois o mesmo atuou durante a campanha a favor <strong>da</strong>s eleições diretas para Presidente <strong>da</strong>República, mas, ao contrário de Ulysses Guimarães que sempre se mostrou como porta-vozdo movimento, aderiu em pouco tempo à abertura de negociações com os militares e setoresliberal-conservadores, o que contribuiu para sua indicação à sucessão presidencial (SILVA,2003, p. 274).Nesse arranjo, os que não alteraram sua postura terminaram sem espaço na novapaisagem política, na ver<strong>da</strong>de, o Partido dos Trabalhadores e algumas personali<strong>da</strong>des deesquer<strong>da</strong> de outros partidos. Angeli transfere o incômodo e perplexi<strong>da</strong>de dessa esquer<strong>da</strong>radical para o personagem Meiaoito.


107FIG. 24. Fonte: Chiclete com Banana n. 11. Circo Editorial. Setembro de 1987, p. 14.No primeiro quadro vemos o Meioito junto ao seu companheiro Nanico em uma mesade bar; o guerrilheiro começa a relembrar dos antigos colegas do período de luta contra oregime miltar, no segundo quadro o personagem se questiona sobre a própria situação, sobre oque fora outrora e como está agora; nos dois primeiros quadros, Nanico sempre responde comum evasivo “é”, mas a partir dele se obtém o efeito cômico <strong>da</strong> tira, pois no terceiro quadro eleassume a ativa <strong>da</strong> situação, ao responder à pergunta feita por Meiaoito no quadro anterior eproporcionar a inversão de falas quando o próprio Meiaoito passa a utilizar o “é” usado porNanico nos quadros anteriores, porém, mais no sentido de uma confirmação <strong>da</strong> fala de seucompanheiro. Podemos perceber que o personagem ao mesmo tempo em que reclama <strong>da</strong>mu<strong>da</strong>nça de posição dos seus antigos companheiros, reflete sobre a sua atual posição, ou faltadela. Verificamos nisso uma posição do cartunista frente ao cenário político <strong>da</strong> época, no quala inversão de papéis era risível e, portanto, seguindo a linha de pensamento de Propp,ridícula. Ain<strong>da</strong> no alto <strong>da</strong> página onde foi publica<strong>da</strong> a tira, podemos observar a seguinte frase:“Nova República: vinte anos de ditadura e quatro de mer<strong>da</strong> pura”. Na frase cita<strong>da</strong>,percebemos, para além <strong>da</strong> acidez humorística do cartunista, o seu refinamento intelectual,pois, para entender tanto a charge quanto a tira é necessário, como já mencionamos, umconhecimento prévio do contexto histórico e político, pois “a charge é uma forma decomunicação condensa<strong>da</strong> com muitas informações, cujo entendimento depende de umconjunto de <strong>da</strong>dos e fatos contemporâneos ao momento específico em que se estabelece arelação discursiva entre produtor e o receptor” (GURGEL, 2003, p. 3), e, portanto, não abreespaço para interpretações completamente fora dos seus propósitos. Trata-se de umalinguagem com intenção determina<strong>da</strong>. Desta maneira, levando em conta o conteúdo políticocontido na tira cômica analisa<strong>da</strong>, assim como na página onde está inseri<strong>da</strong>, compreendemosque Angeli, embora escrevesse para o público em geral, introduzia no seu trabalho elementosdo contexto social e político como se falasse por meio <strong>da</strong>s suas criações.Para o personagem, o tempo não passou; mesmo diante do cenário que observa, eleespera uma revolução, uma luta arma<strong>da</strong> para transformar todo aquele contexto, aos olhos dele,


108insatisfatório. Agindo dessa maneira, o personagem aparece ao leitor como um apaixonadoem demasia por sua causa num contexto que não mais o incorpora, portanto seudeslocamento, sua incapaci<strong>da</strong>de de mu<strong>da</strong>r o discurso, encontrar outro lugar o torna ridículo, eportanto suscita o riso.Na outra imagem, podemos observar o nosso guerrilheiro em uma triste cena; aocontemplar um copo vazio (subentendendo-se que ele está bêbado), o personagem devaneiasobre seu próprio momento histórico e o exprime através do seguinte lamento: “Este país estáum cocô. Não aguento mais! Se ao menos eu tivesse uma metralhadora!”.FIG. 25. Fonte: Chiclete com Banana n. 2. Circo Editorial. Dezembro de 1985, p. 5.Acima <strong>da</strong> imagem há a seguinte chama<strong>da</strong>:Camara<strong>da</strong>s! Nem tudo está perdido. Depois de vinte anos sufocados pela maisferrenha ditadura militar, nosso ideal continua sendo a revolução. O poder, quecresce sobre a pobreza e faz dos fracos riqueza, está prestes a ser deflagrado pelavitoriosa marcha do proletariado. O povo sairá às ruas carregando nos ombros omeu, o teu, o nosso grande líder: Meiaoito.Inserido em um pequeno quadro, logo acima de Meiaoito, está a clássica imagem deErnesto “Che” Guevara. No entanto, o trecho de uma famosa frase do referido guerrilheiro foialtera<strong>da</strong> para “Hay que endurecer o caraco!”, para reforçar o efeito cômico.A imagem e o texto estão em uma relação de complementari<strong>da</strong>de, e, mais uma vez,nos remete à ideia <strong>da</strong> comici<strong>da</strong>de de inversão proposta por Propp, pois o texto apresenta opersonagem como a solução para uma situação insatisfatória aos olhos do artista, quando oleitor sabe que o próprio personagem já não encontra mais espaço de atuação nesse novocenário. A mistura de lamentação e ilusão ao mesmo tempo revela o tragicômico <strong>da</strong>


109proposição, pois ter uma metralhadora não lhe restituiria lugar algum no contexto novo, masreafirma sua incapaci<strong>da</strong>de de adequação.Essa ideia do deslocamento do personagem em relação à atual socie<strong>da</strong>de é um recursomuito explorado por Angeli, retomamos a análise de Elio Chaves Flores sobre o fato de que apartir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1980 surgiu uma tendência entre chargistas e cartunistas de analisar ocomportamento e não mais os atos políticos, ou seja, de buscar revelar a cultura política.Verificamos que nosso artista, Angeli, ressalta essa sensação de não pertencimento <strong>da</strong>quelesque persistiram em assumir posturas vincula<strong>da</strong>s ao pensamento de uma esquer<strong>da</strong> radical nessaNova República, construí<strong>da</strong> sob orientação de um grupo totalmente contrário a ideias maisradicais, e ele brinca com essa situação em seu humor irônico, caracterizando Meiaoito comoo “último dos barbichinhas”, indica a stiuação de isolamento e impotência <strong>da</strong>queles que nãose adequaram aos “novos tempos”.FIG. 26. Fonte: Chiclete com Banana n. 2. Circo Editorial. Dezembro de 1985, p. 8.A história apresenta<strong>da</strong> ocupa to<strong>da</strong> uma página <strong>da</strong> revista e inicia com a seguintechama<strong>da</strong> antes do título: “Enquanto a direita dorme, nosso incansável militante e seu fielmilitantezinho procuram desespera<strong>da</strong>mente por uma maldita ficha telefônica e um orelhão...”.Verificamos essa sensação do deslocamento à qual temos nos referido desde o título <strong>da</strong>


110história, pois Angeli usa o artifício de mencionar o CVV 44 para lançar mão do recurso cômico<strong>da</strong> ação do Meiaoito, pois, perdido, a única saí<strong>da</strong> é recorrer aos velhos companheiros de lutautilizando um telefone público, desabafando suas preocupações e buscando desespera<strong>da</strong>menteauxílio para a resolução de uma situação para a qual o mesmo já tem conhecimento que nãohá alternativa. Através do diálogo de Meiaoito com seu interlocutor podemos perceber o vaziodeixado no personagem pela ausência de uma luta, de um ideal, de um lugar de pertencimentopolítico, a tal ponto que o faz perder a noção do absurdo contido em suas próprias ações, pois,de madruga<strong>da</strong>, ele telefona para o secretário do partido para discutir política, temaapresentado como razão motivadora <strong>da</strong> sua existência. Acaba por ser repreendido por essaatitude, que não encontra mais espaço nos tempos <strong>da</strong> Nova República, nem nas práticas <strong>da</strong>própria esquer<strong>da</strong>, adequa<strong>da</strong> à conjuntura de então.Outro tema para críticas que encontramos nas histórias de Meiaoito, foi a questão <strong>da</strong>anistia “ampla, geral e irrestrita”, que se caracterizou no governo do general João BaptistaFigueiredo, terminando por contemplar também os envolvidos nas torturas, desaparecimentose assassinatos durante o regime. Observemos a seguinte história:FIG. 27. Fonte: Chiclete com Banana n. 2. Circo Editorial. Dezembro de 1985, p. 9.44 O CVV (Centro <strong>da</strong> Valorização <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> ) é um <strong>da</strong>s organizações não-governamentais (ONG) mais antigas doBrasil. Fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em 1962 por um grupo de voluntários, foi reconheci<strong>da</strong> como enti<strong>da</strong>de de utili<strong>da</strong>de públicafederal pelo decreto lei n° 73.348 de 20 de dezembro de 1973. Sua atuação baseia-se essencialmente no trabalhovoluntário de milhares de pessoas distribuí<strong>da</strong>s por to<strong>da</strong>s as regiões do Brasil. Sua principal inciativa é oPrograma de Apoio Emocional realizado por telefone, chat, e-mail, VoIP, correspondência ou pessoalmente nospostos do CVV em todo o país. Trata-se de um serviço gratuito, oferecido por voluntários que se colocamdisponíveis à outra pessoa em uma conversa de aju<strong>da</strong> e preocupados com os sentimentos dessas pessoas.Disponível em http://www.cvv.org.br/site/conheca.html acessado em 30 de agosto de 2010.


111Assim como a primeira tira cômica analisa<strong>da</strong> neste tópico, o humor <strong>da</strong> história“Recor<strong>da</strong>r é viver” também reside na inversão de papéis. O cenário onde se desenvolve ahistória é um bar; no ambiente, desta vez sem a presença do seu companheiro Nanico,Meiaoito desenvolve uma conversa e demonstra muita empolgação ao falar do seu passado deativista político ao seu interlocutor, comenta os grupos de orientação socialista dos quaisparticipou, como se estivesse conversando com um profundo conhecedor <strong>da</strong> atuação deles, e éneste ponto que reside a comici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> situação, pois ao questionar seu companheiro de cenase ele já havia atuado na política e a qual grupo ele pertencia, o mesmo diz que era do DOPS(Departamento de Ordem Política e Social), um dos órgãos repressores durante o regimemilitar. Desta maneira, observamos a crítica a esta amplitude com que foi realiza<strong>da</strong> a anistia,pois ao se estender tanto aos envolvidos nos movimentos contra o regime quanto para os queatuavam a favor do mesmo, eximiu de julgamento pessoas envolvi<strong>da</strong>s em crimes contra osdireitos humanos, que após tal processo puderam seguir impunemente suas trajetórias comcarreiras militares e policiais intoca<strong>da</strong>s nos quadros <strong>da</strong> “Nova República”.Para encerrarmos nossa discussão sobre a visão de Angeli a propósito <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong> nonovo cenário político, utilizaremos mais uma passagem do personagem na revista,observemos:FIG. 28. Fonte: Chiclete com Banana n. 3. Circo Editorial. Fevereiro de 1986, p. 16.Na tira acima, Meiaoito encontra-se na banheira de Rê Bordosa, e, assumindo nãoapenas o posto <strong>da</strong> personagem, adota também sua postura e começa a lamentar-se sobre osrumos <strong>da</strong>dos pela ditadura tanto para os seus companheiros de partido quanto para ele. Dandoênfase às duas últimas sentenças expressas no segundo e terceiro quadro “Jogou meuscompanheiros ao mar... E eu nesta maldita banheira!!”, verificamos no desabafo do exguerrilheiro,que aos sobreviventes dos anos de ditadura restou apenas o consolo (ou a culpa)de recor<strong>da</strong>r os tempos de luta e agora apenas contemplar (?!) a configuração do novo cenárioonde não há mais lugar para boinas e metralhadoras.


1124.5. Ribamar, nosso presidente: o poder executivo através do traço de AngeliSe o resultado <strong>da</strong> redemocratização configurado no que se passou a chamar “NovaRepública” já aparecia como uma visão não muito agradável aos olhos do nosso cartunista,não seria surpresa alguma perceber que o poder executivo tampouco o agra<strong>da</strong>va. Dessamaneira, a figura do Presidente <strong>da</strong> República, José Sarney, foi um grande alvo para o humormor<strong>da</strong>z de Angeli.De acordo com Elio Chaves Flores, havia um certa tendência nos intelectuais dohumor, ao longo <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de oitenta, em ressaltar os traços do regime militar, presentesain<strong>da</strong> na Nova República, especialmente o autoritarismo. Portanto, “não seria de se estranharque a figura do presidente passasse a ser a representação preferi<strong>da</strong> em que cronistas ecaricaturistas explorariam o lado cômico do viés autoritário” (FLORES, 2002, p. 109).O político que durante o regime militar atuou na ARENA, saindo dela para formar aAliança Democrática com Tancredo Neves teve como nuance mais ressalta<strong>da</strong> na suacaricatura, elabora<strong>da</strong> pelos intelectuais do humor <strong>da</strong> época, o autoritarismo her<strong>da</strong>do <strong>da</strong>svinculações políticas anteriores. Angeli, não deixou de expressar no seu trabalho essa visãosobre o Presidente, e carregando na acidez do seu humor, teceu críticas fortes ao mesmo,como apresentaremos a partir de agora.Identificamos a primeira aparição de Sarney no editorial <strong>da</strong> edição número 13,publica<strong>da</strong> em abril de 1988. O editorial, todo feito em quadrinhos, tem como título o vocábulo<strong>da</strong> língua inglesa Down!, termo geralmente utilizado para referir-se a algo que não está bem,pois indica a direção para baixo. Composto por sete quadros, em ca<strong>da</strong> um deles observamosdiversos setores sociais reclamando de algo que lhes incomo<strong>da</strong>. O primeiro quadro mostra trêsgarotas vesti<strong>da</strong>s totalmente de preto, e como imagem de fundo um muro pichado, e, pelacontextualização <strong>da</strong> cena, subentende-se serem góticas. O desabafo desse grupo é expressopela fala de duas personagens, a primeira diz “As coisas estão muito cai<strong>da</strong>ças... chatas, semperspectivas..” e a segun<strong>da</strong> completa o lamento <strong>da</strong> seguinte maneira: “Não dá ânimo nem praser pessimista”, à terceira resta complementar o quadro com seu rosto coberto pelos cabelos eos braços cruzados, num gesto como se estivesse compartilhando do mesmo sentimento queas suas companheiras de cena.No segundo quadro vemos um personagem aparentando ser um empresário, pois suafala e a composição do cenário sugerem isso, afirmando o seguinte: “Não tá bom, não! Aliás,tá indo de mal a pior! Só este mês faturei apenas setecentos e oitenta e dois bilhões equinhentos milhões de dólares, porra! Assim não dá! Assim não dá!”. Nessa cena observamos


113uma situação onde o autor explora a ironia <strong>da</strong> mesmo, pois os empresários continuamganhando bem, em contraste com o resto <strong>da</strong> população, porém, sempre querem mais.O terceiro quadro reproduz encontro entre dois amigos no happy hour, mas através dodiálogo entre ambos percebemos que a situação não an<strong>da</strong> tão “happy” assim, pois, ao primeiroque pergunta: “A barra tá pesa<strong>da</strong>! Por acaso você tem usado camisinha?”, o segundoresponde: “Pra falar a ver<strong>da</strong>de não tenho usado nem o pau!”. Logo, a situação estava tãocrítica a ponto de afetar a própria vi<strong>da</strong> sexual do personagem.Em segui<strong>da</strong>, o desabafo de um dona de casa através <strong>da</strong>s seguintes palavras: “Ah, quersaber? Não lavarei mais louça, não recolherei mais o lixo, não lavarei mais o vaso dobanheiro, não limparei mais bun<strong>da</strong> de criança... que essa mer<strong>da</strong> explo<strong>da</strong>!”. Ou seja, a dona decasa, por não ser remunera<strong>da</strong> pelas ativi<strong>da</strong>des exerci<strong>da</strong>s, mesmo sendo as mesmas importantespara a manutenção de uma residência, encontra na ameaça de suspensão <strong>da</strong>s suas ativi<strong>da</strong>des aúnica alternativa para, enfim, expressar também sua indignação.Até mesmo o próprio Angeli é representado no quinto quadro, através do personagem“Angeli em crise”, seu alter ego; cabisbaixo, debruçado sobre sua prancheta ele lamenta “Nãotenho mais vontade de espiar mulher pela janela... Não tenho mais ânimo pra me masturbar...Sexo, então, coisa mais sem graça!”.Nem mesmo as crianças escapam à sua lente no editorial. A indiferença delas emrelação ao cenário e a vulgari<strong>da</strong>de nas expressões é ressalta<strong>da</strong> nas respostas <strong>da</strong><strong>da</strong>s a umahipotética pergunta, pois não aparece explícita, <strong>da</strong> seguinte maneira “Por mim... tô cagando!”e “Eu quero é que se fo<strong>da</strong>!”.Todos os personagens são apresentados de forma a se passar literalmente o significado<strong>da</strong> palavra down, verificamos em suas falas a insatisfação como algo constante e todos estãoem um clima de depressão. Para desencadear o cômico neste caso o autor apresenta o culpadode todos estes problemas; no último quadro, temos a caricatura do presidente Sarney, tambémexpressando sua insatisfação; contudo, diferente dos anteriores, na sua fala ele apresenta umculpado para to<strong>da</strong> a situação, usando todo o potencial oferecido pelo recurso <strong>da</strong> comici<strong>da</strong>de<strong>da</strong>s palavras, encontramos o efeito risível quando o presidente afirma que a culpa é to<strong>da</strong> dogoverno, ou seja, dele mesmo. Além disso, a frase onde o mesmo afirma não entender na<strong>da</strong>de política denota a incapaci<strong>da</strong>de e inadequação do mesmo para ocupar o cargo em queestava.


114FIG. 29. Fonte: Chiclete com Banana n. 13. Circo Editorial. Abril de 1988, p.4.A imagem apresenta<strong>da</strong> nos permite uma dupla interpretação. Em primeiro lugar,evidencia o despreparo de Sarney para o exercício <strong>da</strong> função, assumi<strong>da</strong> inespera<strong>da</strong>mente,pois, ao afirmar que a culpa é do governo o mesmo assume sua própria incapaci<strong>da</strong>de de geriro país, e é nessa confusão de palavras que acabam por comprometer o próprio emissor dodiscurso onde reside o caráter risível <strong>da</strong> situação. Em segundo, percebemos que o últimoquadro completa todos os demais apresentando o culpado, na visão do cartunista, por todos osproblemas econômicos e políticos existentes no país e que geram a situação de desânimo geralapresenta<strong>da</strong> nos quadros anteriores.Para observarmos nossa próxima representação cômica, a do presidente José Sarney,acreditamos ser necessário retornar a Propp, mais precisamente à categoria risível por eleidentifica<strong>da</strong> como “homem-coisa”, pela qual o autor afirma que a representação do serhumano através de uma coisa é cômica “somente quando a coisa é intrinsecamentecomparável à pessoa e expressa algum defeito seu” (PROPP, 1992, p. 75). As imagensescolhi<strong>da</strong>s fazem parte de uma série de dez charges, distribuí<strong>da</strong>s em quatro páginas <strong>da</strong> edição


115número 17 <strong>da</strong> revista, publica<strong>da</strong> em fevereiro de 1989. A série de charges tem como título“Ribamar. As mil e uma utili<strong>da</strong>des de um presidente”, e desde a sua chama<strong>da</strong> inicial, jácarrega fortes ironias tanto em relação ao representado como ao contexto político como umtodo:Puxa, gente, o Brasil tem solução! Ain<strong>da</strong> há chance de transformarmos esta terra tãoconfusa numa nação inteligente e bem planeja<strong>da</strong>. Mas, para isso, teremos querepensar o Brasil, remexer as estruturas. Nessa enorme máquina mal administra<strong>da</strong>,existe gente com grande potencial ocupando cargos inócuos, enquanto poderiamestar prestando relevantes serviços à socie<strong>da</strong>de e, aí sim, fazendo tudo pelo social. ORibamar, por exemplo, tão valoroso maranhense, poderia estar sendo melhorutilizado pela comuni<strong>da</strong>de. Como a “Chiclete com Banana” não é o tipo de revistaque critica e não propõe soluções, apontamos algumas <strong>da</strong>s mil e uma utili<strong>da</strong>des queo Sarney poderia ter se não estivesse apenas esquentando o troninho lá no Palácio <strong>da</strong>Alvora<strong>da</strong>.Chiclete com Banana n.17. Circo Editorial. Fevereiro de 1989. p.12.A partir <strong>da</strong> leitura do texto de abertura , verificamos a intenção cômica de Angeli aopropor outras utili<strong>da</strong>des para o alvo <strong>da</strong> caricatura, pois o presidente não tinha, segundo nossoautor, a competência necessária para exercer tal cargo. Eis algumas <strong>da</strong>s funções que Angelisugere para o “uso” do presidente:


116FIG. 30. Fonte: Chiclete com Banana n. 17. Circo Editorial. Fevereiro de 1989, p.12.A representação é acompanha<strong>da</strong> do seguinte texto:APOIO PARA LIVROSSe você já não aguenta mais aqueles dois elefantinhos ridículos e fora de mo<strong>da</strong>apoiando os livros na sua estante, não pense duas vezes, substitua-os por doismodernos Sarneyzinhos, <strong>da</strong>ndo um algo mais à sua decoração. O par poderá serformado por Sarney Filho, que se parece demais com o pai, não só fisicamente comotambém mentalmente.Na imagem seleciona<strong>da</strong>, observamos outro personagem em cena, ressaltado ain<strong>da</strong>mais no texto explicativo <strong>da</strong> imagem. Trata-se do pai do presidente, Sarney de Araújo Costa,de quem este adotou o nome, pois o mesmo foi registrado inicialmente como José RibamarFerreira de Araújo Costa. A partir de 1965, adotou legalmente o nome José Sarney de AraújoCosta 45 , tendo em vista a utilização <strong>da</strong>s ligações do seu pai para sua carreira política. Nossoautor propõe o uso combinado do Sarney pai com o filho, tanto para expor a continui<strong>da</strong>de nojogo político coronelístico e suas tintas familiares, evidencia<strong>da</strong>s até os dias de hoje, como paracitar as semelhanças entre ambos “não só fisicamente, como também mentalmente”; naspalavras do próprio autor.Angeli também faz referência a duas obras de Sarney, Marimbondos de Fogo, livroatravés do qual conquistou o assento de número 38 <strong>da</strong> Academia Brasileira de Letras em 1745 Informações disponíveis em http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=345 Acesso em30 de junho de 2011.


117de julho de 1980, sendo o sexto ocupante <strong>da</strong> referi<strong>da</strong> cadeira, cujo antecessor era o paraibanoJosé Américo de Almei<strong>da</strong>. O outro livro apresentado na imagem, o Brejal dos Guajas,também é de sua autoria. Porém, a vaga na Academia Brasileira de Letras não foi suficientepara livrar Sarney <strong>da</strong> dura crítica a que seus livros foram submetidos; críticos, como MillôrFernandes, não pouparam palavras na descrição <strong>da</strong> falta de quali<strong>da</strong>de dos escritos de Sarneyassim como a pobreza intelectual dos mesmos. Dessa maneira, podemos verificar que apresença de tais livros na composição cômica não foi um acaso, mas um arranjo muito bemelaborado por parte do cartunista.Além destes dois livros, percebemos também a presença de O Plano Cruzado, numareferência ao pacote econômico implementado durante o governo de Sarney, em 28 defevereiro de 1986, o plano tinha por meta a contenção <strong>da</strong> hiperinflação que assolou o primeiroano de governo. Com medi<strong>da</strong>s como congelamento de preços e a conversão <strong>da</strong> moe<strong>da</strong> deCruzeiro para o Cruzado, entre outras, o plano logrou um certo alívio nos primeiros meses desua implantação, mas posteriormente revelou-se ineficaz, pois a inflação continuou a atingirníveis ca<strong>da</strong> vez mais altos (MARQUES, 1988, p. 110-114).Verificamos também a presença de um livro com o nome do autor Jorge Amado, semespecificar de qual obra sua se trata. Este recurso deve ter sido empregado propositalmentepelo desenhista com referência à admiração e amizade existente entre o presidente e o escritor.Ao ressaltar o nome do autor em lugar <strong>da</strong> obra, Angeli nos permite a associação à ideia <strong>da</strong>grande admiração nutri<strong>da</strong> por Sarney em relação a Amado. Por fim, nos surge, curiosamente,a presença de um atlas entre os demais livros apresentados. Neste caso particular, tomamos aliber<strong>da</strong>de de interpretar sua presença na cena cômica como uma possível referência à totalfalta de orientação do presidente. Acreditamos que Angeli tentou desta forma ressaltar, assimcomo nas demais aparições do personagem na revista, a total falta de capaci<strong>da</strong>de do mesmopara a execução do cargo que ocupava.Além desta sugestão existem outras como: porta-lápis, salivador de selos, peso parapapel, marcador de página e pinguim de geladeira. Explicita-se a inutili<strong>da</strong>de e o caráter risível<strong>da</strong> figura mas, simultaneamente, Angeli traz para a sua peça de humor, uma clara consciência<strong>da</strong> cultura política do país e a persistência do caráter oligárquico <strong>da</strong> mesma.Além <strong>da</strong>s sugestões que remetem a coisas, temos mais uma vez a recorrência àcomici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ações, pois o cartunista utiliza expressões populares para atribuir funções,segundo ele, mais úteis para o presidente, entre elas a seguinte:


118FIG. 31. Fonte: Chiclete com Banana n. 17. Circo Editorial. Fevereiro de 1989, p. 15.Acima <strong>da</strong> imagem temos o seguinte texto:ENCHEDOR DE LINGUIÇANa ver<strong>da</strong>de, desde que o Sarney começou a galgar os primeiros degraus <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>pública, lá no distante Maranhão, ele não tem feito outra coisa senão encherlinguiça. Mas, neste caso, a proposta é que depois de cheias, as linguiças venhampara os nossos pratos.Na charge apresenta<strong>da</strong>, Angeli propõe para o presidente o cargo de “enchedor delinguiça”, e o representa com trajes de açougueiro enchendo uma enorme linguiça. Sabendoque na linguagem popular, a referi<strong>da</strong> expressão é atribuí<strong>da</strong> a pessoas que não fazem ou nãofalam na<strong>da</strong> de útil ou consistente, e nas palavras do autor “desde que o Sarney começou agalgar os degraus <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> pública lá no distante Maranhão, ele não tem feito outra coisa senãoencher linguiça”, podemos compreender que a imagem construí<strong>da</strong> do presidente carrega em sitodo o descrédito político atribuído por diversos setores sociais e explicitado por Angeli.Para além desta função, Angeli faz uso de outras expressões indicando possíveisocupações que ridicularizam o presidente, tais como: cabeleireiro de macaco, salivador deselos, lambedor de sabão e catador de piolho, enfatizando a função crítica dos intelectuais dohumor, nesse momento político, muito bem direciona<strong>da</strong> à figura do presidente Sarney comorepresentante de um golpe sobre as pretensões de democracia radical, que alimentaram setoresintelectuais de esquer<strong>da</strong>. O governo Sarney, por seu turno, vinculado a compromissos com ossetores conservadores e com pouca legitimi<strong>da</strong>de na socie<strong>da</strong>de civil organiza<strong>da</strong>, não conseguiuformular políticas consistentes que redirecionassem os rumos econômicos do Brasil em crise,potencializando a crítica política sobre seu governo e isso oferecia elementos de sobra paratorná-lo alvo dos intelectuais do traço do período, e entre eles Angeli.Uma abertura na<strong>da</strong> democrática, a configuração de um governo que deveria atenderaos anseios <strong>da</strong> população, mas que na reali<strong>da</strong>de se apresentou como uma versão “retoca<strong>da</strong>” do


119anterior, como bem expressou Angeli, velhas roupas compondo uma nova fantasia; umaesquer<strong>da</strong> “amputa<strong>da</strong>”, um membro que o próprio corpo passa a rejeitar, salvo em caso deadequação às novas/velhas regras do organismo; e, por fim, um presidente assentado sobreuma função para a qual não tem a mínima utili<strong>da</strong>de. Essa é a República dos Bananasrepresenta<strong>da</strong> por Angeli, um país onde o risível e o irônico são parceiros inseparáveis, natentativa de “beliscar” e, dessa maneira, fazer pensar sobre a própria condição de sujeito de talsituação.


120Considerações finais: os últimos traçosAs paredes do gueto dos quadrinhos foram rompi<strong>da</strong>s.(Will Eisner)Pensar historicamente sobre o trabalho de Angeli na revista Chiclete com Banana foiuma experiência muito gratificante proporciona<strong>da</strong> por esta pesquisa. Elaborar um trabalhoespecificamente sobre histórias em quadrinhos era um desejo cultivado há muito tempo. Nos érecomen<strong>da</strong>do sempre equilibrar as paixões no desenvolvimento de ativi<strong>da</strong>des acadêmicas,mas desenvolver uma pesquisa que necessite tal empenho e que consome muito tempo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>do pesquisador, torna-se mais difícil de ser realiza<strong>da</strong> quando o mesmo não está apaixonadopor ela.A importância <strong>da</strong> produção de Angeli para a história <strong>da</strong>s histórias em quadrinhos noBrasil é indiscutível, e, especialmente, a revista Chiclete com Banana, pois suas páginas,preeenchi<strong>da</strong>s com um humor ácido, apresentaram a socie<strong>da</strong>de observa<strong>da</strong> pelo cartunista,detentor de um olhar carregado dos anseios e perspectivas do grupo intelectual ao qualpertencia, os intelectuais do humor, categoria muito bem classifica<strong>da</strong> por Elio Chaves Flores,e que nos foi de fun<strong>da</strong>mental importância para vislumbrar o trabalho de Angeli, pois, aoanalisar os elementos que o circun<strong>da</strong>vam e contribuíram para sua formação enquantointelectual do traço, pudemos identificar as características mais marcantes <strong>da</strong> sua produção.O objetivo desta pesquisa foi verificar as percepções sobre a política produzi<strong>da</strong>s peloreferido artista, observando de que maneira o mesmo representou o cenário <strong>da</strong>redemocratização que se apresentava diante dos seus olhos. Porém, tivemos sempre em nossohorizonte a proposta de que tais representações não se constituíam como o discurso de umindivíduo isolado, mas de um sujeito pertencente a um grupo, no caso o dos produtores dequadrinhos udigrudi, e que realizou sua arte e seu humor a partir dos valores compartilhados eveiculados pelos membros do referido grupo, neste sentido, procuramos manter sempre oolhar voltado para Chartier, tendo como referência o conceito de representações sociais, queorientou o trabalho desde a sua fase inicial, e foi para nós como o fio de Ariadne que conduziuTeseu pelos caminhos do labirinto, pois nos mostrou uma direção a seguir, não permitindo,assim, que fugíssemos do foco central desta pesquisa.Após todo esse percurso, percebemos que a relação entre a História e as histórias emquadrinhos ultrapassa os limites <strong>da</strong> mera citação, ou simples referência. Os quadrinhos temmuito mais a oferecer do que se pensava há alguns anos atrás. Entendendo as histórias em


121quadrinhos como manifestações <strong>da</strong> arte, direciona<strong>da</strong>s a um grupo determinado de leitores, e,possuindo os mesmos seus anseios e interpretações compartilha<strong>da</strong>s a partir do diálogo com osautores, participando, pois, <strong>da</strong> mesma compreensão enquanto um grupo cultural, podemosobservar os quadrinhos sob a ótica de um rico documento histórico, tendo em vista tanto asrepresentações do período quanto as características do discurso de quem as produziu.Procuramos entender tais histórias como espaço para divulgação e ao mesmo tempo exercíciode práticas culturais, no caso específico de interesse nesta dissertação, práticascontraculturais.Cabe-nos aqui, uma vez mais, voltar a nos referir à cultura história, pois, comoexpressamos ao longo de todo o trabalho, esses saberes produzidos para além dos muros <strong>da</strong>academia também produzem versões <strong>da</strong> história, versões essas, difundi<strong>da</strong>s, muitas vezes, emum âmbito maior que o saber produzido segundo as normas científicas. De modo que seapresentam como material de pesquisa para o historiador, que extrai delas a sua historici<strong>da</strong>de,para, a partir dela, compreender como esses grupos produziram essas versões, e em quesentido elas podem auxiliar na construção do conhecimento histórico. Entre os quadros e osbalões observamos as marcas do contexto, extraindo-as, ampliando-as, confrontando-as.Estreitando o foco, observamos a cultura política do período apresenta<strong>da</strong> pelo artista,na qual podemos vislumbrar uma paisagem na<strong>da</strong> harmônica, em que as nuances do enfoquecontracultural do artista se apresentaram com grande vigor e fôlego. Ousamos em dizer que,nesse sentido, Angeli foi duplamente contracultural, pois, além do caráter transgressor <strong>da</strong> suaarte, ele, como nas palavras que utilizou no editorial do primeiro número <strong>da</strong> revista, resolveufazer pia<strong>da</strong>, em um período em que todos estavam levando tudo terrivelmente a sério. E este éum dos grandes méritos do seu trabalho à frente <strong>da</strong> Chiclete com Banana.A insatisfação com essa nova conjuntura, forma<strong>da</strong> no processo de aberturademocrática, pode ser percebi<strong>da</strong> claramente nas produções de Angeli referentes à política. Oautor não poupa ninguém, entrincheirado em sua prancheta, disparou as mais duras críticastanto à política enquanto esfera onde se exerce o poder, como aos participantes deste jogo,muitas vezes apresentado como sujo pelo autor.Por vezes, ele foi “indireto”, atacando figuras que representavam simbolicamente acategoria dos políticos, uma “marca” nas produções do período. Buscava, desse modo,abor<strong>da</strong>r o comportamento político, a cultura política do período, deixando de lado aspersonalizações mais diretas, adotando uma postura de analista social, como afirmou emvárias entrevistas, pois o mesmo compreendia política e comportamento como práticasindissociáveis. Mas em diversas outras produções, especialmente em suas histórias emquadrinhos, partiu para o ataque direto, conforme pudemos explicitar em nosso trabalho,


122citando siglas partidárias e personagens conhecidos do cenário de então, levando-nos aentender que, por vezes, para tornar mais claro e compreensível seu discurso, era necessário“<strong>da</strong>r nome aos bois”. Porém, mesmo referindo-se diretamente ao “baixo clero”, como elemesmo gostava de denominá-los, o artista conseguiu sua intenção, a de afastar a ideia de queapenas produzia “bonequinhos engraçados”. O riso de Angeli é irônico, e a ironia leva à umareflexão sobre o que é abor<strong>da</strong>do, tanto na charge quanto na tira cômica.Na República dos Bananas, o país fictício (?!) criado por Angeli ninguém está livre <strong>da</strong>mira <strong>da</strong> sua pena, de seu traço é implacável, e o mesmo não faz distinção entre os seus alvos,todos são iguais e, portanto, são apresentados evidenciando as características negativas maismarcantes do seu comportamento.A Nova (velha) República, não passa de um embuste aos olhos do artista, que emmomento algum se convenceu <strong>da</strong> ocorrência de uma transição. Ele procurou ressaltar osresquícios do autoritarismo do regime anterior, assim como o parasitismo político quepermaneceu no processo de transição, e todo o jogo político <strong>da</strong> troca de favores,estabelecendo essa situação de “rabo preso” entre todos os envolvidos nessa panaceia política.Os partidos políticos <strong>da</strong> época pareciam nessa interpretação não passar espaços paraconflitos e acertos de interesses e estes em na<strong>da</strong> referentes à defesa dos interesses do povo,mas apenas à manutenção <strong>da</strong> satisfatória e confortável situação dos políticos, únicosbeneficiários desse sistema que parece reproduzir, guar<strong>da</strong>ndo as devi<strong>da</strong>s proporções,características semelhantes aos dos tempos do Antigo Regime, em que o povo sustentava osprivilégios <strong>da</strong>queles acima deles.A esquer<strong>da</strong> tradicional, risivelmente condensa<strong>da</strong> na figura do personagem Meiaoito,não passa de um grupo perdido, ou melhor, excluído do novo cenário. A luta arma<strong>da</strong>, étransforma<strong>da</strong> em uma quimera, pois os mortos, sepultados oficialmente ou não, já não podemmais atuar, e os vivos, ou se contentaram com os “espólios <strong>da</strong> guerra” migrando para outrospontos de atuação, ou foram condenados à morte em vi<strong>da</strong>, transformando-se nos“revolucionários de mesa de bar”, representados nas ações do referido personagem.O poder Executivo é mais uma pia<strong>da</strong> aos olhos do artista, e esta de muito mau gosto,pois, além de ter sido realizado de forma indireta, levou ao poder um presidente que guar<strong>da</strong>vagrande relação com o Estado autoritário em vigência anteriormente, o que reforça a ideia <strong>da</strong>não ocorrência de uma ruptura, mas de uma transição que guar<strong>da</strong>va muitos aspectos decontinui<strong>da</strong>de. Além disso, o “despreparo” do Presidente foi frequentemente citado pelocartunista, inconformado com o que considerava incapaci<strong>da</strong>de do mesmo, refleti<strong>da</strong> em suasiniciativas de política econômica que não levaram o país a lograr êxito algum, mas apenasafun<strong>da</strong>r-se ain<strong>da</strong> mais em uma sucessão dívi<strong>da</strong>s e crises.


123Por fim, esperamos que o presente estudo se constitua como mais um espaçoconquistado pelas histórias em quadrinhos no âmbito <strong>da</strong> academia, que nosso empenho narealização do mesmo venha a estimular e auxiliar o desenvolvimento de outros trabalhos nomesmo sentido, pois, as histórias em quadrinhos já nos provaram que não são uma literaturaexclusivamente infantil, ao contrário do que se divulgou por muito tempo e que, infelizmente,ain<strong>da</strong> continua sendo divulgado. Elas são uma linguagem, uma forma de expressãoextremamente rica e aberta às mais diversas possibili<strong>da</strong>des.


124Fontes utiliza<strong>da</strong>sGibiteca Henfil – Programa de Pós-Graduação em Comunicação/UFPBChiclete com Banana n.1. Circo Editorial. Outubro de 1985.Chiclete com Banana n.2. Circo Editorial. Dezembro de 1985.Chiclete com Banana n.3. Circo Editorial. Fevereiro de 1986.Chiclete com Banana n.4. Circo Editorial. Abril de 1986.Chiclete com Banana n.5. Circo Editorial. Junho de 1986.Chiclete com Banana n.6. Circo Editorial. Agosto de 1986.Chiclete com Banana n.7. Circo Editorial. Novembro de 1986.Chiclete com Banana n.8. Circo Editorial. Janeiro de 1987.Chiclete com Banana n.9. Circo Editorial. Abril de 1987.Chiclete com Banana n.10. Circo Editorial. Junho de 1987.Chiclete com Banana n.11. Circo Editorial. Setembro de 1987.Chiclete com Banana n.12. Circo Editorial. Novembro de 1987.Chiclete com Banana n.13. Circo Editorial. Abril de 1988.Chiclete com Banana n.14. Circo Editorial. Junho de 1988.Chiclete com Banana n.15. Circo Editorial. Agosto de 1988.Chiclete com Banana n.16. Circo Editorial. Novembro de 1988.Chiclete com Banana n.17. Circo Editorial. Fevereiro de 1989.Chiclete com Banana n.18. Circo Editorial. Abril de 1989.Chiclete com Banana n.19. Circo Editorial. Junho de 1989.Chiclete com Banana n.20. Circo Editorial. (Data ain<strong>da</strong> não identifica<strong>da</strong>)Chiclete com Banana n.21. Circo Editorial. (Data ain<strong>da</strong> não identifica<strong>da</strong>)Chiclete com Banana n.22. Circo Editorial. Abril de 1990.Chiclete com Banana n.23. Circo Editorial. (Data ain<strong>da</strong> não identifica<strong>da</strong>)Chiclete com Banana n.24. Circo Editorial. (Data ain<strong>da</strong> não identifica<strong>da</strong>)Acervo pessoalChiclete com Banana – Antologia n.1. Editora Devir. (Junho de 2007)


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