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“Do infantil ao terror,<br />

sem perder o humor.”<br />

Número 1 - Novembro de 2012


Seja bem vindo ao primeiro número de Memo.<br />

Esta revista nasceu da minha vontade de<br />

compartilhar com quem é mais novo do que<br />

eu todas as coisas legais que eu vi, li e colecionei<br />

nos últimos 40 anos. Não há um critério rígido<br />

sobre os assuntos que eu pretendo abordar,<br />

mas o principal foco da revista é a recuperação<br />

da memória gráfica com o evidente filtro da<br />

memória afetiva. Vamos falar de quadrinhos,<br />

de artistas, de filmes, séries de tv, desenhos<br />

animados, brinquedos, propaganda, de coisas<br />

que não existem mais ou que ainda existem<br />

de outra forma. Alguns vão se lembrar de coisas<br />

e pessoas que merecem ser lembradas, outros<br />

vão conhecer coisas das quais apenas tinham<br />

ouvido falar. Para alguns, tudo vai ser inédito.<br />

Colaborações serão sempre bem vindas,<br />

não se acanhem. Ah, importante: esta é uma<br />

publicação sem fins lucrativos, ninguém está<br />

autorizado a vendê-la sob qualquer forma,<br />

digital ou impressa.<br />

Boa viagem.<br />

Toni Rodrigues<br />

toni30@hotmail.com<br />

Memo número 1, novembro de 2012.<br />

Redação e Direção de Arte: Toni Rodrigues<br />

Texto final: Danilo Rodrigues<br />

Agradeço muito a Luiz Rosso e Claudio Rosso, por todas as<br />

colaborações inestimáveis que prestaram a este trabalho e<br />

também pelo título da capa.<br />

Meus agradecimentos também a Josmar Fevereiro, Lancelot<br />

Martins, Luiz Saindenberg, Gonçalo Júnior, Osni Winkelman,<br />

Fábio Moraes e ao Professor Waldomiro Vergueiro por todo o<br />

apoio que deram para tornar este trabalho possível. E também<br />

a Heitor Pitombo pelo cutucão que me fez sair do imobilismo.<br />

E agradeço muito à minha querida Laíse por toda a paciência<br />

que tem e sempre teve comigo.<br />

Proibida a cópia, reprodução, utilização, modificação, venda,<br />

publicação e distribuição deste material na sua totalidade ou<br />

em parte em qualquer tipo de suporte sem prévia autorização<br />

por escrito de seus respectivos autores.<br />

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Um dos maiores e<br />

mais prolíficos artistas<br />

que o Brasil já viu,<br />

atuando tanto nos<br />

quadrinhos quanto na<br />

ilustração editorial por<br />

mais de 40 anos.<br />

Autor de uma incontável<br />

e quase inacreditável<br />

quantidade de trabalhos<br />

abordando os mais<br />

variados temas, do infantil<br />

ao terror, passando pelo<br />

erótico e o religioso.<br />

E como se isso não<br />

bastasse, também um<br />

excelente professor,<br />

lembrado com carinho<br />

por todos os seus alunos.<br />

Examinar sua obra é<br />

examinar boa parte<br />

da história das artes<br />

gráficas no Brasil.<br />

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Nicola Rosso nasceu na<br />

cidade italiana de Turim,<br />

em 19 de julho de 1910.<br />

Ainda muito jovem,<br />

sua paixão pelo<br />

desenho fez com que se<br />

tornasse aluno da<br />

Accademia Albertina<br />

delle Belle Arti.<br />

A escola descendia da famosa<br />

Accademia dei Pittori, Scultori<br />

e Architetti fundada em 1678<br />

pela princesa Maria Giovanna<br />

di Savoia-Nemours.<br />

Segundo o próprio Rosso, dois<br />

mestres da Accademia Albertina<br />

serão os principais<br />

influenciadores de seu trabalho:<br />

Giácomo Grosso (1860-1938),<br />

ele também um ex-aluno da escola,<br />

pintor respeitado com exposições<br />

na França, na Alemanha<br />

e na própria Itália.<br />

Famoso por sua habilidade<br />

como retratista, acabou se tornando<br />

um visitante frequente da<br />

América do Sul, principalmente<br />

da Argentina, onde atendeu<br />

diversas encomendas, inclusive<br />

governamentais. Tornou-se o<br />

titular da cátedra de Pintura<br />

na Accademia em 1906, cargo que<br />

ocupou até sua morte, foi também<br />

nomeado senador vitalício do<br />

reino da Itália em 1929.<br />

Ela foi reaberta em 1883 pelo<br />

Príncipe Carlo Alberto di Sardegna e<br />

adotou o nome de seu novo patrono.<br />

Desde o começo, tornou-se<br />

um importante centro de difusão das<br />

artes e contribuiu muito para que<br />

Turim ocupasse um lugar na<br />

vanguarda dos movimentos<br />

artísticos do final do século XIX e<br />

início do século XX.<br />

Sobre Giovanni Reduzzi, sua outra<br />

influência, há muito pouco disponível.<br />

Em várias fontes se acham referências<br />

a um importante escultor chamado<br />

Césare Reduzzi, aluno da Accademia<br />

Albertina e autor das estátuas que<br />

ornam a Ponte Umberto I em Turim<br />

representando a Coragem, a Piedade,<br />

a Arte e a Indústria. Em algumas<br />

fontes estas mesmas estátuas são<br />

atribuídas a Giovanni Reduzzi.<br />

Talvez se trate da mesma pessoa,<br />

mas o problema é que nas biografias<br />

de Césare, sua data de nascimento<br />

é dada como sendo 1857 e sua morte<br />

teria sido em 1911, apenas um ano<br />

depois do nascimento de Nico Rosso.<br />

Sendo assim, não poderia ser<br />

ele o mestre citado por Rosso.<br />

Um filho deste, talvez?<br />

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Nico Rosso viajou pela França<br />

por dois anos para completar<br />

seus estudos. Ao voltar à Itália,<br />

começou a trabalhar como<br />

ilustrador e diretor de arte.<br />

Fez de tudo um pouco,<br />

de capas de livros a peças<br />

publicitárias.<br />

Tornou-se um profissional<br />

respeitado e logo foi convidado<br />

para lecionar na Escola<br />

de Artes Gráficas Bernardo<br />

Semeriz. Suas matérias:<br />

Ilustração e História do Traje.<br />

Além de desenhar muito bem,<br />

o canhoto Nico Rosso (que depois,<br />

com treino, se tornou ambidestro)<br />

tocava piano, acordeon e bateria.<br />

E foi num baile, tocando bateria,<br />

que ele conheceu a jovem<br />

Tina Billi, com quem se casou<br />

em 20 de setembro de 1937.<br />

O primeiro filho dos Rosso,<br />

Gianluigi, nasceu em 21 de outubro<br />

de 1938, quando tempos difíceis<br />

se avizinhavam na Itália.<br />

A Segunda Guerra Mundial<br />

começou oficialmente com a<br />

invasão da Polônia pelos alemães<br />

em 1º de setembro de 1939.<br />

Dez meses depois, quando a Itália<br />

declarou guerra à Inglaterra e<br />

à França, em 10 de junho de 1940,<br />

tinha munição para apenas dois<br />

meses de combate.<br />

Na verdade Mussolini só o<br />

fez porque acreditava que<br />

a vitória alemã sobre os Aliados<br />

(Inglaterra, Estados Unidos e<br />

União Soviética) seria rápida.<br />

Nico Rosso não chegou a ser<br />

convocado, mas passou por<br />

diversos momentos difíceis com<br />

sua família, que ganhou mais um<br />

membro com o nascimento de<br />

Valeria em 5 de março de 1944.<br />

Em junho do mesmo ano,<br />

os Estados Unidos tomaram Roma.<br />

Em 27 de abril de 1945, Mussolini e<br />

sua amante, Clara Petacci, que<br />

tentavam fugir para a Suíça, foram<br />

capturados pelos Partigiani.<br />

Rapidamente julgados, foram<br />

executados e seus corpos expostos<br />

na Piazzale Loreto, em Milão.<br />

Mas as coisas não aconteceram<br />

exatamente como o Duce previa:<br />

o povo italiano passou por muitos<br />

momentos de sofrimento nos<br />

cinco anos seguintes. A começar pelas<br />

famílias que enviaram seus<br />

homens para o front, de onde<br />

muitos jamais voltaram. Ou, pelo<br />

forte racionamento de quase tudo,<br />

que deixava os italianos em<br />

situação de quase miséria.<br />

No dia 2 de maio de 1945, os<br />

nazistas se renderam na Itália.<br />

Findava assim a longa ditadura<br />

fascista sobre o povo italiano.<br />

O país estava em ruínas.<br />

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Muitos europeus<br />

deixaram seus países<br />

no pós-guerra.<br />

A vida, que já era difícil<br />

durante o conflito,<br />

em muitas instâncias<br />

se tornou ainda pior.<br />

Os Rosso perderam<br />

praticamente todo o seu<br />

patrimônio e decidiram<br />

que era hora de buscar<br />

um novo lugar para<br />

recomeçar sua vida.<br />

Nico, Tina,<br />

Gianluigi e Valeria Rosso<br />

pouco antes de se<br />

mudarem para o Brasil.<br />

No pós-guerra, a cidade<br />

de São Paulo vivia uma<br />

grande efervescência nos<br />

negócios e com certeza<br />

a Brasilgráfica<br />

estava a todo vapor.<br />

Mas logo vamos encontrar<br />

Nico Rosso mostrando<br />

todo o seu talento em trabalhos<br />

muito mais interessantes<br />

do que embalagens de<br />

chocolates.<br />

Durante algum tempo houve uma<br />

possibilidade de se transferirem para<br />

Quebec, no Canadá, mas isso<br />

não agradava Tina e eles acabaram<br />

se resolvendo pelo Brasil.<br />

A escolha por São Paulo deve<br />

ter sido óbvia, uma vez que 70% de<br />

todos os imigrantes italianos para o<br />

Brasil vieram para este estado. Boa<br />

parte deles para a capital.<br />

Nico Rosso chegou ao Porto de<br />

Santos no dia 3 de outubro de 1947.<br />

Sua família chegou ao Brasil meses<br />

depois, em 9 de abril de 1948.<br />

Por contatos feitos com amigos<br />

aqui residentes, quando ainda estava na<br />

Itália, Nico Rosso chegou à cidade já<br />

com um emprego certo: dirigir o<br />

departamento de arte da Brasilgráfica.<br />

Fundada em 1927 pela família Cotinni<br />

no bairro do Bom Retiro, posteriormente<br />

se mudando para a Vila Maria, a<br />

gráfica se especializara em embalagens,<br />

entre estas muitas de produtos fabricados<br />

por outras famílias italianas, como os<br />

chocolates Falchi e Gardano.<br />

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Um dos primeiros trabalhos de<br />

Nico Rosso no Brasil foi feito para<br />

A Gazeta Juvenil, suplemento infantil<br />

do jornal A Gazeta. Mais conhecida como<br />

“A Gazetinha”, na sua última fase,<br />

publicava mais contos ilustrados<br />

que quadrinhos.<br />

Messias de Melo era o principal<br />

desenhista deste suplemento, mas já em<br />

15 de novembro de 1949 aparece<br />

o nome de Nico Rosso no expediente.<br />

Ao seu lado, outros desenhistas,<br />

que logo também se tornariam<br />

muito conhecidos.<br />

Nico Rosso ilustrou um total de<br />

11 histórias para A Gazeta Juvenil.<br />

A última foi publicada em<br />

15 de abril de 1950 (o suplemento<br />

acabou com a edição de<br />

1º de julho, três meses depois).<br />

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Don Giácomo Alberione (1884-1971), foi<br />

um padre e editor italiano, que em 1914<br />

fundou a Sociedade de São Paulo. No<br />

ano seguinte, criou a Congregação das<br />

Filhas de São Paulo, com o apoio da Madre<br />

Tecla Merlo (1894-1964). A premissa<br />

destas entidades, segundo as próprias,<br />

era espalhar a palavra de Deus através<br />

do jornalismo, aplicado em diversas publicações<br />

- dos mais diversos gêneros e formatos - onde quer que estivessem.<br />

Uma delas era Il Giornalino, revista semanal voltada para o público infantil. Foi publicada<br />

sem interrupções por 75 anos, entre outubro de 1924 e novembro de 1999. Apesar do<br />

evidente cunho religioso de seu conteúdo, nem tudo eram orações nesta revista e logo ela<br />

começou a publicar histórias em quadrinhos de humor, ação e aventura, coisa que continuou<br />

fazendo até seu último número. Grandes desenhistas começaram nela ou foram<br />

seus colaboradores ao longo dos anos. Gente do calibre de Dino Battaglia, Jacovitti, Sergio<br />

Zaniboni, Ferdinando Tacconi, Franco Caprioli, Sergio Toppi, Tiziano Sclavi,Giorgio<br />

Cavazzano, Alfredo Castelli e muitos outros.<br />

Como as demais publicações da Congregação das Filhas de São Paulo, mais conhecidas<br />

como Irmãs Paulinas, logo a revista passou a ser editada fora da Itália. No Brasil, chegou<br />

no final de 1941, rebatizada de O Jornalzinho. Era publicada quinzenalmente no formato<br />

tabloide, parcialmente impressa a cores. É difícil entender isso hoje em dia, mas<br />

editá-la não deixava de ser uma empreitada um tanto quanto complicada, pois apesar de<br />

ser uma publicação de uma ordem religiosa, da religião<br />

com maior número de adeptos no Brasil de então, subordinada<br />

ao Vaticano, que era neutro na guerra, publicada<br />

em São Paulo, que tinha uma grande colônia italiana, se<br />

tratava de fato de uma publicação cujo conteúdo, a partir<br />

de 1942, vinha de um país oficialmente em guerra com<br />

o Brasil. Isso fez com que muito material passasse a ser<br />

produzido aqui ou vir de outros países que não a Itália.<br />

Com o final da guerra, estes problemas supostamente<br />

acabaram, mas o hábito de publicar trabalhos locais persistiu<br />

e foi isso que fez com que em ainda em 1947, Nico<br />

Rosso passasse a produzir também para O Jornalzinho.<br />

Afinal, o artista já trabalhava bastante para os religiosos<br />

que publicavam a revista, tendo ilustrado diversos livretos<br />

de oração e cadernos de catequese.<br />

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Com sua imensa capacidade de trabalho,<br />

ele praticamente tomou a publicação de<br />

assalto. De 1950 até 1959, Nico Rosso foi o<br />

principal artista da revista e seu trabalho<br />

englobou desde histórias em quadrinhos<br />

até ilustrações avulsas para contos, capas,<br />

vinhetas de seções e quase tudo mais.<br />

Ele não era o único desenhista desta fase,<br />

mas era um dos poucos que assinava o que<br />

fazia. Também continuavam a ser publicadas<br />

histórias italianas ou de outros países como<br />

O Caminho do Oriente, excelente série portuguesa<br />

escrita por Raul Correa e desenhada<br />

pelo grande Eduardo Teixeira Coelho. No entanto,<br />

de modo geral, 90% do que saia na revista era<br />

de autoria de Nico Rosso. E mais, muito desse material não era apenas desenhado<br />

por ele, mas escrito por ele também e de maneira bastante competente. Rosso adaptou<br />

histórias de escritores como Júlio Verne e Carlo Collodi - autor de Pinóquio, que já havia<br />

sido ilustrado por Rosso na Itália, com sucesso. Nas histórias bíblicas, ele certamente<br />

recebia a colaboração dos religiosos que editavam a revista, como o padre Waldemar<br />

Pedro Bósio. Existem algumas histórias em que o texto é atribuído a alguém chamado<br />

L. Caravina, mas são poucas. Há no entanto um colaborador mais frequente no texto<br />

na fase que começa em 1954, que assina como G. Basso.


Não se sabe se esses nomes eram pseudônimos de alguém, ou se era também um membro<br />

da congregação, que tanto podia ser um homem quanto uma mulher.<br />

Exceto, claro, pelas histórias bíblicas, a temática religiosa não<br />

era predominante - apesar de sempre estar presente nas histórias.<br />

Livio e Wilma, da Patrulha Sideral, por exemplo, pediam<br />

à sua tripulação para rezarem à Nossa Senhora em prol da<br />

salvação eterna aos companheiros que morreram na<br />

aventura. Desde o início de sua colaboração na revista,<br />

Nico Rosso criou alguns personagens recorrentes: Tatú e<br />

Tatá, um casal de crianças sapecas; Léo, o destemido,<br />

um adolescente que vive aventuras no mar; Patrulha<br />

Sideral, comandada pelo casal Livio e Wilma,<br />

Além deles, o mais famoso: o Capitão Brasil,<br />

um aviador que vive aventuras ao redor do mundo, com ênfase no<br />

Brasil, evidentemente. Estes personagens tinham histórias seriadas na<br />

fase inicial, quando a revista saía no formato tabloide - e algumas eram<br />

impressas em cores. Mas essa fase durou pouco: uma decisão<br />

editorial mudou o formato da revista para o que hoje<br />

conhecemos como “formato americano” e ela passou a<br />

ter apenas as capas coloridas e a evitar a publicação de<br />

histórias em continuação.<br />

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Logo, passaram a aparecer também mais histórias abordando temas da História do Brasil<br />

ou de uma maneira branda, a luta contra o comunismo, um assunto quente nos anos 50.<br />

Isso provavelmente aconteceu, porque boa parte dos professores e do clero eram contra<br />

as histórias em quadrinhos, mas esta era uma revista editada por uma ordem religiosa,<br />

que deve ter achado melhor se adaptar ao conceito de “educativo” para evitar críticas de<br />

seus próprios pares. Além disso, O Jornalzinho não era uma revista vendida em banca,<br />

vivia de assinaturas e vendas diretas nas igrejas.<br />

As colaborações de Nico Rosso foram ficando mais esparsas à medida em que findavam<br />

os anos 50. Mais e mais, a revista foi publicando histórias estrangeiras, provavelmente<br />

por economia. Os trabalhos de Nico Rosso só voltaram a aparecer no final anos 60, em<br />

reprises, já perto da última fase da revista no Brasil, encerrada em 1972.<br />

Republicamos a seguir uma<br />

Amostra do trabalho de<br />

Nico Rosso em O Jornalzinho.<br />

Uma história completa<br />

do Capitão Brasil publicada<br />

originalmente no número 203<br />

de Abril de 1955.<br />

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A Coleção Saraiva | Joaquim Inácio da Fonseca Saraiva, português de Trás-os-Montes, já<br />

morava no Brasil há duas décadas quando, no dia 13 de dezembro de 1914, fundou uma<br />

pequena livraria na Rua do Ouvidor, em São Paulo, bem próxima da Faculdade de Direito<br />

do Largo São Francisco. A livraria, que também era sebo, recebeu o nome de Livraria<br />

Acadêmica. Por sua dedicação e simpatia para com os clientes, estudantes e professores<br />

da Faculdade, Joaquim Inácio logo ganhou o apelido de Conselheiro<br />

Saraiva. Nos 30 anos seguintes, dedicou-se a vender e publicar apenas<br />

livros jurídicos, sua antiga paixão - uma vez que tinha sido também<br />

um acadêmico de Direito. Com sua morte, em 1944, os filhos Jorge,<br />

Joaquim e Paulino resolveram ampliar o negócio. Começaram por<br />

montar uma gráfica própria. Logo, resolveram também diversificar<br />

sua linha editorial. Para tanto, em 1948, chamam dois intelectuais<br />

de respeito para trabalhar na editora: Mario da Silva Brito e Cassiano Nunes. Sua missão:<br />

criar uma coleção com preços acessíveis capaz de colocar o melhor da literatura<br />

nas mãos do público. Nasceu assim a Coleção Saraiva, vendida num até então inédito<br />

sistema de assinaturas, publicando mensalmente livros impressos<br />

num papel barato com capas coloridas e atraentes. O primeiro volume,<br />

“O Rei Cavaleiro”, tem capa de Guilherme Walpeteris, que fez<br />

a maioria das capas nos primeiros dois anos. Só em março de 1950<br />

com o número 21, “Os Saltimbancos”, é que Nico Rosso estreia na<br />

função de capista. Nos 22 anos seguintes ele fez a maior parte das<br />

capas, até a última da coleção, “A Guerra dos Mascates”, publicada<br />

no começo de 1972.<br />

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A apresentação gráfica das capas da Coleção Saraiva segue um<br />

padrão de layout bastante simples. Uma tarja amarela na parte<br />

inferior da capa com o logotipo da coleção e a lombada branca<br />

com o título do livro e o seu número correspondente são os<br />

únicos elementos fixos no design. Todo o resto ficava por conta<br />

do ilustrador, inclusive a tipografia usada para o nome do título<br />

e do autor. Na última capa, mais uma ilustração referente ao<br />

mesmo assunto. Liberdade total para a escolha da composição,<br />

uso de cores, técnica de ilustração, resultando em um trabalho<br />

belíssimo e consistente ao longo dos anos.<br />

Nico Rosso era um leitor contumaz e não raro, lia 3 livros ao<br />

mesmo tempo. Ele leu quase todos os livros que ilustrou, pois<br />

achava isso muito importante para a concepção de uma capa.<br />

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É interessante notar<br />

a simplicidade de<br />

algumas capas e<br />

a extrema elaboração<br />

gráfica de outras.<br />

Olhando o conjunto é<br />

muito fácil perceber<br />

quais capas ele<br />

realmente gostou de<br />

fazer e quais não,<br />

o que mostra também<br />

seu gosto literário.<br />

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Para a mesma Saraiva,<br />

Nico Rosso ilustrou<br />

a partir de 1951 várias<br />

capas para a famosa<br />

Coleção Jabuti.<br />

Essa série era voltada<br />

para a literatura em<br />

língua portuguesa e<br />

durou muitos anos,<br />

com várias mudanças<br />

de layout.<br />

A principal marca da<br />

coleção, a princípio,<br />

eram as listras verdes<br />

e uma moldura preta<br />

que cercava a<br />

ilustração de capa.<br />

Além das coleções, Nico Rosso também trabalhou<br />

em outras obras da Saraiva, tanto as voltadas para<br />

o público adulto quanto o infanto-juvenil como<br />

Robin Hood, a trilogia de Alexandre Dumas para<br />

Os Três Mosqueteiros e o primeiro livro da série<br />

do Cachorrinho Samba, da Sra. Leandro<br />

Dupré, pseudônimo de Maria José Dupré,<br />

uma escritora muito famosa na época,<br />

autora de Éramos Seis, adaptado<br />

diversas vezes pela TV.<br />

Esse personagem já tinha<br />

aparecido em outros livros<br />

da autora e depois deste<br />

vôo solo ganhou uma<br />

série própria, com mais<br />

5 livros escritos até meados<br />

da década de 60.<br />

Outra série de livros da Saraiva com capas de Rosso foi a Coleção Cinzenta, com<br />

histórias policiais de diversos autores americanos e europeus no melhor estilo “noir”.<br />

Paralelamente ao<br />

trabalho na Saraiva,<br />

Rosso também trabalhou<br />

na Melhoramentos, na<br />

época uma das maiores<br />

editoras brasileiras,<br />

especializada em livros<br />

didáticos. Ele ilustrou a<br />

famosa “Cartilha Braga”,<br />

de Erasmo Braga, principal concorrente da<br />

até hoje utilizada “Caminho Suave”,<br />

da professora Branca Alves de<br />

Lima. Nos anos seguintes, Rosso<br />

voltaria a trabalhar para<br />

essa editora em diversos<br />

projetos, principalmente<br />

de literatura infantil,<br />

que acabou se tornando o<br />

carro-chefe da casa.<br />

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Enquanto o volume<br />

de trabalho crescia<br />

mais e mais no<br />

Brasil, continuaram<br />

a sair na Itália<br />

vários livros com<br />

ilustrações de Rosso,<br />

feitas antes do final<br />

da guerra, como<br />

“Il Viaggio in Una<br />

Bolla di Sapone”, que<br />

tem uma peculiaridade<br />

técnica, o uso do<br />

aerógrafo, bastante<br />

raro em sua obra.<br />

Saíram também neste<br />

mesmo período<br />

“Le Figlie dei Faraoni”,<br />

“La Piccola Lady” e<br />

“Il Re dei Nani”,<br />

com lindíssimas<br />

aquarelas que<br />

reproduzimos aqui.<br />

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Nos dois anos seguintes, a revista seguiu publicando material americano, mas no número 24, de<br />

junho de 1950, os leitores se depararam com uma novidade, a quadrinização do romance brasileiro<br />

“O Guarani”, de José de Alencar, com lindos desenhos em aguada do artista haitiano André LeBlanc.<br />

Casado com uma brasileira, Elvira, que escreveu o texto desta adaptação, LeBlanc havia se radicado<br />

no Rio de Janeiro naquela altura. Seis meses depois de “O Guarani”, saiu “Iracema”<br />

no número 31 de janeiro de 1951. Mais de um ano depois em março de 1952, “O Tronco<br />

do Ipê” no número 46 e em outubro do mesmo ano, “Ubirajara” no número 57. Todas<br />

adaptações do mesmo escritor, José de Alencar e três delas de temática indianista.<br />

Certamente LeBlanc estava apaixonado por esse tema, pois dois personagens com<br />

os quais ele trabalhava na mesma época também traziam o tema de aventuras nas<br />

florestas brasileiras, Morena-Flor, de sua própria autoria<br />

e O Capitão Atlas, adaptação de um seriado radiofônico que fazia muito<br />

sucesso naqueles anos. Dono de excelente técnica, LeBlanc teve uma<br />

prestigiosa carreira internacional, passando muito tempo nos Estados<br />

Editora Brasil-América (EBAL) | Apesar de ainda manter uma relação firme com a editora das Irmãs<br />

Paulinas, para a qual ainda faria muitas ilustrações e capas nos anos seguintes,<br />

Nico Rosso teve boa parte de seu volume de trabalho reduzido em O Jornalzinho<br />

na segunda metade dos anos 50. Isso fez com que começasse a aceitar ofertas<br />

de trabalho de outras editoras. Uma delas foi a lendária Editora Brasil-América, a<br />

EBAL, de Adolfo Aizen, sediada no Rio de Janeiro.<br />

Fundada em 1945, a EBAL tinha entre suas publicações uma série de quadrinizações<br />

(termo criado pelo próprio Aizen) de clássicos da literatura mundial:<br />

a Edição Maravilhosa. A revista surgiu como um filhote de outra revista, O<br />

Herói, primeira publicação da editora, que em seu número 9, de fevereiro de<br />

1948, trouxe a versão americana da Classics Illustrated para “O Último dos<br />

Mohicanos”. Numa vinheta acima do logotipo da revista se lia “Edição Maravilhosa”.<br />

No número 12, em abril, foi a vez de “A Ilha do Tesouro”. A ótima repercussão das duas foi o<br />

sinal verde para Aizen lançar a Edição Maravilhosa como revista autônoma. O primeiro número, num<br />

formato um pouco menor que o usual, foi publicado em julho de 1948, com Os Três Mosqueteiros.<br />

Unidos, onde trabalhou ao longo dos anos em Flash Gordon, O Fantasma,<br />

The Spirit e muitas mais, quase sempre de forma anônima. Para a tristeza<br />

de Adolfo Aizen, que adorava seu trabalho, LeBlanc mudou-se de vez para<br />

os Estados Unidos em 1956, passando a colaborar apenas esporadicamente<br />

com a EBAL até a década de 1970.<br />

A partir da publicação de “O Guarani” ocorreram algumas mudanças editoriais<br />

na Edição Maravilhosa. Primeiro, o<br />

formato menor foi abandonado e ela passou<br />

a ter o mesmo formato das outras publicações da editora. Passou<br />

também a publicar, cada vez mais, material produzido no Brasil. De<br />

201 edições, 54 foram adaptações de clássicos da literatura brasileira<br />

e portuguesa. Além de José de Alencar, também tiveram obras adaptadas<br />

autores como Machado de Assis, Manoel Victor, Graça Aranha,<br />

Menotti Del Picchia, Ribeiro Couto, Pedro Bloch, Jorge Amado, Dinah<br />

Silveira de Queiróz e muitos outros.<br />

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Outra mudança bem visível na revista foram as capas. Os desenhos a traço das capas originais<br />

americanas deram lugar a belas pinturas de Antônio Euzébio Neto, um dos maiores<br />

ilustradores brasileiros de todos os tempos - e que, na época, era funcionário da EBAL. Ele<br />

ilustrou nada menos que 45 capas de Edição Maravilhosa - quase sempre, num nível bastante<br />

superior aos desenhos das páginas internas. Outros grandes artistas da época também<br />

marcaram presença nas capas da Edição Maravilhosa,<br />

como Monteiro Filho, Ramón Llampayas e<br />

Nico Rosso. Vale lembrar que essas ilustrações de<br />

capa eram produzidas mesmo quando o material<br />

interno não era originalmente escrito e desenhado<br />

no Brasil por encomenda da EBAL.<br />

Em termos de texto, as adaptações normalmente<br />

deixavam a desejar: eram transposições quase literais<br />

dos romances. Não havia grandes alterações<br />

na linguagem, nenhuma adaptação para o meio,<br />

o que tornava a leitura bastante arrastada. Além<br />

disso, nem sempre os desenhistas eram tão bons<br />

quanto André LeBlanc e Nico Rosso, que estreou<br />

nas Edições em 1957. São dele as adaptações de “A<br />

Morgadinha dos Canaviais”, de Júlio Dinis (número<br />

147), “A Conquista”, de Coelho Neto (número<br />

154), “Fruta do Mato”, de Afrânio Peixoto (número<br />

160), “Coração de Onça”, de Ofélia e Narbal Fontes<br />

(número 168), “Dona Xepa”, de Pedro Bloch (número<br />

172), “Moleque Ricardo”, de José Lins do Rego (número 182) e “As Minas de Prata”, de<br />

José de Alencar (número 188). Para todas estas, Nico Rosso também produziu as capas.<br />

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Um detalhe que empobrece um pouco o estilo dos desenhos de diversas publicações da EBAL da época é<br />

o uso de letreiramento linotipográfico, ao invés de manual. As famosas linotipos da editora foram responsáveis<br />

por gerar alguns dos balões mais feios do quadrinhos, feitos no departamento de arte da casa. Uma<br />

escolha dos Aizen motivada por economia de tempo e dinheiro, mas que<br />

infelizmente estragavam belos originais como os de Nico Rosso.<br />

No que diz respeito ao trabalho de Nico Rosso para a Edição Maravilhosa,<br />

ele seguiu um padrão temático bastante parecido com o que ele<br />

já fazia em O Jornalzinho, com histórias em que bandeirantes se encontravam<br />

com índios, cenários coloniais, florestas, etc. Não deve ter<br />

sido nem um pouco difícil para ele trabalhar nisso e seguramente a<br />

qualidade do material que entregava fez com que a EBAL o chamasse<br />

para ser o principal desenhista de uma outra série, Grandes Figuras,<br />

com biografias em quadrinhos de personagens históricos, cuja primeira<br />

edição data de 1957.<br />

Nico Rosso desenhou 11 dos 20 números que a compõe: Tamandaré, Raposo<br />

Tavares, Anchieta, Osório, Visconde de Mauá, Pedro II, Caxias,<br />

Monteiro Lobato, Pedro Américo, José Bonifácio e Santos Dumont. Os textos eram da Professora Nair da<br />

Rocha Miranda e de Pedro Anísio, um colaborador de Aizen desde os tempos do Suplemento Juvenil.<br />

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Na série, de forma ainda mais elaborada do que na<br />

Edição Maravilhosa, Rosso passou a experimentar<br />

novas maneiras de arte-finalizar seu trabalho.<br />

Nestas histórias, vamos encontrar tanto o bico-depena<br />

utilizado de várias maneiras, quanto o pincel,<br />

as aguadas e surpreendentemente para uma época<br />

em que os meios de reprodução não eram bons, o<br />

simples lápis, sem qualquer cobertura. Nas capas,<br />

assim como na Edição, Nico trafega entre o guache<br />

e o pastel seco, duas de suas técnicas preferidas,<br />

usadas muitas vezes durante sua carreira.<br />

Tanto as obras da Edição Maravilhosa quanto Grandes<br />

Figuras, além da Série Sagrada (biografias de santos católicos, que não chegaram a ser ilustrados<br />

por Rosso), eram parte de um grande esforço de relações públicas por parte de Adolfo Aizen junto a<br />

padres, pais e professores - na época, inimigos declarados das histórias em quadrinhos. Tanto é que Aizen<br />

não visava grande lucro com tais séries - o dinheiro vinha de personagens como Tarzan, Superman,<br />

Batman, Pernalonga e outros, que chegaram a vender mais de 100 mil exemplares mensais. Outro fator<br />

que permitia o investimento de Aizen nestas séries era o subsídio governamental dado ao papel de imprensa.<br />

Infelizmente, tão logo tomou posse de<br />

seu curtíssimo mandato, em 1961, o presidente<br />

Jânio Quadros acabou com o subsídio, fazendo<br />

com que a produção destas revistas deixasse<br />

de valer a pena, causando seu cancelamento.<br />

Nico Rosso, no entanto, voltou a trabalhar para a<br />

EBAL em outras ocasiões: ele ilustrou “O Descobrimento<br />

do Brasil”, em 1968, e uma adaptação<br />

de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, em 1972.<br />

Ambas com textos assinados por Pedro Anísio.<br />

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É interessante notar como é marcante a presença<br />

italiana nessas duas atividades de certa forma complementares,<br />

os gráficos e os jornaleiros.<br />

Na São Paulo da primeira metade do século XX, nomes como Modesto,<br />

La Selva, Scafutto, Siciliano, Chiodi, Civita, se encontram facilmente<br />

toda vez que se pesquisa sobre isso. E muitos destes nomes ainda estão<br />

por aí, algumas vezes sem ter mais nada a ver com seus titulares.<br />

De toda forma, o Seu Vito, como era conhecido, viveu um período de<br />

prosperidade no final dos anos 40 e transformou sua banca primeiro numa<br />

distribuidora e algum tempo depois numa editora, que viria a ser uma das mais<br />

importantes dos anos 50 no Brasil. A primeira revista por ele editada não era de<br />

quadrinhos: Seleções de Modinhas era dedicada a cantores da época e seus sucessos.<br />

Vendeu muito bem e a editora progrediu, com Seleções de Rir, revista de<br />

pin-up girls e piadas, que vendeu mais ainda. Os La Selva compraram<br />

algum tempo depois o título de uma revista que distribuíam<br />

(O Cômico Colegial) e resolveram publicar nela seus<br />

primeiros quadrinhos, as histórias de um super-herói<br />

americano chamado O Terror Negro. The Black Terror, seu nome<br />

original, era uma produção da Nedor Comics, creditada a diversos<br />

escritores, entre eles a depois famosa Patricia Highsmith. Os desenhistas<br />

também variavam muito, mas os melhores eram certamente<br />

Jerry Robinson e Mort Meskin. Ambos vinham de outras editoras, como<br />

a DC comics, onde trabalharam em diversos outros personagens como<br />

Batman, Aquaman e O Vigilante. A revista não vendia mal, mas nos Estados<br />

Outro importante editor<br />

de Nico Rosso na segunda<br />

metade dos anos 50 foi a<br />

Editora La Selva, que evoluiu<br />

da banca de jornais<br />

do imigrante italiano<br />

Vito Antonio La Selva.<br />

Unidos a produção da série foi suspensa. Coincidentemente, José Viegas, que era o representante da APLA<br />

(Agência Periodística Latino Americana), ofereceu aos La Selva um material novo que estava fazendo bastante<br />

sucesso nos Estados Unidos, histórias<br />

de terror de uma revista chamada Beyond.<br />

O título da publicação americana não foi<br />

aproveitado, mas suas histórias tinham tudo<br />

a ver com o título que já estava sendo editado,<br />

“O Terror Negro”. Assim, em agosto de<br />

1951, foi para as bancas a primeira revista<br />

brasileira de quadrinhos genuinamente de<br />

terror, com um título usado mas material<br />

totalmente inédito. Foi um imenso sucesso.<br />

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A Editora LaSelva só cresceu nos anos seguintes. Muito disso<br />

se deve não só ao trabalho árduo de toda a família La Selva,<br />

mas também à qualidade do diretor de arte que eles contrataram<br />

no início de 1950, o português Jayme Cortez Martins.<br />

Jovem veterano dos quadrinhos,<br />

que tinha começado sua<br />

jornada ainda em Portugal<br />

como assistente do excepcional<br />

ilustrador Eduardo Teixeira<br />

Coelho.<br />

Jayme Cortez chegara a São<br />

Paulo em 1947 e trabalhava<br />

até então como chargista e<br />

ilustrador na Gazeta e na Gazetinha,<br />

já tendo passado pelo Diário da Noite, onde também<br />

fez sua versão de “O Guarani”. As capas de Cortez para Terror<br />

Negro eram espetaculares, muito superiores às originais<br />

americanas e logo fizeram muito sucesso. No entanto, Cortez<br />

desenhou bem poucas histórias em quadrinhos propriamente<br />

ditas em sua carreira depois da Gazetinha, embora tenha sido<br />

um dos mais influentes desenhistas de quadrinhos de sua geração.<br />

Mas capas ele fazia aos montes, de todos os gêneros, do<br />

super-herói ao cowboy, do infantil ao terror. Todas com a mesma<br />

qualidade: o poder de atrair o olhar do público numa banca<br />

de jornais lotada de publicações.<br />

O crescimento da La Selva passou pela diversificação de títulos.<br />

Por sua experiência com bancas de jornal, os La Selva logo<br />

eram capazes de farejar quando algum título iria vender bem e<br />

lançaram de tudo nos anos seguintes. Para dar vazão aos bons<br />

números de vendas, tiveram que começar a produzir algum<br />

material no Brasil. Histórias de terror, eles encontravam de<br />

forma abundante e barata nas distribuidoras, mas como lançaram<br />

algumas revistas que vendiam muito bem, com histórias<br />

baseadas em comediantes brasileiros do rádio, cinema e<br />

TV tiveram que produzir muitos quadrinhos aqui. Títulos como<br />

Fuzarca e Torresmo, Arrelia e Pimentinha, Oscarito e Grande<br />

Otelo e Mazzaropi ficavam todos os meses na casa dos 70, 80<br />

mil exemplares, uma vendagem muito expressiva.<br />

E assim como não se incomodavam de serem copiados por outras<br />

editoras que lançaram inúmeras revistas de terror na cola<br />

do Terror Negro, eles também não tinham problema nenhum<br />

em copiar formatos dos outros. Foi por isso que nasceu Aventuras<br />

Heróicas, calcada numa revista da EBAL, Epopéia, inclusive<br />

sendo publicada no mesmo formato, maior que o usual.<br />

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Então, entre os diversos títulos lançados pela La Selva<br />

no ano de 1956, surge a revista Contos de Fadas.<br />

A princípio publicando material italiano e português<br />

(histórias de Eduardo Teixeira Coelho), logo<br />

começou a publicar histórias feitas no Brasil por<br />

artistas como Sylvio Ramires, José Lanzellotti (com<br />

a La Selva desde a primeira capa do Terror Negro),<br />

Messias de Melo, Giorgio Scudellari, Orlando Pizzi,<br />

Isomar, Sérgio Lima e provavelmente um de seus<br />

mais assíduos colaboradores, Nico Rosso.<br />

É fácil entender porque alguém como Nico Rosso,<br />

vindo de uma parte da Europa que preserva palácios<br />

e castelos, professor de História do Traje, com uma<br />

vasta cultura sobre o tema, tenha se dado muito bem<br />

nesta publicação. Alguns dos melhores trabalhos de<br />

Nico Rosso em toda a sua prestigiosa carreira estão<br />

aqui. Ele trabalhou na sua conhecida diversidade de<br />

estilos de acabamento, mas deu ainda mais atenção<br />

aos detalhes. Tomou cuidados redobrados com a caracterização<br />

dos personagens e inventou layouts de<br />

página totalmente inovadores para a época.<br />

Olhando as histórias é possível dizer que, embora<br />

nunca tenha deixado de ser extremamente cioso de<br />

sua produção para qualquer cliente, neste caso havia<br />

uma dose alta de prazer envolvido. As princesas<br />

retratadas por Nico Rosso nestas revistas estão entre<br />

as mulheres mais bonitas e charmosas que ele desenhou,<br />

isto considerando que, pelo próprio teor das<br />

histórias, não houvesse sequer lugar para um decote<br />

um pouco maior. Quando a história era ainda mais<br />

infantil e os personagens deixavam de ter proporções<br />

humanas, Nico Rosso por vezes nos surpreendeu<br />

com um tratamento de luz e sombra belíssimo e<br />

dramático, sem no entanto abusar das áreas de preto,<br />

o que arruinaria o clima de um conto de fadas.<br />

Um trabalho bastante apurado, do lápis à pena,<br />

na história “Os Músicos de Bremen”, publicada<br />

em Contos de Fadas 32, dezembro de 1958.<br />

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A Raposa e a Cegonha, de Contos de Fadas 43, dezembro de 1959. E a Sapa se Casou, de Contos de Fadas 51, novembro de 1960. Rosa Branca e Rosa Vermelha, de Varinha Mágica 7, setembro de 1958. O Tapete Mágico, de Varinha Mágica 8,novembro de 1958.<br />

A revista Varinha Mágica, com o mesmo conceito de Contos<br />

de Fadas, surge dois anos depois, em 1958, e também vai contar<br />

com muitas colaborações de Nico Rosso. Para ambas ele<br />

desenhou muitas histórias, quase sempre escritas por Milton<br />

Júlio, um escritor muito bom e que também<br />

gostava bastante do tema. Infelizmente,<br />

Milton Júlio, que também era o editor das<br />

revistas, teve uma morte súbita: suicidouse<br />

por conta de um caso amoroso. Tal fato abalou<br />

muito a todos os que o conheciam e se<br />

relacionavam com ele e tocar neste assunto<br />

foi um tabú durante muito tempo. Ele se foi de forma trágica,<br />

mas seu trabalho nesta e em outras revistas da editora são<br />

testemunhas da pessoa bastante positiva que ele devia ser.<br />

São histórias lindamente escritas, cheias de poesia.<br />

Infelizmente, Nico Rosso não chegou a fazer muitas capas<br />

para nenhuma das duas revistas. As capas, ao que parece<br />

quando se olham ambas as coleções, eram um privilégio de<br />

Jayme Cortez e ele muito raramente abria mão de exercê-lo.<br />

Infelizmente também, a La Selva começou a naufragar. Isso<br />

se deu por causa de uma briga em família e acabou com a<br />

editora na década seguinte. Tanto Contos de Fadas quanto<br />

Varinha Mágica ainda seriam publicadas até 1965, mas no<br />

seu final a maioria das histórias eram reprises de material<br />

criado nos anos de ouro da La Selva.<br />

Republicamos a seguir uma das melhores histórias de Nico<br />

Rosso na La Selva, “A Revolta dos Brinquedos”, publicada pela<br />

primeira vez em Contos de Fadas número 78, de julho de 1963.<br />

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A Editora Outubro, nasceu como Continental em 1959.<br />

Sua história tem a ver em grande parte com o sucesso da La Selva,<br />

pois tudo começou com Victor Chiodi, outro gráfico de origem<br />

italiana. Chiodi era dono da Gráfica Novo Mundo e um dos<br />

primeiros a imprimir as revistas para os La Selva, que<br />

não tinham gráfica própria. Vendo o sucesso do<br />

Terror Negro, resolveu publicar alguns títulos também<br />

e o fez com certo sucesso - sem deixar de trabalhar para a<br />

Editora La Selva. Um de seus principais títulos era Noites de Terror.<br />

Sabendo que a qualidade das capas de Jayme Cortez fazia diferença nas vendas<br />

da La Selva, Chiodi recorreu a um artista igualmente talentoso, que lhe foi<br />

apresentado pelo próprio Cortez, de quem era muito amigo: Miguel Penteado.<br />

Penteado era um operário gráfico e gostava muito de desenhar. Tanto que, de<br />

maneira autodidata, acabou por se tornar um bom desenhista. Foi o que chamou a atenção<br />

de Jayme Cortez, recém-chegado ao Brasil. Ele conheceu Penteado nos estúdios da Fotolabor, no centro de<br />

São Paulo, onde este operava uma pequena impressora Multilith. Com o tempo, as dicas e o incentivo de<br />

Cortez, acabou por se profissionalizar como ilustrador, trabalhando para várias editoras, inclusive a Novo<br />

Mundo. Em certa ocasião, Penteado queixou-se a Chiodi da bagunça que era sua gráfica e este respondeu<br />

desafiando-o a ir trabalhar lá para arrumar tudo. Foi exatamente isso o que ele fez, saneando inclusive a<br />

parte financeira da casa, fazendo com que o negócio prosperasse. Tempos depois, resolveu que queria voltar<br />

a trabalhar com desenho ao invés de ser gerente de gráfica e Chiodi<br />

acabou por lhe dar sociedade no negócio para impedir que saísse.<br />

A La Selva por sua vez, na segunda metade dos anos 50 já tinha se<br />

tornado a maior editora de São Paulo. Não a maior editora de quadrinhos,<br />

veja bem, a maior editora mesmo, vendendo um milhão<br />

de revistas por mês com cerca de 30 títulos em circulação. Eles imprimiam<br />

tudo em várias gráficas, não apenas a Novo Mundo, sendo<br />

que a principal prestadora de serviços ao longo dos anos tinha se<br />

tornado a S.A.I.B. (Sociedade Anônima Impressora Brasileira) de<br />

Victor Civita, dono também da Editora Abril, na época bem menor do que a La Selva. Bem, em 1958, alegando<br />

“acúmulo de serviços atrasados” a S.A.I.B. avisou aos La Selva que não ia mais imprimir suas revistas.<br />

Era um problema que precisavam resolver rapidamente e eles o fizeram comprando (e logo ampliando) a<br />

Novo Mundo, absorvendo inclusive boa parte de seus títulos.<br />

Chiodi saiu, mas os La Selva insistiram em manter Penteado à frente da gráfica, com um bom salário. Além<br />

do dinheiro, Penteado topou porque tinha simpatia pelos La Selva e era muito amigo de Jayme Cortez, que<br />

continuava sendo a maior força criativa da editora.<br />

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Como bons homens de negócio, os La Selva há muito<br />

haviam percebido que era bem mais barato comprar histórias<br />

importadas do que produzi-las aqui. Sua insistência em fazer<br />

isso cada vez mais começou a deixar Jayme Cortez bastante<br />

descontente. Afinal, ao longo dos anos ele havia conseguido<br />

um grande espaço para os desenhistas nacionais na La Selva.<br />

Victor Chiodi, por sua vez, planejava voltar ao ramo e<br />

começou a conversar com outros três empresários do setor<br />

gráfico (José Sidekerskis, Arthur de Oliveira e Heli Otávio de Moura Lacerda), além<br />

de se manter em contato com Miguel Penteado e este por sua vez com Cortez.<br />

Todo esse movimento culminou quando os cinco se juntaram a Cláudio de Souza<br />

(que trabalhava na Abril mas tinha passado pela La Selva) e abriram a Editora Continental, na Rua da<br />

Mooca, em 1959. Sem que soubessem, já havia uma editora com esse nome, com problemas na justiça.<br />

Cobradores começaram a aparecer. Então, cerca de dois anos depois, com certeza por conta da militância<br />

comunista de Penteado (que era membro do PCB), mudaram o nome para Editora Outubro. Nova encrenca,<br />

pois Victor Civita, da Abril, tinha registrado o nome de todos os meses do ano para ninguém plagiar a<br />

sua editora e os advertiu judicialmente. Eles se recusaram a ceder e começou uma pendenga judicial entre<br />

as duas editoras. Desde o começo levantando alto a bandeira dos quadrinhos nacionais, a Editora Continental/Outubro<br />

atraiu os maiores talentos dos quadrinhos na época, muitos dos quais já trabalhavam<br />

para Jayme Cortez na La Selva, como Nico Rosso, que aparece em duas fotos com todos os colaboradores<br />

da casa ao lado do filho Gianluigi, que também iria publicar quadrinhos na casa, assinando ora como Luiz<br />

Rosso ora como João Rosso. Qual seria a razão disso?<br />

Nesta página, foto tirada no<br />

dia da inauguracão da Editora<br />

Continental, em seus<br />

escritórios. Nela aparecem,<br />

da esquerda para a direita,<br />

Jayme Cortez, Miguel<br />

Penteado, Nico Rosso, Gianluigi<br />

Rosso, José Sidekerskis,<br />

Ignácio Justo, Júlio Shimamoto,<br />

Jorge Kato, Aylton Thomaz,<br />

Gedeone Malagola, João Batista<br />

Queiróz, Álvaro de Moya,<br />

Guilherme Walpeteris e Zezo.<br />

Na página ao lado, anúncio<br />

publicado em várias revistas<br />

da editora, com um<br />

manifesto em favor dos<br />

quadrinhos nacionais.<br />

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O Anjo da Guarda e<br />

Pedrinho, Tico e Alice.<br />

O filho de Gianluigi, Luiz Roberto Rosso, hoje também ilustrador, imagina que<br />

o pai não usou o nome italiano por conta do nacionalismo da editora, que estampava<br />

em todas as capas uma frase afirmando que aquelas revistas eram totalmente produzidas<br />

no Brasil por artistas brasileiros. Pode ser verdade que a editora preferisse assim,<br />

afinal Giorgio Scudellari também teve seu primeiro nome traduzido para Jorge.<br />

Mas os estrangeiros estavam lá, começando por Jayme Cortez. De toda forma,<br />

Gianluigi Rosso publicou algumas histórias de terror na editora mas trocou os quadrinhos<br />

pela química industrial logo depois. Do ponto de vista artístico foi uma pena, pois apesar de uma<br />

inegável influência de Nico Rosso, ele desenhava muito bem. Melhor inclusive do que boa parte de<br />

seus contemporâneos, especialmente no que diz respeito à figuras femininas.<br />

Desenhos de Gianluigi Rosso<br />

Nico Rosso trabalhou em todos os gêneros que a editora<br />

publicava, com exceção apenas dos super-heróis, como o<br />

Capitão 7. Mas seus primeiros publicados na nova editora<br />

não foram histórias de terror. Ao contrário do que muitos<br />

pensam, foram histórias infantis para as revistas Fantasia e<br />

Contos Mágicos, concorrentes diretas de Contos de Fadas e<br />

Varinha Mágica. Para estas revistas Nico voltou a desenhar<br />

histórias de fadas, como “O Califa e a Cegonha”. Além disso<br />

criou duas novas séries, O Anjo da Guarda, sobre as trapalhadas<br />

de um anjinho com o menino de quem ele é guardião<br />

e as aventuras de Pedrinho, Tico e Alice, três crianças sapecas.<br />

Seu estilo nestas histórias é bastante elaborado, com<br />

um tratamento gráfico muito bonito, tal e qual o que ele usava<br />

nas revistas da La Selva. E as histórias eram muito boas,<br />

mesmo sem contar com os roteiros de Milton Júlio.<br />

Cabe aqui notar que os roteiros<br />

de todas as histórias da editora<br />

na sua fase inicial ou eram feitos<br />

pelos próprios desenhistas<br />

ou eram responsabilidade de<br />

Cláudio de Souza (que era um<br />

dos sócios), Waldir Wey ou Hélio<br />

Porto, este último provavelmente<br />

o mais prolífico, mas de<br />

quem pouco se sabe. Um pouco depois dessa época, uma nova roteirista começa sua carreira: Helena Fonseca.<br />

Ela e Nico Rosso formarão uma grande dupla, mas não nestes primeiros tempos. Outro roteirista famoso que<br />

trabalhava para a Continental/Outubro era Gedeone Malagola, mas ele preferia entregar suas histórias já<br />

desenhadas, embora esse não fosse seu forte.<br />

Antes do terror, Nico Rosso ainda passa pelos cowboys da casa, nenhum criado por ele. Desenhou O Vingador,<br />

um mascarado tipo Lone Ranger, Dakota Jim, um mestiço que vive aventuras<br />

pulando de cidade em cidade e o Pistoleiro Fantasma, um personagem calcado<br />

obviamente no Ghost Rider da Timely Comics. Aos poucos começou a produzir<br />

histórias de terror, com 4 ou 5 páginas em média, para os títulos de terror da<br />

Outubro: Seleções de terror, Histórias Macabras, Histórias Sinistras, Histórias do<br />

Além e Clássicos de Terror. Para o número 5 desta última produz com desenhos<br />

lindíssimos uma adaptação de<br />

Fausto, de Goethe. É sua primeira<br />

história mais longa do gênero<br />

terror, com 14 páginas.<br />

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Não muito tempo depois, Jayme Cortez lhe ofereceu<br />

a chance de fazer a série de terror de maior sucesso<br />

da casa: Drácula, publicada em Seleções de Terror<br />

todos os meses. A série já havia sido desenhada por<br />

Giorgio Scudellari, Aylthon Thomas e Ignácio Justo,<br />

este último amigo pessoal de Rosso - que o indicara<br />

a Jayme Cortez. Uma das melhores histórias que<br />

Rosso desenhou é também a que redefine a série, que<br />

até então não se preocupava muito com continuidade.<br />

Nesta história, que é levemente “amarrada”<br />

nos filmes de Drácula da Hammer Films com<br />

Christopher Lee, como “O Vampiro da Noite”<br />

e o “Príncipe das Trevas”, vemos como Drácula se tornou um vampiro e<br />

como foi ressuscitado em nossos dias. Também ficamos sabendo porque<br />

passou a ser perseguido pelo detetive Fred Jackson. A partir desta história,<br />

Nico Rosso passou a ter para sempre seu nome ligado ao personagem<br />

do qual se tornou o principal desenhista, embora não o único.<br />

Nós a republicamos na integra a seguir, mas antes é melhor falar do final<br />

da Continental/Outubro e de sua transformação em Taíka.<br />

Houve vários motivos. A princípio, várias desavenças entre os sócios,<br />

em grande parte relacionada com a complicada situação econômica do<br />

país naquele tempo, que diminuiu a venda dos quadrinhos em geral.<br />

Houve também todo o desgaste com o movimento pela nacionalização<br />

dos quadrinhos, liderado por diversos desenhistas ligados à editora, que<br />

redundou num Código de Ética impossível de seguir para quem editava<br />

terror. Mas o mais grave de todos foi uma briga entre Jayme Cortez e<br />

Miguel Penteado, que fez com que o primeiro deixasse a editora. Nem<br />

mesmo quem era próximo sabe a razão desta briga, mas ela foi grave,<br />

pois os dois nunca mais se falaram.<br />

Algum tempo depois, desgostoso com os rumos do negócio, Miguel<br />

Penteado decidiu vender também sua parte e deixar a casa. Era o fim<br />

da editora tal como havia sido concebida, mas ela ainda ganharia uma<br />

sobrevida com a entrada de um outro sócio, Manoel César Cassoli. Ele<br />

entrou no lugar de José Sidekerskis que também havia deixado a sociedade<br />

algum tempo depois de Penteado. Para culminar, eles perderam a<br />

ação contra a Abril e embora ainda pudessem recorrer, resolveram que<br />

era mais fácil mudar o nome da editora.<br />

Decidiram chamá-la de Taíka, que<br />

era o apelido da filha de Heli Otávio<br />

de Moura Lacerda. Saiu das capas o<br />

escorpião da Outubro e entrou o alvo<br />

amarelo e preto, símbolo da editora<br />

que continuou a publicar exatamente<br />

os mesmos títulos da Outubro, com<br />

muitas reprises é verdade, mas também<br />

com muito material inédito, como<br />

veremos adiante, em outro capítulo.<br />

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A Escola<br />

Panamericana<br />

de Arte e<br />

sua origem.<br />

Principalmente por causa de seu clima agradável e da proximidade<br />

com Nova York, a cidade litorânea de Westport,<br />

Connecticut, nos Estados Unidos é desde o começo do<br />

século XX famosa por abrigar as casas e ateliês de diversos<br />

artistas. Num belo dia de 1948, dois dos mais famosos, os<br />

ilustradores Al Dorne e Norman Rockwell, se encontraram<br />

para um café. Ao final do bate-papo, tinham tido a ideia de<br />

fundar um curso de ilustração por correspondência. Nascia<br />

a Famous Artists School, que funcionava assim: durante<br />

24 meses o aluno recebia em casa uma apostila com instruções<br />

e um exercício, que ele enviava pelo correio e<br />

que seria corrigido e comentado por um artista e então<br />

devolvido ao aluno. Podia-se optar por uma das três modalidades:<br />

pintura, ilustração ou quadrinhos.<br />

O sucesso de um curso assim, obviamente, dependia muito<br />

de quem fazia as apostilas e da qualidade dos comentários.<br />

Para que desse certo, Dorne e Rockwell recrutaram a nata<br />

dos ilustradores e cartunistas de Westport: Austin Briggs,<br />

Stevan Dohanos, Robert Fawcett, Peter Helck, Fred Ludekens,<br />

Al Parker, Ben Sthal, Harold Von Schmidt, Jon Whitcomb, Al<br />

Capp, Milton Caniff e Rube Goldberg, além deles próprios.<br />

Com um verdadeiro dream-team de professores como esse,<br />

o curso logo se tornou um imenso sucesso e existe até hoje.<br />

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Em 1951 um pintor argentino chamado Enrique Lipszyc tentou, sem muito sucesso, montar uma escola<br />

de arte, a Escuela Norteamericana de Arte, que anunciava um método baseado no desenho de<br />

Alex Raymond (?!), criador de Flash Gordon.<br />

Algum tempo depois, Lipszyc, grande fã de ilustração e quadrinhos, lançou um livro que ficaria<br />

muito famoso em seu país intitulado “El Dibujo a Través del Temperamento de 150 famosos artistas”.<br />

Com o sucesso obtido por seu livro, resolveu colocar em prática na Argentina a mesma ideia de<br />

Rockwell e Dorne e reuniu um grande time de famosos artistas que seriam os primeiros professores<br />

da Escuela Panamericana de Arte: Enrique Vieytes, Daniel Haupt, Angel Borisoff, Alberto Breccia,<br />

o brasileiro João Mottini, o italiano Hugo Pratt, Pablo Pereyra, Carlos Garaycochea, Carlos Roume,<br />

Luiz Dominguez, Narciso Bayon e o espanhol Carlos Freixas. O ano era 1955.<br />

As diferenças com o curso da Famous Artists School não eram muitas. A principal é que eram apenas<br />

12 meses de curso por correspondência. A ideia de uma escola assim teve na Argentina o mesmo<br />

sucesso que nos Estados Unidos, ajudando a formar uma nova geração de grandes artistas argentinos.<br />

Tudo ia bem até o início da década de 1960, quando uma grande crise de mercado fez com que<br />

diversas editoras tivessem que fechar as portas e muitos desenhistas tivessem que ir buscar trabalho<br />

em outros países. Esse foi o caso de José Delbó, Rodolfo Zalla e Eugênio Colonesse, que vieram<br />

para o Brasil. Com a crise, o número de interessados em cursar a escola caiu muito, e Lipszyc resolveu<br />

também tentar a sorte no mercado brasileiro.<br />

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Em 7 de abril de 1963, a Escola Panamericana de Arte abriu suas portas em São Paulo, com<br />

anúncios em diversas revistas em quadrinhos. Os anúncios também tinham forma de quadrinhos,<br />

desenhados por Luis Dominguez, Enrique Vieytes e Hugo Pratt e já tinham saído na<br />

Argentina. No começo Lipszyc tentou aqui também o esquema de aulas pelo correio, mas<br />

logo percebeu que isso não iria ser um grande sucesso e pouco tempo depois, nos anúncios<br />

já aparecia um adendo que dizia: “Atenção, aulas em classe, matrículas abertas”.<br />

Para lançar a escola aqui em São Paulo, sua primeira sede era na Rua Augusta, número 59,<br />

Lipszyc importou da Argentina Enrique Vieytes e Hugo Pratt, que moraram em São Paulo cerca<br />

um ano. E claro, logo ele contatou também aqui, vários famosos artistas, como os pintores<br />

Danilo Di Prete e Aldemir Martins e os ilustradores e quadrinistas José Luiz Benício, Jayme<br />

Cortez, Flávio Colin, Getúlio Delphin, Manoel Victor Filho, João Gargiulli, Olavo Pereira,<br />

Ivan Wasth Rodrigues e Ziraldo.<br />

Luiz Dominguez<br />

Enrique Vieytes<br />

Hugo Pratt<br />

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Algum tempo depois de lançada a escola, houve<br />

baixas nesta equipe, saindo primeiro Di Prete<br />

e Martins, os pintores. Quase a metade dos<br />

demais professores morava no Rio de Janeiro e<br />

quando a escola abandonou o esquema de cursos<br />

por correspondência, houve outras baixas.<br />

Foi então que entraram alguns professores que<br />

não constavam do corpo docente inicialmente<br />

anunciado. Eles passaram a lecionar na Panamericana<br />

durante os anos seguintes e apareceram<br />

num dos primeiros folhetos promocionais<br />

da escola. Nico Rosso foi um destes, ele começou<br />

na escola cerca de um ano após sua abertura<br />

e trabalhou lá até o dia em que teve um AVC<br />

muitos anos depois.<br />

Muita gente que seguiu carreira no mundo da<br />

ilustração, quadrinhos e publicidade passou<br />

pelas aulas de Nico Rosso, já que ele dava uma<br />

matéria essencial, Desenho Básico, no primeiro<br />

ano da escola (ao abandonar o formato de aulas<br />

por correspondência, o curso passou a ter a<br />

duração de dois anos). Foi lecionando esta matéria<br />

que Nico Rosso descobriu alguns jovens<br />

talentos como Josmar Fevereiro, Wanderley<br />

Magro e Kazuhiko Yoshikawa, que se tornaram<br />

seus assistentes. Este último foi o que mais tempo<br />

ficou trabalhando com ele, até pouco tempo<br />

antes do AVC. Hoje, os assistentes de Nico Rosso<br />

são respeitados ilustradores. Alguns deles<br />

continuaram nos quadrinhos, outros migraram<br />

para a ilustração editorial ou para a publicidade.<br />

Todos, sem dúvida, carregam em si muita<br />

gratidão pelos ensinamentos, não só na escola,<br />

mas no dia-a-dia de um estúdio.<br />

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Quando e em que circunstâncias<br />

você conheceu Nico Rosso?<br />

Conheci Nico Rosso em 1964, ao ingressar na Escola<br />

Panamericana de Arte. Eu tinha 14 anos na época, e ele foi o<br />

primeiro mestre que tive no curso. Eram os seis meses iniciais, em que se<br />

estudava desenho básico. No segundo semestre mudava o professor, e as aulas<br />

eram de técnicas de nanquim com pena, pincel e aguada.<br />

Como veio a ser assistente dele? Quanto tempo você passou na função?<br />

As aulas do Nico sempre começavam com uma preleção sobre o tema do dia. Iluminação, proporções,<br />

perspectiva, etc. Cada aula tinha um tema específico e o modelo colocado na nossa frente era relativo ao<br />

tema. Enquanto copiávamos o modelo (fotos, esculturas ou objetos), tentando resolver os problemas<br />

propostos, o professor ia sentar-se no fundo da sala para desenhar páginas e páginas das suas histórias.<br />

Eu, que era fascinado pela rapidez e maestria com que esboçava os quadrinhos, procurava me safar o<br />

mais rapidamente possível da tarefa curricular, para ir sentar ao seu lado e absorver ao máximo a<br />

verdadeira aula que era vê-lo trabalhar. Certo dia, ele virou-se bruscamente para mim e perguntou:<br />

“Você não quer me ajudar na arte final pintando as áreas chapadas?”. Era tudo o que eu queria, mas<br />

nem ousava admitir. Fiquei meio sem saber o que dizer, gaguejei alguma coisa, ele riu e tirou da<br />

sua pasta umas dez páginas de terror, se não me engano para a revista “Estórias Negras”, que<br />

estavam semi-finalizadas à nanquim e com as áreas que seriam chapadas, marcadas com um “X”.<br />

Deu-me as páginas e pediu que as touxesse prontas na próxima aula. Virei seu fazedor de<br />

chapados pelo resto do ano, mesmo quando mudei de professor. No final do ano letivo o Nico<br />

me convidou para trabalhar como seu assistente na Equipe Nico Rosso que era, naquele<br />

momento, informalmente fundada. Trabalhei com ele até o final de 1967, quando fui<br />

admitido na primeira agência<br />

de publicidade como assistente<br />

de direção de arte.<br />

Além de você, outro famoso<br />

assistente do Nico foi o<br />

Kazuhiko Yoshikawa,<br />

você o conheceu?<br />

O Kazuhiko entrou para a<br />

Equipe algum tempo depois<br />

que eu saí. Não cheguei a<br />

conhecê-lo pessoalmente na<br />

época, pois as visitas que eu<br />

fazia ao Nico eram<br />

sempre depois do expediente na agência.<br />

Ele colaborou com o Nico por muito mais tempo<br />

do que eu. Depois mudou-se para o Japão,<br />

onde morou por vários anos.<br />

Agora vive em São Bernardo do Campo,<br />

onde tive a oportunidade e o prazer de<br />

visitá-lo uma vez, juntamente com<br />

Luiz Rosso e Claudio Rosso, netos<br />

do Nico. Ele faz ilustrações de livros<br />

didáticos para várias editoras e<br />

pesca nas horas vagas.<br />

Exatamente qual era o processo de<br />

trabalho de que você participava?<br />

Era um sistema de estúdio, onde<br />

cada um tinha uma tarefa específica,<br />

ou era variado?<br />

Nos primeiros meses dessa fase de<br />

assistente, só eu trabalhava com ele e ia ao seu<br />

estúdio duas vezes por semana para entregar e receber novas páginas, instruções e, quando<br />

tinha tempo disponível, vê-lo trabalhar ou sentar-me num canto e folhear as centenas de revistas de<br />

quadrinhos, nacionais e estrangeiras, que ele<br />

tinha na estante. No quase um ano em que fiz os<br />

chapados, consegui uma razoável cumplicidade com o<br />

pincel e o Nico passou a deixar boa parte dos cenários para que eu finalizasse.<br />

E esse processo de concessão continuou até o final da minha participação na Equipe,<br />

quando eu já fazia alguns roteiros, desenhava a lápis, ele corrigia os<br />

deslizes, eu finalizava tudo e o meu pai fazia os balões e letras.<br />

Eu era remunerado por produção. Todos os colegas que<br />

passaram pela Equipe trabalharam mais ou menos<br />

no mesmo esquema, sendo que alguns<br />

cumpriram expediente no estúdio<br />

Ilustrações de<br />

Jô Fevereiro<br />

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e não sei se recebiam fixo ou por produção. Houve um período de<br />

mais ou menos um ano, por volta de 1966, em que o Nico resolveu<br />

fazer os originais em acetato. Ele comprava rolos de um acetato que<br />

era liso de um lado, e áspero do outro. Desenhava a lápis na superfície<br />

áspera, para depois finalizar com Abdec (tinta para retoque de<br />

fotolitos). Isso com o intuito de poder cobrar das editoras o que<br />

economizariam com os fotolitos, para nos remunerar um pouco mais.<br />

O drama dessa história é que ele fazia apenas as figuras e detalhes<br />

mais delicados a pincel, sobre a prancheta, sem caixa de luz.<br />

Nós levávamos as páginas para finalizar o resto em caixa de luz, mas<br />

as pinceladas dele ficavam quase todas transparentes e tínhamos de<br />

retocá-las, o que fazia os traços engrossarem e perderem a leveza<br />

e espontaneidade. Como se não bastasse essa carga de culpa que<br />

acumulávamos, éramos obrigados a misturar o Abdec com sabão para<br />

que aderisse no acetato engordurado pelo grafite e pelas mãos que<br />

manipulavam as páginas. Mesmo assim, muitas vezes a tinta depois de<br />

seca trincava e soltava pedaços no processo de gravação de chapa.<br />

Para todos os leitores do Nico que estranharam páginas com arte final<br />

grosseira, e até com áreas “esfoladas”, está aí a explicação. Felizmente, depois de muita reclamação<br />

nossa, voltamos a trabalhar em papel, com o velho e bom nanquim, para alívio dos nossos olhos e dos leitores.<br />

Ficamos todos felizes, mesmo com redução nos proventos.<br />

Nico Rosso era famoso por ser extremamente rápido, o que explica a quantidade imensa de<br />

trabalhos que ele fazia, dizem que ele raramente usava o lapis, é verdade?<br />

Ele costumava usar um estilo de traço a caneta para ilustrações soltas, em que não havia esboço e o<br />

desenho fluia praticamente em um só traço contínuo. O efeito era bem expressionista. Essa história de<br />

usar raramente o lápis, deve ser uma lenda surgida a partir dessas ilustrações. Afinal ele lecionava<br />

desenho a lápis na Panamericana e, pelo menos nos quadrinhos, capas e outras ilustrações editoriais,<br />

a base era sempre o lápis que manipulava com uma velocidade espantosa.<br />

Nico Rosso aparece em quase todas as fotos de grupos de artistas de quadrinhos dos anos 60,<br />

ele era bastante sociável, portanto. Você se lembra com quem ele mais se relacionava? Como era<br />

a relação dele com os roteiristas? Gedeone? Lucchetti? Helena Fonseca?<br />

Uma forte característica do Nico era a velocidade. Além do trabalho, ele era muito ágil nos movimentos e,<br />

tanto na Panamericana, como em sua casa,<br />

na rua, ou nos eventos dos quais participava,<br />

e que fui testemunha de alguns,<br />

zanzava de um lado para o outro feito um<br />

corisco. Não dá para dizer que, apesar da<br />

enorme produção, teve uma vida sedentária.<br />

Ele adorava conversar e mantinha<br />

contato telefônico, ou pessoal, constante<br />

com as editoras e com os autores, para<br />

discutir roteiros e prazos. Na escola conversava<br />

muito com os colegas professores,<br />

alunos, e no seu estúdio com a esposa<br />

dona Tina, em italiano, enquanto trabalhava<br />

incansavelmente na prancheta.<br />

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Gostava de me contar casos e histórias dos seus colegas e<br />

eventuais parceiros como Ignácio Justo, Jorge Scudellari, Eugênio<br />

Colonnese, Rodolfo Zalla, Jayme Cortez, Gedeone Malagola, Júlio<br />

Shimamoto, Getúlio Delphin, Sérgio Lima, Lyrio Aragão, etc...<br />

Lembro que ele tinha especial predileção por Antonio Martin,<br />

roteirista da bruxa Lucivalda e do pai-de-santo Nicolau Praxedes.<br />

Desenhava as histórias da Terrir com um sorriso permanente<br />

estampado no rosto.<br />

Nico Rosso desenhava bem de tudo, do terror ao infantil, mas<br />

parece que ele desenhou poucas histórias de guerra, não?<br />

Eu trabalhei e convivi com muitos e ótimos desenhistas mas, de<br />

todos, o que tinha melhor memória visual era o Nico. Ele teve uma<br />

formação muito sólida em Turim e sabia tudo sobre vestimentas<br />

de todas as épocas, estilos arquitetônicos, objetos, máquinas, ambientes,<br />

paisagens das diferentes regiões do planeta, etc... Poucas<br />

vezes o vi atrás de alguma referência. Estranho saber que há<br />

quem ignore ou não reconheça o sua produção em outros gêneros,<br />

pois testemunhei e colaborei com ele em histórias de faroeste<br />

para as revistas “Pistoleiro Fantasma” e “O Mestiço” que, apesar<br />

do ambiente inusitado, carregam a sua inegável marca. Dizer que ele nunca desenhou histórias de guerra<br />

é uma injustiça com as sua participação admiravel na revista “Combate”, da editora Taika, onde, além do<br />

Nico, colaboravam Eugênio Colonnese, Rodolfo Zalla, etc... e eu que colaborei com ele em quase todas, e<br />

também publiquei a minha primeira história autoral com roteiro, desenhos e finalização. Nesse gênero era<br />

impressionante vê-lo desenhar detalhes de uniformes, armas, tanques-de-guerra por fora e por dentro,<br />

tanto americanos quanto alemães, com uma precisão incrível, em cenários verossímeis, totalmente de<br />

memória. Ele viveu no cenário da Segunda Guerra e captou tudo isso ao vivo e a cores.<br />

Tem alguma história do seu tempo com o Nico Rosso que você gostaria de compartilhar?<br />

Tenho uma história pessoal, que foi decisiva para o meu futuro, e mostra muito o caráter do velho mestre...<br />

Em uma das tardes que fui à sua casa entregar as páginas prontas, ele veio abrir o portão com uma expressão<br />

séria, dizendo que precisávamos ter uma conversa. Logo imaginei que tivesse cometido algum absurdo<br />

na leva anterior, ou algo parecido. Entramos em silêncio, ele me encaminhou para a sala e disse-me que<br />

a minha mãe estivera lá de manhã cedo. Tinha ido para perguntar-lhe se valia a pena eu continuar<br />

investindo no desenho, porque o meu pai trabalhava com isso e o que ganhava era pouco para as despesas<br />

da nossa família. Disse também que gostaria que eu fosse trabalhar em um banco, ou alguma outra área<br />

que me garantisse um futuro melhor. Descarregadas todas as lamúrias,<br />

ele respondeu-lhe que entendia a sua situação mas, se estivesse verdadeiramente<br />

interessada na minha felicidade, que deixasse eu seguir a<br />

minha vida em paz, que eu gostava muito do que fazia, era interessado<br />

em aprender cada vez mais, e estava progredindo bastante no meu trabalho.<br />

E, principalmente, que eu queria evoluir, diferentemente do meu<br />

pai que, por uma série de razões, inclusive de saúde, vivia numa redoma<br />

e o Nico sabia disso pois o conhecia muito bem. À noite tive uma bela<br />

discussão com minha mãe, prometendo a ela e a mim mesmo que nunca<br />

deixaria de seguir o meu caminho. Sou muito grato a ele por ter cortado<br />

definitivamente o meu cordão umbilical. E, algum tempo depois, quando<br />

lhe falei que havia uma oportunidade de emprego para mim em uma<br />

agência, disse-me que tinha o maior orgulho em saber disso, que fosse<br />

adiante sempre. Estou indo até hoje.<br />

Da coleção de Gilberto Marchi.<br />

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A GEP | Algum tempo depois de deixar a Outubro,<br />

Miguel Penteado fundou a GEP (Gráfica<br />

Editora Penteado) em 1965. Sua primeira publicação<br />

foi uma revista de piadas e pin-ups,<br />

Salão de Barbeiro. Logo ele se tornou um dos<br />

mais importantes editores de quadrinhos<br />

nacionais da época, lançando Lobisomem,<br />

Múmia, Frankenstein, Superargo, Raio Negro,<br />

Fantar, Estórias Negras, Diário de Guerra,<br />

Histórias Caipiras de Assombração, Esporas<br />

de Ouro e várias outras, publicando trabalhos<br />

de Gedeone Malagola, Sérgio Lima, Rodolfo<br />

Zalla, Rubens Cordeiro, Edmundo Rodrigues,<br />

Eugênio Colonesse, entre outros. A GEP publicou<br />

também, pela primeira vez no Brasil, alguns<br />

personagens da Marvel: X-men, Capitão<br />

Marvel e Surfista Prateado, que a EBAL não<br />

quis publicar na época e que lhe foram oferecidos<br />

por baixo preço. Apesar de conhecer<br />

Penteado há bastante tempo, desde a La Selva,<br />

Nico Rosso trabalhou muito pouco para a GEP,<br />

talvez para não se indispor com o pessoal da<br />

Taíka, de quem Penteado era desafeto. De toda<br />

forma, fez algumas capas importantes, entre<br />

elas a do número 1 de uma das principais revistas<br />

da casa, Lobisomem, de Gedeone e Sérgio<br />

Lima, que ele viria a desenhar alguns anos<br />

depois para outro editor.<br />

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José Mojica Marins era, para usar um termo<br />

da época, uma “coqueluche” nos anos 60.<br />

A partir de seu primeiro filme como Zé do<br />

Caixão, de 1963, virou um favorito da<br />

crítica e do público e lotava todas as seções<br />

das salas de cinema que exibiam seus filmes.<br />

Em 1967, ganhou um programa na recém-inaugurada<br />

TV Bandeirantes, “Além, muito além do<br />

além”, que fez enorme sucesso mesmo passando<br />

bem tarde da noite.<br />

Um dos roteiristas que trabalhavam para<br />

Mojica na época era R. F. Lucchetti, que já<br />

tinha feito “A Cripta” na Taíka com Rosso.<br />

Vendo o sucesso de Zé do Caixão, resolveu<br />

propor a Mojica uma revista de<br />

histórias em quadrinhos com o<br />

personagem. Mojica era um<br />

grande fã de quadrinhos,<br />

que colecionava desde<br />

seus tempos de garoto,<br />

e ficou muitíssimo entusiasmado<br />

com a ideia.<br />

Lucchetti acertou a publicação da revista com a Editora Prelúdio, que não<br />

publicava tradicionalmente quadrinhos. Sua principal revista era Melodias,<br />

que tratava do mundo da música, tv e rádio. Mas eles tinham começado há<br />

pouco uma pequena linha de publicações na área com o macaco Simãozinho<br />

e o faroeste caboclo, oriundo do rádio, Juvêncio, o justiceiro.<br />

Tudo acertado, Lucchetti resolveu convidar seu parceiro favorito, Nico Rosso,<br />

a quem admirava, para desenhar a revista. Foram feitas histórias onde o<br />

Zé do Caixão era apenas o narrador e, de uma forma inovadora para a época,<br />

não aparecia desenhado nas histórias e sim em fotografias. Foi produzida<br />

também uma história em fotonovela, um formato bastante em voga na época, de gosto duvidoso, com<br />

atores e atrizes dos filmes de Mojica. Nico Rosso preparou uma bela capa usando uma colagem fotográfica<br />

complementada por uma ilustração a guache e assim, em janeiro de 1969, o primeiro número da<br />

revista O Estranho Mundo de Zé do Caixão chegou às bancas. Era impressa num papel de boa gramatura<br />

em tamanho grande. O preço aliás, também era grande, em média três vezes o preço de uma revista<br />

comum. Detalhe: a publicação chegava<br />

lacrada em sacos plásticos às bancas<br />

e era proibida para menores de 21<br />

anos, provavelmente um caso único na<br />

história da censura brasileira.<br />

O próprio Mojica se encarregou de<br />

promover a revista na televisão e em<br />

apenas duas semanas os quinze mil<br />

exemplares haviam se esgotado.<br />

O número dois vendeu o dobro, o três<br />

vendeu trinta e dois mil exemplares e<br />

o quarto trinta e cinco mil. A revista<br />

estava abafando, como diria Erasmo<br />

Carlos. Mas graças à famosa inconsequência<br />

de Mojica, tudo acabou nos<br />

meses seguintes.<br />

Em seu ótimo livro sobre Zé do Caixão<br />

(Maldito), André Barcinski e Ivan<br />

Finotti dão a entender que Mojica<br />

havia sido procurado por editores<br />

inescrupulosos que lhe fizeram uma<br />

proposta para que saísse da Prelúdio,<br />

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mas não foi bem assim. Ele é que se queixou publicamente do acordo que havia feito com a editora<br />

e de que estaria recebendo muito pouco pela revista. Disse também que não tinha qualquer contrato com<br />

a Prelúdio e que os direitos eram totalmente dele e que tinha inclusive em mãos uma história prontinha<br />

escrita por Lucchetti e desenhada por Nico Rosso. Essa última afirmação era verdadeira.<br />

Reinaldo de Oliveira enxergou aí uma grande oportunidade comercial e resolveu propor a Mojica uma<br />

porcentagem maior sobre a venda. Foi constituída a Editora Dorkas que lançou o número cinco da revista<br />

em junho de 1969 e em seu expediente consta a frase “publicada em convênio com José Mojica Marins”.<br />

Um sexto número saiu logo em seguida, com roteiros de Lucchetti creditados indevidamente ao próprio<br />

José Mojica Marins e desenhos de Rodolfo Zalla. Lucchetti, compreensivelmente desgostoso, rompeu com<br />

Mojica na época, mas reatou sua amizade com ele algum tempo depois. Nem Lucchetti, nem Rosso foram<br />

pagos pelo trabalho. Encaixaram o golpe e partiram para outras empreitadas. A revista na Dorkas não teve<br />

o mesmo sucesso que na Prelúdio, mas isso não teve a ver com a mudança de equipe, como consta no livro<br />

sobre Mojica. O período de tempo foi muito curto e provávelmente a imensa maioria dos leitores sequer percebeu<br />

a mudança de editor, mesmo a revista da Dorkas sendo um pouco menor. O problema é que depois de<br />

seis meses, nem a revista nem Zé do Caixão eram mais novidade. E então Mojica fez das suas de novo: procurou<br />

a Prelúdio e propôs que eles voltassem a publicar sua revista. E sabe o que eles fizeram? Toparam. Só que<br />

o título havia sido registrado pela Dorkas e a Prelúdio teve que mudar o nome da revista para Zé do Caixão<br />

no Mundo do Terror, novamente com histórias de Lucchetti e Rosso, que durou apenas mais dois números.<br />

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EDREL | Muito mais pelos temas do que publicava<br />

do que pela qualidade das histórias e dos desenhos,<br />

a EDREL (Editora De Revistas e Livros),<br />

fundada por Minami Keizi, Jinki Yamamoto e Salvador<br />

Bentivegna, ganhou uma inesperada estatura<br />

entre o final dos anos 60 e o começo dos 70.<br />

Foi uma editora cheia de jovens talentos que ainda<br />

eram quase amadores na época, e que transitou<br />

por diversos géneros, do Super-herói ao Terror.<br />

A principal bandeira da editora era o foco em “histórias<br />

adultas” e isso significava sexo, drogas,<br />

enfoques diferenciados que fugissem ao lugar comum<br />

de qualquer gênero. Isso e mais um pézinho<br />

no estilo mangá, até então inédito por aqui fora da<br />

colônia japonesa, fez com que a editora decolasse.<br />

Nico Rosso e R. F. Lucchetti fizeram algumas histórias<br />

de terror para Minami Keizi e elas tem um<br />

layout bem moderno, farto uso de distorções e a<br />

tal temática adulta, psicológica. Mas as histórias<br />

da dupla são claramente diferentes de todo o material<br />

que compõe as revistas da EDREL.<br />

É impossível não notar que Rosso e Lucchetti eram<br />

os únicos profissionais de verdade ali, em que pesem<br />

os talentos não refinados que havia em volta<br />

deles e que só iriam realmente se profissionalizar<br />

nos anos seguintes. A EDREL não duraria muito,<br />

derrotada por divergências entre os sócios e problemas<br />

graves com a censura do regime militar,<br />

mas Nico Rosso voltaria a trabalhar para Minami<br />

Keizi algum tempo depois, dessa vez desenhando<br />

alguns de seus melhores trabalhos.<br />

112 | <strong>MeMo</strong>1 História publicada em Terror Especial, sem número, 1971.<br />

<strong>MeMo</strong>1 | 113


Editora Taíka | O cenário dos quadrinhos nacionais mudou muito com o final da Editora<br />

Outubro. Algum tempo depois da saída de Sidekerskis, que iria abrir as editoras Regiart<br />

e Jotaesse, Victor Chiodi também a deixou. A direção geral da Taíka passou a ser exercida<br />

por Manoel César Cassoli e Heli Otávio de Moura Lacerda e essa foi a configuração societária<br />

até o fechamento da empresa, já no final dos anos 1970. Para o lugar de Cortez como<br />

diretor artístico foi contratado, a principio, o artista argentino Rodolfo Zalla. Ele estava<br />

no Brasil há bem pouco tempo e colaborava com eles desenhando Colorado, um cowboy<br />

herdado de um outro artista argentino, José Delbó, que tinha estado no Brasil de passagem e acabara de<br />

se mudar para Nova York. Delbó viria a ter uma longa carreira nos Estados Unidos, desenhando de tudo,<br />

da adaptação para os quadrinhos de Yellow Submarine dos Beatles à Mulher-Maravilha.<br />

Para a Taíka, Nico Rosso continuou<br />

desenhando bastante, em mais de um<br />

gênero. Como já mencionamos, Nico<br />

Rosso passou a desenhar Targo quando<br />

Zalla deixou o personagem, que já era<br />

escrito por Helena Fonseca. Mas a<br />

série ganhou um enfoque diferente<br />

por parte da roteirista com a entrada<br />

de Nico Rosso para ilustrá-la.<br />

Passou a haver na série um certo<br />

erotismo, leve e disfarçado, que não<br />

era presente até então. Talvez isso<br />

tenha se dado pela habilidade de Rosso<br />

em desenhar mulheres bonitas e sensuais, mas o fato é que começaram<br />

a aparecer mais e mais personagens femininas nas histórias. Fossem elas<br />

caçadoras brancas ou raínhas de civilizações perdidas no coração da selva,<br />

todas invariavelmente se interessavam pelo herói, muitas vezes de forma<br />

explícita, causando cenas de ciúme da companheira deste, a bela Arimá.<br />

Targo visto por<br />

Fernando de Lisboa,<br />

Rodolfo Zalla e<br />

Nico Rosso.<br />

Zalla desenhou várias histórias de guerra e faroeste e também assumiu a<br />

série de Targo, que deixou de ser uma cópia sem vergonha do Tor, de Joe<br />

Kubert, cometida por um certo “Fernando de Lisboa” (claramente um<br />

pseudônimo) e passou a ser um Tarzan genérico que algum tempo<br />

depois viria a ser desenhado por Nico Rosso.<br />

Outros artistas apareceram na cena dos quadrinhos brasileiros a<br />

partir de 1964, até para ocupar o espaço deixado por toda aquela<br />

turma da foto tirada no teto da Gazeta, que tinha em sua grande<br />

maioria se mudado para o mundo da publicidade, onde muitos viriam<br />

a ter prestigiosas carreiras. Mas claro, alguns como Nico Rosso,<br />

Gedeone, Sérgio Lima e Ignacio Justo continuaram insistindo com os<br />

quadrinhos. A eles se juntaram Rodolfo Zalla, já citado, Eugênio Colonesse,<br />

grande artista ítalo-argentino, Rubens Cordeiro, Dagoberto<br />

Lemos, Salatiel de Holanda, Osvaldo Talo e outros mais.<br />

114 | <strong>MeMo</strong>1 <strong>MeMo</strong>1 | 115


Drácula continuou sendo o personagem mais<br />

vendido da casa e apareceu em mais de um título<br />

da editora, além de almanaques e reprises de<br />

histórias mais antigas. Nico Rosso entregava cerca<br />

de 30 páginas mensais apenas deste personagem,<br />

mais capas.<br />

Sabendo que o tema era<br />

um campeão de vendas<br />

nas bancas, José Sidekerskis,<br />

que havia aberto a edi<br />

tora Regiart (que depois<br />

mudou de nome para Jotaesse)<br />

lançou a revista O Vampiro. Nela, em 1967,<br />

surgiu Mirza, a mulher-vampiro, criada por<br />

Eugênio Colonesse e Luis Meri, que vendeu muito<br />

bem e logo ganhou revista própria. Por causa<br />

desse sucesso, Heli Otávio de Moura Lacerda<br />

encomendou à Helena Fonseca e Nico<br />

Rosso que criassem eles também<br />

uma vampira. Logo estava nas<br />

bancas o primeiro número de Naiara, a filha de Drácula. A bem da verdade é preciso<br />

lembrar que já havia existido uma uma filha de Drácula, desenhada por Scudellari nos<br />

tempos da Outubro, mas ela havia durado apenas uma história e, além disso, Naiara<br />

era muito mais interessante.<br />

Nas tramas, ao contrário do pai, de quem é<br />

inimiga, Naiara demonstrava ter horror<br />

a morder pescoços. Ela preferia cortar<br />

jugulares com uma pequena adaga e<br />

tomar o sangue recolhido em taças de<br />

ouro, algo que segundo ela, era muito<br />

mais higiênico.<br />

Sempre vestida com uma roupinha prá lá<br />

de minúscula, a loirinha vampira esbanjava<br />

sensualidade por todos os lados,<br />

vivendo aventuras macabras enquanto<br />

viajava ao redor do mundo.<br />

Um detalhe nessa história toda que vale a pena lembrar, é que, embora mulheres-vampiro já tivessem<br />

aparecido muito antes nos quadrinhos, tanto Mirza quanto Naiara estrearam nos quadrinhos bem antes<br />

de Vampirella, que só apareceu em 1969. E embora Mirza fosse mais tradicional em seus trajes, Naiara<br />

usava uma roupinha sexy, como a que Vampirella só iria usar quase dois anos depois.<br />

A dupla ainda iria criar mais uma vampira: Sivanara, a baronesa-vampiro, surgida também numa história<br />

do Drácula, de quem se torna inimiga mortal. Apesar de seguir o mesmo preceito das histórias<br />

de Naiara, as personagens são bem diferentes, Sivanara é uma mulher mais real, usa roupas comuns e<br />

conta com a ajuda de seu marido, o Barão, cujo nome e sobrenome nunca foram revelados na história.<br />

Outra diferença importante é que Sivanara quer<br />

destruir Drácula e depois morrer, pois não suporta<br />

viver como uma vampira, quer apenas se<br />

vingar. Já Naiara não tem qualquer dúvida existencial,<br />

adora sangue e não tem problemas em<br />

matar. Na verdade quem quer acabar com ela é<br />

Drácula, que não quer concorrência.<br />

A maior parte das histórias que Nico Rosso fazia<br />

para a Taíka tinha roteiro de Helena Fonseca,<br />

mas ela não era a única escritora da casa. Nico<br />

Rosso também produziu histórias com roteiros<br />

de Maria Aparecida Godói e Teresa Sales.<br />

Chega a parecer estranho hoje em dia, mas na<br />

época o Brasil tinha ótimas mulheres roteiristas,<br />

de terror e outros gêneros, como se vê.<br />

116 | <strong>MeMo</strong>1 <strong>MeMo</strong>1 | 117


Além delas, trabalhavam para a Taíka também Francisco de Assis Pereira<br />

da Silva, Antonio Martin e R.F. Lucchetti. Com Assis, Nico Rosso<br />

fez algumas histórias avulsas de terror, como a quadrinização de Avatar,<br />

livro de Theóphile Gautier que trata de reencarnação. Assis era um ótimo<br />

roteirista e também chegou a escrever Drácula para o desenho de Rosso<br />

em algumas histórias memoráveis. Uma delas, para um almanaque com<br />

mais de 100 páginas, contando uma nova versão para a história do<br />

rei dos vampiros. Com os outros dois argumentistas, Nico Rosso<br />

também fez trabalhos importantes e emblemáticos.<br />

“Terrir! Histórias de terror que vão fazer você morrer…<br />

de rir!” como foi anunciada, foi um sucesso.<br />

Pela revista, cujo nome inteiro era “Seleções<br />

de Terrir”, desfilavam Lucivalda, uma bruxa<br />

moderna que voa de aspirador de pó, ao invés da<br />

vassoura e o pai de santo Nicolau Praxedes. Outro<br />

personagem frequente na publicação era o Lobisboy.<br />

As aventuras, escritas por Antonio Martin, sobre quem<br />

muito pouco se sabe, são exatamente o que o anúncio diz:<br />

histórias satíricas com pitadas de terror. Para estas histórias,<br />

Nico Rosso criou um estilo que misturava figuras levemente<br />

caricatas à luz e sombra típicas das histórias de terror.<br />

A revista durou 12 números, o primeiro saiu em 1966. Mas,<br />

como tudo mais da editora, é muito difícil precisar o mês.<br />

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Já A Cripta era uma revista bem à frente de seu tempo. A começar pelo formato grande, 22 por 30<br />

centímetros. Ela foi concebida por R.F. Lucchetti e Nico Rosso como um veículo para histórias mais<br />

adultas, onde o erotismo era muito presente em todas as histórias.<br />

Rubens Francisco Lucchetti já era um colaborador da Outubro e sempre admirara o<br />

trabalho de Nico Rosso, sem nunca ter uma história sua desenhada por ele. Lucchetti<br />

é provavelmente um dos escritores mais prolíficos do Brasil, tendo escrito para diversas<br />

mídias como cinema, televisão, quadrinhos e livros. Muitas vezes, trabalhou<br />

sob pseudônimos, como Terence Grey, Vincent Lugosi, Mary Shelby e muitos outros,<br />

tendo escrito mais de mil e quinhentos livros.<br />

Na revista há um personagem recorrente, o vampiro Nosferatu (um nome usado por<br />

W.F. Murnau no cinema mudo para contar a história de Drácula). Mas beber sangue não é o que o<br />

move e nem sempre ele é o protagonista das histórias. Ele está sempre mais interessado em seduzir<br />

suas vítimas, mulheres lindíssimas desenhadas por Rosso, do que em beber seu sangue. A revista,<br />

lançada em 1968, infelizmente não foi muito bem de venda: acabou no número 4. Os editores atribuíram<br />

isso ao formato e ao preço mais alto. Tentaram relançá-la em 1970 no tamanho comum a todas as<br />

revistas da casa, mas a manobra não surtiu o efeito esperado. Mas a parceria de Lucchetti com Rosso,<br />

como já vimos, ainda deu bons frutos em outras editoras e mesmo na Taíka, de forma inusitada até,<br />

como no caso de Satanik.<br />

Esse personagem surgiu quando em outubro de 1967 um jovem desenhista chamado Emilmar Dal’Alba<br />

Di Tullio bateu à porta de Nico Rosso para lhe mostrar um personagem que criara, um super-herói chamado<br />

Shatan. Rosso gostou do que viu e logo envolveu Lucchetti, que escreveu um roteiro baseado nas<br />

ideias de Emilmar e, de comum acordo, mudou o nome do personagem para Satanik.<br />

Este então desenhou a história e Nico Rosso a finalizou com todo cuidado possível para não interferir no<br />

estilo bastante pessoal do jovem desenhista. Segundo a trama, Satanik era um agente secreto americano<br />

(apesar do nome “Felipe”) que sobrevive a um<br />

acidente aéreo quando sobrevoava a selva amazônica.<br />

Ele é salvo por um cientista que trata dele e<br />

lhe dá um uniforme super-resistente e uma máscara.<br />

A partir daí ele passa a combater o Barão Von<br />

Drago e Selena, seus inimigos mortais.<br />

Como os super-heróis estavam bombando na época,<br />

os três acharam que ia ser muito fácil publicar<br />

o personagem, mas não foi bem assim. Na Taíka<br />

não gostaram muito dele e preferiram apostar em<br />

Mylar, no Escorpião, em Fantastic e até no Bola<br />

de Fogo, uma cópia vergonhosa do Tocha Humana.<br />

Para espanto de Lucchetti e Rosso e desgosto de<br />

Emilmar o trabalho foi engavetado por três anos<br />

e só saiu em 1970 num Almanaque de Aventuras,<br />

porque a editora, já em concordata, precisava<br />

publicar alguma coisa rapidamente. Lucchetti e<br />

Rosso seguiram adiante, mas Emilmar, desgostoso,<br />

nunca mais voltou aos quadrinhos.<br />

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Os anos 70 começaram com a Taíka ainda vendendo alguns títulos muito bem, caso de Drácula, mas<br />

recorrendo cada vez mais a reprises. As vendas foram caindo paulatinamente e a apresentação gráfica<br />

das revistas começou a destoar de todas as outras que apareciam nas bancas. As revistas da Taíka estavam<br />

entre as mais pobres e feias, apesar de não serem as mais baratas. Em setembro de 1976, com o<br />

lançamento de Kripta (com K), da Rio Gráfica, que publicava histórias da Warren Comics, o terror voltou<br />

a ser um grande negócio editorial e quase todas as<br />

editoras lançaram revistas do gênero, em formatos dos<br />

mais diversos, em preto e branco e em cores, tamanho<br />

grande ou formatinho. A Taíka através do selo EDITAL<br />

tentou o sucesso lançando álbuns luxuosos, com trabalhos<br />

de Nico Rosso. Dois com histórias clássicas de Drácula,<br />

um outro em formato gigante com histórias que<br />

tinham saído em A Cripta e mais dois em formato de<br />

livro também com histórias da Cripta remontadas para<br />

o formatinho. Eles desapareceram em meio à enxurrada<br />

de títulos das bancas. Eram álbuns que certamente venderiam<br />

bem em livrarias e lojas especializadas, coisa<br />

que não existia ainda.<br />

A editora ainda durou mais dois anos até fechar de vez<br />

em 1978. Em junho de 1976, pouco antes da Kripta, os<br />

donos da Taíka tentaram lançar uma outra<br />

editora, a Spell Produções, que<br />

lançou uma única edição: Drácula.<br />

No expediente da revista, não constavam<br />

os nomes nem de Manoel<br />

César Cassoli, nem de Heli Otávio de Moura Lacerda, mas sim os nomes Aracy<br />

Costa Cassoli, esposa de Manoel e Otávio Galvão de Moura Lacerda, filho de Heli.<br />

Seria uma manobra fiscal? Jamais saberemos. O fato é que esta única edição é uma<br />

das revistas mais bonitas dos quadrinhos brasileiros.<br />

Nela, vamos encontrar uma outra versão para a<br />

origem de Drácula, bem diferente de todas as que<br />

já haviam sido apresentadas, escrita por Maria<br />

Aparecida Godói, mostrando um Drácula mais<br />

jovem do que o costume. Há também uma história<br />

narrada por Drácula, da qual ele não participa,<br />

aparecendo apenas em comentários ao longo<br />

do texto e vinhetas de início e encerramento, na<br />

melhor tradição da E.C. Comics e Warren. Ambas<br />

são ilustradas em lindas aguadas por Nico Rosso<br />

e seu mais longevo assistente, Kazuhiko Yoshikawa.<br />

Mas a melhor coisa da revista é uma história<br />

apresentada no caderno central, colorido, com<br />

arte totalmente pintada em guache. Algo que jamais<br />

tinha sido feito no Brasil e que a Heavy Metal<br />

americana só faria mais de um ano depois. “A Virgem<br />

de Orleans” narra a história de Joana D’Arc<br />

e mostra como Drácula atuou para que ela não<br />

tivesse mesmo um final feliz. Pela data da publicação,<br />

esta deve ter sido uma das últimas histórias<br />

desenhadas por Nico Rosso, que se mostra no<br />

auge da forma.<br />

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Luiz, quando e em que circunstâncias Nico Rosso veio para o Brasil?<br />

Nico Rosso desembarcou no Brasil em 3 de outubro de 1947. Não<br />

encontrei registro de uma possível passagem no Albergue dos Imigrantes<br />

devido ao seu contrato de trabalho com a Brasilgráfica,<br />

acredito que amigos já o aguardavam. Sua família, esposa e um casal<br />

de filhos, somente desembarcam 6 meses depois, em 9 de abril<br />

de 1948 no mesmo porto. O nome de solteira de minha avó era Tina<br />

Billi e eles se casaram em 20 de setembro de 1937. Na foto, anterior<br />

a sua vinda ao Brasil, o garoto de pé é meu pai, Gianluigi Rosso e<br />

nasceu em 21 de outubro de 1938, no colo de minha avó está minha<br />

tia, Valeria Rosso que nasceu em 05 de março de1944. Quando desembarcaram<br />

no Brasil em 1948, tinham 10 e 4 anos respectivamente.<br />

Minha avó era do lar e não tinha uma formação específica.<br />

O que você sabe sobre o trabalho dele na Itália?<br />

Através de conhecidos, amigos e da internet, consegui obter seus<br />

trabalhos publicados na Itália. São trabalhos publicitários e ilustrações.<br />

Profissional reconhecido pelo seu trabalho em sua terra natal,<br />

é premiado pelas ilustrações do livro “Pinocchio” em 1945. Ainda<br />

hoje estou pesquisando qual entidade outorgou esse prêmio a ele.<br />

Aluno da “Accademia Albertina delle Belle Arti di Turim”, estudou<br />

retrato com os mestres Giacomo Grosso e Giovanni Reduzzi e lecionou<br />

Ilustração e História do Traje na “Escola de Artes Gráficas<br />

Bernard Semeriz”.<br />

Quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial, Nico Rosso tinha cerca<br />

de 30 anos. Que implicações a guerra teve sobre a vida dele? Ele<br />

chegou a combater?<br />

As implicações da guerra foram decisivas em sua escolha. Teve<br />

seus bens dilapidados e, recém casado, passou por momentos de<br />

muita instablidade mudando-se constantemente, Nico era natural<br />

de Turim, onde se casou, mas meu pai nasceu em Genova e minha<br />

tia em Chieri , e ao fim da vários anos de guerra, escolheu o Brasil<br />

como seu novo lar. Na época, havia outra alternativa de trabalho em<br />

Quebec, no Canadá, que não foi aceita pelo casal por insistência de<br />

minha avó. Nas conversas de família nunca nos foi dito o porquê,<br />

mas ele não serviu na guerra.<br />

Como se deu a contratação pela Brasilgráfica? Que tipo de trabalho<br />

ele fazia na gráfica? Aliás, houve um incêndio nessa lá que destruiu<br />

muita coisa do seu avô, não?<br />

Como eu disse, soube através de conhecidos, que ele já saiu da Itália<br />

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com este contrato de trabalho. Pelo que sei a Brasilgráfica fazia, e faz<br />

pois ainda existe, embalagens. Sim, o primeiro acidente em sua<br />

vida (sem contar o horror que foi a Segunda Guerra) foi um incêndio<br />

em seu estúdio que ficava ao lado da gráfica.<br />

Logo após sua chegada vemos Nico Rosso trabalhando bastante para<br />

as Irmãs Paulinas, ilustrando livretos de orações e, principalmente ,<br />

colaborando em O Jornalzinho. Você sabe como se deu esse contato?<br />

Sabe quem era “G. Basso” que assina como argumentista várias histórias<br />

de O Jornalzinho junto com seu avô?<br />

Vou responder segundo minhas pesquisas. Encontrei sua colaboração,<br />

no periódico infanto-juvenil “ O Jornalzinho” nº 46 datado de<br />

janeiro de 1948. Neste princípio ilustra fábulas de autores consagrados<br />

tais como Irmãos Grimm, Charles Perault, Andersen, Jonathan<br />

Swift, etc, dando continuidade ao trabalho que já vinha realizando<br />

na Itália. Acredito que o contato tenha sido feito aqui, e fatores como<br />

ser católico praticante e falar italiano numa sociedade (naquela<br />

época) em que muitos da área gráfica eram italianos, deve ter influênciado<br />

e muito essa aproximação. Não tenho nenhuma informação<br />

sobre G. Basso (que bem poderia até mesmo ser o elo que o ligaria<br />

às Irmãs Paulinas).<br />

Nico Rosso era muito produtivo e aparentemente não faltava trabalho<br />

para ele em São Paulo, mesmo assim ele arrumou tempo para trabalhar<br />

para a Ebal no Rio. Como foi esse contato, você sabe?<br />

Não. Não me lembro de vê-lo prospectando clientes. Sempre o procuravam<br />

pelo seu talento.<br />

Apesar de ser muito mais lembrado pelas histórias de terror, elas<br />

aconteceram numa fase mais tardia de sua carreira. Durante os primeiros<br />

dez ou doze anos, o que vemos como especialidade de Nico<br />

Rosso são as histórias de cunho histórico e dá pra perceber o extremo<br />

carinho com que ele finaliza os contos de fadas da La Selva. Aliás,<br />

ele começa na Continental/Outubro desenhando Faroeste, o Anjinho<br />

da Guarda e Contos de Fadas. Demora algum tempo até o primeiro<br />

Drácula. Ele gostava de histórias de terror? Ou fazia porque era o que<br />

mais vendia e era o trabalho que tinha para fazer?<br />

O título de “mestre do terror”, seu trabalho mais volumoso nos quadrinhos,<br />

a qual fez jus, para os amantes deste gênero faz todo sentido.<br />

Mas muitos com quem converso e me relaciono o veem como o<br />

mestre dos “infantis”, dos “históricos” (pelo seu alto conhecimento<br />

de trajes e costumes) e por que não, mestre das “sensualidade”, lembrando<br />

das figuras femininas sempre bem desenhadas. E o que dizer<br />

do contraste das figuras (mulheres) mais lindas com as figuras mais<br />

grotescas no terror? Seria ele então, o mestre dos “extremos”!? O fato<br />

dele começar no terror tardiamente tem sua origem pelo “Macartismo”<br />

e consequente escassez do material de terror estrangeiro que os<br />

editores precisavam editar, associado a uma mudança nos gêneros<br />

editados. Dado o nível com que executava suas histórias de terror fica<br />

claro seu comprometimento e não ter nenhum problema para desenhá-las.<br />

E nunca ouvi - morei alguns anos com ele - nada que contradissesse<br />

essa afirmação. Mas quando conversava comigo ou quando<br />

ouvia suas conversas ficava clara a paixão também pelo infantil (olha<br />

o mestre dos extremos, novamente). Esta sua pluralidade, de não ser<br />

um desenhista de um único gênero o torma especial.<br />

Ainda sobre isso, há apenas dois gêneros de quadrinhos onde não se<br />

vêem muitos trabalhos de Nico Rosso: super-heróis e guerra. No quesito<br />

super-herois há apenas o Satanik, a não ser que consideremos os<br />

heróis do oeste mascarados que ele fez, como Pistoleiro Fantasma e<br />

Vingador. Já no de guerra, tem bem pouca coisa, mais capas do que<br />

histórias. Ele tinha um problema com o tema que você saiba?<br />

Quando você questionou os “gêneros” pensei que perguntaria do<br />

gênero “humor”. Outro dia fui questionado sobre isso e o respondi<br />

com os títulos; “Terrir”, “MitoloRia”, “Era Xixo um Astronauta?”,<br />

“As Boas do Bocage” e “Chico de Ogum”, com variações dentro do<br />

próprio gênero (figuras clássicas e/ou caricatas). Sobre “Chico de<br />

Ogum”, porquê não enquadrá-lo como um super-heroi? Possui um<br />

poder e o utiliza para fazer o bem. Sim, um super-heroi brasileiro, não<br />

nos moldes dos que conhecemos tipo Marvel ou DC. O Nico atuou em<br />

todos os gêneros, alguns mais outros menos. No gênero guerra se o<br />

fez pouco não foi pelo motivo de ter vivenciado uma, acredito que foi<br />

mais por causa da demanda.<br />

Consta que Nico Rosso era uma pessoa amável e bastante sociável.<br />

Você se lembra de alguma menção dele a colegas da profissão ou<br />

editores como Jayme Cortez, Miguel Penteado, José Sidekerskis,<br />

Manoel Cesar Cassoli, Shimamoto, Colin e outros?<br />

Lembro-me do meu avô em seu estudio, muitas horas por dia, produzindo<br />

e em suas poucas horas de “lazer” aproveitava para fazer<br />

seus projetos pessoais (o famoso ócio criativo). Alguns inéditos<br />

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ainda estão em minhas mãos. Talvez essa “falta de tempo” não o<br />

tenha deixado comentar trabalhos ou atitudes de outrem. E quando<br />

o fazia, era sempre de forma positiva.<br />

Seu avô trabalhou com várias mulheres argumentistas, algo muito<br />

raro nos quadrinhos. O que você sabe sobre Helena Fonseca e Maria<br />

Aparecida Godoy? E com R. F. Lucchetti e Gedeone, outros grandes<br />

parceiros, como ele se relacionava?<br />

Gostaria muito de conhecê-las pois tiveram grande relevância para<br />

os quadrinhos. Há pouco tempo soube que Helena Fonceca ainda<br />

estava na ativa e gostaria muito de questioná-la, saber dela como<br />

era o trabalho conjunto argumentista/desenhista com o Nico. Já o<br />

R.F. Lucchetti tive o prazer de conhecer e ouvi dele várias histórias<br />

sobre como conheceu meu avô e como eram esses trabalhos conjuntos,<br />

que muitas vezes desenvolveram-se de uma forma diferente do<br />

habitual tornando-se, a meu ver, uma das parcerias mais bem sucedidas<br />

à época. Sobre o Gedeone, infelizmente, não tive este prazer.<br />

Numa certa altura, Nico Rosso passou a ter assistentes. Jô Fevereiro<br />

e Kazuhiko Yoshikawa foram os principais, você pode comentar<br />

algo sobre isso?<br />

Trata-se da “equipe Nico Rosso”, e uso esse termo pois em várias<br />

histórias a palavra “equipe” aparece nos crédito. Se fez necessária<br />

pelo grande volume de trabalho. Foram seus alunos. Lecionou, como<br />

já disse anteriormente na Itália, e no Brasil na Escola Panamericana<br />

de Arte, desde seus primórdios até sofrer seu primeiro AVC<br />

em 1977. Seu lado “professor/mestre” de certo incentivou aqueles<br />

jovens a seguí-lo. Você mencinou dois. O Jô Fevereiro, cujo pai já<br />

trabalhava na área como letreirista de quadrinhos, e que conheci<br />

mais recentemente. Kazuhiko Yoshikawa foi o mais longevo e próximo<br />

colaborador do Nico. Lembro-me dele , frente à frente em mesas<br />

separadas, trabalhando no estúdio do meu avô (que era em sua<br />

residência na Rua Morgado de Mateus, Vila Mariana), e as páginas<br />

sendo passadas de um lado a outro sempre num rítmo frenético. Ele<br />

o acompanhou até a mudança para sua residência própria (a Rua<br />

Antônio Gomide, Planalto Paulista). Nesta nova casa, num dia de<br />

muita chuva que o seu estudio sofreu o outro acidente (o primeiro<br />

foi o incêndio), um misto de soterramento/enchente que causou a<br />

perda de grande parte de seus trabalhos e arquivos pessoais. Isso o<br />

deixou muito mal. Tornando-se mais tarde uma das causas de seu<br />

AVC. Para entendermos o porquê temos que pensar que naquela<br />

época seu arquivo era inestimável. Hoje com a internet e abundância<br />

de informação fica muito mais fácil fazer uma pesquisa.<br />

Você se tornou um excelente ilustrador. Seu avô chegou a ensinar<br />

técnicas de pintura e desenho a você?<br />

Agradeço seu elogio. Minha trajetória foi um pouco diferente. Infelizmente<br />

o único ensinamento que meu avô me passou foi o privilégio<br />

de ter podido vê-lo criar aquelas obras incríveis. Somente<br />

após sua morte é que decidi enveredar pelo caminho do desenho e<br />

costumo relatar que para não haver comparações, pois na época o<br />

sobrenome me pesava, decidi por algo diferente e fui trabalhar com<br />

desenho animado, pintando cenários.<br />

Existem algumas histórias assinadas por “Luiz Rosso”. Era seu pai,<br />

não? Porque ele não seguiu desenhando? Tinha um trabalho claramente<br />

influenciado pelo seu avô, mas era bastante bom, bem melhor<br />

do que muitos contemporâneos.<br />

Bem observado. Existe uma foto, editada na revista Fantasia nº 10,<br />

em que aparece um conclave dos colaboradores da Editora Continental<br />

(depois Editora Outubro), Nela está meu pai, Gianluigi Rosso<br />

(ao lado do Nico Rosso), que assina as histórias em questão, não<br />

com um pseudônimo, mas com uma tradução literal de seu nome<br />

(Gianluigi em italiano seria João Luiz). Em minhas pesquisas, até<br />

hoje, encontrei as histórias: “O Preço de um Assassinato”, “Legionários<br />

da Morte”, “A sombra do Mal”, “Visitando a Morte” assinadas<br />

como Luiz Rosso e “Feitiço contra o Feiticeiro”, “ O Monstro do<br />

Sotão” assinadas como João Rosso. Trata se da mesma pessoa. Os<br />

motivos que o levaram a assinar assim são desconhecidos, mas podemos<br />

conjecturar que as tarjas verde-amarelas das capas trazendo<br />

os dizeres “escritas e desenhadas totalmente no Brasil” tenham influenciado<br />

nesta decisão. Não sei bem o por quê da desistência desta<br />

carreira visto que, como você mesmo observou, ele apresentava<br />

a “veia artística” da família, mas preferiu a química trabalhando<br />

em empresas como W. Swift, Wilson, um laboratório farmacêutico,<br />

acho que o Lilly, Kibon, Indústrias Jesus e Maguary. É irônico mas<br />

no meu caso foi no sentido inverso ao dele. Comecei como químico<br />

e tornei-me desenhista.<br />

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TRÓPICO | Até a década de 1990,<br />

quando a internet começou a se<br />

popularizar, as pesquisas escolares<br />

eram, em geral, feitas em diversas<br />

enciclopédias que faziam parte do<br />

arsenal educativo presente em quase<br />

todas as escolas e em muitas casas.<br />

Havia um grande mercado para esse<br />

tipo de publicação e muitas editoras<br />

as publicaram em vários formatos.<br />

Uma das mais famosas, junto com a<br />

famigerada Barsa e a Conhecer da<br />

Abril, foi a Enciclopédia Trópico<br />

e foi para uma nova série desta,<br />

dedicada à História do Brasil, que<br />

Nico Rosso foi convidado a colaborar,<br />

brindando os leitores com belas<br />

ilustrações em que desfila<br />

mais uma vez todo o seu imenso<br />

conhecimento de história.<br />

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EDITORA ABRIL | Com o final da Coleção Saraiva<br />

em 1972, Nico Rosso perdeu um de seus trabalhos<br />

mais constantes. Esse vácuo foi preenchido por<br />

duas coleções lançadas pela editora Abril em 1972.<br />

A editora dos Civita havia fechado um contrato com<br />

a Mondadori italiana para publicar uma série de livros<br />

dos Hardy Boys, personagens americanos, criados pelo<br />

editor Edward Stratemeyer em 1927 e escritos por diversos escritores<br />

sob o mesmo pseudônimo: Franklin W. Dixon. Os personagens haviam<br />

sido licenciados para a Itália e adaptados para o público italiano, deixando-os<br />

menos americanos do que eram, e foi esse o formato que a<br />

Editora Abril resolveu publicar. As capas no Brasil eram as mesmas<br />

da Mondadori, mas a edição italiana não tinha ilustrações. Como<br />

estavam de olho no público juvenil, os editores resolveram encomendar<br />

as ilustrações do miolo para Nico Rosso. E ele as fez com sua<br />

habitual maestria e elegância, cerca de seis por edição, durante<br />

dezessete volumes mensais.<br />

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Ainda nesse ano, a Abril lançou a coleção Clássicos da Literatura Juvenil<br />

com histórias dos grandes mestres da literatura adaptadas para o público<br />

juvenil e ilustradas por diversos artistas. São ao todo cinquenta volumes<br />

e destes Nico Rosso ilustrou onze, ao longo de dois anos. As capas<br />

são todas pintadas em guache, mas nas ilustrações do miolo ele se permitiu<br />

brincar com materiais e técnicas diferentes em cada edição, do<br />

nankin ao crayon, como havia feito na Coleção Grandes Figuras da EBAL.<br />

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Em de fevereiro de 1974, a Abril<br />

lançou uma revista em quadrinhos<br />

toda feita no Brasil, cuja proposta era<br />

proporcionar aos artistas brasileiros um espaço<br />

para mostrar seus melhores trabalhos.<br />

Era a revista Crás, que durou apenas seis números, sendo os<br />

dois primeiros em formato grande e os demais em formatinho.<br />

Para o número um, o roteirista Ivan Saidenberg escreveu o primeiro<br />

roteiro para uma série semi-humorística chamada Vavavum, que<br />

girava em torno do mundo do automobilismo.<br />

Os desenhos foram feitos por Nico Rosso e Carlos Edgard Herrero,<br />

um ótimo desenhista do estúdio da Abril, dono de um estilo de<br />

forte personalidade gráfica. O resultado foi um trabalho híbrido,<br />

nem de Rosso, nem de Herrero, que não deve ter satisfeito<br />

nenhum dos dois, pois no segundo número,<br />

Rosso já não fazia mais parte da equipe.<br />

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M&C | Em 1972, depois de deixar a EDREL, Minami Keizi fundou com Carlos da Cunha, a Minami<br />

& Cunha Editores (M&C Editores). Logo colocou nas bancas títulos dos mais diversos, que iam de<br />

revistas de piadas até Modesty Blaise, heróis da Marvel como Conan, Kull, Dr. Estranho (traduzido<br />

como Dr. Mistério), além de várias com personagens produzidos no Brasil por diversos desenhistas.<br />

Duas das revistas em que ele resolveu apostar eram Lobisomem e Múmia, grandes sucessos num<br />

passado recente editados pela GEP. A editora de Penteado nesta altura não funcionava mais, pois Miguel<br />

Penteado, não aguentando mais ter problemas com a censura, tinha resolvido parar de editar e<br />

apenas imprimir para terceiros (inclusive para a M&C). Gedeone Malagola escreveu novas histórias<br />

para ambas as séries. Mas Sérgio Lima, o desenhista original das duas, não se interessou por desenhá-las.<br />

Nesse tempo, ele estava trabalhando no estúdio da Editora Abril, que produzia aqui a maior<br />

parte dos quadrinhos Disney que editava. Sérgio Lima tinha se especializado em desenhar as bruxas,<br />

Maga Patológica e Madame Min, ironicamente. Rodolfo Zalla, outro desenhista que tinha trabalhado em<br />

ambas as séries, nesta altura estava envolvido com o mundo dos livros didáticos<br />

e também não se interessou, embora algumas histórias que ele tinha desenhado<br />

para a GEP (e que não haviam sido publicadas), tenham sido aproveitadas<br />

por Minami em duas edições de Lobisomem em formatinho. Gedeone então se<br />

lembrou de Nico Rosso, que tinha desenhado a capa da primeira Lobisomem da<br />

GEP e que ele achava o desenhista ideal para a série. Na época Rosso ainda desenhava<br />

Drácula para a Taíka. Mas como a editora já começava a dar sinais de<br />

debilidade, recorrendo cada vez mais a reprises, ele topou fazer o Lobisomem.<br />

Ofereceram a Múmia também, mas achando que seria trabalho demais, mesmo<br />

para ele, Rosso indicou seu amigo Ignácio Justo, que se tornou o desenhista da série. Apesar de serem<br />

os mesmos personagens já editados pela GEP, as séries eram muito diferentes das originais e a principal<br />

diferença era uma presença muito maior de cenas de sexo e mulheres nuas em quase todas as<br />

páginas. As histórias tinham se tornado mais adultas e o terror havia se tornado pano de fundo para a<br />

temática sexual, certamente uma encomenda de Minami Keizi, que já na EDREL demonstrava claramente<br />

uma tendência nessa direção. Com a habilidade de Nico Rosso para desenhar mulheres bonitas<br />

e sensuais, as histórias de Lobisomem se tornaram algumas das melhores já publicadas no país.<br />

A revista foi publicada num tamanho maior do que o usual e ele fugiu do layout de página tradicional,<br />

buscando algo mais próximo daquele adotado por álbuns europeus. Talvez eles visualizassem uma<br />

possibilidade de venda para o exterior, quem sabe?<br />

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De toda forma, apesar de muito bonitas,<br />

e bem escritas, eram muito mal editadas<br />

e não era incomum ver histórias fora de<br />

ordem, espalhadas por diversas revistas<br />

da editora, algumas vezes até fora de qualquer<br />

contexto. Só para dar um exemplo,<br />

Minami havia criado uma revista chamada<br />

HQ-Competição que se propunha<br />

a publicar material de iniciantes com<br />

comentários de grandes veteranos dos<br />

quadrinhos. Porém o número dois da<br />

mesma traz o Lobisomem de Nico Rosso e Gedeone Malagola.<br />

A história toma quase toda as páginas e talvez para justificar o<br />

título da revista, colocaram Nico Rosso para analisar a história<br />

de um iniciante, o que acabou se tornando algo curioso com o<br />

passar do tempo, por várias razões. Primeiro por ser uma das<br />

únicas vezes em que vemos um texto de Nico Rosso analisando<br />

um trabalho, segundo porque ele redesenhou a primeira página<br />

do iniciante e terceiro porque este iniciante era o desenhista<br />

Tony Fernandes. Como previsto, Tony iria se tornar um grande<br />

profissional, estando na ativa até hoje.<br />

A análise de Nico Rosso tal como foi publicada:<br />

“Tony precisa estudar mais, principalmente anatomia.<br />

Os rostos femininos nesta história, careciam de charme,<br />

indispensável principalmente para uma personagem<br />

central. A comunicação nestas histórias, dá mais pano<br />

pra manga: se eliminarmos o texto e entregarmos esta<br />

história para alguém que não a conheça, acreditamos<br />

que não conseguirá entender coisa alguma. Isto é devido<br />

à excessiva fragmentação de quadrinhos separados e, a<br />

história estar reduzida, quase que completamente, em<br />

quadrinhos de closes. Não mostra quase nada do ponto de<br />

vista de imagem: resta-nos dela apenas o texto, sem contar<br />

o grande número de quadros DECORATIVOS que dão<br />

a impressão de estarem ali colocados por não se saber<br />

o que desenhar em seus lugares. Ao refazer a primeira<br />

página, procurei respeitar ao máximo a ideia e o estilo<br />

do autor, modificando só o estritamente necessário, para<br />

que a história corra mais dinâmica, compreensível e comunicativa.<br />

O Tony tem boas possibilidades, se ele não<br />

se cansar e estudar, aprimorando seu desenho, principalmente<br />

economizando closes e procurar CONTAR a<br />

história VISUALMENTE MAIS COMPREENSIVA.”<br />

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Mas não foi apenas em Lobisomem que Nico Rosso<br />

trabalhou para a M&C. Seu traço também brindou<br />

duas séries que fazem a editora ser lembrada<br />

até hoje: MitoloRia e Chico de Ogum. A primeira<br />

era escrita pelo próprio Minami e mostrava aventuras<br />

altamente eróticas e humorísticas de personagens<br />

da mitologia grega, particularmente Zeus.<br />

As histórias foram desenhadas num estilo limpo e<br />

humorístico por Nico Rosso e Kazuhiko Yoshikawa<br />

e publicadas em preto e branco a principio na revista<br />

UAU!, que misturava fotos de mulheres nuas,<br />

quadrinhos e contos eróticos.<br />

Sairam também numa revista própria com o nome<br />

MitoloRia. Foram posteriormente<br />

reunidas, coloridas e publicadas em<br />

forma de álbum, que apareceu lacrado<br />

nas bancas.<br />

Chico de Ogum era escrito pelo excelente Carlos da Cunha. Como<br />

Nicolau Praxedes, personagem desenhado anos antes na Terrir,<br />

era um pai-de-santo. Mas enquanto Praxedes era um personagem<br />

coadjuvante, Chico de Ogum era o dono da revista, o personagem<br />

principal de todas as histórias e sempre que precisava recorria a<br />

seu padrinho Ogum, conseguindo os poderes que precisava para<br />

resolver qualquer parada, um verdadeiro super-herói da Umbanda.<br />

Os desenhos aqui também eram de Nico Rosso e Kazuhiko, mas<br />

em Chico de Ogum eles utilizam um desenho mais despojado, se<br />

preocupando mais com a condução das histórias.<br />

Infelizmente a barra foi ficando mais e mais pesada para a M&C e<br />

seus constantes problemas com a censura acabaram fazendo com<br />

que várias de suas revistas acabassem sendo proibidas<br />

de circular. Este foi o caso de Lobisomem e Múmia.<br />

Chico de Ogum foi uma das poucas que teve permissão<br />

para continuar a ser editada a partir de 1974. Será que foi<br />

porque os censores tiveram medo de mexer com um filho<br />

de Ogum? Pode ser, mas isso não foi o suficiente para<br />

assegurar a sobrevivência da editora e logo ela não estava<br />

mais publicando coisa alguma, sendo obrigada a<br />

fechar suas portas, melancolicamente.<br />

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FUTUROPOLIS | Enquanto a M&C dava seus últimos suspiros,<br />

Nico Rosso foi assunto de um artigo escrito pelo crítico de cinema<br />

Luciano Ramos, na revista Les Hordes de Phobos, publicada<br />

pela Futuropolis francesa em 1975. Além da matéria, também<br />

foi publicada uma bela história, uma adaptacão livre de MacBeth<br />

de William Shakespeare escrita pelo próprio Rosso.<br />

Infelizmente, nunca foi publicada no Brasil.<br />

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Chico Anísio era desde o início dos anos 60 um dos comediantes mais populares de TV e em<br />

1975 estava fazendo enorme sucesso na Globo, com o programa Chico City, onde ele apresentava<br />

quadros com diversos personagens que ele mesmo representava e com um quadro<br />

semanal no Fantástico, onde ele contava causos engraçados no<br />

melhor estilo stand-up comedy. Um dos principais parceiros<br />

de Chico nos dois programas era Arnaud Rodrigues, talentoso<br />

compositor e escritor, que resolveu escrever uma história com<br />

um personagem que ele criara para Chico e que não estava em<br />

nenhum dos dois programas, o retirante Xixo. Pensou primeiro<br />

em fazer um livro, mas mudou de ideia e achou que aqui-<br />

Já Manuel Maria de Barbosa l’Hedois du Bocage foi um grande poeta português que viveu<br />

entre 1765 e 1805. Talvez por ter sido preso pela inquisição por ser “desordenado nos costumes”,<br />

seu nome venha há tanto tempo sendo associado com anedotas de forte conteúdo<br />

erótico que ele não escreveu. Desde muito tempo portanto, se tornou um personagem sem<br />

qualquer relação com a figura real. Há muito tempo também que se editam livretos com piadas<br />

do Bocage e foi para um destes que a Luzeiro Editora encomendou os trabalhos de R. F.<br />

Lucchetti, que assinou com o pseudônimo “R. Bava” e Nico Rosso, que pediu ao editor para<br />

permanecer anônimo, por achar o conteúdo do livreto forte demais, mas não foi atendido.<br />

É, junto com o álbum de Xixo, um de seus últimos trabalhos publicados, tendo saído em 1977.<br />

lo ficaria bem melhor numa história em quadrinhos. O título<br />

fazia referência a um livro de muito sucesso na época, “Eram<br />

os Deuses Astronautas?” de Erich Von Daniken e por conhecer<br />

e gostar de Chico de Ogum achou que Nico Rosso era o desenhista<br />

perfeito para a história. Ele tinha razão e a história em<br />

forma de álbum colorido com 54 páginas é um dos melhores<br />

momentos dessa fase de Nico Rosso. O álbum foi publicado<br />

por uma certa Editora Harpan de um certo Henrique<br />

Christófani. Não se sabe mais nada sobre este editor e o<br />

álbum que saiu em 1976 não deve ter feito muito sucesso,<br />

pois não houve um segundo.<br />

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Nico Rosso era um profissional respeitadíssimo por seus pares e<br />

tratado com certa reverência pela maioria dos desenhistas da Editora<br />

Outubro, porque era inclusive mais velho do que Jayme Cortez<br />

e Miguel Penteado, os editores. Consta que ele era amabilíssimo e<br />

muito sociável. Mas como era ele dentro de casa, despido do manto<br />

de “grande desenhista”? Que lembranças você tem dele como seu<br />

“nonno”? Qual era o prato favorito dele? Tinha um programa de TV<br />

favorito? Gostava de cinema? Que tipo de música ele ouvia? Do que<br />

ele não gostava?<br />

Como avô era uma pessoa marcante! Minhas principais lembranças<br />

são dele trabalhando. Quase sempre do outro lado da “mesa”, uma<br />

prancha de madeira que usava como suporte dois cubos, também de<br />

madeira. Me lembro de algumas vezes em que eu estava também desenhando,<br />

dele ter me dado umas broncas: “olha a mesa mexendo!”.<br />

Mas curiosamente nunca me impediu de compartilhar esse espaço,<br />

certamente sagrado para ele. Ele tinha respeito! Quando eu pedia<br />

para ele desenhar algo, sempre buscava uma referência na sua<br />

biblioteca. Ia certeiro ao livro que tinha a referência mentalmente<br />

escolhida e se propunha a me ajudar a realizar o desenho. Era um<br />

professor por natureza. Quando minha nonna chamava para o almoço<br />

era um momento interessante, ela gritava: “a tavola!”. O momento<br />

após o almoço era sagrado, ele descansava alguns minutos, às<br />

vezes cochilava, ou ficava lendo, sempre em sua poltrona, daquele<br />

tipo que tem apoio para os pés e que são excelentes para esse tipo de<br />

descanso rápido. Uma memória presente é dele trabalhar escutando<br />

programas de rádio. Para mim o mais marcante era ele escutando as<br />

narrativas policiais do Gil Gomes. Não me lembro do que “ele não<br />

gostava”, mas parece que ele não gostava de dirigir. Suas idas e vindas<br />

às editoras eram sempre de táxi. Na verdade não sei do que ele<br />

não gostava, assim como não conheço quem não gostava dele, como<br />

profissional, como parente, mas principalmente como ser humano.<br />

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Ele torcia por algum time na Itália? E no Brasil, era Palestrino?<br />

Não tenho referências dele quanto ao gosto por futebol. Acho que na<br />

época eu também não tinha essa referência. Na verdade eu me tornei<br />

palmeirense por admiração à “academia”. Ouvir o time de 76 ser<br />

campeão e a admiração com que o narrador falava do Ademir da Guia,<br />

ou melhor do “Divino”, foi determinante. Também não tenho referência<br />

de qualquer predileção dele por alguma agremiação na Itália.<br />

Acho que o foco principal dele sempre foi o desenho, a literatura.<br />

Consta que ele, com 14 anos, frequentava a biblioteca para ler filosofia.<br />

Fico me perguntando o quanto ele leu e o quanto aprendeu. Certamente<br />

muito disso é demonstrado em sua obra.<br />

Seu avô falava português ou italiano em casa, com a “famiglia”?<br />

O nonno era poliglota, falava, naturalmente o italiano, o português,<br />

se não me engano o inglês, o francês, inclusive morou na França durante<br />

um tempo. Em casa falava o português frequentemente, mas<br />

também falava em italiano com a nonna. O mais marcante era a forma<br />

dele falar, sempre forte, determinada e rápida!<br />

Ele nunca mais voltou à Itália?<br />

Me lembro que ele fez viagens pelo Brasil, para o nordeste, onde morávamos<br />

com o meu pai, seu filho Gianluigi. E também, se não me<br />

engano, duas viagens para a Europa, retornando, entre outros países,<br />

para a Itália. Existem alguns apontamentos dessas viagens, desenhos<br />

que ele fazia, dos locais que visitava, situações cotidianas como uma<br />

senhora aguardando numa estação de trem, um artista pintando um<br />

quadro numa praça em Paris, etc.<br />

Nico Rosso tinha algum hobby que não fosse desenhar e pintar? Gostava<br />

de animais, jogava botão, algo assim?<br />

Acho que seu hobby principal era a leitura. Lembro de jogar xadrez<br />

com ele. Certa vez, jogando com ele, fiz uma jogada e meu irmão<br />

mais velho comenta que foi uma péssima jogada ou algo assim, que<br />

joguei “errado”, aí, na sabedoria que ele tinha, mostrou para mim e<br />

para o meu irmão que a minha jogada não tinha sido ruim pois mais<br />

uma ou duas jogadas a frente, se não tivesse feito daquela maneira,<br />

teria uma determinada situação final no jogo, enfim, não perdia<br />

nenhuma oportunidade de ressaltar as virtudes, e minimizar os defeitos,<br />

como disse, era um mestre, sempre respeitoso com todos.<br />

Veja, um detalhe tão pequeno e tão marcante para mim!<br />

Você tinha ideia quando era garoto de que ele era um ilustrador famoso?<br />

Lia os quadrinhos dele? Mostrava para os colegas na escola,<br />

coisas assim?<br />

Quando era garoto não tinha a noção do tamanho e do valor da obra<br />

do Nico. Os quadrinhos eu lia, na verdade eu via, pois acompanhava<br />

mais a produção das histórias sem dar maior valor à narrativa, à<br />

história ou aos personagens. Apenas anos mais tarde, quando iniciei<br />

minha coleção de HQ, é que comecei a dar mais atenção a esses aspectos.<br />

Mas confesso que o hábito de observar mais o desenho acabou<br />

ficando. Um lance que acontecia comigo, e de certa forma, era<br />

originado pelo parentesco é que a minha professora de química, na<br />

escola, me escalava para desenhar as ilustrações dos livros na lousa,<br />

para explicar a matéria a turma. Era uma sensação muito boa!<br />

Seu pai também era um excelente desenhista, bastante influenciado<br />

pelo Nico, mas muito melhor que vários de seus contemporâneos.<br />

O Luiz não conseguiu me explicar porque ele trocou esse talento<br />

pela química industrial. Você arrisca um palpite? Acha que pode ter<br />

sido a busca de uma profissão mais estável do que a de desenhista?<br />

Ou talvez sentisse o peso da comparação com o Nico? Qual sua opinião<br />

sobre isso?<br />

Perguntando para minha mãe, ao que parece o meu pai começou um<br />

curso de Geologia na USP e “tomou pau” em química. Como era um<br />

sujeito que não levava desaforo pra casa, foi cursar Química.<br />

Até por ser italiano e por haver nascido numa época onde a religião<br />

era muito importante, seu avô era um bom católico, segundo seu irmão.<br />

Ele trabalhou muito para as irmãs Paulinas, desenhando livretos<br />

de oração, catecismos e muita coisa para O Jornalzinho. Ao longo<br />

dos anos, uma faceta altamente erótica e sensual apareceu no traba-<br />

-lho dele, mulheres lindíssimas e nuas, cenas de sexo, etc. Você acha<br />

que ele teve algum dilema moral com isso?<br />

Acho que não. Ou talvez, num caso. Existe uma referência aos dese-<br />

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nhos que ele fez para a editora Luzeiro, para uma revista com anedotas<br />

do Bocage, que inclusive foi um de seus últmos trabalhos. Consta<br />

que ele pediu para que seu nome não aparecesse nos créditos, por<br />

se tratar de desenhos um pouco mais ousados, com cunho um pouco<br />

mais erótico. Penso que os nus que ele fazia estavam mais para obras<br />

de arte que para uma mera exposição do corpo feminino.<br />

E sua avó, como era a relação dela com o trabalho dele? Ela conhecia,<br />

gostava? Pergunto isso porque na geração deles era comum que a esposa<br />

não soubesse nada sobre o trabalho do marido, mas ao contrário<br />

de outros maridos que saiam para trabalhar de manhã e só voltavam<br />

no final da tarde, Nico Rosso trabalhava boa parte do tempo em casa,<br />

bem perto dela.<br />

Até onde sei ela praticamente acompanhava todo o trabalho dele.<br />

Exceto as aulas na Panamericana. Alguns desenhistas conteporâneos,<br />

como por exemplo o Rodolfo Zalla, comentam que a nonna era a<br />

“contadora”, enfim era ela que organizava as finanças, deixando a<br />

arte apenas para o artista.<br />

É muito comum que artistas tenham admiração por outros artistas.<br />

Você sabe se Nico Rosso tinha admiração por algum artista?<br />

As informações que tenho é que o nonno colecionava desenhos, principalmente<br />

os publicados no “Corrieri dei Piccoli” onde tinha desenhistas<br />

que ele estudava e se inspirava. Recentemente o Ignácio Justo<br />

devolveu ao meu irmão uma parte do arquivo do nonno que lhe havia<br />

sido emprestada e que tinha vestígios do incêndio na Brasilgráfica.<br />

Ele havia perdido contato com nossa família ao longo dos anos, mas<br />

no primeiro encontro possível fez a devolução. Era algo que havia<br />

prometido ao Nico e o fez depois de muito tempo, com muita emoção.<br />

Vocês são filhos do filho de Nico Rosso, que também desenhava.<br />

Seu irmão é ilustrador e você é web-designer. A genética do Nico empurra<br />

vocês para as artes? E o lado de sua tia Valeria? Você tem primos?<br />

Algum deles tem algum pendão artístico?<br />

Como netos do Nico eu e o Luiz realmente tivemos o privilégio de<br />

termos alguns dotes artísticos. O Luiz atua profissionalmente e eu,<br />

apesar de arriscar alguns traços, não me desenvolvi como desenhista.<br />

Mas não posso negar que tenho muita influência das artes<br />

em meu trabalho como web designer e como professor no segmento.<br />

E parece que a parte artística segue pelo cromossomo Y, pois<br />

pelo lado de minha tia Valeria, que teve duas filhas, minhas primas<br />

Andréia e Paula, ambas não tem, segundo elas mesmas, a mínima<br />

habilidade para o desenho. Minha irmã também não arrisca nada<br />

no que se refere a desenhos.<br />

Nico Rosso desenhou muito, trabalhou muito. Ele era extremamente<br />

produtivo, seu volume de trabalho beirava o inacreditável. Sei que<br />

não era praxe das editoras devolverem originais de ilustradores e<br />

sei que muita coisa dele se perdeu no desabamento/inundação de<br />

seu estúdio. Sobraram originais com a família, mesmo que danificados?<br />

Ou tudo se perdeu mesmo?<br />

Tenho um ou dois quadros originais, o Luiz tem mais algumas coisas,<br />

mas originais de quadrinhos, temos muita pouca coisa, principalmente<br />

pelo ocorrido no estúdio dele. Sabemos que existem<br />

originais na praça, principalmente quadros. Dizem que existe em<br />

alguma garagem perdida, o que seria o espólio da falida editora Taika,<br />

com os originais de toda a produção dos quadrinhos da época,<br />

mas acho que isso é lenda.<br />

Tem alguma história, alguma coisa sobre seu avô que você gostaria<br />

de compartilhar?<br />

Neste momento não me ocorre nada que gostaria de comentar. Queria<br />

apenas agradecer por meu nonno ser um grande exemplo. Exemplo<br />

de pai, avô, marido, desenhista, professor, mas principalmente<br />

de ser humano que veio e desempenhou seu papel com maestria<br />

ensinando um pouco a muitos e deixando uma obra que certamente<br />

o torna imortal.<br />

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UMA TARDE TRÁGICA | Dezembro de 1976. Depois de muitos anos morando<br />

no bairro paulistano da Vila Mariana, vamos encontrar Nico Rosso<br />

em sua nova residência, projetada de acordo com suas necessidades num<br />

novo local, o Planalto Paulista. Nos fundo do terreno, seu amplo e confortável<br />

estúdio de onde ele pouco saia, mesmo em suas raras horas vagas,<br />

quando aproveitava para tocar projetos pessoais. Chovia muito em São<br />

Paulo naquela tarde, um sábado, mais do que o normal nessa época do<br />

ano. Por puro acaso, Nico Rosso não estava em seu estúdio, mas sim vendo<br />

TV com seu neto Luiz, a poucos metros dalí, na residência que ficava<br />

na parte da frente do terreno. De repente, ouviram um estrondo e quando<br />

se deram conta, uma tragédia havia acontecido: o muro dos fundo cedera<br />

provocando uma inundação e um soterramento parcial sobre o estúdio<br />

destruindo grande parte do acervo de Nico Rosso. Depois descobriuse<br />

que a causa disso havia sido uma obra irregular no terreno que dava<br />

fundos ao estúdio, mas era tarde demais para fazer qualquer coisa. Isso<br />

acarretou um enorme grau de stress a Nico Rosso e ele acabou sofrendo<br />

um AVC. Socorrido a tempo, sobreviveu e acabou recuperando em parte<br />

suas capacidades motoras, mas não o bastante para que voltasse a trabalhar<br />

como ilustrador e desenhista. Ele passou os cinco anos seguintes se<br />

dedicando apenas à pintura, até que no dia 1º de outubro de 1981 sofreu o<br />

terceiro de uma série de infartes e não resistiu. Postumamente, em 1990,<br />

foi publicado o livro A Gotinha, escrito e desenhado por ele e que explica<br />

o ciclo das águas para crianças.<br />

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Nico Rosso se foi há 31 anos, mas sua obra era<br />

tão grande que continua disponível para todos<br />

aqueles que quiserem conhecê-la em bibliotecas<br />

públicas, sites feitos em sua homenagem, nos<br />

sebos e sites de leilão. Claro, algumas coisas são<br />

mais raras do que outras, mas quem se dispuser<br />

a pesquisar um pouco vai poder colecionar muitas<br />

publicações com seus desenhos. Todas elas<br />

valem muito a pena.<br />

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Número 1 - Novembro de 2012

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