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Onofre Lopes Júnior - Fundação Jose Augusto

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Natal, RN - N° 7, Julho, 2004<br />

- Entrevista: <strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> <strong>Júnior</strong><br />

- Ensaio fotográfi co - PIÃO<br />

- Sítio Novo - A arte que brota entre as serras<br />

- São Miguel - Celeiro de raras tradições culturais


Por David Clemente<br />

Os jardins do Teatro Alberto Maranhão (TAM)<br />

fi zeram as vezes de palco na noite de 29 de abril.<br />

Artistas, produtores musicais, jornalistas e convidados<br />

se reuniram para assistir ao anúncio dos indicados ao 6o Prêmio Hangar de Música. O evento, que já se consolidou<br />

como o mais importante prêmio da música potiguar, será<br />

realizado em julho.<br />

Serão entregues 34 troféus Clave do Sol, confeccionados<br />

pelo artista plástico Guaracy Gabriel, sendo quatro deles<br />

a homenageados. Os demais prêmios estão divididos nas<br />

categorias local, especial, nordeste e nacional. A exemplo<br />

do ano anterior, em 2004 a divulgação dos vencedores<br />

também deve ser feita no palco do TAM.<br />

As cinco edições do Prêmio Hangar já confi rmam sua<br />

importância para o cenário cultural do Estado. Para o<br />

cantor potiguar João Batista, projetado pelo programa<br />

Fama, da Rede Globo, e vencedor do Hangar como<br />

revelação de 2002 pelo júri popular, o prêmio valoriza<br />

a cultura da terra, além de servir de vitrine para o que o<br />

restante do país conheça a produção cultural local.<br />

Ele também parabeniza o Banco do Brasil pela iniciativa<br />

de apoiar o evento. “É difícil encontrar uma instituição<br />

que valorize, efetivamente, a cultura e os artistas. É<br />

preciso seguir esse exemplo”, diz.<br />

O VJ da MTV Max Fivelinha, que foi um dos<br />

apresentadores da 5ª edição do Prêmio Hangar e também<br />

esteve presente na divulgação dos indicados deste ano,<br />

já se prontifi cou a comparecer mais uma vez ao evento.<br />

Conhecido do público pelo seu gosto por “alfi netar”, o<br />

apresentador é só elogios quando perguntado sobre o<br />

prêmio. Quanto à participação do Banco do Brasil ele é<br />

enfático: “É o máximo!”, exclama.<br />

Enquanto os vencedores não são conhecidos, artista e<br />

público aguardam ansiosos. Se tem talento, pode ser<br />

você.


O fotógrafo<br />

Teotônio Roque,<br />

em ensaio, resgata<br />

uma antiga<br />

brincadeira, o<br />

jogo de pião<br />

“Abandonos”, conto<br />

de Nádia Maria<br />

Silveira, tem a<br />

cidade de Santa<br />

Cruz como cenário<br />

4 Julho 2004<br />

O jornalista e<br />

escritor Osório<br />

Almeida conta<br />

porque quer ser<br />

vereador<br />

O poeta e teórico<br />

de quadrinhos<br />

Moacy Cirne critica<br />

comemoração de “o<br />

dia de Bloom” em<br />

Natal<br />

Ofi cinas de<br />

Fotografi a e<br />

Identidade,<br />

da ZooN,<br />

movimentam o<br />

interior do estado<br />

A palavra da casa 5<br />

Expediente/Cartas 6<br />

Viagem ao universo de Marcelus Bob 8<br />

Ele é um só 12<br />

Palácio do Salineiro 13<br />

Um stalinista sonha com o parlamento 14<br />

Tombada casa do homem<br />

que encantou Mário de Andrade 20<br />

Chico Antônio - Cem anos depois 21<br />

Ensaio fotográfi co - Pião 23<br />

Por acaso 29<br />

O horóscopo 30<br />

Abandonos 32<br />

Algumas considerações sobre<br />

“o dia de Bloom” 34<br />

Leontino Filho - A saga e o segredo de<br />

urdir os restos do lirismo amoroso 36<br />

O tempo como um espaço<br />

para a solidão 38<br />

Ofi cinas constroem identidade e cidadania 40<br />

Pablo Neruda 42<br />

Escritura Potiguar - Mário Gerson 45<br />

São Miguel - Celeiro de raras<br />

tradições culturais 49<br />

Entrevista - <strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> <strong>Júnior</strong> 65<br />

Sítio Novo - A arte que brota<br />

entre as serras 75<br />

13 por 1 83<br />

PS 84


A palavra da casa<br />

cego Aderaldo defi nia as cores pelas sensações.<br />

O Uma espécie de conceituação Shopenhauneana.<br />

O vermelho era a cor da inquietação, o azul lhe parecia<br />

sossego. Não estou tratando da simbologia plástica<br />

e acadêmica das cores. Isso é assunto de intelectuais<br />

e eu não sou intelectual. Aliás, nem tenho paciência<br />

com intelectuais. O certo é que o cego Aderaldo, que<br />

não deveria ser chamado de cego, mas de o Cantador<br />

Aderaldo, tinha sua própria convicção das sensações<br />

pictóricas. E deliciava o Pe. Alexandrino Suassuna, em<br />

cujo sítio se hospedava quando fazia cantorias pelo sertão<br />

potiguar, com seus conceitos nada ortodoxos. Defi nia o<br />

caçuá pela sensação do grosseiro e não pelos contornos do<br />

couro cru. Explicava que os cambitos, postos na cangalha<br />

para transportar lenha, lhe transmitiam a impressão do<br />

amparo. O verde lhe dava a fotografi a do amanhecer.<br />

“Mas você também não vê o amanhecer”, retrucava o Pe.<br />

Alexandrino. “Ninguém vê o amanhecer. Ele se derrama<br />

antes do olhar”, dizia Aderaldo, que reafi rmava ser verde<br />

o amanhecer.<br />

“O roxo tem a cor do choro e o amarelo é tão instável<br />

quanto o vôo do beija-fl or”. A ser verdade, ou o que é<br />

verdade, da pergunta de Pilatos, é pouco provável que<br />

Aderaldo fosse ingênuo. Ele via mesmo, cada cor, no<br />

seu jeito e na sua capacidade de sublimar a visão. Daí se<br />

concluir que ninguém vê o verde. Ou da lição de Ortega<br />

Y Gasset, “quem está no bosque não vê o bosque, vê<br />

árvores do bosque”. Ou ainda “quem mora próximo à<br />

cascata não escuta o seu estrondo”.<br />

Este texto da abertura da Preá número sete é uma<br />

homenagem a dois homens especiais. Especiais e<br />

diferentes. O cantador Aderaldo e seu amigo e hospedeiro,<br />

o Pe. Alexandrino Suassuna de Alencar.<br />

Aderaldo e sua viola imbatível, seus versos e rimas que<br />

sacudiam os alpendres. Alexandrino e sua fé duvidosa.<br />

O afastamento da vida sacerdotal, a leitura dos gregos e<br />

latinos. A dúvida sobre os dogmas e a ironia fi na contra<br />

a liturgia. Além da coragem pessoal que não escolhia<br />

adversário. Fosse um bispo reacionário ou um cangaceiro<br />

que cercasse a Fazenda Cajuais. Alexandrino morreu em<br />

1955; Aderaldo ainda viveu doze anos, porém nunca mais<br />

andou praquelas bandas.<br />

Aderaldo Ferreira de Araújo fazia da viola os seus olhos<br />

de debulhar o escuro e transformar em luz o código da<br />

música popular.<br />

A noite era pequena e fugaz na fumaça dos cigarros e no<br />

bule de café que acompanhavam a conversa daqueles dois<br />

homens encharcados de dúvidas e solidão.<br />

Taí a Preá número sete. Pintando o sete.<br />

Julho 2004<br />

5


A Preá está na Internet: www.fja.rn.gov.br<br />

FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO<br />

Rua Jundiaí, 641 - Tirol - CEP 59020-120<br />

Fone/fax: (84) 232.5327/232.5304<br />

Governadora<br />

Wilma Maria de Faria<br />

Presidente<br />

François Silvestre de Alencar<br />

Diretor<br />

José Antônio Pinheiro da Câmara Filho<br />

PREÁ - REVISTA DE CULTURA DO<br />

RIO GRANDE DO NORTE<br />

ISSN 1679-4176<br />

ANO II Nº 7<br />

JULHO/2004<br />

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA<br />

PERIODICIDADE<br />

TRIMESTRAL<br />

EDITOR<br />

TÁCITO COSTA<br />

tacito@fi ern.org.br<br />

EDITOR ASSISTENTE<br />

GUSTAVO PORPINO<br />

gporpino@hotmail.com<br />

ESTAGIÁRIO<br />

DAVID CLEMENTE<br />

PROJETO GRÁFICO E<br />

DIAGRAMAÇÃO<br />

LUCIO MASAAKI<br />

infi nitaimagem@bol.com.br<br />

ASSISTENTE DE DIAGRAMAÇÃO<br />

VIRGINIA HELENA LINS MAIA<br />

REVISOR<br />

JOSÉ ALBANO DA SILVEIRA<br />

CAPA<br />

MARCELUS BOB<br />

6 Julho 2004<br />

CARTAS<br />

Sr. editor<br />

Este fi nal de semana tive o prazer de desfrutar de ótimas<br />

leituras, dentre as quais os artigos da revista PREÁ<br />

6. Quero parabenizá-lo pela apresentação, fotografi a,<br />

linguagem simples, acessível e de muito conteúdo que<br />

encontrei em cada página da revista. Conhecer pessoas,<br />

poetas, poemas, escritores, casos, causos, lugares é<br />

realmente algo muito prazeroso. Adorei a capa. Como<br />

é linda a fl or da mangabeira. Não tinha ainda prestado<br />

atenção. A entrevista com Nei Leandro de Castro foi dez!<br />

Enfi m gostei demais!!!<br />

Um grande abraço!<br />

Waldenice M. Cardoso<br />

Funcionária do Senai (Natal-RN)<br />

*************************<br />

Sr. editor<br />

Parabéns pelo nº 6 da Preá, uma revista de nível nacional.<br />

Gostei de todas as matérias, mas tenho reparos a fazer na<br />

minha entrevista. Em primeiro lugar, acho que falei muito,<br />

parece até que tomei chá de Fidel Castro e presidente<br />

Lula. Como quem fala muito está sujeito a cometer mais<br />

erros, eu cometi um lapso terrível: não incluí na lista<br />

dos velhos e queridos amigos os nomes de Luiz Antônio<br />

Porpino, Maria Emília Wanderley e Leda Guimarães. A<br />

omissão é imperdoável. Mas, almas generosas, esse amigo<br />

e essas amigas haverão de me perdoar.<br />

Nei Leandro de Castro<br />

Escritor (Rio de Janeiro-RJ)<br />

*************************<br />

Sr. editor<br />

Conheci a Preá por intermédio de amigos e hoje é um<br />

instrumento importante nas minhas aulas de Artes,<br />

Cultura e Economia do RN. O seu conteúdo expressa o<br />

que é de mais importante no cenário cultural do nosso<br />

Estado. A <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong> está de parabéns.<br />

Flávio José<br />

Professor (Florânia-RN).


evistaprea@rn.gov.br<br />

Sr. editor<br />

Chegou-me às mãos um exemplar da Preá nº 5. Bela<br />

revista, composição primorosa, conteúdo de primeira<br />

qualidade! Não só para estudiosos e pesquisadores, mas<br />

para todos que vivem as diferentes manifestações culturais<br />

do nosso imenso país. Parabéns pela iniciativa e realização!<br />

Sou pesquisadora de folclore e professora. Gostaria de<br />

receber a assinatura da Preá. (É mesmo gratuita?).<br />

No aguardo, agradeço a atenção.<br />

Thelma Regina Siqueira Linhares<br />

Pesquisadora (Recife/PE)<br />

*************************<br />

Sr. editor<br />

Gostaria de expressar minha satisfação em ler, pela<br />

primeira vez, esta bela revista que mostra a arte e a cultura<br />

do Rio Grande do Norte. Também queria saber como<br />

passar a recebê-la, pois lendo o exemplar de uma amiga,<br />

me interessei pela mesma. Gostaria de saber se posso<br />

também conseguir os exemplares anteriores.<br />

Um grande abraço,<br />

Alcimar Almeida da Silva<br />

Representante de eventos (Água Nova-RN)<br />

*************************<br />

Sr. editor<br />

De posse da Preá 2, enquanto escritora/poetisa e<br />

professora de artes em Ipueira, gostaria de parabenizar os<br />

enfoques dados à poesia e ao resgate da cultura. Aproveito<br />

para solicitar informações sobre como receber exemplares<br />

dessa revista tão benéfi ca para o setor educacional.<br />

Será uma honra trabalhar em sala de aula com artigos<br />

diversifi cados sobre a cultura artística numa visão ampla<br />

do fazer arte, a partir da Preá.<br />

Assim, espero um retorno!<br />

Carinhosamente,<br />

Naide <strong>Lopes</strong> de Morais<br />

(Ipueira -RN)<br />

Sr. editor<br />

É com muita satisfação que recebo a Preá aqui em<br />

Atibaia, São Paulo. Entrar em contato com o que se faz<br />

pelo Brasil afora para se preservar nossos valores culturais<br />

muito me alegra. Mais ainda com textos do Leontino,<br />

Bartolomeu Campos, os poemas, sempre a surpreender, e<br />

a reportagem sobre Cascudo. Na década de 80, um pouco<br />

por acaso, encontrei seus livros em uma Biblioteca aqui<br />

na região, escrevi inclusive alguns contos inspirados em<br />

suas idéias cujo teor precisaria rever. Continuem a me<br />

enviar a revista, tudo que é regional e tem esse caráter<br />

universalizante é de meu interesse.<br />

Abraços,<br />

Carlos Alberto Pessoa Rosa<br />

Médico-escritor (Atibaia-SP)<br />

*************************<br />

Sr. editor<br />

Sou estudante do Ensino Médio, adoro leitura, e gostaria<br />

de passar a receber a revista Preá. Gosto de aprofundar-me<br />

nos assuntos que a revista aborda, porque elas servem para<br />

o nosso futuro, para a vida de cada um, servindo também<br />

para trabalhos em grupo na escola e com meus amigos do<br />

grupo de teatro de que faço parte.<br />

Felicitações a todos,<br />

Franklin José Miranda<br />

Estudante (Florânia-RN)<br />

*************************<br />

Sr. editor<br />

Adorei a revista, já posso dizer que descobri uma das<br />

coisas desta vida, pela qual - como dizia o poeta - eu<br />

já sentia saudade antes mesmo de conhecer. Tudo está<br />

caprichado, sinto qualidade em todos os detalhes. Você<br />

está de parabéns, juntamente com todo o grupo; nós<br />

também por contarmos com sua competência.<br />

Um forte abraço,<br />

Rosa Cavalcante<br />

Engenheira (Natal-RN)<br />

Julho 2004<br />

7


8 Julho 2004<br />

Viagem ao universo de<br />

Marcelus Bob<br />

Por Moura Neto<br />

Fotos: Anchieta Xavier e<br />

acervo do entrevistado<br />

Mãe Luíza ainda<br />

não era um bairro<br />

urbanizado, mas do alto<br />

do morro descortinava-se<br />

uma das mais belas visões<br />

panorâmicas da cidade.<br />

Numa noite enluarada,<br />

Odete do Carmo saiu do<br />

seu barraco, chamou o fi lho<br />

mais velho, Marcelino, na<br />

época com uns sete anos de<br />

idade, e lhe disse:<br />

- Sempre que tiver a<br />

oportunidade de ver uma<br />

paisagem dessa, pegue papel<br />

e lápis e registre. Faz bem à<br />

alma.<br />

O recado foi dado enquanto<br />

ela apontava para o cenário<br />

deslumbrante que se<br />

espraiava diante daquela gente humilde, mas honesta, que<br />

habitava então uma das áreas mais carentes da capital – a<br />

lua cheia despontando por trás das dunas e iluminando a<br />

vastidão do mar. O menino que já gostava de rabiscar o<br />

que vinha na imaginação se sentiu ainda mais estimulado<br />

com aquelas palavras. Quase 40 anos depois, ao recordar<br />

esta história, algumas lágrimas umedecem o rosto de<br />

Marcelino William de Farias. O fi lho de dona Odete, que<br />

adotou o nome artístico de Marcelus Bob, tem agora 46<br />

anos, 25 dos quais dedicado à carreira de artista plástico.<br />

O pseudônimo foi adquirido no tempo em que estudava<br />

na Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte (atual


Cefet), onde concluiu o curso de mineração. Zé Aruanã,<br />

estrela do atletismo da escola, brincou com o colega que<br />

gostava de correr nas provas de 3 mil metros, mas que,<br />

bem sabia, tocava violão para a turma nos intervalos de<br />

aula:<br />

- Se tem Bob Dylan, se tem Bob Marley, tem também<br />

Bob William!<br />

Foi assim que ele fi cou conhecido como Bob. Mais tarde,<br />

porém, outros dois amigos, Fernando Mineiro (deputado<br />

estadual) e Roberto Hugo (professor de matemática),<br />

passaram a lhe chamar pelo nome com o qual viria assinar<br />

seus quadros e ser reconhecido como um dos mais ativos<br />

e talentosos artistas da cidade. Foi ainda na ETFRN<br />

que recebeu, quase por acaso, um valoroso incentivo. O<br />

professor de inglês Thomé Filgueira surpreendeu o aluno<br />

desenhando a caricatura de Mick Jagger, o famoso astro do<br />

rock. Ao invés da censura, o elogio. “Muito bom”, exaltou<br />

o professor, hoje considerado uma das grandes expressões<br />

da pintura impressionista potiguar. “Apareça amanhã no<br />

ateliê”, recomendou. Ele foi, sim, e acabou pertencendo<br />

a uma geração que fez jus ao ateliê da escola. Entre os<br />

anos de 1976/78, por lá também estiveram Carlos Sérgio<br />

Borges, Júlio César Revoredo e João Natal.<br />

Os caminhos trilhados ainda com certa timidez o levaram<br />

a encontrar confi ança para os passos que daria em seguida.<br />

Em março de 1980, aos 22 anos, tomou a decisão que<br />

deixou toda família apreensiva. Pediu demissão do<br />

IBDF (atual Ibama), onde entrou por concurso público,<br />

tendo se classifi cado em primeiro lugar, para militar<br />

exclusivamente no meio artístico. Ele até que gostava do<br />

que fazia no serviço público federal, onde, por mais de<br />

dois anos, exerceu a função de auxiliar agropecuário. Na<br />

prática, reproduzia mudas nos viveiros do Instituto. Mas<br />

achava que os chefes tinham mentalidade retrógrada. Era<br />

demais para ele!<br />

- Estou honrado em conseguir esta façanha neste elefante<br />

sem memória que é o Rio Grande do Norte -, afi rma<br />

Marcelus Bob, referindo-se ao fato de viver para a arte e<br />

da arte durante duas décadas e meia.<br />

Antes de explicar melhor o que quis dizer acima, um<br />

parênteses. A expressão “elefante branco sem memória”,<br />

segundo Marcelus Bob, foi cunhada pelo poeta Carlos<br />

Gurgel numa das muitas tertúlias que compartilharam. A<br />

façanha que deixa o artista honrado, contudo, é a de não<br />

ter tido outro ganha-pão, durante todos estes anos, senão<br />

aquele que conquista, dia após dia, com a criatividade<br />

com que manuseia pincel, óleo, esmalte sintético, acrílico<br />

e tudo o mais que pode servir de tinta e deixar marcas na<br />

tela, como café e remédio, produtos com os quais já fez<br />

trabalhos experimentais.<br />

- Nunca mais minha carteira foi assinada; nem sei por<br />

onde ela anda.<br />

Arte irreverente e perigosa<br />

Marcelus Bob é um legítimo exemplar remanescente da<br />

contracultura, coisa cada vez mais rara hoje em dia. Gosta<br />

de chocar com o comportamento irreverente e o estilo<br />

agressivo com que se apresenta até nos salões ofi ciais.<br />

Além das aparências, contudo, temos a impressão de estar<br />

diante de uma pessoa sensível e gentil com seu semelhante.<br />

Nosso primeiro encontro foi na Pinacoteca do Estado,<br />

abrigada no antigo Palácio do Governo, na Praça dos Três<br />

Poderes, centro da cidade. Conversamos por quase duas<br />

horas, à sombra das árvores frondosas do pátio externo do<br />

prédio. O artista usava camiseta sem mangas, pintada por<br />

ele mesmo, calça preta justa e desbotada, bolsa de pano<br />

a tiracolo, um par de chinelos “japonês” brancos e um<br />

colar de sementes nativas no pescoço. Os cabelos longos<br />

e ondulados estavam espalhafatosamente voando sobre<br />

o rosto, no qual repousava um óculos escuro sobre os<br />

olhos que estampavam o rescaldo das estripulias da noite<br />

anterior.<br />

Julho 2004<br />

9


Viagem ao universo de Marcelus Bob<br />

- A cabeça de artista é algo muito perigoso – disse ele,<br />

tirando os óculos do rosto e fi tando o tempo que se<br />

arrastava preguiçosamente naquela manhã.<br />

- Por quê? – questionei, procurando entender o que<br />

residia no íntimo daquela tirada fi losófi ca.<br />

- A arte é imprevisível! A arte é Deus!<br />

- Se é Deus, pode tudo?<br />

- Pode tudo, sim, ela é absolutamente livre.<br />

O diálogo reproduz a dimensão da essência do que<br />

Marcelus Bob é enquanto artista. Um transgressor. Numa<br />

das salas daquela mesma Pinacoteca há um quadro seu.<br />

A cena retratada em óleo sobre tela é algo só concebível<br />

na imaginação livre do artista: uma freira joga baralho no<br />

boteco. Seu parceiro é um homem vestido de paletó, com<br />

gravata e chapéu. Na parede do estabelecimento, o relógio<br />

marca 2h35 da madrugada. Em cima da mesa, além das<br />

cartas, copos e garrafa de pinga. Ao fundo, o dono do<br />

bar, um “humanóide encapuzado”, como o artista batizou<br />

estas fi guras que aparecem em muitos de seus trabalhos e<br />

se tornaram, como ele mesmo frisa, sua marca registrada<br />

(assim como a de Vatenor são os cajus e a de Assis<br />

Marinho, os pescadores).<br />

- Como você classifi ca seu estilo?<br />

- Possibilista – respondeu, com objetividade.<br />

- E quais as infl uências que você recebeu?<br />

- De todos os pintores que pude conhecer.<br />

- Mas quem exerceu maior infl uência sobre sua pintura?<br />

- Nunca tinha pensando nisso – disse, depois de uma<br />

pausa. Nova pausa e acrescentou: - Acho que Van Gogh,<br />

pelo desprendimento, soltura, genialidade e extravagância<br />

da sua arte.<br />

- Em matéria de extravagância, há o surrealismo de<br />

Salvador Dali com o qual você deve se identifi car muito<br />

bem, não é?<br />

- É... Salvador Dali entendia de perspectivas. Antônio<br />

Marques (marchand e idealizador de uma feira de<br />

antigüidades) me disse uma vez que, tecnicamente<br />

falando, me considerava um grande artista porque eu<br />

também entendia de perspectivas.<br />

10 Julho 2004<br />

Possibilidades e Perspectivas.<br />

Estas parecem ser as<br />

ferramentas que Marcelus<br />

Bob explora para construir<br />

sua arte sem fronteiras.<br />

Cem por cento autodidata,<br />

ele cresceu num ambiente<br />

familiar propício à carreira<br />

que escolheu. A avó gostava<br />

de ouvir música clássica.<br />

A mãe era vocalista de um<br />

coral da igreja. O pai fazia<br />

esculturas em madeiras,<br />

depois de ter sido repentista<br />

no Vale do Açu (José Pedro<br />

de Farias Filho acabou sendo<br />

homenageado ainda em vida,<br />

emprestando seu nome para<br />

uma rua do Conjunto Nova<br />

Natal, na Zona Norte, onde<br />

mora: rua Artesão Farias).<br />

Nascido em Natal, Marcelus<br />

Bob cresceu no Paço da<br />

Pátria, “debaixo da Pedra<br />

do Rosário”, às margens do<br />

Rio Potengi. Dali, mudouse<br />

ainda criança para<br />

Mãe Luíza. Recebeu uma<br />

educação rígida, reconhece,<br />

mas sempre encontrou apoio<br />

na família para seguir seu<br />

destino profi ssional. Uma<br />

das causas do atrito com o<br />

pai, crente da Assembléia<br />

de Deus, foi a cabeleira que<br />

desde muito tempo cobre os<br />

ombros. Mas as discussões só<br />

aconteceram na juventude,<br />

esclarece, pois hoje já é aceito<br />

com o manequim que gosta<br />

de exibir.


Inspiração no morro de Mãe Luíza<br />

O segundo encontro com o artista foi no seu ateliê,<br />

em Mãe Luíza, situado na rua Largo do Farol, nas<br />

proximidades do monumento que identifi ca o bairro,<br />

no mesmo endereço em que mora com a esposa Nilza, a<br />

sogra e o fi lho Lenon Li, nome dado em homenagem ao<br />

ex-Beatle John. Naquela casa simples, despojada de luxo,<br />

ele às vezes trabalha freneticamente, às vezes se entrega ao<br />

ócio das entressafras.<br />

Certamente é ali, naquele bairro, que Marcelus Bob<br />

encontra inspiração na fauna humana para compor os<br />

personagens que permeiam sua obra. Nas vizinhanças<br />

todos o conhecem, todos sabem quem ele é. Parece ser<br />

tão popular quanto era um outro ilustre morador daquele<br />

morro, já falecido, o poeta dândi Blecaute.<br />

Já ocorreu de levar seus quadros para a bodega do Deda,<br />

onde entre um gole e outro fi ca colhendo as impressões<br />

do povo a respeito da sua arte. Nestas ocasiões, os<br />

“humanóides encapuzados” costumam provocar<br />

polêmica. As fi guras são interpretadas de muitas maneiras<br />

diferentes. Uns acham que elas são coisas de Deus, outros,<br />

do diabo. Uma mulher negra disse que os tipos sombrios<br />

que apareciam naquela tela eram semelhantes aos da Ku<br />

Klus Klan, organização criminosa e racista dos EUA.<br />

Segundo Marcelus Bob, as pessoas simples do morro têm<br />

uma sensibilidade aguçada pela arte de viver.<br />

A serena rebeldia de Marcelus Bob o levou a buscar outro<br />

canal de expressão para fazer ecoar seu uivo iconoclasta.<br />

Foi assim que fundou há 12 anos, e ainda hoje lidera,<br />

o Grupo Escolar, uma banda de rock pesado, aliás<br />

pesadíssimo, como ele mesmo frisa, no qual toca guitarra<br />

e atua como compositor e vocalista. Pelo grupo passou<br />

gente da qualidade de Tadeu Litoral, Paulinho Procópio<br />

(também fundadores), Cleudo Freire, Geraldinho<br />

Carvalho e Ilo Sérgio. Hoje, ao lado de Marcelus Bob,<br />

fi guram Glauco (baterista) e Leão (baixista). Numa das<br />

letras composta em parceria com Paulo Procópio, na<br />

música intitulada “A Bomba”, está escrito o singelo alerta:<br />

“Bomba... vamos explodir essa bomba/bomba, vamos<br />

trocar bombons por bomba”.<br />

O artista que tempos atrás teve problemas com a polícia<br />

por sair nas madrugadas frias borrando os muros da<br />

cidade com “grafi tes”, agora se debruça sobre um projeto<br />

para comemorar os 25 anos de vida artística. Além de<br />

promover uma exposição,<br />

em data a ser defi nida, quer<br />

publicar um livro, pelo Sebo<br />

Vermelho, com fotos das<br />

séries de quadros que pintou<br />

(humanóides, repentistas,<br />

rendeiras, pescarias, instrumentos<br />

musicais, paisagens<br />

litorâneas, etc...). Os textos<br />

vão fi car sob a tutela de Dácio<br />

Galvão, Jota Medeiros e João<br />

da Rua, só para citar alguns.<br />

Sua produção, neste período,<br />

é grande. Calcula uns cinco<br />

mil quadros, de todos<br />

os tamanhos e formatos,<br />

incluindo os minúsculos.<br />

Talvez seja exagero. Talvez<br />

não. Atualmente participa<br />

do M8M (Movimento<br />

8 de Março – Dia do<br />

Artista Plástico), que busca<br />

movimentar as artes plásticas<br />

no Estado.<br />

É certo, contudo, que<br />

Marcelus Bob continuará<br />

produzindo e expondo.<br />

Ele que já perdeu a noção<br />

de quantas exposições<br />

participou, contabiliza seis<br />

prêmios na sua carreira,<br />

dois deles conferidos pela<br />

<strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong> e<br />

outros dois em circuitos<br />

artísticos do Nordeste. É<br />

quase certeza, também, que<br />

toda vez que vê uma paisagem<br />

deslumbrante, como uma lua<br />

cheia despontando por trás<br />

das dunas e iluminando a<br />

vastidão do mar, o fi lho de<br />

dona Odete pega lápis e papel<br />

e registra. Faz bem à alma.<br />

Julho 2004<br />

11


12 Julho 2004<br />

Rubens Lemos Filho (Jornalista)<br />

Quero viver o sufi ciente para ser avô. Ter um neto é<br />

um sonho distante embora o frasista diga que longe<br />

é um lugar que não existe. Ama-se o neto em dobro,<br />

derretem-se alguns avós.Meus dois fi lhos, um com 11 e<br />

outra com 4 anos, ainda estão no melhor momento da vida,<br />

que é o de vivê-la sem que lhes sejam apresentadas faturas.<br />

O meu primeiro neto, se for homem, já tem o primeiro<br />

presente guardado. Não é um brinquedo, é um símbolo<br />

de uma das tardes mais felizes do meu tempo. No último<br />

dia 25 de junho, a convite do jornalista Ailton Medeiros,<br />

pude ser um dos poucos bem aventurados a assistir,<br />

pasmos, o que nossos pais nunca esqueceram.<br />

O meu neto primeiro ganhará o bilhete do Moviecom 1,<br />

cinema no qual eu mergulhei no inacreditável ao ver “Pelé<br />

Eterno”. O bilhete amassadinho ornamentará o berço do<br />

futuro abecedista e vascaíno.<br />

O que eu vi transcende a lógica, a metafísica, a<br />

matemática, a geografi a, a aritmética, a democracia, a<br />

anarquia, a ditadura. A Bossa Nova, o Tropicalismo, a<br />

Jovem Guarda e o Samba de Protesto. O que eu não<br />

consigo esquecer transpõe o Rio Nilo, o Amazonas, o<br />

Tejo e o Mar Morto.<br />

As cenas não podem ser descritas porque formam algo<br />

muito além da capacidade humana de discernimento. Se<br />

existe o paraíso, seu chão foi construído pelas pisadas de<br />

Pelé. A arquitetura dos seus dribles, lançamentos, gols<br />

feitos, gols perdidos, porradas nos adversários tem a régua<br />

e o compasso do inexplicável.<br />

Bob Kennedy, Henry Kissinger, a Rainha Elizabeth,<br />

guerreiros tribais africanos, multidões enlouquecidas,<br />

depoimentos emocionados como o do goleiro “Mão<br />

de Onça”, do Juventus, que se viu de mãos abanando,<br />

naquele lance considerado pelo próprio monarca o mais<br />

perfeito de sua perfeição.<br />

Até o Edson Arantes é perdoado. Numa nesga de ranço<br />

dos homens comuns, exclui o segundo gol de Gerson na<br />

fi nal dos 4x1 contra a Itália, em 70. Porque Gerson, tão<br />

parceiro de Pelé, esbravejou ao se ver excluído da lista<br />

de Edson dos 120 melhores do século. Edson é corpo,<br />

matéria. Pelé é alma e eternidade.<br />

Foram duas horas que valeram uma vida. Eu vi o que eu<br />

não vivi. E o meu neto verá também, abençoado seja ele<br />

amante de uma musa chamada bola, prisioneira lasciva de<br />

um só Rei.


Macau ganhou em<br />

maio a sua Casa de<br />

Cultura Popular. O “Palácio<br />

do Salineiro” foi instalado<br />

num antigo casarão de<br />

arquitetura colonial, tombado<br />

pelo Patrimônio Histórico e<br />

Cultural, localizado no centro<br />

da cidade. Até o momento, o<br />

investimento total para a criação<br />

das Casas de Cultura foi de R$<br />

1 milhão e 165 mil. Outras<br />

quatro casas já começaram a<br />

ser construídas, nos municípios<br />

de Parelhas, Campo Grande,<br />

Currais Novos e Umarizal.<br />

“Estamos trabalhando para<br />

fortalecer a identidade cultural<br />

e resgatar a história do povo<br />

do Rio Grande do Norte”,<br />

afi rmou a governadora Wilma de Faria, na solenidade<br />

de inauguração da Casa de Cultura de Macau, a sexta<br />

construída pelo governo (as outras foram em Nova Cruz,<br />

Caicó, Assu, Martins e Santa Cruz). A solenidade contou<br />

com a presença de familiares do antigo proprietário do<br />

imóvel, o ex-prefeito Albino Mello, e com apresentação<br />

de artistas da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong> e do município.<br />

O presidente da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>, François<br />

Silvestre, destacou a determinação do governo em<br />

expandir para o interior o movimento de revitalização<br />

da cultura popular. Para atender a essa determinação<br />

da governadora Wilma de Faria, afi rmou, as Casas de<br />

Cultura cumprem um papel fundamental. Nelas, serão<br />

realizadas ofi cinas, palestras, seminários, exposições e<br />

projeções de fi lmes, que possibilitarão o surgimento de<br />

novos talentos.<br />

A obra de reforma e adaptação do Palácio dos Salineiros,<br />

segundo François Silvestre, foi realizada em apenas duas<br />

semanas, graça ao empenho dos técnicos da FJA. O<br />

investimento foi de 280 mil, assim divididos: R$ 160<br />

mil destinados à aquisição do imóvel, R$ 30 mil para<br />

a compra do mobiliário e R$ 90 mil empregados na<br />

restauração.<br />

Com uma área construída de 550 metros quadrados,<br />

a nova Casa de Cultura Popular conta com 16<br />

compartimentos, que abrigarão biblioteca, museu,<br />

pinacoteca, administração, auditório para 80 pessoas,<br />

duas salas para ofi cinas, cozinha/café e espaço cultural<br />

para eventos, com cem metros quadrados de área coberta.<br />

“Palácio do Salineiro”<br />

Julho 2004<br />

Fotos: Jaime Paulino 13


Um stalinista sonha com o parlamento<br />

14 Julho 2004<br />

Por Tácito Costa<br />

Fotos: Anchieta Xavier<br />

rua Antônio Pegado, no centro de Natal, espremida entre a Padre Pinto e a Pitimbu,<br />

A tem apenas dez casas, cinco de cada lado, e uma numeração esquizofrênica. Uma<br />

das casas está fechada, em ruínas. Na de número 28, pintada com um azul forte, mora<br />

o jornalista e escritor Osório Almeida de Oliveira, o último stalinista do Rio Grande<br />

do Norte, que este ano, pela terceira vez, tentará chegar ao parlamento “burguês”. É<br />

candidato a vereador. Quem o procurar na pequenina rua deve ter cuidado para não bater<br />

na porta errada e pensar que está sendo vítima de alucinação. É que devido à numeração<br />

errática das casas, o número 28 deveria estar fi xado à residência onde funciona a “Casa<br />

Franciscana – Santa Maria dos Anjos”, da Ordem Franciscana Secular. Uma terrível<br />

ironia! Osório é comunista e ateu empedernido.<br />

Sem camisa, de calça – passa das 9 horas e o calor já incomoda – calçando chinelas<br />

havaianas e com a indefectível boina verde. É assim, à vontade e sem frescura, que o<br />

jornalista recebe os amigos e conhecidos. A casa é apertada. Um vão só, dividido em<br />

área, sala, quarto, cozinha e banheiro. Na frente duas portas e uma janela. Não tem área<br />

de serviço e nem é estucada. Menos de 50 metros quadrados de área construída. Por<br />

isso não paga IPTU. Para compensar o espaço ocupado pelos livros e discos de vinil,<br />

os demais objetos têm de ser pequenos, como o fogão de duas bocas, o frigobar e a Tv<br />

de 14 polegadas. Grande só o antigo som 3 em 1, que toca os ‘bolachões’ e que fi ca em


cima de uma mesa. Nas paredes da sala fotos desbotadas<br />

de Ho Chi Minh, Karl Marx, Lenin, Zapata e Engels,<br />

algumas em melhores condições de Heloisa Helena, Babá<br />

e uma foto maior, com qualidade publicitária, da modelo<br />

potiguar Fernanda Tavares.<br />

Osório mora com a mãe, dona Helena Germano de<br />

Almeida, 82 anos, irmã do conhecido Padre Zé Luiz, já<br />

falecido. Ele dorme na sala. Ela ocupa o único quarto da<br />

casa, onde passa boa parte do dia numa “espriguiçadeira”,<br />

com os pés em cima de uma almofada, de frente para<br />

uma televisão. Quando está ligada a Tv oferece uma boa<br />

imagem, que chega a dona Germana embotada. Ela tem<br />

catarata, mas não quer fazer cirurgia. Por medo. Apesar<br />

de lúcida, dona Helena tem uma certa difi culdade para<br />

se locomover e Osório é quem cuida de tudo na casa,<br />

levando-a também, de táxi, aos médicos e ministrando<br />

os muitos remédios que ela tem de tomar durante o dia.<br />

Católica fervorosa, quando está mais disposta vai às missas<br />

na Igreja do Galo, há poucos metros de onde mora.<br />

O zelo e carinho com que é tratada pelo fi lho, contudo,<br />

não impediram que um malvado o denunciasse de manter<br />

a mãe em cárcere privado. Esse ano, quando menos se<br />

esperava, chegaram umas pessoas numa Kombi, se<br />

dizendo do Ministério Público, afi rmando que ele tinha<br />

sido acusado de manter a mãe presa e queriam constatar<br />

se isso era verdade. Entraram, conversaram com a velha<br />

senhora e viram que as denúncias não tinham veracidade.<br />

“Meu irmão {Moacir Oliveira, ex-diagramador da<br />

Tribuna do Norte e do Diário de Natal} chegou nessa<br />

hora e soltou os cachorros em cima deles”, conta Osório,<br />

que atribui o episódio à perseguição movida pelo Partido<br />

dos Trabalhadores (PT).<br />

Com a saúde precária, a mãe precisa de cuidados extras e<br />

passou a ser o centro da vida do jornalista. “A prioridade<br />

é tomar conta da minha mãe, fazer as compras, cuidar da<br />

casa. Mas uma casa, por menor que seja, é trabalhosa”<br />

reconhece Osório. Numa folga e outra faz o jornal<br />

alternativo “De Esquerda Quadrinhos”, sai para vendêlo<br />

e cuidar da vida. Para diminuir o trabalho, compra a<br />

comida em restaurantes do centro. É o único “luxo” a que<br />

os dois se permitem. Dos R$ 1.600,00 que recebe como<br />

aposentada dona Helena ainda ajuda o fi lho Moacir, que<br />

está sem trabalho fi xo já há algum tempo.<br />

Jornalista e escritor alternativos<br />

Os cerca de 300 livros e 1.600 discos vinis (alguns raros),<br />

mais jornais e revistas abarrotam duas estantes, uma na sala<br />

e outra na área. Todo esse acervo foi amealhado em sebos<br />

e reúnem obras de todos os estilos e épocas. Na estante<br />

da sala estão os livros que o jornalista qualifi ca como<br />

melhores e que ele vai tirando e mostrando: “O manifesto<br />

comunista”, “A arte da guerra”, “O príncipe”, “O jardim<br />

das delícias”, “A interpretação dos sonhos”, “Manual<br />

dos inquisidores”, “O Tao”, “Estado e Revolução”...<br />

Mostra o que está lendo atualmente, “Geração em transe<br />

– Memórias do tempo do tropicalismo”, de Luís Carlos<br />

Maciel, um presente do também jornalista e escritor<br />

Franklin Jorge, e pergunta:<br />

– Você sabia que conheci Luís Carlos Maciel? Estive no<br />

apartamento dele, no Rio de Janeiro. Era casado com<br />

Maria Cláudia, atriz da Tv Globo. Belíssima!<br />

Em música prefere rock: Janis Joplin, Bob Dylan, Beatles,<br />

Pink Floyd, Raul Seixas... E sentencia, categórico: – o<br />

último conjunto de rock foi o Dire Straits, de lá pra cá é<br />

só lixo. Em cinema, ama os faroestes, embora esteja cada<br />

vez mais afastado das salas. Entre os fi lmes preferidos<br />

cita “Shine”, “No Tempo das Diligências”, “Paixão dos<br />

Fortes”, “Cidadão Kane”, “Casablanca”, os fi lmes de<br />

Jacques Tati...<br />

– Mas o melhor de todos é “Doutor Jivago” – revela.<br />

Julho 2004<br />

15


Um stalinista sonha com o parlamento<br />

Osório Almeida edita um jornal alternativo há 20 anos<br />

(começou com o nome de “Rangal” e hoje se chama “De<br />

Esquerda Quadrinhos”). Nos primeiros anos, por não ter<br />

diploma de jornalista, enfrentou problemas e os amigos<br />

jornalistas Ubirajara Macedo e Miranda Sá assinavam<br />

as publicações. É também um escritor prolífi co. Tem 22<br />

livros publicados (todos edição do autor), entre poesia,<br />

ensaio e fi cção: “Coração Beat”, “Fim da Linha”, “O antiherói<br />

das Estradas”, “O Chapéu Furado”, entre outros.<br />

As edições são precárias e as tiragens limitadas, próprias<br />

de um “escritor alternativo”, como ele próprio se defi ne.<br />

O jornal – hoje uma página, frente e verso, mas que já<br />

chegou a ter oito páginas - com textos e quadrinhos, tem<br />

tiragem de 300 a 500 exemplares. Metade é vendida, de<br />

mão em mão, a 50 centavos, no centro da cidade, a outra<br />

metade é distribuída gratuitamente.<br />

Há dez anos custa o mesmo preço. – Um modelo de<br />

administração – diz com orgulho.<br />

Em busca de votos<br />

No telefone, dias antes, quando ligo para marcar a<br />

entrevista, Osório se mostra entusiasmado e diz que a<br />

lembrança veio em boa hora. Considera que a reportagem<br />

16 Julho 2004<br />

o ajudará a ganhar alguns votos nas próximas eleições,<br />

quando disputará um mandato de vereador pelo PDT. Ele<br />

também está animado porque foi escolhido para conduzir<br />

a “agitação e propaganda” do partido, visando ajudar os<br />

candidatos nas eleições.<br />

A plataforma eleitoral desse stalinista (“sou stalinista<br />

assumido, não tem quem me demova dessa idéia”),<br />

taoísta e maoísta convicto já está pronta. Sua principal<br />

bandeira, chegando à Câmara Municipal, será “salvar o<br />

centro de Natal”. “Sou um homem do meu bairro, não<br />

saio do centro nem por cem e uma cocada”. As ações em<br />

prol do centro ele promete estender aos bairros da Ribeira<br />

e Alecrim.<br />

Mas Osório não pretende fi car só na defesa dos três bairros<br />

citados acima. Está nos seus planos criar uma fundação<br />

cultural – <strong>Fundação</strong> Karl Marx. Mas ele esclarece na<br />

bucha: essa não terá nada de assistencialismo, ambulâncias,<br />

essas coisas, será voltada para a cultura. Também está no<br />

seu programa abrir um restaurante popular macrobiótico<br />

(ele se alimenta à base de arroz integral e não come carnes<br />

vermelhas); arrendar os prédios onde funcionavam os<br />

cinemas Rio Verde e entregar ao artista plástico Falves<br />

Silva e ao cinéfi lo Paulo Palocha para gerenciá-los; criar a<br />

banda de rock “Fila do SUS” (“a banda durará enquanto<br />

tiver fi la para ser atendida pelo SUS”); Criar uma galeria<br />

de arte popular; entrar com um projeto para aumentar<br />

o número de guardas municipais, com o objetivo de<br />

patrulhar o Centro, a Ribeira e o Alecrim; manter um<br />

advogado de plantão para livrar da cadeia os que forem<br />

apanhados com “bagulho”; e criar o jornal “Caixa Preta”,<br />

para mostrar a sujeira da burguesia.<br />

– Que é o que Lenin manda fazer.<br />

Não será a primeira vez que esse renitente comunista tenta<br />

chegar ao parlamento. Em 1982 foi candidato a deputado<br />

estadual pelo PMDB e em 1990 pelo PSDB. No PSDB<br />

fi cou doze anos e não guarda uma boa recordação desse<br />

período. “Foram doze anos perdidos, ou partidinho<br />

nojento”. Antes de chegar ao PDT, em 2003, milita um<br />

ano no PC do B. “Me desencantei com o PC do B, mas<br />

não com o comunismo”, esclarece.<br />

Mas nada iguala a decepção e o sofrimento com a perda<br />

de visão do olho direito, que ele atribui a terroristas de<br />

direita e fanáticos religiosos, que não o perdoam por ser<br />

comunista a ateu. No ensaio “O que a vida me deu”, ele<br />

conta de maneira amargurada e revoltada, a história do<br />

descolamento da retina, que o deixou completamente


cego do olho direito a partir de maio de 2001. Garante<br />

que a culpa foi de um fanático religioso que resolveu<br />

castigá-lo (um oftalmologista, que prefere não dizer o<br />

nome), agindo como um Deus. Sobra também para a<br />

direita: “A direita é muito organizada e efi ciente quando<br />

quer fazer o mal”.<br />

As aventuras de “Ho”<br />

Aos 57 anos - nasceu no dia 12 de novembro de 1947,<br />

em São José de Campestre - Osório Almeida de Oliveira<br />

nem sempre foi conhecido por esse nome. Já se chamou<br />

“Ho”, durante os anos em que foi hippie, participou do<br />

desbunde da década de 70, e viajou pelo país, indo parar<br />

na Argentina, onde foi preso logo na chegada (acusado de<br />

contrabando) e deportado três dias depois por conduzir<br />

60 pedras semi-preciosas que tinha adquirido em Ouro<br />

Preto-MG. O novo nome, “Ho”, foi dado pelo tio, Padre<br />

Zé Luiz, na temporada em que passou na casa dele, em<br />

São Paulo. Zé Luiz o achava parecido com um vietnamita<br />

– continua parecido - e se inspirou em Ho Chi Minh para<br />

dar o novo nome.<br />

Hoje, Osório conclui: “É ruim viver brigado com o<br />

nome”.<br />

Em Campestre, morou até os 8 anos de idade. Em 1955,<br />

Zé Luiz foi indicado padre da paróquia de Taipu e levou a<br />

irmã Helena e os dois fi lhos, Osório e Moacir, para morar<br />

perto dele. Seis meses depois a Igreja transfere Zé Luiz<br />

para Touros e novamente dona Helena vai junto. “Na<br />

primeira noite em Touros não dormi com o barulho do<br />

mar”, recorda Osório. Mora dois anos em Touros, retorna<br />

a Campestre, onde conclui o primário e em 1960 chega<br />

a Natal.<br />

Mora, inicialmente, no centro, na rua 13 Maio, próximo<br />

a catedral velha. “Ali era o must de Natal, tinha uma<br />

movimentação cultural intensa”. A mãe se emprega como<br />

costureira na Maternidade Januário Cicco e a família se<br />

muda para uma rua próxima à maternidade, onde fi ca<br />

até 1964. No ano seguinte, se muda para a rua Antônio<br />

Pegado, onde está até hoje. Estuda na Escola Técnica de<br />

Comércio e no Marista, à noite. Mas não chega ao 2º<br />

grau. Conhece o pessoal da área cultural e em janeiro de<br />

1968, como ator, fazendo parte de um grupo, embarca<br />

para o Rio de Janeiro, para representar o Rio Grande do<br />

Norte no 5º Festival Nacional de Teatro do Estudante,<br />

com a peça “Calígula”, dirigida por Jesiel Figueiredo.<br />

“Fui maquiado por Glauce Rocha, que era uma estrela do<br />

teatro nacional”, diz, orgulhoso. A peça dividiu o 1º lugar<br />

com Pernambuco e Rio Grande do Sul.<br />

– Dizem as más línguas que houve infl uência política<br />

para que fi cássemos com o 1º lugar – reconhece Osório,<br />

lembrando que na época o senador Dinarte Mariz era<br />

uma das lideranças civis mais fortes da ditadura militar e<br />

Meira Pires era diretor do Serviço Nacional do Teatro.<br />

A decisão de fi car no Rio de Janeiro, após a apresentação<br />

da peça, foi tomada ainda em Natal. Trabalhando como<br />

“serviço prestado” na universidade, na época ainda<br />

estadual, o jornalista não teve paciência para esperar a<br />

contratação. Nos primeiros meses no Rio – onde fi caria<br />

quatro anos - tenta a carreira teatral, mas cai na real. “O<br />

nível do teatro carioca estava nas estrelas”. Começa a<br />

vender programas de espetáculos nas portas dos teatros.<br />

“Me conformei que tinha de ser vendedor”.<br />

Passa de vendedor de programa de espetáculo a vendedor<br />

do Touring Club do Brasil, onde trabalha um ano e meio.<br />

Do Touring para a Crecim (instituição fi nanceira). Nesses<br />

Julho 2004<br />

17


Um stalinista sonha com o parlamento<br />

anos de Rio, freqüenta o Centro Norte-rio-grandense,<br />

onde no bate-papo com os potiguares desterrados mata as<br />

saudades da terra. Entre eles, o professor Rodrigues Alves,<br />

a quem pede uma lista dos ricos do Rio Grande do Norte<br />

que moram no Rio de Janeiro. Da lista, constavam, entre<br />

outros, o ex-prefeito de Natal Omar Ogrady, Luiz Viana e<br />

Mota Neto. A esses ricos oferecia oportunidades de bons<br />

rendimentos fi nanceiros na Crecim.<br />

No novo emprego, os ganhos melhoram e ele se muda<br />

do Catete para o Leblon. “Racine {Santos – teatrólogo}<br />

esteve no meu apartamento. Levei-o aos melhores<br />

restaurantes. Ele chegou em Natal dizendo que eu estava<br />

rico”, conta rindo.<br />

Crise de identidade<br />

A efervescência cultural e política tomavam conta do<br />

país e Osório não passaria incólume por ela. Em 68,<br />

assiste a famosa “passeata dos cem mil”, mas o ano da<br />

virada é 72. “Nesse ano entrei numa crise de identidade”.<br />

Trava contatos com hippies na zona sul carioca e resolve<br />

passar uma semana em Ouro Preto. Coloca a mochila nas<br />

costas, deixa um argentino que conhecera há poucos dias<br />

tomando conta do apartamento e se manda. Na volta<br />

de Ouro Preto, decide sair do banco e pegar a estrada<br />

de vez. Começa a sua odisséia particular, que o levaria<br />

a dez cidades de Minas Gerais, interior de São Paulo,<br />

18 Julho 2004<br />

todo o Sul do país, Argentina até o retorno a sua Ítaca<br />

amada, Natal. “Queria conhecer a vida e o país”, resume.<br />

Acrescentando: – Minha geração só teve duas opções: a<br />

estrada ou a guerrilha.<br />

Nessas peregrinações pelo Brasil aporta na “Prainha<br />

Branca”, litoral paulista, próximo a Bertioga, onde fi ca<br />

três meses só namorando, pintando e comendo peixe.<br />

Mora depois seis meses em Embu (SP), onde expõe seus<br />

trabalhos de artes plásticas na praça, e São Paulo capital.<br />

Sente que é o momento de retornar a Natal. O ano é<br />

1974. Desembarca irreconhecível: barba e cabelo grandes,<br />

cheio de colares, roupas e idéias esquisitas. A família<br />

toma um choque. “Me mãe me estranhou e chegou<br />

a comentar com os franciscanos que eu tinha voltado<br />

comunista”. Mas o espanto maior foi do pai, Emídio<br />

Manoel de Oliveira (hoje com 89 anos e morando ainda<br />

em Campestre). Osório resolveu visitá-lo. O velho quase<br />

teve um ataque do coração e foi procurar o prefeito para<br />

saber o que danado era um hippie.<br />

O prefeito foi curto e grosso: – São um bocado de<br />

maconheiro.<br />

Ainda no mesmo ano em que chegou a Natal, Osório<br />

desistiu de ser hippie e procurou se integrar à cidade.<br />

Arranjou para trabalhar na Gráfi ca de Carlos Lima,<br />

na Ribeira, vendendo assinaturas do “Cadernos do<br />

RN” e do jornal “Folha dos Municípios”. Do setor de<br />

assinatura passa para o de anúncios. “Quem levantou<br />

a publicidade aqui no Rio<br />

Grande do Norte fui eu.<br />

Antes só existia a Dumbo<br />

e a Expo”. Até então, não<br />

havia surgido ainda a<br />

vocação para o jornalismo,<br />

que começa quando ele,<br />

além de vender anúncios,<br />

começa a fazer textos para<br />

a “Folha dos Municípios”.<br />

Com o irmão trabalhando<br />

como diagramador na<br />

Tribuna do Norte, surgiu a<br />

oportunidade de ingressar<br />

no jornal. Começa como<br />

colunista cultural e depois<br />

passa a fazer reportagens.<br />

A mais memorável foi a<br />

entrevista – que participou,<br />

junto com o jornalista


Emanoel Barreto – com Astor Piazzola, na beira da<br />

piscina do Hotel Reis Magos.<br />

A troca da foto de uma atriz (Rejane Medeiros) por<br />

uma socialite o levou a sair da Tribuna. “A culpa foi de<br />

J.Epifânio {colunista social} que fez fuxico”. Vai para o<br />

jornal ofi cial A República, onde também não demora<br />

muito. Motivo da saída: deixou “passar” uma entrevista do<br />

poeta Esmeraldo Siqueira com críticas a meio mundo.<br />

– Botei sabendo que ia dar bronca.<br />

Militância política<br />

O gosto pela política começa em 1978, quando trabalha,<br />

como jornalista, no comitê do então candidato a senador<br />

Radir Pereira, emprego arranjado pelo amigo “Chico<br />

Miséria”. Conhece o advogado e deputado Roberto<br />

Furtado, a quem admira até hoje. Ainda trabalha, em<br />

82, no jornal “Folha da Manhã”, que deixa algum<br />

tempo depois. Começa a se cansar trabalhando como<br />

jornalista para os outros. Amadurece a idéia de criar<br />

seu próprio jornal, até que em março de 1984 lança<br />

“Rangal”, tablóide de oito páginas. Nunca mais deixaria o<br />

jornalismo alternativo.<br />

Com vinte anos de batente, Osório é um crítico ácido<br />

da mídia brasileira. “Acho que a imprensa no Brasil é<br />

como a justiça, só vê o lado da classe dominante”, analisa.<br />

Também está desencantado com o Governo Lula: “Desde<br />

o começo percebi que o PT era clerical e impediria que<br />

o comunismo chegasse ao poder”; com a humanidade:<br />

“é inviável”; mas apóia o terrorismo e Bin Laden contra<br />

o imperialismo norte-americano, elogia Fidel Castro<br />

(“grande fi gura”), Aluízio Alves (“melhor ministro de<br />

Sarney”), Roberto Furtado e Brizola (“revolucionário<br />

que encarnou os ideais de 30, traídos pela burgusia- Me<br />

proponho a ser o seu herdeiro político”).<br />

Analisando a situação mundial – como jornalista – se<br />

mostra preocupado. Para ele, o mundo está à beira da<br />

3ª Guerra Mundial. Tudo devido ao imperialismo<br />

dos Estados Unidos que, na opinião dele, deverá sair<br />

derrotado caso o confl ito aconteça.<br />

Sozinho, depois de um casamento de sete anos (77 a 84),<br />

que lhe deu um fi lho, Emídio – mesmo nome do avô (a<br />

ex-mulher e o fi lho, hoje com 27 anos, moram em Itajaí-<br />

SC), Osório não quer mais saber de casamento, embora<br />

diga que foi feliz no seu. “É um inferno”, resume. E dá<br />

dica: “Hoje é mais negócio investir em várias mulheres<br />

do que em uma só”. Assegura que devido à alimentação<br />

macrobiótica, não beber e nem fumar está em plena<br />

forma, “diferente dos velhos do Café São Luiz, que<br />

estão todos no Viagra”. Sobre o amor, ele não é menos<br />

corrosivo:<br />

– Amor é uma fl or roxa que nasce no coração do trouxa.<br />

Certamente, não será por falta de sinceridade, coerência<br />

política e originalidade que Osório Almeida deixará de<br />

ser eleito vereador. Três coisas que há muito sumiram<br />

dos nossos parlamentos. Ele está confi ante e cita a<br />

coincidência do nome da sua rua ter como patrono um<br />

vereador. “Quem sabe, não sai outro vereador daqui”.<br />

Boa sorte, candidato!<br />

Julho 2004<br />

19


Fotos: Acervo de Deífi lo Gurgel<br />

Por David Clemente<br />

Em uma casinha de taipa, situada no interior Rio<br />

Grande do Norte - no início do século passado -<br />

desligado totalmente dos centros urbanos, morava um<br />

agricultor chamado Francisco. Seria apenas mais um<br />

Francisco, Francisquinho, Chico, Chiquito, Chisquito,<br />

Chicão, Chiquinho, Chicó... dos muitos existentes por<br />

esse Nordeste afora, condenado ao “pé da enxada” e ao<br />

anonimato, se não possuísse um dom genial. Cantava<br />

coco como ninguém. E teve a sorte de o seu destino<br />

cruzar com o de outro gênio, o escritor paulista Mário<br />

de Andrade.<br />

Francisco Antônio Moreira, que fi cou conhecido<br />

como Chico Antônio, o artista que encantou Mário,<br />

está fazendo esse ano cem anos de nascimento. E para<br />

marcar a passagem do seu centenário a <strong>Fundação</strong> José<br />

<strong>Augusto</strong> tombou sua casa, localizada no sítio Porteiras,<br />

no povoado de Cortes, distrito de Pedro Velho, a 90 Km<br />

de Natal. Agora, o novo o patrimônio do Estado ganhará<br />

restauração. A previsão é de que o Memorial Chico<br />

Antônio esteja pronto para a comemoração do centenário<br />

de nascimento do cantador, em setembro desde ano.<br />

Mas não só a estrutura física da construção ganhará novo<br />

vigor, o povo do município e admiradores do cantador<br />

também. A casa, os móveis, fotografi as e todos os bens do<br />

artista formarão o Memorial Chico Antônio. Publicações<br />

que fazem referência ao artista, como os livros de Mário<br />

de Andrade, em que o cantador foi imortalizado, também<br />

farão parte do conjunto. Uma das obras principais será<br />

o primeiro disco de vinil gravado por Chico em 1982 e<br />

que foi reeditado em 2000. Além de releituras feitas por<br />

outros artistas como o grupo de Pernambuco “Mestre<br />

Ambrósio” e gravações do projeto Nação Potiguar, em<br />

que participam duplas de emboladores de coco e a<br />

Orquestra Sinfônica do RN.<br />

O coordenador do Centro de Documentação da<br />

<strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>, Dácio Galvão, explica que com<br />

20 Julho 2004<br />

Tombada casa<br />

do homem<br />

que encantou<br />

Mário de<br />

Andrade<br />

o Memorial, a vida e obra de Chico Antônio poderão ser<br />

reconhecidas como méritos próprios do coquista, “o que<br />

deveria ter ocorrido há muito tempo”.<br />

O encontro com Mário<br />

Em que resultaria um encontro entre um paulista<br />

graduado em Letras, Música e Ciências e um potiguar<br />

semi-analfabeto? Em um achado cultural, oras. Foi assim<br />

no fi nal da década de 20 quando o escritor Mário de<br />

Andrade esteve frente a frente com o cantador de coco<br />

Chico Antônio.<br />

Antes de conhecer Mário, Chico levava uma vida muito<br />

parecida com a de qualquer agricultor da sua região.<br />

Acordava junto com o sol para trabalhar e retomava sua<br />

cama ao anoitecer. Mas o que ele gostava mesmo era<br />

de entoar cocos. Costumava cantar e desafi ar coquistas<br />

conhecidos. De tão criativo que era, foi impossível<br />

montar um acervo completo dos seus cocos, pois repetir<br />

os mesmos versos e toadas não era hábito costumeiro de<br />

Chico Antônio.<br />

O destino lhe proporcionou alguns bons acasos. Na sua<br />

juventude trabalhou no Engenho Bom Jardim, onde<br />

o proprietário era o crítico de arte Antônio Bento de<br />

Araújo Lima, homem considerado por Chico como o seu<br />

“compadre protetor”. Antônio Bento foi quem levou o<br />

escritor Mário de Andrade ao encontro com o coquista.<br />

Na época, Mário realizava sua “viagem etnográfi ca” pelo<br />

Nordeste do Brasil (dezembro 1928 - março 1929) e em<br />

janeiro de 1929 conheceu Chico. Desde então a vida do<br />

coquista potiguar mudaria bastante.<br />

As referências que Chico Antônio ganhou nas obras de<br />

Mário de Andrade como “Vida de Cantador”, “O Turista<br />

Aprendiz” e “Os Cocos” e citações de aspectos sociais e<br />

psicológicos em “Danças Dramáticas”, levaram a arte<br />

potiguar produzida pelo humilde agricultor ao restante<br />

do país.<br />

Chico conheceu o folclorista Câmara Cascudo, o<br />

Secretário de Cultura do MEC Aloysio Magalhães, a<br />

poetisa presidenta do Instituto Nacional do Folclore Lélia<br />

Coelho Frota, o regente da Orquestra Sinfônica Barroca<br />

Centenária de Minas Gerais José Maria Neves e o diretor<br />

de cinema Eduardo Escorel, que produziu o fi lme “Chico,<br />

o herói com caráter”.<br />

Em 1983 participou do programa “Som Brasil” da Rede<br />

Globo de Televisão. Um dia antes da gravação, o coquista<br />

conheceu a tarefa de um artista renomado, deu uma<br />

entrevista coletiva para os principais jornais de São Paulo.<br />

1993 foi o ano em que se comemorou os 100 anos de<br />

nascimento de Mário de Andrade e o mesmo ano em que<br />

se lamentou o fi m da vida de Chico Antônio. Mas graças<br />

ao poder que a arte tem, seu trabalho continua vivo,<br />

pronto para tocar e conquistar mais admiradores.


Deífi lo Gurgel (Presidente da Comissão Norte-rio-grandense de Folclore)<br />

Se fosse vivo, Chico Antônio estaria completando, este ano, cem anos de idade.<br />

Quem poderia imaginar que um garoto nascido no dia 20 de setembro de 1904, na<br />

comunidade Corte, a poucos quilômetros da cidade de Pedro Velho, iria se transformar,<br />

com o passar dos anos, num dos nomes mais famosos da poesia folclórica do Rio Grande<br />

do Norte?<br />

Ninguém poderia pensar nisto, considerando-se que na família do menino não existia<br />

qualquer antecedente de vocação poética, uma família de honrados lavradores, a vida<br />

inteira dedicados aos trabalhos do campo.<br />

No entanto, Chico Antônio, desde menino, foi a “ovelha negra” da família, fugindo de<br />

casa para ouvir os grandes emboladores, nas noites memoráveis de pelejas.<br />

De nada adiantou o pai ter o colocado desde cedo na escola para aprender a ler e escrever.<br />

De nada adiantaram as surras de cinturão com que o pai o castigava, para demovê-lo do<br />

seu propósito de cantar coco.<br />

Tão menino era, quando começou na vida de cantador, que não sabia sequer tanger o<br />

ganzá, companheiro indispensável de todo embolador famoso. Era preciso que um amigo<br />

fi zesse isto por ele.<br />

E assim se passaram dez anos.<br />

Naquele tempo, o menino da Corte lavrava a terra com seu pai e a vida corria mansa, como<br />

as águas do Rio Curimataú, depois das enxurradas. E os anos não paravam de passar.<br />

Chico Antônio<br />

cem anos depois<br />

Julho 2004<br />

Deífi lo Gurgel<br />

(centro)<br />

apresenta Chico<br />

Antônio (esq.) a<br />

Câmara Cascudo,<br />

em 1979<br />

21


Chico Antônio - cem anos depois<br />

Até que o menino se fez homem e amadureceu em seu<br />

peito aquele amor desesperado pela arte de cantar coco.<br />

Naquele tempo, Chico vagava pelas cidades do agreste<br />

potiguar, vendendo cocos secos que comprava nas cidades<br />

do litoral e cantando cocos surrealistas nas feiras do<br />

interior. Até que Antônio Bento de Araújo Lima, fi lho<br />

do coronel Araújo Lima, proprietário do Engenho Bom<br />

Jardim, em Goianinha e de outros engenhos mais, que era<br />

um apaixonado pelas artes plásticas e pelas manifestações<br />

da cultura popular, teve notícia do nosso embolador e<br />

mandou convidá-lo para morar no Bom Jardim.<br />

Antônio Bento era amigo dos escritores Câmara Cascudo<br />

e Mário de Andrade e, em 1928, quando se realizou a<br />

viagem de Mário ao Rio Grande do Norte, logo ele traçou<br />

um plano para que o escritor paulista pudesse conhecer<br />

Chico Antônio e vê-lo cantar os seus cocos de embolada.<br />

Esse episódio, que um dia, no futuro, Aloísio Magalhães<br />

descreveria como o encontro de duas grandes forças da<br />

natureza: de um lado, Mário, representando a cultura<br />

erudita, e do outro, Chico Antônio, o caudaloso rio da<br />

cultura popular; aconteceu no Engenho Bom Jardim,<br />

município de Goianinha, no dia 10 de janeiro de 1929.<br />

Para entender este momento mágico, deixemos que<br />

fale o próprio Mário de Andrade, no livro “O Turista<br />

Aprendiz”:<br />

“Estou divinizado por uma das comoções mais<br />

formidáveis de minha vida”.<br />

Tão emocionado fi cou Mário de Andrade com a arte de<br />

cantar coco de Chico Antônio, que lhe propôs, duas ou<br />

três vezes, durante sua permanência no Rio Grande do<br />

Norte, levá-lo para São Paulo. Prevaleceu o bom senso de<br />

Chico Antônio, preocupado com a esposa e os fi lhos. E o<br />

nosso coqueiro fi cou no Bom Jardim.<br />

Depois de um mês e meio de pesquisas intensas em nosso<br />

Estado, documentando as mais importantes manifestações<br />

da cultura popular do RN, Mário de Andrade regressa a<br />

São Paulo, em fevereiro de 1929, passando antes pela<br />

Paraíba e Pernambuco.<br />

Depois disto, foi o ostracismo para Chico Antônio.<br />

E assim se passou meio século. Até que em 1979, 50 anos<br />

depois de Mário, numa pesquisa de campo da <strong>Fundação</strong><br />

José <strong>Augusto</strong>, nosso embolador é redescoberto, morando<br />

nas “Porteiras”, um pequeno sítio de sua propriedade.<br />

Não obstante a idade de 75 anos, Chico ainda tangia<br />

o seu ganzá e entoava os velhos cocos, que foram o<br />

deslumbramento de Mário de Andrade, em 1929.<br />

22 Julho 2004<br />

Na condição de Diretor de Promoções Culturais da<br />

<strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>, após a redescoberta do coqueiro,<br />

nós procuramos incentivar a todos os integrantes da área<br />

cultural, a fi m de que fossem prestadas a Chico Antônio<br />

as homenagens que ele merecia.<br />

À frente das homenagens que lhe foram prestadas pelo<br />

Ministério da Educação e Cultura, estava nada menos do<br />

que Aloísio Magalhães, não apenas um grande artista e<br />

intelectual, mas, sobretudo uma grande personalidade<br />

humana.<br />

Sobre a inspiração de Aloísio Magalhães e a execução de<br />

Lélia Coelho Frota, presidente do Instituto do Folclore,<br />

foram planejadas várias homenagens a Chico Antônio<br />

como um Seminário realizado em Natal com professores<br />

do Rio Grande do Norte e de outros estados; a publicação<br />

de um tablóide denominado “Estrada Nova”, para<br />

distribuição nas escolas do RN, particularmente em Pedro<br />

Velho e um “long-play” com os cocos de Chico Antônio.<br />

Não fi caram aí porém, nesses atos ofi ciais, as homenagens<br />

prestadas a Chico Antônio.<br />

Rolando Boldrin apresentou-o no programa “Som<br />

Brasil” da TV Globo, apresentação antecedida de uma<br />

entrevista coletiva com os maiores jornais de São Paulo,<br />

“Estadão”, “Folha”, “Globo” (sucursal), e outros mais. A<br />

apresentação no “Som Brasil” foi um sucesso. O público<br />

o aplaudiu de pé.<br />

Eduardo Escorel, conhecido cineasta brasileiro, através de<br />

um projeto da FUNARTE, produziu um vídeo “Chico<br />

Antônio, o herói com caráter”, que ganhou o prêmio, em<br />

festival de cinema.<br />

Outro vídeo sobre Chico Antônio foi produzido por<br />

Carlos Lira, diretor da TVU, dentro do projeto ”Memória<br />

Viva”.<br />

Infelizmente não foram de glórias os últimos anos de vida<br />

de Chico Antônio.<br />

Logo depois de sua redescoberta, o autor deste artigo<br />

conseguiu com o governo estadual uma pensão especial<br />

de três Salários Mínimos, para o embolador. Familiares<br />

seus, movidos pela cobiça seqüestraram o cantador e o<br />

mantiveram em cárcere privado até o seu falecimento, no<br />

dia 15 de outubro de 1993, na cidade de Canguaretama.<br />

De nada adiantaram os nossos apelos às autoridades do<br />

executivo e do judiciário do município.<br />

Chico Antônio morreu como outros grandes artistas<br />

da cultura popular do Rio Grande do Norte, como<br />

Zé Relampo, Manuel Marinheiro, Joaquim Cardoso,<br />

Antônio Gordo. Ingloriamente.


Teotônio Roque/ZooN – Repórter fotográfi co; cineasta e educador; membro da<br />

Rede de Comunicadores Solidários à Criança da Pastoral da Criança – CNBB;<br />

desenvolve vários projetos de fotojornalismo e documentação no Brasil e no<br />

exterior; autor do livro ”Um Olhar Sobre Havana” (1999) e “Projeto Zumbi”<br />

(2004); membro da ZooN Fotografi a, ONG que completa 10 anos em 2004,<br />

desenvolvendo atividades sociais e culturais<br />

de promoção da fotografi a (www.zoon.org.br).<br />

Fotografi as realizadas no interior do Ceará e Rio Grande do Norte,<br />

no período de janeiro a junho 2004.<br />

Julho 2004<br />

23


Ensaio fotográfi co de Teotônio Roque<br />

Rotações<br />

Francisco Morais (Escritor e professor, é<br />

mestrando em Literatura Comparada – UFRN)<br />

Pião não é um. Em cada ponto da terra que gira,<br />

gira um pião. Piões. Plural dos meninos de todos<br />

os continentes. Meninos, muitos meninos perdidos no<br />

tempo, rodando na saudade de nunca mais se achar, para<br />

sempre em rotação, desde quando o universo começou a<br />

brincar de rodar a terra.<br />

24 Julho 2004


Roda minha terrinha gigante. Roda minha menina.<br />

Roda minha Cora Coralinazinha, no palco que o mundo<br />

penumbra com luz azul. Roda para Deus brincar de ser<br />

menino de rua, de ser menino de sertão, de ser menino da<br />

Ásia perdida no Ocidente do meu bairro. Roda meu piãoplaneta<br />

para Deus fi car olhando você sempre girar sem<br />

cair. Roda para Deus rir e brincar como gente, na roda<br />

da vida, no chão do nosso terreiro. Roda como sonho<br />

engendrado das sobras: das sobras das noites, das sobras<br />

da vida, das sobras das luas, das sobras das latas.<br />

Julho 2004<br />

25


Ensaio fotográfi co de Teotônio Roque<br />

Roda meu piãozinho de africar minha cor quase branca,<br />

de indigenar minha pele quase negra, de afro-europeizar<br />

minha tez quase indígena. Roda para eu zunir uma<br />

velocidade de seduzir olhares, muitos olhares de êxtase ou<br />

de quizila-pé-de-pote-escorrega-no-sabão. Roda para eu<br />

meninar os adultos promotores da violência. Gira para eu<br />

dançar os rodetes da sua valsa, com a paz das crianças.<br />

26 Julho 2004


Meu pião é um cometa em colisão de brincadeira; uma<br />

vida de girar com os outros, na pluralidade de todos os<br />

sonhos: metáfora de mim fazendo cócega na pele da<br />

terra de minhas translações. Roda meu pião de geografi as<br />

diversas, de culturas anônimas. Roda seu nome matuto,<br />

seu nome sem nome, seus nomes em todas as línguas, de<br />

todos os meninos e meninas.<br />

Julho 2004<br />

27


Ensaio fotográfi co de Teotônio Roque<br />

Roda, meu pião das raças, para dublar as minhas fantasias<br />

na frente dos outros. Gira por, apenas, girar, sem doleiro<br />

para globalizar sua índole plural e plebéia. Roda como<br />

boi-de-rei, como gente em coco-de-roda. Roda no beyblade<br />

dos tempos de hoje, mas não me deixe parar sem<br />

seu nome na minha memória: pião.<br />

28 Julho 2004


Por acaso<br />

Hudson Paulo Costa (Professor e escritor)<br />

Ilustração: Guaraci Gabriel<br />

sensação das coisas próximas, longe, ou as que não se<br />

A encontram em nenhuma referência de tempo e lugar,<br />

esta sensação do que está para acontecer, nem sempre é<br />

possível captá-la numa coerência traduzível em palavras.<br />

Ela fi ca perdurando longamente...<br />

Imaginei o dia como se não fosse dia, mas uma noite<br />

sempre antepondo-se aos raios do sol prestes a cobrir o<br />

movimento dos cílios de um camelo procurando sua rota<br />

no deserto.<br />

Na clínica, ao entardecer, atendi a minha última paciente<br />

naquele dia. Dizia-me de suas obsessões, dos problemas<br />

que tomaram conta de sua vida em vez de sua vida ter<br />

tomado conta dos problemas.<br />

Estudava como resolver mais um caso de neurose. Detiveme<br />

numa teia de aranha esquecida no alto da parede da<br />

sala onde estava um quadro com a imagem de Dante. Ele<br />

olhava-me como a me esperar no inferno. A aranha e o<br />

rosto de Dante ocuparam-me por alguns instantes em<br />

dissonantes impressões que alertavam-me para alguma<br />

coisa prestes a acontecer. Poderia ser algum criminoso<br />

procurando pela próxima vítima, uma mão buscando<br />

sôfrega outra mão para poder traí-la...<br />

Naquela tarde decidi sair do consultório mais cedo e<br />

procurar alguém com quem conversar. Qualquer pessoa<br />

que tivesse apenas a capacidade de ouvir. Vi uma senhora<br />

caminhando com uma criança nos braços e dela aproximei-<br />

me para perguntar por um endereço imaginário. Quando<br />

ela disse-me não saber, esbocei o início de uma conversa.<br />

A criança em seus braços olhou-me detidamente. Pedi<br />

permissão para segurá-la por um instante. Perguntei a sua<br />

idade. A mãe continuou em silêncio, mas a criança com<br />

uma voz grave e profunda respondeu escandindo cada<br />

sílaba: - “A idade de sua ignorância. A idade da solidão de<br />

todos os homens. Todas as idades”.<br />

Você pode imaginar como eu fi quei? Parecia ser uma<br />

brincadeira de ventríloquo, uma magia, um truque.<br />

Devolvi rapidamente a criança à mãe. A criança<br />

continuou a falar palavras sábias, milenares, tocando-me<br />

profundamente. Havia uma força estranha naquela voz,<br />

um mistério fl uindo, o espírito de um mago.<br />

As pessoas passavam bem próximas a nós, mas não<br />

ouviam. Por que apenas eu a ouvia? Seria um privilégio<br />

ou eu estaria fi cando louco? Perguntei como se explicaria<br />

aquela situação. Aquilo era um fenômeno e ela poderia<br />

ganhar milhões levando a criança para as emissoras<br />

de televisão de todo o mundo. A mãe continuou em<br />

silêncio.<br />

A criança olhando-me com um ar um tanto agressivo<br />

disse-me: - “Resolvi falar apenas a você porque quero<br />

lhe demonstrar o quanto você nada sabe. Você pensa<br />

ter devolvido a sanidade mental a muitos desajustados.<br />

Você os fez mais loucos ainda. Lembra-se do caso daquela<br />

menina que deixou a faculdade de Direito para tocar<br />

fl auta? A família entregou-a como um caso de anomalia.<br />

E o que você fez? Tratou-a com a sua técnica para torná-la<br />

mais uma a azeitar a máquina enferrujada dessa sociedade<br />

decadente. Todos pensam saber, mas ninguém sabe.<br />

Ninguém vai acreditar que você ouviu de uma criança<br />

como eu o que estou lhe dizendo agora. O saber está entre<br />

vocês na dimensão do aqui e agora. Mas o que não está<br />

nesta dimensão, onde está? Responda-me. Não preciso<br />

dizer que todo saber é limitado. Vocês construíram uma<br />

sociedade em que tudo que não se traduz em dinheiro<br />

não tem valor. Vocês vão pagar muito caro por isto. O<br />

tempo não tem pressa. Você me viu e não me viu”. A<br />

criança dirigiu um olhar para a mãe e ela saiu caminhando<br />

naturalmente pela calçada.<br />

Confi denciei rapidamente o fato a minha família, amigos<br />

e colegas da clínica. Dei entrevistas no rádio e na televisão.<br />

Fizeram o retrato falado da mãe e do fi lho e publicaram a<br />

matéria em todos os jornais da cidade.<br />

Aos poucos fui perdendo a minha clientela. Aconselharamme<br />

a um tratamento, um repouso, uma viagem, qualquer<br />

coisa que me fi zesse esquecer o episódio.<br />

Hoje vendo frutas e verduras nas feiras livres da cidade.<br />

Julho 2004<br />

29


30<br />

O horóscopo<br />

Carlos Lins <strong>Onofre</strong> (Estudante do curso de<br />

Arquitetura e Urbanismo da UFRN)<br />

Ilustração: Sayonara Pinheiro<br />

- Gilda, você tem alguma mágoa de mim?<br />

- Claro que não, meu amor – disse Gilda em entonação<br />

infantil para o marido, dando-lhe um beijo na testa – Por<br />

que você está me perguntando uma coisa dessas?<br />

- Porque eu vou morrer quinta-feira, e eu queria ir embora<br />

sem que você tivesse mágoas de mim.<br />

A frase do marido fez Gilda empalidecer, e abrir a boca<br />

sem dizer uma palavra. Breno quebrou o silêncio:<br />

- Você quer saber que história é essa de eu morrer quintafeira,<br />

né?<br />

- É.<br />

- Foi meu horóscopo que disse.<br />

- Horóscopo? – agora ela começa a falar mais alto – que<br />

porcaria de horóscopo é esse?! Quero ver esse horóscopo<br />

que diz: “Todos os capricornianos vão morrer na<br />

próxima quinta, mas antes disso, preste atenção nas más<br />

companhias! Sua cor da sorte é o preto, sabe como é, o<br />

luto!” – vociferou Gilda num deboche eufórico.<br />

- Você não está levando a sério...<br />

Julho 2004<br />

- Eu que devo reclamar que é você que está levando a<br />

sério! Onde foi que você viu esse horóscopo?<br />

- Eu sonhei.<br />

-Sonhou. Ah, sim, claro, agora, querido, eu entendi<br />

muito bem, você sonhou com seu horóscopo... – disse ela<br />

calmamente, como se estivesse a falar com uma criança.<br />

- Exatamente – completou Breno.<br />

- E então ele disse que você morreria quinta? – perguntou<br />

Gilda, perplexa.<br />

- Isso mesmo. Sabe, mas eu não lia o horóscopo, como se<br />

fosse jornal, era assim, um homem que dizia que era meu<br />

horóscopo e que eu ia morrer quinta...<br />

- Ah, um homem...<br />

- Parecia o mago Merlin!<br />

- Vai que era ele! O mago Merlin, dizendo que era o seu<br />

horóscopo, comentou, assim, rapidinho com você a data<br />

de sua morte?<br />

- Acho que eu já falei isso. Você tem a mínima noção da<br />

importância dos sonhos em nossas vidas?


- Ah, tenho... Tenho sim, e eu um dia desse sonhei<br />

...– Gilda arregalou os olhos ao falar –... Que se você não<br />

parasse de falar bobagens agora, a sua data de morte seria<br />

antecipada da quinta para hoje! Mais especifi camente<br />

agora! Então pára de criancices e durma! – Gritou Gilda<br />

num acesso de raiva.<br />

Cerca de duas horas depois, naquela madrugada, Gilda<br />

tem seu sono interrompido por Breno:<br />

- Gilda, acorda... – disse ele baixinho.<br />

- O que foi?<br />

- Você pode me especifi car, assim, quem foi que lhe<br />

falou que você ia me matar hoje se eu não parasse de<br />

falar bobagens? É que eu fi quei preocupado... – ela não<br />

acreditando no que estava ouvindo, falou: – A fada<br />

Sininho. Agora dorme!<br />

Breno fi cou o resto da noite preocupado, pensando quem<br />

teria razão, Merlin (o horóscopo) , ou Sininho. Concluiu<br />

que Merlin, pois era bem mais poderoso, e que alguém<br />

com uma barba grande e branca daquelas só poderia ter<br />

razão.Virou-se para o outro lado, tentando dormir, mas<br />

sem tirar a morte dele, com dia marcado para quinta, da<br />

mente.<br />

- Sabe, Breno, eu acho que você deveria tirar umas férias.<br />

- Por quê?<br />

- Para descansar. Desde quando você acredita em seus<br />

sonhos? E fi ca preocupado! Ô, homem, deixe disso...<br />

- Eu vou mais do que tirar férias. Eu vou me demitir!<br />

- Hã?<br />

- Isso mesmo! Eu vou morrer mesmo! Ligue para o meu<br />

patrão, quero falar com ele.<br />

- Eu não vou ser cúmplice dessa loucura.<br />

- Eu mesmo ligo. Alô? Seu Freitas? Olá! Aqui é Breno<br />

Cabral, eu queria dizer que eu me demito, que o senhor<br />

tem cara de piolho, e que sua mulher é uma vagabunda<br />

que deu em cima de mim na festa de confraternização da<br />

empresa! Tenha um bom-dia!<br />

- Agora chega, Breno, vou chamar uma ambulância para<br />

te levar!<br />

- Ah, não! Estou gostando de fazer isso! Vou chutar o<br />

balde antes de morrer! Fazer tudo que eu queria ter feito!<br />

-Você anda assistindo fi lmes demais! A pipoca do cinema<br />

ao invés de descer subiu e se instalou em seu cérebro! Seu,<br />

seu cabeça de pipoca!<br />

Breno saiu do apartamento certo de que no dia seguinte<br />

morreria. Viu seu senhorio no corredor, e deu um<br />

empurrão nele.<br />

- Eu queria dizer para o senhor ir comer cocô! Mas eu<br />

nunca disse porque eu precisava do apartamento, mas<br />

agora que eu vou morrer eu digo: Vá comer cocô!<br />

- Eu te pego, seu desgraçado!- disse o senhorio<br />

enfurecido.<br />

Breno saiu correndo, descendo as escadas e deu de cara<br />

com o corredor do terceiro andar. Lá viu a voluptuosa<br />

Rita, que parecia querer economizar muito nos tecidos<br />

para fazer suas roupas. Ele não demorou muito para meter<br />

violentamente a mão numa das nádegas da moça.<br />

- Que se dane se seu marido é leão-de-chácara! – disse<br />

balançando o traseiro dela – Que se dane!<br />

Rita começou a gritar e Breno retirou-se rapidamente<br />

do corredor, ao ver que todos os vizinhos saíam de suas<br />

portas, curiosos com os gritos.<br />

Ao chegar no segundo andar, deparou-se com um<br />

adolescente que tocava muito mal um saxofone à hora<br />

que desejasse, inclusive à noite. Pegou o instrumento e<br />

jogou pela janela, na piscina, o menino fez uma cara de<br />

quem acabara de abrir a geladeira e encontrara um rato<br />

morto dentro.<br />

- Não corre não, seu otário! Eu te pego!<br />

Breno não deu atenção às ameaças do saxofonista e desceu<br />

correndo em direção à rua, e nesta, gritou com o cachorro<br />

que latia para ele todas as manhãs, deu um tapa na cara<br />

do homem que roubava seu jornal de vez em quando,<br />

gritou para uma senhora que passava pela rua que ela não<br />

tinha mais idade para pintar o cabelo de ruivo, e que o<br />

namorado mais jovem dela estava querendo dar o golpe<br />

do baú, entrou numa loja e quebrou todos os vidros de<br />

azeitonas pretas que ele viu pela frente, pois simplesmente<br />

odiava azeitonas pretas, e não queria que ninguém mais<br />

gostasse, simplesmente porque não queria, e ao chegar na<br />

parte dos temperos bebeu vinagre. Morria de vontade de<br />

beber uma garrafa inteira de vinagre, e não entendia por<br />

que sempre usavam tão pouquinho de cada vez. Queria<br />

muito, bebeu não apenas uma, mas duas garrafas inteiras<br />

de vinagre. Então saiu à rua, e começou a ver tudo turvo.<br />

- O que danado é isso? – perguntou a si mesmo. Caiu<br />

como jaca madura no chão. – Foi o vinagre! – exclamou.<br />

Antes que pudesse se levantar, um caminhão o atropelou.<br />

É isso mesmo, ele morreu. Mas não na quinta-feira,<br />

como o seu horóscopo dissera. Foi na quarta. Essas coisas<br />

esotéricas às vezes falham mesmo.<br />

Julho 2004<br />

31


A b a n d o n o s<br />

Nádia Maria Silveira Costa de Melo<br />

(Mestre em Letras/UFRN)<br />

Ilustração: Venâncio Pinheiro<br />

A<br />

cidade de Santa Cruz foi surpreendida, nas últimas<br />

horas silenciosas de uma madrugada de sexta-feira,<br />

por um objeto estranho e barulhento surgido no meio<br />

da praça. A notícia se espalhou rapidamente e muitos<br />

curiosos correram para vê-lo. E encontraram ali uma<br />

criança alva, de olhos muito azuis que chorava pelo<br />

incômodo provocado pelas formigas. Entreolhavam-se<br />

perplexos. Como aquela criança aparecera ali? Nenhuma<br />

parteira sabia explicar. As mães das moças? Nem<br />

imaginavam! O vigário disse que só podia ser um milagre<br />

de Nossa Senhora da Conceição. Era 8 de dezembro de<br />

1947: dia da santa. As beatas desconfi aram que era coisa<br />

do demônio. O prefeito da cidade decidiu investigar o<br />

caso. Convidou o delegado para instaurar o inquérito.<br />

32 Julho 2004


A b a n d o n o s<br />

Como saber de onde tinha vindo aquele ser? Não havia<br />

nenhuma grávida, nas redondezas, esperando para<br />

aquela época. Até que uma patroa desconfi ou de sua<br />

empregadinha que há meses sofria de barriga d’água.<br />

E assim o mistério foi desfeito. O crime revelado. A<br />

criança era fruto do mais original pecado, ocorrido entre<br />

um patrão português e uma infeliz empregada. Caso<br />

encerrado: a infratora sem opção caiu na vida fácil ou,<br />

quem sabe, morreu acidentalmente? Este é o boato que<br />

circula pelas calçadas. E a prova do crime (a enjeitada)<br />

foi criada no abandono. Este episódio serviu para ensinar<br />

às “ moças donzelas” que este era o castigo imposto às<br />

“transgressoras” das normas de uma sociedade hipócrita<br />

e fétida.<br />

Foi assim que iniciou a história da nossa Severina, aliás,<br />

Conceição.<br />

Conceição foi o seu nome<br />

Não teve outro de pia.<br />

Conceição fi lha bastarda<br />

Do português com a empregada.<br />

Como havia muitas fi lhas bastardas<br />

De portugueses com empregadas<br />

Ela fi cou sendo chamada<br />

Conceição fi lha bastarda do português<br />

Com a <strong>Jose</strong>fa talvez fi nada<br />

Vulgo “safada”<br />

Lá de Santa Cruz<br />

Limites de Tangará<br />

Interior do Rio Grande do Norte.<br />

Como batata nasce na terra e como vive cachorro viralata,<br />

da mesma forma nasceu e cresceu a Conceição<br />

fi lha bastarda. Ela sequer desconfi ava que era infeliz.<br />

Isso porque acreditava. Em quê? Que sua mãe estava<br />

viva e que viria buscá-la, num cavalo branco, em plena<br />

madrugada. Isso lhe dava às vezes estado de graça. Nunca<br />

perdera a fé. Ela pensava que a pessoa era obrigada a ser<br />

feliz. Então era. Assim passou sua vida representando com<br />

obediência o papel de ser. Até que um dia, após o almoço,<br />

estava balançando-se numa cadeira,<br />

para cá... ... ... ...<br />

para cá... ... ... ...<br />

para lá... ... ... ...<br />

para lá... ... ... ...<br />

repentinamente uma voz sussurrou-lhe nos ouvidos:<br />

- Encontraram tua mãe! Ela está moribunda no abrigo<br />

de velhos Juvino Barreto e deseja te conhecer. Ela<br />

correu desesperada, num momento de ímpeto, alegria<br />

e ansiedade. Correu em busca de seu destino, sua sina...<br />

no meio do caminho tinha uma pedra. Caiu. Acordou<br />

atordoada: cadeira... chão... Conceição!!!... Lembrou-se<br />

do abandono dos pais... da infância perdida... dos fi lhos<br />

ingratos que tivera... das traições e abandono do marido...<br />

das discriminações sofridas... Uma lágrima rolou de sua<br />

face envelhecida. Nesse momento, tomou consciência<br />

de que em sua SÓ/LIDA/IDADE, desconhecia a<br />

solidariedade. E que a sua fi el companheira sempre fora<br />

a SOLIDÃO.<br />

Julho 2004<br />

33


James Joyce<br />

Algumas considerações sobre<br />

. . . . . . . .<br />

“O dia de Bloom”<br />

34 Julho 2004<br />

Moacy Cirne (Poeta e teórico de quadrinhos)<br />

Sempre fui um admirador de James<br />

Joyce. Em 1966, escrevendo para o<br />

jornal O Povo, de Natal, saudei a tradução<br />

brasileira do “Ulisses”. Acredito que, na<br />

imprensa natalense, fui o único a fazê-lo.<br />

Hoje, considero-o o segundo, terceiro<br />

ou quarto melhor romance do século<br />

XX. “Grande sertão: veredas” (Guimarães Rosa) e “A<br />

montanha mágica” (Thomas Mann) me dizem mais. Sob<br />

alguns aspectos, “O processo” (Kafka) também me parece<br />

mais signifi cativo. Mas o problema aqui é outro. Em sua<br />

estrutura fi ccional, a ação transcorre dentro daquilo que<br />

é conhecido como “o dia do personagem Bloom”, ou<br />

simplesmente “o dia de Bloom”. Decerto, em se tratando<br />

de Joyce, o convencional vira não-convencional. Embora<br />

seja bem menos radical do que “Finnegans´s wake”,<br />

“Ulisses” não é um livro fácil. Alguns não conseguem<br />

devorá-lo. Paciência...<br />

Em Dublin, cidade de Joyce e local da ação romanesca<br />

em pauta, há muito e muito tempo que se comemora,<br />

nos bares locais, “o dia de Bloom”. Nada mais justo, nada<br />

mais adequado. Em São Paulo, com seu provincianismo<br />

cosmopolita, também se faz a mesma coisa. Em sendo<br />

nos bares, tem seu encanto. No Rio, macaqueando São<br />

Paulo, já se fez algo parecido. Acho que ainda se faz.<br />

Tomar um porre em homenagem a Joyce pode ser um<br />

bom programa etílico. Eventualmente, improvisam ou<br />

encenam happenings com leituras da obra. Nada muito<br />

sério, a não ser que alguns lacanianos resolvam assumir<br />

a “homenagem”, como aconteceu agora no Recife. Sem<br />

querer fazer trocadilho, deve ter sido um porre...<br />

Mas vejamos o caso de Natal, especifi camente. O<br />

Rio Grande do Norte, desde os anos 20 do século<br />

passado, tem apostado criativamente na dicotomia<br />

tradição/modernidade ou tradição/vanguarda. No<br />

primeiro momento, com Cascudo (tradição) e Manoel<br />

Dantas e Jorge Fernandes (modernidade); no segundo<br />

momento, de novo Cascudo (tradição) e José Bezerra<br />

Gomes e o poema/processo (vanguarda). Mas tem<br />

apostado, sobretudo, na valorização dos elementos que<br />

compõem a cultura potiguar. Neste particular, o próprio<br />

poema/processo poderia ter investido mais (no período<br />

1967-72) nas questões culturais pertinentes a norte-riograndecidade.<br />

Não o fez, equivocadamente.


Hoje, aqueles que lutaram pelo poema/processo - e<br />

agora lutam pela poesia visual - sentem que a relação<br />

tradição/modernidade é algo dinâmico e dialeticamente<br />

produtivo. E investem nas formas culturais produzidas<br />

no Estado. E o que tem Joyce a ver com isso? A rigor,<br />

nada. Mas alguns dos nossos intelectuais - que raramente<br />

se preocupam com a cultura do Estado - têm festejado na<br />

própria Universidade o “dia de Bloom”. Se fosse festejado<br />

no Beco da Lama, ao lado do Grande Ponto, poderia<br />

ter algum sentido... Mas não: fecham-se na Academia e<br />

deixam de lado datas signifi cativas que poderiam lembrar,<br />

entre outros, Jorge Fernandes, Manoel Dantas, Moysés<br />

Sesyom, José Bezerra Gomes, Homero Homem, Zila<br />

Mamede (2003 foi atípico em relação à Zila, assim como<br />

Cascudo fi gura em outro patamar), Berilo Wanderley<br />

e Luís Carlos Guimarães, e preferem homenagear um<br />

escritor que, por mais universal que seja, não tem nada a<br />

nos oferecer enquanto perspectiva criadora.<br />

Culturalmente, Jorge Fernandes e os demais são<br />

muito mais importantes para nós, nordestinos do Rio<br />

Grande do Norte. Assim como mais importantes são os<br />

pernambucanos João Cabral, Manuel Bandeira e Carlos<br />

Pena Filho e os paraibanos José Lins do Rego, <strong>Augusto</strong><br />

dos Anjos e Manuel Camilo dos Santos, além do alagoano<br />

Graciliano Ramos e o piauiense Torquato Neto. Decerto,<br />

cearenses, sergipanos e maranhenses também merecem<br />

ser citados.<br />

Ainda bem que o poeta Diógenes da Cunha Lima<br />

lançou a idéia de se comemorar em Natal o “Dia do<br />

Poeta Potiguar”. Uma data já foi escolhida: 23 de maio,<br />

que marca o nascimento do currais-novense Luís Carlos<br />

Guimarães. Já temos o 14 de março como o Dia da Poesia<br />

(em âmbito nacional), agora teremos o 23 de maio como<br />

o Dia do Poeta Potiguar. Muito mais rico e estimulante do<br />

que qualquer Bloomsday.<br />

Zila Mamede<br />

Jorge Fernandes<br />

Luís Carlos Guimarães<br />

Julho 2004<br />

35


Leontino Filho<br />

a saga e o segredo de urdir os restos do lirismo amoroso<br />

36 Julho 2004<br />

Márcio de Lima Dantas (Professor de Literatura<br />

Portuguesa do Depto. de Letras da UFRN )<br />

Todo mundo sabe quanto se tornou difícil, nos últimos<br />

tempos, o manuseio de textos artísticos que lancem<br />

seus vetores à tradição da literatura ocidental conhecida<br />

como lírica amorosa. As linhas de continuidade às quais se<br />

vincula o discurso poético sobre o amor, pelo menos nos<br />

moldes como fomos acostumados a senti-lo/representálo,<br />

e também como é difundido pela mídia, parecem ter<br />

atingido o seu fastígio com as transformações que o século<br />

XX ferrou nos relacionamentos interpessoais, coisa que<br />

me parece sem retorno e que também, de outra parte,<br />

não deve causar transtornos, malgrado o desvelamento<br />

de uma hipocrisia insistente, produzida por um discurso<br />

advindo das classes dominantes, eivado de Ideologia,<br />

possibilitador da reprodução do status quo favoráveis<br />

àqueles mesmos que desde sempre estiveram no poder.<br />

O que eu quero dizer é que o poeta Leontino Filho,<br />

nascido em Aracati, antiga cidade do Ceará, vivendo<br />

desde muito na capitania do Rio Grande, ainda consegue<br />

retirar leite das pedras, dada sua capacidade de lidar com<br />

a linguagem, haja vista seu enorme talento de suplicar<br />

metáforas à Érato; sim, isso mesmo, uma rara faculdade<br />

de extrair delicadas epifanias sobre o amor e todos os<br />

afl uentes temáticos que o entornam. Ou seja, ainda as<br />

possibilidades do que fi cou conhecido e estabelecido,<br />

muita vez equivocadamente, com a rubrica lirismo<br />

amoroso. Reparemos um bom exemplo daquilo a que<br />

acima me refi ro, encontrado no livro Sagrações ao meio<br />

(1993): antropofagicamente/reclamo as minhas sobras.<br />

Com efeito, várias qualidades são encontradas na poesia<br />

de Leontino Filho, que se mostra sóbria, madura, em<br />

rasgos de originalidade e lampejos semânticos, numa<br />

linguagem elíptica, elegante, manuseando discretamente<br />

o vocabulário regional, sobrepondo com habilidade os<br />

versos parataticamente uns sobre os outros, olvidando o<br />

enjambement, desprezando, porém deixando implícita, a<br />

gramática do vernáculo, na consecução do signo poético.<br />

Bom mesmo é constatar quanto o poeta se encontra em<br />

contemporânea vibração com os modos de sentir das


Leontino Filho<br />

gentes/mentes multifacetadas que perambulam nas vias do<br />

presente. Melhor ainda: saber – coisa tão sutil e complexa<br />

– articular, através da palavra poética, o empírico no qual<br />

estamos imersos, posto que, mesmo a gente sendo capaz<br />

de um distanciamento crítico, como pretendia o poeta<br />

Fernando Pessoa, não podemos nos esquivar dos discursos<br />

que proferimos, das representações que fazemos das coisas<br />

e sobretudo das de que somos objeto. Enfi m, para não<br />

se arrastar muito o que tanto a crítica tem buscado: o<br />

isomorfi smo entre vida social e expressão estética.<br />

Ora essa! Tudo o aí dito só poderia sustentar-se por meio<br />

de um discurso, no mínimo, diferenciado da prática<br />

poética démodé e em voga nas terras brasileiras, cuja<br />

palatabilidade ao poético nem sempre é condizente com<br />

as formas de agir e sentir atuais. Era só o que faltava! Uma<br />

sociedade que detém em seu éthos apenas alguns vestígios<br />

do rural, visto que alguns teimam em se ligar ilusoriamente<br />

ao “torrão natal”, na qual pipocam fenômenos e gentes já<br />

com visão cosmopolita, gostos sofi sticados no vestir e no<br />

comportar-se, sexualidades cambiantes, cosmopolitismo<br />

expresso na indumentária e no comportamento, etc,<br />

mesmo que sejam uns poucos, permanecer atado a uma<br />

ruma de besteiras sobre formas de amar ou de representála<br />

é, antes de qualquer coisa, ridículo. A arte, como<br />

todo mundo sabe de cor e salteado, ao longo da história,<br />

sempre salpicou, nos cacos encontrados nos monturos<br />

das vivências, individuais ou sociais, faces amplamente<br />

complexas e ambivalentes do real.<br />

Falava mesmo de quê eu? Sim, de forma. O poeta Leontino<br />

Filho não utiliza em seus versos a capitular maiúscula<br />

nem tampouco o ponto fi nal, sugerindo uma dicção<br />

solta, moldada num ritmo bem particular. A sugestão<br />

que nos imprime é de certa liberdade de pensar, de sentir<br />

o seu desejo pelo objeto amado, sem censuras. De outra<br />

parte, o discurso poético de Leontino se instaura num<br />

registro lírico amoroso de natureza muitas vezes erótica,<br />

manifestando-se através de blocos alinhados, como sendo<br />

espécies de monólitos, gramaticalmente plasmados numa<br />

linguagem coloquial e que contém qualquer coisa de<br />

oracular, tingindo a palavra poética com as forças atávicas<br />

de dizeres ressoando afi rmações que muito o aproximam<br />

de uma vidência.<br />

Na última sessão do livro, “Circulares” - temos a junção,<br />

a síntese de Sagrações ao meio, na medida em que as duas<br />

formas fi xas manuseadas com elegância pelo autor, ao<br />

longo da obra, agora retornam numa única página, ou<br />

seja, a quintilha na parte superior e o terceto na parte<br />

inferior. Cinco e três: números cabalísticos. Os cinco<br />

sentidos para usufruir as benesses eróticas do corpo,<br />

expressas nos estádios naturais de toda e qualquer coisa:<br />

que nasce, que cresce, que morre: as cidades armam/<br />

vinganças quase perfeitas/resta o meu vôo.<br />

Numa outra subdivisão do livro, “Vazantes”, avulta, em<br />

contida dicção, um belo uso da linguagem regionalista,<br />

sem, contudo, o poeta fazer desse uso uma espécie de<br />

orgulho por deter uma das variantes lingüísticas do<br />

português falado no Nordeste. É como se fosse assim uma<br />

coisa tão natural que o leitor nem se dá conta. Porém, ao<br />

se servir de um vocabulário inerente a uma região desde<br />

sempre representada no discurso ofi cial como algo a ser<br />

sempre, conscientemente ou não, depreciado, mesmo<br />

que seja apenas para aparecer diante do outro, num<br />

puro movimento de insegurança - ou seja, a tão batida<br />

história de perpetrar o contraste para escamotear o velho<br />

sentimento de inferioridade, tão inerente à sociedade<br />

brasileira. Sim, mas de tudo isso resta o benfazejo serviço<br />

de decantar tal linguagem, obrigando os dicionários<br />

a codifi car, nos seus verbetes, usos de um costume<br />

emanado de uma diferença. Todo mundo sabe o que<br />

Graciliano Ramos, ao fazer uso de palavras restritas a uma<br />

região, prestou ao vernáculo, enquanto sistema aberto,<br />

enriquecendo a língua ao manuseá-la na literatura, lugar<br />

já estabelecido como sendo o objeto de estudo de fi lólogos<br />

e interessados na linguagem.<br />

Enfi m, o tratamento literário dado pelo poeta Leontino<br />

Filho à temática do amor no livro Sagrações ao meio pode<br />

ser assim iconifi cado: despojamento lingüístico e profecia,<br />

a serviço de uma erótica refi nada, bem de acordo com<br />

a maneira de vivenciar os relacionamentos interpessoais<br />

mais íntimos consoante as usanças nos últimos tempos.<br />

Julho 2004<br />

37


O tempo como um espaço para a solidão<br />

38 Julho 2004<br />

João Antônio Bezerra Neto<br />

(Bolsista de iniciação científi ca PIBIC/CNPq)<br />

A borrasca abençoou minhas manhãs marítimas.<br />

Arthur Rimbaud<br />

convulso e dramático lirismo do primeiro livro de poemas de Walfl an de Queiroz,<br />

O publicado em 1960, - “O tempo da solidão” -, desenvolve-se a partir de um conjunto de<br />

experiências vivenciadas pelo próprio autor durante sua temporada no mar tenebroso como<br />

marinheiro de um velho navio que fazia a linha América do Sul/Antilhas. A sua aventura<br />

marítima só poderia resultar na feitura de belos poemas impregnados de marés amargas e<br />

sonoras, de melodias misteriosamente nostálgicas, de marujos muito antigos e embriagados, de<br />

mulheres exóticas, de portos distantes, de velas brancas e longas tardes azuis.<br />

O poeta, jovem e erudito, estréia aos 30 anos de idade, impressionando os intelectuais do<br />

círculo literário da cidade de Natal com suas afi rmações de incontestáveis qualidades poéticas.


A sua poesia revela uma profunda tortura existencial a<br />

serviço de uma sensibilidade extraordinária, lembrando<br />

os grandes românticos e os grandes agônicos da Literatura<br />

Universal. Walfl an tinha adquirido desde cedo o gosto<br />

pela leitura e pelo isolamento, por isso fomentava a sua<br />

própria solidão para dela extrair os poemas plenos de<br />

angústia e de metafísica. Solitário e amargurado, o poeta<br />

nascido em São Miguel, longínqua cidade do Alto Oeste<br />

Potiguar, viveu quase sempre sob os tormentos de uma<br />

imaginação fértil e febril, terminando os seus dias numa<br />

clínica para doentes mentais.<br />

Em “O tempo da solidão”, uma amostra de sua<br />

potencialidade lírica é o poema “Bateau ivre”, no qual<br />

podemos sentir uma perfeita harmonia entre a forma<br />

e o conteúdo, a intensidade plástica e a fuga do real.<br />

Vejamos:<br />

Tenho que ancorar numa ilha do arquipélago das Marquesas.<br />

Pode ser Typee ou outra ilha qualquer, não me interessa.<br />

Estou cansado de istmos e golfos amargos.<br />

Em Typee terei tempo e oportunidade de esconder<br />

As pérolas negras que trafi quei no porto de Timbuktu.<br />

Talvez faça um poema para a fi lha do cacique.<br />

E durma com ela ao som dos riachos e das fontes.<br />

Passarei uns quatro meses distante do mundo selvagem<br />

E me distrairei com as danças e rituais mágicos dos nativos.<br />

Ela será para mim, como a Tehura de Paul Gauguin.<br />

As impressões extraídas de uma paisagem tropical ainda<br />

intacta e exuberante encontrada, por exemplo, nas<br />

Ilhas Marquesas, estas maravilhas perdidas no Pacífi co,<br />

apartadas mais ou menos das rotas de navegação e cujos<br />

habitantes, segundo relatos, foram antropófagos, têm<br />

efeitos profundos na visão do poeta. De outra parte, eis<br />

como a realidade muitas vezes se funde com o universo<br />

sensível do artista, ao seu olhar penetrante, atento para<br />

extrair das fascinantes paisagens metáforas necessárias<br />

para engendrar seus poemas. Assim, o domínio do<br />

primitivo se apresenta para o poeta de acordo com a sua<br />

indumentária exótica e mágica, sendo o oposto daquele<br />

no qual a dinâmica da tecnologia assume um valor maior<br />

para a civilização. Para o poeta, o que interessa são as<br />

valiosas pérolas negras, por sua cor inusitada, o cinzaescuro,<br />

e a sua musa com feições indígenas comparada a<br />

Tehura de Paul Gauguin, uma nativa de origem polinésia<br />

com quem o pintor francês viveu durante um certo tempo<br />

numa rústica cabana no Tahiti. Em companhia de sua<br />

doce dama, o seu cansaço existencial será atenuado pela<br />

dança sensual e as cerimônias misteriosas e iniciáticas dos<br />

feiticeiros da ilha.<br />

Um aspecto que também nos chama bastante atenção<br />

é a grande quantidade de informações da tradição<br />

literária presentes no livro. Desse modo, poetas como um<br />

Verlaine, Rimbaud, Hölderlin, Keats, Poe e Hart Crane<br />

são ressuscitados na sua poesia através de um diálogo<br />

harmonioso, sustentado pela dramaticidade do estilo bem<br />

como pela tensa melancolia e um sentimento platônico. A<br />

dialética da solidão em Walfl an de Queiroz é preenchida<br />

com fragmentos da dor de viver, com pedaços de um<br />

tempo interior, desde sempre, veiculados a uma realidade<br />

criada por ele mesmo. De outra parte, Walfl an consegue<br />

esboçar um caminho solitário e místico semelhante aquele<br />

traçado por Rilke, como é possível verifi car nos poemas<br />

“Prece”, “Maria” e “Angústia”. Nesse sentido, o seu estado<br />

de espírito ressoa em verso íntimo: “Senhor! Quero esta<br />

estrela que me olha com olhos fi tos e constantes”.<br />

O poeta de “O tempo da solidão”, pela maturidade da<br />

sua obra, detentor de um discurso artístico refi nado,<br />

expressando-se por meio de versos livres e brancos,<br />

consubstanciados numa densa pulsação emocional,<br />

elevou a lírica norte-rio-grandense a um registro poético<br />

que afi na seu timbre com o que de melhor foi produzido<br />

no sistema literário brasileiro.<br />

A poesia de Walfl an de Queiroz discorre sobre a solidão<br />

com sensibilidade, ternura e, sobretudo, beleza. Aliás, vê<br />

o sentido da beleza permanente que há nas coisas, assim<br />

como Keats escreveu no passado: “A thing of beauty<br />

is a joy for ever”. O seu compromisso com o belo e a<br />

harmonia são altamente grandes, à maneira de um Robert<br />

Frost ou de um Emily Dickinson. Ora, não nos restam<br />

dúvidas de que seus poemas detêm metáforas originais,<br />

verdadeiras imagens iluminadas, empreendidas em<br />

uma dicção espontânea e singular, criando um universo<br />

poético que se mescla à evocação de leituras feitas pelo<br />

poeta ao longo de sua vida. Enfi m, a sua solidão está cheia<br />

de sentido místico, tomando forma numa poesia com<br />

forte conteúdo espiritualizado.<br />

Julho 2004<br />

39


Oficinas constroem<br />

identidade e cidadania<br />

Por Henrique José<br />

Ao longo da última década, a Galeria ZooN<br />

de Fotografi a (ONG - Organização Não<br />

Governamental fundada por vários fotógrafos do estado),<br />

vem se constituindo numa importante entidade cultural,<br />

promovendo projetos, exposições e ofi cinas, como<br />

forma de difundir a fotografi a como expressão artística<br />

e linguagem visual, comprometida com a construção da<br />

cidadania, dos direitos humanos e da identidade local.<br />

As “Ofi cinas de Fotografi a e Identidade” desenvolvem<br />

uma metodologia própria, fazendo uma abordagem<br />

multidisciplinar, fundamentada na pedagogia da educação<br />

popular de Paulo Freire.<br />

Nas ofi cinas, os alunos são provocados a refl etir sobre<br />

a sua experiência, suas vidas e a partir do contexto<br />

cultural e subjetivo da sua comunidade, da sua família,<br />

40 Julho 2004<br />

despertar para uma compreensão da fotografi a como uma<br />

linguagem técnica, capaz de expressar idéias e sentimentos,<br />

reconstruindo sua signifi cação de mundo, promovendo<br />

sua identidade e auto-estima, onde através de vivências<br />

grupais, possam desenvolver relações de solidariedade e<br />

construção de alternativas para a superação da pobreza.<br />

Esta mudança de atitude pode ser verifi cada ao fi nal<br />

de cada ofi cina, quando os jovens revelam para a<br />

sua comunidade, imagens capazes de promover uma<br />

refl exão/ação sobre sua própria realidade, através de<br />

uma construção antropofágica de jovens falando sobre<br />

si mesmos, resgatando através da fotografi a, expressões<br />

artísticas e culturais, belezas naturais e sociais, de suas<br />

famílias, sua cidade, alimentando um processo de ser<br />

protagonista.


Esta rica experiência de mobilização e refl exão comunitária<br />

envolve todo o município, gerando produtos concretos<br />

como: mapeamento fotográfi co; exposição itinerante (que<br />

irá percorrer escolas, comunidades etc) e uma coleção de<br />

cartões postais, com uma imagem produzida por cada<br />

aluno, constituindo um instrumento de promoção da<br />

identidade local.<br />

Resgatando o conceito de grafi a como prática<br />

compartilhada, adotado por Paulo Freire, as “Ofi cinas<br />

de Fotografi a e Identidade” buscam desenvolver uma<br />

prática compartilhada pela luz, construindo relações de<br />

grupo, estratégias de mobilização social, protagonismos e<br />

levantamento da realidade objetiva e subjetiva dos alunos<br />

e de sua região.<br />

As ofi cinas são compostas de dinâmicas de grupo,<br />

confecção de caixas mágicas (câmara escura), visores de<br />

papelão, projeções de slides, visualização de trabalhos<br />

de renomados fotógrafos e aulas teóricas e práticas com<br />

máquinas amadoras, onde os jovens são estimulados<br />

a fotografar determinada temática. Por exemplo: ao<br />

fotografar o colega e se deixar fotografar de forma lúdica,<br />

ao fotografarem sua família, casa e rua, identifi camos<br />

e realizamos um levantamento (antropologia visual)<br />

da situação socioeconômica e psicológica deste jovem;<br />

através de fotografi as pelo bairro levantamos problemas<br />

como o lixo, saneamento básico etc, estabelecendo uma<br />

identidade e interação destes com o seu ambiente. Todo o<br />

material fotografado é debatido e editado entre o grupo,<br />

possibilitando o conhecimento mútuo e devolução<br />

do material produzido para a comunidade, através de<br />

exposições fotográfi cas itinerantes.<br />

Julho 2004<br />

41


42<br />

Julho 2004<br />

Por David Clemente<br />

Poetas de todos os recantos do mundo comemoraram<br />

no dia 12 de julho o centenário de nascimento do<br />

poeta chileno Pablo Neruda. Em Natal, cidade que<br />

cultiva a poesia como poucas, o presidente da Academia<br />

Norte-Rio-Grandense de Letras, Diógenes da Cunha<br />

Lima, tomou a frente da celebração, com pelo menos<br />

quatro formas de trazer à memória a vida e obra do bardo<br />

chileno.<br />

No dia 12 de julho, às 18 horas, na igreja do Bom<br />

Jesus na Ribeira, ocorreu a inauguração de uma placa<br />

homenageando Neruda e o poeta potiguar Ferreira<br />

Itajubá. Na rua Chile, também no bairro da Ribeira, foi<br />

oferecido como presente para a cidade do Natal um busto<br />

de Pablo Neruda feito em bronze.<br />

A escolha do bairro para essas duas celebrações não foi por<br />

acaso. Diógenes explica que a intenção é corrigir um lapso<br />

cometido contra Itajubá. Ele nasceu na rua Chile e foi um<br />

dos grandes poetas de Natal. Depois de morto, seus ossos<br />

foram guardados na igreja do Bom Jesus, até que chegasse<br />

ao templo um sacerdote que resolveu juntar os restos<br />

mortais de todas as pessoas que estavam sepultados lá.


Nos dias 27 e 28 de julho, no Teatro Alberto Maranhão<br />

(TAM), o grupo paraibano Apocalipse encenou<br />

“Diálogos de Nuestra América”, peça baseada no “Livro<br />

das Respostas” publicado por Diógenes da Cunha Lima,<br />

em face ao “Livro de Las Preguntas”, escrito por Neruda e<br />

lançado em edição póstuma.<br />

Ainda dentro das comemorações do centenário, foi<br />

realizada uma mesa redonda, na ANL, com participações<br />

do tradutor ofi cial de Neruda, Ivo Barroso; dos escritores<br />

Tarcísio Gurgel e Edson Neri; do poeta Diógenes da<br />

Cunha Lima e do jornalista Vicente Serejo, entre outros<br />

nerudianos, que debateram a participação do poeta<br />

na literatura mundial. “A comemoração não foi só em<br />

Natal”, esclarece Diógenes. “O mundo todo comemorou<br />

o centenário de Neruda. Há quase uma associação das<br />

pessoas que o consideram o poeta maior. É informal, mas<br />

há nerudianos em todos os países do mundo”.<br />

“Diálogos de Nuestra América”<br />

Até poderia ser um sonho, até poderia ser verdadeiro.<br />

Meio onírico, meio real. Assim é a peça “Diálogos de<br />

Nuestra América”, encenado pelo grupo paraibano<br />

Apocalipse como parte das comemorações do centenário<br />

do nascimento de Neruda. O espetáculo foi apresentado<br />

em Natal nos dias 27 e 28 de julho, no Teatro Alberto<br />

Maranhão (TAM), com a direção de Roberto Cartaxo<br />

e teatralização de Altimar Pimentel, autor do premiado<br />

“Como Nasce um Cabra da Peste”.<br />

O texto foi extraído do “Livro de Respostas”, de Diógenes<br />

da Cunha Lima. O início da elaboração das respostas<br />

para las preguntas de Neruda surgiu quando o cronista<br />

Veríssimo de Melo, amigo pessoal de Diógenes, o pediu<br />

que respondesse a três, das 311 questões formuladas<br />

pelo chileno. Diógenes explica que na época se dizia que<br />

tais perguntas não deveriam ser respondidas, pois eram<br />

resultados das idéias oníricas de Neruda. Mesmo assim, o<br />

advogado vestiu-se de oniromante e começou a cumprir<br />

a encomenda. “Fui me encantando com as respostas e fi z<br />

oito vezes esse livro. Até que respondi às 311 perguntas e<br />

escrevi “O Livro das Respostas”, conta.<br />

“Por que los inmensos aviones no se pasean con sus<br />

hijos?” (Por que os imensos aviões não levam seus fi lhos<br />

para passear?) foi a primeira pergunta a ter uma refutação.<br />

E assim Diógenes respondeu: “Para que os fi lhotes não<br />

desarrumem a posição das estrelas.” A mais difícil foi “De<br />

qué ríe la sandia cuando la están asesinando?” ( De que ri<br />

a melancia quando a estão assassinando?). “Com humor<br />

negro a boca vermelha da melancia constata: o seu sorriso<br />

foi feito a golpe de faca”, respondeu Diógenes.<br />

Altimar Pimentel conta que, ao ler o “Livro das<br />

Respostas”, viu a possibilidade teatral do texto. E com<br />

todo prazer que a poesia proporciona, ele desenvolveu<br />

situações cênicas para o – até então, quase – diálogo. No<br />

palco, Altimar pôs ao lado dos personagens Neruda e<br />

Diógenes, dois vagabundos e uma bailarina. Enquanto os<br />

protagonistas conversam sobre Las Preguntas e Respostas,<br />

os vagabundos dizem coisas surrealistas e a bailarina<br />

forma o elo de ligação entre os personagens.<br />

O diretor Roberto Cartaxo aceitou o desafi o de colocar<br />

um poema no palco. E com aplausos de pé, o público<br />

retribuiu seu empenho. Foi mais de um ano de montagem<br />

e três meses de ensaio, três vezes por semana, até a estréia<br />

em maio, em João Pessoa-PB. Depois disso, o grupo já<br />

esteve nos palcos de Maceió-AL, em junho.<br />

Criador extraordinário<br />

O calendário de 1904 marcava 12 de julho quando<br />

nasceu, em Parral, no Chile, Neftalí Ricardo Reyes<br />

Basalto – Pablo Neruda, um dos principais poetas do<br />

seu país, mas que seria conhecido em todo o restante do<br />

mundo. Desde muito jovem encantou-se pela literatura<br />

e passou a projetar sobre o papel todo seu sentimento.<br />

As poesias da sua primeira fase transmitem angústia,<br />

porém com boas doses de romantismo, parte disso por<br />

infl uência do poeta norte-americano Walt Whitman. Na<br />

fase seguinte, adotou um estilo surrealista infl uenciado<br />

por André Breton e Paul Éluard.<br />

Com apenas 20 anos publicou seu primeiro livro<br />

chamado “Crepusculário”, no qual já assinou Pablo<br />

Neruda. O pseudônimo surgiu para despistar o pai,<br />

que não se agradava da idéia de que seu fi lho fosse<br />

poeta. O sobrenome Neruda é uma homenagem ao<br />

poeta tcheco Jam Neruda. “Pablo Neruda consagrou-se,<br />

principalmente, pela sua extraordinária criação. Ele era<br />

sinônimo de poesia. Trabalhava a palavra como ninguém,<br />

de forma sarcástica, inovadora, criadora, da altura dos<br />

Andes”, descreve Diógenes da Cunha Lima.<br />

Para defi nir a América com poucas palavras, Pablo<br />

Neruda a chamou de “El continente de la injusticia” (O<br />

continente da injustiça), mostrando a preocupação que<br />

Julho 2004<br />

43


Pablo Neruda<br />

sentia com as injustiças sociais. Retratava sua indignação<br />

não só nos escritos como também nos atos. Achava que<br />

o comunismo seria a solução do mundo e aderiu à idéia.<br />

Teve uma carreira política na qual ganhou indicação à<br />

Presidência da República do Chile, em 1969. Entretanto<br />

preferiu renunciar em favor de Salvador Allende.<br />

Participou da campanha em que Allende elegeu-se e foi<br />

nomeado embaixador do Chile na França.<br />

Casou-se pela primeira vez com a holandesa Maria<br />

Antonieta Hagenaar, depois com a pintora argentina<br />

Delia Del Carril Iraeta e por fi m com a chilena Matilde.<br />

De 1934 a 1938 foi cônsul na Espanha. Em 1971,<br />

recebeu o Prêmio Nobel de Literatura e o Prêmio Lenin<br />

da Paz. Dois anos mais tarde, era chegada a hora de partir.<br />

Morreu aos 69 anos, em 23 de setembro de 1973 em<br />

Santiago, no Chile.<br />

Deixou para a humanidade sua fundamental contribuição<br />

para a literatura. Suas obras mais famosas são: “La canción<br />

de la fi esta”, “Crepusculario”, “Veinte poemas de amor<br />

y una canción desesperada”, “Tentativa del hombre<br />

infi nito”, “Residencia en la tierra” e “Oda a Stalingrado”,<br />

“Canto General”, “Odas elementales”, “La uvas y el<br />

viento”, “Nuevas odas elementales”, “Libro tercero de las<br />

odas”, “Geografía Infructuosa” e “Memorias (Confi eso<br />

que he vivido — Memorias)”.<br />

44 Julho 2004<br />

Teu Riso<br />

Pablo Neruda<br />

Tira-me o pão, se quiseres,<br />

tira-me o ar, mas não<br />

me tires o teu riso.<br />

Não me tires a rosa,<br />

a lança que desfolhas,<br />

a água que de súbito<br />

brota da tua alegria,<br />

a repentina onda<br />

de prata que em ti nasce.<br />

A minha luta é dura e regresso<br />

com os olhos cansados<br />

às vezes por ver<br />

que a terra não muda,<br />

mas ao entrar teu riso<br />

sobe ao céu a procurar-me<br />

e abre-me todas<br />

as portas da vida.<br />

Meu amor, nos momentos<br />

mais escuros solta<br />

o teu riso e se de súbito<br />

vires que o meu sangue mancha<br />

as pedras da rua,<br />

ri, porque o teu riso<br />

será para as minhas mãos<br />

como uma espada fresca.<br />

À beira do mar, no outono,<br />

teu riso deve erguer<br />

sua cascata de espuma,<br />

e na primavera, amor,<br />

quero teu riso como<br />

a fl or que esperava,<br />

a fl or azul, a rosa<br />

da minha pátria sonora.<br />

Ri-te da noite,<br />

do dia, da lua,<br />

ri-te das ruas<br />

tortas da ilha,<br />

ri-te deste grosseiro<br />

rapaz que te ama,<br />

mas quando abro<br />

os olhos e os fecho,<br />

quando meus passos vão,<br />

quando voltam meus passos,<br />

nega-me o pão, o ar,<br />

a luz, a primavera,<br />

mas nunca o teu riso,<br />

porque então morreria.


ESCRITURA POTIGUAR<br />

Mário Gerson Fernandes de Oliveira nasceu em Mossoró – RN, em 1981.<br />

Começou a produzir seus primeiros escritos em 1995. Desde muito jovem<br />

travou contato com a literatura, as artes plásticas e, em especial, a poesia.<br />

Em parceria com a <strong>Fundação</strong> Vingt-Un Rosado – Coleção Mossoroense,<br />

lançou em 1999, seu primeiro trabalho em poesia: “Traços Poéticos”, pelo<br />

projeto “Poema na Escola”, ligado a POEMA – Poetas e Prosadores de<br />

Mossoró, do qual é membro. É também cronista. Nesse gênero escreve<br />

desde 1999, semanalmente, aos sábados, no jornal O Mossoroense. É<br />

editor - fundador do jornal cultural e literário – mensal - “Clandestino”, em<br />

parceria com o projeto Pedagogia da Gestão. Em 2002, lançou “O Catador<br />

de Espumas”. Em 2001, foi terceiro lugar no Concurso Vingt-un Rosado<br />

de Poesia, promovido pela Prefeitura Municipal de Mossoró. Os poemas<br />

aqui editados são de seu livro inédito “O Eu Negro”.<br />

Julho 2004<br />

45


Escritura Potiguar<br />

Encruzilhada<br />

A Mário de Andrade<br />

Meu destino<br />

Também era trágico,<br />

E o desafi o de ser<br />

Fera entre os homens<br />

Me perseguia,<br />

Até que um dia<br />

Eu topei comigo.<br />

Morada<br />

Casulo<br />

De mim,<br />

Me enterro<br />

Em ti.<br />

Branca<br />

Tua voz,<br />

Após o sorriso,<br />

É branco<br />

Vulto<br />

De Ser.<br />

Imagem<br />

46 Julho 2004<br />

O espelho<br />

É meu<br />

Inimigo<br />

Onde me<br />

Contemplo<br />

Todos os dias.<br />

Acasalamento<br />

A noite,<br />

Em negros<br />

Lençóis,<br />

Espera<br />

A vida<br />

Em desordem...<br />

Poemeto de Plenitude<br />

Louco<br />

Coração<br />

Amante;<br />

Ameno...<br />

Na explosão<br />

De tuas<br />

Auroras<br />

Sinto-me<br />

Pleno.<br />

Certeiro<br />

Teu beijo<br />

Espoleta<br />

Vida;<br />

Faísca<br />

E chama;<br />

Caminho<br />

Entre<br />

Águas.<br />

A Gênese<br />

Eu fui.<br />

Ao longe<br />

Cantaram-se<br />

Espantos<br />

E encheram<br />

Minha alma<br />

De angústia<br />

E solidão.<br />

Escalada<br />

Escalo<br />

Teu corpo,<br />

E na<br />

Floração<br />

Da aurora,<br />

Retorno<br />

Ao mundo<br />

Tal qual vim.


Planta (Dor)<br />

Em minha<br />

Voz de tirano,<br />

Um grito acusa<br />

Que amanhã<br />

Os Pássaros<br />

Plantarão<br />

Minhas sementes.<br />

Sombra<br />

Já sombra<br />

E fi bra<br />

Foste<br />

Manhã<br />

Distante<br />

Febre<br />

Em cordas<br />

Vocais.<br />

Esquina<br />

Teu peito,<br />

Luz<br />

Em cada<br />

Esquina,<br />

Sangra<br />

Ao ver<br />

De meus<br />

Olhos.<br />

Suor<br />

A Ricarte Balbino<br />

No suor<br />

Do teu corpo,<br />

Me refaço,<br />

E em pedaços,<br />

No teu<br />

Dorso,<br />

Me revolvo<br />

Sobre a epiderme<br />

Manchada<br />

De saudade.<br />

Poemeto Suicida<br />

Meu coração,<br />

Como uma bala,<br />

Perfurou<br />

A minha vida.<br />

Eu não sei<br />

Mais o que faço<br />

Entre a Carne<br />

E a Ferida.<br />

Mas a bala<br />

Continua<br />

Enfi ada no meu corpo.<br />

Bala atirada dos olhos<br />

Dos homens e seus desafi os...<br />

A Bala que se fi xou<br />

Na vida<br />

De minha alma perdida!<br />

I<br />

Atendendo<br />

Ao teu<br />

Chamado,<br />

Resgato<br />

A fuga<br />

E o brilho<br />

De tua<br />

Face<br />

Perdida<br />

Na memória<br />

Do que foi.<br />

II<br />

Eu sei,<br />

Mas<br />

Não devia<br />

Que a<br />

Vida é<br />

Inimiga<br />

Da outra<br />

Que se<br />

Insinua.<br />

A Mara Ersterne<br />

Julho 2004<br />

47


Escritura Potiguar<br />

Necessidade<br />

Eu não preciso de utopias;<br />

De sangue de inocentes<br />

Sobre meus muros e começos,<br />

Nem inconcebíveis ações.<br />

Eu não preciso da fúria dos dias,<br />

Os seus enjôos, como ovelhas...<br />

Os seus embargos,<br />

Como barcos ao luar!<br />

Eu não preciso do preciso,<br />

Nem necessito do que me necessita;<br />

Do que tem duas antenas e uma forma<br />

Concreta de agir;<br />

Do homem além da imagem,<br />

Da metáfora de teus olhos.<br />

Interior<br />

O Poeta<br />

Que morre em mim,<br />

Traz a marca do silêncio<br />

Que encontro em ti.<br />

Ele caminha, disfarçadamente,<br />

Entre os sentidos<br />

Mais absurdos<br />

Do seu coração.<br />

Mas na luta diária de meu lado<br />

Esquerdo,<br />

Amigo, ele se perde<br />

Entre seu olhar no meu olhar.<br />

Olhar-te, porém, do alto de meu<br />

Disfarce,<br />

Me constrange e me abala<br />

Ou me perfura a carne,<br />

Meu sangue<br />

Banhando<br />

De morte<br />

As calçadas<br />

Alheias;<br />

Os olhares alheios;<br />

Os homens alheios;<br />

As mulheres alheias;<br />

As moças alheias...<br />

O Poeta que mora em mim,<br />

Também se ofende e se agrada.<br />

É ser, como as aves entre os seres.<br />

48 Julho 2004<br />

E eu, que me mapeio<br />

O coração,<br />

Ando perdido,<br />

Canto a canto,<br />

Em teus lençóis;<br />

Em teus espantos!<br />

Esse meu “Eu Poeta”<br />

Que sangra, distante,<br />

Outros meus amigos;<br />

Esse meu “Eu Poeta”<br />

Feito de dor e carne e vestígios;<br />

Esse meu “Eu Poeta”<br />

Que vê além<br />

De meus ouvires,<br />

Me cobre de desafi os e<br />

Pensares...<br />

O pensar ser além<br />

Do homem-Carne;<br />

O pensar ser além<br />

Do homem-Método;<br />

O pensar ser além<br />

Do homem-Máquina,<br />

Me funde em pensamentos;<br />

Me algema em faces<br />

Estranhas<br />

E vivas,<br />

Feito água<br />

No céu<br />

De minha boca.<br />

Mas as palavras<br />

Me atiram fora<br />

O corpo nu;<br />

O corpo do Homem-Natural<br />

Que me obriga,<br />

Do desperdício<br />

Que me custou<br />

Rasgar esse meu tédio<br />

Sobre a cidade,<br />

À implosão de outros<br />

Versos;<br />

De outros estranhos versos<br />

Escritos na sombra daquela<br />

Imagem.


SÃO MIGUEL<br />

Celeiro de raras tradições culturais<br />

Julho 2004<br />

49


São Miguel - celeiro de raras tradições culturais<br />

Por Gustavo Porpino<br />

Fotos: Alberto Leandro<br />

Enfrentar os 445 quilômetros entre São Miguel e Natal valem a pena. O município fi ca no alto da serra do Camará,<br />

a 700 metros acima do nível do mar, quase que escondido na chamada “tromba do elefante”, entre Pau dos Ferros,<br />

centro econômico da região, e Venha Ver, município desmembrado de São Miguel em 1992. Faz divisa com Uiraúna<br />

(PB), terra natal da deputada Luiza Erundina, e Pereiro, município cearense que divide com São Miguel as honras da<br />

tradicional dança de São Gonçalo.<br />

Conhecer São Miguel em ano de chuvas é constatar a alegria dos agricultores que fazem da terra fértil o sustento do dia<br />

a dia. A colheita do feijão e, principalmente, do milho garantem a mesa farta de canjica, pamonha, mungunzá, milho<br />

verde assado e outras iguarias. O açude Bonito, imponente entre vales verdes, a Serra do Formoso e o Alto de Santa<br />

Tereza compõem o cenário da antiga vila iniciada por um aventureiro português de sobrenome Carvalho, até hoje uma<br />

das famílias mais populares da região.<br />

As terras descobertas em 1750 pelo português Manoel José de Carvalho guardam a beleza das serras do alto oeste<br />

potiguar e tradições culturais difíceis de encontrar em municípios mais próximos da capital. A dança de São Gonçalo,<br />

presente no Rio Grande do Norte apenas em Portalegre e São Miguel, resiste ao tempo lá no alto da serra; violeiros<br />

duelam na festa da padroeira resgatando um hábito perdido nas antigas feiras; o Coral de São Miguel Arcanjo entoa<br />

cânticos em latim; a comunidade de Vieiras transforma o barro em cerâmica; a banda de música continua fazendo suas<br />

alvoradas e há muitos jovens com talento de sobra para expressar a arte em diversas formas. Viaje por São Miguel nestas<br />

páginas e vá criando coragem. 445 quilômetros é logo ali.<br />

50 Julho 2004<br />

Um violeiro nas ondas do rádio<br />

O violeiro José Gomes de Souza, 54<br />

anos, presidente da Associação dos Poetas<br />

Repentistas do Alto Oeste Riograndense,<br />

tem uma história de vida parecida com a de<br />

muitos outros nordestinos. Natural de Pilões,<br />

no oeste potiguar, Zé Gomes deixou sua terra<br />

aos 20 anos para tentar a sorte em São Paulo.<br />

Foi, arranjou emprego, mas não agüentou<br />

a saudade por muito tempo. A paixão pela<br />

viola surgiu nas cantorias nos bares do Brás,<br />

tradicional reduto de nordestinos na capital<br />

paulista.


O cantador chegou a São Paulo em 1971. Não tinha<br />

viola e nem fazia idéia do que fazer para enfrentar a<br />

cidade grande. Conseguiu emprego numa malharia e fez<br />

amizades com outros nordestinos. “Comecei a cantar em<br />

parceria com o paraibano Zé Francisco, ainda cantador e<br />

cordelista em São Paulo. Começamos nos bares do Brás”.<br />

Zé Gomes não esquece a convivência com os violeiros<br />

pernambucanos Pedro Amorim e João Quindingues.<br />

Ouvir os desafi os das duplas de cantadores mais<br />

experientes era uma rotina no seu início de carreira.<br />

Paciente, esperou aprender a técnica de vários gêneros até<br />

escolher a viola como ganha-pão. “Me adapto bem em<br />

sextilhas, motes, galope à beira-mar...”<br />

A amizade com Zé Francisco terminou mudando a vida<br />

de Zé Gomes. A primeira viola, comprada em São Paulo,<br />

viria a se transformar no seu instrumento de trabalho para<br />

sempre. O sucesso da dupla nos bares paulistanos rendeu<br />

convites para apresentações em festivais de cantoria e de<br />

literatura de cordel. O primeiro deles, em junho de 1978,<br />

na Ceilândia (DF), serviu para Zé Gomes optar de vez<br />

pela carreira de violeiro.<br />

O rádio entraria na vida do cantador logo a seguir.<br />

“Ficamos em segundo lugar nos festivais da Ceilândia e<br />

Camaçari, na Bahia, ambos em 78. Foi o incentivo que<br />

precisava para seguir a profi ssão de cantador repentista.<br />

A participação nos festivais rendeu um convite para<br />

trabalhar na rádio Panati, em Patos (PB). Era o que faltava<br />

para Zé Gomes desistir de morar em São Paulo. Depois de<br />

sete anos trabalhando na metrópole, o cantador decidiu<br />

voltar ao Nordeste e não se arrependeu.<br />

Fazendo dupla com o pernambucano Valdir Teles, Zé<br />

Gomes comandou o “Nordeste, verso e viola”, programa<br />

diário na rádio Panati, de 1978 a 1983. Daí para frente<br />

não parou mais de tocar e utilizar o rádio para difundir a<br />

cultura nordestina. Gravou o primeiro disco em 1981, “A<br />

voz do Nordeste”, com a participação do caicoense Cícero<br />

do Nascimento.<br />

Zé Gomes também fez dupla com o pernambucano<br />

João Batista Bernardo, conhecido como João Furiba,<br />

nos anos de 1983 e 1984. “Fundamos um programa<br />

na rádio Novo Nordeste, em Arapiraca, o ‘Nordeste e<br />

Viola’. O retorno ao Rio Grande do Norte aconteceu em<br />

1984. Ele aceitou um convite para comandar “O sertão<br />

e a poesia”, programa dedicado aos poetas repentistas na<br />

Rádio Cultura de Pau dos Ferros. Ao lado de Antônio de<br />

França, violeiro de Alexandria (RN) e um de seus mestres,<br />

Zé Gomes permaneceu na rádio de Pau dos Ferros até<br />

1992, quando decidiu fi xar residência em São Miguel.<br />

O violeiro apresenta desde então “A viola e o sertão”,<br />

diariamente, das 11h às 11h30, na rádio Difusora de São<br />

Miguel.<br />

O programa conta com as participações de Miro Pereira,<br />

Louro Branco e Geraldo Elias, um trio tarimbado de<br />

violeiros do oeste potiguar. O programa abre espaço<br />

também para as cantorias de diversos violeiros. “Tem<br />

Antônio de França, Zé Cardoso, Sebastião Silva, Moacir<br />

Laurentino, Valdir Teles, Geraldo Amâncio, Ivanildo<br />

Vilanova, Antônio Lisboa, Edmilson Ferreira, Zé Monte,<br />

Raimundo Borges, João Amaro... todos da região”.<br />

O som característico da viola não pode parar. Os versos<br />

de improviso dos cantadores, sejam fazendo desafi os entre<br />

si ou contando histórias do sertão, representam a garra e<br />

o senso crítico do povo nordestino. Zé Gomes sabe disso<br />

e não foge do desafi o.<br />

Julho 2004<br />

51


São Miguel - celeiro de raras tradições culturais<br />

Música e fé para vencer a dor<br />

O professor Manuel Bezerra Gurgel, 80 anos, está longe<br />

de ter a vida sedentária de um aposentado no interior. A<br />

casa ampla e bem arejada na Rua Coronel Nunes, centro<br />

de São Miguel, é um convite ao descanso, mas Gurgel,<br />

sabiamente, prefere continuar trabalhando. Decidiu aos<br />

69 anos, idade em que a maioria já está de pernas para o<br />

ar, fundar o Coral São Miguel Arcanjo, contribuindo para<br />

a educação de 32 jovens entre 15 e 20 anos e preservando<br />

a tradição dos cânticos em latim.<br />

A voz grave e a ótima entonação não deixam dúvidas sobre<br />

a vitalidade do fundador e regente do Coral São Miguel<br />

Arcanjo. Natural de Portalegre, Gurgel chegou a São<br />

Miguel em 1950. Naquela época, já tinha a experiência de<br />

ter ensinado música no Seminário de Santa Terezinha, em<br />

Mossoró. “Quando Dom Jaime foi embora para Belém<br />

fi quei ensinando música no seminário. Passei a ser aluno<br />

e professor.”<br />

Os sete anos de educação religiosa envolveram estudos<br />

de latim, francês, italiano e grego. O professor chegou a<br />

São Miguel como funcionário da agência municipal do<br />

IBGE, mas sem esquecer o envolvimento com a religião.<br />

Tão logo conheceu o padre José Aires, pároco da época,<br />

iniciou a formação de um coral de música sacra formado<br />

somente por moças. “Eram 12 moças e só cantavam<br />

música sacra.”<br />

O antigo coral enriquecia as celebrações na igreja de<br />

São Miguel, mas não durou muito tempo. “O vigário<br />

foi transferido para Apodi, eu casei e o coral terminou<br />

desaparecendo. Somente em 93 fundei o outro”. Gurgel<br />

52 Julho 2004<br />

iniciou uma nova vida ao<br />

lado da micaelense Maria do<br />

Socorro, sua esposa há 52 anos,<br />

mas sem abandonar a idéia de<br />

voltar a ser um dia regente de<br />

coral.<br />

Foram necessários 40 anos<br />

até Gurgel fundar o Coral de<br />

São Miguel Arcanjo. O coral<br />

de música sacra e popular faz<br />

apresentações mensais desde<br />

outubro de 1993. A idéia de<br />

criar o grupo partiu do padre<br />

José Caldera, italiano de Trento<br />

e pároco de São Miguel durante<br />

15 anos. O maestro José Sidney<br />

Rufi no, fi lho do músico Pedro<br />

Rufi no da Silva, também<br />

ajudou na formação do coral.<br />

O professor aliou música e fé para vencer a dor de perder<br />

o fi lho Theonagi Pinheiro Gurgel, falecido em 1993,<br />

com 34 anos. “Estava muito arrasado”, diz. O padre José<br />

Caldera, o Zezinho, motivou Gurgel a retomar a carreira<br />

musical. A iniciativa foi bem aceita pela comunidade e o<br />

coral já nasceu forte. Dez anos após sua formação, o Coral<br />

de São Miguel Arcanjo é uma referência no alto oeste<br />

potiguar para quem deseja formar um grupo de vozes.<br />

O coral canta em latim, francês, italiano e até uma canção<br />

bem curtinha em alemão. Os ensaios semanais acontecem<br />

no salão do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. O grupo<br />

fez várias apresentações no santuário do Lima, em Patu, e<br />

já esteve algumas vezes em Mossoró e outros municípios<br />

do oeste potiguar. Para celebrar os 80 anos do regente, o<br />

coral tinha programado uma apresentação em Fortaleza.<br />

O regente admite as difi culdades em manter os coralistas<br />

dedicados ao trabalho. “A rapaziada é muito displicente.<br />

É uma luta fazer o pessoal participar”. Acostumado ao<br />

ensino rigoroso e exemplar dos seminários de antigamente,<br />

Gurgel acompanhou a decadência do ensino público e<br />

acha até que a cultura de São Miguel poderia ser mais<br />

bem trabalhada. “O ensino do interior é fraco e a cultura<br />

é pouco desenvolvida”. O regente e professor, tão jovem<br />

de espírito, ainda tem muito a ensinar.


A agitação cultural da SOAMMI<br />

A Sociedade Artística e Musical Micaelense, SOAMMI,<br />

criada em 1998, envolve a banda de música Hesíquio<br />

Fernandes, a banda marcial Ilanio Pinheiro, cursos de<br />

violão e teclado, artesanato com idosos, ofi cina de fl auta<br />

para crianças e realiza o São João na Serra. Comandada<br />

por jovens, a SOAMMI oferece aos estudantes lazer e<br />

educação e ajuda a preservar a cultura junina micaelense.<br />

O cantor e seresteiro Clóvis Barbosa, 22 anos, presidente<br />

da sociedade, conta com a ajuda do secretário de educação<br />

Tarcísio Rego para desenvolver as atividades das diretorias<br />

de cultura, teatro e música. A nova diretoria pretende<br />

criar um quadro de associados para custear as despesas<br />

com a manutenção da sede, que funciona num prédio<br />

doado pela prefeitura na rua Treze de Maio.<br />

O projeto São João na Serra, idealizado pelo pedagogo<br />

José Helton de Carvalho, 22 anos, vice-presidente da<br />

SOAMMI, é a atividade de maior apelo popular. Durante<br />

o tradicional Arraiá do Tio Kalika, a sociedade comanda<br />

a quadrilha matuta ”Espalha Brasa”, quadrilha estilizada<br />

“Chama Serrana”, concurso de pau de sebo, concurso<br />

de literatura de cordel, desfi le cultural com escolha da<br />

carroça mais original e o casamento matuto.<br />

A atuação da SOAMMI não está restrita ao período junino.<br />

A data de emancipação política de São Miguel, 11 de<br />

dezembro, será comemorada com um encontro de bandas<br />

e violeiros. “Buscamos oferecer ao jovem micaelense uma<br />

oportunidade de saúde e lazer, distanciando crianças e<br />

jovens das drogas, além de divulgar a cultura junina”.<br />

“Pedro Rufi no da Silva<br />

Grande artista nordestino<br />

Começou tocando gaita<br />

E foi crescendo o menino<br />

Fez do talento uma vida<br />

E da arte o seu destino”<br />

Edmundo Saldanha<br />

Julho 2004<br />

53


São Miguel - celeiro de raras tradições culturais<br />

A banda de música Hesíquio Fernandes, criada em março<br />

de 1992, fez renascer a tradição musical do município.<br />

Por iniciativa do tabelião Avelino Pinheiro, São Miguel<br />

tinha sua banda de música já no início da década de 30.<br />

O maestro Pedro Rufi no da Silva, natural de Encanto<br />

e falecido com 83 anos em 2003, foi um grande<br />

incentivador da cultura musical em São Miguel.<br />

Pedro Rufi no participou da antiga banda de música de São<br />

Miguel nos anos de 1939 e 1940 e, já no fi nal da carreira,<br />

entre 1992 e 1995, foi maestro da banda Hesíquio<br />

Fernandes. Talentoso, Rufi no sabia tocar violão, sanfona,<br />

violino, saxofone, sax, soprano e clarineta. “Ele começou a<br />

tocar gaita em 1937, depois comprou uma harmônica de<br />

oito baixos e passou a tocar forró em diversos municípios<br />

do Nordeste”, conta o fi lho José Sidney Rufi no, seguidor<br />

da carreira do pai e autor do livro “Método de Música – o<br />

homem, a arte e a música” em homenagem ao pai.<br />

O antigo maestro teve oito fi lhos, sendo que quatro deles<br />

seguiram o dom da música. José Sidney foi diretor de<br />

banda de São Miguel entre 1992 e 1995 e comandou<br />

com o pai a banda de música de Pereiro (CE) entre<br />

1994 e 1996. Raimundo Nonato é cantor e compositor.<br />

Sildomar e Antônio Itamar são músicos da banda de São<br />

54 Julho 2004<br />

Miguel. José Estevão Neto, 34 anos, sobrinho de Pedro<br />

Rufi no, também toca na banda.<br />

O maestro da banda Hesíquio Fernandes, Carlos Euzeli<br />

de Oliveira, 23 anos, é outro exemplo da tradição musical<br />

passada entre gerações. Carlos Euzeli é fi lho de Expedito<br />

Ferreira, 75 anos, ex-músico da banda municipal.<br />

Quando não está regendo a banda, o maestro trabalha<br />

como tecladista.<br />

A banda conta com 33 músicos e poderiam ser até mais<br />

não fosse a falta de instrumentos. “Há uma demanda<br />

muito grande de músicos, mas não temos instrumentos.<br />

Os últimos, recebidos em 1992, serão reformados”,<br />

comenta o regente. A banda já ensaia a participação em<br />

mais uma festa do padroeiro São Miguel Arcanjo.<br />

A festa religiosa, entre os dias 19 e 29 de setembro, conta<br />

com três apresentações da banda por dia. A alvorada,<br />

iniciada diariamente às 5h em frente à igreja, abre os dias<br />

de festa. Ao meio dia a banda faz um percurso pequeno<br />

pelas ruas e às 19h participa da novena, em cerimônia<br />

campal em frente a matriz. Preservando o passado, a<br />

banda Hesíquio Fernandes segue percorrendo as ruas de<br />

São Miguel como fazia a antiga banda desde o fi nal da<br />

década de 20 e início dos anos 30.


Maria de Leandro: “sempre bulindo”<br />

Chegar até a comunidade de Vieiras é um deleite aos olhos. A estrada<br />

que liga São Miguel à zona rural próxima ao açude Bonito passa por vales<br />

verdes entre as serras e milharais. Neste cenário, pouco parecido com a<br />

aridez do sertão potiguar, vivem pouco mais de 30 famílias dedicadas ao<br />

cultivo da terra e ao artesanato com barro.<br />

A arte de moldar o barro dando forma a panelas, pratos e vasos vem sendo abandonada.<br />

A maioria das famílias passou a viver das plantações de feijão, milho e fava. Maria<br />

Santana da Silva, 82 anos, conhecida como Maria de Leandro ou Mãe Velha, continua<br />

fi rme no ofício herdado dos tempos do “véio Domingos Vieira dos Santos”, patriarca<br />

da comunidade e seu tataravô.<br />

Mãe Velha começou a trabalhar “desde bem pequenininha”. A mãe adotiva, Maria São<br />

Miguel de Jesus, também era artesã e ensinou as fi lhas. “Desde os 7 ou 8 anos a gente<br />

catava pedrinha de barro. Esta catrevagem, desse jeito assim, faço desde 1982”, diz,<br />

apontando para as panelas e potes de barro que ocupam boa parte do espaço da sua<br />

casinha de quarto e sala.<br />

A artesã continua recebendo muitas encomendas de panelas de barro e conjuntos de<br />

pratos. Irrequieta, a mais antiga moradora da comunidade diz não conseguir fi car sem<br />

fazer nada.“Um quer panela, outro cuscuzeira, outro prato e por aí vai. Tenho que tá<br />

mexendo com uma coisa e outra. É sempre bulindo”.<br />

O trabalho com o barro envolve várias etapas até a confecção das peças. A matéria<br />

prima vem dos “barreiros com um palmo de fundo, dois ou três”. Os dois tipos de<br />

barro utilizados no artesanato são encontrados na própria comunidade de Vieiras e,<br />

também, no município de Encanto. “Tem o barro gomoso e o moreno”. O primeiro é<br />

deixado de molho e peneirado a seguir. A artesã cobre o moreno com o gomoso, coloca<br />

a mistura no torno e forma as vasilhas. “Dá um trabalho que só sabe quem vê. As outras<br />

não querem fazer, mas eu enquanto for viva tenho que me bulir”.<br />

Julho 2004<br />

55


São Miguel - celeiro de raras tradições culturais<br />

Os clássicos na sala de aula<br />

Motivar os alunos é um desafi o para todo professor.<br />

Luzinete Cesário de Araújo Freitas, 36 anos, formada em<br />

Letras pela UERN de Pau dos Ferros e especialista em<br />

Lingüística aplicada ao ensino da língua portuguesa, tem<br />

utilizado a encenação de clássicos da literatura e o desenho<br />

de personagens para envolver os estudantes na leitura.<br />

A professora, uma apaixonada pela leitura de clássicos,<br />

já escreveu três livros. O primeiro título, publicado<br />

em 1982, foi “Descubra a felicidade de sorrir”. Logo<br />

a seguir, veio “Caminhando sem asas”, um livro de<br />

prosas questionando os problemas sociais. O romance<br />

“Desafi ando o destino”, lançado em 1998, consolidou<br />

o talento de Luzinete como escritora. Luzinete Cesário<br />

organizou também a coletânea de poemas “Primeiros<br />

Passos”, livro publicado em 2002 com a participação dos<br />

seus alunos da escola estadual Gilney de Souza.<br />

A encenação de “Fogo Morto”, de José Lins do Rego<br />

e “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, estão entre os<br />

trabalhos mais recentes. “Gosto de trabalhar de forma que<br />

desperte o interesse das pessoas”, salienta. Os estudantes<br />

fi zeram também a análise do livro “A Moreninha” e<br />

desenharam cada personagem da obra de Joaquim<br />

Manoel de Macedo em folhas de cartolina com grafi te.<br />

Luzinete Cesário também ensina na escola municipal<br />

Alice Pessoa. A professora está ajudando a implementar<br />

uma sala de leitura e já organiza sarau de poesias com<br />

participação dos estudantes do ensino fundamental.<br />

Tamanha dedicação ao ensino da literatura tem dado<br />

56 Julho 2004<br />

resultados. José Sabino, um ex-aluno, já escreve poemas<br />

e vários outros cultivam o hábito de rabiscar versos nos<br />

cadernos fora do horário das aulas.<br />

A professora faz planos de publicar mais um livro de<br />

poesia. Já tem 161 poemas inéditos. Alguns falam de<br />

amor, mas Luzinete prefere adotar o “estilo questionador<br />

dos padrões da sociedade e problemas sociais”.<br />

Alguns poemas de Luzinete podem ser lidos em telas de<br />

ponto de cruz bordadas pela própria professora. E não<br />

pára por aí. Em parceria com o marido Rainor Cleito<br />

Gurgel Freitas, faz desenhos com tinta vitral em espelhos<br />

e algumas pinturas. Pintando, bordando e escrevendo,<br />

Luzinete dá um exemplo a ser seguido por muitos jovens<br />

em São Miguel.


Jovens pintores pedem passagem<br />

A pintura tem conquistado muitos adeptos em São Miguel. É o caso dos estudantes Mona Lisa Rodrigues Silva, Geanio<br />

Silva, José Giliano da Silva e Marcelo Matias de Lima. Os jovens fazem da pintura um passatempo, mas alguns já<br />

pensam fazer das artes plásticas um meio de vida.<br />

Mona Lisa, 14 anos, estudante do primeiro ano na escola estadual Gilney de Souza, gosta<br />

de analisar quadros de pintores consagrados e estuda a história da arte. Começou a pintar<br />

infl uenciada pela tia Maria Jesus Rodrigues. “Minha professora de artes, Carminha,<br />

também me incentivou”. A jovem artista pintou o primeiro quadro aos 10 anos e, quando<br />

lê, gosta de desenhar de acordo com cada época. “Admiro o Barroco”.<br />

A estudante já vendeu três telas e quer mesmo seguir carreira como artista plástica. “Já li<br />

sobre Portinari e vi documentários na televisão. É um grande pintor. Gosto do estilo dele.<br />

Pretendo fazer curso superior em artes plásticas”.<br />

Geanio da Silva, 20 anos, concluinte do 2º grau na escola Gilney de Souza, descobriu<br />

que tinha o dom da pintura por acaso. O estudante, que até então nunca havia pintado,<br />

fez um quadro em tinta guache para um trabalho sobre o Impressionismo e foi elogiado<br />

por todos. O incentivo dos colegas fez Geanio seguir em frente. “Mandei comprar tinta<br />

em Fortaleza, estou esperando chegar. Tenho seis telas desenhadas, só falta pintar. Quero<br />

Geanio Silva<br />

desenvolver minha habilidade.”<br />

José Giliano da Silva, 17 anos, aluno da sexta série da escola estadual<br />

Padre Cosme, compensa o atraso nos estudos com a dedicação às artes<br />

plásticas. O estudante passou boa parte da infância ajudando o avô<br />

no roçado. Dividia o tempo entre a plantação de milho e os desenhos<br />

num caderninho com grafi te. “Desde pequeno tinha vontade, mas<br />

não tinha condições fi nanceiras de comprar material. Nunca estudei<br />

nada de pintura. Comecei me virando.”<br />

O jovem pintor prefere retratar paisagens e fl ores e já tem quatro telas à<br />

venda na Vidraçaria 3 irmãos, no centro da cidade. O desenho de São<br />

José Giliano<br />

Miguel Arcanjo, feito em giz de cera e exposto na biblioteca da escola<br />

estadual Gilney de Souza, é de sua autoria. Giliano sonha montar uma<br />

exposição própria e vai em busca do apoio do Banco do Brasil. “Quero<br />

expor 10 telas na sede do banco, aqui em São Miguel”.<br />

Marcelo Matias de Lima, 27 anos, estudante de Física da UERN,<br />

é um polivalente. Trabalha como locutor da FM Liberdade, dirige<br />

o departamento de artes da SOAMMI e mostra habilidade com o<br />

pincel na mão. As pinturas em tecido expostas na biblioteca pública<br />

do município, localizada no térreo da Secretaria de Educação, foram<br />

feitas por Marcelo para decorar o Arraiá do Tio Kalika no ano 2000.<br />

As telas são retratos de personalidades históricas de São Miguel. O<br />

Marcelo Matias<br />

sanfoneiro João Grosso, o ex-prefeito Hesíquio Fernandes, Etevaldo<br />

<strong>Augusto</strong>, Dona Chiquinha e alguns tipos populares renasceram pelas<br />

mãos do pintor.<br />

Julho 2004<br />

Mona Lisa Silva<br />

57


São Miguel - celeiro de raras tradições culturais<br />

Zé Limão Novo segue passos do pai<br />

Ferro e couro são utilizados há milênios pelo homem. Os ferreiros, fi guras importantes<br />

na Europa da Idade Média, eram responsáveis em confeccionar as ferraduras para<br />

proteger os cascos dos cavalos. O tempo passou, mas o trabalho árduo de operar uma<br />

forja permanece inalterado em São Miguel. O ferreiro José Geraldo Filho, 40 anos,<br />

acompanhava o pai desde criança no ofício de moldar o ferro artesanalmente.<br />

O trabalho começa com o ferro sendo aquecido no forno até fi car vermelho-brilhante.<br />

O forno a carvão é mantido quente com um fole operado manualmente. A seguir,<br />

José Geraldo martela as peças de ferro sobre uma bigorna. O ferreiro fabrica foices,<br />

roçadeiras e outras ferramentas para uso do trabalhador rural. Mais recentemente, tem<br />

diversifi cado a produção com churrasqueiras e fornos de assar bolos.<br />

O trabalho começa diariamente às seis da manhã e não tem hora para terminar. “A<br />

quentura é grande”, salienta. Depois de prontas, as peças ganham as iniciais Z.L.N.,<br />

letras que remetem à herança deixada pelo seu pai. “Meu pai era conhecido como Zé<br />

Limão, então eu virei o Zé Limão Novo”.<br />

José Veloso Neto, 48 anos, também trabalha artesanalmente na fabricação de peças para<br />

o homem do campo. Decidiu abrir um curtume desde que pagou adiantado por três<br />

selas e não teve o pedido atendido por “Vicente Seleiro”, um antigo artesão de Icó no<br />

Ceará. “Fui lá e comecei o trabalho com ele”.<br />

Desde então, José Veloso começou a fabricar selas, arreios, perneiras, cintos, chinelos,<br />

chaveiros e qualquer pedido de utensílio de couro que apareça. Os dois fi lhos, Francisco<br />

de Assis e Manuel, já ajudam o pai no curtume artesanal e contribuem para manter vivo<br />

o trabalho manual. Ferro e couro ainda rendem muito.<br />

58 Julho 2004


O marinheiro que passou por 75 países<br />

“Navegar é preciso, viver não é preciso”.<br />

Poucas pessoas chegam ao fi nal<br />

da vida com tantas histórias para<br />

contar quanto o ex-marinheiro<br />

José <strong>Augusto</strong> de Lima, 84<br />

anos, diretor de patrimônio da<br />

SOAMMI. Seu Zezinho, como<br />

é carinhosamente chamado<br />

pelos conterrâneos, nasceu aos<br />

pés da Serra de São José, no<br />

distante 31 de maio de 1920.<br />

Navegou por mares bravios e<br />

passou por 75 países. A visita ao<br />

Egito, em sua primeira viagem,<br />

em 1946, ainda no conturbado<br />

período do pós-guerra, nunca<br />

saiu da lembrança.<br />

Pompeu Magno (Político romano, 106-48 a.c.)<br />

Navegar era um sonho de<br />

menino. Zezinho alistou-se na Marinha sem imaginar<br />

que um dia descobriria o mundo a bordo de cruzadores<br />

como o histórico Barroso C 11, ou ainda o Almirante<br />

Tamandaré C 12 e o cargueiro Soares Dutra. Quando<br />

embarcou em sua primeira missão na Marinha, em 1946,<br />

a Segunda Guerra já havia terminado, mas havia o temor<br />

de um novo confl ito. “O comandante Carlos Eugênio<br />

Santos Drummond, um homem que falava vários<br />

idiomas, acalmava nossos nervos”.<br />

As viagens iam desde treinamentos em alto mar e<br />

exercícios com tropas até missões diplomáticas. Em<br />

1952, por exemplo, o Cruzador Barroso representou a<br />

Marinha do Brasil na cerimônia de coroação da Rainha<br />

Elizabeth II, na Inglaterra, e participou da Revista Naval<br />

de Spithead. Um ano depois, realizou a transladação dos<br />

restos mortais da Princesa Isabel e do Conde D’Eu, de<br />

Portugal para o Brasil.<br />

Foram mais de 45 anos divididos entre a Marinha de<br />

Guerra e a Mercante. O ex-marinheiro esteve em 75<br />

países e gosta de citar, um por um, os lugares mais<br />

marcantes que já visitou. Zezinho não lembra os detalhes,<br />

mas recorda ter atravessado o Canal de Suez, entre os<br />

mares Mediterrâneo e Vermelho, na sua primeira viagem.<br />

“Passei pelos cinco continentes, mas ter ido ao Egito e<br />

passado pelo Canal de Suez, nunca esqueci”.<br />

Os navios de guerra chegavam a passar 15 dias atracados<br />

em alguns países. Os tripulantes podiam passear pelas<br />

cidades das 17h às 23h. “A gente saia para dar uma volta<br />

e conhecer o modo de vida do povo lá fora, mas não tem<br />

povo mais educado do que o pobre brasileiro. Tem deles<br />

por aí que não dão nem boa noite e bom dia”.<br />

A paixão pelo mar está presente em vários aspectos da vida<br />

do ex-marinheiro. Escolheu torcer pelo Vasco da Gama<br />

desde o início da carreira na Marinha. Eram os tempos do<br />

“Expresso da Vitória”, time base da seleção brasileira no<br />

fi nal dos anos 40. Zezinho casou aos 18 anos e teve nove<br />

fi lhos. Já ganhou 14 netos e, até agora, não conseguiu<br />

convencer nenhum a entrar na Marinha.<br />

Julho 2004<br />

59


São Miguel - celeiro de raras tradições culturais<br />

As paixões da professora Socorro<br />

A professora Socorro Fernandes, fi lha do ex-prefeito<br />

Hesíquio Fernandes, carrega o gosto pela política e<br />

persegue o sonho de valorizar a cultura do alto oeste<br />

potiguar. Natural de São Miguel, onde vive até hoje,<br />

Socorro dirigiu a 15ª DIRED, diretório regional de<br />

educação responsável por 58 escolas espalhadas em vinte<br />

municípios do alto oeste.<br />

O gosto pelas artes é antigo. Quando está em casa,<br />

aproveita o clima ameno da serra para relaxar fazendo<br />

bordados e pintando toalhas, panos de prato e lençóis.<br />

“Pinto e bordo para uso próprio e também dou de<br />

presente. Não pode ter vida ociosa, se não estou<br />

trabalhando, estou fazendo alguma coisa”.<br />

A culinária é outra paixão de Socorro. O bolo ligado (veja<br />

receita), uma adaptação micaelense ao tradicional bolo<br />

da moça, é uma de suas especialidades. Receber bem os<br />

visitantes é um costume em São Miguel, e Socorro não<br />

foge à regra. A mesa farta com galinha caipira, creme<br />

de milho, arroz, feijão-macáçar, batata doce, farofa e<br />

rapadura é posta sempre que aparece uma visita. Socorro<br />

Fernandes, literalmente, pinta e borda.<br />

60 Julho 2004<br />

BOLO LIGADO<br />

04 ovos;<br />

02 colheres de sopa de margarina;<br />

03 xícaras de açúcar;<br />

01 xícara de farinha de trigo;<br />

01 vidro de leite de coco<br />

pequeno e a mesma medida<br />

de leite de gado;<br />

01 pitada de sal;<br />

01 colher de sobremesa de fermento;<br />

04 colheres de sopa de queijo ralado;<br />

04 gotas de baunilha.<br />

Bata tudo no liquidifi cador até unir bem.<br />

Coloque em forma untada com manteiga<br />

e polvilhada com farinha de trigo, depois<br />

leve ao forno. Verifi que se está no ponto<br />

com um palito.


<strong>Jose</strong>fa vive a esperar padre Zezinho<br />

<strong>Jose</strong>fa Teixeira, a Zefi nha, é o tipo popular mais conhecido<br />

de São Miguel. É uma fi gura folclórica respeitada por<br />

todos no município. Passa o dia vagando pelas ruas<br />

lamentando a ausência do Padre Zezinho, antigo pároco<br />

de São Miguel, hoje de volta a Trento, na Itália, sua terra<br />

natal. Católica fervorosa, Zefi nha não perde nenhuma<br />

missa celebrada na matriz. Durante as celebrações, fi ca<br />

responsável em pedir as ofertas dos fi éis.<br />

Zefi nha anda sempre segurando um terço e carrega uma<br />

medalhinha de Nossa Senhora pendurada no pescoço<br />

com um cordão. Gosta de passear pelas ruas com vestidos<br />

coloridos e sempre de touca. Não faz idéia de quantos<br />

anos tem. “Já tenho um bocado de ano”, diz. A população<br />

costuma pedir a bênção quando a ver pelas ruas. Sempre<br />

disposta, acorda cedinho e vai para “o meio do mundo”<br />

para ver os conterrâneos e ajudar os padres Sandoval<br />

e Evaldo, responsáveis pela paróquia de São Miguel<br />

Arcanjo. “Se você encontrar Padre Zezinho, diga a ele que<br />

volte para fazer meu casamento”. Pode deixar, Zefi nha.<br />

Daremos o recado.<br />

Julho 2004<br />

61


São Miguel - celeiro de raras tradições culturais<br />

Uma dança rica em detalhes<br />

O tempo costuma ser voraz com as danças folclóricas.<br />

Poucas resistem às transformações sociais e mudanças de<br />

gerações. A dança de São Gonçalo, presente nos arredores<br />

de São Miguel desde o início do século XX, a exemplo da<br />

dança do espontão, comandada pelos Negros do Rosário<br />

de Caicó há mais de dois séculos, consegue driblar o<br />

destino e segue presenteando o povo micaelense com a<br />

riqueza desta manifestação folclórica.<br />

O pesquisador e folclorista Deífi lo Gurgel, autor do livro<br />

“Danças Folclóricas do Rio Grande do Norte”, foi um<br />

dos primeiros a documentar a existência da dança em São<br />

Miguel. “Sabemos da existência de dois grupos de São<br />

Gonçalo, no Estado, o primeiro próximo a Portalegre, na<br />

serra do mesmo nome, no sítio Pegas; o segundo, próximo<br />

a São Miguel, igualmente no alto oeste potiguar”.<br />

José Benone Nogueira, 59 anos, mora no Sítio Crioulas,<br />

na divisa entre São Miguel e Pereiro (CE). O “cearensepotiguar”<br />

é tirador da dança de São Gonçalo desde o início<br />

da década de 60, quando diz ter aprendido a comandar a<br />

homenagem ao santo com Chico Vicente, um tocador de<br />

viola natural de Jaguaribe, no Ceará. “É uma tradição que<br />

vem do tempo dos meus avós”.<br />

A dança é uma forma de pagar promessas feitas a São<br />

Gonçalo, o santo violeiro. O pagador da promessa<br />

convida o tirador da dança para comandar as doze<br />

jornadas em homenagem ao santo. O grupo é formado<br />

por doze dançadeiras, um tocador de tambor e o tirador<br />

da dança acompanhado de uma viola. As cantigas são<br />

entoadas pelo violeiro e repetidas pelas dançadeiras.<br />

O período da dança “começa de setembro e outubro<br />

pra frente”. José Benone junta as dançadeiras e leva a<br />

homenagem a São Gonçalo a vários municípios do alto<br />

oeste e também ao Ceará. Maria do Céu Nogueira, 23<br />

anos, fi lha de José Benone, já participa da dança. “Tiro<br />

dança no Baixio de Nazaré (município de Coronel João<br />

Pessoa), São Miguel, Vale do Jaguaribe, Encanto, Pau dos<br />

Ferros e por todo lugar nesta serra”.<br />

62 Julho 2004<br />

“Bendita e louvado seja<br />

com quem São Gonçalo se pega<br />

é de ser valido,<br />

o pouco que faça<br />

fi ca bem servido<br />

Tô com a dança formada<br />

nas horas de Deus, amém.<br />

Ainda não está bem formada<br />

que ainda faltam os parabéns.<br />

Em louvor a São Gonçalo<br />

e a Jesus Cristo também”.<br />

As doze dançadeiras, sempre<br />

vestidas de branco, formam duas<br />

fi las e apresentam doze coreografi as<br />

diferentes. Os bailados chamados<br />

de Trancelim, Trancelim de Cruz,<br />

Trancelim de Quatro, Dança da<br />

Cobrinha e outros são executados de<br />

frente a um altar com a imagem de<br />

São Gonçalo.<br />

A tradição da dança é rica em detalhes.<br />

As dançadeiras são identifi cadas com<br />

fi tas nas cores encarnada (mulher<br />

casada), amarela (donzela), verde<br />

(solteira) e azul (viúva). “Até meio-dia<br />

as fi tas fi cam amarradas na cintura,<br />

depois atravessadas no peito”, explica<br />

o tirador da dança.<br />

O tirador da dança, também vestido de branco, usa uma<br />

boina com as fi tas das quatro cores. José Benone explica<br />

que não é necessário ter dançadeiras representando<br />

as quatro cores para executar a dança. As “tiradas das<br />

jornadas” levam um dia inteiro, sempre um sábado. A<br />

tradição manda erguer uma barraca feita de palha para<br />

proteger o altar com o santo.<br />

“A pessoa se pega com São Gonçalo para fazer uma dança.<br />

Aí chama a gente. Na sexta faz o ensaio e só tira no<br />

sábado. Dança onze jornadas começando às 7 da manhã.<br />

Fica uma, que a gente tira por R$ 150,00. É o ajuste da<br />

dança. Por fora tem as jornadas pedidas, este ganho é das<br />

dançadeiras”.


A última das doze jornadas é feita em frente à casa do<br />

pagador da promessa. O pagador da promessa fi ca de<br />

joelhos de frente ao altar, antes da última jornada iniciar,<br />

e acompanha a imagem do santo até seu quarto. O ritual<br />

termina dentro do quarto do penitente com uma oração.<br />

“Te ajoelha ‘nome do pagador(a) da promessa’,<br />

senta o joelho no chão,<br />

vem pagar sua promessa<br />

de todo o seu coração<br />

Graças a Deus já cheguemo<br />

nessa casa de alegria<br />

pra vim dançá São Gonçalo<br />

junto com a virge Maria”.<br />

Julho 2004<br />

63


São Miguel - celeiro de raras tradições culturais<br />

A promessa de Pretinha dos Bolos<br />

Maria Pereira de Souza, 66 anos, a Pretinha dos Bolos, é<br />

uma das dançadeiras mais antigas. Natural de São Miguel,<br />

começou a participar dos festejos ao santo violeiro desde<br />

os 12 anos. O apelido carrega desde o tempo que fazia<br />

bolos, roscas, sequilhos e pastéis para vender. Botava uma<br />

bacia de zinco na cabeça e vendia pelas ruas.<br />

Há 11 anos também organiza a dança na Rua<br />

Manoel José de Carvalho, nome do fundador de<br />

São Miguel. Foi promessa. “Estava de resguardo,<br />

adoeci e fi z uma promessa a São Gonçalo. Se<br />

fi casse boa, fi cava fazendo a festinha dele todo<br />

ano”, explica.<br />

A dança em frente à casa de Pretinha é tirada<br />

por José Benonio e acompanhada por amigos,<br />

familiares e visitantes. A fi lha Agenilda Pereira<br />

do Carmo, 34 anos, ajuda a preparar a festa.<br />

“Tem bolo de milho, sequilho, pão, galinha<br />

caipira, porco, arroz, feijão, farofa, refrigerante...<br />

Só não tem bebida alcoólica. Todo mundo<br />

merenda. Ninguém paga nada”, diz a fi lha. A<br />

festa ocorre, geralmente, no primeiro sábado<br />

de setembro. “De julho para agosto começa o<br />

ensaio nas sextas à noite”, salienta Pretinha.<br />

A dança de São Gonçalo não é a única dança<br />

folclórica de São Miguel. O Maneiro-Pau, uma<br />

dança de roda que já foi mais comum na região,<br />

está sendo resgatada através das crianças do<br />

Programa de Erradicação do Trabalho Infantil,<br />

PETI. Os participantes cantam sob o refrão que<br />

dá o nome ao folguedo – “maneiro-pau!” – e<br />

dançam batendo bastões de madeira no chão<br />

de acordo com o ritmo. Revivendo o Maneiro-<br />

Pau e prosseguindo a tradição da dança de São<br />

Gonçalo, o povo micaelense segue em frente<br />

contribuindo para manter viva as danças<br />

folclóricas do Rio Grande do Norte.<br />

64 Julho 2004


ONOFRE LOPES JÚNIORUm batalhador incansável<br />

Por Tácito Costa, Gustavo Porpino e François Silvestre<br />

Fotos: Anchieta Xavier<br />

médico e professor aposentado da UFRN, <strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> da Silva <strong>Júnior</strong>, 68 anos, tem duas paixões<br />

O que não esconde de ninguém: a esposa, Sylvia Faye Raymond <strong>Lopes</strong> da Silva, com quem está casado<br />

há 36 anos (fi lha de pai americano e mãe brasileira); e a música clássica, notadamente a ópera. A entrevista<br />

publicada nas páginas seguintes, pode ser dividida em duas partes. Na primeira, <strong>Onofre</strong> <strong>Júnior</strong>, que é fi lho do<br />

fundador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, <strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> da Silva, conta a saga dos <strong>Lopes</strong> da<br />

Silva; relata os bastidores da luta do pai para fundar a Universidade; e de como ele se negou, por duas vezes, a<br />

assumir o Governo do Estado, indicado pelo regime militar. Na segunda parte, <strong>Onofre</strong> <strong>Júnior</strong> fala dos 38 anos<br />

dedicados ao serviço público; dos tempos heróicos em que atuou como médico no Hospital das Clínicas (hoje<br />

Hospital Universitário <strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong>); de sua experiência como o primeiro diretor do Hospital Walfredo<br />

Gurgel; da criação da Orquestra Sinfônica do RN; e de sua luta em prol da construção de um teatro de ópera<br />

em Natal. O projeto do teatro – do arquiteto Ronald de Góis – já está pronto, tem 2.640 lugares e poderá ser<br />

construído na Via Costeira, embora o lugar inicialmente cogitado tenha sido a antiga estação ferroviária, no<br />

bairro das Rocas. Para <strong>Onofre</strong> <strong>Júnior</strong>, com o teatro de ópera o Rio Grande do Norte dará um salto qualitativo<br />

e quantitativo nas artes. Mesmo aposentado, <strong>Onofre</strong> não pára. Atualmente, se dedica a escrever a biografi a do<br />

pai e aos trabalhos voluntários no Rotary Club.<br />

Julho 2004<br />

65


Entrevista: <strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> <strong>Júnior</strong><br />

Preá – Quando ocorre a vinda dos <strong>Lopes</strong> da Silva para o<br />

Rio Grande do Norte?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Mais ou menos no ano de 1840,<br />

um <strong>Lopes</strong> da Silva foi julgado e condenado em Cuité<br />

(PB). Naquela época eles estavam concentrados lá. Aí<br />

um outro <strong>Lopes</strong> da Silva, primo, foi ao juiz. – Seu juiz, o<br />

rapaz é meu primo, o senhor tem de ter consideração. O<br />

juiz, que não sabia com quem estava falando disse: – está<br />

condenado e vai comer cadeia. Então o <strong>Lopes</strong> da Silva<br />

falou: – ou perdoa o meu primo ou morre aqui, agora.<br />

Aí um policial colocou o fuzil nas costas dele. – Se você<br />

fi zer alguma coisa com o juiz eu te mato. Outro <strong>Lopes</strong> da<br />

Silva foi por trás do policial e colocou uma garrucha na<br />

cabeça dele, dizendo em seguida: – Se você atirar nele,<br />

morre, Manoel, tá tudo livre aqui atrás. Então, ele atirou,<br />

matou o juiz e fugiu. Claro que depois disso os ares se<br />

tornaram horríveis para os <strong>Lopes</strong> da Silva. Assim, ele<br />

sai de lá e vai se esconder numa fazenda no interior de<br />

Currais Novos. Lá ele começou a trabalhar. O fazendeiro<br />

tinha uma fi lha muita bonita, ele se apaixonou por ela e<br />

se casou. Mas só que aquele local onde ele estava fi cava<br />

muito próximo da Paraíba e havia o perigo da polícia da<br />

Paraíba, que não era brincadeira, chegar e prendê-lo.<br />

Então, ele saiu de lá e veio se esconder no Comum, que<br />

naquela época fazia parte do município de São José de<br />

Mipibu. O Comum era uma fazenda abandonada, onde<br />

tinha uma tribo de índios e alguns brancos. Esse pessoal<br />

cultivava essa fazenda comumente, daí o lugar se chamar<br />

Comum. Esse camarada teve três fi lhos: Manoel <strong>Lopes</strong> da<br />

Silva, Honório <strong>Lopes</strong> da Silva e José <strong>Lopes</strong> da Silva. Esse<br />

José <strong>Lopes</strong> da Silva se estabeleceu lá no Comum, mesmo<br />

depois da morte dos pais, e passou a ter uma ascendência<br />

naquela comunidade, que era muito pobre. Uma<br />

ascendência relativamente forte, a tal ponto que passou<br />

a ser o chefe local. Se fosse hoje em dia seria o chefe<br />

66 Julho 2004<br />

político. José <strong>Lopes</strong> da Silva teve dez fi lhos. O nono foi<br />

meu pai {<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> da Silva}. O primeiro foi Genésio<br />

<strong>Lopes</strong> da Silva. Genésio – que depois viria a ser coronel<br />

da PM – sai lá do Comum e vem sentar praça na polícia.<br />

Quando meu pai se torna rapazinho, ele o manda buscar<br />

no Comum para ir para a escola, em Natal. Ele já tinha<br />

sido alfabetizado lá no Comum, aos trancos e barrancos,<br />

e vem para Natal para a escola do Professor Batalha, onde<br />

faz o primário e se transforma em professor da escola,<br />

mas continuou a trabalhar como balconista de tio Joca,<br />

um dos tios dele, irmão de Genésio. A bodega fi cava ali<br />

na Felipe Camarão. Então, papai foi balconista durante<br />

muito tempo até que terminado o curso secundário,<br />

ele resolve ir para Recife, onde tinha uma Faculdade de<br />

Medicina e ele queria prestar Vestibular. Aparece, então,<br />

um grande amigo, Godofredo Freire, que pega dinheiro,<br />

entrega a papai e diz: – Quando você se formar você me<br />

paga. Vá-se embora. Em Recife, ele prestou Vestibular de<br />

Medicina, passou e logo arranjou para ser professor numa<br />

classe de carvoeiros. Veio a agitação política, quarteladas,<br />

e um dia meu pai soube que a escolinha dos carvoeiros<br />

tinha sido fechada pela polícia porque era um antro de<br />

comunistas. Com receio de ser preso, ele foge do Recife,<br />

embora não fosse nem comunista nem nada.<br />

Preá – Godofredo Freire era parente de Jessé Freire?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Acho que era irmão, não tenho<br />

certeza. Jessé Freire era primo longe da gente. Então,<br />

meu pai vai ser representante de laboratório. Quando<br />

ele termina o terceiro ano, chega a conclusão de que<br />

a Faculdade de Medicina de Recife era muito fraca e<br />

manifesta interesse em ir para a Nacional, que era a<br />

principal Faculdade de Medicina do Brasil. Novamente<br />

Godofredo Freire paga para ele ir para o Rio de Janeiro.<br />

Ficou lá também como representante de laboratório,<br />

levando uma vida muito pobre; não havia bolsa, não<br />

havia nada. Foi quando apareceu um concurso da<br />

Marinha para internos. Ele estudou e passou em primeiro<br />

lugar. Quando ele já estava para se formar, o diretor da<br />

Faculdade de Medicina o chama e diz: - <strong>Onofre</strong>, eu<br />

recomendei seu nome para Londrina, uma cidade que<br />

está sendo construída e não tem médico. Ele argumentou<br />

que tinha mãe e pai velhos aqui e que o lugar dele era no<br />

Rio Grande do Norte e que tinha de vir para ajudá-los.<br />

Recusou e veio embora. Chegando aqui, montou um<br />

pequeno consultório, muito modesto para clinicar.


Preá – Quando é que ele tem a idéia de criação da<br />

Universidade?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Para falar da Universidade, temos<br />

de falar da Faculdade de Medicina, que foi o embrião<br />

da Universidade. Meu pai era o lugar-tenente de<br />

Januário Cicco {médico}. Januário era mandão, tinha<br />

um temperamento fortíssimo. Papai também tinha um<br />

temperamento fortíssimo. Uma vez, num bate-papo,<br />

eu, Eriberto Bezerra e Leide Morais abordamos esse<br />

aspecto. Como é que duas pessoas de temperamentos tão<br />

fortes nunca brigaram? Se davam às mil maravilhas. Na<br />

época, Januário disse a meu pai que havia a necessidade<br />

de se fundar a Faculdade de Medicina e argumentou:<br />

– Nós pegamos os nossos melhores jovens e mandamos<br />

fazer o curso médico lá fora. O sujeito vai para Recife,<br />

a maioria, para o Rio de Janeiro, São Paulo, quando<br />

termina, o mercado local sustenta esse pessoal por lá<br />

e os nossos melhores cérebros não vêm para cá. Então<br />

havia necessidade de formar gente aqui. A idéia de fazer<br />

a Faculdade de Medicina foi de Januário. Então, o que<br />

acontece: papai operando lá no hospital, clinicando e<br />

Januário bota pra morrer. Ele morava na Ribeira, ali na<br />

Duque de Caxias. Um dia papai recebe um chamado<br />

para ir para lá, que Januário tinha tido um infarto.<br />

Quando chegou lá, estavam Graco Magalhães e Álvaro<br />

Vieira. Januário com pressão zero. Álvaro, muito nervoso,<br />

tentando verifi car a pressão dele. Aí ele disse: – Ou Álvaro<br />

acabe com isso, você não sabe que eu vou morrer, para<br />

que essa besteira? <strong>Onofre</strong>, venha pra cá. Segurou a mão<br />

de papai – isso corroborado por Graco – e disse: <strong>Onofre</strong> é<br />

o seguinte, você é a pessoa que eu estou escolhendo agora<br />

para tomar conta de tudo isso. Não deixe a minha obra<br />

se acabar. Não se esqueça de criar a Faculdade. Papai era<br />

muito moço e sentia difi culdade de impor a sua liderança<br />

àqueles médicos mais antigos, apesar de ungido para<br />

dirigir a Sociedade de Assistência Hospitalar.<br />

Preá – O que era essa Sociedade de Assistência<br />

Hospitalar?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Era uma entidade de direito<br />

privado, sem fi ns lucrativos, que recebia subvenção do<br />

governo, que fazia quermesse, rifa, feijoada, tudo isso,<br />

para manter o hospital funcionando. E Januário, àquela<br />

época, construiu a maternidade da seguinte forma: ele ia<br />

até à rua Doutor Barata, passava nas lojas e dizia: olha,<br />

amanhã o senhor manda deixar uma carrada de tijolo;<br />

passava noutro e dizia, manda deixar uma tonelada de<br />

ferro, e assim ia, mais adiante conseguia uma carrada<br />

de areia. Tudo isso era doação, ele não pagava. Uma<br />

ordem dele, ai daquele que tentasse descumprir. Naquelas<br />

quermesses que ele fazia, as senhoras da sociedade eram<br />

reunidas para angariar dinheiro. Quando terminou a<br />

construção da maternidade, começou a Segunda Guerra<br />

Mundial. Já fazia alguns meses que havia terminado a<br />

construção, mas não se tinha dinheiro para comprar<br />

os equipamentos. Com a guerra, o Exército confi scou<br />

a maternidade, que passou a ser o Hospital Militar de<br />

Natal. Então, as tropas daqui utilizavam o hospital, os<br />

feridos que vinham da Europa também se tratavam lá. Ao<br />

término da Segunda Guerra o Exército chama Januário e<br />

entrega a maternidade. Só que totalmente equipada, com<br />

roupa de cama, talher, tudo, tudo. Isso foi uma maravilha<br />

para Januário: ele receber a maternidade nessas condições.<br />

Então, a Sociedade de Assistência Hospitalar cuidava<br />

dos dois hospitais, da maternidade e do hospital, que na<br />

época se chamava Hospital Miguel Couto, que havia sido<br />

Hospital Juvino Barreto.<br />

Preá – O hospital começou a ser erguido por Juvino<br />

Barreto.<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Exatamente. Foi ele quem colocou<br />

uma casa de veraneio, que fi cava lá onde depois foi<br />

instalado o hospital, para tratar dos pobres. Juvino era um<br />

sujeito muito rico e podia se dar a esse luxo. Aquilo foi<br />

crescendo, espicha pra cá, espicha para lá, sem qualquer<br />

planejamento, até que se transformou no que é hoje.<br />

Com base nisso aí, nesses dois hospitais, inventa-se de<br />

fazer uma jornada médica em Natal, lá na Rampa.<br />

Preá – Isso na década de 50?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Sim. Quando acontece isso, vêm<br />

professores da Faculdade de Medicina de Recife, da<br />

Paraíba, de Fortaleza e Antônio Figueira, do Recife,<br />

disse: – <strong>Onofre</strong>, você tem uma estrutura aqui para fazer a<br />

Faculdade de Medicina. É fazer. E a gente vai lhe ajudar.<br />

Ao que papai respondeu: – É, mas eu vou precisar de<br />

professor de anatomia, que não tenho, de histologia, de<br />

farmacologia, e isso são os primeiros anos. Mas, é nessa<br />

jornada que ele toma a decisão, sem ter nada na mão,<br />

para fazer a Faculdade de Medicina. É quando assume<br />

o Governo do Estado Dinarte Mariz. Ele vai atrás de<br />

Julho 2004<br />

67


Entrevista: <strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> <strong>Júnior</strong><br />

Dinarte a quem comunica que quer fazer a Faculdade<br />

de Medicina de Natal. Pergunta se ele aumentaria as<br />

subvenções para a Sociedade de Assistência Hospitalar,<br />

para fazer funcionar a Faculdade. E Dinarte não negou<br />

fogo. Já tínhamos a Faculdade de Odontologia e Farmácia,<br />

as duas juntas, funcionavam ali na Junqueira Aires, onde<br />

fi ca o Atheneu; havia também a Faculdade de Direito<br />

e a Faculdade de Medicina. Então papai reúne alguns<br />

amigos e resolve fazer a universidade. A legislação exigia<br />

que existissem três faculdades para se criar a universidade.<br />

Quando papai vai falar com as pessoas lá da Arquidiocese,<br />

que administravam a Faculdade de Filosofi a, elas não<br />

aceitavam dar a Faculdade para fazer a universidade. Aí<br />

conversa vai, conversa vem, até que se fez um comodato.<br />

Preá – Câmara Cascudo teve alguma participação nesse<br />

processo?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Sim. Foi um entusiasta. Cascudo<br />

foi o homem que fez um grande discurso, “Universitas”,<br />

na inauguração da universidade. Eu assisti. Uma grande<br />

peça de oratória. E vou colocar esse discurso na biografi a<br />

de papai que estou escrevendo. Então, papai vai a Dinarte<br />

e diz que assumiu o compromisso de criar a universidade<br />

e pede ajuda. Dinarte responde: – Olha, <strong>Onofre</strong>, você<br />

sabe não é, você faz suas loucuras e eu vou ter de ir atrás;<br />

de universidade eu não entendo nada, você vá tocando.<br />

Ao que papai respondeu: Tocando não, eu preciso de<br />

dinheiro para isso. Aí ele manda chamar o seu secretário<br />

da Fazenda, Paulo Diógenes e diz. “Paulo, <strong>Onofre</strong> está<br />

com esse negócio de universidade, do que ele precisar,<br />

você primeiro libera o dinheiro e depois você vem me<br />

dizer”. Dinarte teve um papel preponderante, porque não<br />

é todo governador que dá uma ordem dessas.<br />

68 Julho 2004<br />

Preá – Você participou da ligação que havia entre seu<br />

pai e Cascudo?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Muito. Muito. Saiba você que não<br />

só sou imortal, mas também fui o homem mais poderoso<br />

do estado. Nunca houve ninguém mais poderoso do que<br />

eu. Primeiro ponto: por que eu sou imortal? Porque num<br />

dos livros de Cascudo eu sou citado. Alguém acha que<br />

Cascudo não é imortal? Segundo ponto: na época do<br />

Projeto Hope (navio hospital norte-americano que fi cou<br />

alguns meses em Natal oferecendo serviços médicos), eu<br />

recebi uma procuração plena do Governo do Estado, eu<br />

era o governador do Estado também por conta dessa<br />

procuração, e a mesma coisa da Reitoria. Então, eu era ao<br />

mesmo tempo governador e retirar reitor. Engraçado que<br />

essas procurações não foram cassadas.<br />

Preá – Em qual livro o senhor é citado?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – “Cama, cadeira e janela”. Eu sou<br />

imortal porque eu fui citado por ele. Eu era médico<br />

novo e uma vez Cascudo se interna lá no hospital. Nós<br />

tomávamos o café da manhã com ele. Cascudo era um<br />

brincalhão de marca maior.<br />

Preá – Tem uma foto dele com seu pai, em que seu pai<br />

aparenta agredi-lo e ele joga um travesseiro nele.<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Era um mau costume que papai tinha,<br />

quando chegava junto dele, ia disfarçando até chegar<br />

perto das canelas para arrancar os cabelos da perna dele.<br />

Aí levava bofete {risos}.<br />

Preá – O seu pai chegou a ser convidado para ser<br />

governador do Estado?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Por duas vezes. Foi na época do<br />

regime militar. Papai havia saído da Reitoria - ele teve<br />

quase treze anos à frente da Reitoria. Ele foi o criador<br />

da universidade e foi fi cando, sendo renomeado. Até que<br />

resolveu sair. Quando o governador Monsenhor Walfredo<br />

Gurgel estava para deixar o Governo do Estado, apareceu<br />

um general lá em casa para falar com papai, dizendo que<br />

lá no Planalto, havia sido decidido que ele seria o próximo<br />

governador. Isso foi uma surpresa muito grande para ele,<br />

que argumentou, dizendo não ter formação política para<br />

ser governador e o camarada fi cou insistindo muito. Ele<br />

tocou o telefone para Brasília, atrás de Dinarte, pedindo


socorro. Aí Dinarte disse a ele que não poderia fugir disso.<br />

Foi quando papai percebeu que Dinarte era quem estava<br />

por trás de sua indicação. – Oh seu cabra safado, foi você<br />

quem me indicou. Dinarte deu uma risada muito grande e<br />

confi rmou. – Pela sua administração na Universidade, não<br />

tem jeito, você vai governar o Estado. Papai faz uma carta<br />

renúncia, muito peremptória, que publicarei também<br />

no meu livro, dizendo que não havia possibilidade de<br />

jeito nenhum, que arranjassem outra pessoa, que tivesse<br />

formação política. Então, foi indicado Cortez Pereira.<br />

Cortez foi governador porque papai recusou.<br />

Preá – E a segunda vez?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – A segunda vez foi quando Cortez<br />

estava para terminar o governo. Pedro Aleixo sai fazendo<br />

uma viagem itinerante, ele era o delegado plenipotenciário<br />

do Planalto para resolver essas questões, chegava nos<br />

estados, procurava o escolhido e dizia: - Você é que vai ser<br />

o governador e fi m de papo. Papai fi cou sabendo que esse<br />

camarada vinha, já com o nome dele e dessa vez ele não<br />

podia escapar. Quando Pedro Aleixo bate por aqui, papai<br />

disse que não tinha saúde para ser o governador, mas que<br />

também não queria criar difi culdades para a presidência<br />

da república e indicou o nome de Tarcísio Maia. Na época,<br />

Tarcísio tinha se afastado da política, depois da passagem<br />

dele pelo Ipase e parece-me que não estava querendo mais<br />

nada. Dessa vez papai pede ajuda a Dinarte, dizendo<br />

assim: - Dinarte, eu não tenho condições de fazer um<br />

negócio desses, não tenho formação política para lidar<br />

com a Assembléia Legislativa, não tenho essa formação,<br />

eu não sei fazer essas coisas. Ele é indicado e Pedro Aleixo<br />

chega e recebe um fora.<br />

Preá – Como foi o encontro do seu pai com o presidente<br />

Juscelino Kubitschek?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Isso foi uma coisa engraçada,<br />

memorável. Eu não disse que tinha havido problemas<br />

com a Faculdade de Filosofi a? A Universidade formada,<br />

funcionando, mantida pelo Governo do Estado, depois<br />

que Dinarte deu a ordem a Paulo Diógenes para ir fazendo<br />

os desembolsos do dinheiro. Certa vez Paulo Diógenes<br />

chegou e disse a meu pai que não tinha mais dinheiro. Aí<br />

papai volta ao palácio para falar com Dinarte. – Dinarte,<br />

você deu aquela ordem, eu estou precisando fazer algumas<br />

despesas. – Fale com Paulo Diógenes. – Já fui falar e ele<br />

me disse que não tinha dinheiro. Aí Dinarte pede à<br />

secretária para chamar Paulo Diógenes. – Oh Paulo, você<br />

vai liberar o dinheiro ou quer que o seu substituto faça<br />

isso? Eu não disse a você que primeiro desse o dinheiro e<br />

depois viesse me comunicar? Então, a Universidade estava<br />

funcionando. Mas, o Estado é pobre, e àquela época era<br />

mais pobre ainda. Para agüentar uma Universidade era<br />

difícil. E papai tinha medo que na mudança de governo<br />

não tivesse tanto apoio quanto teve com Dinarte. Então,<br />

havia necessidade de se federalizar a Universidade.<br />

Juscelino veio a um encontro de bispos aqui em Natal. O<br />

encontro ocorreu na Faculdade de Filosofi a, na Escola de<br />

Serviço Social. Papai pede uma audiência com Juscelino,<br />

mas os padres não permitiram. Negaram. Então, ele com<br />

Otto Guerra, grande amigo dele - doutor Otto foi quem<br />

me nomeou para a Faculdade de Medicina. Papai, além de<br />

ter me deportado, quando retornei, fi quei sem emprego,<br />

porque ele se recusava a me nomear. Aí ele vai com doutor<br />

Otto e fi ca postado em frente à Escola de Serviço Social.<br />

E Juscelino andava muito na carreira, ele ia na frente,<br />

com aqueles passos largos e atrás dele vinham os áulicos<br />

do poder. Os dois se põem no caminho de Juscelino.<br />

Apresentam-se e num gesto largo papai diz: - Aqui estão<br />

o corpo docente e discente da Universidade, nosso Estado<br />

é pobre e queremos federalizá-la. Conversa, não tinha<br />

ninguém de corpo docente ou discente. Juscelino, na<br />

hora disse: - está certo, me procure lá no Planalto, marque<br />

audiência. Papai – naquela época não tinha verba para isso,<br />

era dinheiro do próprio bolso – vai a Brasília e marca a<br />

audiência com Juscelino para as cinco e meia. Felizmente,<br />

quando ele chegou na porta, voltou e perguntou: - Venha<br />

cá, a senhora está marcando cinco e meia da tarde, né?<br />

– Não, cinco e meia da manhã e o presidente é pontual.<br />

Antes das cinco e meia papai estava lá. Às cinco e meia ele<br />

foi recebido, só que ele já era o quinto a ser atendido. Às<br />

cinco e meia da manhã! Aí Juscelino o mandou procurar<br />

Jurandir Lodd. Ora, era tudo quanto papai não queria.<br />

Esse Jurandir era um sujeito atrabiliário. Papai vai até ele,<br />

fala, fala, fala, quando acaba de falar, Jurandir diz: - O<br />

senhor sabe que vai ter muitas dores de cabeça. – Sei, o<br />

senhor me dá umas aspirinas e eu tomo. O Jurandir diz:<br />

- Então, vamos fazer. Foi assim, não houve briga. Mas a<br />

Escola de Serviço Social, dos padres, não deixou papai<br />

e Otto Guerra falar com o presidente. E olhe que Otto<br />

parece que era congregado mariano.<br />

Julho 2004<br />

69


Entrevista: <strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> <strong>Júnior</strong><br />

Preá – Qual a sua participação na criação da Orquestra<br />

Sinfônica do Rio Grande do Norte?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Na época, havia um coreano aqui<br />

como maestro. Esse rapaz, que não me lembro mais o<br />

nome dele, foi um pioneiro, e ele começou o embrião da<br />

Orquestra Sinfônica. Eu ia aos concertos, gostava muito,<br />

nós fazíamos um intercâmbio. Chega Osvaldo {D’Amore}<br />

para tocar na Orquestra. Com um desentendimento que<br />

o coreano teve com o Governo do Estado, foi embora e<br />

Osvaldo assume e expande a Orquestra. Acima de tudo,<br />

isso. Porque antes era uma “orquestrinha”. Osvaldo<br />

ampliou e levou a Orquestra Sinfônica ao povo. Certa<br />

vez ele me disse: – Vou levar a Orquestra Sinfônica à<br />

Festa do Boi. Eu respondi: – Você tá maluco, onde é que<br />

cavalariço, peão, vaqueiro, gente do povo, vai se interessar<br />

por Orquestra Sinfônica? Não pode rapaz, você não vai<br />

fazer uma coisa dessas. Ele levou e voltou outras vezes<br />

com a Orquestra à Festa do Boi. Ele usou uma certa<br />

demagogia para isso, levando a “abertura”, de 1812, de<br />

Tchaikowski, que celebra os combates de Napoleão com<br />

as tropas russas. E durante a execução, que você tem a<br />

Marselhesa e o hino russo, peças de artilharia fazem parte<br />

do concerto. Então ele convoca o pessoal de artilharia do<br />

Exército, o comandante concordou em mandar para lá<br />

uma bateria e o povo ia lá para olhar os canhões, curioso<br />

de saber por que aqueles canhões estavam ali. Na hora do<br />

concerto, ele fez acionar os canhões, que começaram a<br />

atirar, o que teve um efeito muito bonito.<br />

Preá – A Orquestra, no ano passado, fez uma excursão<br />

pelo interior do Estado. O senhor acompanhou algum<br />

concerto?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Estive em Martins e lá fi quei<br />

espantado, porque fui convidado para assistir à<br />

inauguração de uma casa de espetáculo {Casa de Cultura<br />

Popular}, construída onde antes era um galpão velho, que<br />

servia de quarto de despejo para a cidade. Esse local foi<br />

totalmente modifi cado, virou um teatro, mas meu espanto<br />

foi por conta das adjacências, com pinacoteca, biblioteca,<br />

e a cidade toda interessada naquilo. Ficou um ponto de<br />

encontro extremamente importante, que faz intercâmbio<br />

com obras importantes em outros municípios, fazendo<br />

um circuito artístico e cultural, onde poderão ser feitas<br />

programações culturais.<br />

70 Julho 2004<br />

Preá – Um dos sonhos do senhor é construir um teatro<br />

de ópera em Natal.<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – A gente não tem no Estado uma<br />

casa de espetáculo onde se possa apresentar “Aída”, por<br />

exemplo, não tem condições, mas nós teremos o nosso<br />

teatro de ópera, não sei se agora, ou daqui a cinco, dez<br />

anos, vamos ter, por uma necessidade, porque se você faz<br />

um teatro de ópera, ele não vai servir só para ópera, vai<br />

servir para uma convenção partidária, para um congresso<br />

médico, o teatro serve para tudo. Ele vai oferecer cursos<br />

de formação, de extensão, exposições de artes. Acima de<br />

tudo o Rio Grande do Norte dará um salto qualitativo e<br />

quantitativo nas artes.<br />

Preá – O projeto arquitetônico desse teatro de ópera já<br />

está pronto?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Está pronto, é lindo, com 2.640<br />

lugares, é um teatro simplesmente maravilhoso, em que<br />

ninguém estará dentro do teatro mais longe do que 45<br />

metros do palco.<br />

Preá – O senhor imaginou, inicialmente, e até sugeriu<br />

aquela área da Rede Ferroviária antiga, no bairro das Rocas,<br />

para instalar esse teatro. É verdade que a governadora está<br />

propondo transferir o local para Ponta Negra?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr – É verdade. Eu acredito que a<br />

Estação seja o lugar ideal, é uma obra de arte antiga e que<br />

vale a pena aproveitar aquela obra arquitetônica para a<br />

complementação dos cursos do teatro, para as exposições<br />

de artes plásticas, cursos de balé. Nós hoje temos no Rio<br />

Grande do Norte, aqui em Natal, ali na rua Chile, uma<br />

escola de balé simplesmente maravilhosa. Eu estive lá e<br />

fi quei com lágrimas nos olhos, porque lá tem 400 alunos<br />

aprendendo balé clássico, sendo a esmagadora maioria de<br />

alunos carentes, fi lhos de famílias pobres. Isso é uma coisa<br />

maravilhosa. Agora, onde esses alunos vão se apresentar?<br />

Nós não temos uma sala de espetáculo para apresentação<br />

de um balé grande. Um dia desses, veio uma oferta para a<br />

gente albergar uma companhia de ópera, que iria fazer um<br />

ou dois espetáculo aqui em Natal, mas nós não tínhamos<br />

lugar para receber.<br />

Preá – O que fez o senhor se motivar tanto para essa<br />

atividade cultural?


<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – A Sociedade dos Amigos da<br />

Orquestra, que foi uma sociedade fundada com a<br />

fi nalidade de ajudar a Orquestra Sinfônica. Acabados os<br />

concertos, nós nos reuníamos para jantar, principalmente<br />

na casa de Roberto Moura, para assistir ópera, com<br />

vídeodisco, vídeocassete, DVD, e começamos a evoluir<br />

para a criação do teatro de ópera. Nos primeiros contatos<br />

que fi z, com governadores, secretários, reitores e outras<br />

autoridades, fui bloqueado de todo jeito.<br />

Preá – Agora, o senhor está achando que há possibilidade<br />

de sair?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – As coisas se arrumaram, porque<br />

quando Wilma de Faria foi eleita prefeita eu fui a ela.<br />

Marcamos um jantar de trabalho e tivemos tempo<br />

para expor o que seria um teatro de ópera. Ela fi cou<br />

entusiasmada e disse: – Vamos fazer. Só que logo<br />

depois que começamos a trabalhar, inclusive fazendo<br />

levantamento de onde poderia ser e que fonte de<br />

fi nanciamento teríamos e as doações para isso, ela se<br />

candidata a governadora. Imediatamente, engatei uma<br />

marcha a ré porque fi quei com medo de que se ela não<br />

fosse eleita governadora, o projeto estaria perdido, e<br />

quem viesse depois iria torpedeá-lo, porque não tinha<br />

sido no governo dele que tinha nascido aquilo. Então,<br />

a nossa regra é essa; não haver continuidade daqueles<br />

bons projetos. Mas, de repente as coisas começaram a<br />

se arrumar. Na Escola de Música da UFRN toma posse<br />

Ronaldo Ferreira Lima , meu amigo, com quem eu já<br />

tinha conversado e era favorável ao projeto. Na <strong>Fundação</strong><br />

José <strong>Augusto</strong> entra François, uma pessoa inicialmente<br />

incrédula, mas depois que expliquei se tornou nosso<br />

aliado. A governadora, quando toma posse, eu vou a ela,<br />

que diz: – agora é que eu tenho condições. O projeto é de<br />

Ronald de Góis e está pronto. Inicialmente, quando nós<br />

pensamos no projeto de um teatro de ópera, pensávamos<br />

até em modifi car o Centro de Convenções. Vimos depois<br />

que era impraticável, tanto a parte arquitetônica quanto a<br />

de engenharia. Fomos ver as áreas adjacentes, dava certo,<br />

mas os “verdes”, os ambientalistas vetaram. Agora, que<br />

a governadora está tentando instalar, suponho que ela já<br />

conseguiu a concordância dos “verdes”.<br />

Preá – Um teatro desse porte sai por quanto?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Oito a dez milhões de reais, que<br />

a governadora me disse que iria colocar no orçamento<br />

do Estado. Ocorre que a Petrobrás, através de sua<br />

distribuidora, quer participar. Tem o secretário-geral da<br />

Embaixada russa no Brasil, que veio a Natal - não por<br />

conta disso - e estão interessados em participar, inclusive<br />

fazendo recitais. A tal ponto eles fi caram entusiasmados<br />

que disseram: – Se vocês quiserem quaisquer artistas<br />

russos nós mandamos buscar e não só isso, nós poderemos<br />

selecionar pessoas aqui para mandar para a Rússia para<br />

fazer cursos em dança e em música.<br />

Preá – Como surgiu esse seu amor à música?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Natal da minha meninice era uma<br />

cidade que nas casas das boas famílias tinha um piano. E<br />

eu fui estudante de piano até o quarto ano de medicina.<br />

Fiz até a quarta série do curso de piano do Conservatório<br />

de Música de Natal, isso na década de 40. Depois eu<br />

deixei. Quando eu fui para a Bahia, conheci um sujeito<br />

lá, chamado Aniz, um descendente de árabe. Nós nos<br />

conhecemos num ringue de luta livre e começamos a nos<br />

dar bem - apesar da pancadaria. Ele era casado com uma<br />

moça que era pianista e professora da Escola de Música<br />

da Bahia. Durante um jantar ele me convidou para ir a<br />

um concerto da Orquestra Sinfônica da Bahia, e todas<br />

as quartas-feiras, eu, ele e a mulher íamos à reitoria da<br />

Universidade assistir aos concertos. Então numa vez em<br />

que eu estava lá na casa de Aniz, eu caí na besteira de dizer<br />

que tinha sido estudante de piano. Quando foi no meu<br />

aniversário, ele promoveu um jantar, quando acabou,<br />

chamou Hilda, sua esposa, uma excelente pianista,<br />

dizendo: - Ela tem um presente para você. E ela veio<br />

com os métodos de Zerny, Anon e me deu de presente.<br />

- Agora você vai estudar<br />

música de novo, vai estudar<br />

comigo, disse.<br />

Preá – Quais as suas óperas<br />

preferidas?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr.<br />

– A que eu gosto mais é<br />

“O morcego”, de Strauss.<br />

Preá – Quem pretenda se<br />

iniciar no mundo da ópera,<br />

por onde deve começar?<br />

Julho 2004<br />

71


Entrevista: <strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> <strong>Júnior</strong><br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Defi nitivamente, “O morcego”. É<br />

uma ópera bufa gostosa, a gente ri, é de fácil compreensão.<br />

Agora você tem “Lúcia de Lammemor” , “Carmen”, de<br />

Bizet, “La Traviata”, “As bodas de fígaro”, fantástica. Aliás,<br />

tem uma versão de Plácido Domingos, que é uma coisa<br />

simplesmente sensacional.<br />

Preá – E em literatura, o que o senhor destacaria?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Gosto mais de livros sobre história<br />

e normalmente fi co lendo dois, três livros de uma vez.<br />

Os livros que eu leio fi cam todos marcados, anotados e<br />

as páginas selecionadas. Depois que acabo, volto a ler<br />

somente aquelas páginas que selecionei. Agora se o livro<br />

não está me agradando eu não vou até o fi m. Teve um<br />

sujeito francês, mau caráter, chamado René Descartes,<br />

mas uma mente brilhante, que certa vez escreveu que se<br />

um homem ao nascer, no seu primeiro dia de vida, ele<br />

tivesse a inteligência e o poder de ler e entender aquilo<br />

que ele está lendo e se durante os próximos cem anos,<br />

ele só lesse uma vez as boas coisas que a humanidade<br />

produziu – nada de ler lixo – ele morreria sem ter lido a<br />

metade do que a humanidade tinha produzido de bom.<br />

Hoje em dia você tem condições? Tem umas pessoas aí<br />

que dizem: vamos fazer uma lista dos cem melhores livros<br />

que a humanidade produziu, isso é uma balela. Aquilo<br />

que pode ser uma coisa muito boa para você, pode ser<br />

muito ruim para outra pessoa e vice-versa.<br />

Preá – Como é para o senhor, um apreciador da música<br />

clássica, ter um fi lho que toca heavy metal na banda<br />

Deadly Fate {Destino Mortal}?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Eu gosto de música. Que pode ser<br />

erudita ou não. Sendo música eu gosto. Você tem uma<br />

música erudita de Bella Bartok, Stravinski, que pelo amor<br />

de Deus, se começar a tocar isso, eu vou embora. <strong>Onofre</strong><br />

Neto gosta desse tipo de música. O pior de tudo é assistir<br />

concerto dele. Eu vou para lá, claro, com uns tapadores<br />

de ouvido, mas ouço.<br />

Preá – Partiu do senhor a idéia do maestro da Orquestra<br />

Sinfônica, Osvaldo D’Amore, tocar violino no CD do<br />

Deadly Fate?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Não. Não tive nada com esse crime<br />

{risos}. Ele foi convidado por <strong>Onofre</strong> Neto e aceitou.<br />

72 Julho 2004<br />

Preá – Os ensaios da banda, na garagem da sua casa,<br />

incomodavam muito?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Eu temia pelos alicerces da casa.<br />

Preá – Como o senhor vê o uso da música no tratamento<br />

terapêutico?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Defi nitivamente, os cursos de<br />

humanização dos hospitais deveriam usar a música,<br />

mas ela raramente é utilizada. Nos hospitais, deveriam<br />

ter auditórios, onde se pudesse levar apresentações não<br />

somente de música, mas de dança, mamulengo, de<br />

poetas, de conjuntos populares, de forró pé de serra, tudo<br />

isso é uma coisa muito boa.<br />

Preá – Como o senhor analisa o trabalho das instituições<br />

que trabalham com a cultura no Estado?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Nós temos dois pontos altos aqui.<br />

A <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>, que nos últimos tempos tem se<br />

destacado muito e a Escola de Música da Universidade,<br />

que no dizer de uma ex-diretora, Riva Fried , que mora no<br />

Rio, “aqui vai ser um grande celeiro para o Brasil”.<br />

Preá – Você considera o folclore o carro-chefe da<br />

divulgação da cultura potiguar?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Eu acho que cultura é cultura. Tudo<br />

isso faz parte do belíssimo edifício cultural que nós temos<br />

aqui. Claro que você tem nesse meio muito lixo, como<br />

em qualquer área de atividade. Mas o que nós temos<br />

produzido de bom no Estado, realmente vale a pena ver.<br />

Preá – O senhor chegou alguma vez a ser assediado para<br />

alguma atividade política?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Não. Eu nunca me fi liei a partido<br />

nenhum. Olhe, vou lhe dizer uma coisa, não sei se para<br />

vergonha ou não: nunca fui a um comício na minha<br />

vida.<br />

Preá – Como Sylvia {Faye Raymond <strong>Lopes</strong> da Silva<br />

– esposa} apareceu na sua vida?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Aquilo ali foi uma coisa maravilhosa<br />

na minha vida. Ela foi minha aluna na Escola Doméstica.<br />

Na época, mamãe vivia rezando para eu me casar.


Preá – O senhor estava com que idade nessa época?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – 28, 29 anos, por aí. Mamãe dizia<br />

que não queria fi lho barrão dentro de casa {risos}. Tinha<br />

uma velha beata, que passava lá em casa, vez por outra, e<br />

ela encarregou essa velha de fazer uma rezas, essas coisas,<br />

para ver se eu me casava. Fui nomeado professor de<br />

Anatomia e Biologia da Escola Doméstica. Anatomia do<br />

lar, digamos assim, lá vou eu ensinar na Escola. Eu deixo<br />

de ser professor e quando foi um dia eu estava com Zilpe,<br />

amiga de família há anos, na rua João Pessoa, onde papai<br />

tinha um consultório e lá ia Sylvia e a mãe passando no<br />

meio da rua. Eu disse: - Olhe Zilpe, está vendo aquela<br />

menina ali, eu vou me casar com ela. – Mas ela é uma<br />

menina ainda, respondeu Zilpe. Ao que eu respondi:<br />

- Mas cresce! Depois de algum tempo nós começamos<br />

a namorar, tivemos um noivado longo, e por isso,<br />

começaram os mexericos, que eu era médico, ganhava<br />

bem, por isso tinha de casar logo; por que não casava<br />

logo, fi cava enganando a menina?<br />

Preá – Entre namoro e noivado durou quanto tempo?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Três anos e meio. Estamos com 36<br />

anos de casados, três fi lhos homens e sete netos.<br />

Preá – O seu pai teve alguma infl uência na sua decisão<br />

de fazer medicina?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Não. Ele me deixou absolutamente<br />

livre para fazer o que eu quisesse. Desde menino que eu<br />

queria ser médico, mas só tomei a decisão na Bahia, onde<br />

estava cursando o 2º grau. Ele não permitiu que eu viesse<br />

fazer vestibular aqui, porque se eu passasse, ele como<br />

Diretor da Faculdade de Medicina, você imagine o que<br />

não iriam dizer. Fiz o curso e quando terminei foi que<br />

vim para Natal.<br />

Preá – O senhor foi diretor do Hospital Walfredo Gurgel<br />

no Governo Cortez Pereira. Como foi essa experiência?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Foi uma experiência danada. Fui<br />

escolhido por Genibaldo Barros, que era o secretário<br />

de Saúde. Genibaldo havia recebido o hospital do<br />

Governo Monsenhor Walfredo Gurgel e o hospital<br />

estava sem equipamentos, sem nada, só tinha as paredes.<br />

E ele disse: - Nós temos um desafi o, que é o projeto do<br />

Hospital Monsenhor Walfredo Gurgel e Cortez quer falar<br />

com você. Fui lá e Cortez me disse que queria que eu<br />

fosse gerente do projeto. – Você me faz um projeto de<br />

funcionamento para aquele hospital, com cinco opções.<br />

Fui lá para dentro, vi o hospital todinho, instalei um<br />

pequeno escritório lá para começar a trabalhar e fi z<br />

cinco projetos. O primeiro era colocar o hospital em<br />

funcionamento de forma parcial e depois ir crescendo à<br />

medida que a demanda fosse aumentando. Ele escolheu<br />

esse primeiro projeto. E me nomeou diretor. Eu tive de<br />

fazer aquisição de material, selecionar o pessoal. Depois<br />

que estava todo mundo selecionado, eu admiti o primeiro<br />

paciente. Cascaviando um lixo que tinha lá atrás do<br />

hospital, encontrei um cepo de madeira, pesadão, aí eu<br />

disse: Está aqui o nosso primeiro paciente. Então, aquele<br />

cepo de madeira deu entrada no hospital, passou pelo<br />

arquivo, foi registrado como primeiro paciente, e eu<br />

supervisionando o funcionamento do hospital baseado<br />

naquilo ali. Esse cepo teve nome, foi para um leito; no<br />

leito ele foi preparado, recebeu medicação, para ver como<br />

o prontuário iria funcionar. Depois que esse prontuário<br />

foi ajustado, levamos esse cepo para a sala de cirurgia, o<br />

operamos, para saber se o centro cirúrgico funcionava,<br />

pós-operatório no CRO, depois demos alta, readmitimos<br />

de novo. E nesse meio termo eu pegava uma folha de<br />

papel, picava todinha e saía desde o térreo até o último<br />

andar espalhando pelos corredores e salas e depois voltava<br />

para saber se o hospital estava limpo {risos}.<br />

Preá – A medicina de Natal hoje está cuidando bem do<br />

cepo?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – É uma medicina muito boa, nós<br />

temos excelentes hospitais e temos profi ssionais que se<br />

equiparam aos melhores<br />

do mundo. Equipamentos<br />

são lançados na América,<br />

na Europa ou no Japão,<br />

e, no dia seguinte, esses<br />

equipamentos estão<br />

nos hospitais daqui.<br />

A nossa cidade dispõe<br />

hoje de tomografi as<br />

computadorizadas, ressonâncias<br />

magnéticas, coisas<br />

que muita cidade por aí não<br />

tem. Quando eu cheguei<br />

aqui, tendo terminado<br />

o curso na Bahia, o fi o<br />

Julho 2004<br />

73


Entrevista: <strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> <strong>Júnior</strong><br />

cirúrgico era o fi o que a velha Luiza Matrona comprava<br />

no armarinho de Carlos Lamas. Ela comprava linha zero,<br />

linha vinte, linha quarenta e linha sessenta. Aquilo ali era<br />

o nosso fi o cirúrgico.<br />

Preá – Foram tempos heróicos aqueles.<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Sim. Certas histórias daquela<br />

época eu ainda posso contar porque existem testemunhas<br />

vivas; sem isso eu não me arriscaria a contar, porque é<br />

meio problemático. Natal há 40 anos era uma cidade<br />

favelada, 80% da população era analfabeta e morava<br />

em casa de palha, alguns poucos moravam em casa de<br />

taipa. A mortalidade infantil era uma coisa horrorosa,<br />

chegava a quase 250 crianças mortas por mil que<br />

nasciam, competindo com o campeão mundial, que era<br />

Zâmbia, com 256. Havia uma miserabilidade que não<br />

havia tamanho. No hospital, determinados pacientes, em<br />

algumas cirurgias, podiam ter direito, durante a cirurgia,<br />

a tomar soro, terminada a cirurgia, se vire. Então um<br />

colega nosso, que ainda está vivo, graças a Deus, ele pode<br />

testemunhar isso, Abrão Marques, ele em desespero de<br />

causa, uma vez usou num paciente em vez de soro, água<br />

de coco. Certa vez, numa anastomose arterial, como<br />

não se podia fazer com linha de costureira, e o hospital<br />

não tinha como fazer, o cirurgião levou uma circulante,<br />

Livramento, para o lavabo, lavou e depois cortou os<br />

cabelos dela, voltou para a sala de cirurgia e fez a sutura<br />

da artéria com os fi os de cabelo e salvou o braço da<br />

mulher. Eudes Moura fez isso e deu certo. Fazíamos uma<br />

transfusão, quando acabava, lavávamos o equipo de soro e<br />

botava para secar no sol, depois esterilizava. Depois de “n”<br />

esterilizações, aquela borracha fi cava puída e começava a<br />

vazar. Quando a quantidade de soro que caia no chão era<br />

maior do que a que entrava na veia do doente, aquele<br />

equipo não servia mais para isso, mas não ia para o lixo<br />

não, era cortado em pedacinhos para servir de garrote<br />

para se aplicar injeção na veia.<br />

Preá – Como foi a sua participação no Projeto Hope?<br />

<strong>Onofre</strong> <strong>Lopes</strong> Jr. – Foi a maior realização de minha<br />

vida. Fui o Coordenador Geral. Tive de mexer com<br />

7 ministérios para fazer a coisa funcionar. Assisti de<br />

camarote ao choque de duas civilizações. Entre mortos e<br />

feridos salvaram-se todos.<br />

74 Julho 2004


SÍTIO NOVO<br />

A arte que brota entre as serras<br />

A minha cidade<br />

Sítio Novo é seu nome.<br />

Tão meiga e tão bela<br />

do meu coração.<br />

Sua gente hospitaleira,<br />

heróica e altaneira.<br />

Bela tradição.<br />

No mês de dezembro,<br />

sua emancipação.<br />

Sua independência<br />

se fez com emoção.<br />

Tornando mais forte,<br />

o Rio Grande do Norte.<br />

Seu mapa e brasão.<br />

Tem Assembléia de Deus,<br />

templo de oração.<br />

A Igreja Católica de São Sebastião,<br />

o seu padroeiro...<br />

A quem os devotos confi am primeiro,<br />

nas festas de rosas de janeiro a janeiro.<br />

Trecho do Hino a Sítio Novo<br />

Letra: José Francisco da Costa<br />

Julho 2004<br />

75


Sítio Novo - A arte que brota entre as serras<br />

Por Gustavo Porpino<br />

Fotos: Alberto Leandro<br />

As Serras da Tapuia, São Pedro e Pitombeira, a pouco<br />

mais de 100 km de Natal, cercam o município de<br />

Sítio Novo, uma terra mais conhecida pelo Castelo de Zé<br />

do Monte do que pela vontade de seu povo de desenvolver<br />

a cultura popular. O inverno coloriu as serras com um<br />

verde intenso e fez brotar uma infi nidade de fl ores.<br />

Sítio Novo vive da agricultura e da caça. O município,<br />

desmembrado de São Tomé em 31 de dezembro de<br />

1958, teve seu auge econômico durante o ciclo do<br />

algodão. O cultivo do algodão foi gradativamente<br />

desaparecendo e as famílias de agricultores passaram a<br />

buscar o sustento nas plantações de milho e feijão. Os<br />

umbuzeiros e as pinheiras, abundantes no alto da Serra<br />

da Tapuia, também servem de fonte de renda. A caça é<br />

outra atividade corriqueira na região. Munidos com suas<br />

espingardas de soca, os caçadores vão a busca de preás,<br />

arribaçãs e tacacas {gambás}.<br />

O açude Barra da Tapuia embeleza o cenário aos pés da<br />

serra e serve de inspiração para jovens pintores e poetas.<br />

As danças folclóricas, tão comuns até o fi nal dos anos 70,<br />

ainda sobrevivem graças ao trabalho da Associação Filhos<br />

da Esperança e dos educadores do município. Sítio Novo<br />

também é a terra do rabequeiro Nezinho, primo de João<br />

Anjo, um dos personagens da quinta edição da Preá, e<br />

do sanfoneiro José Desidério Neto, um músico defi ciente<br />

visual e muito habilidoso com as mãos. O Festival<br />

da Cultura, evento criado em 2002 para incentivar a<br />

produção cultural do município, acontece sempre no mês<br />

de agosto.<br />

76 Julho 2004


O professor que ama o cordel<br />

Isso vai acontecer<br />

com gente que aprende a ler.<br />

Lendo poema ou história,<br />

cria asas na memória<br />

e começa num segundo<br />

a voar por todo o mundo.<br />

E quanto mais leitura boa,<br />

mais a gente lê e voa<br />

pelo mundo sem fronteiras;<br />

lendo, lendo a vida inteira,<br />

numa contínua aventura<br />

pelas asas da leitura.<br />

José Poti<br />

O professor José Ferreira da Silva, 54 anos, mais<br />

conhecido como José Poti ou Zezinho, conta em versos<br />

seu amor pela literatura. Humilde, tem o cuidado de dizer<br />

a todo momento que não é poeta. A paixão pelos livros<br />

vem desde a infância e, aos 36 anos, realizou o sonho de<br />

ensinar português e inglês.<br />

José Poti cresceu lendo os folhetos de cordel do pai<br />

Cícero Ferreira do Nascimento e observando a mãe,<br />

Maria das Dores da Silva, tocar rabeca, gaita e fole de<br />

oito baixos. Naquele tempo, era difícil ter acesso a livros,<br />

jornais e revistas. O professor não esquece o dia em que<br />

viu pela primeira vez um exemplar da antiga revista “O<br />

Cruzeiro”.<br />

“Meu pai trabalhava na Fazenda Monte Alegre de Manoel<br />

Carneiro da Rocha, e lá vi a revista. A partir daí, fui<br />

lendo mais e mais”, conta. As difi culdades fi nanceiras<br />

impediram José Poti de dedicar mais tempo aos estudos.<br />

Aos 22 anos, decidiu ir em busca de emprego em São<br />

Paulo, seguindo o mesmo caminho de muitos outros<br />

conterrâneos. Inicialmente, trabalhava em feiras livres<br />

vendendo frutas, mas logo apareceu uma oportunidade<br />

de trabalho com carteira assinada.<br />

“Passei nove anos trabalhando como operador de<br />

máquinas na fábrica de brinquedos Estrela. Quem é<br />

acostumado com a liberdade do campo estranha mais”,<br />

salienta. A experiência foi boa, mas José Poti decidiu<br />

retornar a Sítio Novo e teve que enfrentar novamente o<br />

trabalho no campo. “A melhor terra do mundo ainda é a<br />

nossa. O nordestino que sai daqui e diz que não gosta de<br />

sua terra está mentindo. Ainda peguei um restinho dos<br />

anos do algodão, até o Bicudo acabar com tudo”.<br />

A paixão pela leitura já acompanhava o professor desde a<br />

infância. O fi m do cultivo do algodão serviu para José Poti<br />

despertar seu gosto pela literatura. Autodidata, sempre<br />

gostou de estudar inglês através de livros didáticos. Já<br />

de volta a terra natal, conseguiu alguns livros publicados<br />

pela Universidade de Cambridge e começou a estudar<br />

diariamente.<br />

O empenho surtiu efeito e José Poti foi convidado a<br />

ensinar português e inglês no município. Desde então,<br />

corre em busca de um novo sonho. “Quero passar a<br />

limpo meus escritos e publicar um livro, nem que seja<br />

mimeografado”. O livro já tem título, “Infância Grande”,<br />

uma série de histórias reais de um sítio-novense com<br />

muita força de vontade.<br />

Julho 2004<br />

77


Sítio Novo - A arte que brota entre as serras<br />

Rabeca leva “surra” de seu Nezinho<br />

“Quero dá logo uma ‘surra’ na rabeca para esquentar o<br />

couro, depois a gente conversa”. A frase do rabequeiro<br />

Manoel Justino Sobrinho, 74 anos, o Nezinho, foi mais<br />

do que um aviso. Homem de pouca conversa, ele gosta<br />

mesmo é de tirar um som de sua rabeca feita de madeira<br />

e chifre de boi. Toca desde criança e continua morando<br />

no Sítio Saquinho, no alto da Serra da Tapuia, local<br />

apropriado para reunir os amigos e fazer um forró com<br />

rabeca, sanfona, triângulo e pandeiro.<br />

Eram pouco mais de oito horas da manhã quando<br />

Nezinho chegou à casa da fi lha Maria Justino, local da<br />

entrevista, carregando sua rabeca enrolada num pedaço<br />

de pano. Veio caminhando pela estrada de barro e chegou<br />

sem aparentar cansaço. Mal sentou, já colocou a rabeca<br />

para tocar.<br />

A apresentação, improvisada na sala da casa da fi lha,<br />

começou com o choro clássico “Tico-Tico no Fubá”.<br />

Depois, tocou “Brasileirinho” e o hino do ABC Futebol<br />

Clube para, fi nalmente, dizer que a rabeca já estava no<br />

ponto e que podíamos iniciar a conversa. “Em 56 já fazia<br />

viagem pelo Agreste, toquei por todo canto neste meio de<br />

mundo...”, comentou.<br />

Nezinho ganhou sua primeira rabeca ao completar oito<br />

anos de idade. José Justino, o Deca, irmão mais velho, foi<br />

o responsável em ensinar o caçula a manusear a rabeca. Os<br />

ensinamentos do irmão foram além do esperado e a rabeca<br />

foi passando de brincadeira de criança a instrumento de<br />

profi ssão.<br />

78 Julho 2004<br />

A infância e juventude do rabequeiro foram marcadas<br />

pelas apresentações do João Redondo {mamulengo} e boide-reis,<br />

comuns naquela época por toda a região Agreste.<br />

Tão populares e tão bonitas que Nezinho sente saudade e<br />

fi ca feliz ao recordar. “O João Redondo do ‘véio’ Antônio<br />

Fernandes parecia um cinema de tão bonito”.<br />

O rabequeiro tem seis fi lhos. “Tive pouco”, diz. Não<br />

são poucos os membros da família que fazem da música<br />

um meio de vida ou tocam por prazer. O fi lho José<br />

Justino, conhecido como o sanfoneiro Zé de Nezinho, e<br />

o neto Iranilson de Moura Justino, 16 anos, pandeirista,<br />

acompanham Nezinho nas apresentações. O primo João<br />

Anjo, morador do Sítio Tanquinho em Santa Cruz,<br />

também toca rabeca.<br />

As últimas apresentações foram animando o Boi-de-reis<br />

de São Tomé, município vizinho a Sítio Novo, e durante<br />

o Festival da Cultura no ano passado. Nezinho puxa a<br />

memória e lembra que as manifestações folclóricas já<br />

foram mais comuns, mas acredita que a cultura popular<br />

tende a sobreviver apoiada por eventos como o Festival da<br />

Cultural local.<br />

O rabequeiro Nezinho, homem simples e sem formação<br />

musical, faz parte de uma linhagem de músicos em<br />

extinção. Passou toda a vida trabalhando no roçado e<br />

viveu o auge das plantações de algodão em Sítio Novo.<br />

“Naquela época, trabalhar com algodão era melhor do<br />

que ter aposento. Apanhei muito algodão. Teve dia de<br />

apanhar 148 arrobas”.


Sidney espera uma oportunidade<br />

A serra, um sítio e uma casinha com quadros<br />

religiosos na sala. É neste cenário, tão característico<br />

de Sítio Novo, que o estudante Sidney de Oliveira<br />

Galdino, 22 anos, cria pinturas e desenhos de<br />

paisagens.<br />

Sidney mora com a mãe Daguimar Batista de<br />

Oliveira, 43 anos, no sítio Serra de Baixo, no alto<br />

da Serra da Tapuia. A casinha de quarto e sala é toda<br />

decorada com quadros religiosos. São Sebastião,<br />

São Francisco, Santa Terezinha, Nossa Senhora<br />

Aparecida, São Miguel, São José, Santa Rita e Frei<br />

Damião dão um colorido às paredes sem reboco.<br />

O estudante cresceu acompanhando o trabalho<br />

suado da mãe nos roçados de milho e feijão. A<br />

infância sofrida não impediu Sidney de começar a<br />

pintar com tinta guache e fazer desenhos com giz<br />

de cera e lápis de cor. “Prefi ro criar, faço poucas<br />

reproduções de paisagens”.<br />

As pinturas de Sidney foram expostas no I Festival<br />

da Cultura, em agosto de 2002. O estudante vende<br />

cada pintura por R$ 40, em média. “Pretendo ter<br />

uma oportunidade para sair. Fica difícil conseguir<br />

as coisas por aqui”.<br />

Julho 2004<br />

79


Sítio Novo - A arte que brota entre as serras<br />

Desenhista sonha com carreira militar<br />

Desenhar é mais do que um passatempo de adolescente<br />

para Roni Erick Gomes da Silva. O estudante de 18 anos<br />

só precisa de uma caneta esferográfi ca e um pedacinho de<br />

papel para mostrar sua criatividade. Os desenhos retratam<br />

vales de dinossauros, montanhas e paisagens semelhantes<br />

às da Serra da Tapuia.<br />

Roni nunca estudou técnica de desenho, mas desde<br />

os oito anos vem desenvolvendo um estilo próprio de<br />

ilustrar cenários criados por ele mesmo. Alguns desenhos<br />

com animais pré-históricos parecem retratar o passado da<br />

Serra da Tapuia.<br />

O avô do jovem desenhista, José Severino Gomes, 70<br />

anos, conhecido por todos na Serra como Zé Roga, fazia<br />

até bem pouco tempo talhas em madeira. “Não fi z mais<br />

por causa da vista”, explica. Roga era especialista em<br />

esculpir pés, mãos e cabeças para pagadores de promessa<br />

levar até o Cruzeiro de São Francisco, em Sítio Novo, e<br />

até para a estátua de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte,<br />

no Ceará.<br />

As talhas do avô e seus desenhos decoram a sala da casa do<br />

estudante. Roni pretende aprimorar seus desenhos, mas<br />

também almeja conseguir uma ocupação estável. “Meu<br />

sonho é seguir a carreira militar. O outro é desenvolver<br />

minha técnica de desenho e também telas”.<br />

80 Julho 2004<br />

Dedé se ampara na música e na fé<br />

A música e a fé sempre fi zeram parte da família de<br />

José Desidério Santos Neto, o Dedé, sanfoneiro mais<br />

respeitado de Sítio Novo e arredores. Dedé conviveu seus<br />

49 anos com a cegueira e descobriu através da música o<br />

quanto é talentoso. A mãe Maria da Conceição Desidério,<br />

devota do padroeiro São Sebastião, encontrou na fé a<br />

força para apoiar o fi lho defi ciente visual.<br />

A primeira sanfona de Dedé, menor do que a atual,<br />

tinha 48 baixos.“Comecei a tocar muito novo”, diz. O<br />

sanfoneiro lembra dos antigos forrós no Sítio Primavera.<br />

“Tocava no forró do sítio e passei a tocar também nas<br />

campanhas políticas”.<br />

José Desidério mora com a mãe no centro de Sítio Novo.<br />

A bandeira de São Sebastião, usada para forrar uma<br />

mesinha na sala com as imagens de Nossa Senhora de<br />

Fátima e Frei Damião, simboliza a devoção da família<br />

pelo padroeiro do município. O pai Pedro Desidério, um<br />

ex-agricultor, faleceu em março deste ano.<br />

Dedé chegou a pensar em abandonar a carreira, mas<br />

reconheceu que sem o som da sanfona sua vida seria<br />

mais triste. A sanfona de 80 baixos, encostada por dois<br />

meses em respeito à memória do pai, voltou a animar o<br />

forró dos idosos, todos os sábados no clube municipal.<br />

O sanfoneiro coloca os idosos para dançar forró ao som<br />

dos maiores sucessos de Luis Gonzaga e Dominguinhos.<br />

“Chorinho também é bom e sempre toco”.


Entre o cabo da enxada e a poesia<br />

O agricultor Francisco Antônio de Oliveira, 54 anos,<br />

corre em busca de uma chance para mostrar seu talento<br />

com a mesma vontade que cultiva a terra. Canindé<br />

Antônio, como é mais conhecido, divide seu tempo entre<br />

o cabo da enxada e a composição de versos e canções.<br />

“Não adianta me apresentar dizendo que sou compositor<br />

ou poeta, ninguém acredita”.<br />

Canindé Antônio é líder do assentamento Pedra de São<br />

Pedro e vive numa casa humilde feita de tijolos de barro<br />

aparentes. Já teve dez fi lhos com a esposa Maria Aparecida<br />

de Oliveira e diz nunca ter tido a chance de mostrar seu<br />

dom artístico.“Moro num pé-de-serra que nem esse, fi co<br />

até emocionado com a visita”.<br />

“Sou poeta nordestino.<br />

Tenho minhas mãos calejadas.<br />

Eu trabalho dia a dia<br />

no cabo da minha enxada.<br />

Não sou poeta ridículo,<br />

que para o mercado rico,<br />

meus versos não valem nada”.<br />

O agricultor conta em versos sua paixão pelas coisas da<br />

terra e faz uso da voz grave para cantar brega e forró.<br />

Canindé participou do Festival da Cultura de Sítio Novo<br />

cantando com o grupo Juscelino Show, mas ainda tem<br />

muitos projetos a realizar. Pretende ter suas composições<br />

gravadas por bandas de forró ou cantores famosos e sonha<br />

em ver a cultura do município ser mais valorizada.“Faltam<br />

pessoas para acreditar na cultura de Sítio Novo. Espero<br />

que esta visita dê algum alcance. A cultura de Sítio Novo<br />

é rica”.<br />

O poeta popular não vê muitas perspectivas para seu<br />

futuro como compositor e seresteiro. “Deus me deu este<br />

dom de ser artista, mas este talento vai ser enterrado no<br />

chão junto comigo. Nem tenho como passar para alguém<br />

e não tenho oportunidade para mostrar”. O agricultor,<br />

um amante da natureza e bom observador, faz ainda<br />

uma crítica social utilizando o hábito dos conterrâneos<br />

de manter em gaiolas galos-de-campina e outras aves<br />

silvestres. “Tão soltando os criminosos e prendendo os<br />

passarinhos”.<br />

“Sempre Alerta” faz teatro educativo<br />

Educar através do teatro é a missão do Grupo de Jovens<br />

Sempre Alerta. O Sempre Alerta, fundado pela enfermeira<br />

Sandercleia Oliveira em agosto de 2003, faz apresentações<br />

teatrais em escolas utilizando como tema a prevenção de<br />

DSTs, gravidez na adolescência, drogas ou dengue.<br />

O trabalho do grupo vem ganhando reconhecimento<br />

desde a apresentação no programa “Governo nas Cidades”,<br />

realizado em Santa Cruz entre os dias 31 de março e 3 de<br />

abril deste ano. Já são 40 estudantes envolvidos com os<br />

afazeres do grupo de jovens. Todos os componentes são<br />

estudantes de escolas públicas do município.<br />

Os membros do grupo assistem, mensalmente, palestras<br />

de médicos, nutricionistas ou enfermeiros. O conteúdo<br />

aprendido nas apresentações é repassado para os demais<br />

estudantes através de uma linguagem popular e de forma<br />

divertida. As peças são preparadas em conjunto durante<br />

os ensaios feitos à noite na sede da Secretaria de Ação<br />

Social.<br />

Rivagma Teixeira de Azevedo Cunha, secretária de saúde<br />

do município, explica que o grupo ainda vai desenvolver<br />

projetos em outras áreas. “Iniciamos o trabalho em agosto<br />

de 2003. Agora vamos envolver o grupo de jovens em<br />

outras atividades como o esporte”.<br />

Julho 2004<br />

81


Sítio Novo - A arte que brota entre as serras<br />

Associação apóia o folclore<br />

A cultura de Sítio Novo só tem a ganhar com o trabalho desenvolvido pela Associação Filhos da Esperança. A<br />

organização, fundada em 2002, tem desenvolvido vários projetos nas áreas de artes cênicas e danças folclóricas. O boide-reis<br />

do mestre Zé Antônio, tradicional na região, o maculelê e o pastoril estão sendo apoiados pela associação.<br />

A estudante Débora Raquiel da Silva <strong>Lopes</strong>, 22 anos, é uma das mais dedicadas ao trabalho na associação. Débora<br />

Raquiel, ex-saxofonista da banda de Santa Cruz, coordena o UNIJA, grupo de jovens comprometido em resgatar<br />

antigos ideais da juventude, e também o grupo de teatro de rua Divina Pimenta. “O UNIJA surgiu da necessidade de<br />

unir a juventude local em torno de uma causa. Iremos romper o mito de que a juventude não está preocupada com<br />

nada”, salienta.<br />

O Divina Pimenta, criado em 2002, envolve 15 estudantes de Sítio Novo. Os próprios componentes confeccionam o<br />

fi gurino e leva ao povo apresentações com forte crítica social, uma característica presente em todos os grupos de teatro<br />

de rua. “Os textos falam da vida do nordestino, da fome, da dengue... é um trabalho voltado para a área social”.<br />

A poesia é outra das paixões de Débora Raquiel. A estudante e teatróloga não esconde a admiração pela obra da goiana<br />

Cora Coralina e já escreve alguns poemas. A julgar pela determinação da estudante, o primeiro livro é só uma questão<br />

de tempo.<br />

O técnico de saneamento Severino Bento da Silveira, 48 anos, também faz parte da Associação Filhos da Esperança e<br />

planeja para breve o lançamento de “Caminhos e raízes de Sítio Novo”, livro sobre a história do município contendo<br />

fotos antigas e depoimentos de diversos conterrâneos. “Desde muito novo ouvia meus pais e avós contando histórias do<br />

município. Comecei a anotar e esperei que alguém escrevesse, mas como ninguém escreveu...”<br />

82 Julho 2004


13 POR 1<br />

Marjorie Madruga (Procuradora do Estado)<br />

Romancista: Dostoievski, Gabriel García Márquez,<br />

Victor Hugo<br />

Poeta: Fernando Pessoa, pelo conjunto da obra;<br />

Rilke, pelas “Elegias de Duino”<br />

Livro: Memórias de Adriano (Marguerite Yourcenar);<br />

Antígona (Sófocles); Banquete (Platão)<br />

Filme: Dolls<br />

Diretor: Federico Fellini<br />

Ator/Atriz: Humphrey Bogart /Liv Ullmann<br />

Pintor: Marc Chagall<br />

Cantor/Cantora: Chet Baker, Nina Simone<br />

Compositor: Tom Jobim, Cartola, Chico Buarque<br />

Música: Melodia Sentimental (Villa-Lobos); Adios Nonino (Piazzola);<br />

Adagio in sol minore (Tomaso Albinoni)<br />

Peça teatral: Ricardo III, dirigida por Mark Rylance<br />

Intelectual: Octavio Paz<br />

Personalidade cultural do RN: Nei Leandro de Castro<br />

Julho 2004<br />

83


Pouco a pouco a fi cção produzida no Estado começa<br />

a ocupar o lugar que merece na Preá. Nesta edição,<br />

publicamos contos de três novos autores, que ainda não<br />

estrearam em livros: Carlos Lins Nobre, Hudson Paulo<br />

Costa e Nádia Maria Silveira. Todos ilustrados por artistas<br />

plásticos locais, algo que vem se tornando uma rotina na<br />

revista. Carlos tem apenas 17 anos e surge como uma<br />

das boas promessas na área de fi cção. Quem leu outros<br />

trabalhos dele confi rma isso. Hudson chegou a publicar<br />

alguns bons contos em “O Galo” e Nádia publica seu<br />

primeiro conto nesta edição. Um detalhe chama atenção:<br />

até agora, a maioria dos contos publicados na Preá é de<br />

autores pouco conhecidos e jovens (à exceção de Afrânio<br />

Pires), mas com muito talento, como Charles Phelan,<br />

Marcos Ferreira, Caio Flávio, Clauder Arcanjo, Mário<br />

Gerson e Leontino Filho, o que sugere renovação e vigor,<br />

numa área apontada como problemática na Literatura<br />

norte-rio-grandense, devido a produção sazonal e escassa,<br />

principalmente, se comparada à poesia.<br />

Um livro – no mínimo – instigante esse “Elizabeth<br />

Costello”, de J.M Coetzee. Conta a história da consagrada<br />

romancista Elizabeth Costello, personagem criada por<br />

Coetzee, que já havia protagonizado ‘A vida dos animais’,<br />

livro em que profere duas conferências sobre a crueldade<br />

com que são tratados os animais. Ocupando um espaço<br />

entre a fi cção e o ensaio, o novo livro do Nobel de<br />

Literatura do ano passado trata de questões como<br />

civilização grega versus a cristã; a (inexistência da) novela<br />

na África; os direitos dos animais; origens do mal; e,<br />

principalmente, apresenta uma profunda refl exão sobre a<br />

natureza do romance. Há, ainda, críticas ao showbusiness<br />

literário e à transformação de escritores em celebridades.<br />

Tudo atualíssimo.<br />

Estão abertas até setembro as inscrições para o IV<br />

Concurso de Poesia Luís Carlos Guimarães, promovido<br />

pela <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong>. Este ano o regulamento<br />

sofreu uma importante mudança: poetas com livros<br />

publicados também poderão participar. O regulamento<br />

84 Julho 2004<br />

completo pode ser consultado na página da <strong>Fundação</strong> na<br />

Internet: www.fja.rn.gov.br<br />

Filmes que assistimos e recomendamos: “O<br />

caminho das nuvens”, “Agora ou nunca”, “Amém”,<br />

“Dogville”, “Diários de motocicleta”. Sobre o polêmico<br />

Dogville, de Lars von Trier, que o poeta Moacy Cirne,<br />

diz só haver duas opções para o espectador, amar ou<br />

odiar, confesso que não me situaria em nenhum dos dois<br />

extremos. É um bom fi lme, que não consegui amar nem<br />

odiar. Assistam e tirem suas conclusões.<br />

A reforma na sede da <strong>Fundação</strong> José <strong>Augusto</strong><br />

criou a Galeria de Artes Newton Navarro, no salão de<br />

entrada, e está transformando a antiga “Sala dos Grandes<br />

Atos” em Teatro de Cultura Popular. O pátio interno foi<br />

transformado na “Praça da Liberdade Emmanuel Bezerra<br />

dos Santos”, uma homenagem ao ex-aluno da Faculdade<br />

de Sociologia da FJA e militante político assassinado pela<br />

Ditadura Militar.<br />

“Fabião das Queimadas - Poeta da Liberdade”, de<br />

Buca Dantas, documentário que vai ao ar em setembro<br />

na TVU, sobre o rabequeiro e poeta popular; ‘‘Do Lodo<br />

ao Lótus’’, documentário que retrata a transformação,<br />

dentro da cadeia, do preso Luiz Gusson, por meio da<br />

Hata Yoga, de Marcelo Buainain; “Caldeirão do Diabo”<br />

, longa de Edson Soares, sobre a Penitenciária João<br />

Chaves, em Natal, e sendo fi lmado, na praia de Baía<br />

Formosa, “Sonhos de Peixe”, do russo Kiril Mikhanovsky,<br />

mostram que o Rio Grande do Norte vive um momento<br />

novo e signifi cativo em termos de cinema. Estamos na<br />

torcida para que esse “boom” (não é exagero, uma vez<br />

que não tínhamos nada antes), contagie outros cineastas<br />

potiguares.<br />

“Rascunho”, editado em Curitiba, é hoje o<br />

melhor jornal (dos que conheço) sobre Literatura<br />

editado no país. Pode ser lido na Internet no endereço<br />

www.rascunho.com.br<br />

A Editora Sebo Vermelho, através da Lei de Cultura<br />

Câmara Cascudo, do Governo do Estado, lançou “Diário<br />

Náutico”, que reúne, em dois volumes, toda a obra do<br />

poeta Gilberto Avelino. Sem nenhuma dúvida, a edição<br />

mais caprichada de todas que a Editora já lançou. O<br />

projeto gráfi co é de Venâncio Pinheiro, orelhas de Horácio<br />

Paiva e prefácio de Vicente Serejo. Tudo de primeira. O<br />

poeta deve ter fi cado numa alegria só lá no céu.<br />

A partir desta edição a Preá conta com o reforço<br />

do estudante de Jornalismo David Clemente, jovem<br />

promissor e esforçado que inicia estágio voluntário na<br />

revista. Seja bem vindo David!<br />

Até a próxima!

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