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Adaptação de 'O Idiota' para HQ esbanja personalidade

Olhares em vez de palavras marcam versão de André Diniz para o clássico de Dostoiévski 

Ramon Vitral
São Paulo

o idiota

  • Preço R$ 59,90 (416 págs.)
  • Autor André Diniz
  • Editora Companhia das Letras

Os olhos arregalados e aparentando constante choque do príncipe Líev Michkin na adaptação do quadrinista brasileiro André Diniz para o clássico "O Idiota", do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), são enfáticos.

Após anos enclausurado em um sanatório suíço para tratar de sua epilepsia e agora de volta à Rússia, o personagem vive assombrado pelas dinâmicas sociais da aristocracia de seu país natal no final do século 19.

Cena de 'O Idiota' retrata lembrança do protagonista que ficou chocado ao presenciar uma execução; relato expõe mais sua inocência - Divulgação

A perturbação perene nas feições e nos trejeitos do protagonista da HQ são o melhor exemplo do poder de síntese do quadrinista brasileiro para expressar as nuances da obra original do autor russo.

Diniz adaptou as 688 páginas do livro de Dostoiévski para uma obra de 416, limitando as falas dos personagens para só 126 balões de texto. Constam palavras em apenas 96 páginas do álbum.

O traço angular e o preto e branco com ares de xilogravura de Diniz sintetizam a essência da trama literária original.

Já em São Petersburgo, na companhia da família da única descendente viva da linhagem dos Michkin, o príncipe Líev se vê em meio à dinâmica intrincada do relacionamento de seus parentes com a jovem Nastácia Fillípova e com um herdeiro obcecado pela beleza e a personalidade forte da protegida de seus familiares.

A ingenuidade do príncipe o torna uma vítima indefesa de conflitos decorrentes do egoísmo e da ganância das pessoas ao seu redor.

Na introdução do quadrinho, o chefe do departamento de russo da Universidade de São Paulo, Bruno B. Gomide, chama atenção para as "grandes questões artísticas e políticas" presentes na obra original de Dostoiévski.

Esses aspectos não se destacam tanto no trabalho de André Diniz: o foco do quadrinho está no drama humano e na interação entre os personagens concebidos pelo escritor russo.

A escolha de Diniz pelo uso limitado de palavras acaba por enfatizar os movimentos e as trocas de olhares dos protagonistas da HQ. A arte digital caricata e de linhas grossas do autor também servem ao propósito de ressaltar os sentimentos reprimidos e as personalidades dos personagens.

Ao contrário do que faz com Michkin, por exemplo, o autor optou por limitar os olhos de Fillípova a um icônico ponto preto, que a tornam ainda mais complexa e sua ações mais difíceis de serem compreendidas.

Houve no país na primeira década dos anos 2000 uma leva de adaptações de clássicos da literatura para o formato de histórias em quadrinhos.

Estimuladas pela simpatia do então governo federal pela inclusão de obras do gênero no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), editoras investiram em adaptações de livros de Machado de Assis, Mário de Andrade, Camões e do próprio Dostoiévski, entre outros.

Essa versão em quadrinhos de "O Idiota" chega às livrarias passado esse boom de adaptações e oferece o que há de melhor em trabalhos do tipo: fidelidade à obra que a inspirou, mas personalidade e autonomia em relação ao texto que lhe deu origem.

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