Descrição de chapéu

Elifas Andreato elevou a música brasileira com capas icônicas e oníricas

Capaz de sintetizar a essência dos álbuns, artista fazia valer um disco só pelos seus desenhos realistas e fantásticos

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Lucas Nobile

De "A" a "Z", ou de Adoniran Barbosa a Zeca Pagodinho, Elifas Andreato coloriu a música popular brasileira. Ilustrador e artista gráfico morto nesta terça-feira, nos últimos 50 anos ele se dedicou a enriquecer obras musicais que, por si só, já eram ricas.

Numa era pré-videoclipes e coreografias virais de internet, a arte de Andreato representava a identidade visual, a cara dos álbuns. Dos anos 1970 para cá, fica difícil imaginar alguém que não conheça ao menos uma capa de disco assinada por Elifas Andreato.

Algumas capas de disco com o desenho de Elifas Andreato - Reprodução

Isso acontece com os mais antigos, que iam às hoje desaparecidas lojas de LPs e acabavam levando "um Elifas" para casa ao comprar um álbum de Chico Buarque ou de Elis Regina. E acontece também com os mais novos, que podem não ligar o nome à pessoa, mas já esbarraram numa capa feita pelo artista paranaense ao escutar, por exemplo, discos de Criolo ("Espiral de Ilusão", de 2017), de Fabiana Cozza ("Canto da Noite na Boca do Vento", de 2019) e de Yamandu Costa ("Tocata à Amizade", de 2014).

Andreato desenvolveu sua arte em tempos em que tal ofício era muito menos digital e literalmente mais manual. À parte a destreza com as mãos, a chave do talento de Elifas Andreato estava no onírico, na imaginação. Sem limitar sua criatividade, ele deixava as gravadoras às voltas com as novidades gráficas que propunha. O formato de 30 por 30 centímetros das capas favorecia. Alguns discos tinham ainda capa dupla, contracapa e encartes, com espaço de sobra para abrigar as ousadias de Andreato.

Em alguns casos, ele ia além e elevava o nível do jogo. Basta lembrar, por exemplo, os icônicos "Lápis de Cor", de 1981, de Fátima Guedes, com espirais na lombada do LP, e "A Arca de Noé", de 1980, de Vinicius de Moraes e Toquinho, que trazia na capa uma linha pontilhada para ser recortada e a sugestão para o ouvinte "faça você mesmo a capa do seu disco".

Capa do disco com letreiro colorido "arca de Noé" e ilustrações de animais como girafa, onça, macaco, foca, tucano, coruja
Capa do CD 'Arca de Noé', relançado em 1993 - Divulgação

A inventividade não aparecia só no resultado. Estava presente também nas diferentes técnicas de criação. No clássico "Clementina e Convidados", de 1979, o artista usou uma caixa de argila para ilustrar na capa a pegada de um pé no chão de terra, sublinhando a força da ancestralidade na obra e na figura de Clementina de Jesus.

Já em "Paulinho da Viola", de 1978, aparece só o bojo de um cavaquinho em madeira, simbolizando a paixão do compositor pela marcenaria e pela lutheria —a arte de construir instrumentos musicais.

Além da originalidade, Andreato tinha extrema capacidade em sintetizar na capa a essência contida no interior daqueles álbuns. Como quem faz o cartaz de um filme ou a capa de um livro, ele sabia que, mais do que complementar o conteúdo musical, sua arte era a vitrine dos discos. Ao bater o olho na imagem de um casal negro dançando em primeiro plano —com um jovem Pixinguinha, ao fundo, tocando seu saxofone—, logo de cara o ouvinte já intuía a torrente sonora que sairia de "Confusão Urbana, Suburbana e Rural", álbum de Paulo Moura lançado em 1976, com capa de Elifas Andreato.

Retratista, realista e fantástico, em mais de 50 anos de carreira Andreato colaborou com artistas dos mais variados estilos musicais. Não há, porém, ligação mais forte do que a que ele teve com o universo do samba. Neste gênero, ao lado do grande Lan, Andreato foi praticamente imbatível. Boa parte dos maiores sambistas teve capas de discos criadas por ele.

Além dos já lembrados Adoniran Barbosa —e a famosa história da capa não lançada em que o compositor paulista foi retratado de maneira tão poética quanto certeira por Andreato como um palhaço— e Zeca Pagodinho, foi com Paulinho da Viola e Martinho da Vila que o artista gráfico estabeleceu suas parcerias mais marcantes e longevas. Só para estes dois foram mais de 30 capas com a assinatura de Andreato.

A lista de colaborações históricas é extensa. Vai de Clara Nunes a Elton Medeiros –no disco de 1973, com um arco-íris saindo das mãos de Medeiros segurando sua inconfundível caixinha de fósforos–, de Clementina de Jesus a João Nogueira, passando por Beth Carvalho, Jair Rodrigues e Dona Ivone Lara. As memórias musicais, visuais e afetivas da música popular brasileira se tornaram maiores pelas mãos de Elifas Andreato.

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