Saiba como Marcel Broodthaers criou museu fictício para ironizar a arte

Artista belga, que teve carreira de menos de uma década nas artes visuais, tem obras icônica em mostra em SP

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São Paulo

O poeta belga Marcel Broodthaers declarou, aos 40 anos, que era um artista plástico —e não sem uma boa dose de ironia.

Ele levou à sua primeira exposição, em 1964, uma série de exemplares não vendidos de seu último livro, "Pense-Bête", enterrados em gesso. Não é possível lê-los além da capa, tampouco manuseá-los. Seu trabalho de poeta se tornava uma peça tridimensional, e os jogos ambíguos com as palavras se transferiam para o universo visual.

'La Pluie (Projet pour un texte)', obra de 1969 de Marcel Broodthaers, em mostra na Gomide&Co - Estate Marcel Broodthaers/Divulgação

Para Marie-Puck Broodthaers, sua filha, ele fincou uma declaração de quem queria ter seu trabalho conhecido para além da poesia que não foi comprada e nem lida. "Eu mesmo me pergunto se eu conseguiria vender alguma coisa e ter sucesso na vida", afirmou o artista sobre a razão econômica da guinada de carreira.

O belga também começava ali uma trajetória bem-humorada que cutucou por dentro do circuito as instituições de arte, o que é autenticidade e os efeitos da produção de massa no clima bélico da Guerra Fria.

Parte de sua breve carreira visual, que durou até sua morte, em 1976, está na mostra "Marcel Broodthaers: Décor", na galeria paulistana Gomide&Co, que fica numa casa projetada pelo modernista Flávio de Carvalho. Essa é, aliás, uma chance um tanto rara de ver a produção do poeta no Brasil.

A última vez que obras vieram para cá foi em 2006, quando ele foi um nome central na 27ª Bienal de São Paulo, organizada por Lisette Lagnado, que também foi consultora na exposição atual. Na época, Broodthaers foi o único a ter um curador específico, o alemão Jochen Volz, hoje diretor na Pinacoteca.

Thiago Gomide, dono da Gomide&Co, lembra que não é uma tarefa fácil trazer obras dele para cá —são trabalhos demandados por instituições do porte do Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, e do Museu Reina Sofía, em Madrid, de uma produção de pouco mais de uma década, e muitos estão em coleções particulares.

Ainda assim, a seleção de 37 trabalhos que veio após três anos de organização com Marie-Puck Broodthaers tem algumas de suas obras mais icônicas.

Uma delas é a instalação "Ne Dites Pas que Je Ne l’ai Pas Dit [Não diga que eu não o disse]", de 1974, em que ele reúne palmeiras, um papagaio e uma vitrine com cópias do catálogo de uma exposição sua de 1966 ao som de uma gravação de um poema que ele mesmo escreveu.

É um arranjo de texto, som, vídeo e objetos, misturando as palavras às obras de arte, o que também indica influência do poeta Stéphane Mallarmé em sua produção.

"O que é pintura? Bem, é literatura. O que é, então, literatura? Bem, é pintura", afirmou o belga num texto de 1963.

Mas só quatro anos depois de se declarar artista, Broodthaers renunciou ao ofício para se tornar diretor do Museu de Arte Moderna - Departamento de Águias. Ele reunia nesse projeto ficcional e itinerante documentos, cartazes e convites —todos objetos que se referem às atividades de um museu de verdade, mas que não são as obras em si.​

A crítica que ele fez ao se tornar uma figura de autoridade é próxima do que ele desenvolveu, por exemplo, em "La Signature", de 1969, com uma reprodução repetitiva de sua assinatura. Afinal, é da autenticidade que se alimenta o mercado —tanto de arte quanto de literatura em alguma medida.

O esforço quase em vão do trabalho artístico também aparece no vídeo "La Pluie", do mesmo ano, em que o próprio Broodthaers tenta escrever um texto com uma caneta tinteiro debaixo de um temporal. O ato, portanto, nunca se concretiza na página.

O belga também entoou, ainda com humor, o clima bélico e industrial que atravessava o mundo em sua época com obras de pilhas de carvão e com um pequeno atlas, por exemplo. No livro de quatro por três centímetros intitulado de "La Conquête de L'espace, Atlas à l'usage des Aartistes et des Militaires [A Conquista do Espaço, Atlas para Uso de Artistas e Militares", todos os países têm exatamente o mesmo tamanho.

Até em seus "Poemas Industriais", placas feitas de plástico que criou ainda como diretor de seu museu fictício, ele opõe no título a criação puramente humana ao ritmo da produção em massa, como lembra Thiago Gomide.

O conceito que dá nome à mostra, "Décor", se referia ao projeto do artista de cada exposição ser uma espécie de obra em si, como se a própria mostra fosse uma linguagem. Broodthaers inclusive reuniu obras mais antigas e recentes nos seus últimos anos de produção, em trabalhos que se tornaram uma espécie de instalação retrospectiva de sua carreira.

"Atualmente, para jovens artistas, essas estratégias aparecem como dadas. Mas é mais interessante e inspirador voltar a Broodthaers e ver como seu trabalho conseguiu articular uma crítica contemporânea, isso há mais de 30 anos", disse o curador Jochen Volz na ocasião da Bienal que trouxe obras do belga.

O tom crítico e irônico das obras, que ressoa na arte contemporânea, evoca a diversão de uma de suas frases mais célebres — "Aqui brincamos todos os dias, até o fim do mundo".

Marcel Broodthaers: Décor

  • Quando Até 28 de maio. Seg. à sex.: 10h às 19h. Sáb.: 10h ás 15h
  • Onde Gomide&Co - al. Ministro Rocha Azevedo, 1052, Jardim Paulista, São Paulo
  • Preço Gratuito
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