CULTURA

Ironia para mudar o mundo






Andrea Alves
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No lugar da lamentação, a provocação, a reflexão, a luta. Foi essa a escolha da artista plástica sorocabana Letícia Barreto, que mora em Portugal há quase seis anos, diante da crise econômica que assola os países europeus. Dando vazão a sua vontade de não permanecer passiva, a artista desenvolveu um trabalho que chama a atenção para esse problema econômico gerador de tantas mazelas sociais e inaugura, amanhã, na Casa do Brasil de Lisboa, a exposição "Portugal no Divã", uma mostra com 16 caricaturas que vai permanecer aberta ao público até o dia 15 de fevereiro.
Essa não é a primeira exposição que Letícia Barreto promove em Portugal. Durante esse tempo em que mora no país, ela teve várias oportunidades de participar de outras mostras. Em 2008, esteve na 1ª Bienal Internacional de Artes Plásticas de Montijo. Em 2009, integrou a exposição coletiva do Departamento de Artes da Universidade de Évora, no Palácio Galveias, em Lisboa. Foram mais três exposições no ano de 2011: a 1ª Bienal Mulheres d"Artes, no Museu Municipal de Espinho; a exposição individual "Estrangeiro em Mim", realizada no Centro de Documentação do Campo Grande, em Lisboa; e a exposição individual "13-02-2006", no Espaço PT Tenente Valadim, na cidade do Porto. "Tive a grande satisfação e privilégio de participar da exposição Woundscapes no Pavilhão Preto do Museu da Cidade em Lisboa, em 2012", comenta a artista sobre essa mostra que nasceu de pesquisas de antropólogos e artistas de diferentes países e refletia olhares sobre os processos migratórios.
Como bolsista da Fundação Rotary Internacional, Letícia Barreto estudou Artes Plásticas no Instituto Lorenzo de Medici, em Florença, na Itália - no mesmo país onde conseguiu completar uma especialização de professores em artes plásticas. No Brasil, estudou Desenho, Pintura, Gravura e História de Arte. Participa desde 1992 de mostras coletivas e individuais, tendo já exposto no Brasil, Itália, Estados Unidos da América, Equador e Portugal. Trabalhou como arte-educadora durante 17 anos, no seu ateliê no Brasil e em projetos sociais e dá continuidade a esse trabalho em Lisboa, onde mora desde 2007, atuando como como professora de desenho e pintura no Nextart. Pintora, desenhista, artista multimídia e arte-educadora, é mestre em Artes Visuais pela Universidade de Évora. Quem quiser conhecer seu trabalho pode visitar o site www.brazucaemportugal.wordpress.com.
Incorporada à vida e à arte europeia, a brasileira não fingiu não perceber a crise e optou por se agarrar ao que estava ao seu alcance: uma ferramenta capaz de promover a reflexão, ou seja, a ponta do lápis, a ironia e o desejo de mudar o mundo. Letícia Barreto conversou com o Mais Cruzeiro, por email, sobre suas percepções e sobre a exposição "Portugal no Divã".
Como tem sido conviver com a crise em Portugal? Quais suas sensações em relação a isso?
A crise afeta a todos, não há como ficar indiferente em relação a isso. Os impostos subiram assustadoramente, o custo de vida aumentou, o Governo tenta de tudo para conseguir dinheiro para tapar os buracos e está tomando uma série de medidas impopulares como os cortes nas pensões, nos subsídios etc. As greves de transportes são constantes e o número de desempregados cresce a cada dia, o que obriga muita gente a emigrar em busca de melhores condições de vida.
Por que decidiu fazer da crise o tema do seu trabalho?
Como disse, é impossível ficar indiferente em relação a isso. Quem acompanha meu trabalho há um tempo, sabe que desde adolescente eu tenho essa veia crítica. Comecei fazendo caricaturas e charges; depois vieram as ilustrações e histórias em quadrinhos. Na verdade, a princípio, comecei a aprender pintura para melhorar meu trabalho em ilustração, só depois é que tornou-se uma paixão. Embora já há algum tempo me dedique quase que com exclusividade às artes plásticas e ao ensino de desenho e pintura, nunca deixei completamente de lado as caricaturas. É algo que me dá muito prazer em fazer e que alimenta esse lado crítico do meu trabalho. Como explico no texto da exposição, o humor não apenas ajuda a despertar o sentido crítico nas pessoas, mas também colabora para resgatar a coragem e alimentar a esperança, mesmo diante a tantos desafios.
A exposição é uma sátira das figuras políticas. Por que optou por usar essa linguagem? E quem são as personalidades ali representadas?
Acredito que a linguagem da sátira seja mais certeira para despertar a consciência crítica na realidade que nos cerca e para mostrar as incoerências das nossas ações. É uma forma de crítica ao qual dificilmente fica-se indiferente. São 16 desenhos no total que retratam as personagens e situações que fizeram e fazem parte da crise européia. Entre essas "personagens" estão Angela Merkel (chanceler da Alemanha), Nicolas Sarkozy (ex-presidente da França, em exercício até o ano passado), Aníval Cavaco Silva (presidente de Portugal), Christine Lagarde (diretora-gerente do FMI), Pedro Passos Coelho (primeiro-ministro de Portugal), entre outros.
Quando começou a pensar nesse trabalho? Foi difícil conseguir um espaço para expô-lo?
A exposição começou por causa do contato com um responsável por um espaço expositivo em Lisboa e que tinha demonstrado interesse no meu trabalho quando soube que eu fazia caricaturas. Mostrei fotos das caricaturas que tinha feito no Brasil e que retratavam cantores, esportistas e políticos brasileiros. Comecei então a conceber os trabalhos especialmente para esta exposição, que foram sendo feitos aos poucos ao longo do último ano. A exposição neste espaço já estava agendada para o início de novembro do ano passado, estava tudo organizado, inclusive. Uma semana antes da montagem, recebi um e-mail dizendo que eu teria que repensar o tema da exposição pois naquele espaço não poderia exibir trabalhos com cariz político. Em face à censura ao meu trabalho, saí à caça de outros espaços expositivos, o que não foi tarefa fácil, pois vários outros espaços também se recusaram a mostrar uma exposição com conotação política. Mas finalmente consegui o apoio da Casa do Brasil, que me abriu as portas e me deu a oportunidade de realizar a mostra das caricaturas. O fato de ser realizada na Casa do Brasil nesse contexto de crise e censura do trabalho não deixa de ser bem simbólica...
Os europeus são conhecidos como povos bastante politizados. É isso mesmo o que você vê em Lisboa? Isso também foi inspiração para esse trabalho? Aliás, o nome da exposição "Portugal no Divã" sugere uma parada para a reflexão.
Tenho que confessar que comparativamente a nós, brasileiros, os europeus são muito mais politizados. Em geral, não ficam calados diante a situações com as quais não concordam e acho que isso deveria servir de lição para nós, que muitas vezes assistimos passivos à corrupção e à injustiça no nosso país e nada fazemos. O nome da exposição vem ao encontro dessa parada para reflexão. Vivemos um período de grandes mudanças. A Velha Europa já não é mais a mesma. Antigas potências da economia mundial pedem socorro ao FMI e aos mercados emergentes. Crescem a pobreza, a desigualdade e a exclusão, à medida que também crescem os governos conservadores, que governam para o mercado e para as elites das quais fazem parte. Nos países que hoje enfrentam a crise, como Portugal, procuram-se "bodes expiatórios", apontando-se o dedo para culpados de fora (a Alemanha, a Troika, a Merkel, o FMI, os mercados...), sem admitir os tropeços sucessivos que geraram tamanho estrago no país. O mapa da geopolítica mundial está de cabeça para baixo. Em meio a esse cenário cabe enfrentar a realidade e lutar por dias melhores, mas também se faz necessário ver com ironia as incoerências das situações e personagens envolvidas nessa crise para resgatar a coragem para seguir em frente. O mundo que vivemos chegou num ponto onde já não é mais possível manter os mesmos paradigmas. Não podemos mais continuar a assistir passivos a tantas injustiças, a tanta corrupção, à destruição da natureza...é preciso uma tomada de consciência urgente de que nosso Universo é um grande organismo vivo, onde cada coisa afeta as demais. É preciso lembrar da frase de Mahatma Gandhi: "Seja a mudança que você quer ver no mundo".