​

Folha de S.Paulo

'Cidades-santuário' protegem ilegais e evitam deportações nos EUA


Carlos, 31, não pretende ir a lugar algum. "Comprei um carro, fechei 18 meses de aluguel, estou namorando uma gata", conta o garçom brasileiro.

"Mas você não tem medo de Donald Trump?" Foi a pergunta que recebeu de "200% dos amigos", todos cientes de sua situação: há dois anos ele vive nos EUA sem autorização, desde que seu visto de estudante expirou (veio para fazer três meses de um curso de cinema)

Ao montar seu gabinete, o presidente eleito mostra que não estava de conversa ao adotar, na campanha, discurso linha-dura contra imigrantes ilegais.

O senador Jeff Sessions (indicado para secretário de Justiça) é o mais radical: em 2010, chegou a criticar a 14ª emenda da Constituição americana, que garante cidadania automática a quem nascer nos EUA, inclusive filhos de estrangeiros.

"Não sei o que tinham em mente, mas duvido que [para os criadores do texto, de 1868] alguém pudesse voar do Brasil, ter uma criança e voltar para casa, e este filho seria para sempre cidadão americano."

Mas Carlos se sente seguro em Nova York, uma das chamadas "cidades-santuário" do país —aquelas que protegem imigrantes irregulares da deportação, recusando-se a cooperar com forças federais de imigração.

São em geral centros cosmopolitas sob governos democratas, de San Francisco a Boston. "Chicago sempre será uma cidade-santuário", declarou seu prefeito, Rahm Emanuel, para acalmar "aqueles muito nervosos e ansiosos" com a vitória do homem que se dispôs a deportar 11 milhões de imigrantes ilegais.

Gestor de Nova York, Bill De Blasio foi na mesma toada. "Não vamos sacrificar meio milhão de pessoas que vivem entre nós, são parte da nossa comunidade e cujos familiares em muitos casos são cidadãos ou residentes permanentes. Não vamos destruir famílias."

Levantamento informal do Centro para Estudos sobre Imigração estima que haja 300 desses santuários espalhados pelo país.

O conceito se popularizou nos anos 1980, quando a Casa Branca tinham má vontade com guatemaltecos e salvadorenhos fugidos de regimes de direita apoiados pelos EUA (Guatemala e El Salvador), embora fosse mais receptiva a latinos que escapavam de ditaduras da esquerda (a Nicarágua sandinista).

Não é uma definição legal —e às vezes sequer cidades são. Santuários podem incluir Estados inteiros, como a Califórnia, onde, em 2014, latinos excederam brancos, segundo o Censo (hoje são 40% da população).

Universidades também se identificam com esse status. Uma delas é a da Califórnia, presidida por Janet Napolitano, ex-secretária de Segurança Interna de Barack Obama.

"Calculamos ter cerca de 3.700 estudantes sem documento em nosso sistema. Não perguntamos sobre seu status migratório na hora da matrícula", diz à Folha Ricardo Vázquez, diretor de comunicação da instituição.

Na prática, a reitoria resguarda a privacidade do aluno e proíbe a polícia universitária de colaborar com agentes da imigração.

Trump se diz pronto para uma guerra contra comunidades que servem de escudo para seus imigrantes. A principal ameaça é pressioná-las com o corte de fundos federais.

Lei é lei: goste ou não, é preciso segui-las, argumenta o historiador Victor Davis Hanson no artigo "O Niilismo das Cidades-Santuário".

Ele propõe um exercício comparativo: "Muitos conservadores se opõem a restrições federais à venda de armas. Poderia Oklahoma City declarar que lá a compra de revólveres é isenta de normas federais? Talvez Little Rock [Arkansas] possa ignorar a decisão da Suprema Corte pró-casamento gay".

Para conservadores, Kate Steinle é a resposta trágica para aqueles que pedem clemência aos ilegais.

Em julho de 2015, duas semanas após Trump anunciar sua candidatura, um mexicano atirou —com uma arma roubada, para autoridades, ou achada ao acaso e disparada sem querer, segundo ele— no píer de San Francisco.

A bala ricocheteou e atingiu as costas da californiana Kate, 32. Seu pai tentou acudi-la com reanimação cardiorrespiratória. Em vão. Ela morreu duas horas depois, no hospital.

Juan Francisco tinha sete condenações e já fora deportado para o México cinco vezes. Saíra de uma prisão municipal três meses antes, quando autoridades locais desistiram de processá-lo por posse de maconha de 20 anos atrás.

Se tivesse sido entregue a forças federais, Kate estaria viva, esbravejou o apresentador da Fox News Bill O'Reilly, uma das vozes mais conservadoras da mídia, à época. "A dura verdade é que Steinle foi um dano colateral para políticas insanas da extrema esquerda. Mais uma vez, pessoas perigosas estão à solta por causa do politicamente correto."

Progressistas criticam a "politização" de uma tragédia que não espelharia a realidade. Santuários tendem a ser mais seguros, defendem, usando San Francisco como exemplo: lá homicídios despencaram de 129 em 1993 para 45 em 2014.

Ao menos um republicano, o senador Lindsey Graham (Carolina do Sul), critica o risco de seu partido "alienar latinos com uma retórica anti-imigração pesada". Ele lembrou que George W. Bush teve 44% dos votos desse eleitorado em 2004. Trump conquistou 29%.

O brasileiro Carlos pode não temer o futuro presidente, mas, "por precaução", prefere não dar sobrenome. Seu maior crime, diz, é não ter ido ao Brasil para o funeral da avó. "Fiquei com medo de não me deixarem voltar."