Política

Decreto vai autorizar a doação de armas apreendidas às polícias

Principal preocupação é com os riscos de desvio de armamento, a maior parte com numeração raspada
Fora de circulação: armas apreendidas são destruídas, mas destino poderá ser alterado com a mudança nas regras Foto: Ricardo Gomes/5-3-2001 / Agência O Globo
Fora de circulação: armas apreendidas são destruídas, mas destino poderá ser alterado com a mudança nas regras Foto: Ricardo Gomes/5-3-2001 / Agência O Globo

BRASÍLIA - O governo federal vai editar um decreto para liberar a doação de armas pesadas apreendidas no país para as polícias. A intenção é garantir que fuzis e metralhadoras retirados da clandestinidade possam ser usados pelos órgãos de Segurança. Hoje, em virtude de regulamentação do Estatuto do Desarmamento, as armas irregulares são destruídas pelo Exército, mesmo que estejam em condições adequadas de funcionamento. Embora o propósito seja equipar as corporações evitando gastos em momento de crise econômica, a mudança é controversa dentro e fora do governo.

De autoria do Ministério da Justiça, o texto da proposta passou por várias negociações até ser endossado pelo chefe da Defesa, ministro Raul Jungmann, que o encaminhará à Presidência da República nos próximos dias. Ex-presidente da Frente Parlamentar do Controle de Armas na Câmara e um dos congressistas mais atuantes em prol do Estatuto do Desarmamento e contra a doação dos objetos apreendidos para as polícias, Jungmann diz que os riscos da medida foram atenuados com alterações na redação do decreto, para restringir o rol de armas passíveis de serem doadas.

— As armas que serão efetivamente repassadas para as polícias serão armas pesadas, o que reduz o risco, porque você não vai estar rompendo o padrão (das armas adotadas pela polícia), e essas armas são em um número menor, o que permite o controle e a perícia delas. As armas pequenas ficariam de fora. Por aí, acho que não tem maiores riscos — disse Jungmann ao GLOBO.

Segundo análise de setores de inteligência do governo, com o fim das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), o Brasil deve se tornar o principal destino na América do Sul dos fuzis usados pela guerrilha urbana, o que elevará a apreensão desse tipo de material nos próximos anos. Além disso, o poder de fogo cada vez mais elevado das organizações criminosas é apontado como justificativa para armar a polícia também.

Um aumento contínuo da apreensão de fuzis ocorre no Rio de Janeiro desde 2012, quando 246 armas desse tipo foram retiradas de circulação pelas polícias do estado. No ano passado, foram 344 — um acréscimo de 40% em quatro anos. Em 2016, até setembro, segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública, ligado ao governo estadual, 234 fuzis já foram apreendidos.

No Brasil, houve apreensão de 110.327 armas de fogo em 2015, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O Rio é o quarto estado do ranking, com 9.268 artefatos, perdendo apenas para Ceará (11.675), São Paulo (18.605) e Minas Gerais (23.227). A ideia do decreto é que a unidade da Federação onde a arma foi apreendida terá prioridade na doação. Se ela não tem necessidade daquele armamento ou não puder recebê-lo, o material poderá ser repassado a outro estado. As doações terão de respeitar o critério de quantidade e tipo de armas permitido a cada polícia no Brasil, segundo definição do Comando do Exército.

O enquadramento das doações nos limites impostos pelo Exército é usado para rebater críticas de que a medida aumentaria a circulação de armas, ampliando os riscos de desvios do material. Apesar de os ministérios da Justiça e da Defesa terem aparado as arestas sobre o decreto, após ouvidos os comandos das Forças Armadas, para chegar a um texto consensual, há resistências na Casa Civil, que dará a última palavra sobre o assunto.

MEDIDA É POLÊMICA

O decreto para liberar a doação de armas pesadas para as polícias encontra resistências dentro e fora do governo. O Executivo quer incluir a medida no Plano Nacional de Segurança Pública, que deve ser lançado ainda este ano, mas há críticas quanto aos benefícios reais da iniciativa.

Natália Pollachi, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, diz que o grande problema está nos riscos trazidos caso as doações sejam institucionalizadas de forma indiscriminada. Ela cita pesquisa da entidade feita entre 2011 e 2012 com cerca de dez mil armas apreendidas na capital de São Paulo, das quais cerca de 50% tinham numeração raspada.

— Temos que pensar como vai se dar a gestão dessas doações. A arma com numeração raspada, que é muito comum entre as apreendidas, teria de ser renumerada, o que pode fragilizar os controles do país. Não serão armas padronizadas, com especificações contempladas nos treinamentos recebidos pelas corporações e manutenção em dia — pondera Natália. — Se falamos em armas de grosso calibre, que parece ser o objetivo do governo, é preciso garantir que sejam acessadas apenas pelas equipes especiais, em ocasiões apropriadas. Não dá para usar esse armamento, que derruba parede, em situações de confronto, por exemplo.

ASSALTOS A DEPÓSITOS

Além da regulamentação do Estatuto do Desarmamento, que determina a destruição das armas apreendidas pela polícia ou entregues em campanhas de desarmamento, há resolução do Conselho Nacional de Justiça, de 2011, no mesmo sentido. Apesar disso, doações a órgãos de Segurança já ocorrem hoje, mas em situações excepcionais, com autorização expressa do juiz.

Hoje, a regra é que as armas permaneçam em depósitos judiciais, nos fóruns criminais, até o fim do processo relacionado a elas. Como as ações costumam demorar anos na Justiça, esses locais ficam abarrotados e são frequentemente alvo de assaltos e outras formas de desvios. O acervo tem como destino final o Exército, que destruiu 73.392 armas em 2015, colocando-as em prensas mecânicas para inutilização e depois em fornos com temperatura de 1.600°C.