O cavista e o unicórnio

Com o comércio eletrônico, o cartão de crédito e as superlojas online pensamos que tudo está sempre disponível, basta querer (ter o dinheiro) e compramos o desejado; no meu caso umas garrafas de vinho. Foi assim, vivendo esta ilusão, que aprendi o conceito de “Unicorn Wines”, ensinado por amigos da Borgonha. Vinhos unicórnios são aqueles muito citados, respeitados, míticos e quase impossíveis de conseguir. Os mesmos amigos me indicaram dois, um da esquecida região de Collares, perto de Lisboa e o outro um Bordeaux, o Château Bel Air Marquis d’Aligre.

Como estou em Paris, dei uma pesquisada e achei o segundo, na vetusta Caves Augé. Ri por dentro, “que besteira, o vinho existe, está logo ali, vou lá amanhã”. Fui. A Caves Augé é uma loja impressionante, corredores muito estreitos com garrafas até o teto, pense no mercado de Ver-o-Peso em Belém do Pará, só que de vinhos.

Com esforço e contorcionismo achei as prateleiras de Bordeaux e lá em cima, num cantinho, sem nada que o anunciasse, uma garrafinha do unicórnio. O Marquis d’Aligre é considerado raro por ser um Margaux do lado do Château Margaux, feito por um senhor solteirão, sem parentes, com quase 90 anos de idade, sistemático, que só vende para quem quer e quando quer. Pela lei francesa sua propriedade vai desaparecer com sua morte. Os vinhos são no estilo antigo da região, precisam de muito tempo de espera, a safra na Augé era a 1985. Meio emocionado e afobado peguei a garrafa e fui para o balcão pagar.

O vendedor, sem pressa, olhou para mim e perguntou: “o senhor conhece este vinho?”. Fiz cara de entendido e disse que sim. “Para quando é, quando vai abri-lo?”. “Este fim de semana”, respondi com candura. “Então, não”. Tentei negociar, “quantos dias preciso esperar?”. A loja toda estava parada assistindo a queda de braço entre nós. “No mínimo 365” respondeu sério, falando cada número como um edital. Foi uma gargalhada, eu suava e enrubesci. “Tem que beber daqui 20 anos” completou. Cedi, prometi, jurei que sim, pedi uma redução para 10 anos. Ele, vitorioso, aceitou a mentira:  “Dez anos está bem”.

Pediu licença ao senhor na minha frente, que comprava uma centena de garrafas, “vou atender Monsieur primeiro, afinal é uma garrafa só”. Aproveitei para empatar a partida: “bom, se tenho que esperar dez anos para beber o Bordeaux, posso esperar na fila um pouquinho”. Final feliz.  

Esta história define o caviste, o vendedor das antigas e atulhadas lojas francesas de vinho, que têm ciume de suas garrafas, duramente escolhidas para seus clientes. Não é mostrar um punhado de notas e comprar, tem que merecer o produto. E aqui chego ao assunto da coluna, o cavista brasileiro.

 Eu sou um bairrista. Não naquele sentido paroquial, mesquinho, disputas sem sentido. Acredito na unidade bairro como a base da existência. Neste pequeno grupo de quarteirões, cujas fronteiras é nossa cabeça que estabelece (não tem relação com o que as prefeituras decidem, bairro é geografia particular) é que se vive, onde há de tudo, onde circulo e estou. Na minha visao da cidade é preciso ter tudo ao alcance de uma caminhada. É um motivo extra para meu amor por Paris. Claro que há uma queijara melhor mais adiante, talvez a padaria do outro lado do rio seja especial e premiada, vale entretanto a mais próxima.

A pergunta que mais ouço sobre a cidade: onde devo comprar vinhos. Respondo, no caviste de sua vizinhança. A tradução de caviste talvez fosse adega, mas não é só loja de vinhos, tem uma pessoa ali, um sujeito que escolheu, não é um balcão de supermercado, em que o assunto é resolvido em minutos, o caviste gosta de bater papo.

Onde achamos algo parecido no Brasil? Nos dedicados pesquisadores de vinhos especiais. Abriu este ano no Rio, fruto do entusiasmo de Alain Ingles e Pedro Hermeto, a Gavinho, com tal estilo de trabalho. É verdade que se trata do neo-caviste, se o francês vai com sua furgoneta até a Alsácia, a Borgonha, e carrega as caixas pela estrada de volta, aqui o avião é incontornável. Mas o substrato é o mesmo. O caviste voador tem a essencia do desbravador. O Alain queria me mostrar uns vinhos, mas nem ele, nem eu queriamos degustações técnicas e montes de garrafas abertas sem mais, assassinato serial de vinhos que dão prazer. Cansei destas degustas-ostentação, o negócio é beber bem e com comida, onde o vinho tem sentido.

Ele veio em casa com uma sacolinha, batemos papo sobre suas escolhas, a razão de seu pequeno catálogo e pronto; fomos para a padaria do lado, ficamos lá, aves raras, bebendo vinho e conversando, a padeira do bairro trouxe croissants, tirou baguete quentinha do forno, apareceu boa manteiga, alguns clientes que passaram para pegar a fornada provaram uma tacinha, comentaram. A padaria fechou e continuamos, sorvendo os vinhos, que ele escolheu com rigor e dos quais fala com olhos brilhando. Não é vendedor, não quer fechar a fatura, quer que gostem do que carinhosamente (e com as dificuldades brasileiras) conseguiu para dividir. O estupendo La Petite Roche de Damien Laureau; o Pommier Chablis Premier Cru Fourchaume (já disse que adoro Chablis?);  e um unicórnio típico, Thierry Allemand, com seus Cornas refinados e carnudos, lição completa de Syrah. 

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