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Carolina Larriera quebra o silêncio após 14 anos de injustiças

Agora reconhecida como mulher do alto-comissário da ONU Sérgio Vieira de Mello, morto em um atentado terrorista, Carolina desabafa sobre sua trajetória

Por Patrícia Zaidan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 17 abr 2020, 19h56 - Publicado em 23 out 2017, 16h48
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  • Por quase 14 anos, a economista argentina Carolina Larriera, 44 anos, teve sua vida suspensa. Sobrevivente do maior atentado terrorista contra a Organização das Nações Unidas (ONU), ela perdeu na tragédia seu companheiro, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, então com 55 anos, alto-comissário para os Direitos Humanos da entidade, que chefiava em Bagdá a mediação dos conflitos gerados pela invasão americana e queda do ditador Saddam Hussein.

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    Era 19 de agosto de 2003 quando uma betoneira com 700 quilos de explosivos, pilotada por um fanático da Al Qaeda, mandou para os ares parte do prédio, deixando 23 mortos e 200 feridos. Minutos antes, Carolina, funcionária do departamento de missões de paz, havia saído do escritório de Sérgio, onde discutiam com lideranças feministas do país a atuação delas na recondução do Iraque à normalidade. Da sua sala, no mesmo corredor, a 5 metros de Sérgio, ouviu o barulho das bombas. Desesperada, saiu tateando as paredes, no escuro. Tropeçava em escombros e gritava o nome do diplomata.

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    Foi a última pessoa a vê-lo com vida. Carolina manteve uma convivência de amor com ele por quase quatro anos e se revoltou ao ser impedida de ir ao enterro porque a ONU considerou a francesa Annie Personnaz como a esposa oficial para os funerais. Sérgio estava separado dela, aguardava o fim do processo de divórcio e se casaria com Carolina em dezembro daquele ano.

    De lá para cá, a argentina assumiu muitas batalhas. Acusou a ONU de negligência na segurança do alto-comissário, apontou falhas no socorro e pediu seu desligamento. Sempre contou com o apoio da sogra, Gilda Vieira de Mello, 99 anos, que, certa vez comprou uma briga com a fundação criada em Genebra por Annie com o nome do diplomata. Gilda, que acolheu Carolina em seu apartamento, em Copacabana, no período de luto de ambas, tornou pública uma carta ao conselho diretivo da fundação.

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    Em um trecho, diz: “Considero incoerente que a pessoa que passou os últimos anos da vida do meu filho brigando com ele em um processo de divórcio litigioso, amargo e rancoroso venha a ser responsável por promover sua memória”. Em março deste ano, o coração de Carolina se aquietou. A Justiça brasileira reconheceu a união civil do casal. Carolina mora no Rio de Janeiro, dá consultorias em relações internacionais e leciona no Insper, instituição de ensino superior, em São Paulo, onde conversou com CLAUDIA.

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    (Gabriel Rinaldi/CLAUDIA)

     

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    CLAUDIA: Por que foi importante o reconhecimento da sua união civil tanto tempo depois da morte de Sérgio?

    Carolina Larriera: Parece um detalhe pequeno, mas o papel é um símbolo forte. Restaurou a minha identidade. Mostrou que não há uma só definição de família, uma única forma de conviver. Há escolhas individuais, diversidade em relação a gênero e circunstâncias, como no meu caso, que levam a arranjos diferentes das normas sociais. Sérgio era meu marido de fato.

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    Vivemos intensamente um período de quase quatro anos de amor e solidariedade, que valeram por décadas. O médico legista, que liberou o corpo, deu a mim a aliança que ele usava com meu nome inscrito. Eu a mantenho no dedo ainda hoje. Éramos um casal público, íamos a cerimônias oficiais como marido e mulher. Estávamos de casamento marcado, com convites distribuídos para autoridades, como o então rei Sihanouk, do Cambodja. Porém, por anos fui injustiçada, vivi um calvário na falta do reconhecimento oficial.

    CLAUDIA: Que tipo de calvário?

    Carolina: Sérgio teve uma carreira pródiga de 36 anos na ONU. Atuou em muitos episódios importantes da história recente. Foi um grande mediador de conflitos no Oriente Médio, trabalhou na repatriação de 400 mil refugiados cambojanos, negociou o fim do massacre na Bósnia e da guerra no Kosovo e, por três anos, colaborou com os cidadãos do Timor Leste na conquista da independência do país. Por tudo isso e por defender a paz mundial e a dignidade humana, ele recebeu – e recebe – várias homenagens.

    Depois da estúpida morte, a vida de Sérgio virou tema de livros e de um desfile da Portela, no Carnaval carioca. Eu atendia aos convites para dar palestras ou participar de eventos, alguns em escolas pequenas. Mas, ao chegar, notava um constrangimento no ar. Os organizadores haviam sido ameaçados. E, sem graça, diziam que, se me deixassem falar como viúva, seriam processados na Justiça por Annie. Quero manter o nome dele vivo e influenciar novas gerações de diplomatas, fazer as pessoas discutirem a necessidade de relações equilibradas entre os povos.

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    Muitas vezes fui literalmente desconvidada. Aconteceu esse tipo de coisa no Rock in Rio em Lisboa, onde eu estaria na Tenda Mundo Melhor com o prêmio Nobel da Paz José Ramos-Horta. Vi expedientes semelhantes em produções de cinema. Minha sogra e eu demos depoimento para o filme Quem Matou Sérgio Vieira de Mello?. Precisei ir três vezes a Paris para levar provas de que minha história é verdadeira – eu falava como alguém que viveu com Sérgio. O tribunal francês decidiu em favor de Bernard de la Villardière, um dos diretores do documentário, e ele finalmente pôde ser exibido.

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    CLAUDIA: O que ocorreu depois do atentado?

    Carolina: A explosão foi às 4 da tarde. Passei muito tempo gritando o nome dele. Nem percebi que eu estava sangrando, com estilhaços de vidro nas pernas e na cabeça. Encontrei Sérgio com muita dor, com uma viga sobre as pernas, mas lúcido. Falava em espanhol comigo, em inglês com os outros. Só vieram socorrê-lo três horas depois do atentado. No dia seguinte, esperei a liberação do corpo e corri para o flat onde morávamos.

    Nunca vi tantos seguranças à minha volta. Avisavam que eu tinha menos de uma hora para sair de Bagdá. Achei tudo esquisito; porque eles estiveram ausentes enquanto eu tentava o resgate. O chefe da turma explicou que estavam ali para ajudar. Tranquei as oito malas. Queria levá-las sozinha – por achar estranho o comportamento deles –, mas não deixaram. Eu me lembrava o tempo todo que Sérgio não desejou ir para o Iraque.

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    Vivíamos em Genebra, planejando uma rotina mais calma, ter filhos, ser feliz. E tirar férias, coisa que Sérgio não fazia. Ele vinha de batalhas pesadas, achava que outros podiam assumir a missão. Não acreditava naquele trabalho e daquela maneira, mas se sentiu moralmente obrigado por Kofi Annan (secretário-geral da ONU, a quem Vieira de Mello deveria suceder). A pressão foi enorme.

    Annan insistia, dizendo que era o único capaz de apaziguar os ânimos. Então, ele aceitou impondo duas condições: ficar em Bagdá por apenas três meses e me levar junto. Repetiu várias vezes que não entraria no Iraque sem mim. Ao vê-lo sob os escombros, prometi que não sairia do Iraque sem ele. Depois da sua morte, eu o levaria embora.

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    CLAUDIA: De que maneira impediram você de se despedir de Sérgio?

    Carolina: Ninguém me facilitava a chegada ao aeroporto. O chefe da segurança pessoal de Sérgio, na ONU, informou que no jeep só havia espaço para pessoas, e não para malas. Eu olhei nos olhos dele e falei: “Gabi, você não vai mentir numa hora dessas. Tem certeza de que as malas vão comigo?”. Ele respondeu: “Juro”. Nunca mais as vi.

    Não havia nada demais nelas. Eram cartas, lembranças, coisas sem peso material, mas de alto valor afetivo. No aeroporto, avistei um funcionário sênior das Nações Unidas e informei que seguiria com Sérgio no avião. Ele ligou para alguém do celular, voltou e me pediu para entrar num aviãozinho. Perguntei, de novo, se era o que levava o caixão. Ele afirmou: “Fica tranquila, é este, sim”. Mais uma mentira.

    CLAUDIA: Como terminou a saga?

    Carolina: Eles me fizeram rodar de avião em avião. Do Iraque voei para Jordânia. De lá para Paris, depois para Buenos Aires, onde a rota terminou. Desesperada, comprei passagem para o Rio, onde Sérgio estava sendo velado. Nesse momento, descobri que havia a decisão de criar obstáculos para evitar que eu chegasse a tempo de dar adeus a meu marido.

    Quando a odisseia terminou, o corpo dele acabara de ir para Genebra, onde foi enterrado. Encontrei apenas Gilda, chorando, sem entender a razão de não ser consultada. Ela queria o filho sepultado no Brasil. A ONU foi testemunha da nossa relação. Não poderia ter ignorado isso e permitido que a ex-esposa fosse tratada como viúva nos funerais, me ignorando e depois negando direitos pertinentes.

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    CLAUDIA: Por que você nunca contou esses detalhes?

    Carolina: Meus amigos souberam. Publicamente, preferi falar da guerra a contar o vexame que sofri por ser mulher e jovem. Foi como se um pelotão de fuzilamento atirasse em mim. Eu tinha 30 anos, me senti estuprada, com vergonha, discriminada por não ter um papel assinado. Fui vitimada no atentado e depois por ter sido calada. Meu nome nem sequer figurou na lista oficial dos sobreviventes. Nas cerimônias relacionadas ao atentado, não era chamada nem como familiar.

    Resolvi organizar uma celebração anual no Church Center, em frente à sede da ONU, em Nova York, com Robert Zash, viúvo do meu colega Rick Hooper. Por ser um parceiro gay, também foi rechaçado. Fizemos atos paralelos, na data do ataque, por dez anos, com todos os que ficaram de fora por não representar a família convencional. É um paradoxo, porque veio de uma organização que, no discurso, defende direitos e, em casa, os nega; pratica a intolerância. Fui submetida a isso depois de ter estado na frente de batalha defendendo as cores azul e branca da bandeira da ONU.

    CLAUDIA: Em que momento você se apaixonou por Sérgio?

    Carolina: Ele estava sozinho havia mais de uma década, com separação de corpos firma- da em um tribunal francês. No Timor, nos aproximamos. Trabalhávamos mui- to, mas saíamos para correr. Descobri- mos a coincidência de ideais e outras coisas em comum. Argentinos e brasileiros se parecem. Além disso, ele era um homem íntegro, gentil, amoroso. Às vezes cozinhava para nós dois.

    CLAUDIA:  Como viúva, tem mais força no pedido de investigação do atentado?

    Carolina: Nos últimos dias, ele sabia que alguma coisa ia acontecer. A embaixada da Jordânia em Bagdá havia acabado de sofrer um atentado, fazia um calor de 50 graus, muita gente da nossa equipe estava ficando doente. E Sérgio preocupado. Tínhamos chegado a um ponto de inflexão, o stress minava as pessoas. A missão não avançava, não havíamos conseguido ter ganhos.

    Sempre pedi a instauração de um tribunal independente que apurasse e responsabilizasse os culpados da morte do homem que amei. Mas esse não é o trabalho de uma pessoa só. É preciso mobilizar parceiros, organizações. Criar a consciência da importância de esclarecer aquele fato, que foi sepultado com honras, mas sem investigação, para que não se repita no futuro.

    CLAUDIA: Como você saiu do trauma?

    Carolina: A ONU não me poupou de nada. Nem colaborou. Tive dislalia (distúrbio da fala). Foi o choque das horas que permaneci no prédio tentando salvar Sérgio. Levei anos para me recuperar, e foi a Gilda quem me ajudou. Entrei com meu marido na sede da missão e saí de lá sozinha. Sou outra pessoa… Acho que também me tornei mais forte.

    CLAUDIA: Que futuro você espera para sua vida?

    Carolina: Resgatei a minha verdade, e isso me tirou um peso. Fiz justiça também à verdade de Sérgio, que me amava. Agora já tenho alguma paz. Procuro alcançar a felicidade. Que ela venha, novamente, algum dia. Eu sei que Sérgio, onde quer que esteja, torce sempre por mim.

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