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Brenda Fucuta

"Minha filha nasceu menino": pai conta caminhos que trilhou com filha trans

Brenda Fucuta

28/12/2019 04h00

Foto: Regina de Grammont

Paulo começou a conversar comigo em um almoço na casa de uma amiga. Eu estava com meu filho que, como já contei aqui, se veste com roupas femininas. Paulo me disse que também tinha uma filha trans. Ficamos um pouco sem jeito, os dois. Do meu lado, porque meu filho, adolescente, não se vê como trans. "Sou menino, mas também gosto de ser menina." É desse jeito que meu filho se define – ou não se define, o que é um direito dele.

Paulo, por sua vez, se arrependeu de sua própria abordagem, achou invasiva. Eu soube disso bem depois, quando a conversa se estendeu. Eu não achei invasiva, meu constrangimento tinha outro motivo. Mas, em um assunto como esse, nada é muito claro. Não existem nomes, ainda, para experiências novas de manifestação da identidade e, por isso, durante a entrevista que fizemos, você vai perceber que Paulo oscila entre o tratamento feminino e masculino para o/a filha.

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Paulo tem uma menina de 7 anos, sua caçula, que chamaremos aqui de Gil. Ela nasceu menino. Mas, ainda pequena, Gil começou a se identificar com coisas de menina. Paulo e a mãe (agora ex-companheira) ficaram confusos, tentaram orientar o filho mas, com o passar do tempo, Gil foi pedindo para pintar unhas, usar batom,  usar adereços na cabeça para imitar um cabelo longo, para usar camisetas que poderiam passar como vestidos, ser chamada de menina – Flora à época. E eles aceitaram. Nessa generosa entrevista, Paulo compartilhou comigo – e com você – sua história incomum. A de um pai que luta para que Gil tenha espaço para crescer e se tornar o que deseja.

Como foi a decisão de tratar seu filho como filha?

Foi um processo sem receita, longo, cheio de incertezas, mas com muita confiança no que era melhor para o Gil. Desde pequeno, aos 2 anos, ele foi mostrando que se identificava muito com o universo feminino, principalmente pelo aspecto estético. Gostava de usar camiseta na cabeça para fazer de conta que tinha cabelos compridos. Isso, aliás, acontece muito em meninos que se identificam como meninas. Gil também gostava de usar roupas maiores para imitar vestidos. Um pouco antes, ainda, começou a pintar a unha, a se maquiar. Então, ele passou a pedir que a gente não chamasse ele de Gil, mas de Flora.

Quais foram as incertezas que você citou? 

Eu não sabia se faltavam referências masculinas, tinha muito essa dúvida. Será que Gil sabia a diferença entre homens e mulheres? Será que eu estava dando o exemplo certo? Eu e a mãe dele nos perguntávamos: a culpa era nossa? Ora, achávamos que era só fantasia de criança, que a gente não tinha que reprimir, ora, eu dizia: você é um menino, não pode usar essas coisas.

O que foi que te deu a certeza? 

Vimos uma reportagem no Fantástico sobre um núcleo de pesquisas que funcionava no Hospital das Clínicas [em São Paulo] estudando o comportamento de crianças com incongruência de gênero, esse é o termo médico para pessoas que se sentem ou desconfortáveis com o corpo que nasceram ou confortáveis em ter características dos dois. Aí, percebemos que o que estávamos passando com nosso filho acontecia também em outras famílias. E fomos atrás desse núcleo, que é o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Sexualidade, o único no Brasil que atende crianças com incongruência de gênero e suas famílias. No ambulatório, depois da triagem e várias entrevistas e consultas, soubemos que havia algo diferente no Gil, às vezes Flora. Não é que ele fosse anormal, não havia nada de errado com ele, mas Gil expressava uma identidade de gênero diferente da maioria das crianças. Aí, tivemos a certeza de que devíamos estudar o assunto e cuidar para o que nosso filho tivesse apoio e espaço para desenvolver sua identidade, com o mínimo de sofrimento possível.

O que você viu no ambulatório? 

Vi muita seriedade nos profissionais que nos atendiam e pesquisavam o assunto. Eles não queriam modificar as crianças, queriam acompanhá-las e ajudá-las a conviver bem consigo mesmas. Vi também muito sofrimento, tanto entre as crianças quanto no grupo de pais. Era muito comum ouvir histórias de crianças deprimidas ou que se mutilavam. E não estou falando de adolescentes, mas de crianças mesmo. O Gil tinha 3 anos e pouco quando a gente começou a frequentar o Ambulatório. Lembro de um pai que falou que a filha vivia se machucando, até que ela contou que odiava usar roupas femininas. Um dia, esse pai jogou as roupas dela fora e comprou roupas de menino. e ela parou de se machucar. Isso foi um grande alerta pra gente. Se o Gil estava sofrendo por usar roupas de menino, então, a gente ia comprar outras roupas para ele, e não ficar adaptando. Começamos com uma saia-calça. Depois, passamos para um vestido. Muita gente não entende, mas imagina o sofrimento para uma criança não poder ser quem é? Se expressar como realmente se identifica? Reprimir a identidade de uma criança é uma coisa não só violenta como cruel

E como foi essa transição fora de casa? 

Pois é, uma coisa é a mudança dentro de casa e outra, a dúvida: como tratá-lo fora de casa?  Com o Gil, a dúvida acabou quando aconteceu uma festa de uma amiga da escola. Ele queria ir de menina, vestir roupas de festa, e estava muito seguro da sua posição. Não havia como não apoiá-la, estava decidida.

E por que você acha que tantos pais fazem isso? 

Acho que, principalmente, por desconhecimento. O que não é conhecido, assusta. Parece mais fácil a gente tentar trazer os filhos para as caixinhas, os papéis que consideramos normais. Mas a vida não funciona assim. As crianças não nascem iguais, não crescem iguais. Mesmo tendo características físicas masculinas, por exemplo, uma criança pode se sentir uma menina. Ou se sentir menina e também menino. Ou seja: a identidade do ser humano não cabe apenas nos papéis de homem e mulher. Tentar espremer o filho dentro de uma caixa que não serve para ele é de uma violência enorme que a gente só comete por não entender que a vida é mais complexa e rica do que aprendemos.

Sua filha tem 7 anos hoje. Como ela está? 

Gil está bem. Ela estuda numa escola que é muito receptiva, que aprende que existem diferenças que devem ser respeitadas. Tem dois irmãos que a adoram, pais que a apoiam e que defendem a liberdade da criança de ser o que quer ser. Gil hoje tem cabelos compridos, compridos de verdade, veste roupas de meninas, mas não quer ser tratada apenas como menina, o que eu acho muito interessante e muito novo, uma característica dessa geração talvez, que não precisa se enquadrar em papéis tão fechados de identidade de gênero ou de sexualidade.

Você diz que a escola foi receptiva. Não houve nenhuma dificuldade? 

Houve, claro. Gil, recentemente, foi para um acantonamento. Ela queria muito ir, estava ansiosa com a viagem. Na véspera, a escola avisou que ela ia dormir no quarto dos meninos. Mil coisas me passaram pela cabeça, inclusive o medo de que ela pudesse ser molestada pelos meninos da outra turma, que ainda não estão familiarizados com a situação. Fiquei decepcionado com a escola, mas não havia jeito. Eram regras do local do acampamento. No fim, deu tudo certo, mas imagina uma menina ter que dormir no quarto dos meninos? Foi basicamente isso que aconteceu. E entendo que para a escola é um processo e uma lição aprendida, não para o Gil apenas, mas tantas outras crianças que estão na escola e outras que virão.

E os colegas da escola, como reagem? 

Quando Gil começou a usar short-saia e deixar o cabelo crescer, os colegas começaram a falar sobre isso nas famílias. Então, a escola puxou uma reunião com os outros pais para explicar a história da Gil. O importante era a gente se posicionar como pais responsáveis, que tínhamos estrutura e conhecimento do tema, além do acompanhamento do Hospital das Clínicas. Dissemos que não queríamos mudar a opinião de ninguém, mas queríamos que respeitassem nossa filha. As famílias foram muito receptivas e isso se refletiu na maneira como os colegas tratavam a Gil. Hoje a Flora é apenas mais uma das crianças da escola.

O que você aprendeu como pai? 

Estou aprendendo e estou aberto a aprender. Aprendi que Gil não se enxerga como menino, mas também não é uma menina. Existe uma ansiedade grande dos pais para que se defina logo a identidade, como se fosse mais fácil saber que a partir de tal momento seu filho é uma menina ou vice-versa. Aprendi também que crianças que não têm espaço na família para se expressar podem sofrer de uma forma intensa. Aprendi que devo apoiar meus filhos em suas escolhas e não ter dúvidas sobre isso.

Qual sua maior preocupação? 

Como pai, minha maior preocupação é a presença da Gil em lugares públicos: banheiros de shopping, escola. Quando ela for adolescente, talvez eu me preocupe com a segurança dela das ruas.

Sobre a autora

Brenda Fucuta é jornalista, escritora e consultora de conteúdo. Autora do livro “Hipnotizados: o que os nossos filhos fazem na internet e o que a internet faz com eles”, escreve sobre novas famílias, envelhecimento, identidade de gênero e direitos humanos. Além de entrevistar pessoas incríveis.

Sobre o blog

Reflexões de uma jornalista otimista sobre nossa vida em comum

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