Brasil segurança pública

Para cada policial assassinado em serviço no Brasil, 114 civis foram mortos por agentes de segurança, diz estudo

Levantamento mostra que agentes de segurança pública responderam por 11,2% do total de homicídios, similar a de países da América Latina
Polícia faz ocupação no Jacarezinho, a primeira a receber o projeto Cidade Integrada - 19/01/2022 Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo
Polícia faz ocupação no Jacarezinho, a primeira a receber o projeto Cidade Integrada - 19/01/2022 Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo

SÃO PAULO — No Brasil, para cada policial morto em serviço há 114 civis assassinados por arma de fogo e de forma intencional por policiais em serviço, mostra um estudo patrocinado pela Open Society Foundations e divulgado nesta quarta-feira. A proporção é a maior da América Latina e do Caribe e, de acordo com especialistas, reflete um abuso da força policial no país, incentivado nos últimos anos por lideranças políticas como o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL).

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Os dados são de 2019 e estão no documento "Monitor do Uso da Força Letal na América Latina e no Caribe: 2022", que faz um estudo comparativo entre Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Jamaica, México, Trindade e Tobago e Venezuela. Um dos pontos do estudo é a relação entre policiais mortos e civis mortos por policiais em serviço.

Em números absolutos, o monitor aponta que o Brasil foi também o país em que os policiais mais mataram civis em 2019. Ao todo, 5.350 foram assassinados por disparos intencionais de policiais, contra 5.251 no ano anterior. Segundo Ignacio Cano, pesquisador da Universidade Nacional Autônoma do México e um dos coordenadores do monitor, nunca houve um número tão alto no país.

Ainda de acordo com o estudo, 11,2% dos homicídios no país em 2019 foram provocados por policiais. Neste quesito, o Brasil só perde para a Venezuela, onde um em cada três homicídios foi causado por agentes do Estado. Os dois países superam o limite considerado aceitável por estudiosos, de 10%.

— Vemos claramente os efeitos do incentivo do uso da força por parte do governo federal e também de governos estaduais — diz Ignacio Cano, pesquisador da Universidade Nacional Autônoma do México e um dos coordenadores do monitor. — O uso da força policial deve ser proporcional, o agente só deve usá-la quando a sua vida ou de terceiros estiver em perigo. No Brasil, tivemos mais de 100 mortes de um lado para uma do outro. É desproporcional. E é o indicador mais alto de toda a América Latina e Caribe.

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Enquanto os números mostram que o Brasil tem uma taxa de letalidade policial acima do considerado aceitável, o presidente Jair Bolsonaro continua defendendo a ampliação do excludente de ilicitude. Por meio do projeto, policiais que matam uma pessoa em serviço não seriam mais processados. Diversos projetos sobre o excludente de ilicitude tramitam no Congresso, mas enfrentam resistência de parlamentares e não andam.

Semana passada, o presidente defendeu a aprovação do excludente de ilicitude como uma forma de evitar ocupações de sem-terra. Os policias são parte da base eleitoral de Bolsonaro. Em 2020 e 2021 ele concedeu indultos (perdão judicial) natalinos a policiais e militares envolvidos em casos culposos, em que não há intenção de matar.

Embora os dados sejam de três anos atrás, casos de letalidade policial continuam ocorrendo. Em 28 de dezembro de 2021, o lutador Vitor Reis de Amorim, de 19 anos, foi assassinado enquanto estava em um bar com amigos. Segundo o delegado Leonardo Macharet, que investiga o caso, o disparo saiu da arma de um policial militar. A PM diz que os agentes revidaram um ataque de traficantes.

— (O policial) Tem que fazer o trabalho? Tem. Se ele rendesse o meu filho, meu filho não estaria morto. Porque ele não ia achar nada demais. Nada de errado no meu filho. Ele ia até pedir desculpas — disse Vanelci Ferreira, pai do jovem, durante o enterro do filho.

Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que a proporção contradiz a narrativa de que policiais matam pois enfrentam resistência de bandidos armados:

— Se matassem por resistência, teríamos um número muito diferente, mas o que encontramos é um número de civis mortos muito superior ao de policiais. Isso é reflexo de um modelo de policiamento que privilegia o uso da força de forma abusiva e sem qualquer limitação ou constrangimento. E não há perspectiva alguma de mudança nesse cenário — ressalta.

— São resultados muito ruins e que mostram que o Brasil está mal posicionado em relação ao controle das polícias. É um sinal de alerta no sentido de que estamos nas piores posições e caminhando para lugares mais sombrios — afirma Pacheco, ressaltando que, em 2018, os policiais respondiam por 9,10% das mortes no Brasil.

Em setembro do ano passado, um policial de Sorocaba foi preso acusado de matar Jefferson Rubio de Moura, de 17 anos. O policial abordou o jovem, que estava em uma praça com dois amigos, e atirou nele. Parentes do jovem classificaram o caso como um crime de racismo. "Foi morto na covardia, com um tiro nas costas por tentar correr no susto. Descanse em paz, meu irmão caçula", escreveu nas redes sociais o irmão do jovem, Paulo Roberto Rubio.