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Celina

'Ser dominadora é ser uma mulher empoderada, que deixou de se submeter para dizer quem manda aqui sou eu', afirma dominatrix

Em um jogo que não precisa incluir o sexo, saiba quem são as mulheres que acreditam subverter a lógica machista e dominar os homens
A dominatrix Mistress Charlotte Kolyman Foto: Arion Aleixo
A dominatrix Mistress Charlotte Kolyman Foto: Arion Aleixo

RIO - Um desfile à noite pela Avenida Paulista desperta o olhar dos curiosos. Mistress Charlotte Kolyman, de 32 anos, passeia com roupas de látex acompanhada de um homem de máscara, de quatro e preso em uma coleira, como um cachorrinho. Dominadora profissional há cinco anos, ela sente prazer em ter o controle e brincar com o imaginário de superioridade perante seus submissos — homens na condição de dominados. Eles também podem ser chamados de escravos.

— Já prendi um escravo na mala do carro e o carreguei por cerca de 30 minutos amarrado e amordaçado até o local da sessão. Isso foi bem interessante e divertido. A gente vai para um lado da mente humana ao qual as pessoas não se permitem no dia a dia — diz Charlotte.

A dominatrix Rayssa Garcia Foto: Divulgação
A dominatrix Rayssa Garcia Foto: Divulgação

Rayssa Garcia, de 32 anos, pratica a dominação profissionalmente há sete anos e, para ela, as dominatrix representam o empoderamento feminino. No momento da dominação, ela diz, consegue fazer com que homens poderosos aceitem sua vulnerabilidade.

— Em um mundo em que vemos homens colocando mulheres como submissas a todo momento, ser dominadora, hoje, é ser um mulher empoderada, que deixou de se submeter para dizer "quem manda aqui sou eu" — diz.

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Para Charlotte, o empoderamento feminino está relacionado com a total liberdade da mulher em explorar a sua sexualidade. A dominação é apenas uma das formas de fazer isso.

— Culturalmente é o prazer do homem sempre em maior evidência, enquanto que na dominação feminina o foco somos nós, mulheres. O nosso prazer está em primeiro lugar – diz.

Segundo Camita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da Universidade de São Paulo (USP), dominar alguém é uma forma de estar no controle. Consequentemente, cria-se uma relação de poder que se expressa na execução ou não dos desejos do submisso.

— É empoderamento, mas também uma submissão porque a pessoa pode praticar esse tipo de estímulo ou ato para que o outro se sinta interessado mesmo que ela não esteja — argumenta.

Por isso, é preciso entender que para que a relação seja saudável para ambas as partes, o conceito fundamental em que o BDSM (bondage, dominação, submissão e masoquismo) se apoia é a ideia de que as práticas devem ser sãs, seguras e, principalmente, consensuais. Para além das práticas idealizadas pelo senso comum, envolvendo chicotes, algemas e couro, a modalidade está dentro de um universo fetichista vasto. Entre as atividades mais comuns estão o money slave — homens que sentem prazer em serem usados de forma financeira, pagando tudo para as dominadoras — e a podolatria — prática de adoração aos pés.

Este caso é um dos mais recorrentes. Estima-se que três a cada dez homens tenham admiração por pés. Para eles, a questão é ficar literalmente aos pés da dominadora. Rayssa conta que nos encontros secretos com grupos de escravos eles se tornam tapetes humanos para serem pisados pela mulher. Essa prática é chamada tramplig e está dentro da podolatria.

— A gente faz jantares, temos um mordomo, escravos que servem nosso champanhe como garçons e os que fazem massagens nos nossos pés. Acho que isso é uma experiência bem legal, somos tratadas como rainhas mesmo — diz.

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As sessões precisam de confiança entre as duas partes e não envolvem, necessariamente, sexo. O valor varia com a quantidade de tempo desejado pelo submisso. Em média, são cobrados R$500 por hora. Márcio (nome fictício), de 50 anos, é escravo exclusivo de Mistress Charlotte há cinco anos e explica que o interesse inicial pelo BDSM foi justamente por meio da podolatria e também pela sensação de receber ordens e não estar no comando.

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— É uma sensação maravilhosa massagear, beijar e sentir os pés da rainha. Estou à disposição dela 24 horas, sete dias por semana, e o que ela disser para mim é lei. O que eu mais quero é fazer todas as vontades dela, o que estiver ao meu alcance, assim como ela faz todas as minhas no mundo BDSM. A minha maior felicidade, tudo o que eu mais quero, é fazer a minha rainha muito feliz. — comenta.

Mistress Mahara Foto: Divulgação
Mistress Mahara Foto: Divulgação

Para Mistress Mahara, de 24 anos, a criatividade dos fetichistas é o que mais chama atenção. Mas, quando se tem informação e segurança, as diversas práticas se tornam uma libertação dos próprios julgamentos e limitações, já que há uma expansão da percepção de prazer para além do ato sexual.

— Já conheci um fetichista que pediu para eu gravar um vídeo em que engraxavam as minhas botas. O fetiche dele era ver aquela cena, não era nada sexual. Achei isso bem interessante — pontua.

Muito do que envolve o BDSM ainda é tabu na sociedade, com definições pejorativas. Na opinião de Mahara, a curiosidade que o assunto desperta e os estereótipos reproduzidos — em filmes como "50 tons de cinza", por exemplo — são resultado de falta de informação sobre o tema.

Fetiche ou fetichismo?

Para entender de forma mais ampla e precisa, é importante fazer uma distinção entre fetiche e fetichismo. De acordo com Carmita Abdo, o fetiche serve para incrementar e valorizar o interesse sexual por determinada pessoa. Enquanto isso, no fetichismo, as pessoas não se estimulam com o encontro dos corpos ou com a excitação genital.

—  A única ou preferencial forma de um fetichista obter prazer é através da fricção do seu corpo com algo que não é exatamente uma outra pessoa, mas algo que pertença a ela. Por exemplo, uma mecha de cabelo não tem conotação sexual, mas é um elemento relacionado a outra pessoa — explica.

Além disso, Carmita Abdo deixa claro que, se as duas partes envolvidas estiverem em comum acordo, os fetichistas não podem ser considerados casos patológicos. Apenas quando alguém está infeliz na relação dominante e dominado é que uma terapia de base sexual pode ser aplicada. Nesses casos, encaminha-se a sexualidade para outras possibilidades, para algo mais gratificante para os envolvidos.

Por lidar com os mais diversos tipos de fetiches e pessoas, Mistress Charlotte criou, há dois anos, a Confraria das Dommes, grupo de dominadoras que buscam aprender umas com as outras. Além da união, a Confraria promove festas fetichistas e serve como base de apoio que mantém a premissa “são, seguro e consensual”.

— Eu acho muito importante o relacionamento de pessoas dentro do meio, isso nos fortalece. Se acontece alguma coisa fora dos nossos preceitos, as pessoas já tomam as devidas providências. Conviver com um grupo com que a gente se identifica é essencial — diz Mistress Mahara, integrante da Confraria das Dommes.

*Estagiária sob supervisão de Renata Izaal