Cultura Flip

Atração da Flip, rapper Gaël Faye usa a própria história para narrar a guerra aos olhos de um menino

'Meu pequeno país', do autor nascido no Burundi e radicado na França, foi traduzido para 29 idiomas e vai virar filme
O rapper e escritor francês Gaël Faye, autor de "Meu pequeno país" (Rádio Londres) Foto: Philippe Nyirimihigo / Divulgação
O rapper e escritor francês Gaël Faye, autor de "Meu pequeno país" (Rádio Londres) Foto: Philippe Nyirimihigo / Divulgação

SÃO PAULO – Gaël Faye compôs seu primeiro poema aos 13 anos, quando ainda vivia no Burundi, um diminuto país africano, vizinho de Ruanda, dilacerado por uma sangrenta guerra étnica entre tútsis e hútus. Os versos eram sobre o medo. Faye continuou escrevendo quando a guerra o expulsou do Burundi e ele foi viver com a mãe e a irmã caçula nos arredores de Paris. Na França, descobriu que era negro. No Burundi, meninos mestiços como ele, filho de um francês e de uma refugiada ruandesa, eram considerados brancos apesar da pele cor de caramelo. No exílio parisiense, os versos tentavam dar conta de sua mestiçagem e da saudade que sentia do Burundi.

Já adulto, depois de largar um emprego no mercado financeiro londrino, Faye resolveu adicionar a batida do rap e a malemolência dos ritmos africanos – e brasileiros! – a seus versos. Tocou com músicos brasileiros perdidos em Paris e conheceu Jorge Amado, o choro, Criolo e Emicida. Quando era menino, no Burundi, ele já ouvia dos batuques do Olodum.

Depois de lançar discos que combinam rap, soul, jazz, rumba e versos sobre o exílio, Faye foi provocado pela editora Catherine Nabokov a escrever um romance. Catherine o conheceu porque seu filho adolesdente curtia rap. Faye topou e “Meu pequeno país” foi publicado na França em 2016. Venceu o Goncourt de Lycéens, prestigioso prêmio literário para estreantes, vendeu mais de 850 mil  exemplares e foi traduzido para 29 idiomas. A edição brasileira sai em junho, um mês antes de Faye desembarcar no Brasil para participar da 17ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip.

– O exílio foi muito difícil para mim – disse Faye, em entrevista por telefone ao GLOBO, de Paris – Quando eu era criança, nós visitávamos parentes na França, no verão, mas eu nunca quis viver na Europa. Eu era feliz no Burundi. Foi doloroso para mim quando fecharam as escolas e aviões franceses foram nos buscar. Os políticos reclamam injustamente que africanos estão vindo para a França. Nós só viemos porque não tivemos escolha. Eu preferiria viver no Burundi, que era o meu paraíso.

Capa do livro "Meu pequeno país", do rapper e escritor francês Gaël Faye Foto: Divulgação
Capa do livro "Meu pequeno país", do rapper e escritor francês Gaël Faye Foto: Divulgação

“Meu pequeno país” é narrado por Gabriel – ou Gaby –, um menino que completa 11 anos em 1993, logo após a eleição de Melchior Ndadaye, o primeiro presidente democraticamente eleito do Burundi. Ndadaye, um hútu, foi assassinato poucos meses depois por oficiais tútsis, dando início a uma guerra étnica que logo respingou no país vizinho, Ruanda, e resultou em um genocídio: 800 mil mortos entre abril e julho de 1994.

Gaby é filho de um francês e de uma refugiada ruandesa. Vive num bairro rico de Bujumbura, capital do Burundi, e brinca na rua com os moleques da vizinhança, alguns deles também filhos de europeus. Um deles é Gino, que explica a Gaby por que eles, mestiços e filhos de refugiadas ruandesas, precisam forjar uma “identidade”. A guerra não atrapalha a arruaça nos meninos, que continuam a roubar mangas, atanazar os vizinhos e arrumar briga. Gaby só percebe a guerra aos poucos. O pai dele não discutia política perto dos filhos. Os pais de Faye também não.

– Minha geração sofreu com o silêncio de nossos pais. Crescemos pensando que vivíamos em paz. Não sabíamos que uns de nós eram hútus e que outros eram tútsis. Quando veio a guerra, já era tarde demais – disse Faye. – Por causa desse silêncio, temos que investigar o que aconteceu no Burundi e em Ruanda nos anos 1990. Não foi só um conflito étnico. Não podemos esquecer do contexto político, da colonização, de como nossa identidade foi construída. Eu falo disso tanto no meu livro quanto nas minhas canções, porque tem gente que gosta de ler e gente que gosta de rap.

Faye gosta de poesia. A prosa de “Meu pequeno país” é sinestésica e fresca, graças ao olhar e ao vocabulário infantis de Gaby.

– Foi difícil encontrar o tom de voz adequado a uma criança. O perigo era criar uma voz superficial – explicou Faye. – A infância é feita de sensações. Gaby é afetado não só pela guerra dos adultos, mas também pela natureza, por elementos microscópicos, luzes, barulhos, cores. Quis descrever essa mistura toda, porque a guerra não vem como uma explosão, ela vem aos pouquinhos.

A adaptação cinematográfica de “Meu pequeno país”, assinada pelo cineasta francês Éric Barbier, foi rodada em Ruanda entre fevereiro e março deste ano. Enquanto espera a estreia do filme, Faye tenta terminar outros dois livros já começados. Um deles é sobre um roqueiro africano. O outro é um romance sobre o genocídio ruandês baseado em entrevistas com sobreviventes.

– Quero escrever sobre o lugar a que eu pertenço. Comecei a escrever, ainda criança, por medo da morte, da minha morte e da morte quem estava ao meu redor. Continuei escrevendo para manter minha ligação com o Burundi. É de lá que eu vim. É com ele que eu sonho à noite.

Às vezes, Faye também escreve sobre outros lugares. No ano passado, junto com Flávia Coelho, cantora carioca radicada na França, ele lançou a canção “Balade brésilienne” (Balada brasileira). A canção flerta com o samba, descreve a noite brasileira e tem versos em português: “Vamo' a pé, caminhar na praia/ E cair na gandaia/ Nas ondas do amor”.

“Meu pequeno país” Autor: Gaël Faye Tradução: Maria de Fátima Oliva do Coutto Editora: Rádio Londres Páginas: 192 Preço: R$ 59,90