RIO — Como sugere o título,
“Era uma vez em... Hollywood”
, o nono filme de
Quentin Tarantino
, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, é como um conto de fadas. Ou uma carta de amor a uma Los Angeles ensolarada, onde estrelas da indústria, então dominada por um punhado de grandes estúdios, podiam aparecer de repente na bilheteria de um suntuoso cinema de rua, diante de letreiros que ostentavam sucessos que virariam clássicos.
Mas tudo se passa no ano de 1969, marcado por transformações culturais — e uma tragédia tão chocante que minou toda uma filosofia de vida baseada na paz e no amor. É nesse contexto que se encontra Rick Dalton. Ator de meia-idade, vivido por
Leonardo DiCaprio
, ele está em franco declínio profissional diante de uma nova geração de astros que desponta e dos derradeiros suspiros da glamorosa Era de Ouro de Hollywood, prestes a dar lugar a um novo modelo de produção.
Quentin Tarantino tinha apenas 6 anos em 1969, mas a efervescência cultural da época não lhe saiu da memória:
— A TV ou o rádio estavam sempre ligados. O cinema era passatempo extremamente popular. Estávamos sempre em contato com algum tipo de mídia. Mesmo criança, percebia a existência de uma cultura jovem e hippie que, embora parecesse fenômeno novo, estava mudando a sociedade aos poucos.
A única companhia de Rick, além do álcool, é Cliff Booth (
Brad Pitt
) — dublê de corpo, motorista, faz-tudo e amigo do chefe. A relação entre eles é o coração do filme, para muitos o mais agridoces e emotivo da carreira do diretor americano de 56 anos.
Mas “Era uma vez...” é um mosaico de uma época, e, dessa forma, sua narrativa passeia sem compromisso também por cenários daquela Hollywood idealizada. Há festas em mansões frequentadas por Steve McQueen (Damian Lewis), sets de filmagem onde um arrogante Bruce Lee (Mike Moh) gaba-se de suas habilidades físicas, e esquinas ocupadas por hippies pedindo carona. Toda a recriação de época é potencializada pela direção de arte de Nancy Haigh, indicada ao Oscar por sete filmes (venceu com “Bugsy”, de 1991).
A atriz Margot Robbie vive a vítima mais famosa do bando de Charles Manson. Jovem estrela de Hollywood na época, Sharon Tate tinha 26 anos e estava grávida do marido, o diretor Roman Polanski, quando foi brutalmente assassinada.
Steve McQueen (Damian Lewis)
Astro de "Billions", Damian Lewis vive um dos maiores astros da era de ouro de Hollywood, Steve McQueen. Segundo reportagens da época, ele era outro alvo potencial do culto de Manson. McQueen morreu de câncer em 1980, aos 50 anos de idade.
Roman Polanski (Rafał Zawierucha)
Marido de Sharon Tate, Polanski era um jovem diretor já reconhecido por filmes como "O bebê de Rosemary". Ele estava em Londres trabalhando em um filme quando Tate foi morta. Em 1977, o franco-polonês foi acusado de estuprar uma adolescente de 13 anos e, desde sua condenação no ano seguinte até hoje, é considerado um fugitivo pela Justiça americana.
Charles Manson (Damon Herriman)
Talvez um dos assassinos mais infames da história, Manson comandou o bando que aterrorizou Los Angeles no fim dos anos 60 e marcou o fim do movimento hippie. O criminoso
morreu na prisão em 2017, aos 83 anos
.
Mama Cass (Rachel Redleaf)
Mais conhecida pela série Atypical, Redleaf vive Mama Cass, vocalista da banda The Mamas & the Papas, que marcou os anos 60 com a música "California Dreamin'". Em 1969, Cass tentava a carreira solo enquanto lutava contra o vício em heroína. A cantora morreu aos 32 anos, em 1974.
O ícone das artes marciais luta com o personagem de Brad Pitt, em uma cena criticada pela família do ator. Lee morreu tragicamente aos 32 anos, em 1973. Segundo uma nova biografia, um choque térmico teria causado a morte.
Wojciech Frykowski (Costa Ronin)
Depois de viver o agente da KGB Oleg Burov em "The americans", Costa Ronin vive uma das vítimas do ataque do bando de Manson à casa de Sharon Tate. Roteirista aspirante, o polônes era amigo de Polanski e estava em Los Angeles a pedido do diretor.
Jay Sebring (Emile Hirsch)
Ex-namorado de Tate, Sebring foi um dos primeiros cabeleireiros a ganhar fama por cuidar dos fios de celebridades como Frank Sinatra e Warren Beatty. Foi uma das vítimas do bando de Manson.
Wayne Maunder (Luke Perry)
Vítima de um AVC no começo do ano
, o astro de "Barrados no baile" participa do filme de Tarantino como Wayne Maunder, ator canadense conhecido nos anos 60 pela série "Lancer" e filmes de faroeste. Maunder morreu em 2018, aos 80 anos.
James Stacy (Timothy Olyphant)
Stacy despontou para a fama com a série de faroeste "Lancer", exibida na TV americana entre 1968 e 1970. O ator perdeu um braço e uma perna em 1973, durante um acidente de moto. Em 1995, foi condenado por molestar uma menina de 11 anos. Morreu em 2016 aos 79 anos.
Nicholas Hammond é um remanescente da Hollywood antiga: ele foi Friedrich von Trapp no musical "A noviça rebelde". Hoje aos 69 anos, ele encarna o ator e diretor Sam Wanamaker, que dirigiu a série "Lancer". Simpatizante do comunismo, Wanamaker fugiu para a Inglaterra em 1952, no auge da perseguição macartista, e recuperou o Globe Theatre de Londres, teatro onde Shakespeare apresentava suas peças.
Lynette "Squeaky" Fromme (Dakota Fanning)
Fromme foi uma das primeiras e mais fiéis seguidoras de Manson. Em 1975, chegou a ameaçar de morte o presidente americano Gerald Ford. Atualmente com 70 anos, ela deixou a prisão em 2009, após cumprir uma pena de 34 anos.
Catherine "Gypsy" Share (Lena Dunham)
Integrante da família Manson, Share não esteve diretamente envolvida na matança na casa de Sharon Tate. Depois de ser liberada da prisão em 1975, ela concedeu diversas entrevistas condenando cultos.
Sobre os hippies paira uma constante tensão. Foi um grupo de seguidores do movimento, afinal, que, em 9 de agosto de 1969, sob o comando do falso guru
Charles Manson
, assassinou, entre outros, a atriz
Sharon Tate
, casada com o diretor
Roman Polanski
e grávida de oito meses e meio. A matança traumatizou Hollywood, manchou a cultura hippie às vésperas do Festival de Woodstock e até hoje inspira filmes e livros.
Tratamento dado às mulheres vira polêmica
Tarantino já repetiu várias vezes que “Era uma vez...” não é um filme “sobre” o caso. Mas está tudo lá (ou quase).
Margot Robbie
vive Sharon, Damon Herriman interpreta Manson, e Rafal Zawierucha encarna Polanski.
— Para mim, a maneira como Manson se aproximou de homens e mulheres e conseguiu fazer com que eles se submetessem a suas ideias ainda parece um mistério insondável — observou o diretor, no Festival Cannes, onde o filme fez sua estreia mundial, em maio. — Mas esse mistério em torno de sua figura também explica o fascínio da mídia por ele. Por mais que você aprenda a respeito da mente de Manson, tudo sobre ele fica mais obscuro. Esse desconhecimento é o que causa frustração.
Como contraponto ao evento brutal, existe no filme uma evidente homenagem à figura de Sharon Tate, retratada como a personificação da doçura e inocência. É também ao redor dessa personagem que gira a maior polêmica do longa, alvo de críticas desde Cannes, onde foi exibido em competição 25 anos após “Pulp fiction” (1994) levar a Palma de Ouro.
Na ocasião, uma
jornalista questionou Tarantino sobre os poucos diálogos
dados a Margot durante as quase três horas de duração do longa. Irritado, o diretor foi ríspido (“Rejeito a sua hipótese”, rebateu, encerrando o papo). Desde então, porém, o debate sobre como Tarantino trata as mulheres em “Era uma vez...” — e em seus outros filmes — se intensificou.
Para Aisha Harris, do “New York Times”, Margot “entra e sai do filme como uma gazela num documentário sobre a natureza”, sem muito a fazer a não ser sorrir enquanto caminha em câmera lenta, como figura decorativa. A revista “Time” analisou toda a filmografia do realizador e concluiu que só 27% dos diálogos são ditos por mulheres. E Roy Chacko, do jornal “The Guardian”, sentenciou: “É hora de cancelar Quentin Tarantino".
Até o momento, não colou: “Era uma vez...” mantém uma taxa de aprovação de 85% no agregador de críticas “Rotten tomatoes”. Talvez pelo final surpreendente (
não, não vamos contar
). Nas bilheterias, o resultado também é bom. A estreia, aliás, foi a melhor da carreira de Tarantino.
O filme faturou US$ 41 milhões em sua abertura nos EUA
.