Cultura

Novo romance de Luiz Ruffato retrata a falta de diálogo entre as classes sociais no Brasil

Em 'Um verão tardio', o escritor volta a Cataguases, a cidade mineira onde nasceu
O escritor Luiz Ruffato em seu apartamento, em São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
O escritor Luiz Ruffato em seu apartamento, em São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

SÃO PAULO – Luiz Ruffato aprendeu com Gustave Flaubert , autor de “Madame Bovary”, que todo livro só pode ser escrito de um jeito e cabe ao romancista descobrir como cada história pede para ser contada. Ruffato experimentou técnicas e gêneros literários diversos para cumprir a advertência de Flaubert: atualizou o romance epistolar em “De mim já nem se lembra” e caprichou no realismo na pentalogia “Inferno provisório”.

Em “O verão tardio”, seu novo romance, Ruffato optou por reciclar o fluxo de consciência. O narrador é Oséias, um homem de meia-idade que volta para Cataguases, a cidadezinha mineira onde nasceu, depois de 20 anos trabalhando como representante comercial em São Paulo. Ele descreve os cinco dias que passou a vagar por Cataguases, misturando as percepções do presente com as dolorosas lembranças do passado.

Oséias narra sempre no presente e, ao contrário do que sugere o clichê, seu fluxo de consciência não é esparramado e sentimental. Ele parece um operário diante de uma linha de montagem, descrevendo só o que é repetitivo e literal: “urino”, “apago a luz”, “chaveio a porta”.

Operários, aliás, povoam os romances de Ruffato. Em “Inferno provisório”, ele recriou as angústias e andanças do proletariado brasileiro, dos anos 1950 à eleição de Lula. “O verão tardio” junta as inovações formais com a discussão, frequente nos livros do escritor mineiro, sobre as classes sociais brasileiras.

—“Inferno provisório” termina no dia 31 de dezembro de 2002, na corrida de São Silvestre, porque eu pensava que estávamos todos correndo na mesma direção. Mas será que estávamos mesmo? — diz Ruffato. — Em “O verão tardio”, eu quis retomar essas reflexões a partir do que estamos vivendo hoje.

Diferentemente dos personagens dos outros romances de Ruffato, que vinham de Cataguases — terra natal do escritor — para ganhar a vida em São Paulo, Oséias volta para interior depois do desmoronamento de sua vida de classe média na metrópole. Ao retornar, encontra uma Cataguases violenta, suja e intolerante.

— O pessoal de Cataguases diz que eu só mostro o lado ruim da cidade. Não sou persona grata por lá. Volto com frequência, mas não deixo de ser “aquele rapaz que escreve livros”, filho da lavadeira e do pipoqueiro — conta. — Apesar disso, eu sempre achei uma felicidade ter nascido em Cataguases, porque a cidade é um microcosmo do Brasil. Quando a nossa economia era o café, tinha café em Cataguases. Quando veio a indústria, houve indústria em Cataguases. Agora que a indústria enfrenta problemas, esses problemas também aparecem lá.

A tensão entres as classes sociais — e como elas se relacionam no Brasil atual — aparece o tempo todo em “O verão tardio”. Oséias se espanta ao descobrir quais de seus antigos colegas de escola conseguiram ascender socialmente e por quais meios. Percebe também que alguns nunca conseguiram se livrar do peso de sua origem social pobre, por mais dinheiro que tivessem conseguido acumular. Um deles é sua irmã, Rosana, que sempre se envergonhou da pobreza familiar — o pai era operário; a mãe, costureira — e queria ser filha de sua madrinha rica.

Além de Rosana, que posa de madame com o dinheiro talvez ilícito do marido, Oséias tem outros dois irmãos vivos (e uma outra irmã, Lígia, que se suicidou). Isinha é pobre, evangélica e casada com um alcoólatra. João Lúcio se casou com uma moça rica, filha da aristocracia mineira, e acumulou um patrimônio invejável. Os irmãos não conversam. “A tia Isinha é muito pobre pra gente, e o tio Jôjo, muito rico…”, diz Tamires, filha de Rosana, quando Oséias pergunta se ela pouco vê os tios.

Apesar de escrever romances políticos, onde dá voz aos pobres que pouco aparecem na ficção brasileira contemporânea, Ruffato não crê que a literatura possa ajudar a reconstruir o diálogo social rompido.

"O Verão tardio", romance de Luiz Ruffato Foto: Divulgação
"O Verão tardio", romance de Luiz Ruffato Foto: Divulgação

— O bacana é que o discurso literário engloba todos os outros discursos, como o sociológico e o filosófico, mas continua sendo discurso literário. A literatura aponta problemas e propõe reflexões, mas não é seu papel oferecer uma solução. Isso é tarefa de outras instâncias — diz. — É por isso que, independente de qual seja o governo, sempre vou ser oposição.

Ruffato acaba de voltar de Berlim, onde deu palestra sobre a política brasileira. Ele também escreveu um perfil do presidente Jair Bolsonaro para um livro sobre populismo, de uma editora italiana. Amanhã, o escritor lança “O verão tardio” na Livraria da Travessa, em Ipanema, às 19h. Antes, às 9h, ele participa do Cavalo’s Day, na PUC-Rio. “Eles eram muitos cavalos” (2001), seu primeiro romance, se passa no dia 9 de maio de 2000, em São Paulo. Há três anos, nesta data, ele tem uma conversa com alunos da PUC, organizada pelo professor Sergio Mota.

Serviço:

"O verão tardio”

Autora: Luiz Ruffato Editora: Companhia das Letras. Páginas: 232 páginas. Preço: R$ 49,90.

TRECHO: “Encontro-me sentado na poltrona de um ônibus. Lá fora, a minúscula rodoviária de Cataguases, a mesma desde a minha infância. Pessoas abraçam-se na plataforma, passarinhos chilreiam nas árvores, da televisão escorrem notícias, o cheiro de óleo diesel se mistura à morrinha do ar condicionado. Miro o rapaz de uniforme, “Não foi nada, estou bem, obrigado”, e esforço para levantar. “Quer uma ajuda?”, ele pergunta. “Não, não precisa”, respondo, “Estou bem”. Num empuxo, consigo me pôr de pé, e, amparando-me, esquadrinho o bagageiro, percebo a mochila em suas mãos. Ele cede a passagem. As pernas titubeiam no corredor estreito, alcanço a escada e desço com dificuldade, defrontando uma pequena aglomeração que espia curiosa. O rapaz me entrega a mochila; o motorista que o acompanhava exclama, apressado mas procurando mostrar-se cordial, “Que susto!”, entra novamente no ônibus, cerra a porta e dá a ré. Devagar, o grupo se dispersa. Penetro no pequeno salão, onde se localizam os guichês de venda de passagens e transeuntes aguardam os horários de partida e chegada, desabo no banco de madeira. A meu lado, a velha banguela, parecendo um pintinho despenado, encara-me, espantada. A testa, os pés e o sovaco encharcados de suor. Uma mulher, lenço na cabeça, esfrega um pano molhado no piso de cerâmica vermelha. Limpo os óculos na fralda da camisa. O relógio na parede marca oito e meia. O ar quente da manhã enche meus pulmões e súbito me sinto melhor.”