Brasil História

A festança dos mortos

México desafia tristeza associada ao Dia de Finados com comida, música, irreverência e costumes dos tempos pré-hispânicos

Cores: caveiras artesanais decoradas conferem leveza à data ligada à melancolia
Foto: Divulgação/Mauricio Marat/Inah
Cores: caveiras artesanais decoradas conferem leveza à data ligada à melancolia Foto: Divulgação/Mauricio Marat/Inah

RIO - A imagem da morte associada ao medo e à tristeza não se aplica ao Dia de Finados no México. Os mexicanos desafiam o pesar da data com alegria e irreverência: montam altares coloridos em casa com flores e comida dedicados aos mortos, reúnem-se para limpar os túmulos de entes queridos, até levam grupos de mariachis aos cemitérios. Não que não haja choro ou luto. Mas os mexicanos acreditam que, nessa época, os mortos voltam para casa para reencontrar suas famílias. E é uma oportunidade de recriar — simbolicamente, por supuesto — os momentos felizes de convivência com os parentes que já não estão ali. A prática, no mínimo inusitada em comparação com a maioria dos costumes ocidentais, é uma tradição antiga incorporada à cultura mexicana, e por isso mesmo, muito natural no país.

— Ao longo de várias gerações, esse hábito criou um sentimento de união entre os que se foram e os que ficaram, o que também explica por que a atitude diante da perda costuma ser encarada como uma mudança, e não como o final de algo — disse ao GLOBO o arqueólogo Orlando Casares, do Instituto Nacional de Antropologia e História do México (Inah), em Mérida. — Não é algo a ser receado, e sim esperado, por isso se celebra com banquetes, risos e tudo aquilo que faça recordar os entes queridos.

O costume vem dos povos pré-hispânicos, que já traziam a concepção de que a morte é parte do ciclo da vida, e que deve ser respeitada, não temida. Astecas, maias e toda a imensa diversidade de grupos indígenas mesoamericanos dedicavam vários rituais a divindades relacionadas à morte, tidas por eles como responsáveis por influenciar o que acontecia com os vivos. Em celebrações de nascimentos, sacrifícios, plantações ou colheitas, a morte era um elemento sempre presente.

— Desde tempos pré-hispânicos, os mortos assumiram uma condição sagrada por sua relação com uma série de divindades. Acredita-se que eles estão ligados à atividade agrária, que ajudam a provocar a chuva, amenizam tempestades, evitam inundações e favorecem o crescimento de plantações. Em alguns lugares do Pacífico mexicano, crê-se que os mortos trabalham para os vivos, e eles são recompensados com uma grande festa — conta ao GLOBO o antropólogo Arturo Gómez Martínez, do Museu Nacional de Antropologia, na Cidade do México.

Influência do catolicismo

Com a chegada dos espanhóis e a repressão da Conquista, vieram as mudanças. Elementos coloniais associados ao catolicismo, como imagens de santos e velas, invadiram as oferendas. E as homenagens antes realizadas em vários dias acabaram concentradas nesta época do ano, em consonância com o calendário religioso católico.

Nas áreas rurais mexicanas, porém, onde povos indígenas ainda resistem às influências dos centros urbanos e do Halloween do país vizinho, as festividades não se restringem a uma só data ou estilo. Entre os mazatecos, no estado de Oaxaca, por exemplo, a celebração começa desde 29 de outubro, com banquetes dedicados aos defuntos e oferendas nos cemitérios. As cores vibrantes amarela e alaranjada das flores de cempaxóchitl — também chamada de “flor dos mortos” — atrairiam e guiariam os defuntos no caminho ao reencontro com a família. Já os nahuas, otomís e outros grupos indígenas do centro do país costumam até jantar nos cemitérios nesta época para “desfrutar” da comida com os entes queridos falecidos. No Sudeste do México, a prática vai além:

— Antes da festividade, os maias exumam, limpam e levam os ossos dos mortos para casa, para que eles presidam as festas nos altares, envolvidos em tecidos bordados. Quando acaba a comemoração, eles são devolvidos aos túmulos — conta Gómez Martínez.

Os simbolismos do culto pré-hispânico à morte — e aos mortos — são menos visíveis nos centros urbanos, mas também estão ali: as festas com música nos cemitérios, as rezas e as oferendas de comidas e flores preparadas com antecedência e esmero.

— O estilo dos altares pode variar, mas os mais comuns são montados com objetos que pertenciam aos defuntos e fotografias deles, além de suas comidas e bebidas preferidas. Também há velas e, no caso de crianças, o altar ganha mais cores e seus brinquedos favoritos — enumera Casares.

Também é popular no país a Santa Morte, representada com a imagem de um esqueleto com vestes de santa. Apesar da temática em comum, ela não vem das cerimônias ligadas ao Dia de Finados.

— A Santa Morte surge da própria visão mexicana sobre a morte, desde tempos pré-hispânicos, em contraste com o catolicismo taxativo que a encara como um inimigo, sob o argumento bíblico de que Jesus a venceu — explica Casares. — E ela aparece com uma variação à concepção mexicana da morte, vista como uma santa, quase uma ‘outra personalidade’ da Virgem de Guadalupe.

Os devotos da Santa Morte costumam ser pessoas com profissões de risco, que então rezam para ela em busca de proteção — ou rogam por uma morte sem dor. Nos últimos anos, com o aumento da violência e o combate aos cartéis de drogas no México, a veneração acabou mais associada aos traficantes. Mas, apesar de polêmicas e desvirtuações, não se restringe a eles. A Santa Morte tem muitos santuários espalhados país afora.

Caveiras de açúcar e papelão

Longe de controvérsias estão as caveiras coloridas feitas de papelão ou açúcar, que surgem numa tentativa de estender a “presença” dos entes queridos. Na Cidade do México e em boa parte do centro do país, é comum representar o falecido com uma caveira artesanal caracterizada com elementos que remetem à profissão que ele teve em vida. Também é de praxe dedicar a amigos e familiares versinhos gaiatos e bem-humorados nos quais a morte é o tema — chamados de calaveras , caveiras, em espanhol.

Antigas ou mais recentes, são mostras simples de apreço, aliadas à característica de um povo — nisso semelhante ao brasileiro — de rir e fazer troça dos desafios e percalços da vida. Uma marca, com o perdão do trocadilho, aparentemente imortal nos mexicanos.