Análise de cientista britânico é insuficiente para apontar eficácia da ivermectina contra a covid-19

Para defender ‘tratamento precoce’ do governo federal, site ignora limitações de estudo liderado por pesquisador da Universidade de Liverpool

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Por Samuel Lima
Atualização:

Uma análise liderada pelo pesquisador Andrew Hill, da Universidade de Liverpool, no Reino Unido, é insuficiente para comprovar os benefícios do tratamento com ivermectina contra a covid-19, ao contrário do que sugerem conteúdos em circulação no Facebook. Uma postagem do site "Brasil Sem Medo" teve mais de 1,3 mil compartilhamentos alegando que os cientistas teriam apontado a droga "como tratamento eficaz e acessível" ao reduzir em até 75% as mortes pela doença.

Postagem da página 'Brasil Sem Medo' alega que estudo concluiu pela eficácia da ivermectina contra a covid-19, mas autores entendem que mais testes são necessários. Foto: Reprodução / Arte Estadão

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O artigo científico foi compartilhado em 19 de janeiro, no site Research Square, em formato de preprint -- o que significa dizer que ainda não passou pela avaliação por pares, nem foi publicado em revistas científicas. Nele, os próprios pesquisadores afirmam que os resultados são preliminares e que estudos mais robustos precisam ser feitos antes que a droga seja aprovada pelas agências regulatórias para o tratamento do novo coronavírus.

Hill e cientistas de universidades de 13 países analisaram dados de 18 ensaios clínicos randomizados (em que os pacientes são escolhidos de forma aleatória para receber a substância) que investigaram a eficácia da ivermectina. Cinco deles foram publicados em revistas científicas, seis foram coletados em formato de preprint, outros seis ainda não haviam sido publicados e um deles teve os resultados compartilhados em uma plataforma de testes clínicos. 

No trecho em que analisam o potencial do vermífugo para evitar mortes por covid-19, os cientistas consideraram seis ensaios que tiveram ao menos dois óbitos. Somados, os estudos envolveram 1.255 pessoas, com 71 mortes. Os dados indicaram que, entre os pacientes que receberam ivermectina, 2,1% tinham morrido pela doença, contra 9,5% no grupo controle.

Os pesquisadores acreditam que o uso da ivermectina pode ter aumentado em 75% as chances de sobrevivência dos pacientes, além de ter influenciado na redução dos marcadores inflamatórios, na eliminação do vírus e no tempo de recuperação dos pacientes. Por outro lado, deixam claro que as evidências não são conclusivas e precisam ser verificadas em ensaios clínicos "maiores e devidamente controlados".  "Apesar da encorajadora tendência que esses dados demonstram, eles ainda não são uma evidência suficientemente robusta para justificar o uso ou a aprovação regulatória da ivermectina", escrevem no artigo.

Uma das principais limitações da análise é que ela é feita em cima de uma base de dados secundária, obtida a partir de "ensaios em diferentes partes do mundo que não foram originalmente pensados para serem compatíveis". Essa condição resulta em diferenças relevantes em termos de dose, duração de tratamento e características dos grupos de pacientes, por exemplo. Além disso, a maioria dos testes incluídos na análise não passaram pela revisão por pares e, por essa razão, estão mais sujeitos a erros -- assim como o próprio artigo.

Em entrevista ao site UOL, o cardiologista no Hospital Universitário da USP e editor do periódico científico Circulation: Cardiovascular Imaging Marcio Sommer Bittencourt criticou a metodologia por entender que existem fortes discrepâncias entre os estudos analisados. "A maioria dos estudos escolhidos não é duplo-cego nem possui grupo placebo, então, o médico sabendo, ele pode resolver tirar alguns participantes do estudo, caso avalie o quadro de determinada pessoa como grave", disse.

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A postagem da página "Brasil Sem Medo" ignora essas limitações no conteúdo viral. A fonte mencionada no texto -- uma notícia publicada pelo jornal inglês Financial Times na terça-feira, 19 -- utiliza o título "Antiparasitário pode reduzir chance de morte por covid-19 em até 75%" e destaca logo abaixo que os pesquisadores estão otimistas, mas ainda defendem a necessidade de mais estudos.

O site afirma ainda que a ivermectina "faz parte do protocolo de tratamento precoce da Covid, recomendado pelo Ministério da Saúde", fazendo propaganda da orientação do governo federal que é repudiada por entidades médicas e pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Cobrado pelo presidente Jair Bolsonaro, o Ministério recomenda prescrição de uma série de medicamentos sem eficácia comprovada contra a doença. O Estadão Verifica e o Projeto Comprova desmentiram diversos boatos sobre a eficácia desse tipo de tratamento desde o início da pandemia.

Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.

Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook  é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas:  apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.

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