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O massacre que matou 120 pessoas no México está no coração de "Roma"

Cena de "Roma": de uma janela, a história trágica do México - Divulgação
Cena de "Roma": de uma janela, a história trágica do México Imagem: Divulgação

Tiago Dias

Do TAB, em São Paulo

27/12/2018 04h00

Na cena-chave de "Roma", novo filme do mexicano Alfonso Cuarón, disponível na Netflix, um grupo de pessoas observa, do alto de um prédio, a rua explodir em atos violentos.

Não há explicação ou contexto para aquela manifestação, o que certamente fez o público de outros países coçar a cabeça com uma narrativa que não está em primeiro plano, mas que faz parte do coração do filme: a divisão racial no México e a formação silenciosa de um conflito político que culminou na morte de pelo menos 120 pessoas.

Em 10 de junho de 1971, uma manifestação de estudantes contra a opressão do governo Luis Echeverría Álvarez foi atacada pelos "Halcones" (Falcões, em português), um grupo paramilitar formado por jovens treinados pelo regime. O episódio ficou conhecido como Massacre de Corpus Christi - "El Halconazo" é outro nome dado -, e virou símbolo da desigualdade na então pseudodemocracia mexicana, que chegou a ser chamada de "ditadura perfeita" pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa, ganhador do prêmio Nobel.

"Parte do acordo entre o Estado mexicano moderno com o povo era que a violência não aconteceria nas cidades", explica Paul Gillingham, historiador da Universidade Northwestern, especializado em política, cultura e violência no México, à revista "Time". Ele ressalta que é uma lógica antiga (e conhecida nossa) de que a violência sempre estivera presente nas periferias, distante dos grandes centros. "O massacre de Corpus Christi quebrou essa regra básica", completa.

Cleo (Yalitza Aparicio) carrega em si as transformações do país - Divulgação - Divulgação
Cleo (Yalitza Aparicio) carrega em si as transformações do país
Imagem: Divulgação

Usar questões políticas que, apesar de não serem o foco da trama, influenciam a construção da narrativa dos personagens em vários aspectos é um recurso comum de Cuarón quando se trata de filmar no México - ele adotou a proposta em seu último filme rodado no país, "E Sua Mãe Também" (2000). No caso de "Roma", a câmera acompanha Cleo (Yalitza Aparicio), uma empregada doméstica de origem indígena. Aparentemente, sua rotina em uma casa de família de classe média é, como se pode esperar, maçante e mecânica, mas conforme seus dramas se desdobram, começa a pairar sobre a cidade um clima de tensão e violência. É como se ela carregasse junto à sua história muito das transformações do país.

Os Falcões

Para compreender esse México dos anos 1970, é preciso entender antes o ambiente político durante a maior parte do século 20. De 1929 a 2000, o país foi governado por apenas um partido, o PRI (Partido Revolucionário Institucional).

Em 1968, quando o México se preparava para ser o primeiro país fora do Primeiro Mundo (e o primeiro de língua espanhola) a sediar as Olimpíadas, estudantes de várias universidades se mobilizaram em protestos. O governo do presidente Gustavo Díaz Ordaz reprimiu violentamente esses movimentos. O ápice dessas ações foi o episódio conhecido como Massacre de Tlatelolco.

Echeverría, na época ministro do Interior, seria acusado de orquestrar o massacre décadas depois, mas não sem antes ele mesmo ser eleito presidente em 1970, época em que as eleições foram fraudadas para manter o PRI no poder. "Roma" começa nesse momento. Cartazes e camisetas de campanha em apoio a Echeverría e ao partido são visíveis em várias cenas.

Cena de "Roma" mostra a preparação dos falcões  - Divulgação - Divulgação
Cena de "Roma" mostra a preparação dos falcões
Imagem: Divulgação

Nessa época, os Falcões começam a ser recrutados, supostamente em colaboração com os Estados Unidos, para evitar que levantes estudantis voltassem a ocorrer. Os Falcões eram em sua maioria homens vindos de bairros pobres e seduzidos pelo intenso treinamento de artes marciais. Jovens, eles eram facilmente infiltrados em campo para reprimir os protestos com violência. Começavam o confronto usando espadas de bambu. Em seguida, atacavam com facas e rifles de alto calibre. Relatos dão conta de que os Falcões chegaram a entrar em hospitais para matar quem tinha sobrevivido ao massacre.

Quando o personagem Fermín (Jorge Antonio Guerrero) exibe, no início do filme, suas habilidades de artes marciais, não há nenhuma indicação de que ele seria um falcão, mas o personagem comenta brevemente sobre seu passado: alguém sem perspectiva, dinheiro e família, que foi salvo pelo seu mestre de artes marciais. Mais tarde, ele aparece treinando com um grupo de homens em um campo de futebol. Estão ali um treinador americano e um homem com o boné da CIA (Agência de Inteligência dos EUA), que havia treinado antes os invasores da Baía dos Porcos, em Cuba.

"Depois disso houve pouca ou nenhuma mobilização social aberta, mas o que apareceu foi a guerrilha que viu no 'halconazo' o sinal de que a manifestação pública não era possível", explicou o pesquisador Jacinto Rodríguez para a "BBC".

Para a "Time", Serhio Aguayo, professor do El Colegio do México e presidente do conselho de diretores da Fundar, uma ONG mexicana de pesquisa democrática, explica que foi nesse ambiente que os jovens optaram pela luta armada. "[O governo] esmagou insurreições em todos os lugares, e das pessoas desaparecidas por razões políticas emergiu o movimento moderno de direitos humanos que foi fundamental na erosão da legitimidade do sistema político", afirma. A partir daí, grupos armados surgiram em várias partes do país durante os anos 70 e 80. O período é conhecido como "A Guerra Suja".

Embora tivesse pouco mais de dez anos, Cuarón conta que se lembra das fotos do massacre de Corpus Christ que saíram nos jornais. Uma imagem em especial o chocou muito: mostrava um estudante de barba e camisa branca sendo perseguido por um falcão na rua. Ao fundo, a loja de móveis com os clientes testemunhando as agressões pela janela.

"Isso começou a criar em mim uma maior consciência de como as coisas funcionavam na minha vida, acho que a cicatriz envolve um problema que ainda é atual", disse, durante uma sessão de perguntas e respostas transmitida pelo YouTube, no lançamento do filme, no início de dezembro.

A reconstrução dessas memórias, em uma viagem cinematográfica rara e profunda, fez o filme despontar na lista dos críticos. Com o Leão de Ouro no Festival de Veneza, Cuarón, que há anos trabalha em Hollywood, está a um passo de fazer história no próximo Oscar com o retrato de um país subdesenvolvido que, com a ajuda dos Estados Unidos, ampliou o abismo social da sua população.

Tanto no filme, quanto nos livros, a história segue sem conclusão. Embora Echeverría tenha sido colocado em prisão domiciliar em 2006 pelos massacres, o ex-presidente foi inocentado da responsabilidade criminal três anos depois, quando os tribunais descobriram que não havia provas para condená-lo.