Caso JBS ‘põe a nu’ injustiças, diz Coutinho

Luciano Coutinho diz que auditoria externa sobre empresa joga luz sobre problemas e defende investimentos do banco no setor de proteína animal

Por Francisco Góes e Luiz Henrique Mendes — De São Paulo


Luciano Coutinho, presidente do BNDES entre 2007 e 2016: participação no setor de proteína animal permitiu formalização de empresas e mudanças “profundas” nas áreas ambiental e de sanidade — Foto: Cláudio Belli/Valor

A auditoria externa que examinou as operações do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na JBS “pôs a nu as injustiças” cometidas contra a instituição e seus funcionários. A avaliação é de Luciano Coutinho, que comandou o banco por nove anos, entre 2007 e 2016. No início do mês, foi finalmente conhecido o relatório da investigação conduzida pela Cleary Gottlieb sobre o caso JBS. A firma americana não encontrou evidências de irregularidades.

Em entrevista ao Valor, o pernambucano de 73 anos defendeu a atuação da BNDESPar durante sua gestão, com a compra de participações em empresas como JBS, Marfrig e BRF, o que ajudou a construir companhias brasileiras capazes de competir globalmente, e salvou grandes grupos da debacle financeira, como Sadia e Aracruz.

Possibilidade de BNDES perder FAT é decisão ‘míope’, motivada por considerações fiscais de curto prazo”

Para Coutinho, a decisão da atual gestão do BNDES de se desfazer da maior parte da carteira de ações do banco confirma o acerto dos investimentos feitos na sua gestão. “Me sinto à vontade porque existe um estoque de ações que podem ser vendidas com belos resultados”, disse o economista, que também defendeu a atuação do banco para enfrentar a crise de 2008, e enfatizou o impacto dos empréstimos subsidiados para alavancar os investimentos no país.

Em uma conversa de duras horas na sede do Valor, Coutinho evitou críticas ao presidente do BNDES, Gustavo Montezano. “Não quero entrar em arenga.” Também preferiu não comentar a possível criação de nova CPI do BNDES, tampouco a eventual contratação de auditoria externa para apurar as operações com a Odebrecht. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Culpar o BNDES por todas as mazelas do crédito caro era uma teoria ideológica e intelectualmente desonesta”

Valor: O BNDES divulgou as conclusões de auditoria externa que investigou as operações com a JBS. No mesmo dia, o MPF entrou com uma ação de improbidade administrativa pedindo ressarcimento de prejuízos ao banco. Como o sr. reagiu?

Luciano Coutinho: O relatório foi oportuno porque corroborou não só a auditoria interna que havia sido feita, mas todas as afirmações, não só minhas mas de executivos do banco, defendendo a lisura e a integridade dos procedimentos. Depois de consultar mais de três milhões de mensagens, e-mails, ligações telefônicas, mais de 400 mil documentos e de ter ouvido dezenas de pessoas, a auditoria não detectou nenhum sinal de comportamentos ilícitos que estivessem de alguma maneira relacionados à corrupção ou a favorecimento, ou ainda ingerência indevida nos processos da instituição. Neste sentido, põe a nu a enorme injustiça e o dano moral que foi infligido às pessoas, funcionários íntegros e decentes. Esse dano moral foi feito de forma, no mínimo, irresponsável, sem qualquer prova ou evidência concreta. Baseada apenas em presunção de culpa, se partiu para um processo de conduções coercitivas, buscas e apreensões quando a tradição do banco sempre foi prestar todos os esclarecimentos. Aquele tipo de procedimento era tão atentatório aos direitos básicos do cidadão que foi posteriormente vedado pelo Supremo [STF], revelando o caráter atrabiliário [injusto] desse tipo de iniciativa. Me pergunto como ressarcir a essas pessoas, atingidas em sua honra.

Valor: Ainda assim o MPF tenta dizer que os investimentos tiveram problemas, que o banco teve prejuízo de R$ 4 bilhões.

Coutinho: Espero que essa ação de improbidade não prospere pela simples razão de falta de fundamentos. Mas não me cabe opinar. Confio na Justiça.

Valor: Como o sr. e sua defesa pretendem utilizar o relatório da Cleary Gottlieb sobre JBS?

Coutinho: Não posso adiantar a estratégia de defesa. O que posso dizer é que o relatório isenta a ocorrência de influência indevida nos processos decisórios do banco relativos aos casos em tela, e isenta a minha pessoa. Ponto.

Valor: Olhando em retrospectiva, a lógica do investimento em proteína animal foi adequada?

Coutinho: O setor de proteína animal, em termos de formalização, em termos de práticas ambientais, em termos de qualidade, é uma mudança profunda. E o fato de que você criou grandes empresas de porte global que têm papel relevante nesse setor. Não só na exportação, mas como empresas brasileiras que geram emprego de alta qualidade no país. Do ponto de vista da BNDESPar, a gente tem que olhar a carteira. E a carteira tem um desempenho extraordinariamente positivo. Em proteína animal, os retornos são expressivos considerando que os investimentos foram bem-sucedidos.

Valor: Como o sr. vê as discussões, que voltam agora, de a JBS deslocar parte de sua produção, talvez a mais rentável, para um negócio sediado na Europa. O Brasil é uma plataforma ruim para ter um negócio baseado no país?

Coutinho: Não quero avaliar isso nesse momento porque não conheço o projeto. Agora nós sempre devemos ter em conta que precisamos melhorar ainda mais a institucionalidade do mercado brasileiro de capitais. De forma que estar listado no Brasil deve ser uma vantagem, não uma desvantagem. [Mas] é claro que um mercado extremamente líquido como o americano tem uma vantagem de partida em termos de liquidez, tamanho de mercado e até de precificação. Mas não quero emitir opinião específica sobre esse caso, até porque se o banco vende maciçamente as ações ele perde os direitos de governança.

Valor: Há agora um movimento amplo de venda de ações da carteira da BNDESPar. Como avalia?

Coutinho: O que posso dizer é que, olhando com visão de longo prazo, que é a forma adequada de ver a renda variável, o retorno da carteira de 2002 a 2019 foi de 12% e uns quebrados. É um retorno excepcional em qualquer país do mundo. Qualquer gestor de mercado de capitais ficará orgulhoso de ostentar valorização média de 12,2% ao ano e que bate o Ibovespa.

Valor: O resultado da carteira de renda variável era importante para o banco operar, do ponto de vista de sua manutenção, de seus custos?

Coutinho: Não, o banco sempre teve uma carteira de crédito grande e uma renda da intermediação financeira, suficiente. Mas a BNDESPar, como toda carteira de renda variável, é mais cíclica. Em momentos de expansão econômica, sua carteira decola. Às vezes, são lucros extraordinários. Você tem que aproveitar esses momentos para capitalizar isso, vender participações. Não sou contra a política de vender. Nós reciclamos a carteira. Quando tem período de grave crise, e temos que lembrar que a recessão de 2015 até agora foi uma recessão muito severa, em 2015 e 2016, e uma recuperação muito lenta, muito débil, até o presente momento. A comparação de 2010 a 2019 [feita recentemente pela atual diretoria do BNDES] pega um período ruim para o mercado de renda variável, de 2015 a 2017.

Valor: Na sua gestão, o banco “sentou” em cima da carteira de renda variável e não vendeu nada?

Coutinho: Não é verdade. O banco sempre girou a carteira. O banco investiu, no meu período, R$ 42 bilhões com recursos próprios e da BNDESPar. Além disso, a BNDESPar ainda gerou um superávit financeiro de mais de R$ 20 bilhões. Ou seja, o banco desinvestiu e girou a carteira de posições antigas que ele tinha e investiu em posições novas. Agora, é normal que essas posições novas amadureçam e que deva existir uma reciclagem. Isso é normal e desejável. Nunca foi o objetivo do banco “sentar” [na carteira]. Agora, no período de depressão do mercado, de 2014 a 2017, não era inteligente vender, salvo exceções. Porque estaria vendendo com prejuízo ou vendendo abaixo do valor patrimonial. O importante é vender com resultados e me sinto à vontade porque existe um estoque de ações que podem ser vendidas com belos resultados. É um referendo à política que foi conduzida. Mas a falácia que me incomoda é aquela - bastante desonesta, repetida sem qualificação até por motivação política - de que a BNDESPar e o BNDES investiram recursos subsidiados no capital dessas empresas, quando isso não é verdadeiro. A BNDESPar usou o giro da sua carteira para, em operações de mercado - e que foram em grande medida acompanhadas pelo mercado -, comprar participação no capital de empresas em termos de mercado, sem nenhum centavo de subsídio, e que a longo prazo se revelam rentáveis.

Valor: O subsídio foi para o PSI?

Coutinho: Os subsídios foram no crédito. Houve zero de subsídio nas operações de equity. Os subsídios foram para as operações de crédito, para o PSI [Programa de Sustentação do Investimento], que foi um programa anticíclico voltado para a comercialização de máquinas, equipamentos. Devo dizer que esse programa era acessível a todas as empresas. Mas isso [o PSI] não tem a ver com os investimentos em renda variável e isso é propositalmente distorcido para repetir o bordão de que o banco investiu dinheiro do povo em uma meia dúzia de “favoritos do rei”.

Valor: Uma crítica é que o subsídio no crédito, incluindo os mais de R$ 500 bilhões que o Tesouro repassou para o BNDES, não gerou um efeito significativo no investimento.

Coutinho: Esses economistas gostam muito de econometria sofisticada, mas não olham as estatísticas básicas. Entre 2002 e 2006, a formação de capital fixo girava em torno de 17% do PIB. Aí, ela vai ascendendo firmemente e chega a um pico de 20,9% em 2013. Se pegar o PIB hoje, são R$ 350 bilhões de investimentos novos que foram sendo agregados. Essa é a verdade dos fatos. Você vai dizer: “ficou satisfeito?” Não, eu gostaria que a relação investimento/PIB tivesse alcançado 24%. Mas o fato é que houve aumento do investimento. O BNDES recebeu, em termos correntes, R$ 440 bilhões. No Livro Verde [do BNDES], tem uma conta muito interessante que pega o meu período, em que o desembolso do banco de 2007 a 2016, em termos correntes, totalizou R$ 1,358 trilhão. Sem o Tesouro, esse desembolso não conseguiria ultrapassar R$ 735 milhões. Uma diferença a mais de R$ 625 bilhões devido aos empréstimos do Tesouro. Isso permitiu alavancar investimentos e como o BNDES financia, em média, entre 50% e 60% do investimento, esse R$ 1,358 trilhão significaria R$ 2,250 trilhões do investimento diretamente induzido.

Valor: O crédito direcionado não foi um dos responsáveis por impedir a queda mais rápida da Selic?

Coutinho: Essa é uma tese que merece discussão séria. Existem textos que mostram que a TJLP não impactava a política monetária de forma relevante. Não existe evidência econométrica indiscutível a respeito disso. Eu tenho um contrafactual claro: a partir de 2015-16, o BNDES começa a reduzir [de tamanho]. A partir da criação da TLP, quando os empréstimos do BNDES ficam mais caros do que os do mercado, o BNDES encolhe de maneira muito rápida. Não obstante o BNDES ter diminuído, o sistema privado com recursos livres não expandiu o crédito, nem reduziu o spread. Então a teoria da “meia entrada” dizia que o spread bancário era alto porque o BNDES tinha linha de crédito subsidiada, que concentrava os melhores devedores, que só ficavam os empréstimos de rating pior para o sistema bancário, então tinha risco mais alto. Todas essas teorias, que foram à época levantadas, para apontar o dedo e dizer que toda a culpa do juro alto e do crédito livre caro eram do BNDES, foram postas à prova e não se sustentam à luz do ocorrido nos últimos anos. Hoje o debate em relação ao custo do crédito e à baixa propensão à oferta de crédito, com razão ou sem razão, não estou entrando no mérito, é atribuída à falta de concorrência no sistema bancário brasileiro. De maneira que [a teoria] era ideologicamente motivada e, em certa medida desonesta intelectualmente, ao culpar o BNDES por todas as mazelas do crédito caro.

Valor: Hoje o mercado de capitais vem ganhando relevância...

Coutinho: Eu trabalhei o tempo todo pelo desenvolvimento do mercado de capitais. Suei a camisa para a criação das debêntures de infraestrutura, em 2011. Durante um bom período, era muito difícil viabilizar as debêntures de infraestrutura porque com a Selic entre 12% e 14% era difícil emitir debêntures com custo compatível com o investimento de longa maturação em infraestrutura. Nos esforçamos muito para criar as condições institucionais para o desenvolvimento do mercado de capitais e vejo com muita satisfação que o mercado de capitais tem dado contribuição crescente ao financiamento privado. Porém, quando falamos de financiamento de longo prazo, via debêntures, é ainda uma fração, relevante, sem dúvida, mas se considerarmos a necessidade de investimento no futuro, quando o Brasil vai precisar de cerca de R$ 300 bilhões a R$ 350 bilhões ao ano [em infraestrutura], acredito que a opção mais inteligente é a combinação virtuosa entre o crédito de longo prazo do BNDES e o mercado de capitais. Mesmo se o mercado de capitais triplicar ainda assim fica uma diferença e o crédito de longo prazo é uma ferramenta mais adequada para o financiamento em grande escala.

Valor: O banco pode perder o FAT, sua principal fonte de receita.

Coutinho: Considero essa uma decisão míope, influenciada por considerações fiscais de curto prazo e que não compreende os desafios. O financiamento de longo prazo para infraestrutura é difícil. Nas economias industriais desenvolvidas, com exceção da Alemanha e Japão que têm bancos de desenvolvimento grandes e que complementam o mercado de capitais, o modelo baseado estritamente no mercado de capitais é um modelo muito sensível a mudanças de expectativa. Quando se enfrenta uma situação de incerteza, quando mais se necessita de investimentos anticíclicos, o mercado não consegue financiar. Espero que isso [a perda do FAT] não prospere porque seria miopia confiar e, mais do que isso, um certo fundamentalismo econômico, confiar o financiamento estritamente ao mercado.

Valor: O sr. acredita que as taxas de juros são sustentáveis?

Coutinho: Essas taxas podem ser sustentáveis na medida em que as condições fiscais melhorem e na medida em que o país mantenha sua solidez cambial. Nesse cenário, o país pode ter taxas bem mais baixas daquelas que prevaleceram até 2016-2017. Não quero opinar sobre a política monetária, mas minha esperança é que os juros mais baixos sejam duradouros e que isso inaugure uma etapa em que o mercado de capitais possa ter um papel de contribuição positiva ao desenvolvimento do país financiando uma parcela relevante, até majoritária, do investimento. Não obstante, vejo que em prazos longos e, em infraestrutura, é sensato contar com um banco de desenvolvimento da categoria do BNDES.

Valor: A devolução de recursos ao Tesouro foi conduzida de forma adequada?

Coutinho: Não tenho como avaliar porque não disponho de todos os índices do banco. Mas me parece que a pressão fiscal de curto prazo é sempre uma má conselheira. Se é por uma motivação fiscal, pode nos levar a decisões inconvenientes. Não é factível imaginar o desenvolvimento do Brasil, com crescimento de 4,5% a 5% ao ano, com uma taxa de investimento superior a 22% do PIB, sem investir muito mais. O Brasil é muito carente em infraestruturas urbanas, em habitação social, em infraestruturas econômicas relevantes, em mais energia renovável. É possível imaginar um crescimento que possa ser propulsionado por um ciclo de investimentos dessa natureza sem um banco de longo prazo? Me parece duvidoso.

Valor: O BNDES prevê atuar mais forte em privatizações e dar maior ênfase ao saneamento.

Coutinho: Sou entusiasta dessa agenda, [mas] não é uma agenda nova. O saneamento é desafiador, a agenda de universalização do saneamento deve merecer prioridade. Temo que um marco regulatório que privilegie estritamente projetos de alto retorno não consiga dar conta da dimensão de universalização. Áreas mais remotas demandam algum tipo de contraprestação, algum modelo tipo PPP. O planejamento hídrico é complexo. Uma coisa infeliz da Constituição de 1988 foi ter outorgado a concessão de água e esgoto aos municípios. Espero que o novo marco regulatório possa destravar investimentos. Concordo que é missão relevante que o BNDES se dedique à modelagem dos investimentos de universalização do saneamento, é iniciativa meritória.

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