Inflação só de Chico?

A inflação subjacente tem gravitado ao redor do piso do intervalo de tolerância no Brasil desde o final de 2017

Por Ricardo de Menezes Barboza


— Foto: John O'Doherty/Pixabay

Em 2017, o Banco Central perdeu a meta de inflação. O alvo era 4,5%, com um intervalo de tolerância entre 3% e 6%. Mas o IPCA fechou aquele ano em 2,95%. Conforme manda o ritual (leia-se, o Decreto 3088/1999), o presidente do Banco Central teve que escrever uma carta aberta, esclarecendo as razões do desvio.

Na carta aberta, ficou claro que “a inflação ficou ligeiramente abaixo do limite inferior do intervalo de tolerância da meta em razão da deflação dos preços de alimentos no domicílio”. Em seguida, a carta esclareceu que “se excluirmos do IPCA o subgrupo alimentação no domicílio, fazendo posteriormente a reponderação do índice, a inflação passaria para 4,54% em 2017, valor muito próximo à meta”. Por fim, frisou que o “comportamento excepcional dos preços dos alimentos no domicílio” era decorrente de “choques fora do alcance da política monetária”.

Traduzindo do economês para o português: a inflação em 2017 ficou abaixo da meta por uma questão de azar e o BC não teve muita culpa nisso.

Isto posto, poderíamos recorrer ao famoso ditado popular que diz que “pau que bate em Chico também bate em Francisco” para analisar o comportamento da inflação depois de 2017 - mantendo, é claro, a mesma lógica inaugurada naquele ano.

Em 2018, a inflação também ficou abaixo da meta (3,75% contra 4,5%). Mas se seguíssemos a lógica supracitada, veríamos que a inflação que exclui os preços dos alimentos (e repondera o índice) ficou em 3,6%, mais próxima do limite inferior do intervalo de tolerância do que da meta de inflação.

Mas em 2018 nada foi dito sobre isso. O pau que bateu em Chico não bateu em Francisco.

Inflação subjacente tem gravitado ao redor do piso do intervalo de tolerância no Brasil desde o final de 2017

Seguindo com o argumento, chegamos em 2019, ano que a inflação acumulou uma alta de 4,31%, resultado bem próximo à meta de 4,25%. Mas verdade seja dita: a inflação só ficou virtualmente na meta por causa de um choque altista nos preços dos alimentos no domicílio (vejam só, no mesmo grupo que atrapalhou o BC em 2017).

O choque decorreu da gripe suína africana que devastou o rebanho de porcos na China e fez esse país importar (muita) carne do Brasil. Com menos carne disponível no mercado doméstico, os preços subiram e as carnes ficaram salgadas.

Mas não há o que parabenizar o BC. O choque que levou a inflação para a meta foi fruto do acaso, algo que independeu da influência da autoridade monetária, como a própria autoridade monetária afirmou em 2017.

Para usar as mesmas palavras do BC, que guardamos na memória, “se excluirmos do IPCA o subgrupo alimentação no domicílio, fazendo posteriormente a reponderação do índice”, a inflação de 2019 passaria para 3,65%, valor novamente bem abaixo da meta.

Diante disso, acho que poderíamos melhorar um pouco a nossa análise da inflação no período. Em vez de excluirmos apenas a inflação de alimentos (procedimento um tanto ad hoc), podemos analisar as medidas de núcleo de inflação no Brasil de 2017 pra cá.

Para quem não sabe, núcleos de inflação buscam minimizar a influência de itens de maior volatilidade no indicador agregado, com o objetivo de avaliar a tendência da inflação sem os efeitos de choques temporários que atrapalham a visão do motorista. Nos EUA, por exemplo, é uma medida de núcleo de inflação que mais importa para a condução da política monetária.

Não faltam medidas de núcleo no Brasil - só o Banco Central calcula sete! Para não sermos (mais uma vez) ad hoc, vamos considerar a média das sete medidas como referência (ver gráfico).

Assim procedendo, o diagnóstico resta claro: a inflação subjacente tem gravitado ao redor do piso do intervalo de tolerância no Brasil desde o final de 2017! Vejam vocês que a linha amarela do gráfico (que representa a meta) em momento algum é ameaçada pela média dos núcleos de inflação.

Se a economia brasileira estivesse crescendo de acordo com seu crescimento potencial, o núcleo ficaria flutuando ao redor da meta. Como estamos flutuando ao redor do piso, isso sugere que o país segue operando com uma ociosidade desnecessariamente elevada, que se reflete tanto na alta e inaceitável taxa de desemprego, quanto nos baixos níveis de utilização da capacidade instalada.

A atividade econômica está tão fraca (a despeito do otimismo que recentemente tomou conta dos analistas, mas que, ao que parece, deu uma esfriada à luz dos últimos indicadores divulgados) e o desemprego está tão alto que as duas medidas de núcleo de inflação mais sensíveis à atividade (EX2 e EX3) fecharam 2019 em 2,7% e 2,9% - depois de fecharem 2017 e 2018 abaixo da meta.

É bom frisar que, segundo o Banco Central, “tanto em testes de correlação, quanto em exercícios econométricos que incluem outras variáveis de controle, os núcleos EX2 e EX3 mostraram maior aderência do que os demais núcleos a medidas de hiato do produto. Nesse sentido, o EX2 e o EX3 parecem incluir componentes da inflação mais sensíveis ao ciclo econômico”.

Em suma, quando analisamos as medidas de inflação subjacente no Brasil, percebemos que a lógica que bateu em Chico em 2017 seguiu batendo em Francisco em 2018 e 2019 (e, ao que parece, seguirá batendo em 2020). Em bom português, isso é sintoma de uma economia ainda com muita folga. Uma média de várias medidas de hiato do produto segue sugerindo uma ociosidade de -4,3% no Brasil, mais do que o dobro do observado quando a crise de 2008 desembarcou no país - o que nos fez acionar diversas medidas anticíclicas. Chico, é preciso cautela ou perseverança?

Ricardo de Menezes Barboza é professor colaborador da Coppead/UFRJ e Mestre em Macroeconomia pela PUC-Rio. As opiniões aqui são estritamente pessoais.

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