Sociedade

Caso Karol Conká: qual o limite da ‘cultura do cancelamento’?

Especialistas apontam a importância da fiscalização, mas o perigo de se perder o diálogo e a empatia

Foto Reprodução/TV Globo.
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Pandemia, vacina, Bolsonaro, ameaça às instituições e os demais assuntos que vinham dominando o noticiário nacional está sendo ofuscados pelo Big Brother Brasil.

O programa da Rede Globo, que há 20 anos confina participantes em uma casa no Projac, no Rio de Janeiro, está batendo recordes de audiência neste ano. Enquanto o canal fatura bilhões com patrocínios, as redes sociais se convertem em tribunais que analisam o comportamento dos participantes.

Entre os 20 integrantes, se destaca a rapper Karol Conka. A curitibana de 35 anos foi eliminada nesta terça-feira 23 com 99,17% de rejeição, um recorde e um prejuízo de imagem acumulado que pode destruir sua carreira. A rapper não apenas perdeu milhões de seguidores, mas também contratos publicitários e um programa que apresentava no canal GNT.

Karol foi acusada de impor, por diversas vezes, pressão psicológica sobre alguns participantes do programa. O episódio mais grave levou o participante Lucas Penteado a deixar a casa na segunda semana do jogo.

O público, por sua vez, se uniu com o objetivo de tirar a curitibana do reality. Enquanto a ‘mamacita’ cancelava participantes dentro da casa, aqui fora sua carreira se dissolvia.

Seu ‘cancelamento’, contudo, ultrapassou o limite profissional, e prejuízo não ficou apenas nos números e cifras. Foram criadas diversas páginas de ódio a Karol, muitas repletas de ofensas racistas. A família da cantora, em especial seu filho menor de idade, sofreu ameaças de morte.

Página de rejeição criada contra Karol Conka que possui mais seguidores que a própria cantora.

O que é e como surgiu a ‘cultura do cancelamento’?

Esse fenômeno das redes sociais não é exatamente recente. Conforme o avanço das tecnologias, o “cancelamento” ganhou força a ponto de pautar comportamentos e posicionamentos de empresas e personalidades.

Ser cancelado se tornou o medo do século. E não é para menos. Sobram exemplos de carreiras destruídas e empresas que viram seus lucros caírem a quase zero por posicionamentos que hoje em dia não são mais aceitos.

Durante tres anos, a agência de publicidade Mutato realizou um estudo sobre a cultura do cancelamento nas redes sociais. Os resultados foram apresentados em 2020, antes dessa nova edição do BBB.

Os pesquisadores fizeram um levantamento de termos relacionados ao tema e acompanharam 35 personalidades que sofreram ataques.

“Estes comportamentos (cancelamento) podem ser observados em sociedades em que o Estado não possui credibilidade ou não se apresenta de forma efetiva, então a população se torna o júri, juiz e o executor”, diz o relatório.

O levantamento mostra que os humoristas foram os primeiros afetados com o cancelamento, em meados de 2010.

De lá pra cá, filmes, músicas e até mesmo obras literárias passaram pelo crivo dos ‘canceladores’, seja por conta de discordância de discurso, pela associação com artistas já ‘cancelados’ ou pela defesa de posições hoje consideradas discriminatórias.

O estudo mostra também que a rede social mais propícia ao cancelamento é o Twitter e o perfil mais cancelado é o de homens brancos e heterossexuais.

Uma cultura que vem se perdendo 

A diretora de estratégia da Mutato, e uma das participantes da pesquisa, Juliana Morganti, avalia em entrevista a CartaCapital que, por mais que essa cultura venha pautando temas importantes como misoginia, LGBTfobia, racismo, ela está tomando um caminho perigoso.

“Será que o comportamento de uma pessoa babaca ou grosseira é o suficiente para acabar com a vida dela? Existem, claro, atitudes profundas e problemáticas que devem ser questionadas, mas a cultura do cancelamento está tomando um caminho perigoso de não ter espaço para melhora”, pondera a pesquisadora.

Um dos pontos que chamou a atenção da pesquisadora no estudo foi o fato da maioria das pessoas torcerem o nariz para o cancelamento. Dos termos analisados durante os três anos, 79% diziam que o cancelamento não é uma prática efetiva. E esse resultado, explica a pesquisadora, está relacionado ao fato de o cancelamento significar uma “morte simbólica”, como é o caso de Karol Conka.

“Cada caso tem o seu peso. O problema é que o júri está aberto e sem controle, principalmente no Twitter pelo fato de ser uma rede muito anônima. Todas as pessoas são humanas e erram. Abrir esse espaço para a conversa é o que importa, porque todo mundo tem possibilidade para melhoria se estiver aberto para isso”, aponta Juliana.

Então como agir? Juliana cita como exemplo o caso da cantora Marília Mendonça, que em agosto de 2020 foi cancelada por fazer uma piada transfóbica em uma live. A cantora sofreu muitos ataques, mas também muitos ativistas da área divulgaram textos e vídeos explicando o porquê do erro de Marília.

Após pedir desculpas, a cantora levou em seu show uma ativista trans para explicar ao seu público o porquê piadas como essas são tão perigosas e desumanas.

“É difícil saber se a pessoa mudou de fato, mas suas ações levam a crer que sim e isso é positivo”,  conclui Juliana.

O impacto do cancelamento na saúde mental 

Se cancelar é impor uma morte simbólica, como fica a saúde mental de uma pessoa que passou por essa experiência?

“O sofrimento causado pelo ‘cancelamento’ pode desencadear quadros de transtornos de ansiedade, episódios depressivos e outros transtornos mentais, podendo inclusive levar a pessoa ao suicídio, em casos mais graves”, afirma o psiquiatra Bruno Branquinho. 

“O nível de animosidade e agressividade atingido por vezes é tão grande que as pessoas passam a viver com medo e hipervigilantes ao manifestar qualquer opinião e com medo de serem canceladas. Isso não é positivo”, completa.

E qual o limite para que esses questionamentos não causem um dano na saúde mental de uma pessoa? Para Branquinho, o diálogo.

“O cancelamento precisa dar espaço para o aprendizado. É válido apontarmos e criticarmos atitudes negativas, mas para que haja a possibilidade da pessoa que errou aprender e se corrigir é necessário não atacar só por atacar. Em casos mais extremos, há ameaças e violências à pessoa e à sua família, o que só gera mais ódio e menos conscientização. Precisamos trabalhar pela mudança e não pela violência apenas”, conclui.

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