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Ciclista negro que foi enquadrado sem motivo por PMs em Goiás vai se mudar após perseguição

Filipe foi algemado por policiais mesmo sem resistir à abordagem. Foto: reprodução

Publicado originalmente na Ponte Jornalismo:

Por Jeniffer Mendonça

Em maio deste ano, Filipe Ferreira, 29, estava se gravando fazendo manobras de bicicleta em um parque em Cidade Ocidental (GO) quando dois policiais militares em uma viatura passaram a abordá-lo de forma truculenta, sem dizer o porquê, e o algemaram. As imagens, divulgadas por ele nas redes sociais, geraram revolta e viralizaram. Um mês depois, o ciclista usou novamente o recurso para denunciar intimidações de PMs.

No domingo (27/6), ele gravou uma viatura atrás de si, em que um policial no banco do passageiro desembarca, aponta uma arma e o manda ficar parado. Em outras filmagens, Filipe registra o PM, que o grava de volta e confirma que estava dando tchau para ele, mas que aquilo não seria uma ameaça. À Ponte, o ciclista disse que viaturas começaram a passar perto de onde morava, dando tchau e disparando sirene depois da denúncia que viralizou. Com esse episódio recente, ele decidiu se mudar de estado, deixando casa e o emprego de eletricista. “Eu tenho medo de sair na rua. De manhã, eu ia malhar, andar de bicicleta, ia fazer qualquer tipo de atividade, eu não me preocupava, só ia e voltava. Eu não me preocupava, saía como qualquer cidadão normal, ia na padaria, no mercado, hoje não tenho coragem de fazer isso na cidade onde eu morava”, lamenta.

Além disso, também aponta que sofreu ataques nas redes sociais pela denúncia que fez. “Psicologicamente, estou destruído, minha família está destruída, e tem gente achando que eu estou querendo me aproveitar de um assunto sério e não é nada disso”, lamenta.

Na primeira abordagem, ele conta que ainda foi lavrado um TCO (Termo Circunstanciado de Ocorrência), usado para infrações de menor potencial ofensivo, por desobediência e desacato contra ele, embora a filmagem não mostre em nenhum momento Filipe ter ofendido os policiais ou resistido à ação dos policiais. Um dos policiais, segundo ele, foi afastado das atividades de rua. Já na segunda, ele afirma que levou os casos para o Ministério Público Estadual. “Espero que os policiais sejam responsabilizados e que sirva de exemplo para os outros policiais”, aponta.

À Ponte, Filipe contou sobre seu canal, a repercussão dos vídeos que fez e a decisão de mudar de cidade.

Ponte – Como você tem estado nos últimos dias?

Filipe Ferreira – Estamos indo, nos recuperando, graças a Deus. Eu mudei de cidade. Minha mãe foi para um estado onde meu pai trabalha e eu fiquei próximo de Goiás para resolver umas coisas do meu trabalho, mas logo mais eu vou para longe. Eu trabalho na área elétrica, minha formação é técnica, eletricista em geral, como o povo fala.

Ponte – Você vai continuar trabalhando em Goiás?

Filipe Ferreira – Não, eu pedi as contas. E só estou esperando o trâmite para me desligar da empresa.

Ponte – Por que você tomou essa decisão?

Filipe Ferreira – Eu decidi por conta da minha mãe mesmo, porque ela tem problema de pressão, então ela está com os nervos à flor da pele, ficou doente, e a forma que a gente achou foi se afastar mesmo, para tirar as lembranças daquele lugar, tentar ir para longe e ver se toda aquela aflição passa. Graças a Deus, ela está conseguindo se recuperar, mas foi por causa da saúde mental da minha mãe, da saúde mental minha, das minhas filhas, porque repercutiu muito. A cidade onde eu moro é pequena, fizeram um grupo de haters, me atacaram muito, me atacaram nos comentários de um jornal que publicou. A gente supõe que foi criado um grupo de haters para me atacar nas redes. Eles devem pensar que eu quero fama, quero aparecer, ganhar seguidores, dinheiro com isso e eu nunca precisei disso, nunca me aproveitei da situação, a minha intenção jamais é ganhar seguidor e ganhar dinheiro com essa situação. Só quero expor o que aconteceu porque eu não estava fazendo nada.

O que aconteceu comigo, aconteceu com amigo meu, até com pessoas de pele clara a polícia chega abordando daquele jeito, se perguntar alguma coisa, quer algemar, lavrar um TCO [Termo Circunstanciado de Ocorrência, que é um registro de infração com menor potencial ofensivo]. Não vou generalizar, mas aqueles PMs que me abordaram não quiseram saber mesmo eu falando que tinha trabalho, que tinha filho, que não poderia ser expulso daquele jeito, que não poderia ser algemado. Mesmo assim, lavraram um TCO contra mim e quiseram colocar meu nome na Justiça e abrir um processo por desacato. Por isso também que eu levei [a denúncia] à frente. Na cidade onde eu moro, tem muitos casos assim, de agressão, de TCO lavrado sem motivos. Logo depois, eles [policiais] ficaram vigiando, não sei, descobriram onde eu moro, ficavam passando diversas vezes, até acontecer o que aconteceu.

Ponte – O vídeo que você denunciou estar sendo perseguido.

Filipe Ferreira – Isso. Eles viram que eu não estava falando nada, vieram daquele jeito dando tchau, soltando a sirene. Acho que eles queriam ouvir uma palavra de baixo calão minha, mas eu fui bem controlado, só agi mesmo filmando e mandando para quem tem que mandar para que a justiça seja feita. Eu não vou fazer justiça de forma alguma, quem vai fazer alguma coisa é o Ministério Público, os órgãos que têm que tomar atitudes. Eu só fiz a minha parte de gravar e mostrar porque, se eu falasse, muita gente ia ficar perguntando ‘cadê a prova?’. Mesmo mostrando o vídeo, ainda tem um grupo pequeno que acha que eu quero aparecer. Emissoras me procuraram para dar entrevista e eu não quis, eu só quero viver minha vida tranquila, como ela era, de andar na rua, andar de bicicleta, policial não ficar me intimidando.

Ponte – Como aconteceram essas intimidações naquele dia?

Filipe Ferreira – Eu saí para andar de bicicleta bem cedo, por volta de umas 9h, saí, andei, fui para o local onde eu treino, fiquei uns 40, 50 minutos. Daí eu estava voltando para casa numa boa, estava voltando empurrando a bicicleta, estava com a mochila nas costas onde eu levo minha câmera, meu capacete, meus equipamentos. A viatura estava passando na avenida e, a uns 200 metros, eu já vi que o policial estava olhando em direção a mim, meio que comentando, não sei. Ele passou por mim, ele olhou, eu abaixei a cabeça e ele olhou. Quando eu virei para olhar para trás, ele deu tchau. Aí beleza, eu fiquei [pensando] ‘será que aquilo foi para mim mesmo?’. Tinha dois vizinhos meus na porta do condomínio que viram e falaram ‘que absurdo, Filipe, depois não querem falar que não provocam’. Eu esperei uns minutos e voltaram fazendo a mesma gracinha.

Nessa hora, eu peguei o celular para filmar a reação que eles iam ter comigo. Dito e feito. Ele passou e soltou a sirene. O policial que estava no carona dando tchau. Daí já confirmei mesmo que era para mim, mandei para os advogados. Fui atrás para pegar placa, mesmo com medo, peguei placa, peguei os nomes e consegui a confirmação do policial. Ele falou que deu tchau mesmo e [perguntou] ‘qual o problema que tinha? Tchau não é ameaça’. Fui embora e tomei essas providências para mostrar que o caso [da abordagem] não tinha morrido ali e que os policiais passavam para tentar me intimidar.

Ponte – Você acha que se não fosse o vídeo, as pessoas não iam acreditar?

Filipe Ferreira – Sim. É que nem mulher quando vai denunciar assédio, se não tiver filmado, provado ou alguém ter visto, as pessoas vão taxar como mentirosa, como louca, ‘não foi bem assim’. As mulheres sofrem isso diariamente, assédio, abuso, um monte de coisa. Sei disso porque eu tenho uma mulher que fala sobre isso. Não é porque eu estou falando que tem que estar filmado, eu falo porque é verdade. Eu não falei que o policial foi racista, as pessoas que falaram e não eu. Eu filmei, mostrei o que aconteceu e daí as pessoas tiraram as conclusões. Por isso eu gravei. No dia da abordagem [28/5], meu celular já estava gravando, eu simplesmente filmei para além do que estava acontecendo. Ia ser só um vídeo andando de bicicleta, mas como o policial me obrigou a passar a filmagem para ele, eu não sabia o que poderia acontecer. Foi aí que eu comecei a expor.

Ponte – Para você, qual foi a intenção dos policiais?

Filipe Ferreira – Eu não sei, mas eu penso que eles queriam me provocar para que eu falasse alguma coisa de baixo calão, para que eles filmassem, porque um deles já veio filmando, para dizer que eu não era aquele cara tranquilo e do jeito que eu mostrava ser para tudo. Eu estava na rua de boa, não provoquei a polícia, não tenho por que filmar viatura, o que eu fiz foi provar o que eu falei. Antes do que aconteceu comigo, viatura nenhuma passou me dando tchau, nem me olhava, passava de boa. Eu sou um cara que trabalha, fazer curso, meu lazer é a bicicleta e voltar para casa. Eu não sou contra a polícia, eu acho a polícia necessária sim, mas uma minoria faz isso [intimidar] e isso tem que ser mostrado. Se eu fizesse alguma coisa de errado, eles iam querer me expor de qualquer forma.

Ponte – Os policiais que te abordaram foram responsabilizados?

Filipe Ferreira – Está sendo investigado ainda porque, se não me engano, um deles foi afastado e teve o porte da arma suspenso, que foi o que apontou a arma para mim. O outro, não sei o que aconteceu. Agora estou esperando para ver o que o Ministério Público vai fazer, se vai ter outra audiência. Com tudo isso que aconteceu no último domingo [27/6], só reforça mais a minha denúncia. Espero que eu tenha êxito nesse processo [para apurar a conduta dos policiais], andar de cabeça erguida, sem medo de ninguém.

Ponte – Como você começou a gostar de andar de bike? Como surgiu seu canal?

Filipe Ferreira – Meu canal foi aberto em 2018. Mais ou menos em 2019, eu abri uma loja virtual de tatuagem e abri o Instagram da loja para divulgar meu material. Não são muitas pessoas que vendem, eu queria crescer, dar um up na loja. Toda a vez que eu ia fazer entrega de material, eu andava cinco quilômetros, ia de ônibus e ia filmando tudo. Chegava no cliente, gravava ele recebendo o material, fazendo todo o trâmite da venda. Era baseado em material de tatuagem e estúdio de tatuagem. Eu andava de bicicleta desde novo e comecei a postar. Passei a ganhar seguidores, visualizações, continuei. Gravava vídeo das minhas filhas, umas coisas de lazer, agora eu privei esses vídeos para não expor minhas filhas, minha mulher, não expor ninguém. É um canal pequeno, não ganho nada com ele, só amigos e apoio. A bike é só um hobby mesmo, que nem o futebol. Levo minhas filhas para andar junto comigo.

Ponte – Você pensou em investir na bike como esporte?

Filipe Ferreira – Não, nunca pensei porque ocuparia meu tempo. Não é tanta gente que quer patrocinar, que quer se envolver. É só um hobby e um prazer de praticar esporte.

Ponte – E como foi para você ter essa visibilidade?

Filipe Ferreira – Eu tive muito apoio, a maioria das mensagens são de apoio, a minoria são haters. Os haters eu deixo de lado porque não sabem o que estão falando, só quando passar por isso. Eles tentam me colocar para baixo, mas não vão conseguir.

Ponte – Você comentou sobre a sua saúde mental, como você está lidando com isso?

Filipe Ferreira – Tem um psicólogo me ajudando, converso com ele umas duas vezes na semana, estou tomando uns calmantes também para levar a vida. É muito difícil, antes eu tinha uma cabeça, hoje, depois de tudo isso, mudou tudo…

Ponte – O que mudou?

Filipe Ferreira – Eu tenho medo de sair na rua. De manhã, eu ia malhar, andar de bicicleta, ia fazer qualquer tipo de atividade, eu não me preocupava, só ia e voltava. Eu não me preocupava, saía como qualquer cidadão normal, ia na padaria, no mercado, hoje não tenho coragem de fazer isso na cidade onde eu morava. Por exemplo, eu chegava do trabalho 11 horas da noite, agora eu fico com medo, sempre tinha que ter alguém me esperando, coisa que nunca aconteceu. Se eu tivesse que sair 4 horas da manhã para trabalhar, como eu já fiz, hoje, eu não ia conseguir sair.

Agora estou resolvendo essa situação do trabalho para conseguir um emprego no estado que eu vou porque não vai ser fácil. A casa que a gente morava está à venda, a gente deixou tudo, só pegou roupa do dia a dia e saímos. Muita gente falava que não precisava disso, mas não é você que está passando medo. Eu viver com medo de alguém entrar na minha casa é complicado. Fiquei sem dormir direito, minha mãe também. Abandonar emprego, sair de casa abalou demais o meu psicológico. Não está nada normal.

Ponte – Você é de Goiás?

Filipe Ferreira – Eu fui criado lá, nasci em Salvador (BA), e fui criado desde os meus cinco anos lá. É muito difícil. Você sair de um estado para conseguir algo melhor, moradia, beleza. Agora sair porque você está sendo obrigado, saindo com medo, já muda tudo. Está sendo horrível. Minha filha tem três aninhos e, quando ela vê uma viatura na rua, ela fecha a cara ‘foram eles que te prendeu, papai?’, e eu nem falo. Mas ela viu o vídeo, viu na TV, mesmo que a gente não quisesse que ela visse, ela viu porque tem muita gente que vive com ela. É complicado demais. Ela tem três aninhos, mas entende muita coisa. Psicologicamente, estou estou destruído, minha família está destruída, e tem gente achando que eu estou querendo me aproveitar de um assunto sério e não é nada disso.

Ponte – Daqui em diante, o que você espera?

Filipe Ferreira – Eu espero que a justiça seja feita, que meu nome seja limpo porque estou com o TCO contra mim. O TCO foi suspenso, mas tem audiência ainda. Espero que os policiais sejam responsabilizados e que sirva de exemplo para os outros policiais. Não é porque eu estou num local que ele acha que é suspostamente um ponto de tráfico, como ele disse, que ele tem que me algemar, me oprimir ou agir do jeito que agiu. O parque onde eu estava era um parque de criança, o vídeo mostra para quem quiser ver. Quem for lá, vai ver criança brincando, vai ver guarda municipal rodando. Se ali for um ponto de tráfico, não tem como alguém não ver. O policial ainda quis justificar. Isso está no Ministério Público e ele vai ter que provar o que ele falou, como eu estou provando.

O que diz o Ministério Público

Procurado, o Mnisitério Público de Goiás (MP-GO) informou por meio de nota que “por intermédio do Núcleo de Controle Externo da Atividade Policial (NCAP), ofereceu denúncia nesta terça-feira (8/6) contra o cabo da Polícia Militar de Goiás (PM-GO) Gustavo Brandão da Silva, por constranger o ciclista e youtuber Filipe Ferreira Oliveira, mediante grave ameaça, com emprego de arma de fogo, a fazer o que a lei não manda. O fato ocorreu às 11h12 do dia 28 de maio, na margem do Lago Jacob, em Cidade Ocidental.”

Também informou que “ao tomar conhecimento dos relatos de Filipe Ferreira Oliveira, encaminhou ofício ao comandante do 33º Batalhão da Polícia Militar, tenente-coronel Anderson Chrisóstomo da Silva, requerendo a apuração dos fatos, e envio de resposta informando as providências adotadas”.

O que diz a Polícia Militar

Procurada, a Secretaria da Segurança Pública de Goiás não havia respondido até a publicação deste texto.

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