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Religiões africanas perseguidas num Brasil cada vez mais evangélico

Lusa 07 de março de 2020
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A onda conservadora que varreu o Brasil e decidiu as últimas eleições presidenciais tem provocado o aumento de conflitos ligados à fé, com ataques realizados, na sua maioria, contra templos e fiéis de religiões de matriz africana do país.

A onda conservadora que varreu o Brasil e decidiu as últimas eleições presidenciais tem provocado o aumento de conflitos ligados à fé, com ataques realizados, na sua maioria, contra templos e fiéis de religiões de matriz africana do país.

Bolsonaro
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Exemplo disso foi o que se passou no Instituto Céu Estrela Guia, na cidade de São Paulo, um espaço de prática de umbanda, uma religião brasileira que surgiu da mistura de crenças africanas relacionadas com os orixás, espiritualidade de povos indígenas e do cristianismo.

"Chegámos no Instituto, no dia 28 de janeiro, abrimos o portão e vimos o quadro de luz aberto. Um dos cabos de energia foi cortado e colocado numa árvore, o que poderia ter causado uma descarga elétrica mortal", contou o pai de santo Denisson de Angelis, um dos sacerdotes umbandistas do instituto.

"Chamámos a polícia, fizemos um boletim de ocorrência, e vieram aqui alguns peritos", que "nos disseram que [a sabotagem] tinha a intenção de matar", acrescentou a mãe de santo Kelly de Angiles.

Dois dias depois deste incidente, o instituto foi de novo invadido por desconhecidos e uma das câmaras de segurança foi destruída. "Temos medo de sermos atacados, mas nossa fé supera o medo porque se nos fecharmos daremos razão a quem os agride. Nós não vamos nos calar", disse a mãe de santo, que se queixa de perseguições por parte de quem não compreende a religião de origem africana.

"Temos que dizer que quem nos ataca esta errado e que a Umbanda é uma manifestação da espiritualidade, uma religião, e o que foi feito na nossa casa foi um absurdo", frisou Kelly de Angiles.

A ascensão dos conservadores ao poder no Brasil trouxe novos receios às comunidades religiosas de matriz africana porque no Brasil existem poucos mecanismos para proteger os templos de ataques.

"Nós aqui estamos na contramão do que acontece na maioria dos templos religiosos, não queremos dízimo de ninguém, nos desdobramos para fazer caridade. O estigma associado a Umbanda está errado", acrescentou Denisson de Angelis.

Outro pai de santo, Matheus Francisco Pereira, que atua na Associação Espírita União da Umbanda, na cidade de Botucatu, no interior do estado brasileiro de São Paulo, também se queixa de episódios de vandalismo e intimidação aos praticantes umbandistas. Durante cerimónias religiosas, têm aumentado a entrada de grupos organizados que tentam insultar os praticantes, explicou.

"Algumas pessoas agressivas entram no templo para nos ofender. Em algumas ocasiões foi necessário o uso da força para retirar estas pessoas de dentro do centro, tivemos de chamar a polícia para fazer isto", disse Matheus Francisco Pereira.

Os atacantes "costumam dizer que não praticam religião nenhuma, mas após investigação descobrimos que são evangélicos", contou o pai de santo, que se diz vítima de preconceito no Brasil por ser sacerdote de Umbanda, com acusações de "macumbeiro"

"Sinto-me discriminado, sempre trabalhei na área comercial. Hoje sou empresário, mas nas empresas onde trabalhei sempre sofri algum tipo de discriminação, seja ela direta ou indireta", afirmou Matheus Francisco Pereira.

Embora o Brasil se autodenomine como um Estado laico, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, tem adotado uma forte defesa do que classifica como "valores conservadores da tradição judaico-cristã", colocando-se ao lado das reivindicações das igrejas evangélicas, cruciais para a sua eleição, que, muitas vezes, em programas de televisão relacionam religiões de origem africana com o mal e o demónio.

Atualmente a pastora evangélica Damares Alves lidera o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pasta responsável por criar políticas publicas para evitar os ataques religiosos.

O Brasil tem uma forte influência do cristianismo, com uma maioria da população a apresentar-se como católica (50%), seguidos pelos evangélicos (31%), segundo uma sondagem divulgada em dezembro passado pelo Instituto Datafolha. A pesquisa apontou que as religiões afro-brasileiras são praticadas por cerca de 2% da população, embora estes números sejam contestados por lideranças de religiões afro-brasileiras, que consideram o dado subestimado porque muitos fiéis têm medo de sofrer preconceito religioso e se apresentam como cristãos.

O advogado e ex-secretário da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo Hédio Silva Júnior admite que o medo leva as pessoas a não revelarem a sua fé em religiões afro-brasileiras. "Um exemplo é o Rio Grande do Sul, um dos estados mais branco do Brasil, onde há cerca de 60 mil terreiros de batuque", outra denominação para espaços de religiões afro-brasileiras. "Usando este número, se pensarmos que cada um tem sessões com 50 participantes, estamos falando de 3 milhões de pessoas apenas no Rio Grande do Sul", explicou.

Este dado "não é captado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e estatística (IBGE) e outras empresas de pesquisa. porque as pessoas ficam intimidadas pela experiência da intolerância e declaram sua identidade religiosas como cristã: estamos falando de milhões de brasileiros", completou.

O advogado atribuiu o aumento dos casos de intolerância ao crescimento do número de programas de cunho religioso nas televisões. Citando dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine), Hédio Silva Júnio disse que quase 25% do conteúdo dos programas veiculadas nas redes de televisão abertas do país são de natureza religiosa.

"Basicamente estes conteúdos seguem uma narrativa na qual todos os problemas da humanidade são criados pelas religiões africanas: o desemprego, falta de moradia, problemas de saúde", entre outras questões. Por isso, "esta violência simbólica incita o espetador a acreditar que os problemas que ele tem se devem ao facto de que há um terreiro na sua rua, no seu bairro", frisou.

Hédio Silva Júnior é autor de uma ação que ganhou nos tribunais brasileiro para exigir direito de resposta a programas veiculadas pela Record, rede de televisão controlada pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que associava religiões africanas ao demónio, transmitindo conteúdo pejorativo como as 'sessões de descarrego', que simulam exorcismos de maus espíritos. A ação durou mais de dez anos a ser julgada, mas acabou por dar razão à queixa.

Oficialmente, o Brasil registou em 2019 pelo menos 200 ataques contra seguidores de religiões de matriz africana, o dobro em relação a 2018 p que reflete o crescente fanatismo religioso no país, segundo a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR).

Em alguns lugares, como no Rio de Janeiro, muitos ataques estão a ser realizados por traficantes de drogas, que se proclamam evangélicos. Segundo um balanço do Disque 100, um canal de denúncias do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, no primeiro semestre de 2019 (último dado disponível) houve um aumento de 56% no número de denúncias de intolerância religiosa em comparação com o mesmo período do ano anterior.