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'Apanhador no Campo de Centeio', que ganha nova tradução, ajudou a criar imagem do adolescente

Holden Caulfield, protagonista do livro, virou um símbolo da rebeldia juvenil

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O escritor J. D. Salinger, flagrado ao sair do supermercado, em 1988
O escritor J. D. Salinger, flagrado ao sair do supermercado, em 1988 - Reprodução
São Paulo

Holden Caulfield sente muita raiva. Sua voz tem uma fúria que os leitores marcados por “O Apanhador no Campo de Centeio” não esquecem. Sua revolta contra o mundo dos adultos está acesa diante dos olhos. O personagem criado por J. D. Salinger na década de 1950 virou, com isso, um símbolo da rebeldia juvenil.

Mas poderia ter virado, mais precisamente, um símbolo também da vulnerabilidade. Dentro da pedra bruta do seu discurso brilha um veio de fragilidade. No meio de grosserias, impropérios e palavrões, sua melancolia se infiltra —Holden sente pena, saudades, se deprime, tem vontade de chorar.

O romance marcou gerações de jovens pelo mundo todo. No Brasil, ganhara uma tradução nos anos 1960, feita pelos diplomatas Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jorio Dauster para a histórica Editora do Autor, fundada por Rubem Braga, Fernando Sabino e Walter Costa.

A casa não decolou, e, durante muito tempo, Salinger foi o único autor da editora. A tradução envelheceu e, por algum tempo, só foi possível comprar o romance pelos correios. Agora, uma nova versão para o português de “O Apanhador”, feita por Caetano W. Galindo, chega às livrarias. Ela coincide com diversas edições pelo mundo, em comemoração do centenário de Salinger.

“O mundo é diferente, mas algumas coisas não mudaram nem um pouquinho: a forma como estamos insatisfeitos com nossas vidas e queremos mudá-la, o fato de não querermos viver segundo regras impostas pelos outros, o desejo de encontrarmos um novo caminho para nós mesmos”, diz Matthew Salinger, filho do escritor, que administra o espólio literário do pai.

A livros como esse acontece algo especial. Em vez de serem apenas uma representação do mundo, eles ajudam a criar a realidade que todo mundo jurava que estavam apenas descrevendo. Foi o que “O Apanhador” fez, ao ajudar a criar a imagem que temos do adolescente, com sua rebeldia e suas angústias.

Antes da Segunda Guerra Mundial, esse não era um conceito importante. Depois dela, com milhares de jovens voltando da batalha e tantos outros que pereceram, o assunto passou a ser discutido —o New York Times publicou, em 1945, uma “Declaração de Direitos da Adolescência”, que incluía os direitos de questionar ideias, se divertir, ter amigos, errar e descobrir seus erros por conta própria.

Salinger, com 25 anos, era um dos jovens combatentes que retornava aos Estados Unidos. Esteve no Dia D, ajudou a libertar campos de concentração —e carregava consigo sempre os rascunhos de seu romance mais famoso.

“O impacto da guerra na obra do meu pai foi muito incompreendido. Claro, é impossível passar por aquilo e não ser afetado. Mas ele me disse bem claramente que a guerra só reforçou ideias que ele já tinha sobre a condição humana”, diz o filho do autor.

Além do livro, de 1951, começa a surgir uma longa tradição, com filmes como “Rebelde Sem Causa” (1955), livros como “On The Road” (1957), a exaltação do jovem como transformador do mundo nos anos 1960 e 1970, e que chega até obras mais recentes, como os filmes de Gus Van Sant, Larry Clark —ou ainda o gênero mais água com açúcar de histórias de “high school”.

Hoje, a literatura infantojuvenil é um dos principais filões a sustentar o mercado editorial. Ana Lima, ex-editora do selo Galera Record e leitora de Salinger, vê diferenças na forma como os jovens são retratados hoje —se antes o questionamento era contra o mundo adulto, agora ele se volta também para os problemas do mundo.

“É um livro seminal, mas acho que o cenário mudou um pouco. O adolescente hoje na literatura é menos autocentrado [do que o Holden]. Como o mundo está um pouco descontrolado, com a ecologia, por exemplo, o jovem foi obrigado a olhar ao seu redor e ser mais empático”, diz Lima.

O amadurecimento, claro, continua o tema central. No romance há um lamento pela perda da inocência —como fica claro na metáfora que Holden usa com sua irmã e dá título ao livro. Ele queria ser como um apanhador em um campo de centeio no qual correm crianças. O papel do personagem, que tem cabelos grisalhos desde pequeno, seria impedi-las de cair no abismo.

Ele me disse para publicar tudo de inédito, diz filho

Matthew Salinger se emociona ao contar que carrega consigo uma carta de uma leitora do pai. Com uma doença terminal, ela suplica e diz que não quer morrer sem ler o que Salinger deixou inédito.

“Essa carta me deixa alerta para o fato de que outras pessoas valorizam a relação delas como meu pai tanto quanto eu valorizo a minha”, diz.

Há nove anos, desde a morte do pai, ele está organizando e transcrevendo tudo de inédito que Salinger deixou. A orientação do escritor, diz ele, é publicar tudo, o bom e o ruim —e os leitores decidirão se gostam ou não.

Na verdade, completa, o criador de Holden Caulfield deixou um pedido para que só um pequeno número de escritos não fosse publicado. Quanto tempo vai demorar para a publicação da parte permitida? Mais de três anos, menos de dez, provavelmente cinco, afirma o herdeiro.

Ele não sabe dizer a quantidade de material disponível. Pede para o repórter pensar que Salinger, depois de aparentemente renunciar à literatura, escreveu de quatro a oito horas por dia, durante mais de 50 anos. Ou seja, o arquivo é grande.

Salinger, como se sabe, era um desses casos de autores que, depois de um grande sucesso, resolveu se escafeder. Não dava entrevistas. Não se deixava fotografar. E, sobretudo, não publicava. Seu filho também comentou o mistério por trás desse silêncio.

“Se você já leu sobre os interesses espirituais do meu pai [Salinger seguia o vedanta, sistema filosófico indiano]. Os mestres do vedanta defendiam a negação do ego e da vaidade. Ele não queria ser famoso. A relação com os leitores era a coisa mais importante da vida dele”, diz.

“Meu pai chegou ao ponto em que publicar era uma distração e uma disrupção monumentais. Ele viu que tinha que escolher entre publicar e escrever. E escolheu escrever. Se ele tivesse achado um jeito de publicar e não atrair tanta atenção, ele teria continuado.”

Uma parte do acervo sobre o qual Matthew Salinger ainda precisa se decidir são as cartas de seu pai. O filho revela que o escritor atuou, por correspondência, como conselheiro de jovens que escreviam para ele —em alguns casos, a troca de cartas se estende por décadas, afirma.

“É fascinante ver. Eram sempre pessoas conturbadas. Se ele visse que era autêntico, ele respondia. Se visse que a pessoa tinha algum interesse oculto, fugia.”

O Apanhador no Campo de Centeio

  • Preço R$ 59,90 (256 págs.)
  • Autoria J. D. Salinger
  • Editora Todavia
  • Tradução Caetano W. Galindo
  • Lançamento debate sobre a obra na ter. (18), às 19h30, na Biblioteca Mário de Andrade, r. da Consolação, 94
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