O touro de ouro de tolo

por Danilo Matoso

A Bolsa de Valores de São Paulo – que desde 2017 parece atender por “B3” – inaugurou, na última terça-feira (16), uma escultura de um gigantesco touro dourado na calçada diante de seu edifício, no centro da capital. A obra seria uma referência àquela existente em Nova York, próxima a Wall Street e símbolo do mercado financeiro em sua metrópole mais representativa. Segundo aquela que outrora se chamava Bovespa, a obra “simboliza o mercado financeiro e a força do povo brasileiro” e “representará especialmente as características da população brasileira”. Para o presidente da “B3”, Gilson Finkelsztain, “o Touro de Ouro representa a força e a resiliência do povo brasileiro. A B3 está trazendo esse novo símbolo para valorizar não apenas o centro de São Paulo, mas o desenvolvimento do mercado de capitais do Brasil”.

No dia da inauguração do Touro de Ouro, um sorridente Finkelsztain posou para fotos ao lado do corretor de ações e “coach” de investimentos Pablo Spyer, e de seu idealizador e responsável por sua concepção plástica, o arquiteto Rafael Brancatelli. Os três, de bochechas rosadas bem nutridas e queixos quadrados, pareciam uma espécie de corporificação dos tais Faria Limers – os coxinhas que vivem de investimento na bolsa. Ao contrário desse grupo bastante específico, porém, a reação geral da população não foi das melhores. Além de uma torrente interminável de memes e piadas nas redes sociais, a cada noite desde terça a peça sofre alguma hostilidade: uma pixação, um cartaz, um ato. A liderança do Psol, Guilherme Boulos – candidato à prefeitura de São Paulo nas últimas eleições – anunciou que recorrerá à Justiça pela retirada do ruminante do local. Após três dias, Brancatelli desabafaria: “não ganhei um real, mas estou sofrendo ataques”.

Dançando com touros

Mas de onde surgiu essa estória meio sem nexo de Faria Limers botando escultura no meio da rua? Por que eles fariam isso? Bem, a ideia é copiar outras bolsas de valores do mundo, que possuem estátuas de touros em suas imediações como símbolo de negócios prósperos, com tendência de alta. A representação vem de expressões usuais no mercado financeiro: bull market [mercado do touro] ou bear market [mercado do urso] correspondem respectivamente a mercado com tendência de alta e com tendência de baixa.

Essas expressões têm três séculos. Segundo o dicionário Merriam-Webster, teriam tido origem numa bolha de capital especulativo fomentada pela Companhia dos Mares do Sul [South Sea Company] especializada em “vender a pele do urso antes de caçar o animal”. O touro seria o “alter ego” do urso: o bom negócio. O poeta inglês Alexander Pope (1688-1744), relacionando as expressões com a mitologia clássica, escreveria em 1720: “Encha a copa dos Mares do Sul de ouro/ Os deuses cuidam das ações na bolsa:/ Europa, satisfeita, aceita o Touro/ E Jove, feliz, abandona a Ursa”.

Pablo Picasso. Mulher com vela, combate entre touro e cavalo, 1934.

Há muitos touros e afins nas memórias ocidentais. No episódio lembrado por Pope, Zeus – Júpiter, ou Jove, para os romanos – se transmuta num touro branco para raptar Europa, filha do rei fenício Agenor, e levá-la a nado para a ilha grega de Creta. Menos frequente nos relatos, a ursa é a jovem Calisto que encantara Júpiter e fora transformada no animal por sua enciumada esposa, Hera. A cultura bovina, vinda da África, seria bastante usual em todo o sul do continente europeu, produzindo mesmo uma cultura de tauromaquia, ou arte de tourear, que ainda persiste no sul da França, na península ibérica e em toda a América, com as farras do boi”, touradas e vaquejadas – hoje algo uniformizadas na forma estadunidense do rodeio, como na Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos.

Por sua força e tamanho, o touro é um permanente símbolo de uma força bruta violenta, indomável, uma realidade caótica quase impossível de ser domesticada. Mesmo no labirinto da razão, projetado pelo arquiteto Dédalo em Creta, habitava o filho de um touro – o Minotauro – que devorava quem por ali se aventurasse. Touro, minotauro, tauromaquia habitam nosso imaginário. Não é por acaso que a arte de tourear aparece na obra de um Francisco de Goya, pintor espanhol do século 19, ou de um Pablo Picasso no século 20.

Cartaz de convocação para a ocupação de Wall Street, em 2011.

Acostumados com os monstros da razão, os alemães instalaram às portas da quadricentenária Bolsa de Valores de Frankfurt as esculturas de um touro e de um urso de bronze em 1985, executados pelo artista Reinhard Dachlauer. Filho da tradição mediterrânea, o escultor siciliano Arturo di Modica decidiu esquecer do urso plantar a estátua de bronze de um touro feroz em frente à Bolsa de Valores de Nova York em 14 de dezembro de 1989. O artista decidiu fazê-lo sem qualquer autorização, como uma demonstração de uma “vontade indômita” do indivíduo que independe do mercado – que havia acabado de sofrer uma forte queda em 1987. Batizada de Touro atacando [Charging Bull], a obra teve grande impacto e – relocada para o vizinho parque de Bowling Green, na famosa Broadway – acabou se tornando um monumento internacional ao mercado de capitais – e ao capitalismo.

Tornou-se também, é claro, o alvo preferido de ativistas de esquerda em Nova York. Diz-se que o movimento Occupy Wall Street começou em 2011 com um poster que estampava a foto de uma bailarina descalça equilibrada sobre a estátua e a chamada: #OccupyWallStreet september 17th. Bring tent [#OcuparWallStreet em 17 de setembro. Traga barraca]. Em março de 2017, a escultora Kirsten Visbal instalou diante do touro a estátua de uma criança latina de punhos na cintura e peito empinado, confrontando o animal, chamada Garota sem Medo [Fearless Girl]. Parece que os investidores da capital do mundo não compartilhavam da coragem da pequenina, e apesar de alguma mobilização popular por sua permanência, ela foi retirada após 13 meses no local. Aparentemente, o capital só acolhe a vontade indômita de brutamontes.

A Garota sem Medo diante do touro, em 2017.

Ouro de touro

De volta ao Brasil, o economista Pablo Spyer criaria em 2020 nas redes sociais e na rádio Jovem Klan o programa Minuto do Touro de Ouro. Ali ele comparece diariamente de gravata, com as mangas arregaçadas e a verve de um locutor de rodeio para trazer notícias e dicas de investimentos. Nascido em Buenos Aires, Spyer é ex-executivo do Santander, da Mirae Asset, da EQI Investimentos – ligada ao BTG Pactual – e de congêneres. Em junho deste ano, ele se tornou sócio da XP Investimentos e criou uma empresa de educação financeira batizada de “Vai Tourinho S/A” – o bordão que ele grita empolgado no programa ao dar uma notícia de alta. Como é de se imaginar, o símbolo do programa e da empresa é uma imagem dourada do touro novaiorquino. Por isso foi a Spyer que o criador da escultura do touro recorreu para levá-la adiante.

A ideia da escultura veio de Rafael Brancatelli, um dos proprietários do escritório “DMAISB Construções”, especializada em reformas de interiores. Segundo explicado por ele mesmo, a estátua surgiu no começo da pandemia, a partir da participação do arquiteto num grupo chamado Pró-Centro, que o teria levado a pensar: “é algo que vai chamar a atenção, fomentar o turismo. As pessoas frequentam mais lugares que têm uma obra de arte. Elas vão lá para tirar foto e tudo mais. Pensei em criar um touro porque é um animal que eu gosto. Eu sou do signo de touro. É um animal presente em todo o mundo e é um símbolo de força, resistência e resiliência”. Segundo a Agência Globo, “o profissional de 41 se classifica como arquiteto e ‘artista plástico’, mas não é fácil acessar informações sobre suas criações artísticas, já que grande parte delas é formada por quadros, pinturas e desenhos que são feitos para amigos ou clientes”. Além dos ataques de que se vem se queixando, Brancatelli pode amargar um processo por violação de direitos autorais. A BBC já se apressou em verificar que a família de Arturo di Modica “não foi consultada sobre a versão da estátua no Brasil”.

Deve ser algum tipo de humor inglês, pois o boi brasileiro claramente não é uma réplica do estadunidense – como aliás o próprio Brancatelli faz questão de reforçar. Feito com estrutura de aço e fechamento de fibra de vidro pintada de dourado, o bicho de uma tonelada lembra mais um boneco de carrossel que o Charging Bull de Wall Street. Nada da sutil musculatura e as costelas visíveis produzidas pelo siciliano: em seu lugar uma massa amorfa de quase três metros de altura. Os chifres estão na horizontal, ameaçando os olhos dos transeuntes; o rabo apoiado no costado – provavelmente por falta de estrutura – parece espantar moscas e não ensejar um ataque; os glúteos avantajados dão a entender que o animal era frequentador de alguma academia de Faria Limers; curiosas argolas próximas aos cascos, nas quatro patas, lembram mais uma tornozeleira da Polícia Federal que os mocotós de um bovino saudável; a feição apaspalhada de quem ouviu uma piada e não entendeu talvez remeta à mentalidade de seus idealizadores.

Touro de ouro em São Paulo. Foto: Instagram

E não é que a técnica impeça uma precisão maior. De armaduras de aço e pele de concreto, o escultor Marcelo Nitsche fez bovinos bastante mais simpáticos na década de 1980 – uma delas naturalizada belorizontina, se tornou xodó do bairro Santo Antônio.De aço e fibra de vidro, exatamente assim como o Touro de Ouro, era o grande e delicado “Monumento às Quatro Raças” feito por Mário Cravo para as imediações do Mercado Modelo em Salvador – obra infelizmente consumida por um incêndio há dois anos.

Desnecessário pontuar a questão da relação entre o boi, o presidente da República e seus seguidores. É o óbvia. Desnecessário lembrar aqui também que esse Bezerro de Ouro bíblico é uma representação literal do poder do capital e do imperialismo entre nós, de que nossa burguesia é apenas uma cópia brega e subserviente em franco colapso mental. Nesse sentido, e para uma vez mais recorremos à mitologia grega, esse boi oco talvez lembre a estória de Pasifae, esposa do rei Minos de Creta. Poseidon, deus desafeto do monarca, fez com que ela se apaixonasse pelo touro branco que sequestrara Europa e que ainda pastava na ilha. Dédalo, o arquiteto do labirinto, fez então uma vaca oca de madeira coberta com couro bovino, permitindo à rainha entrar nela e satisfazer seu desejo com o touro. Do ato, nasceria o Minotauro, com cabeça de boi e corpo humano. Talvez essa turma tenha feito essa carcaça para dentro dela satisfazer seus desejos com investidores de Wall Street. Vai saber…

Mas talvez essa seja uma elaboração excessiva sobre um objeto tão tosco. O touro pode até nas intenções de seus criadores querer significar muita coisa, mas a melhor explicação vem de um ativista da SP Invisível, ligada a moradores de rua, que disse ao realizar um ato diante do Touro de Ouro em que se preparavam e vendiam espetinhos de carne na brasa:

Os caras falam que tem progresso, que tem grana. Enquanto o Brasil está com fome, o Brasil está sem emprego.

No capitalismo, se você chegar para um empresário, para um grande investidor, ele vai estar bem, porque vai estar no topo. Porém para quem está em situação de rua, para quem depende de uma reciclagem, ou até mesmo da caridade de um irmão para estar se alimentando, isso aqui não significa nada.

Pablo Picasso. Minotauromaquia, 1935.

2 comentários

  1. […] Para O Partisano , “Deve ser algum tipo de humor inglês, pois o boi brasileiro claramente não é uma réplica do estadunidense – como aliás o próprio Brancatelli faz questão de reforçar. Feito com estrutura de aço e fechamento de fibra de vidro pintada de dourado, o bicho de uma tonelada lembra mais um boneco de carrossel que o Charging Bull de Wall Street. Nada da sutil musculatura e as costelas visíveis produzidas pelo siciliano: em seu lugar uma massa amorfa. Os chifres estão na horizontal, ameaçando os olhos dos transeuntes; o rabo apoiado no costado – provavelmente por falta de estrutura – parece espantar moscas e não ensejar um ataque; os glúteos avantajados dão a entender que o animal era frequentador de alguma academia de Faria Limers; curiosas argolas próximas aos cascos, nas quatro patas, lembram mais uma tornozeleira da Polícia Federal que os mocotós de um bovino saudável; a feição apaspalhada de quem ouviu uma piada e não entendeu talvez remeta à mentalidade de seus idealizadores”. […]

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  2. […] Para O Partisano , “Deve ser algum tipo de humor inglês, pois o boi brasileiro claramente não é uma réplica do estadunidense – como aliás o próprio Brancatelli faz questão de reforçar. Feito com estrutura de aço e fechamento de fibra de vidro pintada de dourado, o bicho de uma tonelada lembra mais um boneco de carrossel que o Charging Bull de Wall Street. Nada da sutil musculatura e as costelas visíveis produzidas pelo siciliano: em seu lugar uma massa amorfa. Os chifres estão na horizontal, ameaçando os olhos dos transeuntes; o rabo apoiado no costado – provavelmente por falta de estrutura – parece espantar moscas e não ensejar um ataque; os glúteos avantajados dão a entender que o animal era frequentador de alguma academia de Faria Limers; curiosas argolas próximas aos cascos, nas quatro patas, lembram mais uma tornozeleira da Polícia Federal que os mocotós de um bovino saudável; a feição apaspalhada de quem ouviu uma piada e não entendeu talvez remeta à mentalidade de seus idealizadores”.  […]

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