História

Por Anna Swartwood House*


Cabeça de Cristo, por Warner Sallman (Foto: Wikimedia Commons) — Foto: Galileu
Cabeça de Cristo, por Warner Sallman (Foto: Wikimedia Commons) — Foto: Galileu

A representação de Jesus como um homem branco e europeu passou por um exame minucioso durante este período de introspecção sobre o legado do racismo na sociedade. Enquanto os manifestantes pediam a remoção das estátuas confederadas nos Estados Unidos, o ativista Shaun King foi além, sugerindo que murais e obras de arte representando "Jesus branco" deveriam "ser retiradas".

Suas preocupações sobre a representação de Cristo e como ela é usada para sustentar noções de supremacia branca não estão isoladas. Eruditos proeminentes e o arcebispo de Canterbury, na Inglaterra, pediram para reconsiderar o retrato de Jesus como um homem branco.

Como historiadora de arte do Renascimento europeu, estudo a evolução da imagem de Jesus Cristo de 1350 a 1600. Algumas das representações mais conhecidas de Cristo, da “Última Ceia”, de Leonardo da Vinci, ao “Último Julgamento”, de Michelangelo, na Capela Sistina, foram produzidas durante esse período.

Mas a imagem mais reproduzida de todos os tempos de Jesus vem de outro período. É a "Cabeça de Cristo" que tem cabelos claros e foi feita em 1940 por Warner Sallman. Um ex-artista comercial que criou arte para campanhas publicitárias, Sallman vendeu com sucesso esta imagem em todo o mundo.

Por meio de parcerias de Sallman com duas editoras cristãs, uma protestante e uma católica, a "Cabeça de Cristo" passou a ser incluída em tudo, desde cartões de oração a vitrais, pinturas a óleo falsas, calendários, hinários [livros de canções religiosas] e luzes noturnas. Sua pintura é o ápice de uma longa tradição de europeus brancos que criam e divulgam imagens de Cristo feitas à sua própria imagem.

Em busca da santa face
O Jesus histórico provavelmente tinha os olhos castanhos e a pele como a de outros judeus do primeiro século da Galileia, uma região no Israel bíblico. Mas ninguém sabe exatamente como Jesus era. Não há imagens conhecidas de sua vida e, embora os reis Saul e David do Antigo Testamento sejam explicitamente chamados de altos e bonitos na Bíblia, há pouca indicação da aparição de Jesus no Antigo ou Novo Testamento.

Mas até estes textos são contraditórios. O profeta Isaías, do Antigo Testamento, indica que o futuro salvador "não tinha beleza nem majestade", enquanto o Livro dos Salmos afirma que ele era "mais belo do que os filhos dos homens", a palavra "fair" ["fairer than the children of men", em inglês] se referindo à beleza física.

O Bom Pastor, situado na Catacumba de Priscilla, em Roma (Foto: Wikimedia Commons) — Foto: Galileu
O Bom Pastor, situado na Catacumba de Priscilla, em Roma (Foto: Wikimedia Commons) — Foto: Galileu

As primeiras imagens de Jesus Cristo surgiram entre os séculos 1 e 3 d.C em meio a preocupações com a idolatria. Os artistas estavam menos interessados em retratar a aparência real de Cristo do que em esclarecer seu papel como governante ou salvador.

Para indicar claramente esses papéis, os primeiros artistas cristãos costumavam confiar no sincretismo, o que significa que combinavam formatos visuais de outras culturas. Provavelmente a imagem sincrética mais popular é Cristo como o Bom Pastor, uma figura jovem e sem barba, baseada nas representações pagãs de Orfeu, Hermes e Apolo.

Em outras representações comuns, Cristo usa uma toga ou outros atributos [geralmente utilizados pelo] imperador. O teólogo Richard Viladesau argumenta que o Cristo barbudo e maduro, com cabelos longos no estilo "sírio", combina características do deus grego Zeus, de Sansão, figura do Antigo Testamento, entre outros.

Cristo como auto-retratista
As primeiras representações de Cristo eram consideradas autorretratos: as acheiropoietas eram consideradas imagens milagrosas, que não teriam sido "feitas pelas mãos humanas". Essa crença se originou no século 6 d.C., com base na lenda de que Cristo teria curado o rei Abgar de Edessa, na atual Urfa, na Turquia, através de uma imagem milagrosa de seu rosto, agora conhecido como Mandylion.

Acheiropoieta. Criada na Rússia entre os séculos 12 e 13. (Foto: Wikimedia Commons) — Foto: Galileu
Acheiropoieta. Criada na Rússia entre os séculos 12 e 13. (Foto: Wikimedia Commons) — Foto: Galileu

Uma lenda semelhante adotada pelo cristianismo ocidental entre os séculos 11 e 14 conta como, antes de sua morte por crucificação, Cristo deixou uma impressão de seu rosto no véu de Santa Verônica, uma imagem conhecida como "Volto Santo" ou "Santa Face de Jesus".

Essas duas imagens, unidas a outras relíquias semelhantes, formaram a base de tradições icônicas sobre a "imagem verdadeira" de Cristo. Do ponto de vista da história da arte, estes artefatos reforçavam uma imagem já padronizada de um Cristo barbudo, com cabelos escuros na altura dos ombros.

Cristo coroado com espinhos, de Antonello da Messina, 1470. (Foto: MetMuseum/Wikimedia Commons) — Foto: Galileu
Cristo coroado com espinhos, de Antonello da Messina, 1470. (Foto: MetMuseum/Wikimedia Commons) — Foto: Galileu

No Renascimento, artistas europeus começaram a combinar o ícone e o retrato, fazendo Cristo à sua própria semelhança. Isso aconteceu por várias razões, desde a identificação com o sofrimento humano de Cristo até o uso do poder criativo.

O pintor siciliano do século 15 Antonello da Messina, por exemplo, pintou pequenas imagens do sofrimento de Cristo, formatado exatamente como retratos de pessoas comuns. Ele posicionou o sujeito entre um parapeito fictício e um fundo preto liso e escreveu "Antonello da Messina me pintou".

O artista alemão do século 16, Albrecht Dürer, obscureceu a linha entre a face sagrada e sua própria imagem em um famoso autorretrato de 1500. Ele posou frontalmente como um ícone, com sua barba e cabelo na altura dos ombros, lembrando o de Cristo. O monograma “AD” pode significar igualmente “Albrecht Dürer” ou “Anno Domini” — "no ano de nosso Senhor".

Autorretrato, de Albrecht Dürer, 1500. (Foto: Wikimedia Commons) — Foto: Galileu
Autorretrato, de Albrecht Dürer, 1500. (Foto: Wikimedia Commons) — Foto: Galileu

À imagem de quem?
Esse fenômeno não se restringiu à Europa: existem imagens dos séculos 16 e 17 de Jesus com, por exemplo, traços etíopes e indianos. Na Europa, no entanto, a imagem de um Cristo europeu de pele clara começou a influenciar outras partes do mundo através do comércio e da colonização europeus.

A "Adoração dos Reis Magos", do pintor italiano Andrea Mantegna, de 1505 d.C., apresenta três Reis Magos distintos, que, segundo uma tradição contemporânea, vieram da África, Oriente Médio e Ásia. Eles apresentam objetos caros de porcelana, ágata e latão que teriam sido valorizados pelas importações da China e dos impérios Otomano e Persa.

Adoração dos Magos, de Andrea Mantegna, entre 1495 e 1505 (Foto: Wikimedia Commons) — Foto: Galileu
Adoração dos Magos, de Andrea Mantegna, entre 1495 e 1505 (Foto: Wikimedia Commons) — Foto: Galileu

Mas a pele clara e os olhos azuis de Jesus sugerem que ele não é do Oriente Médio, mas nascido na Europa. E a escrita falsa-hebraica bordada nos punhos e na bainha de Maria desmente uma relação complicada com o judaísmo da Sagrada Família.

Na Itália de Mantegna, os mitos antissemitas já eram predominantes na maioria da população cristã, com o povo judeu frequentemente segregado em seus próprios bairros das principais cidades.

Os artistas tentaram distanciar Jesus e seus pais do judaísmo. Mesmo atributos aparentemente pequenos como orelhas furadas — brincos eram associados a mulheres judias, sua remoção com uma conversão ao cristianismo — poderia representar uma transição para o Cristianismo representado por Jesus.

Muito mais tarde, forças antissemitas na Europa, incluindo os nazistas, tentariam separar Jesus totalmente de seu judaísmo em favor de um estereótipo ariano.

Jesus branco no exterior
Enquanto os europeus colonizavam terras cada vez mais distantes, eles levavam um Jesus europeu com eles. Os missionários jesuítas estabeleceram escolas de pintura que ensinavam aos convertidos a arte cristã em modelo europeu.

Um pequeno retábulo feito na escola de Giovanni Niccolò, o jesuíta italiano que fundou o "Seminário de Pintores" em Kumamoto, Japão, por volta de 1590, combina um santuário tradicional japonês, feito de ouro e madrepérola, com a pintura de uma Madona branca e criança europeias.

Na América Latina colonial, chamada “Nova Espanha” pelos colonos europeus, as imagens de Jesus branco reforçavam o sistema de castas em que brancos (europeus cristãos) ocupavam o nível superior. Enquanto isso, aqueles com pele mais escura, fruto da "mistura com populações nativas", eram consideravelmente inferiores.

A pintura do artista Nicolas Correa, em 1695, de Santa Rosa de Lima, a primeira santa católica nascida na Nova Espanha, mostra seu casamento metafórico com um Cristo loiro de pele clara.

Os matrimônios místicos de Rosa de Lima, por Nicolás Correa, 1691 (Foto: Wikimedia Commons) — Foto: Galileu
Os matrimônios místicos de Rosa de Lima, por Nicolás Correa, 1691 (Foto: Wikimedia Commons) — Foto: Galileu

Legados de semelhança
Os estudiosos Edward J. Blum e Paul Harvey argumentam que, nos séculos após a colonização europeia das Américas, a imagem branca de Cristo o associou à lógica do Império e poderia ser usada para justificar a opressão dos nativos e afro-americanos.

Em uma América multirracial, mas desigual, havia uma representação desproporcional de um Jesus branco na mídia. Não foi apenas a "Cabeça de Cristo" de Warner Sallman que foi amplamente retratada: uma grande proporção de atores que interpretaram Jesus na televisão e no cinema eram brancos de olhos azuis.

As imagens de Jesus historicamente têm servido a muitos propósitos, desde simbolicamente apresentar seu poder até representar sua real semelhança. Mas a representação é importante, e os espectadores precisam entender a complicada história das imagens de Cristo que consomem.

*Professora assistente de história de arte na Universidade da Carolina do Sul, nos Estados Unidos. Texto originalmente publicado no The Conversation.

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