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Do 11/9 ao Grande Reset
13/09/2020 Redação D.E. 2 Comments 13 min read
Por Pepe Escobar*
“Com certeza há revelação à mão.”
“A Segunda Vinda”, W. B. Yeats[1]
O 11/9 foi a pedra inaugural do novo milênio – tão completamente indecifrável
quanto os Mistérios Eleusinos. Há um ano, em Asia Times, outra vez levantei
várias perguntas que ainda não encontraram respostas.
Entre as flechas dos arcos e pedras das fundas que voaram como raios de
ultrajante desgraça e rasgaram essas duas décadas, com certeza incluem-se as
seguintes: O fim da história. O breve momento unipolar. A Longa Guerra do
Pentágono. A Segurança Nacional. A Lei Patriótica. Choque e Pavor. A
tragédia/debacle no Iraque. A crise financeira de 2008. A Primavera Árabe.
Revoluções coloridas. “Liderar pela retaguarda”. Imperialismo humanitário.
Síria, a como guerra por procuração absoluta. A farsa ISIS/Daech. O Plano
Abrangente de Ação Conjunta (Joint Comprehensive Plan of Action, JCPOA,
conhecido como “Acordo do Irã” e “Acordo Nuclear”). Maidan. A Era das
Operações ‘Psicológicas’ (Psyops). A Era do Algoritmo. A Era do 0,0001%.
Outra vez entramos fundo em território de Yeats: “Os melhores vacilam, e os
piores andam cheios de irada intensidade.”[2]
Ao mesmo tempo, a “Guerra ao Terror” – decantação da Longa Guerra –
avançou sem trégua, matou multidões de muçulmanos e arrancou das próprias
terras pelo menos 37 milhões de pessoas.
Chegou ao fim a geopolítica derivada da 2ª Guerra Mundial. Está em
andamento a Guerra Fria 2.0. Começou como EUA contra Rússia, virou EUA
contra China; e agora, completamente desmascarada como Estratégia de
Segurança Nacional dos EUA, e com apoio dos dois principais partidos, é EUA
contra ambas. O pesadelo absoluto de Mackinder-Brzezinski está à vista: o
muito temido “concorrente” na Eurásia rasteja rumo à [avenida] Beltway para
nascer[3] sob a forma da parceria estratégica Rússia-China.
Algo tem de ceder.[4] E então, sem mais nem menos, do nada, aconteceu.
Um impulso planejado na direção de concentração de poder com garras de aço
e diktats econômicos foi conceptualizado antes – sob uma fachada de
“desenvolvimento sustentável” – já em 2015, na ONU (aqui, em detalhes).
Agora, esse novo sistema operacional – ou distopia digital tecnocrática – está
sendo finalmente codificada, embalada e “vendida”, desde meados do verão,
mediante campanha abundante, ostensiva, consertada, de propaganda.
Zele pelo seu espaço mental
Toda a histeria no Planeta Confinamento que elevou a Covid-19 a dimensões
de moderna Peste Negra já foi consistentemente desmascarada, por exemplo,
aqui e aqui, a partir de conhecimento original que vem de fonte da altamente
respeitada, de Cambridge.
A demolição de fato controlada de vastas porções da economia global garantiu
ao capitalismo das corporações e abutres, em todo o mundo, lucros
indescritíveis, arrancados do colapso e da destruição de empresas e negócios.
E tudo feito com a mais ampla cumplicidade das massas – processo espantoso
de servidão voluntária.
Nada disso é acidental. Por exemplo, há mais de dez anos, desde antes de criar
uma Equipe de Insights Comportamentais [ing. Behavioral Insights Team], o
governo
britânico
já
estava
muito
interessado
em
“influenciar”
comportamentos, em colaboração com a London School of Economics e o
Imperial College.
O resultado foi o relatório MINDSPACE. É a ciência do comportamento usada
para influenciar os políticos e a política e, sobretudo, para impor controle neoOrwelliano sobre a população.
Crucialmente importante, MINDSPACE manifestou colaboração estreita entre
o Imperial College e a empresa RAND, de Santa Monica. Tradução: os autores
dos modelos computacionais absurdamente falhados que alimentaram a
paranoia do Planeta Confinamento, operaram em conjunção com o principal
think-tank ligado ao Pentágono.
Em MINDSPACE, lê-se que “abordagens comportamentais encorporam uma
linha de pensamento que se desloca, da ideia de um indivíduo autônomo que
toma decisões racionais, para um tomador ‘situado’ de decisões [ing. ‘situated’
decision-maker], cujo comportamento, em grande parte, é automático e
influenciado pelo respectivo ‘ambiente de escolha’ [ing. ‘choice environment’]”.
Assim, a pergunta chave é quem decide qual é o ‘ambiente de escolha’. Hoje,
todo nosso ambiente é condicionado pela [pandemia e vírus] Covid-19.
Chamemos de “a doença”. E dá e sobra para estabelecer muito belamente “a
cura”: The Great Reset.
O coração pulsante
O Grande Reset foi oficialmente lançado no início de junho pelo Fórum
Econômico Mundial, FEM – habitat natural do Homem de Davos. A base
conceitual é algo que o FEM descreve como Plataforma de Inteligência
Estratégica [ing. Strategic Intelligence Platform: “sistema dinâmico de
inteligência contextual que capacita os usuários para que tracem
relacionamentos e interdependências entre as questões, como suporte para
tomar decisões mais bem informadas”.
Essa plataforma promove complexo cruzamento e mútua penetração entre a
doença Covid-19 e a Quarta Revolução Industrial – conceptualizada já em
dezembro de 2015 e cenário futurista escolhido pelo Fórum Econômico
Mundial. Um não pode existir sem o outro. Visa a imprimir no inconsciente
coletivo – pelo menos no ocidente – a noção de que só a abordagem “de
acionista” autorizada pelo FEM é capaz de superar o desafio da doença Covid19.
O Grande Reset é imensamente ambicioso, cobrindo mais de 50 campos
de conhecimento e prática. Interconecta tudo, de recomendações para
recuperação da economia, até “modelos de negócios sustentáveis”, de
restauração ambiental até redesenho de contratos sociais.
O coração pulsante dessa matrix é – e que mais seria? – a Plataforma de
Inteligência Estratégica, que reúne literalmente tudo: “desenvolvimento
sustentável”, “governança global”, mercados de capital, mudança climática,
biodiversidade, direitos humanos, paridade de gênero LGBTI, racismo
sistêmico, comércio e investimento internacional, o – duvidoso – futuro das
indústrias e viagens e turismo, alimento, poluição do ar, identidade digital,
blockchain, 5G, robótica, inteligência artificial (IA).
No final, só um plano geral A faz interagirem todos esses sistemas, sem saltos
ou emendas: o Grande Reset – abreviatura de uma Nova Ordem Mundial
sempre evocada com deslumbramento, mas jamais implementada. E não há
Plano B.
O “legado” da [doença] Covid-19
Os dois principais atores por trás do Grande Reset são Klaus Schwab,
fundador e presidente executivo do Fórum Econômico Mundial; e a
diretora-gerente do FMI Kristalina Georgieva. Georgieva não tem
qualquer dúvida de que “a economia digital é a grande vitoriosa dessa
crise”. Crê firmemente que o Grande Reset deva começar,
necessariamente, em 2021.
A Casa de Windsor e a ONU são os principais coprodutores executivos.
Principais patrocinadores incluem BP, Mastercard e Microsoft. Desnecessário
dizer que todos quantos sabem como são tomadas as mais complexas decisões
geopolíticas e geoeconômicas sabem que esses dois principais atores só fazem
cumprir roteiro decorado. Os autores são, digamos assim, “a elite globalista”.
Ou, em homenagem a Tom Wolfe, “os Senhores do Universo”.
Schwab, como se poderia prever, escreveu o minimanifesto do Grande Reset.
Um mês depois, expandiu muitíssimo a conexão-chave: o “legado” da [doença]
Covid-19.
Tudo isso foi devidamente engordado num livro, escrito em coautoria com
Thierry Malleret, diretor da Rede de Risco Global do Fórum Econômico
Mundial [ing. WEF’s Global Risk Network]. A Covid-19 é descrita como fator
que “criou grande reset disruptivo dos nossos sistemas global, social, econômico
e político”. Schwab pinta a [doença] Covid-19 não só como “oportunidade”
fabulosa, mas, realmente, como fator criador (itálicos meus) do – agora inevitável
– Reset.
Tudo isso se encaixa lindamente com a ideia filhote do próprio Schwab: a
[doença] Covid-19 “acelerou nossa transição para a era da Quarta Revolução
Industrial”. A revolução vem sendo exaustivamente discutida em Davos desde
2016.
A tese central do livro é que nossos mais prementes desafios têm a ver
com o meio ambiente – considerado só em termos de mudança climática
– e com desenvolvimentos tecnológicos, que permitirão a expansão da
Quarta Revolução Industrial.
Em resumo: o Fórum Econômico Mundial está declarando oficialmente morta
a globalização empresarial, modus operandi hegemônico desde os anos 1990s.
Agora é tempo de “desenvolvimento sustentável”. – E é “sustentável” o que
for declarado “sustentável” por um seleto grupo de “acionistas”, idealmente
integrados numa “comunidade de interesses, objetivos e ação comuns (sic).”
Atilados observadores do Sul Global não deixarão de comparar a retórica do
FEM de “comunidade de interesses comuns” à “comunidade de interesses
partilhados” chinesa, que se aplioca à Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE), que,
sim, é projeto continental de comércio/desenvolvimento.
O Grande Reset pressupõe que todos os acionistas – em todo o planeta –
alinhem-se perfeitamente. Se não, como Schwab destaca, teremos “mais
polarização, mais nacionalismo, mais racismo, agitação social crescente e mais
conflitos”.
Assim sendo – mais uma vez – é ultimato tipo “você está conosco ou
contra nós” – reminiscência espectral do nosso velho mundo do 11/9. Ou
o Grande Reset estabelecido pacificamente, com todas as nações
devidamente subservientes, obedecendo as novas orientações definidas
por um punhado de autonomeados sábios de República neoplatônica, ou
o caos.
Se a Covid-19 e respectiva “janela de oportunidade” apareceram por aí por
acaso, ou se apareceu por projeto, permanece sempre como questão das mais
sumarentas.
Neofeudalismo digital
A reunião ‘real’, cara a cara, em Davos, ano que vem, foi adiada para o
verão de 2021. Mas Davos virtual acontecerá em janeiro, focada no
Grande Reset.
Já há três meses, o livro de Schwab sugeria que quanto mais todos se
deixem prender na paralisia global, mais claramente se verá que não se
permitirá (itálicos meus) que as coisas voltem ao que, antes, se
considerava normal.
Há cinco ano, a Agenda 2030 da ONU – madrinha do Grande Reset – já
insistia em vacinas para todos, sob patrocínio da Organização Mundial
de Saúde e da CEPI – iniciativa fundada em 2016 por Índia, Noruega e a
fundação de Bill e Belinda Gates.
O timing não poderia ser mais conveniente para o notório Event 201.
“Exercício para pandemia” em outubro do ano passado em New York, com o
Johns Hopkins Center para Segurança da Saúde, em parceria com – adivinhem!
– o Fórum Econômico Mundial e a Fundação Bill e Melinda Gates. Os leõesde-chácara da mídia não admitem crítica que não seja superficial, dos motivos
dos Gates, porque, afinal de contas, os Gates financiam aqueles leões de chácara
daquela mídia.
Mas já está imposto como consenso mantido com mão de ferro que sem uma
vacina que neutralize a Covid-19 não há qualquer possibilidade de coisa alguma
que sequer se pareça com normalidade.
E artigo espantoso publicado no Virology Journal – que também publica o que
diz o Dr. Fauci – demonstra muito claramente que “cloroquina é potente
inibidor da infecção e disseminação de infecção por coronavírus na SARS”.
Trata-se de droga “relativamente segura, efetiva e barata” cujo significativo
efeito inibitório antiviral quando as células um possível uso profilático e
terapêutico.”
Até o livro de Schwab admite que Covid-19 é “uma das pandemias menos
mortais nos últimos 2.000 anos” e que suas consequências “serão pouco graves,
comparadas às de pandemias anteriores”.
Não importa. O que importa sobretudo é a “janela de oportunidade” que [a
doença] Covid-19 oferece, promovendo, dentre outras questões, a expansão do
que já descrevi como Neofeudalismo Digital – ou o Algoritmo devora a Política.
Não surpreende que instituições político-econômicas, da Organização Mundial
do Comércio à União Europeia e à Comissão Trilateral já estejam investindo
em processos de “rejuvenescimento”, expressão codificada para “mais
concentração de poder”.
Vigie os imponderáveis
O filósofo alemão Hartmut Rosa é um dos raros pensadores que veem o
suplício pelo qual estamos passando, como rara oportunidade para
“desacelerar” a vida em tempos de turbocapitalismo.
Hoje, não se trata de “ataque contra o estado-civilização”. Trata-se de estadoscivilizações – como China, Rússia, Irã – não submetidos ao Hegemon, que
tendem a mapear curso bem diferente.
O Grande Reset, apesar de tantas ambições universalistas, permanece como
modelo insular, ocidente-cêntrico, que só beneficia o proverbial 1%. A Grécia
Antiga não se via como “Ocidental”. O Grande Reset é, essencialmente, projeto
derivado do Iluminismo.
Se se examina a trilha adiante, com certeza a vemos cheia de imponderáveis.
Desde o Fed a disparar dinheiro digital diretamente para aplicativos financeiros
de smartphones nos EUA, até a China a promover um sistema de
comercial/econômico para toda a Eurásia, ao mesmo tempo em que
implementa o yuan digital.
O Sul Global dedicará muita atenção ao agudo contraste entre, de um lado, a
proposta desconstrução-liquidação da ordem econômica industrial; e, de outro
lado, o projeto Iniciativa Cinturão e Estrada – focado num novo sistema de
financiamento fora do monopólio ocidental, e que enfatiza o crescimento
agroindustrial e o desenvolvimento sustentável de longo prazo.
O Grande Reset apontará contra nações perdedoras, agregando todas as que se
beneficiam da produção e do processamento de energia e agricultura de Rússia,
China e Canadá, até Brasil, Indonésia e grandes áreas da África.
Hoje, só uma coisa se sabe com razoável certeza: o establishment no coração do
Hegemon e os orcos babões do Império só acionarão o Grande Reset se
entenderem que assim ajudam a reduzir a velocidade do declínio, acelerado
numa manhã fatídica, há 19 anos.
_____
[1] Orig. Surely some revelation is at hand (Yeats, The Second Coming, A Segunda
Vinda W. B. Yeats, “A Segunda Vinda”, in W. B. Yeats – poemas [organização,
prefácio, tradução e notas Paulo Vizioli]. São Paulo: Companhia das Letras,
1992.). Epígrafe acrescentadas pelos tradutores.
[2] Yeats, The Second Coming, A Segunda Vinda. Loc. Cit.
[3] Muita coisa sempre se perde na tradução. Aí, Pepe está praticamente
‘citando’ Yeats, no poema já referido: “And what rough beast, its hour come
round at last, Slouches towards Bethlehem to be born?” / Na coluna acima,
orig.: [the “peer competitor”] in Eurasia slouched towards the Beltway to be
born (…)” [NTs].
[4] Bing Crosby, 1954-1956 (ouve-se aqui) [NTs].
Pepe Escobar é analista de Geopolítica e colunista do Asia Times.
*
Com permissão do autor. Artigo originalmente publicado no Asia Times, em
10 de setembro de 2020. Tradução de Vila Mandinga.