Lições de elevador

Foto

No patamar da minha casa há uma instalação plástica interessante, gostava de conhecer o artista. As visitas, quando saem, olham um cartaz que brilha no escuro com as instruções: NÃO USE O ELEVADOR (um casal de bonequinhos vermelhos, homem e mulher, uma cruz vermelha por cima); USE AS ESCADAS (dois bonequinhos homens verdes descem a correr escadas verdes); CRIANÇAS COM MENOS DE DEZ ANOS SÓ ACOMPANHADAS (homenzinho verde dá a mão a menina verde); NÃO FUME NO ELEVADOR (cigarro vermelho, cruz por cima).

Até hoje, dois amigos descobriram que este aviso de emergência é louco: não diz por que é não se pode usar. Não fala em incêndio, não refere terramoto ou maremoto ou motim, proíbe a utilização dos dois elevadores do prédio e mais nada! Ordena-me que desça as escadas a correr, sem explicar. Os elevadores até estão bons (por enquanto).

É uma experiência de simulacro que, parece-me, tem a ver com a arte contemporânea (uma coisa parece outra, o material engana o olhar, uma informação oficial revela-se absurda, etc.). Nesse sentido, fala-nos do estado do mundo: poucos sabem o que andam a fazer, ou sabem fazer bem, incluindo os homens que fabricam cartazes de emergência dos prédios. O melhor é ir pelas escadas.

A Grécia, por exemplo. Depois de semanas de paranóia, deixaram os deputados um dia inteiro a votar, na maior agonia, cercados no Parlamento, o novo plano de austeridade. Quando eles votaram sim, e iam entrar no elevador do novo pacote de ajuda, para a Grécia subir um andar acima da bancarrota, dizem-lhes que o elevador afinal não era para usar, melhor é falirem imediatamente... Atenas está a arder, fuja pelas escadas.

Perceberam o exemplo? Eu também não, mas a arte é para sentir, viver as perplexidades, não tem que fazer sentido, digo eu, mas sei lá.

A situação a que chegou Portugal tem uma nova palavra (além do "lixo" bancário). A crise já não é pesada, dura, muito grave, péssima ou dramática. Estamos a atingir a sagração do séc XXI: a coisa começa a ser ridícula. Ouço esta palavra em novos contextos práticos, da cultura à restauração, do funcionalismo público à construção civil, do jornalismo à possibilidade de fazer e criar filhos.

Vi um cartaz no tablier de um carro de Lisboa: "Senhor fiscal da EMEL, sou funcionária nesta rua, trabalho na firma de advogados (...) aqui ao lado. Por favor, não me multe, eu ganho tão pouco! Chame-me, toque à campainha..." Um carro azul com 20 anos, talvez. A chapa cozida ao sol durante verões inteiros, um carro que não conheceu garagem, a tinta azul em farrapos, um carro com lepra. Como é que faz o fiscal quando passa, cumpre o dever com o Estado, cobra sempre, ou há escapatórias sentimentais no regulamento? Conhece esta mulher? E ela, espreita-o da janela, pinta os lábios para o enfrentar, convida-o para um café, o preço de meia hora de parquímetro, que tipo de solidão é a deles?

[Noutro ponto da cidade, da varanda onde escrevo, vejo um fiscal colar a multa num carro novo, aquele pagará? O fiscal prossegue a caça, gordo no seu kispo às riscas, mas são cada vez menos, cada vez menos, dantes pareciam coelhos nesta zona, agora há muito poucos carros, quase nem dá para comer...]

O escritor chinês Jimmy Qi perguntou-me se em Portugal há operadores de elevador. Acho que já não há, talvez num ou dois hotéis de luxo?... Mas em Pequim agora há operadores de elevador em todos os prédios grandes e ricos. Ele escreveu uma novela em que um jovem da província se convence de que o seu trabalho é extraordinariamente especializado, mais difícil que maquinista de comboio, motorista de pesados, piloto de avião.

Talvez um dia me faça piloto do meu elevador, para cima e para baixo, levando todos onde querem, enfrentando os perigos do mundo.

O que vem depois da palavra ridículo é o que iremos saber nos próximos meses.

Escritor

rui.cardoso.martins@publico.pt

Sugerir correcção