ARTE

Livro revive Joan Moritz Rugendas, um dos artistas que criou as primeiras imagens do Brasil

Apesar da relevância para construir uma imagem do Brasil, apenas agora, Rugendas ganha um livro com as obras completas dos desenhos e pinturas da era colonial

 Índios com viajantes europeus -  (crédito:  Editora Capivara)
Índios com viajantes europeus - (crédito: Editora Capivara)
postado em 02/01/2024 03:55

As gravuras do alemão Joan Moritz Rugendas sobre os tipos humanos, as cenas de rua, os costumes e a natureza do Brasil estão presentes nas páginas dos livros didáticos, nos corredores ou nos consultórios dos dentistas. Ele é, ao lado de Jean-Baptiste Debret, o mais célebre dos artistas-viajantes que documentaram o Brasil na primeira metade do século 19. Apesar da relevância para construir uma imagem do Brasil, apenas agora, Rugendas ganha um livro com as obras completas dos desenhos e pinturas da era colonial, graças a um árduo trabalho de pesquisa de mais de 20 anos dos professores Pablo Diener e Maria de Fátima Costa. Só foi possível reunir toda a obra de Rugendas porque muitas gravuras pertencem a coleções privadas:”Isso depende da vontade e do conhecimento do proprietário”, explica Pablo Diener. “À medida em que o nosso trabalho foi difundido, se tornou mais fácil o acesso.”

Diener é doutor em história da arte pela Universidade de Zurique e Maria é doutora em história pela Universidade de São Paulo. Para compor essa terceira edição de Rugendas e o Brasil (Ed. Capivara), publicado em edição esmerada, eles consultaram coleções públicas e privadas no Brasil e no exterior. E, nesta entrevista, Diener e Maria falam sobre a relevância de Rugendas, a visão sobre indígenas e afrodescendentes e as contradições nas imagens produzidas sobre o país.

Por que só agora foi possível reunir o acervo mais completo de imagens e informações sobre Rugendas?
Pablo Diener - De fato, nós temos trabalhado sobre Rugendas há mais de 20 anos para o estudo do trabalho dele no Brasil. É verdade que no percurso dos anos estamos completando o registro do acervo. Isso tem a ver com a dispersão da obra de Rugendas, parte está em mãos privadas. Depende da vontade e do conhecimento do proprietário tenha. À medida em que o nosso trabalho vai se difundido se torna cada vez mais fácil o acesso. As portas se abrem. É um convite a ampliar a informação.

O que esta edição da obra de Rugendas traz de novidade?

Pablo Diener - A primeira edição é de 2002; a segunda, de 2012. A terceira é um trabalho demorado. A grande novidade é uma paisagem espetacular do interior da mata tropical no Brasil. É de 1842, apareceu agora em São Paulo. Provavelmente, pertence à obra que fez durante sua passagem pelo Chile. Foi feita para comercializar. É, sem dúvida, um achado. As informações chegam somente quando as pessoas se dispõem a compartilhar os dados.

Quem era Rugendas e que tipo de relação ele estabeleceu com o Brasil?

Maria de Fátima Costa - Rugendas chegou ao Brasil em março de 1822, como integrante da expedição de Langsdorff. Era um jovem de apenas 19 anos, mas oriundo de uma consolidada e prestigiosa família de artistas estabelecidos em Munique. E foi justamente essa qualidade que o levou a ser contratado pela expedição Langsdorff. Além disso, há uma carta do pai de Rugendas, em que diz que o filho tinha um incontrolável entusiasmo por viajar e uma consciência do que era a fama. Era um artista que vislumbrava chegar a algum lugar pelo talento. Quanto à relação que estabeleceu com o Brasil, ao chegar se encantou com a paisagem, a luz e a riqueza. A exuberância tropical o fascinou tanto quanto a feição multiétnica da população. A relação com o Brasil foi germinal, semente que germinou e floresceu por toda a vida. Rugendas tem uma vida de artista-viajante. Não voltou para a Europa e se estabeleceu de maneira sedentária. Toda a sua vida foi de artista-viajante. Depois, o Brasil vai com ele para a Europa por meio dos desenhos que produziu e se transforma em seu livro-álbum Viagens pitorescas. Chegou à Europa com desenhos de um país que todos gostariam de conhecer. Esse material lhe abriu novas portas de muitas possibilidades. A partir de 1941 viaja do México à Patagônia e chega ao Brasil em 1946.

O que distingue o olhar e a técnica de Rugendas como ilustrador-viajante sobre o Brasil?

Pablo Diener - Uma diferença relevante, na minha opinião, é a extraordinária qualidade do desenho de Rugendas. É um grande desenhista e talvez o único que pode ser comparado a ele é Aimé-Adrien Taunay, o jovem artista que morreu afogado no interior do Brasil. É uma obra pequena em contraponto à de Rugendas, que tem um acervo gigantesco. Ele foi provavelmente um dos maiores, senão o maior desenhista-viajante da primeira metade do século 19. Além da qualidade do trabalho dele, teve a colaboração de um grande editor, uma das grandes figuras de publicações de viajantes. Ele fez edições primorosas das litografias de Rugendas.

Quais as distinções entre a visão de Rugendas e as de outros ilustradores-viajantes, tais como Jean-Baptist Debret ou Hercules Florence?

Maria de Fátima Costa - Penso que a principal distinção é que ele é o artista-viajante. Debret era um artista de corte, por excelência, de temas históricos. Discípulo de David, chegou ao Brasil em 1816, na missão francesa, e ficou aqui até 1831. Mas ele pouquíssimo circulou. Debret era um artista ficante, se reduz praticamente ao Rio de Janeiro. Embora tenha cenas de outras localidades, discute-se muito se realmente viajou, se circulou. Rugendas é um artista-viajante, animado pelo impulso incontrolável pela errância, como disse o pai dele em carta. Queria viajar para ver o mundo e representá-lo. Já Florence, que também fez parte da expedição Langsdorff, chega ao Brasil por conta prórpia. Foi empregado no comércio carioca em livrarias e ingressou na expedição por meio de um anúncio de jornal. Era um faz-tudo, realizava pequenos serviços. Existe uma passagem nos diários dele em que cobra de Langdorff a oportunidade para ser artista. E, aos poucos, se torna um excelente documentador visual. E ele é responsável pela memória da expedição Langsdorff. Se a gente comparar com Rugendas, a qualidade dele é inferior. Rugendas é o artista-viajante por excelência.

Que olhar Rugendas dirigiu aos índios e aos negros escravizados do Brasil?

Pablo Diener - Penso que tanto para a população indígena quanto para a população afrodescendente o que predomina é um olhar anedótico. Rugendas procura fazer uma representação do curioso ou do diferente. Há uma tendência de estudos cenográficos. A maior parte dessas cenas tem muito de fantasia, cria imagens de questões das quais provavelmente ouviu falar, mas não deve ter vivido. Isso faz parte de uma espécie de folclore de informações que circulavam no mundo alemão que configuravam a versão do que ele via. Quanto à representação da população escravizada ao menos o que sugere os desenhos com aquelas conotações de olhar socialmente crítico, provavelmente não seja o primeiro olhar. É um olhar mais elaborado, as imagens foram reelaboradas quando Rugendas estava na Europa. Um papel importante foi a do seu amigo Huber, uma personalidade que punha ênfase contra a escravidão. Talvez tenha orientado Rugendas quanto à questão dos trabalhos forçados.

Qual a relevância das imagens que Rugendas registrou sobre o Brasil para a história do país?

Maria de Fátima Costa - Sem dúvida, a relevância das imagens de Rugendas é enorme para a história do Brasil. Mesmo sem saber, convivemos com essas imagens antes de entrar nas escolas. Mas, principalmente, quando adentramos nas escolas porque as gravuras de Viagens pitorescas estão em todos os livros, ilustrando os mais diferentes temas: vida social, população negra, indígenas, paisagem, vida urbana. Estão em consultório de dentista, corredores ou na sala de pessoas comuns. Convivemos com essas imagens. Nosso olhar adentra nesse universo de Rugendas. E, nesse caso , podemos dizer que ele divide a onipresença com Debret. E isso tem levado a uma visão estereotipada do nosso passado, principalmente sobre o trabalho compulsório.

Em que sentido?

Maria de Fátima Costa - Rugendas tem uma litografia sobre a colheita do café na floresta da Tijuca, sob o fundo belíssimo da Baía da Guanabara. E aí vemos homens e mulheres escravizados trabalhando em um estado de encantamento, como se estivessem em um momento de lazer e não em uma colheita forçada de café. É mais uma imagem construída na Europa para preencher um vazio. É uma cena mais de lazer do que de trabalho. Mas, por outro lado, Rugendas nos legou imagens emblemáticas dos maus-tratos à população escravizada. Me refiro à representação do interior do navio negreiro, o tumbeiro, um amontoado de corpos sem espaço. É uma das imagens mais marcantes e mais reproduzidas, que mostra o outro lado da questão. Na verdade, Rugendas tem um diálogo bastante bipolar em Viagens pitorescas quanto ao trabalho dos escravizados.

  • Paisagem na mata
    Paisagem na mata Foto: Fotos: Editora Capivara
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